O Problema da Autoridade Política [1 ed.]

Frequentemente atribui-se ao Estado um tipo especial de autoridade que o autoriza a impor suas ordens por meio de ameaça

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Table of contents :
Prefácio
I A Ilusão da Autoridade
O Problema da Autoridade Política
Uma parabola política
O conceito de autoridade: uma primeira passagem
Ações versus agentes: a necessidade de autoridade
O significado de coerção e o alcance da autoridade
O conceito de autoridade: uma segunda passagem
Um comentário sobre metodologia
Plano do livro
A Teoria Tradicional do Contrato Social
A ortodoxia do contrato social
A teoria do contrato social explícito
A teoria do contrato social implícito
Condições para acordos válidos
O contrato social é válido?
A dificuldade de optar por não participar
A falta de reconhecimento da dissidência explícita
Imposição incondicional
Ausência de obrigação mútua
Conclusão
A Teoria do Contrato Social Hipotético
Argumentos do consentimento hipotético
Consentimento hipotético na ética comum
Consentimento hipotético e razoabilidade
Concordância hipotética como evidência de razoabilidade
Pode ser alcançado um acordo?
A validade do consentimento hipotético
Consentimento hipotético e restrições éticas
A teoria do contrato de Rawls como uma defesa da autoridade
Pode ser alcançado um acordo?
A validade do consentimento hipotético, parte 1: o apelo a resultados justos
A validade do consentimento hipotético, parte 2: condições suficientes para um raciocínio moral confiável
A validade do consentimento hipotético, parte 3: condições necessárias para um raciocínio moral confiável
Conclusão
A Autoridade da Democracia
Majoritarismo ingênuo
Democracia deliberativa e legitimidade
A ideia de democracia deliberativa
Democracia deliberativa como fantasia
A irrelevância da deliberação
Igualdade e autoridade
O argumento da igualdade
Uma teoria da justiça absurdamente exigente?
Apoiando a democracia através da obediência
A igualdade democrática é exclusivamente pública?
Respeitando os julgamentos de outras pessoas
Coerção e tratando os outros como inferiores
Da obrigação para a legitimidade?
Conclusão
Consequencialismo e Equidade
Argumentos consequencialistas para obrigação política
A estrutura dos argumentos consequencialistas para obrigação política
Os benefícios do governo
O dever de fazer o bem
O problema da redundância individual
Consequencialismo de regras
Equidade
A teoria da equidade da obrigação política
Obediência como custo de bens políticos
Obrigação política para dissidentes
Particularidade e a questão de bens alternativos
O problema da legitimidade
Uma explicação consequencialista da legitimidade
Abrangência e independência de conteúdo
Supremacia
Conclusão
A Psicologia da Autoridade
A relevância da psicologia
Este livro é perigoso?
O apelo à opinião popular
O experimento de Milgram
Método
Previsões
Resultados
Os perigos da obediência
A falta de confiabilidade de opiniões sobre autoridade
Dissonância cognitiva
Demonstração social e viés de status quo
O poder da estética política
Símbolos
Rituais
Linguagem de autoridade
Síndrome de Estocolmo e o carisma do poder
O fenômeno da Síndrome de Estocolmo
Por que a Síndrome de Estocolmo ocorre?
Quando ocorre a Síndrome de Estocolmo?
Os cidadãos comuns são propensos à Síndrome de Estocolmo?
Estudos de caso sobre abuso de poder
My Lai revisitado
O Experimento Prisional de Stanford (EPS)
Lições do EPS
Conclusão: anatomia de uma ilusão
E se Não Existir Autoridade?
Algumas implicações políticas
Prostituição e moralismo legal
Drogas e paternalismo
Rent seeking
Imigração
A proteção dos direitos individuais
Tributação e financiamento do governo
O caso da ajuda aos pobres
Bem-estar e criança afogando
A utilidade dos programas antipobreza
Os programas antipobreza são direcionados adequadamente?
Um choque de analogias: criança afogando e assalto para caridade
No caso do acima mencionado estiver errado
Implicações para os agentes do Estado
Implicações para cidadãos particulares
Em louvor aos desobedientes
A aceitação da punição
Resistência violenta
Em defesa da anulação do júri (jury nullification)
Objeções em apoio ao culto à regra
Todos podem fazer o que desejam?
Processo versus substância
Minando a ordem social?
As consequências da doutrina da independência do conteúdo
Uma modesta fundamentação libertária
II Sociedade sem Autoridade
Avaliando as Teorias Sociais
Observações gerais sobre a avaliação racional das teorias sociais
A avaliação racional é comparativa
A avaliação racional é abrangente
Variedades de governo e anarquia
Contra o viés do status quo
Uma concepção simplificada da natureza humana
Os seres humanos são aproximadamente racionais
Os seres humanos estão cientes do seu ambiente
Os seres humanos são egoístas, mas não sociopatas
A favor da simplificação
Uma aplicação histórica
Utopia e realismo
O princípio do realismo
Prescrição para um anarquismo realista
Contra o estatismo utópico
A Lógica da Predação
O argumento hobbesiano para o governo
Predação no estado de natureza
Considerações da teoria dos jogos
Condições sociais que afetam a prevalência de violência
Violência entre Estados
Predação em um Estado totalitário
Predação sob democracia
A tirania da maioria
O destino dos não-eleitores
Ignorância e irracionalidade dos eleitores
Ativismo: uma solução utópica
A mídia: o cão de guarda adormecido
O milagre da agregação
As recompensas pelo fracasso
Limites constitucionais
Sobre freios, contrapesos e separação de poderes
Conclusão
Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado
Um sistema de justiça não-estatal
Agências de proteção
Empresas de arbitragem
Isso é anarquia?
Conflito entre protetores
Os custos da violência
Oposição ao assassinato
Conflito entre governos
Proteção para criminosos
A rentabilidade da aplicação de direitos
Proteção criminal por governos
Justiça à venda
Direito preexistente
Baseando a lei na justiça
Comprando justiça do governo
Segurança para os pobres
As empresas servem os pobres?
Quão bem o governo protege os pobres?
A qualidade da proteção
Crime organizado
Proteção ou extorsão?
A disciplina da competição
Extorsão pelo governo
Monopolização
A vantagem do tamanho em combate
Determinando o tamanho eficiente das empresas
Monopólio do governo
Colusão e cartelização
O problema tradicional dos carteis
Cartelização por ameaça de força
Cartelização por negação de proteção estendida
Associações de proprietários residenciais (APR) versus governo
Conclusão
Justiça Criminal e Resolução de Disputas
A integridade dos árbitros
Manipulação corporativa
Recusando arbitragem
Por que obedecer os árbitros?
A fonte da lei
Punição e restituição
Crimes não compensáveis
Restituição excessiva
A qualidade da lei e da justiça sob uma autoridade central
Condenações injustas
Excesso de oferta da lei
O preço da justiça
O fracasso da prisão
Reforma ou anarquia?
Conclusão
Guerra e Defesa da Sociedade
O problema da defesa da sociedade
Defesa não-governamental
Guerra de guerrilha
A dificuldade de conquistar um território não governado
Resistência não-violenta
Conclusões
Evitando conflitos
Agressão humana natural
Terra e recursos
Espirais de conflito e disputas entre governos
Relações de poder
A paz democrática liberal
Se você deseja guerra, prepare-se para a guerra
Evitando o terrorismo
A ameaça terrorista
As raízes do terrorismo
Soluções violentas e não-violentas
Os perigos da “segurança nacional”
O risco de agressão injusta
O risco de um desastre global
Conclusão
Da Democracia à Anarquia
Contra o viés do presente: as perspectivas de mudança radical
Passos em direção à anarquia
Terceirização de funções judiciais
Terceirização de funções policiais
O fim dos exércitos permanentes
O resto do caminho
A expansão geográfica da anarquia
A importância das ideias
Conclusão
O argumento da parte I
O argumento da parte II
O argumento deste capítulo
Referências
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O Problema da Autoridade Política [1 ed.]

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O Problema da Autoridade Política Um Exame do Direito de Coagir e do Dever de Obedecer

Michael Huemer

O Problema da Autoridade Política Um Exame do Direito de Coagir e do Dever de Obedecer

Michael Huemer

Universidade do Colorado em Boulder

Giácomo de Pellegrini

Tradução

Igor R. & Julio L. Edição e Notas

Sociedade Aberta

Conteúdo Prefácio

I

viii

A Ilusão da Autoridade

1

1 O Problema da Autoridade Política 1.1 Uma parabola política 1.2 O conceito de autoridade: uma primeira passagem 1.3 Ações versus agentes: a necessidade de autoridade 1.4 O significado de coerção e o alcance da autoridade 1.5 O conceito de autoridade: uma segunda passagem 1.6 Um comentário sobre metodologia 1.7 Plano do livro

2 2 4 6 7 10 13 16

2 A Teoria Tradicional do Contrato Social 2.1 A ortodoxia do contrato social 2.2 A teoria do contrato social explícito 2.3 A teoria do contrato social implícito 2.4 Condições para acordos válidos 2.5 O contrato social é válido? 2.5.1 A dificuldade de optar por não participar 2.5.2 A falta de reconhecimento da dissidência explícita 2.5.3 Imposição incondicional 2.5.4 Ausência de obrigação mútua 2.6 Conclusão

18 18 19 20 22 25 25 27 28 29 32

3 A Teoria do Contrato Social Hipotético 3.1 Argumentos do consentimento hipotético 3.2 Consentimento hipotético na ética comum 3.3 Consentimento hipotético e razoabilidade 3.3.1 Concordância hipotética como evidência de razoabilidade 3.3.2 Pode ser alcançado um acordo?

33 33 34 36 36 37

i

CONTEÚDO 3.3.3 A validade do consentimento hipotético 3.4 Consentimento hipotético e restrições éticas 3.4.1 A teoria do contrato de Rawls como uma defesa da autoridade 3.4.2 Pode ser alcançado um acordo? 3.4.3 A validade do consentimento hipotético, parte 1: o apelo a resultados justos 3.4.4 A validade do consentimento hipotético, parte 2: condições suficientes para um raciocínio moral confiável 3.4.5 A validade do consentimento hipotético, parte 3: condições necessárias para um raciocínio moral confiável 3.5 Conclusão

ii 40 42 42 45 47 48 51 53

4 A Autoridade da Democracia 4.1 Majoritarismo ingênuo 4.2 Democracia deliberativa e legitimidade 4.2.1 A ideia de democracia deliberativa 4.2.2 Democracia deliberativa como fantasia 4.2.3 A irrelevância da deliberação 4.3 Igualdade e autoridade 4.3.1 O argumento da igualdade 4.3.2 Uma teoria da justiça absurdamente exigente? 4.3.3 Apoiando a democracia através da obediência 4.3.4 A igualdade democrática é exclusivamente pública? 4.3.5 Respeitando os julgamentos de outras pessoas 4.3.6 Coerção e tratando os outros como inferiores 4.3.7 Da obrigação para a legitimidade? 4.4 Conclusão

55 55 56 56 57 60 61 61 64 66 67 69 70 72 74

5 Consequencialismo e Equidade 5.1 Argumentos consequencialistas para obrigação política 5.1.1 A estrutura dos argumentos consequencialistas para obrigação política 5.1.2 Os benefícios do governo 5.1.3 O dever de fazer o bem 5.1.4 O problema da redundância individual 5.2 Consequencialismo de regras 5.3 Equidade 5.3.1 A teoria da equidade da obrigação política 5.3.2 Obediência como custo de bens políticos 5.3.3 Obrigação política para dissidentes 5.3.4 Particularidade e a questão de bens alternativos

76 76 76 76 78 79 80 81 81 83 86 87

CONTEÚDO 5.4 O problema da legitimidade 5.4.1 Uma explicação consequencialista da legitimidade 5.4.2 Abrangência e independência de conteúdo 5.4.3 Supremacia 5.5 Conclusão

iii 88 88 89 93 94

6 A Psicologia da Autoridade 96 6.1 A relevância da psicologia 96 6.1.1 Este livro é perigoso? 96 6.1.2 O apelo à opinião popular 97 6.2 O experimento de Milgram 100 6.2.1 Método 100 6.2.2 Previsões 102 6.2.3 Resultados 102 6.2.4 Os perigos da obediência 103 6.2.5 A falta de confiabilidade de opiniões sobre autoridade 104 6.3 Dissonância cognitiva 105 6.4 Demonstração social e viés de status quo 108 6.5 O poder da estética política 110 6.5.1 Símbolos 110 6.5.2 Rituais 112 6.5.3 Linguagem de autoridade 114 6.6 Síndrome de Estocolmo e o carisma do poder 117 6.6.1 O fenômeno da Síndrome de Estocolmo 117 6.6.2 Por que a Síndrome de Estocolmo ocorre? 119 6.6.3 Quando ocorre a Síndrome de Estocolmo? 120 6.6.4 Os cidadãos comuns são propensos à Síndrome de Estocolmo?121 6.7 Estudos de caso sobre abuso de poder 123 6.7.1 My Lai revisitado 123 6.7.2 O Experimento Prisional de Stanford (EPS) 125 6.7.3 Lições do EPS 125 6.8 Conclusão: anatomia de uma ilusão 128 7 E se Não Existir Autoridade? 7.1 Algumas implicações políticas 7.1.1 Prostituição e moralismo legal 7.1.2 Drogas e paternalismo 7.1.3 Rent seeking 7.1.4 Imigração 7.1.5 A proteção dos direitos individuais 7.1.6 Tributação e financiamento do governo

130 131 131 132 134 135 136 138

CONTEÚDO

iv

7.2 O caso da ajuda aos pobres 141 7.2.1 Bem-estar e criança afogando 141 7.2.2 A utilidade dos programas antipobreza 142 7.2.3 Os programas antipobreza são direcionados adequadamente?145 7.2.4 Um choque de analogias: criança afogando e assalto para caridade 147 7.2.5 No caso do acima mencionado estiver errado 152 7.3 Implicações para os agentes do Estado 153 7.4 Implicações para cidadãos particulares 155 7.4.1 Em louvor aos desobedientes 155 7.4.2 A aceitação da punição 156 7.4.3 Resistência violenta 158 7.4.4 Em defesa da anulação do júri (jury nullification) 160 7.5 Objeções em apoio ao culto à regra 161 7.5.1 Todos podem fazer o que desejam? 161 7.5.2 Processo versus substância 163 7.5.3 Minando a ordem social? 164 7.5.4 As consequências da doutrina da independência do conteúdo166 7.6 Uma modesta fundamentação libertária 167

II

Sociedade sem Autoridade

172

8 Avaliando as Teorias Sociais 8.1 Observações gerais sobre a avaliação racional das teorias sociais 8.1.1 A avaliação racional é comparativa 8.1.2 A avaliação racional é abrangente 8.1.3 Variedades de governo e anarquia 8.1.4 Contra o viés do status quo 8.2 Uma concepção simplificada da natureza humana 8.2.1 Os seres humanos são aproximadamente racionais 8.2.2 Os seres humanos estão cientes do seu ambiente 8.2.3 Os seres humanos são egoístas, mas não sociopatas 8.2.4 A favor da simplificação 8.2.5 Uma aplicação histórica 8.3 Utopia e realismo 8.3.1 O princípio do realismo 8.3.2 Prescrição para um anarquismo realista 8.3.3 Contra o estatismo utópico

173 173 173 174 174 175 177 177 178 179 181 182 183 183 184 186

9 A Lógica da Predação

188

CONTEÚDO 9.1 O argumento hobbesiano para o governo 9.2 Predação no estado de natureza 9.2.1 Considerações da teoria dos jogos 9.2.2 Condições sociais que afetam a prevalência de violência 9.2.3 Violência entre Estados 9.3 Predação em um Estado totalitário 9.4 Predação sob democracia 9.4.1 A tirania da maioria 9.4.2 O destino dos não-eleitores 9.4.3 Ignorância e irracionalidade dos eleitores 9.4.4 Ativismo: uma solução utópica 9.4.5 A mídia: o cão de guarda adormecido 9.4.6 O milagre da agregação 9.4.7 As recompensas pelo fracasso 9.4.8 Limites constitucionais 9.4.9 Sobre freios, contrapesos e separação de poderes 9.5 Conclusão 10 Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 10.1 Um sistema de justiça não-estatal 10.1.1 Agências de proteção 10.1.2 Empresas de arbitragem 10.2 Isso é anarquia? 10.3 Conflito entre protetores 10.3.1 Os custos da violência 10.3.2 Oposição ao assassinato 10.3.3 Conflito entre governos 10.4 Proteção para criminosos 10.4.1 A rentabilidade da aplicação de direitos 10.4.2 Proteção criminal por governos 10.5 Justiça à venda 10.5.1 Direito preexistente 10.5.2 Baseando a lei na justiça 10.5.3 Comprando justiça do governo 10.6 Segurança para os pobres 10.6.1 As empresas servem os pobres? 10.6.2 Quão bem o governo protege os pobres? 10.7 A qualidade da proteção 10.8 Crime organizado 10.9 Proteção ou extorsão? 10.9.1 A disciplina da competição

v 188 190 190 192 194 195 197 198 198 199 203 204 206 208 210 215 216 218 218 218 219 220 221 221 222 224 226 226 227 228 228 229 230 231 231 232 232 234 237 237

CONTEÚDO 10.9.2 Extorsão pelo governo 10.10 Monopolização 10.10.1 A vantagem do tamanho em combate 10.10.2 Determinando o tamanho eficiente das empresas 10.10.3 Monopólio do governo 10.11 Colusão e cartelização 10.11.1 O problema tradicional dos carteis 10.11.2 Cartelização por ameaça de força 10.11.3 Cartelização por negação de proteção estendida 10.12 Associações de proprietários residenciais (APR) versus governo 10.13 Conclusão

vi 239 240 240 241 243 244 244 245 246 248 249

11 Justiça Criminal e Resolução de Disputas 11.1 A integridade dos árbitros 11.2 Manipulação corporativa 11.3 Recusando arbitragem 11.4 Por que obedecer os árbitros? 11.5 A fonte da lei 11.6 Punição e restituição 11.7 Crimes não compensáveis 11.8 Restituição excessiva 11.9 A qualidade da lei e da justiça sob uma autoridade central 11.9.1 Condenações injustas 11.9.2 Excesso de oferta da lei 11.9.3 O preço da justiça 11.9.4 O fracasso da prisão 11.9.5 Reforma ou anarquia? 11.10 Conclusão

251 251 253 255 256 257 258 259 260 263 264 266 268 269 270 271

12 Guerra e Defesa da Sociedade 12.1 O problema da defesa da sociedade 12.2 Defesa não-governamental 12.2.1 Guerra de guerrilha 12.2.2 A dificuldade de conquistar um território não governado 12.2.3 Resistência não-violenta 12.2.4 Conclusões 12.3 Evitando conflitos 12.3.1 Agressão humana natural 12.3.2 Terra e recursos 12.3.3 Espirais de conflito e disputas entre governos 12.3.4 Relações de poder

273 273 274 274 276 276 279 280 281 282 283 286

CONTEÚDO 12.3.5 A paz democrática liberal 12.3.6 Se você deseja guerra, prepare-se para a guerra 12.4 Evitando o terrorismo 12.4.1 A ameaça terrorista 12.4.2 As raízes do terrorismo 12.4.3 Soluções violentas e não-violentas 12.5 Os perigos da “segurança nacional” 12.5.1 O risco de agressão injusta 12.5.2 O risco de um desastre global 12.6 Conclusão

vii 287 290 294 294 296 298 300 300 302 303

13 Da Democracia à Anarquia 13.1 Contra o viés do presente: as perspectivas de mudança radical 13.2 Passos em direção à anarquia 13.2.1 Terceirização de funções judiciais 13.2.2 Terceirização de funções policiais 13.2.3 O fim dos exércitos permanentes 13.2.4 O resto do caminho 13.3 A expansão geográfica da anarquia 13.4 A importância das ideias 13.5 Conclusão 13.5.1 O argumento da parte I 13.5.2 O argumento da parte II 13.5.3 O argumento deste capítulo

305 305 309 309 310 311 312 313 314 317 317 319 320

Referências

322

Prefácio Este livro aborda o problema fundamental da filosofia política: o problema de prestar contas à autoridade do governo. Essa autoridade sempre me pareceu intrigante e problemática. Por que 535 pessoas em Washington deveriam ter o direito de emitir ordens para 300 milhões de pessoas? E por que os outros devem obedecer? Essas perguntas, como afirmo nas páginas a seguir, não têm respostas satisfatórias. Por que isso é importante? Quase todo discurso político se concentra em que tipo de políticas o governo deve fazer, e quase todo mundo – seja na filosofia política ou nos fóruns populares – pressupõe que o governo tenha um tipo especial de autoridade para emitir ordens para o resto da sociedade. Quando discutimos sobre qual deveria ser a política de imigração do governo, por exemplo, normalmente pressupomos que o Estado tenha o direito de controlar o movimento de entrada e saída do país. Quando discutimos sobre a melhor política tributária, pressupomos que o Estado tenha o direito de obter riqueza dos indivíduos. Quando discutimos sobre a reforma da saúde, pressupomos que o Estado tenha o direito de decidir como a assistência médica deve ser prestada e paga. Se, como espero convencê-lo, esses pressupostos estão equivocados, quase todo o nosso discurso político atual está equivocado e deve ser fundamentalmente repensado. Quem deveria ler esse livro? As questões abordadas aqui são relevantes para qualquer pessoa interessada em política e governo. Espero que meus colegas filósofos aproveitem, mas também espero que alcance além desse pequeno grupo. Portanto, tentei minimizar o jargão acadêmico e manter a redação o mais clara e direta possível. Não pressuponho nenhum conhecimento especializado. Este é um livro de ideologia extremista? Sim e não. Defendo algumas conclusões radicais nas páginas seguintes. Mas, embora eu seja extremista, sempre me esforcei para ser razoável. Eu raciocino com base no que me parecem juízos éticos de senso comum. Não suponho uma grande teoria filosófica controversa, uma interpretação absolutista de algum valor particular ou um conjunto de afirmações empíricas duvidosas. Isso quer dizer que, embora minhas conclusões sejam altamente controversas, minhas premissas não são. Além disso, tenho me esforçado para abordar pontos de vista alternativos de maneira justa e razoável. viii

Prefácio

ix

Considero detalhadamente as tentativas mais interessantes e plausíveis de justificar a autoridade governamental. Quando se trata de minha própria visão política, abordo todas as importantes objeções encontradas na literatura e na tradição oral. Sendo a política como é, não posso esperar convencer partidários comprometidos de outras ideologias. Meu objetivo, no entanto, é convencer aqueles que mantém a mente aberta em relação ao problema da autoridade política. O que há neste livro? Os capítulos 2 a 5 discutem teorias filosóficas sobre a base da autoridade do Estado. O capítulo 6 discute evidências psicológicas e históricas sobre nossas atitudes em relação à autoridade. O capítulo 7 faz a pergunta, se não há autoridade, como os cidadãos e funcionários do governo devem se comportar? É aqui que as recomendações práticas mais imediatas aparecem. A parte II do livro propõe uma estrutura social alternativa não baseada em autoridade. Os capítulos 10 a 12 abordam os problemas práticos mais óbvios para essa sociedade. O último capítulo discute se e como as mudanças que recomendo podem ocorrer. Desejo agradecer a alguns amigos e colegas que me ajudaram neste livro. Bryan Caplan, David Boonin, Jason Brennan, Gary Chartier, Kevin Vallier, Matt Skene, David Gordon e Eric Chwang fizeram comentários valiosos que ajudaram a eliminar erros e melhorar o texto em vários lugares. Sou grato pela generosidade deles. Se houver algum erro, o leitor pode procurar esses professores e perguntar por que não os corrigiram. O trabalho foi concluído com a ajuda de um fellowship do Centro de Ciências Humanas e Artes da Universidade do Colorado no ano acadêmico de 2011-12, pelo qual também sou grato por essa assistência.

Parte I A Ilusão da Autoridade

1

1 O Problema da Autoridade Política 1.1

Uma parabola política

Vamos começar com uma pequena história política. Você mora em uma pequena vila com um problema de crime. Vândalos vagam pela vila, roubando e destruindo as propriedades das pessoas. Parece que ninguém está fazendo nada a respeito. Então, um dia, você e sua família decidem acabar com isso. Você pega suas armas e sai para procurar os vândalos. Periodicamente, você pega um, leva-o de volta para sua casa com uma arma e o tranca no porão. Você fornece comida aos prisioneiros para que eles não passem fome, mas planeja mantê-los trancados no porão por alguns anos para ensinar-lhes uma lição. Depois de operar dessa maneira por algumas semanas, você decide percorrer o bairro, começando com o vizinho do lado. Quando ele atende a porta, você pergunta: “Você notou a redução do crime nas últimas semanas?” Ele assente. “Bem, isso é graças a mim.” Você explica seu programa anticrime. Observando o olhar cauteloso no rosto do seu vizinho, você continua. “De qualquer forma, estou aqui porque é hora de cobrar sua contribuição para o fundo de prevenção ao crime. Sua fatura do mês é de $100,00.” Enquanto seu vizinho olha para você, sem fazer nenhum movimento aparente para entregar o dinheiro, você pacientemente explica que, se ele se recusar a fazer o pagamento exigido, infelizmente você terá que rotulá-lo de criminoso; nesse ponto, ele estará sujeito a um confinamento de longo período em seu porão, juntamente com os vândalos acima mencionados. Indicando a pistola no seu quadril, você nota que está preparado para pegá-lo à força, se necessário. Supondo que você adote essa atitude com todos os seus vizinhos, que tipo de recepção você poderia esperar? Cederia alegremente sua parcela dos custos da prevenção ao crime?

2

1. O Problema da Autoridade Política

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Não é provável. Com toda a probabilidade, você observaria o seguinte. Primeiro, quase ninguém concorda que os vizinhos lhe devem alguma coisa. Enquanto alguns podem pagar por medo de prisão em seu porão e alguns podem pagar por hostilidade contra os vândalos, quase nenhum se consideraria obrigado a pagá-lo. Aqueles que se recusaram a pagar provavelmente seriam louvados ao invés de condenados por enfrentar você. Segundo, a maioria consideraria suas ações ultrajantes. Suas demandas por pagamento seriam condenadas como extorsão total e o confinamento daqueles que se recusassem a pagar como sequestro. A sua conduta muito ultrajante, combinada com sua presunção iludida de que o resto da vila reconheceria a obrigação de apoiá-lo, faria com que muitos questionassem sua sanidade. O que essa história tem a ver com a filosofia política? Na história, você se comportou como um governo rudimentar. Embora você não tenha assumido todas as funções de um Estado típico e moderno, assumiu dois de seus papéis mais centrais: puniu pessoas que violavam os direitos de outras pessoas ou desobedeceu aos seus comandos e coletou contribuições não voluntárias para financiar suas atividades. No caso do governo, essas atividades são chamadas de sistema de justiça criminal e sistema tributário. No seu caso, são chamados de sequestro e extorsão. Em face disso, suas atividades são do mesmo tipo que as de um governo. No entanto, a avaliação do governo pela maioria das pessoas é muito mais branda do que a avaliação de você na história. A maioria das pessoas apoia a prisão de criminosos pelo Estado, sente-se obrigada a pagar seus impostos e considera a punição dos sonegadores desejável e dentro dos direitos do Estado. Isso ilustra uma característica geral de nossas atitudes em relação ao governo. Os governos são considerados eticamente autorizados a fazer coisas que nenhuma pessoa ou organização não-governamental pode fazer. Ao mesmo tempo, pensa-se que os indivíduos têm obrigações com seus governos que não deveriam para pessoa alguma ou organização não-governamental, mesmo que agentes nãogovernamentais se comportassem de maneira semelhante a um governo. Este não é simplesmente uma questão sobre a lei, nem sobre que tipo de ações podemos fugir. A questão é que nossos julgamentos éticos diferenciam bastante entre ações governamentais e não-governamentais. Atos que seriam considerados injustos ou moralmente inaceitáveis quando praticados por agentes não-governamentais geralmente serão considerados perfeitamente corretos, e até dignos de elogio, quando praticados por agentes governamentais. Daqui em diante, usarei “obrigação” para me referir a obrigações éticas, em vez de meras obrigações legais; da mesma forma para “direitos”.1 1

Alguns pensadores distinguem obrigações de deveres (Hart 1958, 100-4; Brandt 1964). Daqui em diante, no entanto, uso “obrigação” e “dever” de forma intercambiável para denotar qualquer requisito ético.

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Por que concedemos esse status moral especial ao governo e somos justificados ao fazê-lo? Este é o problema da autoridade política.

1.2

O conceito de autoridade: uma primeira passagem

O que é isso no pensamento moral comum que diferencia suas ações na história acima das ações de um governo? De um modo geral, dois tipos de explicação podem ser dadas. Um tipo de explicação é que, apesar das aparências, os dois comportamentos são diferentes, que o governo não está realmente fazendo a mesma coisa que o vigilante. Por exemplo, suponha-se que a diferença crucial seja que o vigilante (você na história) não dá julgamentos justos aos vândalos, como o governo (em alguns países) faz àqueles em que procura punir. Isso poderia explicar por que o comportamento do vigilante é menos legítimo do que o do governo. O outro tipo de explicação é que os dois agentes são diferentes.2 Ou seja, o governo pode estar fazendo as mesmas coisas que o vigilante, mas quem executa faz toda a diferença. Você deve ser condenado na história, não porque não imita fielmente o governo, mas porque está agindo como um governo, embora não seja o governo. É esse segundo tipo de explicação que caracterizo como uma invocação de autoridade política. Autoridade política (doravante, apenas “autoridade”) é a propriedade moral hipotética em virtude da qual os governos podem coagir as pessoas de certas maneiras que não são permitidas a mais ninguém e em virtude da qual os cidadãos devem obedecer aos governos em situações nas quais não seriam obrigados a obedecer a mais alguém. A autoridade, então, tem dois aspectos: i Legitimidade política: o direito, por parte de um governo, de fazer certos tipos de leis e aplicá-las por coerção contra os membros de sua sociedade – em suma, o direito de governar.3 2

Deixo a distinção entre características do agente e características da ação em um nível intuitivo. “As características da ação” devem ser tomadas de alguma forma para excluir características como “ter sido executada por um agente desse tipo”. Da mesma forma, “características do agente” não devem incluir itens como “ser tal que ele executa ações de tal e tal tipo”. 3 Uso “autoridade”, “legitimidade” e “obrigação política” em sentidos técnicos estipulados. Meu uso de “autoridade” e “legitimidade” segue aproximadamente o de Buchanan (2002), mas não exijo que obrigações políticas sejam devidas especificamente ao Estado. O alegado direito de governar do Estado deve ser entendido como um direito de justificação, e não um direito de reivindicação (Ladenson 1980, 137-9); isto é, permite que o Estado faça certas coisas em vez de

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ii Obrigação política: a obrigação dos cidadãos obedecerem a seu governo, mesmo nas circunstâncias em que um não seria obrigado a obedecer ordens semelhantes emitidas por um agente não-governamental. Se um governo tem “autoridade”, então (i) e (ii) existem: o governo tem o direito de governar e os cidadãos têm a obrigação de obedecer. Ter obrigações políticas não significa apenas que é preciso fazer as coisas que a lei ou outros comandos governamentais exigem.4 Por exemplo, a lei proíbe o assassinato, e temos o dever moral de não matar. Mas isso não basta para estabelecer que temos “obrigações políticas”, porque seríamos moralmente obrigados a não matar, mesmo que não houvesse lei contra isso. Mas há outros casos em que, segundo a opinião popular, somos obrigados a fazer as coisas exatamente porque a lei as ordena, e não seríamos obrigados a fazer essas coisas se elas não fossem legalmente exigidas. Por exemplo, a maioria acredita que somos obrigados a pagar impostos sobre nossa renda em países que exigem isso legalmente e que somos obrigados a pagar o valor específico exigido pelo código tributário. Quem pensa que os impostos são muito altos não se sente autorizado a sonegar uma parte de seus impostos. Quem pensa que os impostos são baixos demais não se sente obrigado a enviar dinheiro extra ao governo. E se a lei mudasse para que o imposto de renda não fosse legalmente exigido, não seria mais necessário pagar ao governo essa parte da receita da pessoa. Assim, na mente popular, a obrigação de pagar imposto de renda é uma obrigação política.5 Aqueles que acreditam em autoridade política não precisam sustentar que a autoridade política é incondicional ou absoluta, nem precisam sustentar que todos os governos a possuem. Pode-se sustentar, por exemplo, que a autoridade do Estado depende de respeitar os direitos humanos básicos e de permitir aos cidadãos um certo nível de participação política; assim, os governos tirânicos não têm autoridade. Pode-se também sustentar que mesmo um governo legítimo não pode ordenar uma pessoa, por exemplo, a cometer assassinato, nem que um cidadão seja obrigado a obedecer tal ordem. Um crente na autoridade pode, portanto, acreditar apenas que certos governos têm uma certa esfera limitada de autoridade. Apesar dessas limitações, a autoridade atribuída a alguns governos é uma propriedade moral impressionante. Como vimos na Seção 1.1, essa autoridade impor alguma demanda moral a outros agentes. Meus usos de “legitimidade” e “autoridade” diferem dos de alguns outros teóricos (Simmons 2001, 130; Edmundson 1998, capítulo 2; Estlund 2008, 2). 4 A obrigação política pode se aplicar não apenas às leis, mas também a outros comandos governamentais, como decretos administrativos e ordens judiciais. Esse ponto deve ser entendido por toda parte, embora eu frequentemente fale simplesmente da obrigação de obedecer à lei. 5 A pesquisa do grupo focalizado de Klosko dá algum apoio a essa impressão de atitudes populares (2005, capítulo 9, especialmente 198, 212-18).

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explicaria o direito de executar ações de tipos que seriam considerados muito errados e injustos para qualquer agente não autoritário.

1.3

Ações versus agentes: a necessidade de autoridade

Alguém precisa dessa noção de autoridade para explicar a diferença moral entre o vigilante na Seção 1.1 e o governo? Ou podemos explicar a diferença apelando apenas para diferenças entre o comportamento do governo e o comportamento do vigilante? Na história que a descrevi, havia muitas diferenças entre o comportamento do vigilante e o de um governo típico; no entanto, nenhuma dessas diferenças é essencial. Pode-se modificar o exemplo para remover qualquer diferença que possa ser considerada relevante e, desde que não se converta o vigilante em um governo, a maioria das pessoas ainda julgará intuitivamente o vigilante com muito mais rigor do que os agentes do governo que agem de forma análoga. Assim, considere o fato de que muitos governos fornecem julgamentos justos por júri para criminosos acusados. O vigilante poderia fazer o mesmo. Suponha que toda vez que você pegar um vândalo, pegue alguns de seus vizinhos e forceos a passar por um julgamento. Após a apresentação das evidências, você faz com que seus vizinhos votem na culpa ou inocência do vândalo acusado e usa o resultado para decidir se deve puni-lo. Isso tornaria suas ações aceitáveis? Talvez seu tratamento aos vândalos seja mais justo, mas dificilmente parece legitimar seu programa como um todo. De fato, você agora adicionou outra ofensa à lista de suas ações ultrajantes: sua escravização temporária de seus vizinhos para servir a seu “sistema de justiça”. Considere outra sugestão. Agentes do governo geralmente prendem pessoas apenas por infrações às regras explicitamente publicadas – as leis – enquanto o vigilante as pune apenas de acordo com seu senso interno de certo e errado. Essa diferença também pode ser removida. Suponha que você escreva uma longa lista de comportamentos que considere inaceitáveis, além de relatos do que planeja fazer às pessoas que se envolvem nesses comportamentos. Você publica cópias de suas listas em um quadro de avisos fora de sua casa. Novamente, isso dificilmente é suficiente para legitimar seu comportamento. Uma sugestão mais plausível inicialmente é que seu comportamento é imperceptível porque a comunidade não escolheu você para desempenhar esse papel. Em contraste, nos países democráticos, os cidadãos escolhem seus líderes. (Esse relato implica que apenas governos democráticos são legítimos; portanto, a grande maioria dos governos ao longo da história foi ilegítima e a grande maioria

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das pessoas carecia de obrigações políticas. Essa provavelmente já é uma revisão significativa do senso comum.) Mas observe que esse relato da diferença entre o governo e o vigilante é um apelo à autoridade. Não afirma que o vigilante esteja fazendo algo diferente do que o governo faz; alega que as ações em questão podem ser executadas por um agente e não por outro. O vigilante não tem autoridade para punir criminosos e cobrar impostos porque ele não foi autorizado por sua sociedade. Examino essa teoria da autoridade em um capítulo posterior. Por enquanto, o ponto a observar é simplesmente que é necessário alguma motivação de autoridade.

1.4

O significado de coerção e o alcance da autoridade

A necessidade de uma explicação da legitimidade política surge do significado moral de coerção e da natureza coercitiva do governo. É importante colocar esses princípios claramente em foco, a fim de ter uma visão clara do que precisa ser explicado antes de tentar explicá-lo. Primeiro, o que é coerção? A seguir, uso o termo “coerção” para denotar o uso ou a ameaça de uma pessoa de usar força física contra outra pessoa. Quando falo em forçar uma pessoa a fazer alguma coisa, quero dizer o uso da força física ou a ameaça de força física para induzi-la a executar a ação desejada. Eu uso “força física” e “violência” de forma intercambiável. Não vou definir “força física” aqui; nosso entendimento intuitivo da noção será suficiente para os argumentos subsequentes, e não confiarei em nenhum julgamento controverso sobre o que qualifica como força física. Minha definição de “coerção” não pretende ser uma análise do uso padrão do termo em português. É uma definição estipulada, destinada a evitar a repetição da frase “uso ou ameaça de usar força física”. Meu uso do termo difere do uso comum de pelo menos duas maneiras: primeiro, no sentido comum do termo, quando A “coage” B, A induz B a se comportar de maneira desejada por A; mas, no meu sentido, A pode coagir B ferindo fisicamente B, independentemente de A influenciar ou não o comportamento de B. Segundo, o senso comum considera uma gama mais ampla de ameaças como coercitivas: no sentido comum, A pode “coagir” B usando uma ameaça para espalhar rumores maliciosos sobre B. Isso não se qualificaria como coerção no meu sentido, porque a ameaça não é de violência. O conceito comum de coerção é útil em muitos contextos; no entanto, introduzi uma definição estipulada, pois isso permite considerar alguns argumentos importantes e interessantes a respeito da autoridade política, evitando debates semânticos desnecessários.6 6

Edmundson (1998, capítulo 4) argumenta que o direito normalmente não é coercitivo no sentido comum. Meu uso técnico de “coerção” foi projetado para evitar o argumento de Edmundson,

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O governo é uma instituição coercitiva. De um modo geral, quando o Estado faz uma lei, a lei traz consigo uma punição a ser imposta aos infratores. É possível ter uma lei sem punição especificada por violação, mas todos os governos atuais atribuem punições a quase todas as leis.7 Nem todo mundo que infringir a lei será de fato punido, mas o Estado geralmente fará um esforço razoável para punir os infratores e geralmente punirá um número razoável deles, normalmente com multas ou prisão. Essas punições têm como objetivo prejudicar os infratores da lei e geralmente conseguem fazê-lo. A violência física direta raramente é usada como punição. No entanto, a violência desempenha um papel crucial no sistema, porque sem a ameaça de violência, os infratores da lei poderiam simplesmente optar por não sofrer punição. Por exemplo, o governo ordena que os motoristas parem antes de todos os sinais vermelhos. Se você violar essa regra, poderá ser punido com uma multa de $200. Mas este é simplesmente outro comando. Se você não obedeceu ao comando de parar antes de todos os sinais vermelhos, por que você obedeceria ao comando de pagar $200 ao governo? Talvez o segundo comando seja imposto por um terceiro: o governo pode ameaçar revogar sua carteira de motorista se você não pagar a multa. Em outras palavras, pode ordenar que você pare de dirigir. Mas se você violou os dois primeiros comandos, por que seguiria o terceiro? Bem, o comando para parar de dirigir pode ser imposto por uma ameaça de prisão se você continuar dirigindo sem licença. Como esses exemplos ilustram, os comandos geralmente são aplicados com ameaças para emitir comandos adicionais, mas isso não pode ser tudo o que existe. No final da cadeia deve surgir uma ameaça que o violador literalmente não pode desafiar. O sistema como um todo deve ser ancorado por uma intervenção não voluntária, um dano que o Estado pode impor independentemente das escolhas do indivíduo. Essa âncora é fornecida pela força física. Até a ameaça de aprisionamento exige execução: como o Estado pode garantir que o criminoso vá para a prisão? A resposta está na coerção, envolvendo lesão corporal real ou ameaçada ou, no mínimo, empurrão ou puxão físico do corpo do indivíduo para o local da prisão. Esta é a intervenção final que o indivíduo não pode escolher desafiar. Pode-se optar por não pagar uma multa, pode-se dirigir sem licença e pode-se optar por não caminhar até um carro da polícia para ser levado embora. Mas não se pode optar por não ser submetido à força física se os agentes do Estado decidirem impor. Assim, o sistema jurídico baseia-se na coerção intencional e prejudicial. Para justificar uma lei, é preciso justificar a imposição dessa lei à população por meio de mantendo a presunção moral contra a coerção. 7 Existem algumas exceções, como leis contra suicídio, alguns tratados internacionais e a constituição de um governo.

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uma ameaça de dano, incluindo a imposição coercitiva de dano real àqueles que são flagrados violando a lei. Na moral do senso comum, a ameaça ou imposição coercitiva real de dano está normalmente errada. Isso não quer dizer que não possa ser justificada; é apenas dizer que a coerção requer uma justificativa. Isso pode ser devido à maneira pela qual a coerção desrespeita as pessoas, procurando ignorar sua razão e manipulá-las através do medo, ou a maneira pela qual parece negar a autonomia e a igualdade de outras pessoas. Não tentarei explicação alguma abrangente de quando a coerção é justificada. Confio no julgamento intuitivo de que a coerção prejudicial requer uma justificativa, bem como em algumas intuições sobre condições particulares que constituem ou não justificativas satisfatórias. Por exemplo, uma justificativa legítima é a autodefesa ou defesa de terceiros inocentes: alguém pode coagir outra pessoa se for necessário para impedir que ela prejudique injustamente outra pessoa. Outra justificativa para coerção prejudicial é o consentimento. Assim, se você estiver em uma luta de boxe com a qual ambos os participantes concordaram, poderá dar um soco no seu oponente. Por outro lado, muitas razões possíveis para coerção são claramente inadequadas. Se você tem um amigo que come muitas batatas fritas, tente convencê-lo a desistir. Mas se ele não ouvir, você não pode forçá-lo a parar. Se você admira o carro do seu vizinho, pode se oferecer para comprá-lo. Mas se ele não vender, você não pode ameaçá-lo com violência. Se você não concorda com as crenças religiosas de seu colega de trabalho, tente convertê-lo. Mas se ele não ouvir, você não pode dar um soco em seu nariz. E assim por diante. Na ética do senso comum, a esmagadora maioria das razões para a coerção falha como justificativa. Os Estados modernos precisam de uma explicação da legitimidade política, porque os Estados modernos geralmente coagem e prejudicam os indivíduos por razões que seriam consideradas inadequadas para qualquer agente nãogovernamental. Isso pode ser ilustrado através de algumas melhorias na história da Seção 1.1. Suponha que você anuncie que acredita que uma cidade vizinha está construindo algumas armas muito destrutivas, armas que um dia poderão ser usadas para aterrorizar outras aldeias. Para impedir que isso aconteça, você reúne alguns moradores de mesma opinião e viaja para a cidade vizinha, onde depõe violentamente o prefeito, destruindo alguns edifícios e previsivelmente matando várias pessoas inocentes no processo. Se você se comportasse dessa maneira, seria rotulado de terrorista e assassino, e os pedidos de execução ou prisão perpétua provavelmente seriam abundantes. Mas quando o governo se comporta dessa maneira, seu comportamento é rotulado como “guerra”, e muitos o apoiam. Certamente, muitos rejeitam a ideia de guerra preventiva. Mas apenas extremistas políticos descrevem soldados ou

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líderes do governo que os enviam para a batalha como terroristas e assassinos. Mesmo entre os oponentes da guerra do Iraque em 2003, por exemplo, poucos chegaram a considerar George W. Bush um assassino em massa ou pediram sua execução ou prisão. A noção de autoridade política está em ação aqui: a sensação é de que, seja sua escolha boa ou ruim, o governo é o agente com autoridade para decidir se vai à guerra. Nenhum outro agente tem o direito de cometer violência em larga escala para atingir seus fins em algo como essas circunstâncias. Suponha agora que, em meio a todas as suas outras atividades incomuns, você decida começar a apoiar a caridade. Você encontra uma instituição de caridade que ajuda os pobres. Infelizmente, você acredita que sua aldeia não contribuiu o suficiente para essa instituição de caridade voluntariamente, então você dedica a extração de dinheiro de seus vizinhos à força e a entrega à instituição de caridade. Se você se comportasse dessa maneira, seria rotulado como ladrão e extorsionista e seria comum pedidos para aprisioná-lo e obrigá-lo a retribuir pessoalmente aqueles cujo dinheiro você expropriou. Mas quando o governo se comporta dessa maneira, seu comportamento é conhecido como conduzir programas de assistência social, e a maioria das pessoas o apoia. Certamente, existem alguns que se opõem aos programas de bem-estar social, mas mesmo os oponentes raramente veem os agentes do governo que administram os programas ou os legisladores que votam nos programas como ladrões e extorsionistas. Muito poucos exigiriam a prisão deles ou obrigariam-lhes a pagar pessoalmente os pagadores de impostos. Mais uma vez, a noção de autoridade está em ação: pensamos que o governo tem autoridade para redistribuir riqueza; organizações não-governamentais não. Isso deve dar alguma indicação da gama de atividades governamentais cuja justificativa se baseia na noção de autoridade política. No Capítulo 7 discutirei mais detalhadamente até que ponto esse intervalo se estende. Mas mesmo a partir dessa breve discussão, deve ficar claro que, sem uma crença na autoridade, teríamos que condenar grande parte do que agora aceitamos como legítimo.

1.5

O conceito de autoridade: uma segunda passagem

Nesta seção, refino as noções de “autoridade política”, “legitimidade política” e “obrigação política”. Os cinco princípios a seguir estão implícitos na concepção comum de autoridade do governo; é isso que os defensores da autoridade gostariam de defender: 1. Generalidade. A autoridade do Estado se aplica aos cidadãos em geral. Ou seja, o Estado tem o direito de impor coercivamente regras a pelo menos

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a grande maioria de seus cidadãos, e a grande maioria dos cidadãos tem obrigações políticas.8 2. Particularidade. A autoridade do Estado é específica para seus cidadãos e residentes em seu território. Ou seja, um governo tem o direito de impor regras àqueles em seu território de uma maneira que geralmente não tem o direito de impor regras àqueles em países estrangeiros, e os cidadãos têm obrigações com seus próprios Estados de um tipo que não suportam para outros Estados.9 3. Independência de conteúdo. A autoridade do Estado não está atrelada ao conteúdo específico de suas leis ou outros comandos.10 Ou seja, existe uma ampla gama de leis possíveis, de modo que, dentro dessa faixa, o Estado tem o direito de impor coercivamente as leis que escolher e cidadãos serão obrigados a obedecê-las. O leque de leis aceitáveis não precisa ser ilimitado – talvez o Estado não tenha o direito de fazer ou aplicar certos tipos de leis grosseiramente injustas, como leis que impõem a escravidão. Mas, pelo menos com frequência, o Estado tem o direito de fazer cumprir as leis, mesmo que sejam más ou erradas, e os cidadãos são obrigados a obedecer. 4. Abrangência. O Estado tem o direito de regular uma ampla gama de atividades humanas, e os indivíduos devem obedecer às diretrizes do Estado dentro dessa ampla esfera.11 Esse intervalo não precisa ser ilimitado; por exemplo, talvez o Estado não possa regular os serviços as práticas religiosas privadas dos cidadãos. Mas os Estados modernos tipicamente regulam e têm o direito de regulamentar questões como os termos dos contratos de trabalho, a negociação de títulos financeiros, procedimentos médicos, procedimentos de preparação de alimentos em restaurantes, uso individual de drogas, posse de armas individuais, entrada e saída de pessoas do país, o voo de aviões, o comércio com países estrangeiros e assim por diante. 5. Supremacia. Dentro da esfera de ação que o Estado tem o direito de regular, o Estado é a mais alta autoridade humana.12 Nenhum agente nãogovernamental pode comandar o Estado, e nenhum agente tem o mesmo direito de comandar indivíduos que o Estado possui. Nas condições desenvolvidas de (1) a (5), procuro caracterizar fielmente a concepção ordinária e comum de autoridade política. Uma defesa satisfatória da 8

Essa condição é articulada por Simmons (1979, 55-6). Simmons 1979, pp. 31–5. 10 Hart 1958, 104; Raz 1986, 35-7, 76-7; Green 1988, 225-6; Christiano 2008, 250; Rawls, 1964, p. 11 Klosko 2005, 11–12. 12 Green 1988, 1, 78–83. 9

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autoridade deve acomodar e explicar esses cinco princípios. Se nenhuma teoria plausível chega perto de acomodar os princípios de (1) a (5), deve-se concluir que Estado algum realmente tenha autoridade. Esses cinco princípios são vagos, empregando conceitos como o uma “ampla gama” e uma “grande maioria”. Não tentarei tornar precisa a noção de autoridade política nesses aspectos. O conceito será claro o suficiente para fins de avaliação dos argumentos no restante do livro. Também é vago o quão intimamente uma teoria deve acomodar esses princípios. Mais uma vez, não tentarei tornar isso preciso. Devemos simplesmente observar que, se uma teoria está muito longe de acomodar a concepção intuitiva de autoridade, então, em algum momento, deixa de ser uma defesa da autoridade. Algumas palavras sobre com quem os defensores da autoridade não estão comprometidos: A ideia de obrigação política não implica que o governo que comanda algo seja, por si só, suficiente para alguém ter a obrigação de fazer esse algo. Aqueles que acreditam em autoridade podem sustentar que existem outras condições para que os comandos do governo sejam vinculativos; por exemplo, que as leis deveriam ter sido feitas de acordo com processos justos e democráticos, que o atual governo não deveria ter usurpado um governo legítimo e anterior, e assim por diante. Eles também podem sustentar que há limites para a autoridade do governo; por exemplo, que as leis não podem ser injustamente grosseiras, que não podem invadir certas esferas de privacidade protegidas e assim por diante. Portanto, a ideia de que é preciso executar uma ação “porque a lei exige” pode realmente significar, grosso modo, que é preciso executar uma ação porque a lei exige, a lei foi feita de maneira apropriada por um governo legítimo, a lei não é grosseiramente injusta e a lei está dentro da esfera de coisas que o governo pode legitimamente regular. Para ilustrar os princípios acima, considere o caso da tributação. De acordo com a opinião popular, o Estado pode impor impostos a todos e quaisquer residentes em seu território, e os residentes geralmente são obrigados a pagar os impostos (a condição de Generalidade). O Estado não tem direito a tributar pessoas em países estrangeiros, nem estrangeiros precisam pagar se o Estado tentar cobra-lo (Particularidade).13 O Estado geralmente está autorizado a determinar quais atividades em seu território serão tributadas e quanto, e os residentes são obrigados a pagar esse valor, mesmo que o imposto seja excessivamente alto ou baixo (Independência de conteúdo). Nenhuma pessoa ou organização não-governamental tem o direito de tributar o Estado ou de tributar indivíduos (Supremacia). Assim, se as visões populares estiverem corretas, o caso da tributação ilustra a autoridade política do governo. 13

Uma exceção são as tarifas, que são consideradas permitidas porque o Estado pode estabelecer condições nas interações dos estrangeiros com o próprio povo do Estado.

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Um comentário sobre metodologia

A primeira parte deste livro é um exercício de aplicação da filosofia moral à política. A preocupação central é a avaliação de nossas atitudes morais em relação ao governo: os governos realmente têm o direito de fazer as coisas que geralmente consideramos que eles têm o direito de fazer? Somos realmente obrigados a obedecer aos governos da maneira que costumamos ser obrigados? Questões desse tipo são notoriamente difíceis. Como elas devem ser abordadas? Uma abordagem seria partir de alguma teoria moral abrangente – digamos, utilitarismo ou a deontologia kantiana – e tentar deduzir as conclusões apropriadas sobre direitos e deveres políticos. Eu, infelizmente, não posso fazer isso. Não conheço a teoria moral geral correta e acho que ninguém conhece. As razões do meu ceticismo são difíceis de comunicar, mas derivam da reflexão sobre os problemas da filosofia moral e da literatura complexa, confusa e constantemente contestada sobre esses problemas. É uma literatura em que uma teoria após a outra se depara com um monte de quebra-cabeças e problemas que se tornam cada vez mais complicados à medida que mais filósofos trabalham nela. Não posso comunicar completamente a situação aqui; a melhor maneira de apreciar meu ceticismo sobre a teoria moral seria os leitores se aprofundarem nessa literatura. Aqui, vou simplesmente anunciar que não assumirei nenhuma teoria moral abrangente, e acho que devemos ser muito céticos em relação a qualquer tentativa de chegar a conclusões sólidas na filosofia política, partindo de uma teoria. Por razões semelhantes, tampouco começo assumindo qualquer teoria política geral, embora chegue a uma teoria política no final. Qual é a alternativa? Começarei com alegações morais que são, inicialmente, relativamente incontroversas.14 Esse parece um plano óbvio. A filosofia política é um campo difícil e disputado. Quem espera progredir não pode começar com uma teoria moral contenciosa, muito menos com uma ideologia política contenciosa. As premissas de alguém devem ser coisas que, por exemplo, liberais e conservadores normalmente acham óbvias à primeira vista. Deve-se, então, tentar argumentar a partir dessas premissas a conclusões sobre as questões contestadas que são de interesse. Por mais natural que possa parecer, essa abordagem raramente é adotada. Filósofos políticos comumente defendem uma posição em alguma questão controversa, partindo de uma teoria geral controversa. Por exemplo, um filósofo pode procurar determinar se a imigração deve ser restringida aplicando uma teoria hipotética de contrato social rawlsiana à questão.15 14

Na filosofia, quase todas as reivindicações são contestadas por alguém; portanto, não podemos confiar em premissas totalmente incontroversas se quisermos chegar a conclusões interessantes. 15 Carens 1987, 255-62; Blake 2002.

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A maioria das premissas morais nas quais confio são avaliações morais de comportamentos particulares em cenários relativamente específicos. A história do vigilante na Seção 1.1 é um exemplo disso. É razoável assumir como premissa que o indivíduo nessa história age de forma inadmissível. O caso não é um dilema (como, por exemplo, o trolley problem16 ), nem envolve uma controvérsia moral (como, por exemplo, o caso de alguém que faz um aborto). Para o senso comum, a avaliação negativa é um veredicto direto e óbvio.17 Alguns filósofos acreditam que, ao fazer filosofia moral, deve-se confiar apenas em princípios éticos abstratos, recusando-se a confiar em avaliações intuitivas de casos específicos.18 Outros acreditam, mais ou menos, que apenas deve-se confiar em julgamentos sobre casos particulares.19 Ainda outros pensam que não se pode confiar em julgamentos éticos e que não há conhecimento moral.20 Todas essas visões me parecem erradas. O que parece certo é que julgamentos éticos controversos tendem a não ser confiáveis, enquanto julgamentos éticos incontroversos e óbvios – sejam específicos ou gerais – tendem a ser confiáveis. Devo assumir que temos algum conhecimento moral e que nossos julgamentos éticos mais claros e amplamente compartilhados são exemplos desse conhecimento.21 Embora minhas premissas éticas sejam relativamente incontroversas, minhas conclusões não serão. Pelo contrário, as conclusões que chego estão tão longe das opiniões iniciais da maioria das pessoas que provavelmente nenhum argumento poderia convencer a maioria das pessoas a aceitá-las. Finalmente, concluo que a autoridade política é uma ilusão: ninguém tem o direito de governar e ninguém é obrigado a obedecer a um comando apenas porque provém de seu governo. Mas, embora isso possa ser contra-intuitivo para a maioria das pessoas, não acho que isso revele algum erro da minha parte. Bertrand Russell disse: “O ponto da filosofia é começar com algo tão simples que não pareça digno de ser declarado, e terminar com algo tão paradoxal que ninguém vai acreditar.”22 Eu não acredito que isso seja o ponto da filosofia, mas raciocinar de premissas intuitivas a conclusões surpreendentes não é necessariamente uma marca da filosofia ruim. 16

Ver Foot 1967. Nisto uso o “senso comum” para o que a grande maioria das pessoas tende a aceitar, especialmente em minha sociedade e sociedades às quais os leitores deste livro provavelmente pertencem. Isso não deve ser confundido com o uso técnico de “crenças de senso comum” em meus trabalhos anteriores (2001, 18-19). 18 Singer 2005. 19 Dancy 1993, capítulo 4. 20 Mackie 1977. 21 Ver Huemer 2005, especialmente o capítulo 5, para uma descrição do conhecimento moral e respostas ao ceticismo moral. 22 Russell, 1985, p. 53. 17

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Minhas atitudes em relação ao senso comum podem parecer inconsistentes. Por um lado, considero as intuições éticas mais amplamente compartilhadas nas premissas razoáveis nas quais confiar. Por outro lado, afirmo que algumas crenças políticas amplamente compartilhadas estão fundamentalmente equivocadas. A alegação de que existem alguns governos legítimos não é muito controversa; quase todo mundo, à esquerda ou à direita do espectro político, considera isso um dado adquirido. Por que, então, não aceito a existência de Estados legítimos como premissa inicial, assim como aceito crenças de bom senso sobre ética pessoal? Uma razão é que eu nunca compartilhei intuições políticas de outras pessoas, se é isso que elas são. Compartilho a maioria das intuições normativas da minha sociedade, como a de que não se deve roubar, matar ou prejudicar outras pessoas (exceto em certos casos especiais, como a autodefesa); que geralmente se deve dizer a verdade e cumprir as promessas; e assim por diante. Mas nunca me pareceu que houvesse pessoas com o direito de governar os outros, e nunca me pareceu que alguém fosse obrigado a obedecer a uma lei simplesmente porque é a lei. Minhas intuições não são totalmente idiossincráticas. No discurso político contemporâneo, há uma minoria vocal que defende reduções drásticas no tamanho do governo. Muitas vezes, defendem seus pontos de vista em termos práticos (programas do governo não funcionam) ou em termos de reivindicações absolutistas sobre os direitos individuais. Mas acho que esses argumentos perdem a questão principal. Acredito que a verdadeira motivação subjacente é um amplo ceticismo em relação à autoridade política: no fundo, os defensores de um governo menor simplesmente não veem por que o governo deveria ter permissão para fazer tantas coisas que ninguém mais poderia fazer. Mesmo que você não compartilhe essa atitude cética, eu recomendaria não descartar simplesmente as intuições daqueles com ideologias diferentes. Os seres humanos são altamente falíveis na filosofia política, e confrontos de intuições são frequentes. A objetividade exige que cada um de nós considere seriamente a possibilidade de que somos nós que temos as intuições equivocadas. Aqueles que começam com a intuição de que alguns Estados possuem autoridade podem desistir dessa intuição se, como pretendo mostrar, revelar que a crença na autoridade política é incompatível com as crenças morais do senso comum. Há três razões para preferir aderir à moralidade do senso comum em vez da filosofia política do senso comum: primeiro, como sugeri, a filosofia política do senso comum é mais controversa do que a moralidade do senso comum. Segundo, mesmo aqueles que aceitam visões políticas ortodoxas geralmente são mais fortemente convencidos da moralidade do senso comum do que da filosofia política do senso comum. Terceiro, mesmo aqueles que aceitam intuitivamente a autoridade podem ao mesmo tempo ter a sensação de que essa autoridade é

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intrigante – que é necessária alguma explicação para o motivo pelo qual algumas pessoas devem ter esse status moral especial – de uma maneira que não seja intrigante, por exemplo, que deveria ser errado atacar outras pessoas sem provocação. O fracasso em encontrar uma explicação satisfatória da autoridade política pode, portanto, levar a pessoa a desistir da crença na autoridade, em vez de desistir das crenças morais do senso comum.

1.7

Plano do livro

A tese central da primeira parte deste livro é que a autoridade política é uma ilusão moral. Mostro isso através de uma crítica das principais considerações filosóficas de autoridade (Capítulos 2 a 5). Sigo a discussão dessas teorias, com uma discussão da psicologia de nossas atitudes em relação à autoridade (Capítulo 6), na qual sugiro que as considerações filosóficas da autoridade são racionalizações para atitudes com fontes não-racionais, fontes nas quais devemos confiar pouco. A maioria das pessoas acredita que o governo é incrivelmente benéfico, que sem ele a sociedade entraria em colapso em um estado de caos absoluto. Eu pediria ao leitor que deixasse essa crença de lado por enquanto. A questão da primeira parte deste livro não é se o governo é bom ou ruim. A questão é se o governo tem certos direitos especiais que você e eu não temos e se temos certos deveres especiais para o governo que não temos em relação a mais ninguém. Um governo, como um vigilante particular, poderia ser altamente benéfico e ainda assim carecer de autoridade no sentido que defini. A maioria das defesas da autoridade é mais do que a alegação de que o agente autorizado oferece grandes benefícios. Por exemplo, a teoria do contrato social afirma que os cidadãos de alguns Estados consentiram em seu sistema político. A existência e validade desse consentimento podem ser examinadas independentemente da magnitude dos benefícios proporcionados pelo Estado. Certamente, pode-se pensar que os grandes benefícios fornecidos pelo Estado desempenham um papel fundamental no estabelecimento de sua legitimidade. Esse tópico será abordado no capítulo 5 e, em mais detalhes, na parte II do livro. Peço ao leitor que deixe essa questão de lado até que seja hora de abordá-la diretamente. Perguntas sobre a necessidade do Estado e sobre como uma sociedade pode funcionar sem a crença na autoridade são importantes. Essas perguntas serão abordadas na Parte II, onde abordo as consequências práticas de abandonar a ilusão de autoridade política. A tese central da Parte II será a de que a sociedade pode funcionar e florescer sem uma aceitação geral da autoridade. Minha filosofia política é uma forma de anarquismo. Na minha experiência, a maioria das pessoas parece convencida de que o anarquismo é um absurdo óbvio,

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uma ideia que pode ser refutada em trinta segundos com o mínimo de reflexão. Essa foi mais ou menos a minha atitude antes que eu soubesse alguma coisa sobre a teoria. Também é minha experiência que aqueles que sustentam essa atitude não têm ideia do que os anarquistas realmente pensam – como os anarquistas pensam que a sociedade deve funcionar ou como eles respondem às objeções de trinta segundos. Os anarquistas enfrentam dificuldades: a maioria das pessoas não dará ouvidos ao anarquismo seriamente porque está convencida de que a posição é louca; estão convencidas de que a posição é louca porque não a entendem; não o entendem porque não vão dar uma audiência séria. Peço, portanto, ao leitor que não desista de ler este livro apenas por causa de sua conclusão. O autor não é estúpido, nem louco e nem mau; ele tem uma consideração fundamentada de como uma sociedade sem Estado pode funcionar. Independentemente de você aceitar ou não essa consideração, é muito provável que você ache que valeu a pena considerar. Na literatura filosófica nos últimos anos, tornou-se comum questionar a realidade das obrigações políticas. O ceticismo sobre a obrigação política é agora provavelmente a visão dominante. Esse desenvolvimento surpreendente deve-se principalmente ao ardiloso trabalho de A. John Simmons, que derrubou várias considerações importantes de obrigação política em sua obra Moral Principles and Political Obligation. Apoio a maioria dos argumentos de Simmons. Alguns leitores já estarão familiarizados com esses argumentos, mas muitos não; assim, nos capítulos seguintes, explico os argumentos mais importantes contra a obrigação política, independentemente deles já terem sido impressos antes. Ao mesmo tempo, acredito que os filósofos contemporâneos não foram suficientemente longe. Os filósofos que trabalham com obrigações políticas têm enfrentado principalmente a inadequação de considerações existentes de obrigações políticas. Mas ainda não enfrentaram a inadequação das considerações de legitimidade política.23 E muito poucos filósofos hoje dão muita atenção ao anarquismo político. Normalmente, os argumentos sobre a obrigação política tomam como certo que o Estado é vitalmente necessário; a visão dominante diz que, embora necessitemos de governo e mesmo que os Estados modernos sejam justificados na maioria de suas atividades típicas, ainda não somos obrigados a obedecer à lei apenas como tal. Espero que este livro induza uma reflexão mais profunda, tanto no pressuposto da legitimidade política quanto no pressuposto da necessidade do Estado. 23

Simmons (1979, 196) nega que haja governos “legítimos” ou que quaisquer governos tenham o “direito” de coagir ou punir seus cidadãos. No entanto, ele parece usar esses termos em um sentido mais forte que o meu, porque continua aceitando que os governos possam ser moralmente justificados em suas atividades (199). Isso é confirmado por Simmons 2001, 130-1. Portanto, a aparente concordância de Simmons comigo é apenas verbal; na minha terminologia, Simmons aceita legitimidade política, enquanto eu a rejeito.

2 A Teoria Tradicional do Contrato Social 2.1

A ortodoxia do contrato social

A teoria do contrato social é a defesa da autoridade mais proeminente nos últimos 400 anos de filosofia e tem uma reivindicação tão boa quanto a de ser a teoria da autoridade nos Estados Unidos. A teoria sustenta que, pelo menos em alguns países, existe uma relação contratual entre o governo e seus cidadãos. O contrato exige que o governo forneça certos serviços para a população, principalmente proteção contra criminosos privados e governos estrangeiros hostis. Em troca, os cidadãos concordam em pagar seus impostos e obedecer às leis.1 Algumas visões do contrato social atribuem ao governo um papel mais amplo, talvez incluindo prover as necessidades básicas dos cidadãos indigentes, garantir uma distribuição equitativa dos recursos materiais e assim por diante.2 O que um teórico em particular considera serem as funções legítimas do Estado, o teórico argumentará que o contrato social autoriza e obriga o Estado a desempenhar essas funções. Sob os termos da teoria tradicional do contrato social, a obrigação política é uma espécie de obrigação contratual: os cidadãos devem obedecer à lei porque concordaram em fazê-lo. O contrato social também seria responsável pela legitimidade política diretamente. Se uma pessoa concorda em ser submetida a uma forma específica de coerção, então, em regra, essa coerção não estará errada e 1

Locke 1980. Hobbes, no entanto, alega que o Estado não deve nada aos cidadãos porque o Estado não é parte no contrato; em vez disso, ele aceita o contrato social como um acordo entre os cidadãos (1996, 122). 2 Rawls 1999; Gauthier 1986.

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não violará seus direitos. Por exemplo, normalmente é errado cortar uma pessoa com uma faca. Mas se você contratou um médico para realizar uma cirurgia em você, não é errado e nem é uma violação dos seus direitos que ele o corte para realizar essa cirurgia. Na mesma linha, se os cidadãos concordaram em pagar ao governo por seus serviços e concordaram em ser submetidos à coerção se não pagarem, então é permitido que o governo force seus cidadãos a pagar.3

2.2

A teoria do contrato social explícito

Existe um contrato social? À primeira vista, a teoria exibe um desprezo descarado pela realidade: ninguém nunca recebeu um contrato descrevendo como o governo opera e pediu uma assinatura. Poucos já estiveram em uma situação em que uma declaração verbal ou escrita de concordância com um governo seria apropriada, e muito menos na verdade fez tal declaração. Quando os teóricos do contrato social acham que esse evento aconteceu? John Locke acreditava que havia (no caso de pelo menos alguns governos) um acordo real e explícito feito na época em que o governo foi fundado.4 Poucas evidências permanecem desses eventos, explicou Locke, porque as pessoas naquela época mantinham poucos registros. Ele cita Roma e Veneza como exemplos de casos em que uma sociedade foi fundada com um contrato social explícito. Mas mesmo que houvesse um contrato social original, como esse contrato poderia vincular as pessoas nascidas muito mais tarde, que nunca participaram do acordo original e nunca foram solicitadas a consentir? Locke acreditava que funcionava através de um pacto restritivo perpétuo na terra: os contratados originais comprometeram todos os seus bens, incluindo suas terras, à jurisdição do governo que estavam criando, para que qualquer pessoa que usasse essa terra no futuro devesse se submeter a esse governo.5 Apesar da esperteza dessa última manobra, toda essa teoria é pura mitologia, e seu interesse hoje é principalmente como um pouco de história e como uma tábula para teorias mais plausíveis. David Hume pintou o quadro mais realista da história humana, quando observou que quase todos os governos são fundados na usurpação ou na conquista.6 Ou seja, em algum momento da história de qualquer nação atualmente existente, ou o governo foi tomado à força por uma pessoa 3

Uma questão interessante permanece sobre se os cidadãos poderão mais tarde retirar seu consentimento, pois normalmente se pode retirar o consentimento para outras formas de coerção. Isso levanta problemas adicionais aos discutidos abaixo no texto. 4 Locke 1980, seções 100–4. 5 Locke 1980, seções 116–17, 120–1. 6 Hume 1987, 471.

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que não tinha o direito para isso, como em um coup d’état, ou o governo (ou seus cidadãos ou futuros cidadãos) apreendeu a terra que atualmente controla dos habitantes originais pela força. Qualquer um desses eventos invalidaria a autoridade do Estado, em uma visão lockeana. No caso dos Estados Unidos e de seu governo, por exemplo, a história é de conquista. O território atual dos Estados Unidos foi roubado dos nativos americanos e depois colocado sob o controle do governo dos EUA. Do ponto de vista lockeano, essa história torna ilegítimo o controle do governo dos EUA sobre a terra. Como eu disse, essa teoria é principalmente de interesse histórico hoje; nenhum teórico contemporâneo proeminente apoia a teoria explícita do contrato social. A próxima versão da teoria do contrato social é projetada para evitar esses problemas.

2.3

A teoria do contrato social implícito

Consentimento explícito é o consentimento que se indica, declarando, verbalmente ou por escrito, que se consente. Por outro lado, consentimento implícito é o consentimento que se indica através da conduta de alguém, sem realmente declarar seu acordo. Se os cidadãos não adotaram um contrato social explicitamente, talvez o tenham adotado implicitamente. Como se pode indicar um acordo sem declará-lo? Em algumas situações, alguém expressa concordância com uma proposta, simplesmente se abstendo de se opor. Eu chamo isso de “consentimento passivo”. Suponha que você esteja em uma reunião do conselho, onde o presidente diz: “A reunião da próxima semana será transferida para terça-feira às dez horas. Alguma objeção?” Ele faz uma pausa e ninguém diz nada. “Bom, estamos de acordo”, conclui o presidente.7 Nessa situação, é plausível que a falta de manifestação de dissidência quando convidados a fazê-lo indique que os conselheiros concordam com a mudança. Em outros casos, a pessoa se compromete a aceitar determinadas demandas solicitando ou voluntariamente aceitando benefícios aos quais essas demandas são conhecidas por estarem anexadas. Eu chamo isso de “consentimento através da aceitação de benefícios”. Por exemplo, suponha que você entre em um restaurante e peça um wrap vegetariano agradável e saboroso. Depois de comer o wrap, a garçonete traz o cheque. “O que é isso?”, você diz. “Eu nunca disse que pagaria por isso. E se você queria pagamento, deveria ter dito isso no início. Sinto muito, mas não lhe devo nada.” Nesse caso, o restaurante poderia argumentar plausivelmente que, ao pedir a comida, você implicitamente indicou concordância com a 7

Esse exemplo é de Simmons (1979, 79–80).

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demanda usual relacionada à provisão da comida: a saber, pagamento do preço mencionado no menu. Como é bem sabido nesta sociedade (e presumivelmente por você) os restaurantes geralmente só estão dispostos a fornecer comida para receber o pagamento, era de sua responsabilidade, se você quisesse comida de graça, declarar isso com antecedência. Caso contrário, a suposição padrão é de que você concorda em participar da prática normal. Por esse motivo, você seria obrigado a pagar por sua refeição, apesar de seus protestos em contrário. Uma terceira forma de consentimento implícito é o que chamo de “consentimento através da presença”, pelo qual se indica concordância com uma proposta apenas permanecendo em algum local. Enquanto faço uma festa em minha casa, anuncio, em voz alta e clara a todos os presentes, que quem quiser ficar na minha festa deve concordar em ajudar na limpeza depois. Depois de ouvir o meu anúncio, você continua festejando. Ao fazer isso, você indica que concorda em ajudar na limpeza no final. Finalmente, às vezes alguém implicitamente concorda com as regras que governam uma prática, participando voluntariamente da prática. Eu chamo isso de “consentimento através da participação”. Suponha que, durante uma de minhas aulas de filosofia, eu diga aos alunos que vou fazer uma loteria voluntária. “Quem quiser participar”, explico, “colocará seus nomes nesse chapéu. Vou desenhar um nome aleatoriamente. Cada um dos outros participantes pagará $1 à pessoa cujo nome foi desenhado.” Suponha que você coloque seu nome no meu chapéu. Quando o nome do vencedor é sorteado, você descobre que o vencedor não era você. Eu venho coletar $1 de você para dar ao aluno vencedor. “Não te devo nada”, você insiste. “Nunca disse que concordei em pagar $1. Tudo o que fiz foi soltar meu nome em seu chapéu. Talvez eu tenha feito isso apenas porque gosto de colocar meu nome em chapéus.” Nesta situação, parece que você é obrigado a entregar $1. Sua participação voluntária no processo, quando era sabido como o esquema deveria funcionar, indica que você concordou em aceitar os possíveis encargos financeiros associados ao meu esquema de loteria. Cada um desses quatro tipos de consentimento implícito – consentimento passivo, consentimento através da aceitação de benefícios, consentimento através da presença e consentimento através da participação – pode ser usado como modelo para a aceitação implícita dos cidadãos do contrato social. Para começar, talvez os cidadãos tipicamente concordem com o contrato social apenas abstendo-se de objetar a ele (consentimento passivo). Apenas alguns de nós já têm declarados explicitamente que aceitamos o contrato social, outros afirmaram que não o aceitamos. (As exceções são anarquistas que declararam explicitamente sua rejeição ao governo.) O consentimento através da aceitação de benefícios também conferiria uma autoridade quase universal. Quase todo mundo aceitou pelo menos alguns bene-

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fícios de seu governo. Existem certos bens públicos – como segurança nacional e prevenção ao crime – que o Estado fornece automaticamente a todos dentro de seu território. Esses bens não são relevantes para o consentimento, porque são benefícios dados caso os cidadãos os desejam ou não. Os pacifistas, por exemplo, recebem o “bem” da defesa militar, contra sua vontade. No entanto, existem outros bens que os cidadãos têm a opção de aceitar. Por exemplo, quase todo mundo usa estradas que foram construídas por um governo. O governo não força as pessoas a usar essas estradas; portanto, este é um caso de aceitação voluntária de um benefício governamental. Da mesma forma, se alguém chama a polícia para pedir assistência ou proteção, se leva outra pessoa ao tribunal, se envia voluntariamente seus filhos para escolas públicas ou se tira proveito dos programas governamentais de bem-estar social, aceita voluntariamente os benefícios governamentais. Pode-se então argumentar que se aceita implicitamente as condições conhecidas como vinculadas à existência de um governo – que se deve ajudar a pagar os custos monetários do governo e obedecer às suas leis. Considere a seguir o caso de consentimento através da presença. Essa, na minha experiência, é a teoria mais popular de como os cidadãos dão seu consentimento ao Estado, talvez porque seja o único caso que pode ser aplicado a todos dentro do território do Estado. O governo não exige que ninguém (exceto prisioneiros) permaneça no país, e é sabido que aqueles que vivem dentro de um determinado país devem obedecer às leis e pagar impostos. Portanto, permanecendo voluntariamente, talvez aceitamos implicitamente a obrigação de obedecer às leis e pagar impostos.8 Por fim, alguns cidadãos podem dar consentimento implícito através da participação no sistema político. Se alguém vota nas eleições, pode-se inferir que se aceita o sistema político em que está participando. Isso, por sua vez, pode obrigar alguém a respeitar o resultado do processo político, incluindo as leis feitas de acordo com as regras do sistema, mesmo quando diferentes das leis desejadas. Se alguma dessas quatro sugestões persistir, elas seriam responsáveis tanto pela obrigação política quanto pela legitimidade política, pelo menos no que diz respeito a alguns cidadãos.

2.4

Condições para acordos válidos

Um contrato válido é um contrato moralmente eficaz – ou seja, consegue tornar permitida alguma ação com a qual alguém consente ou em gerar uma obrigação de agir da maneira que concordou em agir. Todos os exemplos na seção anterior eram de acordos válidos. Mas alguns “acordos” são inválidos. Por exemplo, 8

Locke 1980, seções 120–1; Otsuka 2003, capítulo 5.

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suponha que um criminoso aponte uma arma para sua cabeça e exija que você assine os direitos do filme baseado em seu livro mais recente. Se você assinar, o contrato será inválido, porque a ameaça de violência o tornou não-voluntário. Ou suponha que você concorda em comprar uma televisão de um vendedor, mas o vendedor não informa que a televisão está quebrada e não exibe uma imagem. Nesse caso, o contrato de venda é inválido porque foi provocado por fraude por parte do vendedor. As televisões normalmente são consideradas capazes de exibir uma imagem, e isso é essencial para o motivo pelo qual as pessoas as compram. Assim, se alguém deseja vender uma televisão que não funciona, deve declarar essa condição; caso contrário, a suposição padrão é que a televisão funcione. Não tentarei uma abranger todos os casos de quando existe um contrato válido. Mas a seguir estão quatro princípios gerais plausíveis que governam acordos válidos: 1. O consentimento válido requer uma maneira razoável de optar por não participar (sair do acordo). Todas as partes de qualquer contrato devem ter a opção de rejeitá-lo sem sacrificar nada a que tenham direito. Considere uma modificação do exemplo da reunião do conselho da Seção 2.3. O presidente diz: “A reunião da próxima semana será transferida para terça-feira às dez horas. Aqueles que se opuserem gentilmente sinalizarão isso cortando os braços esquerdos.”9 Nenhum braço é cortado. “Bom, estamos de acordo!”, ele declara. Este não é um acordo válido, porque a demanda de que os membros do conselho desistam de seus braços esquerdos, pois o preço da dissidência da mudança de cronograma não é razoável. Por outro lado, no exemplo da minha festa da Seção 2.3, a exigência de que você saia da minha festa se não concordar em ajudar na limpeza é razoável, porque tenho o direito de determinar quem pode participar de minhas festas. A diferença importante entre o exemplo modificado da sala de reuniões e o exemplo da festa não é uma questão de quão grandes são os custos; isto é, não é simplesmente que perder o braço esquerdo seja muito pior do que ser expulso de uma festa.10 O presidente não teria justificativa nem de exigir que os membros do conselho pagassem $1 para expressar sua objeção à mudança de horário. Pelo contrário, é uma questão de quem tem direitos sobre o bem que os dissidentes são solicitados a desistir. Aqueles que buscam um acordo seu com alguma proposta não podem exigir que você desista de seus direitos como custo de rejeitar a proposta. Posso exigir que 9

Esse exemplo é de Simmons (1979, 81). Como Otsuka (2003, 97) argumenta, o consentimento pode ser válido mesmo quando a falta de consentimento tenha sido muito cara. 10

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você desista do uso de minha propriedade se não aceitar alguma proposta minha, mas não posso exigir que você desista do uso de sua propriedade. 2. Dissidência explícita supera alegado consentimento implícito. Um acordo implícito válido não existe se alguém declarar explicitamente que não concorda. Considere uma modificação do exemplo do restaurante da Seção 2.3. Suponha que, depois de estar sentado, você diga à garçonete: “Não pagarei pela comida que você me trouxer. Mas gostaria que você me desse um wrap vegetariano.” Se a garçonete lhe trouxer o wrap, você não é obrigado a pagar por isso. Dada sua afirmação, ela não poderia plausivelmente afirmar que você concordou em pagar pela refeição. E o exemplo da festa? Anuncio que qualquer pessoa que permanecer na minha festa deve concordar em ajudar na limpeza. Suponha que, depois do meu anúncio, você responda: “Não concordo”. Depois, peço que você saia, mas você se recusa e permanece até o final da festa. Você é obrigado a ajudar na limpeza? Você não concordou em limpar, pois declarou explicitamente que não concordava (quão mais claro você poderia ter sido?). No entanto, é plausível que você seja obrigado a ajudar na limpeza – não porque você concordou com isso, mas porque eu tenho o direito de estabelecer condições para o uso da minha casa, incluindo a condição de que quem a usa ajude a limpá-la. Isso deriva não de um acordo, mas de minha propriedade sobre a casa. 3. Uma ação pode ser tomada como indicação de concordância com algum esquema, apenas se for possível acreditar que, se alguém não o adotasse, o esquema não seria imposto a ele. Suponha que, no exemplo da reunião do conselho, o presidente anuncie: “A reunião da próxima semana será transferida para terça-feira às dez horas, e eu não me importo com o que algum de vocês tem a dizer sobre isso – a mudança de horário acontecerá mesmo você objetando ou não. Agora, alguém quer se opor?” Ele faz uma pausa. Ninguém diz nada. “Bom, estamos combinados”, ele declara. Nesse caso, não há acordo válido. Embora os membros do conselho tenham tido a chance para objetar, também ficou entendido que, se objetassem, a mudança de cronograma seria imposta de qualquer maneira. Seu fracasso em expressar objeções, portanto, não pode ser considerado um indicativo de concordância. Isso pode simplesmente indicar que eles não desejaram perder tempo protestando contra algo sobre o qual não tinham escolha. 4. A obrigação contratual é mútua e condicional. Um contrato normalmente coloca ambas as partes sob uma obrigação mútua e a rejeição de uma parte de sua obrigação contratual libera a outra parte de sua obrigação. Suponha que você peça comida em um restaurante. Existe um acordo implícito entre você e os proprietários do restaurante: eles fornecem comida e você paga. Se a

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garçonete nunca trouxer a comida, você não precisará pagar; o fracasso em cumprir o negócio até o fim libera você da obrigação de cumprir o seu. Além disso, se uma parte simplesmente comunicar que não pretende cumprir o contrato, a outra parte também não é obrigada a cumpri-lo. Assim, se, depois de pedir comida, mas antes de recebê-la, você informar a garçonete que não reconhece nenhuma obrigação de pagar o restaurante, o restaurante poderá concluir que você rejeitou o contrato e eles não precisam lhe trazer comida. Essas quatro condições pertencem à concepção de senso comum de consentimento e contratos. Na próxima seção, aplico esses princípios ao contrato social putativo.

2.5 2.5.1

O contrato social é válido? A dificuldade de optar por não participar

Comece com a primeira condição em contratos válidos: todas as partes de um contrato devem ter uma maneira razoável de optar por não participar. Quais são os meios disponíveis para optar por sair do contrato social? Há apenas um: é preciso desocupar o território controlado pelo Estado. Vamos revisar algumas das razões pelas quais podemos ter deixado de exercer essa opção. Para deixar o país, geralmente é necessário obter a permissão de outro Estado para entrar em seu território, e a maioria dos Estados impõe restrições à imigração. Além disso, alguns indivíduos carecem de recursos financeiros para se mudarem para o país de sua escolha. Aqueles que podem se mudar podem deixar de fazê-lo devido a apegos à família, amigos e casa. Finalmente, se alguém se mudar para outro país, ficará apenas sujeito a outro governo. O que se deve fazer se não deseja consentir com nenhum governo? Aqueles que procuram evitar todas as jurisdições governamentais têm três opções: podem viver no oceano, se mudar para a Antártica ou cometer suicídio. Diante disso, a opção de deixar o território controlado pelo Estado é uma maneira razoável de optar pelo contrato social? Alguns acham isso irracional porque a demanda é muito onerosa. Nas palavras de David Hume, Podemos também afirmar que um homem, permanecendo em um navio, consente livremente com o domínio do mestre; embora ele tenha sido carregado a bordo enquanto dormia, e deve pular no oceano e perecer no momento em que abandoná-lo.11 11

Hume 1987, 475.

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No entanto, conforme discutido na Seção 2.4, esse não é o problema principal. A questão principal é se alguém está sendo solicitado a desistir de algo a que tem direito, como preço de rejeitar o contrato social. Este certamente parece ser o caso. Se um presidente do conselho não pode exigir que os membros do conselho lhe paguem $1 para expressar discordância de uma mudança proposta no cronograma, como alguém pode ser obrigado a desistir de casa e emprego e deixar todos os amigos e familiares para trás para expressar desacordo com um contrato? Aqui está uma resposta: talvez o Estado possua todo o território sobre o qual reivindica jurisdição. Logo, assim como eu posso expulsar pessoas da minha casa se elas não concordarem em ajudar na limpeza no final da festa, o Estado poderá expulsar pessoas de seu território se não concordarem em obedecer às leis e pagar impostos. Mesmo se admitimos que o Estado possui seu território, é discutível se ele pode expulsar pessoas que rejeitam o contrato social (compare o seguinte: se alguém que deixar minha festa antes do fim estiver fadado a morrer, então, podese pensar: eu perco o direito de expulsar pessoas da minha festa). Mas não precisamos resolver esse problema aqui; em vez disso, podemos nos concentrar em saber se o Estado de fato possui todo o território sobre o qual reivindica jurisdição. Se ele não possui, então falta o direito de estabelecer condições para o uso dessa terra, incluindo a condição de que os ocupantes devam obedecer às leis do Estado. Para ilustração, considere o caso dos Estados Unidos. Nesse caso, o controle do Estado sobre seu território deriva (1) da expropriação anterior daquela terra por colonos europeus das pessoas que a ocupavam originalmente e (2) do poder coercitivo atual do Estado sobre os proprietários individuais que receberam título de partes desse território, transmitido através das gerações dos expropriadores originais. Isso não parece dar origem a um direito legítimo de propriedade por parte do governo dos EUA.12 Mesmo se negligenciarmos a fonte (1), a fonte (2), que se aplica a todos os governos, não é uma base legítima para uma reivindicação de propriedade. Poder não dá direito; o mero fato de o Estado exercer poder sobre as pessoas em uma determinada região não confere ao Estado um direito de propriedade (nem qualquer outro tipo de direito) em todas as terras dessa região. 12

O problema da história injusta afeta toda ou a maioria das terras do mundo. Não está claro o que deve ser feito sobre esse problema, quando é impossível devolver a terra aos seus últimos proprietários legítimos. Não proponho solução para esse problema ético aqui; no entanto, afirmo que o princípio “quem detém o poder sobre a população atualmente ocupando a terra tenha o direito de controlar seu uso” carece de força ética. No mínimo, alguma defesa prévia da legitimidade de um governo parece necessária para estabelecer seu direito de controlar a terra.

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Se pudéssemos estabelecer a autoridade do Estado, então o Estado poderia estabelecer a propriedade de todo o seu território, simplesmente promulgando uma lei que designasse essa propriedade a si mesmo. A lei de “domínio eminente” (ou “compra obrigatória”, “retomada” ou “expropriação”, dependendo do país em que alguém vive) pode ser interpretada como justamente essa lei. Mas isso não tem utilidade para o teórico do contrato social, pois o contrato social é uma maneira de estabelecer a autoridade do Estado. O teórico do contrato social, portanto, pode não pressupor a autoridade do Estado para explicar como o próprio contrato social é estabelecido. Se não assumirmos que o Estado já tem autoridade, é muito difícil ver como o Estado pode reivindicar o título de toda a terra de seus cidadãos. E se devemos assumir que o Estado já tem autoridade, não precisamos da teoria do contrato social. O Capítulo 1 incluiu uma história na qual você aprova punir vândalos e extorquir pagamentos do resto de sua aldeia pelos seus serviços. Imagine que, quando você aparece na porta do seu vizinho para receber o pagamento, seu vizinho protesta que ele nunca concordou em pagar por seus serviços de prevenção ao crime. “Au contraire“, você responde. “Você concordou porque está morando em sua casa. Se você não quiser me pagar, deve abandoná-la.” É uma demanda razoável? A falha do seu vizinho em deixar a casa dele mostra que ele é obrigado a pagar você? Certamente não. Se você tiver um inquilino ocupando sua casa, poderá exigir que ele compre seus serviços de proteção ou desocupe sua casa (desde que isso seja consistente com o contrato existente, se houver, que você tenha feito com o inquilino). Mas você não tem o direito de exigir que seus vizinhos deixem suas casas nem colocar condições para ocupação continuada da propriedade deles. Sua exigência de que seu vizinho deixe a casa dele se não concordar em pagar a você pela proteção não representa uma “maneira razoável de optar por não participar” da compra de seus serviços de proteção. A menos que o governo realmente possua toda a terra que (como costumamos dizer) seus cidadãos possuem, o governo estaria na mesma posição que você nesse exemplo: não pode exigir que os indivíduos parem de usar sua própria propriedade, nem pode definir as condições sob as quais os indivíduos podem continuar a ocupar suas próprias terras. Concluo que a primeira condição dos contratos válidos é violada pelo contrato social.

2.5.2

A falta de reconhecimento da dissidência explícita

Vamos voltar à segunda condição: você não aceitou implicitamente um contrato se declarar explicitamente que não o aceita. No caso do contrato social, um pequeno número de pessoas indicou explicitamente sua discordância. Estes são

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os anarquistas políticos, pessoas que sustentam que não deveria haver governo. No entanto, todo governo continua a impor leis e impostos aos anarquistas. No entanto, com protestos vocais contra o contrato social, o governo não reembolsará seu dinheiro dos impostos e nem o isentará das leis. Pode haver um Estado que reconheça discordância explícita. O contrato social para esse Estado estaria mais próximo de ser válido – pelo menos não violaria esse segundo princípio de acordos válidos. Mas os Estados reais violam essa condição e, portanto, deixam de ter autoridade genuína sobre pelo menos alguns daqueles sobre quem reivindicam autoridade. Isso não impede que esses Estados tenham autoridade sobre outros cidadãos, se esses outros cidadãos consentiram voluntariamente. Mas a conhecida recusa do Estado em reconhecer dissidência explícita põe em xeque a validade de qualquer consentimento tácito supostamente dado mesmo por aqueles que não expressaram explicitamente dissidência. Mesmo para aqueles que de fato não desejam discordar, continua sendo verdade que eles não tiveram a opção de recusar explicitamente o contrato social.

2.5.3

Imposição incondicional

O terceiro princípio sobre acordos válidos era que uma ação pode ser tomada como indicação da concordância de uma pessoa com algum esquema apenas se for possível presumir razoavelmente que essa pessoa acredita que, se ela não tomasse essa ação, o esquema não lhe seria imposto. Isso exclui quase todas as maneiras pelas quais os cidadãos aceitam implicitamente o contrato social. Quase todo mundo sabe que o Estado ainda impõe as mesmas leis e os mesmos impostos, independentemente de alguém se opor ao governo, aceitar serviços do governo ou participar do processo político. Portanto, a falta de objeção, a aceitação de serviços governamentais e até a participação de alguém no processo político não podem ser tomadas como concordância com o contrato social. A única forma de consentimento implícito não descartada por esse princípio é o consentimento através da presença. Se você deixar de residir no território controlado pelo Estado, só então o Estado deixará de impor suas leis.13 Diferente de todas as outras formas alegadas de consentir implicitamente em ser governado, permanecer presente no território do Estado é realmente uma condição de ter as leis do Estado impostas a você. Assim, apenas o consentimento através da presença satisfaz o terceiro princípio sobre acordos válidos. A ideia de consentimento através da presença, no entanto, foi rejeitada acima por outros motivos. 13

Mesmo para isso, existem algumas exceções. Por exemplo, os cidadãos dos EUA que moram no exterior ainda podem ser obrigados a pagar impostos aos EUA sobre parte de sua renda.

2. A Teoria Tradicional do Contrato Social

2.5.4

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Ausência de obrigação mútua

Finalmente, chegamos ao quarto princípio sobre acordos válidos: um contrato impõe obrigações mútuas às partes, com a obrigação de cada parte condicionada à aceitação pela outra parte de sua obrigação. No caso do contrato social, os indivíduos devem ser obrigados a obedecer às leis promulgadas pelo Estado. Às vezes, os cidadãos violam essas leis; nesse caso, os agentes do Estado – se tiverem conhecimento da violação e podem poupar os recursos – punirão o cidadão, geralmente com multas ou prisão. Dado o amplo e indefinido leque de leis que podem ser criadas pelo Estado e o leque de punições a que alguém pode ser sujeito por violá-las, as concessões de um indivíduo ao Estado sob o contrato social são bastante grandes. O Estado, por sua vez, deve assumir uma obrigação para com o cidadão, de fazer valer os seus direitos, incluindo a proteção do cidadão contra criminosos e governos estrangeiros hostis. O Estado falha nesse dever? O que acontece quando falha? Em certo sentido, o Estado falha o tempo todo. Em qualquer sociedade grande, milhares ou milhões de cidadãos são vitimados anualmente por crimes que o Estado não conseguiu impedir. Mas não seria razoável esperar que o Estado impeça todos os crimes. Talvez o contrato social exija apenas que o Estado faça um esforço razoável para evitar crimes. Mas e se o Estado falha mesmo nesses termos? Suponha que você seja vítima de um crime grave que o governo poderia facilmente ter evitado, a baixo custo, se tivesse feito um esforço razoável para resolver. O Estado teria falhado em suas obrigações sob o contrato social? Se o contrato social significa alguma coisa, então a resposta a essa pergunta deve ser sim. Se existe um contrato entre o Estado e seus cidadãos, então o Estado deve ter alguma obrigação de fazer algo pelos cidadãos. Como a proteção contra o crime é a função mais central e amplamente reconhecida do Estado, presumivelmente, o Estado deve ter alguma obrigação em relação à proteção de alguém. Se essa obrigação é significativa, deve haver algo que o Estado possa fazer que contaria como falha no cumprimento dessa obrigação. E se a situação descrita no parágrafo anterior não conta como uma falha no cumprimento da obrigação de proteger um cidadão do crime, é difícil ver o que contaria. Nos Estados Unidos, essa situação ocorreu muitas vezes. Descrevo uma dessas instâncias abaixo. Embora a história seja perturbadora de ouvir, há um ponto importante a ser aprendido com ela. Numa manhã de março de 1975, dois homens invadiram uma casa na cidade de Washington, DC, onde residiam três mulheres.14 As duas mulheres no andar de cima ouviram o arrombamento e os gritos de sua colega de quarto vindo do 14

O incidente é a base do caso de Warren v. Distrito de Columbia (444 A.2d. 1, D.C. Ct. De Ap., 1981), do qual deriva meu relato dos fatos.

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andar de baixo. Elas telefonaram para a polícia e foram informadas de que a ajuda estava a caminho. As duas mulheres se arrastaram para fora de uma janela em um telhado adjacente e esperaram. Observaram um carro da polícia passar e depois partir. Outro policial havia batido na porta da frente, mas, não recebendo resposta e sem sinais de arrombamento, decidiu ir embora. A polícia não verificou a entrada dos fundos da casa, onde os criminosos haviam realmente invadido. Ao voltar para dentro, as mulheres no andar de cima ouviram novamente a colega de quarto gritando e telefonaram novamente para a polícia. Tiveram a garantia de que a ajuda estava a caminho, mas na verdade nenhum oficial foi despachado para responder à segunda ligação. Quando os gritos da colega de quarto cessaram, as duas mulheres no andar de cima acharam que a polícia havia chegado. Elas chamaram sua colega de quarto, isso serviu apenas para alertar os criminosos sobre sua presença. Os dois criminosos sequestraram as três mulheres e as levaram de volta a um apartamento de um dos criminosos, onde espancaram, roubaram e estupraram as mulheres ao longo de catorze horas. O que é notável nesse caso não é apenas o fato de o Estado ter falhado tragicamente em sua obrigação de proteger alguns de seus cidadãos. O mais importante para a teoria do contrato social é o que aconteceu depois. As mulheres processaram o Distrito de Columbia em um tribunal federal pelo fracasso negligente do governo em protegê-las. Se o governo tivesse a obrigação contratual de fazer um esforço razoável para proteger seus cidadãos, então as mulheres deveriam ter um caso claro aqui. Na verdade, os juízes rejeitaram o caso e nem o julgaram. Os autores apelaram, mas a rejeição foi confirmada. Por quê? Ninguém contestou a negligência do governo e ninguém contestou que as mulheres haviam sofrido grandes danos como resultado direto dessa negligência. O que o tribunal negou foi que o governo tivesse o dever de proteger as três mulheres em primeiro lugar. O Tribunal de Apelações citou “o princípio fundamental de que um governo e seus agentes não têm o dever geral de prestar serviços públicos, como proteção policial, a qualquer cidadão em particular”. O dever do governo, explicou o tribunal, era apenas um dever para o público em geral, de fornecer um impedimento geral ao crime. O tribunal temia que o reconhecimento de um dever de proteger os indivíduos “efetivamente interrompesse rapidamente os negócios do governo” e “despachasse uma nova geração de litigantes ao tribunal por causa de queixas reais e imaginárias”.15 Esta não foi uma decisão idiossincrática. Em outro caso, uma mulher telefonou para a polícia porque seu marido havia acabado de ligar e disse que estava vindo para assassiná-la. A polícia disse-lhe para ligar de volta quando ele chegasse. Quando ele chegou, a mulher não pôde ligar de volta porque o 15

Ibid., da opinião majoritária.

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marido cumpriu sua ameaça.16 Em um terceiro caso, o Departamento de Serviços Sociais estava monitorando um homem por abuso de seu filho. Em cinco ocasiões, uma assistente social do DSS registrou evidências de abuso, mas a criança foi deixada sob custódia do pai. Eventualmente, o homem espancou o filho com tanta severidade que a criança sofreu danos cerebrais permanentes.17 Esses casos também resultaram em ações judiciais contra o governo, e essas ações também foram sumariamente rejeitadas. O caso de abuso infantil foi apelado à Suprema Corte dos EUA, que confirmou a rejeição. Mais uma vez, os tribunais sustentaram que o governo não tinha o dever de proteger os cidadãos nesses casos. Como esses casos afetam na doutrina do contrato social? Os tribunais nesses casos negaram que o Estado tenha alguma obrigação para com o indivíduo. Como um contrato geralmente exige obrigações mútuas entre as partes, isso implica que não há contrato entre o indivíduo e o Estado. E sobre o argumento de que a obrigação do Estado é devida ao público em geral e não a qualquer indivíduo? Um problema com esse argumento é que ele é puramente arbitrário. Não há evidência real para o argumento, e pode-se perdoar por suspeitar que o Estado simplesmente declara que o contrato social exige apenas o que o próprio Estado deseja fazer. O outro problema é que a teoria do contrato social visa explicar por que os indivíduos são obrigados a obedecer ao Estado. Se um indivíduo não é parte do contrato social, ele não tem dever para com o Estado sob esse contrato. Se o contrato, de alguma forma, é válido apenas entre o Estado e o público em geral, talvez “o público em geral” deva algo ao Estado, mas nenhum indivíduo deve. Se, por outro lado, o contrato social se mantém entre o indivíduo e o Estado, então o Estado deve ter uma obrigação para com o indivíduo. Não se pode ter as duas coisas: não se pode sustentar que o indivíduo deve deveres ao Estado, mas que o Estado não deve nada ao indivíduo.18 Talvez as opiniões do tribunal nesses casos tenham sido equivocadas. Seja como for, as opiniões formuladas pelos tribunais, reafirmadas e nunca derrubadas, são as posições oficiais do governo. O governo, então, adotou oficialmente, explicitamente a posição de que não tem obrigação de proteger nenhum cidadão em particular. Assim, o governo repudiou o contrato social. Se o Estado rejeita o contrato social, então os indivíduos também não podem ter obrigações a esse contrato. 16

Hartzler v. City of San Jose, 46 Cal.App. 3d 6 (1975). DeShaney v. Winnebago County Department of Social Services, 489 U.S. 189 (1989). 18 Pode-se afirmar que o contrato social se mantém entre o indivíduo e o Estado, mas que a única promessa do Estado ao indivíduo era proteger a sociedade em geral. Normalmente, no entanto, quando os indivíduos fazem contratos para obter bens ou serviços, obtêm uma promessa de receber pessoalmente o bem, não uma promessa de que a sociedade em geral será mais ou menos abastecida com o bem. 17

2. A Teoria Tradicional do Contrato Social

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Este último argumento, o argumento da obrigação mútua, aplica-se especificamente aos Estados Unidos, onde ocorreram os casos discutidos. Outros governos podem escapar desse defeito em particular se reconhecerem um dever afirmativo de proteger seus cidadãos. Minha afirmação nesta seção não foi que a maioria das pessoas não concordaria em ter um governo. Minha reivindicação é que, de fato, não existe um acordo válido. Talvez você aceitasse o contrato social se tivesse uma escolha. Mas você não teve. Isso faz com que o seu relacionamento com o governo não seja voluntário e contratual, independentemente de você estar realmente feliz com o relacionamento. Também não afirmo que todos os relacionamentos nãovoluntários são moralmente ilegítimos ou injustos. A questão é simplesmente que a teoria do contrato social é falsa, porque descreve uma relação não voluntária como voluntária.

2.6

Conclusão

A teoria do contrato social não pode explicar a autoridade política. A teoria de um contrato social real falha porque nenhum Estado forneceu meios razoáveis de desistir (sair do contrato) – meios que não exijam que os dissidentes assumam grandes custos ao qual o Estado não tem o direito independente de impor. Todos os Estados modernos, ao se recusarem a reconhecer divergências explícitas, tornam seus relacionamentos com seus cidadãos não-voluntários. A maioria dos relatos de consentimento implícito falha, porque quase todos os cidadãos sabem que as leis do governo seriam impostas a eles, independentemente deles executarem os atos específicos pelos quais alegadamente comunicam o consentimento. No caso dos governos que negam qualquer obrigação de proteger os cidadãos, a teoria do contrato falha pela razão adicional de que, se houve um contrato social, o governo repudiou sua obrigação central nos termos do contrato, liberando assim seus cidadãos das obrigações que teriam sob esse contrato. A premissa moral central da teoria tradicional do contrato social é louvável: a interação humana deve ser realizada, na medida do possível, de forma voluntária. Mas a premissa factual central está longe em face da realidade: independente do que mais pode ser dito sobre isso, a sujeição ao governo obviamente não é voluntária. Nos tempos modernos, todo ser humano nasce sob essa sujeição e não tem meios práticos de escapar dela.

