O Pensamento Da Reforma [1ª Edição] 9780470672839, 0470672838, 9788576225195

Ideias que influenciaram o mundo e continuam a moldar a sociedade.

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Portuguese Pages [351] Year 2014

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O Pensamento Da Reforma [1ª Edição]
 9780470672839, 0470672838, 9788576225195

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O Pensamento da Reforma, de Alister McGrath © 2014, Editora Cultura Cristã. Todos os direitos são reservados. Tradução autorizada de Reformation Thought: An Introduction - 4a edição, ISBN 9780470672839 / 0470672838, de Alister McGrath, Copyright © 2011 by Alister McGrath, publicado por John Wiley & Sons Limited. A responsabilidade pela acuracidade da tradução é exclusivamente da Editora Cultura Cristã e não de John Wiley & Sons Limited. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida de qualquer modo que seja sem a permissão por escrito do detentor original do Copyright, John Wiley & Sons Limited. 1* edição 2014 - 3.000 exemplares Conselho Editorial Antônio Coine Augustus Nicodemus Gomes Lopes Cláudio Marra (Presidente) Heber Carlos de Campos Jr. Misael Batista do Nascimento Tarcízio José de Freitas Carvalho Ulisses Horta Simões Valdeci da Silva Santos

M147p

Produção Editorial Tradução Jonathan Hack Revisão Claudete Água Filipe Delage Sandra Couto Editoração OM Designers Gráficos Capa Magno Paganeüi

McGrath, Alister E. O pensamento da Reforma / Alister E. McGrath; traduzido por Jonathan H ack. _ São Paulo: Cultura Cristã, 2014 352 p.: 16x23 cm Tradução de Reformation Thought ISBN 978-85-7622-519-5 1. História 2. Teologia 3. Reforma do século 16 I. Título CDU 2-12

A posição doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil é expressa em seus "símbolos de fé”, que apresentam o modo Reformado e Presbiteriano de compreender a Escritura. São esses símbolos a Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos, o Maior e o Breve. Como Editora oficial de uma denominação confessional, cuidamos para que as obras publicadas espelhem sempre essa posição. Existe a possibilidade, porém, de autores, às vezes, mencionarem ou mesmo defenderem aspectos que refletem a sua própria opinião, sem que o fato de sua publicação por esta Editora represente endosso integral, pela denominação e pela Editora, de todos os pontos de vista apresentados. A posição da denominação sobre pontos específicos porventura em debate poderá ser encontrada nos mencionados símbolos de fé.

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CDITORfl CULTURA CRISTÃ Rua Miguel Teles Júnior, 394 - CEP 01540-040 - São Paulo - SP Fones 0800-0141963 / (11) 3207-7099 - Fax (11) 3209-1255 www.editoraculturacrista.com.br - [email protected] Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

Sumário

Sumário detalhado........................................................................................ 4 Prefácio à quarta edição.............................................................................. 11 Como usar este livro....................................................................................14 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14.

A Reforma: uma introdução.............................................................. 17 O cristianismo no final da Idade Média............................................41 O humanismo e a Reforma................................................................ 54 O escolasticismo e a Reforma.............................................................81 Os reformadores: uma introdução biográfica................................... 98 O retorno à Bíblia.............................................................................. 113 A doutrina da justificação pela fé.....................................................139 A doutrina da igreja..........................................................................166 A doutrina dos sacramentos.............................................................191 A doutrina da predestinação............................................................ 222 O pensamento político da Reforma.................................................238 As ideias religiosas da Reforma inglesa...........................................255 A difusão do pensamento da Reforma............................................273 O impacto da Reforma na História................................................. 286

Apêndice 1 Glossário de termos teológicos e históricos..................... 303 Apêndice 2 Traduções para o inglês das principais fontes primárias..................................................................310 Apêndice 3 Abreviaturas-padrão dos principais jornais e fontes..... 313 Apêndice 4 Como se referir às fontes primárias principais................ 316 Apêndice 5 Para referir-se aos salmos no século 16.............................320 Apêndice 6 Bibliografia atualizada sobre a Reforma............................322 Apêndice 7 Cronologia da história política e intelectual..................... 326 Leituras adicionais..................................................................................... 332 índice...........................................................................................................343

Sumário detalhado

1. A Reforma: uma introdução....................................................... 17 O clamor por uma reforma........................................................................ 18 O conceito de “Reforma” ............................................................................22 A Reforma Luterana...............................................................................23 A Igreja Reformada.................................................................................24 A Reforma radical (anabatismo)........................................................... 26 A Reforma católica.................................................................................28 A importância da imprensa........................................................................ 29 O uso do vernáculo nos debates teológicos..............................................32 O contexto social da Reforma............................................................... 33 Breve panorama das preocupações religiosas dos reformadores............ 38 N otas............................................................................................................40 2 .0 cristianismo no finai da Idade M édia.....................................41 O crescimento da religião popular.............................................................41 O crescimento do anticlericalismo............................................................ 42 O crescimento do pluralismo doutrinário................................................46 Uma crise de autoridade dentro da igreja.................................................48 Um estudo de caso na Inglaterra: os lolardos ........................................... 51 3 .0 humanismo e a Reform a........................................................ 54 O conceito de “Renascença”....................................................................... 55 O conceito de “humanismo” ...................................................................... 56 Erudição e filologia clássicas................................................................. 57 A nova filosofia da Renascença............................................................. 58 A visão do humanismo de Kristeller..........................................................59 Ad fontes - de volta às origens................................................................... 60 O humanismo do norte da Europa............................................................61 A recepção da Renascença italiana no norte da Europa......................62 Os ideais do humanismo do norte da Europa...................................... 63

Sumário detalhado

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O humanismo do leste da Suíça............................................................. 63 O humanismo legal da França............................................................... 65 Erasmo de Roterdã...................................................................................... 66 A crítica ao texto da Vulgata...................................................................69 Edições dos escritores patrísticos...........................................................71 Uma avaliação do humanismo e da Reforma............................................72 O humanismo e a Reforma suíça........................................................... 73 O humanismo e a Reforma de Wittenberg............................................ 75 Tensões entre a Reforma e o humanismo..............................................76

4 .0 escolasticismo e a Reforma..................................................... 81 Definição de “escolasticismo” .....................................................................82 O escolasticismo e as universidades........................................................... 84 Tipos de escolasticismo...............................................................................85 Realismo versus nominalismo................................................................ 86 “Pelagianismo” e “agostinismo”.............................................................. 87 A via moderna......................................................................................... 90 A schola augustiniana moderna............................................................. 92 O impacto do escolasticismo medieval sobre a Reforma......................... 94 A relação de Lutero com o escolasticismo do final da Idade M éd ia............................................................................................94 A relação de Calvino com o escolasticismo do final da Idade M édia............................................................................................. 95 N otas............................................................................................................ 97 5. Os reformadores: uma introdução biográfica........................... 98 Martinho Lutero (1483-1546)..................................................................... 99 Ulrico Zuínglio (1484-1531)..................................................................... 104 Filipe Melanchthon (1497-1560).............................................................. 106 Martin Bucer (1491-1551)........................................................................ 107 João Calvino (1509-1564).......................................................................... 109 6 .0 retorno à Bíblia.......................................................................113 A Escritura na Idade M édia...................................................................... 114 O conceito de “tradição” .......................................................................114 A tradução bíblica da Vulgata.............................................................. 116 As versões medievais da Escritura no vernáculo................................ 117 Os humanistas e a Bíblia............................................................................117 A Bíblia e a Reforma protestante.............................................................. 119 O cânon da Escritura............................................................................. 120 A autoridade da Escritura..................................................................... 122

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O papel da tradição............................................................................... 123 Métodos de interpretar a Escritura...................................................... 127 O direito de interpretar a Escritura..................................................... 131 A tradução da Escritura....................................................................... 136 A reação católica: Escritura e tradição segundo Trento......................... 137 N otas.......................................................................................................... 138

7. A doutrina da justificação pela fé.............................................139 O tema fundamental: a redenção por meio de Cristo............................ 139 A justificação e a descoberta teológica de Martinho Lutero.................. 141 Os conceitos iniciais de Lutero sobre justificação..............................142 A descoberta da “justiça de Deus” por Lutero....................................143 A natureza da fé justificadora...............................................................146 Conseqüências da doutrina da justificação de Lutero....................... 148 O conceito de “justificação forense”......................................................... 150 Divergências entre os reformadores a respeito da justificação.............. 154 A justificação e a Reforma suíça..........................................................154 Desenvolvimentos posteriores: a justificação segundo Bucer e Calvino................................................................................. 156 Diplomacia teológica: a “dupla justificação” ........................................... 158 A reação católica: a justificação segundo Trento.....................................159 A natureza da justificação.................................................................... 160 A natureza da justiça justificadora.......................................................162 A natureza da fé justificadora...............................................................163 A certeza da salvação............................................................................164 N otas.......................................................................................................... 165 8. A doutrina da igreja.................................................................. 166 O contexto dos debates da Reforma: a controvérsia donatista.............. 168 O contexto das visões a respeito da igreja da Reforma.......................... 171 A natureza da igreja segundo Lutero.......................................................173 A visão radical da igreja............................................................................ 174 Tensões na doutrina da igreja de Lutero.................................................176 A natureza da igreja segundo Calvino.....................................................178 As duas marcas da igreja...................................................................... 178 As estruturas da igreja..........................................................................179 A igreja e o Consistório segundo Calvino.......................................... 181 O papel da igreja segundo Calvino......................................................183 O debate a respeito da catolicidade da igreja.......................................... 185 A igreja segundo o concilio de Trento.....................................................188 N otas.......................................................................................................... 189

Sumário detalhado

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9. A doutrina dos sacramentos..................................................... 191 O contexto dos debates a respeito dos sacramentos............................... 191 Os sacramentos e as promessas de graça..................................................193 Os sacramentos segundo Lutero............................................................... 196 A presença real segundo Lutero...........................................................200 O batismo infantil segundo Lutero...................................................... 201 Os sacramentos segundo Zuínglio...........................................................203 A presença real segundo Zuínglio....................................................... 205 O batismo infantil segundo Zuínglio.................................................. 209 Lutero versus Zuínglio: um resumo e avaliação......................................211 Os sacramentos segundo os anabatistas.................................................. 214 Os sacramentos segundo Calvino............................................................216 A reação católica: os sacramentos segundo Trento.................................219 Notas.......................................................................................................... 221 10. A doutrina da predestinação..................................................222 Os antecedentes dos debates sobre a predestinação na época da Reforma.................................................................................222 A soberania divina segundo Zuínglio......................................................224 A mudança de opinião de Melanchthon a respeito da predestinação........................................................................................227 A predestinação segundo Calvino...........................................................229 A predestinação na teologia reformada posterior...................................235 N otas.......................................................................................................... 237 1 1. 0 pensamento político da Reforma.......................................238 A Reforma radical e as autoridades seculares......................................... 238 A doutrina dos dois reinos de Lutero...................................................... 241 O Estado e os magistrados segundo Zuínglio........................................ 248 Os magistrados e o ministério segundo Bucer........................................251 Os magistrados e o ministério segundo Calvino....................................251 N otas.......................................................................................................... 254 12. As ideias religiosas da Reforma inglesa................................. 255 O papel social das ideias religiosas: Alemanha e Inglaterra.................. 255 O humanismo inglês................................................................................. 258 As origens da Reforma inglesa: Henrique V III...................................... 260 A consolidação da Reforma inglesa: de Eduardo VI a Elizabeth 1 ......263 A justificação pela fé na Reforma inglesa................................................ 266 A presença real na Reforma inglesa.........................................................269 N otas.......................................................................................................... 272

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13. A difusão do pensamento da Reforma..................................273 Os agentes físicos de difusão.................................................................... 273 O vernáculo...........................................................................................273 Livros..................................................................................................... 274 A interação entre pessoas..................................................................... 275 A difusão de ideias: os textos principais..................................................277 Os catecismos........................................................................................277 As confissões de fé ................................................................................279 As Institutas da religião cristã de Calvino........................................... 280 Notas.......................................................................................................... 285 14.0 impacto da Reforma na História.........................................286 Uma atitude positiva em relação ao m undo........................................... 286 A ética protestante do trabalho.................................................................289 O pensamento da Reforma e as origens do capitalismo......................... 291 O pensamento da Reforma e as mudanças políticas...............................294 O pensamento da Reforma e a emergência das ciências naturais..... 296 Eclesiologias da Reforma e o mundo m oderno......................................300 Conclusão...................................................................................................301 N otas.......................................................................................................... 302 Apêndice 1 Glossário de termos teológicos e históricos.......... 303 Apêndice 2 Traduções para o inglês das principais fontes primárias............................................................................ 310 João C alvino..............................................................................................310 Desidério Erasmo de Roterdã................................................................... 311 Martinho Lutero........................................................................................ 311 Ulrico Zuínglio.......................................................................................... 312 Apêndice 3 Abreviaturas-padrão dos principais jornais e fontes............................................................................. 313 Fontes primárias........................................................................................ 313 Fontes secundárias.................................................................................... 315 Apêndice 4 Como se referjr às fontes primárias principais..... 316 João Calvino...............................................................................................316 Erasmo de Roterdã.................................................................................... 317 Martinho Lutero................................................. .......................................318 Ulrico Zuínglio.......................................................................................... 319

Sumário detalhado

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Apêndice 5 Para referir-se aos salmos no século 16.................. 320 Os números dos salmos na Vulgata.........................................................320 Referências aos salmos.........................................'..................................... 321 Apêndice 6 Bibliografia atualizada sobre a Reforma................322 Pesquisas na internet................................................................................. 322 O suplemento literário Archivfür Reformationsgeschichte.................... 323 Artigos de revisão crítica e bibliografias publicadas.............................. 323 Pesquisa de literatura em periódicos.......................................................324 Serviços de resumo.................................................................................... 325 Apêndice 7 Cronologia da história política e intelectual......... 326 Leituras adicionais........................................................................ 332 Capítulo 1...............................................................................................332 Capítulo 2 ..............................................................................................333 Capítulo 3...............................................................................................333 Capítulo 4...............................................................................................334 Capítulo 5...............................................................................................335 Capítulo 6.............................................................................................. 337 Capítulo 7...............................................................................................338 Capítulo 8...............................................................................................339 Capítulo 9...............................................................................................339 Capítulo 10.............................................................................................340 Capítulo 11.............................................................................................340 Capítulo 12.............................................................................................341 Capítulo 13.............................................................................................341 Capítulo 14.............................................................................................342 índice.............................................................................................343

Prefácio à quarta edição em inglês

A Reforma na Europa do século 16 é uma das áreas de estudo mais fasci­ nantes disponíveis ao historiador. Ela também continua a ser de importân­ cia central a qualquer um interessado na história da igreja cristã ou de suas ideias religiosas. A Reforma englobou diversas áreas bem distintas, embora sobrepostas, de atividades humanas: a reforma tanto da moral quanto das estruturas da igreja e da sociedade, novas abordagens a questões políticas, mudanças no pensamento econômico, a renovação da espiritualidade cris­ tã e a reforma da doutrina cristã. Foi um movimento baseado num con­ junto mais ou menos coerente de ideias, as quais eram cridas como sendo capazes de atuar como a base de um programa de reformas. Mas quais eram essas ideias? Qual era a origem delas? E como foram modificadas pelas condições sociais do período? A singularidade das ideias por trás da Reforma do século 16 é uma séria dificuldade - de fato, talvez a maior dificuldade - enfrentada pelo historiador moderno que es­ tuda esse período. O termo “teologia” tem sido usado pelos cristãos desde o século 3o para indicar um “discurso sobre Deus”. A palavra pode ser usada para se referir tanto às ideias centrais da fé cristã quanto à disciplina acadêmica que reflete sobre essas ideias. Muitos dos estudantes atuais da Reforma conhecem pouco a teologia cristã. Por exemplo, o grande lema teológico “justificação pela fé somen­ te” parece incompreensível a muitos estudantes desta era, assim como as complexidades dos debates do século 16 quanto à Eucaristia. Por que essas questões aparentemente obscuras causaram tal comoção naquela época? É uma tentação óbvia para o estudante da Reforma evitar dialogar com as ideias do movimento e tratá-lo como um fenômeno puramente social. Este livro foi escrito com a convicção de que há muitos estudantes que não se satisfazem com esse envolvimento superficial com as ideias da Re­ forma. Estes desejam lidar seriamente com essas ideias, mas se sentem

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desencorajados a fazer isso pelas dificuldades formidáveis encontradas ao tentar compreendê-las. A teologia cristã sempre terá um lugar de impor­ tância no estudo da Reforma. Por isso, não ter pelo menos certo grau de familiaridade com a teologia significa deixar de compreender a cultura e a autoconsciência da era da Reforma. As ideias religiosas exerceram um papel muito importante no desenvolvimento e na expansão da Reforma. Estudar a Reforma sem considerar essas ideias religiosas que alimentaram seu desenvolvimento é o mesmo que estudar a Revolução russa sem con­ siderar o marxismo. Historiadores não podem se isolar da linguagem e das ideias da era que estão estudando. Outra dificuldade que surge no caminho do estudante da Reforma é o avanço considerável feito na última geração na nossa compreensão tan­ to da Reforma em si como de seus antecedentes no final da Renascença, particularmente em relação ao período final do escolasticismo medieval. Parte desse trabalho ainda precisa ser filtrado para chegar até o estudante; e há uma necessidade premente de uma obra que explique as descobertas da erudição recente e indique sua importância para nossa compreensão da Reforma durante o século 16. O objetivo desta obra é fazer exatamente isso. Ela supõe que o leitor não conheça nada da teologia cristã, e procura fornecer um guia intro­ dutório às ideias que se provaram centrais a esse movimento na história europeia, enquanto, ao mesmo tempo, introduz aos poucos as descober­ tas de grande parte da erudição recente neste campo. O livro surgiu da minha experiência de muitos anos de ensino sobre a Reforma para estu­ dantes da Oxford University, e desejo reconhecer minha dívida para com esses estudantes. Foram eles que me ensinaram que diversas partes do estudo sobre a Reforma são assumidas como conhecimento público, mas que realmente precisam ser explicadas. Foram eles que identificaram os pontos mais difíceis que necessitam de uma análise especial. Foram eles que reconheceram a necessidade de uma obra deste tipo - e se o leitor a achar útil, deve agradecer a esses estudantes. Também sou grato aos meus colegas das faculdades de teologia e de História da Oxford University pe­ los muitos debates úteis a respeito das dificuldades encontradas ao ensinar o pensamento da Reforma no século 21. Este livro foi primeiramente publicado em 1988. Ficou imediatamen­ te óbvio que ele supria uma necessidade educacional real. Uma segunda edição expandida e revisada surgiu em 1993. A terceira edição de 1999 forneceu uma cobertura biográfica substancialmente maior dos princi­ pais pensadores da Reforma, e estendeu sua cobertura ao pensamento da Reforma inglesa.

Prefácio à quarta edição em inglês

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Esta nova edição retêm todas as características que tornaram as edi­ ções anteriores atraentes aos estudantes. Ao mesmo tempo, inclui material adicional de relevância direta. Além da necessária atualização geral, in­ corporando desenvolvimentos da erudição desde a última edição, a nova edição foi reorganizada para torná-la mais fácil de usar. A obra inteira foi revisada para assegurar que é tão acessível e útil quanto possível. Alguns críticos sugeriram que a obra ficaria melhor se ampliasse seu escopo para incluir os desenvolvimentos do século 17. Contudo, a maioria solicitou que ela mantenha seu foco atual no século 16. Esse desejo - que parece fazer sentido pedagogicamente - foi respeitado. Alister McGrath Londres, dezembro de 2011

Como usar este livro

Três palavras resumem o objetivo deste livro: apresentar, explicar e contextualizar. Primeiro, o livro visa apresentar as ideias principais da Re­ forma na Europa durante a primeira metade do século 16. É como o esbo­ ço de um mapa, o qual indica os pontos principais do terreno intelectual: notas e sugestões para leituras posteriores permitirão que o leitor acres­ cente os detalhes distintos posteriormente. Segundo, o livro visa explicar essas ideias. Ele supõe que o leitor não saiba nada sobre a teologia cristã que fundamenta a Reforma, e explica o significado de termos como “jus­ tificação pela fé” e “predestinação”, e porque eles têm relevância religiosa e social. Terceiro, o livro visa contextualizar essas ideias estabelecendo-as em seu contexto intelectual, social e político apropriado. Esse contexto inclui grandes movimentos intelectuais, tais como o humanismo e o es­ colasticismo, as ideologias religiosas alternativas da Reforma radical e do catolicismo, e as realidades políticas e sociais das cidades imperiais do início do século 16. Todos esses fatores afetaram o pensamento dos refor­ madores e seu impacto sobre o público deles-e esta obra tem o objetivo de identificar essa influência e avaliar seus efeitos. Uma série de apêndices lida com dificuldades que os estudantes nor­ malmente encontram ao lerem obras referentes à Reforma. O que estas abreviaturas significam? Como entender estas referências a fontes primá­ rias e secundárias? O que significa “pelagiano”? Onde posso encontrar mais informações a respeito da Reforma? Essas e outras questões são tra­ tadas em detalhes, o que torna este um livro singular. Assume-se que o leitor não conhece outras línguas além de sua língua materna, e todas as citações ou lemas em latim serão traduzidos e explicados. Embora o texto da obra use extensivamente obras eruditas em línguas estrangeiras, não disponíveis em nossa língua, uma bibliografia seleta de obras será forneci­ da para o benefício do leitor.

Como usar este livro

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Sobre as notas e sugestões de leitura As notas são poucas, limitadas a identificar a fonte de citações extensas ou de estudos eruditos mencionados explicitamente no texto. Para abre­ viaturas e formas de referência às fontes primárias," veja os apêndices 3 e 4. A melhor obra de referência disponível atualmente a respeito do pen­ samento da Reforma é a de H. J. Hillerbrande (org.), The Oxford encyclopaedia ofthe Reformation (4 v.; Oxford, 1996). Esse é um recurso essencial para qualquer um interessado em qualquer aspecto da Reforma, e inclui bibliografias substanciais. As bibliografias referentes a cada capítulo [que são encontradas no fi­ nal do Apêndice 6] não pretendem ser exaustivas. Sua função é identificar estudos potencialmente valiosos que permitam ao leitor desta obra inves­ tigar mais a fundo os tópicos de cada capítulo.

A Reforma: uma introdução

Muitos estudantes abordam a Reforma de modo semelhante ao modo como os viajantes medievais se aproximavam das enormes florestas negras do sul da Alemanha - com um senso de hesitação e ansiedade, temendo que o que surja pela frente seja impenetrável, ou acabem se descobrindo completamente perdidos e sem esperança. Com frequência, esses estu­ dantes são como exploradores que se aventuram em novos terrenos, in­ certos do que vão encontrar, às vezes perplexos com a imensidão de terra ainda não mapeada, e outras vezes inebriados pelas inesperadas vistas e vales. Muitos logo percebem que precisam de um guia para conduzi-los através do que parece ser uma densa floresta. É tentador para tais estudantes ignorar completamente as ideias da Reforma para se concentrarem nos seus aspectos políticos ou sociais. O preço de facilitar dessa maneira a compreensão da Reforma, entretanto, é o de não captar sua essência como um fenômeno histórico e o de não compreender porque ela permanece como um ponto de referência essen­ cial para muitos debates contemporâneos no mundo religioso e além. É compreensivelmente difícil para um estudante simpatizante do secularismo da cultura ocidental atual encarar um movimento que foi tão claramente motivado por ideias religiosas. É tentador marginalizar es­ sas ideias e abordar o século 16 com a cosmovisão do período moderno. Como qualquer fenômeno histórico, contudo, a Reforma exige que seus intérpretes busquem adentrar na cosmovisão dela. Precisamos aprender a nos identificar com seus interesses e perspectivas, de modo a entender como eles afetaram o grande fluxo da História. A Reforma na Suíça e na Alemanha foi baseada diretamente em ideias religiosas que exigem e me­ recem consideração cuidadosa. Até mesmo na Inglaterra, onde as condi­ ções locais geraram fatores políticos que tiveram uma influência maior do

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que as ideias religiosas, ainda havia um núcleo significativo dessas ideias sustentando os acontecimentos. Este livro pretende explicar tão claramen­ te quanto possível quais são as ideias religiosas que fundamentam a Refor­ ma e como elas afetaram aqueles que as aceitaram. Este capítulo introdutório tem o objetivo de lidar com algumas ques­ tões preliminares, preparando o terreno para uma análise mais detalhada do pensamento da Reforma nos capítulos posteriores.

O clamor por uma reforma O termo “Reforma” sugere imediatamente que algo - ou seja, o cris­ tianismo europeu - estava sendo reformado. Como muitos outros termos usados pelos historiadores para designar épocas da história humana, tais como “Renascença” ou “Iluminismo”, esse termo também é passível de crítica. Por exemplo, o século 12 testemunhou uma tentativa semelhante de reformar a igreja na Europa ocidental, mas o termo “Reforma” não é usado pelos historiadores para designar esse movimento anterior. Alguns podem achar que outros termos seriam mais apropriados para se referir ao movimento do século 16 que estaremos estudando nesta obra. No en­ tanto, permanece o fato de que o termo “Reforma” é geralmente aceito como a designação apropriada para esse movimento, em parte porque o movimento estava ligado com o reconhecimento da necessidade de uma revisão drástica das instituições, práticas e ideias da igreja ocidental. O termo é útil para indicar que havia tanto dimensões sociais quanto inte­ lectuais nesse movimento assim designado. Por volta do início do século 16, era óbvio a todos que a igreja na Euro­ pa ocidental precisava urgentemente de uma reforma. O clamor popular por uma “reforma na cabeça e nos membros” tanto resumia o problema quanto indicava uma solução possível. Muitos achavam que o sangue da igreja tinha parado de correr por suas veias. O sistema legal da igreja pre­ cisava muito de uma reestruturação, e a burocracia eclesiástica tinha se tornado notoriamente ineficiente e corrupta. A moral do clero era geral­ mente frouxa e uma fonte de escândalo para suas congregações. Mesmo no nível mais elevado, o clero frequentemente estava ausen­ te de suas paróquias. Na Alemanha, relata-se que apenas uma paróquia dentre quatorze tinha um pastor residente. O francês Antoine du Prat, arcebispo de Sens, compareceu a apenas um culto em sua catedral; além disso, sua presença e atuação nesse culto foram um tanto passivas, visto que se tratava do seu funeral. A maioria dos cargos eclesiásticos elevados era obtido por meios duvidosos, geralmente dependendo das conexões da família ou da situação política ou financeira dos candidatos em vez de

A Reforma: uma introdução

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depender de suas qualidades espirituais. Assim, o duque Amadeus VIII de Savoia obteve a indicação do seu filho para o cargo de bispo sênior de Genebra em 1451; se alguém tinha apreensão quanto ao fato do novo bispo nunca ter sido ordenado ou ter apenas 8 anos de idade, foi suficien­ temente prudente para ficar calado. O papa Alexandre VI, membro da família dos Bórgias (famosa por seus jantares letais), obteve sua eleição ao papado em 1492 apesar de ter diversas amantes e sete filhos, em grande parte porque abertamente pagou mais pelo cargo do que seus rivais. Nicolau Maquiavel atribuiu a frouxa moral da Itália no final da Re­ nascença ao péssimo exemplo estabelecido pela igreja e seu clero. Para muitos, o clamor por uma reforma significava um pleito por mudanças nos âmbitos administrativo, moral e legal da igreja: os abusos e a imora­ lidade precisavam ser eliminados; o papa devia se preocupar menos com assuntos mundanos; o clero precisava ser instruído de modo apropriado; e a administração da igreja devia ser simplificada e purificada de sua cor­ rupção. Para outros, a necessidade mais premente era quanto à espiritua­ lidade da igreja. Havia uma necessidade urgente de recapturar a vitalidade e o frescor da fé cristã. Muitos lembravam com saudades da simplicidade e do entusiasmo do cristianismo apostólico do século I o. Não seria possível retomar essa Era Dourada da fé cristã, talvez refletindo novamente sobre os documentos do Novo Testamento? Esse programa de reformas era o ávido sonho impossí­ vel dos intelectuais espalhados por metade da Europa. No entanto, os pa­ pas da Renascença pareciam mais interessados em questões seculares do que espirituais, e no seu esforço conjunto alcançaram um nível sem pre­ cedentes de avareza, corrupção, imoralidade e poder político espetacular­ mente malsucedido. As palavras de Gianfresco Pico delia Mirandola (não o confunda com seu tio, Giovanni), ditas em março de 1517, resumem bem os pensamentos que perturbavam muitas mentes instruídas daquela época: “Se desejamos ganhar os inimigos e apóstatas para nossa fé, é mais importante restaurar a moralidade caída às suas antigas regras de virtude do que singrar o mar Negro com nossa frota”. Entretanto, havia outros que acrescentavam mais uma exigência a essa lista de reformas há muito devidas: uma reforma da doutrina cristã, da teologia, das ideias religiosas. Para observadores críticos como Martinho Lutero em Wittenberg e João Calvino em Genebra, a igreja tinha perdido contato com sua herança intelectual e espiritual. Era hora de retomar as ideias da Era Dourada da igreja cristã. O triste estado da igreja no início do século 16 era simplesmente um sintoma de uma doença mais radi­ cal: o desvio das ideias distintivas da fé cristã, a perda da identidade in­ telectual, o fato de não compreender o que era realmente o cristianismo.

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O cristianismo não podia ser reformado sem a compreensão do que o cristianismo realmente devia ser. Para esses homens, o óbvio declínio da igreja do final da Renascença era o estágio final num processo gradual que já ocorria desde o início da Idade Média: a corrupção da doutrina e da ética cristãs. As ideias distintivas - defendidas por pensadores como Lutero e Calvino como fundamentos da fé e da prática cristã - haviam sido obscurecidas, se não totalmente pervertidas, por meio de uma série de desen­ volvimentos na Idade Média. De acordo com esses e outros reformadores desse período, era hora de reverter essas mudanças, desfazendo a obra da Idade Média, de modo a retornar a uma versão mais pura e fresca do cristianismo, a qual acenava para eles através dos séculos. Os reformado­ res ecoaram o clamor dos humanistas: “de volta às origens” (ad fontes); de volta à Era Dourada da igreja, de modo a reivindicar seu frescor, pureza e vitalidade em meio a um período de estagnação e corrupção. Os escritos dessa época pintam um quadro inquestionável de crescente ineficiência e corrupção eclesiástica, indicando o quanto a igreja do final da Idade Média precisava de uma reforma. No entanto, é necessária certa cautela quanto ao modo em que essas fontes devem ser interpretadas. Ê bem possível que elas documentem tanto níveis crescentes de expectativa na igreja medieval quanto níveis decrescentes de desempenho. O aumento do número de leigos instruídos - um dos elementos mais significativos na história intelectual da Europa do final da Idade Média levou à crítica crescente da igreja quanto à óbvia disparidade entre o que a igreja era e o que ela devia ser. O nível crescente de crítica pode refletir, portanto, o fato de que mais pessoas, por meio de oportunidades educa­ cionais florescentes, estavam em posição de criticar a igreja, em vez de indicar algum declínio adicional nos padrões eclesiásticos da época. Mas quem poderia reformar a igreja? No fim da primeira década do século 16, uma mudança fundamental de poder na Europa estava essen­ cialmente concluída. O poder do papa havia diminuído na medida em que o poder dos governos europeus seculares havia crescido. Em 1478, a Inquisição espanhola foi estabelecida, com poder sobre o clero e as ordens religiosas (e, no final das contas, também sobre os bispos). Contudo, era um instrumento do Estado espanhol, não da igreja espanhola. O controle desse sistema de tribunais não era do papa, mas do rei espanhol. A Con­ cordata de Bolonha (1516) déu ao rei da França o direito de indicar todo o alto clero da igreja francesa, dando-lhe efetivamente o controle direto dessa igreja e de suas finanças. Por toda a Europa, a capacidade do papa de impor uma reforma à sua igreja estava diminuindo de maneira regular. Mesmo se os papas do final

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da Renascença tivessem vontade de reformar (e há algumas indicações de que eles tinham), a capacidade deles de reformar a igreja estava gra­ dualmente desaparecendo. Essa diminuição da autoridade papal, entre­ tanto, não gerou um decréscimo no poder das igrejas locais ou nacionais, que continuavam a exercer grande influência sobre as nações. Foi a capa­ cidade do papa de controlar esse poder local ou nacional que diminuiu durante esse período. As reformas alemã, suíça e inglesa ilustram bem este ponto. Portanto, é importante observar o modo como os reformadores pro­ testantes se aliaram aos poderes regionais ou civis para efetivarem seu programa de reformas. Para as reformas, Lutero apelou à nobreza alemã, e Zuínglio ao conselho da cidade de Zurique, ressaltando os benefícios que adviriam a ambos os lados como conseqüência. Por razões que explora­ remos mais à frente (veja o início do capítulo 12), a Reforma inglesa (na qual fatores políticos tenderam a obscurecer as questões teológicas, geral­ mente tratadas como de importância secundária) não segue o padrão do movimento europeu como um todo. A Reforma continental prosseguiu por meio de uma aliança simbiótica entre os reformadores e as autoridades civis ou o Estado, cada um crendo que a Reforma resultante seria para benefício mútuo deles. Os reforma­ dores não estavam excessivamente preocupados de que estivessem dando autoridade adicional aos governantes seculares por meio de suas teorias do papel do Estado ou do “príncipe piedoso”: o mais importante era que os governantes seculares apoiassem a causa da Reforma, mesmo se suas razões ao fazer isso não fossem inteiramente honestas ou louváveis. Os reformadores principais eram pragmáticos, pessoas preparadas para permitir grande ganho aos governantes seculares desde que a cau­ sa da Reforma progredisse. De modo muito semelhante, é claro, os opo­ nentes da Reforma não hesitaram em apelar às autoridades seculares que achavam que seus interesses seriam mais bem protegidos se o status quo religioso fosse mantido. Nenhum estudo da Reforma pode deixar de lado suas dimensões políticas e sociais, visto que as autoridades seculares do norte da Europa perceberam nela sua oportunidade de arrebatar o poder da igreja, mesmo ao custo de se comprometerem assim com uma nova ordem religiosa. No entanto, permanece o fato de que certas ideias religiosas distintas alcançaram ampla circulação e influência na sociedade da Europa oci­ dental no século 16. A Reforma era sobre teologia, não apenas mudan­ ças sociais e políticas. Essas ideias teológicas não podem ser ignoradas ou marginalizadas por quem deseja estudar a Reforma. Espera-se que a presente obra as apresente, explique e contextualize.

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O conceito de "Reforma" O termo “Reforma” é usado em diversos sentidos, e é útil distingui-los. Como empregado na literatura histórica, o termo “Reforma” geralmente se refere a quatro elementos: o luteranismo, a Igreja Reformada (geralmen­ te chamada de “calvinismo”), a “ReforAnabatismo Literalmente,"rebama radical” (geralmente chamada de tismo". Usado para se referir à ala “anabatismo”) e a “Contrarreforma” radical da Reforma. ou “Reforma católica”. No seu sentido mais amplo, usa-se o termo “Reforma” para designar todos os quatro movimentos. Alguns estudos recentes desse período têm usado a forma plural “Reformas” para sugerir que a Reforma foi um movimento multifacetado - talvez até que tenha sido um conjunto frouxamente conectado de movimentos reformistas distintos, e não um movimento coerente unificado com adaptações locais. O termo “Reforma” é usado tradicionalmente num sentido um tanto mais restrito para indicar a “Reforma protestante”, desse modo excluindo a Reforma católica. Nesse sentido, refere-se aos três movimentos protes­ tantes descritos acima. Em algumas obras eruditas, o termo “Reforma” é usado para indicar o que às vezes se denomina de “Reforma magistral” ou “Reforma principal” - em outras palavras, o tipo de reforma que estava ligada às igrejas luterana e reformada, excluindo os anabatistas. A expressão incomum “Reforma magistral” exige certa explicação. Ela ressalta o modo pelo qual os principais reformadores desenvolveram um relacionamento geralmente positivo com as autoridades seculares, tais como príncipes, magistrados, ou conselhos municipais. Enquanto os refor­ madores radicais consideravam que tais autoridades não tinham direitos ou autoridade dentro da igreja, os reformadores principais argumentavam que a igreja era, pelo menos em certo sentido, sujeita às agências seculares do governo. O magistrado tinha direito à autoridade dentro da igreja, as­ sim como a igreja podia depender da autoridade do magistrado para impor disciplina, suprimir heresias ou manter a ordem. A expressão “Reforma magistral” é geralmente usada para chamar a atenção para esse estreito re­ lacionamento entre a magistratura e a igreja, o qual estava no centro do programa reformista de escritores como Martinho Lutero ou Martin Bucer. Todos esses sentidos da palavra “Reforma” serão encontrados ao se ler obras que tratem do século 16. O termo “Reforma magistral” tem sido cada vez mais usado para indicar os dois primeiros movimentos (isto é, o luteranismo e a Igreja Reformada) de forma conjunta, e o termo “Reforma radical” para indicar o terceiro (isto é, o anabatismo). Esta obra tratará primariamente das ideias da Reforma magistral.

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O termo “protestante” também exige comentários. Ele deriva dos re­ sultados da Segunda Dieta de Spira (em fevereiro de 1529), que votou pelo fim da tolerância ao luteranismo na Alemanha. Em abril do mesmo ano, seis príncipes alemães e quatorze cidades protestaram contra essa medida opressiva, defendendo a liberdade de consciência e os direitos das mino­ rias religiosas. O termo “protestante” deriva desse protesto. Portanto, não é exatamente correto aplicar o termo “protestante” a pessoas antes de abril de 1529, ou falar de acontecimentos antes disso como sendo a “Reforma pro­ testante”. O termo “evangélico” é geralmente usado na literatura para indi­ car as facções reformistas em Wittenberg e em outros locais (por exemplo, na França e na Suíça) antes dessa data. Embora o termo “protestante” seja geralmente usado para indicar esse período inicial, esse uso é, rigorosa­ mente falando, um anacronismo.

A Reforma Luterana A Reforma Luterana está associada particularmente com os territórios alemães e com a abrangente influência pessoal de um indivíduo carismá­ tico - Martinho Lutero (1483-1546). Lutero tinha um interesse particular Justificação pela fé Seção da na doutrina da justificação, a qual forteologia cristã que diz respeito mava o ponto central do seu pensaa como é possível a um pecador mento religioso. A Reforma Luterana individual entrar em comunhão foi inicialmente um movimento acacom Deus. dêmico, preocupado primariamente em reformar o ensino de teologia na Universidade de Wittenberg. Witten­ berg não era uma universidade importante, e as reformas introduzidas na faculdade de teologia por Lutero e seus colegas atraíram pouca atenção. Foram as atividades pessoais de Lutero - tais como postar as famosas 95 teses (em 31 de outubro de 1517) e a Disputa de Leipzig (em junho-julho de 1519; veja o final do capítulo 3) - que levaram as ideias reformistas que circulavam em Wittenberg à atenção de um público maior (embora nem sempre apreciador dessas ideias). Rigorosamente falando, a Reforma Luterana começou realmente em 1522, quando Lutero retornou a Wittenberg do seu isolamento forçado em Wartburg. Lutero tinha sido condenado pela Dieta de Worms em 1521. Temendo pela vida dele, alguns seguidores de posição elevada o le­ varam em segredo para o castelo conhecido como o “Wartburg”, até que a ameaça à sua segurança cessasse. (Lutero usou seu isolamento força­ do para começar a traduzir o Novo Testamento para o alemão.) Na sua ausência, André Bodenstein von Karlstadt (1486-1541), um dos colegas

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acadêmicos de Lutero em Wittenberg, começou um programa de refor­ mas em Wittenberg que pareceu degenerar em caos. Convencido de que sua presença era necessária para que a Reforma sobrevivesse à inépcia de Karlstadt, Lutero deixou seu lugar de segurança e voltou a Wittenberg. Nesse ponto, o programa de Lutero para reformas acadêmicas já havia se transformado num programa para reforma da igreja e da sociedade. O foro de atividade de Lutero não era mais o mundo universitário das ideias; ele agora era considerado o líder de um movimento de reforma religiosa, social e política que parecia a alguns observadores da época estar abrindo caminho para uma nova ordem social e religiosa na Europa. De fato, deve ser observado que o programa de reformas de Lutero era mais conservador, na verdade, do que o associado a seus colegas reformados, tais como Ulrico Zuínglio. Também teve menos sucesso do que alguns antecipavam. O movimento permaneceu teimosamente atrelado aos territórios alemães, e - à parte dos reinos da Escandinávia - nunca consolidou as bases estrangeiras de poder que pareciam estar maduras, como maçãs prontas a cair no seu colo. A compreensão de Lutero quanto ao papel do “príncipe piedoso” (que efetivamente assegu­ rava ao monarca o controle da igreja) não parece ter suscitado a atenção que havia sido esperada, particularmente à luz dos sentimentos geral­ mente republicanos de pensadores reformados como Calvino. O caso da Inglaterra é particularmente esclarecedor: assim como na Baixa Escócia, a teologia protestante que no final prevaleceu foi a reformada em vez da luterana.