3 A Teoria do Contrato Social Hipotético 3.1

Argumentos do consentimento hipotético

Como vimos, a alegação tradicional de que os indivíduos consentiram com o Estado não pode ser defendida de maneira plausível. Os teóricos do contrato social hipotético se voltam para a alegação de que os indivíduos consentiriam com o Estado sob certas condições hipotéticas.1 Essas condições podem envolver estipulações quanto ao conhecimento, grau de racionalidade e motivações das partes no contrato social, além da estipulação que todos os membros de uma sociedade possam escolher em que tipo de sociedade viverão. Pensa-se que o fato de termos concordado com um determinado arranjo em um cenário hipotético específico legitima esse arranjo e gere obrigações de apoio a isto. Essa abordagem tem a vantagem dialética de evitar o tipo de dependência de fatos empíricos sobre o mundo real que provou a queda da teoria tradicional do contrato social. Os defensores de qualquer teoria do contrato social hipotético devem concluir duas tarefas: primeiro, devem mostrar que as pessoas aceitariam o contrato social em seu cenário hipotético; segundo, devem mostrar que esse consentimento hipotético é moralmente eficaz, no sentido em que gera obrigações e direitos éticos semelhantes aos gerados pelo consentimento real válido. 1

A maioria das teorias modernas do contrato hipotético visa explicar algo mais amplo que a autoridade política. Tipicamente, visam explicar a parte da moralidade que diz respeito, nas palavras de Scanlon (1998, 7), ao que devemos um ao outro. Para os propósitos do presente capítulo, suponho que as teorias de pensadores contemporâneos como Rawls e Scanlon tenham sido adaptadas de modo a dar conta dos fundamentos da autoridade política.

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3. A Teoria do Contrato Social Hipotético

3.2

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Consentimento hipotético na ética comum

À primeira vista, um acordo hipotético parece ter pouca importância normativa. As promessas feitas por alguém normalmente o obrigam a cumprir o prometido, mas as promessas que alguém simplesmente teria feito sob circunstâncias idealizadas não o vinculam de maneira semelhante. O consentimento real de alguém pode dar aos outros o direito de coagir alguém, mas o consentimento que alguém apenas daria em circunstâncias idealizadas não dá a outros o direito de coagir alguém. Ou assim parece. No entanto, existem circunstâncias em que o consentimento hipotético é moralmente eficaz, circunstâncias nas quais o fato de alguém “ter concordado” com algum procedimento pode tornar permitido a execução do procedimento, onde o procedimento é de um tipo que normalmente requer consentimento. Suponha que um paciente inconsciente tenha sido levado a um hospital, precisando de cirurgia para salvar sua vida. Sob circunstâncias normais, os médicos devem obter o consentimento informado do paciente antes de operar. Nessa situação, a insistência nesse princípio impediria a aplicação de cuidados médicos que salvam vidas, pois o paciente é incapaz de consentir ou discordar do tratamento. Nesse caso, é geralmente reconhecido que os médicos devem proceder apesar da falta de consentimento. A explicação mais natural apela à crença razoável de que o paciente consentiria com o procedimento de salvar sua vida, se pudesse fazê-lo.2 O consentimento hipotético pode ter eficácia moral semelhante no caso do contrato social? Existem duas condições necessárias para a eficácia moral do consentimento hipotético em um caso como o do paciente inconsciente. Primeiro, a obtenção do consentimento real deve ser impossível ou inviável, por outras razões que não a falta de vontade da outra parte em consentir. Para ilustrar, imagine que um segundo paciente chegue ao hospital, também necessitando de cirurgia para salvar sua vida, mas neste caso eles está perfeitamente consciente e psicologicamente normal. Se aqui também os médicos optam por não solicitar o consentimento do paciente, mas simplesmente administrar anestésicos e prosseguir com o procedimento cirúrgico que consideram mais benéfico, eles não poderiam justificar seu comportamento apelando para a probabilidade de o paciente ter consentido, se tivesse sido solicitado. Embora a verdade dessa alegação hipotética possa atenuar a culpabilidade dos médicos, isso não justifica a falta de consentimento real, dada a viabilidade de apresentá-lo. Segundo, quando apelamos para o consentimento hipotético, o consentimento hipotético das partes deve ser consistente com seus valores reais relevantes e 2

Waldron (1993, 49) cita esse tipo de caso em apoio à relevância moral e política do consentimento hipotético. Dworkin (1989, 19) discute casos desse tipo, mas com mais ceticismo sobre sua relevância política.

3. A Teoria do Contrato Social Hipotético

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com suas crenças filosóficas. Imagine que um terceiro paciente seja levado ao hospital nas mesmas condições do primeiro paciente, inconsciente e necessitando de cirurgia. Mas, neste caso, o médico assistente, devido à sua familiaridade com esse paciente em particular, está ciente de que o paciente tem fortes objeções religiosas à prática da cirurgia, mesmo sendo necessária para salvar sua vida. Nessa situação, o médico não pode prosseguir com a cirurgia, desconsiderando a falta de consentimento, com o argumento de que o paciente “teria consentido”. Sempre é possível conceber circunstâncias em que qualquer indivíduo consente com um determinado procedimento- no presente caso, por exemplo, o paciente teria consentido se tivesse abandonado suas crenças religiosas. Mas hipóteses que requerem alterações nas crenças e valores fundamentais das pessoas – mesmo que algumas dessas crenças e valores sejam equivocadas – são irrelevantes para definir um consentimento hipotético moralmente eficaz. No presente caso, o julgamento hipotético de controle ético é o julgamento de que o paciente não consente em receber uma cirurgia se tivessem lhe perguntado em uma circunstância considerada normal, com suas reais crenças filosóficas, religiosas e morais intactas. Isso não significa negar que possa haver circunstâncias sob o qual a coerção paternalista seja justificada; é apenas negar que a coerção seja sempre justificada em virtude do consentimento hipotético, onde o consentimento hipotético depende de alterações fundamentais imaginadas nas crenças e valores das pessoas.3 À luz dessas condições, o contrato social hipotético não pode ser aceito como válido. Para começar, os cidadãos de um determinado país, em geral, não são inconscientes, nem mentalmente incompetentes, nem são incapazes de consentir ou discordar do contrato social, nem é inviável que o Estado solicite seu consentimento. Uma razão pela qual os Estados modernos evitam solicitar esse consentimento pode ser o fato de não estarem preparados para isentar aqueles que recusariam seu consentimento das exigências de tributação e outros requisitos legais. Mas essa consideração certamente não autoriza um apelo ao consentimento hipotético nesse caso, assim como um médico não poderia legitimamente dispensar o consentimento real de um paciente a um procedimento médico, alegando que ele, o médico, não estava disposto a desistir no caso do paciente realmente rejeitar o tratamento recomendado. Segundo, o acordo sobre qualquer contrato social exigiria modificações das crenças e valores filosóficos de pelo menos alguns cidadãos. Entre os indivíduos 3

Mill (1978, capítulo V, 95) adota um caso em que um pessoa impede coercivamente o homem de atravessar uma ponte em que ele está, sem o homem saber que é inseguro. Aqui, parece razoável recorrer ao julgamento de que o homem provavelmente consentiria em ser parado se conhecesse o estado da ponte – apesar do fato de que essa hipótese prevê uma alteração nas crenças do homem. É à luz desses casos que incluí qualificadores como “fundamental” e “religioso, filosófico e moral” antes das “crenças” nesta discussão.

3. A Teoria do Contrato Social Hipotético

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a quem o governo é imposto, existem aqueles que, por motivos filosóficos, se opõem à forma ou estilo geral de governo ao qual estão sujeitos em favor de algum outro tipo de governo. Outros se opõem a todas as formas de governo em favor de alguma forma de anarquismo político. O acordo sobre um contrato social especificando até características muito gerais do tipo de governo a ser adotado exigiria que esses indivíduos renunciassem a importantes crenças e valores filosóficos com os quais estão realmente comprometidos. Talvez alguma justificativa possa ser concebida para impor uma forma de governo a esses indivíduos sem seu consentimento, mas certamente a alegação de que eles teriam consentido não é bem-sucedida.

3.3 3.3.1

Consentimento hipotético e razoabilidade Concordância hipotética como evidência de razoabilidade

Na opinião de alguns filósofos, quando um sistema estritamente voluntário é inviável, uma aproximação aceitável pode ser um sistema sobre o qual ninguém tenha nenhuma queixa razoável.4 E o fato de um sistema político ser o foco de um acordo de pessoas razoáveis sob condições ideais pode-se pensar que as condições de deliberação mostram que ninguém tem uma queixa razoável a respeito. Ao imaginar as condições sob as quais esse acordo hipotético ocorre, podemos supor que algumas características reais dos seres humanos sejam alteradas. Por exemplo, podemos supor que as partes no contrato sejam mais bem informadas e melhores no raciocínio do que a maioria das pessoas reais. Podemos assumir que elas são racionais e razoáveis, onde pessoas “razoáveis” são entendidas como preocupadas em fazer um acordo justo com outras pessoas, desde que outras pessoas estejam igualmente dispostas. Pessoas razoáveis, portanto, não tentam insistir em um acordo que sirva apenas a si mesmas; elas estão dispostas a levar em consideração as reivindicações dos outros para chegar a um acordo aceitável para todos. Não obstante, não devemos imaginar as partes no acordo hipotético como sendo muito diferentes dos seres humanos reais, para que o acordo hipotético não perca sua força justificativa. Por exemplo, não devemos nos interessar por um acordo hipotético que só possa ser alcançado depois que todos tiverem se convertido na única religião verdadeira. Devemos aceitar o fato de que pessoas razoáveis têm diferenças religiosas persistentes e, mais geralmente, diferenças filosóficas persistentes, e devemos buscar um foco de acordo, apesar dessas 4

Nagel (1991, 33-40) avança essa sugestão, aplicando a teoria contratual da moralidade de Scanlon (1998) ao problema da legitimidade política.

3. A Teoria do Contrato Social Hipotético

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diferenças. Os teóricos do contrato hipotético adotaram explicitamente esse ponto, declarando que seu objetivo é fornecer justificativas aplicáveis a todas as pessoas razoáveis.5

3.3.2

Pode ser alcançado um acordo?

Os defensores do tipo de teoria do contrato que acabamos de descrever não ofereceram evidências ou raciocínios para mostrar que algum sistema político específico seria aceito por todas as pessoas razoáveis. Embora esses teóricos façam um esforço considerável para descrever as condições que acreditam que estabeleceriam a legitimidade de um sistema político, não fazem nenhum esforço sério para mostrar que qualquer sistema político satisfaz essas condições. Uma explicação possível para essa omissão é que, de fato, nenhum governo satisfaz as condições de legitimidade. Thomas Nagel fornece um exemplo desse padrão. Depois de descrever a ideia de um acordo hipotético, Nagel passa à questão de quanto se espera que os membros mais abastados da sociedade deem por meio de ajuda aos mais pobres. Em um extremo está a visão de que eles precisam dar pouco ou nada; no extremo oposto está a visão de que devem dar quase tudo o que têm. Ambos os extremos, ele acha irracional. Mas, admite, há um intervalo intermediário substancial no qual qualquer princípio poderia ser razoavelmente rejeitado, seja pelos pobres ou pelos ricos; portanto, nenhum acordo unânime seria possível com relação aos princípios da justiça distributiva.6 Nagel continua aumentando a possibilidade de alterarmos nossas motivações de tal maneira que as condições de legitimidade se tornem satisfatórias no futuro. Em seu trabalho posterior, John Rawls tem uma visão semelhante à visão de Nagel sobre as condições de legitimidade política, embora ele pareça mais otimista sobre as perspectivas de acordo. O otimismo de Rawls, no entanto, é sem justificativa.7 Ele descreve detalhadamente como é concebível que sua própria teoria da justiça seja o foco de um consenso entre indivíduos com diferentes visões religiosas, morais e filosóficas. Essas diferentes visões podem vir a apoiar uma única concepção política. Após a exposição dessa possibilidade lógica, podese antecipar a apresentação de evidências de que a possibilidade é realizada em alguma sociedade real. Tais evidências podem assumir a forma, por exemplo, de uma série de argumentos, cada um começando com princípios de uma religião, sistema moral ou sistema filosófico amplamente aceito e cada um concluindo nos princípios centrais da teoria da justiça de Rawls. Nenhum argumento deste 5

Scanlon 1998, 5, 208–9; Nagel 1991, 36; Rawls 2005, 137. Nagel 1991, 50–2. 7 Veja Huemer 1996, respondendo a (uma edição anterior) de Rawls 2005. 6

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tipo pode ser encontrado no trabalho de Rawls, nem qualquer outra forma de evidência para concluir que toda doutrina abrangente razoável apoia a teoria da justiça de Rawls. O mais próximo que Rawls chega a argumentar de que alguma doutrina religiosa apoia sua teoria está em sua discussão sobre tolerância religiosa, onde cita a Letter Concerning Toleration de John Locke na ilustração de por que os pensadores religiosos podem apoiar a tolerância.8 Na verdade, Locke, apesar de tolerante em seu tempo, era altamente intolerante nos padrões modernos, rejeitando explicitamente a ideia de tolerância aos ateus e para aqueles que professam ideias socialmente destrutivas.9 Deixando essa observação à parte, a dificuldade mais séria é que o que Rawls procura fornecer nesta passagem fica muito aquém do que sua teoria necessita. O que é necessário é um argumento de que todas as pessoas razoáveis concordariam com todos os principais princípios do sistema de Rawls; O que Rawls fornece é uma explicação de como um seguidor de uma religião poderia apoiar razoavelmente um dos princípios da justiça de Rawls. O mais próximo que Rawls chega a argumentar de que uma teoria moral secular abrangente apoia sua concepção política de justiça está em sua discussão sobre o utilitarismo, onde ele sugere que os utilitaristas podem considerar sua teoria da justiça para alcançar uma aproximação aceitável à maximização da utilidade.10 Essa sugestão, no entanto, é fornecida como não mais do que isso; nenhum argumento é apresentado para mostrar que a teoria da justiça de Rawls de fato fornece uma aproximação aceitável à maximização da utilidade. Até agora, portanto, a teoria do contrato hipotético parece menos um fundamento para a legitimidade política do que uma nota promissória para tal fundamento. Em essência, a teoria exige que todos os As sejam B, e a defesa dos teóricos consiste em explicar como é conceitualmente possível que exista um A que é B. Nagel e Rawls se dirigiram principalmente aos princípios da justiça distributiva, uma área altamente contenciosa.11 Talvez tenhamos mais sucesso em defender o consentimento hipotético se nos limitarmos ao acordo geral de ter um governo. Há alguma razão para duvidar que um acordo, seja hipotético ou real, com a simples afirmação de que a sociedade deva ter alguma forma de governo seria suficiente para conferir autoridade a qualquer governo em particular. Se um indivíduo concorda que deve haver governo, mas acredita que deve ser de um 8

Rawls 2005, 145, especialmente a nota 12, citando Locke 1990. Locke 1990, 64, 61. 10 Rawls 2005, 170. 11 Para uma indicação preliminar da diversidade de concepções da justiça distributiva, ver Rawls 1999; Cohen 1992; Harsanyi 1975; e Nozick 1974. 9

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tipo fundamentalmente diferente do governo ao qual ele se encontra sujeito, é duvidoso que esse governo possa se justificar adequadamente a esse cidadão citando o mero fato de que ele concorda que deveria haver alguma forma de governo. Um caso análogo é aquele em que um indivíduo deseja que sua casa seja pintada de branco, e um pintor chega e, sem o consentimento do proprietário, pinta a casa de verde. O fato de o indivíduo ter consentido em ter sua casa pintada de alguma cor por algum pintor não habilita esse pintor a pintar a casa de outra cor. Ao contratar um pintor para pintar sua casa, o proprietário não precisa consentir com todos os detalhes do desempenho do pintor, mas deve pelo menos concordar com as características mais importantes, incluindo a identidade do pintor, a cor da tinta e o preço a ser pago. Da mesma forma, o consentimento para o contrato social não precisa incluir o consentimento para todos os detalhes da estrutura e operação do Estado, mas deve pelo menos incluir o consentimento para a forma básica e os princípios governamentais mais importantes do Estado.12 Infelizmente, mesmo esse nível básico de acordo parece inatingível. Assim como existem desacordos aparentemente intratáveis sobre religião, filosofia, moralidade e questões políticas específicas, também existem desacordos aparentemente intratáveis sobre a forma geral, a estrutura e os princípios orientadores de um governo. Não há razão para pensar que todas as pessoas razoáveis chegarão a um acordo sobre os princípios básicos do governo antes que cheguem a um acordo sobre a religião correta, a teoria moral correta e assim por diante. Na verdade, ainda permanecem indivíduos ponderados e razoáveis que acreditam que a organização social ideal não conteria governo algum.13 Que esses indivíduos continuem sendo uma minoria da sociedade é de pouco conforto para os teóricos do contrato social hipotético que pretendem mostrar que todas as pessoas concordariam com o contrato social. Os pensadores anarquistas não costumam parecer particularmente menos racionais, informados ou razoáveis do que os partidários de outras visões políticas. Eles não se recusam, por exemplo, a apresentar razões para suas opiniões, ou a considerar objeções ou a levar em consideração os interesses de outras pessoas. Portanto, é difícil identificar qualquer justificativa racional para excluí-los da classe de pessoas cujo acordo é buscado. A menos que os anarquistas sejam simplesmente excluídos do acordo, os teóricos do contrato social hipotético nos devem uma explicação de como os 12

Gaus (2003, 216-17) argumenta que a legitimidade política exige concordância entre todas as pessoas razoáveis em princípios gerais, embora possam permanecer divergências sobre a interpretação desses princípios. Ele assume erroneamente que é comum um acordo sobre princípios gerais. 13 Ver Rothbard (1978); Friedman (1989); Barnett (1998); Wolff (1998); Chomsky (2005); Sartwell (2008). Em Stringham 2007, veja os artigos de Tannehills, Barnett, Friedman, Hoppe, Rogers e Lavoie, Long, Hasnas, Childs, Cuzán, Caplan e Stringham, de Jasay, Leeson e Stringham e Anderson e Hill.

3. A Teoria do Contrato Social Hipotético

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anarquistas políticos podem ser convencidos a aceitar um governo. Pode-se pensar que estou impondo padrões excessivamente rígidos para a justificação dos arranjos sociais. Certamente o simples fato de alguém, mesmo uma pessoa razoável, discordar de uma prática ou instituição específica, não é suficiente para mostrar que a prática ou instituição é injustificada. O dissidente pode simplesmente estar enganado. Em resposta, o que venho aplicando é uma restrição, não na justificação das teorias sociais em geral, mas na justificação das teorias sociais através de um apelo ao consentimento hipotético, e essa restrição não deriva de minhas próprias visões filosóficas, mas das visões de meus oponentes, os teóricos do contrato social hipotético que afirmam que o consentimento hipotético estabelece a razoabilidade. São esses teóricos que estabeleceram como uma condição de legitimidade que todas as pessoas razoáveis concordam com um determinado arranjo social. Portanto, não sou eu, mas teóricos do contrato social hipotético como Rawls, Scanlon e Nagel que efetivamente concederam o veto ao anarquista razoável.

3.3.3

A validade do consentimento hipotético

O contrato social hipotético enfrenta outro problema: mesmo que fosse possível demonstrar que todas as pessoas razoáveis concordariam com algum sistema de governo, esse fato não estabeleceria autoridade política. A legitimidade de um sistema político é uma questão da permissibilidade de impor esse sistema a todos os membros de uma determinada sociedade. É, em parte, uma questão de permissibilidade de prejudicar intencionalmente e coercivamente aqueles que desobedecem às regras produzidas pelo sistema. A teoria do contrato social hipotético, na presente interpretação, oferece a seguinte justificativa candidata para esse tipo de coerção: pode-se impor coercivamente um arranjo aos indivíduos, desde que os indivíduos não sejam razoáveis para rejeitar o arranjo. Este princípio está em conflito gritante com a moralidade do senso comum. Imagine que um empregador se aproxima de um funcionário em potencial com uma oferta de emprego totalmente justa, razoável e atraente, incluindo remuneração generosa, horas razoáveis, condições agradáveis de trabalho e assim por diante. Se o trabalhador fosse totalmente informado, racional e razoável, aceitaria a oferta de emprego. No entanto, o empregador não está eticamente habilitado a coagir o empregado a trabalhar para ele no caso de o empregado, por mais razoável que seja, recusar a oferta. A razoabilidade da oferta, juntamente com o consentimento hipotético, teria muito pouco peso ético, atenuando levemente a injustiça da imposição do trabalho forçado.

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Julgamentos semelhantes se aplicam a outros exercícios de coerção que normalmente exigiriam consentimento: não é permitido que um médico imponha coercivamente um procedimento médico a um paciente, mesmo que não tenha sido razoável recusar o tratamento; nem para um fornecedor extorquir dinheiro de um cliente, mesmo que não tenha sido razoável recusar-se a comprar o produto do fornecedor; nem para um pugilista obrigar outro pugilista a lutar, mesmo que não fosse razoável rejeitar a oferta de uma luta. Comentários semelhantes se aplicam à questão das obrigações políticas. A irracionalidade de rejeitar um acordo não é suficiente para gerar uma obrigação de cumpri-lo. O trabalhador no exemplo acima tem o direito de recusar a oferta de emprego, por mais irracional que possa ser essa recusa. Intuições contrastantes podem ser extraídas de outra analogia. Um naufrágio encalhou várias pessoas em uma ilha até então desabitada. A ilha possui uma oferta limitada de caça selvagem, que pode ser caçada por comida, mas deve ser conservada contra a extinção. Suponha que o único plano razoável seja os passageiros naufragados limitarem cuidadosamente o número de animais caçados a cada semana. Apesar desses fatos, um passageiro se recusa a aceitar esse limite. Parece plausível sustentar que os outros passageiros podem coercivamente coibir o passageiro irracional da caça excessiva em benefício de todos na ilha. Além disso, a razoabilidade de limitar a taxa de caça e a irracionalidade de rejeitar esses limites parece desempenhar um papel crucial na justificativa para tal coerção. Qual é a diferença entre o caso da ilha e o caso do contrato de trabalho? A diferença mais importante é que o caso do contrato de trabalho envolve a apreensão de um recurso, o trabalho do empregado, ao qual a vítima da coerção tem um direito moral; enquanto o caso na ilha envolve a proteção de um recurso, a caça selvagem, sobre o qual é plausível atribuir um direito coletivo, mantido apenas em parte pela coerção, mas principalmente pelos coercivos. O passageiro irracional, neste último caso, carece de qualquer direito moral de decidir unilateralmente sobre o uso ou distribuição da caça selvagem, da maneira que um indivíduo tem o direito moral de decidir sobre o uso de seu próprio trabalho. Se aceitarmos essa descrição dos casos, o contrato social hipotético é mais parecido com o contrato de trabalho rejeitado, pois o contrato social diz respeito, talvez entre outras coisas, à redistribuição coercitiva de recursos sobre os quais os indivíduos têm direitos. Entre outras coisas, o Estado reivindica uma parcela dos ganhos de todas as pessoas, independentemente da fonte. (Consulte a Seção 7.1.6 para uma discussão mais aprofundada sobre se os indivíduos têm direitos de propriedade independentes do Estado.) A coerção do Estado também não é realizada apenas ou principalmente a serviço da proteção de recursos coletivos. Frequentemente, o Estado emprega coerção a serviço de fins paternalistas,

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moralistas ou de caridade ou por proporcionar benefícios econômicos indiretos para pequenos segmentos da sociedade em detrimento de outros.14 Nenhum indivíduo ou organização privada estaria autorizado a usar coerção para esses tipos de propósitos, por mais razoáveis que sejam seus planos. Aqui como em outros lugares, nossas atitudes em relação ao governo diferem de nossas atitudes em relação a outros agentes. A irracionalidade da rejeição claramente não licencia um indivíduo privado a forçar os termos de um contrato a outro indivíduo. No entanto, acredita-se que a irracionalidade de rejeitar o contrato social licencie o Estado a forçar os termos desse contrato a seus cidadãos. O que a teoria do contrato social hipotético fornece, então, é outro exemplo das atitudes morais particularmente brandas aplicadas ao governo, em vez de uma justificativa dessas atitudes. É preciso começar atribuindo ao Estado um status moral especial para acreditar que o Estado tem o direito moral de forçar um arranjo sobre os indivíduos simplesmente porque seria irracional rejeitar o arranjo.

3.4 3.4.1

Consentimento hipotético e restrições éticas A teoria do contrato de Rawls como uma defesa da autoridade

John Rawls é, de longe e sem dúvida, o filósofo político mais influente dos últimos cem anos. Como um indicador aproximado, uma pesquisa pela palavra-chave “Rawls” no Philosopher’s Index gera mais de 2.000 ocorrências para artigos e livros publicados entre 1990 e 2011. Ele é conhecido principalmente pela teoria do contrato social hipotético, presente em sua obra A Theory of Justice. Portanto, é de grande interesse investigar o que essa teoria pode nos ensinar sobre autoridade política. Rawls elabora um cenário hipotético, a “posição original”, na qual os indivíduos fazem um acordo sobre os princípios básicos para governar sua sociedade.15 Presume-se que esses indivíduos sejam motivados apenas pelo interesse próprio, mas foram temporariamente privados de todo o conhecimento de sua posição na sociedade e, de fato, de qualquer outra informação pessoal sobre si, incluindo 14

Consulte a Seção 5.4.2, para obter uma taxonomia mais completa das atividades governamentais. 15 Rawls 1999. Esse tipo de experimento mental foi usado pela primeira vez para derivar princípios da justiça distributiva por Harsanyi (1953; 1955), que argumentou que o experimento mental apoiava o utilitarismo.

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raça, sexo, religião, classe social e assim por diante.16 Essa condição, conhecida como “véu da ignorância”, impede as partes de adaptarem os princípios políticos escolhidos para sua própria vantagem; sendo ignorante sobre qual será sua posição na sociedade, é preciso se esforçar para criar princípios que sejam justos para todos. Rawls continua argumentando que as pessoas nessa posição original escolheriam dois princípios particulares de justiça para governar sua sociedade.17 Conclui que as pessoas devem de fato adotar esses princípios. (Eu omito aqui a discussão dos dois princípios de justiça de Rawls e o raciocínio que os leva. Minha preocupação atual é se a estratégia argumentativa de Rawls pode ser empregada para defender a autoridade política.) Embora Rawls não defenda diretamente à necessidade de governo em geral, pode-se conceber um argumento rawlsiano para autoridade política. Pode-se dizer que as partes na posição original preferem estabelecer alguma forma de governo ao invés de aceitar a anarquia. Se alguém pudesse argumentar convincentemente a favor dessa afirmação, seria suficiente para estabelecer autoridade política? Se um contrato hipotético rawlsiano é capaz de justificar princípios de justiça, é plausível pensar que esse contrato também poderia justificar o governo em geral. Mas como o contrato hipotético é pensado para justificar os princípios de justiça? Rawls oferece as seguintes observações: Como todos estão situados de maneira semelhante [na posição original] e ninguém é capaz de projetar princípios que favoreçam sua condição específica, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou barganha.18 [Os princípios escolhidos de justiça] expressam o resultado de deixar de lado os aspectos do mundo social que parecem arbitrários do ponto de vista moral.19 A ideia aqui é simplesmente tornar vivas as restrições que parece razoável impor aos argumentos a favor dos princípios de justiça e, 16

Rawls (1999, 12, 111) distingue sua suposição de “desinteresse mútuo” de uma suposição de egoísmo. No entanto, sua distinção se baseia na suposição equivocada de que apenas desejos por coisas como riqueza, poder e prestígio contam como “egoístas”. Os egoístas éticos sérios rejeitam essa suposição (Hunt, 1999). 17 No final de A Theory of Justice (1999, 509), Rawls discute quais princípios seriam escolhidos na posição original se as partes tivessem uma lista mais completa de princípios possíveis para escolher do que a lista curta que Rawls considera anteriormente no livro: “Duvido, no entanto, que os princípios da justiça (como os defini) sejam a concepção preferida em qualquer coisa que se assemelhe a uma lista completa.” No entanto, deixarei de lado essa aparente admissão de que os princípios da justiça de Rawls não são apoiados por sua própria estratégia argumentativa. 18 Rawls 1999, 11. 19 Ibid., 14.

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portanto, a esses princípios. Assim, parece razoável e geralmente aceitável que ninguém seja beneficiado ou prejudicado pela fortuna natural ou pelas circunstâncias sociais na escolha dos princípios. Também parece amplamente aceito que deve ser impossível adaptar os princípios às circunstâncias do próprio caso. Devemos garantir ainda que inclinações e aspirações particulares, e as concepções das pessoas sobre o seu bem não afetem os princípios adotados. [. . . ] A qualquer momento, podemos entrar na posição original, por assim dizer, simplesmente seguindo um determinado procedimento, a saber, argumentando por princípios de justiça de acordo com essas restrições.20 É natural perguntar por que, se esse contrato nunca for realmente celebrado, devemos nos interessar por esses princípios. [. . . ] A resposta é que as condições incorporadas na descrição da posição original são aquelas que de fato aceitamos. Ou, se não o fizermos, talvez possamos ser persuadidos a fazê-lo pela reflexão filosófica.21 Essas observações merecem um exame minucioso, pois formam o ponto central da versão da teoria do contrato social de Rawls, de longe a teoria mais influente da filosofia política contemporânea. As passagens acima representam todo o relato de Rawls de como o contrato hipotético justifica princípios morais ou políticos.22 Portanto, seria difícil expor a importância da filosofia política de uma compreensão clara dessas poucas passagens. Pelo menos duas linhas de argumento podem ser encontradas nessas passagens. O primeiro apela a restrições diretas aos princípios putativos da justiça. Rawls menciona duas restrições importantes desse tipo: primeiro, os princípios da justiça devem ser justos para todos os membros da sociedade, tratando todos os membros como iguais. Segundo, os princípios da justiça devem “deixar de lado” ou, mais fortemente, compensar aspectos do mundo social que são arbitrários do ponto de vista moral, como a situação em que os indivíduos recebem benefícios ou encargos como resultado de meras boa ou má sorte. A segunda linha de argumento apela a restrições nos argumentos sobre justiça. Na terceira citação, Rawls sugere que, em vez de imaginar um cenário que envolva pessoas ignorantes de sua identidade deliberando sobre as regras de sua sociedade futura, poderia-se obter o mesmo resultado simplesmente raciocinando 20

Ibid., 16–17; cf. 119–20. Ibid., 19. 22 Rawls dedica §4 em A Theory of Justice ao argumento, que ele reafirma em Rawls 1985, 236–9, e Rawls 2001, 17–18. Nenhuma dessas passagens contém detalhes adicionais significativos além das citações reproduzidas no texto. 21

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sobre a justiça de acordo com certas restrições – ou seja, aquela que evita ser influenciada, nos argumentos ou princípios que aceitamos, pela fortuna natural ou pelas circunstâncias sociais de alguém; que se evite adaptar os princípios da justiça que aceita ao próprio caso; e que evite ser influenciado por inclinações particulares ou por uma concepção particular do bem. A posição original não passa de um dispositivo imaginativo para induzir-nos a pensar dessa maneira.23 A seguir, voltarei à questão de saber se essa justificativa para o uso da posição original foi bem-sucedida. Por enquanto, considero o que surgiria da posição original, caso exista algo.

3.4.2

Pode ser alcançado um acordo?

Por que Rawls acredita que as partes na posição original poderiam chegar a um acordo, em vez de discordar persistentemente, como as pessoas fazem no mundo real? O motivo é simples: “Desde que as diferenças entre as partes são desconhecidas para elas, e todos são igualmente racionais e situados de maneira semelhante, cada um é convencido pelos mesmos argumentos”.24 A conclusão de Rawls não segue de suas premissas declaradas. Rawls assume que, quando todas as inclinações particulares e todas as características individuais (ou conhecimento delas) forem extirpadas, todas as pessoas razoáveis e racionais serão convencidas pelos mesmos argumentos. Essa suposição baseia-se em um diagnóstico particular do fenômeno de discordância intelectual generalizada: que tal discordância se deve inteiramente a fatores como ignorância, irracionalidade e vieses (preconceitos) criados pelo conhecimento das características individuais de alguém.25 Se esse diagnóstico estiver correto, então uma situação em que tal ignorância, irracionalidade e preconceito são removidos deve resultar em um acordo geral. Mas se o diagnóstico não estiver correto e houver outras fontes de desacordo, Rawls não deu motivos para acreditar que o acordo seria alcançado na posição original. Quão plausível é o diagnóstico de desacordo implícito de Rawls? Embora muita discordância seja indubitavelmente devida a irracionalidade, ignorância e preconceito pessoal, é improvável que toda discordância seja explicada dessa maneira. Fora da filosofia política, os filósofos mantêm debates persistentes em epistemologia, ética e metafísica, alguns dos quais a milênios. Os partidários nesses debates geralmente parecem igualmente racionais, bem informados e inteligentes. Ninguém parece tentar adaptar suas teorias às suas próprias cir23

Rawls enfatiza essa ideia mais fortemente em 1985, p. 236–9. Rawls 1999, 120. 25 Em seu trabalho posterior, Rawls parece renunciar a esse diagnóstico, reconhecendo a discordância como o resultado natural do livre exercício da razão humana (2005, 36-7, 54-8). No entanto, o diagnóstico é requerido para seu argumento em A Theory of Justice. 24

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cunstâncias, nem confiar ilicitamente em informações pessoais sobre si mesmo, caso essas transgressões sejam possíveis nessas áreas. No entanto, os filósofos manifestamente falham em achar os mesmos argumentos convincentes. Portanto, é difícil escapar à conclusão de que a mente humana está sujeita a fontes de julgamento diferentes, além de irracionalidade, ignorância e preconceito pessoal. E quaisquer que sejam essas fontes de discordância, se operam em epistemologia, ética e metafísica, não é plausível supor que estejam ausentes na filosofia política. Um diagnóstico mais plausível de discordâncias filosóficas generalizadas e persistentes é que os seres humanos experimentam intuições diferentes e outras aparências intelectuais. Quando contemplamos teorias e argumentos, diferimos no grau de plausibilidade que vemos neles, independentemente de como nossos interesses pessoais diferem. Indivíduos com intuições filosóficas diferentes e julgamentos de plausibilidade alcançarão, compreensível e racionalmente, posições filosóficas diferentes.26 Tampouco essas aparências intelectuais podem ser simplesmente estipuladas, uma vez que algum senso do que é plausível é essencial para qualquer processo sofisticado de pensamento do tipo envolvido no raciocínio filosófico. Um ser sem intuições filosóficas não alcançaria, portanto, uma posição filosófica particularmente inatacável; seria simplesmente incapaz de avaliar posições filosóficas. Considere agora uma discordância de interesse particular, a discordância entre anarquistas e estatistas sobre a necessidade do governo.27 Não há razão para pensar que essa discordância evapore por trás do véu da ignorância, porque Rawls não deu nenhuma razão para pensar que aqueles que de fato mantêm uma dessas visões o fazem apenas porque confiam no conhecimento de sua posição particular na sociedade. Os anarquistas não discordam dos estatistas porque os anarquistas têm uma posição social peculiar ou combinação de traços pessoais que de alguma forma lhes permitiriam prosperar na ausência de governo enquanto o resto da sociedade se desmorona. Se os anarquistas estão corretos em suas crenças factuais, então algum sistema sem Estado seria melhor para a sociedade como um todo do que um sistema governamental; se estiverem errados, seria pior para todos, incluindo os anarquistas. O que quer que explique esse desacordo em particular, não é que alguém esteja adaptando princípios morais ou políticos para sua própria vantagem. Ao apelar para este exemplo, observe que não pressuponho que o anarquismo político esteja correto; Suponho apenas que existem anarquistas políticos razoá26

Em Huemer 2007, argumento que todas as crenças racionais são baseadas em como as coisas parecem para o crente. Veja Huemer 2005, capítulo 5, sobre o papel da intuição na ética em particular. Veja Huemer 2011 sobre o papel das normas epistêmicas centradas no agente na explicação do desacordo racional. Mas veja Hanson e Cowen (2004) para uma visão competitiva. 27 Uso “estatismo” para a visão de que o governo deveria existir; isto é, a alternativa ao anarquismo político.

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veis (inclusive eu, como gosto de pensar). Cabe ao teórico do contrato hipotético demonstrar que não existe. Também não pressuponho que a legitimidade política exija acordo sobre todos os detalhes da política. Mas, presumivelmente, concordar se deve haver um Estado é o mínimo que qualquer teoria do contrato social exige.

3.4.3

A validade do consentimento hipotético, parte 1: o apelo a resultados justos

Volto-me agora a questão da eficácia moral do consentimento hipotético. Mencionei anteriormente que uma maneira de ler a justificação de Rawls para a posição original é como um apelo a restrições diretas nos princípios da justiça, em particular as restrições de que os princípios da justiça devem ser justos para todos e que devem retificar a arbitrariedade moral na distribuição de vantagens. Essa abordagem pode ser usada para defender a autoridade política? Imagine que Sue faça uma oferta para comprar o carro de Joe. Dados os fatos sobre a condição do carro, as respectivas situações de Sue e Joe, e assim por diante, a oferta de Sue é totalmente justa para ambas as partes, não tendenciosa a favor de nenhuma parte. Um proprietário perfeitamente racional, plenamente informado e razoável aceitaria a oferta. No entanto, Joe se recusa a vender. É plausível que Joe tenha agido errado? Ou que Sue possa forçar Joe a vender? Imagine a seguir que, por puro acaso, Joe descobriu um diamante em seu quintal, que lhe confere uma vantagem material da qual Sue, sem culpa sua, é privada. Visto que a arbitrariedade moral da distribuição resultante da riqueza poderia ser retificada por uma transferência de riqueza adequada, Joe é moralmente obrigado a dar a Sue metade do valor do diamante? Sue tem o direito de forçar Joe a fazer isso? Como esses exemplos mostram, o fato de que algum acordo hipotético seja justo ou retifique a arbitrariedade moral em geral não cria uma obrigação de agir de acordo com o acordo hipotético, nem cria um direito ético para coagir outros a seguir o acordo hipotético. Talvez Rawls responda aos meus exemplos, como respondeu uma vez a outro crítico,28 observando que seus princípios da justiça se destinavam a se aplicar apenas à estrutura básica da sociedade, e não a interações de pequena escala entre indivíduos. Existem dois possíveis pontos de distinção que Rawls poderia levantar aqui. O primeiro é uma questão de escala: os exemplos dos dois parágrafos anteriores envolvem apenas dois indivíduos em vez de uma sociedade inteira. Essa diferença, no entanto, não tem relevância ética. Se uma corporação 28

Veja Rawls 1974, 141-2, respondendo às críticas de Harsanyi (1975) à regra da decisão maximin.

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muito grande fizer ofertas para um número muito grande de pessoas, o tamanho da corporação não a habilitará a forçar indivíduos a aceitar suas ofertas (mesmo que sejam ofertas justas), assim como um único indivíduo não teria direito a fazer também. A outra distinção é política: meus exemplos envolvem atores privados, enquanto os princípios de Rawls prescrevem ações do Estado. Essa distinção, no entanto, não pode ser empregada na defesa de Rawls sem implantar a pergunta, uma vez que a resposta simplesmente pressupõe que o Estado possua algum status moral especial, de modo que a coerção por parte do Estado seja mais facilmente justificada do que a coerção por parte de agentes privados. Se o Estado possui autoridade política, esse pressuposto estaria correto; no entanto, como o que se busca é uma justificativa para a autoridade, não se pode dar como certo dessa maneira. Sem atribuir um status moral especial ao Estado, Rawls não teria como restringir a justificativa proposta para coerção ao caso dos agentes estatais. E como os apelos à justiça ou a retificação da arbitrariedade moral claramente falhariam como justificativas para a coerção privada, também deveriam ser rejeitadas como fonte de legitimidade política. Como esses casos mostram, existe uma grande lacuna entre qual acordo hipotético pode ser adotado de maneira plausível para estabelecer, como a imparcialidade ou razoabilidade de algum acordo, e o que o defensor da autoridade política precisa estabelecer: o direito de impor um acordo pela força, incluindo o direito de prejudicar intencionalmente e coercivamente aqueles que não cooperam e a obrigação dos indivíduos de aderir a esse acordo. Embora um acordo real possa estabelecer essas coisas, um acordo meramente hipotético não pode.29

3.4.4

A validade do consentimento hipotético, parte 2: condições suficientes para um raciocínio moral confiável

A vertente dominante na defesa da teoria do contrato social hipotético de Rawls apela a restrições no raciocínio sobre princípios morais: no raciocínio moral, é preciso evitar ser influenciado pelo interesse próprio, inclinações particulares ou quaisquer outros traços individuais eticamente irrelevantes. A posição original é apenas uma maneira pitoresca de pôr em prática essas restrições, que já aceitamos. Deixe C defender a conjunção de todas essas restrições razoáveis no raciocínio moral; isto é, todas as restrições que são consideradas incorporadas na posição original de Rawls. Deixe J representar qualquer princípio emergindo da posição 29

A recente defesa de Stark (2000) da teoria do contrato social hipotético concorda com esse ponto. Ele propõe que um contrato hipotético pode “justificar” princípios políticos em algum sentido, mas nega que possa mostrar que alguém é obrigado a seguir esses princípios ou que o Estado tem o direito de fazer cumprir os princípios (321, 326).

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original; isto é, um princípio da justiça ou outro princípio moral com o qual as partes hipotéticas concordariam.30 O argumento de Rawls a favor de J pode ser entendido da seguinte forma: 1. J pode ser alcançado pelo raciocínio que satisfaz C. 2. Se um princípio moral pode ser alcançado pelo raciocínio que satisfaz C, então está correto. 3. Portanto, J está correto. Podemos desejar considerar variações desse argumento; por exemplo, para “está correto”, podemos substituir “provavelmente está correto”, “é justificado” ou “deve ser adotado”. Minhas críticas abaixo devem ser consideradas como aplicáveis a qualquer versão enfraquecida do argumento. A premissa (1) é verdadeira por estipulação. Não está claro, no entanto, por que alguém deveria abraçar a premissa (2). Embora seja plausível que as restrições que Rawls identifique sejam condições necessárias para a confiabilidade ou persuasão racional do raciocínio moral, Rawls não faz nenhuma tentativa para mostrar argumentos morais confiáveis ou racionalmente persuasivos. De fato, ele visa expressamente manter as suposições da posição original tão fracas quanto possível, consistentes com os cenários tendo um resultado determinado,31 o que é coerente com o objetivo de garantir que as restrições incorporadas à posição original sejam todas necessárias para a aceitabilidade de um pedaço de raciocínio moral. Mas não se encaixa no objetivo de garantir que sejam (coletivamente) suficientes para a aceitabilidade de um pedaço de raciocínio moral. Uma dificuldade relacionada diz respeito à lacuna entre aceitabilidade processual e corretude substantiva. Mesmo que Rawls tenha conseguido identificar todas as restrições processuais apropriadas aos argumentos morais, uma pessoa que satisfaça essas restrições – não sendo tendenciosa, isto é, falhando em cometer falácias e assim por diante – não garantiria a exatidão de suas conclusões. A corretude das conclusões de alguém, qualquer que seja o campo de investigação, depende em parte da corretude e integridade das informações das quais se raciocina. Isso é facilmente visto em exemplos que envolvem raciocínio científico. Isaac Newton sustentou teorias equivocadas devido, não a qualquer erro processual em seu pensamento sobre a física, mas sim à incompletude de suas informações – especificamente, sua ignorância dos fenômenos relativísticos e da mecânica quântica. 30

Embora ele inicialmente descreva sua teoria do contrato social hipotético como uma maneira de chegar aos princípios da justiça (1999, seções 1–4), Rawls depois apela ao contrato hipotético como uma justificativa para os princípios éticos de maneira mais geral (seções 18–19, 51–2). 31 Rawls 1999, 16, 510.

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O mesmo princípio vale para as teorias normativas, onde as informações necessárias são, pelo menos em parte, avaliativas. Ou seja, as chances de se chegar a conclusões morais aceitáveis dependem, em parte, da corretude e integridade substantivas dos valores iniciais. Se uma pessoa tem valores finais equivocados, como a crença de que a dor é intrinsecamente boa, ou se seus valores básicos são corretos, mas incompletos, como no caso de alguém que, por engano, sustenta que sentir prazer é o único bem intrínseco, essa pessoa mais provavelmente chegará a conclusões normativas incorretas, mesmo que todo o seu raciocínio seja perfeitamente aceitável em termos processuais, desprovido de preconceitos de interesse próprio e assim por diante. Assim, para garantir que as partes na posição original cheguem apenas a conclusões normativas corretas, é necessário dotar as partes de valores completos e corretos, estipulando que usem esses valores corretos para tomar sua decisão. Uma explicação para o fracasso de Rawls em incorporar essa estipulação pode ser que exigiria que ele resolvesse debates aparentemente intratáveis dentro da teoria moral sobre quais são os valores corretos antes que pudesse caracterizar adequadamente a posição original e tirar conclusões dela. Essa dificuldade, no entanto, não mostra que Rawls esteja justificado em omitir a condição de valores completos e corretos da posição original; mostra apenas que as perspectivas de uso da posição original para justificar princípios normativos são obscuras. Somente se C incluir uma restrição de valores completos e corretos é plausível afirmar que a premissa (2) é verdadeira, e não se pode, ao construir um argumento filosófico, meramente prescindir de uma condição necessária para a plausibilidade de uma premissa desse argumento porque essa condição interfere na construção do restante do argumento. Uma analogia é o caso do homem que perdeu as chaves em um beco escuro, mas escolhe procurá-las sob um poste de luz porque a luz é melhor ali. A dificuldade de identificar a teoria ética abrangente correta e suas implicações políticas não impede que essas informações sejam necessárias para garantir conclusões moralmente corretas, assim como a dificuldade de ver em um beco escuro impede que as chaves sejam localizadas lá. Eu li o argumento rawlsiano como afirmando que algum princípio J é correto ou deve ser adotado. Suponha que isso seja enfraquecido com a alegação de que é permitido adotar J ou que J não é ilegítimo. Isso pode tornar o argumento mais persuasivo, pois pode parecer menos implausível que Rawls tenha fornecido condições suficientes para a permissibilidade de um arranjo político do que ele tenha fornecido condições suficientes para a corretude de um arranjo político. Mas esse enfraquecimento da conclusão do argumento não evita verdadeiramente o problema já discutido. É necessário um suprimento adequado de premissas morais básicas corretas para identificar cursos de ação permitidos, não menos que os obrigatórios. Suponha, por exemplo, que indivíduos tenham direitos,

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mas Alastair desconheça esse fato. Alastair pode então ser levado a concluir falsamente que certas ações são permitidas (particularmente ações que de fato violam os direitos das pessoas) sem cometer nenhum erro processual em seu pensamento. Meu argumento aqui não pressupõe que haja de fato direitos individuais; o ponto é simplesmente que seria necessário conhecer a verdade sobre essas coisas para garantir a identificação confiável do que é permitido. Em suma, o presente argumento para a eficácia do consentimento hipotético falha porque a posição original incorpora apenas certas condições necessárias para a confiabilidade do raciocínio normativo, em vez de condições suficientes para a corretude das conclusões normativas. Se a posição original for modificada de modo a incluir condições suficientes para a corretude normativa, torna-se difícil ou impossível determinar com quais princípios seria acordado.

3.4.5

A validade do consentimento hipotético, parte 3: condições necessárias para um raciocínio moral confiável

Há uma interpretação remanescente do argumento de Rawls. Nesta interpretação, a restrição conjuntiva C representada pela posição original é considerada necessária, mas não suficiente para a aceitabilidade dos argumentos morais. Se adotamos essa visão, podemos argumentar da seguinte maneira: 1. J é unicamente coerente com C. 2. C está correto. 3. Portanto, J está correto. “Coerente” em (1) deve ser entendido como referência a qualquer relação que permita a C apoiar ou descartar um princípio moral. Assim, (1) pode significar que apenas J pode ser alcançado pelo raciocínio de acordo com C, que a corretude de J é implicada pela corretude de C, que J satisfaz C a um grau mais alto do que qualquer princípio concorrente, ou a gosto. Assim entendida, a premissa (1) é uma afirmação muito forte, embora eu não tenha sido mais forte do que o argumento exige: se C é meramente necessário, mas não suficiente para corretude moral, então uma premissa no sentido de que J é coerente com C não mostraria que J estava correto; o que se deve mostrar é que nenhum princípio alternativo é coerente com C. A premissa (1) é exposta a contra-evidências amplas e poderosas. Muitos filósofos parecem ter chegado a conclusões alternativas por um raciocínio que satisfaz C. Os vários pensadores que adotam o utilitarismo, o igualitarismo, o libertarianismo ou o anarquismo geralmente não parecem ter violado nenhuma

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restrição amplamente aceita ao raciocínio moral, nem Rawls em qualquer lugar esforçar-se para mostrar que eles tenham. Como exemplo, considere o utilitarismo, a teoria de que a ação correta (seja para um indivíduo ou para o Estado) é sempre a ação que produz os maiores benefícios líquidos totais, agregando benefícios a todos os afetados pela ação. Rawls nos diz que essa é a teoria com a qual ele estava mais preocupado em fornecer uma alternativa sistemática.32 Ele também afirma que a função da posição original é simplesmente “descartar aqueles princípios que seria racional propor [. . . ] apenas se alguém soubesse certas coisas que são irrelevantes do ponto de vista da justiça”.33 O utilitarismo certamente não é um exemplo de princípio moral que faz sentido propor apenas se alguém tem informações irrelevantes do ponto de vista da justiça, como informações sobre a raça, sexo, classe social e assim por diante. Tudo o que se pode dizer sobre isso, o utilitarismo é talvez a única teoria ética menos suscetível a acusações de parcialidade indevida. O pensamento dos utilitaristas reais parece, portanto, fornecer um contra-exemplo convincente à premissa (1).34 Que argumento Rawls oferece para apoiar (1)? Ao motivar a construção da posição original, ele apresenta argumentos de que a posição original personifica C. Também argumenta detalhadamente que certos princípios seriam escolhidos na posição original.35 Mas nenhuma dessas coisas poderia ser considerada uma premissa (1). Em conjunto, elas podem mostrar que há um exemplo de raciocínio que satisfaz C – ou seja, o raciocínio das partes na posição original – que leva a J. Mas seria falacioso inferir que não há outro caminho possível de raciocínio que satisfaça C que leva a um princípio alternativo (na lógica aristotélica, isso é conhecido como falácia do menor ilícito).36 E, de fato, como vimos, existem 32

Rawls 1999, xvii-xviii. Rawls 1999, p. 17. 34 Pode-se dizer que o raciocínio utilitário viola a restrição do desinteresse mútuo que Rawls incorpora na posição original (1999, 12). Mas dificilmente se pode dizer que isso represente uma restrição genuína ao raciocínio moral aceitável, uma vez que não é o caso de o raciocínio moral de alguém ser problemático se levar em consideração os interesses dos outros. Da mesma forma, a argumentação de que o utilitarismo viola a restrição de que não se baseia em nenhuma concepção de bem. 35 Mas veja Harsanyi 1975 para argumentos convincentes de que a posição original realmente leva ao utilitarismo. 36 Na lógica aristotélica, o “termo menor” em um silogismo é o termo que aparece como o conteúdo da conclusão. Se o termo menor for distribuído na conclusão, ele deverá ser distribuído em pelo menos uma premissa. Grosso modo, isso significa que, se a conclusão fizer uma reivindicação aplicável a todos os membros de uma determinada classe, pelo menos uma premissa deverá conter informações aplicáveis a todos os membros dessa classe. No presente caso, a conclusão desejada é que todo raciocínio moral que satisfaz C é consistente com J (esta é uma paráfrase de (1)); portanto, o termo menor é “raciocínio moral satisfazendo C”, e esse termo é distribuído na conclusão desejada. Como qualquer reivindicação que Rawls possa fazer sobre a posição original 33

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exemplos de raciocínio que satisfazem C que são inconsistentes com J, como o raciocínio vigente dos utilitaristas.

3.5

Conclusão

O acordo hipotético normalmente é eficaz somente quando (i) o contrato real não pode ser viável e (ii) é razoável acreditar que a parte ou partes relevantes concordariam, com base em suas crenças reais e valores gerais. Essas condições são insatisfeitas no caso do contrato social hipotético. O trabalho filosófico contemporâneo sugere três maneiras pelas quais um contrato social hipotético pode, no entanto, ser considerado moralmente relevante. Primeiro, pode-se pensar que um acordo hipotético mostra que um determinado arranjo social não pode ser razoavelmente rejeitado. Esse argumento falha porque não há razão para acreditar que o acordo hipotético necessário possa ser alcançado. Mesmo que tal acordo possa ser alcançado, a mera irracionalidade de alguém rejeitar um acordo normalmente não torna moralmente permitido coagir essa pessoa a aceitar o acordo, nem impõe aos indivíduos a obrigação de aceitar o acordo. Segundo, pode-se pensar que um acordo hipotético mostre que um arranjo social é justo. Novamente, não há razão para acreditar que um acordo geral sobre um sistema político possa ser alcançado, mesmo entre pessoas racionais igualmente informadas que não tenham conhecimento de suas identidades individuais e, de qualquer forma, o mero fato de que um acordo é justo normalmente não torna moralmente permissível coagir as pessoas a aceitarem o acordo, nem impõe aos indivíduos a obrigação de aceitarem o acordo. Terceiro, pode-se pensar que um acordo hipotético mostre que um conjunto de princípios morais reflete certas restrições razoáveis no raciocínio moral. Essas restrições podem ser entendidas como condições coletivamente suficientes ou apenas como condições coletivamente necessárias para a aceitabilidade de um pedaço de raciocínio moral. Se as restrições forem suficientes para a aceitabilidade do raciocínio moral, elas devem incluir uma condição de valores completos e corretos por parte do raciocínio. Mas essa condição tornaria inutilizável a teoria do contrato hipotético, uma vez que seria necessário determinar a teoria moral abrangente e correta antes de poder determinar o conteúdo do acordo hipotético. Se, por outro lado, nos basearmos apenas nas condições necessárias para a aceitabilidade do raciocínio moral, então se deve argumentar que toda teoria política exceto uma de alguma forma viola pelo menos uma condição diria respeito apenas a um caso de raciocínio que satisfaça C, o termo menor não está distribuído nas premissas.

3. A Teoria do Contrato Social Hipotético

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necessária do raciocínio moral aceitável. Ninguém argumentou a favor dessa afirmação, e as divergências razoáveis entre os teóricos parecem representar uma contra-evidência poderosa. Assim, a mudança para um contrato meramente hipotético não pode salvar a teoria do contrato social. Não há razão para acreditar que o acordo possa ser alcançado, mesmo nos cenários hipotéticos previstos pela maioria dos teóricos, nem que esse consentimento hipotético seria moralmente relevante se pudesse ser alcançado.

4 A Autoridade da Democracia 4.1

Majoritarismo ingênuo

Uma vez que reconheçamos a inviabilidade de obter consentimento unânime para qualquer acordo social não trivial, poderemos recorrer ao consentimento da maioria. O acordo apenas da maioria dos membros da sociedade – seja amplo acordo para ter um governo ou acordo para ter políticas ou pessoal específicos – confere autoridade ao governo? À primeira vista, não está claro como isso pode funcionar. As opiniões ou decisões de um grupo maior de pessoas normalmente não são suficientes para impor obrigações a um grupo menor ou a um indivíduo que não concorda com o grupo maior, nem geralmente justificam um comportamento coercitivo por parte do grupo maior. Imagine o seguinte cenário, que chamarei de exemplo da conta do bar. Você saiu para beber com alguns de seus colegas e estudantes de pós-graduação. Vocês estão ocupados falando sobre filosofia, quando alguém levanta a questão de quem vai pagar a conta. Várias opções são discutidas. Um colega sugere dividir a conta igualmente entre todos na mesa. Você sugere que todos paguem por suas próprias bebidas. Um estudante de graduação sugere que você pague pelas bebidas de todos. Relutante em gastar tanto dinheiro, você recusa. Mas o aluno persiste: “Vamos votar”. Para sua consternação, eles continuam votando, o que revela que todos na mesa, exceto você, querem que você pague pelas bebidas de todos. “Bem, isso resolve”, declara o aluno. “Pague.” Agora você é eticamente obrigado a pagar pelas bebidas de todos? Os outros podem coletar seu dinheiro à força? A maioria responderá não às duas perguntas. A vontade majoritária por si só não gera direito a coagir a minoria, nem gera uma obrigação de cumprimento por parte da minoria. Mais precisamente, a maioria por si só não oferece apoio suficiente para que uma proposta substitua 55

4. A Autoridade da Democracia

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os direitos de propriedade privada de um indivíduo (seu direito ao seu dinheiro neste exemplo) ou o direito de não ser sujeito a coerção prejudicial. Esse tipo de exemplo coloca um ônus dialético sobre os defensores da autoridade democrática, um ônus de identificar algumas circunstâncias especiais que se aplicam ao governo que explicam por que, no caso do governo, o apoio da maioria fornece justificativa adequada para a coerção, mesmo que não seja suficiente para outros agentes.

4.2 4.2.1

Democracia deliberativa e legitimidade A ideia de democracia deliberativa

Teóricos democráticos recentes enfatizaram o valor dos procedimentos de tomada de decisão em uma sociedade democrática. Uma linha recente de pensamento busca articular um ideal de “democracia deliberativa” – isto é, um ideal de como os cidadãos de uma sociedade democrática devem deliberar entre si sobre questões de interesse público.1 Assim, de acordo com Joshua Cohen, a deliberação democrática ideal teria as seguintes características:2 1. Os participantes consideram sua deliberação capaz de determinar uma ação e sem restrições por quaisquer normas anteriores. 2. Os participantes oferecem razões para suas propostas, com a expectativa (correta) de que apenas essas razões determinarão o destino de suas propostas. 3. Cada participante tem uma voz igual. 4. A deliberação visa ao consenso. No entanto, se não for possível obter consenso, a deliberação termina com a votação. O que isso tem a ver com autoridade política? Em uma democracia deliberativa ideal, Cohen escreve: “[. . . ] os cidadãos consideram suas instituições básicas legítimas na medida em que estabelecem a estrutura para deliberação pública gratuita. [. . . ] Para eles, a livre deliberação entre iguais é a base da legitimidade”.3 Aqui, Cohen não está diretamente fazendo uma reivindicação sobre o que é uma base sólida para a legitimidade política. Ele também não está fazendo uma afirmação psicológica ou sociológica sobre o que as pessoas reais 1

Cohen 2002; Habermas 2002. Ver Cohen 2002, 92–3, para uma descrição mais completa dessas condições. 3 Cohen 2002, 91. 2

4. A Autoridade da Democracia

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consideram uma base sólida para a legitimidade. Em vez disso, ele estipula que os cidadãos de uma democracia deliberativa ideal – um cenário puramente hipotético – toma a deliberação como base da legitimidade. Suponho, no entanto, que o próprio Cohen considere algum processo deliberativo adequado para fornecer uma base sólida para a legitimidade política. Como a deliberação democrática pode fornecer uma base para a legitimidade? Cohen não explica isso claramente. Talvez o pensamento seja que a justiça, a igualdade e a racionalidade do procedimento de tomada de decisão que Cohen descreve confiram legitimidade aos seus resultados. Esse é um argumento tênue – por que deveríamos assumir que qualquer procedimento, por melhor que seja, confere um direito exclusivo e independente do conteúdo para o Estado coagir as pessoas a cumprir as decisões produzidas por esse procedimento? No entanto, vamos examinar essa linha de pensamento mais de perto.

4.2.2

Democracia deliberativa como fantasia

Se há algo que se destaca quando se lê descrições filosóficas da democracia deliberativa, é até que ponto essas descrições caem da realidade. Das quatro características da democracia deliberativa que Cohen identifica, quantas são satisfeitas por uma sociedade real? Comece com a primeira condição de Cohen. Cohen escreve: “os participantes se consideram vinculados apenas pelos resultados de sua deliberação e pelas pré-condições para essa deliberação. A consideração de propostas não é limitada pela autoridade de normas ou requisitos prévios.”4 Isso não é verdade para a maioria das pessoas. As pessoas reais frequentemente se consideram vinculadas por outras coisas que não os resultados de deliberação pública. Por exemplo, alguns acreditam em lei natural, muitos acreditam em exigências morais divinamente impostas, outros acreditam estar vinculados por uma Constituição que foi estabelecida há muito tempo, e assim por diante. De acordo com a segunda condição de Cohen, A deliberação é fundamentada no fato de que as partes envolvidas devem declarar seus motivos para apresentar propostas [. . . ] Eles dão motivos com a expectativa de que esses motivos (e não, por exemplo, seu poder) determinem o destino de sua proposta. Na deliberação 4

Cohen 2002, 92. A “primeira condição” de Cohen contém duas partes. A primeira parte é como indicado no texto. A segunda parte é que “os participantes supõem que podem agir com base nos resultados [de suas deliberações]”. Essa parte parece inquestionável.

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ideal, como Habermas coloca, “nenhuma força, exceto a do melhor argumento, é exercida”.5 Nas democracias reais, ninguém é obrigado (pelo Estado ou por qualquer outra pessoa) a declarar suas razões para avançar propostas de políticas. Além disso, a qualidade dos motivos apresentados para uma proposta política é apenas uma parte do que determina o destino dessa proposta, e quase todo mundo sabe disso. O destino das propostas políticas nas democracias reais é determinado pelo menos tanto pela retórica quanto pelo raciocínio, e os apelos retóricos são ouvidos consideravelmente mais frequentemente do que os argumentos racionais e sóbrios. Os resultados políticos também são influenciados pelo interesse próprio. Cohen assegura que a “deliberação concentra o debate no bem comum”6 – mas, na realidade, grupos de interesses concorrentes disputam o controle dos processos políticos na esperança de usar o poder do Estado para obter ganhos egoístas.7 Seria extremamente incomum encontrar cidadãos ingênuos a ponto de pensar que apenas seus argumentos declarados, não seu poder político, determinariam se suas propostas políticas seriam adotadas. A terceira condição de Cohen exige que “as partes sejam formal e substantivamente iguais”. Ele elabora: Cada um tem uma voz igual na decisão. [. . . ] A distribuição existente de poder e recursos não molda suas chances de contribuir para a deliberação.8 É claro que não existe uma sociedade real em que essas coisas sejam verdadeiras. Em qualquer sociedade moderna, um pequeno número de indivíduos – jornalistas, autores, professores, políticos, celebridades – desempenha um grande papel no discurso público, enquanto a grande maioria dos indivíduos desempenha essencialmente nenhum papel no discurso. A grande maioria das pessoas não tem oportunidade realista de fazer suas ideias serem ouvidas além de um pequeno círculo de conhecidos. E a distribuição existente de poder e recursos determina quase completamente as chances de contribuir para a deliberação pública. Cidadãos ricos podem comprar publicidade ou até possuir estações de 5

Cohen 2002, 93 (ênfase no original). A citação de Habermas é de Habermas, 1975, 108. A citação da aprovação de Habermas sugere que as partes da deliberação ideal não apenas acreditam, mas acreditam corretamente que apenas razões declaradas determinarão o destino de suas propostas. 6 Cohen 2002, 95. 7 Carney (2006) documenta vários casos. O ponto principal aqui é, não que os eleitores individuais sejam egoístas, mas que grupos de interesses especiais egoístas influenciam os eleitores. 8 Cohen 2002, 93.

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televisão ou outros meios de comunicação; cidadãos pobres e de classe média não podem. Indivíduos com poder político podem exibir suas opiniões na mídia nacional – o Presidente dos Estados Unidos, por exemplo, pode convocar uma conferência de imprensa a qualquer momento; Eu não posso. É difícil imaginar esses fatos mudando. Os Estados Unidos contêm mais de 300 milhões de cidadãos. Como todas essas vozes podem ser ouvidas igualmente? Como seria a sociedade se cada um desses indivíduos pudesse convocar uma conferência de imprensa para discutir sua última ideia política? Finalmente, de acordo com a quarta condição de Cohen, a deliberação ideal “visa chegar a um consenso racionalmente motivado”.9 Isso também é falso para qualquer sociedade real. Nos Estados Unidos, por exemplo, há muita discussão pública sobre questões como aborto, controle de armas e políticas de saúde. Alguns participantes dessas discussões procuram influenciar os cidadãos que permanecem indecisos sobre o assunto em questão. A maioria provavelmente está apenas tentando expressar seus próprios sentimentos e opiniões. Dificilmente alguém está buscando um consenso. Muitos sabem que não têm uma esperança realista de chegar a um acordo com partidários do ponto de vista ideológico oposto, e não fazem nenhuma tentativa séria de fazê-lo. Como essas observações nos lembram, a democracia deliberativa ideal de Cohen é um cenário puramente hipotético. Dado o quão distante esse cenário está da realidade, a que propósito serve o exercício imaginativo? Que papel pode desempenhar na justificativa das ações de qualquer governo real? Talvez se algumas sociedades reais ao menos se aproximassem do ideal, isso pudesse conferir legitimidade a seus arranjos políticos. Cohen, no entanto, não tenta argumentar que qualquer sociedade real se aproxima de seu ideal, e seria difícil fazer tal argumento. Nem sequer é verdade, por exemplo, que todos os indivíduos têm voz igual no discurso público, que não sejam afetados por sua riqueza ou poder. Nem é totalmente verdade que os resultados políticos sejam determinados puramente por argumentos racionais ou que o discurso público visa ao consenso. Cohen escreve que “o procedimento deliberativo ideal visa fornecer um modelo para as instituições se espelharem”.10 Talvez a concepção de democracia deliberativa de Cohen forneça orientações sobre como a sociedade deve mudar. Embora isso possa fornecer um papel útil para a construção de Cohen, não nos aproxima da autoridade política derivada. Uma descrição de um ideal que nossa sociedade deveria visar, mas sobre a qual realmente ficamos muito aquém dificilmente constitui um argumento de que nosso Estado tem autoridade política. 9 10

Cohen 2002, 93 (ênfase no original). Cohen 2002, 92.

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Cohen continua afirmando que “os resultados são democraticamente legítimos se e somente se pudessem ser objeto de um acordo livre e fundamentado entre iguais.”11 Ele não defende esta tese, nem explica exatamente o que ela significa. Como devemos entender a força desse “pudessem”? Em uma leitura, o princípio de Cohen é absurdamente permissivo. Imagine que você está andando na rua, quando um boxeador de repente lhe dá um soco na cara. “Por que você fez isso?!”, você exclama. “Bem”, explica o boxeador, “você poderia ter concordado em levar um soco na cara.” Agora suponha, analogamente, que uma certa lei possa ter sido objeto de um acordo livre e fundamentado entre todos os cidadãos, no sentido de que os cidadãos poderiam ter decididos livremente concordarem com essa lei – mas, de fato, nenhum cidadão fez isso. É, para dizer o mínimo, obscuro como essa situação daria ao Estado um direito moral de impor essa lei pela força. Presumivelmente, Cohen optaria por uma leitura mais forte de “poderia”. Habermas escreve sobre o que “seria o encontro do acordo voluntário de todos os envolvidos, se pudessem participar, como livres e iguais, na formação discursiva da vontade”.12 Talvez Cohen, da mesma forma, diria que um sistema político legítimo é aquele com o qual concordaríamos se deliberássemos da maneira ideal. Nesta leitura, Cohen e Habermas estão apelando para uma teoria do contrato social hipotético. No entanto, já vimos os problemas com essa teoria no Capítulo 3. Resumidamente, havia dois problemas principais. Primeiro, não há razão para pensar que a estrutura e os princípios de qualquer Estado real seriam de fato acordados após uma deliberação ideal. Segundo, mesmo que a estrutura e os princípios de algum Estado real sejam acordados, não há razão para pensar que esse fato conferisse autoridade a esse Estado. Nem Cohen nem Habermas abordaram esses dois problemas centrais.

4.2.3

A irrelevância da deliberação

Concedido que nenhuma sociedade satisfaz as condições de Cohen para uma democracia deliberativa ideal, se houvesse uma sociedade assim, seu governo teria autoridade? Não está claro por que isso aconteceria. Lembre-se do exemplo da conta do bar (Seção 4.1). Seus colegas e alunos votaram, sob suas objeções, em você pagar pelas bebidas de todos. Agora, adicione as seguintes estipulações ao exemplo: antes de votar, o grupo deliberou. Todos, inclusive você, tiveram a mesma oportunidade de oferecer razões a favor ou contra forçar você a pagar pelas bebidas de todos. Os outros argumentaram que seria do melhor interesse do grupo forçar você 11 12

Cohen 2002, 92 (grifo nosso). Compare Habermas 1979, 186–7. Habermas 1979, 186.

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a pagar. Eles tentaram chegar a um consenso. No final, eles não conseguiram convencê-lo de que você deveria pagar, mas todos concordaram que você deveria pagar. Agora você é obrigado a pagar por todos? Os outros membros do grupo têm o direito de obrigar você a pagar através de ameaças de violência? Claramente não. Você tem direitos – neste caso, o direito de escolher quando e como gastar seu dinheiro e o direito de se libertar da coerção prejudicial – que não são negados ou substituídos pelo simples fato de que uma decisão de violar seus direitos foi precedida por um processo deliberativo justo e fundamentado. A justiça do processo não permite que, de alguma forma, contorne todos os direitos e restrições éticas preexistentes. Da mesma forma, é obscuro como o tipo de deliberação que Cohen descreve, mesmo que realmente ocorra, confere legitimidade política ao Estado. Os indivíduos têm um direito prima facie preexistente de não serem submetidos à coerção. A deliberação, por mais justa e fundamentada, não elimina por si só esse direito. É claro que os motivos para substituir os direitos prima facie dos indivíduos podem ser oferecidos, e a oferta desses motivos pode fazer parte de um processo deliberativo. Mas o processo deliberativo não constitui, por si só, uma razão para suspender os direitos prima facie dos indivíduos.

4.3

Igualdade e autoridade

4.3.1

O argumento da igualdade

Passo agora ao que pode ser o argumento contemporâneo mais bem desenvolvido para a afirmação de que o processo democrático confere autoridade política. A ideia central é que temos uma obrigação geral de tratar os outros membros da nossa sociedade como iguais e que isso exige o respeito pelas decisões democraticamente tomadas. O argumento levanta questões sobre o que conta como uma lei democraticamente autorizada. Uma lei que é o produto direto de um referendo popular é o caso mais claro de uma lei democraticamente autorizada (doravante, “uma lei democrática”).13 Mas e as leis que a maioria dos eleitores não apoiam, mas que foram aprovadas por uma legislatura eleita democraticamente? E se uma lei ou candidato político for apoiado pela maioria dos eleitores, mas não pela maioria de todos os cidadãos? E os regulamentos escritos por burocratas não eleitos? Ou ordens emitidas por juízes não eleitos? Por mais difíceis que sejam essas per13

Wolff (1998, 29-34) levanta problemas especiais para a legitimidade da democracia representativa. Christiano (2008, 105-6) argumenta que a democracia representativa é em geral superior à democracia direta. No entanto, não creio que ele duvide que as leis criadas por referendo sejam legítimas.

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guntas para os teóricos democráticos, vou colocá-las de lado para me concentrar em problemas mais profundos. A partir de agora, assumirei simplesmente que temos um Estado cujas leis são genuinamente autorizadas pelo povo, seja lá o que isso possa significar. Mesmo com essa concessão generosa, como argumentarei, os teóricos democráticos não podem estabelecer autoridade política. Thomas Christiano desenvolveu o Argumento da Igualdade como um argumento para obrigação política, aproximadamente da seguinte forma:14 1. Os indivíduos são obrigados a tratar os outros membros de sua sociedade como iguais e a não tratá-los como inferiores. 2. Para tratar os outros como iguais e não como inferiores, é preciso obedecer às leis democráticas. 3. Portanto, os indivíduos são obrigados a obedecer às leis democráticas. A obrigação assim defendida é independente do conteúdo, mas não precisa ser tomada como absoluta: o defensor do argumento acima pode reconhecer a possibilidade de valores compensatórios que às vezes superam a obrigação de obedecer às leis democráticas. Também se pode reconhecer algumas qualificações do princípio (2): talvez apenas quando as leis democraticamente estabelecidas estejam dentro de certos limites – quando não violam a Constituição ou oprimem descaradamente as minorias, por exemplo – é que o tratamento igualitário de outras pessoas exige obediência a essas leis.15 Por que devemos aceitar as premissas do Argumento da Igualdade? Comece com a premissa (1). Christiano avança o seguinte sub-argumento, em paráfrase: 1a. Justiça exige dar a cada pessoa o que lhe é devido e tratar casos semelhantes. 1b. Todos os membros da sociedade têm status moral igual.16 1c. Portanto, a justiça exige tratar os outros membros da sociedade como iguais.17 14

Christiano 2008. Ver Christiano 2008, cap. 7, para discussão dos limites da autoridade democrática. 16 Para a premissa (1a), ver Christiano 2008, 20. Para (1b), ver Christiano 2008, 17–18. Por uma questão de brevidade, omito a discussão sobre exatamente o que significa status moral igual. O teórico democrático pode reconhecer qualificações a serem reivindicadas (1b). Talvez, por exemplo, as crianças e os loucos tenham um status diferente dos adultos normais, de modo que eles não precisam ter direitos iguais de participação democrática. 17 Christiano (2008, 31) escreve: “a justiça como descrevi normalmente não impõe requisitos diretamente a cada pessoa”. Mas o argumento da obrigação política exige que a justiça imponha requisitos aos indivíduos. 15

4. A Autoridade da Democracia

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Em seguida, por que alguém deveria aceitar a premissa (2)? Parece haver dois sub-argumentos para isso. O primeiro apela à ideia de colocar um julgamento acima do de outros: 2a. Desobedecer a uma lei democrática é colocar um julgamento acima do de outros membros da sociedade. 2b. Colocar o julgamento de alguém acima do dos outros é tratá-los como inferiores. 2c. Portanto, desobedecer a uma lei democrática é tratar os outros membros da sociedade como inferiores.18 (de 2a, 2b) O segundo sub-argumento apela à obrigação de apoiar a democracia: 2d. Tratar os outros como iguais requer apoiar o avanço igual de seus interesses. 2e. A democracia é crucial para o avanço igual dos interesses das pessoas. 2f. Para apoiar a democracia, é preciso obedecer às leis democráticas. 2g. Portanto, tratar os outros como iguais requer obedecer às leis democráticas.19 (de 2d – 2f) Christiano gasta mais tempo justificando (2e). Ele argumenta que, para realmente promover os interesses dos indivíduos igualmente, um sistema social deve atender a um requisito de publicidade, o que significa que deve ser possível para os cidadãos verem por si mesmos que estão sendo tratados da mesma forma. Então argumenta que apenas a tomada de decisão democrática, como forma processual de igualdade, satisfaz esse requisito. Existem outras interpretações substantivas de igualdade – por exemplo, que alguém trata os outros igualmente igualando seus recursos ou que trata os outros igualmente concedendo-lhes os mesmos direitos de liberdade. Mas essas interpretações de igualdade não satisfazem a exigência de publicidade, porque são muito controversas; somente aqueles que aceitam certas visões éticas controversas podem se ver tratados como iguais em virtude da implementação de uma dessas formas substantivas de igualdade. Portanto, a promoção igualitária de interesses por parte do público requer tomada de decisão democrática. 18

Christiano 2008, 98-9, 250. Christiano 2008, 249. Inseri a premissa (2f) conforme exigido para a validade do argumento, embora Christiano não o declare explicitamente. 19

4. A Autoridade da Democracia

4.3.2

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Uma teoria da justiça absurdamente exigente?

Como o interpretei, o Argumento da Igualdade deriva do dever de obedecer às leis democráticas, em parte, de um requisito de justiça que promova o igual avanço dos interesses das pessoas [premissa (2d)]. Tomada sem qualificação, essa suposta exigência de justiça é absurdamente exigente. Suponha que eu tenha $50. Se eu gastar o dinheiro comigo mesmo, estaria promovendo meus interesses mais do que os interesses dos outros. Para promover os interesses das pessoas igualmente, devo gastar o dinheiro em algo que beneficie a todos, ou dividir o dinheiro entre todos os membros da minha sociedade, ou talvez doar o dinheiro para ajudar pessoas cujos interesses estão atualmente menos avançados do que a média. O mesmo raciocínio se aplica a qualquer recurso à minha disposição. Parece, então, que devo doar quase tudo o que possuo. De fato, uma vez que o fundamento do dever de tratar os outros membros da minha sociedade como iguais é seu status moral igual [premissa (1b)], parece que meu dever deve se estender a promover igualmente os interesses de toda ou a maioria da população da terra. Como podemos evitar uma teoria da justiça absurdamente exigente, sem renunciar ao argumento da igualdade? Uma possibilidade é limitar a demanda de justiça a uma obrigação de promover instituições sociais que promovam igualmente os interesses de outras pessoas, em oposição a uma obrigação de promover diretamente o avanço igual dos interesses de outras pessoas através do próprio comportamento em geral. Mas como essa qualificação seria justificada? A obrigação de tratar os outros como iguais deve estar fundamentada em um princípio de justiça exigindo que concedamos aos outros o que lhes é devido e tratem os mesmos casos. Se outros são devidos a um progresso igual de seus interesses, parece que, para agir com justiça, devo promover seus interesses igualmente; não há fundamento para limitar essa obrigação a ações de apoio a instituições sociais em geral. Se, por outro lado, outros não recebem o mesmo avanço de seus interesses, parece que eu não preciso apoiar o mesmo avanço de seus interesses, seja na promoção de instituições sociais ou em qualquer outra esfera de ação. Talvez os indivíduos tenham uma obrigação de justiça para promover o progresso igual dos interesses uns dos outros, mas isso é apenas uma obrigação prima facie, que pode ser substituída por razões compensatórias, incluindo razões prudenciais. Talvez eu não precise gastar a maior parte de meus recursos com outras pessoas, porque minhas razões prudenciais para usar recursos em meu próprio benefício geralmente superam o dever prima facie de promover o avanço igual dos interesses de outras pessoas. O governo, por outro lado, deve dedicarse mais profundamente ao igual avanço de interesses dos cidadãos, porque o governo, como instituição e não como pessoa, não possui razões prudenciais

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genuínas.20 Esta última sugestão deixa claro em que medida os indivíduos têm obrigações políticas. Considere dois exemplos: O caso da caridade: Tenho $50, que estou pensando em doar para uma instituição de caridade antipobreza muito eficaz ou gastar em meu próprio consumo pessoal. Se eu der o dinheiro para a caridade, isso reduzirá a desigualdade na sociedade e aproximará a sociedade do progresso igual dos interesses de todos os seus membros. No entanto, eu já doei uma grande quantia em dinheiro para caridade este ano e não desejo doar mais. Eu decido ficar com o dinheiro. O caso do imposto: As leis tributárias exigem que eu pague uma grande quantia em dinheiro ao governo. Estou pensando em pagar todos os impostos exigidos ou trapacear com meus impostos de maneira a pagar $50 a menos do que a quantia legalmente exigida; nesse caso, gastarei os $50 em consumo pessoal. Suponha que tenho certeza de que, se eu trapacear, não serei pego ou sofrerei outras conseqüências pessoais negativas. Eu decido trapacear. Os advogados da autoridade democrática certamente negariam que minha ação é permitida no caso do imposto, mas para evitar uma teoria ética absurdamente exigente, permitiriam que a minha ação fosse autorizada no caso da caridade. Suponhamos que, no caso da caridade, minha razão prudencial supere meu dever prima facie de promover o avanço igual dos interesses dos outros. Mas minha razão prudencial para trapacear meus impostos no caso do imposto é tão forte quanto minha razão prudencial para manter os $50 no caso da caridade. Além disso, o envio de $50 para a caridade provavelmente promova um avanço igual dos interesses das pessoas em um grau muito maior do que o envio de $50 ao governo. Portanto, se minha ação é permitida no caso da caridade, como poderia ser inadmissível no caso do imposto? Pode-se apelar para a ideia de que o benefício total fornecido pelo governo, em relação ao avanço igual dos interesses das pessoas, é muito maior que o benefício total fornecido por qualquer organização de caridade. Existem dois problemas com esse argumento. O primeiro é que a afirmação não precisa ser verdadeira. Uma instituição de caridade grande e eficiente pode fazer mais do que um Estado pequeno e ineficiente, os defensores da autoridade política ainda afirmam que o indivíduo é obrigado a pagar impostos ao Estado e não é obrigado a doar para a caridade. Segundo e mais importante, a alegação é irrelevante. O 20

Suspeito que essa sugestão esteja mais próxima do que Christiano tem em mente quando diz: “impomos, com razão, padrões impessoais a instituições que não impomos totalmente a nós mesmos como indivíduos” (2008, 31; grifo nosso).

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bem total feito por uma organização não deve ser confundido com o bem causado pela contribuição marginal do indivíduo para essa organização. É o último, e não o primeiro, que determina a força das razões para contribuir. O impacto marginal de $50 dos meus impostos no avanço igual dos interesses das pessoas é insignificante. Eu me concentrei no caso do imposto, porque está entre os exercícios menos controversos e menos dispensáveis da autoridade governamental entre aqueles que acreditam em autoridade política. Se a obrigação de pagar impostos não puder ser defendida, não há esperança de defender a obrigação política em casos mais controversos, como a suposta obrigação de se apresentar as forças armadas (alistamento militar), quando solicitado. O resultado desta discussão é que o defensor do Argumento da Igualdade enfrenta um dilema: ou a obrigação de promover o avanço igual dos interesses é implausivelmente exigente ou é fraca demais para apoiar obrigações políticas básicas.

4.3.3

Apoiando a democracia através da obediência

Uma linha do argumento da igualdade [(2d) e (2f)] afirma que a democracia é tão crucial para o avanço igual dos interesses das pessoas que, para apoiar o avanço igual dos interesses, é preciso apoiar a democracia. Além disso, para apoiar a democracia, é preciso obedecer às leis democráticas. Portanto, é preciso obedecer às leis democráticas. O problema óbvio com essa inferência é que a obediência ou desobediência de um indivíduo em particular a uma lei específica não tem impacto real no funcionamento do Estado. Por exemplo, o governo persiste apesar de um grande número de pessoas que fogem de uma grande quantidade de impostos todos os anos.21 Um sonegador a mais não fará com que o governo entre em colapso, nem fará com que o governo se torne antidemocrático. O mesmo vale para quase todas as outras leis. Christiano nos diz: “Cada pessoa deve tentar perceber o avanço igual dos interesses de outros seres humanos”.22 Mas a obediência às leis democráticas parecem ter pouca ou nenhuma conexão com isso. Uma ação que pode ser prevista com antecedência com não tendo impacto na consecução de um determinado objetivo não é uma maneira racional de tentar alcançá-lo. É certo que, embora o impacto de um único indivíduo possa ser negligenciável, a obediência geral da maioria da população é um requisito genuíno para o sucesso e a estabilidade do Estado. Se a maioria das pessoas violasse regu21 O IRS estima que mais de 300 bilhões de dólares em impostos são evadidos anualmente pelos 16% dos contribuintes que sonegam (Departamento do Tesouro dos EUA 2009, 2). 22 Christiano 2008, 249.

4. A Autoridade da Democracia

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larmente a maioria das leis, o Estado provavelmente entraria em colapso. No entanto, a maioria das sociedades modernas não chega nem perto do limiar de desobediência necessário para o colapso do governo; portanto, o impacto marginal do indivíduo na sobrevivência do Estado é zero. (Veja o Capítulo 5 para discutir quando a desobediência é injusta através da obediência dos outros, caso free rider)

4.3.4

A igualdade democrática é exclusivamente pública?

Mesmo que tenhamos a obrigação de tentar promover um progresso igual nos interesses das pessoas, a interpretação desse objetivo é altamente controversa. Alguns podem acreditar que isso requer a equalização dos recursos materiais dos indivíduos. Outros podem acreditar que isso exige apenas conceder a todos direitos iguais de liberdade. Outros ainda podem acreditar que é necessário dar a cada um uma palavra igual no processo político. Christiano argumenta que apenas a última interpretação – igualdade democrática, como devo chamá-la – satisfaz o princípio crucial da publicidade, o princípio de que “não basta que a justiça seja feita; deve ser vista como completa.”23 Há pelo menos duas maneiras de interpretar esse princípio, uma mais forte que a outra. Na fraca interpretação, a publicidade exige que os indivíduos sejam capazes de ver que estão sendo tratados de acordo com uma certa concepção de igualdade, independentemente se veem ou não se essa é a interpretação correta da igualdade e se veem ou não se essa igualdade é essencial para a justiça. Sob uma forte interpretação, a publicidade exige que os indivíduos possam ver que a maneira como estão sendo tratados é justa.24 Se adotarmos a fraca interpretação da publicidade, a tomada de decisões democráticas satisfaz a restrição de publicidade, assim como muitas outras concepções de igualdade. Por exemplo, suponha que alguém defenda que a maneira correta de tratar os outros igualmente é conceder a todos os mesmos direitos de liberdade (aproximadamente, direitos de fazer o que quiserem, livres de interferências do governo). Os indivíduos seriam capazes de ver que recebiam os mesmos direitos de liberdade, mesmo que não concordassem que essa era uma maneira satisfatória de interpretar a igualdade. Portanto, a interpretação 23

Christiano 2008, 47. A interpretação forte é sugerida pela observação inicial de Christiano de que a justiça deve ser vista como feita, mas outras observações deixam claro que ele pretende a interpretação fraca; por exemplo, “A publicidade requer apenas que as pessoas possam ver que são tratadas de acordo com os verdadeiros princípios corretos da justiça” (2008, 52; grifo nosso). Compare 47: “A publicidade exige que os princípios de justiça social sejam aqueles que as pessoas podem, em princípio, ver em vigor ou não”. Discuto o princípio forte no texto em prol da exaustividade do argumento. 24

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dos direitos da igualdade de liberdade satisfaz a condição de publicidade. Um argumento semelhante poderia ser feito para a maioria das outras interpretações de igualdade. Por outro lado, se adotarmos a forte interpretação da publicidade, nenhuma interpretação da igualdade ou da justiça satisfaz a publicidade, porque não existe uma concepção de justiça com a qual todos possam concordar. Nem todos os pensadores racionais concordaram, inclusive, que a democracia seja justa.25 Portanto, ainda não está claro como alguém pode pensar que a igualdade democrática satisfaz exclusivamente o requisito de publicidade. Talvez a ideia seja que a igualdade democrática seja muito menos controversa em sua aplicação e interpretação do que outras concepções de igualdade do mesmo nível de generalidade. A igualdade de direitos tem interpretação controversa; há uma enorme discordância sobre quais direitos os indivíduos possuem e quais leis contam como implementando direitos iguais. Da mesma forma, a igualdade de recursos está aberta à interpretação. Requer apenas que os indivíduos tenham a mesma riqueza? Renda igual? Renda proporcional às suas necessidades? As rendas devem ser ajustadas para diferentes custos de vida em diferentes locais? Mas a igualdade no processo de tomada de decisão tem uma única interpretação incontroversa: uma pessoa, um voto. Ou é controversa? A igualdade de poder de decisão exige democracia direta ou a democracia representativa é suficiente? Requer que todos os cidadãos tenham a mesma chance de se candidatar a um cargo público? Em caso afirmativo, é suficiente que todos os cidadãos tenham permissão legal para concorrer a cargos públicos, ou os indivíduos também devem ter oportunidades realistas financeira e socialmente para concorrer a cargos públicos? Se a democracia representativa é permitida, a representação deve ser estritamente proporcional à população ou algumas partes de uma nação podem ter representação na legislatura desproporcional à sua população (como no caso da representação de Estados no Senado dos EUA)? A igualdade democrática é violada se os funcionários públicos desenharem distritos de formas incomuns para fins de votação (como na prática americana de gerrymandering), com a intenção específica de maximizar a representação de uma parte em particular na legislatura? A igualdade democrática é violada se algumas minorias persistentes raramente ou nunca conseguem o que querem? Se sim, que tipo de minorias contam? Os membros de todos os terceiros partidos nos Estados Unidos (além dos democratas e republicanos) contam como minorias persistentes que não são tratadas igualmente? Todas essas são questões controversas. Não espero que seja possível obter algo próximo de um acordo unânime sobre como respondê-las. E todas são perguntas sobre a interpretação da igualdade democrática. Ou seja, não são 25

Ver Republic de Platão 1974; Oakeshott 1962, 23–6; Caplan 2006; Brennan 2011.

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apenas perguntas sobre qual é a melhor maneira de organizar o sistema eleitoral. São perguntas sobre que maneiras de implementar o sistema realmente tratam as pessoas igualmente. Assim, se a restrição de publicidade exige falta de controvérsia na aplicação de uma dada concepção de igualdade, a interpretação democrática da igualdade não satisfaz a publicidade.

4.3.5

Respeitando os julgamentos de outras pessoas

Outra vertente do Argumento da Igualdade sustenta que, quando alguém desobedece a uma lei democrática, trata os outros como inferiores, colocando o próprio julgamento acima dos julgamentos de outros cidadãos. Em resposta, devemos primeiro esclarecer o princípio de que os indivíduos devem se tratar como iguais. Há muitos aspectos em que alguém pode considerar as pessoas iguais. Pode-se pensar que as pessoas têm direitos iguais; que seus interesses têm o mesmo peso; ou que tenham capacidades iguais para julgamento moral, inteligência igual ou conhecimento igual. O que significa “tratar as pessoas como iguais” depende do respeito em que alguém considera as pessoas iguais. Presumivelmente, é necessário apenas moralmente tratar as pessoas como iguais naqueles aspectos em que as pessoas realmente são pelo menos aproximadamente iguais. Agora, suponha que alguém desobedeça uma lei democrática com base em que a lei é injusta ou moralmente censurável. Na maioria dos casos, alguém estará expressando uma rejeição dos julgamentos daqueles que fizeram a lei.26 Suponha que a lei tenha sido feita por um referendo de todos os cidadãos. Em seguida, rejeitamos os julgamentos normativos da maioria dos concidadãos. Isso implica que alguém considere esses outros cidadãos desiguais em pelo menos um aspecto: ter crenças normativas menos precisas sobre essa lei em particular. Talvez alguém também esteja comprometido com alguma afirmação geral de que outros cidadãos são menos confiáveis do que eles mesmos na formação de crenças normativas corretas sobre o assunto desta lei. Obviamente, tudo isso é perfeitamente compatível com o reconhecimento de que outros têm direitos morais iguais ou que seus interesses são igualmente importantes como os seus. Existe algo nisso injusto ou censurável? Presumivelmente, isso depende se os outros são de fato desiguais em relação a esses aspectos e/ou se alguém se justifica acreditando de que eles são. A justiça não exige que nos abstenhamos 26

Isso não precisa ser o caso. Poder-se-ia pensar que os eleitores ou legisladores fizeram a lei, não porque erroneamente acreditavam que era justa, mas porque acreditavam corretamente que a lei servia seus próprios interesses ou por alguma outra razão compatível com o fato de a lei ser injusta. Deixo esses casos de lado, considerando apenas o caso mais favorável ao proponente do Argumento da Igualdade.

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de tratar outras pessoas como tendo alguma característica que justificavelmente e corretamente eles tenham. Muitas pessoas são fortemente justificadas e corretas ao assumirem crenças normativas mais precisas e confiáveis sobre certas leis do que a maioria dos membros de sua sociedade. Como isso acontece? Primeiro, há muitos que, correta e justificadamente, acreditam ter inteligência significativamente maior que a média. Segundo, há muitos que, correta e justificadamente, acreditam ter níveis de conhecimento significativamente acima da média relevantes para certas questões políticas. Muitas pesquisas e muitas observações casuais forneceram evidências de que, por exemplo, o nível médio de conhecimento político nos Estados Unidos é extremamente baixo.27 Portanto, não é difícil saber que alguém o excede significativamente. Terceiro, muitas pessoas, correta e justificadamente, dedicam tempo e esforço significativamente maiores para identificar as posições corretas em certas questões políticas do que o membro médio de sua sociedade. Todos esses fatores – inteligência, conhecimento, tempo e esforço – afetam a confiabilidade de alguém para chegar a crenças corretas. Ninguém sustenta seriamente que as pessoas estão perto de serem iguais em qualquer uma dessas dimensões, e muito menos em todas elas. Portanto, é muito difícil ver como alguém poderia argumentar que todas as pessoas são igualmente confiáveis na identificação de crenças políticas corretas. Ao violar uma lei democrática, alguém pode tratar os outros como se fossem “inferiores” epistêmicos, no sentido de pessoas com menos crenças normativas confiáveis em uma área específica. Mas não há nada injusto nisso se, como é frequentemente o caso, se sabe que isso é verdade.

4.3.6

Coerção e tratando os outros como inferiores

Quando alguém viola uma lei democrática, trata os outros como inferiores em um sentido epistêmico. Mas existem outras maneiras mais graves de tratar as pessoas como inferiores. Se uma pessoa não concorda com algum plano, por exemplo, tentar obter a cooperação dessa pessoa através de ameaças de violência é normalmente uma abordagem extremamente desrespeitosa, fundamentalmente incompatível com o tratamento dessa pessoa como igual. Para retornar a um exemplo anterior: você saiu para beber com alguns colegas e estudantes, e um dos alunos propôs que você pagasse pelas bebidas de todos. Durante seus protestos, as outras partes da mesa votam para que você pague pelas bebidas. Você diz a eles que não concorda em fazê-lo. Eles então informam que, se você não pagar, pretendem puni-lo, trancando-o em uma sala por algum tempo e que estão preparados para levá-lo à força. 27

Ver Delli Carpini e Keeter 1996, capítulo 2; Caplan 2007b, capítulo 1.

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Além de precisar de novos parceiros para beber, o que pode ser dito sobre esse cenário? Quem neste cenário está cometendo uma injustiça com quem? Quem está tratando quem como inferior? Alguém poderia argumentar que, ao rejeitar a decisão das outras pessoas na mesa, você está colocando sua vontade ou julgamento normativo acima da dos outros membros do grupo. Todos pensam que você deve pagar e há mais deles do que você. Então, quem é você para discordar? Você deve pensar que é algum tipo de ser divino cujos desejos têm precedência sobre os desejos de várias outras pessoas. Mas esse argumento soa vazio. Certamente, é o comportamento de seus colegas e alunos que lhe desrespeita e não o contrário. São eles que se estabelecem injustamente como seus superiores, usando ameaças de punição e força física para obter sua cooperação com o plano deles. Christiano argumenta que não se mostra o devido respeito ao julgamento de outros membros da sociedade quando se recusa a concordar com as leis democráticas. Essas leis normalmente vêm com ameaças de impor punição àqueles que não seguem a lei, apoiadas por ameaças críveis de violência contra aqueles que tentam evitar punição. Em face disso, o desrespeito pelas pessoas e a violação da igualdade envolvida na emissão e na execução de tais ameaças são muito mais palpáveis do que o suposto desrespeito demonstrado por aqueles que não cumprem as leis. A maioria que vota em um dada lei está autorizando esse tipo de coerção. Prima facie, portanto, é a maioria culpada por violar a exigência de tratar outras pessoas como iguais. O ponto aqui é que é impossível justificar a autoridade política se o princípio moral que deveria gerar obrigação política também exclui a legitimidade política. Nesse caso, o princípio é que a justiça proíbe tratar os outros como inferiores. Se isso mostra a existência de um dever de obedecer às leis democráticas, mostra muito mais claramente a ilegitimidade da maioria dessas leis em primeiro lugar. Como a autoridade política exige obrigação política e legitimidade política, parece que a autoridade política é impossível. Talvez essa conclusão esteja sendo tirada muito rapidamente. Nem sempre é desrespeitoso usar a força física contra os outros. Se, por exemplo, A está ameaçando B com violência injusta, B pode usar violência para impedir que A execute sua ameaça sem, assim, tratar A injustamente como inferior. Isso sugere que pelo menos algumas leis – por exemplo, aquelas que proíbem a violência injusta – não se tornam objetáveis ou injustas pela coerção necessária para aplicálas. Mas muitas outras leis, ao que parece, são questionáveis pela maneira como pedem coerção. Não tenho uma teoria abrangente para oferecer as condições sob as quais a coerção é censurável. Mas, aparentemente, a arrecadação de impostos

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do Estado é análoga à arrecadação de dinheiro de você no exemplo da conta do bar. Nos dois casos, a maioria vota para tomar a propriedade de alguém para o benefício do grupo e, nos dois casos, a decisão deve ser executada por meio de ameaças de punição, apoiadas por ameaças de violência. Uma diferença é que a carga dos impostos são mais amplamente distribuídas do que a conta do bar, que imaginávamos ser direcionada a uma única pessoa. Em vez disso, pode-se supor que, em vez de colocar todo o ônus sobre você, um aluno proponha que você pague metade da conta total, os outros professores paguem porções menores e cada um deles pegue uma carona grátis (free ride).28 Poucos diriam que a distribuição da carga agora torna admissível a imposição coercitiva desse plano. Alguém pode ainda ficar preocupado com o fato de que o exemplo da conta do bar carrega a aparente injustiça da proposta do aluno e que nossas intuições poderiam mudar se o grupo tivesse votado de uma maneira essencialmente justa e equitativa de pagar a conta do bar. Mas os defensores da autoridade democrática afirmam explicitamente que é preciso cumprir uma decisão democrática, independentemente de a decisão ser em si mesma justa.29 Portanto, é perfeitamente apropriado considerar uma hipótese em que a maioria vote numa proposta injusta, como no exemplo da conta do bar.

4.3.7

Da obrigação para a legitimidade?

O Argumento da Igualdade enfrenta sérias dificuldades na contabilização de obrigações políticas. Mas, mesmo se pudéssemos explicar a obrigação política, continuaria o desafio de explicar a legitimidade política, o direito do Estado de governar impondo coercivamente regras à sociedade. Christiano explica a origem desse direito da seguinte maneira: A assembléia democrática tem o direito de governar [. . . ] uma vez que alguém trata injustamente seus membros se ignorar ou contornar suas decisões. Cada cidadão tem direito à obediência de cada um e, portanto, a assembléia como um todo tem direito à obediência de todos.30 28

Nos Estados Unidos, pouco mais da metade de todos os impostos federais é proveniente dos 10% mais ricos dos contribuintes (os professores plenos da sociedade, por assim dizer). Os 20% mais pobres (os estudantes de pós-graduação da sociedade) pagam menos de 1% de todos os impostos federais e, na verdade, têm uma taxa de imposto de renda negativa (US Congressional Budget Office 2009). 29 Christiano 2008, 97; Estlund 2008, 8. 30 Christiano 2004, 287.

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O problema central da contabilização do direito de governar é o problema da justificação da coerção. Assim, para que o raciocínio acima seja bem-sucedido, ele deve fornecer uma justificativa para a coerção. Talvez a justificativa esteja ao longo das seguintes linhas: 4. Se a justiça exige (proíbe) uma pessoa fazer A, então é permitido coagir essa pessoa a fazer (não fazer) A. 5. Justiça exige obediência às leis democráticas. 6. Portanto, é permitido coagir uma pessoa a obedecer às leis democráticas. A premissa (5) deve ser estabelecida pelo Argumento da Igualdade, como discutido acima. Mas por que devemos aceitar (4)? Em muitos casos, é plausível que alguém possa impor os requisitos da justiça por coerção. Como vimos acima, é plausível que alguém possa usar coerção para impedir que uma pessoa prejudique injustamente outra pessoa. Também é plausível que às vezes se possa usar coerção para impedir que uma pessoa prejudique injustamente ou roube a propriedade de outra pessoa ou recuperar propriedade roubada ou extrair compensação.31 Em todos esses casos, parece que a coerção é um meio apropriado de induzir uma pessoa a fazer o que a justiça exige ou impedir que uma pessoa faça o que a justiça proíbe. Portanto, existe alguma plausibilidade na generalização de que alguém possa coagir as pessoas a cumprir a justiça. Agora, porém, considere dois outros tipos de supostas obrigações de justiça: a obrigação de dar igual respeito aos julgamentos de outras pessoas e a obrigação de promover o igual avanço dos interesses das pessoas. Talvez estes sejam requisitos de justiça; talvez não. Mas quão plausível é, em qualquer caso, que essas (supostas) obrigações específicas possam ser impostas por coerção? Considere um exemplo em que pareço violar uma dessas tarefas. Estou fora para beber com alguns amigos. Vários deles estão discutindo sobre como o presidente Barack Obama é excelente. Eu grito: “Vocês são tolos e suas opiniões são inúteis. Eu não respeito o julgamento de vocês. Vocês são todos inferiores a mim.” Então tapo meus ouvidos para não ter que ouvir o que dizem e dou as costas para eles. 31

Locke (1980, seções 7 a 12) propôs que todos os indivíduos no estado de natureza tenham o direito de punir aqueles que transgridem a lei natural. Na seção 11, ele parece permitir que, mesmo na sociedade civil, as vítimas de crimes possam, por sua própria iniciativa, apreender reparações de um criminoso se o Estado não o fizer, e na seção 20, afirma que quando o Estado falha em receber reparações de um criminoso através de “uma manifestação perversa da justiça”, o indivíduo pode se valer da justiça vigilante.

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Nesse caso, deixei de respeitar os julgamentos de meus amigos e os tratei como inferiores. Isso me parece muito mais evidente do que a alegação de que falho em respeitar os julgamentos de outros cidadãos ou trato outros cidadãos como inferiores sempre que desobedeço a uma lei democrática. Mas agora meus amigos (ou qualquer outra pessoa) estariam justificados a usar a força física para me impor uma punição? Agora considere um caso em que eu viole o outro suposto dever de justiça. Suponha que aprendi recentemente que a Anistia Internacional está trabalhando para promover a democracia no país pouco conhecido da Nova Flórida. A AI está pedindo doações em dinheiro e contribuições através de campanhas de cartas. Acho que a AI tem uma chance razoável de ser eficaz nesse empreendimento, e reconheço que poderia apoiar instituições democráticas ajudando a AI nesse momento.32 Porque a democracia é crucial para o avanço igual dos interesses das pessoas, eu estaria promovendo o avanço igual dos interesses das pessoas. No entanto, opto por não apoiar a Anistia Internacional. Nesse caso, é muito plausível dizer que eu (a) falhei em promover o progresso igual dos interesses das pessoas e (b) falhei em ajudar a criar instituições democráticas. E talvez eu tenha errado. Mas agora sou um alvo apropriado para ameaças de violência? Nem todo dever é adequadamente executado por coerção. Os exemplos acima sugerem que a obrigação de tratar os outros como iguais, respeitando seu julgamento e a obrigação de promover o progresso igual dos interesses das pessoas, promovendo a democracia, não são obrigações que se possa impor por coerção. Ou essas não são obrigações de justiça, ou algumas obrigações de justiça podem não ser coercivamente aplicadas. Em ambos os casos, o argumento de Christiano para legitimidade política falha.

4.4

Conclusão

Relativamente falando, a democracia é admirável. De maneiras gerais e óbvias, é superior a todas as outras formas conhecidas de governo.33 Mas não resolve o problema da autoridade política. O fato de a maioria das pessoas defender alguma regra não justifica impor essa regra pela força àqueles que não concordam com ela nem punir coercivamente aqueles que desobedecem à regra. Fazer isso é, normalmente, desrespeitar os dissidentes e tratá-los como inferiores. Os problemas não são alterados caso se acrescente que a maioria deliberou de maneira especial antes de decidir impor a regra. 32

Como Christiano nos diz, “cada cidadão tem o dever de criar instituições democráticas” (2008, 249). 33 Ver Sen 1999, capítulo 6.

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A necessidade de respeitar os julgamentos de outros membros da sociedade não gera obrigações políticas gerais nos países democráticos, por pelo menos dois motivos: primeiro, porque muitas pessoas sabem que têm um julgamento melhor em relação a muitas questões práticas do que a maioria dos cidadãos; segundo, porque a obrigação de respeitar os julgamentos de outras pessoas não tem força suficiente para substituir os direitos individuais, como o direito de um indivíduo de controlar sua propriedade. A obrigação de promover o avanço igual de interesses também não estabelece obrigações políticas. Entre outras coisas, não está claro em que sentido a igualdade democrática é uma concepção de igualdade exclusivamente realizável publicamente, e não está claro como a obediência às leis democráticas constitui um apoio significativo às instituições democráticas. Mas mesmo que a obediência às leis democráticas constituísse um apoio significativo à igualdade, derivar a obrigação política desse fato exigiria postular um dever muito forte de promover a igualdade. Um dever tão forte provavelmente envolveria demandas implausíveis, exigindo que se dedicasse virtualmente a vida à promoção da igualdade. No final, a autoridade democrática não pode explicar nem a obrigação de obedecer à lei nem o direito de impor a lei à força a pessoas que não concordam.

5 Consequencialismo e Equidade 5.1

Argumentos consequencialistas para obrigação política

5.1.1

A estrutura dos argumentos consequencialistas para obrigação política

Os argumentos mais simples para autoridade política são consequencialistas. Por “argumentos consequencialistas para autoridade”, quero dizer argumentos que atribuem peso moral à bondade ou maldade das consequências de uma ação e que apelam diretamente a esse fator na tentativa de derivar obrigação e legitimidade políticas.1 Eu me concentro nesta seção em argumentos para obrigação política. Esses argumentos prosseguem em duas etapas. Primeiro, argumenta-se que existem grandes valores garantidos pelo governo e que não poderiam ser garantidos sem o governo. Segundo, argumenta-se que esse fato impõe aos indivíduos a obrigação de obedecer ao Estado, com o argumento de que (a) temos o dever de promover os valores abordados no primeiro estágio do argumento ou pelo menos não prejudicá-los; e (b) a obediência à lei é a melhor maneira de promover esses valores e a desobediência é uma maneira de minar eles.

5.1.2

Os benefícios do governo

Muitos benefícios foram reivindicados pelo governo, mas três são particularmente importantes. O primeiro importante bem atribuído ao governo é o da 1

Esses argumentos não precisam assumir o consequencialismo, no sentido de que a correção de uma ação é determinada exclusivamente por suas consequências boas ou más.

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proteção contra crimes cometidos por indivíduos contra outros, especialmente crimes violentos e crimes contra a propriedade. O governo fornece esse benefício anexando punições a atos injustos – assassinato, roubo, estupro etc. – que os indivíduos cometem uns contra os outros. Sem governo, a maioria das pessoas acredita que ações injustas e prejudiciais desse tipo seriam muito mais prevalentes do que são. Aqueles que são mais pessimistas em relação à natureza humana temem que a sociedade seja reduzida a um estado bárbaro de guerra constante de todos contra todos.2 Existem dois pontos intimamente relacionados aqui. Um é que o governo aumenta o bem-estar social geral, impedindo que certas coisas ruins aconteçam. O outro é que o governo promove a justiça, reduzindo o número de atos injustos que ocorrem.3 O segundo grande benefício atribuído ao governo é o fornecimento de um conjunto detalhado, preciso e público de regras de conduta social que se aplicam uniformemente em toda a sociedade. Por que precisamos que o governo forneça essas regras? Há princípios naturais de justiça que existem antes do Estado e que os indivíduos podem apreciar intuitivamente. No entanto, esses princípios naturais são vagos e gerais e não fornecem orientações suficientes para a vida social moderna. Por exemplo, é eticamente permitido liberar a poluição do ar, digamos do automóvel, ou isso viola os direitos daqueles que inalam os poluentes? É plausível que se possa liberar certos níveis e tipos de poluição, mas não a poluição excessiva ou excessivamente tóxica. Mas exatamente quanta poluição se pode liberar e de que tipos? Não é crível que os princípios naturais da justiça determinem respostas únicas para todas as perguntas desse tipo, nem, se o fizerem, que os indivíduos possam apreendê-las de maneira confiável pela reflexão. No entanto, precisamos de respostas aceitas para essas perguntas para que as pessoas se coordenem e tenham relações pacíficas e previsíveis entre si. Alguns argumentam que um governo é a única fonte confiável desse conjunto de regras geralmente aceitas.4 O terceiro benefício destacado oferecido pelo governo é o da defesa militar. Sem um meio de defesa militar, ao que parece, seríamos facilmente vítimas de países estrangeiros que tentariam nos escravizar ou roubar nossos recursos. Dado o poder militar dos governos em todo o mundo, a defesa eficaz de um determinado território parece exigir um exército organizado com moderna tecnologia militar. A única maneira de formar um exército desses parece ser ter um governo próprio. 2

Hobbes 1996, capítulo 13. Locke (1980, capítulos 2 e 9) oferece uma avaliação menos terrível que Hobbes, mas ainda encontra “grandes inconvenientes” no estado de natureza. 3 Buchanan 2002, 703-5. 4 Christiano 2008, 53-5, 237-8; Wellman 2005, pp. 6-7. Christiano afirma que o Estado “estabelece justiça” fornecendo essas regras uniformes.

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Na Parte II deste livro, desafio a suposição generalizada de que o governo é necessário para fornecer esses benefícios. No entanto, no presente capítulo, concederei essa suposição por uma questão de argumento. Eu afirmo que, mesmo com esta concessão, não se pode obter autoridade política como comumente entendida.

5.1.3

O dever de fazer o bem

Argumentos consequencialistas para obrigação política afirmam que as pessoas têm o dever de promover algum valor ou valores; por exemplo, um dever de promover a justiça, promover a utilidade ou ajudar a resgatar outras pessoas do perigo.5 O dever não precisa ser tomado como absoluto ou desqualificado; pode ser que o dever seja obtido apenas quando houver ameaça de algum grande dano ou injustiça, e pode ser que, mesmo nessas condições, o dever possa ser substituído por razões compensatórias suficientemente fortes. Isso é consistente com a noção de que o dever de obedecer à lei precisa ser apenas um dever prima facie. Veja o caso em que você vê uma criança se afogando em um lago raso: você pode facilmente entrar e salvar a criança, embora isso implique em deixar suas roupas sujas e molhadas e perder uma aula.6 Quase todo mundo concorda que, em tal situação, você será requerido moralmente para ajudar a criança. Podemos recuar em circunstâncias mais exigentes – se a criança estivesse se afogando no oceano e você tivesse que assumir um risco significativo de sua própria vida para salvá-la, não seria obrigado a fazê-lo. Você pode colocar adequadamente sua própria vida acima da de um estranho nessas situações. Mas quando um mal muito grande ameaça outra pessoa e você pode evitá-lo com um custo mínimo para si mesmo, seria errado não fazê-lo. Há quem desafie até essa modesta afirmação ética, apelando para uma forma extrema de individualismo.7 Não adoto essa abordagem. Procuro antes confiar em visões morais de senso comum, que considero incluir o modesto princípio de um dever de fazer o bem descrito no parágrafo anterior. Os defensores do argumento consequencialista para obrigação política argumentam que a obediência geral à lei é necessária para o Estado funcionar. Se muitos cidadãos desobedecerem, o Estado entrará em colapso e seus enormes 5

Ver Rawls (1999, 295) sobre o dever de justiça e Wellman (2005, 30–2) sobre o dever de salvar. Nenhum dos pensadores, no entanto, tem uma visão geralmente consequencialista. Rawls apela para o que as partes na posição original aceitariam e Wellman (2005, 33) acaba apelando para um princípio não-consequencialista de equidade. 6 O exemplo é de Singer (1993, 229). 7 Rand, 1964, 49; Narveson 1993, capítulo 7.

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benefícios desaparecerão.8 Além disso, argumentam que os custos da obediência, embora significativos, são razoáveis à luz dos benefícios, uma vez que a maioria das pessoas recebe benefícios substancialmente maiores que os custos do Estado.9 Portanto, um princípio moderado do dever de fazer o bem leva à conclusão de que geralmente somos obrigados a obedecer à lei. Ou então alguém pode argumentar.

5.1.4

O problema da redundância individual

Pode ser verdade que é necessária obediência geral à lei para que o governo forneça os benefícios que isso proporciona. Mas não é verdade que toda lei deve ser geralmente obedecida; muitas leis são rotineiramente desprezadas sem o colapso do governo como resultado. Tampouco é verdade para qualquer indivíduo que a obediência desse indivíduo seja necessária para que o governo forneça os benefícios que isso proporciona. É plausível que exista algum nível de desobediência que cause um colapso governamental. Mas enquanto estamos longe desse nível, qualquer indivíduo pode desobedecer sem consequências para a sobrevivência do governo. Obviamente, existem algumas leis que você deve obedecer por razões morais independentes. Por exemplo, você não deve roubar outras pessoas. Isso não ocorre porque você pode destruir o governo. Isso ocorre porque roubar outras pessoas seria uma injustiça para essas pessoas específicas roubadas. Este não é um exemplo para obrigação política; é simplesmente um exemplo de uma obrigação moral geral para com outras pessoas. Muitas outras leis correspondem de maneira semelhante a princípios morais convincentes. Para defender a obrigação política, é preciso argumentar que existe uma obrigação independente de conteúdo de obedecer à lei porque é a lei (Seção 1.5) – ou seja, que é preciso obedecer até as leis que não correspondem a princípios morais independentes. Volte ao caso da criança se afogando no lago raso (Seção 5.1.3). Mas desta vez, suponha que haja outras três pessoas por perto, prontas para salvar a criança. Eles não precisam de ajuda; não há perigo de que a criança se afogue ou sofra outros danos graves se você não ajudar. Além disso, os outros vão entrar na lagoa e enlamear suas roupas, quer você também entre ou não. Nesse caso, você ainda deve pular para ajudar a salvar a criança? Fazer isso significaria simplesmente assumir custos sem nenhum benefício adicional para ninguém. Seu desejo de evitar que suas roupas fiquem enlameadas ou que falte às aulas certamente não justificaria permitir que uma criança se afogasse. Mas isso não justificaria 8 9

Hume 1987, 480. Wellman 2005, 17–19.

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permitir que uma criança fosse salva inteiramente pelos outros ao contrário de parcialmente por você? O caso de um cidadão que decide se deve obedecer à lei é mais análogo a esta última versão da história da criança que se afoga do que à versão original: embora o funcionamento governamental exija obediência, já existem pessoas em número suficiente obedecendo a lei para que o governo não esteja em perigo de desmoronar se você desobedecer. Essas outras pessoas continuarão a obedecer, independentemente de você obedecer ou não. Nessa situação, sua própria obediência é tão redundante quanto um socorrista extra pulando no lago quando já existem três socorristas que saem para salvar a criança.

5.2

Consequencialismo de regras

Afirmo que alguém pode infringir a lei quando o que a lei ordena não é moralmente exigido independentemente e não há consequências negativas sérias. Esse tipo de sugestão geralmente recebe o desafio: “E se todos fizessem isso?” Esta pergunta pretende sugerir um argumento moral contra o tipo de comportamento em questão, mas o conteúdo exato do argumento não é óbvio. Não parece ser um simples apelo consequencialista – a sugestão não é que, ao infringir a lei, é provável que alguém realmente faça com que todos façam a mesma coisa (o que conta exatamente como “a mesma coisa”). Em vez disso, a sugestão parece ser que o fato de que seria ruim se todos fizessem algo é, por si só, uma forte razão para não fazer isso. Essa ideia está intimamente relacionada ao consequencialismo de regras em ética. O consequencialismo de regras sustenta que, em vez de sempre escolher a ação específica que produzirá as melhores consequências dadas as circunstâncias atuais, deve-se agir de acordo com regras gerais e deve-se escolher as regras que, se geralmente adotadas, terão as melhores consequências.10 Em alguns casos, essa ideia é plausível. Veja o caso de um gramado recémplantado em um campus universitário. Alunos e professores são tentados a cortar atalhos pelo gramado enquanto caminham de prédio em prédio. Uma pessoa cortando o gramado não terá efeito perceptível. Mas se todo mundo fizer isso, o gramado intocado será marcado por uma trilha feia atravessada no meio. Suponha que o desvalor estético do caminho supere o benefício total que ele oferece em termos de tempo economizado. Nesta situação, muitos acham plausível que não se deva atravessar o gramado. Parece ser uma ilustração do princípio “E se todos fizessem isso?”, o princípio de que não se deve fazer o que seria ruim se praticado em geral. 10

Brandt 1992, capítulo 7.

5. Consequencialismo e Equidade

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Mas em outros casos, o princípio parece absurdo. Suponha que eu decida me tornar um filósofo profissional. Isso parece permitido. Mas e se todo mundo fizesse isso? Todo mundo filosofava o dia todo, e todos nós passaríamos fome. Presumivelmente, isso não mostra que é moralmente errado ser um filósofo profissional. Na verdade, não vamos morrer de fome, porque nem todos os agricultores se tornarão filósofos apenas porque eu decido me tornar um. Nesse caso, “O que aconteceria se todos fizessem o que eu faço?” parece irrelevante. Pode-se tentar salvar o consequencialismo de regras dessa objeção, adotando uma visão mais sutil da “regra” em que estou usando. Talvez quando decido me tornar um filósofo, não estou agindo com a regra “Seja um filósofo”, mas com alguma regra mais complexa, como “Seja um filósofo, desde que já não haja muitos filósofos” ou “Escolha a profissão que melhor se adequa a você, desde que haja pessoas suficientes em outras profissões para que você não tenha sérias consequências negativas.” Se todo mundo agisse de acordo com uma dessas regras, nem todos morreríamos de fome. Mas, assim como posso afirmar estar seguindo a regra “Seja um filósofo, desde que não haja muitos filósofos” ou “desde que não haja consequências negativas sérias”, os indivíduos que optarem por violar a lei muitas vezes afirmam estar seguindo alguma regra como “infringir a lei quando o que a lei ordena não é moralmente exigido independentemente, desde que não haja muitas pessoas infringindo a lei” ou “[. . . ] desde que você faça isso não terá sérias consequências negativas.” A condição tachada no final desta regra é perfeitamente paralela à disposição tachada na regra “Seja um filósofo”; portanto, qualquer que seja a lógica que nos permita incluir a última condição, quase certamente licenciará a inclusão da primeira. Parece, então, que o consequencialismo de regras em si só é defensável se não apoiar uma defesa geral da obrigação política.

5.3 5.3.1

Equidade A teoria da equidade da obrigação política

Outro argumento sustenta que é preciso obedecer à lei porque desobedecer é injusto para outros membros da sociedade, que geralmente obedecem.11 Vou me referir a esse tipo de obrigação como uma obrigação de “fair play” (jogo limpo). O argumento não é consequencialista – a alegação não é de que a desobediência causará consequências prejudiciais. No entanto, é fácil passar das teorias consequencialistas para a teoria da equidade. Uma vez que percebemos que a desobediência individual não tem consequências prejudiciais, é natural passar a 11

Hart 1955, 185–6; Rawls 1964; Klosko 2005.

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governar o consequencialismo, apelando para as consequências da desobediência geral. Mas encontramos muitos casos, como o de uma pessoa que decide se tornar um filósofo acadêmico, em que não há nada de errado em fazer algo que seria extremamente ruim para todos fazerem. Devemos, então, explicar o que diferencia os casos em que parece errado executar uma ação que seria ruim para todos fazerem dos casos em que parece perfeitamente correto executar essa ação. A teoria da equidade oferece uma resposta atraente para essa pergunta: é uma questão de saber se a ação trata os outros de maneira injusta. Não há nada injusto em me tornar um filósofo, apesar do fato de que seria ruim se todo mundo fizesse isso. Sendo um filósofo, por exemplo, não aumentei a carga de membros de outras profissões. Pelo contrário, membros de outras profissões preferem menos concorrência no mercado e, portanto, preferem que menos pessoas se juntem à sua profissão. Contraste o seguinte cenário. Você está em um barco salva-vidas com várias outras pessoas. Você é pego em uma tempestade e o barco está enchendo de água, precisando ser esvaziado. Outros passageiros pegam potes e começam a socorrer. Os esforços dos outros passageiros são claramente suficientes para manter o barco à tona; portanto, não haverá grandes consequências negativas se você se recusar a ajudar. No entanto, parece óbvio que você devia ajudar a retirar a água. Intuitivamente, seria injusto deixar os outros fazerem todo o trabalho. Por que isso seria injusto? As características importantes da situação parecem ser as seguintes: i Há um grande bem sendo produzido pelas ações de outras pessoas – nesse caso, que o barco permaneça à tona. Por outro lado, se os outros estivessem fazendo algo prejudicial (digamos, colocando água no barco), inútil (digamos, rezando para Poseidon) ou apenas de valor trivial (digamos, entretendo-nos contando histórias), então você não estaria obrigado a ajudar. ii Os demais assumem um custo que é causalmente necessário para a produção do bem. Nesse caso, o custo é o esforço envolvido na retirada da água. iii Você recebe uma parte justa do benefício que está sendo produzido. Nesse caso, você evita afogamentos.12 iv Sua participação no esquema cooperativo contribuiria causalmente para a produção do bem. 12

Alguns filósofos sustentam que a pessoa tem uma obrigação de equidade de ajudar em um esquema cooperativo somente se aceitar livremente os benefícios do esquema (Rawls 1964, 10; Simmons 1979, 107–8; 2001, 30–1). O exemplo de retirar a água do barco sugere que a livre aceitação não é necessária.

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v Os custos de participação para você seriam razoáveis e não significativamente maiores que os custos assumidos por outras pessoas. vi Sua participação não interferiria em fazer algo mais importante. Por exemplo, suponha que, em vez de retirar a água, você decida amarrar os suprimentos no barco para evitar que caiam no mar. Suponha que isso seja mais importante do que ajudar a retirar a água. Nesse caso, não é injusto se abster de ajudar na retirada da água. Quando essas seis condições são satisfeitas, é injusto recusar-se a contribuir para a produção do bem. Os advogados do argumento fair play dizem que desobedecer à lei é tratar injustamente outros membros da sociedade. O governo produz benefícios significativos. Outros membros da sociedade, pagando impostos e obedecendo às leis, assumiram os custos necessários para fornecer esses benefícios. Todos nós compartilhamos pelo menos alguns dos benefícios do governo e a maioria recebe uma parte justa desses benefícios. Cada um de nós pode contribuir causalmente para fornecer os benefícios pagando impostos e obedecendo às leis. O custo é significativo, mas é tipicamente comparável aos custos suportados por terceiros e é razoável em vista dos benefícios. Portanto, seria injusto não fazer nossa parte no apoio ao governo pagando impostos e geralmente obedecendo às leis.

5.3.2

Obediência como custo de bens políticos

Nas situações em que existe uma obrigação de fair play, normalmente não se é obrigado a fazer o que os outros participantes do esquema cooperativo pedem para fazer apenas porque pedem que o faça. No caso da retirada da água, suponha que um dos outros salvadores lhe diga para fazer um sanduíche para ele. Você não é moralmente obrigado a fazer isso. O que você é obrigado a fazer é apenas contribuir causalmente para fornecer os benefícios, não prestar obediência ou lealdade geral a ninguém. Como, então, a noção de equidade deve gerar obrigação política? O argumento é que, neste caso em particular, a obediência à lei constitui compartilhar o custo de fornecer os benefícios do esquema cooperativo. Como discutido anteriormente (Seção 5.1.2), os benefícios centrais do governo incluem a proteção contra injustiças cometidas por criminosos ou governos estrangeiros e o fornecimento de regras previsíveis para a cooperação social. Portanto, o argumento deve ser que a obediência à lei contribui causalmente para fornecer esses benefícios. No caso de algumas leis, é muito plausível que a obediência contribua para a provisão desses benefícios e, portanto, conte como uma participação nos custos de sua provisão. Considere as leis contra assassinato e roubo. Ao obedecer a

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essas leis, contribuo diretamente para o bem da segurança de outros membros da minha sociedade. Mas isso obviamente não exemplifica a obrigação política, porque tenho uma obrigação independente da lei de respeitar os direitos dos outros. Não está claro que a existência de uma lei contra assassinato aumente minha obrigação moral de não cometer um assassinato, nem na “inequidade” envolvida no assassinato de alguém. As leis tributárias fornecem um exemplo mais crível. Aqui está muito claro como a obediência contribui para a provisão de benefícios governamentais: o dinheiro dos impostos será usado para contratar juízes, policiais, soldados e assim por diante. Portanto, ao pagar impostos, é preciso compartilhar os benefícios do governo. Este é um exemplo de obrigação política, pois não seria obrigado a pagar esse dinheiro se a legislação tributária não existisse. Outras leis são mais problemáticas. Para dar um exemplo, nos Estados Unidos e na maioria dos outros países, é ilegal fumar maconha. De que maneira a obediência a essa lei constitui um compartilhamento dos custos de fornecer proteção a governos estrangeiros ou criminosos domésticos ou fornecer regras previsíveis para a cooperação social? Como alguém, ao se abster de fumar maconha, contribui causalmente para a segurança da sociedade? Este não é um caso trivial ou periférico. A aplicação das leis sobre drogas é uma parcela muito grande da aplicação da lei nos Estados Unidos, onde os infratores respondem por cerca de 25% dos presos locais, 20% dos presos estaduais e 52% dos presos federais.13 Enquanto escrevo, mais de meio milhão de americanos estão presos por acusações relacionadas às drogas.14 Este também não é um exemplo isolado. Muitas outras leis levantam questões semelhantes. Nos Estados Unidos, é ilegal fornecer aconselhamento jurídico a pessoas sem admissão na guilda (mesmo que você informe explicitamente de que seus conselhos não foram admitidos e que as pessoas desejam seu conselho de qualquer maneira). É ilegal pagar para uma hora de trabalho menos de 7,25 dólares. Ou comprar sexo por qualquer quantia de dinheiro. Ou vender alimentos embalados sem listar na embalagem o número de calorias que contêm. Ou administrar uma empresa privada que entrega cartas para as pessoas. É 13

Estatísticas recentes sobre o encarceramento de traficantes de drogas nas prisões estaduais e federais são do Departamento de Justiça dos EUA 2010b, 37–8. A estatística mais recente sobre infratores relacionados às drogas nas prisões locais é do Departamento de Justiça dos EUA 2004, 1, relatando que 24,7% dos presos eram infratores em 2002. As classificações são baseadas no crime mais grave pelo qual um preso foi preso. 14 Essa estimativa baseia-se no pressuposto de que 24,7% dos presos locais são delinquentes relacionados às drogas (Departamento de Justiça dos EUA 2004, 1), juntamente com a população carcerária de 2008, conforme relatado no Departamento de Justiça dos EUA em 2009. As estatísticas para prisões estaduais e locais são do Departamento de Justiça dos EUA (2010a, 37–8). O número total de presos de todas as classes de crime, incluindo instituições estaduais, locais e federais, é de cerca de 2,3 milhões de pessoas.

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ilegal vender estévia como aditivo alimentar, embora seja legal vendê-lo como um “suplemento dietético”. E assim por diante. Essas são apenas algumas das centenas de milhares de restrições legais em vigor nos Estados Unidos. Em todos esses casos, é difícil ver a conexão entre o comportamento legalmente exigido e o compartilhamento de custos para a prestação de serviços governamentais essenciais. Parece que o Estado poderia muito bem fornecer os bens descritos na Seção 5.1.2 sem nenhuma das leis descritas nos dois parágrafos anteriores.15 A obediência à lei, de acordo com os defensores do argumento fair play, é análoga a ajudar a retirar a água de um barco salva-vidas. Mas, em vista das leis mencionadas, uma analogia mais próxima seria a seguinte. O barco salva-vidas está enchendo de água. Os passageiros se reúnem e discutem o que fazer com o problema. A maioria (sem incluir você) quer que Bob crie uma solução. Bob pensa por um minuto e depois anuncia o seguinte plano: i Todos os passageiros devem começar a retirar a água do barco; ii oração a Poseidon para pedir sua misericórdia; iii devem se flagelar com cintos para provar sua seriedade; e iv cada um pagará $50 a Sally, que ajudou Bob a ser eleito. Você sabe que o item (i) é útil, o item (ii) é inútil e os itens (iii) e (iv) são prejudiciais para a maioria dos passageiros. No entanto, a maioria dos outros passageiros participa das quatro partes do plano de Bob. Se você se recusa a orar, a se autoflagelar ou a pagar Sally, você age de maneira errada? Você trata os outros passageiros de maneira injusta? Não orar a Poseidon, não se chicotear e não pagar Sally não é injusto, porque essas ações não contribuiriam causalmente para o bem de manter o barco à tona. Se outros passageiros se sentirem magoados por estarem se chicoteando enquanto você não sofre, o remédio é simples: eles devem parar de se chicotear. A culpa está neles mesmos e em Bob, não em você. Lembre-se de que as obrigações políticas devem ser independentes de conteúdo (Seção 1.5) – isto é, diz-se que é preciso seguir a lei independentemente de seu conteúdo (dentro de algumas restrições amplas) e independentemente da lei estar correta. A discussão acima sugere que este não é o caso. É preciso examinar o conteúdo de uma lei específica para determinar se o comportamento que ela 15

Alguém poderia argumentar que, para fornecer segurança com eficácia, o Estado deve ter um certo grau de deferência por parte dos cidadãos – os cidadãos devem concordar em não julgar cada lei individualmente por si mesmos – e isso faz parte do custo da segurança. Abordo essa ideia na Seção 7.5.

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prescreve realmente contribui para o fornecimento de bens políticos antes que se possa dizer se alguém tem alguma razão justa para seguir essa lei. Alguns argumentam que, mesmo que uma determinada lei não seja necessária para desempenhar as funções centrais do governo, a obediência a essa lei ainda faz parte do custo da prestação de serviços governamentais essenciais, porque a desobediência corre o risco de derrubar o governo e toda a ordem social. Nós criticamos esse tipo de reivindicação acima (Seção 5.1.4). Mas, se fosse verdade, faria tanto para minar a legitimidade política independente de conteúdo quanto apoiaria as obrigações políticas independentes de conteúdo. Presumivelmente, se os indivíduos são obrigados a ajudar a manter a ordem social, o Estado também é obrigado. Se a desobediência a qualquer lei corre o risco de causar um colapso da ordem social, então o Estado, ao elaborar leis que não são necessárias para manter a ordem social e que provavelmente são amplamente desobedecidas, está ameaçando a ordem social muito mais do que um único indivíduo quem desobedece a uma dessas leis. Além disso, pedir ao Estado que renuncie ao seu desejo de fazer leis desnecessárias é mais razoável e menos oneroso do que pedir a um indivíduo que renuncie a suas liberdades pessoais. Portanto, se alguém defende que o indivíduo, no entanto, deve obedecer a essas leis quando elas são feitas, é muito mais claro que o Estado não deve fazer essas leis. E, portanto, não se pode defender simultaneamente a obrigação e a legitimidade política sob essa visão.

5.3.3

Obrigação política para dissidentes

Um segundo problema para o argumento fair play refere-se àqueles que não endossam as atividades do Estado. Isso inclui algumas pessoas que sentem que não precisam do Estado; por exemplo, eremitas que vivem isolados ou povos indígenas que prefeririam que os colonos europeus nunca tivessem chegado ao seu continente. Inclui aqueles que são moral ou ideologicamente opostos ao governo em geral (anarquistas). Inclui pessoas que, embora apoiem a ideia geral de governo, acreditam que o tipo adequado de governo é radicalmente diferente do governo que possui. E inclui pessoas que se opõem a programas governamentais específicos, mas são forçadas a contribuir com eles. Por exemplo, os pacifistas podem não querer o alegado bem de uma força militar, mas devem pagar por isso da mesma forma que todos os outros. Vimos que é difícil considerar uma obrigação de ajudar em projetos inúteis ou prejudiciais. Aqui, vemos que também é difícil explicar uma obrigação de ajudar em projetos aos quais sinceramente se opõe, mesmo sendo a oposição fundamentada ou não. Retorne ao exemplo do barco salva-vidas. Desta vez, suponha que os outros passageiros no barco salva-vidas acreditem que orar a Jeová os ajudará a permanecer à tona. Suponha, inclusive, que estejam corretos

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nessa crença: Jeová existe e é receptivo à oração peticionária. Desde que a grande maioria ore, Jeová os ajudará. Mas Sally não acredita nisso. Sally acredita que orar a Jeová provavelmente será prejudicial, porque ofenderá Cthulhu. Ela, portanto, se opõe ao plano dos outros passageiros. Nessa situação, seria injusto que Sally se recusasse a orar a Jeová? Se a existência de Jeová e a eficácia da oração peticionária fossem fatos facilmente verificáveis, que Sally poderia ser responsabilizada por não saber, talvez Sally tivesse uma obrigação moral de orar a Jeová. Mas suponha que esse não seja o caso. Suponha que esses sejam assuntos sobre os quais haja discordância razoável e que a visão de Sally seja racional ou pelo menos não muito menos racional do que a da maioria dos passageiros. Nesse caso, não é errado Sally se abster de orar a Jeová. Ela não está buscando obter algum tipo de vantagem injusta sobre os outros nem lucrar com o trabalho dos outros. Se os outros tentassem forçar Sally a participar de suas orações, eles e não ela agiriam injustamente. No caso político, existem várias pessoas que se opõem a vários programas governamentais. Essas não são pessoas que buscam carona nos esforços de outras pessoas – elas não estão simplesmente desejando que outras pessoas suportem os custos dos programas. Eles não querem que esses programas existam. Em muitos casos, eles consideram os projetos governamentais seriamente injustos ou moralmente inaceitáveis. E, em muitos casos, sua visão, correta ou incorreta, é perfeitamente razoável. Acho que esse é o caso dos que se opõem à presença dos EUA no Afeganistão, à proibição das drogas, às restrições de imigração e a várias outras leis ou projetos governamentais controversos. Existem até alguns que consideram injustamente a própria instituição do governo. Se alguém razoavelmente considera um projeto injusto ou imoral, dificilmente será um free rider, tirando proveito dos outros ou tratando-os injustamente ao se recusar a apoiar esse projeto. Os indivíduos, portanto, não agem de maneira injusta quando se recusam a cooperar com leis que consideram razoavelmente injustas.16 Novamente, portanto, não há base para obrigação política independentes de conteúdo.

5.3.4

Particularidade e a questão de bens alternativos

Uma das condições para uma obrigação de participar com fair play de um esquema de cooperação é que a participação de alguém não deve interferir com a realização de algo mais importante [condição (6), Seção 5.3.1]. Mas obedecer à lei muitas vezes interfere em fazer coisas mais importantes. 16 Contraste as opiniões dos defensores da autoridade política, como Rawls (1964, 5): “É, obviamente, uma situação familiar em uma democracia constitucional em que uma pessoa se vê moralmente obrigada a obedecer a uma lei injusta”.

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Por exemplo, suponha que você tenha a oportunidade de escapar com segurança de $1.000 em impostos prescritos legalmente. Talvez fosse errado fugir dos impostos para gastar o dinheiro em uma nova televisão. No entanto, seria permitido fugir dos impostos para usar o dinheiro de uma maneira mais valiosa socialmente do que entregá-lo ao governo. E é quase certo que essa opção esteja disponível – o benefício social marginal de cada dólar concedido ao governo é muito menor que o benefício social marginal de um dólar concedido a qualquer uma das várias instituições de caridade privadas extremamente eficazes.17 Nesse caso, não é errado fugir dos impostos para enviar o dinheiro para a caridade; de fato, é louvável. Obviamente, a maioria dos cidadãos paga impostos sob coação do Estado. Essa coação serve de pretexto ao pagamento de impostos, mas não o torna louvável ou obrigatório.

5.4 5.4.1

O problema da legitimidade Uma explicação consequencialista da legitimidade

Normalmente, é errado ameaçar uma pessoa com violência para forçar conformidade a algum plano seu. Isso geralmente é verdade mesmo que seu plano seja mutuamente benéfico e moralmente aceitável. Portanto, suponha que você esteja em uma reunião do conselho na qual você e os outros membros estejam discutindo como melhorar as vendas da sua empresa. Você sabe que a melhor maneira de fazer isso é contratar a Sneaku Ad Agency. Seu plano será moralmente inquestionável e altamente benéfico para a empresa. No entanto, os outros membros não estão convencidos. Então você pega sua arma e ordena que votem na sua proposta. Esse comportamento seria inaceitável, mesmo que você esteja agindo em benefício de todos e mesmo que seu plano seja o correto. Mas um comportamento semelhante pode ser justificado em situações de emergência. Retorne ao cenário do barco salva-vidas. O barco corre o risco de afundar, a menos que a maioria dos passageiros comece a retirar água rapidamente. Desta vez, no entanto, suponha que nenhum dos outros passageiros esteja disposto a retirar a água. Você não pode executar a tarefa sozinho, e nenhuma quantidade de raciocínio ou argumentação convencerá os passageiros míopes a pegar seus potes. Finalmente, você puxa sua fiel Glock da jaqueta e ordena que os outros passageiros comecem a resgatar o barco. Nesta situação, por mais que seja inadequado o recurso à força, sua ação parece justificada. 17

Consulte http://www.givewell.org/ para obter análises de instituições de caridade, incluindo uma lista das instituições de caridade mais eficazes.

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Christopher Wellman oferece um exemplo com uma lição semelhante.18 Amy tem uma emergência médica e precisa ser levada ao hospital imediatamente. Beth está ciente disso, mas não tem veículo para transportar Amy. Então, ela rouba temporariamente o carro de Cathy para levar Amy ao hospital. Esta ação viola os direitos de propriedade de Cathy. No entanto, o ato é permitido, desde que não haja outras maneiras de salvar Amy sem cometer pelo menos violações de direitos igualmente sérias. Esses exemplos sugerem o seguinte princípio geral: é permitido coagir uma pessoa ou violar seus direitos de propriedade, desde que isso seja necessário para impedir que algo muito pior aconteça. Assim, talvez o Estado seja justificado em coagir as pessoas e apreender a propriedade delas através de impostos, porque isso é necessário para evitar um colapso virtual da sociedade. Se o Estado não aplicasse as leis de maneira coercitiva, muitas pessoas as violariam e, se o Estado não coletasse coercivamente o dinheiro dos impostos, o Estado não poderia operar. Em qualquer um desses casos, o Estado não poderia fornecer os benefícios sociais cruciais descritos na Seção 5.1.2 acima.

5.4.2

Abrangência e independência de conteúdo

Na versão do cenário do barco salva-vidas discutida na Seção 5.4.1, você tem o direito de usar coerção para salvar todos no barco. Mas esse direito não é abrangente nem independente de conteúdo. Seu direito de coagir é altamente específico e depende do conteúdo: depende de você ter um plano correto (ou pelo menos bem justificado) para salvar o barco, e você pode coagir outros apenas para induzir a cooperação com esse plano. Mais precisamente, você deve pelo menos ser justificado em acreditar que os benefícios esperados de impor coercivamente seu plano aos outros são muito grandes e muito maiores do que os danos esperados. Você não pode coagir outras pessoas a induzir comportamentos prejudiciais ou inúteis ou comportamentos projetados para servir a propósitos ulteriores, não relacionados à emergência. Por exemplo, se você exibir sua arma de fogo e ordenar que todos comecem a colocar a água do oceano para dentro do barco, estará agindo de maneira errada – e da mesma forma, se usar a arma para forçar os outros a orar a Poseidon, se baterem com cintos ou não pagarem os $50 para sua amiga Sally. Os conteúdos são semelhantes no cenário de roubo de carros de Wellman. Amy tem eticamente o direito de violar a propriedade do carro de Cathy. Mas esse direito é altamente específico de conteúdo: Amy não pode violar os direitos de propriedade de Cathy da maneira que ela escolher. Ela não pode pegar o carro e afastar Beth do hospital. Não pode levar Beth ao hospital e depois pegar 18

Wellman 2005, 21.

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o carro para dar uma volta nas montanhas. Não pode vasculhar o porta-luvas procurando objetos de valor. Amy pode usar o carro de uma maneira muito específica: levar Beth ao hospital. Nada mais. Se, portanto, contamos com casos como esse para explicar o direito do Estado de coagir ou violar os direitos de propriedade de seus cidadãos, a conclusão apropriada é que os poderes legítimos do Estado devem ser altamente específicos e dependentes de conteúdo: o Estado pode coagir indivíduos apenas de maneira mínima necessária para implementar um plano correto (ou pelo menos justificado) para proteger a sociedade dos tipos de desastres que supostamente resultariam da anarquia. O Estado não pode coagir as pessoas a cooperar com medidas prejudiciais ou inúteis ou com as quais não temos boas razões para considerar eficazes. Tampouco o Estado pode estender o exercício da coerção para perseguir qualquer objetivo que pareça desejável. O Estado pode receber dos cidadãos a quantidade mínima de dinheiro necessária para fornecer os “bens indispensáveis” que justificam sua existência.19 Não pode pegar um pouco a mais para comprar algo de bom pra si mesmo. Quantas atividades governamentais podem ser consideradas legítimas com essa consideração? As leis e políticas domésticas podem ser divididas em nove categorias, dependendo das motivações por trás delas (essas categorias não são mutuamente exclusivas): 1. Leis projetadas para proteger os direitos dos cidadãos; por exemplo, as leis contra assassinato, roubo e fraude. 2. Políticas destinadas a fornecer bens públicos, no sentido econômico do termo; por exemplo, defesa militar e proteção ambiental.20 3. Leis paternalistas, projetadas para impedir que as pessoas se prejudiquem; por exemplo, leis de cinto de segurança e leis sobre drogas. 4. Leis moralistas, projetadas para impedir comportamentos considerados “imorais” por algum motivo que não sejam danos a si mesmos ou a outros ou violação dos direitos de outros; por exemplo, leis contra prostituição, jogo e drogas. 19

Sobre bens indispensáveis, veja Klosko 2005, pp. 7–8. No sentido econômico do termo, um bem público é um bem com duas características: (1) é incomparável, o que significa que o recebimento do bem por uma pessoa não reduz a disponibilidade do bem a terceiros; (2) é inescrutável, significando que, se for fornecido, é impossível ou muito dispendioso controlar quem o recebe. 20

5. Consequencialismo e Equidade

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5. Políticas destinadas a ajudar os pobres; por exemplo, programas de assistência social, subsídios educacionais e leis de salário mínimo.21 6. Políticas rent-seeking; isto é, políticas, exceto as da categoria (5), projetadas para conferir vantagens econômicas a algumas pessoas em detrimento de outras; por exemplo, subsídios concedidos a indústrias politicamente poderosas, contratos militares lucrativos concedidos a empresas com vínculos com funcionários do governo e requisitos de licenciamento que protegem da concorrência os trabalhadores existentes em uma profissão. 7. Leis projetadas para garantir o monopólio do Estado e promover seu poder e riqueza; por exemplo, leis tributárias, leis de curso legal e leis que impedem a concorrência privada com órgãos governamentais, como os correios e a polícia. 8. Políticas destinadas a promover outras coisas que são consideradas boas em geral, além dos produtos listados acima; por exemplo, provisão de escolas pelo governo, patrocínio do governo para as artes e programas espaciais do governo. 9. Leis e políticas que parecem ser motivadas simplesmente pela emoção, além das consideradas acima; por exemplo, restrições à imigração e proibições ao casamento gay.22 Quando pensamos no abstrato sobre a necessidade de lei e a importância de obedecer à lei, temos principalmente em mente leis dos tipos (1), (2) e talvez (7). Talvez leis desse tipo possam ser justificadas pelo tipo de argumento consequencialista discutido na Seção 5.4.1. Mas, como sugere a lista acima, há muito mais nas atividades de qualquer Estado moderno. E essas atividades extras, em regra, não podem ser justificadas por argumentos consequencialistas. Vamos estender um pouco mais a história do barco salva-vidas. Você forçou os outros passageiros a retirar água do barco, poupando-o de afundar. Enquanto você está com a arma, decide que pode também alcançar alguns outros objetivos desejáveis. Você vê um passageiro comendo batatas fritas, o que aumentará o risco de doenças cardíacas. Apontando a arma para ele, você ordena que ele entregue as batatas fritas. Então você percebe um par de passageiros do outro 21

Essas políticas também têm motivação parcialmente paternalista quando fazem algo diferente de uma transferência direta de renda. Por exemplo, quando o Estado disponibiliza certos fundos para cidadãos indigentes com a restrição de que o dinheiro só possa ser usado para comprar educação, isso é parcialmente redistribuitivo e parcialmente paternalista. 22 Ver Huemer 2010b sobre política de imigração; ver especialmente 460-1, sobre as motivações para restrições à imigração.

5. Consequencialismo e Equidade

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lado do barco jogando cartas. Quando você vê que eles apostaram dinheiro no jogo, ameaça-os caso não parem de jogar. Outro passageiro tem algumas jóias caras, então você a pega e distribui para alguns dos passageiros mais pobres. Você também recebe $50 de todo mundo e dá para sua amiga Sally. Você ameaça atirar em qualquer outro passageiro que tente fazer as mesmas coisas que você está fazendo. Então você decide que seria bom ter um pouco de arte, forçando os outros passageiros a entregarem alguns de seus pertences para poder fazer uma escultura com eles. Por fim, você sente um desconforto em relação a um dos passageiros – não gosta da aparência dele – e ordena que os outros passageiros o joguem no mar. Todas essas ações são indefensáveis. Embora o seu uso inicial de coerção para impedir que o barco salva-vidas afundasse fosse justificado, é absurdo sugerir que a coerção seja justificada pelos tipos de motivos exibidos em qualquer uma das suas ações posteriores nesta história. Esses motivos são análogos aos exibidos nas políticas dos tipos (3) à (9) listados acima.23 Os exemplos específicos que dei dos tipos de política (3) à (9) não são importantes, desde que se concorde que existem (um número não trivial de) políticas para cada um desses tipos. Não importa muito, por exemplo, se alguém não concorda que as leis de licenciamento são motivadas por rent-seeking, desde que se concorde que um número significativo de leis seja motivado por rent-seeking. O ponto é que o Estado tem muitas políticas e leis cujas motivações não justificam a coerção necessária para implementá-las. Isso é um problema porque a autoridade do Estado geralmente é considerada abrangente e independente de conteúdo. Em uma leitura muito rigorosa das condições de abrangência e independência de conteúdo, a existência de apenas algumas leis que o Estado não tem o direito de fazer impediria que ele tivesse autoridade genuína. Uma versão mais modesta das condições de abrangência e independência de conteúdo sustentaria que o Estado não possui autoridade genuína, a menos que pelo menos a maioria das coisas que ele normalmente faz e que geralmente é considerado seu direito sejam de fato moralmente admissíveis. Se o leque de ações coercitivas que o Estado está realmente autorizado a fazer é apenas uma pequena fração do que geralmente se pensa que ele tem direito e do que o Estado de fato faz, então acho que o Estado não tem realmente legitimidade de autoridade. E acho que devemos admitir que 23

Para ser explícito, aqui está uma lista de políticas governamentais análogas às suas ações na história: Impedir o passageiro de comer batatas fritas: leis sobre drogas e outras leis paternalistas. Proibir o jogo de cartas com aposta: leis contra o jogo e outras leis moralistas. Confiscar jóias: bem-estar e outros programas de redistribuição de riqueza. Coletar dinheiro para Sally: subsídios, contratos sem licitação e outras políticas motivadas por rent-seeking. Ameaçar atirar em outros passageiros que fazem as mesmas coisas: proibições de vigilantismo e criação de governos concorrentes. Confiscar propriedades para fazer escultura: apoio estatal às artes. Arremessar um passageiro ao mar: restrição à imigração e deportação de imigrantes ilegais.

5. Consequencialismo e Equidade

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esse é realmente o caso.

5.4.3

Supremacia

A autoridade do Estado também deve ser suprema, no sentido de que ninguém mais tem o direito de coagir os indivíduos da maneira que o Estado faz, nem alguém tem o direito de coagir o Estado. Isso também é difícil de explicar. Modificando o cenário do barco salva-vidas mais uma vez, suponha que no barco haja dois passageiros armados, Gumby e Pokey, cada um deles reconhecendo que o barco salva-vidas precisa ser socorrido. Mais uma vez, os outros passageiros se recusam resolutamente a salvar o barco. Gumby e Pokey sabem que a coerção é necessária para salvar o barco, e qualquer um deles estaria justificado em tomar as medidas necessárias. Mas Gumby é mais rápido em agir: ele pega sua arma e força os outros passageiros a começarem a retirar a água do barco. Nesse ponto, Gumby adquire algum tipo de supremacia? Não ele não adquire. Se Pokey visse algum outro desastre iminente que só pode ser evitado através da coerção, ele estaria justificado a usar coerção para evitá-lo. Isso teria sido verdade se Gumby nunca estivesse no barco salva-vidas, e permanece verdadeiro depois que Gumby usou coerção para evitar que o barco afundasse. O ato coercitivo inicial de Gumby não impede a coerção justificada por outros, nem reduz a gama de circunstâncias em que outros podem usar a coerção, de modo que se torne mais fácil no futuro para Gumby ser justificado no uso da coerção do que para qualquer outra pessoa no barco. Pokey também não estaria moralmente impedido de tomar ações coercitivas para reforçar o esquema de retirada de água, caso a aplicação de Gumby se mostre inadequada. Antes do ato coercitivo inicial de Gumby, seria verdade que Pokey poderia usar a força permissivelmente contra Gumby, se isso fosse necessário para impedir Gumby de violar seriamente os direitos de outras pessoas ou impedir que algo muito ruim acontecesse. Após o ato coercitivo inicial de Gumby, isso permanece igualmente verdadeiro. O simples fato de Gumby ter sido o primeiro a usar a coerção para salvar o barco não o deixa imune a ser coagido em circunstâncias nas quais normalmente seria permitido coagir alguém. Por exemplo, se, depois de salvar o barco salva-vidas, Gumby tentasse roubar os passageiros, Pokey estaria justificado em usar a força para defender os outros passageiros. Parece, então, que o Estado não possui, por motivos consequencialistas, autoridade suprema. Outros agentes podem usar a força para alcançar os mesmos objetivos que o Estado teria justificativa em usar a força para alcançar no caso dos próprios esforços do Estado serem inadequados. Por exemplo, se o Estado falhar em fornecer proteção adequada contra o crime, não há razão óbvia para que agentes privados não forneçam segurança usando os mesmos métodos que o Estado pode usar. Os agentes privados também podem usar a força para evitar

5. Consequencialismo e Equidade

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desastres que o Estado não tomou ação suficiente para evitar (novamente, nas mesmas circunstâncias em que o Estado pode usar a força). E agentes privados podem usar a força contra o Estado quando necessário para impedir que o Estado cometa graves violações de direitos ou para impedir que algo muito ruim aconteça. Quando alguém pode usar a força contra os outros? É plausível sustentar que indivíduos e organizações particulares são justificados em usar a força somente quando i eles têm uma forte justificativa para acreditar que o plano que estão tentando implementar está correto (por exemplo, que produziria os benefícios pretendidos e que esses benefícios seriam ótimos em comparação com a gravidade das violações de direitos necessárias para implementar o plano); ii eles têm uma forte justificativa para acreditar que o uso da força conseguiria fazer com que seu plano fosse implementado; e iii não há alternativas disponíveis para alcançar os benefícios sem pelo menos violações igualmente graves de direitos. Na realidade, essas condições são bastante restritivas e raramente são realizadas. É plausível que a maioria dos vigilantes reais viole a condição (i) e que a maioria dos rebeldes e terroristas reais viole (i) e (ii). Portanto, a maioria dos casos reais de vigilantismo ou terrorismo não deve ser endossada. No entanto, a conclusão é uma rejeição da supremacia da autoridade governamental, pois as qualificações mencionadas no parágrafo anterior se aplicam igualmente aos atores estatais. O Estado também deve ter forte justificativa para acreditar que cada um de seus planos implementados coercivamente está correto, que seu uso da coerção será bem-sucedido e que não há alternativas melhores. Se alguém se apoia em uma explicação consequencialista da legitimidade do tipo que está sendo discutido, não há maneira aparente de escapar dessa conclusão. Portanto, não há um sentido claro em que o Estado tenha autoridade suprema; pode coagir indivíduos nos mesmos tipos de circunstâncias, pelos mesmos tipos de razões, como agentes privados podem coagir indivíduos. E, assim como a maioria dos atos de vigilantes e terroristas são injustificados, acho plausível que a grande maioria das ações estatais também viole uma ou mais condições para a coerção justificada.

5.5

Conclusão

Argumentos consequencialistas e baseados em equidade aproximam-se da justificação da autoridade política. No entanto, eles não podem fundamentar uma

5. Consequencialismo e Equidade

95

autoridade independente, abrangente ou suprema de conteúdo para o Estado. O Estado tem o direito, no máximo, de impor coercivamente políticas corretas e justas para evitar danos muito graves.24 Ninguém tem o direito de impor coercivamente políticas contraproducentes ou inúteis, nem aplicar políticas destinadas a objetivos de menor importância. O Estado pode ter o direito de cobrar impostos, administrar um sistema de polícia e tribunais para proteger a sociedade dos violadores de direitos individuais e fornecer defesa militar. Ao fazer isso, o Estado e seus agentes podem receber apenas os fundos mínimos e empregar apenas a coerção mínima necessária. O Estado não pode impor coercivamente leis paternalistas ou moralistas, políticas motivadas pelo rent-seeking ou políticas destinadas a promover bens desnecessários, como apoio às artes ou a um programa espacial.

24

O Estado carecerá mesmo desse direito se, como argumentado na Parte II, o Estado não for necessário para o fornecimento de quaisquer bens vitais.

6 A Psicologia da Autoridade 6.1

A relevância da psicologia

Neste capítulo, reviso algumas evidências da psicologia e da história, sobre as atitudes e o comportamento daqueles que estão sujeitos à (suposta) autoridade de outras pessoas e sobre as atitudes e o comportamento daqueles que estão em posições de autoridade. Essas descobertas são fascinantes por si mesmas. Elas também têm, pelo menos de duas maneiras importantes, o ceticismo sobre a autoridade política defendida neste livro. Por um lado, os dados psicológicos se referem à questão de quanta confiança devemos depositar em nossas intuições sobre a autoridade. Por outro lado, os dados psicológicos se referem à questão de quão desejável ou prejudicial pode ser incentivar o ceticismo em relação à autoridade. No presente capítulo, quando falo de “autoridades” e “figuras de autoridade”, quero dizer pessoas e instituições socialmente reconhecidas como possuindo autoridade, independentemente de terem ou não autoridade genuína em sentido normativo. “Posições de autoridade” e “instituições de autoridade” devem ser entendidas da mesma forma.

6.1.1

Este livro é perigoso?

Alguns defensores da autoridade se preocupam abertamente com as consequências que podem resultar de ideias anarquistas. Se ideias como as que adianto neste livro se concretizarem em nossa sociedade, alertam, haveria muito mais desobediência ao governo.1 Essa desobediência, por sua vez, pode levar o Estado 1

Honoré (1981, 42-4) expressa essa preocupação em relação ao anarquismo filosófico de Simmons, uma doutrina mais moderada que a minha.

96

6. A Psicologia da Autoridade

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a se tornar mais violento e opressivo.2 Ou, como advertiram Platão e Hume, isso pode levar a um colapso geral da ordem social.3 Livros como este, se não forem suficiente e vigorosamente questionados por outros filósofos, poderão, em última análise, contribuir para tais resultados. Isso não teria relação direta com a questão de saber se este livro está correto em suas alegações centrais (promover uma tese correta pode ser indesejável), mas incide diretamente na interessante questão de saber se esse livro é ruim ou não deveria ter sido escrito. Abordarei essa preocupação nas seções posteriores deste capítulo, depois de revisar algumas descobertas psicológicas importantes.

6.1.2

O apelo à opinião popular

Outros defensores da autoridade política sugerem que o anarquismo deve ser rejeitado porque está muito longe da corrente principal da opinião política. A crença nas obrigações políticas, escreve George Klosko, “é uma característica básica de nossa consciência política”.4 Ele acredita que devemos aceitar opiniões comuns como evidência prima facie em questões normativas, principalmente quando a opinião filosófica é dividida. David Hume vai mais longe: “A opinião geral da humanidade tem alguma autoridade em todos os casos; mas nesse aspecto moral é perfeitamente infalível.”5 Se não há autoridade política, é natural perguntar, então como tantas pessoas passam a ter uma crença tão firme nisso? Não é mais provável que eu e um punhado de outros anarquistas estejamos errados do que quase todos no mundo? Por fim, não concordo com esse argumento. Considerando tudo, acho mais provável de que os outros estejam enganados do que eu. (Obviamente, não acreditaria que eu próprio não considerasse mais provável que eu esteja mais certo do que errado.) No entanto, o argumento não deve ser rejeitado às pressas ou pelas razões erradas. Para dar um tratamento justo ao argumento, paro aqui para defender o apelo à opinião popular contra objeções excessivamente fáceis. Há quem rejeite os apelos à opinião popular, em princípio, como falaciosos (supostamente a falácia do argumentum ad populum). Mas o que exatamente deveria ser falacioso em apelar a opiniões populares? A ilustração mais citada 2

Por esse motivo, DeLue (1989, 1) adverte que a ampla aceitação do anarquismo filosófico “seria uma tragédia para os regimes liberais”. 3 Ver Críton em 50d em Platão 2000 e Hume 1987, 480. Ambos os filósofos parecem preocupados que mesmo uma pequena quantidade de desobediência, talvez apenas um único ato de desobediência, levaria a esse resultado. 4 Klosko, 1992, p. 24. Klosko faz uma observação mais detalhada em seu capítulo 9 de 2005. 5 Hume 1992, seção III.ii.9, 552. Hume usa essa premissa para rejeitar a teoria do contrato social, que em sua época exercia pouca influência sobre o público. Sua forte tese de infalibilidade moral pode ser explicada por sua metaética anti-realista (1992, Seção III.i.1-2).

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do alegado erro é o caso de Cristóvão Colombo; diz-se que quando Colombo queria navegar ao redor do mundo, seus contemporâneos riram dele porque todos estavam convencidos de que a Terra era plana. Mas Colombo acabou por estar certo. E isso, como se vê, mostra por que é tolice confiar nas opiniões da maioria. Como uma nota histórica, a argumentação anterior é completamente imprecisa. Foi Colombo quem estava errado e aqueles que “riram dele” que estavam certos no ponto principal da disputa. A ideia de que os contemporâneos de Colombo pensavam que a Terra era plana é um mito moderno. Os gregos antigos descobriram que a Terra era redonda e esse conhecimento nunca foi perdido.6 O ponto real da disputa dizia respeito à distância do oeste da Europa para a Ásia. Colombo pensou que essa distância era pequena o suficiente para navegar no tipo de navios que então existiam; seus contemporâneos pensavam o contrário. Eles estavam certos e Colombo estava errado: a distância real é cerca de quatro vezes maior do que Colombo pensava. Se não fosse a descoberta inesperada das ilhas do Caribe, Colombo e sua tripulação morreriam de fome no mar muito antes de chegarem perto da Ásia. Mas isso é apenas uma nota lateral de interesse histórico. Certamente há casos em que grandes maiorias de pessoas mantêm crenças equivocadas. De fato, as falsas crenças que a maioria das pessoas modernas mantém sobre Colombo e seus contemporâneos são um exemplo disso. Mas que conclusão interessante se segue dessa observação? Vamos considerar três conclusões que podemos tirar. Primeiro, talvez o exemplo de Colombo (ou algum outro exemplo mais genuíno de erro popular) pretenda mostrar que a existência de uma crença muito difundida não fornece prova conclusiva para o que a maioria acredita, pois há alguns casos em que essas crenças são falsas. Isto está obviamente correto. E isto Também é totalmente desinteressante. Um método de formação de crenças não precisa ser infalível para ser útil ou racional. Todos ou quase todos os métodos de formação de crenças são falíveis, incluindo observação sensorial e raciocínio científico. Isso não mostra que devemos evitar a observação, a ciência e quase tudo o mais como “falacioso”. Segundo, talvez o argumento de Colombo pretenda mostrar que a existência de uma crença muito difundida não fornece nenhuma evidência para o que a maioria acredita. Esta conclusão é muito mais interessante. E também é obviamente injustificada. A existência de um único erro ou mesmo de muitos erros produzidos por uma determinada fonte de informação não mostra que essa fonte é completamente inútil em termos de evidência. Para argumentar que a opinião 6

Lindberg 1992, 58; Russell 1991. No século IV a.C, Aristóteles discutiu os argumentos que estabelecem a esfericidade da Terra (De Caelo, 297a9-297b20), e no terceiro século a.C, Eratóstenes forneceu uma estimativa razoavelmente precisa da circunferência da Terra.

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popular é evidentemente inútil, alguém teria que argumentar que a opinião popular não é melhor que o acaso – em outras palavras, que crenças amplamente difundidas não são corretas com mais frequência do que proposições surgidas aleatoriamente. Mas esta última afirmação é obviamente falsa. Considere agora o leque de casos em que uma pequena minoria discorda da maioria. Hoje, uma pequena minoria de pessoas pensa que a Terra é plana, que os pousos na Lua foram falsificados ou que são possíveis máquinas de movimento perpétuo; a maioria discorda. Algumas pessoas acreditam ser Jesus ou Napoleão ou um super-herói, enquanto todos os que os rodeiam discordam. Em todos esses casos, a maioria está certa e a minoria está errada. Às vezes, em uma aula de ciências ou matemática, todos os alunos, exceto um, obtêm a mesma resposta para um problema específico. Às vezes, em um grupo de várias pessoas, todas testemunhando algum evento, uma pessoa se lembra do evento de maneira diferente das outras. Em quase todos esses casos, novamente, a maioria está certa – o único dissidente calculou mal ou tem um má lembrança. A explicação é uma simples questão de probabilidade: para a maioria estar errada, o mesmo mau funcionamento cognitivo ou mau funcionamento cognitivo que produz o mesmo resultado deve ter ocorrido muitas vezes em cérebros diferentes. Para que uma pessoa esteja errada, um mau funcionamento cognitivo precisa ter ocorrido apenas uma vez. Este último é geralmente mais provável. Terceiro e, finalmente, talvez o argumento de Colombo pretenda mostrar que um apelo à crença popular não fornece fortes evidências para o que a maioria acredita. Pode-se argumentar que a opinião popular, embora seja mais confiável do que suposições aleatórias, não deixa de ser bastante confiável. Mas como pretendemos inferir isso? Uma possibilidade é que devemos ver o exemplo de Cristóvão Colombo e talvez alguns casos semelhantes como constituindo uma grande amostra aleatória de crenças populares, na qual uma grande porcentagem (100%) se mostra falsa. Isso forneceria evidências sérias de falta de confiabilidade. Outra possibilidade é que devemos simplesmente reconhecer, com base no conhecimento e na experiência comuns, que o exemplo de Colombo é um caso típico de um dissidente contra uma visão majoritária. Mas nenhuma dessas possibilidades é fácil de se levar a sério. A “amostra” de crenças populares oferecidas nesse tipo de argumento geralmente contém apenas alguns casos, e o método amostral é algo mais próximo de “seleção deliberada de casos com a característica desejada” do que da “seleção aleatória”. Quanto à tipicidade, não seria um único louco da conspiração no escritório que insiste que o “11 de setembro foi inside job” e que o governo dos EUA criou a AIDS como um exemplo mais típico de dissidente contra uma opinião da maioria do que Cristóvão Colombo? Com base na experiência cotidiana, quantos “fiéis da tese do 11 de setembro”

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existem para cada Colombo?7 Uma vez que enxergamos por que a opinião popular é, até certo ponto, relevante em termos de evidências, é difícil não concluir que muitas vezes seja altamente relevante. Novamente, normalmente é menos provável que algum mau funcionamento cognitivo ocorra várias vezes do que ocorra uma vez. Se for assim, normalmente é muito menos provável que um mau funcionamento ocorra muitas vezes do que um pequeno número de vezes. (O princípio está formalizado no Teorema do Júri de Condorcet.)8 Discutirei abaixo possíveis exceções a essa regra. O apelo à opinião popular, portanto, não é geralmente falacioso. Como regra, crenças muito firmes e difundidas não devem ser facilmente deixadas de lado. Portanto, é necessária uma reflexão considerável antes de deixarmos de lado a crença comum na autoridade política. Devemos examinar cuidadosamente as teorias mais importantes e promissoras da fonte de autoridade, conforme discutido nos capítulos 2 a 5 acima. Também devemos examinar as prováveis fontes de crenças sobre a autoridade política, como no presente capítulo.

6.2 6.2.1

O experimento de Milgram Método

Talvez o mais famoso estudo psicológico de obediência e autoridade tenha sido o conduzido por Stanley Milgram na Universidade de Yale durante a década de 1960.9 Milgram reuniu voluntários para participar, supostamente, de um estudo sobre memória. Quando cada sujeito chegou ao laboratório, recebeu US$ 4,50 (na época um pagamento razoável), e lhe disseram que o pagamento era apenas pela presença. Outro “voluntário” (na verdade um cúmplice do pesquisador) já estava presente. O pesquisador (na verdade, um professor do ensino médio 7

Ver Stove (1995, 58-62) em The Columbus Argument para mais discussões. Ver a introdução a Condorcet de McLean e Hewitt 1994 (35–6). Condorcet observa que, quando assumimos que os indivíduos são 80% confiáveis e a maioria supera a minoria em apenas nove pessoas, a probabilidade da maioria estar correta excede 99,999%. O Teorema do Júri pode ser enganoso, porque a suposição de independência probabilística raramente é satisfeita. No entanto, um argumento qualitativo mais amplo pode ser feito; ou seja, que uma convergência de fontes de informação em uma proposição específica apoia probabilisticamente essa proposição, em maior grau do que uma única fonte de informação, desde que (i) cada fonte seja mais confiável que um palpite aleatório, (ii) nenhuma fonte é completamente dependente da outra e (iii) uma fonte não tem mais probabilidade de concordar com a outra se a última fonte estiver errada do que se a última estiver correta. É muito plausível que essas condições sejam geralmente satisfeitas quando as fontes são pessoas individuais. 9 O argumento a seguir no texto é baseada em Milgram 2009. Além da versão que descrevo no texto (“Experiência 5”), Milgram detalha várias outras variações interessantes do experimento. 8

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que Milgram havia contratado para desempenhar o papel) informou a ambos que participariam de um estudo sobre os efeitos da punição na aprendizagem. Um deles seria designado como “professor” e o outro como “aluno”. Através de uma proposta fraudulenta, o sujeito ingênuo foi selecionado como professor e o cúmplice como aluno. O pesquisador explicou que o professor leria pares de palavras para o aluno, que tentaria lembrar qual palavra estava associada a qual outra palavra. O professor então questionaria o aluno. Cada vez que o aluno dava uma resposta errada, o professor administrava um choque elétrico por meio de um gerador de choque de aparência impressionante. Com cada resposta errada, os choques aumentavam em intensidade, começando com um choque de 15 volts e aumentando em 15 volts de cada vez. O experimentador deu ao professor uma amostra de choque de 45 volts para demonstrar como era (e convencer os participantes da autenticidade do gerador de choque). O aluno mencionou que tinha um leve problema cardíaco e perguntou se o experimento era seguro. O pesquisador garantiu que, embora os choques fossem dolorosos, não eram perigosos. O aluno estava amarrado a uma cadeira em outra sala com um eletrodo preso ao pulso, supostamente conectado ao gerador de choque. Em um horário fixo, o aluno cometeria erros, levando a choques cada vez mais graves. Os interruptores no gerador de choque foram rotulados de 15 volts até 450 volts, juntamente com rótulos qualitativos que variavam de “Choque Fraco” a “Perigo: Choque Severo”, seguidos por um sinistro “XXX” nos dois últimos interruptores. Cada vez que o aluno cometesse um erro, o professor deveria usar o próximo interruptor no gerador de choque. A 75 volts, o aluno já começava a grunhir de dor. A 120 volts, gritava para o pesquisador que os choques estavam se tornando dolorosos. A 150 volts, o aluno queixou-se de que seu coração o estava incomodando e exigia sua libertação. Gritos desse tipo continuaram, até um grito agonizante a 270 volts. A 300 volts, a vítima se recusou a fornecer mais respostas ao teste de memória. O pesquisador instruiu o professor a tratar uma falha em responder como uma resposta errada e a continuar administrando choques. A vítima continuou a gritar e insistiu que não queria mais participar, reclamando do seu coração novamente a 330 volts. Depois de 330 volts, no entanto, nada mais foi ouvido do aluno. Quando o professor atingisse o interruptor final de 450 volts no gerador de choque, o pesquisador instruiria o professor a continuar usando o interruptor de 450 volts. Depois que o professor administrou o choque de 450 volts três vezes, o experimento foi encerrado. Se, em algum momento deste processo, o professor manifestasse relutância em continuar, o pesquisador incitava o professor com um “por favor, continue”. Se o professor expressasse repetidamente relutância, o pesquisador solicitava que “o experimento exige que você continue”, então “é absolutamente essencial que você

6. A Psicologia da Autoridade

102

continue” e, finalmente, “você não tem outra escolha. Você deve continuar.” Se o professor ainda resistisse após o quarto estímulo, o experimento era interrompido.

6.2.2

Previsões

O aluno, é claro, não recebeu verdadeiramente os choques elétricos. O verdadeiro objetivo era determinar até que ponto as pessoas estariam dispostas a obedecer ao pesquisador. Se você ainda não está familiarizado com o experimento, vale a pena dedicar um momento para refletir, primeiro, sobre como você acha que deveria ser o comportamento do professor, e segundo, o que você acha que a maioria das pessoas faria. As entrevistas pós-experimentos estabeleceram que as pessoas estavam convencidas de que a situação era real e que o aluno estava recebendo choques elétricos extremamente dolorosos. Sabendo disso, um professor claramente não deveria continuar administrando choques depois que o aluno exige que seja liberado. Fazer isso seria uma violação grave dos direitos humanos da vítima. Em algum momento, o experimento representaria tortura e assassinato. Embora o pesquisador tenha algum direito de dirigir a condução de seu experimento, ninguém diria que ele tem o direito de ordenar tortura e assassinato. O que você teria feito se fosse um participante do experimento? Milgram descreveu o experimento para estudantes, psiquiatras e adultos comuns e pediu que previssem como se comportariam se estivessem no experimento e como a maioria das outras pessoas se comportaria.10 Dos 110 entrevistados, todos disseram que desafiariam o pesquisador em algum momento, explicando suas razões em termos de compaixão, empatia e princípios de justiça. A maioria disse que se recusaria a continuar além do choque de 150 volts (quando o aluno exige a liberação) e ninguém se viu ultrapassando os 300 volts (quando o aluno se recusa a responder). Já suas previsões sobre o comportamento de outras pessoas eram um pouco menos otimistas: os entrevistados esperavam que apenas uma margem patológica de 1 a 2% da população continuasse até 450 volts. Os psiquiatras pesquisados por Milgram pensavam que apenas um participante em mil continuaria até o final do quadro de choque.

6.2.3

Resultados

O experimento de Milgram mostra algo surpreendente, não apenas sobre nossas disposições para obedecer, mas também sobre nosso entendimento. As previsões de psiquiatras, estudantes e leigos ficaram chocantemente distantes da realidade. 10

Milgram 2009, 27–31.

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No experimento real, 65% dos indivíduos cumpriram completamente, eventualmente administrando o choque de 450 volts por três vezes a uma vítima já silenciosa e aparentemente sem vida. A maioria dos participantes protestou e mostrou sinais óbvios de ansiedade e relutância – mas, por fim, fizeram o que lhes foi dito. Milgram acompanhou o experimento com pesquisas enviadas pelos participantes. Apesar do estresse envolvido no experimento, praticamente ninguém se arrependeu de participar. Aqueles que ouvem falar do projeto experimental, sem terem participado, geralmente pensam: “As pessoas não o farão” e, em seguida, “Se o fizerem, não serão capazes de viver com isso depois”. Mas, na verdade, Milgram relata: os participantes obedientes não têm problemas com isso mesmo depois, porque esses participantes em geral racionalizam seu comportamento, após o fato, da mesma maneira que o racionalizaram no decorrer do experimento: eles estavam apenas seguindo ordens.11

6.2.4

Os perigos da obediência

Que lições podemos tirar dos resultados da Milgram? Uma lição importante, a mais proeminentemente desenvolvida pelo próprio Milgram, é a do perigo inerente às instituições de autoridade. Como a maioria das pessoas está disposta a ir muito longe, satisfazendo as demandas das figuras de autoridade, as instituições que criam reconhecidas figuras de autoridade têm o potencial de se tornarem motores do mal. Milgram traça um paralelo com a Alemanha nazista. Adolf Hitler, trabalhando sozinho, talvez pudesse ter matado algumas dezenas ou mesmo algumas centenas de pessoas. O que lhe permitiu se tornar um dos maiores assassinos da história foi a posição socialmente reconhecida de autoridade para a qual ele próprio manobrou e a obediência inquestionável o renderam milhões de súditos alemães. Assim como nenhum dos participantes de Milgram teria decidido por si próprio sair e eletrocutar alguém, muito poucos alemães teriam decidido, por conta própria, sair matando judeus. O respeito pela autoridade era a principal arma de Hitler. O mesmo se aplica a todos os maiores males criados pelo homem. Ninguém jamais conseguiu, trabalhando sozinho, matar mais de um milhão de pessoas. Tampouco alguém jamais organizou tal mal recorrendo apenas ao lucro, interesse próprio puro ou persuasão moral para garantir a cooperação de outros – exceto por confiar em instituições de autoridade política. Com a ajuda de tais instituições, muitos desses crimes foram cometidos, representando dezenas de milhões de mortes, além de muitas outras vidas arruinadas. 11

Milgram 2009, 195–6.

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É possível que essas instituições também cumpram funções sociais cruciais e previnam outros males enormes. Mesmo assim, à luz dos fatos empíricos, devemos perguntar se os seres humanos têm uma disposição muito forte para obedecer a figuras de autoridade. Isso nos leva a uma lição intimamente relacionada, sugerida pelos resultados de Milgram: a disposição da maioria das pessoas de obedecer às autoridades é muito mais forte do que se poderia pensar à primeira vista – e muito mais forte do que se poderia pensar justificado.

6.2.5

A falta de confiabilidade de opiniões sobre autoridade

Outra lição interessante é esta: a experiência de ser submetido a uma autoridade tem uma influência distorcida nas percepções morais de alguém. Todo mundo que ouve sobre o experimento percebe corretamente o imperativo moral, em algum momento, de rejeitar as exigências do pesquisador de continuar aplicando choque à vítima. Nenhuma pessoa racional pensaria que a completa obediência ao pesquisador era apropriada. Mas quando uma pessoa está na situação, ela começa a sentir a força das demandas do pesquisador. Quando Milgram perguntou a um sujeito obediente por que ele não interrompeu o experimento, o sujeito respondeu: “Eu tentei, mas ele [indicando o pesquisador] não me deixou.” O experimentador de fato não exerceu força para obrigar os sujeitos a continuar – mas os sujeitos se sentiam compelidos. Pelo quê? Pela pura autoridade do pesquisador. Depois que uma pessoa é submetida a essa autoridade e obedecia, a distorção da percepção ética frequentemente continua. O participante continua a achar suas ações justificáveis ou desculpáveis, alegando que estava apenas seguindo ordens – mesmo que ninguém fora do experimento concordasse. O paralelo à Alemanha nazista novamente se afirma. Enquanto quase todos os observadores externos condenam as ações dos nazistas (e não apenas as de Adolf Hitler, que deu as ordens finais), os oficiais nazistas famosos defenderam-se com o apelo a ordens superiores. Isso era simplesmente uma manobra insincera para escapar da punição? Provavelmente não; como os participantes de Milgram, os oficiais provavelmente sentiram que tinham que obedecer às ordens. Na memorável descrição de Hannah Arendt do caso, Adolf Eichmann pensou que estava cumprindo seu dever obedecendo à lei da Alemanha, que estava inextricavelmente ligada à vontade do Führer; ele se sentiria culpado se não seguisse a lei e o espírito das ordens de Hitler.12 Ainda mais claramente, os soldados comuns do exército alemão não podem ser considerados muito mais malignos do que os não-alemães típicos como se quisessem participar independentemente em um genocídio. Enquanto o anti-semitismo era desenfreado na Alemanha, não ocorreu assassinato generalizado até que o governo ordenou os assassinatos. So12

Arendt 1964, 24–5, 135–7, 148–9.

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mente então os soldados comuns acharam que os assassinatos eram justificados ou exigidos. A história registra muitos casos semelhantes. Durante a guerra do Vietnã, uma unidade do exército americano realizou um massacre de centenas de civis em My Lai. Em um dos crimes de guerra mais notórios da história do país, mulheres indefesas, crianças e homens idosos foram reunidos e fuzilados em massa. Mais uma vez, os soldados envolvidos juraram que estavam apenas seguindo ordens.13 Um soldado teria chorado durante o massacre, mas continuou atirando.14 A ampla aceitação da autoridade política tem sido citada como evidência da existência de autoridade política (legítima). A evidência psicológica e histórica mina esse apelo. Os nazistas, os soldados americanos em My Lai e os participantes de Milgram não estavam claramente sujeitos a nenhuma obrigação de obediência – muito pelo contrário – e as ordens que foram dadas eram claramente ilegítimas. De fora dessas situações, podemos ver isso. No entanto, quando realmente confrontados pelas demandas das figuras de autoridade, os indivíduos nessas situações sentiram a necessidade de obedecer. Essa tendência é muito difundida entre os seres humanos. Suponha agora, hipoteticamente, que todos os governos eram ilegítimos e que ninguém era obrigado a obedecer a seus comandos (exceto onde os comandos se alinhavam com os requisitos morais preexistentes). As evidências psicológicas e históricas não podem mostrar se essa hipótese ética radical é verdadeira. Mas o que as evidências sugerem é que, se essa hipótese fosse verdadeira, é bem provável que ainda nos sentíssemos obrigados a obedecer nossos governos. Isso é provável, porque mesmo as pessoas sujeitas aos exemplos mais claros de poder ilegítimo ainda se sentem obrigadas a obedecer. E se sentimos essa necessidade de obedecer, é provável que isso nos leve a pensar e dizer que éramos obrigados a obedecer e depois – no caso dos mais filosóficos entre nós – a inventar teorias para explicar por que temos essa obrigação. Assim, a crença generalizada na autoridade política não fornece fortes evidências para a realidade da autoridade política, uma vez que essa crença pode ser explicada como um produto de viés sistemático.

6.3

Dissonância cognitiva

De acordo com a teoria amplamente aceita da dissonância cognitiva, experimentamos um estado desconfortável, conhecido como “dissonância cognitiva”, quando temos duas ou mais cognições que estão em conflito ou tensão entre si – e particularmente quando nosso comportamento ou outras reações parece conflitar 13 14

Wallace e Meadlo 1969; Kelman e Hamilton 1989, 10–11. Kelman e Hamilton 1989, 6.

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com nossa auto-imagem.15 Em seguida, tendemos a alterar nossas crenças ou reações para reduzir a dissonância. Por exemplo, uma pessoa que se considera compassiva, mas se vê infligindo dor aos outros, experimentará dissonância cognitiva. Ela pode reduzir essa dissonância deixando de infligir dor, mudando sua imagem de si mesmo ou adotando crenças auxiliares para explicar por que uma pessoa compassiva pode infligir dor nessa situação. Festinger e Carlsmith forneceram uma das ilustrações clássicas da teoria da dissonância cognitiva em um experimento realizado na década de 1950.16 Os indivíduos foram obrigados a realizar uma tarefa repetitiva e chata por uma hora, que pensavam ser o núcleo do experimento para o qual haviam se voluntariado. No final da hora, uma das três coisas aconteceu. Os indivíduos na condição de “um dólar” receberam um dólar para dizer a alguém (supostamente outro sujeito voluntário presente) que a tarefa tinha sido divertida e interessante. Os indivíduos na condição de “vinte dólares” receberam vinte dólares para dizer a mesma coisa. Por fim, não foi solicitado que os sujeitos na condição de controle dissessem algo e não dissessem algo desse tipo. Mais tarde, os três grupos foram entrevistados sobre o que realmente pensavam da tarefa repetitiva que haviam realizado por uma hora. Os indivíduos na condição de vinte dólares tinham visões um pouco mais favoráveis do que as do grupo de controle – tanto quanto a tarefa era agradável e como estavam dispostos a participar de um experimento semelhante no futuro. Os indivíduos na condição de um dólar, no entanto, tinham visões significativamente mais favoráveis dessas tarefas do que o grupo de controle ou do grupo dos vinte Dólares. Assim, pagar mais aos indivíduos resultaram em uma mudança menor em suas atitudes em relação à tarefa.17 Festinger e Carlsmith explicam os resultados da seguinte maneira. A maioria das pessoas geralmente não se considera mentirosa. Portanto, se acham chata a tarefa que realizaram, lembram-se de que disseram a alguém que era agradável e experimentam dissonância cognitiva. Se a tarefa não era agradável, por que disseram que era? Os indivíduos na condição de vinte dólares poderiam explicar isso facilmente: mentiram para conseguir o dinheiro. Mas para indivíduos na condição de um dólar, essa explicação era menos satisfatória. Como um dólar é uma pequena quantia em dinheiro, parecia menos adequado como motivação para mentir.18 Portanto, os indivíduos na condição de um dólar estavam sob mais 15

Veja Festinger e Carlsmith 1959 para uma defesa seminal da teoria. Sobre a importância particular da auto-imagem, ver Aronson 1999; Aronson et al. 1999. 16 Festinger e Carlsmith, 1959. 17 A maior diferença de atitude foi entre o grupo de Controle e o grupo “Um Dólar” sobre a questão de quão dispostos estariam em participar de um experimento semelhante novamente. Essa foi uma diferença de cerca de 1,8 pontos em uma escala de dez pontos. 18 Era um dólar dos anos 50; o equivalente hoje seria de cerca de 8 dólares. A verdadeira razão pela qual os participantes mentiram provavelmente foi deferência aos pesquisadores, mas os

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pressão para acreditar que a tarefa era realmente agradável. Em outro experimento, os voluntários foram reunidos para participar de um grupo de discussão sobre psicologia sexual.19 Cada voluntário foi submetido a uma de três condições: os indivíduos na condição “Leve” sofreram um requisito de iniciação levemente embaraçoso para ingressar no grupo (tiveram que ler algumas palavras sexuais mas não obscenas em voz alta). Os indivíduos na condição “Grave” foram submetidos a um requisito de iniciação gravemente embaraçoso (tiveram que ler palavras obscenas em voz alta, seguidas de passagens pornográficas). Os indivíduos na condição “Controle” não tinham necessidade de iniciação. Todos os sujeitos ouviram uma gravação, supostamente de uma discussão em grupo em andamento. A discussão foi intencionalmente projetada para ser a mais chata e inútil possível. Os sujeitos foram convidados a avaliar o grupo de discussão. Intuitivamente, pode-se esperar que a iniciação embaraçosa tenha deixado aqueles na condição “Grave” com sentimentos negativos, levando a avaliações mais duras do grupo de discussão. De fato, os sujeitos da condição “Grave” tinham opiniões significativamente mais negativas do grupo de discussão do que aqueles na condição “Controle” ou “Leve”.20 Esses e outros estudos mostram que as pessoas tendem a ajustar suas crenças e valores para fazer a si mesmas e suas próprias escolhas parecerem melhores.21 O mesmo aconteceu com os participantes de Milgram. Antes de participar do experimento, quase ninguém consideraria a obediência em um cenário moralmente aceitável. Mas depois, muitos sujeitos obedientes acharam seu comportamento aceitável. Esse princípio psicológico gera um viés a favor do reconhecimento da autoridade política. Quase todos os membros das sociedades modernas se submeteram frequentemente às demandas de seus governos, mesmo quando essas demandas exigiam ações que, de outra forma, estariam fortemente não inclinados em executar. Por exemplo, a maioria já pagou quantias muito grandes ao Estado, satisfazendo suas demandas fiscais. Como explicamos a nós mesmos por que obedecemos? Poderíamos explicar nosso comportamento citando medo de punição, hábito, desejo de conformidade social ou desejo emocional geral de obedecer a quem detém o poder. Mas nenhuma dessas explicações é emocionalmente satisfatória. Muito mais agradável é a explicação de que obedecemos porque somos cidadãos conscientes e atenciosos, e, portanto, fazemos grandes sacrifícios para cumprir nosso dever de servir nossa sociedade.22 Relatos filosóficos de participantes não sabiam disso. 19 Aronson e Mills 1959. 20 As classificações da discussão na condição “Grave” foram 19% mais altas que na condição “Leve” e 22% mais altas que na condição de Controle (Aronson e Mills 1959, 179). 21 Ver Brehm 1956. 22 Pode ser ainda mais gratificante acreditar que a obediência ao Estado é mais supererrogatória do que obrigatória, mas isso pode forçar a credulidade até do ambicioso auto-enganado – a

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autoridade política parecem projetados para reforçar exatamente essa imagem. Uma razão para duvidar dessa visão de nossas razões para obediência é que se espera que indivíduos altamente conscientes e atenciosos doem grandes quantias de dinheiro a organizações de ajuda à fome e outros grupos de caridade (não governamentais). Os argumentos a favor de uma obrigação de doar a instituições de caridade são muito mais convincentes do que os argumentos a favor de obrigações políticas.23 No entanto, para a maioria das pessoas, “sacrifícios” extremamente grandes geralmente são feitos apenas quando são comandados por uma figura de autoridade e esses comandos são apoiados por uma séria ameaça de punição. Pouquíssimas pessoas dão voluntariamente à caridade a quantidade de dinheiro que dão ao Estado. Mas se nosso comportamento é motivado ou não por compaixão e um senso de dever, é provável que geralmente desejamos acreditar que sim. Para acreditar nisso, devemos aceitar uma doutrina básica de obrigação política e devemos aceitar a legitimidade de nosso governo.

6.4

Demonstração social e viés de status quo

“Demonstração social” é uma frase irônica destinada a descrever o efeito persuasivo em um indivíduo das opiniões expressas de um grupo.24 Em um experimento clássico, Solomon Asch reuniu indivíduos para o que eles pensavam ser um teste de acuidade visual.25 Cada participante ficava sentado em uma sala com várias outras pessoas, supostamente outros participantes como ele. Ao grupo foi mostrada uma série de cartões, cada um com uma única linha vertical à esquerda (a “linha padrão”) e três linhas de comparação à direita. A tarefa dos participantes era identificar qual linha de comparação tinha o mesmo comprimento da linha padrão. As pessoas na sala deveriam relatar seus julgamentos visuais em série, em voz alta, enquanto o pesquisador os registrava. De fato, o pesquisador falara com todas as pessoas antes, exceto uma, instruindoas a fornecer respostas idênticas e incorretas para doze das dezoito questões de comparação de linhas. O indivíduo ingênuo não sabia disso e escolheu as respostas relatadas pelos outros para expressar as crenças reais dos outros membros do grupo. O objetivo era observar como o indivíduo ingênuo reagiria ao conflito entre a evidência de seus sentidos e a opinião unânime do grupo. maioria de nós sabe que geralmente não fazemos grandes sacrifícios supererrogatórios. É mais crível que façamos grandes sacrifícios que são moralmente exigidos de nós. 23 Ver Singer 1993, capítulo 8; Unger 1996. 24 Cialdini 1993, capítulo 4. 25 Asch 1956; 1963.

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As comparações de linhas foram escolhidas de modo que, em circunstâncias normais, as pessoas tivessem mais de 99% de confiança na tarefa de comparação. Sob a influência enganosa do grupo, no entanto, a confiabilidade dos indivíduos ingênuos caiu para 63%. Três quartos dos indivíduos ingênuos cederam à pressão do grupo em pelo menos uma das doze perguntas. Em entrevistas pós-experimento, Asch identificou três razões para isso. Alguns sujeitos acreditavam que o grupo estava errado, mas concordaram com o que o grupo dissera por medo de se destacar ou parecer mal na frente dos outros. Esses indivíduos estavam simplesmente mentindo. Muito pouco dos demais indivíduos pareciam ignorar que havia algo errado – até onde os pesquisadores puderam perceber, mesmo depois que os indivíduos foram informados da natureza do experimento, esses indivíduos pensaram que as respostas do grupo pareciam visualmente corretas. No entanto, entre os indivíduos que concordaram com os erros da maioria pelo menos uma parte do tempo, o motivo mais comum foi que pensaram que o grupo devia estar correto e que sua própria percepção visual devia estar de algum modo errada. Isso não é uma coisa irracional de se pensar. É mais provável, em face disso, que a visão de alguém possa de alguma forma estar com problemas do que as outras sete pessoas na sala estarem todas mentindo ou interpretando mal. Nossa preocupação, no entanto, não é com a questão do que alguém deve pensar caso se encontre em uma situação tão bizarra. Meu objetivo ao relatar esse experimento é destacar a forte influência que as crenças e atitudes de outras pessoas ao nosso redor exercem sobre nossas próprias crenças e atitudes. O experimento de Asch fornece uma ilustração particularmente impressionante dessa influência. Mas esse tipo de influência, sem dúvida, já é familiar para o leitor. Intimamente relacionado à demonstração social está o fenômeno da tendência ao status quo. A demonstração social nos convence de que o que os outros acreditam deve ser verdadeiro. O preconceito de status quo nos convence de que o que nossa sociedade pratica deve ser bom. A demonstração mais óbvia e poderosa de ambas as forças é fornecida pelo fenômeno da cultura. Muitas das culturas do mundo incluem crenças e práticas que nos parecem bizarras, absurdas ou horríveis, como a crença de que o ar e a umidade se uniram para criar a terra26 ou a prática de canibalismo ou sacrifício humano. No entanto, os membros dessas sociedades geralmente adotam as crenças de suas culturas e consideram as práticas de suas culturas obviamente corretas. Ao ponto de se dizer: “Bem, as pessoas em outras sociedades devem ser terrivelmente ignorantes”. Os estrangeiros considerariam sem dúvida muitas das crenças e práticas de nossa 26

De um mito egípcio da criação, discutido em Lindberg 1992, 9.

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cultura como bizarras, absurdas ou imorais (em alguns casos, com razão). A conclusão a ser tirada é que os seres humanos têm uma tendência poderosa de ver as crenças de sua própria sociedade como obviamente verdadeiras e as práticas de sua própria sociedade como obviamente corretas e boas – independentemente de quais sejam essas crenças e práticas.27 O que isso nos diz sobre a crença na autoridade política? O governo é uma característica extremamente importante e fundamental da estrutura de nossa sociedade. Sabemos que as pessoas tendem a ter um forte viés em favor dos arranjos existentes em suas próprias sociedades. Portanto, é lógico que, se algum governo é legítimo ou não, a maioria de nós teria uma forte tendência a acreditar que alguns governos são legítimos, especialmente os nossos e outros semelhantes.

6.5

O poder da estética política

Os governos modernos confiam em uma rica coleção de ferramentas não racionais, incluindo símbolos, rituais, histórias e retórica, para induzir nos cidadãos um senso de poder e autoridade do governo.28 Esse senso de autoridade é emocional e estético, e não intelectual, mas pode-se esperar que influencie nossas crenças conscientes através de nossas intuições.

6.5.1

Símbolos

Todo governo nacional do mundo tem uma bandeira. A maioria tem hinos nacionais. Os governos adornam suas moedas com vários símbolos; nos Estados Unidos, por exemplo, a nota de um dólar exibe o retrato de George Washington, o Selo do Departamento do Tesouro e o Grande Selo dos Estados Unidos. Estátuas e monumentos celebram pessoas e eventos importantes na história do país. A quais funções todos esses símbolos servem? Por que não transmitir as informações relevantes de uma maneira puramente intelectual e esteticamente neutra? Em vez do Grande Selo dos Estados Unidos, a nota de um dólar poderia simplesmente conter as palavras: “Isso é dinheiro americano”. Em vez de alçar a bandeira americana, os edifícios do governo podiam exibir uma placa dizendo: “Este é um prédio do governo dos EUA”. No lugar dos monumentos, poderiam ser disponibilizados livros que descrevessem desapaixonadamente os eventos 27 Alguns filósofos elevaram esse viés a uma teoria da razão prática. MacIntyre (1986) e Murphy (1995) afirmam que não é necessária nenhuma razão para seguir as normas da sociedade, mas que sempre é necessária uma razão para se afastar das práticas atualmente aceitas. No entanto, eles não defendem essa suposição, e considero que eles assumem essa posição como uma manifestação de viés de status quo. 28 Ver Wingo (2003) para discussão e defesa estendida desta tese.

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históricos relevantes. Por que essas alternativas seriam menos satisfatórias do que os símbolos realmente usados? A resposta é que os símbolos são usados para criar um senso de identidade nacional através do apelo às emoções do público. Os uniformes são outro tipo de símbolo, usado para adornar os corpos de funcionários do governo. Os policiais usam uniformes com distintivos. Os juízes usam longos mantos pretos. Os soldados usam uniformes com insígnias. Todos esses são símbolos do tipo e grau de autoridade específicos que o agente do governo deve possuir. Não seria suficiente para o agente simplesmente usar uma placa como um crachá, escrito “juiz” ou “policial” ou “capitão”. Esses sinais transmitiriam o conteúdo cognitivo, mas não o conteúdo emocional ou estético do vestuário especial usado atualmente. As vestes de um juiz fazem o espectador se sentir de uma certa maneira – elas geram um sentimento de respeito e um senso de autoridade do usuário. Os psicólogos descobriram que o mero uso de um uniforme, mesmo um uniforme confeccionado sem significado real, aumenta a obediência de outras pessoas aos comandos do usuário.29 A arquitetura também pode ser usada para simbolizar poder e autoridade. A Figura 6.1 mostra o edifício do Capitólio do estado do Colorado, típico dos edifícios de Capitólio nos Estados Unidos. A arquitetura é principalmente de estilo tradicional e clássico, com grossas colunas de pedra na frente. Essas colunas não são necessárias para manter nada; existem para efeitos estéticos e emocionais, provavelmente dando ao edifício uma aparência sólida e tradicional e, portanto, associando o governo à estabilidade e à tradição. Em frente ao prédio há uma estátua de um soldado, lembrando os visitantes daqueles que lutaram em nome do Estado. À esquerda e à direita estão os canhões (não funcionais), simbolizando o poder militar do Estado. O edifício está situado em uma colina, de modo que os visitantes olhem para o prédio quando se aproximam e devem subir um conjunto de escadas para chegar a porta. As portas são muito maiores do que um ser humano e, uma vez dentro, o visitante se confronta com abóbadas três ou quatro vezes maiores do que o ser humano típico. Existem muitos prédios em Denver muito maiores do que o edifício do Capitólio, mas talvez nenhum seja tão bemsucedido em fazer o visitante se sentir pequeno. Tudo isso enfatiza o poder do Estado e cria uma disposição para a submissão respeitosa por parte do visitante. A Figura 6.2 mostra o interior de outro prédio interessante do governo, um tribunal. O juiz é colocado, na frente e no centro, em uma plataforma, permitindolhe literalmente desprezar todos os outros ocupantes da sala. Esta não é a única maneira concebível de organizar uma sala de tribunal – por exemplo, o banco de testemunhas poderia ter sido colocado no centro, de modo que toda a atenção 29

Bushman 1988. O experimento envolvia uma mulher dizer às pessoas na rua para dar um níquel a um motorista de um parquímetro. Os sujeitos eram mais propensos a obedecer quando a mulher usava um uniforme ambíguo do que quando vestia roupas comuns (72% vs. 50% de concordância, p = 0,01).

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Figura 6.1: O edifício do Capitólio do estado do Colorado

estivesse concentrada nas testemunhas. Ou o juiz, o promotor, o réu e o júri poderiam estar todos sentados em círculo. Mas esses arranjos alternativos não criariam o sentido desejado do poder e autoridade do juiz.

6.5.2

Rituais

Em muitas sociedades, rituais especiais são necessários quando um novo líder acede ao poder. Quando o poder é passado para um novo presidente dos EUA, uma cerimônia pública de posse é realizada. A cerimônia envolve uma série específica e estilizada de poses e palavras. O novo presidente coloca a mão esquerda na Bíblia, sugerindo a supervisão divina dos procedimentos, e levanta a mão direita com o braço dobrado no cotovelo. Ele então repete as palavras exatas do juiz, geralmente o juiz supremo da Suprema Corte, administrando o juramento: “Eu, [nome completo do presidente eleito], juro solenemente que executarei fielmente o ofício de Presidente da República dos Estados Unidos, e da melhor maneira possível, preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos.” Imediatamente após o juramento, o Chefe de Justiça se dirige ao

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Figura 6.2: Um tribunal de Colorado

novo presidente como “Sr. Presidente”. O juramento é seguido por um discurso e um desfile. A qual função esse ritual serve? Aparentemente, a função é garantir que o novo presidente sirva fielmente e preserve a Constituição. Mas este é um método muito fraco para tentar garantir esse comportamento. Se um presidente tem em mente servir “infielmente” ou violar a Constituição, é improvável que sua memória de ter prometido não fazer isso seja a força que o mantém íntegro. A cerimônia de posse é principalmente para efeito emocional. É como um feitiço que confere poder e autoridade ao novo presidente, de modo que, assim que ele completa as palavras do juramento, a pessoa é convertida em presidente. Se um governo deve garantir a aparência de autoridade, seus membros devem estar separados e acima das das pessoas comuns. Eles não devem ser vistos simplesmente como pessoas comuns que de alguma maneira conseguiram convencer as pessoas armadas a forçar todos os demais a obedecê-las. Rituais como a cerimônia de posse ajudam a pendurar o véu necessário sobre as elites. A forma exata dos rituais não importa; o que importa é que haja alguns rituais reconhecíveis relacionados ao exercício do poder. Nas sociedades primitivas, acredita-se que esses rituais usem o poder mágico. Entre os espectadores modernos, os rituais

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têm efeito em um nível emocional e semiconsciente. Outro contexto repleto de símbolos e rituais é o tribunal. Os ocupantes devem permanecer de pé quando o juiz entra na sala, reconhecendo simbolicamente a autoridade superior do juiz. Juramentos solenes são administrados a jurados e testemunhas, geralmente incluindo as palavras “que Deus me ajude”, invocando a supervisão divina dos procedimentos. Testemunhas sentam-se em um local especial ao lado do juiz, apelidada de “banco das testemunhas”. Em vez de ser chamado pelo nome, o juiz é referido como “vossa excelência” ou “meritíssimo”, os advogados como “conselheiro” e o acusado como “o réu”. Muitas outras deferências são usadas em vez da linguagem cotidiana. Um conjunto complexo de regras deve ser seguido em relação a quem pode falar a qualquer momento e o que eles podem falar sobre. Tudo prossegue em uma ordem específica e préordenada. Nada disso é exigido pelos requisitos utilitários de um procedimento destinado a decidir se e como punir alguém. Sua função é ritualizar todo o processo. Outros rituais são seguidos quando o júri retorna, o veredito é lido e o juiz condena o acusado. A cerimônia termina com o golpe de martelo do juiz. Por que os tribunais são tão ritualísticos? Talvez porque seja aqui que o Estado esteja mais preocupado em retratar sua coerção como justiça. É aqui que os agentes do Estado confrontam mais diretamente aqueles que desobedeceram ao Estado e aqui que esses agentes ordenam diretamente que danos severos sejam infligidos a indivíduos específicos como punição por desobediência. O processo não deve ser visto apenas como um grupo de pessoas que decidiram machucar outra pessoa porque não gostaram de algo que ela fez. Os rituais criam um senso de autoridade do juiz e de todo o processo como algo profundo, sofisticado e digno de respeito – e algo governado por regras que vão além dos meros desejos dos seres humanos reais que executam o processo.

6.5.3

Linguagem de autoridade

Um aspecto subestimado da estética política é a linguagem peculiar usada pelas figuras de autoridade. Considere o seguinte parágrafo de uma lei dos Estados Unidos: Se dois ou mais membros da mesma família adquirirem participação em qualquer propriedade descrita no parágrafo (1) na mesma transação (ou em uma série de transações relacionadas), a pessoa (ou pessoas) que adquirir o termo de interesse em tal propriedade será tratada como tendo adquirido a propriedade inteira e depois transferida para as outras pessoas os interesses adquiridos por essas outras pessoas na transação (ou série de transações). Essa transferência será tratada como feita em troca da contraprestação (se houver) fornecida

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por essas outras pessoas para a aquisição de seus interesses em tais propriedades.30 É certo que isso é retirado de uma parte da lei com uma reputação específica de incompreensibilidade, o Internal Revenue Code. Aqui está uma lei mais compreensível: Nenhuma pessoa deve colocar, usar, manter, armazenar ou manter móveis estofados não fabricados para uso ao ar livre, incluindo, sem limitação, cadeiras estofadas, sofás estofados e colchões, em qualquer área externa localizada nos seguintes locais: 1. em qualquer jardim da frente; 2. em qualquer pátio lateral; 3. Em qualquer pátio traseiro ou outro pátio adjacente a uma rua pública. No entanto, um beco não deve ser considerado uma “rua pública” para os fins desta subseção; ou 4. Em qualquer pórtico coberto ou descoberto localizado em ou próximo a qualquer um dos pátios descritos nos parágrafos (1) a (3) acima.31 A redação de advogados, juízes e legisladores é tão distinta que é muitas vezes referida como “juridiquês”, como se fosse uma linguagem própria. Esse idioma tem um tom distinto que é altamente formal, imparcial e técnico. As frases geralmente são longas e abstratas, com várias cláusulas. No exemplo do Internal Revenue Code acima, a primeira frase tem 69 palavras (para comparação, a frase média deste livro contém 21 palavras). Há referências cruzadas frequentes a outras leis. Muitas vezes, existem disjunções e conjunções longas e aparentemente redundantes, como “varanda coberta ou descoberta” e “local, lugar, armazenamento ou manutenção”. O jargão técnico aparece com frequência, como “causa provável”, “devido processo” e “termo de interesse”. Às vezes, palavras comuns são usadas em sentidos técnicos, como “consideração” e “descoberta”. Os usos arcaicos são preservados, como no uso de “tal” em “tal transferência” ou em termos como “supracitado” e “outrossim”. O vocabulário técnico frequentemente se baseia no latim ou em outras línguas estrangeiras, como nos termos mens rea, certiorari e en banc. Qual é o efeito dessa maneira peculiar de falar e escrever? Primeiro e mais obviamente, que leis e documentos legais são frequentemente incompreensíveis 30

U.S.C., título 26, seção 2702. Não tenho ideia do significado do parágrafo. Código Revisado de Boulder, 5–4–16. Essa ordem foi aprovada em resposta à tradição de Boulder de incendiar sofás após grandes eventos, como jogos de futebol. 31

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para as pessoas comuns – é preciso contratar um profissional treinado para interpretá-las. Nossa incapacidade de entender a lei pode nos deixar relutantes em questioná-la, enquanto a própria incompreensibilidade da lei confere um ar de sofisticação e superioridade à lei e aos legisladores. As pessoas tendem a sentir respeito pelas coisas que não conseguem entender, bem como pelas pessoas que lidam com essas coisas. Esse tipo de respeito é importante se alguém estiver tentando convencer os outros a aderirem ao seu domínio. Outro efeito da linguagem jurídica é distanciar emocionalmente o autor, tanto do assunto quanto do público. O autor pode querer se distanciar da platéia para manter um senso de superioridade. O autor também pode querer se distanciar emocionalmente de seu conteúdo, porque o conteúdo em questão, por escrito, envolve comandos emitidos por agentes do Estado para outros seres humanos, apoiados por ameaças de violência contra aqueles que desobedecem. Normalmente, ordenar que o dano seja imposto pela força a outras pessoas seria uma ocupação estressante (se as vítimas merecem ou não ser prejudicadas). A linguagem abstrata e técnica ajuda o público e o autor a esquecerem que isso é o que está acontecendo e drena o impacto emocional da emissão de ameaças coercitivas contra outras pessoas. Linguagem semelhante é frequentemente usada por teóricos engajados na elaboração de recomendações e justificativas para o exercício do poder. Os filósofos políticos contemporâneos mais respeitados costumam empregar uma linguagem que lembra o juridiquês. Considere uma passagem representativa do mais célebre pensador político dos últimos tempos, John Rawls: Gostaria agora de comentar a segunda parte do segundo princípio, doravante entendida como o princípio liberal da justa igualdade de oportunidades. Não deve então ser confundido com a noção de carreiras abertas a talentos; nem se deve esquecer que, uma vez que está ligado ao princípio da diferença, suas consequências são bem distintas da interpretação liberal dos dois princípios tomados em conjunto. Em particular, tentarei mostrar mais adiante (§17) que esse princípio não está sujeito à objeção de que isso leva a uma sociedade meritocrática. Aqui, eu gostaria de considerar alguns outros pontos, especialmente sua relação com a ideia de justiça processual pura.32 O tom desse tipo de trabalho filosófico é formal e sem emoção. A prosa é preenchida com termos técnicos que soam solenes, como “justiça processual pura”, “o princípio liberal da justa igualdade de oportunidades” e assim por diante. Muita atenção é dada aos procedimentos descritos abstratamente e às conexões e distinções entre os princípios abstratos. No caso de Rawls, existem 32

Rawls 1999, seção 14, 73.