A Igreja Reformada As origens da Igreja Reformada procedem de acontecimentos dentro da Confederação Suíça. Enquanto a Reforma Luterana teve suas origens primariamente num contexto acadêmico, a Igreja Reformada deve suas origens a uma série de tentativas de reformar a moral e o culto da igreja (mas não necessariamente sua doutrina) de acordo com um padrão mais bíblico. Embora a maioria dos teólogos reformados iniciais - tais como Ulrico Zuínglio (1484-1531) - tivesse formação acadêmica, seus progra­ mas de reforma não eram. acadêmicos em sua natureza. Eles estavam in­ teressados principalmente em reformar as práticas das igrejas (como o culto) nas cidades suíças, tais como Zurique, Berna e Basiléia. Enquanto Lutero estava convencido de que a doutrina da justificação pela fé era de importância central para seu programa de reforma social e religiosa, os primeiros pensadores reformados tinham relativamente pou­ co interesse por doutrinas, muito menos por essa doutrina específica. Seu

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programa de reformas era institucional, social e ético, de muitas maneiras semelhantes às exigências de reforma que emanavam do movimento hu­ manista. Consideraremos as ideias do humanismo em detalhes posteriorhumanismo Movimento commente (no capítulo 3); por ora, é implexo que envolvia um interesse portante apenas observar que todos os renovado pelas realizações cultuprincipais teólogos reformados inirafs da Antiguidade, ciais tinham ligações com o movimen­ to humanista. Lutero não compartilhava dessas ligações e as considerava com alguma suspeita. Em geral, pensa-se que a consolidação da Igreja Reformada começou com a estabilização da reforma em Zurique. Isso se deu depois da morte de Zuínglio em batalha (em 1531), com seu sucessor Henrique Bullinger (1504-1575). Essa consolidação se encerrou com a emergência de Gene­ bra como sua base de poder e com João Calvino (1509-1564) como seu porta-voz principal, na década de 1550. A mudança gradual de poder na Igreja Reformada (inicialmente de Zurique para Berna, e subsequente­ mente de Berna para Genebra) aconteceu no período de 1520 a 1560. Ao final, estabeleceram-se como predominantes dentro da Igreja Reformada a cidade de Genebra, seu sistema político (republicanismo) e seus pen­ sadores religiosos (inicialmente Calvino, e depois da sua morte, Teodoro Beza). Esse desenvolvimento se consolidou por meio do estabelecimento da Academia de Genebra (fundada em 1559), na qual os pastores refor­ mados eram treinados. O termo “calvinismo” é geralmente usado para indicar as ideias reli­ giosas da Igreja Reformada. Embora ainda esteja bem difusa na literatura relacionada à Reforma, essa prática é em geral desincentivada hoje em dia. Torna-se cada vez mais claro que a teologia reformada do final do século 16 se fundamenta em outras fontes além das ideias do próprio Calvino. Assim, referir-se ao pensamento reformado do final do século 16 e do século 17 como “calvinista” sugere que ele é essencialmente o pensamento de Calvino. Hoje, geralmente há consenso de que as ideias de Calvino foram sutilmente modificadas pelos seus sucessores. (Explo­ raremos esses desenvolvimentos em relação à doutrina da predestinação no final do capítulo 10.) Atualmente, o termo “reformado” é preferido, seja para indicar as igrejas (principalmente na Suíça, na Baixa Escócia e na Alemanha) ou os pensadores religiosos (como Teodoro Beza, William Perkins ou John Owen) que se fundamentavam no celebrado livro re­ ligioso de Calvino - as Institutas da religião cristã- ou para indicar os documentos eclesiásticos (tais como o famoso Catecismo de Heiáelberg) que se baseiam nesse livro.

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O termo “calvinista” apresenta algumas dificuldades para o historiador intelectual. O termo data da década de 1560, quando ocorreu uma alte­ ração significativa na situação política dos territórios alemães. A Alema­ nha ficou seriamente desestabilizada na década de 1540 e no começo da de 1550 pelos conflitos entre os luteranos e os católicos. Era amplamen­ te reconhecido que tais conflitos estavam causando danos ao Império. A Paz de Augsburgo (em setembro de 1555) definiu a questão religiosa Alemanha alocando certas áreas para o luteranismo e o restante para o catolicismo - o famoso princípio em geral descrito como cuius regio, eius religio (“sua região determina sua religião”). Nenhuma provisão foi feita para a fé reformada, que foi efetivamente declarada como “não existente” na Alemanha. No entanto, em fevereiro de 1563, o Catecismo de Heidelberg foi pu­ blicado (veja a seção “Confissões de fé” do capítulo 14), indicando que a teologia reformada tinha estabelecido uma posição segura nessa região da Alemanha que até então era luterana. Esse catecismo foi imediatamente atacado pelos luteranos como sendo “calvinista” - em outras palavras, es­ trangeiro. O termo “calvinista” foi usado pelos luteranos alemães tentando desacreditar como antipatriótico esse novo documento que exercia cres­ cente influência. Dadas essas associações polêmicas originais do termo “calvinista”, parece mais apropriado ao historiador usar um termo mais neutro para se referir a esse movimento. O termo “reformado” é ampla­ mente usado por esse motivo, e deve ser preferido. Dos três elementos constituintes da Reforma protestante - luterano, reformado (ou calvinista) e anabatista- é a ala reformada que tem impor­ tância especial para o mundo de fala inglesa. Uma das formas específicas do cristianismo reformado é o puritanismo, o qual se apresenta de modo proeminente na história da Inglaterra do século 17 e é de importância fundamental para as noções políticas e religiosas da Nova Inglaterra do século 17 em diante. Para compreender a história religiosa e política da Nova Inglaterra ou as ideias de escritores como Jonathan Edwards (17031758), por exemplo, é necessário pelo menos entender algumas das per­ cepções teológicas e parte da perspectiva religiosa do puritanismo que fundamenta suas atitudes sociais e políticas. Espera-se que esta obra o ajude nesse processo de familiarização.

A Reforma radical (anabatismo) O termo “anabatista” deve sua origem a Zuínglio (a palavra significa literalmente “rebatizador”), e se refere ao que era talvez o aspecto mais característico da prática anabatista: a insistência de que apenas os que

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tivessem feito uma profissão pública de fé deviam ser batizados. O anabatismo parece ter surgido primeiramente ao redor de Zurique, na esteira das reformas de Zuínglio dentro da cidade no início da década de 1520. Centrava-se num grupo de indivíduos (entre os quais podemos destacar Conrad Grebel, c. 1498-1526) que argumentava que Zuínglio não estava sendo fiel aos seus próprios princípios reformistas. Ele pregava uma coisa e praticava outra. Embora Zuínglio professasse fidelidade ao princípio da sola scriptura (“somente pela Escritura”; veja a seção “A autoridade da Escritura” no ca­ pítulo 6), Grebel argumentava que ele tinha retido diversas práticas - in­ cluindo o batismo infantil, a estreita conexão entre a igreja e a magistratura, e a participação dos cristãos nas guerras - que não eram sancionadas ou ordenadas pela Escri­ tura. Nas mãos de pensadores tão rasola scriptura Movimento comdicais, o princípio da sola scriptura foi plexo que envolvia um interesse radicalizado (veja a seção “O papel da renovado pelas realizações cultutradição” no capítulo 6); os cristãos rera's da Antiguidade, formados passaram a crer e a praticar apenas o que era explicitamente ensinado na Escritura. Zuínglio ficou alarmado com isso, percebendo-o como uma evolução desestabilizadora que ameaçava cortar a Igreja Reformada de Zurique de suas raízes histó­ ricas e de sua continuidade com a tradição cristã do passado. Os anabatistas tinham bons motivos para acusar Zuínglio de conces­ sões. Em 1522, Zuínglio escreveu uma obra conhecida como Apologeticus archeteles, na qual ele reconhece a ideia de uma “comunidade de bens” como um ideal cristão autêntico. “Ninguém entende como sua qualquer posse”, ele escreveu, “todas as coisas são compartilhadas com todos.” Con­ tudo, já em 1525, Zuínglio tinha mudado de ideia e chegou à conclusão de que a propriedade privada não era algo tão ruim, afinal de contas. Embora o anabatisrúô tenha se iniciado na Suíça e na Alemanha, mais tarde se tornou influente em outras regiões, como a Baixa Escócia. O movimento produziu relativamente poucos teólogos; concorda-se geral­ mente que os três mais significativos foram Balthasar Hubmaier (c. 14801538), Pilgram Marbeck (morreu em 1556) e Menno Simons (1496-1561). Essa deficiência reflete parcialmente a forte supressão do anabatismo pe­ las autoridades seculares. No entanto, também pode refletir o fato de que o movimento não tinha qualquer base teológica substancial em comum. Diversos elementos comuns podem ser discernidos dentro das várias linhas do movimento: uma desconfiança geral das autoridades externas, a rejeição do batismo infantil em favor do batismo dos crentes adultos, a posse comum de propriedades, e uma ênfase no pacifismo e na não

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resistência. Para ilustrar, consideremos um desses pontos: em 1527, os go­ vernos das cidades de Zurique, Berna e St. Gallen acusaram os anabatistas de crerem “que nenhum cristão verdadeiro pode cobrar ou pagar juros sobre um capital; que todos os bens temporais são livres e comuns, e que todos podem ter totais direitos de posse deles”. É por essa razão que o “anabatismo” é frequentemente descrito como a “ala esquerda da Reforma” (Roland H. Bainton) ou a “Reforma radical” (George Hunston Williams). Para Williams, a “Reforma radical” deve ser contrastada com a “Reforma magistral”, que ele identificou amplamente com os movimentos luterano e reformado. Esses termos têm sido cada vez mais aceitos entre os estudiosos da Reforma, e o leitor provavelmente os encontrará em suas leituras de estudos mais recentes do movimento. Provavelmente o documento mais significativo que surgiu do movi­ mento é a Confissão de Schleitheim, escrita por Michael Sattler (14901527) em 24 de fevereiro de 1527. A Confissão recebe seu nome da pequena cidade assim chamada no cantão de Schaffhausen. Sua função era distinguir os anabatistas dos demais ao seu redor, especialmente dos descritos no documento como “papistas e antipapistas” (ou seja, católi­ cos não reformados e evangélicos magistrais). Na verdade, a Confissão de Schleitheim se compõe de “artigos de separação”. Ou seja, um conjunto de crenças e atitudes que distingue os anabatistas de seus oponentes dentro e fora da Reforma, e funciona como um núcleo de unidade, quaisquer que fossem suas outras diferenças.

A Reforma católica Esse termo é usado muitas vezes para descrever a revitalização do cato­ licismo no período subsequente à abertura do Concilio de Trento (1545). Em obras eruditas mais antigas, o movimento é geralmente designado de “Contrarreforma”: como o termo sugere, essa expressão descreve as es­ tratégias que a igreja católica desenvolveu como um meio de combater a Reforma protestante. A igreja católica reagiu à Reforma parcialmente por meio de reformas internas, de modo a eliminar as causas da crítica protes­ tante. Nesse sentido, o movimento deve ser visto tanto como uma reforma da igreja católica como uma crítica da Reforma protestante. Os mesmos interesses' subjacentes à Reforma protestante no norte da Europa foram canalizados para a renovação da igreja católica, particular­ mente na Espanha e na Itália. O Concilio de Trento, a parte principal da Reforma católica, esclareceu o ensino católico quanto a diversas questões confusas e introduziu reformas muito necessárias quanto à conduta do cle­ ro, à disciplina eclesiástica, à instrução religiosa e à atividade missionária.

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O movimento pela reforma dentro da igreja católica foi grandemente esti­ mulado pela reforma de muitas das ordens religiosas mais antigas e pelo estabelecimento de novas ordens (tal como a “Sociedade de Jesus”, geral­ mente denominada de “os jesuítas”). Os aspectos mais especificamente te­ ológicos da Reforma católica serão considerados em relação ao seu ensino sacramento Cerimônia ou ritual sobre Escritura e tradição, justificação da igreja que se considera ter sido pela fé, a igreja, e os sacramentos. instituído pelo próprio Jesus Cristo. Como resultado da Reforma Cató­ lica, foram eliminados muitos dos abusos que originalmente haviam ge­ rado o clamor por reforma - quer tenham vindo dos humanistas ou dos protestantes. No entanto, a essa altura, a Reforma protestante tinha atin­ gido um ponto em que a simples eliminação dos abusos e das práticas erradas não era mais suficiente para reverter a situação: a exigência de uma reforma nas doutrinas, na ideologia religiosa e na igreja era consi­ derada como um aspecto essencial das controvérsias entre protestantes e católicos. Esse ponto destaca a necessidade de considerarmos as ideias religiosas por trás da “Reforma magistral”, as quais se tornaram cada vez mais importantes para o debate entre protestantes e católicos na medida em que avançava o século 16.

A importância da imprensa Os desenvolvimentos tecnológicos recentes no campo do proces­ samento e transferência de dados - como a Internet - revolucionaram muitos aspectos da vida atual. É importante observar que às vésperas da Reforma desenvolveu-se uma inovação tecnológica única destinada a exercer enorme influência sobre a Europa ocidental. Obviamente, essa inovação foi a imprensa. Ela exerceu um impacto muito substancial no desenvolvimento e na propagação das ideias da Reforma. Embora a imprensa tenha sido originalmente desenvolvida séculos antes pelos chineses, os primeiros documentos impressos europeus que podem ser datados com segurança se originaram da prensa de Johann Gutenberg (c.1398-1468) em Mainz por volta de 1454. Em 1456, a mesma prensa produziu uma Bíblia impressa em latim. A isso se seguiu em 1457 o Saltério de Mainz, que estabeleceu o costume de identificar o impressor, a localização da prensa e a data da publicação na página de título da obra. Da Alemanha a tecnologia foi levada para a Itália, e prensas foram estabelecidas em Subiaco (1464) e Veneza (1469). Caxton estabeleceu sua oficina de impressão em Westminster, Londres, em 1476. A famosa Im­ prensa Aldine foi estabelecida em Veneza em 1495 por Aldus Manutius

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Romanus. Essa prensa foi responsável por dois desenvolvimentos impor­ tantes: as letras de “caixa baixa” (assim designadas porque eram mantidas na mais baixa de duas caixas contendo os tipos) e o tipo inclinado “itálico” (assim denominado nas obras em inglês visto que Veneza ficava na Itália; Aldus, contudo, o denominava de tipo “chancelaria”). Por que a imprensa exerceu tão grande impacto sobre a Reforma? Considere os seguintes pontos. Primeiro, a imprensa significava que era possível produzir de modo rápido e barato obras em defesa do programa da Reforma. O processo tedioso de copiar manuscritos à mão não era mais necessário. Além disso, os erros que surgiam no processo de cópia podiam ser eliminados; uma vez que os tipos fossem preparados para uma obra, podia-se produzir qualquer número de cópias livres de erro. Todos que sabiam ler e tinham dinheiro para comprar livros estavam em condi­ ções de aprender sobre as novas ideias sensacionais procedentes de Wit­ tenberg e Genebra. Por exemplo, na Inglaterra, eram as classes letradas e ricas que mais conheciam sobre o luteranismo na terceira década do sécu­ lo 16. Os livros luteranos, banidos pelas autoridades como subversivos, eram contrabandeados por meio da rota de comércio hanseática até Cam­ bridge pelos portos de Antuérpia e Ipswich. Não era preciso que Lutero fosse à Inglaterra para estabelecer um público para suas ideias - elas fo­ ram espalhadas pela palavra impressa protestantismo Termo usado (veja a seção “Livros” no capítulo 14). para designar os que "protestaEsse ponto é importante quanto à ram" contra as práticas e crenças sociologia do protestantismo inicial, da Igreja Católica Romana. Tanto na Inglaterra como na França, por exemplo, os primeiros protestan­ tes surgiram nas camadas mais elevadas da sociedade, precisamente por­ que essas camadas sabiam ler e tinham dinheiro para pagar pelos livros (os quais em geral eram bem caros, por serem frequentemente contraban­ deados de longe). Do mesmo modo, a influência maior do protestantismo na Universidade de Cambridge do que na de Oxford é um reflexo parcial da maior proximidade da primeira com os portos do continente dos quais os livros protestantes estavam sendo importados (ilicitamente). Segundo, a Reforma estava baseada em determinadas fontes específi­ cas: a Bíblia e os teólogos cristãos dos primeiros cinco séculos (em geral denominados de “os Pais” ou “os escritores patrísticos”). A invenção da imprensa teve dois efeitos imediatos sobre essas fontes, de importância considerável para as origens da Reforma. Então era possível produzir edições mais precisas dessas obras - por exemplo, pela eliminação dos erros de cópia. Ao comparar o texto impresso de uma obra com as fontes manuscritas, podia-se estabelecer o melhor texto possível para ser usado

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como base da reflexão teológica. No final do século 15 e no início do sé­ culo 16, os eruditos humanistas esquadrinharam as bibliotecas da Europa à procura de manuscritos patrísticos que pudessem organizar e publicar. Como resultado, essas fontes ficaram muito mais disponíveis do que jamais havia sido possível antes. Na década de 1520, qualquer pessoa po­ dia ter acesso a uma edição confiável do texto grego do Novo Testamento ou dos escritos de Agostinho de Hipona (354-430), um escritor patrístico particularmente estimado pelos reformadores. Os onze volumes das obras completas de Agostinho foram publicados em Basiléia pelos irmãos Amerbach, depois de um processo editorial que durou de 1490 a 1506. Embora pareça que apenas duzentos exemplares de cada volume foram publicados, eles foram amplamente usados para se ter acesso ao texto mais confiável desse importante autor. Erasmo de Roterdã produziu o primeiro texto publicado do Novo Tes­ tamento grego em 1516. Denominada de Novum instrumentum omne, a obra tinha três seções principais: o texto grego original do Novo Testa­ mento; uma nova tradução para o latim desse texto grego, que corrigia as inadequadas traduções existentes em especial a Vulgata (veja a seção “A Vulgata Tradução da Bíblia para tradução bíblica da Vulgata” no capío latim sobre a qual se baseava tulo 6); e, finalmente, um comentário amplamente a teologia medieval, extenso sobre o texto em forma de anotações. A obra foi amplamente usada por aqueles que simpatizavam com a causa da Reforma. Para os reformadores - especialmente Lutero e seus colegas em Wittenberg - as ideias religiosas da Reforma dependiam fortemente da Bíblia e de Agostinho. O advento da imprensa, juntamente com métodos de venda de livros cada vez mais efetivos, significou que textos precisos e confiáveis de ambas essas fontes sé tornaram amplamen­ te disponíveis. Desse modo, foi facilitado tanto o desenvolvimento inicial quanto a difusão subsequente dessas ideias. É impossível exagerar a importância da imprensa em espalhar as ideias da Reforma. Pesquisas nas coleções particulares de livros das famílias burguesas francesas indicam as implicações religiosas dessa tendência. O Novo Testamento francês de 1523 de Jacques Lefèvre, ex­ plicitamente endereçado “a todos os homens e mulheres cristãos”, e seu Saltério francês de 1524 foram lidos amplamente por toda a França, e até mesmo distribuídos de graça dentro da diocese reformista de Meaux. Frequentemente se encontram exemplares dessas obras, além dos comentários neotestamentários de Erasmo, Melanchthon e do próprio Lefèvre, brigando por espaço nas prateleiras das bibliotecas burguesas no final da década de 1520. Se esses livros foram lidos pelos seus donos

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- e a evidência sugere fortemente que foram - certamente se desenvolveu considerável pressão por reformas.

O uso do vernáculo nos debates teológicos Lutero aprendeu com Erasmo que a imprensa era importante para pro­ jetar uma influência intelectual na çdciedade. Em 1520, ele começou a promover a causa de sua reforma apelando por meio da imprensa direta­ mente ao povo alemão, passando por cima de clérigos e acadêmicos. Foi uma tática imitada por toda a Europa, assim que o poder dos panfletos se tornou óbvio a todos. Então Lutero começou a exercer o impacto popular que ele sabia ser essencial para mudar o formato da igreja, em vez de ficar remendando sutilezas acadêmicas. Ele fez isso usando o vernáculo como um meio de comunicação teológica. Por que esse fenômeno é tão importante? A linguagem da academia, da igreja e do Estado na Europa ocidental por toda a Idade Média era o la­ tim. Havia uma necessidade óbvia de uma linguagem comum que permi­ tisse comunicação por toda essa vasta e diversa região do mundo. O latim era a língua dos grandes poetas, retóricos, políticos e filósofos romanos, e de teólogos cristãos de grande influência como Agostinho de Hipona, Ambrósio de Milão e Tertuliano. Lutero sabia que tudo que ele escrevesse em latim seria compreendido pela elite culta em toda a Europa. No entanto, Lutero queria alcançar mais do que um público acadêmico. Ele queria tocar o coração e a mente das pessoas comuns. A decisão de publicar em alemão foi marcante, tornando-se uma declaração da natureza inclusiva da reforma que Lutero se propunha a seguir. Publicar em latim seria excluir as pessoas comuns. Publicar no seu alemão nativo era demo­ cratizar o debate sobre o futuro da igreja, incluindo aqueles que eram tra­ dicionalmente marginalizados pelo uso da antiga linguagem erudita. Desse momento em diante, uma das marcas distintivas do protestantismo passou a ser o seu uso do vernáculo em todos os níveis. E o mais importante de tudo, a Bíblia também foi traduzida para a linguagem do povo. Um exemplo irá ilustrar a importância tanto da imprensa quanto do uso do vernáculo para a propagação das ideias da Reforma. Um momento decisivo na Reforma francesa foi a publicação da edição em francês das Institutas da religião cristã de Calvino em 1541. De repente, doutrinas re­ formistas radicais expressadas de modo coerente e com cuidadosa argu­ mentação estavam disponíveis na França numa linguagem que a maioria podia entender (veja a seção final do capítulo 14). Surgiu quase que um pânico nos círculos oficiais de Paris. Em I o de julho de 1542, o parlement parisiense determinou que todas as obras

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contendo doutrinas heterodoxas, especialmente as Institutas de Calvino, deviam ser entregues às autoridades dentro de três dias. Assim, as Ins­ titutas de Calvino foram consideradas o início de um ataque genebrino à igreja católica francesa, mediada pela palavra impressa em francês. A reação dos livreiros de Paris foi imediata: protestaram que seriam arrui­ nados financeiramente se fossem proibidos de vender tais livros. Parece que havia um grande mercado para as obras consideradas perigosamente heterodoxas pelas autoridades - evidência adicional da importância de pessoas leigas instruídas e abastadas na promoção das ideias da Reforma. De fato, Laurent da Normandia, amigo de Calvino e livreiro, descobriu que o contrabando de livros era tão lucrativo que ele emigrou para Ge­ nebra para poder publicar esse tipo de livros em vez de apenas vendê-los. Entretanto, isso não quer dizer que a Reforma tenha dependido inteira­ mente de uma inovação tecnológica ou do uso do vernáculo. O contexto so­ cial da Reforma nos ajuda a compreender algo do seu apelo naquela época.

O contexto social da Reforma A Reforma no norte da Europa foi baseada amplamente nas cidades. Na Alemanha, mais de cinqüenta das 65 “cidades imperiais” reagiram po­ sitivamente à Reforma, e apenas cinco decidiram ignorá-la completamen­ te. Na Suíça, a Reforma se originou num contexto urbano (Zurique), e se espalhou por meio de um processo de debates públicos nas cidades con­ federadas como Berna, Basiléia e outros centros ligados a essas cidades por tratados - tais como Genebra e St. Gallen. O protestantismo francês começou como um movimento predominantemente urbano, com suas raízes nas principais cidades como Lião, Orleães, Paris, Poitiers e Ruão. Torna-se cada vez mais claro que o sucesso ou o insucesso da Reforma nessas cidades dependia em parte de fatores políticos e sociais. No final do século 15 e no início do século 16, os conselhos municipais das cida­ des imperiais tinham conseguido obter um grau substancial de indepen- / dência. De fato, cada cidade parecia se considerar como um Estado em miniatura, com o conselho municipal funcionando como um governo e o restante dos seus habitantes como súditos. O crescimento em tamanho e importância das cidades da Alemanha é um dos elementos mais significativos na História do final do século 14 e do século 15. Uma extensa crise de alimentos, em conexão com a de­ vastação causada pela Peste Negra, gerou uma crise agrária. Os preços do trigo caíram de modo alarmante no período de 1450-1520, gerando um despovoamento rural porque os trabalhadores agrícolas migraram para as cidades na esperança de encontrarem alimento e trabalho. Sem terem

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acesso às corporações comerciais e aos conselhos municipais, o descon­ tentamento cresceu dentro desse novo proletariado urbano. O início do século 16, então,-testemunhou uma inquietação social crescente em muitas cidades, na medida em que ganhavam força as rei­ vindicações por um governo mais representativo e com base mais ampla. Em muitos casos, a Reforma se associou com essas exigências por mu­ dança social, de modo que as mudanças religiosas e sociais caminharam juntas, lado a lado. Não devemos pensar que os interesses religiosos so­ brepujaram as demais atividades mentais - apenas forneceram um ponto focal para elas. Fatores econômicos, sociais e políticos ajudam a explicar porque a Reforma foi bem-sucedida, por exemplo, em Nuremberg e em Estrasburgo, mas não teve sucesso em Erfurt. Diversas teorias foram propostas desde 1970 para explicar a atração das cidades pela Reforma. O alemão Berndt Moeller, historiador da igreja, argumenta que o sentido urbano de comunidade foi abalado no século 15 pelas crescentes tensões sociais nas cidades e pela crescente tendência de depender de corpos políticos externos, como o governo imperial ou a cúria papal.1Moeller sugere que, ao adotarem a Reforma Luterana, essas cidades eram capazes de restaurar um sentido de identidade comunitária, incluindo a noção de uma comunidade religiosa comum que unia os habi­ tantes numa vida religiosa compartilhada. De modo significativo, Moeller chama a atenção para as implicações sociais da doutrina de Lutero quanto ao sacerdócio de todos os crentes (veja a seção “A doutrina dos dois reinos de Lutero” no capítulo 11), a qual destruía certas distinções tradicionais na sociedade urbana e incentivava um sentido de unidade comunitária. Uma segunda explicação é oferecida pelo norte-americano Thomas A. Brady, historiador da cultura, baseada em grande medida em sua análise da cidade de Estrasburgo.2 Brady argumenta que a decisão de adotar o protestantismo em Estrasburgo foi o resultado de uma luta de classes, na qual a coalizão governante de patrícios e mercadores cria que sua posição social só podia ser mantida por meio de um alinhamento com a Reforma. Os oligarcas urbanos adotaram a Reforma como um meio sutil de pre­ servar seus interesses velados, os quais estavam ameaçados por um mo­ vimento de protesto popular. Brady sugere que uma situação semelhante existia em muitas outras.cidades. Uma terceira explicação do apelo da Reforma para as comunidades urbanas do século 16 centraliza-se na doutrina da justificação pela fé (uma ideia explorada em detalhes no capítulo 7). Num estudo publicado em 1975, o norte-americano Steven Ozment, historiador da igreja, argu­ menta que o apelo popular do protestantismo se deve à sua doutrina da justificação pela fé, que oferecia alívio da pressão psicológica do sistema

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penitencial do final da Idade Média e de sua doutrina associada de justifi­ cação “semipelagiana”.3Visto que essa pressão psicológica era mais pesada e mais evidente nas comunidades urbanas, ele argumenta que foi nessas comunidades que o protestantismo encontrou seu maior apoio popular. Ozment argumenta que Moeller exagerou muito quanto às diferen­ ças entre Lutero e os teólogos do sudoeste. Os primeiros reformadores compartilhavam uma mensagem comum, que podia ser resumida como a libertação dos crentes individuais dos pesos psicológicos impostos pela religião do final da Idade Média. Quaisquer que sejam suas diferenças, os reformadores magistrais - tais como Bucer, Zuínglio e Lutero - com­ partilham um interesse comum em proclamar a doutrina da justificação pela fé por meio da graça, eliminando assim a necessidade teológica das indulgências, do purgatório, da invocação aos santos, e assim por diante, além de diminuir o interesse popular por essas coisas. Essa teoria é impor­ tante para esta obra porque ilustra o papel das ideias em gerar pressão por reformas e mudanças: a pressão por mudança social, de acordo com Oz­ ment, não é a causa, mas o resultado das novas ideias religiosas da época. Cada uma dessas teorias é significativa, e juntas elas fornecem um es­ tímulo importante para o estudo mais detalhado do desenvolvimento do protestantismo urbano na primeira fase da Reforma. Igualmente, já se de­ monstrou que cada uma delas tem fraquezas óbvias, como se pode espe­ rar de teorias globais ambiciosas. Por exemplo, no caso de Genebra, como veremos, as tensões sociais - que resultaram afinal no alinhamento com a cidade protestante de Berna e na adoção da reforma zuingliana - não surgiram de diferenças entre classes, mas da divisão de uma classe social comum quanto a apoiar Savoia ou a Confederação Suíça. Os mamelucos que favoreciam Savoia e os huguenotes que favoreciam Berna vinham am­ bos de um único grupo social, caracterizado por um pacote identificável de interesses econômicos, familiares e sociais em comum. Do mesmo modo, a sugestão de Ozment de um interesse universal pela doutrina da justificação encontra pouco apoio no caso de cidades dentro da Confederação Suíça ou ligadas a ela - tais como Zurique, St. Gallen e Genebra - e ignora as óbvias hesitações quanto à doutrina por parte de muitos reformadores suíços. No entanto, surgem algumas características em comum de um estudo das origens e do desenvolvimento da Reforma nas principais cidades do norte da Europa, tais como Augsburgo, Basiléia, Berna, Colmar, Constance, Erfurt, Frankfurt, Genebra, Hamburgo, Lübeck, Memmingen, Ulm e Zurique. É útil explorá-las. Em primeiro lugar, a Reforma nas cidades parece ter sido uma rea­ ção a algum tipo de pressão popular por mudanças. Nuremberg é um exemplo raro de um conselho municipal que impôs uma reforma sem

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que esta tivesse sido precedida por um significativo protesto ou exigên­ cia popular.A insatisfação nas populações urbanas do início do século 16 não era necessariamente só religiosa em seu caráter; reclamações sociais, econômicas e políticas estavam presentes sem dúvida, em variadas exten­ sões, no aglomerado de inquietações evidentes nessa época. Os conselhos municipais em geral reagiam como resposta a essa pressão popular, fre­ quentemente direcionando-a de maneira apropriada às suas próprias ne­ cessidades e propósitos. Essa manipulação sutil da pressão era um modo óbvio de absorver e controlar um movimento de protesto popular poten­ cialmente perigoso. Os regimes urbanos existentes em geral mudaram re­ lativamente pouco pela introdução de novas ideias e práticas religiosas, o que sugere que os conselhos municipais foram capazes de reagir a essa pressão popular sem mudanças radicais na ordem social existente. Segundo, o sucesso da Reforma em uma cidade dependia de diversas contingências históricas. Adotar a Reforma era arriscar uma mudança desastrosa no alinhamento político, pois geralmente, como conseqüência, seriam rompidos os relacionamentos e tratados existentes - quer milita­ res, políticos ou comerciais - com territórios e cidades que escolhessem permanecer católicos. Era possível cómprometer fatalmente os relaciona­ mentos comerciais de uma cidade, dos quais podia depender sua exis­ tência econômica. Assim, o sucesso da Reforma na cidade de St. Gallen foi parcialmente devido ao fato de que a indústria de linho da cidade não foi afetada adversamente num grau significativo ao decidir adotar a Reforma. Igualmente, uma cidade (como Erfurt) muito próxima de uma cidade católica (Mainz) e de um território luterano (Saxônia) podia aca­ bar envolvida em conflitos militares com um dos lados, com resultados potencialmente letais para a independência dessa cidade. Terceiro, deve-se abandonar como certamente irrealista a visão român­ tica e idealizada de que um reformador chegava a uma cidade para pregar o evangelho, e se seguia uma decisão imediata por parte da cidade de adotar os princípios da Reforma. Ao longo de todo o processo da reforma, quem permanecia no controle era o conselho municipal, desde a decisão inicial de implementar um processo de reforma às decisões subsequentes quanto à natureza e ao ritmo das propostas reformistas. A reforma de Zuínglio em Zurique avançou de modo consideravelmente mais lento do que ele desejava, devido à abordagem cautelosa adotada pelo conselho em momentos decisivos. A liberdade de ação de Bucer em Estrasburgo também era limitada de modo semelhante. E como Calvino descobriria, os conselhos municipais eram perfeitamente capazes de expulsar refor­ madores de sua jurisdição se eles ultrapassassem as políticas ou decisões municipais publicamente aprovadas.

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Na prática, o relacionamento entre o conselho municipal e o refor­ mador era geralmente simbiótico. Ao apresentar uma visão coerente do evangelho cristão e de suas implicações para as estruturas e práticas re­ ligiosas, sociais e políticas de uma cidade, o reformador conseguia evitar que uma situação potencialmente revolucionária se degenerasse em caos. A ameaça constante de reversão ao catolicismo, ou de subversão pelos movimentos radicais dos anabatistas, tornava inevitável a necessidade de um reformador. Alguém precisava dar direção religiosa para um movi­ mento que, sem controle ou direção, podia se degenerar em caos, com conseqüências graves e inaceitáveis para as estruturas de poder existentes na cidade e para os indivíduos que as controlavam. Igualmente, o reformador era alguém sob autoridade, alguém cuja liberdade de ação era limitada por mestres políticos, ciumentos da sua autoridade, e com um programa reformista que geralmente se estendia além do programa do reformador para incluir a consolidação da influên­ cia econômica e social deles. Portanto, a relação entre o reformador e o conselho municipal era delicada, facilmente suscetível a interrupções, e com o poder real permanentemente nas mãos do conselho. No caso de Genebra, um relacionamento delicado se desenvolveu entre os reformadores da cidade (inicialmente Guilherme Farele Calvino, de­ pois apenas Calvino) e o conselho municipal. Consciente e zeloso quanto à sua autoridade e liberdade conquistadas com esforço, o conselho muni­ cipal estava determinado a não substituir a tirania de um bispo católico pela de um reformador. Em 1536, a cidade tinha acabado de ganhar sua independência de Savoia, e tinha conseguido manter essa independência frente às tentativas de Berna de colonizar a cidade. Genebra não estava disposta a se submeter a um ditador, a menos que este estivesse numa posição de fazer pressão econômica e militar massiva. Como resultado, restrições severas foram impostas sobre as atividades de Calvino. Ele era alguém com opções bem limitadas. A expulsão de Calvino de Genebra em 1538 demonstra que o poder político permanecia firmemente nas mãos do conselho municipal. A no­ ção de que Calvino era o “ditador de Genebra” é totalmente destituída de fundamento histórico. Não obstante, o conselho municipal se desco­ briu incapaz de lidar com a situação religiosa deteriorante na ausência de Calvino. Num ato notável de pragmatismo social e realismo religioso, o conselho chamou novamente seu reformador, e lhe permitiu continuar sua obra de reforma. Genebra precisava de Calvino, assim como Calvino precisava de Genebra. Nesse ponto, uma diferença importante pode ser observada entre o pensamento luterano e o reformado. Lutero era o produto de uma

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pequena cidade na Saxônia sob o jugo de um príncipe local. Contudo, os grandes pensadores reformados Zuínglio e Bucer foram o produto das grandes cidades livres de Zurique e Estrasburgo. Para estes, a Reforma en­ volvia a identificação de “cidadão” com “cristão”, com uma grande ênfase na dimensão política da vida, a qual estava totalmente ausente do pen­ samento de Lutero. Assim, Zuínglio deu grande ênfase à necessidade de reformar e redimir uma comunidade, enquanto Lutero se concentrou na necessidade de reformar e redimir o indivíduo. Por meio de sua doutrina dos “dois reinos”, Lutero efetivamente separou as ideias religiosas da vida secular, enquanto Zuínglio insistia em sua integração mútua. Portanto, é significativo que a Igreja Reformada teve suas bases de poder mais seguras nas cidades do sul da Alemanha e da Suíça, as quais eram mais avançadas social, cultural e economicamente do que as cidades do norte destinadas a se tornarem fortalezas luteranas. O contexto social da Reforma é um assunto fascinante em si mesmo, mas o consideramos aqui primariamente por causa de sua óbvia influ­ ência sobre pelo menos algumas das ideias religiosas dos reformadores. Por exemplo, há motivos excelentes para sugerir que muitas das ideias d ^ u ín g lio (especialmente suas ideias quanto à função social dos sacra­ mentos) eram condicionadas diretamente pelas circunstâncias políticas, econômicas e sociais de Zurique. Do mesmo modo, algumas das ideias de Calvino quanto às estruturas apropriadas para uma igreja cristã pare­ cem refletir instituições que já existiam em Genebra antes de sua chegada a essa cidade. Consideraremos esta questão em diversos pontos ao longo desta obra.

Breve panorama das preocupações religiosas dos reformadores É apropriado apresentarmos as ideias religiosas dos reformadores nes­ te ponto. Essas ideias serão amplificadas e desenvolvidas por todo este estudo, mas esta seção tem a intenção de fornecer ao leitor um panora­ ma preliminar. Assim como o rascunho de um mapa fornece uma visão ampla de uma área, de modo a se mapear os detalhes posteriormente, do mesmo modo esta seção visa a apresentar ao leitor as ideias que serão en­ contradas à medida que a obra progride. A convicção fundamental que motivava os reformadores magistrais era que o cristianismo podia ser mais bem reformado e renovado ao se retornar às crenças e práticas da igreja primitiva. Os primeiros cinco séculos - em geral designados “o período patrístico” - tendem a ser considerados como a Era Dourada do cristianismo. A grande visão de muitos reformadores do

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século 16 se resumia no lema em latim christianismus renascens- “cristia­ nismo renascido”. Como esse renascimento poderia acontecer? Os reformadores ressaltaram a vitalidade do cristianismo no período apostólico, tal como testificado pelo Novo Testamento, e argumentaram que era tanto possível quanto necessário recapturar o espírito e a forma desse período central na história da igreja cristã. Era necessário voltar ao Novo Testamento e aos seus primeiros intérpretes, de modo a aprender deles. Estes eram as escrituras originais da cristandade, a fonte da crença e prática cristãs. Mantendo-se na grande tradição dos profetas do Antigo Testamento, os reformadores apresentaram um desafio aos líderes religiosos de sua época. Eles viam estes últimos como culpados de tolerar adições e dis­ torções à fé cristã - alterações que refletiam os interesses de arrecadado­ res eclesiásticos de recursos financeiros e que alimentavam a superstição popular. A doutrina do purgatório e a prática correlata de vender indul­ gências foram identificadas como representação de seitas subcristãs, que exploravam as esperanças e os temores das pessoas comuns. Era hora de eliminar essas corrupções por meio de um apelo consistente às crenças e práticas da igreja primitiva, que era defendida como um modelo para o tipo de sacudidela e limpeza de que a igreja tanto precisava. Essa ênfase no cristianismo primitivo como recurso, norma e ponto de referência para a visão do século 16 do christianismus renascens nos permite compreender porque os reformadores colocavam tão grande ên­ fase no Novo Testamento e nos escritores cristãos primitivos geralmente conhecidos como “os Pais” ou “os escritores patrísticos”. Era nesses escri­ tos que se poderia encontrar um projeto para a reforma e a renovação da igreja. Neles se poderiam encontrar os ideais originais do cristianismo. Assim, a produção do primeiro Novo Testamento grego e a primei­ ra edição das obras de Agostinho (considerado por muitos reformadores como o escritor patrístico) foram marcos importantes no programa de reforma do século 16, e se tornaram amplamente disponíveis por toda a Europa. Para Martinho Lutero, o programa de reforma na Universidade de Wittenberg por volta de 1519 podia ser resumido numa simples ex­ pressão: “a Bíblia e Santo Agostinho”. O surgimento do humanismo renascentista era amplamente consi­ derado como providencial, pois os grandes avanços obtidos na Europa ocidental nos estudos do hebraico e do grego em relação aos textos clás­ sicos pavimentaram o caminho para um envolvimento direto com o tex­ to bíblico, substituindo a duvidosa tradução para o latim da Vulgata. As novas técnicas textuais e filológicas desbravadas pelos humanistas eram consideradas como a chave para o mundo do Novo Testamento e, por

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conseguinte, para o cristianismo autêntico. Ao se iniciar a segunda década do século 16, havia muitos que sentiam que uma nova era raiava, na qual a voz do cristianismo autêntico, silente por tanto tempo, seria uma vez mais ouvida. Embora esse programa de reforma parecesse simples, ele não obstan­ te continha dificuldades formidáveis, as quais exploraremos no decurso desta obra. O programa para a Reforma estava estabelecido, e os recursospelos quais ela podia ser alcançada estavam sendo preparados. Contudo, precisamos mergulhar nas águas impetuosas do pensamento do século 15 e do início do século 16 se quisermos compreender o pano de fundo desse drama na história humana. Tendo explorado algumas questões preliminares, agora temos condi­ ções de nos ocuparmos da Reforma. O modo mais apropriado para come­ çar este encontro é explorando o mundo do cristianismo do final da Idade Média. A isso nos dedicaremos em seguida.

Notas 'MOELLER, B. Imperial cities and the Reformation. Filadélfia, 1972. 2BRADY, T. A. Ruling class, regime anã Reformation at Strasbourg, 15201555. Leiden, 1977. 3OZMENT, S. E. The Reformation in the cities: the appeal o f protestantism to sixteenth-century Germany anâ Switzerlaná. New Haven, 1975.

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O cristianismo no finai da Idade Média

O contexto da Reforma é o período do final da Idade Média. No m un­ do acadêmico recente, tem havido uma ênfase crescente na necessidade de situar o movimento da Reforma no seu contexto do final da Idade Mé­ dia e de juntar os discernimentos dos estudos desse período, da Renascen­ ça e da Reforma. A separação desses campos - por exemplo, tendo cada um suas próprias cátedras universitárias, periódicos e sociedades eruditas - atrapalhou muito esse processo de síntese e consolidação, o qual é es­ sencial para a correta compreensão das ideias da Reforma. Nos próximos dois capítulos, examinaremos em detalhes as duas forças intelectuais mais importantes na Europa do final da Idade Média: o humanismo e a teologia escolástica. Este capítulo lida com alguns pontos preliminares a respeito da religião do final da Idade Média.