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referências cruzadas frequentes, como na referência acima à seção 17. Alguns vocabulários são levemente arcaicos, como no uso acima de “doravante”. Palavras extras são empregadas para que uma declaração possa ser feita de maneira mais fraca ou direta, como no uso acima de “gostaria de comentar [. . . ]”. Toda a citação acima serve como um pigarro literário, uma preparação para discutir o que o autor realmente quer discutir. Tudo isso tem o efeito de esgotar a discussão de importância emocional – ou mais precisamente, de direcionar a mente do leitor para sentimentos mais ordenados e rastreáveis. Não afirmo que Rawls ou outros filósofos tenham conscientemente procurado alcançar esses efeitos com seus escritos. O que afirmo é que certos estilos de escrita, exemplificados por documentos legais típicos, bem como por alguns trabalhos filosóficos, têm o efeito de suavizar obstáculos emocionais à aceitação da autoridade do Estado e de incentivar atitudes de respeito e submissão a instituições convencionais de poder. Eles servem para disfarçar a discussão sobre quem deve ser submetido à violência com roupas sombrias e civilizadas.

6.6 6.6.1

Síndrome de Estocolmo e o carisma do poder O fenômeno da Síndrome de Estocolmo

A Síndrome de Estocolmo recebeu o nome de um incidente ocorrido em Estocolmo, na Suécia, em 1973. Um par de ladrões de banco manteve quatro funcionários como reféns por seis dias. Durante a provação, os reféns se uniram emocionalmente com seus captores, ficaram do lado dos sequestradores contra a polícia e aparentemente não queriam ser resgatados. A certa altura, um refém disse que os ladrões os estavam protegendo da polícia. No último dia, quando a polícia usou gás lacrimogêneo para forçar todo mundo a sair do banco, os reféns se recusaram a sair sem os sequestradores, temendo que, se saíssem, a polícia mataria os sequestradores. Depois que o incidente terminou, as vítimas continuaram a simpatizar e defender os criminosos.33 Desde então, o termo “Síndrome de Estocolmo” tem sido usado para descrever o vínculo emocional que as vítimas às vezes formam com sequestradores.34 O termo também é frequentemente estendido a uma classe mais ampla de casos em que uma pessoa ou grupo está sujeito ao controle de outra. Um caso mais extremo foi o de Patricia Hearst, sequestrada em 1974 por um grupo terrorista de esquerda na Califórnia que se autodenominava Symbionese Liberation Army. Durante dois meses, Hearst foi mantida presa em um armário e 33

Graham, Rawlings e Rigsby 1994, 1-11; Lang 1974. Sigo o uso popular da expressão “Síndrome de Estocolmo”. Meu uso da palavra síndrome, no entanto, não pretende transmitir que o fenômeno é um distúrbio ou doença. 34

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sofrido abuso físico e sexual. Ela então se juntou ao grupo e os ajudou voluntariamente a cometer crimes, incluindo um assalto a banco. Ela não tentou escapar quando se deparou com a oportunidade. Após sua eventual captura pela polícia, Hearst alegou ter sofrido uma lavagem cerebral pelo SLA.35 Um caso mais recente é o de Jaycee Lee Dugard, sequestrado aos onze anos de idade pelo ex-presidiário Phillip Garrido. Garrido a estuprou e a manteve cativa em um galpão em seu quintal. A polícia finalmente encontrou Jaycee em 2009, dezoito anos após o sequestro. Ela viveu com Garrido todos esses anos e agora tinha duas filhas geradas por ele. Durante esse período, Dugard havia ajudado Garrido em seus negócios em casa, classificando pedidos por telefone e e-mail. Ela conheceu clientes sozinha na porta. Ela até saiu em público. Em resumo, Jaycee Dugard teve inúmeras oportunidades ao longo dos anos para escapar ou procurar ajuda externa, mas nunca o fez.36 Garrido estava tão seguro em seu relacionamento com Dugard que trouxe ela e suas filhas para uma reunião com seu oficial de liberdade condicional. Naquela reunião, Dugard disse ao oficial que Garrido era uma ótima pessoa, e tentou protegê-lo ocultando sua própria identidade.37 Vários casos semelhantes ocorreram ao longo dos anos. É comum dizer que existem quatro precursores para o desenvolvimento da Síndrome de Estocolmo: primeiro, o sequestrador representa uma ameaça crível à vida da vítima em cativeiro. Segundo, a vítima percebe alguma forma de bondade por parte do sequestrador. No entanto, essa “gentileza” pode consistir apenas em uma relativa falta de abuso ou falha em matar a vítima. Em um ponto durante a crise dos reféns em Estocolmo, um dos assaltantes do banco estava planejando atirar na perna de um refém para fazer a polícia levar suas demandas mais a sério (o tiroteio nunca ocorreu). Na época, o refém que levaria o tiro pensava que o ladrão era bom por planejar apenas em dar um tiro na perna dele e não matá-lo.38 Terceiro, a vítima está isolada do mundo exterior e sujeita apenas à perspectiva do sequestrador. Quarto, a vítima se vê incapaz de escapar. Sob essas condições, os reféns são propensos a uma variedade de reações que as pessoas de fora acham paradoxal, incluindo • Proximidade emocional com os sequestradores; • Sentimentos de lealdade para com os sequestradores, que podem continuar muito depois das vítimas serem libertadas; 35

Brook 2007. Fitzpatrick 2009. 37 Shaw 2009, pp. 5-6. O oficial de condicional, encontrando inconsistências em suas histórias, separou Garrido e Dugard e continuou interrogando-os para descobrir quem ela era. Eventualmente, Garrido admitiu ter sequestrado Dugard, após isso Dugard revelou sua identidade. 38 Graham 1994, p. 5. 36

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• Adoção de atitudes e crenças dos sequestradores; • A percepção dos sequestradores como protetores e das forças externas tentando conquistar a libertação dos reféns como uma ameaça; • Falha em tirar proveito das oportunidades de fuga; • Gratidão em relação aos sequestradores por pequenas gentilezas e por falta de abuso. Os reféns muitas vezes sentem que devem suas vidas a eles; • Tendência de negar ou racionalizar os atos de violência dos sequestradores; • Sensibilidade extrema às necessidades e desejos do sequestrador.39 Alguns sugerem que as vítimas voltam ao estado infantil, com o sequestrador servindo como uma figura paterna.40

6.6.2

Por que a Síndrome de Estocolmo ocorre?

Há pouco estudo acadêmico sobre o fenômeno, em parte porque os psicólogos não podem recriá-lo em laboratório, e as considerações teóricas são especulativas. Mas uma consideração plausível atribui a síndrome a um mecanismo defensivo inconsciente. Quando alguém está completamente sob o poder de uma pessoa perigosa, a sobrevivência de alguém pode depender do desenvolvimento de características agradáveis ao sequestrador. Isso inclui uma dependência submissa, bem como sentimentos de simpatia e afeição pelo sequestrador. As vítimas não escolhem conscientemente adotar essas características, nem pretendem adotá-las. Simplesmente se veem tendo essas emoções e atitudes.41 Se esse é um mecanismo de sobrevivência, há evidências de que isso é eficaz: após sua captura, um dos assaltantes de Estocolmo relatou que ele se sentia incapaz de matar qualquer um dos reféns devido ao vínculo emocional que se formou com eles.42 Por esse motivo, o FBI incentiva deliberadamente o desenvolvimento da Síndrome de Estocolmo em situações de reféns.43 A existência de um mecanismo defensivo desse tipo pode ser explicada em termos evolutivos: durante a história das espécies era comum uma pessoa ou grupo ter um grande poder sobre os outros. Aqueles que desagradaram a pessoa ou grupo poderoso provavelmente eram mortos ou prejudicados. Aqueles que 39

Graham 1994, 13, 42-3. de Fabrique et al. 2007; Namnyak et al. 2008. A vítima normalmente não consegue escapar no início, mas geralmente tem oportunidades de escapar após o desenvolvimento da síndrome. 41 de Fabrique et al. 2007; Mattiuzzi 2007. 42 Lang, 1973, p. 126. 43 de Fabrique et al. 2007. 40

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agradaram aos poderosos eram mais propensos a sobreviver e prosperar com o favor dessas pessoas poderosas. É plausível supor que características semelhantes à Síndrome de Estocolmo sejam agradáveis para pessoas poderosas. Portanto, a evolução pode ter selecionado uma tendência a desenvolver tais características em circunstâncias apropriadas.

6.6.3

Quando ocorre a Síndrome de Estocolmo?

Podemos explicar em termos da teoria acima as condições sob as quais a Síndrome de Estocolmo é mais provável de se desenvolver. Essas condições incluem o seguinte:44 i O agressor representa uma ameaça séria e crível para a vítima. É essa situação que torna necessário algum mecanismo defensivo. A Síndrome de Estocolmo envolve mudanças extremas nas atitudes da vítima, que têm sérios custos potenciais (por exemplo, a vítima pode acabar participando dos planos terroristas do agressor). Portanto, devemos esperar que essas mudanças ocorram apenas quando houver uma ameaça séria.45 ii A vítima se percebe incapaz de escapar. Vítimas que poderiam escapar prefeririam essa opção ao vínculo com o agressor. iii A vítima é incapaz de dominar o agressor ou de se defender efetivamente contra o agressor. Se alguém tiver a opção de neutralizar o poder do agressor, isso seria claramente preferível ao vínculo com o agressor. iv A vítima percebe alguma gentileza do agressor, mesmo que somente na forma de falta de abuso. É essa circunstância que torna provável que uma estratégia de vínculo com o agressor seja bem-sucedida. Os agressores que são puramente abusivos provavelmente não serão vencidos se a vítima desenvolver um gosto por eles. v A vítima está isolada do mundo exterior. Quando uma pessoa ou grupo de pessoas é mantido em cativeiro por um agressor, pessoas de fora, que não têm motivos para desenvolver a Síndrome de Estocolmo, normalmente veem o agressor sob uma luz extremamente negativa. Em qualquer comunicação 44

Os itens (i), (ii), (iv) e (v) são de Graham et al. 1994, pp. 33-7; cf. de Fabrique et al. 2007; Namnyak et al. 2008, 5. Acrescentei o item (iii), que, embora não tenha sido identificado como uma condição distinta por Graham e outros, está claramente presente e é importante nos casos clássicos da Síndrome de Estocolmo. 45 Freud (1937, capítulo 9) postula que quando um indivíduo teme a dor nas mãos de outro, ele pode lidar com a ansiedade identificando-se psicologicamente com a pessoa que representa a ameaça. Ele descreve isso como “identificação com o agressor”.

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com as vítimas, é provável que pessoas de fora expressem sentimentos e pensamentos negativos sobre o agressor. Portanto, é mais provável que a Síndrome de Estocolmo se desenvolva quando esse tipo de influência contrária está ausente. Embora o termo “Síndrome de Estocolmo” tenha surgido no contexto de situações que envolvam sequestros, as condições acima podem ser obtidas em vários casos. Em qualquer situação em que essas condições sejam obtidas, podemos esperar encontrar um fenômeno semelhante envolvendo a identificação da vítima com o agressor. Quanto mais clara e integralmente as condições forem satisfeitas, maior a probabilidade dessa identificação. Consequentemente, sintomas semelhantes à Síndrome de Estocolmo foram observados em uma variedade de grupos, incluindo prisioneiros de campos de concentração, membros de cultos, civis em prisões comunistas chinesas, prostitutas contratadas por cafetões, vítimas de incesto, mulheres agredidas, prisioneiros de guerra e vítimas de abuso infantil.46

6.6.4

Os cidadãos comuns são propensos à Síndrome de Estocolmo?

Os cidadãos de governos bem estabelecidos são suscetíveis à Síndrome de Estocolmo? Considere as cinco condições acima: i O agressor representa uma ameaça séria e crível para a vítima. Todos os governos modernos controlam suas populações através de ameaças de violência. Em alguns casos, sua capacidade de violência é surpreendente. O governo dos EUA, por exemplo, pode possuir armas suficientes para matar todos no mundo. Em uma escala menor, os governos dispõem de um aparato para prender indivíduos por longos períodos de tempo e implantam esse aparato regularmente. Para aqueles que resistem à captura, os governos têm ferramentas impressionantes de força física, incluindo força letal. ii A vítima se percebe incapaz de escapar. Fugir do próprio governo tende a ser difícil e dispendioso, geralmente exigindo o abandono da família e dos amigos, do trabalho e da sociedade inteira. Mesmo aqueles dispostos a assumir tais custos geralmente apenas estarão sujeitos a outro governo. Fugir do governo em geral é praticamente impossível. iii A vítima é incapaz de dominar o agressor ou de se defender efetivamente contra o agressor. É praticamente impossível para qualquer indivíduo se defender 46

Graham et al. 1994, 31; Graham et al. 1995; Julich 2005.

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efetivamente contra a maioria dos governos modernos, imagine então dominálos. iv A vítima percebe alguma gentileza do agressor, mesmo que apenas na forma de falta de abuso. A maioria dos cidadãos considera seu governo benéfico à luz dos serviços sociais que ele fornece. Alguns também acham que seu governo é bom porque não abusam de seu poder tanto quanto a maioria dos outros governos ao longo da história. v A vítima está isolada do mundo exterior. No caso de cidadãos de um Estado-nação moderno, talvez o “mundo exterior” seja composto por países estrangeiros. A maioria das pessoas, particularmente nas democracias liberais avançadas, tem acesso às perspectivas do mundo exterior nesse sentido, se optar por consultar essas perspectivas. Há, no entanto, pelo menos duas razões pelas quais esse fato pode falhar em impedir o desenvolvimento da Síndrome de Estocolmo. Primeiro, nosso uso real dessas perspectivas externas é limitado. A maioria das pessoas obtém a grande maioria de suas informações de fontes de seu próprio país. Segundo, as fontes externas estão todas em uma situação semelhante. É como se os reféns tivessem acesso apenas às “perspectivas externas” de reféns e sequestradores em outros lugares. Em tal situação, não está claro que o acesso a essas perspectivas atrasaria o desenvolvimento da Síndrome de Estocolmo. Os precursores gerais para o desenvolvimento da Síndrome de Estocolmo, portanto, estão razoavelmente bem satisfeitos no caso dos cidadãos dos Estados modernos. Portanto, não é surpreendente descobrir que os cidadãos tendem a se identificar com seus governos, adotar as perspectivas de seus governos e desenvolver vínculos emocionais (geralmente considerado “patriotismo”) com seus governos.47 Assim como as vítimas da Síndrome de Estocolmo tendem a negar ou minimizar os atos de coerção de seus sequestradores, muitos cidadãos tendem a negar ou minimizar a coerção de seu governo. Quase todos os teóricos que consideram a questão concordam que o governo é uma instituição coercitiva,48 mas as discussões sobre questões políticas raramente abordam a justificativa do uso da força para impor várias políticas. Não é que falhemos em geral em atribuir significado moral à coerção; se as decisões de algum agente não-governamental estiver em discussão, então a questão da justificativa para 47

Uma manifestação interessante dessa identificação com o governo é o uso por cidadãos particulares da palavra ‘nós’ para nos referir ao governo, como em “Nós invadimos o Iraque em 2003”, o que pode ser dito por um americano, mesmo que o falante não tenha pessoalmente feito nada para provocar a invasão ou se opôs ativamente a ela. Como a palavra que normalmente inclui o falante, isso sugere uma forte identificação com o Estado. 48 Edmundson (1998, cap. 4) é uma exceção rara.

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a violência ocuparia o centro do palco. Mas a realidade ou o significado moral da coerção desaparecem de vista quando o agente envolvido é o Estado. As atitudes deferentes podem se estender à aceitação total da imagem do próprio Estado como tendo um direito único de coagir a obediência e como capaz de criar obrigações morais simplesmente emitindo comandos. Devido à dinâmica da Síndrome de Estocolmo, o poder tem uma tendência de legitimação: uma vez que se torna suficientemente entrincheirado, o poder é percebido como autoridade. Aqueles que aceitam a legitimidade do governo podem achar difícil acreditar que estejam sob a influência de algo como a Síndrome de Estocolmo, uma vez que esse conceito é normalmente aplicado a situações nas quais o papel do agressor é geralmente socialmente condenado – sequestradores, assaltantes de bancos, cônjuges violentos e assim por diante. Todos esses tipos de agressão são ruins, e a maioria das pessoas vê seus governos como bons; portanto, o conceito de Síndrome de Estocolmo não se aplica aos nossos sentimentos sobre o governo ou se aplica? Obviamente, essa reação poderia ser um produto da síndrome. Felizmente, não precisamos primeiro decidir se o governo é bom ou sua coerção justificada para decidir se o conceito de Síndrome de Estocolmo se aplica. Os precursores para o desenvolvimento da síndrome identificados na Seção 6.6.3, bem como as manifestações da síndrome descritas na Seção 6.6.1, são condições factuais e não morais. A maldade do agressor ou a injustificabilidade de sua coerção não estão entre elas. E os cidadãos dos Estados modernos, de fato, tendem a satisfazer essas condições descritivas. Podemos ver isso independentemente do governo ser ou não justificado.

6.7 6.7.1

Estudos de caso sobre abuso de poder My Lai revisitado

Lembre-se do caso do massacre em My Lai. A maioria dos soldados que receberam ordens de matar civis obedeceu. Alguns se recusaram a participar do massacre, sem fazer nada para impedir que outros o fizessem. Segundo um relatório, havia muito mais soldados que simplesmente evitavam a área onde o massacre estava ocorrendo, possivelmente para evitar serem solicitados a participar.49 Assim, a grande maioria das pessoas que estavam cientes do massacre, participando ou não, não fez nada para detê-lo. A exceção foi uma corajosa equipe de helicópteros, que salvou um pequeno número de moradores de serem mortos, levando-os em segurança. Todo mundo na vila foi morto. 49

Thompson n.d., 19-20. Outros detalhes do caso são de Thompson (n.d.) e Kelman e Hamilton (1989, 1-17).

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Agora considere a reação dos funcionários do governo dos EUA e de outros americanos. Depois disso, o governo dos EUA tentou encobrir o massacre e proteger os soldados responsáveis por ele. Somente depois que a história foi divulgada à imprensa, o governo passou a processar os criminosos de guerra. No final, uma única pessoa foi condenada e sentenciada pelo massacre, tenente William Calley, que passou três anos em prisão domiciliar. Hugh Thompson, o heroico piloto de helicóptero que salvou alguns civis, foi inicialmente tratado como um criminoso. Thompson havia pousado seu helicóptero entre um grupo de civis e um grupo de tropas americanas que estavam avançando para matálos. Ele disse a seus dois colegas de equipe que atirassem nos soldados se eles abrissem fogo contra os civis enquanto estava tentando salvá-los. Felizmente, ninguém abriu fogo e Thompson foi capaz de salvar dez civis. Nos Estados Unidos, no entanto, muitos consideraram Thompson um traidor. Ele recebeu ameaças de morte e animais mutilados à sua porta. Um congressista afirmou que Thompson era a única pessoa em toda a história que deveria ir para a cadeia.50 Uma lição da história é que mesmo aqueles que não participam ativamente de abusos de poder são frequentemente cúmplices deles. Quando membros de uma organização abusam de seu poder, outros membros geralmente olham para o outro lado. Quando é dada a chance, os funcionários costumam encobrir ou desculpar abusos. Aqueles raros indivíduos com a coragem de intervir para impedir abusos, em vez de serem aclamados como os heróis que são, serão mais frequentemente criticados como traidores. Todos nós estamos cientes das atrocidades cometidas por regimes como a Alemanha nazista, a União Soviética e a China comunista. É muito fácil, ao pensar em tais casos, reagir felicitando-nos por não pertencer a nenhum regime bárbaro e tirânico. Casos como My Lai nos lembram que não são apenas as ditaduras que cometem atrocidades. Os países avançados e democráticos também cometem atrocidades, embora com menor frequência e em menor escala, fato que nos deixa com pouco terreno para a autocongratulação. Ao focar neste exemplo, não quero deixar aos leitores a impressão de que foi um incidente isolado. Quando lemos sobre flagrante abusos de poder, também costumamos ler sobre os encobrimentos oficiais. Mas os únicos casos que lemos são aqueles em que os encobrimentos falharam. Presumivelmente, nem todos os encobrimentos falham. Às vezes, as autoridades devem conseguir esconder seus erros. Frequentemente não sabemos. Thompson relata que, após sua experiência em My Lai, outros soldados disseram a ele: “Oh, essas coisas aconteciam o tempo todo”.51 Há, portanto, razões para suspeitar que ocorreram muitos mais 50

Thompson n.d., 12, 27–8. Trinta anos depois, Thompson foi homenageado com a Medalha do Soldado e convidado a falar em West Point, Annapolis e Quantico. 51 Thompson n.d., 11.

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massacres que não resultaram em notícia.

6.7.2

O Experimento Prisional de Stanford (EPS)

Em 1971, o psicólogo social Phillip Zimbardo conduziu um estudo iluminador dos efeitos da prisão em guardas e prisioneiros.52 Zimbardo reuniu 21 voluntários, todos estudantes do sexo masculino, para desempenhar o papel de prisioneiros ou guardas em uma prisão simulada. No início, todos os voluntários queriam desempenhar o papel de prisioneiro; ninguém queria ser guarda. Zimbardo designou aleatoriamente metade dos sujeitos como prisioneiros e metade como guardas. Os presos viveriam em celas improvisadas por duas semanas no campus da Universidade de Stanford. Os guardas vigiavam os prisioneiros em turnos de oito horas, com cada guarda livre para sair quando o turno terminava a cada dia. Os pesquisadores forneceram orientações mínimas sobre o tratamento dos presos, além de instruções sobre o fornecimento de alimentos e a prevenção da violência física. O que os pesquisadores observaram foi um padrão crescente de abuso por parte dos guardas, que começou quase que imediatamente e piorava a cada dia. Os prisioneiros foram submetidos a abusos verbais implacáveis (“Você é um bastardo hipócrita e piedoso que quero vomitar” e assim por diante); obrigados a executar tarefas tediosas, inúteis e degradantes ad nauseam (como fazer flexões com outros prisioneiros sentados de costas, limpar o banheiro com as mãos e assim por diante); eram exigidos a insultar verbalmente a si mesmos e aos outros; privados de sono; confinados por horas em um armário com cerca de um metro quadrado de espaço; e finalmente obrigados a realizarem sodomia simulada. Nem todos os guardas aprovaram ou participaram do abuso. Mas os guardas abusivos assumiram posições de domínio de fato entre os guardas, que ninguém desafiou. Os “bons guardas” concordaram tacitamente com o comportamento dos guardas mais agressivos, sem fazer nem dizer nada contra eles. A provação foi tão estressante e deprimente para os prisioneiros que cinco tiveram que ser libertados mais cedo, e no sexto dia, os pesquisadores acharam eticamente necessário encerrar o experimento.

6.7.3

Lições do EPS

Abusos muito piores ocorrem em prisões reais, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração e afins. O experimento de Stanford difere das prisões do mundo real de várias maneiras interessantes. Primeiro, todos os participantes sabiam estar apenas participando de um experimento psicológico, que pensavam 52

Zimbardo et al. 1973; Zimbardo 2007.

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que terminaria em duas semanas, após isso retornariam às suas vidas normais. Segundo, os prisioneiros foram selecionados aleatoriamente, e os guardas e os prisioneiros sabiam que não haviam feito nada de errado. Os prisioneiros não poderiam ser seriamente considerados criminosos ou inimigos em nenhum sentido significativo. Terceiro, os prisioneiros e guardas haviam sido rastreados antes. Os pesquisadores fizeram questionários e entrevistas pessoais a um grupo inicial de 75 voluntários, a fim de selecionar apenas os participantes mais normais e psicologicamente estáveis. Além disso, com base em testes psicológicos, parecia não haver diferenças significativas na personalidade entre os guardas e os prisioneiros. Pode-se esperar que qualquer uma dessas condições isole a prisão simulada contra o tipo de abuso frequentemente visto em prisões reais. (É certo que os abusos em Stanford parecem leves em comparação aos observados em Abu Ghraib ou nos gulags soviéticos; então, novamente, a trajetória de crescente abuso foi interrompida em apenas cinco dias.) Alguém poderia pensar que o contexto de um período relativamente curto de experimentos psicológicos de longo prazo seriam insuficientes para quebrar os padrões normais de decência e respeito pelos outros. Pode-se suspeitar que o abuso de prisioneiros ocorra porque se acredita que eles sejam criminosos ou inimigos, de modo que o abuso seja considerado justificado. Ou pode-se pensar que o abuso de prisioneiros ocorre porque indivíduos com predisposições sádicas são mais propensos a se tornarem guardas ou porque os prisioneiros tendem a ser extraordinariamente agressivos e, assim, atraem respostas agressivas por parte dos guardas. O Experimento Prisional de Stanford é de particular interesse, pois coloca hipóteses como essas à prova. Como se vê, nenhuma dessas coisas foi o caso. Havia algo no papel de guarda que trouxe à tona o pior das pessoas. A conclusão central de Zimbardo, a partir deste estudo e de muitas outras evidências, é que os determinantes do comportamento bom ou mau estão mais nas situações em que os indivíduos são colocados do que nas intrínsecas circunstâncias desses indivíduos.53 As circunstâncias de um indivíduo podem ter efeitos corruptos dramáticos ou edificantes. Qual foi o papel de ser guarda que ressaltou o lado sombrio dos participantes? Lorde Acton, creio, tinha o mote sobre isso: o poder corrompe.54 Isso tem sido aparente na história; agora também temos evidências experimentais. Quando alguns seres humanos recebem grande poder sobre a vida de outros, frequentemente descobrem que o senso de poder é intoxicante. Eles querem exercer seu 53

Ver Zimbardo 2007, esp. 210–21, sobre os fatores situacionais no Experimento Prisional de Stanford. Ver os capítulos 12–16 para evidências e argumentos além do estudo do experimento. 54 Acton 1972, 335 (de uma carta a Mandell Creighton de 5 de abril de 1887): “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente. Os grandes homens quase sempre são maus, mesmo quando exercem influência e não autoridade: ainda mais quando você acrescenta a tendência ou a certeza da corrupção pela autoridade.”

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poder com mais frequência e mais profundidade, e não querem desistir dele. Quando o Experimento Prisional de Stanford terminou prematuramente, todos os prisioneiros ficaram aliviados. A maioria dos guardas, no entanto, parecia decepcionada. Estavam gostando de atormentar os prisioneiros. Como Zimbardo relata, nenhum dos guardas chegou atrasado para um turno e, em várias ocasiões, ficou até tarde, sem serem solicitados e sem remuneração extra.55 Nem todo mundo é visivelmente corrompido pelo exercício do poder. Mas sempre existem alguns que são e, como sugere o experimento, mesmo os menos corrompidos normalmente não fazem nada para conter os excessos dos mais corrompidos. Mas por que infligir sofrimento e humilhação aos prisioneiros – não era possível experimentar o poder com gestos benevolentes? George Orwell teve um insight importante sobre essa conexão: “Como um homem afirma seu poder sobre outro [. . . ]? [. . . ] Fazendo-o sofrer. [. . . ] A menos que ele esteja sofrendo, como você pode ter certeza de que está obedecendo à sua vontade e não a dele? O poder está em infligir dor e humilhação.”56 Certamente é verdade que os guardas de Stanford infligiram intencionalmente dor e humilhação a seus prisioneiros. E, novamente, esses guardas eram seres humanos perfeitamente normais, tanto quanto se podia verificar de antemão. Portanto, há razões para acreditar que não é por acaso que os governos têm sido tantas vezes liderados por líderes tirânicos. Outra lição do experimento de Stanford diz respeito às reações dos outros a figuras de autoridade. Os prisioneiros do experimento, inicialmente pelo menos um pouco resistentes, foram reduzidos à submissão no final do experimento. Eles atenderam a quase todas, mesmo as demandas mais ofensivas emitidas pelos guardas. Diante disso, isso é intrigante, pois os guardas não tinham poder real para obrigar os prisioneiros a obedecer. Os guardas eram proibidos de usar violência e, em qualquer caso, eram, em cada turno, superados numa relação de três para um pelos presos. Se os prisioneiros se recusassem resolutamente a obedecer aos guardas, não está claro o que os guardas poderiam ter feito. No entanto, os prisioneiros obedeceram, apesar da natureza cada vez mais irracional e ofensiva dos comandos dos guardas e apesar da natureza arbitrária de sua suposta autoridade. Essa obediência também não deveria ser explicada como resultado de um senso de obrigação contratual. Embora os sujeitos concordassem em fazer parte de uma simulação da vida na prisão, não concordaram em obedecer a todos os comandos da guarda. E mesmo se eles se considerassem obrigados a ser obedientes até certo ponto, isso não explicaria por que os prisioneiros se tornaram mais submissos à medida que o estudo prosseguia e as exigências dos guardas se tornavam mais irracionais. Uma lição a tirar disso é que, psicologicamente, 55

Zimbardo, Haney e Banks 1973, 81. Orwell 1984, 219-20. As observações citadas são do agente da polícia O’Brien, o personagem que captura e tortura o protagonista do romance para quebrar seu espírito. 56

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o poder é auto-validador. Mesmo quando as “autoridades” são selecionadas arbitrariamente e todo mundo sabe disso, a mera afirmação de autoridade tende a ser aceita por outros.57 Além disso, quanto mais alguém obedece a uma figura de autoridade, mais se sente “obrigado” a continuar fazendo isso.

6.8

Conclusão: anatomia de uma ilusão

As intuições padrão sobre autoridade não são confiáveis. Quer se aceite ou não os argumentos desenvolvidos nos capítulos anteriores deste livro, não se deve dar muita importância ao mero fato de que a maioria das pessoas acredita em autoridade política. Qualquer pessoa que tenha uma visão impopular pode ser desafiada a responder: “Como tantas pessoas podem estar erradas, enquanto você não?” Essa pergunta deve ser levada a sério. Se a resposta é apenas que os seres humanos são falíveis e que a grande maioria das outras pessoas cometeu coincidentemente o mesmo erro nessa questão específica, isso geralmente será implausível por razões diretas de probabilidade. Não acredito que muitos que aceitam autoridade política tenham cometido esse erro por acaso. Acredito que existam características específicas da mente humana e da situação em que a maioria das pessoas se encontra contribuindo para uma ilusão moral de autoridade. Compare a crença generalizada, antes de Copérnico e Galileu, de que o sol orbitava a terra. Este não foi um erro casual; não é que tantas pessoas tenham escolhido a resposta errada para a questão da estrutura do cosmos. Havia uma explicação comum para as crenças errôneas em tantas mentes – grosso modo, parece que o sol está se movendo ao redor da terra. Podemos caracterizar isso como uma ilusão perceptiva – um caso em que existe uma tendência sistemática para que as coisas pareçam, para observação casual, contrárias ao que realmente são. Nesses casos, devemos esperar que a maioria das pessoas assuma erroneamente que as coisas são como parecem, a menos e até que recebam informações para corrigir a ilusão. Os seres humanos também podem sofrer de ilusões cognitivas, nas quais as coisas parecem para a mente (não-perceptivamente) de outra forma que não são. Por exemplo, um procedimento médico com uma taxa de sucesso de 80% soa melhor para a maioria das pessoas do que um procedimento com uma taxa de falha de 20%. Foi demonstrado que essa abordagem faz diferença nos julgamentos práticos das pessoas sobre situações realistas.58 Uma espécie de ilusão cognitiva é de particular interesse para nós aqui: a das ilusões morais. São casos em que temos uma tendência sistemática de ver algo como certo (ou errado) quando 57

Milgram (2009, 139-40) observa, da mesma forma, que a mera designação como figura de autoridade normalmente é suficiente para garantir a obediência de outras pessoas. 58 Tversky e Kahneman 1981.

6. A Psicologia da Autoridade

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na verdade não é. Ao longo da história, nossos antepassados foram sujeitos a ilusões morais generalizadas – por exemplo, que as mulheres eram inferiores aos homens ou que as pessoas de pele escura eram inferiores às de pele clara.59 A sugestão de que ainda estamos sujeitos a algumas ilusões morais hoje não deveria surpreender ninguém. Precisamos refletir sobre a que ilusões morais podemos estar sujeitos, tendo em mente que, pela natureza do caso, elas não parecerão, por considerações casuais, ilusões. Superar uma ilusão geralmente requer entender por que as coisas podem parecer como parecem, mesmo que sejam falsas. Por exemplo, para superar a crença de que o sol orbita a terra, é importante ver por que isso seria assim, mesmo que o sol não estivesse se movendo, mas a terra estivesse girando. Da mesma forma, para superar a ilusão da autoridade política, é importante ver por que nos parece que existe autoridade política, mesmo que de fato qualquer Estado nunca tenha tido autoridade genuína. Sugeri neste capítulo que os seres humanos são equipados com preconceitos fortes e generalizados em prol da autoridade que operam mesmo quando uma autoridade é ilegítima ou emite comandos ilegítimos e indefensáveis. Como vimos, os indivíduos confrontados com as demandas das figuras de autoridade podem sentir uma compulsão quase incondicional de obedecer, e isso pode leválos a procurar explicações sobre por que a autoridade é legítima e por que são moralmente obrigados a obedecer. As pessoas costumam aderir instintivamente àqueles que exercem o poder, e há até casos em que as pessoas se vinculam emocionalmente a outras pessoas (como sequestradores) que detêm um poder grande, mas completamente injustificado sobre elas, adotando as perspectivas e os objetivos daqueles que detêm o poder. Uma vez iniciado o padrão de obediência, a necessidade de minimizar a dissonância cognitiva favorece a obediência contínua e a adoção de crenças que racionalizam os mandamentos da autoridade e a própria obediência a eles. Devido a um viés geral do status quo, uma vez que uma prática ou instituição se estabeleça em alguma sociedade, é provável que essa prática seja vista pelos membros dessa sociedade, quase automaticamente como normal, correta e boa. Nada disso, por si só, mostra que as instituições políticas existentes são ilegítimas. Mas isso sugere fortemente que seriam amplamente aceitas como legítimas, mesmo que não fossem. As teorias de autoridade criadas pelos filósofos políticos podem ser vistas plausivelmente como tentativas de racionalizar intuições comuns sobre a necessidade de obediência, onde essas intuições são o produto de preconceitos sistemáticos.

59

Consulte a Seção 13.1 e a Seção 13.4 para obter mais exemplos.

7 E se Não Existir Autoridade? Se não há autoridade, segue-se que devemos abolir todos os governos? Não. A ausência de autoridade significa, grosso modo, que os indivíduos não são obrigados a obedecer à lei apenas porque é a lei e/ou que os agentes do Estado não têm o direito de coagir os outros simplesmente porque são agentes do Estado. Ainda pode haver boas razões para obedecer à maioria das leis, e os agentes do Estado ainda podem ter razões adequadas para se engajarem em ações coercitivas suficientes para manter um Estado. Se os argumentos dos capítulos anteriores estiverem corretos, as circunstâncias e propósitos que justificariam a coerção por parte do Estado são justamente as circunstâncias e propósitos que justificariam a coerção por parte de agentes privados. Resta ver se algumas organizações estão justificadas em participar de atividades semelhantes a algo como um Estado para se qualificarem como Estados. Na terminologia da filosofia política contemporânea, até agora defendi o anarquismo filosófico (a visão de que não há obrigações políticas), mas ainda tenho que defender o anarquismo político (a visão de que o governo deve ser abolido).1 O objetivo do presente capítulo é discutir as implicações práticas de um anarquismo filosófico, mas não político. Ou seja, suponha que alguém aceite os argumentos dos capítulos anteriores, mas acredite (contrariamente aos argumentos nos capítulos seguintes) que o governo é necessário para uma sociedade decente. Nesse caso, que conclusões práticas se deve tirar? 1

Embora eu tenha seguido a terminologia estabelecida aqui, deve-se notar que a terminologia é enganosa, pois sugere falsamente que uma das doutrinas é filosófica, mas não política, enquanto a outra é política, mas não filosófica. De fato, ambos os tipos de “anarquismo” são reivindicações filosóficas e políticas.

130

7. E se Não Existir Autoridade?

7.1

131

Algumas implicações políticas

Se não existir autoridade política, então a grande maioria das leis é injusta, porque elas aplicam coerção contra indivíduos sem justificativa adequada. Existem muitas leis desse tipo para mencionar cada uma delas. Aqui, brevemente, mostro alguns dos exemplos mais importantes.

7.1.1

Prostituição e moralismo legal

As leis moralistas proíbem algum comportamento com base no fato de que o comportamento é “imoral”, mesmo que não prejudique ou viole os direitos de alguém. Os exemplos mais óbvios são as leis contra a prostituição e o jogo. Como devemos enxergar essas leis? A autoridade política é um status moral especial, colocando o Estado acima de todos os agentes não estatais. Se rejeitarmos essa noção, devemos avaliar a coerção estatal da mesma maneira que avaliamos a coerção de outros agentes. Para qualquer ato coercitivo do Estado, devemos primeiro perguntar qual motivo o Estado tem para exercer coerção dessa maneira. Deveríamos então considerar se um indivíduo ou organização particular seria justificado exercendo um tipo e grau de coerção semelhantes, com efeitos semelhantes nas vítimas, por razões semelhantes. Se a resposta for não, a coerção pelo Estado também não se justifica. Considere uma história sobre três indivíduos particulares. Jon quer fazer sexo com Mary. Mas Mary não gosta de Jon tanto quanto ele gosta dela. O que ela gosta é de dinheiro, o qual Jon tem. Então, Mary diz a Jon que está disposta a fazer sexo com ele, desde que ele lhe dê $300. Isso fará valer a pena para ela. Jon concorda e eles concluem a transação. Mais tarde, um de seus vizinhos, Sam, descobre o que aconteceu. Sam acha que as pessoas deveriam fazer sexo apenas por procriação ou prazer sensorial; o pensamento de pessoas fazendo sexo por dinheiro o deixa com raiva. Então Sam vai até a casa de Mary com sua arma. Ele aponta a arma para Mary e ordena que ela o acompanhe até sua casa. Uma vez lá, ele a tranca no porão pelos próximos seis meses. Acontece que Mary não era da vizinhança; Jon a convencera a vir de fora da cidade para fazer sexo com ele. Quando Sam descobre isso, fica furioso. Ele sequestra Jon com uma arma e o tranca no porão pelos próximos 20 anos. O que quer que alguém pense de Jon e Mary, o comportamento de Sam nesta história está claramente errado. Talvez Mary e Jon estejam fazendo algo ruim (embora não esteja claro o quê); Nesse caso, seria apropriado que Sam lhes explicasse o que vê como problemático sobre o comportamento deles, em um esforço para convencê-los a parar. Se não pode convencê-los, no entanto, coerção e sequestro não são respostas apropriadas.

7. E se Não Existir Autoridade?

132

O comportamento de Sam nesta história é análogo ao do governo em países onde a prostituição é ilegal. Os seis meses de prisão de Mary não são diferentes do que uma prostituta pode esperar sofrer. É certo que Jons raramente são processados e raramente cumprem pena na prisão. Os 20 anos de prisão de Jon são, no entanto, uma alusão à lei federal dos EUA, que prevê uma sentença de prisão de até 20 anos por “seduzir” alguém a cruzar as fronteiras de um Estado com o objetivo de prostituição.2 Vale ressaltar como absurdamente punitivas são algumas leis. Mas o ponto principal não é que as sentenças sejam muito altas; o ponto principal é que nenhuma coerção é justificada para impedir um casal de trocar voluntariamente sexo por dinheiro.

7.1.2

Drogas e paternalismo

As leis paternalistas restringem o comportamento dos indivíduos para o seu próprio bem. Certos medicamentos, por exemplo, são proibidos, principalmente por serem prejudiciais ao usuário. Eles podem prejudicar a saúde ou o relacionamento do usuário com outras pessoas; podem fazer com que o usuário perca o emprego, abandone a escola ou tenha uma vida menos bem-sucedida. Essas são razões adequadas para proibir o uso de drogas? A proibição de drogas significa que usuários e vendedores estão sujeitos a ameaças coercitivas por parte do Estado. Aqueles que são capturados são frequentemente forçados a passar anos de suas vidas na prisão. Para a maioria dos leitores, ser enviado para a prisão provavelmente seria a pior coisa que eles já experimentaram. Isso é particularmente preocupante nos Estados Unidos, onde mais de meio milhão de pessoas são presas por delitos de drogas.3 Para justificar a imposição de um dano tão grande, as razões da proibição teriam que ser muito fortes. Considere outra história sobre Sam. Sam se opõe ao tabagismo devido a seus graves danos à saúde. Não contente apenas em evitar o próprio cigarro, proclama à sua comunidade que ninguém pode fumar. Após a proclamação, Sam lhe pega fumando, lhe sequestra com uma arma e lhe tranca no porão. Você divide o porão com ladrões, estupradores e assassinos pelo próximo ano, até ser libertado. A pessoa que vendeu os cigarros está trancada no porão pelos próximos seis anos. Sam agiu corretamente? É difícil imaginar alguém dizendo isso. O desejo de impedir que outras pessoas prejudiquem sua saúde dessa maneira dificilmente parece uma justificativa adequada para coerção e sequestro, muito menos por 2

U.S. Code, Título 18, seção 2422: “Quem conscientemente persuade, induz, seduz ou coage qualquer indivíduo a viajar em comércio interestadual ou estrangeiro, ou em qualquer Território ou Posse dos Estados Unidos, a se envolver em prostituição ou qualquer atividade sexual pelas quais qualquer pessoa possa ser acusada de um crime, ou tentar fazê-lo, serão multadas sob este título ou presas por não mais de 20 anos ou ambas”. 3 Ver Huemer 2010a, 361–2.

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roubar meses ou anos da vida de alguém. Mas a ação de Sam não foi pior do que a que o governo atualmente faz com os infratores. O tabaco é cerca de sete vezes mais mortal (em média, por usuário) do que as drogas ilegais, então Sam tem uma justificativa muito mais forte pelo que faz do que o governo pelo que faz.4 Alguns defensores da proibição enfatizam os efeitos nocivos não-medicamentosos que as drogas podem ter na vida de alguém. Para levar isso em consideração, imagine que Sam também cuide das pessoas nesses outros aspectos; quando ele aprende sobre alguém que prejudicou o relacionamento dela com outras pessoas sem uma boa razão, ele sequestra essa pessoa e a mantém em cativeiro no porão. Da mesma forma, para aqueles que perdem o emprego ou abandonam a escola por culpa própria. (Adicione outros eventos negativos da vida, do tipo que o abuso de drogas pode causar.) Sam adverte explicitamente as pessoas contra esses comportamentos e só pune as pessoas que violarem suas ordens de maneira consciente e voluntária. O motivo de Sam para punir essas pessoas seria mais forte do que o Estado para punir os infratores, já que as drogas só têm chance de causar danos a seus relacionamentos, perder o emprego e assim por diante, enquanto Sam castiga apenas as pessoas que de fato prejudicou conscientemente seus relacionamentos, perdeu seus empregos e afins. No entanto, o comportamento de Sam parece ultrajante. O desejo de impedir que as pessoas prejudique suas próprias vidas dessa maneira não constitui fundamento adequado para coerção.5 Existem muitas outras leis paternalistas sobre as quais argumentos semelhantes podem ser feitos. Em geral, o paternalismo é justificado apenas em circunstâncias extremas – por exemplo, se uma pessoa está prestes a se jogar de uma ponte, pode-se justificar coercivamente impedi-la de se jogar, pelo menos o tempo suficiente para descobrir por que ela quer se matar e se tem uma mente sã. A coerção não se justifica meramente porque outra pessoa deseja fazer uma escolha imprudente do tipo que as pessoas normais costumam fazer na vida cotidiana. Aqui estão alguns outros exemplos de paternalismo jurídico. • Leis de medicamentos prescritos. Essas leis impedem que alguém compre certos medicamentos sem a aprovação de um médico, e a lógica aparente é que os pacientes usariam medicamentos perigosos e desnecessários. • Subvenções e empréstimos a juros baixos para educação universitária. Embora a lógica saliente desses programas seja de redistribuição de riqueza, elas também têm um elemento paternalista. Os destinatários não recebem simplesmente dinheiro para fazer o que quiserem, presumivelmente 4 5

Ver Huemer 2010a, 356–7. Ver Huemer 2010a para elaboração.

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porque muitos usariam os fundos imprudentemente; portanto, os fundos dependem da faculdade dos destinatários. • Seguro Social. Dizem que as pessoas devem ser forçadas a economizar para a aposentadoria; caso contrário, elas tolamente deixarão de economizar. Também é dito às vezes que o programa de aposentadoria deve ser administrado pelo governo, pois, caso contrário, as pessoas investem seu dinheiro de maneira tola e o perdem. • Leis de licenciamento. Essas leis impedem as pessoas de vender determinados serviços sem autorização do Estado – por exemplo, praticar medicina sem licença ou praticar advocacia sem admissão na guilda. Por que não exigir que os provedores de serviços divulguem se foram licenciados e permita que os consumidores escolham se devem utilizar provedores não licenciados? A preocupação é que muitos consumidores optem tolamente por utilizar serviços de médicos, advogados e outros não qualificados. Como esses exemplos ilustram, o paternalismo legal é bastante difundido na sociedade ocidental moderna. Todas essas são leis injustificadas.

7.1.3

Rent seeking

O rent seeking é um comportamento projetado para extrair riqueza de outras pessoas, especialmente através do veículo do Estado, sem fornecer benefícios compensatórios em troca.6 O exemplo mais direto é uma empresa que faz lobby com o governo em busca de subsídios. Mas muitas das políticas que exemplificam o paternalismo legal também são motivadas em parte pelo rent seeking. Considere o seguinte. • Leis de medicamentos prescritos. Essas leis transferem dinheiro dos consumidores para médicos e farmacêuticos. Se uma pessoa deseja comprar um medicamento, deve primeiro pagar um médico para vê-lo e dar-lhe permissão para comprar o medicamento. • Subsídios para educação universitária. Isso aumenta a demanda por ensino superior muito acima do nível do mercado e, portanto, transfere recursos para faculdades e universidades. (O autor é grato pelos fundos que você forneceu a ele.) 6

Tullock 1987.

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• Seguro Social. Eu disse acima que o Seguro Social poderia ser encarado como um programa para forçar as pessoas a economizarem para a aposentadoria. Também pode ser visto, talvez com mais precisão, como um sistema de pagamentos por transferência de jovens para idosos. • Licenciamento. As leis de licenciamento colocam um obstáculo para entrar em uma determinada profissão, diminuindo assim a competição enfrentada pelos praticantes atuais. Isso aumenta os preços e beneficia os praticantes existentes às custas dos consumidores e daqueles que desejam ingressar na profissão.7 Qual é o status moral de tais leis? Suponha que estendamos a história de Sam da seguinte maneira. Sam tem um amigo chamado Archer Midland. Archer pede ajuda financeira a Sam, então Sam sai, agride algumas pessoas e dá o dinheiro a Archer. Obviamente, esta ação está errada. O desejo de lucrar às custas dos outros não é uma justificativa adequada para a coerção.

7.1.4

Imigração

Marvin precisa de comida, sem a qual sofrerá desnutrição ou fome.8 Ele planeja viajar para um mercado próximo, onde poderá comercializar por comida. Mas antes que possa chegar ao mercado, é abordado por Sam, que não quer que Marvin negocie no mercado, por dois motivos. Primeiro, a filha de Sam vai fazer compras no mercado, e Sam teme que Marvin possa aumentar o preço da comida. Alguns fornecedores podem até ficar sem pão se muitas pessoas vierem ao mercado. Segundo, Marvin vem de uma cultura diferente da maioria das pessoas que frequentam o mercado, e Sam teme que Marvin possa influenciar outras pessoas e, assim, alterar a cultura do mercado. Sam decide resolver o problema pela força. Aponta sua arma para Marvin e ordena que Marvin saia dali. O faminto Marvin é forçado a voltar para casa de mãos vazias. As razões de Sam para coagir Marvin nesta história são claramente inadequadas. Além disso, Sam será culpado por qualquer dano que Marvin sofra como resultado de não conseguir chegar ao mercado; serão danos que Sam infligiu a Marvin. Se Marvin morrer de fome, então a culpa é de Sam. Isso é verdade, apesar de Sam não ser responsável pela situação inicial de Marvin de sentir fome e não ter comida; é verdade porque Sam ativamente impediu Marvin de obter comida. Se uma pessoa está morrendo de fome e você se recusa a dar-lhe comida, então você deixou que ela morresse de fome. Mas se você der o passo extra de interferir coercivamente na dinâmica dele obter comida de outra pessoa, então 7 8

Ver Friedman 1989, 42-4, para discussão. Este exemplo é de Huemer 2010b, que defende o argumento desta subseção em detalhes.

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você não permitiu que ele apenas morresse de fome; você o impediu de se alimentar. O mesmo ponto se aplica a danos menores: se, por exemplo, Marvin apenas sofrer desnutrição por não conseguir chegar ao mercado, Sam terá infligido esse dano a ele. O comportamento de Sam na história é análogo ao do governo de qualquer país moderno que exclui imigrantes pobres. Potenciais imigrantes de países em desenvolvimento passam a participar dos mercados dos países mais ricos. Os governos dos países mais ricos rotineiramente excluem à força esses imigrantes em potencial. Como resultado, muitos sofrem por perspectivas de vida muito reduzidas. O governo não permite apenas que ocorram danos a esses imigrantes em potencial. Se o governo apenas se mantivesse passivo e se recusasse a dar ajuda a imigrantes em potencial, isso permitiria que ocorressem danos. Mas não permanece passivo quando o governo de todos os países ricos do mundo contrata deliberadamente guardas armados para excluir ou expulsar à força pessoas indesejadas. Essa intervenção coercitiva constitui uma imposição ativa de danos a eles, assim como Sam causa danos a Marvin na história acima. Os motivos mais comuns dados para a restrição de imigração são dois. Primeiro, que novos imigrantes competem com os americanos (ou locais) existentes no mercado de trabalho, diminuindo assim os salários por mão de obra não qualificada e dificultando a procura de emprego pelos trabalhadores americanos. Segundo, se muitos imigrantes entrarem no país, alterarão a cultura do país. A primeira preocupação é análoga à preocupação de Sam sobre a concorrência de Marvin com a filha dele no mercado. Não é permitido usar força contra outra pessoa simplesmente para impedir que terceiros sofram desvantagens econômicas através da concorrência normal no mercado. A segunda preocupação é análoga à preocupação de Sam sobre a cultura do mercado. Não é permitido usar força contra outra pessoa simplesmente para impedir que ela influencie a cultura da sociedade de maneiras indesejadas.

7.1.5

A proteção dos direitos individuais

Existem políticas governamentais imunes ao estilo de crítica implantado nas subseções anteriores? As políticas isentas de minhas críticas geralmente são políticas que servem para proteger os direitos dos indivíduos. Por exemplo, pessoas que desejam cometer assassinato estão sujeitas a ameaças coercitivas por parte do Estado. Assassinos pegos é forçado a passar anos em confinamento. Mas isso não é de todo injusto. Os indivíduos têm o direito de não serem assassinados, e é apropriado se defender pela força. Por que não se pode implantar aqui o mesmo estilo de argumento usado nas subseções anteriores? Imagine que um indivíduo particular, Sam, emita uma

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proclamação à sua comunidade de que ninguém pode matar alguém. Um dia, Sam descobre que alguém cometeu um assassinato. Sam leva o assassino em cativeiro à mão armada e confina o assassino em seu porão por um período de anos. Sam agiu corretamente? Nesse caso, diferentemente dos episódios anteriores que envolvem Sam, parece-me que o comportamento de Sam é permitido, e até louvável. Alguns se sentem desconfortáveis com esse tipo de ação de vigilante, por dois motivos. Primeiro, alguém pode ficar preocupado com a confiabilidade de Sam na identificação dos culpados. Quando vigilantes particulares exigem justiça, eles podem identificar mal os criminosos e acabar punindo os inocentes. Segundo, na maioria das sociedades, o vigilantismo de Sam seria desnecessário, pois existem forças policiais e tribunais para punir os culpados. Essas são as razões mais importantes para se opor à justiça dos vigilantes na maioria das circunstâncias. Para deixar essas preocupações de lado, estipulemos que não existem outros mecanismos estabelecidos para lidar com assassinos na sociedade de Sam. Se Sam não perseguir os assassinos, os assassinos terão rédea mais ou menos livre. Suponha também que Sam tenha procedimentos cuidadosos para verificar a culpa das partes a quem castiga. Ele tem um longo processo de revisão de evidências, no qual o acusado tem todas as oportunidades para questionar as evidências contra ele e apresentar evidências em seu próprio favor. O processo é cuidadoso, confiável e aberto ao escrutínio público. Nesse caso, não vejo objeção ao comportamento de Sam. O comportamento de Sam nesta última história é análogo ao de um governo que persegue assassinos, dá-lhes julgamentos justos e públicos e os aprisiona. Não há nada censurável em tal prática. O mesmo vale para políticas destinadas a proteger a sociedade de vários outros tipos de criminosos, como ladrões, estupradores e outros criminosos violentos. Um argumento semelhante pode ser feito sobre a defesa militar. Os invasores de um país estrangeiro são simplesmente um grupo grande e bem organizado de ladrões e assassinos, e é apropriado usar a força contra eles em defesa de si e dos vizinhos. Não tentarei aqui catalogar todas as ações que o Estado possa justamente usar a coerção para impedi-las. Tipos particulares de ação devem ser julgados usando nossas intuições éticas comuns e aplicando o princípio geral de que é permitido ao Estado proibir alguma ação se, e somente se, for permitido a um indivíduo privado usar a força para impedir ou retaliar por esse tipo de ação, supondo que o indivíduo use métodos confiáveis para identificar os culpados e não tivesse melhores alternativas disponíveis.

7. E se Não Existir Autoridade?

7.1.6

138

Tributação e financiamento do governo

Como um governo pode financiar suas atividades? O principal método agora usado é a extração coercitiva de dinheiro da população (tributação). A prevalência desse método de financiamento provavelmente é devida ao fato de ser um método muito confiável de coletar quantias muito grandes de dinheiro. Porém, normalmente não é permitido extrair coercivamente dinheiro de outras pessoas, mesmo que você tenha um bom uso para o dinheiro. Diante disso, portanto, a tributação parece inadmissível. Essa inferência, no entanto, parece pressupor que os indivíduos têm justamente o direito, prima facie, a sua renda antes dos impostos. Thomas Nagel e Liam Murphy contestaram essa suposição. Eles acreditam que os direitos de propriedade são criados por leis governamentais e, portanto, só se tem direitos de propriedade naquelas coisas às quais as leis do Estado concedem uma propriedade. Ao criar leis tributárias, o Estado molda os direitos de propriedade que os indivíduos têm, de modo que eles possuem apenas sua renda após os impostos.9 Em resposta, existem três pontos de vista que se pode ter em relação aos direitos de propriedade. Primeiro, alguém pode sustentar que os direitos de propriedade são naturais, isto é, direitos morais que existem antes do Estado. John Locke, por exemplo, sustentou que os indivíduos têm justamente os frutos de seu trabalho, mesmo em uma sociedade pré-governamental.10 Sob esse ponto de vista, a tributação parece ser uma injustiça prima facie, por qualquer que seja a maneira eticamente correta de adquirir propriedades, presumivelmente, não é extração forçada de bens mantidos por terceiros. Segundo, pode-se afirmar que os direitos de propriedade são parcialmente naturais, pois existem certos princípios amplos de propriedade que são válidos independentemente das leis governamentais, mas que existem muitos detalhes de um regime de direitos de propriedade que não são resolvidos por esses princípios morais gerais. Por exemplo, talvez nossos direitos morais inerentes determinem que temos direito aos frutos de nosso trabalho, mas esses direitos não determinam em que altitudes se pode pilotar um avião sobre a terra de outra pessoa. Pode-se afirmar que são necessárias leis criadas pelo Estado para resolver tais questões de detalhes. Essa visão ainda oferece pouco conforto ao defensor da tributação, para o direito de um agente extrair coercivamente grandes quantidades de recursos do restante da população esse tipo de detalhe (como a altitude em que se pode sobrevoar a propriedade de outros) pode ser plausivelmente deixado indeterminado pelos princípios morais básicos da propriedade. Terceiro, pode-se afirmar que não há direitos de propriedade natural. Nagel e Murphy assumem que isso significa que os direitos de propriedade são criados 9 10

Murphy e Nagel 2002, p. 173–7. Compare Holmes e Sunstein 1999, capítulo 3. Locke 1980, capítulo 5.

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por decreto governamental. Isso é plausível apenas para quem pressupõe uma forte doutrina de autoridade política. Nagel e Murphy atribuem ao Estado um direito moral, decorrente de seu poder de criar direitos de propriedade, para impor coercivamente a distribuição de recursos escolhida. Como nenhum agente não governamental pode declarar uma distribuição de recursos e um regime de direitos de propriedade e depois aplicá-los coercivamente, o direito do Estado de fazê-lo exigiria legitimidade política. Ao mesmo tempo, a criação pelo Estado de um regime de direitos de propriedade provavelmente imporia obrigações por parte dos cidadãos de respeitar esse regime. Essas seriam obrigações políticas. Se, portanto, o Estado não tem autoridade, então não tem o poder de criar direitos de propriedade, como Murphy e Nagel supõem. O resultado parece ser que, mesmo depois do Estado fazer suas leis, ainda não há direitos de propriedade. (Se alguém considera essa conclusão implausível, deve retornar à visão de que existem direitos de propriedade naturais.) Podese pensar que a rejeição dos direitos de propriedade deixa o caminho aberto para a tributação: uma vez que os pagadores de impostos não têm o direito de “sua” riqueza, a apreensão de parte dessa riqueza não parecerá mais como uma violação de direitos. Mas, da mesma forma, o Estado também não terá direito a essa riqueza e, portanto, os cidadãos não fazem nada errado ao retê-la. Enquanto isso, existem os danos que o Estado impõe coercivamente aqueles que não pagam impostos, e esses parecem ser injustiças prima facie. Em suma, o defensor da tributação deve sustentar que o Estado, e não os pagadores de impostos, tem justamente o direito às receitas tributárias que o Estado recebe. Não há maneira plausível de defender essa visão, a menos que alguém assuma uma doutrina de autoridade política. Como um governo poderia financiar suas atividades sem tributação? Uma alternativa seria o Estado cobrar taxas por seus serviços. O Estado pode cobrar por cada serviço prestado ou definir uma taxa única para cobrir todos os serviços do governo. Suponha que o Estado estabeleça uma taxa anual única por seus serviços. Aqueles que não pagassem a taxa seriam excluídos da maioria dos serviços governamentais ao longo do ano – por exemplo, poderiam não conseguir entrar com ações judiciais nos tribunais do governo e não poderiam chamar a polícia do governo para investigar ou protegê-los de crimes contra eles. Pode ser fornecida proteção policial para prédios e bairros que pagaram a taxa apropriada, com associações de proprietários coletando os fundos para pagar pela proteção de um determinado bairro. O Estado poderia estabelecer uma política que, se um crime fosse cometido em um prédio ou bairro que não tivesse pago a taxa de segurança governamental, a polícia e os tribunais não fariam nada a respeito. Desde que o Estado fosse razoavelmente bom em seu trabalho e suas taxas fossem razoáveis, a maioria dos cidadãos, por razões óbvias, escolheria pagar.

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Algumas pessoas, quando expostas a essa ideia pela primeira vez, pensam que a proposta equivale à extração coercitiva de fundos dos cidadãos, assim como certamente faz a tributação, pois indivíduos que não pagarem as taxas do Estado estariam sujeitos a um sério risco de violência. Isto é um erro. Sob o atual regime tributário, o próprio Estado inflige danos àqueles que não pagam seus impostos. De acordo com o esquema de taxa por serviço que propus, o Estado não protege contra os danos aqueles que se recusam a pagar a taxa necessária, mas ele próprio não lhes causa danos. Considere uma analogia. Os médicos prestam assistência médica por um preço. Eles geralmente não prestam assistência àqueles que não os pagam, mas não estão coagindo todos que não compram seus serviços; se você não contratar um médico, ele não virá e o infectará com uma doença. O modelo de honorários por serviços financeiros do governo é como o sistema no qual os médicos prestam assistência médica apenas àqueles que os contratam. O sistema tributário é como um sistema no qual os médicos dão doenças àqueles que não os contratam. Como esse modelo alternativo de financiamento do governo não foi tentado, sem dúvida haverá muitas questões levantadas sobre ele. Não posso explorar a proposta em detalhes aqui, mas mencionarei brevemente três questões óbvias. Uma delas diz respeito a quanto dinheiro o governo poderia esperar obter através de taxas voluntárias. No ano fiscal de 2010, o governo federal dos EUA gastou aproximadamente US$ 3,7 trilhões, ou cerca de um quarto do PIB.11 Um esquema de pagamento voluntário pode não ser capaz de suportar despesas tão grandes. A melhor solução para esse problema seria reduzir drasticamente os gastos do governo, de acordo com a gama muito limitada de atividades governamentais que achamos justificadas. Outra preocupação é que as pessoas pobres possam ser incapazes de pagar as taxas do governo e, portanto, ficarão com ainda menos proteção do que atualmente. No entanto, o Estado não precisa cobrar o mesmo preço a todos os cidadãos. Esquemas diferenciais de preços geralmente ocorrem mesmo no mercado livre, como no caso de cinemas que cobram preços mais baixos para idosos e estudantes. Mais exatamente, aqueles com casas caras pagam rotineiramente mais pelo seguro de propriedade do que aqueles com casas baratas. Na mesma linha, os ricos estariam dispostos a pagar mais pela proteção de suas pessoas e propriedades do que os pobres pagariam ou poderiam pagar. Outra questão é se o Estado teria o direito de proibir indivíduos ou organizações não estatais de vender serviços semelhantes aos do Estado. Por exemplo, as empresas de segurança privada poderiam fornecer segurança para pessoas que não pagaram as taxas do governo? Se tal competição fosse permitida, muitos cidadãos poderiam optar pela segurança privada, talvez economizar dinheiro ou obter melhores serviços. Se um número suficiente de pessoas se comportar 11

U.S. Census Bureau 2011b, 310, tabela 467.

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dessa maneira, é possível que o governo seja expulso dos negócios. Na minha opinião, essa competição deve ser permitida, e isso fornece a chave para a proposta anarquista política dos próximos capítulos. No entanto, o presente capítulo é para aqueles que acreditam que qualquer esquema de provisão de segurança concorrente sem uma autoridade central única seria socialmente desastroso. Nesse pressuposto, o Estado poderia proibir justamente a provisão privada de segurança. Normalmente, é errado coagir os outros, mas essa coerção pode ser justificada quando é necessário impedir que algo muito pior aconteça. Um ponto semelhante se aplicaria se o modelo de taxa de serviço das finanças públicas fosse, por algum motivo, impraticável. Se a tributação fosse necessária para evitar uma catástrofe social, o Estado estaria justificado em tributar. No entanto, o modelo de taxa por serviço, se praticável, tem a vantagem em termos de justiça, uma vez que reduz a quantidade de coerção do governo. Por esse motivo, os governos deveriam pelo menos tentar implementar esse modelo e só deveriam recorrer à tributação caso falhassem esses esforços sérios de boa-fé no financiamento voluntário.

7.2 7.2.1

O caso da ajuda aos pobres Bem-estar e criança afogando

Muitas políticas governamentais servem para redistribuir a riqueza dos ricos para os pobres. Essa classe de políticas aparece na teoria social contemporânea, ofuscando todos os outros tipos de política nas discussões sobre justiça social. Dedico a presente seção a abordar o que considero o argumento mais forte a favor da redistribuição da riqueza. Esse é um argumento mais humanitário do que igualitário – ou seja, se concentra no problema de que as necessidades básicas de algumas pessoas são insatisfatórias e não no alegado problema de que as pessoas têm níveis díspares de riqueza e renda.12 Imagine que você está passando por um lago onde vê uma criança se afogando. Se você pode salvar a criança com um pequeno custo para si mesmo, seria errado não salva-la. Esse exemplo é frequentemente empregado na literatura sobre ética para motivar o princípio de que, se alguém pode impedir que algo muito ruim aconteça com pouco custo para si mesmo, é obrigado a fazê-lo. Em particular, costuma-se dizer que, se tivermos a oportunidade de salvar as pessoas pobres de sofrer fome, desnutrição ou outros danos sérios a baixo custo para nós mesmos, devemos fazê-lo.13 12 13

Ver Huemer 2003 em diante para argumentos contra o igualitarismo. Singer 1993, capítulo 8; Unger 1996.

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142

Mas agora imagine que, por qualquer motivo, você não consiga salvar a criança no lago. Há, no entanto, outro espectador que poderia salvar a criança com um pequeno custo para si mesmo. Esse indivíduo, no entanto, não se importa o suficiente com a criança para salva-la voluntariamente. A única maneira de fazer com que a criança seja salva é ameaçando o espectador com violência, a menos que ele salve a criança. Você faz isso e ele salva a criança. Chame isso de caso da criança afogando. Nesse caso, por mais lamentável que seja o recurso à coerção, parece justificado. Isso parece mostrar que é permitido coagir outras pessoas a ajudar pessoas em perigo, desde que possam fazer a um custo modesto e que não haja outra maneira de fazer com que as pessoas em perigo sejam ajudadas. Por analogia, alguém pode argumentar que o Estado está justificado ao usar a coerção para induzir os cidadãos a ajudar os pobres, como no caso dos programas governamentais de bem-estar social. Nas subseções a seguir, sugiro três objeções a essa conclusão.

7.2.2

A utilidade dos programas antipobreza

Considere uma variação no caso da criança afogando. Chame isso de caso do espectador incompetente: como antes, há uma criança se afogando a quem você não pode ajudar diretamente, mas pode coagir um espectador relutante a agir. Desta vez, no entanto, suponha que, mesmo se você forçar o espectador a entrar no lago para puxar a criança para fora, não está claro se a criança será realmente salva (seja porque a criança já está longe demais, porque o espectador é incompetente, ou por algum outro motivo). Segundo, suponha que haja uma chance razoável de que, a caminho de tentar salvar a criança afogando, o espectador acidentalmente bata numa ou mais crianças no lago e elas acabam se afogando. Você acha difícil avaliar essas probabilidades; portanto, não está claro se o benefício líquido esperado de forçar o espectador a “ajudar” é positivo ou negativo. No entanto, você não suporta a ideia de não fazer nada e, assim, pega sua pistola de confiança e força o espectador a ir atrás da criança que está se afogando. Nesse caso, você age errado. Deve haver alguma presunção contra coerção. No cenário descrito acima, não há um argumento convincente a favor de levar o espectador a agir, de modo que a presunção contra a coerção permanece. A conclusão é ainda mais clara se o exemplo for especificado de maneira que você possa justificar que o benefício esperado de coagir o espectador seja negativo (ou seja, os danos esperados são maiores que os benefícios esperados). Os programas antipobreza do governo são justificados, então, somente se os benefícios esperados forem positivos e esse fato for razoavelmente claro (ou seja, temos uma justificativa forte e abrangente para acreditar nisso).14 14

A formulação em termos de “benefício esperado” tem como objetivo permitir a possibilidade

7. E se Não Existir Autoridade?

143

Há um argumento simples e bem conhecido para pensar que os programas de combate à pobreza são benéficos em geral: os programas de combate à pobreza redistribuem dinheiro de pessoas mais ricas para pessoas mais pobres. De acordo com o conhecido princípio da utilidade marginal decrescente do dinheiro, uma determinada quantidade de dinheiro geralmente trará mais benefícios a uma pessoa mais pobre do que a uma pessoa mais rica (os pobres precisam mais do dinheiro). Esses programas redistributivos devem, portanto, fazer mais bem do que prejudicar.15 Esse argumento teórico tem clara plausibilidade prima facie. Baseia-se em um princípio econômico muito amplamente aceito e plausível, o da diminuição da utilidade marginal da riqueza. Há também vários argumentos plausíveis prima facie para a conclusão oposta. Charles Murray, o crítico mais influente dos programas governamentais de combate à pobreza, argumenta que esses programas criam um problema de risco moral (moral hazard).16 Reduzem os custos ou criam benefícios para certas condições sociais, como desemprego e gravidez fora do casamento. Isso reduz a aversão das pessoas a essas condições, levando mais pessoas a se comportarem de maneiras mais propensas a levar a essas condições. Murray afirma que, em vez de ajudar os pobres a se levantarem, os programas governamentais criam um ciclo de dependência, facilitando, a curto prazo, o engajamento em comportamento autodestrutivo a longo prazo. O impulso geral de seu argumento empírico é que, à medida que os programas governamentais de combate à pobreza desfrutavam de enormes aumentos de financiamento e escopo entre as décadas de 1960 e 1980, persistiam pobreza, desemprego, ilegitimidade, crime, educação deficiente e outros problemas sociais: “em alguns casos, o progresso anterior diminuiu; em outros casos, houve deterioração leve acelerada; em outros poucos, o avanço sumiu”.17 Outros cientistas sociais, no entanto, contestaram fortemente o argumento empírico de Murray.18 Outros argumentos se concentram nos efeitos da redistribuição de riqueza na produtividade econômica geral. Um argumento frequentemente ouvido no discurso popular afirma que altos impostos sobre os ricos reduzem o incentivo para que as pessoas sejam produtivas. Um argumento relacionado e mais sutil começa com a observação de que as pessoas de alta renda tendem a investir de um ato coercitivo ser justificado em virtude de apenas reduzir o risco de algo muito ruim. Não precisa ficar claro que o ato coercitivo de fato impede o mau evento; no entanto, deve ser pelo menos razoavelmente claro que o ato coercitivo reduz o risco. Se o ato coercitivo criar algum outro risco, também deve ficar razoavelmente claro que a redução no risco original supera o risco recém-criado. 15 Lerner 1944, capítulo 3; Nagel 1991, 65. 16 Murray 1984. Ver também Olasky 1992; Schmidtz 1998. 17 Murray 1984, pp. 8–9. 18 Ver Jencks 1992, capítulo 2; Murray e Jencks 1985; Cowen 2002, 39-44.

7. E se Não Existir Autoridade?

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uma proporção muito maior de sua renda do que as de baixa renda. Portanto, a redistribuição da riqueza de pessoas de alta a baixa renda reduzirá a taxa total de investimento de uma sociedade em favor do consumo a curto prazo. Isso reduzirá a taxa de crescimento econômico de uma sociedade. Mudanças na taxa de crescimento têm impactos totais exponencialmente maiores à medida que são combinados com períodos mais longos. Portanto, a menor taxa de crescimento fará uma diferença muito maior para a riqueza material das gerações futuras.19 Finalmente, deve-se lembrar que os programas governamentais não são máquinas sem atrito. Pode ser verdade que um determinado dólar faria mais bem a uma pessoa pobre do que a uma pessoa rica, mas, uma vez considerados custos e desperdícios administrativos, é improvável que os programas governamentais que tiram um dólar de uma pessoa rica deem à pessoa pobre qualquer coisa perto de todo o dólar. Todos esses argumentos têm alguma validade: cada um identifica um fator relevante que tende a promover ou diminuir o bem-estar social. Um fator importante fala a favor dos programas governamentais de combate à pobreza, enquanto outros fatores importantes falam contra esses programas. Meu palpite é que, a longo prazo, o argumento da taxa de investimento vence. Não posso tentar aqui resolver a questão muito complexa dos efeitos líquidos dos programas governamentais de combate à pobreza. Sobre essa questão, eu não tenho nada de importante a acrescentar à literatura existente (consulte as notas). No entanto, a discussão anterior deve ajudar a explicar por que o assunto é controverso e por que não é claro, na melhor das hipóteses, que esses programas sejam benéficos ao invés de prejudiciais. Mas, dada a presunção contra a coerção, os programas são justificados apenas se estiver claro que tenham um benefício esperado líquido positivo. É concebível que, no futuro, alguém planeje programas governamentais de combate à pobreza que tenham benefícios líquidos claros. Neste momento, a coerção pode se justificar, dependendo do tamanho dos benefícios, da quantidade de coerção necessária e assim por diante. No entanto, tendo em mente que os argumentos teóricos para a nocividade dos programas governamentais de combate à pobreza são baseados em características muito amplas desses programas, também é provável que ninguém crie programas desprovidos desses problemas. Suspeito que os únicos programas que realmente produzam grandes benefícios líquidos sejam politicamente inviáveis devido a preconceitos generalizados contra estrangeiros, conforme sugerido na subseção a seguir. 19

Schmidtz 2000; Cowen 2002, pp. 44–9.

7. E se Não Existir Autoridade?

7.2.3

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Os programas antipobreza são direcionados adequadamente?

Passo agora a outra variação sobre o tema das crianças carentes. Chame isso de caso da criança com frio: há uma criança desconfortável por causa do ar frio da noite. Ela precisa de uma jaqueta, mas você não tem jaqueta para dar a ela. Você, no entanto, tem uma arma e vê um espectador próximo usando uma jaqueta e um suéter. O espectador não quer desistir de nenhuma de suas roupas. Você sacou a arma e obrigou o espectador a entregar a jaqueta para a criança. Enquanto isso, mais longe, há um garoto que está se afogando em um lago raso. Você está ciente dessa segunda criança e pode coagir o espectador a ajudar a criança que está se afogando; no entanto, isso interferiria em ajudar a criança com frio (o espectador precisa sair em breve por razões muito importantes e só tem tempo para ajudar uma delas). Você gosta mais da criança com frio; ela se parece mais com você, ela é da sua cidade natal e assim por diante. Assim, você ajuda a criança com frio, deixando a outra se afogar. Seu comportamento neste caso é moralmente inaceitável. Existem dois problemas óbvios: primeiro, o desejo de manter uma criança aquecida não é, na ausência de uma emergência médica, uma justificativa adequada para assalto à mão armada. Segundo, se você for usar coerção para ajudar alguém, deve ser a criança que está se afogando, cujas necessidades são muito mais urgentes. O governo de uma nação rica está em uma posição semelhante. Alguns de seus cidadãos são um tanto carentes. Mas há cidadãos muito mais carentes em outros países. Os pobres americanos, por exemplo, são apenas pobres em relação a outros americanos; eles geralmente possuem automóveis, televisões a cores, fornos de microondas e assim por diante. Podem estar com apertos, por exemplo, de não poder comprar roupas novas ou de não mandar seus filhos para a faculdade. Os pobres no mundo em desenvolvimento, no entanto, são absolutamente pobres. Correm o risco de morrer por causa da fome, desnutrição ou doenças facilmente evitáveis. No entanto, na maioria das vezes, os governos de países ricos, como os Estados Unidos, optam por usar seus fundos para ajudar pessoas em seus próprios países, ignorando principalmente as pessoas mais necessitadas em outros lugares. As duas atividades estão relacionadas, porque os fundos gastos com pobres domésticos poderiam ter sido gastos com pobres estrangeiros. É claro que o Estado poderia aumentar sua taxa de impostos para ter mais dinheiro disponível, mas não importa quão alto o Estado aumentasse suas receitas dentro da gama de possibilidades plausíveis, ainda assim seria o caso de que todo ou quase todo esse dinheiro teria que ser gasto com os pobres estrangeiros caso os fundos fossem alocados de maneira semelhante à necessidade. Como no caso da criança com frio, a maioria dos programas governamentais de redistribuição de riqueza parece sofrer de dois problemas. Primeiro, as necessidades que eles

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pretendem atender não são suficientemente urgentes para justificar a coerção. A necessidade de salvar uma pessoa da morte ou ferimentos graves pode justificar um nível moderado de coerção e violações moderadas dos direitos de propriedade. Mas o desejo de fornecer a uma pessoa roupas de qualidade, educação universitária ou um ar-condicionado normalmente não é suficiente para justificar a apreensão coercitiva dos fundos necessários de terceiros inocentes. Segundo, se o governo quiser instituir programas de ajuda coercitiva, certamente deve direcionar seus esforços para pessoas cujas vidas estão em grave perigo, mas que poderiam ser salvas a um custo mínimo, em vez de pessoas com necessidades muito menos urgentes e muito mais caras para se endereçar. Por exemplo, estima-se que os programas de suplementação de vitamina A no mundo em desenvolvimento possam salvar vidas a um custo entre US$ 64 e US$ 500 por vida salva.20 Para comparação, ao realizar análises de custo-benefício, a Agência de Proteção dos EUA gasta US$ 6,9 milhões pelo valor de uma vida estatística nos Estados Unidos.21 O governo poderia doar seus fundos antipobreza a grupos de caridade que implementam programas extremamente econômicos e que salvam vidas em países menos desenvolvidos. Certamente programas desse tipo devem acontecer antes de dar dinheiro a uma família americana cuja renda, embora baixa pelos padrões americanos, seja muitas vezes maior que a da maioria dos habitantes do mundo em desenvolvimento. Alguns argumentam que as prioridades aparentemente perversas do Estado são justificadas porque o Estado tem responsabilidades especiais para com seus próprios cidadãos que não se estende aos estrangeiros.22 Isso me parece uma resposta inadequada. Suponha que adicionemos ao caso da criança com frio a estipulação de que ela é realmente sua filha, enquanto a criança que se afoga é um estranho de outro país. Se os governos têm deveres especiais para com seus próprios cidadãos, os pais têm deveres ainda mais claros e mais fortes para com seus próprios filhos. Portanto, se fosse uma questão de salvar a vida de uma das duas crianças, seria apropriado salvar sua filha. Mas você não pode escolher entre garantir uma jaqueta para manter sua filha aquecida e não salvar a vida de um estranho. O argumento desta subseção não tenta mostrar que nenhum programa coercitivo de combate à pobreza poderia ser justificado. O que mostra é que, se o Estado está moralmente justificado na adoção de tais programas, teriam que ser 20

Horton et al. 2009. Outros programas extremamente econômicos incluem suplementação de zinco, de ferro e folato, iodização de sal e desparasitação – todos no mundo em desenvolvimento (Bhagwati et al. 2009). 21 Borenstein 2008. Em outras palavras, a EPA considera uma regulação valiosa se impuser um custo não superior a US$ 6,9 milhões por cada vida americana que se espera salvar. 22 Ver Goodin, em 1988 (mas observe a última frase do artigo, que chega perto de desconsiderar o que o restante do artigo parecia defender). Veja também Wellman 2000.

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muito diferentes dos programas realmente encontrados nos países ricos. Eles se concentrariam em pessoas extremamente carentes e com impactos baratos em países estrangeiros. Os programas existentes são quase inteiramente voltados para as pessoas e os problemas errados.

7.2.4

Um choque de analogias: criança afogando e assalto para caridade

O caso da criança afogando é a analogia mais próxima que podemos encontrar dos programas governamentais de combate à pobreza? Considere o caso do assalto para caridade: você iniciou uma instituição de caridade para fornecer assistência monetária aos pobres. Para coletar os fundos necessários, você assalta pessoas na rua. Isso parece claramente inadmissível. Agora, suponha, por uma questão de argumento, que sua ação coercitiva no caso da agressão por caridade seja inadmissível, mas sua ação coercitiva no caso da criança afogando seja permitida. Qual caso fornece uma analogia mais próxima aos programas governamentais de combate à pobreza? Em face disso, se quisermos escolher um dos casos como uma analogia mais próxima, deve ser o assalto para caridade. No assalto para caridade, a ação coerciva é tomada a serviço exatamente do mesmo tipo de programa que os programas governamentais em questão, ou seja, um programa de ajuda econômica direta aos pobres. O ato coercitivo também é do mesmo tipo que nos programas governamentais: extração forçada de dinheiro. Nenhuma dessas coisas é verdadeira no caso da criança afogando. Portanto, se aceitarmos intuições comuns sobre a criança afogando e o assalto para caridade, devemos concluir que os programas governamentais de combate à pobreza são inadmissíveis. Alguns filósofos argumentariam, no entanto, que o caso da criança afogando e o caso do assalto para caridade não têm diferenças moralmente significativas: ambos são casos em que um coage outra pessoa para garantir ajuda a terceiros carentes, e isso é tudo o que importa. Como esses casos são claramente análogos entre si, diriam esses filósofos, nossas intuições sobre um dos dois casos devem estar simplesmente erradas.23 Como a intuição sobre a criança afogando é mais forte do que a intuição sobre o assalto para caridade, devemos nos ater à intuição da criança afogando e, portanto, devemos endossar os programas de combate à pobreza do governo. 23

Embora Unger não discuta diretamente o caso do assalto para caridade, suas observações sobre outros casos (1996, capítulo 3) sugerem que ele endossaria o argumento mencionado no texto.

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Existem diferenças relevantes entre os dois casos? Para aqueles que ainda não perceberam, vale a pena dedicar um momento para refletir sobre essa questão antes de continuar lendo. Há pelo menos três diferenças que podem ser consideradas, individualmente ou em conjunto, como moralmente significativas: a No assalto para caridade, o problema que você procura abordar é uma condição social crônica, enquanto na criança afogando, o problema é uma emergência imediata. Os exemplos na literatura que extraem as intuições mais fortes sobre os deveres de ajudar os outros são exemplos de emergências imediatas. Os casos em que nos faltam fortes intuições do dever de ajudar, mas nos quais os filósofos tentam argumentar para que aceitemos tais deveres são tipicamente casos de condições sociais crônicas. b No caso da criança afogando, pode-se resolver o problema com facilidade e rapidez, enquanto que no caso do assalto para caridade, pode-se esperar realisticamente apenas aliviar o problema. c No caso da criança afogando, a coerção necessária para resolver o problema é uma intervenção única, enquanto que no processo de assalto para caridade é um programa contínuo de coerção.24 Os programas governamentais de combate à pobreza estão alinhados com o caso do assalto para caridade em todos esses aspectos. Pode haver outras diferenças interessantes entre os dois tipos de casos, talvez incluindo alguns que ninguém ainda identificou. Isso é provável, uma vez que, em geral, é muito difícil identificar as fontes de nossas intuições, e a maioria das pessoas tem dificuldade até de apresentar os itens (a) a (c). 24

Unger (1996, capítulo 2) discute um par semelhante de exemplos e considera várias diferenças potencialmente relevantes, incluindo essencialmente (a) e (b) acima. Ele acha (a) moralmente irrelevante (42). Grosso modo, sustenta que a distinção entre uma “emergência” e um “problema crônico” consiste meramente no fato de que as vítimas deste último sofrem há mais tempo; mas isso certamente não pode diminuir as razões para ajudar as vítimas de problemas crônicos. Não é óbvio, no entanto, que o caso de Unger sobre a distinção seja aceito. O autor considera a alínea b) “confusa” (41). Grosso modo, ele argumentaria que, no caso do assalto para caridade, podemos satisfazer as necessidades de algumas vítimas da pobreza. A única razão pela qual dizemos que nossa ajuda não pode “resolver o problema” é que estamos agrupando todas as pessoas que sofrem de pobreza e não podemos satisfazer todas as necessidades dessas pessoas. Mas, no caso da criança afogando, podemos conceitualmente agrupar essa criança que se afoga em particular com todas as outras pessoas que sofrem de algo ruim em qualquer lugar do mundo. Então aqui também nossa ajuda não pode “resolver o problema” porque não podemos impedir todas as coisas ruins do mundo. Portanto, realmente não há diferença entre o assalto para caridade e a criança afogando. O argumento de Unger aqui depende da suposição de que não há distinção entre mais e menos agrupamentos naturais.

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Parece haver agora quatro visões filosóficas sobre o caso da criança afogando e o caso do assalto para caridade que vale a pena considerar: i Os dois tipos de casos são relevantes e, em nenhum dos casos, é permitida a coerção. ii Os dois tipos de casos são relevantes e, em ambos os casos, a coerção é permitida. iii Intervenções coercitivas únicas para resolver emergências imediatas são permitidas, mas programas contínuos de coerção para aliviar condições sociais crônicas não são. Assim, a coerção é justificada no caso da criança afogando, mas não no caso do assalto para caridade. iv Os casos não são análogos por algum outro motivo, e a coerção é justificada no caso da criança afogando, mas não no caso do assalto para caridade. Somente na opção (ii) concluiríamos que os programas governamentais antipobreza são permitidos. Mas, à primeira vista (iii) parece muito mais plausível que (ii). A opção (iv) também parece muito mais plausível que (ii), apesar da falha em especificar a diferença relevante entre os casos (não é de todo implausível pensar que possa haver uma diferença relevante que nos tenha escapado). As visões (i) e (ii) me parecem de implausibilidade comparável, com (ii) menos plausível que (i), embora pensadores razoáveis difiram nisso. A tese (ii) tem implicações mais implausíveis do que simplesmente extorquir dinheiro de outras pessoas para apoiar a caridade. O espectador no caso da criança afogando tem um dever moral rigoroso de ajudar a criança que se afoga. Se o caso do assalto para caridade for significativamente semelhante, os indivíduos devem ter deveres morais rigorosos para doar à caridade, comparável ao dever de ajudar uma criança que se afoga. Se não tivessem tais deveres, isso seria uma diferença moralmente relevante entre os dois casos (é moralmente relevante que, no caso da criança afogando, alguém coage o espectador apenas para cumprir seu dever). Agora imagine outro caso; chame de caso do filantropo sobrecarregado. Suponha que você doe regularmente 80% do seu salário para instituições de caridade que ajudam crianças pobres. No caminho para o trabalho, você vê uma criança se afogando em um lago raso. Considerando quanto sacrifício você já fez pelos outros, você se pergunta se deve realmente molhar suas roupas para salvar mais uma criança. Intuitivamente, a resposta é sim. Mesmo depois de doar 80% de sua renda à caridade, você ainda é obrigado a salvar uma criança que está se afogando quando tiver a chance. Agora, se o dever de doar à caridade é comparável ao

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dever de salvar uma criança que está se afogando, parece que podemos fazer a mesma afirmação sobre doar à caridade; isto é, mesmo depois de doar 80% de sua renda à caridade, você ainda é obrigado a doar (mais) à caridade quando tiver a chance. Se não é assim, a obrigação de doar à caridade deve ser de alguma forma menos rigorosa do que a obrigação de ajudar uma criança que se afoga. Portanto, se aceitarmos a tese (ii), parece que devemos concluir que somos obrigados a doar mais de 80% de nossa renda para caridade.25 Além disso, no caso do filantropo sobrecarregado, você não seria levemente culpado caso não salvasse a criança. Falhar em salvar a criança seria extremamente culpável, talvez não muito melhor do que assassinato. Portanto, se a obrigação de doar à caridade é moralmente comparável à obrigação de ajudar uma criança que está se afogando, alguém que não doar mais de 80% de sua renda para a caridade também é extremamente culpável, talvez não muito melhor do que um assassino. Podemos ter que concluir que o comportamento de quase todos, incluindo, por exemplo, filantropos que doam apenas 75% de sua renda, seja totalmente desprezível. Alguns filósofos adotam esse tipo de moralidade extremamente exigente, junto com seu julgamento severo sobre a conduta de quase todos. Esses filósofos apontam que nossa forte aversão a doar quase todo o nosso dinheiro não é prova de que não somos obrigados a fazê-lo. Eles podem dizer que nossa relutância em aceitar sua moralidade exigente se deve simplesmente ao nosso viés de interesse próprio – não queremos fazer o que a moralidade realmente exige de nós e, portanto, fechamos os olhos para nossas obrigações.26 A hipótese do viés de interesse próprio pode servir como uma explicação plausível para desmascarar um dado isolado – nossa relutância em aceitar obrigações extremamente exigentes de caridade. Mas a hipótese é pior na explicação do padrão mais amplo de atitudes morais que é coerente com essa relutância. Se simplesmente sofremos de um viés de interesse próprio, podemos esperar que esse fato seja evidenciado por uma mudança em nossas intuições quando direcionamos a atenção para longe de nós mesmos e para o comportamento dos outros ou quando nos imaginamos em posições diferentes. Mas isso não parece ser o caso. Não nos eximimos de um dever de caridade que reconhecemos para os outros: quando ouvimos falar de alguém que dá grandes quantias de dinheiro à caridade, tratamos isso como louvável e supererrogatório; não reagimos como se tivéssemos sido informados de alguém que simplesmente se absteve de matar o maior número de pessoas possível. Mesmo quando nós próprios precisamos de uma economia – se, por exemplo, 25 Compare Unger 1996, capítulo 6. É claro que alguém precisa desistir apenas no ponto em que doações adicionais ameaçam a sua sobrevivência ou a sua capacidade de doação no futuro. 26 Norcross 2003, 461; Shaw 1999, 286–7.

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perdemos o emprego – não pensamos nos estrangeiros sendo obrigados a doar dinheiro para nos apoiar. Mesmo aqueles que são cronicamente pobres não consideram os estrangeiros obrigados a ajudá-los (embora possam considerar que o Estado seja obrigado a ajudá-los). Nem nossas intuições sobre a maioria das outras situações seguem a direção do interesse próprio. Geralmente, não nos consideramos autorizados a prejudicar ou explorar outras pessoas para nosso próprio benefício. Mesmo aqueles que seriam particularmente bons em explorar os outros de uma maneira específica não costumam sustentar que é permitido explorar os outros dessa maneira. Por fim, mesmo aqueles filósofos que aceitam sistemas éticos extremamente exigentes não têm as reações emocionais que seriam coerentes com a crença em tais sistemas éticos exigentes. Filósofos utilitaristas não reagem com horror quando você lhes diz que gastou US$ 40 em um jantar num restaurante em vez de enviar o dinheiro para ajudar no alívio da fome, mas certamente reagiriam com horror se você lhes dissesse que deixou uma criança se afogar em um lago porque não queria molhar suas roupas. Nenhuma dessas observações implica que alguma moralidade extremamente exigente não esteja correta. Mas ilustram o fato de que nossas atitudes são coerentes e podem ser explicadas parcimoniosamente pela hipótese de que não somos de fato obrigados a doar quantias muito grandes para a caridade. Continua sendo possível que soframos de um viés de interesse próprio que nos cega para nossas obrigações extremamente exigentes de caridade, mas essa hipótese faz um mau trabalho ao explicar o padrão de julgamentos e atitudes que a maioria das pessoas demonstra. Na filosofia moral, assim como no restante da investigação intelectual humana, é razoável supor que as coisas são do jeito que parecem até a prova em contrário.27 Os argumentos acima não devem, no entanto, ser tomados como uma licença para uma negligência egoísta para com os menos afortunados. A doação regular a grupos de caridade que ajudam os menos afortunados do mundo é algo compassivo e decente a se fazer. Praticamente ninguém duvida disso.28 Um membro comum de uma sociedade próspera pode, ao longo de sua vida, salvar literalmente centenas de vidas doando uma pequena fração de sua renda.29 Em vista disso, é plausível ver a doação regular como um requisito de respeito decente pela vida humana (consulte a nota de rodapé para recomendações).30 27

Ver Huemer 2005, capítulo 5; 2007. Ver Hardin (1974) pela exceção inevitável, mas ver Sen (1994) pela refutação de Hardin. 29 Para estatísticas pertinentes, consulte www.givingwhatwecan.org/resources/ what-you-can-reach.php. 30 É plausível que se deva dar uma quantia que se sente respeitosa. Para uma revisão das instituições de caridade com melhor custo-benefício, consulte Give Well (www.givewell.org). No momento da redação deste artigo, a Give Well atribui suas classificações mais altas à Fundação 28

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7.2.5

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No caso do acima mencionado estiver errado

Muitas vezes, é valioso considerar qual é a alternativa mais provável, caso a opinião de alguém esteja errada. Penso que a alternativa mais crível à posição adotada acima é que é permitido ao Estado (ou um agente privado) coletar coercivamente fundos para aliviar a pobreza no mundo. Ao fazê-lo, o Estado seria obrigado a priorizar pessoas com problemas muito sérios que possam ser tratados de maneira confiável e a baixo custo. Todas ou quase todas as pessoas que satisfazem essa descrição são habitantes de países em desenvolvimento. Uma vez que o Estado tenha direcionado adequadamente seus esforços de alívio da pobreza, algumas das objeções da Seção 7.2.2 também serão evitadas. A visão desafiante à distinção sugerida acima entre emergências imediatas e condições crônicas, argumentaria que algumas emergências são condições sociais crônicas ou componentes delas. Imagine que você ficou perdido na floresta por vários dias sem comida e corre o risco de morrer de fome. Você encontra uma cabana na floresta. O proprietário não está em casa, mas há muita comida dentro. Parece permitido levar comida para preservar sua vida, apesar da violação dos direitos de propriedade do dono da cabana. (Isso é permitido mesmo que você saiba que não será capaz de compensar o proprietário posteriormente e mesmo que duvide que o proprietário consentiria em permitir o consumo de sua comida.) Isso ilustra o fato de que a fome extrema pode ser considerada uma situação de emergência suficiente para justificar a violação dos direitos de propriedade de outra pessoa. E se sua fome é uma emergência desse tipo, então a fome extrema de uma criança em países em desenvolvimento é uma emergência do mesmo tipo para essa criança. Acontece que, a qualquer momento, existem muitas pessoas nessa situação; portanto, a existência de tais emergências é ela própria uma condição social crônica. Mas por que isso deveria fazer a diferença? Se um certo tipo de violação de direitos for justificado quando necessário para salvar uma pessoa da fome, então um programa que consiste em muitas dessas violações de direitos também não deve ser considerado justificado quando for necessário salvar muitas pessoas da fome? Não sei o que dizer disso. Talvez haja uma diferença ética entre cometer um roubo isolado para salvar a si mesmo e iniciar um programa regular de extorsão destinado a salvar terceiros onde quer que estejam. Ou talvez a conclusão do parágrafo anterior esteja simplesmente correta. No entanto, quero insistir em dois pontos. Primeiro, os atuais programas de combate à pobreza nos países ricos são injustificados. Eles desenvolvem coerção com justificativa inadequada, não estão focados nas pessoas mais necessitadas e Contra a Malária (www.againstmalaria.com/donate.aspx) e à Iniciativa de Controle da Esquistossomose (www3.imperial.ac.uk/schisto). Ambas recebem doações por cartão de crédito pela Internet.

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não podem ser defendidos pelo apelo às analogias de crianças afogando e cabanas na floresta. Segundo, o Estado não tem status moral especial. Se o Estado pode coercivamente arrecadar fundos para o alívio da pobreza, é porque o Estado só faria o mesmo que as partes privadas nos exemplos da criança afogando e da cabana na floresta. Nesse caso, o mesmo argumento poderia ser usado para mostrar por que uma parte privada seria também justificada na apreensão coercitiva de fundos para o alívio da pobreza. Pode-se até roubar o governo para fornecer fundos para ajudar os pobres. O Estado não tem autoridade especial aqui, embora possa gozar de vantagens práticas em seus esforços para obter recursos.

7.3

Implicações para os agentes do Estado

Os funcionários do governo responsáveis por formular políticas devem levar em consideração as observações das duas últimas seções e evitar formular políticas injustas. E os funcionários do governo que não fazem políticas, mas são instruídos a ajudar a impô-las, algumas das quais são injustas? Os policiais, por exemplo, são convidados a prender usuários e vendedores de drogas. Os juízes são convidados a sentenciá-los. Os soldados são convidados a lutar em guerras agressivas. O que esses funcionários do governo devem fazer? O policial deve se recusar a prender infratores de drogas. Se ele vir alguém usando drogas, deve deixá-lo em paz ou talvez pará-lo e dar dicas sobre como evitar ser visto por policiais. Prender o usuário de drogas seria iniciar um ato injustificado de coerção. O Estado não tem o direito de cometer atos injustos de coerção nem de ordenar que tais atos sejam cometidos; portanto, não pode conferir a seus funcionários o direito moral de praticar tais atos. Obviamente, não é como se os policiais simplesmente decidissem coagir os usuários de drogas; são obrigados a fazê-lo como parte de seu trabalho. Se eles se recusarem a aplicar leis injustas, esse fato provavelmente será conhecido e serão repreendidos ou demitidos. Mas isso não fornece desculpa para violar os direitos dos outros. Imagine que contratei um motorista para me levar pela cidade. Periodicamente, peço ao meu motorista que pratique atos injustificados de coerção. Um dia, por exemplo, vemos algumas crianças brincando na calçada. Eu digo ao motorista para parar e bater em uma das crianças para meu entretenimento. Aviso o motorista relutante que se ele não seguir minhas ordens, eu o despedirei. Então o motorista passa a bater na criança. Ao fazer isso, ele lamentavelmente diz à criança: “estou apenas fazendo meu trabalho. Eu não faço as regras.” Nesse caso, agi de maneira errada ordenando que a criança fosse espancada. Mas o motorista também claramente agiu errado ao seguir este comando. Talvez eu seja mais culpado do que o motorista, mas isso não muda o fato de que o

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motorista deveria recusar esses comandos, mesmo que isso resulte em perda do emprego. Alguns negam que o motorista esteja realmente apenas fazendo seu trabalho, porque seu trabalho é dirigir o carro, não bater nas crianças. Isto é uma distração; não importa se espancar crianças faz parte da descrição de seu trabalho. Suponha que no meu anúncio original de “Procurando por Ajuda” tenha escrito: “Procurando: pessoa com histórico limpo de condução e músculos fortes para dirigir carro e espancar crianças inocentes”. Minha inclusão da cláusula “espancar crianças inocentes” na descrição do trabalho não oferece nenhuma garantia de justificativa ética ao motorista para espancar crianças. A única diferença ética que poderia fazer é que isso pode tornar errado o motorista aceitar o trabalho em primeiro lugar. Tendo aceitado o emprego, ele ainda não tem justificativa para espancar crianças inocentes. Da mesma forma, não importa se o trabalho de um policial inclui a aplicação de leis injustas; isso não cria nenhuma justificativa para impor a aplicação de leis injustas. A única diferença que isso pode fazer é que pode ser errado ser um policial em primeiro lugar. Alguns objetariam que, se todos os policiais levassem meus argumentos a sério, todos sairiam ou seriam demitidos, o que seria muito pior para a sociedade do que ter policiais que aplicassem leis justas e injustas. Mas, certamente, muito antes de todos os policiais terem renunciado ou se demitido, o governo acataria a necessidade de reforma e revogaria as leis injustas que estavam causando a perda de sua força policial, ou pelo menos permitiria que a polícia se abstivesse de aplicar essas leis. Assim, se toda a polícia adotasse a visão que propus, a sociedade estaria de fato muito melhor. Por razões semelhantes, um juiz em um caso que envolva a violação de uma lei injusta deve fazer o possível para garantir a punição mínima possível. O juiz deve ordenar que o réu seja libertado se possível – isto é, se isso não resultar simplesmente no fato de o réu ser preso novamente e levado a um juiz mais punitivo. Se um juiz se encontra conduzindo um julgamento por algo que não deveria ser ilegal e pelo qual seria injusto punir o réu, o juiz deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para influenciar o resultado em favor do réu. Se o juiz acabar tendo que sentenciar o réu, deve ordenar a menor sentença possível. Se um juiz se vê rotineiramente obrigado, pelas exigências de seu trabalho, a participar da injustiça, ele provavelmente deve se demitir em busca de uma profissão mais justa. Um soldado também deve se recusar a lutar em uma guerra injusta. Não colocar isso em questão, lutar em uma guerra injusta é participar de um assassinato. Ao ingressar nas forças armadas, alguém se voluntaria para lutar em qualquer guerra que um país possa entrar. Portanto, se não se pode ter certeza de que

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o país não entrará em guerra injusta, deve-se abster-se de ingressar nas forças armadas; se alguém já está no exército, deve renunciar o mais rápido possível. Recomendações semelhantes se aplicam a todos os outros funcionários do governo que são chamados a implementar políticas injustas. Eles devem fazer o possível para minar essas políticas ou, se isso não for possível, recusar-se a servir. Essas recomendações quase nunca são seguidas. Os funcionários do governo quase sempre aplicam as políticas, justas ou injustas, que são ordenados a aplicar. Uma razão é que acreditam erroneamente na autoridade política; acreditam que o Estado tem o direito de impor coercivamente essas políticas, mesmo quando estão erradas. Consideram-se autorizados, talvez até obrigados, a ajudar a aplicar essas políticas de acordo com os requisitos de seu trabalho. Como isso afeta nossa avaliação de seu comportamento? Podemos distinguir a avaliação do caráter de um indivíduo da avaliação das ações do indivíduo. Frequentemente, uma dessas avaliações é muito mais positiva ou negativa que a outra, principalmente quando o agente desconhece fatos importantes sobre seu comportamento. Os soldados que lutam em uma guerra injusta, por exemplo, são tipicamente pessoas muito melhores e são muito menos culpáveis do que assassinos particulares. Isso é compatível com o fato de que existem razões objetivas muito fortes para se recusar a servir em uma guerra injusta, razões tão fortes quanto as razões para se recusar a participar de uma conspiração privada para cometer assassinato. Como regra, o fato de os funcionários do governo acreditarem que estão agindo corretamente os torna menos culpados do que seriam. Não os torna completamente inocentes; ainda podem ser culpados se, como provavelmente é o caso, não tiverem exercido esforço suficiente para descobrir onde está seu verdadeiro dever moral. De qualquer forma, a ignorância dos funcionários do governo sobre seu dever ético não altera a avaliação apropriada do que realmente devem fazer. Isso não altera o fato de que não têm o direito de fazer cumprir leis injustas.