O crescimento da religião popular Os estudos mais antigos do contexto da Reforma tendem a retratar o final da Idade Média como um período em que a religião estava em declínio. Em parte, isso reflete a postura não crítica adotada por esses es­ tudos quanto à literatura do século 15, a qual criticava a igreja. Os estudos modernos, usando critérios mais confiáveis, demonstraram que a verdade é precisamente o contrário. Entre 1450 e 1520, a Alemanha teve um au­ mento considerável na piedade religiosa popular. No final desse período, às vésperas da Reforma, a religião estava tal­ vez enraizada de modo mais firme na experiência e na vida das pessoas comuns do que em qualquer época do passado. O cristianismo do início

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da Idade Média havia sido primariamente monástico, focado na vida, no culto e nos escritos dos monastérios e conventos da Europa. Programas de construção de igrejas prosperaram no final do século 15, assim como as peregrinações e a moda de colecionar relíquias sagradas. O século 15 já foi descrito como “o período inflacionário da literatura mística”, refletindo o interesse popular crescente pela religião. O século 15 testemunhou uma abundante apropriação popular de crenças e práticas religiosas, nem sem­ pre de maneiras ortodoxas. O fenômeno da “religião popular” em geral tem um relacionamento tangencial com as declarações mais precisas, contudo abstratas, das dou­ trinas cristãs que a igreja preferia, mas que muitos achavam ininteligíveis ou sem atrativos. Em algumas partes da Europa, surgiu algo parecido com “cultos de fertilidade”, ligados e emaranhados com os padrões e preocupa­ ções da vida cotidiana. As necessidades agrárias das comunidades rurais - tais como trabalhar com o feno e ceifar - estavam firmemente associadas com a religião po­ pular. Assim, na diocese francesa de Meaux no início do século 16, os san­ tos eram invocados regularmente para evitar doenças nos animais e nas crianças, a praga e problemas nos olhos, ou para assegurar que as jovens encontrassem maridos apropriados. A ligação direta entre a religião e a vida cotidiana era assumida como óbvia. O espiritual e o material estavam interligados em todos os níveis.

O crescimento do anticlericalismo Um aspecto importante da religião alemã do século 15 foi o fenômeno do antipapismo e do anticlericalismo. O baixo clero era com frequência alvo de críticas grosseiras. Os monastérios eram geralmente retratados como covis de atividade homossexual, infestados de piolhos. A pouca qualidade dos clérigos paroquiais refletia basicamente o seu baixo status social: na Milão do início do século 16, os capelães tinham um salário menor do que o de trabalhadores sem qualificação. Muitos recorriam ao comércio de cavalos e gado para conseguirem sobreviver. Além disso, o analfabetismo era comum no clero. Muitos tinham aprendido de cor os termos em latim da missa com colegas mais velhos, mas eram conhecidos por cometer erros com o passar do tempo e com os lapsos da memória. Na medida em que o nível de alfabetização dos leigos melhorava no final do século 15, os leigos iam se tornando cada vez mais críticos dos clérigos. Um proprietário de terras inglês do início do século 16 resmungou que tinha ouvido distintivamente o sacerdote local usar o caso acusativo, quando era óbvio que se devia usar o ablativo. Muitos

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leigos instruídos se ressentiam da distinção entre as ordens “sagradas” e “seculares”, pois isso implicava que o clero gozava de um relacionamento mais íntimo com Deus do que eles. Previsivelmente, em alguns setores havia hostilidade contra o clero, parte pela incompetência deles, parte pelos privilégios que usufruíam. As isenções de impostos que o clero usufruía eram fonte particular de ir­ ritação, especialmente em épocas de dificuldade econômica. Na diocese francesa de Meaux, que se tornaria um centro para os ativistas reformistas no período de 1521-1546, o clero era isento de todos os impostos, provo­ cando um ressentimento local considerável. Na diocese de Ruão, havia um clamor popular quanto aos lucros extras obtidos pela igreja ao vender grãos nos períodos de escassez severa. A crise de subsistência desse período direcionou a atenção popular para a enorme distância social entre a classe trabalhadora e a instituição eclesiástica. Por exemplo, a grande maioria dos bispos do final da Renas­ cença na França procedia da nobreza, uma tendência ilustrada diocese após diocese. Em Meaux, os escalões mais altos da instituição eclesiástica provinham do patriciado urbano, assim como o alto clero por toda Brie. Um padrão semelhante é encontrado em Ruão, assim como em Noyon, cidade natal de João Calvino, onde a família de Hangest monopolizava as questões eclesiásticas, exercendo poderes substanciais de patrocínio as­ sim como fornecendo a maioria dos bispos da diocese por um período de mais de um quarto de século. Na província francesa de Languedoc, o alto clero consistia geralmen­ te de estrangeiros, frequentemente de nobres impostos sobre as dioceses mediante patrocínio real. Raramente residentes em suas próprias dioce­ ses, esses clérigos consideravam suas tarefas espirituais e temporais como pouco mais do que fontes de renda sem esforço, úteis para alavancar am­ bições políticas em outros lugares. O fato de pertencerem à nobreza e o status do episcopado e do alto clero serviam para distanciá-los dos ar­ tesãos e camponeses e para isolá-los da crise de subsistência econômica da década de 1520. É essa tensão crescente durante a década de 1520 no relacionamento entre o alto clero - em grande medida baseado em cida­ des - e a população rural que constitui o pano de fundo das origens da Reforma na França. No entanto, é importante não exagerar a extensão desse anticlericalismo. Conquanto houvesse áreas em que essa hostilidade era particularmen­ te visível- principalmente nas cidades - o clero geralmente era valorizado e respeitado. Nas áreas rurais, onde os níveis de analfabetismo entre os leigos eram altos, o clero permanecia como o grupo de membros mais instruídos da comunidade local. Ainda mais importante é que muitos dos

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grandes monastérios da Europa eram respeitados por causa do seu alcan­ ce social e suas contribuições significativas à economia local. Contudo, ao colocar tudo na balança, resta um murmúrio de descontentamento, em geral expresso no que é conhecido como “literatura de protesto”. A nova ênfase na instrução dentro dos círculos humanistas por quase toda a Europa ocidental nas duas primeiras décadas do século 16, fez com que a instituição eclesiástica fosse vista como reacionária, hostil à nova erudição, e ameaçada tanto pelo seu progresso quanto pela sua ênfase na apropriação pessoal da fé. Na década de 1520, começou a surgir literatura sugerindo que o clero tinha um interesse velado em reter os modos anti­ gos e complacentes, os quais exigiam pouco deles como professores, guias espirituais ou exemplos e agentes morais. Os sentimentos antipapistas também aumentaram no final da Renas­ cença, especialmente na Alemanha. O desenvolvimento dessa hostilidade para com o papado em geral estava, com frequência, ligado com a percep­ ção de que este era dominado pelos italianos. A hostilidade ao papa talvez fosse maior entre as classes instruídas e os governantes, os quais se res­ sentiam da interferência dele nas questões eclesiásticas e políticas locais. A hostilidade ao clero era maior entre as pessoas comuns, especialmente nas cidades, pois se ressentiam dos seus privilégios (tal como a isenção de impostos) e o papel opressivo que em geral desempenhavam como pro­ prietários das terras dos camponeses alemães. Estudos dessa tradição de sentimentos anticlericais e antipapais apon­ taram para a existência do que pode ser chamado de uma “literatura eclesiástica de protesto”. A lista de abusos papais e clericais fornecida por Lutero no seu famoso tratado reformista da década de 1520, Apelo à no­ breza alemã, corresponde a listas semelhantes em circulação no século anterior. Lutero parece ter usado uma tradição de reclamações de longa data contra a igreja de modo a obter apoio para seu programa de reforma. Na mente popular alemã, Lutero e outros como Ulrich von Hutten eram identificados como libertadores comuns de uma igreja opressora. Além do mais, há evidências que sugerem fortemente que o nacionalis­ mo alemão, atiçado pelo sentimento antipapal e anti-italiano, alcançou um pico nos anos d el5 1 7 al5 2 1 . Uma mitologia popular se desenvolveu na qual a Alemanha era vista como uma nação escolhida por Deus para cumprir seus propósitos.' Embora essa mitologia fosse sistematicamente desacreditada pelos humanistas no período de 1530 a 1560, parece que muitos consideravam a Reforma alemã sob Lutero como algo divinamen­ te guiado e inspirado. Esse fenômeno não era restrito à Alemanha, é claro; o movimento dos lolardos na Inglaterra parece ter demonstrado caracte­ rísticas semelhantes, por exemplo.

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Um último ponto precisa ser expresso quanto ao crescimento da re­ ligião popular no final da Idade Média. Em parte, a religião popular re­ presentava uma tentativa de converter as ideias abstratas dos teólogos em algo mais concreto. Batismo, casamento e morte se tornaram aconteci­ mentos cercados por crenças e práticas populares - geralmente descritas como “religião popular”, que, embora originalmente derivada dos livros-texto dos teólogos cristãos, em geral ela tinha pouca relação com eles (veja o final da seção anterior). Talvez o elemento mais importante da religião popular do final da Ida­ de Média fosse um conjunto de crenças e práticas a respeito da morte, na qual a participação de um sacerdote era indispensável. As despesas de organizar tais cultos dos mortos eram consideráveis, um fato refletido no surgimento de fraternidades religiosas dedicadas a prover ritos apropria­ dos de passagem para seus membros. Em tempos de adversidades econô­ micas, o sentimento anticlerical era inevitável, como observamos antes, pois o clero era visto como quem estava lucrando com a ansiedade dos vivos empobrecidos quanto a seus parentes mortos. O conceito do purgatório era central a essas práticas, e foi retratado vividamente por Dante no Livro II de sua Divina comédia, que expressa­ va a ideia de que os mortos precisam sofrer punição e purificação pelos seus pecados restantes, antes de terem permissão para entrar no céu. De fato, pensava-se que o purgatório era um tipo de casa de limpeza inter­ mediária para os mortos enquanto eles aguardavam o julgamento final. A ideia detinha uma fascinação popular particular, como se pode ver pelo crescimento no comércio de indulgências, que parecia oferecer, no pior dos casos, uma rápida passagem pelo purgatório; e no melhor, o evitá-lo completamente. Na Alemanha, Lutero considerava o comércio de indulgências como uma exploração moralmente ultrajante e teologicamente questionável dos sentimentos naturais das pessoas comuns pelos seus mortos. Suas 95 teses (31 de outubro de 1517) foram uma crítica direta àqueles que declaravam que a alma de um morto podia ser liberta instantaneamente do purgatório pelo pagamento de uma quantia apropriada a um nego­ ciante eclesiástico autorizado. Para os alemães, o insulto chegava a uma injúria, pois as taxas pagas por eles no final eram enviadas à Itália, para financiar as extravagâncias do papado da Renascença. Lutero fez obje­ ção particular à propaganda de Johann Tetzel, que desse modo promo­ via indulgências: Assim que a moeda no cofre cai A alma do purgatório sai!

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A doutrina da justificação pela fé somente de Lutero eliminava a neces­ sidade de purgatório e de indulgências; os mortos podiam descansar em paz por causa de sua fé, que os tornava justos diante de Deus, e não por causa do pagamento de um incentivo à igreja. Na França, uma campanha por indulgências também havia sido arranjada por Leão X e Francisco I em 1515, com o objetivo de financiar uma cruzada. Entretanto, em 1518, a faculdade parisiense de teologia protestou contra algumas das ideias su­ persticiosas geradas por essa campanha. Ela condenou como “falso e es­ candaloso” o ensino de que “quem contribui para a coleta da cruzada com uma moeda ou o valor de uma alma no purgatório liberta aquela alma imediatamente, e ela vai infalivelmente para o paraíso”. Contudo, embora consideradas questionáveis pelos teólogos acadêmicos, essas crenças exer­ ciam grande fascinação entre as pessoas comuns. Uma teologia “não ofi­ cial” se desenvolveu, em grande medida sem relação com os livros-texto aprovados de teologia, mas profundamente enraizada nas esperanças e temores da sociedade em geral. Na medida em que a brecha entre a crença popular e a teologia aumen­ tava, a reforma se tornava uma possibilidade cada vez mais fraca. Refor­ mar crenças populares alinhando-as de volta com uma teologia “oficial” pressupõe concordância quanto ao que era essa teologia. Mas, como ve­ remos nas seções seguintes, o crescimento do pluralismo doutrinário e da confusão nessa área descartava essa opção. No final, os reformadores cortaram esse nó górdio atacando tanto as crenças e práticas populares quanto a teologia em que elas estavam originalmente baseadas, ainda que de modo cada vez mais frágil, além de empreenderem um abrangente pro­ grama de instrução. No entanto, os problemas que surgiram para aqueles que desejavam reformar a religião popular do final da Idade Média foram levados para um foco bem definido pela relativa falta de sucesso desses programas abrangentes do período da Reforma: a religião popular e as su­ perstições se demonstraram impossíveis de serem erradicadas na prática.

O crescimento do pluralismo doutrinário Uma das características mais significativas do pensamento religioso medieval é a proliferação das “escolas” de teologia. Duas dessas esco­ las podem ser apresentadas brevemente: a escola tomista, baseada nos escritos de Tomás de Aquino (1225-1274), e a escola scotista, baseada nas ideias bem diferentes encontradas nos escritos de João Duns Scotus (c.1265-1308). A Idade Média foi um período de expansão nas univer­ sidades e escolas da Europa. Um resultado inevitável dessa expansão foi a diversificação intelectual. Em outras palavras, quanto mais acadêmicos

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existem, mais opiniões se encontram em circulação como conseqüência. Por volta do início do século 16, já havia nove dessas escolas estabelecidas dentro da igreja da Europa ocidental. Cada uma dessas escolas de pensamento tinha posições significati­ vamente diferentes quanto a diversas questões teológicas principais. Por exemplo, Maria, a mãe de Jesus de Nazaré, era pecadora (posição maculista, defendida por Tomás de Aquino) ou tinha sido de algum modo preservada do pecado (posição imaculista, defendida por Duns Scotus)? As escolas também se dividiam quanto a diversas questões relacionadas à doutrina da justificação (à qual retornaremos no capítulo 7), tais como o que o indivíduo deve fazer para ser justificado. Havia divisões semelhan­ tes quanto a muitas outras questões de importância direta tanto para a religião pessoal quanto para a política eclesiástica. Mas qual dessas escolas de pensamento estava correta? Qual corres­ pondia mais de perto ao ensino oficial da igreja? Para usar os termos téc­ nicos apropriados, o que era meramente “opinião teológica” e o que era “dogma católico”? Claramente, era essencial colocar em funcionamento alguma forma de avaliação da fidedignidade dessas novas doutrinas. Con­ tudo, por razões que exploraremos em breve, nenhuma avaliação desse tipo foi realizada. O papado estava relutante em definir a “doutrina verda­ deira” e, aparentemente, não era capaz de impô-la à igreja. O resultado era inevitável: confusão. Opiniões particulares e políticas públicas se torna­ ram confusas. Ninguém tinha certeza absoluta de qual era o ensino oficial da igreja a respeito de certas questões. Visto que uma dessas questões era a doutrina da justificação, não nos surpreende que essa doutrina estivesse no centro de um grande movimento reformista - o associado a Lutero. As conseqüências práticas dessa imprecisão doutrinária são facilmente comprovadas. Um episódio do final da Renascença italiana servirá bem aos nossos propósitos. Durante a primeira década do século 16, um pe­ queno grupo de jovens nobres italianos se encontrava regularmente para debater questões religiosas. Os membros desse grupo compartilhavam um interesse comum: como garantir a salvação de suas almas. Porém, como isso podia ser feito? O que deviam fazer para serem salvos? Essa pergunta direta parece não ter recebido uma resposta direta das autorida­ des eclesiásticas. Desenvolveu-se uma crise dentro do grupo, alcançando seu auge em 1510. O grupo se dividiu em dois. Um grupo, convencido de que a salva­ ção só podia ser obtida por meio de rejeição do mundo e negação pesso­ al, retirou-se para um monastério local, para ali trabalhar sua salvação a salvo das influências de um mundo caído. O segundo grupo decidiu permanecer no mundo. De algum modo, eles pensavam, deve ser possível

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permanecer no mundo e obter a salvação. Porém, ninguém tinha certeza absoluta da posição oficial da igreja sobre essa questão importante; mais tarde Lutero tratou dela na sua doutrina da justificação pela fé. A confusão quanto ao ensino oficial da igreja a respeito da justificação contribuiu de modo significativo para as origens do programa de refor­ ma de Lutero na Alemanha. Quanto a essa doutrina, data de 418 o pro­ nunciamento autorizado mais recente conhecido da parte de um órgão eclesiástico reconhecido; suas declarações confusas e ultrapassadas pouco ajudaram a esclarecer a posição da igreja quanto ao dilema de 1518, 1.100 anos depois. Parecia a Lutero que a igreja de sua época tinha caído no pelagianismo (veja a seção sobre pelagianismo no capítulo 4), uma com­ preensão inaceitável a respeito de como entrar em comunhão com Deus. Lutero cria que a igreja ensinava que as pessoas podiam ganhar favor e aceitação aos olhos de Deus com base nas suas realizações pessoais e no seu status, negando assim toda a ideia de graça. É possível que Lutero estivesse errado em sua percepção, mas havia tanta confusão na igreja de sua época que ninguém foi capaz de lhe es­ clarecer quanto à posição autorizada da igreja sobre a questão. Mesmo no enclave soberano papal em Avinhão, prevalecia uma anarquia de ideias. “Cada um tem sua própria opinião”, escreveu Bonifácio Amerbach (14951562). Ele ajudou a aumentar o caos na década de 1520 promovendo as ideias do “excelente doutor Martinho” dentro dessa fortaleza papal. Podemos falar de um espectro de pensamentos no final da Idade Mé­ dia. Uma notável ampla série de doutrinas estava em circulação. É muito fácil para os escritores do século 21, com o benefício da visão retrospec­ tiva, reconhecer os perigos potenciais das ideias sendo desenvolvidas pe­ los primeiros reformadores. Porém, na época essas ideias atraíam pouca atenção dos defensores oficiais da ortodoxia. Os limites entre o que era ou não ortodoxo haviam se tornado tão irremediavelmente confusos que, na prática, era impossível tratar como heréticos indivíduos como Lutero. Quando esse movimento se tornou necessário, a Reforma havia ganho tamanho ímpeto que ficou difícil obstruí-la. O cenário para uma futura confrontação religiosa estava preparado pelo pluralismo doutrinário da igreja do final da Idade Média.

Uma crise de autoridade dentro da igreja Um desenvolvimento no final do período medieval de importância central para o estudo da Reforma é a crise crescente de autoridade, evi­ dente a partir do século 14. A quem ou ao que seria possível consultar para se obter um pronunciamento autorizado quanto a doutrinas? Quem

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estava numa posição de declarar de modo inequívoco que “a posição da igreja católica sobre esta questão é esta”? Num período que testemunhou um crescimento notável no debate teológico, era essencial que alguém definisse o que era mera especulação teológica e o que era reconhecido como doutrina católica. Havia na igreja um amplo reconhecimento de que a especulação teológica era legítima - afinal de contas, os acadêmi­ cos tinham que fazer alguma coisa com seu tempo livre, e a igreja estava suficientemente confiante na verdade dos seus ensinos para permitir que eles fossem submetidos a um exame detalhado. Mas havia necessidade de algum meio de impor a ortodoxia (presumindo, é claro, que a “ortodoxia” pudesse ser definida, o que se tornava cada vez mais duvidoso com o pas­ sar do tempo). O papado exigia meios de coagir os que tinham noções não ortodoxas a abandoná-las, ou pelo menos a parar de ensiná-las. Dois desenvolvimentos principais na igreja do final da Idade Média se combinaram para fazer com que, na prática, a definição e a imposição da ortodoxia fossem impossíveis no final do século 15 e no início do século 16. Primeiro, a autoridade do papa foi questionada durante o Grande Cis­ ma e no período subsequente. O Grande Cisma (1378-1417) gerou a divi­ são da cristandade ocidental depois da morte de Gregório XI. Uma facção italiana era liderada por Urbano VI, uma facção francesa por Clemente VII. Essa situação continuou até 1417, quando o Concilio de Constância elegeu Martinho V como papa. Por um breve período em 1409, houve três requerentes ao papado. A questão crucial era esta: como resolver a disputa sobre quem real­ mente era o papa? Era fato amplamente aceito que o papa era o árbitro final em todas as disputas doutrinárias da igreja - mas qual papa poderia resolver essa disputa? Finalmente, concordou-se que um Concilio deveria se reunir, com autoridade para resolver a disputa. O Concilio de Cons­ tância (1414-1417) foi convocado para escolher um dos três candidatos rivais ao papado (Gregório XII, Bento XIII e João XXII). O Concilio re­ solveu convenientemente a questão rejeitando todos os três e escolhendo seu próprio candidato (Martinho V). Parecia que um princípio geral im­ portante fora estabelecido: os concílios têm autoridade sobre o papa. No entanto, Martinho V pensava diferente. Estava, então, estabelecido o cenário para o desenvolvimento de duas teorias rivais de autoridade na igreja: os que defendiam que a autoridade doutrinária suprema residia num concilio geral (a posição “conciliarista”) e os que argumentavam que ela residia na pessoa do papa (a posição “curialista”). Na medida em que crescia o reconhecimento da necessidade de reforma da igreja no século 15, o partido conciliarista argumentava que a única esperança para uma reforma dessas era convocar um Concilio

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Geral para reformas. Martinho Lutero refletiu essa posição na sua obra de 1520, Apelo à nobreza alemã, na qual ele argumentava que os príncipes alemães tinham o direito de convocar um concilio desse tipo. É geralmente considerado que o fato de o movimento conciliarista não ter sido bem-sucedido foi uma causa central da Reforma, por dois moti­ vos. Primeiro, o movimento elevou as esperanças de que a igreja deveria ser reformada a partir de dentro; quando tais esperanças foram frustra­ das, muitos começaram a buscar modos de impor a reforma à igreja, talvez por meio de um apelo às autoridades seculares. Segundo, ele apresentou um desafio à autoridade doutrinária do papa, contribuindo desse modo para a confusão teológica do final do período medieval. Como não estava claro quem tinha a autoridade doutrinária final, muitos teólogos desen­ volveram suas opiniões teológicas sem se questionarem muito a respeito da autenticidade delas. O segundo fator principal de importância nesse caso é o aumento de poder dos governantes seculares da Europa, que cada vez mais conside­ ravam os problemas do papa como algo de relevância limitada. Além do mais, os papas pareciam relutantes em usar os canais já disponíveis para impor a ortodoxia doutrinária. Por exemplo, a diocese e os sínodos pro­ vinciais alemães tinham o poder de suprimir heresias, mas esses sínodos não foram convocados quando se fazia necessário no início do século 16. No momento em que a Reforma poderia ter sido suprimida pela força caso houvesse vontade política, a atenção de muitos governantes europeus estava concentrada primeiro na guerra franco-italiana e subsequentemen­ te no conflito Habsburgo-Valois. Adicionalmente, a habilidade dos papas de convocar os governantes seculares para impor a vontade religiosa deles estava se esvaindo. O na­ cionalismo se tornava um fator cada vez mais importante na redução da autoridade papal ao norte dos Alpes, como o demonstra a situação na França. A dramática vitória de Francisco I sobre as forças combinadas do papa e dos suíços em Marignano em setembro de 1515 o estabeleceu como uma força a ser reconhecida nas questões italianas, e aumentou sua autoridade sobre a igreja francesa. A subsequente Concordata de Bolonha (1516) deu a Francisco I o direito de indicar todo o alto clero da igreja francesa, enfraquecendo efetivamente o controle papal direto sobre essa igreja. Francisco, consciente da necessidade de impor a ortodoxia religio­ sa dentro dos seus domínios, delegou essa responsabilidade à Faculda­ de de Teologia da Universidade de Paris- uma corporação que logo se tornou conhecida simplesmente como “a Sorbonne”. O movimento gra­ dual de Francisco em direção ao absolutismo, embora temporariamente interrompido pela sua derrota na batalha de Pávia (1525) e subsequente

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cativeiro em Madri, gerou uma diminuição correspondente da influência papal sobre os assuntos franceses, quer estatais ou eclesiásticos. Como resultado, movimentos reformistas na França eram tratados como um assunto referente a Francisco I, não ao papa. Se o papa desejasse intervir nos assuntos da igreja francesa, haveria uma série formidável de obstáculos diplomáticos e legais em seu caminho. Tendo derrotado recen­ temente o papa em batalha, Francisco demonstrava relativamente pouco interesse em defender os interesses papais na França, salvo quando estes coincidiam com os da monarquia francesa. Uma ilustração adicional das restrições severas impostas à autoridade papal pelos governantes seculares pode ser vista no caso das tentativas de Henrique VIII de se divorciar de Catarina de Aragão, as quais ocor­ reram de 1527 a 1530. No momento em que Henrique pediu ao papa o divórcio (o qual normalmente seria dado sem grandes dificuldades), o papa se encontrava sob enorme pressão do imperador Carlos V, o qual era parente de Catarina de Aragão. Visto que Carlos tinha saqueado Roma recentemente e mantinha uma presença militar considerável na região, o papa tinha a escolha de ofender o rei (que não tinha, nem provavelmente teria, exércitos perto de Roma) ou o imperador (que tinha tais exércitos, e estava perfeitamente preparado para usá-los). O resultado final estava decidido de antemão. Henrique VIII não obteve seu divórcio. Havia, portanto, uma crise dupla de autoridade na igreja do final da Idade Média. Havia uma confusão óbvia sobre a natureza, a localização e a maneira de exercer a autoridade teológica, assim como havia uma relutân­ cia ou uma falta de capacidade de exercer a necessária autoridade política para suprimir as novas ideias da Reforma. Em meio a essa confusão e falta de poder eclesiástico, a Reforma prosseguiu com passo acelerado, até que sua supressão local não fosse mais uma possibilidade realista.

Um estudo de caso na Inglaterra: os lolardos A Reforma não criou uma igreja a partir do nada; por toda a Europa, ela edificou sobre bases existentes. Cada vez mais se reconhece que a Re­ forma inglesa se fundamenta sobre os lolardos. Portanto, o lolardismo é incluído nesta análise da religião do final da Idade Média como um estudo de caso singular, ilustrando o modo pelo qual elementos da religião popu­ lar contribuíram para as origens e o formato de uma reforma local. Estudos recentes demonstram a complexidade do lolardismo, tornan­ do as generalizações sobre suas crenças básicas consideravelmente mais arriscadas que antes. Por exemplo, embora alguns lolardos se opusessem à ideia do purgatório, muitos pareciam estar satisfeitos em permitir que a

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ideia permanecesse; uma oposição séria ao conceito na Inglaterra parece ter ganho ímpeto apenas com a execução de John Frith por causa dessa questão em 1533. Entretanto, um grupo de atitudes básicas que parecem ter sido predominantes no movimento pode ser resumido a seguir. Em geral, os lolardos criam que: 1. A Bíblia devia estar disponível no vernáculo. 2. A veneração de imagens era inaceitável. 3. A prática da peregrinação estava sujeita a sérias críticas. 4. Todo leigo é um sacerdote. 5. O papa exerce autoridade excessiva. 6.

transubstanciação Doutrina segundo a qual o pão e o vinho são transformados no corpo e no sangue de Cristo na Eucaristia.

A presença d munhão é puramente espiritual (em oposição à doutrina medieval da transubstanciação; veja o início do capítulo 9).

Em certo sentido, pode-se argumentar que essa lista de crenças é pou­ co mais que uma forma de literatura de protesto. No entanto, ela indica certas atitudes, prevalecentes nos círculos lolardos, que fizeram surgir um estágio avançado de receptividade às ideias luteranas, quando estas come­ çaram a surgir na Inglaterra na década de 1520. As doutrinas luteranas repercutiam essas atitudes. Por exemplo, a doutrina de Lutero do “sacer­ dócio de todos os crentes” estava em harmonia com o desgosto lolardo pelos sacerdotes e a crença dos lolardos de que todos os leigos tinham o direito de se chamarem sacerdotes. Do mesmo modo, a doutrina luterana da justificação pela fé parecia implicar (pelo menos para os lolardos) que no processo de salvação não havia mais necessidade de papas, sacerdotes ou igreja institucional - coisas que eles cordialmente detestavam. Cada indivíduo podia fazer as pazes com Deus, sem incluir a odiada hierarquia eclesiástica na questão. Parece ter havido movimentos similares ao lolardismo em muitas partes da Europa, fornecendo sementeiras férteis nas quais as ideias da Reforma podiam germinar e lançar raízes. Os lolardos não chegaram a desenvolver doutrinas sofisticadas como a do sacerdócio universal dos crentes ou da justificação pela fé somente. No máximo, eles tinham ati­ tudes e uma visão de mundo geral que eram extremamente críticas da igreja daquela época. Porém, as ideias luteranas, quando vieram, faziam muito sentido ao lolardismo. Elas repercutiam essas atitudes, reforçavam seus argumentos, acrescentavam sofisticação intelectual ao entusiasmo

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dos lolardos e davam um novo fundamento teológico às suas críticas da igreja inglesa. Este, então, é um breve panorama das pressões que se acumulavam dentro da igreja do final do período medieval. A instabilidade estava cres­ cendo. É óbvio que algum tipo de mudança era inevitável. No fim, esta tomou a forma da Reforma, tal como hoje a conhecemos. Um elemento adicional significativo dentro desse processo de desestabilização das cren­ ças e práticas religiosas medievais dessa época foi o surgimento do huma­ nismo renascentista. Não demorou muito para que os novos métodos do humanismo levantassem sérias questões quanto a aspectos da doutrina medieval. Exploraremos esse desenvolvimento no próximo capítulo.

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O humanismo e a Reforma

Dos muitos afluentes intelectuais e culturais que contribuíram para o fluxo da Reforma, provavelmente o mais importante foi o humanismo renascentista. Embora a Reforma tenha começado nas cidades da Alema­ nha e da Suíça, há excelentes razões para sugerir que ela possa ter sido o resultado inevitável de desenvolvimentos na Itália do século 14, na me­ dida em que o movimento que hoje conhecemos como “Renascença ita­ liana” tomava ímpeto. Este capítulo investigará as ideias e os métodos do humanismo renascentista, para que sua relevância para a Reforma possa ser entendida. Quando o termo “humanismo” é usado por um escritor do século 20, em geral se refere à filosofia antirreligiosa que afirma a dignidade da hu­ manidade sem qualquer referência a Deus. O “humanismo” adquiriu tons fortemente secularistas - talvez até ateístas. Porém, no século 16, o termo “humanista” tinha um sentido bem diferente, como veremos em breve. Os humanistas dos séculos 14, 15 e 16 eram notavelmente religiosos e o interesse deles era pela renovação da igreja cristã, não na sua abolição. Os leitores devem desconsiderar o sentido atual do termo “humanis­ mo” como preparação para entender esse fenômeno no seu contexto do final da Renascença. O humanismo renascentista não era um programa ideológico, menos ainda um movimento antirreligioso. Antes, era um corpo de conhecimento literário e habilidades lingüísticas baseado na “restauração das boas letras”. Era desse modo que o termo “humanista” foi compreendido do século 14 até o século 16. Não faz sentido impor senti­ dos polêmicos e atuais do termo a essa época. Devemos aprender a usar a palavra no sentido do seu tempo, o que é a prática deste livro. Um ponto terminológico importante também precisa ser estabelecido antes de iniciarmos nossa análise do humanismo e da Renascença e de sua

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relação com a Reforma. O leitor provavelmente encontrará referências, mesmo em obras em outras línguas, aos termos italianos trecènto, quattrocènto, e cinquecènto (frequentemente com a omissão do acento). Esses termos se referem, respectivamente, aos anos de 130.0-1399, 1400-1499 e 1500-1599 - em outras palavras, aos séculos 14,15 e 16. Do mesmo modo, uma quattrocentista é uma figura do século 15; e uma cinquecentista, do século 16. Muitos leitores assumem erradamente que o quattrocènto é o século 14 e, em resultado disso, ficam terrivelmente confusos.

O conceito de "Renascença" Embora o termo “Renascença”, derivado do francês renaissance, seja hoje usado universalmente para designar o renascimento literário e artís­ tico na Itália dos séculos 14 e 15, os escritores daquela época se referiam ao movimento por meio de outros termos: “restauração”, “renascimento”, “despertar” e “reflorescimento”. (“Itália”, obviamente, designa aqui uma entidade geográfica, não política.) Em 1546, Paolo Giovio se referiu ao século 14 como “aquele século feliz no qual se considera que as letras latinas foram renascidas [renatae]”, antecipando esse desenvolvimento. Certos historiadores, de modo especial Jacob Burckhardt, argumentam que a Renascença deu à luz a era moderna. Foi nessa era, argumenta Burckhardt, que os seres humanos co­ meçaram a pensar de si mesmos como indivíduos. A consciência comunal do período medieval deu lugar à consciência individual da Renascença. Florença se tornou a nova Atenas, a capital intelectual de um admirável mundo novo, com o rio Arno separando o mundo antigo do novo. De muitos modos, a definição de Renascença por Burckhardt em ter­ mos puramente individualistas é altamente questionável. Afinal, há po­ derosa evidência dos valores fortemente coletivos de alguns aspectos do humanismo renascentista italiano- por exemplo, em sua abordagem co­ letiva à vida urbana (vista no humanismo civil florentino), à política (por exemplo, a parte Guelfa), ao comércio (vista na corporação da lã) e à vida familiar. Porém, em certo sentido, Burckhardt está plenamente correto: algo novo e excitante se desenvolveu na Itália da Renascença, e se provou capaz de exercer fascínio sobre gerações de pensadores. Não está completamente claro porque a Itália em geral, ou Florença em particular, se tornou o berço desse brilhante novo movimento na história das ideias. Diversos fatores têm sido identificados como possíveis influên­ cias nessa questão: 1. A Itália estava saturada com lembretes visíveis e concretos da grandeza da Antiguidade. As ruínas dos edifícios e monumentos

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romanos antigos estavam espalhadas por toda a terra. Como Ro­ berto Weiss indica em seu livro Renaissance discovery of classical antiquity, essas ruínas representavam ligações vitais com um gran­ de passado. Na época da Renascença, elas parecem ter acendido o interesse pela civilização da antiga Roma, e agiram como um estí­ mulo vital aos seus pensadores para recuperar a vitalidade da cultu­ ra clássica romana, numa época por eles considerada culturalmente árida e estéril. 2. A teologia escolástica - a força intelectual principal do período me­ dieval - nunca foi particularmente influente na Itália. Embora mui­ tos italianos tenham alcançado fama como teólogos (como Tomás de Aquino e Gregório de Rimini), eles eram geralmente ativos nas universidades do norte da Europa. Portanto, havia um vácuo inte­ lectual na Itália durante o século 14. Vácuos tendem a ser preen­ chidos, e foi o humanismo renascentista que preencheu essa lacuna particular. 3. A estabilidade política de Florença dependia da manutenção de seu governo republicano. Era natural, pois, recorrer ao estudo da repú­ blica romana, incluindo sua literatura e cultura, como um modelo para Florença. 4. A prosperidade econômica de Florença gerou tempo livre; conse­ quentemente, havia uma demanda por literatura e artes. O patro­ cínio da cultura e das artes era visto como um uso apropriado da riqueza excedente. 5. Na medida em que Bizâncio começava a desmoronar - Constantinopla finalmente caiu em. 1453 -houve um êxodo de intelectuais de língua grega para o oeste. A Itália estava convenientemente perto de Constantinopla, o que resultou no estabelecimento de muitos desses emigrantes em suas cidades. Era inevitável, portanto, um re­ nascimento da língua grega e, com isso, um renascimento do inte­ resse pelos clássicos gregos.

O conceito de "humanismo" O termo “humanismo” é, na verdade, uma invenção do século 19. É importante reconhecer que o termo “humanismo” não foi usado na época da Renascença em si, embora encontremos um uso freqüente da pala­ vra italiana umanista. Essa palavra se refere a um professor universitário de studia humanitatis - “ciências humanas” ou “artes liberais”, tais como poesia, gramática e retórica. (O termo humanista, na nossa língua, que

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aparece primeiramente em 1589, tem o sentido de “um erudito literário, especialmente alguém versado nos estudos latinos”) A observação de que a palavra “humanismo” data de bem mais tar­ de sugere que os próprios escritores renascentistas não reconheciam a existência de uma percepção ou cosmovisão comum conhecida por esse nome. Os leitores atuais tendem a presumir que os “humanistas” eram indivíduos que aderiam a um conjunto comum de crenças, atitudes e va­ lores conhecido como “humanismo”, quase do mesmo modo pelo qual os marxistas são indivíduos que aderem ao marxismo. Todavia, há pouca evidência histórica para essa pressuposição. Como veremos, é notavel­ mente difícil definir o que era esse conjunto comum de crenças, atitudes e valores. Esta seção pretende lidar principalmente com o problema de definir o humanismo. O termo ainda é usado amplamente nos estudos da Renas­ cença e da Reforma, frequentemente com um irritante grau de fluidez. O que se quer dizer com o termo “humanismo”? No passado recente, pre­ dominavam duas linhas importantes de interpretação do movimento. Pri­ meiro, o humanismo era visto como um movimento devotado à erudição e filologia clássicas. Segundo, o humanismo era a nova filosofia da Renas­ cença. Como ficará evidente, ambas as interpretações do humanismo têm sérias deficiências.

Erudição e filologia clássicas Não há dúvidas de que a Renascença testemunhou o surgimento de uma erudição clássica. Os clássicos gregos e latinos eram amplamen­ te estudados em suas línguas originais. Embora alguns estudos iniciais tenham sugerido que o humanismo se originou fora de um contexto universitário, a evidência atualmente disponível indica de modo inques­ tionável uma estreita ligação entre o humanismo e as universidades do norte da Itália. Pode parecer, portanto, que o humanismo era essencial­ mente um movimento erudito devotado ao estudo do período clássico. Entretanto, isso seria negligenciar a questão sobre o motivo pelo qual os humanistas desejavam estudar os clássicos em primeiro lugar. A evidência disponível deixa claro que tal estudo era considerado como um meio para um fim , e não como um fim em si mesmo. Esse fim era a promoção da eloqüência escrita e falada de sua própria época. Em outras palavras, os humanistas estudavam os clássicos como modelos de eloqüência escrita, de modo a ganharem inspiração e instrução. O aprendizado clássico e a competência filológica eram simplesmente os instrumentos usados para explorar os recursos da Antiguidade. Como

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tem sido ressaltado com frequência, os escritos dos humanistas devo­ tados à promoção da eloqüência, escrita ou falada, excedem em muito aqueles devotados à erudição e filologia clássicas.

A nova filosofia da Renascença De acordo com alguns intérpretes do humanismo, o movimento incor­ pora a nova filosofia da Renascença, que surgiu como reação ao escolasticismo. Assim, argumenta-se que a Renascença foi uma era de platonismo, enquanto o escolasticismo foi um período de aristotelismo. Outros argu­ mentam que a Renascença foi essencialmente um fenômeno antirreligioso, prenunciando o secularismo do Iluminismo do século 18. Hans Baron argumentou que o humanismo foi basicamente um movimento republica­ no, que estudou Cícero para se beneficiar de suas ideias políticas. Duas dificuldades principais confrontam essas interpretações um tanto ambiciosas do humanismo. Primeiro, como vimos, os humanistas parecem ter se interessado primariamente pela promoção da eloqüência. Embora não seja verdade dizer que os humanistas não fizeram contri­ buições significativas à filosofia, permanece o fato de que eles estavam interessados primariamente no mundo das letras. Assim, em comparação àqueles devotados à “busca da eloqüência”, há consideravelmente poucos escritos humanistas devotados à filosofia - e estes em geral são um tanto amadores. A teoria de Baron referente ao uso humanista de Cícero fica enfraquecida por meio da observação de que a maioria dos humanistas lia Cícero para aprender seu estilo de escrita, não suas ideias políticas. Segundo, o estudo intensivo dos escritos humanistas revelou o inquietante fato de que o “humanismo” era consideravelmente heterogêneo. Por exemplo, muitos escritores humanistas realmente favoreciam o platonis­ mo, mas outros favoreciam o aristotelismo. A persistência teimosa do aris­ totelismo (por exemplo, na Universidade de Pádua) por toda a Renascença consiste num sério obstáculo para quem considera o humanismo como filosoficamente homogêneo. Alguns humanistas italianos realmente de­ monstravam o que parecem ser atitudes antirreligiosas, mas outros huma­ nistas italianos eram profundamente piedosos. Alguns humanistas eram realmente republicanos, mas outros adotaram atitudes políticas diferentes. Estudos recentes também chamam a atenção para um lado menos atrativo do humanismo - a obsessão de alguns humanistas pela magia e pela superstição - a qual é difícil de harmonizar com a visão convencio­ nal do movimento. Em resumo, tem se tornado cada vez mais claro que o “humanismo” não tinha uma filosofia coerente. Não havia uma única ideia filosófica ou política que dominasse ou caracterizasse o movimento.

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De fato, muitos acham que o termo “humanismo” deveria ser retirado do vocabulário dos historiadores, porque ele não tem conteúdo significativo. Designar um escritor como “humanista” não transmite nenhuma infor­ mação essencial sobre suas concepções filosóficas, políticas ou religiosas. De fato, fica evidente que a Renascença italiana foi tão multifacetada que quase toda generalização sobre suas “ideias características” tende a ser uma distorção. É por isso que a noção de humanismo desenvolvida por Paul Oskar Kristeller (1905-1999) é de importância decisiva. Sua noção de humanismo obteve ampla aceitação no meio acadêmico norte-americano e europeu, e ainda não foi desacreditada.

A visão do humanismo de Kristeller Kristeller vê o humanismo como um movimento cultural e educacio­ nal, primariamente interessado na promoção da eloqüência em suas várias formas. Seu interesse pela moral, pela filosofia e pela política é de impor­ tância secundária. Ser um humanista é estar interessado na eloqüência acima de tudo, e incidentalmente em outras questões. O humanismo foi essencialmente um programa cultural, que apelou à Antiguidade clássica como um modelo de eloqüência. Na arte e na arquitetura, assim como na palavra escrita e falada, a Antiguidade era vista como um recurso cultu­ ral, do qual a Renascença podia se apropriar. Petrarca se referiu a Cícero como seu pai e a Virgílio como seu irmão. Os arquitetos do quattrocento ignoraram deliberadamente o estilo gótico do norte da Europa, de modo a retornarem aos estilos clássicos da Antiguidade. Cícero era estudado como um orador, não como um escritor político ou moral. Em resumo, o humanismo estava interessado em como as ideias eram obtidas e expressas, em vez de com a substância real dessas ideias. Um hu­ manista podia ser platonista ou aristotelista-mas em ambos os casos, as ideias envolvidas derivavam da Antiguidade. Um humanista podia ser um cético ou um crente religioso - mas ambas as atitudes podiam ser defendi­ das com base na antiguidade. O grande atrativo da noção de humanismo de Kristeller deriva do fato de que ela brilhantemente dá a razão de ser da considerável diversidade da Renascença. Enquanto Baron identifica um conjunto de ideais como central e Burckhardt identifica outro, Kristeller indica como central o caminho pelo qual as ideias eram geradas e mani­ puladas. A diversidade de ideias que é tão característica do humanismo renascentista se baseia num consenso geral quanto a como derivar e ex­ pressar essas ideias. É evidente que toda análise da relação do humanismo com a Refor­ ma é totalmente dependente da definição de humanismo empregada. A

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definição de humanismo de Kristeller permite a avaliação mais confiável ora disponível da relação entre esses dois movimentos.

Ad fontes - de volta às origens O programa literário e cultural do humanismo pode ser resumido no lema ad fontes- “de volta às origens”. Esse lema resume a admiração re­ trospectiva pela Antiguidade que era tão característica dessa época. Os escritores humanistas inventaram a expressão “Idade Média” como um modo de desprezar os méritos culturais e intelectuais do período entre as glórias da Antiguidade e seu momento presente. Para Petrarca (13041374), os séculos entre a queda de Roma e sua própria época eram pouco mais do que um extenso período de trevas. A visível sordidez do período medieval devia e podia ser ignorada, de modo a se recuperar as glórias intelectuais e artísticas do período clássico. O lema ad fontes exigia que o “filtro” dos comentários medievais sobre os textos clássicos - fossem eles literários, legais, religiosos ou filosóficos - devia ser abandonado, em fa­ vor de um envolvimento direto com os próprios textos originais. Aplicado à igreja cristã, o lema ad fontes significou um retorno direto aos documen­ tos principais do cristianismo: os espatrístico Adjetivo referente aos critores patrísticos e, sobretudo, o primeiros séculos na história da Novo Testamento igreja, depois da escrita do Novo Entretanto, o' lema faz mais do Testamento. ,r r que apenas especificar as fontes a se­ rem usadas no renascimento da civi­ lização. Ele também especifica a atitude a ser adotada em relação a essas fontes. É necessário relembrar que a Renascença era uma época de des­ cobertas, tanto geográficas quanto científicas. A descoberta das Américas atiçou a imaginação do final da Renascença, assim como as novas percep­ ções quanto ao funcionamento do corpo humano e do mundo natural. Do mesmo modo, as fontes clássicas eram lidas com o objetivo de redescobrir as experiências que elas refletiam. Na sua obra Eneida, Virgílio descreve a descoberta de terras novas e estranhas; assim os leitores do final da Renascença abordavam Virgílio com um senso de expectativa, pois também estavam no processo de des­ cobrir terrae incognitae. Galeno era lido sob uma nova luz: ele descreveu a aquisição de novas percepções fisiológicas para uma geração empenhada numa busca semelhante em sua própria época. Assim também acontecia com a Escritura. O Novo Testamento descreve os encontros dos crentes com o Cristo ressurreto; os leitores da Renascença abordavam o texto da Escritura com a expectativa de que eles também poderiam encontrar o

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Cristo ressurreto, um encontro que parecia lhes ser negado pela igreja do seu tempo. Esse ponto é frequentemente negligenciado, porém ele contém a cha­ ve para a reverência humanista pelos textos antigos. Para os humanistas, os textos clássicos mediavam uma experiência para a posteridade - uma experiência que podia ser recuperada ao se manusear o texto da manei­ ra correta. Os novos métodos filológicos e literários desenvolvidos pelos pensadores renascentistas são, portanto, um modo de recapturar a vita­ lidade do período clássico. Para a igreja cristã, isso gerou uma nova, ex­ citante e desafiadora possibilidade: a de que a experiência dos primeiros cristãos, descrita no Novo Testamento, pudesse ser recuperada e transfe­ rida para um ponto muito posterior na História. Ê esse fator, talvez mais do que qualquer outro, que ajuda a explicar a consideração notavelmente alta dada aos humanistas nos círculos re­ formistas por toda a Europa. Muitos criam que a forma estéril de cris­ tianismo associada à Idade Média podia ser substituída por uma nova forma, vital e dinâmica, por meio do estudo da Escritura. Ad fontes era mais do que um lema: era uma corda de salvação para aqueles que ha­ viam se desesperado com o estado da igreja no final da Idade Média. A era era apostólica Período decisivo da igreja cristã que ocorreu en­ apostólica, a Era Dourada da igreja, tre a ressurreição de Jesus Cristo podia novamente se tornar uma rea­ (c.35) e a morte do último após­ lidade presente. tolo (c.90?). Talvez seja difícil para alguns leito­ res atuais entender esse senso de exci­ tação e antecipação; contudo, para adentrar no mundo do pensamento da Europa às vésperas da Reforma, precisamos tentar recapturar esse senso de expectativa. Para muitos indivíduos e grupos por toda a Eu­ ropa, parecia que um novo dia estava prestes a raiar na história da igre­ ja, no qual o Cristo ressurreto seria restaurado à igreja. Muitos, como Lutero, achavam que Deus, em sua providência, tinha dado à igreja a chave (nos novos recursos textuais e filológicos humanistas) pela qual a experiência neotestamentária do Cristo podia ser desvendada e dis­ ponibilizada a todos.

O humanismo do norte da Europa Neste ponto precisamos fazer uma pausa para esclarecer uma questão importante. O “humanismo” que afetou a Reforma é basicamente o hu­ manismo do norte da Europa, não o humanismo italiano. Assim, devemos considerar que forma esse movimento no norte da Europa assumiu.

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A recepção da Renascença italiana no norte da Europa Torna-se cada vez mais evidente que o humanismo do norte da Eu­ ropa foi influenciado decisivamente pelo humanismo italiano em cada estágio do seu desenvolvimento. Se havia movimentos humanistas na­ tivos no norte da Europa que se originaram independentemente de sua contrapartida italiana (o que é altamente improvável), a evidência indica de modo inequívoco que esses movimentos foram subsequentemente in­ fluenciados decisivamente pelo humanismo italiano. Isso não significa que os humanistas do norte simplesmente assumiram os ideais italia­ nos em sua totalidade; antes, esses ideais foram adotados e adaptados do modo mais apropriado à situação do norte europeu. Assim, o huma­ nismo cívico associado, por exemplo, com a cidade de Florença não foi adotado extensivamente no norte da Europa, exceto em algumas poucas cidades alemãs e suíças. Foram identificados três canais principais para a difusão dos métodos e ideais da Renascença italiana no norte da Europa: 1. Estudiosos do norte da Europa viajando para o sul até a Itália., tal­ vez para estudar numa universidade italiana ou como parte de uma missão diplomática. Ao retornarem para sua terra natal, eles leva­ vam o espírito renascentista com eles. Um excelente exemplo disso se vê em Christoph Scheurl, que estudou Direito em Bolonha antes de retornar para a recém-fundada Universidade de Wittenberg com um doutorado em Direito e um amor pelas letras. Esse amor logo se expressou em grandes reformas curriculares em Wittenberg, as quais podem ter sido importantes para atrair Martinho Lutero para ensinar ali. 2. A correspondência dos humanistas italianos com o exterior. O hu­ manismo estava interessado na promoção da eloqüência escrita, e a escrita de cartas era vista como um meio de incorporar e difundir os ideais da Renascença. A correspondência dos humanistas italia­ nos com o exterior foi considerável, estendendo-se à maioria dos lugares no norte da Europa. 3. Livros impressos,.originários de fontes como a Prensa Aldine em Ve­ neza. Essas obras frequentemente eram reimpressas pelas prensas do norte da Europa, particularmente as de Basiléia na Suíça. Os humanistas italianos frequentemente dedicavam suas obras aos seus patrocinadores do norte da Europa, assegurando-se assim de serem notados nos recantos potencialmente influentes. A biblioteca universitária de Wittenberg é famosa por ter possuído quantidade

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significativa de escritos humanistas, muitos pessoalmente dedica­ dos a Frederico, o Sábio.

Os ideais do humanismo do norte dá Europa Embora houvesse diversas variações dentro do humanismo do norte da Europa, três ideais parecem ter alcançado ampla aceitação por todo o movimento: 1. Um interesse pela bonae litterae- eloqüência escrita e falada, se­ gundo o modelo do período clássico - semelhante àquele tão carac­ terístico da Renascença italiana. 2. Um programa religioso especificamente dirigido ao renascimento corporativo da igreja cristã. O lema latino christianismus renascens, “cristianismo renascido”, resume os objetivos desse programa (veja a última seção do capítulo 1) e indica sua relação com o “renas­ cimento” das letras associado à Renascença. Embora Burckhardt esteja inquestionavelmente correto em afirmar que a Renascença gerou uma nova ênfase na consciência subjetiva do indivíduo, os humanistas do norte da Europa suplementaram essa nova ênfase no indivíduo com um reconhecimento da necessidade de refor­ mar as comunidades (tanto a igreja quanto o Estado) às quais o indivíduo pertencia. É digno de menção neste ponto que a ênfase renascentista na consciência subjetiva do indivíduo está ligada es­ pecificamente com a doutrina da justificação pela fé, à qual retor­ naremos no capítulo 7. 3. Algumas seções do humanismo do norte da Europa adotaram ati­ tudes fortemente pacifistas durante o início do século 16, ampla­ mente em reação à tragédia da guerra franco-italiana. A busca pela paz internacional e pela compreensão mútua foi desposada pela maioria dos humanistas da época, particularmente na Suíça. O desgosto pelas manobras políticas papais também foi um elemento importante no pano de fundo da Reforma suíça.

O humanismo do leste da Suíça Talvez por causa de sua posição geográfica, o leste da Suíça se demons­ trou especialmente receptivo às ideias da Renascença italiana. A Univer­ sidade de Viena atraiu grande número de estudantes dessa região. Uma revolução palaciana na faculdade de artes, projetada em grande medida por meio da influência de Konrad Celtis, assegurou que Viena se tornas­ se um centro de aprendizado humanista nos anos finais do século 15,

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atraindo indivíduos como o grande escritor humanista Joachim von Watt (1484-1551), de cognome Vadiano. Vadiano, tendo recebido toda honra acadêmica possível em Viena, retornou à sua cidade natal de St. Gallen, tornando-se seu cidadão principal (burgomestre) em 1529. A Universida­ de de Basiléia alcançou uma reputação semelhante na década de 1510, e se tornou o centro de um grupo humanista (geralmente conhecido como uma ‘confraria”) que se ajuntava ao redor de indivíduos como Thomas Wyttenbach. O humanismo do leste suíço tem sido objeto de estudos intensivos, e seu etos básico é razoavelmente bem compreendido. Para seus represen­ tantes principais - Vadiano, Xylotecto, Beato Renano, Glareano e Miconio - o cristianismo era primariamente um modo de vida, mais do que um conjunto de doutrinas. Eles percebiam a real necessidade de reforma mas uma reforma relacionada primariamente à moralidade da igreja e à renovação moral pessoal dos crentes individuais. Não havia pressão por uma reforma das doutrinas da igreja. O etos do humanismo suíço era fortemente moralista. Considerava-se que a Bíblia prescrevia um comportamento moral correto para os cristãos, mais do que narrava as promessas de Deus. Esse etos tem di­ versas implicações significativas, especialmente em relação à doutrina da justificação (veja a seção “Divergências entre os reformadores a respeito da justificação” no capítulo 7). Em primeiro lugar, as questões que es­ timularam o interesse de Lutero pela doutrina estavam completamente ausentes dos círculos suíços, nos quais a justificação não era um tema em debate. Segundo, quando esse tema se tornou importante na Alemanha, desenvolveu-se certo grau de ansiedade nos círculos humanistas suíços na década de 1520 quanto à doutrina de justificação de Lutero. Para os humanistas suíços, Lutero parecia estar desenvolvendo ideias que eram uma ameaça radical à moralidade e, portanto, ao etos distintivo do mo­ vimento deles. Essas observações são importantes em relação a Ulrico Zuínglio, que estudou nas universidades de Viena (1498-1502) e Basiléia (1502-1506). O programa de reforma de Zuínglio em Zurique, iniciado em 1519, traz a marca do moralismo humanista suíço. Agostinho, o “doutor da graça”, não parece ter figurado de modo proeminente no pensamento de Zuínglio até a década de 1520 (e mesmo então, sua influência se relaciona primaria­ mente ao pensamento sacramental de Zuínglio). Depois de certo tempo, Zuínglio rompeu com o moralismo do humanismo suíço (provavelmente por volta de 1523, com certeza em 1525), mas até esse momento seu pro­ grama de reforma estava baseado na cosmovisão educacional moralista bem característica das confrarias humanistas suíças do período.

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O humanismo legal da França Na França do início do século 16, o estudo da lei estava passando por um processo de revisão radical. A monarquia absolutista francesa sob Francisco I, com sua tendência crescente de centralização administrativa, considerava essencial uma reforma legal para a modernização da Fran­ ça. Para acelerar o processo de reforma legal, que finalmente levou à for­ mulação de um sistema legal universalmente válido por toda a França, ela patrocinou um grupo de eruditos, centralizados nas universidades de Bourges e Orleans, empenhados em estudar os aspectos teóricos dos có­ digos gerais de lei fundamentados em princípios universais. Um pioneiro entre estes foi Guillaume Budé, que argumentava em fa­ vor de um retorno direto à lei romana, que era tanto eloqüente quanto econômica, como um meio de satisfazer as novas necessidades legais da França. Em contraste com o costume italiano (mos italicus) de ler os textos legais clássicos à luz das glosas (anotações quanto ao texto) e comentários de juristas medievais como Bartholis e Accursius, os franceses desenvol­ veram o procedimento (mos gallicus) de apelar diretamente às fontes le­ gais clássicas originais em suas línguas originais. Um resultado direto do programa humanista de ir diretamente ad fontes era a acentuada impaciência com glosas e comentários. Longe de serem considerados como recursos de estudo úteis, foram cada vez mais considerados como obstáculos ao envolvimento com o texto original. As interpretações de textos legais clássicos romanos por escritores como Bartholis e Accursius passaram a ser reputadas como irrelevantes. Eram como filtros deformadores, colocados entre o leitor e o texto. Na medida em que a erudição humanista se tornou mais confiante nas suas afirma­ ções, a confiabilidade de Accursius e de outros passou a ser cada vez mais questionada pelos humanistas legais. O grande erudito espanhol Antonio Nebrija publicou um relato detalhado de erros que ele detectara nas glosas de Accursius, enquanto o sagaz romancista francês François Rabelais escreveu desdenhosamente a respeito das “opiniões ineptas de Ac­ cursius”. As bases do humanismo legal francês estavam verdadeiramente bem estabelecidas. Deve-se observar a importância dessa transformação para a Refor­ ma. Um estudante em Bourges e Orleans durante o auge do humanismo legal francês foi o futuro reformador João Calvino, que provavelmente chegou a Orleans em 1528. Ao estudar lei civil em Orleans e Bourges, Calvino entrou em contato direto com o principal elemento constituin­ te do movimento humanista. Esse encontro transformou Calvino num advogado competente; quando mais tarde ele foi chamado para ajudar na

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codificação das “leis e editos” de Genebra, Calvino foi capaz de recorrer ao seu conhecimento do Corpus iuris civilis para modelos de contrato, leis de propriedade e procedimentos judiciais. No entanto, Calvino aprendeu mais do que isso do humanismo legal francês. A produção literária de Budé indica sua convicção de que a herança clássica, incluindo suas instituições e códigos legais, não era apenas muito importante para o presente. Para ele, o estudo da Antiguidade também era uma preparação apropriada para o evangelho de Jesus Cristo. Calvino adotaria uma abordagem semelhante na grande edição de 1559 das Insti­ tutas da religião cristã, permitindo que Cícero guiasse o leitor da religião natural da Antiguidade até o evangelho superior de Jesus Cristo. Pode-se argumentar que as origens dos métodos de Calvino, que foi talvez o maior comentarista bíblico e pregador de sua época, estejam no seu estudo da lei na atmosfera avançada de Orleans e Bourges. Há forte indicação de que Calvino aprendeu de Budé a necessidade de ser um filologista competente, de abordar diretamente um texto fundamental, de interpretá-lo dentro dos parâmetros lingüísticos e históricos do seu con­ texto, e a aplicá-lo à situação do seu próprio tempo. É precisamente essa atitude que sustenta a exposição da Escritura por Calvino, especialmente em seus sermões, nos quais ele objetiva fundir os horizontes da Escritura e o contexto do seu público. O humanismo legal francês deu a Calvino tanto o incentivo quanto os recursos para permitir que os documentos do passado interagissem com as circunstâncias da cidade de Genebra na década de 1550.

Erasmo de Roterdã Se há uma figura que se sobressai acima dos ombros dos outros hu­ manistas do norte da Europa, não menos em termos de sua influência sobre as reformas alemã e suíça, é Erasmo de Roterdã. Embora a influ­ ência direta de Erasmo sobre Lutero e Calvino seja menor do que se poderia esperar, muitos outros reformadores (como Zuínglio e Bucer) foram grandemente influenciados por ele. Portanto, é essencial que sua considerável contribuição ao pensamento da Reforma seja considerada em detalhes. Erasmo é frequentemente apresentado como refletindo o melhor do humanismo do norte europeu. Embora haja muito que possa ser dito para apoiar essa sugestão, certas tensões dentro do humanismo do nor­ te da Europa precisam ser reconhecidas. Duas são de interesse especial: uma sobre a questão das línguas nacionais, e outra sobre a questão dos limites nacionais.

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Erasmo se considerava um “cidadão do mundo” e o latim de Cícero como a língua deste mundo. Os idiomas nacionais eram um obstáculo para sua visão de uma Europa cosmopolita unida pela língua latina. Para outros humanistas, especialmente na Alemanha e na Suíça, os idiomas na­ cionais deviam ser incentivados como promotores de um senso de iden­ tidade nacional. Para Erasmo, a visão de uma Europa cosmopolita estava ameaçada pelo nacionalismo político e cultural, o qual só servia para reforçar conceitos ultrapassados como um “senso de identidade nacional” e ideias associa­ das, tal como limites nacionais. Outros humanistas, em contrapartida, se viam envolvidos numa batalha para promover a identidade nacional. Enquanto Erasmo teria preferido se concentrar em eliminar ideias e valo­ res nacionalistas, os humanistas suíços Glareano, Miconio e Xylotectus se viam como detentores do sacro dever de defender a identidade e a cultura nacional suíça por meios literários. Essa tensão entre as visões humanistas “cosmopolita” e “nacionalista”, entre os que desejavam abolir e os que de­ sejavam consolidar as identidades nacionais, reflete as visões conflitantes presentes no humanismo. Também demonstra que Erasmo não pode ser considerado como um porta-voz totalmente representativo do humanis­ mo, como alguns estudiosos sugerem. A obra humanista mais influente a circular na Europa durante as pri­ meiras décadas do século 16 foi a obra de Erasmo chamada Enchiriãion militis christiani (Manual do soldado cristão). Embora a obra tivesse sido publicada primeiramente em 1503, e depois reimpressa em 1509, o seu impacto real data de sua terceira impressão em 1515. Daquele momento em diante, tornou-se uma obra venerada, aparentemente recebendo 23 edições nos seis anos seguintes. Seu apelo era instruir homens e mulheres leigos, os quais Erasmo con­ siderava como os recursos mais importantes que a igreja possuía. Sua in­ crível popularidade após 1515 sugere que, como resultado, pode ter havido uma alteração radical na percepção que os leigos tinham de si mesmos. E dificilmente se pode ignorar que o retumbar reformista em Zurique e Wittenberg data de logo após o momento em que o Enchiridion se tornou um best-seller. O sucesso de Erasmo também salientou a importância da imprensa como meio de disseminação de novas ideias radicais - um pon­ to que nem Zuínglio nem Lutero deixaram de notar, quando chegou a vez de eles propagarem tais ideias. O Enchiridion desenvolve a interessante tese de que a igreja da épo­ ca podia ser reformada por um retorno coletivo aos escritos dos Pais e à Escritura. A leitura regular da Escritura é apresentada como a chave para uma nova piedade leiga, que serviria de base para a igreja ser renovada e

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reformada. Erasmo concebia sua obra como um guia para leigos à Es­ critura: fornecia uma exposição simples, mas erudita, da “filosofia de Cristo”. Essa “filosofia” era na verdade uma forma de moralidade prática, não uma filosofia acadêmica; o Novo Testamento diz respeito ao conhe­ cimento do bem e do mal, para que seus leitores possam evitar o último e amar o primeiro. O Novo Testamento, de acordo com Erasmo, é a lex Christi, “a lei de Cristo”, à qual os cristãos são chamados a obedecer. Cristo é o exemplo que os cristãos são chamados a imitar. No entanto, Erasmo não entende a fé cristã como mera observância externa de algum tipo de moralidade. Sua ênfase caracteristicamente humanista na religião interior o leva a su­ gerir que a leitura da Escritura transforma seus leitores, dando-lhes uma nova motivação para amarem a Deus e a seus próximos. Várias características desse livro são de importância especial. Primeiro, Erasmo sugere que a vitalidade futura do cristianismo depende dos leigos, não do clero. O clero é visto como um grupo de educadores, cuja função é permitir aos leigos alcançarem o mesmo nível de entendimento que eles têm. Não há espaço para qualquer superstição que dê ao clero um status permanente superior ao dos leigos. Segundo, a forte ênfase de Erasmo na religião interior resulta numa compreensão do cristianismo que não faz referências à igreja - seus ritos, seus sacerdotes ou suas instituições. Por que se preocupar em confessar pecados a outro ser humano, questiona Erasmo, só porque ele é um sacerdote, quando você pode confessá-los diretamente ao próprio Deus? A religião é um assunto do coração e da mente do indivíduo; é um estado interior. Erasmo intencionalmente evi­ ta qualquer referência significativa aos sacramentos na sua exposição da vida cristã. Do mesmo modo, ele desconsidera a noção de que a “vida religiosa” (em outras palavras, a de um monge ou freira) seja a forma mais elevada de vida cristã: o leigo que lê a Escritura é tão fiel ao seu chamado quanto qualquer monge. O caráter revolucionário do Enchiridion de Erasmo está em sua ousa­ da e nova sugestão de que o reconhecimento da vocação cristã do leigo detém a chave para a restauração da igreja. As autoridades clericais e ecle­ siásticas são desprezadas. A Escritura devia ser disponibilizada a todos, para que todos possam retornar ad fontes, para beber das águas frescas e vivas da fé cristã em vez dos reservatórios estagnados da religião do final da Idade Média. Erasmo chegou a reconhecer, no entanto, que havia sérios obstáculos no caminho desse curso proposto, e ele foi responsável por diversos avan­ ços importantes para removê-los. Em primeiro lugar, era necessário que se pudesse estudar o Novo Testamento em sua língua original, em vez de

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estudá-lo na tradução imprecisa da Vulgata. Isso exigia dois recursos, e nenhum dos quais estava disponível na época: a necessária competência filológica para manusear o texto grego do Novo Testamento, e um acesso direto ao próprio texto.

A crítica ao texto da Vulgata O primeiro recurso se tornou disponível quando Erasmo descobriu as notas de Lorenzo Valia do século 15 sobre o texto grego do Novo Testa­ mento. Essas notas, que estavam mofando nos arquivos de um monastério local, foram descobertas e publicadas por Erasmo em 1505. O segundo recurso foi disponibilizado em 1516, quando Erasmo publicou o primeiro Novo Testamento grego impresso, o Novum instrumentum omne, que saiu das prensas de Froben em Basiléia. Embora dois anos antes já tivessem sido compilados os tipos para uma versão superior do mesmo texto, em Alcalá na Espanha, a publicação dessa versão (a assim chamada Bíblia Poliglota Complutensiana) foi postergada até 1520, provavelmente por razões políticas. Embora importante, o texto de Erasmo não era tão confiável quanto deveria: ele tivera acesso a apenas quatro manuscritos para a maior parte do Novo Testamento e a apenas um para a parte final, o livro do Apoca­ lipse. Acontece que aquele manuscrito havia deixado de fora cinco versí­ culos, os quais o próprio Erasmo teve que traduzir para o grego a partir do latim da Vulgata. Apesar disso, a publicação foi um marco literário. Pela primeira vez, os teólogos tinham a oportunidade de comparar o texto grego original do Novo Testamento com a tradução posterior da Vulgata em latim. Com base na obra de Lorenzo Valia, Erasmo demonstrou que a tra­ dução da Vulgata de várias passagens importantes do Novo Testamento não podia ser justificada. Visto que diversas crenças e práticas da igreja medieval eram baseadas nessas passagens, as alegações de Erasmo foram recebidas com consternação por muitos católicos conservadores (que de­ sejavam manter essas práticas e crenças) e com proporcional grande de­ leite pelos reformadores (que desejavam eliminá-las). Alguns exemplos indicarão a relevância da erudição bíblica de Erasmo. A igreja cristã sempre atribuiu importância especial a certos ritos, ou formas de culto, denominados como sacramentos (veja o início do capí­ tulo 9). Dois desses sacramentos eram reconhecidos pela igreja primiti­ va como “dominicais” (em outras palavras, como tendo sido autorizados pelo próprio Jesus Cristo). Estes eram o batismo e o sacramento agora conhecido por vários nomes, como “missa”, “Ceia do Senhor”, “partir do

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pão” ou “Eucaristia”. Na sua exposição da parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37), o grande teólogo patrístico Agostinho argumentou que as duas moedas de prata dadas pelo samaritano ao estalajadeiro (Lc 10.35) eram uma alegoria dos dois sacramentos do evangelho dados por Cristo à sua igreja. Entretanto, no final do século 12, esse número havia aumentado para sete. O desenvolvimento e a consolidação do sistema sacramental da igre­ ja é um dos aspectos mais importantes da teologia medieval, e é devido em parte a uma obra essencial da teologia medieval - os Quatro livros de sentenças de Pedro Lombardo. Os sete sacramentos então reconhecidos pela igreja eram: Eucaristia, batismo, penitência, confirmação, casamento, ordenação e extrema-unção. Para muitos, a nova tradução do Novo Testamento por Erasmo pare­ cia questionar todo esse sistema. Relata-se que o célebre erudito inglês Thomas Linacre, que renunciou à prática da medicina para se tornar um sacerdote, disse o seguinte depois de ler os Evangelhos pela primeira vez no original grego: “Ou isso não é o evangelho, ou nós não somos cristãos”. É proveitoso considerarmos algumas das coisas que podem ter levado Li­ nacre a fazer essa declaração. Grande parte da teologia medieval justificava a inclusão do matrimô­ nio na lista dos sacramentos com base numa passagem do Novo Testa­ mento, a qual - pelo menos na tradução da Vulgata - fala de casamento como um sacramentum (Ef 5.31-32). Seguindo Valia, Erasmo ressaltou que a palavra grega (musterion) traduzida nesse caso como “sacramento” significa simplesmente “mistério”. Não há qualquer referência ao casa­ mento como sendo um “sacramento”. Assim, na prática, fica sem proveito uma passagem-prova clássica usada pelos teólogos medievais para justifi­ car a inclusão do matrimônio na lista de sacramentos. De modo semelhante, a Vulgata traduziu as palavras iniciais do minis­ tério de Jesus (Mt 4.17) como “Fazei penitência, pois o reino dos céus está próximo”. Essa tradução sugere que a vinda do reino dos céus tem cone­ xão direta com o sacramento da penitência. Novamente seguindo Valia, Erasmo ressaltou que o grego devia ser traduzido como “Arrependei-vos, pois o reino dos céus está próximo”. Em outras palavras, enquanto a Vul­ gata parecia se referir a uma prática exterior (o sacramento da penitência), Erasmo insistia que a referência era a uma atitude psicológica interior - a de “estar contrito”. Mais uma vez, uma justificativa importante do sistema sacramental da igreja era desafiada. Outra área da teologia que os teólogos medievais tinham desenvolvi­ do muito além das modestas noções da igreja primitiva se refere a Ma­ ria, a mãe de Jesus. Para muitos teólogos medievais posteriores, Maria se

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comparava a um reservatório de graça, ao qual se podia recorrer quando necessário. Em parte, essa visão se fundamenta na compreensão medieval de graça como um tipo de substância - uma compreensão que foi aban­ donada na época da Reforma (veja o início do capítulo 7). Também se fundamenta na tradução da Vulgata das palavras de Gabriel a Maria (Lc 1.28) como “aquela que é cheia de graça [gratia plena]”, sugerindo assim a imagem de um reservatório cheio de um líquido (graça). Porém, como tanto Erasmo quanto Valia ressaltaram, o grego simplesmente significa “favorecida” ou “aquela que encontrou favor”. Novamente, uma caracterís­ tica importante da teologia medieval parecia ser contestada pela erudição humanista do Novo Testamento. Desse modo, houve uma perda geral de confiança na confiabilidade da Vulgata, a tradução latina “oficial” da Bíblia. Não se podia mais considerar a “Escritura” e “o texto da Vulgata” como a mesma coisa. Para os refor­ madores, contudo, essas mudanças eram providenciais. Como vimos, os reformadores queriam retornar às crenças e práticas da igreja primitiva e se a nova tradução do Novo Testamento por Erasmo ajudava a demolir adições medievais a essas crenças e práticas, então tanto melhor! A eru­ dição bíblica humanista era, portanto, considerada como uma aliada na batalha pela volta à simplicidade da igreja apostólica. Muito da complexa rede de ideias e costumes religiosos do final da Idade Média podia ser descartado como distorções de (ou adições a) uma forma mais primitiva e simples de cristianismo.

Edições dos escritores patrísticos O programa de reforma de Erasmo também exigia fácil acesso aos escritos dos pais. Isso implicava a produção de edições confiáveis dos escritos de teólogos como Ambrósio, Agostinho e Jerônimo (o escritor patrístico favorito de Erasmo). Erasmo foi responsável por um feito notá­ vel de trabalho editorial, produzindo uma série de edições patrísticas que foram a maravilha de sua época. Embora a edição de Erasmo dos escritos de Agostinho seja inferior à grande edição em onze volumes de Amerbach de 1506, sua edição das obras de Jerônimo foi amplamente considerada como uma maravilha intelectual do mundo. Não se deve pensar que os teólogos do período medieval ignoravam os pontos de vista de escritores patrísticos como Agostinho. Eles reveren­ ciavam tais escritos, mas não tinham acesso a edições completas e preci­ sas. Desse modo, os escritores medievais tendiam a citar extratos muito curtos dos pais, geralmente descritos como “sentenças”. Essas sentenças eram citadas sem referência ao seu contexto. Como as versões completas

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das obras de onde foram citadas só podiam ser encontradas em poucos manuscritos trancafiados em bibliotecas monásticas, na prática era im­ possível verificar se o ponto de vista de um Pai estava sendo corretamente apresentado. Agostinho, em particular, era frequentemente mal compre­ endido por ser citado fora de contexto. A produção de edições impressas dessas obras permitiu que se estudasse o contexto dessas sentenças, de modo que então era possível ter uma compreensão dos pais numa profun­ didade negada aos escritores medievais anteriores. Além disso, descobriu-se que muitas das obras atribuídas a Agostinho em circulação na Idade Média haviam sido escritas por outras pessoas. Essas obras “pseudoagostinianas” frequentemente apresentavam concei­ tos opostos aos de Agostinho, fazendo com que fosse consideravelmente difícil para os leitores entenderem suas afirmações aparentemente con­ traditórias. O advento dos métodos de crítica textual da erudição hu­ manista permitiu que essas obras fossem reconhecidas pelo que eram. Assim, foram excluídas das edições definitivas dos escritos de Agostinho. Desse modo, abriu-se o caminho para interpretações mais confiáveis dos pais, eliminando-se escritos “patrísticos” espúrios. As técnicas acadêmi­ cas para identificar os escritos espúrios foram desenvolvidas por Loren­ zo Valia (c. 1406-1457) no século 15, e foram usadas para demonstrar a inautenticidade da famosa Doação de Constantino (um documento su­ postamente escrito pelo imperador Constantino dando certos privilégios à igreja ocidental). As edições dos escritores patrísticos preparadas por estudiosos huma­ nistas como Erasmo e os irmãos Amerbach tornaram, pois, a teologia des­ sa importante época disponível de uma forma mais completa e confiável do que jamais havia sido possível. Como resultado, tornou-se possível dis­ cernir diferenças essenciais de ênfase e substância entre os pontos de vista de escritores como Agostinho e os dos teólogos do final da Idade Média. Na opinião de Lutero, era necessário reformar as ideias da igreja medie­ val retornando aos ensinos autênticos de Agostinho, especialmente em relação à doutrina da graça. As novas edições dos escritores patrísticos, portanto, adicionaram mais combustível às exigências por uma reforma da igreja.

Uma avaliação do humanismo e da Reforma Que impacto o humanismo exerceu sobre a Reforma? Para dar uma resposta confiável a essa pergunta, é necessário fazer uma distinção entre duas alas da Reforma: a Reforma desenvolvida em Wittenberg sob Mar­ tinho Lutero e a Reforma desenvolvida em Zurique sob Ulrico Zuínglio.

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Estas duas alas tiveram personagens bem diferentes, e generalizações so­ bre “a Reforma” costumam confundi-los. A pressuposição por trás de al­ guns escritos sobre a Reforma - de que ela foi homogênea intelectual e culturalmente - é totalmente incorreta. Como enfatizamos antes, embora as reformas em Wittenberg e na Suíça (que no final geraram o estabele­ cimento das igrejas luterana e reformada) tenham recorrido às mesmas fontes teológicas (a Escritura é os pais) como base de seus programas re­ formistas, elas fizeram isso usando métodos bem diferentes e, consequen­ temente, com resultados diferentes. Uma das diferenças mais marcantes entre essas alas da Reforma se refere à sua relação peculiar com o huma­ nismo. Nós as consideraremos individualmente antes de retornar a alguns pontos mais gerais.

O humanismo e a Reforma suíça As origens da Reforma suíça podem ser remontadas ao surgimento de grupos humanistas (geralmente conhecidos como “confrarias”) nas uni­ versidades de Viena e Basiléia no início do século 16. Os estudantes suíços, que no século 15 tendiam a estudar em universidades famosas por causa de suas conexões com a teologia escolástica, nesse momento demonstra­ vam notável preferência por universidades com associações fortemente humanistas. Geograficamente, a Suíça era próxima da Itália, e parece ter se tornado uma central de informações para a disseminação das ideias da Renascença no norte da Europa no início do século 16. Muitas das princi­ pais casas publicadoras da Europa - por exemplo, Froschauer em Zurique e Froben e Cratander em Basiléia - eram suíças. Numa época em que a identidade nacional suíça parecia estar ameaçada pela guerra franco-italiana, muitos humanistas suíços parecem ter sido inspirados pela visão de estabelecer a identidade literária e cultural da Suíça. A impressão geral que temos do início da vida intelectual suíça no iní­ cio do século 16 é a de grupos de intelectuais, estabelecidos nas cidades universitárias suíças, começando a desenvolver a visão do christianismus renascens. O momento decisivo desse movimento ocorreu quando um membro de uma confraria humanista, Ulrico Zuínglio, foi chamado a Zu­ rique para assumir a função de pregador em janeiro de 1519. Explorando sua posição, Zuínglio iniciou um programa de reformas baseado ampla­ mente em princípios humanistas, especialmente a visão de renovação cor­ porativa da igreja e da sociedade com base na Escritura e nos pais. Zuínglio havia estudado anteriormente nas universidades humanistas de Viena e Basiléia, e suas obras iniciais refletem os interesses particula­ res do humanismo suíço. Ele conheceu Erasmo quando este esteve em

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Basiléia em 1516 publicando seu Novo Testamento grego nas prensas de Froben, e foi profundamente influenciado por suas ideias e métodos. A influência de Erasmo sobre Zuínglio é evidente nos seguintes pontos: 1. A religião é vista como algo espiritual e interior; não se pode per­ mitir que questões externas adquiram importância vital. O propó­ sito primário da religião é o de inculcar no crente um conjunto de atitudes interiores, tais como a humildade e a obediência voluntária a Deus. Embora Zuínglio argumentasse que qualquer programa de reforma digno de seu nome deveria se estender a questões externas (tais como a natureza do culto e o modo pelo qual a igreja deveria ser governada), sua ênfase primária parece estar firmemente na ne­ cessidade de uma renovação interior. 2. Importância considerável é dada à regeneração e reforma ética e moral. Para muitos estudiosos, o início da Reforma suíça parece ser primariamente uma reforma moral, com ênfase na necessidade de regenerar tanto o indivíduo quanto a sociedade. 3. A relevância de Jesus Cristo para o cristão é primariamente como um exemplo moral. Erasmo desenvolveu a ideia de fé cristã como imitatio Christi, uma “imitação de Cristo”, e Zuínglio o segue quan­ to a isso. 4. Determinados Pais da igreja são apresentados como sendo de im­ portância particular. Tanto para Erasmo quanto para Zuínglio, Je­ rônimo e Orígenes são especialmente valiosos. Embora mais tarde Zuínglio começasse a reconhecer a importância de Agostinho, essa mudança data da década de 1520: as origens do programa reformis­ ta de Zuínglio nada parecem dever a Agostinho. 5. A reforma se refere primariamente à vida e à moral da igreja, não à sua doutrina. Para muitos humanistas, a “filosofia” lida com o pro­ cesso de viver, não com um conjunto de doutrinas filosóficas (por exemplo, veja o conceito de Erasmo sobre a philosophia Christi, a “filosofia de Cristo”, que é essencialmente um conjunto de normas para a vida). Inicialmente, Zuínglio não parece ter considerado a reforma da igreja como se estendendo à sua doutrina - apenas à sua vida. Assim, suas primeiras ações reformistas se referem às práticas da igreja de Zurique, tais como a ordem dos cultos e o modo como as igrejas eram ornamentadas. 6. A reforma é vista como um processo pedagógico ou educacional. É essencialmente um processo humano, baseado em percepções

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contidas no Novo Testamento e nos primeiros pais da igreja. So­ mente no início da década de 1520 encontramos Zuínglio se distan­ ciando dessa ideia, para então adotar a ideia de Reforma como uma ação divina dominando a fraqueza humana. Para resumir, então: a Reforma suíça foi dominada pelo humanismo, que era a única força intelectual de peso da região na época. O programa inicial de reforma de Zuínglio é inteiramente humanista, inspirando-se nas peculiares percepções do humanismo suíço e nas de Erasmo. A influência do humanismo sobre a Reforma suíça foi nada menos que decisiva. E isso contrasta com a Reforma de Wittenberg, para a qual nos voltamos agora.

O humanismo e a Reforma de Wittenberg Embora o humanismo fosse uma força intelectual razoavelmente im­ portante na Alemanha no início do século 16, seu impacto em Martinho Lutero parece ter sido limitado. Lutero era um teólogo acadêmico, cujo mundo era dominado pelos padrões de pensamento da teologia escolásti­ ca. Por meio de uma leitura cuidadosa dos escritos de Agostinho, Lutero se convenceu de que a forma de teologia escolástica com a qual estava familiarizado estava errada. Ela não fazia justiça à graça de Deus, e tendia a sugerir que o indivíduo podia merecer sua própria salvação. Sua tarefa era a de se opor a essa teologia. Enquanto Zuínglio considerava a moral da igreja como necessitada de reforma, Lutero percebia maior necessidade de reforma na teologia da igreja. A teologia reformista de Lutero se firma num contexto acadêmico (a Universidade de Wittenberg), e mira um alvo acadêmico (a teologia do “nominalismo”, ou a via moderna, que conside­ ramos com mais detalhes no próximo capítulo). Além disso, a querela de Lutero com a teologia escolástica se centrava na doutrina da justificação - uma preocupação que não encontra eco na Reforma suíça. Igualmente, a preocupação de Lutero com as doutrinas em si não tem qualquer paralelo real nem com o humanismo nem com a Reforma suíça em seu início. O humanismo via a reforma como algo referente à vida e moral da igreja - não à doutrina. De fato, a maioria dos humanistas parece ter considerado o interesse pelas doutrinas como equivalente a uma ob­ sessão pela teologia escolástica. Em Lutero, entretanto, encontramos uma determinação de questionar o ensino da igreja, com o objetivo de reformar esse ensino à luz da Escritura. É verdade, obviamente, que posteriormente - especialmente sob a liderança de Bullinger e Calvino -a Reforma suíça se tornou muito mais interessada em questões doutrinárias. Porém, nessa etapa inicial, sob a liderança de Zuínglio, a doutrina era marginalizada.