7.4 7.4.1

Implicações para cidadãos particulares Em louvor aos desobedientes

Se não existir autoridade, a desobediência a decretos governamentais é justificada com muito mais frequência do que geralmente é reconhecido. Suponha que Sam tenha emitido exigências a seus vizinhos as quais não tem o direito de fazer, respaldado por ameaças de punição. Uma gangue de seguidores o ajuda a impor à força punições que eles não têm o direito de impor. Sam emite exigências sobre o que seus vizinhos podem comer, os termos dos contratos que podem fazer entre si, qual deles pode fornecer assistência médica a outros, quanto

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dinheiro devem pagar à gangue de Sam e assim por diante. Ele também emite alguns comandos moralmente justificados (embora sua emissão seja eticamente redundante): exige que ninguém assassine, roube e assim por diante. Agora imagine que você é um dos vizinhos de Sam. Você deseja ingerir uma certa erva com propriedades psicoativas, mas está ciente da demanda de Sam, apoiada por uma ameaça de força física de sua gangue, da qual você não faz parte. Parece claro que você não tem motivos éticos para não consumir a erva, embora, é claro, você possa ter uma forte razão prudencial, decorrente do medo da gangue de Sam, para evitá-la. Na verdade, você tem um motivo ético para consumir a erva, como forma de enfrentar o bullying de Sam. Submeter-se às demandas de um agressor é, na melhor das hipóteses, desculpável. Desafiar Sam em particular seria perfeitamente aceitável; desafiar Sam publicamente seria um ato de coragem digno de louvor. Da mesma forma, não há dúvida de que é errado desafiar leis injustas. A única questão ética é se o desafio é obrigatório ou supererrogatório. Em vista da gravidade e credibilidade das ameaças comumente emitidas pelo Estado aos infratores da lei, acredito que, na maioria dos casos, o desafio a leis injustas é supererrogatório. Em alguns casos, o desafio é imprudente, como seria imprudente quando um assaltante aponta uma arma e você se recusar a entregar sua carteira. Mas não é eticamente errado.

7.4.2

A aceitação da punição

Em alguns casos contemporâneos, aqueles que se envolvem em desobediência civil devem fazê-lo publicamente e devem aceitar a punição prescrita pelo Estado.31 Esses casos, no entanto, são desenhados no contexto de uma autoridade política assumida. Se não há autoridade política, ainda existem razões para se submeter à punição legal por atos de desobediência justificada? Desobedecer publicamente a uma lei é desobedecê-la de tal maneira e sob tais circunstâncias que a ação de alguém se tornará amplamente conhecida (entre aqueles que seguem tais casos), e será sabido que a ação violou a lei. Em muitos casos, será possível desobedecer publicamente a uma lei nesse sentido, sem revelar a identidade. (Imagine ativistas da paz grafitando em uma fábrica militar no meio da noite e depois fugindo.) Quando possível, essa forma de desobediência oferece vantagens óbvias: pode-se evitar sofrer punições desagradáveis e perma31

King (1991, 74) viu-se expressando respeito pela lei praticando sua desobediência civil abertamente e com a disposição de aceitar as punições legalmente prescritas. Rawls (1999, seção 55) procura incorporar essas condições na definição de “desobediência civil”. Neste ponto, considero a desobediência aos comandos estatais injustificados, incluindo o que Rawls chama de “desobediência civil” e o que ele chama de “recusa de consciência” (1999, seção 56).

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necer livre para realizar outros atos de desobediência no futuro, enquanto ainda comunica a rejeição da lei injusta. Às vezes, diz-se que aqueles que praticam desobediência civil devem aceitar punição por suas ações para provar sua sinceridade e seriedade para com os outros.32 Por exemplo, alguns afirmam que, no caso da conscrição, os objetores de consciência deveriam ir voluntariamente à prisão – em vez de, por exemplo, fugir para outro país – para provar que sua objeção a ir à guerra é de princípios e altruísta. Há uma série de objeções notáveis a esse pensamento. Primeiro, a exigência de aceitar punição é excessivamente exigente. Sem dúvida, existe algum valor em comunicar a sinceridade, a seriedade moral ou outras características admiráveis a outras pessoas. Mas normalmente não se é obrigado a comunicar esse tipo de informação a outras pessoas, mesmo quando os custos são mínimos. Por exemplo, suponha que eu tenha encontrado recentemente uma carteira e fiz o possível para devolvê-la ao proprietário. Não sou moralmente obrigado a divulgar esse episódio com outras pessoas, apenas para comunicar minha honestidade e virtuosidade, mesmo que possa fazê-lo sem nenhum custo. Ainda menos seria obrigado a comunicar essas informações se isso exigisse que eu passasse alguns meses ou anos na prisão. Não está claro por que o caso deve ser diferente para atos de desobediência civil. Se violei a lei, sem dúvida preferiria que outros soubessem que tinha motivos virtuosos para isso. Mas não sou obrigado a comunicar essas informações, mesmo que possa fazê-lo sem nenhum custo, e menos ainda se isso exigir meses ou anos de prisão. Alguém poderia argumentar que este caso é diferente, porque, ao desobedecer ao Estado, eu poderia levar outros a desobedecerem a outras leis, incluindo leis que devem ser obedecidas, se outros não entenderem as razões morais por trás da minha desobediência. Essa sugestão é artificial e implausível; na maioria dos casos, é altamente improvável que meu ato de desobediência faça com que outras pessoas desobedeçam a alguma lei não relacionada. Além disso, normalmente não é obrigatório que uma pessoa realize sacrifícios extremamente grandes, como passar um tempo na prisão, para impedir que outras pessoas escolham irracionalmente fazer o que é errado. Segundo, aceitar voluntariamente a punição do Estado por um ato de desobediência pode (em vez de ou além de comunicar a seriedade moral de alguém) comunicar idéias falsas e destrutivas – principalmente, que o Estado tem o direito de punir as pessoas por desobedecerem leis injustas. Se uma lei é injusta, a aplicação dessa lei por meio da punição daqueles que desobedecem também é injusta. Por que, então, alguém deveria facilitar essa injustiça submetendo-se à punição? Por exemplo, suponha que o governo de alguém esteja envolvido em 32

Rawls 1999, 322.

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uma guerra injusta, pela qual instituiu uma conscrição. Nesse caso, ninguém é obrigado a participar da guerra; se existe alguma obrigação, então é que os cidadãos são obrigados a recusar participar. Agora, além da injustiça da própria guerra, haverá também a injustiça do Estado punir aqueles que virtualmente se recusam a participar dessa guerra. E assim como ninguém é obrigado a facilitar a guerra em si, ninguém é obrigado a facilitar ou cooperar com a punição injusta daqueles que se recusam a participar da guerra. Considere uma analogia. Uma gangue homofóbica em seu bairro está espancando homossexuais.33 Se você é gay, deve se apresentar na sede da gangue e anunciar sua orientação sexual para que eles possam bater em você? Obviamente não. Entre outras coisas, submeter-se a uma surra comunicaria erroneamente que você fez algo que merece punição e que a gangue tem o direito de puni-lo. Mesmo que acredite que, ao se submeter a uma surra, aumentaria a probabilidade de que a indignação pública acabasse por levar a uma mudança no comportamento da gangue, você ainda não seria obrigado a se submeter a uma surra. Concluo que, na maioria dos casos, aqueles que desobedecem a leis injustas são eticamente permitidos e bem aconselhados a ocultar sua identidade ou a evitar a punição pelo Estado.

7.4.3

Resistência violenta

Se existe uma premissa central deste livro, é a seriedade moral da coerção. Mas o recurso à força física nem sempre está errado. Muitas vezes, é justificado para fins de legítima defesa ou defesa de terceiros inocentes. Não é implausível, portanto, que a resistência violenta possa frequentemente ser justificada em resposta à coerção injusta do Estado. Para avaliar esse pensamento, comecemos com alguns princípios gerais que governam o uso defensivo da força: i O uso da força é justificado somente quando necessário para evitar algum mau grave. Ou seja, não deve haver alternativas disponíveis que impeçam o mau sem usar níveis comparáveis de força, cometendo outros erros igualmente sérios, ou exigindo sacrifícios irracionais do agente. ii O uso da força deve ter uma chance razoável, na evidência do agente, de impedir que ocorra o mau. A menos que essa condição seja satisfeita, o uso 33

Embora os espancamentos raramente sejam prescritos pelo Estado, existem várias leis com motivações e efeitos semelhantes às ações dessa gangue hipotética. Até um processo da Suprema Corte de 2003 (Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558), a sodomia era proibida em vários Estados dos EUA. Muitos outros países ainda possuem essas leis (veja www.glapn.org/sodomylaws/world/ world.htm), que parecem ter como objetivo prejudicar os homossexuais.

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da força não será considerado como uma medida defensiva. (Em vez disso, pode contar como uma medida retaliatória; no entanto, as condições para a força retaliatória justificada estão além do escopo desta discussão.) iii O dano esperado causado pelo uso da força não pode ser desproporcional ao dano esperado evitado. Por exemplo, não é permitido matar outra pessoa apenas para impedir que ela roube seu aparelho de som. No entanto, seria permitido matar uma pessoa, se necessário, para impedir que ela a machucasse seriamente. iv Geralmente não é permitido ferir terceiros inocentes no curso de violência defensiva. Tais danos a terceiros inocentes podem às vezes ser justificados, mas isso geralmente exige benefícios esperados muito maiores do que os danos esperados. Historicamente, existem duas formas principais de resistência armada ao Estado: terrorismo e (tentativa) revolução. Nas sociedades modernas desenvolvidas, é improvável que uma tentativa de revolução armada seja justificada, por três razões. Primeiro, geralmente existem opções não-violentas disponíveis, que mostraram um sucesso surpreendente em alguns casos, como os casos conhecidos de Gandhi e Martin Luther King Jr. Segundo, a probabilidade de uma revolução bem-sucedida nas sociedades mais modernas e desenvolvidas é muito perto de zero. Terceiro, no caso de tentativa de revolução, o dano a terceiros inocentes provavelmente será muito grande. Os ataques terroristas não têm mais probabilidade de serem justificados. Os mesmos três pontos se aplicam: métodos não violentos geralmente estão disponíveis, métodos terroristas são ineficazes e os danos esperados a pessoas inocentes são excessivos. Um estudo de 2006, examinando 28 grupos terroristas, constatou que, usando critérios generosos de sucesso, esses grupos atingiram seus objetivos políticos apenas 7% do tempo. Estudos posteriores, usando amostras maiores, encontraram taxas de sucesso abaixo de 5% e, em muitos casos, os objetivos políticos dos terroristas foram realmente atrasados.34 Por que o terrorismo é tão ineficaz? Quando terroristas atacam civis, as populações tendem a aumentar seu apoio a candidatos políticos de direita, propondo respostas agressivas. Esses linha-dura não têm medo do terrorismo, nem deveriam ter; é extremamente improvável que sejam pessoalmente vitimados pelo terrorismo e, de fato, suas carreiras políticas são fortemente avançadas pelo terrorismo e pela oportunidade que isso proporciona a uma postura agressiva.35 Todos esses pontos são ilustrados pelos infames 34

Abrahms 2006; 2011, 587–8. Abrahms 2011, 589. Abrahms observa que os ataques a alvos militares são mais eficazes e respondem pela maioria dos sucessos que os terroristas tiveram. 35

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ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o que levou o governo dos EUA a aumentar enormemente sua presença militar no Oriente Médio, matando centenas de milhares de muçulmanos. Embora essa resposta fosse irracional e repreensível, também era previsível. Por via de regra, portanto, ataques terroristas são moralmente errados. A questão de quando alguém pode prejudicar terceiros inocentes durante a tentativa de interromper uma opressão e injustiça é motivo de debate. Mas certamente não se pode prejudicar terceiros inocentes por causa de gestos ineficazes ou contraproducentes.

7.4.4

Em defesa da anulação do júri (jury nullification)

A maioria dos leitores, em algum momento, será obrigada a servir em um júri em um julgamento criminal. Muitos desses julgamentos serão por crimes que realmente merecem ser punidos. Mas muitos outros serão por violação de leis injustas, como as leis mencionadas na Seção 7.1. Portanto, é de grande interesse prático o que um jurado deve fazer neste último tipo de caso. Quando a lei é injusta, o jurado deve votar para absolver, independentemente da evidência. Resumidamente, o argumento é o seguinte: em geral, é errado causar conscientemente danos injustos a outro ser humano. Condenar o acusado por violar uma lei injusta resultará, em regra, no sofrimento significativo e injusto nas mãos do Estado. Portanto, é prima facie errado condenar esse réu. Duas objeções devem ser consideradas. Para começar, pode-se argumentar que um jurado que vota por condenação não seria culpado pelo sofrimento do réu, porque o jurado não fez a lei injusta nem o próprio jurado está impondo diretamente a punição. Supondo que o promotor prove seu caso, o membro do júri que vota na condenação está apenas relatando corretamente o fato de que o réu executou uma determinada ação. O que os funcionários do Estado fazem com essa informação depende deles; o jurado não está dizendo para punir o réu (mesmo sabendo que isso acontecerá). Uma objeção relacionada é que se tem o dever de dizer a verdade. Votar em uma absolvição, em um caso em que as evidências mostrem que o réu realmente violou a lei injusta, seria desonesto. Seria o equivalente a uma falsa afirmação de que o réu não demonstrou ter violado essa lei.36 Ambas as objeções podem ser abordadas pela seguinte analogia. Você está andando pela rua com um de seus amigos vestido mais extravagantemente. Você encontra uma gangue de bandidos. O líder da gangue pergunta se seu amigo 36 Esse argumento depende da suposição de que um veredito do júri é uma avaliação unicamente da questão de saber se o réu executou as ações atribuídas a ele. Duane (1996) sustenta que o veredito do júri é uma avaliação da justiça ou adequação da punição do acusado.

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é gay. Você está convencido de que eles são agressores de gays e que, se você responder “sim” ou se recusar a responder, vão bater no seu amigo. Vocês dois têm a melhor chance de saírem ilesos se responderem “não”. Você sabe, no entanto, que seu amigo é de fato gay. Assim, ao responder “não”, você estaria mentindo. Portanto, você deve recusar-se a responder ou responder “sim”? Ninguém, a não ser um kantiano fanático, diria isso. É verdade que mentir geralmente está errado, mas não quando a pessoa a quem você está mentindo é alguém que usaria uma resposta verdadeira como pretexto para causar danos graves e injustos a outro ser humano. Se você contar a verdade aos bandidos, mais tarde poderá consertar as coisas com seu amigo, quando o visitar no hospital, lembrando-o de que você não é culpado pelos bandidos odiarem os gays e nem bateu pessoalmente no seu amigo com seus próprios punhos? Você poderia argumentar que tudo o que você fez foi relatar uma questão de fato e que o que os bandidos fizeram com essa informação só dependia deles? Na maioria dos tribunais, os jurados são instruídos a dar um veredito com base nas evidências e que não devem optar por anular a lei. Eles podem até ser solicitados a prestar juramento nesse sentido, quando se recusam a jurar então o resultado é a demissão do serviço do júri. Isso não altera o verdadeiro dever moral do jurado. Suponha que, no cenário acima, o líder de gangue homofóbico peça que você prometa contar a verdade sobre seu amigo. Suponha que também o instrua, com um grande ar de confiança e solenidade, que você deve contar a verdade a ele e que não tem o direito de mentir porque discorda de suas predileções por gays. Então você seria obrigado a dizer a verdade? Novamente, não. Agressores homofóbicos não têm o direito de saber quem é ou não é gay. Você deve prometer dizer a verdade e depois mentir imediatamente. Nos Estados Unidos, os jurados que votam na absolvição de um réu, alegando que a lei é injusta, não estão sujeitos a punição e seus vereditos não podem ser revogados. Assim, apesar do que possa ser dito, os jurados certamente podem anular as leis, nos sentidos relevantes de “pode”. A aversão à mentira e a quebra da promessa (se é isso que a anulação do júri envolve) é uma consideração trivial próxima à importância de impedir que uma pessoa sofra danos graves e injustos.

7.5 7.5.1

Objeções em apoio ao culto à regra Todos podem fazer o que desejam?

As pessoas têm suas próprias opiniões sobre exatamente quais leis são justas. Pode-se, portanto, pensar que a visão filosófica que propus fornece carta branca para os indivíduos simplesmente fazerem o que quiserem, citando interpretações idiossincráticas da justiça em sua defesa.

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Claro que isso seria um erro. Minha posição filosófica não implica que os indivíduos possam violar quaisquer leis que queiram violar. Suponha que Sally queira roubar dinheiro de sua empresa para poder viver às custas de outras pessoas. Sally, portanto, desonestamente alega achar as leis que governam a propriedade “injustas”, e ela usa isso para racionalizar seu comportamento. Nesse caso, o comportamento de Sally está errado. Sua mera afirmação de que as leis de propriedade são injustas não significa nada, eticamente, para desculpá-la. Suponha que Mary também esteja roubando dinheiro de sua empresa. Mary, no entanto, acredita sinceramente que as leis que governam a propriedade são injustas, pois ela acredita numa ideologia política equivocada que rejeita a propriedade privada. Nesse caso, o comportamento de Mary está correto? Não, não está. Mary se engana ao pensar que as leis de propriedade são injustas, então também se engana ao considerar que seu próprio comportamento é eticamente permissível. Dependendo de quão compreensível seja o seu erro, Mary pode ser menos culpada do que Sally, mas sua ação é igualmente errada. Por isso, por exemplo, seria apropriado que terceiros usassem a coerção para impedir Mary de pegar mais dinheiro e obrigá-la a compensar seu empregador. Isso é consistente com tudo o que disse anteriormente neste capítulo. Se uma lei é injusta, pode-se violar. Mas não é o caso que, se alguém simplesmente acredita que uma lei é injusta, pode violá-la; depende se a crença está correta. Existem muitos casos em que não podemos dizer se uma lei é justa ou injusta; a justiça é um assunto difícil. O que devemos fazer então? Nos casos em que não sabemos se a lei é justa, simplesmente não saberemos se é permitido violar essa lei. Não posso dizer nada aqui que faça com que os leitores possam saber em todos os casos o que é justo ou o que devem fazer. Meu único conselho para tais situações é que se faça uma pesquisa mais aprofundada sobre o assunto (talvez na literatura de filosofia ética e política) e depois exerça o melhor julgamento. Para alguns, essa visão será insatisfatória. Uma visão mais satisfatória seria aquela que fornece uma regra simples, mais ou menos mecânica, para o que fazer em todos os casos. Por exemplo, se pudéssemos dizer: “Em caso de dúvida, sempre obedeça à lei”, muitos considerariam essa uma posição mais satisfatória do que a posição que às vezes não podemos dizer se devemos obedecer à lei ou não. Mas regras satisfatoriamente simples e convenientes não são, portanto, corretas. Em particular, não há razão para pensar que sempre que houver dúvida quanto à justiça de uma lei, é melhor obedecer do que desobedecer a essa lei. Suponha que um soldado tenha sido ordenado por seu governo para lutar em uma guerra. O soldado não tem certeza se essa ordem é justa, porque não tem certeza se a guerra em si é justa. Nada nesta descrição do caso nos permite inferir que seria certo ou bom que o soldado lutasse na guerra. Se lutar, pode estar

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participando de assassinatos em massa. Não sabemos o suficiente para dizer se é esse o caso. A informação crucial que precisaríamos, antes de podermos aconselhar o soldado sobre o que deveria fazer, é uma informação moral: precisamos saber se a guerra é justa. O fato desse conhecimento poder ser difícil ou mesmo impossível de obter não impede que seja o conhecimento relevante e necessário para abordar o que está em questão, nem permite que outro fato mais facilmente conhecível resolva a questão. Isso é simplesmente a condição humana, nossas perguntas éticas frequentemente não têm respostas fáceis.

7.5.2

Processo versus substância

Em um artigo inicial defendendo o caso do fair play da obrigação política, John Rawls toma como sua questão central: “Como é possível que uma pessoa, de acordo com sua própria concepção de justiça, se veja obrigada pelos atos de outra pessoa a obedecer uma lei injusta [. . . ]?” E ele responde: “Para explicar isso [. . . ] exigimos duas hipóteses: que entre o número muito limitado de procedimentos que teriam qualquer chance de ser estabelecido, nenhum tornaria minha decisão decisiva [. . . ]; e que todos esses procedimentos determinariam condições sociais que julgo serem melhores que a anarquia.”37 Minha leitura dessa passagem é que Rawls está assumindo (1) que devemos confiar em algum critério processual para decidir quais leis são legítimas ou devem ser obedecidas e (2) que um indivíduo que desobedece uma lei com base no fato de que a lei é injusta aplica a seguinte regra processual: que uma lei deve ser rejeitada se entrar em conflito com o senso de justiça desse indivíduo. Ele considera a última regra inadequada e inferior aos procedimentos democráticos. Portanto, Rawls acredita que, se uma lei tiver sido feita de acordo aos procedimentos democráticos, um indivíduo não deve desobedecer a lei com base em que (ele acredita) a lei é injusta. Mas Rawls não justifica essas suposições; não explica por que os motivos para obedecer ou desobedecer a determinadas leis devem ser processuais. Em vez disso, uma lei pode ser aceita ou rejeitada por motivos substantivos. Quando digo que as leis sobre drogas podem ser violadas por serem injustas, não estou dizendo que as leis sobre drogas foram feitas de acordo com o procedimento errado. Estou dizendo que são substancialmente injustas; violam um direito moral substantivo, o direito de controlar o próprio corpo, que os indivíduos possuem independentemente das decisões do Estado. Isso seria verdade independentemente de como a lei foi feita (exceto, é claro, no caso improvável de consentimento unânime da lei, o que tornaria a violação de direitos). Não estou 37

Rawls, 1964, pp. 11–12. O contexto também contém algumas hipóteses de contrato social que considero inúteis.

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propondo um procedimento pelo qual minha opinião pessoal seja decisiva; se eu não existisse ou tivesse sancionado as leis sobre drogas, elas ainda seriam injustas. Se eu objetasse a alguma lei que é realmente justa – por exemplo, se objetasse aos estatutos do assassinato – minha objeção não converteria a lei justa em injusta. Em outras palavras: quando me oponho às leis sobre drogas, meus motivos de objeção não são simplesmente o que me oponho. Meu motivo de objeção é o direito de autopropriedade, o direito dos indivíduos de controlar seus próprios corpos. O argumento de Rawls não tem nada a dizer sobre se esse é um fundamento legítimo para rejeitar e, portanto, desobedecer, uma lei. Por que se pode pensar que devemos confiar em regras processuais e não em princípios morais substantivos? Talvez porque se pense que não sabemos o que é moralmente correto, enquanto sabemos o que é um procedimento desejável. Se esse é o raciocínio por trás da suposição procedimentalista de Rawls, isso é duplamente equivocado. Primeiro, ele está errado, porque é falso que, em geral, não sabemos o que é substancialmente moralmente correto. Às vezes, não sabemos o que é substancialmente justo. Mas muitas vezes sabemos. Não sei, por exemplo, se a proibição do aborto seria injusta. Mas sei que as leis de Jim Crow eram injustas. Quando sabemos que uma lei é injusta, nossa oposição a ela pode e deve se basear no fato de ser injusta, não no fato de que ela entra em conflito com nossas opiniões ou preferências pessoais. Segundo, se fosse verdade que nunca saberíamos o que era substancialmente justo, também não saberíamos o que era procedimentalmente justo. Não há razão para pensar que o conhecimento de procedimentos justos de alguma maneira escaparia do alcance de um ceticismo moral forte o suficiente para descartar todo conhecimento de resultados justos. Se, por exemplo, não podemos saber que as leis que tratam os cidadãos de maneira grosseiramente desigual com base em características moralmente irrelevantes são injustas, por que saberíamos que os procedimentos legislativos que falham em dar aos cidadãos uma voz igual são injustos?

7.5.3

Minando a ordem social?

Imagine que os pontos de vista que defendi se generalizem e, em particular, que a noção de autoridade política seja amplamente rejeitada. Os cidadãos, portanto, sentem-se livres para violar quaisquer leis que considerem eticamente censuráveis sempre que puderem evitar a punição. Agentes do governo se recusam a aplicação do cumprimento das leis que consideram eticamente censuráveis. Os júris se recusam a condenar os réus sob estatutos que consideram questionáveis. Isso não tornaria nosso sistema jurídico muito caótico e imprevisível? A ordem social pode não entrar em colapso por completo?

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A sugestão do parágrafo anterior é simplesmente que pode ser muito prejudicial propagar as visões apresentadas neste livro, tanto que talvez não devesse tê-lo publicado. Isso é compatível com a possibilidade de que tudo o que digo seja realmente verdade. As terríveis advertências sobre o colapso da ordem social, no entanto, são mal tomadas. As opiniões que proponho têm mais probabilidade de serem socialmente benéficas do que prejudiciais. Imaginamos cidadãos violando leis que consideram injustas, a polícia se recusando a aplicar o cumprimento de leis que consideram injustas e júris se recusando a condenar sob leis que consideram injustas – tudo porque um ceticismo geral de autoridade tomou conta da sociedade. Além disso, devemos assumir que os próprios legisladores absorveram a mesma filosofia de ceticismo sobre a autoridade política. Nesse caso, haveria muito menos leis – e muito menos leis injustas em particular. A maioria das leis que teriam ocasionado desobediência civil generalizada não existiria, porque os legisladores não as adotariam ou as teriam revogado durante o período em que o ceticismo sobre a autoridade toma conta da sociedade. Mas suponha que sobrevenha uma lei específica que algumas pessoas consideram injusta. Se o número de pessoas que consideram a lei injusta é muito pequeno, não há dificuldade. Por exemplo, suponha que um pequeno número de pessoas considere as leis contra roubo injustas. Como a esmagadora maioria da sociedade considera essas leis justas, ainda haveria policiais, juízes e jurados em número suficiente dispostos a aplicar as leis contra roubo. O governo só enfrentaria um problema quando grande parte da sociedade considerasse injustas algumas leis. Por exemplo, um número significativo de pessoas atualmente considera as leis de drogas injustas. Se fosse amplamente aceito que alguém não deveria ajudar a impor uma lei injusta, alguns policiais se recusariam a prender infratores. Alguns juízes se recusariam a sentenciá-los. E muitos júris se recusariam a condená-los. Julgamentos sob as leis de drogas e outros estatutos controversos resultariam repetidamente em júris suspensos. Uma vez que esse padrão se tornasse claro, o Estado provavelmente desistiria de tentar fazer cumprir essas leis. É com esse desastre social que devemos nos preocupar? Pelo contrário, seria uma situação muito melhor do que o status quo. Quando a justiça de uma lei é controversa, é melhor errar do lado da liberdade do que do lado da restrição. Talvez algumas leis justas, infelizmente, não sejam aplicadas. Mas a redução no número de pessoas punidas indevidamente sob leis injustas compensaria mais do que essa desvantagem. É amplamente conhecido de que é melhor dez pessoas culpadas serem libertadas do que uma pessoa inocente ser punida. Se isso for verdade, também é melhor que dez pessoas deixem de ser condenadas sob leis justas do que uma pessoa seja condenada sob uma lei injusta. Nosso sistema atual, no entanto, erra muito na direção oposta: mesmo quando o status moral

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de uma lei está em dúvida, policiais, juízes e júris quase sempre aplicam a lei sem questionar. Em uma nota realista, a imagem de pessoas comuns, à beira da desordem, esperando uma desculpa para correrem desenfreadas em desrespeito à lei e à ordem, desaparece diante de tudo o que sabemos sobre a psicologia da autoridade (ver Capítulo 6) . Evidências como os experimentos de Milgram, o Holocausto e o massacre de My Lai deixam pouca dúvida de que o ser humano médio tem muito mais probabilidade de cometer crimes hediondos em nome da obediência à autoridade do que desobedecer precipitadamente os comandos justificados de uma figura de autoridade. Literalmente, milhões morreram por causa da disposição generalizada de obedecer a mandamentos injustos. Portanto, mesmo que meu ceticismo sobre autoridade vá longe demais, provavelmente servirá como um corretivo valioso para nossa tendência excessiva a obedecer, em vez de representar um perigo de destruição da ordem social.

7.5.4

As consequências da doutrina da independência do conteúdo

Argumentei que o Estado tem o direito de fazer e aplicar apenas leis eticamente corretas. Alguns pensam que isso exige muito do Estado; qualquer governo dirigido por seres humanos falíveis às vezes cometerá erros, incluindo erros morais.38 Se pensarmos que os agentes do Estado não têm margem de manobra, nenhum direito a cometer erros, então podem ficar paralisados pela inação, pelo medo de fazer o que é errado. Pode-se, portanto, pensar que o Estado deveria ter pelo menos alguma margem de manobra na forma de um direito independente do conteúdo de fazer regras, desde que suas regras não sejam muito irracionais. O raciocínio paralelo pode ser aplicado a agentes privados. Também não é realista, por exemplo, esperar que uma grande corporação privada seja perfeita; qualquer empresa desse tipo às vezes comete erros, incluindo erros morais. Mas ninguém pensa que isso significa que devemos atribuir às grandes empresas um direito moral de realizar periodicamente ações injustas ou erradas, desde que não sejam muito irracionais. Reconhecemos que uma grande corporação às vezes erra, mas não concordamos com esses erros. Nós os condenamos quando acontecem e exigimos que a empresa corrija. Do mesmo modo, não devemos concordar com as más ações do Estado, por mais previsíveis que sejam; devemos condená-lo quando isso acontecer e exigir que o Estado corrija. Essa atitude não tornará impossível a manutenção de um Estado, assim como a atitude análoga em relação às corporações não torna impossível manter uma corporação. 38

Estlund 2008, 157–8; Christiano 2008, 239–40; Klosko 2005, 116.

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Quais são as prováveis consequências sociais da crença na autoridade independente de conteúdo? Christiano nos diz que “a assembléia democrática tem o direito de fazer o mal, dentro de certas limitações.” Rawls observa: “É, é claro, uma situação familiar [. . . ] a qual uma pessoa se vê moralmente obrigada a obedecer a uma lei injusta.39 Essa ideia aumenta ou diminui a probabilidade de o Estado alcançar os objetivos sociais em prol dos quais o Estado deveria ser necessário? Considere uma analogia. Você contratou um jardineiro para cuidar das plantas no seu quintal. Você quer que ele cuide de todas as plantas e que não faça mais nada, como entrar em casa e roubar suas jóias. Qual das duas instruções a seguir você deve dar ao jardineiro? A Você deve cuidar de todas as plantas. Você não deve entrar na casa e roubar jóias. B Idealmente, você deve cuidar de todas as plantas, mas você tem alguma margem de manobra; você tem o direito de danificar ou negligenciar periodicamente algumas delas. Também seria melhor se você não entrasse em casa e roubasse jóias. Mas você pode fazer isso ocasionalmente, desde que não fique fora de controle. Rawls, Christiano e outros defensores da autoridade política independente do conteúdo estão de fato dando instruções (B) ao jardineiro. Eu diria (A) ao jardineiro. Qual é realmente a filosofia socialmente perigosa?

7.6

Uma modesta fundamentação libertária

O libertarianismo é uma filosofia do governo mínimo (ou, em casos extremos, nenhum governo), segundo a qual o governo não deve fazer mais do que proteger os direitos dos indivíduos.40 Essencialmente, os libertários defendem as conclusões políticas defendidas neste capítulo. Mas essa posição é muito controversa na filosofia política. Muitos leitores se perguntam se somos realmente forçados a isso. Certamente, para chegar a essas conclusões radicais, devo ter feito algumas suposições extremas e altamente controversas ao longo do caminho, suposições que a maioria dos leitores deveria se sentir livre para rejeitar? Os autores libertários de fato confiaram frequentemente em suposições controversas. Ayn Rand, por exemplo, pensava que o capitalismo só poderia ser 39

Christiano 2008, 250; Rawls 1964, 5. Por “assembleia democrática”, significa para Christiano que é o legislador em uma democracia representativa. 40 Nota terminológica: o anarquismo capitalista conta como uma forma extrema de libertarianismo.

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defendido pelo apelo ao egoísmo ético, a teoria de que a ação certa para qualquer pessoa em qualquer circunstância é sempre a ação mais egoísta.41 Robert Nozick é amplamente lido como baseando seu libertarianismo numa concepção absolutista dos direitos individuais, segundo a qual os direitos de propriedade de um indivíduo e os direitos de ser livre de coerção nunca podem ser superados por quaisquer consequências sociais.42 Jan Narveson se apoia em uma teoria metaética, segundo a qual os princípios morais corretos são determinados por um contrato social hipotético.43 Devido à natureza controversa dessas teorias éticas ou metaéticas, a maioria dos leitores acha fácil rejeitar os argumentos libertários baseados neles. Recorri a nada tão controverso em meu próprio raciocínio. Rejeito as bases do libertarianismo mencionadas no parágrafo anterior. Rejeito o egoísmo, pois acredito que os indivíduos têm obrigações substanciais de levar em consideração os interesses dos outros. Rejeito o absolutismo ético, pois acredito que os direitos de um indivíduo podem ser substituídos por necessidades suficientemente importantes de outros. E rejeito todas as formas de teorias dos contratos sociais, pelas razões discutidas nos capítulos 2 e 3. A fundamentação do meu libertarianismo é muito mais modesto: a moral do senso comum. À primeira vista, pode parecer paradoxal que tais conclusões políticas radicais possam resultar de qualquer coisa chamada “senso comum”. Obviamente, não reivindico visões políticas de bom senso. Afirmo que essas visões políticas revisionistas emergem de visões morais do senso comum. A meu ver, a filosofia política libertária repousa em três ideias amplas: i Um princípio de não-agressão na ética interpessoal. Grosso modo, essa é a ideia de que os indivíduos não devem atacar, matar, roubar ou fraudar uns aos outros e, em geral, que os indivíduos não devem se coagir, exceto por algumas circunstâncias especiais. ii Um reconhecimento da natureza coercitiva do governo. Quando o Estado promulga uma lei, a lei geralmente é apoiada por uma ameaça de punição, que é apoiada por ameaças críveis de força física dirigidas contra aqueles que desobedecem ao Estado. iii Um ceticismo da autoridade política. O resultado desse ceticismo é, grosso modo, que o Estado não pode fazer o que seria errado para qualquer pessoa ou organização não-governamental. 41

Rand, 1964, 33; 1967, 195-6, 200-1. Nozick 1974, pp. 28–35. Nagel (1995, 148) vê Nozick como um absolutista, embora de fato Nozick (1974, 30n) expresse alguma dúvida sobre o absolutismo. 43 Narveson 1988, capítulos 12-14. 42

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A principal suposição ética positiva do libertarianismo, o princípio da nãoagressão, é a mais difícil de articular com precisão. Na verdade, é uma coleção complexa de princípios, incluindo proibições de roubo, assalto, assassinato e assim por diante. Não consigo articular completamente esse conjunto de princípios. Felizmente, não é o lócus de desacordo entre libertários e partidários de outras ideologias políticas, pois o “princípio da não-agressão”, como eu uso o termo, é simplesmente a coleção de proibições de maltratar outros que são aceitos na moral do senso comum. Quase ninguém, independentemente da ideologia política, considera roubo, assalto, assassinato, etc. moralmente aceitável. Não precisamos de uma lista completa dessas proibições, pois conseguimos construir os argumentos deste livro baseando-nos em intuições sobre casos específicos. Não fiz suposições particularmente fortes sobre essas proibições éticas. Por exemplo, não presumo que roubo nunca seja permitido. Suponho simplesmente que não é permitido em circunstâncias normais, como ditado pela moral do senso comum. O segundo princípio, o da natureza coercitiva do governo, é igualmente difícil de contestar. A natureza coercitiva do governo é comumente esquecida ou ignorada no discurso político, no qual a justificativa para coerção raramente é discutida. Mas praticamente ninguém nega que o Estado fia-se regularmente na coerção. É a noção de autoridade que forma o verdadeiro lócus da disputa entre o libertarianismo e outras filosofias políticas. Os libertários são céticos em relação à autoridade, enquanto a maioria aceita a autoridade do Estado em mais ou menos os termos em que o Estado a reivindica. É isso que permite à maioria endossar o comportamento governamental que, de outra forma, parece violar os direitos individuais: os não-libertários assumem que a maioria das restrições morais que se aplicam a outros agentes não se aplica ao Estado. Portanto, concentrei-me em defender o ceticismo sobre autoridade, abordando as teorias de autoridade mais interessantes e importantes. Para defender esse ceticismo, novamente, não confiei em suposições éticas particularmente controversas. Considerei os fatores que supostamente conferem autoridade ao Estado e constatei que, em cada caso, esses fatores não estão realmente presentes (como no caso da autoridade baseada em consentimento) ou esses fatores simplesmente não são suficientes para conferir o tipo de autoridade reivindicada pelo Estado. O último ponto é estabelecido pelo fato de que um agente não governamental a quem esses fatores se aplica geralmente não seria atribuído a algo como autoridade política. Sugeri que a melhor explicação para a inclinação de atribuir autoridade ao Estado está em uma coleção de preconceitos não-racionais que operariam se houvesse ou não autoridades legítimas. A maioria das pessoas nunca faz uma pausa para questionar a noção de autoridade política, mas uma vez examinada, a

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ideia de um grupo de pessoas com um direito especial de comandar todo mundo se dissolve de maneira justa. Essas três ideias – o princípio da não-agressão, a natureza coercitiva do governo e o ceticismo em relação à autoridade – juntas exigem uma filosofia política libertária. A maioria das ações do governo viola o princípio da não-agressão – ou seja, são ações de um tipo que seria condenado pela moralidade do senso comum se fossem executadas por qualquer agente não-governamental. Em particular, o governo geralmente aplica coerção em circunstâncias e por razões que de maneira alguma seriam consideradas adequadas para justificar a coerção por parte de um indivíduo ou organização particular. Portanto, a menos que concedamos ao Estado alguma isenção especial de restrições morais comuns, devemos condenar a maioria das ações do governo. As ações que permanecem são apenas as que os libertários aceitam. Como alguém pode evitar a conclusão libertária? Apenas rejeitando um dos três princípios fundamentais que identifiquei. É extremamente improvável questionar a natureza coercitiva do governo, e duvido que qualquer teórico deseje adotar essa atitude. Alguns teóricos vão questionar a moral do senso comum. Não tomei uma defesa geral da moral do senso comum neste livro e não a farei agora. Todo livro deve começar em algum lugar, e começar com pressupostos que, em condições normais, não se pode roubar, matar ou atacar outras pessoas parece bastante razoável. Esse é o ponto de partida menos controverso e menos duvidoso para um livro de filosofia política que já vi, e acho que poucos leitores se sentirão felizes em rejeitá-lo. A maneira menos implausível de resistir ao libertarianismo continua sendo a de resistir ao ceticismo do libertário em relação à autoridade. Abordei o que me parece ser o relato mais interessante, influente ou promissor da autoridade política – a teoria tradicional do contrato social, a teoria do contrato social hipotético, o apelo aos processos democráticos e o apelo à justiça e às boas consequências. Mas não posso abordar todos os possíveis casos de autoridade, e um número razoável de pensadores pode reagir ao meu desempenho propondo casos alternativos de autoridade. Suspeito, no entanto, que a estratégia geral em que confiei possa ser estendida a esses casos alternativos. Uma teoria da autoridade citará alguma característica do Estado como fonte de sua autoridade. Minha estratégia começa imaginando um agente privado que possui esse recurso. Obviamente, isso não será possível se o recurso em questão envolver um Estado – mas até agora, os recursos que foram alegados como a fonte da autoridade política do Estado não envolveram um Estado (ninguém, por exemplo, propôs que a autoridade seja conferida simplesmente pela propriedade de ser um Estado). Por exemplo, a propriedade de ser algo que seria aceito por todas as pessoas razoáveis, a propriedade de ser real-

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mente aceito pela maioria da sociedade e a propriedade de produzir consequências muito boas são propriedades que uma organização não-governamental ou de políticas que qualquer organização poderia possuir. Como mencionei, imaginamos um agente não-governamental com a característica relevante. Percebemos então que intuitivamente não atribuiríamos a esse agente algo como um direito completo, independente de conteúdo e supremo de coagir a obediência de outras pessoas. E assim concluímos que o recurso proposto falha como fundamento da autoridade política.

Parte II Sociedade sem Autoridade

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8 Avaliando as Teorias Sociais Nos capítulos a seguir, peço ao leitor que considere uma teoria ampla de como a sociedade deve ser organizada. Antes de explicar essa teoria e os argumentos em seu apoio, pode ser útil discutir como as teorias desse tipo devem ser avaliadas.

8.1

Observações gerais sobre a avaliação racional das teorias sociais

8.1.1

A avaliação racional é comparativa

Muitas vezes decidimos quando adotar um curso de ação perguntando simplesmente se a ação é boa ou ruim. Mas a questão mais apropriada é se a ação é melhor ou pior que as alternativas.1 Suponha que enquanto estou dirigindo meu carro, vejo um cachorro na rua. Eu tenho a opção de atropelar o cachorro. Devo fazer isso? A resposta depende de quais são minhas alternativas. Se eu também tiver a opção de parar o carro e esperar o cachorro atravessar, não devo bater nele. Mas e se meus freios falharem e não puder parar o carro? E se, além disso, houver uma criança brincando na calçada à minha direita e um carro na pista à minha esquerda? Minhas únicas opções são acertar a criança, bater no carro que se aproxima ou bater no cachorro. Nesse caso, eu deveria bater no cachorro. Esta opção não é boa, mas é melhor que as alternativas. 1

Mantenho o ponto dessa forma pela simplicidade de expressão; Não pretendo, no entanto, pressupor o consequencialismo. Nos casos em que os deveres não-consequencialistas se aplicam, o que importa é se uma ação realiza um trabalho melhor para satisfazer os deveres prima facie do que as alternativas disponíveis (ver Ross, 1988, capítulo 2). Por exemplo, se devo cumprir uma promessa depende se minhas alternativas disponíveis violariam deveres mais rigorosos do que o dever de cumpri-la.

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O mesmo ponto se aplica à avaliação das teorias sociais, onde a questão relevante não é se alguma estrutura social seria boa ou ruim simplesmente, mas se seria melhor ou pior que as alternativas; isto é, as outras estruturas sociais que poderíamos adotar. Este ponto pode ser óbvio, mas vale a pena enfatizar, porque é fácil esquecer na prática; frequentemente criticamos ou defendemos propostas políticas sem considerar quais são as alternativas. Um corolário é que nosso padrão para avaliar teorias sociais não deve ser o da perfeição. Isto é, não devemos rejeitar uma estrutura social proposta porque, sob ela, algumas pessoas sofrerão com alguns problemas sociais. A perfeição não é uma das opções disponíveis para as sociedades humanas. Devemos rejeitar um sistema social se e somente se pudermos identificar uma alternativa superior.

8.1.2

A avaliação racional é abrangente

Ao avaliar um sistema social, devemos considerar todas as vantagens e desvantagens desse sistema. Não devemos permitir que nossa avaliação seja indevidamente influenciada por uma única questão social. Imagine um ativista social, a quem chamarei de “mamãe”, cuja questão social favorita é dirigir embriagado. Ela participa de comícios contra dirigir embriagado, cita estatísticas sobre o problema para seus amigos e escreve cartas ao congressista e aos jornais locais, pedindo leis mais duras para combater a direção embriagada. Mamãe sabe que existem muitos outros problemas sociais sérios; no entanto, nenhum deles clama a mesma paixão. Confio que esse tipo de fenômeno seja familiar o suficiente; toda questão social tem suas mães. Suponha, além disso, que mamãe fique convencida de que a anarquia, embora possa abordar adequadamente qualquer outro problema, não pode abordar o problema de dirigir embriagado quase tão bem quanto algum sistema governamental. Como resultado, mamãe se vê incapaz de aceitar o anarquismo. A história da mamãe tem o objetivo de ilustrar um ponto psicológico: temos apegos emocionais a questões sociais específicas que geralmente são desproporcionais ao significado objetivo dessas questões, e esses apegos emocionais podem influenciar nossa avaliação das teorias sociais. Os pensadores devem se conscientizar desse problema para se protegerem. Devemos reconhecer a possibilidade de que o sistema que seja melhor para a sociedade não resolva todos os problemas e não resolva os problemas com os quais sentimos o maior compromisso psicológico.

8.1.3

Variedades de governo e anarquia

Suponha que um anarquista, procurando mostrar a superioridade da anarquia sobre o governo, traga a União Soviética sob o comunismo como uma ilustração

8. Avaliando as Teorias Sociais

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da natureza do governo. Sob o comunismo soviético, dezenas de milhões de pessoas inocentes foram mortas pelo governo – algumas por discordarem do governo, a maioria simplesmente por pertencerem à classe social errada.2 O restante foi forçado a viver por décadas sob opressão e pobreza. A anarquia seria melhor do que isso. Poucos observadores teriam dificuldade em identificar a falácia nesse raciocínio: aqueles que defendem o governo normalmente não defendem toda e qualquer forma de governo. Eles não precisam defender, por exemplo, a ditadura comunista; precisam defender apenas alguma forma viável de governo. Assim, ao comparar governo e anarquia, devemos examinar a melhor forma viável de governo. Não importa se também temos disponível alguma forma terrível de governo que nunca desejaríamos adotar (a menos que, tendo decidido ter um governo, não tenhamos controle de que forma de governo obtemos). A partir de agora, assumirei sem argumentos que a melhor forma de governo é a democracia representativa. O mesmo ponto se aplica ao outro termo da comparação: os teóricos anarquistas não precisam defender toda e qualquer condição não-governamental; precisam defender apenas alguma estrutura social não-governamental viável. Não importa se, além disso, existem formas terríveis de anarquia que nunca desejaríamos (a menos que, novamente, não tenhamos controle de qual forma de anarquia temos). Os pensadores anarquistas diferem sobre qual seria o melhor sistema nãogovernamental, principalmente se ele teria uma economia socialista ou capitalista.3 Não entrarei nesse debate aqui. Simplesmente assumirei o capitalismo como a melhor alternativa. Isso não será assim porque não vale a pena considerar formas socialistas de anarquismo, mas simplesmente porque a comparação de dois sistemas sociais, democracia representativa e anarquia capitalista, se mostrará suficientemente complexa para nos ocupar pelo restante deste livro sem a adição de outras alternativas.

8.1.4

Contra o viés do status quo

A maioria dos seres humanos demonstra uma tendência acentuada de ver os arranjos atuais em sua própria sociedade, sejam eles quais forem, como certos e bons (consulte a Seção 6.4). Esse viés explica como pessoas de culturas extremamente diferentes podem considerar as práticas de suas próprias culturas as melhores. 2

Courtois et al. 1999, parte 1. Ver Caplan n.d. para discussão de variedades de anarquismo. Para defesas do anarquismo socialista, veja Bakunin 1972; Kropotkin 2002. 3

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Uma forma potencial de viés do status quo é a prática de atribuir um pesado ônus da prova a quem propõe um novo sistema social muito diferente do sistema atual. Podemos sustentar que o reformador deve provar a superioridade de um novo sistema e que qualquer dúvida sobre os méritos relativos do novo sistema e do antigo sistema redunda em benefício do antigo. Esse ônus da prova pode ser esmagador por dois motivos. Primeiro, a complexidade e a imprevisibilidade das sociedades humanas tornam difícil ou impossível provar quase qualquer coisa de interesse na teoria social.4 Diferenças intratáveis de opinião sobre as consequências sociais de políticas, instituições e eventos sociais são comuns. Portanto, adotar uma presunção em favor do status quo pode facilmente provar o movimento decisivo que bloqueia a aceitação de praticamente qualquer mudança social. Segundo, a comparação abrangente de sistemas sociais amplos é extremamente complexa. Muitas questões e problemas sociais são afetados pela estrutura geral da sociedade – guerra, pobreza, inflação, dirigir embriagado, poluição, racismo, abuso de drogas, tiroteios em escolas, dependência de combustíveis fósseis, assistência médica, aborto, direitos dos animais, pena de morte. clonagem humana, educação, eutanásia, gravidez na adolescência, violência entre gangues e assim por diante. Nenhum trabalho isolado poderia abordar todas as questões sociais importantes – e, se fosse o caso, poucos teriam paciência para lê-lo. Suponha, então, que adotemos o hábito de assumir, para cada questão social, que o status quo representa a melhor maneira de lidar com essa questão até prova em contrário. Isso daria novamente ao status quo uma vantagem essencialmente intransponível sobre qualquer alternativa radical. Mesmo que um reformador consiga argumentar minuciosamente que o status quo falha em várias questões importantes, sempre haverá muito mais questões sobre as quais o status quo triunfa por padrão, em virtude de não termos tido tempo de examiná-las minuciosamente. O que haveria de errado em conceder ao status quo uma enorme vantagem dialética sobre alternativas radicais? O problema não é apenas uma das “injustiças” dialéticas. O problema é que é muito provável que essa metodologia nos prenda a um sistema social inferior. Não há razão para supor que a própria sociedade esteja organizada da melhor maneira. Portanto, é desejável encontrar uma metodologia na teoria social que dê às estruturas sociais alternativas uma chance razoável de serem escolhidas. Nos capítulos seguintes, trato do que me parecem as preocupações mais óbvias e sérias sobre o anarquismo. Não posso abordar como todas as questões sociais importantes seriam tratadas em uma sociedade anarquista. Se, no entanto, 4

Ver Tetlock 2005 sobre a dificuldade da previsão política; mas veja também Caplan 2007a para uma defesa qualificada de especialistas políticos.

8. Avaliando as Teorias Sociais

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eu conseguir mostrar que os problemas que inicialmente parecem mais prováveis de ocasionar refutações decisivas do anarquismo podem de fato ser bem tratados por uma sociedade anarquista, o ônus da prova será transferido para os críticos do anarquismo.

8.2

Uma concepção simplificada da natureza humana

Qualquer tentativa de descobrir as consequências de um amplo sistema social deve se basear em algumas crenças sobre a natureza humana. Aqui, descrevo minhas suposições gerais mais importantes sobre a natureza humana.

8.2.1

Os seres humanos são aproximadamente racionais

Os seres humanos geralmente escolhem ações com base em suas crenças e objetivos. Uma pessoa é “instrumentalmente racional” quando escolhe a ação que, com base em suas crenças atuais, parece fazer o melhor trabalho possível para alcançar seus objetivos, quaisquer que sejam esses objetivos. Na vida cotidiana, tomamos como certo que os seres humanos são aproximadamente, embora não perfeitamente, instrumentalmente racionais. Considere uma ilustração simples. Você vê uma menininha subindo em uma árvore enquanto está chamando por “Bola de Neve”. Você percebe que ela está se movendo em direção a um gato branco empoleirado na árvore. Como você interpretaria o comportamento da menina? Salvo condições incomuns, a interpretação mais natural seria que a menina está tentando tirar o gato da árvore. Essa interpretação toma como garantida a racionalidade instrumental (aproximada): atribui à garota um objetivo, tirar o gato da árvore, de modo que seu comportamento faça sentido como uma maneira de persegui-lo. Sem uma suposição de racionalidade instrumental básica, não haveria limite para as possíveis interpretações. Se ela for irracional, a garota pode estar subindo na árvore para fugir do gato. Ou para matar sua sede. Ou depor o presidente do Egito. Em contextos normais, diríamos que essas “explicações” não fazem sentido – e as explicações não fazem sentido porque não são compatíveis com o comportamento do agente. Quase toda ação intencional comum poderia ser usada com a mesma facilidade para ilustrar a ideia. Dirigir até a loja, colocar gasolina no carro, comprar um pote de compota de maçã, pedir um aumento, deitar na cama, ir ao dentista, cozinhar uma refeição, pegar o telefone – qualquer uma dessas ações pode ser explicada por referência (i) uma meta que possa ser atribuída de maneira plausível ao agente; (ii) uma série de crenças precisas e razoáveis da parte do agente sobre

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o mundo e as consequências de suas ações; e (iii) a suposição de racionalidade instrumental sobre parte do agente. Há exceções à regra geral da racionalidade instrumental. Os psicólogos documentaram muitas falhas específicas da racionalidade, numerosas demais para listar aqui.5 Além disso, existem algumas condições gerais que tornam mais prováveis várias falhas da racionalidade: é mais provável que os seres humanos cometam erros ao enfrentar situações desconhecidas e complexas ou situações em que o raciocínio abstrato é necessário para determinar a escolha certa. Também é provável que cometam erros nas decisões que não são importantes para eles, onde não desejam dedicar pensamento suficiente para identificar a melhor opção. É provável que a suposição de racionalidade instrumental seja válida quando as pessoas enfrentam situações simples e familiares nas quais a melhor opção é fácil de resolver. Também é muito provável que isso ocorra para gerentes de negócios em setores competitivos. Negócios gerenciados irracionalmente tendem a ter um desempenho inferior aos negócios gerenciados racionalmente. O último expandirá enquanto o primeiro encolherá, até que o mercado seja dominado por negócios relativamente racionais.

8.2.2

Os seres humanos estão cientes do seu ambiente

Os seres humanos tendem a possuir uma grande quantidade de informações precisas e praticamente relevantes sobre seus ambientes e sobre as possíveis consequências de suas ações. Eles geralmente não ignoram informações úteis ou adotam crenças totalmente imprecisas sobre assuntos relevantes para a tomada de decisões. Essa é uma variação do que os filósofos chamam de “princípio da caridade”.6 O mesmo tipo de exemplo que ilustra a racionalidade instrumental também pode ser usado para ilustrar esse princípio da caridade. Considere novamente a menina subindo na árvore. Para entender seu comportamento, devemos assumir que o agente possui uma série de crenças sensatas sobre si mesma e seu ambiente – que o gato está na árvore, que a árvore é um objeto sólido, que objetos físicos tendem a cair para baixo quando não são suportados, que subir na árvore a aproximará do gato, sua mão não atravessará 5

Para uma amostra, ver Tversky e Kahnemann 1986 sobre efeitos de enquadramento; Arkes e Blumer, 1985, sobre a influência dos custos irrecuperáveis; Tversky 1969 sobre preferências intransitivas; e os vários artigos de Kahneman et al. 1982 e Gilovich et al. 2002. 6 Os filósofos geralmente entendem o princípio da caridade como o princípio de que, ao interpretar os outros, é preciso atribuir a eles principalmente crenças verdadeiras (Davidson 1990, 129-30). Na minha opinião, o princípio mais fundamental é que se deve atribuir principalmente crenças racionais a outras pessoas (ver Huemer 2005, 159-61). Contudo, em condições normais, crenças racionais são geralmente verdadeiras, de modo que dois princípios da caridade produzem resultados semelhantes. A ideia discutida no texto vai além disso, atribuindo um nível razoável de conhecimento prático à maioria dos seres humanos.

8. Avaliando as Teorias Sociais

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pelo gato e assim por diante. Na vida comum, não pararíamos com todas essas crenças, mas todas elas estão implicadas no aparente plano da garota de subir na árvore para tirar o gato – se ela ignorasse qualquer um desses fatos, não poderia realizar esse plano. Novamente, este não é um exemplo incomum. Qualquer uma de uma grande variedade de ações comuns poderia ser facilmente usada para ilustrar o ponto. Há várias exceções. As pessoas tendem a ignorar verdades complicadas e abstratas sobre assuntos desconhecidos. Tendem a ignorar as informações que consideram desinteressantes e que não as ajudam a alcançar seus objetivos. E se algumas informações são custosas para reunir, em termos monetários ou em termos de tempo e esforço, então relativamente poucas pessoas possuirão essas informações. Por outro lado, quando as informações são adquiridas de maneira fácil e barata, fáceis de entender e relevantes para alcançar nossos objetivos, geralmente as teremos. É particularmente provável que os gerentes de negócios em setores competitivos possuam informações precisas relevantes para gerenciar seus negócios, uma vez que os negócios cujos gerentes permanecem ignorantes dessas informações tenderão a ter um desempenho inferior aos negócios cujos gerentes estão bem informados, permitindo que esses gerentes bem informados ao longo do tempo dominem a indústria.

8.2.3

Os seres humanos são egoístas, mas não sociopatas

Eu sou extremamente egoísta. Comprei recentemente uma jaqueta de inverno para mim a um custo de cerca de US$ 200. Já tinha alguns suéteres, camisas e outras jaquetas; Simplesmente queria uma jaqueta melhor do que qualquer outra que já tinha. Por isso, atendi a um desejo bastante trivial com esse gasto. Se tivesse doado para um grupo de caridade que trabalha para combater a pobreza mundial, esse mesmo dinheiro poderia ter salvado a vida de outra pessoa.7 Isso sugere que valorizo meu próprio bem-estar talvez milhares de vezes mais do que valorizo o bem-estar de estranhos em outras partes do mundo. No entanto, por mais perturbador que isso possa parecer, não indica algum tipo de distúrbio sociopático da minha parte. Nem indica um nível anormal de egoísmo. O americano médio dá ainda menos à caridade do que eu, enquanto um terço das famílias americanas não dá nada.8 A maioria dos seres humanos, quando 7

Algumas instituições de caridade afirmam salvar uma vida por US$ 100 doados (http: //www.againstmalaria.com/OneChild.aspx); No entanto, Give Well fornece uma estimativa de US$ 2.000 por vida salva (http://givewell.org/international/top-charities/AMF). 8 National Philanthropic Trust 2011.

8. Avaliando as Teorias Sociais

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têm a chance de dar dinheiro a outros, escolhe ficar com o dinheiro para si, principalmente se ninguém estiver sabendo.9 Para outra ilustração, imagine que você saberá que vai morrer amanhã. Embora possa ser impossível imaginar com precisão como você se sentiria, é um palpite seguro de que você ficaria bastante chateado. Agora vou lhe dizer uma coisa que você provavelmente não saiba: com base nas estatísticas recentes de mortalidade mundial, existem cerca de 156.000 seres humanos que de fato morrerão amanhã. 10 Como você se sente agora? Você pode achar essas informações perturbadoras. Mas se você é como a maioria das pessoas, fica muito menos chateado com essa notícia do que com a notícia de que estava prestes a morrer. Isso sugere, novamente, que sua preocupação consigo mesmo é talvez milhares de vezes mais forte do que sua preocupação com a maioria das outras pessoas. No entanto, existem muitas exceções à regra do egoísmo humano. Muitas pessoas doam dinheiro voluntariamente para caridade, embora muito menos do que poderiam doar.11 A maioria está preparada para fazer grandes sacrifícios pela família, amigos, amantes ou outros de quem são próximos. E algumas pessoas, como Albert Schweitzer ou Madre Teresa, dedicaram virtualmente suas vidas a ajudar os outros.12 Talvez a maior e mais generalizada exceção à regra do egoísmo diga respeito aos direitos negativos percebidos pelos outros: um ser humano comum pode ou não sacrificar US$ 200 para salvar a vida de um estrangeiro em uma terra estrangeira, mas quase todo mundo ficaria horrorizado com o pensamento de matar um estranho por US$ 200. É certo que um pequeno número ficaria feliz em matar outra pessoa por US$ 200 – os sociopatas não respeitam as normas sociais e as capacidades de empatia, culpa, medo e horror que impedem a maioria dos seres humanos de se machucar uns aos outros em circunstâncias normais. Felizmente, porém, os sociopatas compreendem apenas cerca de 2% da população.13 Os restantes 98% dos seres humanos estão preocupados com normas sociais, são capazes de empatia e possuem uma rica variedade de emoções. 9 Em um experimento, Hoffman et al. (1994) deu aos participantes a chance de jogar “o jogo do ditador”, no qual um indivíduo tem o poder unilateral de dividir uma soma de dinheiro entre ele e outro indivíduo. Em uma versão cuidadosamente anônima, mais de 60% dos indivíduos ditadores optaram por dar US$ 0 ao outro. No entanto, Hoffman et al. nota que em variações não-anônimas, os indivíduos são um pouco mais generosos. 10 Ver Nações Unidas 2009 tabela DB5_F1 11 O National Philanthropic Trust (2011) relata que as doações de caridade totalizaram 2,1% do PIB americano em 2009. 12 Algumas pessoas resistem a esse tipo de exemplo, alegando que de algum modo todos esses tipos de comportamento são realmente, no fundo, egoístas. Veja Rachels 2003, capítulo 5, para uma refutação padrão desta reivindicação. 13 American Psychiatric Association 1994, 648. Ver Hare 1993 para um retrato esclarecedor, embora arrepiante, da personalidade psicopática.

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Assim, enquanto seres humanos comuns estão dispostos a fazer muito pouco esforço positivo para ajudar outras pessoas com quem não têm um relacionamento íntimo, também tendem a relutar em atacar diretamente outros seres humanos ou violar positivamente as normas sociais geralmente aceitas de outras maneiras, mesmo quando têm a ganhar fazendo isso.

8.2.4

A favor da simplificação

O exposto acima é um relato muito simplificado da natureza humana. Existem inúmeras variações entre indivíduos e inúmeras motivações humanas que não abordei. Por que é útil considerar uma imagem tão simplificada da humanidade? Primeiro, observe que o argumento identifica fatores causais no comportamento humano que são reais e grandes. Esse é um requisito para uma idealização útil.14 Nós, seres humanos, realmente somos movidos por interesses próprios e, na verdade, tendemos a tomar ações que provavelmente nos levarão ao que queremos. Não mencionei todas as exceções a essas regras, mas tentei mencionar as exceções mais importantes e bem estabelecidas. Segundo, os princípios sobre a natureza humana listados nas subseções anteriores são banais e dirigidos por observações de senso comum, e não por qualquer ideologia partidária. Dessa forma, eles são diferentes da afirmação dos marxistas, por exemplo, de que os seres humanos são fortemente motivados por interesses de classe.15 A última afirmação é altamente controversa e aceita apenas por aqueles com uma ideologia específica. Este ponto é muito importante, porque ideologias conflitantes são o maior obstáculo ao progresso na teoria social. Terceiro, meu relato simplificado da natureza humana nos permite derivar muitas previsões qualitativas sobre os efeitos dos sistemas sociais de maneira relativamente direta, com pouca necessidade de pedidos de julgamento. Existe um corpo da teoria bem desenvolvido e convincente, compreendendo economia e teoria dos jogos, que elabora as consequências da suposição do egoísmo racional. Aqueles familiarizados com a teoria geralmente podem concordar com uma grande variedade de previsões, independentemente de suas inclinações morais, religiosas ou políticas iniciais.16 Isso é importante, novamente, para progredir 14

Friedman (1953) argumenta que um modelo não precisa estar nem um pouco próximo da realidade; precisa apenas ter previsões empíricas corretas. É possível que uma teoria que esteja muito longe da verdade tenha previsões muito precisas (como no caso da astronomia ptolomaica). No entanto, passo Friedman, acredito que é improvável que isso ocorra para as teorias da natureza humana. 15 Marx e Engels 1978, 218. 16 Não é possível transmitir o poder da teoria econômica moderna em um espaço curto. Para uma excelente introdução à microeconomia, consulte o livro de David Friedman (1990) disponível em http://www.daviddfriedman.com/Academic/Price_Theory/PThy_ToC.html.

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na teoria social. Quanto mais simples forem as suposições da teoria, e quanto mais objetivas forem suas previsões, menos espaço haverá para o viés humano e a irracionalidade manipularem a teoria. Devido ao enorme papel que o viés desempenha no discurso político17 , essa é uma das virtudes mais importantes que uma teoria nessa área pode ter.

8.2.5

Uma aplicação histórica

O relato simplificado da natureza humana que descrevi faz previsões úteis sobre certos sistemas sociais. Tomemos o caso de uma teoria social que propõe que todos os cidadãos trabalhem em benefício da sociedade e recebam salário igual. Uma previsão teórica simples é que, nesse sistema, a produtividade diminuirá. Os indivíduos têm um alto grau de controle sobre sua própria produtividade, e maior produtividade geralmente exige maior esforço. Como a maioria das pessoas é racionalmente egoísta, não fará muito esforço para ser produtivo, a menos que espere receber benefícios pessoais por isso. Portanto, se todos forem pagos de maneira igual e se não houver outras recompensas ou punições associadas à qualidade e quantidade do trabalho, as pessoas não serão muito produtivas. Esta previsão está de fato correta. As experiências do século XX com sistemas sociais nesse escopo são bem conhecidas, então não vou me alongar nisso. Uma ilustração interessante, mas pouco conhecida, é fornecida pelo primeiro experimento da América com o comunismo, que ocorreu em Jamestown, o primeiro assentamento permanente inglês na América.18 Quando a colônia foi estabelecida em 1607, sua carta fundadora estipulava que cada colono teria direito a uma parcela igual do produto da colônia, independentemente de quanto esse indivíduo produzisse pessoalmente. O resultado: os colonos fizeram pouco trabalho e pouca comida foi produzida. Dos 104 colonos fundadores, dois terços morreram no primeiro ano – em parte devido à água impura, mas principalmente devido à fome. Mais colonos chegaram da Inglaterra, de modo que em 1609 havia 500 colonos. Desses, apenas 60 sobreviveram ao inverno de 1609–10.19 Em 1611, a Inglaterra enviou um novo governador, Sir Thomas Dale, que encontrou os colonos esqueléticos jogando nas ruas em vez de trabalhando. Sua principal fonte 17

Ver Huemer “Why People Are Irrational about Politics” (n.d.) e Caplan 2007b. O argumento no texto é baseado em Schmidtz 2008, Contoski 2010, Wadhwa 2005 e Smith 1986. As citações de Smith são da Generall Historie of Virginia, New England, and the Summer Iles, livro 4, originalmente publicado pelo capitão John Smith, em 1624. Smith foi um dos líderes da colônia de 1607 a 1609, quando retornou à Inglaterra. 19 Segundo Smith (1986, 232–3), os nativos interromperam o comércio naquele momento e atacaram a colônia. No entanto, Smith atribui o inverno desastroso, que chama de “tempo de fome”, à “falta de providência, indústria e governo, e não à aridez do país, como geralmente se supõe”. 18

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de alimento eram plantas e animais silvestres, que acumulavam secretamente à noite para evitar a obrigação de compartilhar com seus vizinhos. Mais tarde, Dale converteu a colônia em um sistema baseado em propriedade privada, concedendo a todos os colonos um terreno de três acres para cuidar de seu próprio benefício individual. O resultado foi um aumento dramático na produção. De acordo com a história contemporânea do capitão John Smith, Quando nosso povo era alimentado pelo acúmulo comum e trabalho conjunto, feliz estava ele [quem] podendo escapar de seu trabalho ou dormindo por causa de sua tarefa, ele não se importava mais; os mais honestos entre eles dificilmente sofreriam tantas dores verdadeiras em uma semana como agora para eles mesmos sofrem em apenas um dia [. . . ] de modo que não colhemos tanto milho do trabalho de trinta, como agora três ou quatro provêm para eles.20 Uma lição deste episódio é que, por mais simples que seja o relato da natureza humana que eu tenha desenvolvido, ele pode produzir previsões muito úteis. Se a companhia que criou a carta de Jamestown conhecesse um pouco de economia, centenas de vidas poderiam ter sido poupadas. Outra lição é que o impacto do egoísmo humano depende muito do sistema social no qual as pessoas estão inseridas: em um tipo de sistema, o egoísmo pode ter consequências desastrosas, enquanto em outro promove a prosperidade.

8.3 8.3.1

Utopia e realismo O princípio do realismo

Quando os arranjos políticos e sociais propostos são criticados, geralmente é por ser prejudicial ou injusto. Às vezes, porém, uma visão de sociedade é perfeitamente justa e altamente benéfica, e ainda assim a rejeitamos com o argumento de que a ideia é irrealista demais ou “utópica”.21 Considere, por exemplo, uma posição que poderíamos chamar de “socialismo utópico”. O socialista utópico sustenta que todos devem ser pagos igualmente, independentemente da produtividade. Na última seção, vimos que arranjos desse tipo podem levar à subprodução, colocando as coisas com suavidade. O socialista utópico trata desse problema simplesmente propondo que todos nós, a partir de então, concordemos em nos comportar desinteressadamente. Se todos 20

Smith 1986, 247. Modernizei a ortografia e a pontuação. Smith está parafraseando levemente as palavras do secretário da colônia Hamor (1614, 17). 21 Ver Cowen 2007a para discussão.

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trabalharmos voluntariamente para o bem da sociedade, não haverá problema. É verdade que isso não aconteceu no passado; no entanto, diz o socialista utópico, é o que deveria acontecer. Intuitivamente, essa ideia é problemática como uma filosofia política e social, independentemente da sociedade que representa ser justa ou desejável, porque a ideia é irrealista demais. Parece exigir uma alteração em um aspecto robusto da natureza humana, sem propor um mecanismo plausível para isso. Considere, por exemplo, uma posição que poderíamos chamar de “socialismo utópico”. O socialista utópico sustenta que todos devem ser pagos igualmente, independentemente da produtividade. Na última seção, vimos que arranjos desse tipo podem levar à subprodução, colocando as coisas com suavidade. O socialista utópico trata desse problema simplesmente propondo que todos nós, a partir de então, concordemos em nos comportar desinteressadamente. Se todos trabalharmos voluntariamente para o bem da sociedade, não haverá problema. É verdade que isso não aconteceu no passado; no entanto, diz o socialista utópico, é o que deveria acontecer. Intuitivamente, essa ideia é problemática como uma filosofia política e social, independentemente da sociedade que representa ser justa ou desejável, porque a ideia é irrealista demais. Parece exigir uma alteração em um aspecto robusto da natureza humana, sem propor um mecanismo plausível para isso. Muitos acreditam que o anarquismo também cai sob a acusação de utopia excessiva. Esses críticos acusam os anarquistas de confiar em suposições irrealisticamente otimistas sobre a natureza humana.22 Como podemos evitar essa objeção?

8.3.2

Prescrição para um anarquismo realista

Para evitar a utopia excessiva, devemos respeitar as seguintes restrições: i Não podemos assumir níveis irrealistas de motivação altruísta. Ao examinar as vantagens e desvantagens do sistema, devemos assumir que a sociedade anarquista será povoada por pessoas com níveis relativamente normais de egoísmo, e devemos aceitar as consequências desse egoísmo dentro da estrutura social específica. ii Não podemos assumir racionalidade ou conhecimento perfeitos. Nossa defesa do anarquismo deve ser consistente com o fato de que as pessoas periodicamente cometem erros. 22

Heywood 1992, 198; Wolff 1996, pp. 33–4.

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iii Não podemos assumir uniformidade psicológica. Devemos reconhecer o fato de que os seres humanos têm uma variedade de motivações e traços de caráter; por exemplo, que alguns indivíduos são extraordinariamente agressivos ou imprudentes. iv Não podemos simplesmente assumir a persistência do sistema ao longo do tempo. Em vez disso, devemos ser capazes de argumentar que, uma vez adotado, o sistema seria capaz de resistir a forças que poderiam prejudicá-lo. v Não podemos assumir a adoção simultânea e mundial do sistema, uma vez que não existe uma maneira plausível de isso acontecer. Devemos imaginar que (talvez como um estágio de transição) alguma região ou grupo limitado se torne anarquista em um mundo dominado por Estados. Por outro lado, vale a pena notar duas coisas que não tornam uma teoria social excessivamente utópica: i Se uma teoria “não pode” ser implementada simplesmente no sentido de que as pessoas não podem ser convencidas a implementá-la, isso não torna a teoria muito utópica. Como analogia, suponha que me seja proposto que doe US$ 200 para caridade este mês. Respondo: “Não, isso não é realista, porque me recuso a fazê-lo”. Intuitivamente, não articulei uma objeção válida à minha doação de US$ 200, por mais intransigente que possa ter sido minha recusa. Da mesma forma, a recusa da maioria dos membros da sociedade de levar o anarquismo a sério, e muito menos de tentar implementá-lo, não cria uma objeção válida ao anarquismo. Obviamente, se a maioria das pessoas tem algum motivo para rejeitar a teoria, essa razão pode ser citada como uma objeção à teoria. O anarquismo deve ser avaliado supondo, talvez de maneira improvável, que o sistema seja adotado e considerando a partir daí se resultaria num estado de coisas desejável e justo. ii Para ser suficientemente realista, um modelo para a sociedade não precisa ser viável ou desejável em todas as condições sociais. Só é preciso argumentar que existem algumas condições, provavelmente a serem realizadas agora ou no futuro, sob as quais o modelo seria bem-sucedido. Nos capítulos seguintes, tentarei caracterizar um tipo de sociedade anarquista que seria estável e habitável sob algumas condições realistas, apesar da existência de criminosos, dissidentes, egoísmo humano e governos estrangeiros.

8. Avaliando as Teorias Sociais

8.3.3

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Contra o estatismo utópico

É amplamente reconhecido que os anarquistas enfrentam um desafio significativo de evitar a utopia. É amplamente reconhecido, também, que algumas teorias nãoanarquistas, como certas formas de socialismo, enfrentam acusações de utopia. O que é menos reconhecido é que mesmo teorias políticas moderadas e muito convencionais podem ser utópicas. Por exemplo, a teoria da democracia liberal pode ser muito utópica. Não seria excessivamente utópico simplesmente advogar que mantemos as instituições atuais, funcionando exatamente como agora. Mas poucos pensadores adotam essa posição. Muitos acreditam que é necessário algum grau de reforma – por exemplo, que o processo democrático deva ser menos influenciado por grupos de interesse especial. Quanto mais se sabe como o governo realmente funciona, menos provável é que se possa sinceramente afirmar que ele opera como deveria. Isso abre a possibilidade de que as mudanças que gostaríamos de ver nos Estados democráticos sejam excessivamente utópicas. Os defensores da democracia liberal enfrentam as mesmas restrições contra a utopia que os defensores de posições mais radicais, como o anarquismo ou o socialismo. Pode parecer estranho sugerir que uma posição democrática liberal dominante possa se mostrar utópica demais, enquanto alguma alternativa anarquista radical pode ser suficientemente realista. Mas a distinção entre utopia e realismo não se importa com a distância de uma proposta do status quo nem com a distancia da corrente principal do pensamento político. A distinção entre utopia e realismo preocupa-se principalmente, grosso modo, se uma ideia política ou social exige violações da natureza humana. Uma visão política convencional pode exigir tais violações, enquanto alguma alternativa radical não. É perfeitamente possível que uma pequena mudança seja inviável, enquanto alguma mudança muito maior é viável. Uma forma comum de utopia consiste em confundir o modo como indivíduos e organizações devem se comportar com o modo como se comportarão. Quando os sistemas sociais são avaliados, não importa como um sistema deve funcionar; o que importa é como se espera que funcione sob suposições realistas sobre a natureza humana. Por exemplo, podemos dizer que a função do governo é proteger os direitos de seus cidadãos, mas nada segue sobre o que o governo realmente fará. Na ausência de um mecanismo eficaz para induzir os agentes do governo a despacharem eficientemente suas funções declaradas, não podemos assumir que os cidadãos receberão proteção adequada. O ponto aqui não é que o governo não nos proteja; o ponto é que, se o governo é um mecanismo eficaz para proteger os direitos individuais, promover o bem-estar social ou promover qualquer outro objetivo, deve ser estabelecido por argumentos e evidências, não as ter como garantidas simplesmente por causa do objetivo declarado do governo.

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Uma forma relacionada de utopia consiste em suspender suposições gerais sobre a natureza humana ao considerar agentes do Estado. Os defensores do governo costumam apontar os danos que podem resultar da ganância generalizada e do egoísmo da humanidade na ausência de um governo capaz de conter nossos piores excessos. No entanto, raramente param para considerar o que pode resultar da mesma ganância e egoísmo na presença do governo, supondo que os agentes do governo sejam igualmente propensos a essas mesmas falhas. Não é que os estatistas tenham alguma explicação de por que os funcionários do governo são mais virtuosos que as pessoas comuns. Nem têm algum plano para fazer isso acontecer. Antes, parece simplesmente nunca ter ocorrido à maioria dos estatistas aplicar suposições realistas sobre a natureza humana ao próprio governo. O Estado é tratado como se estivesse acima do mundo humano empírico, transcendendo não apenas as restrições morais, mas também as forças psicológicas que se aplicam a seres humanos individuais. Qualquer sistema social, seja anarquista ou estatista, deve ser julgado pelo seu desempenho quando habitado por pessoas reais, como as que encontramos no mundo real. Não importa se a anarquia funcionaria bem em um mundo em que todos os indivíduos sejam altruístas e sempre respeitam os direitos um do outro. Da mesma forma, não importa se o governo funcionaria bem em um mundo em que todos os agentes do governo sejam altruístas e sempre respeitam os direitos dos indivíduos.

9 A Lógica da Predação O uso direto da força física é uma solução tão pobre para o problema dos recursos limitados que geralmente é empregado apenas por crianças pequenas e grandes nações. – David Friedman1

9.1

O argumento hobbesiano para o governo

No século XVII, Thomas Hobbes articulou uma das explicações mais influentes da necessidade de governo.2 Hobbes começa com a suposição de que os seres humanos são motivados inteiramente pelo interesse próprio e que possuem habilidades mentais e físicas aproximadamente iguais, de modo que todo indivíduo pode representar uma ameaça séria para qualquer outro. Agora imagine esses seres vivendo no “estado de natureza”; isto é, um estado sem governo ou leis. Essas pessoas entrariam em conflito frequente entre si, por três razões. Primeiro, as pessoas se atacariam para roubar os recursos; Hobbes chama isso de “competição”. Segundo, as pessoas se atacariam preventivamente – ou seja, uma pode decidir matar ou ferir permanentemente outra pessoa, simplesmente para impedir que essa outra pessoa possa machucar alguém no futuro; Hobbes chama isso de “desconfiança”. Terceiro, as pessoas lutariam pela “glória” – isto é, uma pode atacar outra para forçar a outra a expressar respeito para si mesma. Por essas razões, Hobbes acreditava que o estado de natureza seria um estado de guerra perpétua de todos contra todos. Não haveria indústria, comércio ou 1 2

Friedman 1989, 4. Hobbes 1996, especialmente os capítulos 13–17.

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cultura. Todos viveriam com medo constante da morte violenta e suas vidas seriam “solitárias, pobres, desagradáveis, brutais e curtas”.3 A solução, na visão de Hobbes, era de que todos concordassem em estabelecer um governo e conceder a ele poder absoluto. O governo seria capaz de proteger indivíduos uns dos outros. Nem, na opinião de Hobbes, as pessoas deveriam temer ferimentos nas mãos do próprio Estado. Os governantes naturalmente querem que o povo sobreviva e prospere, porque isso tornará os governantes mais ricos e poderosos. Por que o Estado deveria receber poder absoluto, em vez de apenas poderes limitados e bem definidos? A resposta de Hobbes é dupla: primeiro, não há necessidade de limitar o poder do Estado, porque o poder excessivo do Estado não causa problemas significativos. Segundo, não é possível limitar o poder do Estado, a menos que haja outro agente ainda mais poderoso que possa exercer controle sobre o Estado.4 A essência do argumento hobbesiano para o governo pode ser separada de algumas das reivindicações mais extremas de Hobbes. Não é necessário sustentar que os seres humanos são totalmente egoístas para concordar com Hobbes de que o estado de natureza estaria repleto de conflitos; Um conflito sério pode surgir se as pessoas forem amplamente, mesmo que não inteiramente, egoístas. Nem é preciso seguir Hobbes para abraçar o totalitarismo; talvez haja formas de governo melhores e menos absolutas. O argumento hobbesiano para o governo é essencialmente teoria dos jogos. Baseia-se em duas afirmações principais: primeiro, quando o poder é distribuído de forma aproximadamente igual entre os indivíduos, é prudente para os indivíduos se atacarem com frequência; segundo, que quando o poder é distribuído de maneira extremamente desigual, concentrado quase inteiramente nas mãos de uma única pessoa ou organização, é prudente, tanto para o poderoso agente quanto para todos os outros, cooperar pacificamente. Embora poucos hoje adotem o egoísmo radical de Hobbes ou seu totalitarismo, muitos aceitam seu argumento básico em favor do governo. É comum afirmar que, quanto mais pessimista é a natureza humana, mais absoluta é a forma de governo que se deve endossar – de modo que Hobbes, com a visão mais cínica da natureza humana, endossa naturalmente o governo totalitário. Em contraste, muitas vezes se pensa que os anarquistas têm as visões radicalmente otimistas sobre a natureza humana.5 Tudo isso, como argumentarei, é precisamente ao contrário, como é a análise de Hobbes, tanto do estado de natureza quanto do governo. 3

Hobbes 1996, capítulo 13, 89. Hobbes 1996, capítulo 20, 144–5. 5 Heywood 1992, 198; Adams 2001, 133–5; Wolff 1996, 33–4. 4

9. A Lógica da Predação

9.2 9.2.1

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Predação no estado de natureza Considerações da teoria dos jogos

Imagine que você e seu vizinho Abel vivem no estado de natureza. Você está tentando decidir se seria uma boa ideia atacar Abel. Abel tem algumas maçãs saborosas. A perspectiva de conseguir alguma comida sem precisar trabalhar para isso seria uma vantagem em potencial de atacá-lo. Por outro lado, há a desvantagem de que o ataque pode levar você a ser gravemente ferido ou morto. Existem três razões principais para isso: a Abel quase certamente tentará se defender. Sendo, como Hobbes diz, com habilidades mentais e físicas aproximadamente iguais às suas, Abel teria uma chance substancial de ferir ou matar seriamente você no combate que se seguir. Talvez você espere pegar Abel de surpresa e, assim, matá-lo antes que ele tenha uma chance de matá-lo. É improvável, no entanto, que você possa conceber um plano desse tipo que não apresente riscos significativos para si mesmo. Os planos costumam dar errado, e quem tem o hábito de planejar a morte de outras pessoas provavelmente desaparecerá em breve e terminará morto. Você pode esperar que Abel, ansioso para evitar ferimentos, fuja do seu ataque em vez de revidar. Mas é provável que Abel simplesmente não deixe seu roubo passar em branco. Se ele permitir que seu roubo passe sem retaliação, ele convida você e qualquer outro predador que souber do evento a atacá-lo e roubá-lo no futuro. Se Abel fugir da cena, portanto, provavelmente será apenas para tramar sua vingança em um momento mais oportuno.6 b Um ou mais membros da família ou amigos de Abel podem decidir vingar sua morte. Uma razão para isso seria que estavam zangados com o seu assassinato por um psicopata (contrariando Hobbes, as pessoas se preocupam com sua família e amigos). Outro motivo é que eles podem enviar uma mensagem a outros predadores em potencial: nossa família não pode ser atacada impunemente. Os vingadores de Abel podem atacar você no momento e local de sua escolha, e pode haver mais de um deles. Portanto, novamente, é provável que você seja gravemente ferido ou morto. 6

Friedman (1994) oferece um argumento da teoria dos jogos mais elaborado para comportamentos que respeitam os direitos de egoístas racionais em um estado de natureza. Resumidamente, Friedman argumenta que os agentes no estado de natureza enfrentam um problema de coordenação: ninguém quer guerra, mas para evitar a guerra, devem concordar com um conjunto de regras para a coexistência pacífica. O respeito mútuo pelos direitos oferece um ponto de Schelling que resolve esse problema de coordenação.

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c Lembre-se de que, na visão de Hobbes, uma das três principais fontes de violência no estado de natureza é o ataque preventivo (devido à “desconfiança”). As pessoas interessadas em ataques preventivos têm mais chances de atingir aqueles que representam a maior ameaça. E aqueles que já se envolveram em ataques não provocados contra seus vizinhos provavelmente serão vistos como as maiores ameaças. Então, ao atacar Abel, você ficará marcado para ataque de vizinhos desconfiados. Por esses motivos, os riscos de atacar os vizinhos normalmente superam os benefícios em potencial. Somente se você estivesse em risco de morrer de fome e não tivesse opções seguras para procurar comida, seria prudente tentar roubar Abel. Você naturalmente tomaria precauções para evitar estar nessa situação. E se, em vez de atacar Abel por conta própria, você se unir a alguns predadores afins para roubar Abel e dividir sua propriedade entre vocês? Nesse caso, é muito menos provável que você seja morto durante o cometimento do crime. No entanto, este plano está repleto de perigos. Se você deixar Abel vivo, ele poderá se vingar mais tarde, quando você estiver sozinho. Se necessário, ele pode trazer sua própria gangue para ajudar. Se você matar Abel, sua família ou amigos podem decidir vingá-lo. Em ambos os casos, outros vizinhos desconfiados podem decidir que você é uma ameaça que precisa ser eliminada, e nada os impede de se unir, assim como você e seus colegas ladrões. Finalmente, existe a desvantagem de que, para executar esse plano, você deve se associar a uma gangue de ladrões e (possivelmente) assassinos. Pessoas desse tipo não são conhecidas por sua confiabilidade, portanto há uma boa chance de que um ou mais deles, em algum momento, tentem enganá-lo e/ou matá-lo. Até agora, tenho apelado ao seu interesse racional. Mas, como observado no capítulo anterior, os seres humanos são apenas aproximadamente racionais e apenas aproximadamente egoístas. Isso altera nossas conclusões? Não, não altera. Primeiro, observe que os tipos de casos em que normalmente observamos falhas de racionalidade não afetam o raciocínio acima. O raciocínio para evitar o comportamento predatório no estado de natureza não é muito complexo, desconhecido ou abstrato para uma pessoa comum seguir. Nem é impedido por nenhuma das heurísticas e vieses que os psicólogos descobriram; não importa, por exemplo, se uma pessoa regularmente é vítima da falácia da conjunção, ignora as taxas base e tenta recuperar os custos irrecuperáveis.7 Nenhuma dessas falhas cognitivas impede que alguém compreenda o argumento 7

A falácia da conjunção envolve julgar “A e B” mais provável que “A”; ver Tversky e Kahneman 2002. A falácia da taxa base envolve ignorar informações sobre a frequência de uma característica em uma população; ver Tversky e Kahneman, 1982. O erro sobre os custos irrecuperáveis envolve a escolha de uma opção inferior porque a pessoa já pagou por ela; veja Arkes e Blumer 1985. Todos esses são exemplos bem estabelecidos de irracionalidade humana.

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direto contra a predação no estado de natureza: se você atacar seus vizinhos, eles podem atacá-lo por sua vez. Nem nenhuma das exceções à regra do egoísmo humano se opõe à nossa conclusão. Contrariando Hobbes, a maioria dos seres humanos não é sociopata. A maioria se preocupa com os outros, principalmente com a família e os amigos. A maioria tem fortes objeções morais e fortes sentimentos negativos sobre violência e roubo. Esses fatos só poderiam fortalecer a conclusão desta seção. Quando a prudência e a moralidade apontam na mesma direção, quase todo mundo escolhe esse caminho. Em um capítulo posterior (capítulo 10), discutirei instituições projetadas para lidar com os poucos indivíduos imprudentes que cometem agressão, apesar da tolice de fazê-lo. O princípio geral da teoria dos jogos é o seguinte: igualdade de poder gera respeito. Nenhuma pessoa racional deseja entrar em conflito violento com outras pessoas que tenham força igual a si mesma. As chances de perder o conflito são grandes demais. É provável que até o vencedor nominal termine pior do que antes do conflito, porque o dano causado pela luta é quase sempre maior que o valor dos recursos que estão em disputa. Por essas razões, indivíduos racionais lutam apenas em batalhas defensivas.

9.2.2

Condições sociais que afetam a prevalência de violência

As considerações gerais da teoria dos jogos apresentadas na subseção anterior ajudam a explicar por que a maioria dos adultos normais nunca participa de combate físico. No entanto, a violência interpessoal era muito mais comum nos séculos anteriores do que é hoje.8 Por quê? Nossos ancestrais eram menos racionais do que nós? Enfrentaram circunstâncias diferentes, de modo que os argumentos precedentes da teoria dos jogos de alguma forma não se aplicaram a eles? Pelo menos três fatores sociais amplos podem ajudar a explicar o declínio da violência. Uma é questão de valores sociais. Membros de sociedades ocidentais modernas abrigam crenças e atitudes muito mais liberais, particularmente no que se refere à violência, do que aquelas que dominaram a maioria das culturas durante a maior parte da história humana.9 Historicamente, o combate físico era frequentemente visto como honroso, enquanto hoje geralmente vemos como horrível. Olhos civilizados olham horrorizados para práticas como combate de gladiadores, decapitações públicas e câmaras de tortura medievais. E é preciso examinar apenas os textos religiosos tradicionais para ficar chocado com a varie8 9

Ver Pinker 2011, especialmente o Capítulo 3. Mueller 2004; Pinker 2011.

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dade de crimes pelos quais as gerações anteriores de humanos consideravam a morte ou o desmembramento como punições apropriadas.10 Um segundo fator importante é a economia. O argumento da teoria dos jogos para a coexistência pacífica pressupõe que os bens necessários para a sobrevivência estejam disponíveis por meios pacíficos. Nas sociedades primitivas, porém, as condições de escassez com risco de morte eram muito mais comuns do que são hoje; assim, as pessoas tinham menos a perder ao se envolver em roubos e violência. À medida que os seres humanos se tornam mais prósperos, a noção de luta por recursos se torna cada vez mais irracional. O terceiro fator é a tecnologia das armas. O argumento da subseção anterior pressupõe que os indivíduos representam ameaças físicas aproximadamente iguais entre si, de modo que conflitos violentos entre dois indivíduos representam riscos graves para ambos. Porém, nos séculos anteriores, a capacidade de se defender dependia de força e habilidade com uma espada ou arma semelhante, nenhuma das quais era distribuída igualmente entre a população. Hoje, a autodefesa eficaz está disponível através de armas de fogo modernas, exigindo força e habilidade mínimas e apenas meios econômicos modestos. Foi em vista dessa mudança que, no século XIX, o popular revólver Colt passou a ser chamado de “o equalizador”. As principais razões para esperar que o estado de natureza seja um estado de paz não se aplicam com igual força em todas as condições sociais. Em uma sociedade com recursos muito escassos, tecnologia limitada das armas e atitudes complacentes em relação à violência, deve-se esperar que conflitos violentos sejam muito mais comuns do que em uma sociedade caracterizada por prosperidade, tecnologia avançada e uma cultura liberal. Um hobbesiano poderia argumentar que, se alguém começa com uma sociedade primitiva em um estado de natureza, conflitos violentos constantes impedirão que a sociedade evolua para uma sociedade avançada e próspera, a menos que a sociedade estabeleça primeiro um governo. Seja como for, uma vez que se tenha uma sociedade liberal avançada, próspera, a necessidade contínua de governo está longe de ser clara, independentemente do papel que o governo possa ter desempenhado para promover esse estado da sociedade. Os argumentos da teoria dos jogos não estabelecem essa necessidade. Para defender uma necessidade de governo, seria necessário postular um alto grau de irracionalidade e imprudência. 10

A Bíblia prescreve a execução por adultério (Levítico 20:10), homossexualidade (Levítico 20:13), sexo antes do casamento (Deuteronômio 22: 20–1), trabalho no sábado (Êxodo 35: 2) e quando se amaldiçoa os pais (Levítico) 20: 9). O Alcorão prescreve desmembramento para ladrões (Sura 5.38) e morte para aqueles que se opõem ao Islã (Sura 5.33, 9.5, 9.29-31).

9. A Lógica da Predação

9.2.3

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Violência entre Estados

É natural se perguntar se a análise acima pode ser aplicada a Estados-nação e a indivíduos. Deveríamos esperar que os Estados se entendessem pacificamente, pelo menos quando tiverem poder aproximadamente igual? A resposta é não. Os Estados não são indivíduos e seu comportamento não pode ser corretamente explicado da mesma maneira que o dos indivíduos – por exemplo, citando suas crenças e desejos. Os Estados não têm crenças ou desejos próprios. O comportamento de um Estado deve ser explicado em termos das escolhas dos indivíduos que têm poder de decisão dentro do Estado. A decisão de um Estado de ir à guerra difere de maneiras cruciais da decisão de um indivíduo que decide se deve entrar em combate físico com outro indivíduo. Mais notavelmente, o indivíduo arcaria com o risco pessoal de ferimento ou morte, se a outra parte se provar difícil de ser subjugada. Mas os líderes que decidem levar seu país à guerra quase nunca assumem pessoalmente os riscos de ferimentos ou morte que resultam dela. Ao decidir invadir o Iraque em 2003, por exemplo, o presidente Bush não precisou considerar o risco de ser morto no conflito. Assim, o principal argumento prudencial que nos leva a esperar que os indivíduos escolham a coexistência pacífica com outros indivíduos não se aplica aos Estados. Obviamente, nenhum líder deseja entrar em um conflito onde sua nação perderá. Mas quando os custos da derrota são mais parecidos com a perda de prestígio do que com ferimentos pessoais ou morte, pode-se esperar que os líderes demonstrem uma aceitação de risco muito maior do que um indivíduo que decide iniciar pessoalmente um combate mortal com outro indivíduo. Pela mesma razão, não está claro a priori que a igualdade aproximada de poder entre dois Estados deterá seus líderes de iniciar hostilidades da mesma maneira que esperamos que dissuadisse indivíduos particulares. De fato, acadêmicos em relações internacionais descobriram que pares de nações de poder comparável têm maior probabilidade de entrar em guerra do que pares com uma grande diferença de poder.11 Voltaremos à questão das causas da guerra no capítulo 12 . Por enquanto, o ponto importante é que não se deve presumir que análises de cooperação e conflito em nível individual possam ser transferidas para o nível de governo. 11 12

Bremer 1992, 326, 334–8. Hobbes 1996, 121-7, 144-5, 148.

9. A Lógica da Predação

9.3

195

Predação em um Estado totalitário

Vimos que, no estado de natureza, havia três medos que impediam você de atacar e roubar Abel: primeiro, que Abel resistisse à sua agressão com força; segundo, que a família ou os amigos de Abel podiam vingá-lo; terceiro, que vizinhos temerosos podiam vê-lo como uma ameaça que precisa ser neutralizada. Mas agora imagine que você acabou de receber o poder do governo, que, na visão de Hobbes, é o mais absoluto de todos os poderes humanos.12 Agora todas as três razões para respeitar os direitos de Abel foram removidas. Se você decidir roubar a comida de Abel, ele não terá meios eficazes de resistência. Se você matar Abel, sua família e amigos não terão meios eficazes de vingança. E por mais que os vizinhos temerosos reconheçam você como uma ameaça, dificilmente terão meios eficazes de tentar neutralizá-lo. Não há mais nada para impedi-lo de tudo o que desejar fazer aos seus infelizes vizinhos. Como egoísta racional, portanto, você certamente considerará roubar a maioria dos recursos de Abel, forçando-o a continuar trabalhando para produzir mais para você roubar. Que tal se esforçar, por meio da boa governança, garantindo que sua sociedade seja a mais próspera possível? Isso lhe dará mais para roubar. Como Hobbes proclama, quanto mais forte e mais próspero o povo for, mais forte e mais próspero será o governante.13 Embora esse seja um dos motivos para trabalhar e garantir uma sociedade produtiva, há outros motivos pelos quais você pode não querer se preocupar. Para começar, se a sociedade sobre a qual você governa é razoavelmente grande, deve ser possível extorquir espólios suficientes da população para manter-se em conforto, mesmo que as pessoas sejam carentes. Kim Jong-il, ditador comunista da Coréia do Norte, acumulou mais de US$ 4 bilhões, enquanto milhões de seus súditos passavam fome e o PIB per capita de seu país representava pouco menos de um quinto da média mundial.14 É verdade que Kim poderia ter acumulado ainda mais riqueza se seu país tivesse um sistema econômico mais produtivo. Mas a riqueza tem uma utilidade marginal decrescente: depois de reunir os primeiros quatro bilhões de dólares, a maioria das necessidades é satisfeita e o próximo bilhão faz relativamente pouca diferença para o seu bem-estar geral. Não vale a pena enfrentar grandes problemas ou desistir de qualquer outra coisa com a qual se preocupe para coletar mais dinheiro. E a boa governança costuma ser uma coisa difícil de alcançar. Geralmente, requer sabedoria, raciocínio cuidadoso e longas horas de pesquisa. Para identificar as melhores políticas, é preciso 13

Hobbes 1996, capítulo 19, 131. Sobre os ativos de Kim Jong-il, consulte Arlow 2010. Sobre a fome na Coréia do Norte, consulte Macartney 2010. Para estatísticas do PIB, consulte a Agência Central de Inteligência dos EUA em 2011. 14

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trabalhar incansavelmente no objetivo remanescente, reunindo mais evidências para testar as suposições e assim por diante. Tudo isso é intelectualmente e emocionalmente exigente. É muito mais fácil proclamar preceitos simples e mal pensados e segui-los dogmaticamente, independentemente da evidência. Que tal realmente ferir ou matar Abel? Pode-se pensar que, uma vez que você possua poder absoluto, não terá mais motivos para atacar Abel, já que ele não é mais uma ameaça para você. De fato, seus súditos são a fonte de seu poder; portanto, você deve manter o maior número possível deles, desde que permaneçam cooperativos. Se Abel for prudente, se submeterá a todas as suas demandas e, apesar da perda da maioria de seus alimentos e outros bens, permanecerá vivo. Novamente, isso é otimista demais. Primeiro, dada a existência de um governo poderoso, as pessoas que provavelmente acabarão no controle desse governo são aquelas que (a) têm o maior desejo de poder, (b) possuam as habilidades necessárias para conquistá-lo (por exemplo, a capacidade de intimidar ou manipular outras pessoas); e (c) não sejam incomodados por critérios morais para fazer o que é necessário para tomar o poder. Esses indivíduos não estão no jogo pelo dinheiro. Estão nele para o prazer de exercer poder. A maneira como se sente o exercício do poder é, com muita frequência, abusar dos que estão sob o poder enquanto observa seu desamparo para resistir. Isso está entre as lições do experimento na prisão de Stanford, conforme discutido anteriormente (Seção 6.7). Principalmente se o governante perceber algum ato desafiante por parte dos súditos – por exemplo, um sujeito critica o governo de alguma maneira – é provável que o governante sinta vontade de demonstrar seu poder esmagando o sujeito. O motivo seria precisamente a paixão pela “glória” que Hobbes considera entre as causas do conflito no estado de natureza. Segundo, muitas pessoas mantêm hostilidade em relação a certos grupos em sua sociedade – por exemplo, os membros de uma certa etnia, religião ou classe social; ou as pessoas que aderem, ou deixam de aderir, a certas doutrinas políticas. Se o governante tiver esse tipo de preconceito, pode sentir que vale a pena perder alguns milhões de súditos para satisfazer seu ódio por esse grupo. O princípio da teoria dos jogos é o seguinte: a concentração do poder gera abuso. Quando um grupo de pessoas detém grande poder sobre outro grupo, os fortes normalmente usam seu poder para abusar ou explorar os fracos para seu próprio engrandecimento. Tudo isso, tragicamente, é muito mais do que teorizar na poltrona. É também a lição horrível da história. Todo mundo sabe que quase seis milhões de judeus foram executados na Alemanha nazista em meados do século passado porque o governante odiava os judeus. Poucas pessoas percebem que isso era apenas a ponta do iceberg do assassinato em massa do século XX. O número

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197

total de pessoas mortas por seus próprios governos no século XX foi estimado em 123 milhões.15 Essas vítimas, em geral, foram mortas por pertencerem a grupos errados, seja a etnia errada, a classe errada ou a ideologia errada. Os regimes assassinos não pensaram que seus crimes contra a humanidade lhes custariam uma grande quantidade de receita tributária, pois, em princípio, não estavam buscando dinheiro. Foram movidos em parte pelo ódio, em parte pelo amor ao poder e em parte pelo desejo de refazer o mundo de acordo com suas ideologias. O número de pessoas mortas por seus próprios governos no século XX foi quatro vezes e meia maior do que o número de mortos por assassinos não-governamentais16 – o que levanta a questão de saber se um governo forte deve ser considerado mais uma fonte de segurança ou uma fonte de perigo. Hobbes estava certo ao destacar o egoísmo humano, embora exagere o ponto. Estava certo também em reconhecer a igualdade essencial do estado de natureza e a desigualdade criada pelo governo. Mas as implicações políticas desses fatos são o oposto do que Hobbes alegou. A igualdade de poder gera respeito e cooperação pacífica; uma vasta desigualdade gera desprezo e abuso. Quanto mais cínica é a natureza humana, mais importante é evitar grandes diferenças de poder.

9.4

Predação sob democracia

Felizmente, o totalitarismo não é a única forma de governo. Existem várias maneiras de tentar limitar o poder do governo e impedir seu abuso: escolher líderes por eleição popular, dividir o governo em poderes separados, escrever uma Constituição que defina e delimite os poderes do governo. Todos esses mecanismos oferecem alguma vantagem. No entanto, não funcionam exatamente como anunciado e não resolvem completamente nossos problemas. 15

Rummel 1998, 355. Se adicionarmos pessoas assassinadas por governos estrangeiros, inclusive por meio de alvos intencionais de civis durante a guerra (mas não incluindo a matança de combatentes), o total aumentará para 163 milhões. Quase todos esses assassinatos foram cometidos por regimes autoritários e totalitários. White (2010) estima o número total de mortes do século XX por guerra e opressão em 203 milhões. 16 Cerca de 520.000 pessoas foram assassinadas (em particular) em todo o mundo no ano 2000 (Holguin 2002), resultando em uma taxa de homicídios de 8,54 por 100.000 habitantes por ano. Se tomarmos isso como representativo do século como um todo, haveria cerca de 26,5 milhões de assassinatos privados no século XX. (Para estimativas populacionais ao longo do século, consulte US Census Bureau 2011a; 2011c. Eu usei a interpolação para estimar populações para anos não mostrados nas tabelas.) Comparando isso com a estatística de Rummel, temos uma proporção de 4,6 assassinatos governamentais para cada assassinato particular. Incluindo assassinatos de estrangeiros civis em tempos de guerra, a proporção é de 6,2. No entanto, essas proporções podem ser imprecisas, uma vez que usam a taxa de homicídios privados de 2000 para estimar assassinatos privados no século XX.