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Para combater o escolasticismo, Lutero se apoiava muito na Escritura e nos Pais, especialmente em Agostinho. Ao fazer isso, ele usou as novas edi­ ções do Novo Testamento grego e dos escritos de Agostinho que haviam sido preparadas por editores humanistas. Lutero considerava providencial que essas novas fontes estivessem disponíveis para apoiar seu programa de reforma. Seu conhecimento de hebraico, suas edições de Agostinho, seu texto grego do Novo Testamento - tudo isso foi fornecido pelos edi­ tores e educadores humanistas. De muitos modos, o programa teológico desenvolvido por Lutero e Karlstadt em Wittenberg pode ser considerado humanista. Lutero e os humanistas eram fortemente contrários ao esco­ lasticismo (embora por razões diferentes, como veremos abaixo). De fato, a impressão de que Lutero era simpático ao humanismo ga­ nhou terreno no final da década de 1510, talvez como resultado da Dis­ puta de Leipzig em 1519, na qual Lutero debateu uma série de questões com o polemista católico Johann Eck. Muito do que Lutero disse nesse debate parecia ecoar as preocupações dos humanistas. Não é de admirar, portanto, que relatos tenham circulado nos círculos humanistas a respei­ to dessa figura antes obscura que havia defendido publicamente as ideias humanistas com tal ousadia. A Disputa de Leipzig poderia ter permane­ cido como um obscuro debate acadêmico se os humanistas não tivessem abraçado a causa de Lutero com entusiasmo, convencidos de que ele era um deles. Não há evidência real, contudo, de que Lutero tivesse qualquer inte­ resse no humanismo em si, ou qualquer simpatia por seus objetivos; ele parece simplesmente ter explorado seus produtos para os seus próprios propósitos. As semelhanças superficiais entre os dois programas escon­ dem diferenças profundas. Lutero e seus colegas usaram apenas as habili­ dades textuais e filológicas do humanismo, mas permaneceram hostis às atitudes humanistas. Na seção final deste capítulo, desenvolveremos mais este ponto.

Tensões entre a Reforma e o humanismo Embora o humanismo tenha trazido contribuições decisivas para o de­ senvolvimento da Reforma, como acabamos de ver, havia, não obstante, tensões entre o humanismo e ambas as alas da Reforma. Cinco áreas po­ dem ser salientadas: 1. A atitude em relação à teologia escolástica. Os humanistas, os refor­ madores suíços e os reformadores de Wittenberg não hesitaram em rejeitar o escolasticismo; todavia, suas razões para fazer isso eram diferentes. Os humanistas rejeitavam o escolasticismo por causa de

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sua falta de inteligibilidade e elegância de expressão; eles queriam uma teologia mais simples e mais eloqüente. Atitudes semelhantes são evidentes na Reforma suíça. Os reformadores de Wittenberg, em contraste (especialmente Lutero e Karlstadt), não tinham difi­ culdade em compreender a teologia escolástica; sua rejeição do escolasticismo se baseava em sua convicção de que sua teologia estava fundamentalmente errada. Enquanto os humanistas e Zuínglio desconsideravam o escolasticismo como irrelevante, os reformado­ res de Wittenberg o consideravam como o principal obstáculo no caminho de uma teologia reformada. 2. A atitude em relação à Escritura. Todos os três grupos criam que a Escritura detinha a chave para a reforma da igreja, pois dá tes­ temunho da crença e prática cristã na sua forma original. Para os humanistas, a autoridade da Escritura estava em sua eloqüência, simplicidade e antiguidade. Os reformadores suíços e de Witten­ berg, em contraste, fundamentavam a autoridade da Escritura no conceito de “palavra de Deus”. Consideravam que a Escritura con­ tinha os mandamentos e promessas de Deus, dando-lhe assim um status além e acima de qualquer documento puramente humano. A expressão sola scriptura, “somente pela Escritura”, expressa a crença básica da Reforma de que nenhuma outra fonte além da Escritura precisa ser consultada em questões de fé e prática cristã. Havia uma tensão adicional entre os reformadores suíços e os de Wittenberg; os primeiros consideravam a Escritura primariamente como fonte de orientação moral, enquanto os últimos a consideravam prima­ riamente como um registro das promessas misericordiosas de sal­ vação divina àqueles que creem. 3. A atitude em relação aos escritores patrísticos. Para os humanistas, os escritos do período patrístico representavam uma forma simples e compreensível de cristianismo, tendo autoridade por sua antigui­ dade e eloqüência. Em geral, os humanistas parecem ter conside­ rado os Pais como tendo valor mais ou menos igual, pois todos datam aproximadamente do mesmo período. Erasmo, contudo, considerava alguns Pais como tendo importância especial; no iní­ cio do século 16, ele fez menção especial de Orígenes (um Pai grego do século 3o, notável tanto por sua falta de ortodoxia quanto pela elegância dos seus escritos), enquanto em 1515 ele decidiu optar por Jerônimo. Sua nova preferência por Jerônimo pode ser expli­ cada com base em seus estudos textuais do Novo Testamento, que o levaram à publicação da edição grega do Novo Testamento em

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1516. Jerônimo tinha se incumbido anteriormente de um trabalho extensivo nos textos bíblicos, e Erasmo parece considerá-lo com novo interesse por essa razão. Essa atitude erasmiana para com os Pais também é evidente na Reforma suíça. Em contraste, os reformadores de Wittenberg, Lutero e Karlstadt, consideravam Agostinho como o mais proeminente entre os Pais. Os humanistas aplicavam dois critérios ao avaliar os pais: antigui­ dade e eloqüência - daí a preferência de Erasmo por Orígenes e Jerônimo. Todavia, os reformadores de Wittenberg usavam um critério explicitamente teológico ao avaliar os Pais: quão confiáveis eles eram como intérpretes do Novo Testamento? Com base nesse critério, devia se preferir Agostinho, e Orígenes devia ser tratado com suspeita. Os humanistas não estavam preparados para usar um critério tão explicitamente teológico ao avaliarem os méritos relati­ vos dos Pais, intensificando-se desse modo a tensão entre esses dois movimentos. A atitude com relação à educação. A Reforma testemunhou o nas­ cimento de uma série de novas ideias religiosas (ou, pelo menos, ideias que eram novas à maioria das pessoas no século 16, mesmo com os reformadores argumentando que representavam a recupe­ ração de ideias mais antigas). Assim, era essencial para o sucesso das reformas suíça e de Wittenberg que se estabelecesse um grande programa de instrução religiosa. O humanismo foi essencialmente um movimento educacional e cultural baseado na reforma das artes liberais. Disso resulta que a maioria dos humanistas do início do século 16 era de educadores profissionais. Portanto, é interessante observar que a maioria dos humanistas do norte da Europa não aderiu à causa da Reforma necessariamente por aprovar suas ideias religiosas, mas por estar fortemente atraída por seus ideais educacionais. Os reformadores estavam preocupados com as ideias religiosas que estavam sendo ensinadas, e viam os métodos educacionais como meios para um fim; ao passo que os educadores humanistas profissionais estavam preocupados primariamente com o desenvolvimento das técnicas educacionais, e não com as ideias sendo ensinadas. A atitude com relação à retórica. Como já vimos, o humanismo es­ tava interessado na eloqüência, tanto escrita como falada. Assim, a retórica era estudada como um meio para esse fim. Os reformado­ res, na Alemanha e na Suíça, estavam interessados na promoção de suas ideias religiosas por meio da palavra escrita (por exemplo, em

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livros como as famosas Institutas da religião cristã, de Calvino) e da palavra falada (por exemplo, em sermões, como os oito sermões de Lutero em Wittenberg em 1522). A retórica era, portanto, um meio para o fim da propagação das ideias da Reforma. Estudos recentes, por exemplo, enfatizam como o estilo de Calvino é altamente in­ fluenciado pela retórica. Tanto os humanistas como os reformado­ res, por conseguinte, davam grande importância à retórica - mas por razões diferentes. Para os humanistas, a retórica promovia elo­ qüência; para os reformadores, ela promovia a Reforma. Uma vez mais, encontramos semelhanças superficiais entre os dois grupos que escondem profundas diferenças. Com base nesta análise até aqui, fica claro que a ala suíça da Refor­ ma foi influenciada pelo humanismo muito mais fortemente que a Refor­ ma correspondente em Wittenberg. Entretanto, mesmo em Wittenberg, o novo programa de estudo da Bíblia e de Agostinho parecia a muitos ser inteiramente humanista em sua inspiração. Com o benefício da visão retrospectiva, é fácil para nós distinguirmos Lutero e Karlstadt dos hu­ manistas; todavia, na época, essa distinção era impossível de ser feita na prática. Para muitos observadores, Lutero e Erasmo estavam envolvidos precisamente na mesma batalha. Podemos apresentar uma ilustração famosa dessa má compreensão de Lutero pelos humanistas. Em 1518, Lutero tomou parte da famosa Dispu­ ta de Heidelberg, na qual ele desenvolveu uma teologia radicalmente anti-humanista e antiescolástica. Entre seu público estava o jovem humanista Martin Bucer, que mais tarde viria a se tornar um reformador principal na cidade de Estrasburgo. Bucer escreveu com entusiasmo a seu corres­ pondente humanista Beato Renano, declarando que Lutero simplesmente defendeu o ponto de vista de Erasmo, mas o fez com muito mais vigor. To­ davia, uma comparação detalhada dessa carta com o texto de Lutero deixa claro que Bucer parece ter compreendido errado Lutero praticamente em todos os pontos. De novo, a posição de Lutero na Disputa de Leipzig em 1519 - como se reflete, por exemplo, na sua crítica à autoridade papal - era amplamente considerada como humanista, e o levou a se tornar uma figura cultuada nos círculos humanistas. Contudo, a posição de Lutero em Leipzig não foi distintivamente “humanista” em qualquer sentido significativo dessa pa­ lavra; ela ecoava ideias reformistas que começavam a ganhar ampla acei­ tação em círculos evangélicos por toda a Europa da época. A extensão completa da tensão entre o humanismo e a Reforma talvez só tenha se tornado totalmente aparente possivelmente em 1525. Nesse

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ano, tanto Zuínglio como Lutero redigiram ataques públicos a Erasmo, ambos concentrando sua atenção no conceito de “liberdade da vontade”. Para ambos os reformadores, o ensino de Erasmo sobre a total liberda­ de da vontade humana gera uma concepção excessivamente otimista da natureza humana. Com a publicação do Comentário sobre a verdadeira e a falsa religião, de Zuínglio, e da obra Sobre a escravidão da vontade, de Lutero, as tensões que sempre existiram entre o humanismo e a Reforma se tornaram óbvias a todos. Porém, o humanismo foi apenas um de dois movimentos intelectuais e culturais significativos e importantes para a Reforma. Agora devemos nos voltar para considerar o segundo movimento - o escolasticismo.

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O escolasticismo é provavelmente um dos movimentos intelectuais mais desprezados na história humana. Tanto que a palavra inglesa “dunce” (tolo) deriva do nome de um dos grandes escritores escolásticos, João Duns Scotus. É afirmado com frequência que os pensadores escolásticos - os “homens da escola” (ou acadêmicos), como eram chamados - deba­ tiam de maneira séria, ainda que inútil, quantos anjos poderiam dançar ha cabeça de um alfinete. Na realidade esse debate específico nunca acon­ teceu, embora sem dúvida seu resultado teria sido inquestionavelmente curioso. Porém, esse fato resume precisamente o modo como o escolasti­ cismo era considerado no início do século 16 pela maioria das pessoas, es­ pecialmente pelos humanistas: uma especulação intelectual inútil e árida sobre coisas de pouco valor. No final do século 15, Erasmo de Roterdã passou algum tempo na Uni­ versidade de Paris, a qual era dominada pelo escolasticismo. Ele escreveu minuciosamente acerca das muitas coisas que detestou em Paris: os pio­ lhos, a comida ruim, as latrinas fétidas e os debates absolutamente entediantes que perturbavam os acadêmicos. Deus poderia ter se tornado um pepino em vez de um ser humano? Ele pode desfazer o passado, fazendo uma prostituta se tornar virgem novamente? Embora haja questões sérias por trás desses debates, a sagacidade afiada de Erasmo minimizou a aten­ ção sobre as questões em si e enfatizou o modo frívolo e ridículo como elas eram debatidas. A maioria dos livros-textos sobre a Reforma, portanto, se sente justi­ ficada em desconsiderar o escolasticismo sem sequer explicar o que foi e por que foi de importância fundamental para a Reforma de Wittenberg. Este capítulo tem o objetivo de explicar essas duas questões, e nós começa­ mos por tentar fornecer uma definição prática do termo “escolasticismo”.

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Definição de"escolasticismo" Pode-se argumentar que a própria palavra “escolasticismo” é uma in­ venção dos escritores humanistas, ansiosos por desacreditar o movimento que esse termo representa. Seguramente a expressão “Idade Média” foi em grande medida uma invenção humanista, cunhada por escritores hu­ manistas do século 16 como Vadiano e Beato Renano para se referirem com desprezo a um período insípido de estagnação entre a Antiguidade (o período clássico) e a Modernidade (a Renascença). A “Idade Média” era vista como pouco mais do que um intermezzo entre a magnificência cultural da Antiguidade e sua revivificação durante o Renascimento. Do mesmo modo, o termo “escolásticos” (scholastici) era usado pelos humanistas para se referirem, também com desprezo, às ideias da Ida­ de Média. Por desejarem desacreditar as ideias do período medieval e, assim, tornar mais atrativo seu apelo ao período clássico, os humanistas manifestavam pouco interesse em distinguir entre os diversos tipos de “escolásticos” - tais como tomistas e scotistas. O termo “escolasticismo” é, portanto, tanto pejorativo quanto impreciso; no entanto, o historiador não pode evitar usá-lo. Como o escolasticismo pode ser definido? Como o humanismo, é di­ fícil fornecer uma definição precisa que consiga fazer justiça às diferentes posições de todas as escolas principais na Idade Média. Talvez a seguinte definição prática seja útil: considera-se o escolasticismo como o movi­ mento medieval que floresceu no período de 1200 a 1500, o qual enfatizou a justificação racional das crenças religiosas e a apresentação sistemática dessas crenças. Então, “escolasticismo” não se refere a um sistema específi­ co de crenças, mas a um modo particular de organizar a teologia- um mé­ todo altamente desenvolvido de apresentar materiais, fazendo distinções sutis e buscando alcançar uma visão abrangente da teologia. É talvez com­ preensível por que, para os críticos humanistas, o escolasticismo parecia ter degenerado a pouco mais do que minúcias lógicas. Quando a assim chamada Era das Trevas finalmente se dissipou na Europa ocidental, o cenário estava preparado para uma revitalização em cada campo do trabalho acadêmico. A restauração, em certo grau, da esta­ bilidade política na França no final do século 11 incentivou a reemergência da Universidade de Paris, a qual rapidamente foi reconhecida como o centro intelectual da Europa. Em Paris, diversas “escolas” teológicas se es­ tabeleceram na Rive Gaúche (margem esquerda) do rio Sena e, na íle de la Cité, à sombra da recém-construída catedral de Notre Dame. Dois temas começaram a dominar o debate teológico: a necessidade de sistematizar e expandir a teologia cristã, e a necessidade de demonstrar a racionalidade

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inerente a essa teologia. Embora a maior parte da teologia medieval inicial tenha sido pouco mais do que uma repetição dos conceitos de Agostinho, havia uma pressão crescente para sistematizar as ideias de Agostinho e levá-las adiante. Porém, como isso poderia ser feito? Com qual método? E com base em qual sistema filosófico se poderia demonstrar a racionali­ dade da teologia cristã? A resposta a essas perguntas veio por meio da redescoberta de Aris­ tóteles, no final do século 12 e no início do século 13. Por volta de 1270, Aristóteles já estava consagrado como “o Filósofo”. Suas ideias passa­ ram a dominar o pensamento teológico, a despeito da ardente oposição dos grupos mais conservadores. Por meio da influência de escritores como Tomás de Aquino e Duns Scotus, as ideias de Aristóteles se tor­ naram consagradas como o melhor meio de estabelecer e desenvolver a teologia cristã. As ideias da teologia cristã foram, portanto, arranja­ das e correlacionadas sistematicamente, com base nas pressuposições aristotélicas. De maneira idêntica, a racionalidade da fé cristã era de­ monstrada com base nasideias aristotélicas. Assim, algumas das famo­ sas “provas” de Tomás de Aquino para a existência de Deus na verdade dependem de princípios da física aristotélica, e não de percepções dis­ tintamente cristãs. Por exemplo, considere o seu argumento sobre movimento. Aquino argumenta, com base num axioma aristotélico, que tudo que se move é movido por alguma outra coisa. Para cada movimento, há uma causa. As coisas não se movem simplesmente - elas são movidas. (Duns Scotus dis­ corda nesse caso; ele argumenta que anjos têm acesso a meios indepen­ dentes de movimento.) Ora, cada causa de movimento deve em si ter uma causa. E essa causa também deve ter uma causa. Portanto, Aquino argumenta que há uma série completa de causas de movimento subjacente ao mundo como o conhecemos. Ora, a menos que haja um número infinito dessas causas, argumenta Aquino, deve haver uma causa única na origem dessa série. No final das contas, todos os de­ mais movimentos derivam dessa causa original de movimento. Essa é a origem da grande cadeia de causalidade, a qual vemos refletida no modo como o mundo se comporta. Com base no fato de que as coisas estão em movimento, então, Aquino argumenta a existência de uma única causa original de todo esse movimento - e este Movedor Primário “Imovível” é o próprio Deus, ele conclui. Todavia, como seus críticos posteriores ressaltam, isso se baseia na perigosa suposição não provada de que esse Movedor e o Deus do cristianismo são idênticos. Parecia a esses críticos, dentre os quais devemos incluir Martinho Lutero, que os deuses de Aris­ tóteles e do cristianismo são, na verdade, radicalmente diferentes.

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Esta, portanto, é a essência do escolasticismo: a demonstração da ra­ cionalidade inerente da teologia cristã por meio de um apelo à filosofia, e a demonstração da harmonia completa dessa teologia pelo exame minu­ cioso do relacionamento entre seus vários elementos. Os escritos escolás­ ticos tendiam a ser longos e argumentativos, frequentemente dependendo de distinções rigorosamente argumentadas. Desse modo, Duns Scotus, geralmente conhecido como o “doutor sutil”, se obriga a distinguir entre pelo menos quinze sentidos da palavra latina ratio, “razão”, para justificar suas concepções do seu papel na teologia. O famoso historiador medieval Etienne Gilson descreveu certa vez os grandes sistemas escolásticos como “catedrais da mente”. Cada sistema escolástico tentava abarcar a realidade em sua totalidade, lidando com ques­ tões de lógica, metafísica e teologia. Tudo era demonstrado como tendo seu lugar lógico num sistema intelectual totalmente abrangente. A seguir, investigaremos brevemente os tipos principais de escolasticismo encon­ trados na Idade Média. Primeiro, porém, devemos considerar o ambiente no qual o escolasticismo floresceu.

O escolasticismo e as universidades Por razões óbvias, a influência do escolasticismo atingiu seu ápice nas universidades medievais. Ao contrário quattrocento Os anos 1400, ou do humanismo quattrocento, que tanseja, o século 15. to floresceu nas universidades quanto gozou de uma influência enorme na sociedade, o escolasticismo tinha uma esfera bem limitada de influência. O humanismo apelava ao mundo da educação, da arte e da cultura, en­ quanto o escolasticismo podia no máximo fazer um limitado apelo (num mau latim) àqueles que gostavam de dialética. Numa época em que a re­ tórica e a dialética eram vistas como mutuamente incompatíveis, o apelo superior da primeira garantia na prática o declínio da última. No final do século 15, desenvolveu-se uma confrontação entre o hu­ manismo e o escolasticismo em muitas universidades. A Universidade de Viena, de importância fundamental para o desenvolvimento da Reforma suíça, testemunhou uma revolta humanista contra o escolasticismo preci­ samente como essa na década final do século 15. No início do século 16, muitos estudantes parecem ter evitado universidades tradicionalmente dominadas pelo escolasticismo em favor de outras com programas edu­ cacionais humanistas. Assim, na medida em que amanhecia o século 16, a influência do escolasticismo foi se erodindo gradualmente até mesmo em suas fortalezas acadêmicas.

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Embora minguando como força acadêmica, todavia, permanece o fato de que o desenvolvimento teológico de Martinho Lutero ocorreu em reação à teologia escolástica. Embora o escolasticismo fosse uma força intelectual insignificante na Suíça, ainda era uma força de grande importância na Alemanha, particularmente na Universidade de Erfurt, onde Lutero estudou. A obra inicial de Lutero como um reformador te­ ológico se desenvolveu num contexto universitário, lutando contra um oponente acadêmico. Em marcante contraste, os reformadores suíços eram humanistas, como já vimos, empenhados em reformar a vida e a moral da igreja de seus dias; eles não tinham motivos para prestar qualquer atenção ao escolasticismo. Lutero, ao contrário, foi obrigado a dialogar com a força principal no seu horizonte intelectual, o escolasti­ cismo. Os reformadores suíços podiam se dar ao luxo de ridicularizar o escolasticismo, pois este não era uma ameaça a eles - mas Lutero preci­ sou enfrentá-lo diretamente, Isso serve para enfatizar as diferenças entre as Reformas suíça e a de Wittenberg, cujos contextos totalmente diferentes em geral não são per­ cebidos. Zuínglio começou reformando uma cidade (Zurique); Lutero começou reformando a faculdade de teologia de uma universidade (Wit­ tenberg). Zuínglio começou se opondo à vida e à moral da igreja de Zuri­ que antes da Reforma; Lutero começou se opondo a uma forma particular da teologia escolástica. Inicialmente, Zuínglio não tinha necessidade de propor uma reforma das doutrinas da igreja, enquanto que, para Lutero, a reforma doutrinária era o trampolim essencial para seu programa de reformas. Em um capítulo posterior, consideraremos a reação de Lutero contra a teologia escolástica. Agora nossa atenção se volta para os tipos de escolasticismo encontrados no final da Idade Média.

Tipos de escolasticismo Preciso fazer uma apologia antes de prosseguirmos. Considero impos­ sível simplificar ainda mais o material que se segue. Minha experiência em ensinar sobre a teologia da Reforma sugere que muitos leitores provavel­ mente se desconcentrarão e ficarão devaneando enquanto tento explicar algumas das ideias principais do escolasticismo. (De forma incidental, isso explica razoavelmente por que o humanismo demonstrou ser tão atrativo na época da Reforma.) Para compreender o desenvolvimento teológico de Lutero, contudo, é necessário se familiarizar pelo menos um pouco com os fundamentos de dois movimentos principais do escolasticismo do final da Idade Média.

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Realismo versus nominalismo Para compreender as complexidades do escolasticismo medieval, é preciso captar a distinção entre “realismo” e “nominalismo”. A parte ini­ cial do período escolástico (c.1200-c.1350) foi dominada pelo realismo; a parte final (c. 1350-C.1500), pelo nominalismo. A diferença entre os dois sistemas pode ser resumida da seguinte maneira. Considere duas pedras brancas. O realismo afirma que há um conceito universal de “brancura” que é incorporado por essas duas pedras. Essas pedras em particular pos­ suem a característica universal da “brancura”. Todavia, embora as pedras brancas existam no tempo e no espaço, o universal da “brancura” existe num plano metafísico diferente. Em contraste, o nominalismo declara que o conceito universal de “brancura” é desnecessário; em vez disso, argumenta que devemos nos concentrar nos particulares. Há essas duas pedras brancas - e não há necessidade de falar sobre “um conceito uni­ versal de brancura”. A ideia de “universal”, usada aqui sem definição, precisa ser explorada um pouco mais. Considere Sócrates. Ele é um ser humano, um exem­ plar da humanidade. Agora considere Platão e Aristóteles. Eles também são seres humanos e exemplares da humanidade. Poderíamos continuar fazendo isso por algum tempo, nomeando tantos indivíduos quanto de­ sejássemos, mas o mesmo padrão básico emergiria: pessoas com nomes individuais são exemplares da humanidade. O realismo argumenta que a ideia abstrata de “humanidade” tem existência própria. É um universal. Pessoas particulares - tais como Sócrates, Platão e Aristóteles - são exem­ plares individuais desse universal. A característica comum de humanida­ de que une esses três indivíduos tem uma existência própria real. Esse debate pode parecer a muitos leitores como típico do escolasti­ cismo: sem sentido e pedante. No entanto, é importante observar que o termo “nominalismo” se refere a um debate sobre universais. Não tem qualquer relevância teológica direta e não define qualquer opinião teológica. Retornaremos a este ponto em breve. Duas “escolas” escolásticas principais influenciadas pelo realismo do­ minaram o início do período medieval. Foram o tomismo e o scotismo, derivadas dos escritos de Tomás de Aquino e de Duns Scotus, respectiva­ mente. Nenhuma dessas escolas exerceu qualquer influência maior sobre a Reforma; portanto, não precisam ser investigadas com mais detalhes. Entretanto, duas formas posteriores de escolasticismo parecem ter exerci­ do uma grande influência sobre a Reforma; portanto, merecem cuidadosa atenção. Estas são a via moderna (o “modo moderno”) e a schola Augusti­ niana moderna (a “escola agostiniana moderna”).

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Muitos livros didáticos que lidam com a Reforma se referem a um con­ fronto entre o “nominalismo” e o “agostinismo” às vésperas da Reforma, e interpretam a Reforma como a vitória deste último sobre o primeiro. Nos últimos anos, todavia, houve um progresso considerável na compreensão da natureza do escolasticismo do final do período medieval, o que levou a uma revisão da história intelectual do início da Reforma. No que se segue, indicarei as situações tal como estabelecidas pela erudição mais recente. Uma geração anterior de estudiosos, escrevendo no período de 1920 a 1965, considerou o “nominalismo” como uma escola religiosa de pen­ samento que dominou a maioria das faculdades de teologia nas univer­ sidades do norte da Europa no final da Idade Média. Contudo, provou-se extremamente difícil identificar as características exatas dessa teologia. Al­ guns teólogos “nominalistas” (como Guilherme de Ockham e Gabriel Biel) pareciam ser muito otimistas quanto às habilidades humanas, sugerindo que era possível a um ser humano fazer tudo que fosse necessário para entrar em um relacionamento com Deus. Outros teólogos “nominalistas” (como Gregório de Rimini e Hugolino de Orvieto) pareciam ser profun­ damente pessimistas a respeito dessas mesmas habilidades, sugerindo que, sem a graça de Deus, a humanidade era totalmente incapaz de entrar em tal relacionamento. Em desespero, os estudiosos começaram a falar de uma “diversidade nominalista”. Com o tempo, entretanto, a solução real para o problema ficou clara: havia na verdade duas escolas diferentes de pensamento, cuja única característica em comum era o antirrealismo. Am­ bas as escolas adotavam uma posição nominalista em questões de lógica e teoria do conhecimento, porém suas posições teológicas diferiam radical­ mente. Anteriormente, observamos que o termo “nominalismo” se referia estritamente à questão dos universais e não designava qualquer posição teológica em particular. Assim, ambas as escolas rejeitavam a necessidade de universais; contudo, daí em diante discordavam em praticamente tudo. Uma era altamente otimista quanto às habilidades humanas, a outra era consideravelmente mais pessimista. Essas duas escolas são agora geral­ mente conhecidas como a via moderna, “o modo moderno”, e a schola Augustiniana moderna, “a escola agostiniana moderna”. Investigaremos es­ sas duas escolas em breve. Primeiro, contudo, precisamos dar atenção aos termos “pelagiano” e “agostiniano”, que são encontrados invariavelmente em qualquer discussão a respeito do escolasticismo do final do período medieval. A seguir, explicarei o que esses termos significam.

"Pelagianismo"e "agostinismo" A doutrina da justificação, que assumiu importância particular na Reforma Luterana, se refere à questão de como uma pessoa entra em

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relacionamento com Deus. Como um pecador pode ser aceito por um Deus justo? O que a pessoa deve fazer para ser aceitável a Deus? Essa questão, foi discutida com certa intensidade no início do século 5o, du­ rante o debate entre Agostinho e Pelágio. Essa controvérsia é conhecida como a “controvérsia pelagiana”, e os escritos de Agostinho que surgiram dela são conhecidos como os “escritos antipelagianos”. Eles lidam com as doutrinas da graça e da justificação. De muitas maneiras, essa controvér­ sia surgiu novamente nos séculos 14 e 15, com a via moderna tendendo à posição de Pelágio e a schola Augustiniana moderna à de Agostinho. No que se segue, fornecerei um breve esboço de cada posição. Um tema central do pensamento de Agostinho é o estado caído da na­ tureza humana. A imagem da “Queda” deriva de Gênesis 3 e expressa a ideia de que a natureza humana “caiu” de seu estado original imaculado. O estado atual da natureza humana não^é, portanto, o que Deus desejava que fosse. A ordem criada não corresponde mais diretamente à “bondade” de sua integridade original. Ela caiu. Foi corrompida ou arruinada, mas de modo redimível, como afirmam as doutrinas da salvação e da justificação. A imagem de uma “Queda” transmite a ideia de que a criação agora existe num nível inferior àquele pretendido por Deus. De acordo com Agostinho, todos os seres humanos estão agora conta­ minados pelo pecado desde o momento do seu nascimento. Ao contrário de muitas filosofias existencialistas do século 20 (tal como a de Martin Heidegger) que afirmam que o “estado caído” (Verfallenheit) é uma opção que escolhemos (em vez de algo que é escolhido para nós), Agostinho re­ trata o pecado como inerente à natureza humana. E um aspecto integral, não opcional, do nosso ser. Essa percepção, que recebe expressão mais rigorosa na doutrina do pecado original de Agostinho, é de importância central para suas doutrinas do pecado e da salvação. Visto que todos são pecadores, todos precisam de redenção. Visto que todos estão aquém da glória de Deus, todos precisam ser redimidos. Para Agostinho, a humanidade nunca poderá entrar num relacionamen­ to com Deus caso seja deixada à mercê de seus artifícios e recursos. Nada que um homem ou mulher possa fazer seria suficiente para quebrar o domí­ nio total do pecado. Para usar uma imagem que Agostinho teve a felicidade de nunca encontrar, é como um viciado em drogas tentando se livrar do domínio da heroína ou da cocaína. A situação não pode ser transformada a partir de dentro; consequentemente, se é preciso transformação, ela precisa vir de fora da situação humana. De acordo com Agostinho, Deus interveio no dilema humano na pessoa de Jesus Cristo de modo a redimi-lo. Agostinho coloca tamanha ênfase na “graça” que frequentemente é chamado de doctor gratiae, “o doutor da graça”. “Graça” é o dom divino

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não merecido, pelo qual Deus voluntariamente quebra o domínio do pe­ cado sobre a humanidade. A redenção só é possível como um dom divino. Não é algo que podemos alcançar por nós mesmos, mas é algo que alguém precisa fazer por nós. Agostinho, portanto, enfatiza que os recursos da salvação estão localizados fora da humanidade, no próprio Deus. É Deus quem inicia o processo de salvação, não os homens. Entretanto, para Pelágio a situação parecia bem diferente. Pelágio en­ sinava que os recursos da salvação estão localizados dentro da humani­ dade. Os seres humanos individuais têm a capacidade de salvarem a si próprios. Eles não estão dominados pelo pecado, mas têm a habilidade de fazer tudo o que é necessário para serem salvos. A salvação é algo recebido por meio de boas obras, o que coloca Deus sob uma obrigação para com a humanidade. Pelágio marginaliza a ideia de graça, entendendo-a em ter­ mos de exigências feitas à humanidade por Deus de modo que se possa alcançar a salvação - como os Dez Mandamentos ou o exemplo moral de Cristo. O etos do pelagianismo pode ser resumido como “salvação por mérito”, enquanto Agostinho ensinava “salvação pela graça”. É óbvio que essas duas diferentes teologias têm entendimentos bem di­ ferentes acerca da natureza humana. Para Agostinho, a natureza humana é fraca, caída e sem poder; para Pelágio, ela é autônoma e autossuficiente. Para Agostinho, é necessário depender de Deus para a salvação; para Pe­ lágio, Deus simplesmente indica o que precisa ser feito para que a salvação seja obtida, e então deixa os homens atingirem essas condições sem ajuda. Para Agostinho, a salvação é um dom imerecido; para Pelágio, a salvação é uma recompensa merecida justamente. Um aspecto do entendimento de Agostinho da graça precisa de mais explicação. Visto que os seres humanos são incapazes de se salvarem, e visto que Deus deu o dom da graça a alguns (mas não a todos), segue-se que Deus “escolheu previamente” aqueles que serão salvos. Usando tra­ ços dessa ideia encontrados no Novo Testamento, Agostinho desenvol­ veu uma doutrina da predestinação. O termo “predestinação” se refere à decisão original ou eterna de Deus de salvar alguns, mas não outros. Era esse aspecto do pensamento de Agostinho que muitos de seus contem­ porâneos, sem mencionar seus sucessores, achavam inaceitável. Dificil­ mente precisa ser dito que não há um equivalente direto no pensamento de Pelágio. Na controvérsia subsequente dentro da igreja ocidental, a posição de Agostinho foi reconhecida como autenticamente cristã, e as concepções de Pelágio foram censuradas como heréticas. Dois concílios importantes estabeleceram as concepções de Agostinho como normativas: o Concilio de Cartago (418) e o Segundo Concilio de Orange (529). É interessante

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observar que as concepções de Agostinho a respeito da predestinação fo­ ram um tanto atenuadas, muito embora o restante do seu sistema tenha sido sancionado entusiasticamente. O termo “pelagiano”, então, se tornou tanto pejorativo quanto descritivo, significando “ter confiança excessiva nas habilidades humanas e insuficiente confiança na graça de Deus”. Na época da Reforma, Lutero estava convencido de que a maioria da igreja ocidental tinha perdido de vista a ideia da “graça de Deus” e passado a confiar na autossuficiência humana. Portanto, ele considerou seu dever lembrar à igreja as concepções de Agostinho, como veremos no capítulo 7. Devemos agora considerar a repetição dessa controvérsia nos séculos 14 e 15 entre a via moderna e a schola Augustiniana moderna. A primeira assumiu amplamente o papel de Pelágio; a segunda, o de Agostinho.

Á via moderna A expressão está se tornando agora geralmente aceita como o melhor meio de se referir ao movimento antes conhecido como “nominalismo”, o qual incluía entre seus adeptos pensadores dos séculos 14 e 15 como Gui­ lherme de Ockham, Pierre dAilly, Robert Holcot e Gabriel Biel. Durante o século 15, a via moderna começou a fazer progresso significativo em mui­ tas universidades do norte da Europa - por exemplo, em Paris, Heidelberg e Erfurt. Além de seu nominalismo filosófico, o movimento adotou uma doutrina de justificação que muitos de seus críticos estigmatizaram como “pelagiana”. Tendo em vista a importância dessa forma de escolasticismo para a proposta teológica inovadora de Lutero, precisamos considerar em detalhes sua compreensão da justificação. A característica central da soteriologia, ou doutrina da salvação, da via moderna é a aliança entre Deus e a humanidade. No final da Ida­ de Média, desenvolveram-se teorias políticas e econômicas baseadas no conceito de aliança (por exemplo, entre um rei e seu povo). Os teólogos da via moderna foram rápidos em perceber o potencial teológico dessa ideia. Assim como uma aliança política entre um rei e seu povo definia as obrigações do rei para com o povo e do povo para com o rei, assim uma aliança religiosa entre Deus e seu povo definia as obrigações de Deus para com seu povo e a obrigação deste para com Deus. Essa aliança não era negociada, é claro, mas imposta unilateralmente por Deus. Os teólogos da via moderna conseguiram desenvolver esse tema - já familiar aos lei­ tores do Antigo Testamento - usando ideias emprestadas de seu próprio mundo político e econômico. De acordo com os teólogos da via moderna, a aliança entre Deus e os seres humanos estabeleceu as condições necessárias para a justificação.

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Deus ordenou que aceitaria um indivíduo desde que este primeiro cum­ prisse certas exigências. Essas exigências eram resumidas usando a citação latina facere quoá in se est, literalmente “fazer aquilo que está dentro de você” ou “fazer o seu melhor”. Quando os indivíduos cumprem essa con­ dição prévia, Deus é obrigado a aceitá-los, pelos termos de sua aliança. Uma máxima latina era usada frequentemente para expressar esse ponto: facienti quod in se est Deus non denegat gratiam, “Deus não negará a graça a quem faz o que está dentro de si”. Gabriel Biel, famoso teólogo do final da Idade Média, o qual influenciou Lutero por meio de seus escritos, explicou que “fazer o seu melhor” significa rejeitar o mal e tentar praticar o bem. Nesse ponto, os paralelos entre a via moderna e Pelágio se tornam ób­ vios. Ambos afirmam que homens e mulheres são aceitos com^baSFejn seus próprios esforços e realizações. Ambos afirmam que as obras huma­ nas colocam Deus sob a obrigação de recompensá-las. Parece que os es­ critores da via moderna estavam simplesmente reproduzindo as ideias de Pelágio, usando um sistema de referência mais sofisticado com base na aliança. Entretanto, a essa altura, os teólogos da via moderna usaram teo­ rias econômicas de seu tempo para argumentar que não estavam fazendo isso de modo algum. O uso que eles faziam de teorias econômicas do final do período medieval é fascinante, pois ilustra o quanto os teólogos medie­ vais estavam dispostos a explorar ideias oriundas do seu contexto social. O exemplo clássico invariavelmente citado por esses teólogos para ilustrar a relação entre boas obras e a justificação é o do rei em relação a uma pequena moeda de chumbo. A maioria dos sistemas monetários me­ dievais usava moedas de ouro e de prata. Isso garantia o valor das moedas, embora também incentivasse a prática de “cortar” metal precioso das bor­ das das moedas. A introdução de bordas serrilhadas nas moedas foi uma tentativa de evitar a remoção de ouro ou prata dessa maneira. Ocasionalmente, contudo, os reis passavam por crises financeiras tipicamente como resultado da irrupção de uma guerra. Um modo co­ mum de angariar fundos era o de recolher as moedas de ouro e prata para derretê-las. O ouro e a prata assim reavidos podiam ser usados para financiar a guerra. Nesse meio-tempo, todavia, ainda se precisava de algu­ ma moeda corrente. Para satisfazer essa necessidade, pequenas moedas de chumbo, com o mesmo valor nominal das moedas de ouro e prata eram emitidas. Embora seu valor inerente fosse desprezível, seu valor atribuído ou instituído era considerável. Uma vez passada a crise financeira, o rei se comprometia a substituir as moedas de chumbo pelas equivalentes de ouro e prata. Dessa maneira, o valor das moedas de chumbo residia na promessa do rei de redimi-las mais tarde pelo valor total atribuído a elas. O valor de uma moeda de ouro deriva do ouro; mas o valor de uma moeda

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de chumbo deriva da aliança real de tratar aquela moeda como se fosse de ouro. Obviamente, há uma situação semelhante na maioria das economias modernas. Por exemplo, o dinheiro de papel tem valor inerente desprezí­ vel. Seu valor deriva da promessa do banco emitente em honrar suas notas pelo seu valor nominal total. Os teólogos da via moderna usaram essa analogia econômica para re­ futar a acusação de pelagianismo. Quanto à sugestão de que exageravam o valor das obras humanas (pois pareciam fazê-las capazes de merecer a sal­ vação), eles replicaram que não faziam nada disso. Argumentavam que as obras humanas eram como as moedas de chumbo: de pouco valor ineren­ te. Porém, por meio da aliança, Deus prometera tratá-las como se fossem de muito maior valor, do mesmo modo que um rei podia tratar uma mo­ eda de chumbo como se fosse de ouro. Pelágio, eles admitiam, certamente tratara as obras humanas como se fossem de ouro, capazes de comprar a salvação. Contudo, eles argumentavam que as obras humanas eram como chumbo; a única razão de terem qualquer valor era porque Deus miseri­ cordiosamente havia se comprometido a tratá-las como se tivessem muito maior valor. A exploração teológica da diferença entre o valor inerente e o atribuído das moedas serviu, portanto, para livrar os teólogos da via moderna de uma situação potencialmente complicada, muito embora isso não tenha satisfeito seus críticos mais severos, tal como Martinho Lutero. É essa compreensão da justificação “com base na aliança” que embasa a proposta teológica inovadora de Martinho Lutero, à qual retornaremos num capítulo posterior. Agora nossa atenção se volta para a teologia escolástica do final do período medieval que retomou as ideias de Agostinho, numa oposição deliberada à via moderna.

A schola augustiniana moderna Uma das fortalezas da via moderna no início do século 14 era a Univer­ sidade de Oxford. Um grupo de pensadores, associados em grande medida com a Merton College, desenvolveu as ideias de justificação apresentadas acima, as quais são características da via moderna. E foi em Oxford que ocorreu a primeira reação adversa contra a via moderna. O indivíduo res­ ponsável por essa reação adversa foi Thomas Bradwardine, que mais tarde veio a ser o arcebispo da Cantuária. Bradwardine redigiu um ataque fu­ rioso contra as ideias da via moderna de Oxford, intitulado De causa Dei contra Pelagium, “O argumento de Deus contra Pelágio”. Nesse livro, ele acusou seus colegas de Merton de serem “pelagianos modernos”, e desen­ volveu uma teoria de justificação que representa um retorno às concepções de Agostinho, tal como são encontradas nos seus escritos antipelagianos.

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Embora as ideias de Bradwardine seriam desenvolvidas na Inglaterra por John Wycliffe, no continente europeu elas foram assumidas por Gregório de Rimini, na Universidade de Paris. Gregório tinha uma vantagem particularmente significativa sobre Bradwardine: era membro de uma ordem religiosa (a Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, geralmen­ te conhecida como a “ordem agostiniana”). E, tal como os dominicanos propagavam as concepções de Tomás de Aquino e os franciscanos propa­ gavam as de Duns Scotus, assim os agostinianos promoveram as ideias de Gregório de Rimini. É essa transmissão da tradição agostiniana dentro da ordem agostiniana, a partir de Gregório de Rimini, que é cada vez mais denominada de schola Augustiniana moderna, “a escola agostiniana mo­ derna”. Quais eram essas ideias? Primeiro, Gregório adotou uma concepção nominalista na questão dos universais. Como muitos pensadores do seu tempo, ele tinha pouco tempo para o realismo de Tomás de Aquino ou de Duns Scotus. Quanto a isso, ele tinha muito em comum com os pensadores da via moderna, tais como Robert Holcot e Gabriel Biel. Segundo, Gregório desenvolveu uma soteriologia, ou doutrina da sal­ vação, que refletia fortemente a influência dos escritos antipelagianos de Agostinho. Ele coloca ênfase na necessidade de graça, no estado caído e na pecaminosidade da humanidade, na iniciativa divina na justificação, e na soberania divina expressa na predestinação. A salvação é compreendida como sendo totalmente uma obra de Deus, do início ao fim. Enquanto a via moderna sustentava que o homem podia iniciar sua justificação ao “fazer seu melhor”, Gregório insistia que apenas Deus podia iniciar a justificação. Em contraste, a via moderna sustentava que a maioria dos recursos soteriológicos necessários (mas não todos) estava localizada no interior da natureza humana. Os méritos de Cristo eram um exemplo de um recurso que estava fora da humanidade; a habilidade de desistir do pecado e de se voltar à retidão era, para um escritor como Biel, um exemplo de um recur­ so soteriológico vital localizado dentro da humanidade. Gregório de Rimi­ ni rejeita essas abordagens e argumenta que tais recursos estão localizados exclusivamente fora da natureza humana. Até mesmo a habilidade de re­ nunciar ao pecado e de se voltar para a retidão surge por meio da ação de Deus, não como ação humana. É óbvio que esses são dois modos totalmen­ te diferentes de compreender os papéis humano e divino na justificação. Embora este agostinismo fosse associado particularmente com a or­ dem agostiniana, nem todo monastério ou universidade agostiniana parece ter adotado tais ideias. Não obstante, parece que existia no final da Idade Média uma escola de pensamento fortemente agostiniana em seus fundamentos, às vésperas da Reforma. De muitas formas, podemos

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considerar que os reformadores de Wittenberg, com sua ênfase particular nos escritos antipelagianos de Agostinho, redescobriram e revitalizaram essa tradição. Visto que as concepções de alguns reformadores principais, como Lutero e Calvino, parecem ser semelhantes às desse agostinismo acadêmico, frequentemente tem surgido a pergunta: os reformadores fo­ ram influenciados, direta ou indiretamente, por essa tradição agostiniana? Exploraremos essa pergunta na próxima seção.

O impacto do escolasticismo medieval sobre a Reforma Não há dúvida de que as duas principais luzes da Reforma foram Mar­ tinho Lutero e João Calvino. Consideraremos a seguir as possíveis influ­ ências de formas da teologia escolástica sobre eles, observando como o ambiente em que eles fizeram seus estudos os expôs a ideias centrais do escolasticismo do final do período medieval.

A relação de Lutero com o escolasticismo do final da Idade Média Não há dúvida de que Lutero era bem versado na filosofia e na teologia escolástica. Durante seu período na Universidade de Erfurt (1501-1505), a faculdade de artes estava dominada por representantes da via moderna. Ele deve ter desenvolvido um profundo apreço pelas características básicas dessa filosofia nominalista durante seu tempo ali. Depois da sua decisão de entrar para um monastério agostiniano (1505), sabe-se que ele imergiu na teologia da via moderna, devorando os escritores dos principais repre­ sentantes do movimento, tais como Guilherme de Ockham, Pierre dAilly e Gabriel Biel. O Comentário sobre o cânon da Missa de Biel era um livro didático teológico-padrão para quem se preparava para a ordenação, e há ampla evidência de que Lutero estudou essa obra e absorveu seu conteúdo. No outono de 1508, Lutero foi ensinar ética filosófica na recém-fundada Universidade de Wittenberg. No começo desse ano, mudanças importan­ tes foram inseridas nos estatutos da universidade, especialmente quanto à faculdade de artes. Até aquele momento, os membros daquela faculdade podiam ensinar apenas conforme a via Thomae e a via Scoti- em outras pa­ lavras, apenas as ideias tomistas e scotistas eram permitidas, não as da via moderna. Entretanto, de acordo com o novo estatuto, agora eles também tinham permissão de ensinar conforme a via Gregorii. A evidência indica que esse era simplesmente outro modo de se referir à via moderna, desse modo alinhando Wittenberg com outras universidades alemãs do período.

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Estudos recentes sobre Lutero têm enfatizado a continuidade entre a te­ ologia da via moderna e a do jovem Lutero, especialmente em relação à sua filosofia do conhecimento e sua doutrina da justificação. A teologia da justificação de Lutero, durante os anos 1513-1514, é claramente a da via moderna. De acordo com Lutero, Deus entrou numa aliança com a humani­ dade, pela qual quem faz quod in se est é recompensado com a graça divina. Deus estabeleceu uma aliança (pactum) com a humanidade, pela qual Deus prometera justificar todo aquele que alcançasse certas condições prévias mínimas (quod in se est). De fato, Lutero ensina que Deus dá graça ao humilde, de modo que todo aquele que se humilha perante Deus pode naturalmente esperar ser justificado. Duas passagens da Dictata super Psalterium de Lutero, datando desse período, deixam esse ponto particu­ larmente evidente:1 É por este motivo que somos salvos: Deus fez um testamen­ to e uma aliança conosco, de modo que todo aquele que crê e é batizado será salvo. Nessa aliança, Deus é verdadeiro e fiel, e se obriga por aquilo que prometeu. “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. Pois todo o que pede recebe;...” (Mt 7.7-8). Portanto, os doutores de teologia dizem corretamente que Deus sem dúvida dá graça a quem quer que faça o que está dentro dele

[quod is se est]. Visto que os pecadores reconhecem sua necessidade de graça e invo­ cam a Deus para que a conceda a eles, isso coloca Deus sob a obrigação de fazer isso, dessa maneira justificando o pecador. Em outras palavras, o pecador toma a iniciativa, ao invocar a Deus: o pecador é capaz de fazer algo que assegure que Deus responda justificando-o. No decorrer do tempo, Lutero se desliga dessa abordagem à justifi­ cação, enfatizando o desejo divino de dar retidão justificadora, em vez da obrigação humana de merecê-la por meio de atos apropriados de dis­ posição ou preparação. No entanto, é importante perceber que o desen­ volvimento teológico inicial de Lutero foi modelado fortemente por uma determinada escola do escolasticismo do final da Idade Média.

A relação de Calvino com o escolasticismo do final da Idade Média Calvino iniciou sua carreira acadêmica na Universidade de Paris na década de 1520. Como tem se tornado claro por meio de diversos estu­ dos, a Universidade de Paris - e especialmente a faculdade de Calvino,

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o Collège de M ontaigu- era uma fortaleza da via moderna. Durante os quatro ou cinco anos que estudou na faculdade de artes em Paris, Calvino não poderia ter se esquivado de conhecer as ideias principais desse movimento. Um ponto de afinidade especialmente óbvio entre Calvino e a teologia do final da Idade Média se refere ao voluntarismo: a doutrina de que as bases últimas do mérito estão na vontade de Deus, não na bondade intrín­ seca de uma ação. Para explorar essa doutrina, consideremos uma ação moral humana - por exemplo, dar dinheiro a uma instituição beneficente. Qual é o valor meritório dessa ação? O que ela vale aos olhos de Deus? A relação entre o valor moral (ou seja, humano) e o meritório (ou seja, divino) das ações era de interesse primordial para os teólogos do final da Idade Média. Duas abordagens distintas se desenvolveram: a intelectualist ae a voluntarista. A abordagem intelectualista argumentava que o intelecto divino reco­ nhece o valor moral inerente de uma ação e a recompensa de acordo. Há uma conexão direta entre o moral e o meritório. A abordagem volunta­ rista rejeitava essa concepção, argumentando que isso torna Deus depen­ dente de suas criaturas. Não se pode permitir que o valor meritório de uma ação humana seja predeterminado; Deus deve ser livre para escolher qualquer valor que deseje. Portanto, não há conexão necessária entre o moral e o meritório. Desse modo, o valor meritório de uma ação humana não depende de seu valor inerente, mas se baseia exclusivamente no valor que Deus escolhe atribuir a ela. Esse princípio é resumido na máxima de Duns Scotus (geralmente, embora isso não seja inteiramente correto, considerado como o originador da tendência ao voluntarismo no pensamento do final do período medieval), que postulava que o valor de uma oferta é determinado exclu­ sivamente pela vontade divina, não pela sua bondade inerente. A vontade divina atribui qualquer valor que deseja às ações humanas, preservando assim a liberdade de Deus. No final da Idade Média, a posição voluntarista conquistou simpatia crescente, especialmente dentro dos círculos agostinianos radicais. Muitos teólogos da via moderna e da schola Augustiniana moderna a adotaram. Nas Institutas, Calvino adota precisamente essa posição voluntarista em relação aos méritos de Cristo. Embora isso esteja implícito nas edi­ ções iniciais da obra, só é explicitamente declarado na edição de 1559, na seqüência da correspondência de Calvino com Lélio Socino quanto a esse tema. Em 1555, Calvino respondeu a questões levantadas por Socino quanto aos méritos de Cristo e a certeza da fé, e parece ter incorporado diretamente essas respostas no texto da edição de 1559 das Institutas.

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A morte de Cristo na cruz é um foco central do pensamento e da ado­ ração cristã. Contudo, por que a morte de Cristo deve ter tamanha impor­ tância? Que justificativa pode ser dada para a sua centralidade? Por que é dito que a morte de Cristo- e não de qualquer outro indivíduo - tem im­ portância singular? No curso dessa correspondência, Calvino considera essa questão, conhecida tecnicamente como a ratio meriti Christi (a base dos méritos de Cristo). Por que a morte de Cristo na cruz é suficiente para comprar a redenção da humanidade? É algo intrínseco à pessoa de Cristo, como Lutero argumenta? Para Lutero, a divindade de Cristo era a base adequada para declarar sua morte como singularmente importante. Ou será que Deus escolheu aceitar sua morte como suficiente para merecer a redenção da humanidade? Esse valor era inerente à morte de Cristo, ou lhe foi atribuído por Deus? Calvino deixa clara sua concepção: a base dos méritos de Cristo não está localizada na sua oferta de si mesmo (o que corresponderia a uma abordagem intelectualista da ratio meriti Christi), mas na decisão divina de aceitar essa oferta como tendo mérito suficiente para a redenção da hu­ manidade (o que corresponde à abordagem voluntarista). Para Calvino, “Cristo não poderia merecer o que quer que fosse à parte do beneplácito de Deus” [2.17.1], A continuidade entre Calvino e a tradição voluntarista do final da Idade Média é evidente nesse ponto. No passado, entendía-se que essa semelhança entre Calvino e Scotus era considerada como implicando influência direta de Scotus sobre Calvino. Na verdade, porém, a continuidade de Calvino parece ser com a tradição voluntarista do final da Idade Média, a partir de Guilherme de Ockham e Gregório de Rimini, em relação aos quais Scotus define um ponto de tran­ sição. Nenhum razão pode ser dada à natureza meritória do sacrifício de Cristo, exceto que Deus ordenou benevolentemente aceitá-lo como tal. A continuidade de Calvino com essa tradição posterior se tornará evidente. Neste capítulo, consideramos o fenômeno do escolasticismo medieval e indicamos sua relevância potencial para a Reforma. Como se tornará claro, cada um dos reformadores principais teve seu próprio relaciona­ mento distinto com o humanismo e com o escolasticismo, com Martinho Lutero sendo provavelmente o mais “escolástico” dos reformadores, e Ulrico Zuínglio talvez o mais “humanista”. No próximo capítulo, apresenta­ remos esboços biográficos dos principais reformadores, com o objetivo de ajudar os leitores a posicioná-los num mapa teológico.

Notas *WA 3.289; WA 4.262

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Os reformadores: uma introdução biográfica

É talvez fácil demais deixar de perceber que a Reforma não envolveu apenas forças sociais (uma fraqueza que reduz seriamente o valor do mo­ delo da Reforma fornecido por historiadores sociais), nem simplesmente ideias religiosas (uma fraqueza que pode ser frequentemente detectada em relatos mais explicitamente teológicos da Reforma). O pensamento da Reforma foi gerado e desenvolvido por um grupo de indivíduos alta­ mente significativos. Conquanto não haja dúvidas de que fatores sociais estiveram profundamente envolvidos no modo em que essas ideias foram recebidas e no impacto que exerceram sobre a sociedade como um todo, isso não nos dá permissão para negligenciar os indivíduos que contri­ buíram de modo tão significativo para a origem e o desenvolvimento do pensamento da Reforma. É geralmente aceito que a Reforma protestante teve dois luminares principais: Martinho Lutero e João Calvino. O reformador suíço Ulri­ co Zuínglio é comumente considerado o “terceiro homem” da Reforma, embora seja amplamente aceito que ele teve importância principal nas origens e desenvolvimentos iniciais da Reforma na Suíça. Essa baixa es­ timativa de Zuínglio tem sido frequentemente desafiada por estudiosos ansiosos por demonstrar a originalidade do seu pensamento. Também buscam demonstrar o papel principal de Zuínglio em estabelecer as bases para a consolidação da Reforma dentro da esfera política de influência de alguns cantões suíços principais. No entanto, permanece a percepção geral de que Zuínglio, com ou sem razão, exerceu uma influência conside­ ravelmente menor do que Lutero ou Calvino na formação do pensamento cristão ocidental.

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Este capítulo fornece um panorama biográfico de cinco reformado­ res principais. As três figuras citadas acima são suplementadas por bre­ ves relatos sobre o colega de Lutero, Filipe Melanchthon, e o reformador da grande cidade de Estrasburgo, Martin Bucer. Embora as mulheres, de muitas maneiras, tenham tido um papel significativo nessa época - como, por exemplo, Margarette de Navarra (1492-1549) - os formadores princi­ pais da atmosfera intelectual dessa época foram homens. É extremamen­ te recomendável que você leia este capítulo antes de se dedicar às ideias mais especificamente teológicas da Reforma, a serem analisadas em capí­ tulos posteriores. Este capítulo fornece importantes informações históri­ cas e biográficas, as quais são material essencial para contextualizar essas ideias. Iniciaremos considerando a principal figura da primeira onda de reformadores: Martinho Lutero.

Martinho Lutero (1483-1546) Martinho Lutero é amplamente considerado como um dos reforma­ dores mais significativos. Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, na cidade alemã de Eisleben; ele recebeu seu nome em homenagem a Mar­ tinho de Tours, cuja festa caía no dia 11 de novembro, o dia do batismo de Lutero. Seu pai, Hans Luder (como o sobrenome era escrito nessa época), mudou-se no ano seguinte para a cidade vizinha de Mansfeld, onde estabeleceu um pequeno negócio de mineração de cobre. Os es­ tudos universitários de Lutero começaram em Erfurt em 1501. Seu pai claramente desejava que ele se tornasse um advogado, consciente dos benefícios financeiros que isso traria à família. Em 1505, Lutero com­ pletou o curso de artes gerais em Erfurt e estava capacitado para iniciar o estudo da lei. No desenrolar dos acontecimentos, o estudo da lei não foi muito longe. Em algum momento do dia 30 de junho de 1505, Lutero estava retornan­ do para Erfurt após uma visita a Mansfeld. Ao se aproximar da vila de Storterheim, uma violenta tempestade se formou ao seu redor. De repen­ te, um raio atingiu o solo perto dele, derrubando-o do seu cavalo. Apavo­ rado, Lutero bradou: “Valha-me, Santa Ana! Eu me tornarei um monge!” (Santa Ana era a santa padroeira dos mineiros.) Em 17 de julho de 1505, ele se filiou ao mais rigoroso dentre sete monastérios principais em Erfurt - o mosteiro agostiniano. O pai de Lutero se indignou com a decisão, e ficou indisposto com seu filho por um tempo considerável. O monastério agostiniano de Erfurt tinha fortes ligações com a Uni­ versidade de Erfurt, o que permitiu a Lutero debater com os grandes no­ mes do pensamento religioso do final do período medieval - tais como

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Guilherme de Ockham, Pierre dAilly e Gabriel Biel - enquanto se prepa­ rava para a sua ordenação. Ele foi ordenado sacerdote em 1507. Em 1509, obteve sua primeira qualificação teológica importante. Finalmente, em 18 de outubro de 1512, recebeu o título de Doutor em Divindade, o ápice dos seus estudos acadêmicos. A essa altura, entretanto, ele tinha se mudado de Erfurt e se estabelecido na cidade vizinha de Wittenberg, a qual era a sede de uma das mais novas universidades alemãs. A Universidade de Wittenberg foi fundada em 1502 por Frederico, o Sábio. Ao estabelecer esse centro de aprendizado, seus motivos não eram inteiramente educacionais: ele provavelmente desejava ofuscar a reputa­ ção da universidade vizinha de Leipzig. Lutero assumiu a cátedra de es­ tudos bíblicos em Wittenberg imediatamente após obter seu doutorado. Permaneceu ali (exceto por períodos ocasionais de ausência) pelo restante de sua vida. Devia essa posição a Johann von Staupitz, vigário-geral dos frades agostinianos observantes alemães, o qual ocupara essa posição an­ tes dele. As preleções de Lutero em Wittenberg são amplamente consideradas como o estabelecimento das bases para seu desenvolvimento teológico subsequente. É bastante significativo que a teologia emergente de Lutero tenha sido forjada num contexto de envolvimento contínuo com certas passagens bíblicas. Durante o período crítico de 1513 a 1519, Lutero fez preleções sobre os seguintes livros: 1513-15 1515-16 1516-17 1517-18

Salmos (Dictata super Psalterium) Romanos Gálatas Hebreus

Em algum momento desse período, Lutero mudou radicalmente suas concepções teológicas. Há um intenso debate acadêmico sobre a natureza e a data dessa reviravolta; consideraremos isso com mais detalhes no pró­ ximo capítulo. Lutero foi impulsionado à fama por meio de uma série de controvérsias. A primeira dessas controvérsias foi a respeito da venda de indulgências. O arcebispo Albert de Mainz havia concedido permissão para a venda de in­ dulgências em seus territórios. João Tetzel, responsável pela venda dessas indulgências na região de Wittenberg, deixou Lutero consideravelmente irritado, levando-o a escrever ao arcebispo Albert para protestar contra a prática e para oferecer 95 teses em latim que ele se propunha a debater na Universidade de Wittenberg. O colega de Lutero, Filipe Melanchthon, relata mais tarde que essas 95 teses também foram “publicadas” (ou seja,

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afixadas para exibição pública) na porta da igreja do castelo de Witten­ berg, em 31 de outubro de 1517. Subsequentemente, essa data tem sido observada por certos grupos como o marco do início da Reforma. Na rea­ lidade, as teses atraíram pouca atenção até tempos depois, quando Lutero as fez circular mais amplamente traduzidas para o alemão. O arcebispo considerou as teses como um desafio direto à sua autori­ dade, e as encaminhou a Roma com uma carta de queixa. Contudo, isso teve menor impacto do que se poderia esperar. O papado precisava do apoio de Frederico, o Sábio, para assegurar a eleição do seu candidato a suceder o imperador Maximiliano, do Sacro Império Romano. Como resultado, Lutero não foi convocado para ir a Roma responder às acusa­ ções feitas contra ele, mas foi examinado localmente, em 1518, pelo lega­ do papal Caetano. Lutero se recusou a se retratar de suas críticas contra a prática de venda de indulgências. Lutero ficou consideravelmente mais conhecido em 1519, na Dispu­ ta de Leipzig. Essa disputa contrapôs Lutero e seu colega de Wittenberg, Andreas Bodenstein von Karlstadt, contra João Eck, um teólogo conceitu­ ado de Ingolstadt. Durante o desenrolar de um debate complicado sobre a natureza da autoridade, Eck conseguiu levar Lutero a admitir que, na sua opinião, tanto papas quanto concílios gerais podiam errar. Além dis­ so, Lutero deu indícios de apoiar em certo grau João Huss, o reformador boêmio condenado como herético algum tempo antes. Eck claramente se considerava como vencedor do debate, pois forçara Lutero a declarar posições sobre a autoridade papal que não eram ortodoxas segundo os padrões da época. Outros, todavia, deleitaram-se com as críticas de Lutero. Especialmen­ te importante foi a reação de muitos humanistas, os quais viram as críticas de Lutero como indicação de que ele fazia parte do grupo deles. De fato, a verdade era outra. Não obstante, esse “mal-entendido construtivo” levou Lutero a ser tratado como uma celebridade pelos humanistas nesse perí­ odo, e ele obteve notoriedade nos círculos humanistas. Foi a controvérsia de Lutero com Erasmo no período de 1524 a 1525 que finalmente pôs fim a qualquer ideia de que Lutero era simpático ao programa humanista. Contudo, ele desfrutou pelo menos do apoio tácito de muitos humanistas (incluindo Erasmo e Bucer) por vários anos após a Disputa de Leipzig. Pode-se ilustrar o breve flerte de Lutero com o humanismo por volta de 1519 pelo modo como ele se intitulou. Uma das vaidades da época era que os escritores humanistas insistiam em ser chamados pelas versões latinas ou gregas de seus nomes pessoais, talvez para lhes conferir um pouco mais de dignidade. Assim, Filipe Schwarzerd passou a ser “Melan­ chthon” (literalmente, “terra preta”); Johann Hauschein, “Oecolampadius”

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(literalmente, “luz da casa”). Por volta de 1519, o próprio Lutero foi vítima dessa moda. Nesse momento, Lutero estava ganhando fama como crítico da igreja medieval. Sua ênfase na liberdade cristã - evidente no escrito Sobre a liberdade de um cristão, de 1520 - o levou a brincar com a grafia original de seu sobrenome “Luder”. Ele o alterou para “Eleutherius” - li­ teralmente, “libertador”. Dentro do que parece ter sido um período muito curto de tempo, contudo, ele se cansou dessa pretensão. Mas o novo modo de grafar seu sobrenome permaneceu. Luder se tornara Lutero. Em 1520, Lutero publicou três grandes obras que imediatamente es­ tabeleceram sua reputação como um grande reformador popular. Com sagacidade, Lutero escreveu em alemão, tornando acessíveis suas ideias a um amplo público: embora a linguagem da elite intelectual e eclesiástica da Europa fosse o latim, o alemão era a linguagem do povo. Em Apelo à nobreza alemã, Lutero argumenta passionalmente pela necessidade de uma reforma da igreja. A igreja do início do século 16 tinha se desviado do Novo Testamento, tanto em suas doutrinas quanto em suas práticas. Seu alemão vigoroso e espirituoso gerou um apelo popular adicional a algumas ideias teológicas intensamente sérias. Incentivado pelo considerável sucesso dessa obra, Lutero produziu em seguida O cativeiro babilônico da igreja cristã. Nesse poderoso escrito, Lu­ tero argumenta que o evangelho se tornara cativo da igreja institucional. A igreja medieval, diz ele, aprisionou o evangelho num complexo sistema de sacerdotes e sacramentos. A igreja se tornara a mestra do evangelho, mas devia ser sua serva. Esse ponto foi posteriormente desenvolvido em A liberdade de um cristão, obra na qual Lutero enfatiza tanto a liberdade quanto as obrigações do crente. A essa altura, Lutero estava no centro tanto de controvérsias quanto de condenação. Em 15 de junho de 1520, ele foi censurado por uma bula pa­ pal e ordenado a se retratar de suas posições. Ele se recusou, acrescentan­ do insulto à injúria ao queimar publicamente a bula. Ele foi excomungado em janeiro do ano seguinte, e convocado a se apresentar diante da Dieta de Worms. Novamente, recusou-se a abandonar suas posições. A situação de Lutero se tornava cada vez mais séria. Ao perceber isso, um príncipe alemão simpático a Lutero fez arranjos para que ele fosse “seqüestrado”, levando-o para a segurança de Wartburg, um castelo perto de Eisenach. Durante seus oito meses de isolamento, Lutero teve tempo para refletir so­ bre as implicações de muitas de suas ideias e testar a genuinidade dos seus motivos. Quando retornou para Wittenberg em 1522 para assumir a Re­ forma nessa cidade, suas ideias já ganhavam considerável apoio por toda a Europa. A essa altura, pode-se dizer que a Reforma já havia começado. Em sua fase inicial, ela foi modelada decisivamente por Lutero.

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Nesse estágio inicial, a influência de Lutero sobre a Reforma foi funda­ mental. Seu período de isolamento em Wartburg lhe permitiu trabalhar em diversos projetos de reforma importantes, incluindo revisão litúrgica, tradução bíblica e outros tratados sobre reforma. O Novò Testamento em alemão surgiu em 1522, embora somente em 1534 a Bíblia toda tenha sido traduzida e publicada. Em 1524, Lutero argumentou que era necessário estabelecer escolas nas cidades alemãs e estender a instrução às mulheres. Os dois catecismos de 1529 abriram novos caminhos para a instrução re­ ligiosa (veja o capítulo 12). Entretanto, sérias controvérsias não demoraram a surgir. Em 1524, Erasmo publicou uma obra extremamente crítica das posições de Lutero a respeito do livre-arbítrio humano. A réplica de Lutero em 1525 não foi um documento muito diplomático, gerando o rompimento final com Erasmo. De modo mais sério, a Guerra dos Camponeses de 1525 fez com que a reputação de Lutero sofresse severamente. Ele argumentou que os senhores feudais tinham total direito de pôr um fim à revolta dos cam­ poneses, se necessário fazendo uso de força. Os escritos de Lutero a esse respeito - tais como Contra as hordas assassinas e ladronas de camponeses- praticamente não tiveram impacto na revolta em si, mas mancharam severamente sua imagem. Talvez a controvérsia mais significativa tenha sido a que surgiu a res­ peito das concepções bem diferentes que tinham Lutero e Ulrico Zuínglio (veja o capítulo 9) quanto à natureza da presença real. O forte compro­ misso de Lutero com a presença real de Cristo na Eucaristia contrastava agudamente com a abordagem metafórica ou simbólica de Zuínglio. Em­ bora muitos tenham tentado conciliar essas duas posições, ou pelo menos limitar o dano causado pelas diferenças, isso acabou dando em nada. O Colóquio de Marburg (1529), organizado por Filipe de Hesse, foi de im­ portância primordial. Pode-se argumentar que seu insucesso levou à alie­ nação permanente entre as facções alemã e suíça da Reforma, numa época em que a colaboração era imperativa devido a considerações políticas e militares adversas. Em 1527 já era evidente que Lutero tinha problemas de saúde: era o que hoje se denomina de Síndrome de Ménière. Convencido de que não viveria muito, Lutero se casou com uma ex-freira, Katharina von Bora. Embora Lutero tenha continuado a produzir diversas obras teológicas importantes em seu período final (em especial, um comentário sobre Gálatas), sua atenção se voltava cada vez mais para sua saúde pessoal e a política das lutas da Reforma. Ele morreu em 1546, enquanto tentava me­ diar uma pequena querela que surgira entre membros da nobreza alemã na cidade de Mansfeld.

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A influência de Lutero é imensa sobre praticamente todos os aspectos do pensamento da Reforma. Suas abordagens à interpretação bíblica, à doutrina da justificação, à igreja e aos sacramentos permanecem como marcos teológicos, e serão discutidas em detalhes nesta obra. Suas con­ cepções sobre a relação entre Igreja e Estado, contudo, não parecem ter sido tão bem pensadas como se desejaria; dão a impressão de terem sido forjadas sob a pressão do conflito. No entanto, Lutero deve ser considera­ do como um dos dois representantes mais significativos da Reforma, e é imperativo que suas ideias sejam examinadas detalhadamente. Passamos agora a considerar a carreira de uma figura menor, embora ainda significativa - o reformador suíço Ulrico Zuínglio.

Ulrico Zuínglio (1484-1531) É impossível entender a carreira e a estratégia do reformador suíço Ulrico (ou “Huldrych”) Zuínglio sem considerar o seu pano de fundo, a Confederação Suíça. O nome “Suíça” deriva de um dos três cantões originais - Schwyz, Uri e Unterwalden - que assinaram um tratado de defesa mútua contra os austríacos em 1291. Essa confederação, conhecida como a “Confederação Helvética” (Confederatio Helvetica), foi gradual­ mente sendo ampliada nos anos seguintes. Em 1332, Lucerna se juntou à confederação, seguida por Zurique (1351), Glarus e Zug (1352) e Berna (1353). A força dessa confederação foi demonstrada na batalha de Nãhenfels (1388), na qual uma vitória histórica assegurou sua sobrevivência. A grande lenda de Guilherme Tell - um patriota suíço que lutou contra os opressores austríacos - tem sua origem nos acontecimentos desse perío­ do. Em 1481, os cantões de Solothurn e Fribourg se aliaram à confedera­ ção, elevando o total de membros a dez. Em 1501, Basiléia e Schaffhausen se juntaram, seguidos por Appenzell em 1513. Nenhum outro cantão se juntou à confederação até depois da Revolução Francesa. Zuínglio nasceu no dia de ano-novo de 1484, no vale de Toggenburg, no cantão de St. Gallen, na parte oriental da atual Suíça. A rigor, St. Gallen não era parte da Confederação Suíça. No entanto, no tratado de 1451, St. Gallen havia se aliado a alguns dos cantões suíços, e Zuínglio parece ter se considerado como suíço. Depois de um período inicial de estudos em Berna, Zuínglio foi para a Universidade de Viena (1498-1502). Vie­ na era amplamente considerada como uma das melhores universidades perto da Suíça, por causa das reformas universitárias que aconteciam ali. Sob a orientação de proeminentes humanistas, tal como Conrad Celtis, a universidade passava por reformas humanistas. Depois, Zuínglio foi para a Universidade de Basiléia (1502-1506), onde fortaleceu sua posição

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humanista. Em 1506, foi ordenado sacerdote e serviu como tal em Glarus pelos próximos dez anos, antes de passar a servir como “sacerdote do povo” no monastério beneditino de Einsiedeln em 1516. Durante seu tempo como pároco de Glarus, Zuínglio serviu como capelão aos soldados suíços que serviam como mercenários na guerra franco-italiana. Esteve presente no desastre de Marignano (1515), quan­ do morreram muitos soldados suíços. Esse acontecimento confirmou a oposição de Zuínglio à ocupação de mercenário, e também foi de impor­ tância fundamental no desenvolvimento do isolacionismo suíço. À luz de Marignano, foi decidido que a Suíça nunca mais tomaria parte nas guerras de outros povos. Em 1516, Zuínglio já estava convencido da necessidade de reformar a igreja, seguindo linhas sugeridas por humanistas bíblicos como Erasmo. Ele comprou a edição feita por Erasmo do Novo Testamento grego, e es­ tudou os escritos dos autores patrísticos gregos e latinos. Quando deixou Einsiedeln para ir para Zurique, Zuínglio já estava convencido de que era necessário embasar a crença e a prática cristã nas Escrituras, não em tra­ dições humanas. Em Io de janeiro de 1519, Zuínglio assumiu sua nova posição como “sacerdote do povo” na Grande Igreja de Zurique. Desde o início era óbvio seu compromisso com um programa de reformas. Começou a pregar uma série de sermões sobre o Evangelho de Mateus, ignorando totalmente o lecionário convencional. A carreira de Zuínglio chegou perto de terminar abruptamente; ele quase morreu durante um surto de praga em Zurique no verão de 1519. É fato certo que seu pensamento sobre a providência sofreu influência desse livramento; isso será considerado posteriormente nesta obra (veja o capítulo 10). Não demorou muito para que as reformas de Zuínglio se tornassem mais radicais. Em 1522, ele pregava de maneira ativa contra praticamente todos os aspectos da religião católica tradicional, incluindo o culto aos santos, a prática do jejum e a adoração a Maria. Sua pregação causou con­ trovérsia na cidade e alarmou o conselho municipal. Preocupados com a agitação que crescia na cidade, o conselho municipal se determinou a resolver a questão. Em janeiro de 1523, foi organizada uma grande disputa pública entre Zuínglio e seus oponentes católicos. O conselho municipal tomou lugar como juiz, enquanto Zuínglio debatia seu programa de re­ formas com alguns clérigos católicos locais. Logo ficou claro que Zuínglio seria vitorioso. Capaz de traduzir sem dificuldade do hebraico, do gre­ go e do latim para o dialeto local de Zurique, Zuínglio demonstrava um domínio das Escrituras que seus oponentes simplesmente não tinham. Só poderia haver um resultado. O conselho municipal decidiu que um

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programa de reformas baseado nas Escrituras, tal como o que fora esbo­ çado por Zuínglio, se tornaria a diretiva oficial da cidade. Em 1525, o conselho municipal de Zurique finalmente aboliu a mis­ sa, substituindo-a pela versão de Zuínglio da Santa Ceia. A posição de Zuínglio sobre o que acontecia exatamente na Eucaristia mostrou-se imensamente polêmica (veja o capítulo 9); de fato, Zuínglio é talvez mais lembrado pela sua radical noção “memorialista” da Santa Ceia, a qual ele considera como uma lembrança da morte de Cristo em sua ausência. Incentivado pelos sucessos de sua reforma, Zuínglio persuadiu outros conselhos municipais a organizar debates públicos nos mesmos parâme­ tros. Ocorreu um grande progresso em 1528, quando a cidade de Ber­ na decidiu adotar a Reforma depois de uma disputa pública semelhante. Berna era um grande centro de poder político e militar na região. Seu apoio político e militar à Genebra sitiada em 1536 mostrou-se decisivo para estabelecer a influência de Calvino sobre a segunda fase da Reforma. O sucesso de Calvino como reformador, então, deve mais a Zuínglio do que geralmente se reconhece. Zuínglio foi morto em batalha no dia 11 de outubro de 1531, defendendo sua reforma.

Filipe Melanchthon (1497-1560) Melanchthon, um dos colegas mais próximos de Lutero em Witten­ berg, nasceu em 16 de fevereiro de 1497. Ele fez seus cursos universitários em Heidelberg (1509-12) e Tübingen (1512-18). Assumiu, então, um car­ go recém-criado na Universidade de Wittenberg em 1518. Embora sua especialidade fosse o grego, Melanchthon logo desenvol­ veu um interesse pela teologia, grandemente incentivado por Lutero, sob cuja influência ele logo caiu. Uma das ênfases teológicas iniciais de Me­ lanchthon foi quanto à autoridade das Escrituras. Isso é particularmente evidente a partir de uma série de teses que ele apresentou para obter o grau de Bacharel em Teologia em 1519. No entanto, afirma-se geralmente que sua ênfase na autoridade das Escrituras é vista de modo ainda mais claro na obra pela qual Melanchthon é particularmente lembrado - os Loci Communes (“Lugares-comuns”), que apareceu em sua primeira edi­ ção em 1521. Consideraremos a influência dos Loci Communes no capítulo 10. Con­ tudo, a essa altura, observaremos como Melanchthon construiu a obra ao longo de uma série de temas bíblicos, relacionados particularmente à doutrina da justificação. A intenção básica era a de fornecer um sistema de teologia cristã que fosse gerado a partir da Escritura e por ela gover­ nado. Nesse aspecto, Melanchthon claramente considerava deficientes os

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Quatro livros de sentenças de Pedro Lombardo - o livro didático-padrão de teologia do período medieval. Ele quis usar uma abordagem que assu­ misse os temas centrais de Romanos como normativos. Seu papel como educador também fica bem evidente em sua finalização dos textos da Confissão de Augsburgo e de sua Apologia, ambos publicados em 1530. A condenação de Lutero por Roma impôs rigorosas limitações ao seu deslocamento. Portanto, frequentemente coube a Melanchthon assumir compromissos de palestras fora da Saxônia. Como resultado, o desen­ volvimento e a difusão da Reforma Luterana em geral refletiram as ênfa­ ses particulares dele. Em especial, Melanchthon enfatizava as adiaphora (“questões indiferentes”), crendo que era possível tolerar discordância em certas questões. Isso se tornou particularmente importante depois da morte de Lutero em 1546, quando uma série de reveses políticos e mi­ litares levou o luteranismo a ter que se adaptar a uma situação cada vez mais antipática.' A tentativa de Melanchthon de desenvolver uma aborda­ gem pragmáticaVjue tinha o objetivo de salvaguardar o máximo possível da herança luterana diante das novas circunstâncias, foi considerada por muitos como equivalente a uma traição. O surgimento do movimento gnesioluterano pode ser considerado como uma reação contra as conces­ sões de Melanchthon. Agora passamos a considerar outro reformador que realizou muitas coisas nessa época, mas que foi geralmente negligenciado em tempos pos­ teriores: Martin Bucer.

Martin Bucer (1491-1551) Martin Bucer nasceu na Alsácia, um território que faz limite tanto com a França como com a Alemanha. Entrou ainda novo na ordem domini­ cana, talvez desejando aproveitar as oportunidades educacionais que ela oferecia. Bucer (também conhecido como “Butzer”) continuou seus estu­ dos de teologia em Heidelberg em 1517. Começou a desenvolver uma ad­ miração por Erasmo; isso tanto se confirmou como foi significativamente redirecionado em 1518, quando escutou Lutero falar na Disputa de Hei­ delberg. Bucer ficou com a impressão de que Lutero simplesmente afir­ mou explicitamente o que Erasmo tinha insinuado implicitamente; desse modo, chegou à conclusão de que Lutero e Erasmo deviam estar lutando por reformas com base num conjunto semelhantes de pressuposições. Em maio de 1523, Bucer se mudou para a cidade imperial de Estras­ burgo. Nessa época, a Reforma já estava em andamento na cidade, embo­ ra numa forma um tanto atenuada e incerta. Bucer se envolveu com o movimento e se tornou um dos seus apologistas e teóricos mais

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importantes. Ele estava bastante envolvido em diálogos intraevangélicos, nos quais buscava manter a unidade dentro do movimento reformado. Embora Bucer tenha se posicionado pessoalmente a favor de Zuínglio no debate sobre a presença real, ele se esforçou ativamente por buscar conci­ liação quanto a essa questão, pressentindo a séria ameaça que isso trazia à unidade. A “Concordata de Wittenberg” (1536) é geralmente considerada como sua maior realização nesse sentido, pois desenvolveu a noção de uma base evangélica comum, a partir evangélico Termo usado para se da qual variações de ênfase podiam referir aos nascentes movimentos ser aceitas. reformistas nas décadas de 1510 O maior impacto de Bucer foi na e 1520. própria cidade de Estrasburgo. Du­ rante a década de 1530, Bucer conse­ guiu estabelecer uma igreja reformada viável, a qual se tornou modelo para outros que buscavam alcançar algo semelhante em outras cidades. A permanência provisória de João Calvino em Estrasburgo (1538-41) é de importância especial, como observaremos a seguir. No entanto, Bucer decidiu deixar Estrasburgo em 1549, devido às dificuldades políticas que surgiram depois da derrota da Liga de Esmalcalda pelas forças imperiais no período de 1546-47. Os mesmos acontecimentos que haviam causado muita dificuldade para Melanchthon então causavam problemas pareci­ dos para Bucer. Bucer emigrou para a Inglaterra a convite de Thomas Cranmer, arce­ bispo da Cantuária. Foi designado Professor de Divindade na Universida­ de de Cambridge por Eduardo VI, e dedicou-se primariamente a escrever um grande tratado sobre a sociedade cristã ideal. De regno Christi (“Sobre o reino de Cristo”) foi publicado em 1550. Pode ser considerado um mo­ delo de teologia reformada, pois buscava reformar tanto a igreja quanto a sociedade com base no evangelho. Bucer morreu em 1551, sem ter alcan­ çado as reformas que buscava. Teologicamente, Bucer pode ser considerado uma combinação com­ plexa. Pode-se argumentar que sua ênfase na soberania divina, parti­ cularmente expressa na doutrina da eleição, está por trás de muitas das afirmações de Calvino sobre a questão. Embora tenha seguido a reforma de Lutero com entusiasmo, Bucer preferia a posição suíça sobre a presença real na Eucaristia. Ele também parece ter sugerido que o entendimento de Lutero da justificação não dá o devido lugar às boas obras. Em alguns sentidos, a abordagem de Bucer - que dependia de uma distinção entre a “justificação dos ímpios” por meio da fé e a “justificação dos piedosos” por meio de obras - pode ser considerada representativa de uma posição erasmiana, na qual a ênfase é colocada nas implicações morais da justificação.

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Consideraremos alguns aspectos do pensamento de Bucer em vários momentos desta obra. Nossa atenção agora se volta ao segundo dos dois principais teólogos da Reforma: João Calvino.