9. A Lógica da Predação

9.4.1

198

A tirania da maioria

De acordo com um argumento simples para a democracia, as pessoas geralmente conhecem seus interesses e votarão com base nesses interesses quando tiverem a chance. Portanto, os líderes em um Estado democrático serão aqueles que melhor servirão aos interesses da maioria das pessoas. Talvez o problema mais simples desse sistema seja que a maioria pode optar por abusar de uma minoria. Se a maioria das pessoas tem uma leve preferência por alguma política, por mais nociva ou injusta que seja para a minoria, a maioria pode implementar sua preferência por meio do Estado. Isso explica, por exemplo, por que o casamento gay não é permitido na maioria dos Estados Unidos. Explica as leis de Jim Crow antes do movimento pelos direitos civis e explica como os nazistas se tornaram o maior partido do Reichstag em 1932, apesar do ódio evidente a vários grupos de pessoas.

9.4.2

O destino dos não-eleitores

Um problema semelhante é que o governo pode desconsiderar os interesses daqueles que não têm voto. Normalmente, isso inclui criminosos condenados, crianças e, principalmente, estrangeiros. Essa última categoria de pessoas pode ser afetada pela política de imigração do governo, pela política de comércio internacional, pela política militar e por outras formas de política externa. Os interesses dos estrangeiros são frequentemente ignorados ou severamente desconsiderados nessas áreas. Ao definir a política de imigração, os governos nacionais desconsideram os interesses de potenciais imigrantes. Ao definir a política comercial, desconsideram os interesses de produtores e consumidores em outros países. Ao decidir se vão à guerra, desconsideram os interesses dos cidadãos estrangeiros que serão mortos. Na guerra mais recente dos EUA com o Iraque, por exemplo, as estimativas do número de cidadãos iraquianos mortos variam de cerca de cem mil a mais de um milhão.17 A guerra teve um enorme impacto no povo iraquiano, muito mais do que no povo americano. E, no entanto, o povo iraquiano não teve voz na decisão de invadir, que foi feita inteiramente por representantes do povo americano. Qualquer defensor da democracia certamente deve reconhecer isso como um problema sério. Esse problema resulta das extremas desigualdades de poder possibilitadas pela instituição do governo. Nesse caso, o governo dos EUA tinha poder suficientemente maior do que o povo iraquiano ou o governo iraquiano fazendo com que o governo dos EUA não precisasse considerar as opiniões dos iraquianos. 17

Ver Gamel 2009 para a baixa estimativa. Para obter a estimativa mais alta, consulte Opinion Research Business 2008.

9. A Lógica da Predação

9.4.3

199

Ignorância e irracionalidade dos eleitores

Pode-se supor que um Estado democrático servirá pelo menos aos interesses da maioria dos eleitores. No entanto, mesmo isso não precisa ser verdade. Para entender o motivo, primeiro considere a quantidade de poder prático que você exerce em virtude da sua capacidade de votar. Por simplicidade, suponha que você esteja votando em uma eleição com exatamente dois candidatos. Você, como indivíduo, está em posição de determinar o resultado da eleição se, e somente se, o resultado resultar em uma única votação – ou seja, sem o seu voto, o total de votos dos dois candidatos não diferirá em mais de um. Se os totais estiverem empatados, você poderá votar para desempatar; se um candidato estiver vencendo por um único voto, você pode fazer com que a eleição fique empatada. Em todos os outros casos, seu voto não faz diferença para o resultado. Se o total de votos dos candidatos diferir em dois ou mais, o candidato vencedor teria vencido independentemente de como você votou. Mas, dadas as circunstâncias em que os eleitores estão e esperam estar no futuro próximo, a probabilidade de uma eleição nacional depender de um único voto é insignificante. Assim, para todos os propósitos práticos, cada eleitor sabe que em todas as eleições seu voto não fará diferença alguma. É verdade que os eleitores como um todo têm muito poder, pois determinam quem detém as rédeas do governo. Mas essa não é a nossa preocupação agora. Nossa preocupação no momento é como é racional que você, como indivíduo, se comporte. Do ponto de vista da escolha racional, é irrelevante o que os outros podem fazer; o que é relevante é o que você pode fazer. Você não pode fazer com que todos os outros, ou mesmo a maioria, votem de uma maneira específica; você pode controlar apenas seu próprio voto. E isso lhe dá aproximadamente zero poder sobre os resultados das eleições. Agora assuma que você é um egoísta racional. Você deveria votar no candidato que melhor atende aos seus próprios interesses? À primeira vista, como seu voto não terá efeito sobre quais políticas você obtém, simplesmente não importa se você vota em um candidato que sirva seus próprios interesses, um candidato que serve os interesses da sociedade ou um candidato que é tão terrível que serve aos interesses de ninguém. Mas isso não está exatamente certo. Há uma chance minúscula, diferente de zero – talvez uma em cada dez milhões18 – de que 18

A estimativa de um em cada dez milhões é alcançada da seguinte forma. Nos últimos anos, as eleições presidenciais dos EUA renderam menos de dez milhões de votos (Monte 2010). Suponha, como uma aproximação, que seja certo que o total de votos dos dois principais candidatos diferirá em dez milhões ou menos. E suponha que atribuamos uma probabilidade igual a cada total de votos possível dentro desse intervalo. Então, cada possibilidade, incluindo a possibilidade de os totais diferirem em zero (ou seja, a eleição está empatada), tem uma probabilidade de um em cada dez milhões. Esse método pode superestimar as probabilidades, uma vez que não é 100% certo que o o total de votos cairá no intervalo especificado. No entanto, se supusermos

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200

uma eleição dependa de um único voto, enquanto não lhe custe nada votar no candidato que melhor sirva seus interesses, você desejará fazer. Essa motivação tênue é suficiente para fazer a democracia funcionar? O problema é que lhe custa algo votar no candidato que melhor atende aos seus interesses. Para saber qual candidato melhor atenda aos seus interesses, você deve primeiro reunir informações detalhadas sobre todos os candidatos disponíveis. Se atuaram em cargos públicos, você precisará procurar os registros de suas votações. Precisará procurar uma grande amostra dos projetos de lei ou outras propostas nas quais votaram. Você precisará tentar entender essas coisas. Para poder avaliar em cada caso se as propostas atenderiam aos seus interesses, você precisará pesquisar uma série de questões econômicas e sociais complexas. Pode ser necessário fazer alguns cursos de economia para descobrir os efeitos de algumas dessas políticas. Como os seres humanos tendem a ser afetados por fortes vieses em relação a questões políticas, você precisará fazer um esforço especial para identificar e superar seus vieses. Tudo isso exigiria enorme tempo e esforço. A probabilidade de que esse esforço seja recompensado com algum efeito real nos resultados das eleições é minúscula. Portanto, não faz sentido fazer o necessário para votar consistentemente em seus próprios interesses.19 Consequentemente, muitas pesquisas encontraram níveis surpreendentemente baixos de conhecimento político público. Caplan resume alguns destes resultados: Cerca de metade dos americanos não sabe que cada Estado tem dois senadores e três quartos não sabem a duração de seus mandatos. Cerca de 70% podem dizer qual partido controla a Câmara e 60% qual partido controla o Senado. Mais da metade não é capaz de nomear seu congressista e 40% não é capaz de nomear nenhum de seus senadores. Porcentagens ligeiramente mais baixas conhecem as afiliações partidárias de seus representantes. Além disso, esses baixos níveis de conhecimento mantêm-se estáveis desde o início das pesquisas, e as comparações internacionais revelam que o conhecimento político que, digamos, 80% de certeza de que os totais diferem em menos de 10 milhões, obteremos um limite menor para a probabilidade de uma eleição empatada de 0,8/10.000.000, ou uma em 12,5 milhões. Por outro lado, isso pode ser uma subestimação das probabilidades, porque os totais de votos mais próximos de iguais são mais prováveis do que aqueles que são menos iguais; em uma abordagem mais precisa, atribuiríamos uma distribuição de probabilidade em forma de sino, com o pico mais próximo do meio. Todas as coisas consideradas, a estimativa de um em cada dez milhões é da ordem correta de magnitude para as condições atuais nos Estados Unidos. Isso é suficiente para o presente argumento. 19 Para argumentos semelhantes, veja Schumpeter 1950, 261–2; Downs 1957, 244-5; Caplan 2007b.

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geral dos americanos não é mais do que moderadamente abaixo da média.20 Que tipo de coisas os americanos sabem sobre política? Delli Carpini e Keeter dão uma amostra do conhecimento político público: O fato mais conhecido sobre as opiniões de George [H. W.] Bush enquanto ele era presidente era que odiava brócolis. Durante a campanha presidencial de 1992, 89% do público sabia que o vice-presidente Quayle estava brigando com o personagem de televisão Murphy Brown, mas apenas 19% conseguiram caracterizar Bill Clinton em relação ao meio-ambiente. Também durante essa campanha, 86% dos o público sabia que o cachorro dos Bush chamava-se Millie, mas apenas 15% sabiam que os dois candidatos à presidência apoiavam a pena de morte. O juiz Wapner (apresentador da série de televisão “The People’s Court“) foi identificado por mais pessoas do que os chefes de justiça Burger ou Rehnquist.21 Agora imagine que você é um funcionário eleito em um Estado democrático. Você conhece os fatos anteriores. Você sabe que a maioria de seus eleitores não sabe seu nome e que apenas em raras ocasiões mais do que uma parte insignificante do eleitorado saberá como você votou em alguma questão perante a legislatura. As únicas atividades suas que podem vir a ser notícia são escândalos sexuais, caso você seja imprudente o suficiente para ser pego. Portanto, você pode fazer praticamente qualquer coisa que desejar (com exceção de causar escândalos sexuais), com pouco medo de causar descrédito diante ao público. Você pode votar com base em caprichos. Você não precisa ler os projetos de lei em que vota e não precisa pesquisar para determinar as melhores políticas. Você pode conceder favores a seus amigos e colaboradores de campanha. Se alguém lhe questionar sobre algo sobre sua lei de interesse especial, você pode fornecer argumentos econômicos ilusórios explicando por que a lei é realmente de interesse público. Não importa que seus argumentos sejam falaciosos, porque o público não sabe quase nada sobre economia – não é do interesse deles aprender economia, assim como não é o seu. Infelizmente, isso é mais do que teorização ociosa; explica a experiência consistente de qualquer observador moderno do governo. Aqui não é possível examinar as inúmeras ações de qualquer governo contemporâneo que comprove isso. Aqui, simplesmente seleciono um exemplo para ilustrar o que quero dizer. 20 21

Caplan 2007b, 8, ênfase no original. Delli Carpini and Keeter 1996, 101.

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Em meados de 2012, a lei agrícola mais recente dos Estados Unidos foi a Food, Conservation, and Energy Act (Lei de Alimentos, Conservação e Energia) de 2008.22 Entre outras coisas, esta lei continua a política estabelecida pelo governo federal de subsídios agrícolas, que totalizam mais de US$ 12 bilhões por ano, grande parte vai para grandes fazendas comerciais.23 Isso beneficia um pequeno número de pessoas, na maior parte já ricas, às custas do resto do país. Os US$ 12 bilhões distribuídos por 311 milhões de americanos, daria um pouco menos do que US$ 40 por pessoa. Obviamente, sem pesquisar essa lei em particular, você não conheceria esses números; mas suponhamos que você saiba que, em geral, se você fizesse pesquisas suficientes, poderia encontrar várias leis desse tipo que lhe custam quantias de dinheiro dessa mesma forma. Em cada caso, você pode tentar influenciar a legislação, com uma chance de sucesso de talvez uma em um milhão. Não é do seu interesse pesquisar as disposições da mais recente lei agrícola e como o seu representante votou nela para garantir uma chance em um milhão de economizar algo da ordem de US$ 40. Os números exatos são imateriais. Mesmo que a lei lhe custe muito mais dinheiro – digamos, US$ 400 por ano – e suas chances de alterar a lei sejam muito melhores – digamos, uma em mil – ainda não seria do seu interesse fazer algo a respeito. Por outro lado, as empresas que recebem a generosidade do governo têm motivos para prestar muita atenção. Cada uma delas ganha milhões ou bilhões de dólares e tem milhões para gastar na tentativa de influenciar o processo legislativo. Consequentemente, o agronegócio gastou US$ 80 milhões em lobby no ano que antecedeu a aprovação da lei agrícola.24 O projeto de lei agrícola também foi criticado por sua contribuição para a crise mundial de alimentos. Os preços mundiais de alimentos aumentaram dramaticamente nos últimos anos, levando a fome e distúrbios alimentares. De acordo com um estudo do Banco Mundial, o aumento do uso de biocombustíveis nos países desenvolvidos foi responsável por um aumento de 75% nos preços dos alimentos entre 2002 e 2008.25 A lei agrícola dos EUA em 2008 foi criticada por exacerbar o problema por meio do aumento do apoio a biocombustíveis.26 Esse problema no entanto, refere-se principalmente a pessoas de países em desenvolvimento, que têm ainda menos chance de influenciar a política dos EUA do que o americano médio. Ressalto aqui que não há nada de especial na política agrícola. É assim que a democracia moderna funciona. Grupos de interesse especial concentrados e bem 22

Public Law 110–246. U.S. Department of Agriculture 2011. 24 Etter e Hitt 2008. 25 Chakrabortty 2008. 26 Lawson-Remer 2008. 23

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203

organizados usam o aparato do Estado para extrair lucro às custas da maioria de sua própria sociedade, frequentemente adicionando vítimas infelizes em outros países. A política agrícola é apenas uma das muitas ilustrações.27

9.4.4

Ativismo: uma solução utópica

Alguns dizem que a solução para os problemas da democracia é o público ser mais ativo, observar o que seus representantes estão fazendo e pressioná-los a fazer o que é melhor para a sociedade.28 Deveríamos escrever cartas para nossos representantes, organizar manifestações e assim por diante. Esta é uma solução utópica. É utópico porque requer mudanças na natureza humana sem propor um mecanismo realista para provocar essas mudanças. As falhas democráticas que descrevi não são um acidente misterioso, nem são o produto de alguns maus atores. Eles resultam da operação do auto-interesse humano normal dentro da estrutura de incentivos de um estado democrático. Não é do interesse de cada cidadão acompanhar seus representantes eleitos. O comportamento dos cidadãos e representantes eleitos não mudará, a menos que a estrutura de incentivos mude ou as pessoas se tornem muito menos autointeressadas do que são. Não quero dizer que o ativismo social não possa resolver nenhum problema. Grandes avanços políticos foram provocados por movimentos sociais populares, como no caso do movimento abolicionista, do movimento do sufrágio feminino, do movimento indiano pela independência da Grã-Bretanha e assim por diante. Ocasionalmente, surgem movimentos sociais populares para combater injustiças grandes e simples, principalmente quando envolvem desigualdades flagrantes entre o tratamento de diferentes grupos. O que acho utópico é a sugestão de que o ativismo popular possa ser a solução para o constante mal-estar cotidiano do governo, que as pessoas sejam chamadas a deixar de lado seus próprios interesses e preocupações e convocar tempo e energia para monitorar ativamente as milhares de atividades do governo como um modo de vida permanente.29 Alguns seres humanos podem gostar de monitorar as atividades diárias de seu governo, mas para a grande maioria, é uma tarefa 27

Para uma descrição econômica do fenômeno, ver Downs 1957, 254-6. Para mais exemplos, veja Friedman 1989, 39–45; Green 1973; e especialmente Carney 2006. 28 Nader 1973. 29 Uma alternativa seria monitorar uma amostra pequena e aleatória de atividades do governo, mas punir cada infração descoberta com muita seriedade. Para funcionar, essa estratégia provavelmente exigiria penalidades muito severas, como o tempo de prisão, mesmo para pequenos lapsos. Embora isso possa ocorrer em uma sociedade habitada por economistas, nenhuma outra sociedade consideraria, por exemplo, enviar um legislador para a prisão por não ter lido uma lei antes de votá-la.

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entorpecente. Essa tarefa consumiria todos os momentos livres da vida de alguém, se levássemos a sério a suposta obrigação de supervisionar o Estado. O projeto da lei agrícola de 2008 que venho discutindo compreende 663 páginas de juridiquês. Apenas saber o que a lei contém é um feito em si, mas rastrear os efeitos de suas centenas de seções exigiria uma experiência em áreas como economia, agricultura, uso de energia e relações internacionais que provavelmente exigiriam anos de estudo para serem adquiridas. E esse projeto foi apenas um dos mais de dez mil projetos apresentados no Congresso naquele ano.30 O ativista mais consciente só conseguiu monitorar uma fração minúscula das atividades de seu governo, mesmo que fazer isso fosse sua única ocupação. É concebível que os ativistas possam dividir o trabalho. Cada um de nós pode escolher uma das mil áreas diferentes para monitorar as atividades do governo. Mas isso não é realista. Nas raras ocasiões em que os movimentos sociais inspiram grandes segmentos do público a se envolverem na política, é porque alguma injustiça grande e flagrante desperta nossas paixões. Mas ninguém se apaixonará por monitorar um milésimo das atividades diárias do governo. Propor que o público em geral sacrifique voluntariamente grande parte de suas vidas para a tarefa de estudar assuntos tediosos como as disposições da última lei agrícola, tudo para que cada um possa ter uma chance microscópica de melhorar uma fração microscópica das políticas governamentais é pelo menos tão utópico quanto propor que todos concordemos a partir de agora a trabalhar abnegadamente para o bem da sociedade.

9.4.5

A mídia: o cão de guarda adormecido

Em vez de termos que monitorar as atividades cotidianas de funcionários do governo, poderíamos delegar essa responsabilidade à mídia, o que poderia designar pessoas em tempo integral para observar o governo. Os jornalistas alertariam o público quando o governo estivesse fazendo algo particularmente ruim, momento em que os eleitores tomariam as medidas apropriadas. Se o mecanismo funcionasse bem, então os políticos rebeldes seriam punidos com segurança, apenas avisos ocasionais seriam necessários. Sem mais explicações sobre o que poderia manter esse feliz estado de coisas, no entanto, essa solução para os problemas da democracia é também excessivamente utópica. Não importa se dissermos que esse é o “trabalho” da mídia ou o que a mídia deveria fazer. O que importa é a estrutura de incentivos. É do interesse das empresas de mídia desempenhar o papel de alerta vigilante? Existem três razões pelas quais não é. Primeiro, monitorar dezenas de milhares de atividades governamentais é uma tarefa difícil, cara e demorada. Ao relatar 30

Harper 2008.

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atividades do governo, é mais fácil aceitar as declarações dos funcionários do governo como fonte de informações, em vez de tentar confirmá-las ou refutá-las. É mais fácil publicar pareceres e relatórios sobre itens simples e divertidos, como fofocas de celebridades, do que preparar relatórios detalhados sobre questões sociais complexas. Segundo, o governo é a organização mais poderosa da sociedade; possui um aparato de coerção enorme e irresistível, e relatos críticos de funcionários do governo provavelmente irritarão o governo. No mínimo, funcionários do governo se recusarão a dar entrevistas ou informações a jornalistas que estabelecem uma reputação de criticar o governo. Em casos mais graves, o governo emprega força diretamente contra jornalistas ou suas fontes. Um caso famoso é o de Daniel Ellsberg, que em 1971 divulgou um estudo secreto do Pentágono, revelando que o governo sabia que a Guerra do Vietnã era um atoleiro inimaginável. O governo apresentou doze acusações criminais contra Ellsberg (demitido) e o Presidente Nixon ordenou escutas ilegais e uma invasão ao consultório do psiquiatra de Ellsberg, em um esforço para encontrar informações para desacreditá-lo.31 Um caso mais recente é o do Wikileaks, que publicou milhares de documentos do governo em 2010, a maioria relacionada às guerras no Afeganistão e no Iraque, incluindo vídeos mostrando tropas americanas matando civis. A reação uniforme dos políticos americanos, tanto à esquerda quanto à direita, foi de indignação ao Wikileaks e a suas fontes. O vice-presidente Biden chamou o fundador do Wikileaks, Julian Assange, de terrorista e prometeu que o Departamento de Justiça procuraria maneiras de processá-lo. O ex-governador do Arkansas e em algum momento candidato à presidência Mike Huckabee chamou a fonte do Wikileaks de traidor e pediu sua execução. Até o momento em que este artigo foi escrito (meados de 2012), a fonte do Wikileaks para os documentos no Iraque, Chelsea Manning, analista de inteligência militar dos EUA, está sendo processada pelos militares sob várias acusações, incluindo “ajudar o inimigo”, uma ofensa capital (embora o governo não busque a pena de morte).32 Esses casos mostram que nem todos são facilmente intimidados. Mas também mostram que os jornalistas e suas fontes têm motivos racionais para o medo, caso publiquem informações embaraçosas ao governo. A terceira e mais importante razão pela qual não é do interesse da mídia agir como um alerta vigilante são as demandas do consumidor. Jornais, revistas, estações de televisão e estações de rádio dependem do interesse de seu público; 31

Kernis 2011. Ellsberg é o sujeito do documentário popular The Most Dangerous Man in America (O Homem Mais Perigoso da América). 32 Para o famoso vídeo Collateral Murder (Assassinato Colateral) divulgado pelo Wikileaks, consulte Wikileaks 2010. Para os comentários de Biden, consulte Mandel 2010. Em Huckabee, veja Wing 2010. Sobre as acusações contra Manning, consulte CBS News 2011.

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não importa o quão diligentes e corajosos sejam seus repórteres, se o público não quiser se sintonizar. Pelas razões discutidas acima, os cidadãos comuns não estão dispostos a gastar tempo, dinheiro ou esforço significativo aprendendo sobre o governo. Suponha, por exemplo, que uma estação de televisão esteja publicando uma história sobre a próxima lei agrícola. A história discute algumas das características deste projeto, seu impacto no orçamento, seu efeito mais amplo na economia e assim por diante. Economistas acadêmicos e especialistas em agricultura são entrevistados. Enquanto isso, outra estação publica uma fofoca sobre a popular artista Lindsay Lohan, que acabou de se meter em problemas novamente. Qual estação recebe mais espectadores? A política agrícola é chata. As desventuras de Lindsay Lohan são emocionantes. A política agrícola é complicada e difícil de entender. Lohan é simples e fácil de entender. A história sobre a política agrícola possui gráficos e estatísticas. A história sobre Lohan tem fotos de Lohan. Algumas pessoas podem preferir ouvir sobre a política agrícola. Mas a maioria dos meios de comunicação atende à maioria das pessoas. Algumas pequenas empresas atendem a intelectuais, mas isso não é suficiente para impedir a maioria do mau uso do poder pelo governo; o impacto da minoria minúscula de pessoas que gostam de ler estatísticas sobre políticas agrícolas será inundado pelo grupo muito maior de pessoas que não sabem da existência de políticas agrícolas e não se importariam mesmo que soubessem.

9.4.6

O milagre da agregação

De acordo com uma teoria recente na literatura sobre democracia, não importa se a maioria dos eleitores é ignorante, uma vez que uma pequena minoria de eleitores seja informada, então é suficiente para mudar uma eleição.33 Para saber como seria isso, assuma que temos uma eleição entre dois candidatos, o Superior e o Inferior, com Superior sendo o candidato objetivamente melhor. Existem milhões de eleitores, 90% dos quais são completamente ignorantes; quando entram na cabine de votação, votam completamente aleatoriamente. Os 10% restantes estão bem informados e invariavelmente votam no melhor candidato. Quem vence a eleição? Superior vence, com quase 100% de probabilidade. Como os eleitores desinformados votam aleatoriamente, eles se dividem igualmente, metade para Inferior e metade para Superior. Os eleitores informados, no entanto, todos votam no Superior. Superior, portanto, bate Inferior, 55 a 45 por cento. Se esse modelo estivesse correto, poderíamos ter níveis muito baixos de conhecimento médio dos 33

Ver Converse (1990, 377-83), que cunhou a frase “milagre da agregação”. Veja Caplan 2007b, capítulo 1, para críticas à teoria.

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eleitores e ainda assim alcançar resultados tão bons quanto os de um eleitorado totalmente informado. O elo fraco do argumento é a suposição de que eleitores ignorantes votam aleatoriamente, como se por um lance de moeda. As pessoas que não têm informações relevantes têm mais probabilidade de votar com base em vieses do que lançar uma moeda. Podem decidir votar no candidato com melhor aparência ou mais agradável, o candidato que exibiu mais anúncios de televisão ou o candidato cujo nome parece mais familiar. Podem votar automaticamente no Democrata ou automaticamente no candidato.34 Não importa exatamente qual é a base; a questão é simplesmente que provavelmente existe algo sobre um candidato que faz com que as pessoas votem nele, mesmo que esse recurso seja principalmente irrelevante para as qualificações objetivas do candidato para ocupar o cargo. Qualquer que seja esse fator ou conjunto de fatores, pode muito bem inundar o apoio ou a oposição dos eleitores informados. Por exemplo, suponha que, como antes, 10% do eleitorado sejam bem informados e sempre escolham o melhor candidato. Mas desta vez, suponha que apenas 70% dos eleitores votem lançando uma moeda. Os 20% restantes sempre votam no candidato mais carismático. Quem ganha? O candidato mais carismático vence, com quase 100% de probabilidade. Se Superior for mais carismático, ele vence com 65% dos votos (metade dos eleitores que lançam moeda, mais todos os eleitores motivados pelo carisma, além de todos os eleitores informados). Mas, se Inferior for mais carismático, ele vence com 55% dos votos (metade das apostas aleatórias e todos os eleitores que votam pelo carisma). Existindo mais eleitores que votam pelo carisma do que eleitores bem informados, o carisma determina o resultado, independentemente do que pensam os eleitores bem informados. O ponto geral é que quanto menos racional e informado o eleitorado for, mais provável é que fatores irrelevantes superem a pequena influência da qualidade das posições políticas dos candidatos.35 34

Utilizando a análise estatística, Bartels (1996) descobriu que pessoas mal informadas tendem a votar em titulares de cargo e democratas com mais frequência do que pessoas mais informadas, mas de outra forma semelhantes em idade, etnia, classe social e assim por diante. Ele conclui que a ignorância pública produz uma vantagem de cinco pontos percentuais para os titulares nas eleições presidenciais dos EUA e uma vantagem de dois pontos percentuais para os democratas. Essas vantagens são provavelmente maiores para as eleições congressionais, onde o conhecimento público é menor do que no caso das eleições presidenciais. Isso é consistente com o fato de os titulares de cargo serem reeleitos cerca de 95% das vezes na Câmara dos Deputados e 88% das vezes no Senado (Center for Responsive Politics 2011). 35 Essencialmente, o mesmo problema vicia as tentativas de usar a lei de grandes números para defender a democracia. O argumento é que, mesmo que cada eleitor tenha apenas um pouco mais chances de votar no melhor candidato do que no pior candidato, quando houver milhões de eleitores, é extremamente provável que a maioria vote no melhor candidato (Wittman 1995, 16; Page e Shapiro 1993, 41). Isso pressupõe que os erros dos eleitores são aleatórios e

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9.4.7

208

As recompensas pelo fracasso

Em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos sofreram o ataque terrorista mais devastador da sua história. Quatro aviões foram sequestrados e destruídos, o Pentágono foi atacado e o World Trade Center foi destruído, resultando em quase três mil mortes. Isso foi muitas vezes pior do que qualquer outro ataque terrorista já sofrido pelos EUA ou por qualquer outro país. Quais foram as consequências para o governo dos Estados Unidos? Primeiro, o índice de aprovação do presidente teve um salto imediato e enorme, de cerca de 55% para quase 90%. Nos sete anos seguintes, caiu de forma constante, terminando finalmente abaixo de 30% em 2008.36 Embora isso continue sendo motivo de especulação, é plausível que George W. Bush não teria sido reeleito em 2004 se não fosse o ataque terrorista. Em face disso, isso é paradoxal. Se houvesse alguém cujo trabalho fosse proteger os americanos desse tipo de ataque, seria o poder executivo do governo dos EUA. Como chefe desse poder, esperava-se que George W. Bush fosse criticado. Como analogia, imagine que você contratou uma empresa para fornecer segurança ao seu prédio. Você acabou de saber que ontem à noite, vândalos invadiram o prédio e destruíram milhares de dólares em equipamentos. Alguém agora pergunta o que você acha do trabalho que sua empresa de segurança está fazendo. O que você diz? “Melhor empresa de segurança de todos os tempos!”? Por que os americanos aprovaram tão entusiasticamente Bush após os ataques? Em parte, foi porque acharam que era patriótico apoiar o presidente, e em parte porque as pessoas tendem a confundir o país com o governo e o governo com os funcionários do governo. Meu objetivo ao dar esse exemplo não é culpar o governo pelo 11 de setembro. Meu objetivo é examinar os incentivos aplicados ao governo. O que acontece quando o governo falha em atingir seus objetivos? Frequentemente, o resultado é que o governo é mais recompensado do que punido. No presente caso, Bush obteve os mais altos índices de aprovação de sua carreira, além da oportunidade de expandir o poder executivo de maneiras que de outra forma teria encontrado uma resistência muito maior.37 Coisas semelhantes são verdadeiras para outras partes do governo. Suponha que uma cidade sofra uma onda de crimes. Quais serão os efeitos no departamento de polícia? É muito mais provável que o departamento de polícia receba um financiamento maior para combater o problema do que seu financiamento seja cortado. Ou suponha que uma sociedade sofra um severo aumento da pobreza. Se o governo não tiver agências projetadas para combater a pobreza, uma ou não correlacionados, uma suposição que é falsificada pela existência de influências tendenciosas comuns, como carisma do candidato, financiamento de campanhas e assim por diante. 36 Ruggles 2008; Wall Street Journal 2011. 37 Penso em particular no Patriot Act (lei pública 107–56).

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mais provavelmente serão estabelecidas. Se já existirem algumas, provavelmente receberão maior financiamento, em vez de menos. Poucas figuras públicas teriam coragem de argumentar que os programas de pobreza deveriam ser cortados porque há muita pobreza. A lição geral é que, se alguma parte do governo falha em sua função, provavelmente receberá maior financiamento e poder. Obviamente, o objetivo disso não é recompensar o fracasso; o pensamento seria que mais dinheiro e poder permitirão à agência resolver o problema. Mas o efeito é que o governo cresce quando os problemas sociais crescem e, portanto, não é do interesse do governo resolver os problemas da sociedade. Minha afirmação não é que os agentes do governo realmente tentem falhar. Não creio, por exemplo, que o governo Bush realmente desejasse que o 11 de setembro acontecesse. Minha afirmação é dupla: primeiro, que as agências governamentais simplesmente não se esforçam ao máximo para ter sucesso nas tarefas designadas, porque não sofrem as consequências negativas do fracasso. Segundo, que programas mal-sucedidos do governo tendem a persistir e crescer, com o resultado de que, durante um período de décadas, o governo passará a ser dominado por tais programas. É claro que outras histórias podem ser contadas sobre funcionários do governo perdendo seus empregos devido a algum fracasso importante. Minha reivindicação não é que o fracasso seja sempre recompensado; minha afirmação é que o fracasso tende a ser recompensado em uma ampla gama de casos, levando a sérios problemas nos Estados democráticos. Se um funcionário do governo é culpado de algum delito simples e demonstrável, com consequências negativas grandes e bem divulgadas, esse funcionário provavelmente perderá o emprego. Se uma agência governamental que se considera dispensável – por exemplo, a NASA ou o NEH (National Endowment for the Humanities) – falha de maneira simples e bem divulgada, então o financiamento da agência provavelmente será cortado e a agência poderá até ser eliminada. Mas suponha que alguma parte essencial do governo – digamos, o sistema judicial ou a aplicação da lei – falhe cronicamente de maneiras complicadas, difíceis de entender e que não sejam facilmente rastreáveis a ações específicas por um pequeno número de indivíduos, então essa parte do governo provavelmente será recompensada ao invés de punida. As pessoas sentirão que eliminar a agência ou poder disfuncional não é uma opção viável e, como não há indivíduos específicos para culpar, ninguém perderá seus empregos por causa disso. Os membros dessa parte do governo culparão o financiamento inadequado, e os eleitores mal informados provavelmente acharão essa explicação mais compreensível do que a complicada verdade. Assim, com o tempo, os tipos de falhas que devemos esperar acumular são falhas sistêmicas e discretas nos serviços essenciais do governo.

9. A Lógica da Predação

9.4.8

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Limites constitucionais

Talvez as falhas do governo possam ser mitigadas por meio de uma Constituição escrita que restrinja estritamente as funções do Estado. Quanto menos coisas o governo for responsável, mais fácil será para o povo monitorar suas atividades e, portanto, mais responsivo será o governo.38 Não podemos simplesmente assumir, no entanto, que, se existir uma Constituição, ela será seguida. Sem um mecanismo realista para induzir a conformidade, é excessivamente utópico assumir que um governo restringirá suas atividades simplesmente porque um documento o instrui a fazê-lo. Como analogia, imagine que proponho resolver o problema da predação escrevendo em um pedaço de papel: “Ninguém deve atacar ou roubar outras pessoas”. Sem algum tipo de mecanismo de imposição, isso seria insuficiente. O que fará com que os seres humanos auto-interessados obedeçam às diretrizes escritas nesse papel? A questão central sobre constituições é a mesma. Quem aplicará a Constituição? Nenhuma outra organização tem o poder de coagir o governo. Portanto, teremos que confiar no governo para impor restrições constitucionais contra si mesmo.39 Por que isso é mais realista do que a proposta paralela de que criminosos comuns sejam deixados para se prenderem e punirem? Talvez um poder do governo possa ser encarregado de fazer cumprir a Constituição contra os outros poderes. Os tribunais, por exemplo, podem invalidar uma lei quando considerarem inconstitucional. Mas que mecanismo induz os tribunais a cumprir fielmente esse dever? O que os impede de anular leis constitucionais, mas que simplesmente discordam ou colocam sua imprimatur em leis que são de fato inconstitucionais? Como sempre, quando contratamos um grupo de pessoas para vigiar os outros, surge a pergunta: “Quem vigiará os vigilantes?”40 Os limites constitucionais foram de fato tentados. Quão bem eles funcionam? Concentro-me novamente na experiência dos Estados Unidos. Alguns aspectos da Constituição dos EUA foram seguidos de perto, principalmente aqueles que descrevem estruturas institucionais. O governo é dividido em poderes executivo, legislativo e judicial, exatamente como prescrito pela Constituição; a legislatura é dividida em um Senado e uma Câmara dos Deputados; e assim por diante. No entanto, no que diz respeito à extensão do poder do governo, as restrições 38

Ver Somin (1998), embora ele não discuta por qual mecanismo o governo deve ser limitado. Compare Hamilton et al., N. 51, 163: “[Você] deve primeiro habilitar o governo a controlar os governados; e, em seguida, obrigue-o a se controlar.” 40 Essa frase deriva do poeta romano Juvenal (1967, sátira VI, 140), escrito no primeiro ou no segundo século. No contexto original, o significado era que não adianta contratar guardas para garantir a fidelidade de sua esposa, pois os guardas não são confiáveis. Platão (1974, 73, 403e) usa uma frase semelhante, em que Glauco afirma que “seria absurdo que o guarda precisasse de um guarda”. 39

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constitucionais são rotineiramente e sem desculpas violadas. Vale a pena dedicar algumas páginas a este estudo de caso. As Nona e Décima Emendas à Constituição deixam claro que os poderes do governo devem se limitar ao que está listado no próprio documento, enquanto os direitos do povo são abertos e não se limitam ao que foi listado: Emenda 9: A enumeração na Constituição, de certos direitos, não deve ser interpretada como negando ou menosprezando outras pessoas mantida pelo povo. Emenda 10: Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem proibidos por ela aos Estados, são reservados aos Estados, respectivamente, ou ao povo. A Nona Emenda pode ser difícil de aplicar – refere-se a direitos que não são enumerados, mas como saber quais são esses direitos? A Décima Emenda, no entanto, é clara. O governo federal não está autorizado a fazer outra coisa senão as coisas que a Constituição lhe confere o poder de fazer. Tudo o resto é inconstitucional. Isso é incontroverso; o governo mesmo nunca negou. O que, então, a Constituição concede ao governo o poder de fazer? De maior relevância é o artigo I, seção 8, que delineia os poderes do legislador: Seção 8 O Congresso terá poderes para estabelecer e cobrar impostos, taxas, impostos especiais de consumo e outros deveres, para pagar as dívidas e garantir a defesa e o bem-estar geral dos Estados Unidos; mas todos os Deveres, Impostos e Impostos Especiais devem ser uniformes nos Estados Unidos; Emprestar dinheiro com crédito dos Estados Unidos; Regular o comércio com nações estrangeiras, entre os vários Estados e com as tribos indígenas; Estabelecer uma regra uniforme de naturalização e leis uniformes sobre o assunto de falências nos Estados Unidos; Para cunhar Dinheiro, regular o Valor do mesmo, e Moeda estrangeira, e fixar o Padrão de Pesos e Medidas; Prever a punição pela falsificação dos valores mobiliários e da moeda atual dos Estados Unidos; Estabelecer os Correios;

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Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo por tempo limitado aos autores e inventores o direito exclusivo de seus respectivos escritos e descobertas; Constituir Tribunais inferiores a Supremo Corte; Definir e punir piratarias e crimes cometidos no alto-mar e ofensas à lei das nações; Declarar guerra, conceder cartas oficiais e represália e estabelecer regras relativas a capturas em terra e água; Organizar e apoiar exércitos, mas nenhuma apropriação de dinheiro para esse uso será por um período maior que dois anos; Fornecer e manter uma Marinha; Estabelecer Regras para o Governo e Regulamentação das Forças Terrestres e Navais; Providenciar a convocação da Milícia para executar as Leis da União, reprimir insurreições e repelir invasões; Providenciar a organização, armar e disciplinar as Milícias e governar a Parte delas que possa ser empregada no Serviço dos Estados Unidos, reservando aos Estados, respectivamente, a Nomeação dos Oficiais e a Autoridade de treinar as Milícias de acordo com a disciplina prescrita pelo Congresso; Exercer legislação exclusiva em todos os casos, em qualquer distrito (que não ultrapasse dez milhas quadradas) que seja possível, por Cessão de Estados particulares e a aceitação do Congresso, torna-se sede do governo dos Estados Unidos e exerce a mesma autoridade sobre todos os lugares adquiridos pelo consentimento da legislatura do Estado em que o mesmo será, para a montagem dos Fortes, Depósitos, Arsenais, Estaleiros e outros edifícios necessários; E Estabelecer todas as Leis que sejam necessárias e apropriadas para a execução dos Poderes precedentes, e todos os outros Poderes investidos por esta Constituição no Governo dos Estados Unidos ou em qualquer Departamento ou Oficial. Essa é a seção inteira e toda a lista dos poderes legislativos. A autoridade constitucional de todas as leis federais deve ser encontrada nessa lista. A lista inclui autoridade para estabelecer correios, um exército e um sistema de tribunais federais, todos os quais o país possui. Mas qual cláusula dessa lista autoriza o estabelecimento de uma CIA, uma Agência de Proteção Ambiental

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ou um Departamento de Saúde e Serviços Humanos? Qual cláusula autoriza o governo federal a controlar os salários que os empregadores devem pagar, que drogas as pessoas podem ingerir ou com que rapidez as pessoas podem dirigir? Por que o governo federal pode subsidiar o agronegócio, conceder empréstimos a estudantes universitários e enviar pessoas ao espaço? Nada disso parece remotamente incluído, explícita ou implicitamente, na lista de poderes do Congresso. Nem inúmeras outras atividades governamentais atuais. Qualquer lei, programa ou agência federal dos EUA escolhida aleatoriamente hoje é quase certamente claramente inconstitucional. Por que a Suprema Corte não derrubou todas essas leis? Aqui está a história oficial: apesar das aparências em contrário, todas elas são realmente autorizadas pela Constituição. Uma ilustração típica da lógica é fornecida pelo caso Wickard v. Filburn, decidido em 1942.41 O governo Roosevelt patrocinou com sucesso uma lei projetada para aumentar o preço do trigo, restringindo a quantidade de trigo que os agricultores poderiam cultivar. Roscoe Filburn era um fazendeiro que cultivava trigo inteiramente para alimentar animais em sua própria fazenda. Filburn excedeu o valor permitido pela lei e foi multado pelo Departamento de Agricultura. Filburn então processou num tribunal federal para impedir a aplicação da lei contra ele, argumentando que não havia autoridade constitucional para o governo federal controlar o quanto de trigo ele cultivava em sua fazenda. A Suprema Corte confirmou por unanimidade a lei, alegando que ela foi autorizada pela terceira cláusula do artigo I, seção 8, que concede ao Congresso o poder de “regular o comércio com nações estrangeiras, entre os vários Estados e com as tribos indígenas”. O tribunal argumentou que, como Filburn cultivava trigo para alimentar seu gado, ele compraria menos trigo de outros agricultores. Se muitos agricultores fizessem isso, isso reduziria significativamente o preço do trigo. Isso, por sua vez, afetaria o comércio de trigo, alguns dos quais atravessam as fronteiras do Estado. Portanto, ao multar Filburn por cultivar muito trigo, o governo federal estava simplesmente exercendo seu poder constitucional de regular o comércio interestadual. É difícil acreditar que qualquer observador imparcial competente no idioma leia a frase “regular o comércio [. . . ] entre os vários Estados” dessa maneira. Aqui está o relato não oficial, mas mais verdadeiro, dos fatos: No início de sua presidência, no início dos anos 30, os programas do New Deal de Franklin Delano Roosevelt foram repetidamente e decisivamente derrotados por exceder os poderes concedidos pela Constituição.42 O Presidente Roosevelt procurou contornar essas decisões, propondo o Projeto de Reforma dos Procedimentos Judiciais (Ju41

317 U.S. 111 (1942). Ver Carter v. Carter Coal Co., 298 U.S. 238 (1936); A.L.A. Schechter Poultry Corp. v. Estados Unidos, 295 U. S. 495 (1935); Louisville Joint Stock Land Bank v. Radford, 295 U.S. 555 (1935). 42

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dicial Procedures Reform Bill) de 1937, que lhe daria o poder de nomear seis novos juízes para a Suprema Corte, elevando o total para quinze. Se o plano tivesse sido aprovado, Roosevelt teria selecionado apenas candidatos que apoiariam o New Deal. No entanto, logo após Roosevelt ter proposto esse plano, o tribunal mudou de direção e começou a aprovar os programas de Roosevelt (embora apenas por uma margem estreita);43 FDR abandonou seu “plano judicial”. Nos anos seguintes, vários juízes se aposentaram e foram substituídos por nomeados por Roosevelt de qualquer maneira, com o resultado de que, na época do caso Wickard, oito dos nove juízes da Suprema Corte deviam seu mandato a Franklin Roosevelt.44 Esses juízes estavam determinados a aprovar a agenda de Roosevelt, não importando o que a Constituição dissesse. Eles, portanto, inventaram racionalizações para reverter as opiniões anteriores dos tribunais. Por esse motivo, o problema não se encontra em nenhuma ambiguidade ou clareza na Constituição, como poderia ter sido remediado por uma escolha mais criteriosa de palavras no momento em que o documento foi escrito. Lá não havia mal-entendido; os juízes simplesmente escolheram não cumprir a Constituição. O conteúdo específico da opinião escrita pelo juiz Jackson no caso Wickard é essencialmente irrelevante. Funciona como um véu muito fino para disfarçar a expunção intencional dos limites constitucionais ao poder do Congresso – mas se esse véu não estivesse disponível, teria havido outro. Se a cláusula de comércio não existisse, o tribunal teria planejado outra racionalização. Talvez tivessem alegado que a lei do New Deal se enquadrava na quinta cláusula, permitindo ao Congresso “cunhar dinheiro, regular seu valor e moedas estrangeiras e fixar o padrão de pesos e medidas”. A restrição à produção de trigo tem efeito sobre os preços do trigo; nesse sentido, afetava o valor do dinheiro (quanto mais baixos os preços, mais valiosa é uma quantidade de dinheiro). Então, talvez o Congresso estivesse apenas exercendo seu poder de regular o valor do dinheiro. Muitos hoje podem argumentar que foi bom o Tribunal ter optado por anular a Constituição, porque o documento escrito era excessivamente restritivo. Pense em quantos programas federais maravilhosos não existiriam hoje se tivéssemos que seguir uma leitura natural das palavras da Constituição! Mas, independentemente do que se pensa desses programas, a experiência americana deve dar uma pausa a qualquer democrata que confie no poder das constituições para limitar o poder governamental. Mesmo que os programas do New Deal fossem uma boa política, ainda deveriam, em teoria, exigir uma emenda constitucional antes de serem promulgados. O fato de não terem sido cumpridas e de tantas 43

Ver NLRB v. Jones & Laughlin Steel Corp., 301 U. S. 1 (1937); West Coast Hotel Co. v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937). 44 Harlan Stone, Hugo Black, Stanley Reed, Felix Frankfurter, William Douglas, Frank Murphy, James Byrnes e Robert Jackson. A exceção foi Owen Roberts, nomeado por Hoover. Ver Suprema Corte dos EUA em 2011.

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outras leis claramente inconstitucionais serem rotineiramente aprovadas sem desculpas testemunha o problema fundamental que um regime constitucional enfrenta. A Constituição é uma lei, e as leis exigem execução. Mas uma vez que estabelecemos uma autoridade suprema, não há ninguém para fazer cumprir a lei contra essa autoridade.

9.4.9

Sobre freios, contrapesos e separação de poderes

Ensina-se aos americanos que eles vivem sob um sistema de “freios e contrapesos”, pelo qual os poderes executivo, judicial e legislativo do governo impedem uns aos outros de abusar de seu poder. Essa ideia deriva de Montesquieu, que influenciou os autores da Constituição americana.45 Assim, o judiciário tem o poder de derrubar leis inconstitucionais, servindo assim como um controle do poder do legislador. O poder executivo tem o poder de nomear juízes, que o legislador deve aprovar; assim, os poderes executivo e legislativo atuam para garantir a integridade do judiciário. A legislatura tem o poder de impeachment do presidente, e a legislatura pode, assim, verificar o poder do poder executivo. E assim por diante. Nenhum poder do governo é supremo, e cada um tem poderes importantes sobre os outros. Nesta teoria está faltando um elemento crucial. Essa é uma explicação do motivo pelo qual se espera que cada poder do governo use seus poderes para impedir que os outros poderes abusem, em vez de, por exemplo, ajudar os outros poderes a abusar ou impedir que os outros poderes executem suas funções legítimas. Novamente, não importa o que nossa teoria rotule como a função apropriada dos funcionários do governo. O que importa é a estrutura de incentivos. Cada um dos três poderes do governo tem interesse em garantir que os outros poderes funcionem corretamente sem ultrapassar os limites prescritos pela Constituição? Talvez a teoria seja a de que os três poderes estejam em certa medida competindo entre si, de modo que nenhum poder deseje ver os outros se tornarem muito poderosos.46 Nem Montesquieu nem os fundadores americanos, no entanto, explicam claramente por que isso deveria ser o caso. O legislador faz leis, o judiciário interpreta as leis e determina quando elas foram violadas, e o executivo faz cumprir as leis. Agora, suponha que o legislador aprove leis que se estendem além das questões que a Constituição autoriza a regular. Quero dizer com isso, não leis que infringem outros poderes do governo, mas leis que infringem as liberdades do povo. De que maneira isso tornaria os poderes executivo ou judicial em pior situação? Se existir algo, os dois últimos poderes devem se expandir. Quanto mais leis houver para impor, maior será o poder executivo. Da mesma 45 46

Montesquieu 1748, 11.4, 11.6; Hamilton et al. 1952, nos. 47–51; Jefferson 1782, 214–15. Isso parece ser sugerido no n. 51 dos Federalist Papers (Hamilton et al. 1952, 162–4).

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forma, quanto mais restritivo for o regime jurídico, mais casos os tribunais terão que julgar e, portanto, maior o judiciário. Se cada poder quiser ser maior e mais poderoso, há algumas razões para pensar que deveriam atuar em conjunto. De qualquer forma, não há razão óbvia para pensar que cada um deve tentar impedir que os outros violem as liberdades do povo. Também não há razão para pensar que cada poder do governo sobre os outros possa ser usado apenas para o bem e não para o mal. Tome o poder do poder executivo para nomear juízes. O presidente poderia usar esse poder para garantir a integridade do judiciário. Ou ele poderia usá-lo para garantir uma falta de integridade – por exemplo, para garantir que apenas os juízes que compartilham sua ideologia e estejam preparados para avançar nessa ideologia sem levar em consideração a Constituição sejam nomeados. O pessimismo realista com o qual os fundadores americanos viam a natureza humana deveria tê-lo levados a ver a última possibilidade muito mais provável do que a primeira. Tudo isso é confirmado pela experiência. Pelo menos desde a época do New Deal, os presidentes nomearam juízes rotineiramente de acordo com a ideologia, e os ramos executivo e judicial do governo foram cúmplices na expansão do poder legislativo. As várias agências e programas federais inconstitucionais estão agora tão arraigados que é extraordinariamente improvável que qualquer juiz neste momento vote para começar a aplicar a Décima Emenda. Qualquer indivíduo suspeito de ter atitudes favoráveis a essa mudança não teria chance de ser nomeado por qualquer presidente nem de ser confirmado pelo Senado.

9.5

Conclusão

Nós, seres humanos, somos animais sociais auto-interessados. Vivemos juntos e, no entanto, cada um de nós se preocupa muito mais consigo próprio do que com a grande maioria dos outros. Como resultado, enfrentamos o problema social fundamental da predação: como as coisas devem ser organizadas para que os seres humanos não explorem e abusem continuamente um do outro? A solução padrão em filosofia social começa propondo uma desigualdade radical: uma única instituição com poder sobre todos os outros indivíduos e organizações. Para Hobbes, a solução termina aí. Para os teóricos democráticos, uma série de restrições deve ser anexada à autoridade central no esforço de impedi-la de explorar e abusar do resto da sociedade. Os mecanismos de restrição incluem eleições populares, imprensa livre, limites constitucionais e separação de poderes. Apesar de suas limitações, esses mecanismos se mostraram valiosos. Produzem uma forma de governo marcadamente menos abusiva do que o governo totalitário típico. As sociedades democráticas raramente sofrem desastres agudos

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e facilmente evitáveis, e quase nunca assassinam um grande número de pessoas. Alguns dos erros governamentais mais flagrantes são relatados na imprensa popular, para que os piores tipos de excessos sejam dissuadidos. Os juízes são solidários com pelo menos algumas restrições constitucionais ao governo e, portanto, optaram por aplicá-las. A liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e a liberdade religiosa são geralmente bem preservadas nas democracias constitucionais. Assim, se alguém se limita ao desenho de um sistema social baseado no Estado, os mecanismos tradicionais de restrição não devem ser desprezados. Meu objetivo, no entanto, foi argumentar que esses mecanismos não podem satisfazer todas as esperanças que os teóricos democráticos depositam neles. A urna é de utilidade limitada para garantir um governo responsivo, uma vez que não é do interesse de eleitores individuais fazer mais do que esforços simbólicos na votação racional e informada. A complexidade do governo moderno torna impossível até mesmo o cidadão mais dedicado se manter informado sobre mais do que uma fração muito pequena das atividades do Estado. Os meios de comunicação são de utilidade limitada, uma vez que não é do seu interesse informar sobre a grande maioria dos erros e perigos do governo. As constituições são de uso limitado, uma vez que é preciso confiar no governo para fazer cumprir a Constituição contra si mesma, e raramente é do interesse do governo fazer isso fielmente. Finalmente, a separação de poderes é de utilidade limitada, uma vez que os diferentes poderes do governo têm mais a ganhar com uma causa comum na extensão do poder do governo do que restringindo vigilantemente o poder um do outro. Como resultado, mesmo os governos democráticos cresceram em enormes proporções nos tempos modernos e se transformaram em ferramentas para pequenos grupos de interesse bem organizados para explorar o resto da sociedade. Para avançar ainda mais no problema da predação social, devemos enfrentar sua causa subjacente. O comportamento predatório não ocorre apenas porque os seres humanos são egoístas. Isso ocorre porque os seres humanos são autointeressados e alguns são muito mais poderosos que outros. Pessoas poderosas e auto-interessadas usam suas posições para explorar e abusar daqueles muito mais fracos que eles próprios. As soluções padrão para o problema da predação humana começam por sedimentar a própria condição com maior probabilidade de causar comportamento predatório – a concentração de poder – e só então eles tentam se afastar de suas consequências naturais. A alternativa é começar com uma descentralização extrema do poder coercitivo. Como esse sistema funcionaria será discutido em mais detalhes a seguir.

10 Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 10.1

Um sistema de justiça não-estatal

10.1.1

Agências de proteção

Em qualquer sociedade humana realista, mesmo anarquista, pelo menos alguns indivíduos cometerão agressão contra outros. Os habitantes da sociedade anárquica provavelmente desejariam desenvolver instituições sistemáticas para a provisão de segurança, incluindo um conjunto de agências de proteção ou empresas de segurança cuja função seria proteger os indivíduos da agressão contra suas pessoas e propriedades e apreender os agressores após o fato.1 Essas agências, em resumo, serviriam à função que a polícia desempenha nos sistemas governamentais. Na ausência de governo, as agências de proteção surgiriam pelo mesmo motivo que a maioria das empresas surge em um mercado livre; ou seja, existe uma necessidade que as pessoas estão dispostas a pagar para satisfazer. As agências cobrariam dinheiro por seus serviços, assim como as empresas de segurança privada atualmente cobram por seus serviços. Quem pagaria as agências de proteção? Indivíduos podem contratar sua própria empresa de segurança, ou associações de proprietários de bairros podem contratar segurança para seus bairros, ou proprietários de condomínios de apartamentos ou empresas podem contratar segurança para seus prédios, ou pode ocorrer uma combinação deles. Por que o anarquista não estipula os detalhes dos acordos de segurança nãoestatais? Porque o funcionamento do sistema é determinado pelos indivíduos que 1

Esta proposta deriva de Rothbard (1978, capítulo 12) e Friedman (1989, capítulo 29).

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o ocupam; portanto, as respostas às perguntas sobre como o sistema funcionaria deve assumir a forma de previsões especulativas em vez de estipulações (o mesmo se aplica a qualquer instituição não experimentada, embora esse fato seja pouco reconhecido). Os detalhes dos arranjos de segurança seriam determinados pelas forças do mercado e pelas escolhas individuais. Se, por exemplo, os clientes preferissem fortemente contratar empresas ou negócios que forneçam sua própria segurança, a maioria das empresas contrataria sua própria segurança. Quais serviços as agências de proteção prestariam? Isso também dependeria da demanda do cliente. Em alguns casos, elas podem fornecer patrulhas armadas. Em outros casos, podem fornecer câmeras de segurança e sistemas de alarme. Depois que um crime foi cometido, podem fornecer detetives e “policiais” armados para prender os criminosos. Uma vez apreendidos, os criminosos seriam compelidos a pagar uma indenização por seus crimes. O que as agências de proteção fariam no caso de um criminoso acusado manter sua inocência? Nesse caso, seria necessária alguma instituição que cumprisse a função de um sistema judicial.

10.1.2

Empresas de arbitragem

Numa sociedade anárquica, assim como nas sociedades governamentais, as pessoas às vezes têm disputas. Um tipo importante de disputa ocorre quando uma pessoa é acusada de um crime que nega ter cometido. Outro tipo ocorre quando as pessoas discordam sobre se um determinado tipo de conduta deve ser tolerado; por exemplo, eu acho que meu vizinho está tocando sua música muito alto, enquanto ele acha que o volume está bom. Um terceiro tipo diz respeito aos termos das relações comerciais, incluindo disputas sobre a interpretação dos contratos. Em cada um desses casos, as partes que discordam precisam de uma instituição que funcione como um tribunal para resolver sua disputa. Na ausência de um Estado, essa necessidade seria suprida por empresas de arbitragem privadas. A arbitragem por um terceiro neutro é a melhor maneira de resolver a maioria dos litígios, uma vez que geralmente oferece uma boa chance de promover uma resolução razoavelmente justa, e os custos para alcançá-la são quase sempre muito menores para ambas as partes do que os custos de tentar uma resolução através da violência. Por esses motivos, quase todos os indivíduos desejam que suas disputas sejam resolvidas por meio de arbitragem. Quem contrataria os árbitros? Talvez as partes em uma disputa concordem com um árbitro e dividam o custo entre elas. Ou talvez suas agências de proteção selecionassem o árbitro. Suponha que Jon acuse Sally de roubar seu gato. Ele informa a sua agência de proteção sobre o roubo e pede que eles recuperem o gato. Mas Sally notifica a sua agência de proteção que Jon está tentando roubar o gato dela e pede que eles defendam o gato. Se Jon e Sally contrataram a mesma

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agência de proteção, essa agência pode contratar uma empresa de arbitragem para determinar a quem o gato pertence, para que a agência possa decidir de quem é a reivindicação. Se Jon e Sally contrataram agências diferentes, as duas agências selecionam em conjunto uma empresa de arbitragem, com o entendimento de que ambas aceitarão o veredito do árbitro. Essas são as instituições básicas de uma sociedade anarquista bem ordenada. Em tal sociedade, as funções mais fundamentais comumente atribuídas ao Estado não são eliminadas, mas privatizadas. Muitas perguntas surgem naturalmente sobre esse sistema. No restante deste capítulo, abordo as questões mais importantes sobre as agências de proteção privada. As questões relativas às empresas de arbitragem serão abordadas no capítulo seguinte.

10.2

Isso é anarquia?

O sistema esboçado é comumente chamado de “anarcocapitalismo”, “anarquismo de livre mercado” ou “anarquismo libertário”. Pode-se perguntar, no entanto, se o sistema realmente se qualifica como uma forma de anarquia, em vez de, digamos, um sistema de governos concorrentes.2 Perguntas semânticas sobre o uso de “governo” e “anarquia” não são de grande importância. No entanto, o sistema difere em dois aspectos cruciais de todos os sistemas governamentais atualmente existentes, e são essas diferenças que me levam a chamar o sistema de uma forma de anarquia. A primeira diferença é entre voluntariedade versus coerção. Os governos forçam todos a aceitar seus serviços; como vimos (capítulos 2 e 3), o contrato social é um mito. As agências de proteção, por outro lado, são escolhidas pelos clientes, que fazem contratos reais e literais com eles. A segunda diferença é entre concorrência versus monopólio. Os governos detêm monopólios geográficos nos serviços de proteção e resolução de disputas,3 e mudar o governo de uma pessoa tende a ser muito difícil e caro, de modo que os governos sentem pouca pressão competitiva. No sistema anarquista, agências de proteção e empresas de arbitragem estão em constante competição entre si. Se alguém estivesse insatisfeito com a agência de proteção, poderia mudar para outra agência a baixo custo sem se mudar para outro país. 2

Rand (1964, 112–13) refere-se ao sistema como “governos concorrentes”, mas depois argumenta que é realmente uma forma de anarquismo; ela parece estar sob a má compreensão de que os próprios defensores do anarcocapitalismo chamaram o sistema de “governos concorrentes”. 3 Compare a conhecida definição de governo de Weber: “O estado é uma comunidade humana que (com sucesso) reivindica o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (1946, 78; ênfase no original).

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Essas duas diferenças são a fonte fundamental de todas as vantagens reivindicadas pelo anarcocapitalismo sobre o governo tradicional. A voluntariedade do esquema anarcocapitalista o torna mais do que um sistema coercitivo, e ambas as características tornam o sistema anarcocapitalista menos abusivo e mais sensível às necessidades das pessoas do que os sistemas coercitivos e monopolistas.

10.3

Conflito entre protetores

As agências de proteção concorrentes podem parecer ter motivos significativos para o confronto físico direto entre si. Como estão em concorrência econômica direta, uma agência pode querer atacar outra na esperança de colocar a outra agência fora do negócio. Ou, no caso de uma disputa entre clientes de diferentes agências, as agências de proteção podem entrar em guerra para defender os interesses de seus respectivos clientes, em vez de permitir que a disputa seja resolvida por meio de arbitragem. Por essas razões, alguns argumentam que uma sociedade anarquista seria dividida em guerras entre agências.4

10.3.1

Os custos da violência

Como discutido anteriormente (Seção 9.2), conflitos violentos tendem a ser muito perigosos para ambas as partes; indivíduos racionais, portanto, procuram evitar provocar tais conflitos e preferem métodos pacíficos de resolução de disputas, como arbitragem de terceiros, sempre que disponíveis. Mas, apesar dos argumentos prudenciais e morais contra o envolvimento em confrontos violentos evitáveis, esses confrontos ocorrem periodicamente entre indivíduos comuns. Por que isso ocorre? Em essência, o motivo é que, na população em geral, existe uma grande variedade de atitudes e motivações e, entre toda essa variedade, há indivíduos com graus incomumente altos de confiança física, incomumente baixa preocupação com sua própria segurança física, e extraordinariamente baixa capacidade de controle de impulsos – um conjunto de características frequentemente referidas como “imprudência”.5 Os gerentes de negócios, no entanto, são consideravelmente mais uniformes que a população em geral. Eles tendem a compartilhar duas características em particular: um forte desejo de gerar lucros para seus negócios e uma consciência razoável dos meios eficazes para alcança-los. É improvável que indivíduos que 4

Essa objeção aparece em Wellman (2005, 15-16) e Rand (1964, 113). Friedman (1989, 115-16) responde. 5 A teoria de que o conflito violento é devido a personalidades agressivas, e não, digamos, ao interesse próprio racional, é evidenciada pelo fato de que esse conflito é um fenômeno quase exclusivamente masculino.

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não possuam essas características surjam à frente de um negócio e, se surgirem, é provável que o mercado os remova dessa posição (como quando o conselho de administração de uma empresa substitui seu CEO) ou remove a empresa do mercado (como na falência). Assim, é muito menos provável que os gerentes de negócios se comportem de maneiras claramente destrutivas do que os indivíduos comuns se comportarem de maneiras que claramente ponham em risco sua própria segurança física. Mas a guerra é, para dizer o mínimo, cara. Se um par de agências entrar em guerra uma com a outra, ambas as agências, incluindo a que acaba sendo a vencedora, provavelmente sofrerão enormes danos a suas propriedades e seus funcionários. É altamente improvável que uma disputa entre dois clientes valha esse tipo de despesa. Se, ao mesmo tempo, houver outras agências na região que não se envolveram em nenhuma guerra, essas últimas terão uma poderosa vantagem econômica. Em um mercado competitivo, as agências que encontrarem métodos pacíficos de resolução de disputas terão um desempenho superior àquelas que travam batalhas desnecessárias. Como isso é facilmente previsível, cada agência deve estar disposta a resolver qualquer disputa pacificamente, desde que a outra parte esteja igualmente disposta.

10.3.2

Oposição ao assassinato

Os funcionários de uma agência de segurança têm suas próprias vontades individuais, distintas dos objetivos da agência. Se a gerência decidiu atacar outra agência apenas para afastar um concorrente, a deserção generalizada é o resultado mais provável. Há duas razões para isso. Primeiro, a maioria dos seres humanos se opõe a assumir riscos muito grandes para suas próprias vidas, a fim de maximizar os lucros para seu chefe. O combate com outra agência de segurança seria muito mais perigoso do que o trabalho normal de apreender criminosos comuns, já que a outra agência estaria melhor armada, organizada e treinada do que os criminosos comuns. Segundo, a maioria das pessoas nas sociedades contemporâneas se opõe fortemente ao assassinato de outros membros de sua sociedade.6 Esse “problema” há muito tempo é reconhecido por especialistas militares cuja preocupação é convencer soldados a matar o maior número possível de inimigos. Com base em entrevistas com soldados da Segunda Guerra Mundial, o general S. L. A. Marshall concluiu que notoriamente que não mais de um quarto dos soldados americanos realmente disparou suas armas em uma batalha típica.7 O tenente-coronel Dave 6

Grossman (1995, 1-39) fornece uma visão geral das evidências empíricas para isso. Marshall 1978, capítulo 5. Outros questionaram as estatísticas de Marshall, que provavelmente são suposições (Chambers 2003), mas o quadro geral permanece inalterado (Grossman 1995, 333, 7

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223

Grossman relata vários casos em que a taxa de baixas durante uma batalha foi muito menor do que se poderia conciliar plausivelmente com a suposição de um esforço genuíno de cada lado para matar o outro. Em um incidente marcante, uma unidade dos Contras na Nicarágua foi ordenada por seu comandante a massacrar os passageiros em um barco civil. Quando chegou a hora de abrir fogo, cada bala milagrosamente sobrevoou a cabeça dos civis. Como um soldado explicou: “Os camponeses nicaraguenses são bastardos malvados e soldados durões. Mas não são assassinos.”8 Isso não é para negar que alguns seres humanos são assassinos; é apenas dizer que a esmagadora maioria dos seres humanos se opõe fortemente ao assassinato. Uma pequena porcentagem de pessoas está disposta a matar; no entanto, esses indivíduos geralmente não são funcionários desejáveis e, portanto, é improvável que uma agência de proteção deseje trabalhar com essas pessoas. E quanto à descoberta do experimento de Milgram (Seção 6.2), no qual as pessoas se mostraram dispostas a eletrocutar uma vítima indefesa quando solicitadas por um cientista? O medo de desafiar a autoridade pode superar a resistência das pessoas ao assassinato. Embora os gerentes de negócios tenham muito menos aura de autoridade do que os funcionários do governo, um gerente de agência de proteção pode, no entanto, ser capaz de explorar essa falha na natureza humana para induzir funcionários a matar membros de agências rivais? Talvez possa, embora valha a pena notar algumas outras características do experimento de Milgram. Primeiro, a escalada gradual das demandas do experimentador, a partir de um experimento científico aparentemente legítimo, foi uma característica crucial do design. Se Stanley Milgram tivesse simplesmente entregado uma pistola a seus súditos quando entraram na porta e lhes disse para atirar em outro indivíduo, provavelmente não teria conseguido. Mas talvez um gerente inteligente de agência de proteção, versado em psicologia, possa manipular as circunstâncias da mesma forma. Segundo, os participantes de Milgram não estavam em perigo pessoal em relação à pessoa que supostamente estavam eletrocutando. Se o “aluno” no experimento tivesse a capacidade de aplicar o choque no professor de volta, é duvidoso até que ponto o professor teria continuado com o experimento. Um gerente de empresa guerreiro precisaria convencer os funcionários não apenas a matar, mas também a se arriscarem a ser mortos. Terceiro, embora a maioria dos participantes de Milgram tenha obedecido, fizeram-o com grande relutância, exibindo sinais de estresse extremo. Mesmo que uma agência bélica conseguisse convencer os funcionários a cometer assassinatos, n. 1). Comentando o problema enfrentado pelos líderes militares, Grossman (1995, 251) observa: “Uma taxa de disparos de 15 a 20% entre os soldados é como ter uma taxa de alfabetização de 15 a 20% entre os revisores”. 8 Dr. John, citado em Grossman 1995, 14–15.

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os funcionários ficariam extremamente infelizes e provavelmente a agência logo perderia a maioria deles. Durante a década de 1960, os manifestantes americanos contra guerra exibiram pôsteres e adesivos com o slogan “E se fizessem uma guerra e ninguém viesse?”9 No improvável evento de uma agência de proteção declarar guerra contra outra agência, os moradores da sociedade anarquista poderiam finalmente ter a chance de observar a resposta a esta pergunta.

10.3.3

Conflito entre governos

Acabamos de ver por que a guerra entre agências de proteção é improvável. Se, por outro lado, confiamos no governo para nossa proteção, existe alguma explicação de por que a guerra entre Estados seria improvável? Um estatista pode oferecer duas razões para considerar a guerra entre Estados uma ameaça menor do que a guerra entre agências: i Como os governos possuem monopólios territoriais, cidadãos de diferentes Estados entram em conflito com menos frequência do que os clientes de diferentes agências de proteção. ii Há menos concorrência entre governos do que entre agências de proteção. Os altos custos de mudança de um país para outro, incluindo as barreiras que os próprios governos costumam colocar no caminho, permitem que um governo extraia lucros do monopólio de sua população com pouco medo de perder “clientes” para um governo rival. Portanto, um governo tem menos motivos para desejar eliminar governos rivais do que uma agência de proteção deseja eliminar agências rivais. Essas são considerações válidas. Por outro lado, parece haver várias razões para esperar que o problema da guerra entre Estados seja mais sério do que o da guerra entre agências: i Os líderes empresariais tendem a ser motivados principalmente pelo motivo do lucro. É mais provável que os líderes governamentais sejam movidos pela ideologia ou pelo desejo de poder. Devido aos enormes custos do conflito armado, as últimas motivações são motivos muito mais prováveis de conflito armado do que o desejo de obter ganhos financeiros. ii Devido às suas posições monopolistas, os governos podem se dar ao luxo de cometer erros extremamente grandes e caros, sem medo de serem suplantados. Por exemplo, o custo combinado estimado das guerras dos EUA no 9

A frase parece derivar de Sandburg (1990, 43; publicado originalmente em 1936). A frase original é “Em algum momento eles entrarão em guerra e ninguém virá”.

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Iraque e no Afeganistão é de US$ 2,4 trilhões,10 e, no entanto, o governo dos EUA não precisa temer perda de participação de mercado como resultado desse investimento duvidoso. Se cada americano pudesse escolher entre um governo que continuasse essas guerras e um que não continuasse, e se cada indivíduo tivesse a garantia de que realmente conseguiria o que escolheu, mesmo os falcões mais ardentes pensariam duas vezes o preço. Felizmente para o governo, os indivíduos não têm essa escolha. iii Os governos dispõem de melhores ferramentas propagandísticas do que as empresas privadas. Como a maioria das pessoas acredita em autoridade política, o Estado pode alegar que os cidadãos são moralmente obrigados a ir à guerra, apoiando ou não a guerra. O Estado pode retratar o combate sob seu comando como “luta pelo país”, que geralmente é visto como nobre e honroso. Um negócio privado que busque aumentar os lucros matando concorrentes teria mais problemas para vender algo do tipo. iv Os seres humanos estão muito mais dispostos a matar aqueles que são percebidos como muito diferentes deles mesmos, especialmente os estrangeiros, do que matar membros comuns de sua própria sociedade.11 Consequentemente, é mais fácil convencer as pessoas a entrar em guerra contra outro país do que seria convencer as pessoas a atacar funcionários de outra empresa. v O treinamento militar moderno emprega técnicas de condicionamento psicológico intensivo e dessensibilização para superar os instintos humanos dos soldados. As forças armadas dos EUA adotaram técnicas desse tipo em resposta às descobertas de Marshall sobre a baixa taxa de disparos de soldados da Segunda Guerra Mundial. Como resultado, a taxa de disparos aumentou de menos de 25% na Segunda Guerra Mundial para 55% na Guerra da Coreia e perto de 90% na Guerra do Vietnã.12 No entanto, os funcionários de uma empresa de segurança são menos propensos a se submeter a condicionamentos de estilo militar, uma vez que não veriam a necessidade de combater com outras agências de proteção. vi Devido ao seu amplo controle sobre a sociedade da qual seus soldados são recrutados, o Estado pode e aplica sanções poderosas a soldados que se recusam a lutar ou a cidadãos que se recusam a ser recrutados. Sob um sistema governamental, aqueles que se recusam a lutar sob o comando de 10

Reuters 2007a, relatando uma estimativa do Congressional Budget Office dos custos totais até o ano de 2017. O custo estimado apenas para o Iraque é de US$ 1,9 trilhão. Stiglitz e Bilmes (2008), no entanto, colocam o custo de ambas as guerras em pelo menos US$ 3 trilhões. 11 Zimbardo 2007, 307–13; Grossman 1995, 156-70. 12 Marshall 1978, 9; Grossman 1995, 249-61.

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seu governo devem fugir do país para evitar prisão ou execução;13 sob um sistema anarquista, aqueles que se recusam a lutar sob o comando de seu empregador devem apenas encontrar outro emprego. vii Devido à sua posição monopolista e à sua capacidade de coletar pagamentos não-voluntários da população, os governos tendem a ter recursos muito maiores do que as organizações não-governamentais, permitindo-lhes acumular vastos arsenais, mesmo em tempos de paz. Por exemplo, até o momento em que este artigo foi escrito, o governo dos EUA mantém dez porta-aviões da classe Nimitz, que custam US$ 4,5 bilhões cada, mais US$ 240 milhões por ano para manutenção14 , gerando receita zero. Como resultado, quando a guerra começa entre governos, é muito mais destrutiva do que qualquer tipo de conflito envolvendo outros agentes. O número de mortos pela guerra no século XX é estimado em 140 milhões,15 e o problema ainda pode provar a causa da extinção da espécie humana. Levando em consideração todas essas observações, parece que a guerra é uma preocupação maior para os governos do que para as agências de proteção.

10.4

Proteção para criminosos

Eu descrevi um sistema de agências privadas dedicadas a proteger indivíduos do crime; isto é, por roubo, agressão física e outras violações de direitos. Mas por que não deveria haver agências dedicadas a proteger criminosos das tentativas de suas vítimas de garantir a justiça? Que assimetria entre criminosos e cooperadores pacíficos torna mais viável, rentável ou atraente para uma agência proteger pessoas comuns do que proteger criminosos?

10.4.1

A rentabilidade da aplicação de direitos

Existem pelo menos três assimetrias importantes que favorecem a proteção de pessoas não criminosas em detrimento de criminosos. Primeiro, muito mais pessoas desejam ser protegidas contra o crime do que desejam cometer crimes. Quase ninguém deseja ser vítima de um crime, enquanto apenas alguns desejam ser criminosos. Segundo, os danos sofridos pelas vítimas de crimes são tipicamente muito maiores do que os benefícios de quem os comete. As pessoas 13

The U.S. Uniform Code of Military Justice, Artigo 85, permite qualquer penalidade, inclusive a morte por deserção durante a guerra (www.ucmj.us). 14 Marinha dos EUA 2009; Birkler et al. 1998, 75. 15 Leitenberg 2006, 9. A maioria destas são mortes de civis; as mortes militares foram próximas de 36 milhões (Clodfelter 2002, 6).

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comuns, portanto, estariam dispostas a pagar mais para evitar serem vítimas do que os criminosos estariam dispostos a pagar pela chance de vitimar outras pessoas. Em virtude dessas duas primeiras condições, há muito mais a ser ganho no negócio de proteção contra criminosos do que no negócio de proteção para criminosos. Dado que os dois “produtos” se excluem – se um produto é efetivamente fornecido no mercado, então o outro necessariamente não é – será o menos rentável que deixará de ser fornecido. Se uma agência de proteção desonesta decidir contrariar a tendência apoiando criminosos, se encontrará presa em um conflito perpétuo e sem esperança com agências de proteção muito mais lucrativas e numerosas financiadas por clientes não criminosos. A terceira assimetria é que os criminosos escolhem cometer crimes, enquanto as vítimas de crimes não escolhem ser vítimas. Os criminosos, em outras palavras, se envolvem intencionalmente em comportamentos que os garantam entrar em conflito com os outros. Do ponto de vista de uma agência de proteção, esse é um recurso pouco atraente em um cliente, uma vez que, quanto mais conflitos houver em que a agência é solicitada a proteger clientes, maiores serão os custos da agência. Clientes comuns e não criminosos estão alinhados com os objetivos da agência a esse respeito: eles não desejam se envolver em conflitos da mesma forma que a agência espera o mesmo. Clientes criminosos são uma história muito diferente. Oferecer proteção a criminosos é análogo a oferecer seguro contra incêndio para incendiários.

10.4.2

Proteção criminal por governos

E o problema análogo para os governos: existem forças que impedem um governo de agir para proteger criminosos? Os governos geralmente agem para proteger a sociedade contra aqueles que violam os direitos de outras pessoas, como assassinos comuns, ladrões, estupradores e assim por diante. Por outro lado, durante a era da escravidão, o governo protegeu os proprietários de escravos de seus escravos, e não o contrário. Antes do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, o governo impunha a segregação racial. E hoje, os governos democráticos funcionam como ferramentas para grupos de interesses especiais roubarem do resto da sociedade.16 Esses exemplos mostram que os dois padrões são possíveis: o governo pode proteger os direitos das pessoas e também pode proteger os violadores de direitos. A questão é se o padrão injusto de proteger os violadores de direitos seria mais comum para uma agência de proteção do que para um governo. Governos e agências de proteção são organizações humanas, formadas por agentes com motivações humanas. Assumir que os governos são motivados de maneira 16

Para discussão, consulte a Seção 9.4.3.

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228

altruísta, enquanto as agências de proteção são egoisticamente motivadas é aplicar um padrão duplo projetado para distorcer a avaliação em favor do governo. Se evitarmos esses padrões duplos, é difícil entender por que os governos devem ser menos propensos a proteger os violadores de direitos do que as agências privadas. Alguém poderia argumentar que os governos democráticos devem responder aos desejos dos eleitores, a maioria dos quais se opõe ao crime. Mas alguém poderia igualmente argumentar que as agências de proteção devem responder aos desejos dos consumidores, a maioria dos quais se opõe ao crime, e há razões para esperar que o mecanismo de mercado seja mais responsivo que o mecanismo democrático (consulte as seções 10.7 e 9.4).

10.5

Justiça à venda

Alguns se opõem à livre prestação de serviços de proteção no mercado, alegando que a justiça não deve ser comprada e vendida. Aparentemente, essa objeção contorna desconfortavelmente perto a negação da posição anarcocapitalista. Para evitar fazer a pergunta, o opositor deve articular uma razão específica pela qual os serviços de proteção e resolução de disputas não devem ser comprados e vendidos. Duas razões inicialmente plausíveis podem ser apresentadas.

10.5.1

Direito preexistente

Um argumento é que as pessoas não devem pagar pela justiça, porque todos têm direito à justiça para começar. Assim como eu não deveria ter que pagar pelo meu próprio carro (novamente), uma vez que já o possuo, não deveria ter que pagar por qualquer outra coisa a que já tenha direito. Em certo sentido, isso está correto – ninguém deveria pagar pela justiça. Mas o que a objeção aponta não é uma falha no sistema anarcocapitalista, mas uma falha na natureza humana, pois a necessidade de pagar pela justiça é criada, não pelo sistema anarcocapitalista, mas simplesmente pelo fato de os criminosos existirem, e esse fato tem suas raízes nas enfermidades perenes da natureza humana. Em um sentido idealista e utópico, podemos dizer que todos devem simplesmente respeitar voluntariamente os direitos um do outro, para que ninguém precise pagar por proteção. Dado, no entanto, que algumas pessoas de fato não respeitam os direitos de outras pessoas, a melhor solução é que alguns membros da sociedade forneçam proteção a outros. Isso custa dinheiro, e há pelo menos duas razões pelas quais os protetores não podem ser solicitados a simplesmente arcar com os custos. Primeiro, há o argumento prático de que poucas pessoas estão dispostas a gastar seu tempo e recursos, para não falar dos riscos físicos assumidos pelos provedores

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de segurança, sem receber em troca algum benefício pessoal. Se decidirmos que é errado cobrar dinheiro por um serviço vital, como proteção de direitos, enquanto se pode cobrar pelo que se gosta por bens não essenciais, como twinkies e telefones celulares, então construiremos uma sociedade com muitos twinkies, telefones celulares, e violações de direitos. Segundo, aqueles que prestam serviços de proteção têm o direito de solicitar uma compensação pelo seu tempo, suas despesas materiais e os riscos físicos que assumem, pelo menos tanto quanto qualquer outra pessoa que forneça serviços de valor a terceiros. Seria injusto exigir que eles suportem todos esses encargos, enquanto seus beneficiários, aqueles a quem protegem, podem simplesmente prosseguir com suas próprias ocupações em benefício próprio, sem suportar nenhum custo de sua própria defesa. De qualquer forma, a importância vital da proteção de direitos autoriza aqueles que prestam esse serviço a pedir maiores recompensas do que aqueles que fornecem bens e serviços menos essenciais.

10.5.2

Baseando a lei na justiça

Outra razão para pensar que a proteção contra o crime não deve estar sujeita às forças do mercado é que isso é incompatível com as leis que estão sendo determinadas, como deveriam ser, pelo que é moralmente certo e justo. Novamente, há algo obviamente correto nesse pensamento: os seres humanos devem respeitar os princípios morais e devem projetar regras para promover a justiça e o comportamento ético. Mas isso não é objeção ao anarcocapitalismo. Ao procurar o interesse próprio para explicar como as agências de proteção em uma sociedade anarquista se comportariam, não estou defendendo o egoísmo; Estou reconhecendo isso como um aspecto da natureza humana que existe independentemente de qual sistema social ocupamos. Pode-se projetar instituições sociais assumindo que as pessoas são altruístas, mas isso não fará com que as pessoas sejam altruístas; isso simplesmente fará com que essas instituições falhem. Isso não quer dizer que as pessoas sejam totalmente egoístas. Na medida em que os seres humanos são movidos por ideais de justiça e moralidade, esses motivos apenas fortaleceriam as instituições de proteção de direitos da sociedade anárquica. O trabalho eticamente adequado de uma agência de proteção é proteger os direitos de seus clientes e, em caso de desacordo, impor as decisões de um árbitro. O trabalho adequado de um árbitro é encontrar as resoluções mais justas, sábias e justas possíveis das disputas que lhe foram colocadas. O fiel cumprimento desses deveres não é impedido pelo fato de que as agências e os árbitros têm motivos de interesse próprio para fazer essas coisas.

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10.5.3

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Comprando justiça do governo

As objeções anteriores, em qualquer caso, não podem favorecer o governo sobre a anarquia, porque o governo está sujeito às mesmas objeções. Em um sistema dominado pelo governo, as pessoas devem pagar pela justiça, tão seguramente quanto em um sistema anarquista. Não é como se tribunais e forças policiais pudessem, de alguma forma, operar sem custo, caso o sistema fosse monopolista e coercitivo. Os aspectos monopolistas e coercitivos dos sistemas de justiça do governo os tornam mais caros que um sistema voluntário e competitivo. A diferença é simplesmente que, nos sistemas governamentais, os pagamentos são coletados coercivamente sob o nome de “tributação” e a prestação do serviço não é garantida mesmo se você pagar.17 Presumivelmente, essas diferenças não tornam o sistema mais justo. Da mesma forma, as leis impostas por um governo não são mais determinadas pela justiça e pela moralidade do que aquelas aplicadas por agências de proteção privada e empresas de arbitragem. Numa democracia representativa, as leis são determinadas pelas decisões dos funcionários eleitos e dos burocratas que eles nomearam. Os resultados das eleições, por sua vez, são afetados por fatores como carisma, atratividade física, financiamento de campanhas, reconhecimento de nomes, habilidade e crueldade dos gerentes de campanha e vieses dos eleitores. Alguns dizem que políticos e burocratas devem servir valores éticos imparciais, enquanto os gerentes de negócios devem gerar lucros apenas para seus negócios. O que isto significa? Quem supõe que os funcionários públicos sejam motivados dessa maneira e que diferença faz essa suposição? Um argumento é que, como existe uma norma geral socialmente aceita, segundo a qual os funcionários públicos devem servir à justiça, eles próprios se sentirão mais inclinados a se comportar dessa maneira do que na ausência de tal norma. Por outro lado, como essa norma geralmente não é aceita no caso de empresas, os gerentes de negócios sentirão pouco senso de obrigação de servir à justiça. Existem duas respostas naturais para esse argumento. O primeiro é questionar a importância relativa da motivação moral, enfatizando, em vez disso, o valor prático de alinhar o interesse próprio dos agentes com as exigências da justiça. É verdade que o sistema ideal é aquele em que as pessoas servem à justiça pelas razões certas. Mas pelas razões explicadas no Capítulo 9, é improvável que o governo seja esse sistema. Se alguém deve escolher entre um sistema em que as pessoas servem o interesse próprio em nome da justiça e outro em que as pessoas servem a justiça em nome do interesse próprio, certamente devemos preferir o 17

Tribunais dos EUA decidiram repetidamente que a polícia e outros agentes do governo não são obrigados a proteger cidadãos individuais. Ver Warren v. District of Columbia (444 A.2d. 1, D.C. Ct. Of Ap., 1981); Hartzler v. Cidade de San Jose, 46 Cal.App. 3d 6 (1975); DeShaney v. Departamento de Serviços Sociais do Condado de Winnebago, 489 U.S. 189 (1989).

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último. Preferir um sistema que entregue às pessoas as ferramentas para explorar outras pessoas com fins egoístas, assegurando-lhes que devem servir à justiça, em detrimento de um sistema que torne a justiça lucrativa e permita que as pessoas escolham seu curso, seria restabelecer uma fé utópica no poder da suposição. A segunda resposta é que não há razão para que os membros de uma anarquia não adotem normas igualmente idealistas que as de uma sociedade democrática. Assim como os cidadãos de um Estado democrático acreditam que os funcionários públicos devem promover a justiça, os membros de uma anarquia podem sustentar que as agências de proteção e as empresas de arbitragem devem promover a justiça. Por mais que esse tipo de norma social tenha eficácia no policiamento do comportamento humano, o anarquista pode aproveitá-lo tão bem quanto o estatista.

10.6

Segurança para os pobres

Outra preocupação é que as agências de proteção, motivadas pelo lucro, atendam exclusivamente aos ricos, deixando os pobres indefesos contra os criminosos.

10.6.1

As empresas servem os pobres?

Infelizmente, não existem sociedades reais com livre mercado em segurança. Podemos, no entanto, examinar sociedades com mercados relativamente livres em uma variedade de outros bens e serviços. Nessas sociedades, para quantos desses outros bens e serviços é verdade que os fornecedores atendem exclusivamente aos ricos, não fornecendo produtos adequados para clientes de renda média e baixa? As roupas são fabricadas exclusivamente para os ricos, deixando os pobres perambulando pelas ruas nus? Os supermercados vendem apenas caviar e Dom Pérignon? Qual cadeia é maior: Walmart ou Bloomingdale’s? É certo que existem alguns produtos, como iates e learjets, que ainda não apareceram em modelos acessíveis para o consumidor médio, mas a grande maioria das indústrias é dominada pela produção para consumidores de baixa e média renda. A principal explicação é o volume: para a maioria dos produtos, há muito mais consumidores buscando um produto barato do que consumidores buscando um produto caro. Os ricos, é claro, tendem a receber produtos de qualidade superior aos pobres, de alimentos a roupas e automóveis (esse é o ponto de serem ricos). Sob anarquia, eles sem dúvida receberiam proteção de qualidade superior. Existe uma injustiça nisso? Em certo sentido, sim: como resultado de proteção imperfeita, algumas pessoas pobres serão vítimas de crime. Isso é injusto, no sentido de que é injusto

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que alguém sofra algum crime. A injustiça inerente ao crime, no entanto, aponta para uma falha na natureza humana e não no sistema anarquista. Algumas pessoas sofrerão com o crime em qualquer sistema social viável. A questão é se a anarquia enfrenta um problema maior ou uma injustiça maior do que os sistemas governamentais. Alguém poderia pensar que a anarquia sofrerá com uma injustiça adicional além da simples existência do crime; ou seja, a desigualdade na distribuição do crime, o fato de que os pobres estão sujeitos a riscos maiores do que os ricos. Na minha opinião, isso não é uma injustiça adicional, além do fato de que as pessoas sofrem com o crime. Em outras palavras, dada uma quantidade fixa de crimes, medida talvez pelo número e gravidade das violações de direitos que ocorrem em uma sociedade, não acredito que seja importante, eticamente, como o crime é distribuído pelas classes econômicas. Perguntas neste sentido, no entanto, estão além do escopo deste livro.18

10.6.2

Quão bem o governo protege os pobres?

Mesmo que a desigualdade na distribuição do crime seja uma injustiça independente, isso obviamente não favorece o governo sobre a anarquia, uma vez que grandes desigualdades na distribuição do crime ocorrem em todas as sociedades estatais, onde os ricos são muito mais bem protegidos do que os pobres. Para dar um exemplo contemporâneo, os americanos com renda abaixo de US$ 7.500 por ano são três vezes e meia mais propensos a sofrer crimes pessoais do que aqueles com renda acima de US$ 75.000 (ver Figura 10.1), apesar dos ricos poderem inicialmente parecer um alvo mais atraente para a maioria dos crimes.19 Embora essa não seja a única explicação possível, é plausível sustentar que essa desigualdade se deve pelo menos em parte à proteção inadequada oferecida pelo Estado aos pobres. Se num sistema anarquista haveria mais ou menos desigualdade na distribuição do crime continua sendo motivo de especulação.

10.7

A qualidade da proteção

Até que ponto as agências de proteção privada protegeriam seus clientes, em comparação com a polícia no status quo? Essa comparação é difícil de fazer, pois não podemos observar uma sociedade anarquista. O melhor que podemos fazer é examinar a eficácia da polícia do governo e, em seguida, fazer previsões teóricas sobre a alternativa anarquista com base nas estruturas de incentivo. 18 19

Sobre o igualitarismo, veja o meu 2003 e adiante. Departamento de Justiça dos EUA 2010a, tabela 14.

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Figura 10.1: Frequência de vitimização de crime por renda

O status quo deixa espaço considerável para melhorias. Não sabemos quantas pessoas são impedidas de uma vida de crime pela perspectiva de serem punidas pelo Estado, mas temos uma boa ideia de quantas vezes aqueles que se voltam para uma vida de crime são de fato punidos. Segundo as estatísticas do FBI, apenas cerca de metade de todos os crimes violentos relatados e um quinto dos crimes relatados à propriedade são resolvidos pelas agências policiais (ver Figura 10.2).20 Esses números realmente superestimam a eficácia da aplicação da lei pelo governo, pois não representam crimes não relatados. No nível teórico, não é difícil entender por que a polícia do governo pode 20

U.S. Federal Bureau of Investigation 2010, tabela 25. As estatísticas no texto e na figura referemse à porcentagem de crimes “apurados por prisão ou por meios extraordinários”. Isso exige que os agentes da lei localizem um suspeito a quem eles tenham provas suficientes para acusar e que tenham prendido e entregues o suspeito aos tribunais para julgamento ou tenham sido impedidos de fazê-lo por circunstâncias fora de seu controle, como a morte do suspeito ou recusa de extradição.

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Figura 10.2: Porcentagem dos tipos de crimes cometidos e resolvidos nos EUA

ser menos eficaz do que as agências de proteção privada. Se uma agência de proteção fornece proteção insuficiente ou cobra taxas excessivas, deve temer a perda de clientes para agências rivais. Mas se a polícia oferece proteção deficiente a um preço alto, eles não precisam ter medo de perder participação de mercado ou ter o negócio fechado. Desde que monopolizem o setor, os clientes não têm mais para onde procurar e, como sua receita deriva de impostos, os clientes não podem decidir demitir seus protetores e se defender. Essas características invejáveis da posição do Estado permitem que ele sobreviva indefinidamente quase independentemente de seu desempenho. De fato, o fraco desempenho da polícia é mais provável que traga recompensas financeiras do que prejuízos financeiros, uma vez que o aumento da criminalidade tende a causar aumentos nos orçamentos policiais em vez de cortes (compare a Seção 9.4.7). As agências de proteção privada, sem essas vantagens, não teriam recurso senão fornecer proteção suficiente aos seus clientes a um preço razoável.

10.8

Crime organizado

As agências de proteção privada podem ser capazes de lidar com o criminoso comum, mas como lidariam com o crime organizado? Não precisamos de uma

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235

autoridade central para combater esse problema? O governo possui extensos programas para combater o crime organizado; eles se concentram quase inteiramente nos esforços de fiscalização direta – isto é, esforços para prender e processar criminosos, particularmente a liderança criminal. Porém, foram levantadas dúvidas sobre a eficácia dessa abordagem.21 Faltam evidências do efeito desses esforços de fiscalização nos níveis gerais de criminalidade, e pode ser que os papeis ocupados pelos chefes de crime presos sejam simplesmente preenchidos por outros criminosos, resultando em benefícios insignificantes para a sociedade em termos de crime total.22 Uma abordagem alternativa plausível seria tentar negar ao crime organizado suas fontes mais importantes de receita. As organizações criminosas concentram-se principalmente na coleta de dinheiro, o que ocorre principalmente através do fornecimento de bens e serviços ilegais. Tradicionalmente, o crime organizado gera receita para si próprio através de operações de jogo, prostituição e (durante a era da Proibição nos Estados Unidos) a venda ilegal de álcool. De longe, a principal fonte de receita para o crime organizado hoje parece ser o comércio de drogas ilícitas, que se estima que gere entre US$ 500 bilhões e US$ 900 bilhões em vendas em todo o mundo por ano.23 Por que as organizações criminosas se concentraram nessas indústrias? Por que vender serviços de jogos de azar, serviços sexuais e drogas em vez de, digamos, sapatos e chocolates? Não há controvérsia sobre a resposta para isso: é porque o jogo (em algumas formas), a prostituição e as drogas entorpecentes são ilegais. Al Capone fez sua fortuna vendendo álcool, não quando era legal, mas durante a era da Proibição. Hoje, criminosos organizados ganham fortuna vendendo maconha e cocaína, em vez de penicilina e prozac. A razão é que os criminosos não têm vantagens no fornecimento de bens e serviços comuns; seu único ativo especial é a disposição e a habilidade em desafiar a lei. Diferentemente das pessoas comuns de negócios, os criminosos estão dispostos a arriscar uma prisão por causa de dinheiro; eles estão dispostos a renunciar a toda a respeitabilidade social; e estão dispostos a se envolver em suborno, ameaças e violência para perseguir seus negócios. Essas são as características necessárias para fornecer um bem que é ilegal. Ao proibir certos medicamentos, garantimos o controle da indústria farmacêutica recreativa a pessoas com essas características. Se essas mesmas drogas fossem legalizadas, os criminosos que agora estavam lucrando com a venda não seriam mais capazes disso, porque não teriam mais nenhuma vantagem econômica nesse setor. Esta é a lição de Capone e a Proibição. Assim, uma estratégia poderosa para paralisar o crime organizado seria le21

Paoli e Fijnaut 2006, 326; Levi e Maguire 2004. Levi e Maguire 2004, 401, 404–5. 23 Finckenauer 2009, 308. 22

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galizar drogas, jogos de azar e prostituição. Não afirmo que isso elimine todo crime organizado. Seria, no entanto, um golpe contra o crime organizado mais devastador do que qualquer coisa que o Estado pudesse esperar por meio de escutas telefônicas, operações fraudulentas e acusações. A grande maioria do fluxo de receita do crime organizado secaria praticamente da noite para o dia, forçando a maioria de seus membros a procurar outro emprego. Em uma sociedade anarquista, é altamente provável que drogas, jogos de azar e prostituição sejam todos legais. A diferença essencial entre esses “crimes” e crimes mais paradigmáticos, como assassinato, roubo e estupro, é que os últimos crimes têm vítimas, enquanto jogos de azar, uso de drogas e prostituição não têm vítimas – ou, pelo menos, nenhuma vítima que possa reclamar.24 Na sociedade anarcocapitalista, os direitos são garantidos pela vítima de uma violação de direitos, apresentando uma queixa contra o violador de direitos através de sua agência de proteção e contando com um árbitro privado para julgar a validade da queixa. Não existe um mecanismo eficaz para proibir crimes sem vítimas, porque não há legislatura para redigir os estatutos e nenhum promotor público para executá-los. E se um grande número de pessoas se opusesse tanto à prostituição que estaria disposta a pagar suas agências de proteção para “protegê-las” de viver em uma sociedade em que outras pessoas compram e vendem serviços sexuais? E se os árbitros desta sociedade concordassem que alguém reclamando sobre o comércio de serviços sexuais de outra pessoa tivesse sido de fato prejudicado (talvez por estar ofendido) e estivesse sujeito a indenização pela prostituta ou pelo cliente da prostituta? Em teoria, uma sociedade desse tipo poderia terminar em proibições anti-libertárias sobre prostituição; no entanto, esse é um cenário improvável, já que poucas pessoas pensam que um contrato para comprar serviços sexuais vitimiza qualquer pessoa por apenas não gostar disso, e poucas estão de fato dispostas a pagar tanto para impedir a prostituição quanto prostitutas e seus clientes estão dispostos a pagar para serem deixados em paz. Observações semelhantes se aplicam a outros crimes sem vítimas, como jogos de azar e uso recreativo de drogas. Isso não elimina todas as fontes de receita possíveis para o crime organizado; os criminosos ainda poderiam coletar dinheiro, por exemplo, através de extorsão e fraude. Não obstante, negadas suas maiores fontes de receita, as organizações criminosas seriam muito mais fracas em uma sociedade anarquista do que são hoje e provavelmente teriam um papel muito pequeno. 24

Alguns afirmam que o uso ilegal de drogas vitimiza a família, cônjuge ou colegas de trabalho do usuário (Wilson 1990, 24). No entanto, é improvável que essas supostas vítimas de crimes ajam com um processo judicial contra o usuário de drogas e dificilmente prevaleça em uma queixa contra usuário ou fornecedor.

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10.9

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Proteção ou extorsão?

Em vez de fornecer proteção em troca de taxas acordadas, pode parecer que seria mais lucrativo para uma agência de “proteção” simplesmente roubar pessoas sem se preocupar em protegê-las. Por que as agências de proteção não evoluiriam para meras agências de extorsão?

10.9.1

A disciplina da competição

A competição entre agências é a principal força que restringe as práticas abusivas pelas agências de proteção. Os clientes assinariam com a agência que esperam atendê-los da melhor maneira pelo menor custo, sem roubá-los, abusar ou escravizá-los. Imagine duas agências de proteção operando na mesma cidade, a Tannahelp Inc. e a Murbard Ltd.25 A Tannahelp é uma agência legítima que celebra acordos voluntários com seus clientes, oferecendo proteção em troca de uma taxa. Murbard é uma agência desonesta que extorque dinheiro das pessoas e, ao mesmo tempo, oferece pouco valor. Quase todo mundo prefere a Tannahelp e, portanto, se os indivíduos pudessem escolher livremente sua agência de proteção, Murbard rapidamente sairia do negócio. Se Murbard tentasse forçar as pessoas a se unirem a ela em vez da Tannahelp, as pessoas apelariam a Tannahelp por proteção. Vimos acima os incentivos que se opõem a conflitos violentos entre agências. A Tannahelp pode, portanto, tentar resolver a disputa com Murbard por meio de arbitragem de terceiros. Murbard poderia aceitar a oferta de arbitragem, caso em que qualquer juiz justo decidirá contra; isso resultaria em abandonar seu plano extorsionista ou se preparar para a guerra. Há quatro razões pelas quais Murbard teria maior probabilidade de recuar ou falir do que Tannahelp. Primeiro, Tannahelp seria percebida como mais legítima do que Murbard pelo resto da sociedade. A Tannahelp, portanto, teria uma chance muito maior de convencer os funcionários a lutar em seu nome do que Murbard, embora possa ser que nenhuma agência tenha sucesso e que os funcionários de ambos os lados desertem em vez de lutar. Segundo, Tannahelp teria o apoio de todos os clientes pelos quais as agências estavam lutando. Portanto, é provável que os clientes tentem ajudar sua agência favorita e dificultar a agência extorsionista. Terceiro, Tannahelp teria mais motivos para lutar do que a agência criminosa. Se a Tannahelp permitir que alguns de seus possíveis clientes sejam escravizados por uma agência criminosa, ela estabelecerá um precedente que provavelmente 25

Esses nomes são retirados de Friedman (1989, 116-17), aparentemente baseados em modificações dos nomes de autores libertários proeminentes.

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levará à sua própria extinção. Murbard, por outro lado, poderia a qualquer momento desistir de seus planos extorsionistas e decidir executar um negócio legítimo que protege pessoas de criminosos. Vimos anteriormente as razões pelas quais conflitos violentos seriam muito prejudiciais para ambas as agências. Como as duas agências estão cientes disso e também sabem que é Murbard que pode se dar ao luxo de recuar, é isso que provavelmente ocorrerá.26 Quarto, o resto da sociedade, incluindo as outras agências de proteção na área, ficaria do lado de Tannahelp. Isso se deve em parte a crenças éticas de senso comum – quase todo mundo considera extorsão injusta – e em parte devido à autopreservação – se Murbard triunfar contra Tannahelp, Murbard provavelmente seguirá em frente contra os clientes de outras agências. Assim, é provável que outras agências ajudem a Tannahelp o suficiente para garantir sua vitória, mesmo que permitam que o Tannahelp faça a maior parte do trabalho. O cenário anterior supõe que a Murbard comece como uma agência extorsionista e tente roubar clientes de outras agências ou forçar clientes não afiliados a se unirem à Murbard. E se Murbard começar como uma agência legítima, adquirindo clientes por meio de acordos voluntários, e só depois evoluir para uma agência extorsionista que proíbe a saída de clientes existentes? Nesse caso, parece menos provável que Tannahelp travasse uma guerra para libertar os clientes existentes de Murbard. No entanto, existem três fatores que limitariam o potencial de dano desse tipo de cenário. Primeiro, é improvável que ocorra uma transição repentina e sem aviso prévio. Como os tipos de pessoas que tendem a ser atraídas por empresas legítimas e prestadoras de serviços são diferentes daquelas que são atraídas por quadrilhas criminosas semelhantes à máfia, a transição da primeira para a segunda provavelmente envolveria uma mudança de pessoal, tanto no nível de gerência como no nível da média dos trabalhadores. Talvez uma pessoa de mente criminosa, de alguma forma, assuma uma posição de gerência, onde começa a fazer mudanças, expulsando o pessoal existente e contratando amigos e familiares com tendências criminosas. Enquanto essa transição estava ocorrendo, os clientes que não gostassem da direção em que a empresa estava tomando deixariam a empresa em favor das agências concorrentes. A queda resultante nos lucros da empresa provavelmente levaria ela a parar o que estava fazendo. Caso contrário, a maioria dos clientes provavelmente teria saído quando o processo estivesse concluído. Segundo, a versão mais crível desse cenário teria a agência extorsionista que controla uma ou mais pequenas áreas geográficas, como bairros individuais cujas associações de proprietários de casas originalmente haviam assinado com a agência voluntariamente. Se, no entanto, o comportamento da agência fosse sufi26

Ver também o argumento de David Friedman (1994) de que egoístas racionais em um estado de natureza evitam conflitos através do respeito mútuo por direitos.