João Calvino (1509-1564) Para muitos, o nome de João Calvino é virtualmente sinônimo de Ge­ nebra. Embora Genebra atualmente seja parte da Suíça, no século 16 era uma pequena cidade-estado independente. Calvino, no entanto, era fran­ cês. Nasceu em 10 de julho de 1509, na cidade de Noyon, cerca de 110 quilômetros a nordeste de Paris. Seu pai estava envolvido na administra­ ção financeira da diocese local, e podia contar com o patrocínio do bispo para assegurar apoio para seu filho. Assim, em algum momento do início da década de 1520 (provavelmente em 1523), o jovem Calvino foi enviado à Universidade de Paris. Depois de obter uma boa base em gramática latina aos pés de Mathurin Cofdier, Calvino entrou no Collège de Montaigu. Após completar sua rigorosa educação em artes, Calvino se mudou para Orleans para estudar direito civil, provavelmente em 1528. Embora o pai de Calvino original­ mente desejasse que seu filho estudasse teologia, parece ter mudado de opinião. Calvino comenta posteriormente que seu pai parece ter percebi­ do que o estudo da lei em geral enriquece as pessoas. Também é possível que o pai de Calvino tenha perdido o patrocínio do bispo local por causa de uma disputa financeira em Noyon. É geralmente aceito que o estudo detalhado de Calvino da lei civil lhe deu acesso a métodos e ideias que ele exploraria mais tarde em sua carrei­ ra como reformador. Foi em Orleans que ele aprendeu grego. Em algum ponto durante 1529, Calvino se mudou para Bourges, atraído pela fama do grande advogado italiano Andrea Alciati. A maioria dos estudiosos de Calvino considera que sua grande clareza de expressão se deve à influên­ cia de Alciati. Em geral se afirma que o encontro de Calvino com o hu­ manismo legal francês foi de importância fundamental para modelar sua compreensão de como um texto clássico (tal como a Bíblia ou os textos legais romanos) podia ser aplicado a situações atuais. Logo depois de graduar-se em direito, Calvino precisou voltar a Noyon. Seu pai estava doente e morreu em maio de 1531; ele havia sido excomun­ gado pela assembleia local da catedral. Livre de obrigações familiares (sua mãe havia morrido quando ele era criança), Calvino retornou a Paris para continuar seus estudos, e se tornou cada vez mais favorável às ideias refor­ mistas que se alastravam naquela cidade nessa época. A universidade e as autoridades civis, contudo, eram extremamente hostis às ideias de Lutero.

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Em 2 de novembro de 1533, Calvino foi obrigado a deixar Paris rapida­ mente. O reitor da Universidade de Paris, Nicolas Cop, fez uma palestra na universidade apoiando abertamente a doutrina de justificação pela fé de Lutero. O parlamento de Paris reagiu imediatamente contra Cop. Há uma cópia da palestra de Cop com a caligrafia de Calvino, o que sugere que ele pode ter redigido o discurso. De qualquer maneira, Calvino fugiu de Paris, temendo pela sua segurança. Por volta de 1534, Calvino havia se tornado um defensor entusiasmado dos princípios da Reforma. Durante o ano seguinte, ele se estabeleceu na cidade suíça de Basiléia, a salvo de qualquer ameaça francesa. Fazendo o melhor uso possível do tempo livre que lhe fora imposto, Calvino publicou um livro destinado a exercer efeito decisivo sobre a Reforma: as Institutas da religião cristã. Publicado primeiramente em maio de 1536, essa obra era uma exposição sistemática e lúcida dos principais pontos da fé cristã. Ela atraiu significativa atenção para o seu autor, o qual revisou e expandiu a obra consideravelmente durante o restante de sua vida. A primeira edição do livro tinha seis capítulos; a edição final, publicada em 1559 (e traduzida por Calvino para o francês em 1560), tinha oitenta. É geralmente conside­ rada uma das maiores obras produzidas pela Reforma. Consideraremos seu desenvolvimento e influência com mais detalhes no capítulo 13. Depois de encerrar seus negócios em Noyon no começo de 1536, Cal­ vino decidiu se estabelecer na cidade de Estrasburgo para uma vida de estudos privados. Infelizmente, a rota direta de Noyon para Estrasburgo estava intransitável, devido à deflagração da guerra entre Francisco I da França e o imperador Carlos V. Calvino teve que fazer um longo desvio, passando pela cidade de Genebra, que recentemente conquistara sua in­ dependência do território vizinho da Savoia. Genebra estava num estado de confusão na época, pois tinha acabado de expulsar seu bispo local e iniciar um programa controverso de reformas dirigido pelos franceses Guilherme Farei e Pierre Viret. Ao saber que Calvino estava na cidade, eles exigiram que ele ficasse para ajudar a causa da Reforma. Calvino aceivtou com relutância. Suas tentativas de fornecer uma sólida base de doutrina e disciplina à igreja de Genebra encontraram intensa resistência. Tendo acabado de expulsar o bispo local, a última coisa que muitos genebrinos desejavam era a imposição de novas obrigações religiosas. As tentativas de Calvino de reformar a doutrina e a disciplina da igreja genebrina foram repelidas furiosamente por uma oposição bem organizada. Depois de uma série de querelas, finalmente a situação chegou a um ponto crítico no dia de Páscoa de 1538: Calvino foi expulso da cidade e buscou refúgio em Estrasburgo.

Os reformadores: uma introdução biográfica

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Tendo chegado a Estrasburgo dois anos depois que planejara, Cal­ vino buscou recuperar o tempo perdido. Em rápida sucessão produziu diversas obras teológicas importantes. Revisou e expandiu suas Institu­ tas (1539), e produziu a primeira tradução francesa dessa obra (1541); produziu uma grande defesa dos princípios da Reforma em sua famosa obra, Resposta a Sadoleto (o cardeal Sadoleto havia escrito aos genebrinos, convidando-os a retornarem à igreja católica), e suas habilidades como-£3cegeta bíblico foram demonstradas em seu Comentário sobre a Carta aos Remrnos. Como pastor da congregação de fala francesa da cidade, Calvino teve suas próprias experiências com os problemas prá­ ticos que desafiavam os pastores reformados. Por meio de sua amizade com Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo, Calvino desenvolveu suas ideias a respeito da relação entre a cidade e a igreja. Em setembro de 1541, foi solicitado a Calvino que retornasse a Gene­ bra. Na sua ausência, a situação política e religiosa havia piorado. A cidade suplicou que ele retornasse e restaurasse a ordem e a confiança dentro da cidade. Ao retornar a Genebra, Calvino era então um jovem mais sábio e mais experimentado, mais bem equipado para as tarefas importantes que o aguardavam do que três anos antes. Embora Calvino ainda tivesse de lutar com as autoridades da cidade por mais de uma década, isso acon­ teceria numa posição forte. Finalmente, a oposição ao seu programa de reforma sucumbiu. Na última década de sua vida, ele tinha praticamente liberdade total nas questões religiosas da cidade. Durante seu segundo período em Genebra, Calvino desenvolveu sua teologia e a organização da Igreja Reformada genebrina. Estabeleceu o Consistório como meio de impor a disciplina eclesiástica, e fundou a Aca­ demia de Genebra para instruir pastores das igrejas reformadas. Calvino também produziu edições expandidas das Institutas da religião cristã, que se tornou uma das obras religiosas mais significativas do século 16. Consi­ deraremos a importância dessa obra mais à frente (veja a seção “A difusão de ideias” no capítulo 13). Esse período final em Genebra também teve suas controvérsias. Cal­ vino se enredou num sério debate teológico com Sebastião Castellion a respeito da interpretação correta da descida de Cristo ao inferno e sobre a canonicidade do livro Cântico dos Cânticos. Um debate impetuoso e muito público irrompeu entre ele e Jerome Bolsec sobre a doutrina da predestinação. Tanto Castellion como Bolsec acabaram tendo que deixar Genebra. Uma controvérsia mais séria surgiu com Miguel Serveto, a quem Calvino acusou de heresia e que acabou queimado na estaca em 1553. Embora o papel de Calvino nessa questão seja bem menos significativo do

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que afirmam alguns dos seus críticos, isso continua a manchar a reputação de Calvino como um líder cristão. j No início da primavera de 1564, já era evidente que Calvino estava bem doente. Ele pregou pela última vez no púlpito da Igreja de São Pedro na manhã de domingo, 6 de fevereiro. Em abril era evidente que Calvino não viveria muito mais. Sua respiração estava difícil e ele constantemente sentia falta de ar. Calvino morreu às oito horas da noite de 27 de maio de 1564. A seu próprio pedido, foi enterrado numa sepultura comum, sem lápide para marcar seu túmulo. A teologia de Calvino permanece sendo muito significativa, particu­ larmente em relação às suas concepções sobre a predestinação e a doutri­ na da igreja. Examinaremos algumas dessas ideias com mais detalhes mais à frente nesta obra. Tendo considerado um pouco do contexto dos principais contribuin­ tes para o desenvolvimento do pensamento da Reforma, podemos agora examinar essas ideias mais detalhadamente. Iniciaremos com um tema que era de importância central aos grandes debates teológicos da época da Reforma: a questão da autoridade da Bíblia e de sua interpretação.

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No cerne da maioria dos sistemas religiosos há um núcleo de textos escritos que são considerados como tendo “autoridade” - em outras pala­ vras, como tendo importância permanente para definir a “forma” daquela religião. No caso do cristianismo, esses textos escritos são os reunidos na Bíblia; em geral, são referidos simplesmente como “Escritura”. (Neste li­ vro, termos como “Bíblia”, “Escritura” e “bíblico” são tintados como equi­ valentes.) A Bíblia é um documento central para a civilização ocidental, não apenas como a fonte das ideias cristãs, mas também como influência sobre a educação e a cultura. A Reforma testemunhou uma nova importância sendo dada à Escritu­ ra - ou, talvez, uma antiga concepção da importância da Escritura sendo recuperada. A ideia de scriptura sola, “somente pela Escritura”, se tornou um dos grandes lemas dos reformadores ao buscarem realinhar as prá­ ticas e crenças da igreja com aquelas da Era Dourada do cristianismo. Se a doutrina da justificação somente pela fé era o princípio material da Reforma, o princípio da scriptura sola era o seu princípio formal. Se os reformadores destronaram o papa, eles entronizaram a Escritura. Cada linha do movimento da Reforma considerava a Escritura como a pedreira de onde suas ideias e práticas eram talhadas. Contudo, como veremos, a Escritura se demonstrou muito mais difícil de ser usada dessa maneira do que era esperado. Neste capítulo, consideraremos a compre­ ensão da Escritura na Reforma em detalhes, contextualizando-a no m un­ do dos pensamentos do período final da Idade Média e da Renascença.

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A Escritura na Idade Média Para compreender a importância do humanismo em relação ao de­ senvolvimento das ideias da Reforma, assim como essas ideias em si mes­ mas, é necessário apreciar o modo pelo qual a Escritura era entendida e manuseada no período medieval. Nesta seção, apresentarei um esboço da compreensão medieval da importância da Escritura.

O conceito de "tradição" Para a maioria dos teólogos medievais, a Escritura era a fonte mate­ rialmente suficiente da doutrina cristã. Em outras palavras, tudo que é de importância essencial à fé cristãestarcontido^ialEscritura. Não há ne­ cessidade de procurar em qualquer outro lugar por materiais relevantes à teologia cristã. Certamente há assuntos sobre os quais a Escritura nada diz: por exemplo, quem escreveu o Credo Apostólico, em que momento específico da celebração da Eucaristia o pão e o vinho se tomam o corpo e o sangue de Cristo, ou se apenas crentes adultos devem ser batizados. Quanto a essas questões, a igreja se sentia livre para tentar desenvolver o que estava implícito na Escritura, embora suas conclusões fossem consi­ deradas como subordinadas à própria Escritura. Durante a Idade Média, o conceito de “tradição” se tornou de grande importância quanto à interpretação e autoridade da Escritura. A palavra “tradição” deriva do termo latino traditio, que significa “transmitir, entre­ gar, transferir”. É uma ideia totalmente bíblica, pois Paulo lembra a seus leitores que lhes estava entregando os ensinamentos centrais da fé cristã que ele mesmo tinha recebido de outros (1 Co 15.1-4). O termo “tradição” pode se referir tanto à ação de transmitir ensino a outros - algo que Paulo insiste que deve ser feito na igreja - quanto ao conjunto de ensinamentos que é transmitido dessa maneira. A tradição, portanto, pode ser entendida como um processo assim como um conjun­ to de ensinamentos. Em particular, as epístolas pastorais (três cartas do Novo Testamento que se referem particularmente a questões da estru­ tura da igreja e de transmissão da doutrina cristã: ITimóteo, 2Timóteo e Tito) enfatizam a importância de guardar “o bom depósito” confiado a nós (2Tm 1.14). A importância da ideia da tradição se tornou óbvia primeiramente numa controvérsia que irrompeu durante o século 2o. A “controvérsia gnóstica” concentrava-se em diversas questões, incluindo o modo pelo qual se alcança a salvação. (O termo “gnóstico” deriva do grego gnosis, “conhecimento”, e se refere à crença do movimento de que era preciso conhecer certas ideias secretas para se assegurar a salvação.) Os escritores

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cristãos tiveram que lidar com algumas interpretações da Bíblia altamente incomuns e criativas. Como eles deveriam lidar com elas? Se a Bíblia tinha autoridade, toda interpretação dela deveria ser considerada como tendo o mesmo valor? Irineu de Lião (c.130-c.200), um dos maiores teólogos da igreja, não pensava assim. É muito importante o modo como a Bíblia deve ser inter­ pretada. Ele argumentou que os hereges interpretam a Bíblia de acordo com seu próprio gosto. Os crentes ortodoxos, em contraposição, inter­ pretam a Bíblia de um modo que seria aprovado pelos seus autores apos­ tólicos. O que foi transmitido pelos apóstolos por meio da igreja não foi apenas o texto bíblico, mas também certo modo de ler e compreender esses textos. O argumento de Irineu é de que é possível traçar um fluxo contínuo de ensino, vida e interpretação cristã desde o tempo dos apóstolos até seu próprio período. A igreja pode indicar aqueles que têm sustentado o ensi­ no da igreja e apresentar os conhecidos credos públicos que estabelecem as linhas principais da crença cristã. A tradição, portanto, é o que garante a fidelidade ao ensino apostólico original; é uma salvaguarda contra as inovações e deturpações dos textos bíblicos feitas pelos gnósticos. Assim, Irineu compreendia “tradição” como um modo autorizado de interpretar certas passagens da Escritura, o que remonta ao tempo dos próprios apóstolos. A Escritura deve ser interpretada dentro do contex­ to da continuidade histórica da igreja cristã. Essa ideia de tradição como uma interpretação tradicional da Bíblia está profundamente incrustada na teologia do início do período medieval. Entretanto, nos séculos 14 e 15, desenvolveu-se uma compreensão um tanto diferente de tradição. Então, “tradição” era entendida como sendo uma fonte distinta e separada de revelação, em adição à Escritura. Argumentava-se que a Escritura era silente quanto a várias questões. Porém, Deus havia providencialmente arranjado uma segunda fonte de revelação para suplementar essa deficiência: um núxo de tradição oral que remon­ tava aos próprios apóstolos. Essa “tradição oral” era transmitida de uma geração a outra dentro da igreja. Como veremos, os reformadores principais não tinham problemas com a noção de uma “interpretação tradicional da Bíblia”. O tronco prin­ cipal do protestantismo foi enfático em afirmar que não era uma nova igreja, trazida à existência por uma casualidade do século 16. Antes, re­ presentava uma reforma e uma renovação do cristianismo, implicando continuidade com a grande tradição histórica da fé cristã e afirmando-a, estendendo-se para trás por toda a era patrística até os próprios apóstolos. Tanto Lutero como Calvino afirmaram fortemente a prática tradicional do

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batismo infantil, a qual eles consideravam justificada pelos textos bíblicos. No entanto, apresentaram uma crítica considerável contra a noção de uma “tradição oral”, que não estava acessível a todo crente cristão. A “democra­ tização da fé”, que é tão característica da Reforma inicial, não se coaduna­ va facilmente com a noção aparentemente elitista de uma “tradição oral”. O anabatismo, contudo, foi mais crítico quanto a esse conceito de tra­ dição - não necessariamente por causa de alguma desconsideração para com a sabedoria do passado, mas por causa de uma crença mais funda­ mental de que a verdadeira igreja cristã já tinha cessado de existir em sua fase inicial (tipicamente, depois da conversão de Constantino no século 4o.). Por que prestar atenção ao passado teológico, se este não é verdadei­ ramente cristão?

A tradução bíblica da Vulgata Quando um teólogo medieval se refere à “Escritura”, invariavelmente ele quer dizer o textus vulgatus, o “texto comum”, composto pelo grande erudito bíblico patrístico Jerônimo no final do século 4o e no início do século 5o. Embora o termo “Vulgata” não tenha se tornado de uso comum até o século 16, é perfeitamente aceitável usar o termo para se referir à tradução específica da Bíblia para o latim preparada por Jerônimo no final do século 4°e início do 5o. Esse texto chegou até o período da Idade Média em diversas formas, com variações consideráveis entre elas. Por exemplo, Teodulfo e Alcuíno, famosos eruditos da Era das Trevas, usavam versões bem diferentes do texto da Vulgata. Um novo período de atividades intelectuais surgiu no final do século 11, na medida em que a Era das Trevas se dissipava, finalmente levando a um renascimento no século 12. Era claro que uma versão-padrão desse texto se fazia necessária para servir ao novo interesse pela teologia que se desenvolvia como parte desse renascimento intelectual. Se os teólogos baseassem suas teologias em versões diferentes da Vulgata, uma variação idêntica em suas conclusões, se não maior, seria o resultado inevitável. A necessidade de uma padronização foi suprida pelo que parece ter sido um empreendimento conjunto entre alguns teólogos e editores de Paris em 1226, resultando na “versão de Paris” do texto da Vulgata. Nes­ sa época, Paris era reconhecida como o principal centro de teologia da Europa, com o resultado inevitável de que - a despeito de suas muitas imperfeições óbvias - a “versão de Paris” da Vulgata se estabeleceu como normativa. Deve-se enfatizar que essa versão não foi comissionada ou patrocinada por qualquer figura eclesiástica; parece ter sido um empre­ endimento puramente comercial. Entretanto, a História diz respeito ao

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resultado dos fatos acidentais, e é necessário argumentar que os teólogos medievais, ao tentarem basear sua teologia na Escritura, eram obrigados a equiparar a Escritura com uma edição comercial bastante ruim de uma tradução da Bíblia para o latim que já era cheia de errós. Como observamos antes, o surgimento de técnicas textuais e filológicas humanistas revelou as penosas discrepâncias entre a Vulgata e o texto que ela se propusera a traduzir; e, dessa maneira, abriu caminho para uma reforma doutrinária como conseqüência. A edição de 1516 do texto gre­ go do Novo Testamento por Erasmo é geralmente considerada como um marco nesses acontecimentos.

As versões medievais da Escritura no vernáculo Durante a Idade Média, foram produzidas várias versões da Escritura no vernáculo. Embora antes se pensasse que a igreja medieval condenasse esse processo de tradução, agora se sabe que nunca foi proibida explicita­ mente nem a produção dessas traduções nem seu uso pelo clero ou pelos leigos. Um exemplo importante dessas traduções se encontra nas versões wycliffistas, produzidas por um grupo de eruditos que se juntaram ao re­ dor de João Wycliffe em Lutterworth. A motivação para a tradução da Bíblia para o inglês era parcialmente espiritual, parcialmente política. Era espiritual no sentido de que os leigos agora podiam ter acesso à “Goddis lawe” (lei de Deus); era política no sentido de que havia um desafio implícito apresentado às autoridades de ensino da igreja. Os leigos podiam detectar as diferenças óbvias entre a visão bíblica da igreja e sua sucessora inglesa um tanto corrupta, desse modo estabelecendo-se a agenda para um programa de reformas. Embora tais versões no vernáculo fossem importantes, essa importân­ cia não deve ser exagerada. Deve-se lembrar de que todas essas versões eram simplesmeiite traduções da Vulgata. Não eram baseadas nos melho­ res manuscritos da Escritura, em suas línguas originais, mas na versão da Vulgata, com todas as suas fraquezas e erros. O programa para a Reforma seria estabelecida por meio da aplicação de técnicas textuais e filológicas de uma sofisticação muito além daquela do círculo de Wycliffe em Lutterwor­ th. É para esses métodos que nos voltamos agora, os quais foram desenvol­ vidos por eruditos humanistas como Lorenzo Valia e Erasmo de Roterdã.

Os humanistas e a Bíblia Já vimos o quanto foi importante o movimento humanista em relação ao estudo da Escritura. Certamente irá nos auxiliar reunirmos aqui os prin­ cipais elementos da contribuição humanista a essa importante questão.

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1. A grande ênfase humanista na necessidade de retornar ad fontes es­ tabeleceu a prioridade da Escritura sobre comentários posteriores do seu texto, em particular quanto aqueles da Idade Média. O texto da Escritura deve ser abordado diretamente, e não por meio de um sistema complicado de glosas e comentários. 2. A Escritura deve ser lida diretamente em suas línguas originais, não em sua tradução latina. Assim, o Antigo Testamento deve ser estudado em hebraico (exceto por aquelas pequenas seções escri­ tas em aramaico), e o Novo Testamento deve ser lido no grego. O crescente interesse humanista pela língua grega (que muitos huma­ nistas consideravam suprema em sua capacidade de mediar con­ ceitos filosóficos) consolidou ainda mais a importância atribuída aos documentos do Novo Testamento. O ideal erudito do final da Renascença era de ser trium linguarum gnarus, “perito em três lín­ guas” (hebraico, grego e latim). Faculdades trilíngues foram estabe­ lecidas em Alcalá na Espanha, em Paris e em Wittenberg. O novo interesse pela Escritura e sua disponibilidade nas línguas originais logo revelaram diversos erros sérios na tradução da Vulgata; alguns deles de importância considerável. 3. O movimento humanista disponibilizou dois recursos essenciais para o novo método de estudo da Bíblia. Primeiro, disponibilizou o texto impresso da Escritura em suas línguas originais. Por exem­ plo, o Novum Instrumentum omne de 1516, de Erasmo, permitiu aos eruditos o acesso direto ao texto impresso do Novo Testamento grego; Lefèvre d’Etaples forneceu o texto hebraico de um conjunto de salmos importantes em 1509. Segundo, disponibilizou manuais das línguas clássicas, permitindo aos eruditos aprenderem tais lín­ guas, o que não poderiam fazer de outro modo. O compêndio de hebraico de Reuchlin, De rudimentis hebraicis (1506), é um exem­ plo excelente desse tipo de material. Compêndios de grego eram mais comuns: a Prensa Aldina produziu uma edição da gramática grega de Lascaris em 1495; a tradução de Erasmo da famosa gramá­ tica grega de Teodoro de Gaza apareceu em 1516; e Melanchthon produziu um excelente compêndio de grego em 1518. 4. O movimento humanista desenvolveu técnicas textuais capazes de estabelecer de modo preciso o melhor texto da Escritura. Essas técni­ cas foram usadas, por exemplo, por Lorenzo Valia para demonstrar a falta de autenticidade da famosa Doação de Constantino (veja a seção “Edições dos escritores patrísticos” no capítulo 3). Então era possível

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eliminar muitos dos erros textuais que haviam entrado na edição parisiense da Vulgata. Erasmo chocou seus contemporâneos ao ex­ cluir como adição posterior uma parte significativa de um versículo da Bíblia (ljo 5.7), o qual ele não conseguia encontrar em nenhum manuscrito grego. A versão da Vulgata diz assim: “Pois há três que testificam no céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo, e estes três são um. E há três que testificam na terra: o Espírito, a água e o sangue”. A seção inicial desse versículo, omitida por Erasmo, certamente estava na Vulgata, mas não nos textos gregos que ela era tida como sendo a tradução. Como essa passagem havia se tornado uma passagem-prova importante para a doutrina da Trindade, muitos se sentiram indignados com a ação dele. No fim, Erasmo se retratou e acabou por restaurar esse versículo em impressões posteriores do seu texto. 5. Os humanistas tendiam a considerar os textos antigos como media­ dores de uma experiênqa que podia ser recapturada por meio de métodos literários apropriados. Incluída na noção de ad fontes está a noção de recapturar a experiência mediada pelo texto. No caso do Novo Testamento, a experiência em questão era a da presença e do poder do Cristo ressurreto. Assim, a Escritura era lida com um senso de antecipação; cria-se que a vitalidade e o entusiasmo da era apostólica poderiam ser recuperados no século 16, ao se ler e estu­ dar a Escritura da maneira correta. 6. No seu Enchiridion, que se tornou grandemente influente em 1515, Erasmo argumenta que a chave para a renovação da igreja estava nas mãos de um grupo de leigos biblicamente instruídos. Em sua obra, tanto o clero quanto a igreja são marginalizados: o leitor lei­ go da Escritura tinha ali um guia mais do que adequado aos fun­ damentos da crença cristã e de sua prática. Essas concepções, que haviam alcançado ampla circulação entre a intelligentsia leiga da Europa, sem dúvida prepararam o caminho para o programa bíbliço de reformas de Lutero e Zuínglio no período de 1519 a 1525. -Muito embora Lutero tenha adotado uma abordagem teológica à Escritura que contrasta com a atitude não doutrinária de Erasmo, reconhece-se que ele estava edificando sobre uma fundação solida­ mente erasmiana.

A Bíblia e a Reforma protestante “A Bíblia”, escreveu William Chillingworth, “repito, somente a Bíblia, a religião dos protestantes.” Essas famosas palavras desse protestante

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inglês do século 17 resumem a atitude da Reforma para com a Escritura/ Calvino afirmou o mesmo princípio de modo menos memorável, porém mais completo: “Portanto, seja este um inabalável axioma: não se deve ter outra Palavra de Deus, a que se dê lugar na igreja, senão aquela que se contém, primeiro na Lei e nos Profetas, então nos Escritos Apostólicos; nem outro modo de ensinar a igreja corretamente, senão aquele prescrito e normativo dessa Palavra” [Institutas§4.8.8\. Para Calvino, como veremos, as instituições e os regulamentos tanto da igreja quanto da sociedade devem estar fundamentados na Escritura: “Aprovo exclusivamente essas ordenanças humanas que sejam não só fun­ dadas na autoridade de Deus, mas também tomadas da Escritura” [Insti£uías§4.10.30], Zuínglio intitulou seu tratado de 1522 sobre a Escritura assim: Sobre a clareza e a certeza da Palavra de Deus, afirmando que “a base dá"nossa religião é a palavra escrita, as Escrituras de Deus”. Essas concepções demonstram a visão consistentemente elevada da Escritura adotada pelos reformadores. Como vimos, essa noção não é uma novida­ de; representa um grande ponto de continuidade com a teologia medieval, que - exceto por alguns escritores franciscanos posteriores - considerava a Escritura como a fonte mais importante da doutrina cristã. A diferença entre os reformadores e a teologia medieval a essa altura se refere a como a Escritura é definida e interpretada, não quanto ao status que lhe é dado. A seguir, exploraremos um pouco mais esses pontos.

O cânon da Escritura A delimitação da Escritura é central a qualquer programa que trata a Escritura como normativa. Em outras palavras, o que é a Escritura? O termo “cânon” (uma palavra grega que significa “regra” ou “norma”) veio a ser usado para se referir àquelas Escrituras reconhecidas como autênti­ cas pela igreja. Para os teólogos medievais, “Escritura” significava “aquelas obras incluídas na Vulgata”. Os reformadores, entretanto, sentiram ne­ cessidade de questionar essa posição. Conquanto todas as obras do Novo Testamento tenham sido aceitas como canônicas - as desconfianças de Lutero a respeito de quatro delas receberam pouco apoio dúvidas foram levantadas quanto à canonicidade de um grupo de obras do Antigo Tes­ tamento. Uma comparação do conteúdo do Antigo Testamento na Bíblia hebraica, de um lado, com o conteúdo das versões gregas e latinas (como a Vulgata), de outro, comprova que estas contêm diversos livros não en­ contrados naquela. Os reformadores argumentaram que os únicos escritos do Antigo Tes­ tamento que podiam ser considerados pertencentes ao cânon da Escritura

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eram aqueles incluídos originalmente na Bíblia hebraica. Foi, portan­ to traçada uma distinção entre o “Antigo Testamento” e os “apócrifos”: o primeiro conjunto consiste dos livros encontrados, na Bíblia hebraica; o segundo, dos livros encontrados nas Bíblias gregas e latinas (como a Vulgata), porém não na Bíblia hebraica. Conquanto alguns reformadores admitissem que as obras apócrifas se constituíssem em leitura edificante, havia uma concordância geral de que tais obras não podiam ser usadas cortío base para doutrinas. No entanto, os teólogos medievais, seguidos mais tarde pelo Concilio de Trento em 1546, definiam o “Antigo Testa­ mento” como “aquelas obras do Antigo Testamento contidas nas Bíblias gregas e latinas”, eliminando assim qualquer distinção entre “Antigo Tes­ tamento” e “apócrifos”. Portanto, uma distinção fundamental se desenvolveu entre a compre­ ensão católica e a protestante quanto ao real significado do termo “Es­ critura”. Essa distinção persiste até o dia de hoje. Uma comparação das versões protestantes da Bíblia - as duas mais importantes são a New revised standard version (NRSV) e a New international version (NIV)‘‘-com as versões católicas, como a Bíblia de Jerusalém, revelarão essas diferenças. Assim, para os reformadores, o princípio scriptura sola implicava não me­ ramente uma, mas duas diferenças quanto a seus oponentes católicos: não apenas eles atribuíram um status diferente à Escritura, mas discordavam quanto ao que realmente constituía a Escritura. Mas qual é a relevância dessa disputa? Os reformadores fizeram objeção particular a uma prática católica es­ pecífica: a oração pelos mortos. Pa^a os reformadores, essa prática se base­ ava numa fundação não bíblica (a doutrina do purgatório) e incentivava a superstição popular e a exploração eclesiástica. Seus oponentes católicos, contudo, responderam a essa objeção demonstrando que a prática de orar pelos mortos é mencionada explicitamente na Escritura, em 2Macabeus 12.40-46. Tendo declarado que esse livro era apócrifo (e, consequente­ mente, que não era parte da Bíblia), os reformadores puderam responder, por sua vez, que essa prática não/éra bíblica, pelo menos na concepção deles. Isso gerou a óbvia réplica:ao lado católico: que os reformadores ba­ seavam sua teologia na Escritura, mas apenas depois de terem excluído do cânon da Escritura qualqúer obra que contradissesse essa teologia. Um resultado desse debate foi a produção e a circulação de listas autori­ zadas de livros que eram considerados “bíblicos”. A quarta sessão do Conci­ lio de Trento (1546) preparou uma lista detalhada que incluía as obras dos i* Na língua portuguesa: Almeida Revista e Atualizada (ARA) e a Nova Versão Internacional (NVI). [N.do T.]

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apócrifos como autenticamente bíblicas. Por sua vez, as congregações pro­ testantes da Suíça, da França e de outros lugares divulgaram listas que omi­ tiam deliberadamente qualquer referência a essas obras ou então indicavam que elas não tinham qualquer importância em questões doutrinárias.

A autoridade daifscritura Os reformadores basearam a aútoridade dâ Escritura em sua relação com a Palavra de Deus. Para alguns, essa relação era uma identidade abso­ luta: a Escritura é a Palavra de Deus. Para outros, a relação era um pouco mais sutil: a Escritura contém a Palavra de Deus. Não obstante, havia um consenso de que a Escritura deve ser recebida como se fosse o próprio Deus falando. Para Calvino, a autoridade da Escritura está baseada no fato de que os escritores bíblicos eram “secretários [notaires authentiques na versão francesa das Institutas] do Espírito Santo”. Como afirmou Henrique Bullinger, a autoridade da Escritura é abso­ luta e autônoma: “Por ser a Palavra de Deus, a santa e bíblica Escritura tem fundamento adequado e credibilidade em si mesma e a partir de si mesma”. Eis aqui o próprio evangelho, capaz de falar por si mesmo e de­ safiar e corrigir sua representação inadequada e imprecisa no século 16. A Escritura era capaz de emitir julgamento sobre a igreja do final da Idade Média (e a encontrar devedora) e de fornecer o modelo para a nova igreja reformada que se ergueria em seqüência. A importância do princípio da sola scriptura pode ser vista em vários pontos. Primeiro, os reformadores insistiram que a autoridade dos papas, concílios e teólogos é subordinada à da Escritura. Isso não significa necessa­ riamente que eles não tenharrínenhuma autoridade; como veremos adiante, os reformadores admitiam que certos concílios e teólogos da era patrística tinham autoridade genuína em questões de doutrina. Significa, contudo, que essa autoridade é derivada da Escritura e, portanto, é subordinada a ela. A Bíblia, como Palavra de Deus, deve Pais Termo alternativo para "esser considerada superior tanto aosPais critores patrísticos". quanto aos concílios. Lutero tendia a defender o princípio da sola scriptura enfatizando a confusão e a incoerência da teologia medieval, enquanto Cal­ vino e Melanchthon argumentavam que a boa teologia católica (tal como a de Agostinho) apoiava as visões que eles tinham da prioridade da Escritura. Segundo, os reformadores argumentavam que a autoridade dentro da igreja não deriva da posição daquele que ocupa o cargo, mas da Palavra de Deus à qual serve o ocupante do cargo. A teologia católica tradicional tendia a basear a autoridade do ocupante do cargo no cargo em si mesmo

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- por exemplo, a autoridade de um bispo reside no fato de que ele é um bispo - e enfatizava a continuidade histórica do cargo de bispo com a era apostólica. Os reformadores baseavam a autoridade dos bispos (ou seu equivalente protestante) na fidelidade deles à Palavra de Deus. A continuidade histórica é de pouca importância em relação à procla­ mação fiel da Palavra de Deus. Obviamente negava-se às igrejas separadas da Reforma a continuidade histórica com as instituições da igreja católica: nenhum bispo católico ordenaria o clero delas, por exemplo. No entanto, os reformadores argumentaram que a autoridade e as funções de um bispo derivam, no final das contas, da fidelidade à Palavra de Deus. Do mesmo modo, as decisões dos bispos (e também dos concílios e papas) possuem autoridade e são normativas na medida em que são fiéis à Escritura. Enquanto os católicos enfatizavam a importância da continuidade histórica, os reformadores enfatizavam igualmente a importância da con­ tinuidade doutrinária. Embora as igrejas protestantes em geral não pu­ dessem fornecer uma continuidade histórica com o episcopado (exceto, como no caso das reformas inglesa e sueca, por meio da deserção de bis­ pos católicos), elas podiam suprir a fidelidade necessária à Escritura e, as­ sim, na opinião deles, legitimar os ofícios eclesiásticos protestantes. Podia não haver uma conexão histórica ininterrupta entre os líderes da Reforma e os bispos da igreja primitiva, porém - argumentam os reformadores - a continuidade necessária existia mesmo assim, pois criam e ensinavam a mesma fé desses bispos da igreja primitiva (e não o evangelho distorcido da igreja medieval). O princípio da sola scriptura envolvia, portanto, a reivindicação de que a autoridade da igreja estava fundamentada na sua fidelidade à Escritura. Os oponentes da Reforma, entretanto, recorreram a um dito de Agosti­ nho: “Eu não teria crido no Evangelho se não tivesse sido inspirado pela autoridade da igreja católica”. A própria existência/do cânon da Escritura não indica que a igreja tem autoridade sobre a Escritura? Afiaal de contas, foi a igreja que definiu o que era “Escritura”—e isso parece sugerir que a igreja tem autoridade sobre a Escritura e independente dela. Desse modo, João Eck, o oponente de Lutero na famosa Disputa de Leipzig em 1519, argumentou que “a Escritura não é autêntica sem a autoridade da igreja”. Isso certamente traz à tona a questão do relacionamento entre a Escritura e a tradição, para a qual agora retornamos convenientemente.

O papel da tradição O princípio scriptura sola dos reformadores parece eliminar qual­ quer referência à tradição na formação da doutrina cristã. Na realidade,

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contudo, os reformadores magistrais tinham uma compreensão bastante positiva da tradição, como veremos. Três abordagens principais à questão da “Bíblia e tradição” surgiram durante o século 16, as quais podemos resumir desta maneira: 1. Não há lugar para a tradição na interpretação da Bíblia. Cada pes­ soa ou comunidade é livre para interpretar a Bíblia sem referência ao passado cristão. Essa concepção é Reforma Radical Termo usado típica da Reforma radical, e reflete para se referir ao movimento parcialmente sua noção de que a igreja anabatista. verdadeira deixou de existir logo de­ pois do período dos apóstolos. Por que apelar às opiniões de escritores passados, se estes tinham cre­ denciais maculadas ou não eram nem mesmo cristãos? 2. A tradição designa um modo tradicional de interpretar o texto bí­ blico, que não substitui o texto. Essa noção surgiu durante o período patrístico e desempenhou um papel importante no renascimento teológico do início do período medieval. 3. A tradição se refere a um modo adicional de revelação divina, na qual informações não registradas por escrito na Bíblia foram trans­ mitidas de uma geração de pessoas autorizadas e privilegiadas den­ tro da igreja a outras. À primeira vista, o princípio scripttíra sola parece se referir a uma com­ preensão da teologia que não dá papel algum à tradição. Essa certamente era a opinião dos escritores anabatistas, que insistiam que esse princípio exige que as crenças e práticas que não fossem declaradas ou aprovadas especificamente na Bíblia deviam ser abolidas. Balthasar Hubmaier afir­ mou esse argumento da seguinte maneira em seu Diálogo com Zuínglio (novembro de 1525): “Cristo não diz: ‘Todas as plantas que meu pai ce­ lestial proibiu devem ser arrancadas’. Antes, ele diz: ‘Todas as plantas que meu pai celestial não plantou devem ser arrancadas’”. Contudo, os reformadores principais adotaram uma concepção dife­ rente, argumentando que o princípio da sola scriptura sanciona dois con­ juntos de crenças e práticas: 1. Aquelas explicitamente declaradas na Bíblia. 2. Aquelas que, embora não declaradas explicitamente na Bíblia, podem ser inferidas de modo sensato daquelas que são assim declaradas.

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Como já observamos, a ideia de uma “interpretação tradicional da Escritura” era perfeitamente aceitável aos reformadores magistrais, desde que essa interpretação tradicional pudesse ser justificada. A única ala da Reforma que aplicou o princípio scriptura sola de modo consistente foi a Reforma radical, ou “anabatismo”. Para os radicais (ou “fanáticos”, como Lutero os apelidou), tais como Thomas Müntzer e Caspar Schwenkfeld, cada pessoa tem o direito de interpretar a Escritura como deseja, sujeita à orientação do Espírito Santo. Para o radical Sebastian Franck, a Bíblia “é um livro selado com sete selos, os quais ninguém pode abrir se não tiver a chave de Davi, que é a iluminação do Espírito”. Assim, o caminho estava aberto, pelo menos na teoria, para o individu­ alismo, em que o julgamento particular do indivíduo se ergue acima do julgamento corporativo da igreja. Desse modo, os radicais rejeitaram a prática do batismo infantil como não bíblica (enquanto os reformadores magistrais mantiveram essa prática). (Não há referência explícita a essa prática no Novo Testamento.) De modo semelhante, doutrinas como a da Trindade e a da divindade de Cristo foram rejeitadas como sendo basea­ das em fundamentos bíblicos inadequados. Como já foi observado, a Reforma magistral foi teologicamente con­ servadora. Ela manteve a maioria das doutrinas tradicionais da igreja tal como a divindade de Cristo e a doutrina da Trindade - por causa da convicção dos reformadores de que essas interpretações tradicionais da Escritura estavam corretas. Foram mantidas, igualmente, muitas práticas tradicionais (como o batismo infantil) por causa da crença dos reforma­ dores de que elas eram consistentes com a Escritura. A Reforma magistral estava dolorosamente consciente da ameaça do individualismo e tentou evitar essa ameaça enfatizando a interpretação tradicional da Escritura pela igreja sempre que essa interpretação tradi­ cional era considerada correta. A crítica doutrinária era dirigida àquelas áreas nas quais a teologia ou prática católica parecia ter ido muito além da Escritura ou a contradito. Como muitos desses desenvolvimentos ocor­ reram na Idade Média, não é de admirar que os reformadores denomi­ nassem o período de 1200 a 1500 como uma “era de decadência” ou um “período de corrupção”, o qual tinham a missão de reformar. Igualmen­ te, dificilmente nos surpreende que os reformadores apelassem aos Pais como intérpretes geralmente confiáveis da Escritura. Esse ponto é de importância especial e não tem recebido a atenção que merece. Uma das razões pelas quais os reformadores valorizavam os escritos dos Pais, especialmente Agostinho, era que eles os conside­ ravam expoentes de uma teologia bíblica. Em outras palavras, os refor­ madores criam que os Pais tinham tentado desenvolver uma teologia

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baseada apenas na Escritura - o que, é claro, era precisamente o que eles também estavam tentando fazer no século 16. Obviamente, os no­ vos métodos textuais e filológicos disponíveis aos reformadores signi­ ficavam que eles podiam corrigir os Pais em certos detalhes; mas os reformadores aceitavam o “testemunho patrístico” como geralmente confiável. Como esse testemunho incluía doutrinas como a da Trinda­ de e a da divindade de Cristo e práticas como a do batismo infantil, os reformadores estavam predispostos a aceitá-las como autenticamente bíblicas. Fica óbvio, portanto, que essa elevada consideração pela inter­ pretação tradicional da Escritura deu à Reforma magistral um forte viés de conservadorismo doutrinário. Esse entendimento do princípio da sola scriptura permitiu aos refor­ madores criticarem seus oponentes em ambos os lados - de um lado, os radicais; de outro, os católicos. Os católicos argumentavam que os reformadores colocavam o julgamento individual acima do julgamen­ to corporativo da igreja. Os reformadores respondiam que não faziam nada disso: estavam simplesmente restaurando o julgamento corpora­ tivo ao que era anteriormente, combatendo a degeneração doutrinária da Idade Média por meio de um apelo ao julgamento corporativo da era patrística. Os radicais, entretanto, não tinham qualquer consideração para com o “testemunho dos Pais”. Como escreveu Sebastian Franck em 1530: “Tolos Ambrósio, Agostinho, Jerônimo e Gregório. Nenhum deles sequer conheceu o Senhor, então ajude-me ó Deus, nem foram enviados por Deus para ensinar. Antes, eram todos apóstolos do anticristo”. Os reformadores magistrais, todavia, recusaram essa compreensão radical do papel da Escritura entendendo-a como individualismo puro e uma receita para o caos teológico. Ficará claro, portanto, que é totalmente errado sugerir que os refor­ madores magistrais colocavam o julgamento individual acima do julga­ mento corporativo da igreja, ou que eles degeneraram para algum tipo de individualismo. Nenhum reformador principal estava disposto a abando­ nar o conceito de uma interpretação tradicional da Escritura em favor da alternativa radical. Como observou Lutero, o resultado inevitável de tal abordagem era o caos, uma “nova Babel”. O Concilio de Trento, reunido em 1546, reagiu à ameaça da Reforma afirmando uma teoria de duas fontes para a tradição, a qual reconhecia a existência de uma “tradição oral” lado a lado com o texto público da Bíblia (veja a seção sobre a reação católica no final deste capítulo). De acordo com Trento, a fé cristã alcança cada geração por meio de duas fontes: a Escritura e a tradição oral. Essa tradição extrabíblica deve ser considerada como tendo autoridade igual à da Escritura.