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cientemente flagrante, os clientes prefeririam deixar o bairro em vez de continuar sujeitos à extorsão. Supondo que existam muitas outras agências de proteção na sociedade que atendem bairros semelhantes, seria extremamente difícil para Murbard impedir que suas vítimas fossem embora. Uma observação semelhante poderia ser feita sobre os governos: se o governo de um país for suficientemente tirânico, corrupto ou censurável, os cidadãos poderão deixar o país. Note, no entanto, que o mecanismo de saída é mais eficaz no nível do bairro do que no nível nacional. Os indivíduos que fogem de seu país de origem geralmente são forçados a deixar para trás sua cultura, seus empregos, sua família e amigos. Por outro lado, aqueles que apenas se mudam para um bairro diferente dentro da mesma sociedade geralmente podem manter sua cultura, trabalho, família e amigos. Além disso, outras nações tipicamente impõem barreiras severas à imigração, enquanto outros bairros da mesma sociedade geralmente não. Como resultado, um governo nacional pode ser muito mais abusivo antes de perder a maioria de seus cidadãos do que uma organização limitada a um único bairro. Por fim, mesmo que a Murbard mantenha alguns de seus clientes originais, é improvável que obtenha novos clientes. Como resultado, a base de clientes da Murbard diminuirá lentamente, enquanto outras agências que melhor atendem seus clientes se expandiriam. É provável que isso sirva de exemplo para as empresas que consideram fazer a transição para a arena de extorsão no futuro.

10.9.2

Extorsão pelo governo

Agora considere o problema análogo para os sistemas governamentais: por que o governo não deveria extorquir dinheiro das pessoas sem protegê-las? De fato, todos os governos extorquem dinheiro, embora a prática seja geralmente denominada “tributação” e não “extorsão”. Poucos estatistas ainda consideram acabar com essa prática. Como, então, o governo pode ser considerado superior à anarquia nesta área? Talvez alguém possa pensar que o governo gaste menos do que os protetores privados cobrariam ou que o governo ofereça um serviço melhor do que os protetores privados. Mas é difícil ver por que isso seria assim. Imagine que uma agência privada de proteção de alguma forma adquiriu o monopólio em uma grande área geográfica e começou a extrair pagamentos da população à força. Poucos argumentariam que, uma vez que esse estado de coisas ocorresse, os preços cairiam e o serviço melhoraria. Certamente o contrário ocorreria. Mas essa é precisamente a posição das sociedades com proteção baseada no governo. Talvez seja o processo democrático que deve induzir o governo a controlar custos e manter um serviço de alta qualidade: se o governo fizer um trabalho ruim, as pessoas votarão em políticos diferentes. A questão então se torna se esse

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mecanismo é mais ou menos eficaz que o mecanismo de livre concorrência no mercado. Uma deficiência do mecanismo democrático é que as escolhas tendem a ser muito limitadas. Em algumas sociedades democráticas, as eleições oferecem regularmente apenas duas opções; por exemplo, os democratas e os republicanos nos Estados Unidos. Mesmo sistemas de representação proporcional raramente dão aos eleitores a gama de opções presentes nos mercados livres típicos. Mas a falha mais importante é que, no sistema democrático, quando alguém escolhe um político em detrimento de outro, não consegue assim o que escolhe; obtém-se o que a maioria escolhe. Portanto, há pouco incentivo para se esforçar na votação racional ou informada (consulte a Seção 9.4.3).

10.10

Monopolização

Alguns acreditam que um sistema anarquista de mercado livre evoluiria para um Estado, conforme uma agência de proteção monopolizasse o setor. No sistema atual, quase todos os monopólios e condições semelhantes a monopólio são criados pela intervenção do governo, geralmente motivado por grupos de interesses especiais.27 Para endossar a objeção à monopolização, portanto, precisamos de algum motivo para acreditar que o setor de proteção difere da maioria das outras indústrias de alguma forma que a tornaria particularmente propensa à monopolização na ausência de intervenção do Estado.

10.10.1

A vantagem do tamanho em combate

Robert Nozick afirma que o setor de proteção sucumbiria ao monopólio natural porque o valor do serviço de uma empresa é determinado pelo poder relativo dessa empresa em comparação com outras empresas.28 Nozick imagina agências lutando para resolver disputas entre clientes. Se uma agência for mais poderosa que outra, a agência mais poderosa triunfará. Reconhecendo que é melhor ser protegido pela agência mais forte, os clientes das agências mais fracas migrarão para agências mais fortes, tornando-as ainda mais fortes. Como esse tipo de processo tende a amplificar as diferenças iniciais de poder, o resultado final é que uma agência detém todo o poder; isto é, um monopólio da indústria. Nozick continua explicando como essa agência de proteção dominante pode se transformar em um governo de pleno direito.29 Se a tarefa para a qual alguém contrata uma agência de proteção é a de combater outras agências, a análise de Nozick estaria correta. Mas não se contrata 27

Ver Brozen 1968; Friedman 1989, capítulos 6–7; Green 1973. Nozick 1974, 15–17. 29 Nozick 1974, capítulo 5. 28

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uma agência de proteção para combater outras agências, nem as agências prestam esse serviço (Seção 10.3). Contrata-se uma agência de proteção para impedir que criminosos vitimizem alguém ou para rastrear criminosos após o fato. Nesta tarefa, a agência de proteção deve ter o poder de prender criminosos, mas não precisa derrotar outras agências de proteção, uma vez que outras agências não estão no negócio de proteger criminosos (Seção 10.4). Nozick considera a possibilidade de agências dependerem de arbitragem de terceiros, que ele supõe que ocorreria apenas se duas agências tivessem força aproximadamente igual. Contrariando Nozick, a solução pacífica da arbitragem não depende da suposição de que as agências tenham força aproximadamente igual nem que o combate entre elas resulte em impasse. Depende apenas da suposição de que o combate físico entre as agências é mais caro do que a arbitragem, uma suposição que é praticamente garantida em quase todos os conflitos. Nozick supõe que a arbitragem levaria a “um sistema judicial federal unificado” ao qual todos estariam sujeitos.30 Ele então prossegue, em seu raciocínio subsequente sobre o surgimento de um Estado, para falar das atividades da “associação protetora dominante”, deixando o leitor supor que um sistema judicial unificado é equivalente a uma agência de proteção dominante. Ele não explica por que o setor de arbitragem seria controlado por um monopólio nem por que um monopólio de arbitragem seria equivalente a uma agência de proteção monopolista.

10.10.2

Determinando o tamanho eficiente das empresas

Sob algumas condições, um monopólio pode se desenvolver naturalmente em um mercado livre. Se o tamanho mais eficiente para uma empresa em um setor específico é tão grande que só há espaço para uma empresa no mercado, então as condições estão propícias para um monopólio natural.31 As grandes empresas geralmente se beneficiam de economias de escala. Por exemplo, na indústria automobilística, os menores custos de produção por unidade são alcançados ao operar um tipo de fábrica capaz de produzir dezenas ou centenas de milhares de carros por ano. Como existe um grande custo fixo para a construção de uma fábrica – um custo que deve ser suportado para produzir carros, mas que não aumenta à medida que se constrói mais carros até a capacidade máxima da fábrica – é mais economicamente eficiente usar a fábrica com capacidade total depois de construída. Qualquer empresa que tente vender menos de muitos milhares de carros por ano está, portanto, em uma desvantagem competitiva contra empresas maiores – ela será forçada a cobrar preços mais altos 30 31

Nozick 1974, 16. Ver Friedman 1990, 264.

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por seus carros. Economias de escala, no entanto, operam apenas até certo ponto – não há maior eficiência envolvida na operação de dez fábricas de automóveis do que na operação de uma. Por outro lado, grandes empresas também sofrem com deseconomias de escala. Fatores que tendem a tornar uma empresa maior menos eficiente incluem burocracia, alienação por parte dos funcionários, aumento dos custos de comunicação dentro da organização e aumento do risco de duplicação de esforços.32

Figura 10.3: Curva de custo médio para uma empresa em um setor com economias e deseconomias de escala. O ponto A representa o tamanho mais eficiente (o nível de saída com menor custo médio)

Como as economias de escala deixam de se aplicar após um certo ponto e as deseconomias de escala começam a se aplicar a um certo ponto, há um limite para o tamanho de uma empresa eficiente (ver Figura 10.3). Esse limite varia de acordo com o setor. Na indústria automobilística, as empresas mais eficientes são muito grandes devido à natureza das fábricas de automóveis, que custam 32

Ver Canbäck et al. 2006 para discussão teórica e empírica de economias de escala, deseconomias de escala e determinação de tamanho eficiente para empresas de um setor. Como Canbäck et al. ressalta, muitas vezes existem empresas de vários tamanhos em um setor, sugerindo que há uma gama significativa de tamanhos sobre os quais os custos médios por unidade de produção permanecem aproximadamente constantes. Veja Carson 2008, capítulos 5–9, para uma discussão mais aprofundada sobre a ineficiência de grandes empresas. Carson (capítulo 3) argumenta que a intervenção do governo facilitou a sobrevivência de empresas muito maiores que o tamanho mais eficiente.

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centenas de milhões de dólares. Nas indústrias com custos fixos mais baixos, as empresas mais eficientes serão menores. E o setor de proteção? Os custos fixos para uma agência de proteção são mínimos. O proprietário da empresa deve ter fundos suficientes para contratar alguns funcionários e equipá-los com armas e ferramentas para execução e investigação. Nenhuma fábrica cara, grande área de terreno ou grande reserva de capital é necessária. Não há economias de escala significativas óbvias. Parece, portanto, que não há pressão econômica para a formação de grandes empresas nesse setor, e o setor provavelmente conterá um número muito grande de pequenas e médias empresas. As grandes empresas estariam em desvantagem, pois sofreriam as deseconomias usuais de escala sem colher economias compensatórias significativas de escala.

10.10.3

Monopólio do governo

Como no caso das objeções anteriores, a ameaça de monopólio representa uma objeção mais séria ao governo do que à anarquia. Não precisamos apresentar argumentos para mostrar que um governo pode se tornar um monopólio, porque um governo, por definição, já é um monopólio. Quaisquer que sejam os males a serem temidos pela monopolização das indústrias, por que não devemos temer precisamente esses males do governo? O fato de uma organização ser rotulada de “governo” em vez de “empresa” dificilmente tornará suas ações benéficas se a estrutura de incentivo real que ela enfrentar for a mesma de uma empresa monopolista. Qual é o problema dos monopólios? A teoria econômica ensina que um monopólio restringirá a produção a níveis socialmente inferiores, enquanto eleva os preços a níveis que maximizam seus próprios lucros, mas diminuem a utilidade total da sociedade. Se, por exemplo, uma empresa detivesse o monopólio da produção de calçados, haveria muito poucos sapatos e eles seriam muito caros.33 Esse é o problema de um monopolista racionalmente interessado. Mas as coisas são piores do que isso, porque não podemos nem assumir que um monopolista será racional. A concorrência faz as empresas agirem como algo aproximando maximizadores racionais de lucro, eliminando aqueles que não se comportam dessa maneira. Na ausência de pressões competitivas, uma empresa tem muito mais margem de manobra. Os otimistas podem observar que uma organização com um monopólio robusto pode sobreviver enquanto sacrifica magnanimamente os lucros para o bem da sociedade, se isso acontecer. Mas também pode sobreviver enquanto se apega a métodos de produção ineficientes e ao resistir à inovação; recompensa pessoas bem conectadas, mas incompetentes; desperdiça dinheiro 33

Friedman 1990, 248–55, 466–8.

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com planos incompletos e motivados ideologicamente; ignora evidências de insatisfação do cliente; e assim por diante. Assumir que o privilégio de monopólio será usado apenas para o bem parece ser um exercício de pensamento positivo. Quase todo mundo aceita isso no caso de monopólios não-governamentais; nada essencialmente muda quando o rótulo “governo” é aplicado a uma agência de proteção monopolista.

10.11

Colusão e cartelização

Além do monopólio, existe uma segunda prática anticompetitiva que pode aumentar os lucros das empresas em um determinado setor. Essa é a prática de formar um cartel, uma associação de empresas que concordam entre si em manter os preços em um nível artificialmente alto ou de outra forma cooperar para promover seus interesses mútuos. Como alertou Adam Smith: “Pessoas do mesmo ramo raramente se reúnem, mesmo para alegria e divergência, mas a conversa termina em uma conspiração contra o público ou em algum artifício para aumentar os preços”.34 Alguns críticos argumentam que o serviço de proteção ficaria sob o domínio de um consórcio desse tipo, levando a resultados semelhantes aos de um monopólio.

10.11.1

O problema tradicional dos carteis

A maioria dos carteis tem dificuldade em aplicar suas políticas. Suponha que o preço de mercado competitivo para widgets seja de US$ 100 por widget. Os líderes da indústria de widgets, no entanto, em uma recente reunião de bastidores, concordaram que US$ 200 é um preço muito melhor. Uma pequena empresa, a Sally’s Widgets, fica insegura. Enquanto as empresas de cartel cobram US$ 200, Sally decide cobrar apenas US$ 150 por widget.35 O que acontece? A esses preços, quase todos os clientes preferem um widget da Sally em vez de um widget do cartel. Antes uma pequena empresa em dificuldades, Sally’s Widgets de repente não consegue se expandir rápido o suficiente para todos os novos clientes que se aproximam. O cartel, cansado de perder negócios, acaba 34

Smith 1979, 145. Smith continua argumentando que não se pode proibir tais reuniões sem violar indevidamente a liberdade, mas que não se deve fazer regulamentos que realmente induzam os empresários a se reunir. 35 Em teoria, assumindo informações perfeitas e widgets idênticos, Sally poderia maximizar seu lucro cobrando US$ 199 por widget. Mas, na realidade, uma maior diferença de preço pode ser necessária para convencer os consumidores a mudar de marca. Uma diferença de preço de US$ 50 cria um argumento poderoso para mudar, deixando a Sally com uma margem de lucro muito confortável.

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abandonando seu esquema e competindo com Sally pelo preço, mas não antes que Sally’s Widgets tenha desfrutado do maior boom de vendas de todos os tempos, às custas dos líderes do setor. O incidente é uma lição para os participantes de outros setores, onde as empresas menores que lutam para se estabelecer sonham que, um dia, os líderes de seu setor também criarão um esquema de fixação de preços.

10.11.2

Cartelização por ameaça de força

Algumas indústrias podem diferir materialmente da famosa indústria de widgets competitivos. Nos setores em que o sucesso de uma empresa depende de suas boas relações com outras empresas, o conluio anticompetitivo pode ser mais viável, porque as grandes empresas do setor podem punir efetivamente aqueles que rejeitam as políticas de cartel. Tyler Cowen e Daniel Sutter sugerem que isso pode ser verdade no setor de proteção porque o sucesso de uma agência de proteção depende de sua capacidade de resolver pacificamente disputas com outras agências.36 Cowen e Sutter imaginam as agências de proteção em uma determinada área formando um acordo multilateral único, detalhando os procedimentos para a solução de controvérsias envolvendo clientes de diferentes agências. Tendo resolvido esse problema, as agências poderão concordar em fixar preços em níveis artificialmente altos e recusar-se a cooperar com quaisquer novas empresas que possam posteriormente entrar no mercado. O acordo sobre procedimentos para arbitragem de disputas seria auto-aplicável, no sentido de que as empresas que escolherem violá-lo estariam sabotando a si mesmas (Seção 10.3). Mas quem aplicaria os acordos anticompetitivos para fixar preços e excluir novas agências? Cowen e Sutter imaginam que o cartel exclui novos entrantes no setor, recusando-se a aceitar arbitragem com eles; os membros do cartel resolvem quaisquer disputas com não-membros por meio da violência.37 O mesmo mecanismo é usado para fazer cumprir o acordo de fixação de preços: se uma empresa membro estabelecer preços muito baixos, os membros restantes expulsarão a agência pela redução de preços e, a partir de então, tratá-la como qualquer outra forasteira, recusando a arbitragem em quaisquer disputas futuras com a agência excluída.38 Embora esse pareça ser um mecanismo possível para assumir o controle do setor, não acho muito plausível que o mecanismo seja empregado. Suponha que a agência A, que é membro do cartel, tenha uma disputa com a agência B, que não 36

Cowen 2007b; Cowen e Sutter 2007. Cowen e Sutter 2007, 318. 38 Cowen (2007b, 272-3) também sugere que não-membros possam ter suas vantagens recusadas, como extradição de criminosos e acesso a bancos de dados para rastrear criminosos. Por serem sanções relativamente menores, concentro-me no mecanismo coercitivo de aplicação. 37

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é membro. A deveria estar preparada para entrar em guerra com B, em vez de resolver a disputa pacificamente. Já vimos que existem motivos poderosos para as agências de proteção evitarem confrontos violentos, principalmente porque (a) o conflito violento é extremamente caro e (b) a maioria das pessoas tem valores contra o assassinato. Portanto, para A se envolver em conflito armado com B, A teria que estar disposta a sacrificar seus próprios interesses em prol da manutenção do cartel.39 Como a motivação para ingressar no cartel, para começar, era de interesse próprio econômico, não é plausível que A faça esse sacrifício. Talvez A possa ser movida para lutar pelo cartel por uma ameaça adicional feita por outros membros do cartel: se A resolver sua disputa com B pacificamente, então outros membros do cartel entrarão em guerra contra A sempre que tiverem uma disputa com A. E o que motivaria os outros membros do cartel a fazer isso? Bem, o fato de que, se não o fizerem, outros membros entrarão em guerra contra eles, e assim por diante. Esse pensamento, no entanto, parece-me uma digressão de crescente implausibilidade. Se era implausível que A fosse à guerra contra B por não ser membro do cartel, ainda é menos plausível que outra agência, C, fosse à guerra contra A por não entrar em guerra por B por não ser membro do cartel. Se A deseja evitar conflitos armados, sua melhor aposta seria evitar o conflito imediato com B, talvez fazendo o possível para ocultar seu acordo com B dos outros membros do cartel e se preocupar com possíveis conflitos futuros com outras agências posteriormente.

10.11.3

Cartelização por negação de proteção estendida

George Klosko propõe um mecanismo diferente para cartelização do setor de proteção.40 Ele imagina uma coleção de condomínios fechados, cada um servido por uma agência de proteção privada. Os clientes desejariam “proteção estendida”; isto é, alguém gostaria de ser protegido não apenas no próprio bairro, mas também quando deixa o bairro para ir trabalhar, visitar amigos, fazer compras e assim por diante. Para atender a essa demanda, as agências de proteção precisariam trabalhar juntas, desenvolvendo procedimentos comuns e concordando em proteger os clientes uns dos outros. Mas uma vez que as agências formaram um consórcio para fornecer proteção estendida, o consórcio poderia evoluir facilmente para um cartel projetado para aumentar os preços, limitar a concorrência e assim por diante. O cartel limitaria a concorrência ao negar proteção estendida aos clientes de agências não-membras. Como quase todos desejam proteção 39 Como Caplan e Stringham (2007, 299–302) afirmam, as agências do cartel enfrentam um dilema de prisioneiro entre si, no qual vale a pena renegar o acordo de punir agências externas. 40 Klosko 2005, pp. 30–3.

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estendida, as agências não-membras seriam efetivamente excluídas do mercado. O cartel aplicaria suas políticas internamente, ameaçando expulsar membros que violassem as políticas do cartel. Como esse resultado pode ser evitado? Vamos começar imaginando um setor de proteção competitivo e não-cartelizado, e considerar se é provável que seja fornecida proteção estendida sem o desenvolvimento de um cartel do setor. Suponha, como Klosko, que as agências de proteção sejam contratadas por associações de proprietários para proteger áreas específicas (fechadas ou não). Isso pode incluir áreas residenciais e comerciais. Agora, suponha que a associação de proprietários esteja decidindo quem contratar para segurança do bairro. A Agência A se oferece para proteger os residentes, e somente os residentes, de crimes que ocorrem no bairro. Se um de seus guardas de segurança testemunhar um crime, ele primeiro tentará, de alguma maneira, verificar se a vítima é residente ou visitante. Se a vítima parecer um visitante, o guarda permitirá que o crime prossiga. A Agência B, por outro lado, oferece o combate a todos os crimes do bairro, seja quem for a vítima. Há duas razões evidentes pelas quais a oferta de A será a rejeitada: primeiro, os proprietários provavelmente perceberão que a ideia de verificar a identidade de uma vítima antes de agir para impedir um crime como impraticável e imoral; segundo, a maioria das pessoas gostaria de receber visitantes no bairro e gostaria que esses visitantes estivessem seguros enquanto estiverem no bairro. A Agência B ganhará, portanto, o contrato. Um ponto semelhante se aplica ainda mais claramente aos proprietários de imóveis comerciais. Não é preciso grande altruísmo para um empresário reconhecer que é melhor fornecer um ambiente seguro não apenas para si mesmo, mas também para seus clientes e funcionários. Se outras pessoas que não o proprietário forem frequentemente atacadas ou roubadas nas instalações da empresa, pode ser difícil administrar o negócio. Portanto, as empresas pagarão agências de proteção para proteger todos em suas instalações. Assim, a proteção estendida é fornecida sem a necessidade de conluio em todo o setor. Cada agência de proteção, agindo de forma independente, simplesmente fornece o que seus clientes desejam. Se várias agências decidirem formar um consórcio e anunciar que, a partir de agora, apenas protegerão os clientes das agências membros, todas as agências do consórcio perderão rapidamente quase todos os seus contratos.41 41

Klosko (2005, 31) também sugere que as agências devem se unir “para regularizar seus padrões e procedimentos”. Não mencionei isso no texto porque acho incerto o que Klosko tem em mente ou por que motivo ele faz essa suposição.

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10.12 Associações de proprietários residenciais (APR) versus governo Imaginei associações de proprietários residenciais e associações de proprietários geralmente contratando agências para fornecer segurança em bairros ou distritos comerciais específicos. Por que essas associações existiriam em uma sociedade anárquica e por que não se qualificam como governos? O desenvolvedor de um complexo habitacional cria uma associação de proprietários, aos quais os residentes são obrigados a participar como condição para comprar uma unidade nesse complexo, com o entendimento de que a associação é anexada à propriedade para que todos os proprietários subsequentes sejam sujeito à mesma condição. O desenvolvedor cria essa instituição porque aumenta o valor da propriedade; a maioria dos compradores em potencial está disposta a pagar mais por uma unidade do complexo, sabendo que todos no complexo serão membros da associação do que seriam se não houvesse associação ou se apenas alguns residentes fossem membros dela.42 Isso acontece porque uma associação a qual todos pertencem pode fornecer bens importantes, como um conjunto de políticas uniformes para residentes ou (particularmente em uma sociedade anarquista) arranjos para impedir o crime no projeto que está sendo desenvolvido. Os APRs têm se espalhado rapidamente nos Estados Unidos desde 1960 e agora cobrem 55 milhões de pessoas.43 Em uma sociedade anarquista, provavelmente seriam ainda mais difundidas. Como os APRs podem estabelecer regras para os residentes, que podem ser aplicadas por meio da agência de proteção da APR, pode-se pensar que uma APR equivale a um tipo de governo, embora um governo localizado muito pequeno, para que o sistema aqui projetado não seja afinal, a anarquia.44 Na questão semântica de saber se uma APR se qualifica como um governo pequeno, vale a pena notar que essas entidades realmente existem atualmente e algumas até contratam seus próprios guardas de segurança, mas geralmente não são consideradas governos. Pode-se sugerir que se qualificariam como “governos”, mas pela existência de outros órgãos com poder sobre eles; ou seja, as entidades realmente chamadas de “governos” essa questão semântica, no entanto, não tem grande importância, e não estou preocupado em contestar a posição de quem deseja descrever minha proposta como um governo muito pequeno e descentralizado, e não uma anarquia. O que é importante, no entanto, é ver 42

Agan e Tabarrok (2005), examinando cinco códigos postais no norte da Virgínia, descobriram que as APRs aumentavam os valores dos imóveis em uma média de cerca de 5,4%, ou US$ 14.000. 43 Agan e Tabarrok 2005, 14. 44 Agan e Tabarrok (2005) se referem as APRs como “governos privados”.

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como uma APR difere das instituições tradicionalmente chamadas de “governos”. Parece-me que existem pelo menos três diferenças importantes. A primeira é que, devido ao seu tamanho pequeno, os residentes têm uma chance muito maior de influenciar as políticas de sua APR do que de influenciar as políticas de um governo nacional, da província ou mesmo típico de uma cidade. Por esse motivo, é mais provável que os membros votem de maneira relativamente racional e informada nas eleições da APR, e é mais provável que as APRs sejam sensíveis às necessidades e desejos de seus membros do que um governo nacional. Segundo, mais a propósito aos temas centrais deste livro, uma APR tem o consentimento de seus membros através de um contrato real e literal, em contraste com o contrato social meramente hipotético ou mitológico oferecido pelos governos tradicionais. Isso lhes dá uma legitimidade moral que nenhum governo tradicional pode reivindicar. Terceiro, a competição entre conjuntos residenciais com diferentes APRs é muito mais significativa do que a competição entre os governos tradicionais. Indivíduos insatisfeitos com a APR podem vender seu imóvel e se mudar para outro conjunto residencial. Os custos da realocação não são triviais, mas também não são enormes. Por outro lado, as dificuldades de se mudar para um país totalmente novo são muito maiores, se é que é permitido se mudar. Como resultado desses fatores, a pressão competitiva entre os governos é quase inexistente, e os governos podem, portanto, se dar ao luxo de responder muito menos a seus cidadãos do que uma APR típica responde a seus membros.

10.13

Conclusão

Todos os sistemas sociais são imperfeitos. Em toda sociedade, as pessoas às vezes sofrem com crimes e injustiças. Numa sociedade anarquista, isso continuaria sendo verdade. O teste do anarquismo como ideal político é se ele pode reduzir a quantidade de injustiça sofrida em relação ao melhor sistema alternativo, que considero ser uma democracia representativa. Argumentei que um tipo específico de sistema anarquista, que emprega um mercado livre para a provisão de segurança, mantém a promessa de uma sociedade mais segura, mais eficiente e mais justa. A natureza radical desta proposta geralmente gera forte resistência: diz-se que a justiça não deve estar à venda; que as agências estarão em constante guerra umas com as outras; que servirão aos criminosos em vez de suas vítimas; que servirão apenas aos ricos; que não serão capazes de nos proteger, assim como o governo; que se transformarão em agências de extorsão; que um monopólio ou cartel evoluirá para explorar os clientes. Essas objeções surgem bastante quando

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estudantes, professores e leigos instruídos são introduzidos pela primeira vez à ideia de serviços de proteção não-estatais. Mas se examinarmos a proposta com mais cuidado e maior extensão, veremos que nenhuma dessas objeções é bem fundamentada. Os anarquistas têm argumentos bem fundamentados, fundamentados na teoria econômica e em premissas realistas sobre a psicologia humana, sobre como uma sociedade anarquista evitaria cada um dos desastres que os críticos temem. A maioria das objeções levantadas contra a anarquia de fato se aplica de maneira mais clara e vigorosa ao governo. Esse fato é muitas vezes esquecido porque, quando confrontados com ideias radicais, tendemos a procurar apenas objeções às novas ideias, em vez de objeções ao status quo. Por exemplo, a objeção mais comum ao anarquismo, a objeção de que as agências de proteção entrariam em guerra umas com as outras, ignora tanto o custo extremo do combate quanto a forte oposição que a maioria das pessoas sente ao assassinar outras pessoas. A ameaça muito real de guerra entre governos parece uma preocupação muito mais séria do que conflitos entre agências privadas de proteção. Da mesma forma, a objeção comum de que o setor de segurança será monopolizado carece de fundamento. Depois que abandonamos a noção de que as agências de proteção lutariam entre si, os recursos econômicos do setor, particularmente os custos fixos mínimos para uma empresa de segurança, devem nos levar a prever um grande número de pequenas empresas, em vez de uma única e enorme empresa. Por outro lado, um sistema governamental é monopolista por definição e, portanto, deve sofrer os problemas usuais dos monopólios. As vantagens centrais do sistema anarquista de livre mercado sobre um sistema governamental são duas: primeiro, o sistema anarquista repousa na cooperação voluntária e, portanto, é mais do que um sistema que se baseia em coerção. Segundo, o sistema anarquista incorpora significante concorrência entre os provedores de segurança, levando a maior qualidade e menores custos. Como resultado desses recursos do sistema, os indivíduos que vivem em uma anarquia de livre mercado podem esperar obter maior liberdade e maior segurança a um custo menor do que aqueles sujeitos ao sistema tradicional de monopolização coercitiva do setor de segurança.

11 Justiça Criminal e Resolução de Disputas Os anarquistas libertários imaginam um sistema no qual as disputas entre indivíduos são resolvidas pacificamente por meio da mediação de árbitros privados sábios e justos. Isso é ilusão? No presente capítulo, reviso várias perguntas e objeções a respeito desse quadro de justiça na sociedade anarquista.

11.1

A integridade dos árbitros

Que mecanismo manterá os árbitros honestos e imparciais? Podemos resolver melhor essa questão, considerando primeiro com mais detalhes o que torna a arbitragem um mecanismo viável de resolução de disputas. Se duas partes tiverem uma disputa que não puderem resolver por meio de discussão direta entre si, poderão, no entanto, conseguir chegar a um acordo sobre um procedimento geral para resolver sua disputa. Isso depende de um fato contingente, porém robusto, sobre os seres humanos em uma ampla gama de culturas: o apelo a um terceiro neutro é amplamente percebido como um mecanismo justo e razoável de resolução de disputas. Mas como é que duas partes que discordam de alguma questão prática conseguem chegar a um acordo de terceiros para resolver a disputa? Por que a primeira disputa não é simplesmente substituída por uma segunda sobre quem recorrer para resolver a primeira disputa? Novamente, isso depende de um fato contingente, mas robusto, sobre as percepções normativas humanas: as pessoas tendem a concordar em grande parte sobre quem constitui um juiz imparcial. Mas por que ambas as partes em uma disputa buscariam um juiz imparcial, em vez de cada uma insistir em um juiz tendencioso a seu favor, como um amigo pessoal ou membro da família? A razão é que eles estão tentando chegar a uma 251

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solução pacífica da disputa original. A ideia fundamental por trás da arbitragem como estratégia para alcançar tal solução é que as partes buscam algo em que possam concordar que possa ser usado para gerar uma solução para a disputa original. Dado esse objetivo, faz sentido que ambas as partes escolham um árbitro que geralmente é visto em sua sociedade como justo. Cada um deles não deve propor um árbitro obviamente tendencioso a seu favor, uma vez que essa não seria uma estratégia viável para gerar o ponto de acordo necessário. Obviamente, se as duas partes não desejam uma solução pacífica de sua disputa, podem simplesmente lutar contra isso; não há necessidade de propor um árbitro tendencioso ou corrupto nesse caso. Com base nesse entendimento da lógica da arbitragem como uma solução para o conflito, um árbitro tem um ativo crítico: sua reputação de honestidade, imparcialidade e sabedoria. Essa reputação é o determinante central da qualidade percebida de seu produto, e somente se ele zelosamente proteger esse ativo, poderá esperar que as partes contenciosas, frequentemente incapazes de concordar com qualquer outra coisa, possam concordar com ele como pessoa para resolver suas disputas. Se um árbitro adquirir reputação de corrupto, preconceituoso ou tomador de decisões caprichosas, seus negócios se desintegrarão rapidamente. Uma empresa de arbitragem, portanto, precisaria ter cuidado na escolha de árbitros, sabendo que um juiz corrupto poderia arruinar os negócios. Em muitos casos, pode ser que, não importa como a disputa seja resolvida, uma parte ou outra considerará a decisão injusta após o fato. O melhor que um árbitro pode fazer nesse caso é tomar uma decisão que será percebida como justa pela maioria dos observadores terceiros. É a percepção de tais observadores que determinará quão bem a reputação do árbitro é mantida e, portanto, quantos negócios ele pode esperar atrair no futuro. É certo que a percepção do público é um guia imperfeito para a justiça, pois o público pode interpretar mal um caso ou ter valores incorretos. No entanto, o mecanismo de reputação fornece incentivos para os árbitros defenderem a justiça pelo menos aproximadamente na maioria dos casos. No sistema atual, por outro lado, os mecanismos para garantir a integridade dos juízes são muito mais fracos. As decisões dos juízes são analisadas apenas por outros juízes, com exceção dos membros da Suprema Corte, cujas decisões não são analisadas por ninguém. Se o sistema judicial adquire uma reputação de injusto, ineficiente e assim por diante, seus membros podem, no entanto, manter suas posições sem medo de serem suplantados pela concorrência.

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11.2

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Manipulação corporativa

Por que as empresas não manipulam o sistema exigindo que funcionários ou clientes assinem um contrato para que todas as disputas sejam resolvidas por um árbitro tendencioso a favor da empresa, como um árbitro empregado da própria corporação?

Figura 11.1: Um diagrama da teoria padrão dos preços mostra o preço de mercado competitivo de um bem na interseção da curva de oferta, conforme determinado pelos custos marginais de produção, e a curva de demanda, determinada pela utilidade marginal do consumo

Aqui está uma pergunta mais fundamental: por que as empresas não fazem demandas ilimitadas para funcionários e clientes? Por que não exigir que os clientes deem à empresa todo o dinheiro que têm? Por que não exigir que os funcionários trabalhem de graça? Esses acordos certamente seriam mais favoráveis para a empresa do que o tipo de acordo que as empresas realmente oferecem. Para entender por que as empresas não se comportam dessa maneira, devemos primeiro considerar como os preços de mercado são determinados. Para qualquer empresa, existe um nível ótimo em que a empresa deve definir seus preços para maximizar seu lucro. Se definir preços abaixo desse nível, a empresa reduzirá seu

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lucro total devido ao lucro por unidade. Se definir seus preços acima desse nível, a empresa reduzirá seus lucros totais devido ao menor volume de produto vendido. Uma explicação precisa do nível ótimo de preços é apresentada na teoria padrão dos preços, na qual se diz que esse preço se encontra na interseção das curvas de oferta e demanda (ver Figura 11.1).1 Para nossos propósitos, o ponto importante é simplesmente que as forças do mercado determinam um nível ótimo de preços, de modo que a empresa se prejudica se exceder esse nível. Por isso, o plano de fazer exigências legais irracionais é essencialmente equivalente a um plano para aumentar o preço do produto. Suponha que o negócio de widgets da Sally exija que todos os clientes concordem que, em caso de disputa relacionada à venda de um widget da Sally, incluindo reclamações relacionadas à qualidade ou segurança do produto, o cliente aceitará uma arbitragem vinculada à filha de nove anos de idade de Sally, a Susan. Sally’s Widgets está então, em efeito, aumentando o preço dos widgets: além dos US$ 150 que se deve pagar por um widget, o cliente também deve aceitar o risco de ter uma disputa com a empresa resolvida pela filha da proprietária. Os clientes podem considerar isso indesejável.2 Podem até tomar a política como um sinal de que a empresa pretende enganar seus clientes. Por esse motivo, se US$ 150 for o preço de mercado dos widgets, a adição de Sally com essa estipulação irracional em relação à resolução de disputas com sua empresa terá o efeito de colocar o preço real de seu produto acima do nível de mercado e, assim, diminuir o lucro total de Sally. E se o preço de mercado dos widgets for de US$ 200 e Sally cobrar apenas US$ 150, deixando uma margem de manobra para fazer exigências adicionais aos clientes? Mesmo neste caso, insistir que todas as disputas devem ser resolvidas por Susan não é a melhor opção de Sally para tirar proveito dessa margem de manobra. O motivo é que provavelmente os clientes atribuam um valor negativo maior ao procedimento de resolução de disputas de Sally do que o valor positivo que Sally atribui a ele, porque os clientes tendem a atribuir valor negativo à injustiça percebida, além dos custos monetários potenciais de procedimentos injustos. Em vez disso, a melhor opção de Sally (maximizar o lucro) é simplesmente aumentar o preço em US$ 50. Os mesmos princípios se aplicam às relações empregador-empregado. Há um salário ideal para um empregador pagar de tal maneira que, se o empregador paga mais do que isso, reduz seu lucro total devido ao aumento dos custos trabalhistas, mas se paga menos, reduz seu lucro total devido à dificuldade em atrair funcionários desejáveis. Qualquer disposição em um contrato de trabalho que os funcionários considerem injusta ou simplesmente desvantajosa equivale a 1

Ver Friedman 1990 para uma descrição acessível da teoria padrão. Para uma perspectiva diferente, veja Caplan (2010), que sugere que a maioria dos clientes não se preocuparia com essa cláusula, uma vez que eles não esperam processar a empresa. 2

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um custo extra para aceitar um emprego com esse empregador ou, equivale a um declínio nas recompensas do trabalho. Uma disposição que normalmente seria tomada como sinal de intenção de enganar os funcionários normalmente reduziria a atratividade de qualquer trabalho que valha a pena se inserir. Se um empregador sente que está dando muito aos funcionários, faria mais sentido para ele simplesmente oferecer salários mais baixos. Empiricamente, os negócios nas economias de livre mercado raramente assumem posições inacessíveis em disputas com clientes. O exemplo a seguir não é um tipo incomum de experiência do consumidor: eu compro um produto da empresa Target local, levo para casa, abro a embalagem e decido que não gosto. Volto à loja e peço meu dinheiro de volta. “Há algo de errado com isso?”, pergunta o caixa. “Não”, eu digo, “acabei de decidir que não gosto. Então, quero devolver.” Minha posição nesta disputa, se é que se pode chamar assim, é totalmente caprichosa. Adquiri o produto voluntariamente, sei que eles não poderão revendê-lo depois que o abri e não tenho nenhuma reclamação real sobre o produto. O produto não está com defeito, nem foi deturpado pelo fabricante ou pela loja. Não tenho argumentos para explicar por que eles deveriam aceitar minha demanda. No entanto, na minha experiência, a empresa nunca recusou um retorno. Essa evidência sobre o comportamento dos negócios é obviamente anedótica, e certamente outros poderiam relatar histórias de experiências insatisfatórias. Não obstante, não acho que seja uma ilustração injusta da tendência geral do mercado: é muito mais provável que os consumidores assumam posições irracionais – e se deem bem – do que as empresas que financiam.

11.3

Recusando arbitragem

Discutimos as razões para aceitar a arbitragem como um mecanismo de resolução de disputas. Mas e se, em um caso específico, você tiver fortes razões para acreditar que qualquer árbitro respeitável que encontrar irá decidir contra você? Isso pode ser verdade por vários motivos, incluindo o fato de que você violou os direitos de outra pessoa e está tentando se safar; que você está fora de sintonia com os valores da maioria da sua sociedade, de modo que o que considera um comportamento aceitável um árbitro típico não considera; ou que exista uma grande quantidade de evidências enganosas que indiquem que você é culpado de algum crime do qual é de fato inocente. Em qualquer um desses casos, pode parecer que você deveria rejeitar a arbitragem. Mas mesmo nesses casos, você provavelmente será forçado a aceitar arbitragem. Se você rejeitar a opção de arbitrar sua disputa, sua agência de proteção provavelmente fará a inferência razoável de que você está errado de acordo com

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as normas vigentes, já que a explicação mais provável para sua rejeição à arbitragem é que você espera que qualquer árbitro respeitável decida contra você. Pelas mesmas razões pelas quais as agências de proteção não defenderão criminosos (Seção 10.4), elas não defenderão as pessoas que rejeitam a arbitragem como forma de resolução de disputas. As agências de proteção anteciparão essa eventualidade, escrevendo disposições em seus contratos, especificando os procedimentos que os clientes devem aceitar para resolver disputas e absolvendo a empresa da responsabilidade de proteger os clientes que violarem esses procedimentos. Em alguns casos, esse sistema geraria resultados injustos ou eticamente objetáveis, como no caso em que fortes evidências apontam para a culpa de alguém que é de fato inocente, ou onde os valores da maioria da sociedade estão errados. Mas o sistema anarquista, no entanto, funciona tão bem quanto poderia ser razoavelmente solicitado. Em qualquer sistema de justiça que funcione, seja com base no governo ou com base no mercado, se evidências poderosas, mas enganosas apontam para a culpa de alguém, essa pessoa será tratada como culpada. Somente o padrão inatingível de prova absolutamente conclusiva de culpa poderia eliminar a possibilidade de evidências enganosas que levassem à punição dos inocentes. Da mesma forma, todo sistema social gera resultados antiéticos se as pessoas que tomam decisões nesse sistema têm crenças e valores éticos incorretos. Na anarquia, resultados antiéticos resultam se a maioria dos membros da sociedade tiver valores incorretos, o que se refletirá nas decisões dos árbitros que buscam cultivar uma boa reputação junto ao público. Em um sistema governamental, resultados antiéticos resultam se legisladores, juízes ou outros funcionários públicos tiverem valores incorretos. Isso não é menos provável de ser verdade do que a maioria dos membros da sociedade ter valores incorretos.

11.4

Por que obedecer os árbitros?

No caso de você ter uma disputa com outro membro de uma sociedade anarquista, por que você simplesmente não concorda em tentar a arbitragem para resolvê-la, esperando que o árbitro fique do seu lado, mas quando isso não acontece você apenas ignora a decisão? Pra começar, esse tipo de comportamento seria ainda menos tolerado pelo resto da sociedade do que uma recusa em aceitar a arbitragem. Pelas mesmas razões pelas quais as agências de proteção não concordariam em defender criminosos, você poderia esperar que sua agência de proteção o deixaria de defendê-lo se violasse uma decisão de arbitragem.

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Além disso, as empresas de arbitragem poderiam manter listas de indivíduos que violaram um acordo. Pode haver agências de denúncia de antecedentes criminais, funcionando de forma análoga às agências de crédito, fornecendo denúncias de atividades criminosas por uma taxa. Dado o conhecimento de seu histórico de violação de um contrato de arbitragem, não seria racional que outras pessoas no futuro entrassem em relacionamentos comerciais nos quais você poderia tentar enganá-las e depois se recusar a pagar uma compensação. Portanto, seria muito difícil encontrar um emprego, obter um cartão de crédito, tomar um empréstimo bancário, alugar um apartamento e assim por diante.

11.5

A fonte da lei

No status quo, as decisões dos juízes e júris são baseadas amplamente em leis elaboradas por legisladores ou burocratas que trabalham para agências reguladoras. Como a sociedade anarcocapitalista não contém legisladores nem reguladores, com que base os árbitros poderiam tomar suas decisões? Haveria duas fontes de direito na sociedade anárquica. Primeiro, os proprietários ou associações locais de proprietários podem especificar o corpo da lei para governar as interações que ocorrem em suas propriedades. Desde que todos que entrarem na propriedade recebam um aviso justo do código legal em vigor lá, os árbitros provavelmente honrariam a escolha da lei do proprietário. Os juristas podem desenvolver códigos legais padronizados sugeridos, com proprietários de empresas, proprietários residenciais ou associações de proprietários residenciais escolhendo qual dos vários códigos legais amplamente usados deve valer para suas terras. Consumidores com fortes objeções a um código legal específico evitariam financiar empresas que adotaram esse código. Ao escolher uma casa, os indivíduos pesariam as vantagens do código legal assinado pela associação de proprietários locais. A outra grande fonte de direito seriam os próprios árbitros. Quando a solução para uma disputa em particular não for determinada por nenhuma lei do tipo descrita no parágrafo anterior, o juiz procuraria casos semelhantes para orientação, tentando aplicar os mesmos princípios no presente caso que geralmente eram usados para decidir casos similares no passado. Se o caso diante dele tivesse características novas, o juiz exercitaria seu próprio julgamento para elaborar uma resolução que parecesse justa e de acordo com os valores geralmente aceitos de sua sociedade. Ele escreveria uma explicação para sua decisão, que seria acrescentada ao corpo de precedentes para outros juízes consultarem em casos futuros. Faz sentido que os árbitros sigam essa tradição, pois geralmente resulta em decisões que a maioria dos observadores considera justas e preserva o tipo de consistência que a maioria dos observadores valoriza em um sistema jurídico.

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Essa abordagem de baixo para cima para gerar lei tem três vantagens principais em relação à abordagem de cima para baixo de lei criada por uma legislatura. Primeiro, a lei feita pelo juiz está mais intimamente ligada aos problemas que as pessoas comuns encontram e às suas circunstâncias reais, porque é feita por indivíduos com experiência regular na resolução de disputas interpessoais – os problemas que dão origem à necessidade de lei em primeiro lugar – e é feito apenas no contexto da decisão de tais disputas. Segundo, a lei tomada por juiz é mais flexível que a lei legal. Nenhuma regra de conduta que os seres humanos desenvolvem pode prever todas as possíveis contingências futuras. Em um sistema de direito consuetudinário, quando um tribunal encontra um caso similar não considerado anteriormente, ele pode decidir o caso da maneira que parecer mais justa, em vez de ser forçado por negligências anteriores a tomar decisões injustas. Terceiro, o sistema de leis comuns exige demandas cognitivas muito menores para cada legislador. Um legislador enfrenta a tarefa quase impossível de antecipar todas as questões que possam ocorrer em todas as áreas da conduta humana e de escrever regras válidas para todas as circunstâncias. Um juiz em um sistema de direito comum enfrenta, a qualquer momento, apenas a tarefa de entender o caso agora diante dele e decidir como esse caso deve ser resolvido; em nenhum momento é necessário que um juiz ou qualquer outra pessoa tente antecipar todos os tipos possíveis de problemas. Sabemos que essa é uma maneira viável de desenvolver um sistema de leis extremamente sofisticado e sutil, porque essa é, de fato, a fonte do direito comum que agora domina (ao lado do direito estatutário e regulamentar) na Grã-Bretanha e vários outros países influenciados pela Grã-Bretanha, como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Nesses países, a maioria do direito contratual e do direito civil é de direito consuetudinário. A maior parte do direito penal também era consuetudinário antes do século XX. Na sociedade anarquista, dada a ausência de leis estatutárias e regulamentares, o direito consuetudinário teria um papel ainda maior do que atualmente nesses países.3

11.6

Punição e restituição

Os sistemas de justiça penal existentes, baseados no governo, contam com a prisão de criminosos como resposta ao crime. Pensa-se que a sociedade como um todo se beneficia dessa prática, porque mantém os criminosos fora das ruas por um tempo e impede que outros entrem na vida do crime. As vítimas de um crime específico, no entanto, geralmente não recebem nada em termos de indenização, 3

Ver Barnett 1998 para uma descrição mais completa dos sistemas jurídicos nãogovernamentais.

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e o resto da sociedade é forçada a pagar pela manutenção dos criminosos durante os termos de prisão. O sistema de justiça anarcocapitalista provavelmente focaria mais na restituição do que na punição. Ou seja, os criminosos seriam obrigados a pagar uma indenização a suas vítimas. Esse sistema seria preferível aos sistemas baseados em punições, porque é melhor para as vítimas de crimes e não exige que ninguém pague pela manutenção dos criminosos. A compensação exigida provavelmente incluiria a compensação pelo inconveniente e o tempo perdido sofrido pela vítima na tentativa de garantir a justiça, bem como os custos razoáveis incorridos pela agência de proteção da vítima na identificação, apreensão e julgamento do criminoso. Como resultado, um ladrão, por exemplo, teria que pagar significativamente mais do que o valor do que roubou. Isso proporcionaria um impedimento ao crime. E se a vítima de um crime estivesse morta (morta pelo criminoso ou por outras causas após o crime) e, portanto, incapaz de receber uma indenização? Nesse caso, a família ou os amigos da vítima podem receber a compensação devida. Como alternativa, os indivíduos podem, previamente, autorizar suas agências de proteção a cobrar indenizações em seu nome, caso não possam receber indenização por um crime. A indenização devida a uma vítima de crime pode ser considerada propriedade da vítima, a qual, portanto, teria o direito de dar, vender ou legar a outra pessoa. Conceder à agência de proteção o direito de cobrar uma indenização no caso de assassinato pode servir para dissuadir potenciais assassinos.

11.7

Crimes não compensáveis

O que aconteceria se um criminoso não tivesse os recursos necessários para compensar suas vítimas? Uma possibilidade é que o criminoso seja levado a uma prisão particular, onde seria obrigado a pagar sua dívida. Mas e se o criminoso não pudesse pagar sua dívida? Imagine, digamos, um vigarista criminoso que fraudou suas vítimas em US$ 20 milhões, quase todo o qual foi gasto. O criminoso não tem nenhuma esperança realista de retribuir suas vítimas. O que seria feito com esse criminoso? Uma possibilidade é que o criminoso seja alojado indefinidamente em uma instalação de trabalho forçado, para pagar o máximo possível de sua dívida. Ou as vítimas podem se contentar com algum reembolso parcial, no qual o criminoso poderia realisticamente fazer durante sua vida. Caberia ao árbitro do caso, em consulta com as vítimas, decidir sobre o remédio mais apropriado. De qualquer forma, as informações sobre o que o criminoso havia feito provavelmente seriam disponibilizadas ao público e possivelmente

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enviadas para relatórios de agências de registros criminais para que futuros proprietários, empregadores e outros possam estar cientes. Em alguns casos, no entanto, o comportamento de um criminoso é tão hediondo que não só é impossível compensar suas vítimas, mas o criminoso nunca pode ser libertado com segurança. Imagine, por exemplo, que uma agência de proteção tenha levado Ted Bundy em custódia. Bundy protesta por sua inocência, mas a empresa de arbitragem o considera responsável por pelo menos trinta assassinatos. Bundy nunca compensará suas vítimas e, se for libertado, matará novamente. Parece haver duas opções: ele pode ser preso indefinidamente (provavelmente em uma instalação de trabalho forçado) ou pode ser executado. Novamente, caberia ao árbitro do caso determinar o melhor curso de ação. Como no caso do verdadeiro Ted Bundy, a execução parece uma possibilidade provável.

11.8

Restituição excessiva

A vítima de um crime tem o direito de receber uma indenização total pelo crime; isto é, compensação suficiente para devolvê-la ao nível de bem-estar que teria se o crime não tivesse ocorrido. Mas e se um tribunal em particular conceda regularmente compensação em excesso – digamos, duas vezes o que a vítima teria direito e duas vezes o que outros tribunais geralmente concedem por um determinado crime? Esse tipo de tribunal que compensa em excesso não seria preferível pelas vítimas? E como quase todos se consideram mais propensos a se tornarem vítimas de crimes do que a se tornarem criminosos, quase todos desejam que quaisquer disputas futuras sejam resolvidas por tal tribunal. Levando isso em consideração, as agências de proteção concordariam em usar tribunais que fornecem compensação em excesso. Em breve, quase todos os casos criminais seriam julgados em tribunais desse tipo. Os criminosos poderiam protestar contra a injustiça, mas suas vozes seriam pouco ouvidas, já que as agências de proteção e as empresas de arbitragem estariam mais dispostas a satisfazer a esmagadora maioria dos clientes cumpridores da lei do que a satisfazer os criminosos. O que é problemático nesse resultado? O problema óbvio é que essa situação é uma injustiça, embora sobre a qual possamos achar difícil despertar muita indignação – é uma injustiça para os criminosos. Mas Paul Birch argumenta que o problema seria mais profundo do que isso, minando todo o sistema anarcocapitalista.4 Uma vez iniciada a prática de conceder compensação em excesso, as empresas competiriam para oferecer prêmios cada vez maiores às vítimas, talvez dez vezes, vinte vezes, ou até cinquenta vezes a quantia a que a vítima do crime teria direito. Esses prêmios excessivos criariam poderosos impedimentos 4

Birch 1998.

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ao crime, resultando em uma queda drástica na taxa de criminalidade. Embora isso possa parecer um resultado feliz, colocaria uma pressão financeira crescente nas firmas de arbitragem. À medida que a taxa de criminalidade diminui, as empresas de arbitragem continuariam a aumentar seus prêmios de indenização no esforço de coletar uma fatia maior do mercado em queda. Isso apenas faria o mercado encolher ainda mais. Eventualmente, ou todas as empresas fechariam o negócio, caso em que a sociedade se tornaria um estado de caos, ou a última empresa capaz de resistir adquiriria o monopólio do setor, onde evoluiria para um Estado. Há várias razões pelas quais é improvável que o cenário anterior aconteça: i O argumento supõe de forma irrealista que vítimas de crimes reais e potenciais preferem uma compensação ilimitada. Essa suposição pode ser impulsionada por uma concepção de seres humanos como homo economicus, maximizadores puros do lucro: uma vez que compensação maior é igual a lucro maior, as vítimas de crime preferem aumentos ilimitados na compensação. Os seres humanos normais, no entanto, não veem a vitimização criminal como uma oportunidade de enriquecer; esse tipo de pensamento geralmente é reservado para os golpistas. A maioria das pessoas normais deseja evitar ser vítima de crime, se possível, e garantir justiça no caso de ser vitimada. Uma preocupação mais plausível é que as vítimas de crimes sejam motivadas por vingança, em vez de busca por lucro, pressionando por sanções excessivas contra seus malfeitores. Surpreendentemente, essa preocupação é minada por evidências empíricas: pesquisas de atitudes em relação a sentenças criminais descobriram que as vítimas de crime de fato abrigam atitudes não mais punitivas do que as do membro médio da população.5 ii Birch imagina as empresas de arbitragem anunciando que concedem compensação excessiva – anunciando, por exemplo, que concedem a cada vítima uma compensação igual a dez vezes a perda sofrida pela vítima. Isso está muito próximo do anúncio explícito de um tribunal de que ele é injusto. É difícil imaginar isso acontecendo. Por razões discutidas anteriormente, as empresas de arbitragem selecionariam cuidadosamente seus juízes e guardariam sua reputação de justiça, imparcialidade e sabedoria. O tipo de pessoa que acabaria como juiz provavelmente não promoveria explícita e intencionalmente a injustiça em prol da maximização do lucro. Uma preocupação mais realista é que as empresas de arbitragem sejam tendenciosas a favor das vítimas, em vez de abraçar explicitamente a injustiça. Elas quase certamente afirmariam estar administrando a justiça, mas suas 5

Walker e Hough 1988, 10; Hough e Moxon 1988, 137, 143–6.

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percepções sobre o que a justiça exige podem ser inclinadas em favor das vítimas; por exemplo, tenderiam a perceber a maioria dos crimes como mais prejudiciais do que realmente são. É plausível que as empresas de arbitragem possam contratar juízes com tais percepções distorcidas sem manchar indevidamente sua reputação de integridade. Por isso, acho plausível que em uma sociedade anarcocapitalista os criminosos sofram frequentemente um pouco mais do que merecem. Este é um possível problema com o sistema, mas não é um problema terrível. Além disso, é plausível que a punição ocorra também nos sistemas governamentais, e não é óbvio que os sistemas governamentais produzam punições mais justas do que aquelas que emergiriam de um sistema anarcocapitalista. iii Além da preocupação com os direitos dos criminosos, que reconhecidamente são limitados, há outra razão para indivíduos comuns se oporem a compensações absurdamente excessivas por crimes: em qualquer sistema de justiça penal realista, às vezes pessoas inocentes são condenadas. Muitas pessoas acham essa perspectiva preocupante, mesmo no abstrato e, talvez mais ainda, quando refletem que elas mesmas ou alguém com quem são próximas podem um dia estar entre os condenados erroneamente. O problema não pode ser eliminado sem dispensar inteiramente o sistema de justiça penal; no entanto, a maioria das pessoas consideraria o problema muito menos perturbador se as penas pelos crimes fossem razoáveis do que absurdamente excessivas. Isso levaria a maioria das pessoas no sistema anarquista, assim como no sistema atual, a apoiar algum grau de restrição por parte dos juízes no processo de atribuição de prêmios de compensação. iv Prêmios excessivos de compensação tendem a ser mais difíceis ou caros de se cobrar. Se, por exemplo, a compensação pelo roubo de um cartucho de videogame for de US$ 100.000, isso poderá ser difícil de aplicar. Se um ladrão de lojas tiver a expectativa de ser preso por toda a vida em uma instalação de trabalho forçado caso seja pego, os ladrões de lojas poderão estar dispostos a matar para escapar ou lutar até a morte, em vez de se renderem. Sabendo disso, as agências de proteção teriam um motivo para preferi prêmios razoáveis de compensação. v Um criminoso que é prejudicado por uma concessão de compensação claramente excessiva parece ter uma queixa válida contra o tribunal que fez a sentença injusta. Não há razão óbvia para que ele não possa entrar com uma ação contra esse tribunal em outro tribunal. Se todos os tribunais tivessem os mesmos padrões excessivos de compensação, o processo do criminoso fracassaria. Mas se os tribunais geralmente

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começassem com padrões aproximadamente justos e um tribunal decidisse buscar uma fatia maior do mercado oferecendo prêmios excessivos de compensação, esse tribunal sofreria por sua indiscrição, já que outros tribunais considerariam seus julgamentos injustos e concederiam compensação a aqueles que foram prejudicados por esse tribunal. Assim, se o sistema iniciar em uma posição geralmente justa, ele será estável. vi Mesmo aumentos extremos nas penalidades por crime não eliminariam todos os crimes. Isso ocorre porque alguns criminosos, infelizmente, são altamente resistentes à dissuasão. Eles imprudentemente ignoram o futuro ou assumem alegremente que não serão pegos.6 Assim, um mercado para tribunais privados continuaria a existir mesmo em um regime de prêmios absurdamente altos de compensação. vii Mesmo que os prêmios excessivos de compensação resultem em uma queda drástica nas taxas de criminalidade, isso não faria com que todas ou quase todas as empresas de arbitragem fossem à falência. Por mais que o crime caia, continuariam a surgir disputas honestas entre as pessoas comuns, e elas ainda precisariam ser julgadas pelas agências de arbitragem. Se o crime sofresse uma queda vertiginosa, as empresas de arbitragem experimentariam um declínio nas receitas e precisariam reduzir as operações até o ponto que o mercado suportaria. Mas isso não levaria todas à falência, nem faria com que a indústria fosse monopolizada. Considere uma analogia. À medida que os automóveis se tornaram mais práticos no início do século XX, a demanda por cavalos sofreu uma queda drástica. Mas toda a indústria não entrou em colapso, nem foi monopolizada – ainda há mais de um criador de cavalos no mundo hoje. A indústria simplesmente encolheu para o tamanho que poderia ser suportado pelos novos níveis de demanda. Da mesma forma, se formos abençoados a ponto de nos preocuparmos com níveis indevidamente baixos de criminalidade, o setor de arbitragem diminuirá, de modo que inclua apenas o número de tribunais necessários para satisfazer o quanto resta a demanda.

11.9

A qualidade da lei e da justiça sob uma autoridade central

Para avaliar melhor os méritos de um sistema de justiça não-governamental, devemos primeiro considerar algumas das falhas do sistema atual. 6

Banfield 1977.

11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas

11.9.1

264

Condenações injustas

Um aspecto perturbador do sistema atual é a taxa com que os inocentes são punidos. O professor de direito de Michigan, Samuel Gross, estudou casos em que os condenados foram absolvidos nos Estados Unidos entre 1989 e 2003.7 Ele encontrou 340 casos, incluindo 205 casos de assassinato, 121 casos de estupro e 14 casos envolvendo outros crimes. Os promotores e a polícia geralmente se recusam a aceitar que prenderam e processaram uma pessoa inocente, mesmo depois que a prova da inocência da pessoa é descoberta.8 Em média, esses acusados sofreram onze anos de prisão ilícita antes de finalmente serem oficialmente absolvidos. Por que assassinatos e estupros foram tão sobre-representados entre os crimes de que os réus foram absolvidos? A principal razão para a dramática sobrerepresentação de casos de estupro está no desenvolvimento de testes de DNA no final dos anos 80 em diante, o que levou ao reexame de vários casos de estupro nos quais felizmente as amostras de sêmen haviam sido preservadas. A aplicação das novas técnicas revelou que muitas condenações anteriores ao advento de testes confiáveis de DNA eram errôneas. A principal razão para a sobre-representação de casos de assassinato parece residir no escrutínio muito maior que esses casos recebem em comparação com casos menos graves, especialmente quando a pena de morte está envolvida.9 Omitidos das estatísticas de Gross são casos de absolvição em massa devido à exposição de corrupção policial em larga escala. Um desses casos envolveu o programa CRASH (“Recursos da comunidade contra bandidos de rua”) do Departamento de Polícia de Los Angeles. Em 1999, o policial Rafael Perez revelou que ele e outros oficiais do programa haviam mentido rotineiramente em relatórios de prisão, atiraram em suspeitos desarmados e espectadores inocentes, plantaram armas em suspeitos depois de atirar neles, fabricaram evidências e acusaram inocentes. Na sequência destas revelações, mais de 100 acusados tiveram suas condenações anuladas em 1999 e 2000.10 Por que os réus da amostra de Gross foram condenados indevidamente? A maioria dos casos envolveu identificação incorreta de testemunhas. Muitos envolveram perjúrio por parte da polícia, cientistas forenses que atestam em favor do governo, os verdadeiros criminosos, delatores na prisão ou outros que poderiam tirar vantagem ao prestar falso testemunho. Em 15% dos casos, os réus, 7

Gross et al. 2005. Gross et al. 2005, 525-6. 9 Gross et al. 2005, 531–2, 535–6. Gross et al. (532–3) apontam que também pode haver mais pressão para condenar alguém em casos capitais, levando a mais erros. No entanto, também pode haver maior cuidado exercido pelos defensores, juízes e júris de defesa nos casos em que estão em causa punições extremamente severas. 10 Gross et al. 2005, 533–4. 8

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265

sob o estresse em interrogatórios policiais de alta pressão, confessaram os crimes que não haviam cometido. A maioria desses 15% tinha menos de 18 anos de idade, com deficiência mental ou doença mental. Como os réus nesses casos foram absolvidos, podemos ficar tranquilos com o fato de o sistema funcionar e de que a justiça é servida? Há duas razões para rejeitar essa complacência: primeiro, há os onze anos em que esses réus foram, em média, obrigados a passar nas que podem ser as piores condições em que qualquer segmento significante da sociedade deveria viver. Segundo, e mais importante, existem implicações para o número de pessoas que continuam presas injustamente. Não há estimativas confiáveis da frequência de convicções errôneas, devido à elusividade inerente a esses casos. Embora esteja razoavelmente claro que todos ou quase todos os 340 casos de Gross foram realmente condenações injustificadas, não temos como saber quantas condenações errôneas adicionais foram descobertas durante o mesmo período. Os 74 internos do corredor da morte que foram absolvidos constituíam cerca de 2% da população do corredor da morte.11 Isso sugere que, se aplicarmos o mesmo nível de escrutínio a todos os casos que aplicamos aos casos de pena de morte, poderemos encontrar uma taxa de falso positivo de 2% nesses outros casos também. Mas não temos ideia de quantos casos de pena de morte houve em que condenações errôneas não foram descobertas. As convicções errôneas na amostra de Gross foram devidas principalmente a erros de testemunhas, perjúrios e confissões falsas. Mas quando uma testemunha identifica mal um suspeito, uma testemunha mente ou a polícia extorque uma confissão falsa, em quantos desses casos podemos supor que a prova da inocência do réu, indescritível no momento do julgamento, aparecerá mais tarde por sorte e irá tirá-lo da prisão? Prova de inocência geralmente não é muito fácil de encontrar, e as autoridades, tendo encerrado o caso, não estarão procurando por tais evidências. O próprio réu terá dificuldade em descobrir tais evidências de sua posição na prisão. Por esses motivos, parece otimista demais supor que, na maioria das condenações equivocadas (mesmo nos casos de pena de morte), a prova de inocência será posteriormente descoberta. Portanto, parece provável que a taxa real de falsas condenações seja muito maior do que a taxa de absolvição de 2% que Gross encontrou entre os casos de pena de morte. Poderia ser feito algo para melhorar o sistema ou essas condenações equivocadas são simplesmente o preço da justiça penal? Várias medidas foram sugeridas para melhorar a confiabilidade do sistema: reduzir o uso de técnicas de interrogatório de alta pressão, particularmente para suspeitos menores de idade ou com deficiência mental; ter testemunhas interrogadas por policiais que não conhecem 11

Gross et al. 2005, 532, n. 21.

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266

os detalhes da investigação e, portanto, não podem influenciar as testemunhas; mostrar às testemunhas um suspeito de cada vez, em vez de um grupo de suspeitos de uma só vez; e instruir júris sobre as limitações das evidências das testemunhas oculares. Apesar de estudos indicando que essas medidas reduziriam o risco de condenações injustificadas, a polícia e os tribunais americanos geralmente não as adotam.12

11.9.2

Excesso de oferta da lei

Sob um sistema jurídico baseado em uma autoridade central com poderes legislativos, muito mais lei é fornecida do que sob um sistema puro de direito consuetudinário. Alguns veem isso como uma vantagem – talvez precisamos de uma forte rede de regulamentos para nos proteger contra as falhas do capitalismo laissez-faire. No entanto, vale a pena considerar se um sistema governamental pode fornecer muita lei. Como exercício, tente imaginar um sistema legal ideal. Antes de continuar lendo, tente estimar quantas páginas de leis esse sistema conteria. Existem muitas dificuldades em fazer essa estimativa; no entanto, tentar pelo menos uma estimativa vaga e de ordem de magnitude antes de descobrir quanta lei realmente existe pode ajudar a impedir a tendência de racionalizar o status quo. A maioria dos cidadãos nos Estados modernos, quer se descrevam como apoiando um forte regime regulatório ou não, tem pouca ideia de quanta regulamentação realmente existe. Nos Estados Unidos, as regras promulgadas pelas agências reguladoras do governo nacional são registradas no Code of Federal Regulations (isso não inclui estatutos aprovados diretamente pelo Congresso, nem leis estaduais ou locais). Durante o último meio século, a quantidade desses regulamentos aumentou de 23.000 para 150.000 páginas (veja a tabela abaixo). Ano 1960 1970 1980 1998 2010 12

Tamanho do CFR (páginas)13 22.877 54.834 102.195 134.723 152.456

Duke 2006. Os números para 1970 e 1998 são de Longley n.d. Os números de 1960 e 1980 são de Crews 2011, 15. O valor de 2010 é calculado a partir da edição do CFR disponível no Government Printing Office; Omiti os “Procurar ajuda” no final de cada volume para a contagem total de páginas de 2010. 13

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267

Essas estatísticas não podem capturar informações qualitativas sobre o conteúdo desses regulamentos e, é claro, não há perspectiva de revisar qualquer fração significativa desses regulamentos aqui (ou em qualquer outro local). No entanto, sugiro que esses números possam levar até o mais forte defensor ideológico da regulamentação a considerar se os órgãos legislativos dedicados podem tender a fornecer uma quantidade maior que a ideal de regulamentação. O leitor não familiarizado com a regulamentação é convidado a examinar o CFR aleatoriamente para obter um sentido qualitativo do regime regulatório. Pode-se, por exemplo, encontrar um parágrafo descrevendo o espaçamento das lacunas das velas de ignição de um automóvel, outro prescrevendo o uso da expressão “proteção durante todo o dia” nos rótulos antitranspirantes, outro descrevendo a assinatura de documentos relacionados aos impostos especiais de consumo em transações estruturadas de factoring de liquidação, e assim por diante.14 O que é censurável nessa provisão legal em excesso? A primeira objeção é que ela representa uma dependência excessiva da coerção. Cada um desses regulamentos é um comando apoiado por uma ameaça de força emitida pelo Estado contra seus cidadãos. Embora algumas dessas ameaças possam ser justificadas, aquelas que não são constituem uma violação dos direitos de todos aqueles que são coagidos. Segundo, um excesso de leis pode ter grandes custos econômicos. Ronald Coase, ganhador do Nobel e ex-editor do Journal of Law and Economics, relata que sua revista publicou uma série de estudos empíricos sobre os efeitos de uma ampla variedade de regulamentos, nos quais se constatou que todos os regulamentos estudados tiveram efeitos negativos gerais sobre a sociedade.15 A Administração de Pequenas Empresas do governo dos EUA estimou o custo anual dos regulamentos federais para a economia dos EUA em US$ 1,75 trilhão, um fardo que acreditam atingir desproporcionalmente as pequenas empresas.16 Terceiro, uma quantidade excessiva de leis, bem como um corpo jurídico excessivamente complexo e técnico, torna irracional exigir que os cidadãos conheçam, entendam e sigam todas as leis. Ameaçar punir os cidadãos por violarem regras que, à luz dos encargos cognitivos extremos, não se poderia esperar que soubessem ou entendessem razoavelmente, é uma forma de injustiça. Esses encargos cognitivos, em algum momento, refutam o objetivo principal de estabelecer leis escritas para começar – a saber, que a lei seja acessível a todos que se espera que a sigam. Uma solução para o último problema é os cidadãos contratarem especialistas para aconselhá-los em qualquer área em que a lei seja complexa e difícil de 14

40 CFR, apêndice I da subparte V da parte 85 (H) (1) (b); 21 CFR 350,50 (b) (3); 26 CFR 157.6061. 15 Hazlett 1997, 43. 16 Crain e Crain 2010.

11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas

268

seguir. Isso, no entanto, nos leva ao próximo problema com o sistema de justiça atualmente aceito.

11.9.3

O preço da justiça

Para a maioria dos cidadãos dos Estados modernos, os custos da justiça do governo em tempo e dinheiro são proibitivos. A disputa civil típica exige de vários meses a alguns anos para ser resolvida pelos canais governamentais.17 Em 2009, um escritório de advocacia americano médio faturava US$ 284 por hora, com um divórcio típico custando entre US$ 15.000 e US$ 30.000. Para o americano médio, com uma renda anual de US$ 39.000, qualquer uso do sistema de justiça do governo representa uma carga financeira esmagadora.18 Por que os serviços jurídicos são tão caros? Um dos motivos é o excesso de oferta de lei mencionada acima. A complexidade, a tecnicidade e a enorme extensão das leis e procedimentos legais obrigam os indivíduos a pagar especialistas para lidar com qualquer procedimento legal, além de forçar esses especialistas a dedicarem uma grande quantidade de trabalho a cada caso. Outro motivo pode ser encontrado nas restrições à prestação de serviços jurídicos, que por lei só podem ser oferecidas de fontes aprovadas pelo governo (advogados que foram admitidos na guilda, geralmente após uma longa e muito cara educação em direito).19 Esses custos são preocupantes por pelo menos três razões importantes. Primeiro, o alto custo dos serviços jurídicos significa que apenas os ricos podem pagar por justiça. Indivíduos de renda média e baixa não podem se dar ao luxo de buscar justiça ou devem fazer justiça com suas próprias mãos quando acreditam que foram prejudicados. Em casos penais, os réus de baixa renda podem receber representação legal inadequada devido à carga pesada de casos nos defensores públicos. Segundo, mesmo os réus que vencem seus processos, sejam civis ou penais, podem ser arruinados financeiramente. Isso age como uma espécie de punição injusta imposta a todos os réus, sejam eles culpados de irregularidades ou não. Terceiro, as grandes empresas podem pagar as taxas legais necessárias para garantir o cumprimento de regulamentações burocráticas complexas, enquanto 17

Nos Estados Unidos, os atrasos variam de cerca de seis meses a cerca de três anos, com uma média de onze meses (Dakolias 1999, 18). 18 Sobre honorários médios de advocacia, consulte taxas de advocacia da Califórnia em 2011, citando uma pesquisa da Incisive Legal Intelligence. Sobre o preço do divórcio, veja Hoffman 2006. Sobre a renda média, consulte o US Census Bureau 2011b, 443, tabela 678. 19 O preço da faculdade de direito costuma exceder US$ 100.000. Apenas sete estados dos EUA permitem que os indivíduos façam o exame da guida sem ter que frequentar a faculdade de direito (Macdonald 2003).

11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas

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os mesmos custos podem ser proibitivos para as pequenas empresas. Como resultado, o atual regime jurídico tende a promover a concentração de indústrias nas mãos de grandes corporações, mesmo que essas corporações sejam elas mesmas menos eficientes do que as empresas menores.

11.9.4

O fracasso da prisão

Os governos de hoje contam com a prisão como resposta a crimes graves. A prisão tem duas funções principais: primeiro, protege a sociedade dos criminosos condenados por um tempo limitado, separando os criminosos do resto da sociedade. Segundo, pune os criminosos, forçando-os a viver em condições altamente indesejáveis. O sofrimento por parte dos criminosos pode ser valorizado intrinsecamente como uma forma de justiça retroativa ou pode ser valorizado instrumentalmente como um meio de deter futuros comportamentos criminosos. As prisões existentes, no entanto, sofrem de vários problemas muito sérios. Nos Estados Unidos, essas instalações são extremamente superlotadas e os presos vivem em perigo de violência de gangues, estupros por outros prisioneiros, espancamentos de guardas e outros prisioneiros e outras formas de abuso. A taxa de violência e abuso é desconhecida, mas há relatos anedóticos.20 Nos últimos anos, o uso de confinamento solitário tornou-se cada vez mais comum, uma prática que leva a deterioração mental por parte do prisioneiro e maiores taxas de reincidência assim que o condenado é libertado.21 Sob essas condições, dificilmente se poderia esperar que o encarceramento reabilitasse criminosos. Consequentemente, dois terços dos criminosos são reincidentes no prazo de três anos após serem libertados da prisão.22 Essa estatística provavelmente subestima a verdadeira taxa de reincidência, dada a baixa taxa em que a polícia resolve crimes (Seção 10.7); assim, a grande maioria dos criminosos retorna à vida criminosa logo após sua libertação. Alguns observadores argumentaram que o encarceramento não apenas falha na reabilitação de criminosos, como também os torna mais perigosos quando liberados do que quando entraram. Isso pode ser verdade, por exemplo, porque os presos fazem novos contatos criminais e aprendem novas habilidades e ideias criminais de outros presos enquanto estão na prisão, porque absorvem valores antissociais dos outros presos e porque os presos ficam mais irritados e ressentidos como resultado do 20

Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons 2006, 11–12, 24. Uma pesquisa do Departamento de Justiça dos EUA constatou que 4,4% dos presos prisionais e 3,1% dos presos em celas sofreram algum tipo de abuso sexual no ano anterior (Beck et al. 2010); no entanto, esses incidentes podem ser subnotificados. 21 Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons 2006, 14–15. 22 Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons, 2006, 106.

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270

abuso que sofreram enquanto estavam na prisão. Alguns chegaram a sugerir que o encarceramento pode causar mais crimes do que impedir.23 Esses problemas não são inevitáveis em um sistema de justiça criminal; os críticos ofereceram inúmeras reformas em potencial que provavelmente reduziriam significativamente esses problemas. Verificou-se que alguns programas de reabilitação reduzem as taxas de reincidência em até 30%. Os formuladores de políticas simplesmente não escolheram adotar essas reformas.24

11.9.5

Reforma ou anarquia?

Os problemas listados nas subseções anteriores são apenas os mais proeminentes daqueles que afetam o atual sistema de justiça baseado no governo. Um observador otimista, no entanto, embora reconheça a gravidade dos problemas, pode levar a mostrar apenas que o sistema de justiça deve ser substancialmente reformado enquanto permanece nas mãos do governo. De fato, existem várias medidas que mitigariam bastante os problemas listados acima, e não podemos descartar a possibilidade de que um dia os funcionários do governo iniciem uma séria reforma dos sistemas prisional e judicial. Não obstante, não é mero acidente que problemas do tipo que discutimos persistem no sistema judicial baseado no governo. Os monopólios coercitivos têm uma tendência sistemática a promover uma variedade de problemas, e tendem a demorar a reconhecer e solucionar suas próprias deficiências. Os motivos são familiares. Como o governo cobra suas receitas na forma de impostos que os cidadãos não têm escolha a não ser pagar, os programas governamentais podem sobreviver financeiramente, mesmo com níveis extremos de insatisfação do consumidor. Mais importante, como o governo é monopolista, os cidadãos não têm para onde recorrer se consideram seus serviços ineficientes, de baixa qualidade ou abusivos. A maioria dos problemas com o sistema de justiça dos EUA é óbvia e é bem conhecida há muito tempo. Os governos nacionais e estaduais fizeram pouco para resolver esses problemas, não porque os problemas são difíceis ou impossíveis de resolver, mas porque o governo não sofre consequências negativas como resultado de sua falha em resolvê-los. Considere o problema de condenações injustas. Em um sistema competitivo, a associação de proprietários residenciais pode escolher entre muitas agências de proteção, empresas de arbitragem e órgãos legais para aplicar em sua vizinhança e pode alterar sua escolha se e quando ficar insatisfeita com os acordos de segurança e justiça. Além disso, os residentes insatisfeitos com as decisões da APR podem se mudar a um custo relativamente baixo. Como ninguém quer 23 24

Pritikin 2008. Pritikin 2008, 1092; Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons 2006, 12, 28, 108.

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ser condenado injustamente, uma agência de proteção que utilizou métodos não confiáveis de investigação ou uma empresa de arbitragem que utilizou métodos não confiáveis para avaliar a culpa ou inocência precisariam se preocupar em ser substituídas por concorrentes que oferecem serviços com menos risco de condenações injustificadas. Pontos semelhantes se aplicam ao problema de excesso de oferta da lei e custos excessivos dos serviços jurídicos. E os problemas associados ao encarceramento de criminosos? Estes seriam grandemente reduzidos por um sistema de justiça que focasse mais na restituição do que na punição. Nesse sistema, as centenas de milhares de pessoas atualmente presas por crimes sem vítimas, principalmente crimes relacionados às drogas, seriam soltas. Somente indivíduos que feriram outra pessoa e, de outra forma, não estavam dispostos ou não podiam pagar a indenização exigida à vítima seriam mantidos presos em instalações prisionais. O foco dessas instalações no trabalho produtivo diminuiria o risco de violência na prisão e reincidência. É teoricamente possível para um governo se reformar – eliminar todos os estatutos do crime sem vítimas, mudar seu foco de punição para restituição e assim por diante. Mas quando olhamos em volta e vemos que nenhum governo realmente o fez e quando percebemos que esse tipo de falta de resposta aos problemas tem uma explicação sistêmica enraizada na estrutura básica de incentivos do governo, a conversão para um sistema alternativo começa a parecer uma solução mais racional e menos utópica do que a reforma do sistema atual. Sempre haverá espaço para melhorias em qualquer sistema de justiça. Nos sistemas governamentais, a reforma tenderá a ser lenta e difícil de implementar. Por outro lado, as empresas de um setor competitivo tendem a se mover rapidamente para melhorar seus produtos ou reduzir seus custos quando a oportunidade se apresenta.

11.10

Conclusão

Existem dois sistemas principais pelos quais uma sociedade pode prever a resolução de disputas e a correção de violações de direitos. O primeiro é o sistema coercitivo e monopolista, no qual uma única organização assume autoridade exclusiva para fazer leis, resolver disputas e punir criminosos. Problemas grandes e bem conhecidos tendem a ocorrer em sistemas desse tipo, incluindo condenações errôneas frequentes, restrições legais excessivas e excessivamente complexas, altos custos monetários, atrasos, prisões superlotadas, abuso de prisioneiros e altas taxas de reincidência. Os governos em geral fazem pouco para resolver esses problemas, apesar da identificação por cientistas sociais e outros especialistas de inúmeras medidas que poderiam ser tomadas para melhorar significativamente o sistema. Essa negligência por parte do governo pode ser atribuída às caracte-

11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas

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rísticas definidoras dessa abordagem da justiça; ou seja, seu caráter coercitivo e monopolista. Como o sistema governamental é financiado através de impostos obrigatórios, tribunais, prisões e outros elementos do sistema judiciário podem continuar a coletar a receita que o governo deseja alocar, independentemente da satisfação do consumidor. Como o governo detém um monopólio efetivo da provisão de justiça, essas organizações não precisam temer a substituição por concorrentes, independentemente de seu desempenho. A alternativa é um sistema de justiça baseado no mercado, no qual as empresas de arbitragem competem entre si na resolução de disputas. Quando um indivíduo viola os direitos de outro, um árbitro decide sobre a indenização a ser paga pelo criminoso à vítima. Nos casos em que um criminoso não tenha outros meios de pagamento, ele seria alojado em uma prisão particular, onde seria obrigado a pagar sua dívida. Proprietários individuais ou associações de proprietários, como associações de proprietários residenciais, escolheriam o corpo da lei a ser aplicado às interações ocorridas em suas terras. Quaisquer questões não resolvidas por essas leis seriam tratadas através de uma forma de lei elaborada pelos árbitros, semelhante ao direito consuetudinário britânico atual. Para atrair clientes, os árbitros do sistema de justiça num mercado livre procurariam manter uma reputação de justiça, consistência, imparcialidade e sabedoria. As empresas de segurança provavelmente exigiriam que seus clientes resolvessem quaisquer disputas por meio de árbitros terceiros respeitáveis e se recusariam a defender clientes que rejeitam a arbitragem ou violam a decisão do árbitro depois de submetida uma disputa à arbitragem. Nesse sistema, os árbitros podem demonstrar um viés a favor das vítimas de crimes e contra os criminosos, fazendo com que criminosos sejam obrigados a pagar algo mais elevado em compensação por seus crimes do que a justiça realmente exigiria. No entanto, está longe de ficar claro que esse problema seria mais grave do que a punição que ocorre em sistemas baseados no governo, que se concentra no encarceramento de criminosos em condições opressivas e perigosas. O problema dos prêmios excedentes de compensação provavelmente seria relativamente modesto e tolerável em comparação com os problemas do status quo.

12 Guerra e Defesa da Sociedade 12.1

O problema da defesa da sociedade

Idealmente, todos os seres humanos viveriam sem Estados-nação ou exércitos nacionais, para que não houvesse necessidade de defesa nacional. Mas não se pode esperar que esse feliz estado de coisas aconteça de uma só vez; devemos assumir um período de transição em que uma sociedade anarquista coexista com sociedades dominadas pelo Estado. Os dois tipos de sociedade poderiam coexistir, ou uma inevitavelmente sobrepujaria a outra? Uma suposição natural é que, se um país tiver um exército mais poderoso que seus vizinhos ou todos os seus inimigos em potencial, então o país estará seguro, enquanto que se tiver nenhum exército ou um muito mais fraco, estará inseguro. Desse ponto de vista, uma sociedade anarquista parece enfrentar um problema óbvio. As forças militares modernas são extremamente poderosas e extremamente caras. Um único porta-aviões, por exemplo, custa cerca de US$ 4,5 bilhões, mais US$ 240 milhões por ano em manutenção.1 Em 2010, os Estados Unidos gastaram quase US$ 700 bilhões nas forças armadas. Para comparação, a empresa norte-americana mais lucrativa naquele ano, a Exxon Mobil, teve lucros de US$ 19 bilhões.2 É certo que os Estados Unidos são um país extremo, com 43% das despesas militares do mundo inteiro.3 No entanto, a maioria dos países gasta centenas de milhões ou bilhões de dólares em suas forças militares todos os anos. É difícil imaginar qualquer organização não-governamental competindo com um governo nessa arena – em parte porque nenhum outro tipo de organização tem o tipo de recursos à sua disposição como um governo que pode exigir e em parte porque a defesa militar é um bem público cuja provisão, na ausência 1

U.S. Navy 2009; Birkler et al. 1998, 75. CNN Money 2012. 3 Stockholm International Peace Research Institute 2012. 2

273

12. Guerra e Defesa da Sociedade

274

de algum mecanismo coercitivo, aparentemente exigiria sacrifício altruísta por parte daqueles que pagam por isso. Como resultado, parece improvável que uma sociedade anarquista possa manter algo parecido com as forças militares típicas dos governos modernos. Por essas razões, os membros de uma sociedade anarquista não podem esperar derrotar um exército governamental em combate aberto, nem poderiam, como os governos costumam fazer, travar uma guerra agressiva contra outro país. Mas o foco no poder militar relativo pode ser mal direcionado, por duas razões. Primeiro, os requisitos para uma defesa efetiva podem ser mais modestos que os requisitos para uma agressão efetiva, e os gastos militares da maioria dos governos modernos podem ser muito maiores do que uma defesa exige. Segundo, como no caso das relações interpessoais, a estratégia de evitar conflitos armados pode ser mais importante do que a tentativa de vencer conflitos armados. Meu objetivo a seguir não será mostrar que uma sociedade anarquista poderia sobreviver em todo e qualquer clima político. Meu objetivo será mostrar que uma sociedade anarquista poderia sobreviver em algumas condições realistas, condições que são obtidas em algumas partes do mundo ou que se poderia razoavelmente esperar obter no futuro. É de se esperar que também haverá muitas outras condições realistas sob as quais um sistema anarquista não sobreviveria.

12.2

Defesa não-governamental

12.2.1

Guerra de guerrilha

A caracterização acima do problema de defesa sugere que a defesa bem-sucedida requer poder militar comparável ou maior que o oponente. No entanto, os guerrilheiros têm provado o contrário sobre essa suposta exigência de vitória militar em vários conflitos do século XX, durante os quais forças militares avançadas foram derrotadas por oponentes muito mais fracos. O caso paradigmático é o do Vietnã, que expulsou os colonialistas franceses em 1954. Os Estados Unidos assumiram a responsabilidade de combater a disseminação do comunismo, apoiando o governo anticomunista e autoritário do Vietnã do Sul em sua disputa contra o governo comunista do Vietnã do Norte e os insurgentes comunistas no Vietnã do Sul. O envolvimento americano começou com conselheiros militares, mas se transformou em guerra direta em meados do final da década de 1960, quando centenas de milhares de tropas americanas se comprometeram a combater os insurgentes vietcongues no sul.4 Em termos de recursos militares e econômicos, os Estados Unidos eram muito superiores aos 4

Vigésimo Quinto Batalhão de Aviação n.d.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

275

vietcongues e, ainda assim, ano após ano, as forças americanas se mostraram incapazes de subjugar seus oponentes, até que os Estados Unidos finalmente reconheceram a derrota e retiraram todas as forças do país em 1973. A nação mais poderosa do mundo havia sido derrotada pelos rebeldes de uma pequena nação do Terceiro Mundo. A derrota se deveu em parte à dificuldade inerente de combater as táticas de guerra de guerrilha e em parte ao fato de que os vietnamitas estavam muito mais profundamente comprometidos do que os americanos em controlar o destino do Vietnã.5 Este não foi um episódio isolado; vários conflitos do século XX forneceram lições semelhantes. A Grã-Bretanha governou a ilha da Irlanda até 1919, quando nacionalistas irlandeses declararam independência e começaram uma campanha de guerrilha contra os britânicos. Nos dois anos seguintes, os britânicos travaram uma guerra mal sucedida contra os rebeldes, culminando no tratado que estabeleceu o Estado Livre Irlandês em 1922.6 Os franceses governaram a Argélia antes de 1954, quando os nacionalistas argelinos começaram uma guerra de guerrilha pela independência, que continuou por vários anos. Apesar de alguns sucessos militares, os franceses finalmente não tinham o grau de comprometimento dos rebeldes, e o presidente francês Charles de Gaulle concordou em submeter a questão da independência aos votos populares em 1961 e 1962, resultando na independência da Argélia em 1962.7 Em 1979, a União Soviética enviou forças militares ao Afeganistão para defender o governo comunista de lá contra os guerrilheiros mujahideen. Nos nove anos seguintes, os soviéticos foram incapazes de prevalecer contra os mujahideen. Os soviéticos desistiram e se retiraram em 1988. O governo afegão caiu posteriormente para os rebeldes em 1992.8 Em cada um desses casos, os rebeldes estavam lutando em defesa de sua terra natal contra o que viam como agressores estrangeiros. Nos casos do Vietnã e do Afeganistão, os guerrilheiros também tiveram apoio de governos estrangeiros. Mas, mesmo tendo em conta esse apoio, os guerrilheiros eram muito mais fracos que seus oponentes pelas medidas tradicionais em cada um desses conflitos. Os Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e União Soviética foram quatro das nações mais poderosas da história mundial. Portanto, se eles puderam ser derrotados por guerrilheiros lutando em defesa da sua terra natal, qualquer nação que contemple uma guerra de conquista nos tempos modernos deve antecipar enormes dificuldades no controle do território ocupado. Isso é ainda mais verdadeiro em territórios, como na maioria dos Estados Unidos atuais, onde uma grande 5

Para uma descrição do conflito no Vietnã, consulte Herring 2002. Para uma descrição da guerra de independência da Irlanda, consulte Hopkinson 2002. 7 Para um relato da revolta da Argélia, ver Horne 1987. 8 Para uma descrição do conflito soviético-afegão, consulte Maley 2009. 6

12. Guerra e Defesa da Sociedade

276

porcentagem da média de cidadãos está armada para começar.9

12.2.2

A dificuldade de conquistar um território não governado

Sob um aspecto, conquistar uma sociedade anarquista seria mais difícil do que conquistar um Estado-nação. Para conquistar um território que já é governado, o agressor deve convencer o governo existente a se render, o que geralmente pode ser feito atacando ativos militares fixos do governo ou matando membros suficientes da população. Quando o governo se render, o aparato desse mesmo governo poderá ser cooptado para controlar a sociedade em nome de seus novos governantes. Por outro lado, a tarefa de assumir o controle de uma sociedade não-governada é mais complexa. Na ausência de qualquer estrutura de autoridade central, a sociedade deve ser conquistada um bairro de cada vez. Para controlar cada bairro, o agressor precisará posicionar tropas no bairro ou contratar o equivalente à polícia da população local. É provável que qualquer uma das opções seja cara e, em ambos os casos, os responsáveis pela imposição dos conquistadores provavelmente serão alvos frequentes de ataques de guerrilha. Além disso, se o Estado conquistador desejar, em última análise, governar o povo conquistado, precisará estabelecer todo o aparato do governo. Um agressor determinado e rico poderia, no entanto, estabelecer governo sobre uma sociedade inicialmente não governada. Mas a tarefa de fazer isso provavelmente será mais cara e demorada do que a de dominar uma sociedade que já tem um governo, mas tem um exército fraco. Como existem muitas sociedades que satisfazem a última descrição, uma sociedade anarquista provavelmente não será o alvo mais atraente para um regime expansionista.

12.2.3

Resistência não-violenta

A priori, pode parecer que a força só pode ser combatida com maior força. Como os governos comandam maior poder coercitivo do que qualquer outro agente, pode parecer que a única defesa eficaz contra um governo é outro governo. No entanto, vários episódios históricos ao longo do século passado revelaram a surpreendente eficácia de métodos não-violentos de resistência à tirania e à injustiça, demonstrando que mesmo quando a injustiça é coercivamente imposta, a violência não é a única, e talvez nem a solução mais eficaz. O caso mais conhecido é o da luta indiana pela independência da Grã-Bretanha, liderada por Mohandas Gandhi. As táticas de Gandhi incluíam greves de fome; 9

Estima-se que 47% das famílias americanas possuem armas de fogo (Saad 2011), e o país contém mais de 200 milhões de armas particulares, quase um terço do suprimento total de armas do mundo (Reuters 2007b).

12. Guerra e Defesa da Sociedade

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marchas e manifestações; boicotes a mercadorias, escolas e tribunais britânicos; desobediência civil, incluindo recusa de pagar impostos; greves trabalhistas; e ostracismo social dos indianos que colaboravam com os britânicos. Embora a independência indiana estivesse demorando muito tempo, acabou sendo conquistada com um mínimo de derramamento de sangue (em relação aos casos discutidos na Seção 12.2.1), graças em grande parte aos esforços do Mahatma. Isso ocorre apesar do fato dos britânicos, pelo menos no início, demonstrarem uma disposição consideravelmente maior de recorrer à violência do que os seguidores de Gandhi.10 Outro caso bem conhecido é o do movimento americano pelos direitos civis das décadas de 1950 e 1960. Sob a liderança de Martin Luther King Jr. e outros, o movimento se baseou em táticas não-violentas como protestos, boicotes e marchas. Ativistas de direitos civis frequentemente enfrentavam violência nas mãos da polícia local, do Ku Klux Klan e de outros oponentes da integração racial. Milhares de ativistas foram presos, muitos foram espancados e vários líderes de direitos civis, incluindo o Dr. King, foram assassinados. Apesar disso, o movimento permaneceu predominantemente não-violento e, finalmente, triunfou sobre seus oponentes mais violentos, vendo a aprovação da maior legislação de direitos civis em meados da década de 1960, juntamente com mudanças drásticas na cultura e na sociedade americanas.11 No final do século XX, várias nações, incluindo as repúblicas soviéticas e os países satélites da Europa Oriental, alcançaram a independência da União Soviética por meios predominantemente não-violentos (com exceção da Romênia, onde a transição foi mais violenta do que nas outras nações). O processo começou na Polônia em 1980, quando os trabalhadores formaram um sindicato nacional conhecido como Solidariedade. O Solidariedade rapidamente se tornou uma ferramenta para defender reformas políticas e econômicas. O governo tentou esmagá-lo proibindo o sindicato e prendendo milhares de seus membros, mas o movimento persistiu. Eventualmente, o governo desistiu de eliminar o Solidariedade. O sindicato empunhava persistentemente a ferramenta não-violenta da greve trabalhista para tentar forçar reformas. Em 1989, o governo finalmente se curvou à pressão e iniciou negociações com representantes do Solidariedade, durante as quais o governo concordou em permitir eleições livres nas quais os candidatos do Solidariedade pudessem concorrer com alguns dos candidatos comunistas. Embora as pesquisas previssem vitória para os comunistas, no evento o partido comunista sofreu uma derrota esmagadora, perdendo cada assento que estava disponível na legislatura. Outras derrotas estavam por vir, libertando a 10 11

Para uma descrição do movimento de independência da Índia, ver Sarkar 1988. Para uma descrição do movimento americano pelos direitos civis, ver Williams 1987.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

278

Polônia do domínio comunista.12 Em agosto de 1991, comunistas de linha dura na União Soviética, tentando deter a maré da reforma iniciada pelo presidente Gorbachev, fizeram Gorbachev prisioneiro e lançaram um golpe de Estado. Boris Yeltsin, então presidente da Rússia, enfrentou os líderes do golpe em Moscou com a ajuda de dezenas de milhares de manifestantes civis que se reuniram ao seu redor na Casa Branca Russa. O golpe fracassou, devido em parte ao apoio civil dedicado a Yeltsin, em parte à opinião dividida entre os militares e em parte à recusa das forças especiais soviéticas em executar ordens para atacar a Casa Branca. Logo após o golpe fracassado, embora Gorbachev tenha sido nominalmente restaurado ao poder, a União Soviética se desfez, à medida que os Estados membros (aqueles que ainda não o haviam feito) declaravam independência. Tudo isso ocorreu, surpreendentemente, com um mínimo de derramamento de sangue. No caso da Estônia, a independência foi alcançada sem derramamento de sangue.13 Mais recentemente, o antigo presidente egípcio Hosni Mubarak foi expulso do cargo como resultado de um movimento de protesto predominantemente pacífico. Por 30 anos, Mubarak liderou um regime corrupto e ditatorial no Egito, até que os manifestantes, enfurecidos pela recente brutalidade policial e encorajados pela revolução tunisiana de 2010–11, saíram às ruas no início de 2011 para exigir a renúncia de seu governante. Os protestos foram tão generalizados que Mubarak logo deixou o cargo, muitos outros membros de seu governo renunciaram ou foram demitidos, e a maioria das outras demandas de manifestantes foram atendidas. As eleições parlamentares foram realizadas a partir de novembro, com a eleição presidencial marcada para 2012. Até o momento em que este artigo foi escrito, o futuro do Egito permanece incerto; mesmo assim,o súbito colapso de uma administração que durou 30 anos é um testemunho do poder da resistência não-violenta. Prima facie, episódios históricos como esses podem parecer intrigantes. Como pode um governo nacional, com estoques maciços de armamentos e dezenas ou centenas de milhares de soldados, ser derrotado por civis desarmados e pacíficos? A explicação está na natureza do poder do governo. O presidente Mao Tsetung é frequentemente citado como tendo dito que “o poder político cresce do cano de uma arma”.14 Mas isso é apenas parte da verdade. O poder político vem fundamentalmente do povo sobre quem é exercido. Embora os governos exerçam enorme poder coercitivo, eles não possuem recursos suficientes para aplicar 12

Para um relato da luta polonesa, ver Mason 1996, 26-9, 51-4; Sanford 2002, pp. 50–5; BBC News 1999. 13 Ver Coleman 1996, capítulo 16, para uma breve descrição do golpe de agosto e do colapso da União Soviética. Sobre a recusa das forças especiais soviéticas em atacar a Casa Branca, ver Ebon 1994, 7-9. No caso da Estônia, ver Tusty e Tusty 2006. 14 Mao 1972, 61.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

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diretamente a força física a todos ou à maioria dos membros de uma sociedade. Devem ser seletivos, aplicando sua violência a um número relativamente pequeno de infratores da lei e contando com a grande maioria da população para se alinhar, seja por medo ou por crer na autoridade do governo. A maioria das pessoas deve obedecer à maioria dos comandos do governo; deve, no mínimo, trabalhar para fornecer bens materiais aos líderes, soldados e funcionários do governo, para um governo persistir. Quando uma injustiça é suficientemente grande e óbvia, muitas vezes surgem um grande número de manifestantes dispostos a desafiar o Estado, apesar da ameaça de repressão. Em resposta, os governos tirânicos geralmente recorrem à violência. No entanto, essa violência geralmente sai pela culatra, legitimando os manifestantes e deslegitimando o Estado aos olhos de agentes anteriormente não envolvidos. Isso pode ter o efeito de expandir, em vez de suprimir a resistência. Eventualmente, o Estado pode perder a fonte de seu poder, a cooperação da maioria dos cidadãos.15 No caso de um governo tentar controlar um território estrangeiro, seria necessário enviar enormes recursos domésticos para o território estrangeiro na tentativa de manter o controle, minando assim, um dos principais objetivos da busca de um território estrangeiro, o de lucrar com a extração de recursos. Isso não é para incentivar um otimismo poliana sobre ações não-violentas. A resistência não-violenta alcançou alguns sucessos dramáticos, mas também fracassou frequentemente, como no caso dos pequenos bolsões de resistência nãoviolenta aos nazistas na Alemanha ou aos protestos de 1989 na China. O mesmo se aplica a todas as formas de resistência: a resistência violenta também falha frequentemente, e mesmo a resistência violenta de um governo (isto é, guerra) geralmente falha em alcançar seus objetivos. O que os episódios históricos que mencionei mostram é que a ideia de combater um governo coercitivo por meios não-violentos não é apenas um ideal ingênuo. De fato, essa forma de resistência costuma ser mais eficaz e quase sempre muito menos onerosa que a resistência violenta.

12.2.4

Conclusões

Nenhum dos casos históricos mencionados nesta seção apresenta uma sociedade anarquista que resiste a um Estado estrangeiro hostil. Isso ocorre principalmente porque existem muito poucas sociedades anarquistas e nenhuma seguindo o modelo anarcocapitalista. No entanto, como vimos, houve muitos casos de resistência bem-sucedida por parte dos cidadãos aos governos, incluindo governos impostos por Estados estrangeiros. O movimento de descolonização do século 15

Esse relato deriva levemente de Sharp 1990, cap. 2–3.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

280

XX mostra que é particularmente difícil para um Estado estrangeiro manter o controle de um território nos tempos modernos. Não há razão óbvia para que membros de uma sociedade anarquista não pudessem resistir aos agressores estrangeiros de maneira tão eficaz quanto membros de sociedades reais de fato resistiram a potências estrangeiras e tiranos domésticos no passado recente. Não há garantia de sucesso; uma anarquia pode ser assumida por um governo estrangeiro. Mas isso também se aplica às sociedades governadas – de fato, sociedades de todos os tipos conhecidos de governo foram assumidas por governos estrangeiros. Ninguém argumenta que isso demonstra que o governo é impraticável. O fato de que o mesmo destino possa acontecer em uma anarquia, portanto, não mostra que a anarquia seja impraticável. A anarquia seria impraticável se não houvesse meios de defesa plausíveis, mas a evidência é de que não é assim; uma sociedade não ficaria sem meios plausíveis de resistência apenas em virtude da falta de um exército governamental.

12.3

Evitando conflitos

Na última seção, discuti maneiras de resistir a uma potência estrangeira, uma vez que a sociedade foi dominada ou está sob ataque. Mas essa não é a melhor maneira de uma sociedade manter sua liberdade. A melhor maneira de uma sociedade manter sua liberdade é evitar conflitos violentos para começar. Para avaliar as perspectivas de evitar conflitos violentos entre sociedades, devemos primeiro identificar as causas mais prováveis de conflitos desse tipo. A melhor maneira de identificar as causas prováveis da guerra no futuro é examinar o que geralmente causou a guerra no passado. É concebível que as sociedades anarquistas possam se envolver na guerra por razões diferentes daquelas que levaram as sociedades controladas pelo governo à guerra; no entanto, a melhor evidência que temos sobre o motivo pelo qual uma sociedade, seja anarquista ou estatista, pode se envolver em guerra, não obstante, reside no registro histórico da guerra real. Portanto, começaremos com esse registro. Muitos teóricos que consideraram as causas da guerra tentaram identificar algum fator mais importante. A verdade, no entanto, é provavelmente mais complexa: vários fatores contribuem para o risco de guerra, sem que nenhum fator predomine em todos os casos.16 Aqui, reviso alguns dos fatores mais importantes. 16

Ver Sobek 2009, 2–3; Cashman e Robinson 2007, 3-4.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

12.3.1

281

Agressão humana natural

Alguns acreditam que os seres humanos são naturalmente agressivos e que essa agressão natural explica a propensão humana à guerra. A agressividade natural da humanidade às vezes é apoiada por argumentos da etologia ou da psicologia evolutiva.17 Uma forma extrema dessa tese (talvez não seja de fato sustentada por qualquer pensador proeminente)18 seria que a guerra frequente é inevitável por causa da agressão inerente à natureza humana. Esta tese é claramente falsa. O antropólogo Douglas Fry lista mais de setenta sociedades que não fazem guerra, principalmente tribos primitivas.19 Entre os Estados-nação modernos, a Suíça não lutou com outro país desde que o famoso princípio da neutralidade suíça foi formalmente estabelecido em 1815. Sua última guerra foi uma guerra civil em 1847; durou 25 dias e matou menos de 100 vidas.20 Gerações de suíços nunca conheceram a guerra, apesar de estarem cercados por países em guerra durante as duas guerras mundiais. Liechtenstein dissolveu seu exército em 1868 e também permaneceu em paz desde então. A Cidade do Vaticano nunca esteve em guerra. A Costa Rica aboliu suas forças armadas em 1948 e está em paz desde então. E apesar de toda a violência do século XX, o mundo como um todo experimentou um longo período de uma acentuada tendência de queda nos violentos conflitos entre Estados, sugerindo a possibilidade de novos declínios na taxa de produção de guerra.21 Uma tese mais moderada é que a natureza humana contém uma propensão à agressão que às vezes entra em erupção na guerra, talvez quando certos gatilhos ambientais ocorram.22 Essa tese parece suficientemente fraca e vaga que poucos poderiam objetar a ela (de fato, a tese geral pode simplesmente seguir a observação de que há guerras, juntamente com outros fatos triviais), embora exista espaço para opiniões divergentes sobre o quão difícil é para os seres humanos resistirem a se matarem. Esta tese moderada, no entanto, é de pouca utilidade para os propósitos atuais. Nosso objetivo é determinar se e como uma sociedade pode evitar a guerra. Se a natureza humana contém uma propensão à agressão, mas essa propensão só entra em guerra sob certas condições, devemos examinar as outras teorias das 17

Lorenz 1966, 42-3, capítulo 13; Wilson 2000, p. 254-5. Robert Sapolsky (em Fry 2007, prefácio, x) atribui a tese a Lorenz (1966). No entanto, Lorenz conclui seu livro com uma discussão de maneiras de evitar a guerra (1966, capítulo 14), chegando a prever que um dia o amor e a amizade abrangerão toda a humanidade (298–9). 19 Fry 2007, 17, 237–8. 20 Remak 1993, 14, 157. O princípio da neutralidade suíça foi escrito no Tratado de Paris de 1815, após a derrota de Napoleão Bonaparte, que já havia assumido a Suíça. 21 Cashman e Robinson 2007, 1; Gat 2006, 591; Pinker 2011. 22 Gat (2006, 39-41) assume essa posição. 18

12. Guerra e Defesa da Sociedade

282

causas da guerra para determinar quais são essas condições, pois isso parece ser a chave para evitar a guerra (antes de iniciar um programa de engenharia genética para eliminar nossas tendências agressivas).

12.3.2

Terra e recursos

Um dos motivos pelos quais os Estados entram em guerra é o propósito de apreender os recursos e o território uns dos outros.23 A Segunda Guerra Mundial foi iniciada pela invasão de Adolf Hitler na Polônia, motivada pelo desejo de controlar mais território (Lebensraum, como Hitler colocou). A Índia e o Paquistão lutam pelo controle do território da Caxemira desde que a Índia e o Paquistão conquistaram sua independência em 1947.24 A guerra Irã-Iraque foi travada em parte pelo controle do rio Shatt al-Arab, que constitui o principal acesso do Iraque ao Golfo Pérsico e é, portanto, de grande valor econômico para o Iraque. O Iraque também tentou dominar o Khuzestan, a província iraniana rica em petróleo que faz fronteira com Shatt al-Arab.25 A invasão posterior do Kuwait pelo Iraque em 1990 foi ainda mais claramente motivada economicamente, motivada em parte pelas queixas do Iraque por violação do Kuwait das cotas de petróleo da OPEP e em parte pelo puro valor da terra rica em petróleo do Kuwait.26 Se um desejo predatório pela terra e pelos recursos dos outros é a principal causa da guerra, a prevenção da guerra pode parecer quase impossível, independentemente de se ter um Estado-nação ou uma sociedade anarquista. Enquanto uma sociedade anarquista não pode iniciar uma guerra predatória, suas terras e recursos podem fazer com que ela se torne vítima de tais guerras. Essa conclusão pessimista, no entanto, é prematura. Nem todas as regiões do globo são igualmente propensas a conflitos de terra e recursos. Os conflitos de recursos ocorrem em áreas com concentrações extraordinariamente altas de recursos especialmente valiosos, como as áreas ricas em petróleo do Oriente Médio. Conflitos modernos sobre território geralmente ocorrem em um dentre um número limitado de regiões específicas de disputas territoriais de longa data, particularmente em áreas com um histórico daquilo que pode ser visto como ocupação injusta, áreas nas quais as fronteiras foram traçadas por potências estrangeiras e áreas contendo subpopulações religiosas ou étnicas grandes e mutuamente hostis. Assim, por exemplo, a província de Khuzestan contém subpopulações árabes e persas, e o Shatt al-Arab foi disputado por muito tempo 23

Gat (2006, 61-7, 409-14) considera isso a causa subjacente central da guerra. Cashman e Robinson 2007, 205, 216–23. 25 Cashman e Robinson 2007, 271-3. 26 Karsh 2002, 89-92. 24

12. Guerra e Defesa da Sociedade

283

entre o Iraque e o Irã.27 As tensões de longa data da Índia e do Paquistão, que irromperam periodicamente na guerra, remontam a 1947, quando os britânicos concordaram em deixar a região. No processo, os britânicos criaram os Estados da Índia e do Paquistão, mas falharam em estabelecer o alinhamento da Caxemira, que foi deixado para escolher em qual dos dois países se juntaria. A Caxemira tem uma maioria muçulmana, além de uma minoria substancial da população hindu. Também em 1947, as Nações Unidas adotaram um plano para dividir a Palestina, então um território ocupado pelos britânicos com grandes subpopulações judaicas e árabes, em um novo Estado judeu e um Estado árabe. Essa decisão levou à criação de Israel e iniciou o notório conflito árabe-israelense, que periodicamente explode em violência desde 1948. Essas observações nos permitem fazer algumas previsões sobre a estabilidade de qualquer futura sociedade anarquista. Se essa sociedade fosse criada por nações estrangeiras para a região em que estava localizada, se contivesse grandes grupos étnicos ou religiosos mutuamente hostis e se fosse criada em uma área com uma longa história de conflito, a sociedade anarquista provavelmente se mostrará instável. Estados próximos provavelmente transformariam a sociedade anarquista em um campo de batalha. O mesmo vale para qualquer tipo de sociedade, seja anarquista ou estatista. À luz de tais considerações, a anarquia é praticamente viável somente sob certas condições, condições que são obtidas em alguns lugares do mundo, mas não em todos. As primeiras sociedades anarquistas de sucesso precisarão ser (i) fundadas por movimentos locais e não impostos por nações estrangeiras, (ii) localizadas em regiões com histórias relativamente pacíficas, e (iii) ocupadas por pessoas com tensões raciais e religiosas mínimas. Sob tais condições, os anarquistas teriam grandes chances de evitar a guerra civil e a guerra com os Estados vizinhos.

12.3.3

Espirais de conflito e disputas entre governos

Raramente, se é que alguma vez, a guerra estourou por causa de uma disputa entre os povos de duas nações, ou entre o governo de uma nação e o povo de outra. O caso usual é que a guerra começa como resultado de uma disputa entre os governos de duas ou mais nações. Estudos em relações internacionais descobriram que o maior determinante do comportamento hostil de um Estado para outro é o comportamento hostil do segundo Estado para o primeiro.28 Um 27

Um tratado de 1975 havia estabelecido a fronteira entre os dois países no meio do rio. No entanto, Saddam Hussein, sentindo que o Iraque havia sido coagido a aceitar esse tratado, desejava retornar aos termos de um tratado anterior, de 1937, que havia estabelecido a fronteira na margem oriental do rio. 28 Cashman 1993, 165–72; Choucri e North 1975, 248–9, 254.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

284

padrão frequente é a espiral de conflitos: um Estado executa uma ação que outro Estado considera hostil. O segundo Estado responde com uma ação hostil própria. O primeiro Estado retalia com outro ato hostil. Essa série de ações e reações cria uma espiral de tensões crescentes. Em cada estágio, há um forte risco de que o nível de hostilidade aumente, seja por causa do aumento da raiva por parte dos líderes ou por causa de diferentes percepções, principalmente quando uma parte percebe sua própria ação como menos hostil que a outra parte percebe que é. A interação, portanto, corre o risco de aumentar até atingir o nível mais alto de hostilidade, o da guerra definitiva. Nem todas as guerras surgiram de disputas entre Estados; às vezes, um país realiza uma guerra puramente agressiva, na qual o comportamento anterior do governo do outro país é irrelevante. No entanto, isso é muito raro. Quase qualquer guerra, especialmente nos tempos modernos, pode ser usada para ilustrar a ideia de disputa entre governos como causa da guerra. A Primeira Guerra Mundial começou como resultado do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand da Áustria. Embora o assassinato não tenha sido oficialmente apoiado pelo governo sérvio, o governo austríaco acreditava (corretamente) que alguns funcionários do governo sérvio estavam envolvidos na conspiração. O conflito austro-sérvio se tornou a semente da guerra em geral. Alemanha, Rússia, França e Grã-Bretanha foram atraídos para o conflito por meio de alianças com outros participantes no conflito. O processo envolveu algumas espirais de conflito em rápida evolução nas quais, entre outras coisas, a mobilização militar de uma nação foi tomada como um sinal de intenções hostis, levando outras nações a mobilizar seus militares.29 A guerra Irã-Iraque, embora em parte uma guerra por território, também foi motivada por interações hostis anteriores entre os governos das duas nações. Até 1969, o Iraque possuía o rio Shatt al-Arab, até que o Irã decidiu unilateralmente mover a fronteira entre as duas nações da margem leste do rio para o meio do rio. O Iraque aceitou a mudança para evitar a guerra com o que era então um vizinho muito mais poderoso. Quando Khomeini assumiu o poder no Irã em 1979, ele começou a pedir aos muçulmanos xiitas no Iraque que derrubassem seu governo, assim como o próprio Khomeini havia feito no Irã. Isso desencadeou uma espiral de conflitos envolvendo esforços de ambos os governos para fomentar a rebelião nos países uns dos outros, levando à invasão do Iraque em 1980.30 Até a Segunda Guerra Mundial, o paradigma de uma guerra de conquista iniciada por um Estado predatório, também foi parcialmente causada pelo comportamento anterior de outros Estados. É amplamente reconhecido que as sementes da guerra foram plantadas 20 anos antes, quando o Tratado de Versalhes foi 29 30

Cashman e Robinson 2007, 55–68. Cashman e Robinson 2007, 271–3, 288–92.

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285

assinado em 1919.31 As condições punitivas e humilhantes do tratado, incluindo as enormes reparações de guerra que exigiam que a Alemanha pagasse aos vencedores da Primeira Guerra Mundial, causou um ressentimento generalizado e poderoso na Alemanha, ajudando a abrir o caminho para a ascensão de um demagogo que prometeu restaurar o orgulho alemão. Até os observadores britânicos na época da assinatura consideraram o tratado escandalosamente injusto para a Alemanha. John Maynard Keynes resumiu sua opinião sobre o Tratado de Versalhes assim: A política de reduzir a Alemanha à servidão por uma geração, de degradar a vida de milhões de seres humanos e de privar toda uma nação de felicidade deve ser abominável e detestável – abominável e detestável, mesmo que fosse possível, mesmo que enriquecesse nós mesmos, mesmo que não semeasse a decadência de toda a vida civilizada da Europa.32 Não estou sugerindo aqui que, ao iniciar a Segunda Guerra Mundial, Hitler estava simplesmente buscando vingança por Versalhes; O próprio Hitler foi mais motivado por um impulso megalomaníaco para controlar mais território, assim como o ódio de outras raças. Estou sugerindo, no entanto, que o ressentimento alemão sobre Versalhes permitiu a Hitler subir ao poder. Como podemos evitar os tipos de disputas entre governos que levam à guerra? Aqui está uma possibilidade: poderíamos eliminar nosso governo. Uma sociedade anarquista seria incapaz de ter o tipo de disputas ou interações hostis que mais frequentemente levaram à guerra, porque faltariam os agentes que as mantêm. Mesmo que alguns indivíduos privados da sociedade anarquista adotassem posições hostis em relação a um governo estrangeiro, seria muito improvável que isso levasse à guerra, pois os governos estrangeiros se sentem muito menos ameaçados por indivíduos hostis do que por governos hostis. Se eu, como indivíduo particular, convocar dissidentes no Iraque a derrubar o governo, o Iraque não invadirá meu país. Se eu declarar que meu objetivo é esmagar o governo russo, que me recuso a negociar com russos e que me recuso a falar com o governo russo, é muito menos provável que isso leve à guerra (ou a qualquer reação do governo russo) do que as mesmas ações empreendidas pelo governo dos EUA. Isso não quer dizer que a guerra que envolva uma sociedade anarquista seja impensável. É simplesmente dizer que é menos provável que uma sociedade anarquista se envolva em conflitos do que uma sociedade dominada pelo Estado. 31

Parker 1997, 2; Miller 2001, 20; Lindemann 2010, 68-70. Keynes 1920, 225. A opinião britânica da época estava amplamente de acordo com Keynes (Henig 1995, 50-2). 32

12. Guerra e Defesa da Sociedade

286

Enquanto o Estado se declara orgulhosamente nosso único grande protetor contra um mundo hostil, é esse mesmo protetor acima de tudo que torna o mundo hostil para começar.

12.3.4

Relações de poder

As nações geralmente disputam a posição do poder dominante em sua região ou no mundo. Mudanças nas relações de poder relativo entre as nações mais poderosas de uma região são particularmente perigosas. Quando o poder do país dominante está em declínio e o poder de outra nação está em ascensão, o poder em ascensão pode tentar tomar a posição dominante iniciando uma guerra com a nação dominante.33 Como alternativa, a nação dominante pode decidir que deve atacar o poder ascendente antes que este se torne muito poderoso, para impedir que esta nação ocupe a posição dominante.34 A Primeira Guerra Mundial foi interpretada por diferentes observadores como um exemplo de cada um desses padrões. Na primeira interpretação, a Grã-Bretanha era o poder dominante na Europa, a Alemanha o poder crescente e a Alemanha iniciou a guerra para desafiar o domínio britânico.35 Na segunda interpretação, a Alemanha era a potência dominante na Europa continental, a Rússia era a potência em ascensão e a Alemanha iniciou uma guerra com a Rússia antes que os russos pudessem se tornar poderosos demais.36 É certo que foi a invasão austríaca da Sérvia que iniciou mais diretamente a Primeira Guerra Mundial; A Áustria, no entanto, agiu com o encorajamento e prometeu o apoio militar da Alemanha, sem o qual teria medo de prosseguir, e as autoridades alemãs na época esperavam uma guerra com a Rússia.37 Interpretações semelhantes foram oferecidas na Segunda Guerra Mundial; mais uma vez, a Alemanha iniciou a guerra, seja para desafiar o domínio britânico38 ou para antecipar a ascensão da Rússia.39 A guerra Irã-Iraque dos anos 80 ilustra novamente o perigo de mudar as relações de poder. Inicialmente, o Irã era muito mais poderoso que o Iraque. É por isso que, quando o Irã reajustou unilateralmente a fronteira entre as duas nações em 1969, o Iraque aderiu ao acordo, em vez de entrar em guerra. Mas em 1980 o poder do Iraque havia aumentado, enquanto o do Irã havia declinado, 33

Organski 1968, 371. Copeland 2000, 4–5. 35 Organski 1968, 356–9. 36 Copeland 2000, 56-117. 37 Cashman e Robinson 2007, 30-6, 57. As evidências de Copeland (2000, 79-117) mostram como as autoridades alemãs manipularam a Áustria, a Rússia e a França na guerra. 38 Organski 1968, 357–8. 39 Copeland 2000, 118–45. 34

12. Guerra e Defesa da Sociedade

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levando as duas nações, em grosso modo, a uma certa paridade. Foi então que Saddam Hussein sentiu que poderia bancar uma guerra com o Irã. Um dos fatores que motivou a guerra foi provavelmente o desejo de Saddam Hussein de posicionar o Iraque como líder do mundo árabe e poder dominante na região.40 Novamente, uma resposta para o problema é eliminar o governo. O tipo de domínio que os Estados-nação sustentam é em grande parte uma questão de poder militar; é por isso que as nações pensaram em estabelecer ou manter o domínio através da vitória militar. Ao abolir seu governo, uma sociedade se afastaria da disputa pela posição dominante nesse sentido, por duas razões: primeiro, porque a sociedade não possuiria forças militares permanentes; segundo, porque a sociedade não possuiria autoridade central e, portanto, não se comportaria como um agente unitário. Haveria apenas um grande número de indivíduos, empresas, clubes particulares e assim por diante; é provável que nada disso seja considerado um candidato ao domínio junto aos Estados-nação. Como as guerras pelo domínio são normalmente travadas entre o Estado-nação dominante e um desafiante, não haveria razão para uma sociedade anarquista estar envolvida em uma guerra pelo domínio.

12.3.5

A paz democrática liberal

Entre os desenvolvimentos modernos mais importantes da teoria das relações internacionais está o surgimento da tese da paz democrática. Os estudiosos observaram que, embora as ditaduras frequentemente combatam outras ditaduras e as democracias muitas vezes lutem contra as ditaduras, as democracias quase nunca lutam com outras democracias.41 Kant previu esse fenômeno com base teórica em um ensaio de 1795, argumentando que as guerras tendem a ser caras para o povo da nações envolvidas na guerra e, assim, os eleitores tenderão a favorecer o tipo de líder que evita a guerra agressiva. As ditaduras são muito mais propensas a travar guerras agressivas porque as ditaduras não arcam pessoalmente com a maior parte dos custos da guerra.42 O argumento teórico está aberto a desafios. Como a maioria dos eleitores percebe que seus votos individuais não têm impacto real nas políticas de seu país, eles podem votar de forma ignorante ou irracional e podem apoiar líderes agressivos por razões emocionais.43 Alguns também contestam as evidências empíricas da paz democrática, citando uma série de alegadas exceções à regra: 40

Cashman e Robinson 2007, 278-81. Veja a declaração seminal de Babst (1972). Veja Gleditsch 1992 para uma breve revisão da literatura. 42 Kant 1957, 12–13. 43 Ver Seção 9.4.3. Gat (2006, 582-3) observa que massas belicosas em muitas sociedades levaram seus líderes à guerra. 41

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a Guerra de 1812 entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha; Primeira Guerra Mundial, durante a qual a Alemanha democrática lutou contra a França e a GrãBretanha; Segunda Guerra Mundial, durante a qual a Finlândia democrática se juntou às potências do Eixo; as guerras indo-paquistanesas de 1947 e 1999; e assim por diante. Apesar dessas críticas, há claramente um fenômeno importante ao redor de uma “paz democrática”. Embora a guerra entre democracias não seja inédita, continua a ser o caso, por qualquer motivo, que há muito menos guerras entre democracias do que se poderia esperar puramente da taxa geral de combate no mundo.44 Além disso, existe um grande grupo crescente de nações para as quais a guerra entre dois deles é, intuitivamente, quase impensável. Ninguém contempla seriamente a guerra entre os Estados Unidos e Canadá ou entre a Austrália e Nova Zelândia ou entre Inglaterra e França. Apesar das muitas guerras que assolaram a região nos séculos passados, hoje ninguém está preocupado com a guerra na Europa Ocidental. Há espaço para debate sobre por que essas nações são pacificamente inclinadas uma para a outra. Alguns dizem que é porque são democráticas. Outros atribuem a paz a um liberalismo político mais amplo.45 Outros citam os efeitos pacificadores do livre comércio, que cria interdependências entre empresas de diferentes países e torna a guerra entre nações mais cara para os dois lados.46 Outros apelam para os efeitos do desenvolvimento econômico; à medida que as sociedades atingem um certo nível de desenvolvimento econômico, torna-se mais fácil e eficiente adquirir recursos através do comércio do que do combate.47 Os membros de sociedades ricas têm menos a ganhar e mais a perder lutando.48 Finalmente, alguns apontam para uma grande mudança de escala nos valores morais aceitos em muitas sociedades, uma mudança na qual a guerra passou a ser vista como hedionda e imoral, em vez de gloriosa e honrosa.49 Essas explicações não precisam ser vistas como concorrentes; esses fatores podem funcionar em conjunto para promover a paz, e alguns podem explicar ou reforçar outros. Qualquer que seja a importância relativa dos vários fatores, há um certo tipo de sociedade que parece altamente improvável de travar guerras com outras sociedades do mesmo tipo. Esse tipo de sociedade é geralmente liberal, democrática e economicamente desenvolvida e possui baixas barreiras ao comércio e valores modernos e pacíficos. Devido à variedade de fatores aos quais a paz pode ser atribuída, “paz democrática” pode ser um nome impróprio; 44

Bremer 1992, 316, 328–30, 334–6; Russett e Oneal 2001, 108-11. Doyle 2010a; 2010b. 46 Domke 1988, capítulo 5. 47 Gartzke 2010. 48 Gat 2006, 587-97 49 Mueller 2004, 1–2, 32–40; Pinker 2011, capítulo 4. 45

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no entanto, por uma questão de brevidade, continuarei a empregar esse nome. Da mesma forma, continuarei a me referir a essas sociedades pacificamente inclinadas (entre si) como “democracias liberais”, embora isso possa ser uma descaracterização da categoria relevante. As observações anteriores sugerem um conjunto plausível de condições sob as quais uma sociedade anarquista evitaria a guerra. Primeiro, a sociedade deve estar localizada em uma região cercada por fortes democracias liberais. Isso tornaria altamente improvável que a sociedade fosse atacada por nações não liberais. Guerras entre nações distantes são raras em geral,50 e, nesse caso, um invasor teria que atravessar um dos Estados democráticos liberais. Segundo, a sociedade deve compartilhar as características das democracias liberais, além daquelas que inerentemente exigem governo. Deve ser rica; deve compartilhar valores amplamente liberais e ser amante da paz; e deveria possuir numerosas e fortes relações comerciais com seus vizinhos. Terceiro, a sociedade deve ser estabelecida com o consentimento – ou pelo menos sem a oposição – dos Estados liberais circundantes. Sob essas condições, é muito improvável que a sociedade sofra ataques de Estados estrangeiros. Essas condições são realistas? A primeira condição é certamente realista: grandes regiões do globo são controladas por democracias liberais, esses regimes geralmente parecem altamente estáveis e cada vez mais o globo está sob o controle de democracias liberais nos últimos dois séculos. Portanto, existem muitas regiões adequadas e muitas outras existirão no futuro. A segunda condição também é realista, embora não seja inevitável, desde que o anarcocapitalismo seja viável em outros aspectos. É claro que, se a anarquia degenerar em lutas e pilhagens universais, a sociedade anarquista não seria rica e não manteria fortes laços comerciais com seus vizinhos. Os argumentos dos capítulos anteriores sobre a paz interna e a estabilidade da ordem anarcocapitalista são, portanto, importantes também para estabelecer o potencial de relações pacíficas entre uma sociedade anarquista e seus vizinhos. Se esses argumentos estiverem corretos e se uma sociedade anarquista for iniciada por pessoas inicialmente ricas, liberais e amantes da paz, a sociedade continuará compartilhando essas características. É a terceira condição que seria a mais difícil de realizar. Como toda parte habitável da superfície da Terra é atualmente controlada pelos Estados, a sociedade anarquista aparentemente teria que ser fundada dentro do território de algum Estado. Isso parece improvável no momento, principalmente porque quase ninguém acredita no anarquismo. De fato, muito poucos ouviram falar da forma de anarquismo discutida neste livro. Isso sugere que o anarquismo não será adotado tão cedo. No entanto, afirmo que, caso fosse adotado, seria 50

Bremer 1992, 312–13, 327, 334–6.

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um sistema social bem-sucedido. Se o único obstáculo ao seu sucesso é que as pessoas se recusam a experimentá-lo, acho que isso não é obstáculo para sustentar que é o sistema social correto.

12.3.6

Se você deseja guerra, prepare-se para a guerra

Argumentei que uma sociedade anarquista poderia estar relativamente livre dos fatores que normalmente fazem com que os Estados se envolvam na guerra. Mas e se houvesse alguma característica exclusiva para as sociedades anarquistas que as levaria a se envolver na guerra? Essa característica não teria aparecido em nenhum dos estudos históricos das causas da guerra. Há uma diferença óbvia entre anarquias e Estados que parece relevante: quase todos os Estados mantêm exércitos permanentes, enquanto uma sociedade anarquista presumivelmente não teria exército permanente. Isso tornaria a sociedade anarquista mais propensa à guerra? Alguns pensadores no campo das relações internacionais (muitas vezes apelidados de “realistas”) tomam as relações de poder entre os Estados, especialmente a presença ou ausência de dissuasão, como os principais determinantes da guerra e da paz. Costuma-se dizer que, se alguém deseja a paz, deve se preparar para a guerra.51 Esses pensadores podem argumentar que uma sociedade anarquista seria incapaz de deter os agressores e, portanto, logo seria atacada. Outros pensadores mantêm uma posição quase oposta: os preparativos militares tornam a guerra mais provável do que menos. Uma razão é que os líderes que acreditam que sua nação está bem preparada para a guerra ou que se consideram comandantes de grandes forças militares podem se comportar de maneira mais agressiva nas interações entre Estados, provocando respostas mais agressivas de outros. Um segundo problema é que a manutenção de um exército permanente cria uma classe permanente na sociedade com interesse econômico em guerra – militares, fabricantes de armas e outros que negociam com militares – e esse “lobby de guerra” pode promover suspeitas a nações estrangeiras e apoiar líderes agressivos que têm maior probabilidade de iniciar ou escalar conflitos. Um terceiro problema é que, apesar da popularidade do ditado “se você deseja paz, prepare-se para a guerra”, países estrangeiros têm menos probabilidade de tomar seus preparativos de guerra como evidência de desejos pacíficos do que como evidência de intenções hostis. A suspeita e hostilidade gerada em nações estrangeiras aumentará a probabilidade de espirais de conflito que levam à guerra.52 51

63).

52

O ditado “Si vis pacem, para bellum” deriva do escritor romano do século IV Vegetius (2001, Bremer (1992, 318) discute esses argumentos.

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Conservadores e liberais diferem entre si sobre o argumento teórico mais plausível. Felizmente, não precisamos confiar apenas em sentimentos; podemos recorrer à evidência empírica. O argumento da dissuasão (deterrence) nos levaria a esperar duas coisas: primeiro, que Estados mais militarizados (grosso modo, Estados que gastam mais recursos em gastos militares per capita) têm menos probabilidade de se envolver em guerra. A condição mais segura deve ser aquela em que ambos os membros de um par de Estados são altamente militarizados, uma vez que, nesse caso, ambos os lados poderiam antecipar danos enormes da guerra. Por outro lado, se nenhum dos Estados é altamente militarizado, as consequências da guerra são relativamente baixas e nenhum dos lados enfrentaria uma dissuasão forte. Segundo, Estados com quase o mesmo poder devem ser menos propensos a entrar em guerra entre si do que Estados com um poder muito desigual. Quando dois Estados são quase iguais em poder, ambos sofrem sérias perdas com a guerra e, portanto, ambos enfrentam uma dissuasão forte, enquanto quando um Estado é muito mais poderoso que o outro, o Estado mais poderoso enfrentará pouca dissuasão. Não podemos estar absolutamente confiantes em nenhuma dessas previsões. Talvez os Estados com maior probabilidade de entrar em guerra também sejam, por esse motivo, mais propensos a fazer os preparativos para a guerra. E talvez Estados poderosos se abstenham de atacar seus vizinhos mais fracos porque seus vizinhos mais fracos simplesmente aderem a todas as demandas dos Estados poderosos. Essas possibilidades interfeririam nas previsões que sugeri. No entanto, parece que, em contrapartida, a descoberta de uma correlação inversa entre militarismo e guerra seria tomada pela maioria dos observadores como pelo menos uma evidência a favor da teoria de que a preparação militar impede a guerra, assim como a descoberta de uma relação inversa entre igualdade de poder e guerra. Inversamente, então, correlações positivas em cada um desses casos minariam a teoria de que a preparação militar impede a guerra. O cientista político Stuart Bremer analisou dados de todas as guerras entre 1816 e 1965. Entre outras coisas, descobriu que a militarização não teve efeito ou aumentou ligeiramente a probabilidade de guerra. Ele também descobriu que os Estados eram mais propensos a entrar em guerra quando eram aproximadamente iguais em poder e menos propensos a ir à guerra quando havia uma grande diferença de poder. Esses dois fatores – poder relativo e militarização – foram menos importantes que os fatores de democracia e desenvolvimento econômico, sugerindo que a ênfase dos “realistas” é equivocada.53 Outra maneira de testar a teoria de que a dissuasão militar é necessária para 53

Bremer 1992, 326, 334–8. Bremer observa que, depois de controlar outros fatores, o efeito da militarização é mínimo.

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uma sociedade estar segura contra invasões estrangeiras é examinar casos de sociedades que têm pouca ou nenhuma força militar. A teoria da dissuasão preveria que qualquer sociedade desse tipo seria rapidamente dominada por outro país, assim como uma sociedade anarquista seria. Atualmente, existem pelo menos quinze países sem forças militares, incluindo Andorra, Costa Rica, Estados Federados da Micronésia, Granada, Kiribati, Liechtenstein, Ilhas Marshall, Nauru, Palau, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Samoa, Ilhas Salomão, Tuvalu e Cidade do Vaticano.54 A maioria dessas nações têm, no entanto, permanecidas em paz por décadas. A maior dessas nações é a Costa Rica, cuja última guerra foi uma guerra civil em 1948. No ano seguinte, o país adotou uma Constituição que proíbe os militares. A Costa Rica está em paz desde então.55 Os defensores da necessidade de dissuasão podem tentar explicar esses casos de duas maneiras. Primeiro, cada uma dessas nações mantém uma força policial nacional, e talvez seja essa força policial que detenha os invasores. Dado que nenhuma dessas forças policiais poderia derrotar um exército tradicional, seu valor de dissuasão militar está aberto a perguntas. Mas se fornecem dissuasão suficiente contra a invasão, as agências privadas de proteção e os cidadãos armados comuns em uma sociedade anarquista devem também fornecer uma dissuasão comparável. Segundo, se qualquer uma dessas nações fosse invadida, algum outro Estado poderia vir para defendê-la. Em muitos, mas não em todos os casos, esses países desmilitarizados têm entendimentos com nações mais poderosas, segundo as quais as nações mais poderosas são responsáveis por sua defesa. Mesmo sem qualquer acordo, há uma boa chance de que alguma outra nação intervenha para impedir uma invasão hostil. Os Estados Unidos, por exemplo, têm uma história de intervenção em muitas partes do mundo, incluindo uma invasão de Granada em 1983, na qual as forças americanas derrubaram um golpe militar marxista e restauraram o governo democrático.56 Se, portanto, Granada foi invadida por um nação estrangeira, parece provável que os EUA voltem a intervir. O mesmo vale para outras pequenas nações da região, como Costa Rica, Santa Lúcia e São Vicente e Granadinas. Da mesma forma, no caso (altamente improvável) de alguma outra nação atacar a Cidade do Vaticano, os militares italianos, sem dúvida, interviriam; Andorra provavelmente poderia contar com proteção francesa ou espanhola; Nauru provavelmente seria defendida pela Austrália. 54

Agência Central de Inteligência dos EUA 2011. A Wikipedia lista cinco países adicionais com “sem exército permanente, mas [. . . ] forças militares limitadas”: Haiti, Islândia, Maurício, Mônaco e Panamá, todos listados pela CIA como “sem forças militares regulares”. 55 Departamento de Estado dos EUA 2011. 56 Agência Central de Inteligência dos EUA em 2011.

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Isso levanta algumas questões teóricas. Por que a nação maior defenderia a nação pequena e desmilitarizada nesses casos? Por que, por exemplo, os Estados Unidos defenderam Granada? Granada não tem meios de obrigar os EUA a ajudá-los, nem pode se dar ao luxo de pagar pelos EUA pelo serviço (nem os EUA pediriam que fizesse isso). Uma razão parece ser que os Estados Unidos se consideram a polícia do Caribe (e, em menor grau, do mundo). Os líderes americanos podem se dar ao luxo de agir de maneira consistente com esta imagem, porque os eleitores americanos geralmente se sentem à vontade com essa imagem do papel de seu país, desde que as intervenções militares dos EUA não sejam muito longas ou caras. Outro fator é que o governo dos EUA não gostaria de ver outro governo agressivo ganhar influência na região. Quando os Estados Unidos invadiram Granada em 1983, foi parcialmente para impedir que a ilha fosse controlada por comunistas amigos de Fidel Castro, de Cuba. Uma segunda questão teórica é ainda mais nítida para os “realistas”: o que protege Granada dos Estados Unidos? Por que os EUA não dominaram a ilha e a administram como uma colônia? Aqueles que procuram explicar as relações internacionais em termos de relações de poder e que enfatizam a dissuasão como uma condição necessária para a segurança devem ter dificuldade em explicar o gozo contínuo da paz e da independência de Granada e outras nações indefesas. Aqui está uma explicação plausível (não-realista). Se os líderes americanos lançassem uma dominação hostil de Granada, a ação receberia imediatamente publicidade extremamente negativa. Granada seria amplamente percebida (corretamente) como uma nação inofensiva e indefesa, e a invasão seria, portanto, extremamente impopular entre os eleitores americanos. Os políticos dos EUA, embora talvez estejam felizes em ignorar os desejos da população quando ninguém está assistindo (o que quase sempre acontece), geralmente temem desafiar a opinião dos eleitores em casos de alto nível, principalmente quando há tão pouco a ganhar quanto seria possível neste caso. Qualquer invasão militar deve ser notória, de modo que os líderes relutam em atacar nações consideradas inofensivas. Não é apenas entre um punhado de nações literalmente indefesas do mundo que se encontram casos de segurança sem dissuasão militar. Além disso, existem muitas nações com forças militares muito mais fracas que as dos países vizinhos. Por exemplo, as forças armadas dos EUA mantêm aproximadamente 1,4 milhão de militares, enquanto as forças canadenses somam 68.000.57 Nenhuma consideração militar realista impede os Estados Unidos de assumir o Canadá. Considerando o número de pares de nações no mundo para o qual uma nação é muito mais poderosa que a outra e contrastando isso com o número muito pe57

Departamento de Defesa dos EUA 2010; Departamento Canadense de Defesa Nacional 2011.

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queno que realmente está em guerra, é preciso começar a duvidar da importância da dissuasão para explicar como a paz é mantida. Voltando à questão da anarquia, os estatistas serão rápidos em argumentar que a segurança das nações desmilitarizadas em discussão depende do poder e das intenções benevolentes de outros Estados, que devem proteger as nações fracas. Portanto, a segurança de uma sociedade realmente depende do governo, embora não necessariamente do própria governo dessa sociedade. Seja como for, a questão de interesse era se uma sociedade anarquista pode esperar estar segura contra a agressão estrangeira. Se uma sociedade pode ser segura devido ao caráter dos governos de outras nações, parece que a sociedade não precisa ter um governo próprio, e uma sociedade anarquista pode, portanto, ser segura. Uma sociedade anarquista pode depender da força e intenções benevolentes das democracias liberais próximas, da mesma maneira que muitos Estados existentes atualmente dependem. Mesmo que algumas sociedades anarquistas seguras pudessem ser estabelecidas, ainda se poderia perguntar se o sistema poderia servir como um ideal para o mundo como um todo. Esta questão será abordada no capítulo 13.

12.4

Evitando o terrorismo

Desde 2001, os americanos estão preocupados com a ameaça do terrorismo, e essa preocupação levou a uma expansão significativa dos poderes do governo central. Pode-se pensar que o governo é necessário para proteger as pessoas dessa ameaça.

12.4.1

A ameaça terrorista

Entre 1968 e 2009 (os anos para os quais havia dados disponíveis), ataques terroristas mataram cerca de 3.200 vidas nos Estados Unidos (quase todas em 11 de setembro de 2001) e 64.000 vidas em todo o mundo.58 Durante o mesmo período, assassinos não-terroristas nos Estados Unidos tiraram 802.000 vidas.59 O número total de mortes americanas por todas as causas durante esse período foi próximo a 91 milhões.60 Assim, nos Estados Unidos, o terrorismo foi responsável por aproximadamente 0,4% dos assassinatos e 0,004% de todas as mortes. Esses 58

Todos os dados sobre fatalidades terroristas são da RAND Corporation (2011). Disaster Center 2011a. Concentro-me nas mortes americanas aqui porque estatísticas confiáveis dos EUA estão mais prontamente disponíveis do que as estatísticas mundiais. 60 Disaster Center 2011b. Os totais de óbitos nos anos não mostrados na tabela foram estimados com base nos totais de óbitos nos anos próximos. 59

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números inicialmente dificultam a visão do terrorismo como uma das ameaças mais graves enfrentadas pelos Estados Unidos ou pelo mundo. A única maneira pela qual alguém poderia ver o terrorismo como uma ameaça séria é, portanto, se alguém suspeitar que o terrorismo futuro será muitas vezes pior do que o terrorismo passado. Isso pode ser verdade se os terroristas tiverem o controle de armas nucleares ou biológicas. Não há maneira confiável de estimar as chances de tal ocorrência; no entanto, alguns especialistas no assunto fizeram avaliações alarmantes. Em 2005, o senador dos EUA Richard Lugar entrevistou 85 especialistas em não-proliferação e segurança nacional de todo o mundo em suas avaliações do risco de terrorismo envolvendo armas de destruição em massa (ADM). Em média, os entrevistados consideraram um ataque nuclear terrorista em algum lugar do mundo nos próximos dez anos como 29% provável e um grande ataque biológico com chances de 33%.61 Em 2008, a Comissão do Governo dos EUA para a Prevenção da Proliferação e Terrorismo de ADM considerou mais provável que um ataque terrorista com armas de destruição em massa ocorresse em algum lugar do mundo até 2013, com um ataque biológico sendo mais provável que um ataque nuclear.62 Essas avaliações devem ser feitas com um pé atrás, pois os especialistas em segurança nacional podem ter um viés para exagerar as ameaças à segurança nacional. Aqueles que estão mais predispostos a se preocupar com ameaças à segurança nacional têm maior probabilidade de se tornarem especialistas em segurança nacional. Muitos desses especialistas trabalham para governos, que tendem a lucrar com a percepção do público sobre sérias ameaças à segurança nacional. Mais importante ainda, as avaliações mencionadas no parágrafo anterior são suposições subjetivas, avaliações do tipo menos confiável e mais facilmente influenciado pelo viés.63 Essa falta de confiabilidade talvez se reflita no fato de que avaliações especializadas da probabilidade de terrorismo com armas 61

Lugar 2005, 14, 19. Comissão de Prevenção da Proliferação e Terrorismo das ADM 2008, xv. Para alertas igualmente terríveis, consulte Allison 2004, 15; Bunn 2006. 63 O método usual de avaliar a probabilidade de um evento envolve observar sua frequência em um grande número de tentativas. No presente caso, nenhuma instância do evento foi observada. Outra abordagem é observar a frequência de quase acidentes – casos em que o evento quase ocorreu. Não há casos conhecidos em que os terroristas tenham chegado muito perto de um grande ataque bem-sucedido com armas de destruição em massa; no entanto, houve numerosos casos em que planos terroristas de distribuição de agentes tóxicos foram frustrados e outros em que indivíduos ou grupos não autorizados foram apanhados com amostras de urânio altamente enriquecido (Cordesman 2005, 22-4). A maneira mais confiável de avaliar probabilidades pode ser estabelecer um mercado de apostas (consulte, por exemplo, www.intrade.com). O governo dos EUA considerou estabelecer um mercado de apostas em terrorismo, mas rejeitou a proposta por razões emocionais (CNN 2003). 62

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de destruição em massa abrangem todo 0 a 100 por cento.64 Especialistas que consideram detalhadamente as várias maneiras pelas quais uma conspiração terrorista pode falhar tendem a ver os riscos muito menores do que o indicado no parágrafo anterior.65 Embora não haja acordo sobre a probabilidade aproximada de um ataque terrorista com armas de destruição em massa, existe um consenso geral de que esse ataque teria consequências extremamente graves, começando com possivelmente centenas de milhares de mortes.66 Nos piores cenários apresentados por especialistas, as fatalidades seriam equivalente a algumas décadas de assassinatos comuns nos Estados Unidos. Embora essa não seja uma ameaça existencial para a sociedade americana ou qualquer outra, continua sendo uma preocupação séria.

12.4.2

As raízes do terrorismo

Por que ocorrem ataques terroristas? Há duas visões amplas sobre as motivações da maioria dos terroristas. A primeira é a imagem do “choque de civilizações”, expressa de forma eloquente pelo presidente dos EUA George W. Bush em 2001: Eles odeiam o que veem aqui nesta Câmara: um governo eleito democraticamente. [. . . ] Eles odeiam nossas liberdades: nossa liberdade de religião, nossa liberdade de expressão, nossa liberdade de votar, reunir e discordar um dos outros. [. . . ] Esses terroristas matam não apenas para acabar com vidas, mas para perturbar e terminar um modo de vida. [. . . ] é a luta da civilização. Essa é a luta de todos que acreditam no progresso e no pluralismo, na tolerância e na liberdade.67 Nesta visão, os terroristas são movidos por objetivos fundamentalmente maus, e os EUA são alvo por causa de suas virtudes mais notáveis. Nenhuma mudança na política do governo, com exceção da conversão à teocracia islâmica, poderia ter um impacto significativo nas motivações terroristas. Outra visão atribui o sentimento antiamericano a políticas externas específicas dos EUA, particularmente no Oriente Médio. Entre essas políticas estão as 64

Lugar 2005, 14, 19. Veja Levi 2007. Embora Levi se recuse a oferecer uma avaliação numérica do risco de terrorismo nuclear, a impressão que ele deixa é muito menos alarmante do que a deixada pelos autores anteriores. No entanto, Levi aconselha fortemente a favor do fortalecimento das defesas contra o terrorismo nuclear. 66 Levi (2007, 38) menciona a possibilidade de 100.000 mortes devido a um ataque nuclear terrorista em Nova York; Allison (2004, 4) menciona a possibilidade de meio milhão de mortes imediatas do mesmo evento, além de centenas de milhares mais nas horas seguintes. 67 Bush 2001. 65

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sanções patrocinadas pelos EUA contra o Iraque após a primeira guerra do Golfo Pérsico; Apoio dos EUA a Israel no que alguns descrevem como opressão dos palestinos; a presença contínua de tropas americanas em países muçulmanos, particularmente na Península Arábica desde a primeira guerra do Golfo; as recentes invasões e ocupações do Afeganistão e Iraque, com a consequente morte de centenas de milhares de cidadãos desses países; e o abuso de prisioneiros em Abu Ghraib e em outros lugares. Argumenta-se que cada uma dessas ações contribuíram para uma maré de ressentimento em relação aos EUA, particularmente nos países muçulmanos, permitindo assim que grupos terroristas recrutem membros adicionais.68 Qual dessas concepções básicas é mais precisa? As evidências pesam fortemente a favor da teoria da “retaliação da política externa”. Para começar, as declarações reais de Bin Laden e de outros líderes terroristas ao apelar à jihad contra os EUA citam políticas estrangeiras americanas específicas como justificativa, principalmente a presença de tropas americanas na “terra dos dois Lugares Sagrados” (Península Arábica), O apoio dos EUA a Israel e a guerra e as sanções econômicas dos EUA contra o Iraque.69 Eles não citam os valores democráticos liberais dos EUA, nem visam democracias liberais sem envolvimento no Oriente Médio. Presumivelmente, esses líderes terroristas estariam em uma posição melhor para conhecer suas próprias motivações do que oficiais do governo americano ou outros observadores distantes, e seria do interesse deles revelar essas motivações se esperavam coagir as nações a aceitar seus desejos. Por outro lado, as avaliações de funcionários do governo podem sofrer um viés na direção de descontar a responsabilidade do próprio governo por sentimentos terroristas, principalmente se os funcionários não tiverem a intenção de mudar as políticas que podem ter levado a esses sentimentos. Especialistas que estudam motivações terroristas chegam a conclusões semelhantes. O antropólogo Scott Atran passou anos estudando terroristas em vários países ao redor do mundo, entrando em suas comunidades e entrevistando terroristas. Atran descobriu que terroristas recentes são movidos por indignação moral com a violência praticada por americanos contra muçulmanos no Iraque, Afeganistão e em outros lugares. Ele descobriu que os jihadistas não são movidos pelo ódio pela liberdade e pela democracia, como afirmou Bush, nem são “niilistas”, como afirmou Barack Obama.70 Eles se consideram heróis corajosos 68

Ver, por exemplo, Hornberger 2006. bin Laden 1996; Bin Laden et al. 1998. 70 Veja Obama 2004, x: “Também não pretendo entender o niilismo severo que levou os terroristas naquele dia e que ainda deixa seus irmãos. Meus poderes de empatia, minha capacidade de alcançar o coração de outra pessoa não podem penetrar nos olhares vazios daqueles que matariam inocentes com satisfação abstrata e serena.” 69

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enfrentando um enorme opressor. Como disse um membro do Politburo do Hamas: George Washington estava lutando contra as forças armadas mais fortes do mundo, além de qualquer razão. É isso que estamos fazendo. Exatamente.71 Robert Pape e James Feldman estudaram todos os 2.200 ataques terroristas suicidas que ocorreram em todo o mundo entre 1980 e 2009. Descobriram que esses ataques não eram principalmente motivados por diferenças religiosas. Em vez disso, quase todos os ataques foram motivados pelo desejo de acabar com a ocupação militar estrangeira de um território que os terroristas valorizavam. Essa foi a constante entre grupos terroristas seculares e religiosos e em todos os países, da Cisjordânia ao Sri Lanka, Líbano e Chechênia.72 Isso inclui os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 que levaram os americanos horrorizados a perguntar: “Por que eles nos odeiam?” Aqui estão as palavras de três dos sequestradores do 11 de setembro: Abu al-Jaraah al-Ghamidi: O que está acontecendo nos países muçulmanos hoje? Ocupação flagrante sobre a qual não há dúvida. [. . . ] Não há dever mais obrigatório após a fé do que repelir isso. Abu Mus’ab Walid al-Shehri: Repelir os americanos de ocupar a terra dos Dois Santuários [. . . ] é a obrigação mais obrigatória. Hamza al-Ghamdi: E digo aos EUA: se desejam que seus exércitos e seu povo estejam em segurança, devem retirar todas as suas forças das terras muçulmanas e se afastar de todos os nossos países.73 Não é preciso dizer que o esforço para entender as motivações dos terroristas não implica simpatia pelos terroristas, nem envolve qualquer tentativa de desviar a culpa moral das ações terroristas dos próprios terroristas. Uma compreensão precisa das motivações terroristas, livre de preconceitos egoístas, é simplesmente o primeiro passo para entender como evitar ataques terroristas no futuro.

12.4.3

Soluções violentas e não-violentas

Como o problema do terrorismo deve ser tratado? A maioria dos governos se concentra na estratégia de fiscalização: rastrear e capturar ou matar o maior número possível de terroristas. Espera-se que isso incapacite a maioria das pessoas que, de outra forma, cometeriam atos terroristas, além de dissuadir outras pessoas que poderiam considerar se tornar terroristas. Muitos terroristas foram 71

Atran 2010, 347. Ver Atran 2010, 53-4, 55-6, 114-15, 290, sobre motivações terroristas. Atran (2010, 4-5, 42-3) contesta as observações de Bush e Obama. 72 Pape e Feldman 2010, 9–10. 73 Dos vídeos dos mártires do 11 de Setembro, citados em Pape e Feldman 2010, 23.

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capturados ou mortos, e isso presumivelmente impediu diretamente muitos ataques terroristas que, de outra forma, teriam ocorrido. Ao mesmo tempo, existem razões para apreensão sobre a estratégia geral. É impossível capturar todos os terroristas, e até capturar uma grande porcentagem deles pode ser difícil e exigir grandes sacrifícios, tanto em termos materiais quanto em termos de liberdades civis. A aplicação provavelmente se tornará cada vez mais difícil no futuro, pois à medida que a sociedade avança econômica e tecnologicamente, cada vez mais pessoas terão acesso a ferramentas capazes de causar grande destruição. Os governos podem recorrer a métodos de aplicação cada vez mais draconianos. No entanto, esses métodos podem criar ressentimentos adicionais, levando mais pessoas a se tornarem terroristas; isso é mais provável se esses métodos incluírem tortura ou outro abuso de prisioneiros. Se o governo também continuar com as políticas que levaram ao sentimento terrorista, novos recrutas terroristas poderão continuar a aparecer regularmente, perpetuando um estado constante de conflito. De acordo com uma pesquisa da Gallup, 7% dos 1,6 bilhões de muçulmanos do mundo consideraram os ataques do 11 de setembro completamente justificados, enquanto 37% consideraram os ataques completamente, em grande parte ou em parte – justificado.74 Com um número tão grande de pessoas abrigando algumas simpatia pelo terrorismo, parece que uma estratégia eficaz deve se concentrar mais em reduzir essa maré de indignação, em vez de implantar cada vez mais violência para destruir o inimigo. Quando confrontada com oponentes de uma comunidade que contém dezenas ou centenas de milhões de pessoas ultrajadas, é mais provável que uma estratégia puramente combativa produza um ciclo interminável de derramamento de sangue que será trágico para os dois lados. A abordagem ideal para o terrorismo seria agir de alguma maneira para que ninguém, ou no mínimo muito poucas pessoas, tenha o tipo de raiva que as motivasse a cometer ataques terroristas, para começar. Se os ataques terroristas são motivados por pura maldade ou por ódio à liberdade, isso não seria possível. Mas se, como argumentei, o terrorismo é uma retaliação por políticas governamentais específicas, o problema pode ser resolvido com a eliminação dessas políticas. Uma sociedade anarquista seria muito mais segura do terrorismo do que uma sociedade dominada pelo governo, pois a sociedade anarquista não teria mecanismo para empreender os tipos de ações que normalmente motivam ataques terroristas. Os anarquistas não colocariam, por exemplo, tropas em solo estrangeiro, imporiam embargos econômicos a outros países ou invadiriam outros países. Obviamente, uma nação com um governo pode praticar uma política externa 74

Sobre os resultados da pesquisa, veja Atran 2010, pp. 57–8; Satloff 2008. Sobre a população muçulmana mundial, consulte Pew Research Center 2009.

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não-intervencionista e, assim, evitar se tornar um alvo do terrorismo. No entanto, deve-se ter em mente que a existência de um governo cria um risco contínuo e não trivial de que o governo assuma políticas que fazem com que seus próprios cidadãos se tornem alvos de ataques terroristas. A auto-imagem do governo, quase por sua própria natureza, é a de uma agência que atua para combater as ameaças à sociedade através da força. Assim, embora não seja inevitável, é natural que os governos reajam às ameaças percebidas de maneira agressiva que perpetua o ciclo de violência. As políticas democráticas são mais propensas a apoiar do que restringir o Estado assim que esse ciclo começar. Em um debate presidencial de 2011, o candidato republicano Rick Santorum recebeu aplausos da plateia por declarar que os Estados Unidos foram atacados em 2001 por causa do ódio terrorista por liberdade, oportunidade e seu “excepcionalismo americano”. O candidato rival Ron Paul respondeu citando as declarações reais da Al Qaeda como evidência de que as políticas externas dos EUA foram o motivo dos ataques. Paul recebeu vaias da plateia por suas observações.75 Essa evidência admitidamente anedótica sugere que as políticas democráticas tendem a preferir candidatos que atribuem ameaças ao puro mal dos inimigos da nação sobre candidatos que verdadeiramente atribuem hostilidade inimiga a políticas governamentais anteriores. Isso é um mau presságio para as perspectivas de resolução de conflitos sem derramamento de sangue terrível.

12.5

Os perigos da “segurança nacional”

12.5.1

O risco de agressão injusta

Suponha que eu desenvolva um plano para tornar minha casa segura contra assaltantes e outros invasores: plantarei minas terrestres no meu quintal. Claramente, seria bárbaro discutir essa proposta puramente em termos de quão bem ela promove a segurança de minha própria casa. Seria eticamente obrigado a considerar também questões como o que acontecerá se as crianças da vizinhança se desviarem para o meu gramado – mesmo que não sejam minhas crianças. Da mesma forma, qualquer sociedade é eticamente obrigada a considerar como seu aparato de segurança nacional afeta não apenas sua própria segurança, mas também a segurança de outros povos ao redor do mundo. Essa questão é particularmente apontada para os americanos, cujo aparato de “defesa” inclui mais de 700 bases militares em 39 países estrangeiros76 e esteve recentemente 75

CNN 2011. Perry 2008. militarybases.com relata que as forças dos EUA estão posicionadas em mais de 135 países em todo o mundo (http://militarybases.com/; acessado em 18 de outubro de 2011). 76

12. Guerra e Defesa da Sociedade

301

envolvido nos conflitos do Oriente Médio mencionados acima. Mas não são apenas os americanos que têm motivos de preocupação moral com as ações de seus governos; 27 países enviaram tropas para a guerra no Iraque, incluindo mais de 10.000 tropas britânicas.77 Alguém pode se perguntar se a agressividade recente dos governos americano e aliados é um acidente histórico ou se existe algo na natureza do governo que incentive esses resultados. A resposta é que, embora essa agressão esteja longe de ser inevitável, ela permanece um risco não trivial para qualquer sociedade que mantenha um governo em um ambiente geopolítico semelhante ao que existe atualmente. Enquanto existirem muitos países não democráticos no mundo, os países democráticos correm o risco de entrar em guerra com países não democráticos, particularmente aqueles que são vistos como estranhos pelas populações das nações democráticas. O próprio aparato de segurança nacional cria um interesse permanente na guerra. Os governos, particularmente seus ramos dedicados à segurança nacional, tendem a lucrar com um estado de guerra, assim como os contratados que vendem bens e serviços às forças armadas. Portanto, poderia-se esperar, no mínimo, que esses interesses tivessem uma percepção aguçada dos argumentos a favor da guerra em um determinado momento e uma percepção relativamente preguiçosa dos argumentos pela paz. Mas não são apenas os contratados militares e os membros do aparato de segurança nacional do governo que podem apoiar a guerra. Muitos cidadãos comuns, por um senso de patriotismo equivocado, por um desejo de projetar uma auto-imagem masculina ou por ignorância e mal-entendido, podem apoiar guerras agressivas. Embora essas falhas cognitivas e de caráter estejam presentes em qualquer população grande, é apenas em uma sociedade controlada pelo governo que eles provavelmente levarão à violência em larga escala, pois somente em uma sociedade controlada pelo governo há um aparato permanente que permite tais indivíduos provocar violência em larga escala a um custo mínimo para si mesmos, simplesmente comparecendo às urnas e votando em políticos agressivos. Mesmo que, por exemplo, a maioria dos americanos desejasse uma guerra com o Irã, dificilmente alguém consideraria pegar em armas e, como indivíduos particulares, voar para o Irã e atacá-lo. Somente através de um aparato governamental é provável que sua hostilidade leve à violência em massa. Como no caso das minas terrestres no meu gramado de casa, temos uma forte razão moral para eliminar nosso governo; ou seja, a ameaça que isso representa para pessoas inocentes em outras partes do mundo. 77

BBC News 2003.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

12.5.2

302

O risco de um desastre global

A espécie humana não é imortal. Com toda a probabilidade, um dia será extinta. Podemos esperar que este dia chegue num futuro distante, talvez milhões de anos. Mas devemos temer que isso aconteça muito mais cedo, talvez dentro de apenas centenas de anos. Nossa espécie sobreviveu por 200.000 anos até agora. Mas isso não é motivo para complacência; durante a maior parte desse tempo, não possuíamos nenhuma tecnologia plausivelmente capaz de nos extinguir. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, nós temos. Uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética poderia ter extinguido a espécie e, de qualquer forma, teria sido uma catástrofe do tipo que a humanidade nunca viu. Os Estados Unidos e a União Soviética conseguiram evitar essa guerra nas cruciais quatro décadas e meia desde o final da Segunda Guerra Mundial até o colapso da União Soviética. Pode-se considerar isso como um atestado da eficácia da dissuasão e da capacidade dos líderes nacionais de agir racionalmente quando as apostas são altas o suficiente. Mas, novamente, temos poucas razões para complacência. Os EUA e a União Soviética chegaram mais perto da guerra do que muitos imaginam. Durante a Crise de Mísseis Cubanos de 1962, o Presidente Kennedy pensou que as chances de uma guerra nuclear eram de aproximadamente uma em três.78 Em um ponto durante a crise, os navios da Marinha Americana lançavam acusações profundas sobre um submarino soviético, em um esforço para forçá-lo a superfície. Desconhecido para os americanos, o submarino estava armado com um torpedo nuclear. O capitão queria disparar o torpedo, mas Vasily Arkhipov, segundo em comando, conseguiu convencer o capitão a parar e subir o submarino à superfície.79 Esse incidente ilustra a fragilidade das barreiras à guerra entre Estados-nações rivais, mesmo quando os países opostos estão cientes de que qualquer guerra seria catastrófica. Se Vasily Arkhipov concordasse com seu capitão ou se um indivíduo mais agressivo estivesse no submarino no lugar de Arkhipov, o torpedo teria sido disparado e, com toda a probabilidade, uma guerra nuclear global teria ocorrido, com centenas de milhões, talvez bilhões, de baixas. Esse incidente deve nos dar uma pausa. Se o mundo chegou tão perto da guerra nuclear em 1962, poderia chegar novamente. As circunstâncias superficiais seriam diferentes. A data pode demorar décadas ou séculos no futuro. As nações envolvidas podem ser diferentes. No lugar das armas nucleares, os exércitos daquele dia podem estar armados com algumas armas ainda mais temíveis ainda não inventadas. Enquanto os exércitos habitarem um mundo tecnologicamente avançado, haverá armas de destruição em massa. E enquanto existirem armas 78 79

Blanton 1997, 93. Dobbs 2008, 302–3, 317.

12. Guerra e Defesa da Sociedade

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de destruição em massa, ainda existe a chance de serem usadas – se não sob as ordens explícitas de um líder nacional, e sob a autoridade de um comandante militar em campo. O uso de tais armas, por sua vez, gera o risco de uma rápida escalada para a guerra apocalíptica. Como essa ameaça está relacionada ao caso a favor ou contra o governo? O governo é a fonte de todas as armas de destruição em massa atualmente existentes. O governo dos EUA inventou armas nucleares e continua sendo a única organização a ter usado com raiva. Um punhado de governos nacionais, particularmente os governos dos EUA e da União Soviética, são responsáveis pela construção de todas as armas nucleares atualmente existentes. Se a história é um guia, as próximas armas de destruição em massa a serem inventadas quase certamente serão inventadas por algum governo nacional (provavelmente o governo dos EUA, cujo orçamento militar, até o momento da redação deste artigo, é responsável por 40% dos gastos militares do mundo inteiro) ) Qualquer que seja essa tecnologia, provavelmente representará uma ameaça ainda maior à sobrevivência da humanidade do que as armas nucleares. Assim, o aparato que inventamos para nos proteger contra a agressão estrangeira é, ele próprio, a principal fonte do maior perigo que a espécie humana já enfrentou.

12.6

Conclusão

Sem o aparato de segurança nacional do Estado – seus exércitos, agências de inteligência e assim por diante – como uma sociedade poderia estar protegida de ameaças estrangeiras, como governos estrangeiros hostis e organizações terroristas? Existem várias respostas plausíveis para isso. Primeiro, uma sociedade poderia ser defendida contra invasores estrangeiros por guerrilheiros. Vários episódios históricos recentes sugerem que os insurgentes nativos podem representar um problema extremamente sério, mesmo para os exércitos mais avançados e poderosos que procuram ocupar terras estrangeiras. Segundo, movimentos de resistência popular não-violentos muitas vezes se mostram altamente eficazes em convencer governos opressivos a dar liberdade às pessoas. Terceiro, é muito menos provável que uma sociedade não governada se envolva em conflitos violentos do que uma sociedade controlada pelo governo. A grande maioria das guerras é causada por disputas entre governos e todos ou quase todos os atos terroristas são realizados em represália às políticas governamentais. Quarto, uma sociedade anarquista pode ser estabelecida sob condições que tornam improvável a guerra. Desde que

12. Guerra e Defesa da Sociedade

304

i a sociedade seja estabelecida em uma região dominada por democracias liberais; ii a própria sociedade adote valores liberais; iii a sociedade mantenha fortes relações sociais e econômicas com seus vizinhos; iv a sociedade careça de grandes tensões religiosas ou étnicas internas; v a sociedade não esteja estabelecida em uma região de longa disputa territorial; vi a sociedade seja estabelecida através de um movimento local, em vez de ser imposta por potências estrangeiras, e; vii a sociedade seja estabelecida com o consentimento do Estado que anteriormente controlava o território. Então uma sociedade anarquista provavelmente estaria estável e livre de conflitos violentos com outras nações. As seis primeiras dessas condições (em conjunto) são totalmente realistas. Somente a sétima parece inatingível em um futuro próximo, principalmente porque poucas pessoas aceitam a teoria defendida neste livro. Por fim, é importante considerar o perigo que o próprio aparato de segurança nacional representa para o resto do mundo. Enquanto existir, o Estado tem um risco não trivial de cometer violência injusta contra outros, na forma de guerra agressiva, bem como um risco não trivial de desenvolver e usar armas de destruição em massa, que ameaçam a sobrevivência da espécie humana. Somos moral e prudentemente obrigados a minimizar esses riscos.

13 Da Democracia à Anarquia A anarquia pode ser desejável em teoria, mas é alcançável? Neste capítulo, argumento que o desenvolvimento eventual de uma ordem anarcocapitalista, embora não seja inevitável, não é impossível nem extremamente improvável.

13.1

Contra o viés do presente: as perspectivas de mudança radical

Podemos ficar tentados a concluir que a ascensão de um mundo anarcocapitalista é extremamente improvável ou impossível simplesmente com o argumento de que o anarcocapitalismo nunca foi realizado e é muito diferente do status quo. Argumento que devemos resistir a essa tentação. Três amplas observações contribuem para o meu otimismo. Primeiro, muitas mudanças radicais ocorreram na história da humanidade, incluindo grandes mudanças políticas e culturais. Segundo, o futuro provavelmente verá mudanças ainda mais rápidas do que no passado. Terceiro, algumas das mais importantes mudanças sociais de longo prazo estão em uma direção consistente com a eventual emergência do anarcocapitalismo. Para elaborar a primeira observação: o homo sapiens anatomicamente moderno surgiu há 200.000 anos. Nos primeiros 190.000 anos, não houve civilização, e os seres humanos viveram principalmente como caçadores-coletores nômades. Pouco mudou durante todo esse tempo. Um observador alienígena já teria desistido de ver qualquer coisa interessante. Mas, cerca de 10.000 anos atrás, os seres humanos começaram a mudança radical da sociedade primitiva para a civilização, que já abarcava quase toda a espécie. Durante a maior parte da história da civilização, a sociedade humana foi organizada de uma maneira que melhor poderia ser descrita como tirania – socie305

13. Da Democracia à Anarquia

306

Figura 13.1: Número de nações democráticas no mundo, 1800–2010

dades governadas por autocratas individuais ou pequenos grupos de aristocratas, com pouco respeito pelos direitos ou interesses dos cidadãos. A democracia fora tentada apenas esporadicamente e de maneira imperfeita. Porém, a partir de 200 anos atrás – depois de 9.800 anos de tirania – os seres humanos finalmente começaram um movimento determinado em direção à democracia, uma mudança que se acelerou no século XX e agora parece destinada a abranger toda a Terra (veja a Figura 13.1).1 Os seres humanos são incomuns entre os produtos da natureza – podem fazer a mesma coisa por milhares ou centenas de milhares de anos e depois mudar rapidamente para uma forma radicalmente nova de comportamento. A ascensão da civilização e a mudança da tirania para a democracia são exemplos de mudanças radicais na organização social humana possibilitadas pela inteligência humana. E muitas outras mudanças sociais e políticas dramáticas ocorreram na história registrada: a abolição da escravidão, a disseminação do sufrágio feminino, de1

Center for Systemic Peace 2011. Conto como democracias todos os países com pontuação igual ou superior a 6 na variável polity2 no conjunto de dados Polity IV. Observe que o conjunto de dados inclui apenas países com populações de pelo menos 500.000 e que os dados são escassos antes de 1900. No entanto, a tendência para a democracia é dramática e inegável.

13. Da Democracia à Anarquia

307

clínios extremos nas taxas de violência, o surgimento e queda do comunismo, aumento da globalização e assim por diante. Seria tolice supor que mudanças sociais radicais pararam. Na verdade, o ritmo da mudança social parece estar se acelerando. Nos últimos 20 anos, por exemplo, a democracia se espalhou para tantos países novos quanto alcançou nos 200 anos anteriores. O desenvolvimento econômico e tecnológico parece ser exponencial. Novas tecnologias da informação e a crescente interconexão do mundo parecem possibilitar mudanças sociais mais rápidas do que nunca. Agora não podemos prever como a sociedade humana se parecerá daqui um século ou mais no futuro, não mais como nossos ancestrais de séculos passados poderiam prever a forma de nossa sociedade. O que sabemos é que o futuro não se parecerá com o presente. As mudanças radicais do passado foram não apenas econômicas e tecnológicas, mas também sociais e políticas. Portanto, seria míope supor que nossas atuais instituições sociais e políticas permanecerão imunes a mudanças radicais. Não estou prevendo o inevitável surgimento da anarquia mundial. No entanto, estou mantendo a anarquia como um resultado possível para a humanidade, dada a natureza caótica da história humana e a grande incerteza do futuro. Existem razões específicas para considerar isso um resultado plausível? Um tipo de razão é que, dentre as amplas tendências vistas na história humana, algumas das mais salientes são consistentes com um movimento na direção do anarcocapitalismo. As tendências mais filosoficamente interessantes são as tendências nos valores humanos. É difícil exagerar o grau de liberalização que a humanidade viu ao longo de sua história. Considere apenas alguns exemplos. • Hoje, alguns observadores criticam a brutalidade do esporte do boxe. Na Roma antiga, no entanto, o entretenimento do dia era um combate entre gladiadores. Imagine um oficial de boxe hoje propondo que os boxeadores recebam espadas, para melhor desmembrar um ao outro. • Aristóteles, um dos maiores filósofos da história, escreveu que alguns homens são por natureza adequados para serem escravos, enquanto outros são naturalmente adequados para serem seus senhores, e ele sustentou isso apenas para fazer guerra contra os escravos naturais que se recusavam a se submeter de bom grado.2 Imagine um filósofo contemporâneo que propõe que os EUA iniciem uma guerra para capturar escravos. • Nos últimos anos, o governo George W. Bush sofreu críticas generalizadas e ultrajantes por autorizar o uso de tortura, na forma de afogamento, forçando os prisioneiros a ficarem estressados em certas posições e assim 2

Aristóteles 1941, Politics, 1255b4–12, 1255b37–9, 1256a22–6.

13. Da Democracia à Anarquia

308

por diante. Mas essas técnicas milagrosas de interrogatório teriam sido ridicularizadas pelos torturadores da Idade Média, cujas punições incluíam cozinhar pessoas vivas; rasgar o corpo de uma vítima num instrumento de tortura; suspender uma pessoa de cabeça para baixo e depois serrar a vítima pela metade longitudinalmente, começando na virilha; e assim por diante.3 • Nas últimas décadas, muitos países aboliram a pena de morte, e aqueles que a retêm geralmente a reservam para os piores assassinos. Porém, em épocas anteriores, a condenação à morte era banal, mesmo por ofensas triviais como sodomia, fofocas e trabalho no sábado.4 De um modo geral, a evolução dos valores tem sido na direção de um maior respeito pelas pessoas, uma forte presunção contra a violência e a coerção e um reconhecimento do status moral igual de todas as pessoas. Essa mudança de valores afastou a tendência do autoritarismo e rumou à democracia liberal. Mas esses valores morais não são, em última análise, consistentes com o governo de nenhuma forma. Todos os governos baseiam-se praticamente em coerção injusta e filosoficamente em uma reivindicação do Estado a um status moral especial que o coloca acima de todas as pessoas e grupos não-governamentais. O respeito igual pelas pessoas não é compatível com a doutrina da autoridade política.5 Parece plausível, portanto, que, à medida que essas tendências nas atitudes morais avancem, um dia a percepção geral da humanidade, seja de fato que ninguém possui autoridade política. Alguns podem rejeitar meu otimismo, citando a grande expansão dos poderes dos governos centrais nos países ocidentais no último século. Projetando essa tendência adiante, pode-se antecipar que em 100 anos, se não muito antes, o mundo inteiro será totalmente socialista. Um futuro socialista (estatal) mundial é possível, assim como um futuro anarquista mundial. Algumas tendências apontam para a consolidação do poder do Estado, enquanto outras apontam na direção oposta. O colapso do comunismo no final do século XX marcou um movimento enorme na direção da liberdade e fora do controle do governo. E, como sugeri, o movimento em direção à democracia liberal nos últimos 200 anos também marcou uma enorme vitória pela liberdade individual. Se o mundo finalmente se estabelecerá no socialismo democrático, no anarquismo ou em algum outro sistema social depende em parte do resultado de debates filosóficos que atualmente estão em andamento em nossa sociedade. 3

Pinker 2011, 129–33. Pinker 2011, 149–53. Compare o capítulo 9, nota 10. 5 Compare a Seção 4.3.6. 4

13. Da Democracia à Anarquia

13.2

309

Passos em direção à anarquia

Se a anarquia tivesse que ser alcançada através da repentina abolição de todo governo, seria uma perspectiva remota. Uma anarquia tão rapidamente alcançada provavelmente também teria resultados decepcionantes – se o governo desaparecesse repentinamente, sem qualquer desenvolvimento prévio de instituições alternativas, como agências de proteção e empresas de arbitragem privadas, provavelmente haveria um caos. Talvez instituições alternativas surjam espontaneamente no devido tempo, mas também é provável que o caos dê origem a demandas imediatas por um novo governo. Por essas razões, é desejável desenvolver um modelo gradualista da abolição do governo, no qual instituições alternativas crescem ao mesmo tempo em que o governo diminui.

13.2.1

Terceirização de funções judiciais

Um primeiro passo em direção à anarquia é diminuir o papel dos tribunais governamentais terceirizando seu trabalho para árbitros privados. Este processo já está em andamento. Muitos leitores possuem cartões de crédito cujos acordos especificam arbitragem vinculativa no caso de uma disputa entre o titular do cartão e a empresa do cartão de crédito – uma situação que em tempos passados teria exigido litígios em um tribunal do governo. Nos últimos anos, as disputas comerciais são cada vez mais resolvidas por meio de arbitragem privada. A corporação VISA fornece arbitragem para todas as disputas entre seus bancos membros.6 Nos Estados Unidos, a prática de incluir cláusulas de arbitragem em contratos de trabalho se espalhou drasticamente desde a década de 1970, de modo que hoje cerca de 15 a 25% dos empregadores usam arbitragem para a resolução de disputas com funcionários.7 Os tribunais geralmente reconhecem essas cláusulas e, assim, se recusam a anular as decisões dos árbitros (com algumas exceções);8 árbitros privados formam, assim, um substituto eficaz dos tribunais governamentais em uma ampla gama de casos. É fácil imaginar essa tendência continuando até os árbitros privados analisarem quase todas as disputas entre as partes de um contrato. 6

Caplan e Stringham 2008, p. 507–8. Ventrell-Monsees 2007. Essa estimativa deve ser lida com cautela, pois os dados sobre o assunto são escassos. 8 Batten 2011, 346. As exceções incluem casos de fraude ou corrupção por parte de árbitros e alguns casos em que as decisões de arbitragem são contrárias a políticas públicas específicas. Sobre a exceção de política pública, ver United Paperworkers v. Misco, Inc., 484 U.S. 29 (1987) e Eastern Associated Coal Corp. v. Mine Workers, 531 U.S. 57 (2000). 7

13. Da Democracia à Anarquia

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O governo poderia avançar ainda mais, declarando que seus tribunais não analisariam mais certos tipos de casos e encaminhariam esses casos aos árbitros.9 Por exemplo, um grande fardo seria retirado do sistema judicial se todos os casos de divórcio fossem tratados por meio de processos de arbitragem privada (mesmo sem acordo prévio entre as partes nesse sentido). O passo mais controverso seria terceirizar a resolução de casos penais. Esse passo seria mais plausível quando começássemos a ver os casos penais, não como disputas entre o réu e o Estado, mas como disputas entre o réu e a vítima do crime. Quando vistos dessa maneira, não há razão para que esses casos também não possam ser tratados por meio de arbitragem privada. Por que algum governo concordaria em promover sua própria obsolescência eventual terceirizando uma de suas funções mais centrais? Uma razão é que os tribunais estão severamente sobrecarregados e gostariam de menos casos. Algumas legislações e tribunais estaduais nos Estados Unidos já exigem que certas disputas (principalmente as que envolvem reivindicações de seguro de automóvel) sejam resolvidas por meio de arbitragem.10 Outra razão possível é a opinião pública. Se o público ficar suficientemente desencantado com o sistema judicial do governo, uma legislação democrática poderá aprovar leis que exijam o tipo de mudanças descritas acima.

13.2.2

Terceirização de funções policiais

Juntamente com os deveres judiciais, o governo poderia terceirizar seus deveres de policiamento. Este processo também já está em andamento. De acordo com um relatório recente, agora existem 20 milhões de guardas de segurança privada em todo o mundo – cerca do dobro do número de policiais do governo.11 Nos Estados Unidos, os guardas de segurança privada somam cerca de 1 milhão, em comparação com 700.000 policiais do governo. Em alguns casos, o próprio governo contrata guardas de segurança privada para proteger espaços públicos, incluindo o Liberty Bell na Filadélfia, a Estátua da Liberdade em Nova York e o principal terminal de ônibus em Durham, Carolina do Norte.12 Se essa tendência continuar, poderíamos um dia vermos uma situação em que todos os espaços públicos são protegidos por guardas de segurança privada. Em muitos países – Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e outros – cidadãos particulares estão legalmente autorizados a fazer prisões. As condições para um cidadão fazer uma prisão legal, no entanto, tendem a ser muito mais restritas do que as condições sob as quais a polícia do governo pode fazer uma 9

Caplan (2010) defende esta proposta. Batten 2011, 345. 11 Centro de Notícias da ONU 2011. 12 Goldstein 2007. 10

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prisão. A autorização legal para prisões por cidadãos pode ser limitada a certos tipos de crimes, e o cidadão que está prendendo pode ser obrigado a testemunhar pessoalmente o crime em andamento. Poder-se-ia imaginar uma liberalização de tais leis, permitindo prisões por cidadãos por todos os crimes, incluindo casos em que a culpa do suspeito é estabelecida por investigação após o fato. As agências privadas de proteção poderiam assumir não apenas os deveres de patrulha, mas também os deveres de investigação e prisão de suspeitos de crimes. É preciso ter cuidado ao fazer essa transição. Se um governo estadual ou local desistisse do monopólio do policiamento para conceder esse monopólio a uma empresa privada, seria de esperar que a empresa privada apresentasse os mesmos problemas que a polícia do governo, possivelmente ainda mais problemas. As chaves para obter os benefícios do livre mercado são voluntariedade e concorrência. Assim, ao fazer a transição para a aplicação privada de leis, devemos preservar várias agências privadas de proteção concorrentes, e pequenos grupos de cidadãos devem escolher seus protetores. Por exemplo, bairros residenciais ou condomínios de apartamentos devem ter a opção de qual agência de proteção seria responsável pela segurança nas suas propriedades. Novamente, há duas razões pelas quais os governos podem concordar com essa mudança social. Primeiro, governos sobrecarregados que enfrentam pressões orçamentárias podem receber com satisfação o alívio de suas funções de policiamento. Segundo, um público esclarecido pode um dia reconhecer a necessidade de competição e voluntariedade nos serviços tradicionalmente governamentais e exigir reformas de seus representantes.

13.2.3

O fim dos exércitos permanentes

No início dos EUA, a ideia de manter exércitos permanentes em tempo de paz era controversa, com vários dos fundadores americanos alertando contra os perigos que esses exércitos representavam para a liberdade.13 Hoje, o debate foi resolvido em favor de exércitos permanentes, com muito pouca dissensão. Mas não é óbvio que resolvemos o problema correta ou permanentemente. As gerações futuras podem se revelar cada vez mais amantes da paz, continuando a tendência dos séculos e milênios passados. À medida que a guerra se torna cada vez mais desprezada, talvez em um mundo dominado por democracias liberais, a ideia de manter sempre exércitos vastos, equipados com armas destruidoras de cidades, pode parecer cada vez mais tolo e primitivo. Alguns governos nacionais já estão em posição de reduzir drasticamente suas forças armadas sem medo de comprometer a segurança nacional. Os Estados Unidos, por exemplo, poderiam cortar seu orçamento militar em 83% e ainda con13

Hamner n.d.

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tinuar sendo o maior gastador militar do mundo.14 Essa mudança provavelmente exigiria uma conscientização pública muito maior dos fatos sobre o orçamento militar, além de uma maior disposição para a paz por parte dos cidadãos americanos. Se as nações com os maiores exércitos do mundo começassem a diminuir suas forças, outras nações, percebendo uma ameaça estrangeira reduzida, também poderiam reduzir seus militares. Dois fatos importantes direcionariam esse processo: primeiro, um exército é necessário apenas para combater os militares de outras nações; se ninguém tem um exército, ninguém precisaria de um exército.15 Em segundo lugar, se exige mais poder militar para invadir um país do que para defendê-lo. Portanto, se a cada ano todos os países mantivessem apenas a força militar necessária para a defesa, o nível mundial de forças militares continuaria caindo até que, em última análise, nenhuma nação tivesse ou precisasse de um exército permanente. Como uma nação militarista pode impedir isso, esse processo provavelmente será lento e poderá ter que esperar o surgimento de uma cultura mundial de antimilitarismo. Infelizmente, isso significa que a solução final para o problema da guerra (eliminação das entidades que fazem guerra) pode ter que esperar até que o problema seja quase eliminado por outros meios (a ascensão da democracia e a crescente impopularidade da guerra).

13.2.4

O resto do caminho

As mudanças especuladas acima levariam o mundo ao que poderíamos chamar de “estado subminimal”: um governo ou entidade semelhante ao governo que desistiu do que costuma ser considerada algumas das funções centrais ou mínimas do Estado – a saber, a polícia, tribunais e militares.16 O Estado assim alcançado, através de mudanças graduais, estaria muito próximo da anarquia. De fato, alguns podem considerar que a condição que imaginei já é de anarquia. O que resta seria a abolição da legislatura. Atualmente, a legislação é considerada necessária para fazer as leis que policiais e tribunais impõem. E uma legislatura é realmente necessária para fazer a maioria dos tipos de leis existentes nas nações modernas, incluindo leis moralistas, paternalistas, leis rent-seeking e assim por diante.17 Se, no entanto, uma sociedade adotasse uma filosofia libertária da lei, que exige apenas leis que impeçam a vitimização de um indivíduo ou grupo por outro, a lei consuetudinária feita pelo juiz deve ser suficiente. Uma 14

Stockholm International Peace Research Institute 2012; estatísticas baseadas nos níveis de gastos de 2010. 15 Caplan (2009) enfatiza esse ponto. 16 Esse “Estado” seria ainda mais mínimo do que Nozick (1974, 26) denominado ‘estado ultraminimal’. 17 Veja a Seção 7.1.3.

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313

vez que a sociedade substituísse os tribunais do governo por árbitros particulares e a polícia do governo por guardas de segurança privada, assumindo que esses mecanismos privados funcionassem razoavelmente bem, seria possível dissolver o legislador. Exatamente como isso aconteceria não está claro. O legislador votaria para se dissolver? É difícil imaginar qualquer político apoiando essa mudança. Os manifestantes públicos marchariam na capital e pressionariam os políticos obsoletos a renunciar? Possivelmente. Uma coisa que parece muito plausível, em qualquer caso, é que, se a legislatura não teria mais o poder, através da polícia ou dos exércitos, de coagir o resto da sociedade, e o resto da sociedade não desejaria mais ter uma legislatura, então a legislatura não duraria muito. Concentrei-me aqui na polícia, nos tribunais, nas forças armadas e na legislatura, porque esses geralmente são vistos como os braços mais básicos e indispensáveis do governo. Os governos modernos têm muitos outros ramos em todos os aspectos da vida, e não posso discuti-los aqui. Mesmo com os aspectos do governo que abordamos, minha argumentação tem sido especulativa e superficial. Ninguém pode prever em detalhes o que o futuro reserva. Meu objetivo, no entanto, tem sido mostrar que a eventual emergência da anarquia do atual estado de coisas não é implausível e poderia prosseguir em etapas graduais.

13.3

A expansão geográfica da anarquia

É improvável que a anarquia domine o mundo inteiro simultaneamente. É improvável que até supere um único país grande de uma só vez. O mais provável é que alguns países pequenos ou governos locais pequenos assumam a liderança no início ou na expansão do tipo de experimentos em terceirização de funções policiais e judiciais descritas acima. Quanto menor o governo, menor a inércia que o governo experimentará e maior a probabilidade de considerar propostas radicais, especialmente aquelas que envolvem a renúncia ao poder do governo. Considere, por exemplo, que os líderes mundiais na abolição de exércitos permanentes são todos pequenos países (Costa Rica, Liechtenstein e assim por diante).18 O atual líder mundial na liberalização das leis sobre drogas é outro país pequeno, Portugal.19 O líder mundial em liberalização econômica é uma única cidade, Hong Kong. E, de acordo com um ranking com viés libertário, o país mais livre do mundo é a pequena nação da Estônia.20 18 19

gal.

Veja a Seção 12.3.6. Vastag (2009) discute os benefícios do programa de descriminalização das drogas em Portu-

20 State of World Liberty Project 2006. O ranking é baseado em um composto de quatro índices de liberdade: (1) “Liberdade Econômica do Mundo 2005” do Instituto Fraser/Cato Institute,

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Quando alguém assume a liderança na redução de um tipo específico de poder do governo, torna-se mais provável que outras cidades ou países sigam o exemplo. Na era da informação global, esse tipo de disseminação de boas ideias políticas é mais provável do que nunca, porque um grande número de pessoas pode ver como as políticas em outros lugares estão funcionando. Embora o processo tenha levado décadas, o forte contraste entre a vida nos regimes marxista-comunista e a vida no Ocidente capitalista enfraqueceu o comunismo por dentro. À medida que os padrões de vida nas nações capitalistas democráticas se aproximavam cada vez mais daqueles dos países comunistas, ano após ano, ficava cada vez mais difícil acreditar na ideologia comunista, até que quase ninguém acreditava mais nela. Um processo semelhante pode ocorrer no futuro, entre sociedades de grandes governos e sociedades praticando algo mais próximo do anarcocapitalismo. Todo o processo pode levar séculos. Ainda hoje, cerca de metade das nações do mundo continua a adotar formas de governo autocráticas, apesar da evidência esmagadora da superioridade da democracia sobre o autoritarismo. A evidente superioridade da democracia não é causalmente impotente – explica por que a democracia se espalhou para metade do mundo, a partir de uma situação de dois séculos e meio atrás em que nenhuma nação era democrática. Mas algumas sociedades humanas são mais lentas para mudar do que outras, de modo que muitas continuarão autoritárias por muito tempo mesmo que seja óbvio para todos que a prática seja uma péssima ideia. Assim, se o anarcocapitalismo chegar em cena, provavelmente será em um momento em que a maior parte do mundo vive sob governo democrático, enquanto parte do mundo ainda vive sob governo despótico. Nações limítrofes a países despóticos não abandonarão seus governos até que os governos despóticos de seus vizinhos tenham finalmente caído. Escrevi como se a marcha do mundo em direção à democracia continuasse, com todos os governos autoritários destinados a cair. Isso não é inevitável. Talvez o progresso da democratização pare. Talvez o mundo caia no totalitarismo. Mas é pelo menos plausível pensar que não.

13.4

A importância das ideias

Eventos históricos são frequentemente explicados em termos dos interesses dos indivíduos e facções concorrentes. Às vezes, emoções e preconceitos irracionais são trazidos à cena. Mas devemos lembrar que os seres humanos também pos(2) Fundação do Patrimônio/Wall Street Journal “Índice de Liberdade Econômica de 2006”, (3) “Liberdade no Mundo” de 2005 da Freedom House e (4) “Índice de Liberdade de Imprensa” do Repórteres sem Fronteiras. Hong Kong ocupa o primeiro lugar na liberdade econômica, enquanto a primeira posição para a liberdade pessoal é um empate entre as Bahamas, Luxemburgo, Malta e Barbados.

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suem inteligência e habilidade básica para distinguir boas ideias de más. Essa é a razão mais importante e fundamental do meu otimismo em relação ao futuro do anarcocapitalismo. Deixe-me explicitar o raciocínio. 1. A teoria do anarcocapitalismo é verdadeira e bem justificada. 2. Se a teoria do anarcocapitalismo for verdadeira e bem justificada, ela será aceita em geral. 3. Se a teoria do anarcocapitalismo for geralmente aceita, o anarcocapitalismo será implementado. 4. Portanto, o anarcocapitalismo será implementado. A primeira premissa é apoiada pelo restante deste livro. A segunda premissa baseia-se na tendência geral de ideias corretas vencerem a longo prazo. A qualquer momento da história, será tentador olhar para todas as pessoas com más ideias e concluir que a humanidade é muito irracional e ignorante para compreender as verdades importantes. Mas isso é miopia histórica. A tendência mais saliente e importante que se destaca em qualquer estudo da história intelectual dos últimos 2.000 anos deve certamente ser a acumulação gradual de conhecimento e a mudança correspondente de ideias piores para ideias melhores. É claro que o processo não é monotônico – há casos de estagnação e regressão – mas a inegável diferença entre o conhecimento da humanidade hoje e o conhecimento de 2.000 anos atrás é impressionante. No curto prazo, as forças do preconceito podem superar as da racionalidade. Mas os preconceitos podem ser desgastados com o tempo, enquanto a verdade básica de uma determinada ideia permanece intacta ao longo dos séculos, exercendo qualquer força que ela tenha sobre a mente humana. Às vezes, diz-se que, diferentemente das ciências, campos como filosofia, ética e política fizeram pouco ou nenhum progresso nos últimos 2.000 anos. Enquanto as ciências naturais fizeram o progresso intelectual mais impressionante, o dramático progresso que ocorreu em questões filosóficas, morais e políticas só não pode ser compreendido através de uma lente moderna que filtra todas as questões que não consideramos mais dignas de ser discutidas porque nós já as resolvemos. Ao longo da maior parte da história humana, a escravidão foi amplamente aceita como justa. O massacre em massa de estrangeiros com o objetivo de capturar terras e recursos, forçar a conformidade com uma religião ou exigir vingança por erros percebidos contra seus ancestrais era frequentemente visto com aprovação, se não glorificado. Alexandre, o Grande, era assim chamado por causa de sua habilidade em fazer o que quase todo mundo hoje julgaria sem hesitar como guerras injustas e cruéis. Tortura judicial e execução por delitos

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menores foram amplamente aceitos. “Bruxas” foram queimadas na fogueira ou afogadas. Despotismo era a forma padrão de governo, sob o qual as pessoas não tinham o direito de participar do processo político. Mesmo quando a democracia foi finalmente aceita em alguns países, metade da população adulta teve seus direitos de participação política negados por serem considerados inferiores. Quando as pessoas hoje dizem que há pouco acordo em ética e política, estão ignorando todas as questões mencionadas no parágrafo anterior. Para nós, nenhuma dessas questões vale a pena discutir, uma vez que a avaliação correta é intelectualmente trivial. “Devemos torturar alguém para extrair uma confissão de bruxaria e depois executá-la por ser uma bruxa?” Essa questão não merece mais que uma risada. Mas, na prática, essas questões estão longe de serem triviais. Por mais lento que possa estar chegando, o consenso atual sobre todas essas questões representa um enorme avanço de ideias terríveis para ideias não tão terríveis. Pode-se questionar até que ponto a tendência do progresso moral continuará. A injustiça da escravidão, tortura, despotismo e coisas do gênero são óbvias, enquanto a injustiça do governo, caso seja errado, é mais sutil. Talvez os seres humanos tenham sido inteligentes o suficiente, ao longo de alguns milhares de anos, para descobrir as questões morais ofuscantemente óbvias, mas não sejam inteligentes o suficiente para descobrir questões mais sutis. Possivelmente. Então, novamente, o que é óbvio pode ser relativo ao tempo de alguém. Se um pensador da estatura de Aristóteles não pode ver que a escravidão era injusta, devemos questionar quão objetivamente óbvia era essa questão. E, por outro lado, as gerações futuras provavelmente encontrarão óbvias algumas coisas que temos dificuldade em ver hoje. “Será que existe um grupo especial de pessoas com o direito de usar ameaças de violência para forçar todo mundo a obedecer comandos, mesmo quando seus comandos estão errados?” As gerações futuras podem ver a resposta a isso como óbvia demais para merecer discussão. Minha terceira premissa era que, se o anarcocapitalismo for geralmente aceito, ele será adotado. Não obstante as especulações esboçadas oferecidas nas Seções 13.2 e 13.3, não sei como isso acontecerá. Não obstante, considero a premissa altamente provável. A imagem de uma sociedade que continua a manter seu governo, ano após ano, geração após geração, quando a maioria das pessoas chega a um consenso de que é uma má ideia, parece quase absurda. As práticas sociais humanas não estão tão desconectadas de nossas crenças. Se a sociedade alcançar um consenso anarquista, alguém descobrirá como fazer os políticos voltarem para casa. Estamos muito longe desse estado de coisas hoje. Quase todo mundo acredita que alguma forma de governo é praticamente necessária e eticamente legítima. O primeiro passo no caminho para uma sociedade não governamental é, portanto, mudar as atitudes em relação ao governo. Aqueles que foram persuadidos pelo

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anarquismo precisam defendê-lo para o resto de sua sociedade. Espero que este livro faça parte de um discurso social que, no devido tempo, cumpra essa tarefa. Em um capítulo anterior, caracterizei como excessivamente utópica a ideia de remediar as falhas da democracia puramente através do ativismo cidadão (Seção 9.4.4). Argumentei que isso exigiria muito sacrifício por parte dos cidadãos. Por que a proposta deste capítulo não é igualmente utópica? Por que é mais realista esperar que os cidadãos convencidos da ilegitimidade do governo trabalhariam para abolir seu governo do que esperar que os cidadãos que tenham conhecimento das políticas falhas implementadas por um governo democrático trabalhem para aperfeiçoar as políticas de seu governo? A resposta é que adquirir consciência da ilegitimidade do governo em geral é muito, muito menos exigente cognitivamente do que adquirir consciência suficiente dos erros políticos específicos de um governo em particular para permitir que se faça planos racionais para corrigir a maioria desses erros. . Para perceber que o governo é ilegítimo, basta aceitar os argumentos deste livro. Mas identificar a maioria dos erros de política específicas do governo exigiria familiaridade detalhada com milhares de estatutos e regulamentos; dezenas de agências, conselhos e comissões governamentais; e centenas de figuras políticas. Seria necessário atualizar esse conhecimento continuamente ao longo da vida para levar em consideração cada nova ação de cada ramo do governo. É muito mais realista esperar que um consenso possa ser alcançado sobre um único princípio filosófico, a rejeição da autoridade, do que esperar que poderia ser alcançado um consenso sobre as falhas específicas da maioria das políticas governamentais.

13.5

Conclusão

13.5.1

O argumento da parte I

O estado moderno reivindica um tipo de autoridade que obriga todos os outros agentes a obedecer aos comandos do Estado e autoriza o Estado a empregar violência e ameaças de violência para fazer cumprir esses comandos, independentemente dos comandos serem em si justos, razoáveis ou benéficos . O argumento da primeira metade deste livro é que esse tipo de autoridade, “autoridade política”, é uma ilusão. Nenhum Estado é legítimo e nenhum indivíduo tem obrigações políticas. Isso leva à conclusão de que, no mínimo, a grande maioria das atividades do governo é injusta. Os agentes do governo devem se recusar a aplicar leis injustas, e os indivíduos devem se sentir livres para violar essas leis sempre que puderem fazer com segurança. O argumento contra a autoridade política prosseguiu examinando os argumentos mais importantes para a existência da autoridade e considerando cada

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um deles inadequado. A teoria tradicional do contrato social falha devido a um fato destacado: não há contrato real. A teoria mais comum dos entusiastas de contratos sociais contemporâneos – que um acordo é voluntário e contratual pelo fato de que alguém pode escapar de sua imposição por meio de uma mudança para a Antártica – atrairia pouco mais do que uma risada em qualquer outro contexto. A alternativa de um contrato social puramente hipotético falha por duas razões: primeiro, não há razão para pensar que todas as pessoas razoáveis poderiam concordar, mesmo em circunstâncias idealizadas, mesmo na teoria política mais básica. Segundo, um contrato meramente hipotético é eticamente irrelevante. Por mais justo, razoável e imparcial que seja um contrato, normalmente não se tem o direito de forçar outros a aceitá-lo. O processo democrático falha em fundamentar a autoridade, pois normalmente não se adquire o direito de coagir alguém apenas porque aqueles que querem coagir a vítima são mais numerosos do que aqueles que querem se abster. O apelo ao ideal da democracia deliberativa falha, porque nenhum Estado real se assemelha remotamente a uma democracia deliberativa ideal e, em qualquer caso, nenhum mero método de deliberação nega os direitos de um indivíduo. O apelo às obrigações de promover a igualdade e respeitar o julgamento de outras pessoas falha por vários motivos, incluindo o fato de que essas obrigações não são fortes o suficiente para substituir os direitos dos indivíduos, de que não são o tipo de obrigação que normalmente pode ser aplicada por coerção, e que a própria ideia de legitimidade política é uma violação muito mais clara do valor da igualdade do que o fracasso dos indivíduos em obedecer às leis democraticamente criadas. O apelo às boas consequências do governo falha em fundamentar a autoridade, porque a obediência de um indivíduo à lei não afeta a capacidade do Estado de proporcionar esses benefícios, e a provisão de um grande benefício geral por um agente não confere ao agente o direito de coagir outros a obedecer aos comandos do agente, independentemente do conteúdo desses comandos. Da mesma forma, o apelo à justiça não pode fundamentar uma obrigação de obedecer a comandos prejudiciais, injustos ou inúteis, nem um direito ético de implantar coerção em apoio a esses comandos. Uma revisão das evidências psicológicas e históricas relativas às atitudes humanas em relação à autoridade sugere duas lições importantes: primeiro, a maioria dos indivíduos possui fortes vieses pró-autoridade que tornam suas intuições sobre a autoridade não confiáveis. Segundo, as instituições de autoridade são extremamente perigosas, e a erosão da confiança na autoridade é, portanto, altamente benéfica socialmente.

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13.5.2

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O argumento da parte II

Contrariando Hobbes, quando diversos agentes têm poder aproximadamente igual, é prudencialmente irracional para qualquer agente iniciar um conflito. Em contraste, a centralização do poder convida à exploração e ao abuso pelos poderosos. O processo democrático inibe os piores abusos do governo, mas permanece imperfeito devido à ampla ignorância e irracionalidade por parte dos eleitores. As restrições constitucionais são frequentemente impotentes, uma vez que não há senão o governo para fazer cumprir a Constituição. A separação de poderes falha porque os ramos do governo podem melhor promover seus interesses através de uma causa comum na expansão do poder do Estado, em vez de proteger os direitos do povo. A argumentação da Parte II deste livro é que existe uma alternativa superior, na qual as funções governamentais são privatizadas. Os deveres policiais podem ser assumidos por seguranças particulares, talvez contratadas por associações de pequenos proprietários locais. Esse sistema difere da provisão governamental de segurança, na medida em que se baseia em acordos contratuais genuínos e incorpora uma concorrência significativa entre os provedores de segurança. Essas diferenças levariam a maior qualidade, menor custo e menos potencial de abuso do que os encontrados nos sistemas monopolísticos coercitivos. A resolução de disputas, incluindo disputas sobre se um determinado indivíduo cometeu um crime e se um determinado tipo de conduta deve ser tolerado, seria fornecida por árbitros privados. Indivíduos e empresas em uma sociedade anárquica escolheriam esse método para resolver disputas porque é muito menos oneroso do que a resolução por meio da violência. O direito seria gerado principalmente pelos próprios árbitros, da maneira como o direito consuetudinário se desenvolveu no mundo real. A voluntariedade e a competitividade do sistema, novamente, levariam a maior qualidade, custos mais baixos e menos abusos. A eliminação das forças militares do governo não precisa deixar uma sociedade insegura. Sob certas condições favoráveis, uma sociedade pode estar protegida contra invasões, apesar da falta de dissuasão militar. Em caso de invasão, a guerra de guerrilha ou a resistência não-violenta podem ser surpreendentemente eficazes na expulsão de ocupantes estrangeiros. De certa forma, ter um governo aumenta a probabilidade de uma sociedade se envolver em uma guerra – por exemplo, porque o governo pode provocar um conflito. Vários países pequenos já aboliram com sucesso seus exércitos sem serem conquistados como resultado. A manutenção de exércitos permanentes implica um risco não trivial de que esses exércitos sejam usados injustamente, bem como o risco do governo inventar novas armas de destruição em massa que ameaçam a espécie humana.

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13.5.3

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O argumento deste capítulo

É razoável acreditar que a anarquia possa vir ao mundo no devido tempo. O modelo de transição mais plausível é aquele em que as sociedades democráticas avançam gradualmente em direção ao anarcocapitalismo através da terceirização progressiva de funções governamentais para empresas concorrentes. Nenhum obstáculo, exceto a opinião pública e a inércia, impedem que o governo repasse o policiamento, a resolução de disputas ou mesmo a condução de julgamentos criminais a agentes privados. As forças armadas governamentais poderiam ser retiradas e, finalmente, eliminadas por meio de um processo espiral prolongado, no qual cada país corta repetidamente suas forças militares para apenas aquelas necessárias para a defesa. O processo de eliminação do governo provavelmente será liderado por pequenos países ou cidades democráticas. Espera-se que países maiores sigam o exemplo somente após o sucesso de experimentos em pequena escala ser evidente para a maioria dos observadores. O determinante mais importante de se esse processo ocorrerá é o intelectual: se o anarcocapitalismo for uma boa ideia, provavelmente será finalmente reconhecido como tal. Uma vez que seja geralmente reconhecido como desejável, provavelmente será implementado. Abolir o Estado é mais realista do que reformá-lo, porque a abolição exige que as pessoas aceitem apenas uma única ideia filosófica – ceticismo sobre autoridade – considerando que a reforma exige que as pessoas se familiarizem continuamente com as inúmeras falhas de políticas específicas. Este livro é um esforço para ajudar a impulsionar a sociedade em direção ao necessário ceticismo da autoridade. Pode parecer que minha posição seja extrema – como é claro, em relação ao atual espectro de opiniões. Mas as atitudes atuais também são extremas, em relação ao espectro de opiniões dos séculos anteriores. O cidadão comum de uma democracia moderna, se transportado no tempo para 500 anos atrás, seria o liberal mais radical e de olhos arregalados do planeta – endossando uma igualdade de sonhos nunca imaginada para ambos os sexos e todas as raças; livre expressão para os mais hediondos heréticos, infiéis e ateus; uma abolição completa de inúmeras formas padrão de punição; e uma reestruturação radical de todos os governos existentes. Pelos padrões atuais, todo governo de 500 anos atrás era ilegítimo. Ainda não chegamos ao fim da história (contrariando Fukuyama). A evolução dos valores pode prosseguir na direção em que se moveu nos últimos dois milênios. Isso poderia levar a uma aversão ainda maior ao recurso à força física nas interações humanas, a um respeito mais amplo à dignidade humana e a um reconhecimento mais consistente da igualdade moral das pessoas. Uma vez que levamos esses valores suficientemente a sério, não podemos deixar de ser céticos em relação à autoridade.

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Meu método de empurrar os leitores nesse caminho tem sido apelar a valores implícitos que acho que você compartilha. Não confio em uma argumentação abstrata e teórica desses valores; Confio nas reações intuitivas que temos a cenários relativamente específicos. Também não confio em intuições controvertidas; Confio em intuições claras e convencionais. Por exemplo, o julgamento de que um empregador que elabora um contrato de trabalho justo e razoável não teria o direito de forçar os funcionários em potencial a aceitá-lo (Seção 3.3.3), não é particularmente duvidoso ou controverso. Não é algo que apenas ideólogos libertários concordariam. Considere agora o argumento antiguerra oferecido pelo filósofo chinês Mozi no século V a.C: Matar um homem é ser culpado de um crime capital, matar dez homens é aumentar em dez vezes a culpa, matar cem homens é aumentála em cem vezes. Isso todos os governantes da terra reconhecem e, no entanto, quando se trata do maior crime – travar guerra contra outro Estado -, eles o elogiam! [. . . ] Se um homem, ao ver um pouco de preto, disser que é preto, mas ao ver muito preto, dizer que é branco, fica claro que esse homem não consegue distinguir preto e branco. [ . . . ] Assim aqueles que reconhecem um crime pequeno como tal, mas não reconhecem a maldade do maior crime de todos, [. . . ] não conseguem distinguir certo e errado.21 A estratégia argumentativa de Mozi é simples e convincente: ele parte de uma proibição ética incontroversa, aplica o mesmo princípio a um tipo específico de política do governo e considera que a política é moralmente inaceitável. É no espírito de Mozi que questiono a instituição do governo como um todo. Se um indivíduo viaja para outro país para matar pessoas, extrai coercivamente dinheiro de membros de sua própria sociedade, força outros a trabalharem para ele ou impõe exigências prejudiciais, injustas ou inúteis a outros através de ameaças de sequestro e prisão, os governos do mundo todo condenariam esse indivíduo. No entanto, esses mesmos governos não evitam realizar as mesmas atividades em escala nacional. Se achamos o argumento de Mozi convincente, parece que deveríamos achar similar o argumento de que a grande maioria das ações do governo é eticamente inaceitável.

21

Da epígrafe para Kurlansky, 2006.

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