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Métodos de interpretar a Escritura Textos precisam ser interpretados. Não faz sentido tratar um determi­ nado texto como normativo se há sérias discordâncias a respeito do que o texto significa. Durante o final da Idade Média, uma ênfase crescente foi colocada no papel da igreja como intérprete da Escritura. A autoridade da Escritura era garantida pela autoridade do seu intérprete - a igreja, sob a orientação divina do Espírito Santo. Como vimos (veja a seção “O cres­ cimento do pluralismo doutrinário” no capítulo 2), contudo, havia muita confusão doutrinária e discordância quanto à natureza e à localização da autoridade teológica no final da Idade Média. Com isso, não estava claro quem tinha a autoridade final para interpretar a Escritura. Era o papa? Um concilio? Ou talvez mesmo uma pessoa piedosa que conhecesse bem sua Bíblia, como sugeriu Panormitanus (Nicolo de Tudeschi), possivel­ mente com muita ironia. Na prática, parecia que era o papa da vez que detinha tal autoridade. Porém, havia confusão suficiente a respeito dessa questão para permitir que o pluralismo se desenvolvesse praticamente sem restrições no final do século 15, parcialmente por meio de novas abordagens à interpretação bíblica que traziam um desafio significativo às concepções existentes. O método-padrão de interpretação bíblica usado durante a Idade Mé­ dia é geralmente conhecido como quadriga, ou o “sentido quádruplo da Escritura”, como vimos. As origens desse método vêm do período patrístico, embora sua formulação sistemática tenha sido parte integrante es­ sencial da nova tendência de sistematização teológica que acompanhou o renascimento cultural do século 12. O princípio básico que fundamenta essa abordagem é o seguinte. A Escritura possui diversos sentidos diferentes. Além do sentido literal, três sentidos não literais podem ser percebidos: o alegórico, relativo ao que os cristãos devem crer; o tropológico ou moral, relativo ao que os cristãos devem fazer; e o anagógico, relativo a pelo que os cristãos devem ter espe­ rança. Os quatro sentidos da Escritura, pois, eram os seguintes: 1. O sentido literal, em que o texto era tomado em seu valor aparente. 2. O sentido alegórico, em que certas passagens da Escritura eram in­ terpretadas de modo a produzir afirmações doutrinárias. Essas pas­ sagens tendiam a ser obscuras ou ter um sentido literal inaceitável a seus leitores, por razões teológicas. 3. O sentido tropológico ou moral, em que certas passagens eram in­ terpretadas para produzir orientação ética para a conduta cristã.

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4. O sentido anagógico, em que certas passagens eram interpretadas para indicar as bases da esperança cristã, apontando para o futuro cumprimento das promessas divinas na Nova Jerusalém. Uma potencial fraqueza dessa abordagem era evitada ao se insistir que nada devia ser crido com base num sentido não literal da Escritura a menos que fosse primeiramente estabelecido com base no sentido literal. Essa insistência na prioridade do sentido literal pode ser vista como uma crítica implícita à abordagem alegórica adotada por Orígenes, a qual na prática permitia que os intérpretes da Escritura atribuíssem a uma pas­ sagem qualquer interpretação “espiritual” que quisessem. Como declara Lutero em 1515 quanto a esse princípio: “Nas Escrituras nenhuma alego­ ria, tropologia ou anagogia é válida, a menos que a mesma verdade seja explicitamente declarada de modo literal em algum outro lugar. Caso con­ trário, a Escritura se torna motivo de riso”. No entanto, a ideia de um sentido “literal” da Escritura era considera­ da por muitos humanistas como imprecisa e mal definida, especialmen­ te em relação a muitas passagens do Antigo Testamento. Jacques Lefèvre d’Etaples (c.1455-1536), escrevendo na primeira década do século 16, argumentou que era necessária uma distinção básica entre dois sentidos diferentes do termo “literal”. O sentido “literal histórico” da Escritura de­ signa o sentido histórico óbvio da passagem. Lutero se refere a essa abor­ dagem como “relativa à história antiga, mais do que a Cristo”. O sentido “literal profético” da Escritura designa o sentido profético de uma passa­ gem; em outras palavras, é quando uma passagem aponta adiante para seu cumprimento na vinda de Jesus Cristo. Como Lutero colocou isso, “Cristo abriu a mente daqueles que são seus, para que possam compreender as Escrituras”. Assim, uma passagem do Antigo Testamento podia ser interpretada como uma referência his­ tórica literal a uma série de acontecimentos no antigo Oriente Próximo ou como uma referência profética literal à vinda de Cristo. Esse método de interpretação cristológico se demonstra especialmente importante em relação ao Saltério, o livro do Antigo Testamento que era tão proeminente na espiritualidade e teologia cristã medieval, e sobre o qual Lutero pales­ trou de 1513 a 1515.. Lutero estava plenamente consciente dessas distinções, mas não hesitou em usá-las na sua exposição bíblica. Em sua análise do Saltério, ele distinguiu oito sentidos do Antigo Testamento. Essa precisão espantosa (que pode parecer a alguns leitores como típica do escolasticismo) resultou da combinação dos quatro sentidos da Escritura com a percepção de que cada um desses sentidos pode ser interpretado histórica ou profeticamente.

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Lutero desenvolveu essa distinção argumentando que era necessário fazer diferença entre o que ele descreveu como “a letra que mata” (litera occidens) - ou seja, uma leitura grosseiramente literal ou histórica do An­ tigo Testamento - e “o espírito que dá vida” (spiritus vivificans) - ou seja, uma leitura do Antigo Testamento que é sensível às suas nuances espiri­ tuais e conotações proféticas. Como um exemplo, podemos considerar a análise de Lutero de uma imagem do Antigo Testamento usando esse método óctuplo de interpretação. A imagem em questão é o monte Sião, que pode ser interpretado em um sentido histórico e literal como uma referência ao antigo Israel ou como uma referência profética à igreja do Novo Testamento. Lutero ex­ plora as possibilidades (talvez com ironia?) como segue: 1. Historicamente, de acordo com “a letra que mata”: (a) literalmente: a terra de Canaã; (b) alegoricamente: a sinagoga, ou uma pessoa proeminente nela; (c) tropologicamente: a justiça dos fariseus e a Lei; (d) anagogicamente: uma glória futura na terra. 2. Profeticamente, de acordo com “o espírito que dá vida”: (a) literalmente: o povo de Sião; (b) alegoricamente: a igreja, ou uma pessoa proeminente nela; (c) tropologicamente: a justiça da fé; (d) anagogicamente: a glória eterna dos céus. A quadriga era o componente principal do estudo acadêmico da Bíblia nas faculdades teológicas escolásticas das universidades. Porém, essa não era a única opção disponível aos intérpretes bíblicos nas duas primeiras décadas do século 16. De fato, pode-se argumentar que Lutero foi o único reformador que fez uso significativo dessa abordagem escolástica à in­ terpretação bíblica. A abordagem mais influente desse tema dentro dos círculos reformistas e humanistas empregava os métodos associados com Erasmo de Roterdã, para os quais nos voltamos agora. O Enchiridion de Erasmo elogiou a distinção entre a “letra” e o “espíri­ to” - ou seja, entre as palavras da Escritura e seu significado real. Especial­ mente no Antigo Testamento, as palavras do texto são como uma concha, que contém o núcleo da mensagem, mas não é idêntica a ela. O sentido superficial do texto em geral esconde um sentido oculto mais profundo, e a tarefa do exegeta iluminado e responsável é descobri-lo. A interpretação bíblica, segundo Erasmo, se refere a estabelecer o sentido encoberto da Escritura, não sua letra.

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O interesse básico de Zuínglio ecoa o de Erasmo. O intérprete da Bíblia deve estabelecer o “sentido natural da Escritura”, o qual não é necessaria­ mente idêntico ao seu sentido literal. A formação humanista de Zuínglio lhe permitiu distinguir entre diversas figuras de linguagem, especialmente alloiosis, catacrese e sinédoque. Um exemplo irá deixar isso claro: a de­ claração de Cristo na última Ceia quando, ao partir o pão, disse “isto é o meu corpo” (Mt 26.26). O sentido literal dessas palavras seria que “este pedaço de pão é o meu corpo”, mas o sentido natural é “este pedaço de pão representa o meu corpo”. A busca de Zuínglio pelo sentido mais profundo da Escritura (em con­ traste com seu sentido superficial) é bem ilustrada pelo relato de Abraão e Isaque (Gn 22). Os detalhes históricos do relato são facilmente assumidos como seu sentido real. Zuínglio argumenta que, na verdade, o sentido real desse relato só pode ser compreendido quando ele é visto como uma an­ tecipação profética da história de Cristo, no qual Abraão representa Deus e Isaque é uma figura (ou, mais tecnicamente, um “tipo”) de Cristo. Talvez ainda mais importante é a ênfase colocada por Erasmo, Bucer e Zuínglio no sentido moral ou tropológico da Escritura. Abordagens hu­ manistas ao cristianismo nunca conseguiram escapar inteiramente da no­ ção de que o evangelho designa primariamente um modo de vida, cujos contornos morais são esboçados pela Escritura. A tarefa do exegeta é de descobrir esses contornos e, assim, permitir que a Escritura aja como um vade mecum ético, guiando os crentes por meio do labirinto moral da vida. Enquanto Lutero tendia a tratar a Escritura como primariamente in­ teressada em proclamar as promessas graciosas de Deus aos crentes, nos escritos de seus três colegas mais humanistas, contudo, há um matiz perceptivelmente mais moralista, geralmente retratando a Escritura como tendo estabelecido uma “nova lei”. Do mesmo modo, Erasmo e Bucer consideram que o sentido tropológico da Escritura define o que os crentes devem fazer^ No entanto, no seu momento de inovação teológica (veja a seção “A descoberta da ‘justiça de Deus’ por Lutero” no próximo capítulo), Lutero interpreta que esse mesmo sentido como definindo o que Deus fez pelos crentes em Cristo. Portanto, várias opções estavam disponíveis para a interpretação da Escritura no início do século 16. A Reforma, entretanto, não foi prima­ riamente um movimento acadêmico, baseado nas universidades, e sim um movimento popular que teve um apelo crescente diretamente entre os leigos instruídos. Tais métodos acadêmicos de interpretação eram difíceis de explicar e de usar num nível popular. Pode-se argumentar que a Refor­ ma só conseguiu avançar com a declaração enfática de que todos têm o direito de interpretar a Escritura e com o questionamento dos ensinos e

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práticas que existiam na igreja. Nas seções seguintes, exploraremos como isso ocorreu e examinaremos as fraquezas e inconsistências que surgiram em sua esteira.

O direito de interpretar a Escritura O consenso geral da Reforma magistral era de que a Escritura contém a Palavra de Deus. Essa Palavra, embora dada de maneira singular num ponto definido do passado, pode ser recuperada e apropriada por cada geração por meio da orientação do Espírito Santo. O início da Reforma se caracterizou pela crença otimista de que é possível estabelecer com exa­ tidão o que a Bíblia diz sobre tudo o que é importante. Isso seria a base de um cristianismo reformado. Pode-se encontrar uma declaração típica desse otimismo exegético no Enchiridion de Erasmo: na opinião dele, o agricultor pode ler a Escritura e compreendê-la sem qualquer grande difi­ culdade. A Escritura é clara e persuasiva, e pode servir como o manifesto dos partidos reformistas dentro da cristandade. No seu grande tratado reformista de 1520, À nobreza cristã da nação alemã, Lutero declarou que os “romanistas” haviam eliminado qualquer possibilidade de reforma na igreja ao construir três muralhas defensivas ao redor de si mesmos: Em primeiro lugar, quando pressionados com poder secular, fizeram decretos e declararam que o poder secular não tinha direito sobre eles, mas que, pelo contrário, o po­ der espiritual está acima do poder temporal. Em segundo lugar, quando foi feita a tentativa de reprová-los com as Es­ crituras, eles objetaram que apenas o papa pode interpretar as Escrituras. Terceiro, quando ameaçados com um conci­ lio, inventam que ninguém pode convocar um concilio se­ não o papa.1

Lutero, portanto, parece ter se considerado como um Josué com a mis­ são de derrubar as três muralhas dessa nova Jericó (veja Js 6.1-20). Com três sopros de sua trombeta reformista, Lutero delineia as características gerais de seu programa reformista. Primeiro, a distinção entre os pode­ res “espiritual” e “temporal” é abolida. Segundo, cada crente tem o direito de interpretar a Escritura. Terceiro, qualquer cristão (e, em especial, um príncipe alemão) tem o direito de convocar um concilio reformista. O programa de reformas de Lutero se fundamenta inicialmente nesses três princípios, dos quais o segundo é de particular interesse para nós:

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0 pensamento da Reforma A afirmação deles de que apenas o papa pode interpretar a Escritura é uma fábula desaforadamente inventada [...] Os romanistas devem admitir que entre nós existem cristãos retos, que têm a verdadeira fé, o espírito, o entendimento, a palavra e a mente de Cristo. Por que, então, deveríamos re­ jeitar a palavra e o entendimento dos bons cristãos, e seguir ao papa que não tem nem fé nem o Espírito?

Lutero parece sugerir que o crente piedoso comum é perfeitamente ca­ paz de ler a Escritura e compreender o que encontra em suas páginas. Uma posição semelhante é defendida por Zuínglio no seu importante tratado de 1522, Sobre a clareza e a certeza áa Palavra de Deus. Para Zuínglio, a Escri­ tura é perfeitamente clara. “Assim que brilha sobre a compreensão de uma pessoa, a Palavra de Deus a ilumina de tal forma que ela a compreende”. No entanto, no final da década de 1520, esse otimismo exegético ficou desacreditado de modo significativo, principalmente por causa da séria discordância entre Lutero e Zuínglio sobre a interpretação de uma passa­ gem bíblica em particular: hoc est corpus meum, “isto é o meu corpo” (Mt 26.26), que é central para a Eucaristia e, portanto, de enorme importância teológica tanto para os reformadores como para os católicos. Para Lutero, essa passagem significa o que diz; em outras palavras, o pão na Eucaristia é o corpo de Cristo. Para Zuínglio, entretanto, a interpretação é diferente: significa “isto representa o meu corpo”; em outras palavras, o pão na Eu­ caristia representa o corpo de Cristo. Como veremos num capítulo posterior, a seriedade dessa discordância entre os reformadores quanto à EucaReforma magistral Expressão ristia fez mais do que dividir a Reforma usada para se referir às alas lutemagistral permanentemente em dois rana e reformada da Reforma. movimentos; ela demonstrou também o quanto era difícil chegar a um acordo a respeito da interpretação de passagens da Escritura, mesmo daquelas que Lutero considerava como mais óbvias. O otimismo exegético do final da década de 1510 e do início da década de 1520 era evidente na sugestão de que um cristão comum pudesse compreender a Escritura. Contudo, na década de 1530, já se considerava que o cristão comum só poderia com­ preender a Escritura se fosse fluente em hebraico, grego e latim, além de ter familiaridade com as complexidades das teorias lingüísticas. Para os católicos, a Escritura era difícil de interpretar - e Deus havia providencialmente fornecido um intérprete confiável e com autoridade na forma da igreja católica. Os reformadores radicais rejeitaram comple­ tamente essa ideia, como vimos: cada crente individual tem o direito e a

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habilidade de interpretar a Escritura como lhe parecer correto. Os refor­ madores magistrais estavam num dilema quanto a esse ponto. Admitiam que a Escritura é obscura em certos trechos e, portanto, requer interpre­ tação. Porém, como se poderia alcançar uma interpretação da Escritura aceita como autorizada por todos os protestantes sem implicar que havia uma autoridade maior que a da Bíblia que determina sua interpretação? Então, como pode qualquer protestante reivindicar falar com “autori­ dade”, se o protestantismo subverte essa reivindicação ao insistir que não há “elite espiritual” que possa se colocar acima dos outros? A compreensão protestante do lugar da Bíblia na vida cristã é oposta de modo absoluto e irreconciliável à ideia de colocar alguma figura humana, agência ou insti­ tuição acima dela. Isso parece levar à conclusão de que o protestantismo é uma fé democrática, na qual as concepções de cada crente têm valor igual, tornando impossível o surgimento de figuras de autoridade. Examinaremos dois meios pelos quais a Reforma tentou superar essa dificuldade. O primeiro pode ser designado como abordagem “catequética”. Era fornecido aos leitores protestantes da Escritura um filtro pelo qual podiam interpretar a Escritura. Um exemplo de um “filtro” assim é o Catecismo menor de Lutero (1529), que fornecia aos seus leitores um quadro de referência pelo qual eles poderiam fazer sentido da Escritura. O guia mais famoso da Escritura, entretanto, foi as Institutas de Calvino, especialmente a versão definitiva de 1559. Sabe-se que Calvino inicial­ mente modelou sua obra a partir do catecismo de Lutero. No prefácio da edição francesa de 1541, ele declara que as Institutas “podiam ser como uma chave e uma porta para dar acesso a todos os filhos de Deus, de modo que pudessem realmente compreender a Sagrada Escritura”. Em outras palavras, é esperado que o leitor use as Institutas de Calvino como um meio para interpretar a Escritura. Como indica a história da Igreja Reformada na França e na Baixa Es­ cócia, a abordagem de Calvino foi notavelmente bem-sucedida. O leitor só precisava ter dois livros - a Bíblia e as Institutas- para ter completo acesso à fé reformada. O uso da Escritura por Calvino nas Institutas é tão persuasivo que parecia a muitos que esse livro continha a chave para a correta interpretação da Escritura. Os complexos métodos hermenêuticos medievais podiam ser abandonados em favor dessa obra lúcida, escrita de forma elegante. O segundo meio de lidar com o problema da interpretação da Escri­ tura pode ser designado de “hermenêutica política”, e estava especifica­ mente associado com a reforma de Zuínglio em Zurique. Esse método tem importância particular para a história política da Reforma. Em algum momento de 1520, o conselho municipal de Zurique exigiu que todo o

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clero da cidade pregasse de acordo com a Escritura, evitando “inovações e explicações humanas”. De fato, o decreto submeteu Zurique ao princípio scriptura sola. Entretanto, em 1522 já havia ficado claro que esse decreto tinha pouco sentido, pois como a Escritura deveria ser interpretada? Uma crise de menor importância surgiu na Quaresma de 1522, quando alguns dos seguidores de Zuínglio quebraram o jejum tradicionalmente observado nessa época do ano. Durante um período em que tradicional­ mente se come apenas vegetais ou peixe, parece que alguns dos apoiadores de Zuínglio sucumbiram aos prazeres proibidos de algumtipo de salsicha. Algumas semanas depois, em 9 de abril, o conselho municipal reafirmou seu compromisso com a observância do jejum da Quaresma, e Froschauer foi multado numa quantia trivial por permitir que o jejum fosse desres­ peitado em sua casa. A questão poderia ter cessado se Zuínglio não ti­ vesse publicado sete dias depois (na prensa de Froschauer) um tratado que argumentava que em lugar algum da Escritura é dito que os crentes devem se abster de carne durante a Quaresma. Um debate semelhante se desenvolveu no mesmo ano a respeito do casamento do clero. À medida que a tensão crescia em Zurique, tornava-se cada vez mais claro que era necessário algum meio de resolver tais ambigüidades. A dificuldade central era como interpretar a Escritura. Em 3 de janeiro de 1523, o conselho municipal anunciou que, como grupo responsável pelo controle da pregação pública, havia arranjado um debate público na­ quele mesmo mês para determinar se as 67 schlussreden de Zuínglio, ou “teses fundamentais”, estavam de acordo com a Escritura. Esse debate é agora conhecido como o “Primeiro Debate de Zurique”. Aparentemente modelado a partir das disputas acadêmicas, o debate ocorreu na prefei­ tura de Zurique em 29 de janeiro. Foi um triunfo pessoal para Zuínglio. Contudo, o resultado para o conselho municipal foi mais significativo, pois a partir do debate o conselho ficou responsável por determinar o que estava ou não estava de acordo com a Escritura. Para Zuínglio, a cidade e a igreja de Zurique eram efetivamente o mes­ mo grupo - um ponto de importância particular quanto à sua teologia da igreja e dos sacramentos, como veremos no próximo capítulo. O conselho municipal, portanto, tinha o direito de se envolver em questões teológicas e religiosas. A Reforma de Zurique não mais seria detida por questões quan­ to à interpretação correta da Escritura. O conselho municipal efetivamente declarava que tinha o direito de interpretar a Escritura para os cidadãos de Zurique - não o papa ou um concilio ecumênico - e dava mostras de que pretendia exercer esse direito. A Escritura realmente podia ser ambígua, mas o sucesso político da Reforma em Zurique estava praticamente garan­ tido pela decisão unilateral do conselho municipal de agir como intérprete

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dela. Decisões semelhantes em Basiléia e Berna, baseadas no modelo de Zurique, consolidaram a Reforma na Suíça. Além disso, ao possibilitar uma estabilidade política em Genebra no meio da década de 1530, isso também propiciou indiretamente o sucesso da Reforma de Calvino. É óbvio que as disputas de poder dentro do protestantismo incipiente se referiam à questão de quem tem autoridade para interpretar a Escritu­ ra. Quem era reconhecido como possuidor dessa autoridade estava de fato no controle da ideologia - e, portanto, das concepções sociais e políticas - das várias facções da Reforma. De igual modo, a autoridade secular do papa estava ligada com seu papel como intérprete autorizado da Escritura para os católicos. Essa observação nos dá algumas percepções importan­ tes a respeito das dimensões sociais e políticas da Reforma. Por exemplo, o axioma da Reforma radical - de que toda pessoa esclarecida tem total au­ toridade para interpretar sozinha a Escritura- está ligado com o comunis­ mo geralmente associado com esse movimento. Todas as pessoas devem ser consideradas iguais. Do mesmo modo, a deficiência da Reforma radi­ cal em produzir bons teólogos - um fator de certa importância em relação à degeneração prematura do movimento em caos ideológico - reflete sua relutância em permitir que qualquer indivíduo estabeleça o que os outros devam pensar ou como devam interpretar a Escritura. A Reforma magistral parece ter admitido inicialmente que cada pes­ soa tem o direito de interpretar a Escritura, mas subsequentemente hou­ ve apreensão quanto às conseqüências sociais e políticas dessa ideia. A Revolta dos Camponeses em 1525 parece ter convencido alguns, como Lutero, que crentes individuais (especialmente camponeses alemães) sim­ plesmente não eram capazes de interpretar a Escritura. É uma das ironias da Reforma Luterana que um movimento que enfatizou tanto a importân­ cia da Escritura posteriormente negasse o acesso direto a esta mesma Es­ critura aos seus membros menos instruídos, por medo que eles pudessem interpretá-la incorretamente (em outras palavras, chegar a uma interpre­ tação diferente daquela dos reformadores magistrais). Por exemplo, os regulamentos da escola do ducado de Württemberg estabeleceram que apenas os alunos mais capazes poderiam estudar o Novo Testamento em seus anos finais - e mesmo assim, apenas se o estu­ dassem em grego ou latim. Em vez disso, o restante, presumivelmente a grande maioria, devia ler o Catecismo menor de Lutero. A interpretação direta da Escritura era, desse modo, reservada efetivamente a um grupo pequeno e privilegiado de pessoas. Falando de maneira simplificada, tudo se tornou uma questão de quem considerar como intérprete da Escritura: o papa, Lutero ou Calvino. O princípio da “clareza da Escritura” parece ter sido marginalizado silenciosamente, por causa do uso da Bíblia pelos

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elementos mais radicais dentro da Reforma. Do mesmo modo, a ideia de que todos têm o direito e a habilidade de interpretar fielmente as Escritu­ ras se tornou um conceito apenas dos radicais.

A tradução da Escritura Um dos temas mais distintivos da Reforma Protestante foi sua insistên­ cia na prioridade do vernáculo. O culto e a pregação deviam ser realizados na linguagem do povo comum, não no latim da igreja e das universidades. De maneira ainda mais significativa, a Bíblia devia ser traduzida para a linguagem cotidiana, de modo que todos pudessem se beneficiar de suas riquezas espirituais e sabedoria teológica. Lutero exigia que todos os cristãos fossem capazes de ler a Bíblia sozi­ nhos. Nesse caso, o programa era tanto político quanto teológico. O aces­ so dos leigos à Bíblia tinha tanto a ver com poder quanto com incentivo à espiritualidade pessoal. A pressão para que a Bíblia fosse colocada nas mãos das pessoas comuns era uma exigência implícita para a emancipa­ ção dos leigos do domínio do clero. Aoj>er colocado num lugar seguro em Wartburg por onze semanas, Lutero percebeu que tinha tempo livre em suas mãos. Usou este tempo para traduzir o Novo Testamento para o alemão. Ele foi publicado em 1522, e causou sensação. Outros foram inspirados por essa ação e desejaram fazer o mesmo. O reformador inglês William Tyndale viajou para Wittenberg para se bene­ ficiar do exemplo pessoal de Lutero e também de sua tradução do Novo Testamento. Tyndale traduziu o Novo Testamento diretamente do grego para o inglês. A obra foi contrabandeada para a Inglaterra, onde sua che­ gada gerou consternação entre as autoridades da igreja. O bispo de Lon­ dres ordenou que todos os exemplares disponíveis fossem apreendidos e queimados. Por que essa tradução foi considerada tão perigosa? A tradução de Tyndale usou um vocabulário que ameaçava as estruturas tradicionais de autoridade dentro da igreja. Por exemplo, o Novo Testamento de Tyndale traduziu como “ancião” a palavra grega presbyteros, tradicionalmente tra­ duzida como “sacerdote”. Devia se reservar a palavra inglesa “sacerdote”, ele argumentou, para traduzir apenas o termo grego hiereus, usado no Novo Testamento exclusivamente para sacerdotes judeus ou pagãos, ou para o próprio Cristo. O termo grego ekklesia, tradicionalmente traduzido como “igreja”, foi então traduzido como “congregação”. A tradução da Bí­ blia era uma atividade potencialmente subversiva. Não é de estranhar que as autoridades da igreja inglesa desejassem assegurar que fossem permiti­ das apenas as traduções “autorizadas”.

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A reação católica: Escritura e tradição segundo Trento O Concilio de Trento reagiu vigorosamente ao que considerou como irresponsabilidade protestante nas questões de autoridade e interpreta­ ção da Escritura. A quarta sessão do Concilio, que concluiu suas delibe­ rações em 8 de abril de 1546, estabeleceu cinco desafios fundamentais à posição protestante: 1. A Escritura não pode ser considerada como a única fonte de re­ velação; a tradição é um suplemento vital que os protestantes ne­ gam irresponsavelmente. “Todas as verdades salvíficas e regras de conduta [...] estão contidas nos livros escritos e na tradição oral, recebidas da boca do próprio Cristo ou dos próprios apóstolos.” Como observamos antes, isso pode ser considerado como uma rea­ firmação da ideia de tradição como “tradição oral”, passada de uma geração a outra dentro da igreja. 2. Trento julgou que as listas protestantes de livros canônicos são de­ ficientes e publicou uma lista completa de obras que eles aceitavam como autorizadas. Ela inclui todos os livros rejeitados como apó­ crifos pelos escritores protestantes. 3. A edição da Vulgata foi declarada como confiável e autorizada. O concilio afirmou que “a Vulgata, antiga edição em latim que tem sido usada por muitos séculos, foi aprovada pela igreja e deve ser defendida como autêntica nas palestras, debates, sermões e expo­ sições públicas. Que ninguém presuma ou ouse, sob qualquer cir­ cunstância, rejeitá-la”. 4. A autoridade da igreja de interpretar a Escritura foi defendida con­ tra o que o Concilio de Trento considerou claramente como o indi­ vidualismo desenfreado dos intérpretes protestantes, deste modo: Com o fim de conter os espíritos irresponsáveis, este concilio decreta que ninguém, confiando em seu próprio julgamento, em questões de fé e moral que se relacionam à doutrina cristão (distorcendo as Sagradas Escrituras de acordo com suas próprias ideias), deve presumir interpre­ tar a Escritura de modo contrário ao sentido que a Santa Mãe Igreja, a quem ela pertence para julgar seu verdadeiro sentido e interpretação.2

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5. Nenhum católico poderia receber permissão para publicar qual­ quer obra sobre a interpretação da Escritura, a menos que fosse pri­ meiramente verificada pelos seus superiores e declarada aprovada para publicação. Em especial, foi totalmente proibido escrever, ler, circular ou possuir livros anônimos (como o influente e notavel­ mente bem-sucedido Beneficio ái Cristo, que propagou concepções reformistas no início da década de 1540): É ilegal que qualquer pessoa imprima, ou publique, qualquer livro que trate de questões de doutrina sagrada sem o nome do autor, ou no futuro vendê-los, ou até mesmo possuí-los, a não ser que primeiro eles tenham sido exami­ nados e aprovados... A aprovação de tais livros será dada por escrito, e deverá aparecer na página inicial.3

Com base nessas cinco medidas, o Concilio de Trento conseguiu res­ taurar a ordem em suas próprias fileiras. Uma vez mais, a Igreja Católica podia falar com uma voz única nas questões de doutrina e interpreta­ ção bíblica. Entretanto, o preço pago foi alto. Passaram-se séculos antes que a erudição bíblica católica se recuperasse desse revés. Uma das causas principais que contribuíram para a superioridade da erudição bíblica pro­ testante no século 19 e no início do século 20 foi que seus equivalentes católicos eram praticamente proibidos de expressar qualquer concepção sobre a Escritura, a menos que recebessem aprovação prévia das autori­ dades. Felizmente, essa situação agora melhorou, graças à sabedoria do Segundo Concilio Vaticano. Com base no material apresentado neste capítulo, fica claro que o pro­ grama da Reforma de volta às Escrituras terminou sendo consideravel­ mente mais complexo do que se pensava inicialmente. O lema scriptura sola acabou significando algo um tanto diferente do que se poderia es­ perar, e apenas a Reforma radical se conforma ao estereótipo popular da Reforma nesta questão. Agora passamos a considerar um dos debates teológicos mais impor­ tantes do período da Reforma: a controvérsia sobre como as pessoas são aceitas aos olhos de Deus, focando na doutrina da justificação pela fé.

Notas *WA 6.406-8. 2Concílio de Trento, quarta sessão, Decreto sobre as Sagradas Escrituras. 3Concílio de Trento, quarta sessão, Decreto sobre as edições e uso dos livros sagrados.

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Um tema importante do pensamento da Reforma é a doutrina da jus­ tificação pela fé, a qual desempenhou um papel especialmente importante no pensamento de Martinho Lutero. Contudo, é impossível debater essa doutrina - ou questões correlatas, como a teologia da graça, a predestina­ ção ou os sacramentos - sem alguma compreensão da complexa noção da “redenção por meio de Cristo” no pensamento cristão, e como essas ques­ tões eram debatidas no século 16. A seção seguinte apresenta este tema e indica sua importância para o pensamento da Reforma em geral.

O tema fundamental: a redenção por meio de Cristo O tema da “redenção por meio de Cristo” ressoa por todo o Novo Tes­ tamento, toda a adoração cristã e toda a teologia cristã. A ideia básica é que Deus realizou a redenção da humanidade caída por meio da morte de Cristo na cruz. Essa redenção não pode ser obtida de outro modo. O ter­ mo “soteriologia” (do termo grego sõteria, “salvação”) é usado em obras de teologia cristã para se referir à rede de ideias e imagens que se concentram na redenção alcançada por meio da morte e ressurreição de Cristo. Cinco componentes principais nessa rede de ideias podem ser discernidos: 1. Imagens de vitória. Cristo obteve vitória sobre o pecado, a morte e o mal por meio de sua cruz e ressurreição. Por meio da fé, os crentes podem compartilhar dessa vitória e a reivindicar como sua própria.

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2. Imagens de mudança de situação legal. Por meio de sua obediência na cruz, Cristo obteve perdão e absolvição para os pecadores. Os culpados podem ser purificados dos seus pecados e ser justificados aos olhos de Deus. São absolvidos da punição e recebem o status de serem justos diante de Deus. “Justificação” pertence a essa categoria de imagens. 3. Imagens de mudança de relacionamentos pessoais. O pecado huma­ no gera alienação de Deus. “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5.19), tornando possível e disponível, des­ se modo, um relacionamento renovado entre ele e a humanidade. Assim como homens alienados um do outro podem se aproximar novamente por meio de um processo de perdão e reconciliação, do mesmo modo aqueles que estão longe de Deus podem se aproximar dele por meio da morte de Cristo. 4. Imagens de libertação. Quem está aprisionado pelas forças opressi­ vas do mal, do pecado e do medo da morte pode ser libertado por meio da morte de Cristo. Assim como Cristo se livrou da prisão da morte, do mesmo modo, pela fé, os crentes podem se livrar da escravidão do pecado e viver a vida em toda a sua plenitude. “Re­ denção” pertence a essa categoria. 5. Imagens de restauração à plenitude. Quem está doente por causa do pecado pode se tornar são novamente por meio da cruz de Cristo. Por meio de sua cruz e ressurreição, Cristo pode tratar as feridas da humanidade caída e curá-las, restaurando as pessoas à integridade e à saúde espiritual. “Salvação” pertence a essa categoria de imagens. “Justificação”, portanto, é um elemento dessa rede de termos usados para descrever a experiência cristã da redenção por meio de Cristo. Ele veio a assumir uma posição de importância especial na época da Reforma parcialmente por causa do novo interesse nos escritos de Paulo, nos quais essa ideia aparece de modo proeminente (especialmente nas cartas aos romanos e aos gálatas). É preciso compreender que o substantivo “justificação” e o verbo “jus­ tificar” são usados com um significado especificamente teológico, o que é totalmente distinto do uso cotidiano do termo. No vocabulário do dia a dia, a palavra “justificação” geralmente significa “a defesa de uma ideia ou pessoa” ou “o processo de alinhamento das margens num processador de textos”. Esse significado pode ser percebido claramente nas declara­ ções seguintes:

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1. Ela se justificou pelo seu atraso para uma reunião importante. 2. O editor do jornal pediu a seus colunistas que não justificassem a margem direita do texto. Mas como esse uso cotidiano do termo nos ajuda a compreender o uso teológico dessa palavra? 3. “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1). Nesse caso, a palavra está sen­ do usada num sentido especificamente teológico, que tem pouca relação com seu uso cotidiano. Refere-se à “retificação” do relacio­ namento entre a humanidade e Deus - a “correção” de algo que foi fraturado, danificado ou distorcido. O termo “justificação” é uma tentativa de indicar a complexa ideia do Antigo Testamento de “estar correto diante de Deus”. Por meio de uma tradição complexa e contorcida de tradução e interpretação - do hebraico para o grego, do grego para o latim e, finalmente, do latim para a nossa língua- “justificação” passou a se referir ao status de ser justo aos olhos de Deus. É útil parafrasear o termo “justificação” como “estar de bem com Deus”. Do mesmo modo, “ser justificado” pode ser parafraseado como “ser colocado num relacionamento correto com Deus”. A questão de como os pecadores são justificados está no centro do programa de reforma e renovação teológica de Lutero. Então, como surgiu a ênfase de Lutero nessa doutrina? O que o levou a esse ponto? A seguir, consideraremos o que geralmente é denominado de “descoberta teológica” de Lutero.

A justificação e a descoberta teológica de Martinho Lutero Como observamos antes neste capítulo, a ideia de que seres huma­ nos, finitos e frágeis como são, possam entrar num relacionamento com o Deus vivo está no centro da fé cristã. Essa ideia é articulada em diver­ sas metáforas e imagens, tais como “salvação” e “redenção”, inicialmente nos escritos do Novo Testamento (especialmente nas cartas paulinas) e, subsequentemente, na reflexão teológica cristã baseada nesses textos. No final da Idade Média, uma imagem era considerada como especialmente significativa: a da justificação. O termo “justificação” e o verbo “justificar” passaram a significar “entrar num relacionamento correto com Deus”, ou talvez “ser tornado justo aos olhos de Deus”. A doutrina da justificação era

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considerada o modo de lidar com a questão do que um indivíduo precisa fazer para ser salvo. Como fontes contemporâneas indicam, essa pergunta passou a ser feita com frequência crescente no início do século 16. Já vimos (no capítulo 3) como o surgimento do humanismo trouxe consigo uma nova ênfase na consciência individual e uma nova percepção da individualidade humana. Na seqüência desse despontar da consciência individual veio um novo interesse pela doutrina da justificação - a ques­ tão de como os seres humanos, como indivíduos, podem entrar num rela­ cionamento com Deus. Desenvolveu-se um novo interesse pelos escritos de Paulo e de Agostinho, refletindo essa inquietação com a subjetividade individual. Esse interesse é particularmente evidente nos escritos de Petrarca (1304-1374). Porém, a esta pergunta crucial: “Que devo fazer para ser salvo?” qual era a resposta da igreja? Na verdade, havia uma confusão considerável a respeito dessa questão. Diversos fatores contribuíam para essa confusão. Primeiro, não houve qualquer pronunciamento autorizado da igreja a respeito dessa questão por mais de mil anos. Em 418, o Concilio de Car­ tago debateu a questão, e propostas mais detalhadas foram estabelecidas pelo Segundo Concilio de Orange em 529. Contudo, por motivos ainda não completamente claros, este último concilio e seus decretos eram des­ conhecidos dos teólogos da Idade Média. As decisões desse concilio pa­ recem ter sido “redescobertas” em 1546 - ocasião em que a Reforma já estava em andamento há décadas. Segundo, a doutrina da justificação parece ter sido um tópico favori­ to de debate entre os teólogos do final do período medieval, resultando na circulação de um número desproporcionalmente grande de opiniões sobre essa questão. Porém, qual dessas opiniões era correta? Qual tinha a autoridade da igreja, e quais eram apenas opiniões particulares de indi­ víduos? A relutância ou incapacidade da igreja de avaliar essas opiniões garantiu que o debate dessa complicada questão se tornasse ainda mais confuso. A pergunta central imposta à igreja pelo surgimento do huma­ nismo - “O que eu, como um indivíduo, devo fazer para ser salvo?” - não podia ser respondida com qualquer grau de certeza. O humanismo havia imposto uma pergunta à igreja, porém essa era incapaz de respondê-la, como demonstraram os acontecimentos subsequentes.

Os conceitos iniciais de Lutero sobre justificação Lutero estudou na Universidade de Erfurt (1501-1505), dominada então pela via moderna. Depois de um período no qual desempenhou diversas funções para sua Ordem, Lutero foi designado para a disciplina

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de estudos bíblicos em Wittenberg, em 1511. De acordo com as atribui­ ções de seu emprego, ele palestrou sobre diversos livros da Bíblia: Salmos (1513-15), Romanos (1515-16), Gálatas (1516-17) e Hebreus (1517-18), antes de retornar aos salmos uma segunda vez (1519-21). Dispomos do texto de todas as palestras de Lutero (em diversos formatos), o que nos permite seguir o desenvolvimento de suas ideias até o período das 95 teses (1517)eda famosa Disputa de Leipzig (1519). Nosso interesse se concentra especialmente na primeira série de pales­ tras sobre o Livro dos Salmos, conhecida universalmente como a Dictata super Psalterium. Por duas ou três horas a cada semana num período de dois anos, Lutero explicou o significado de cada salmo, tal como ele os compreendia, para um público que, segundo todos os relatos, estava ma­ ravilhado com o seu estilo. Lutero frequentemente debatia a doutrina da justificação no decurso dessas palestras, o que nos permite determinar precisamente quais eram suas concepções iniciais a respeito dessa ques­ tão. Conclui-se que, inicialmente, Lutero era um seguidor notavelmente fiel das noções da via moderna. Como observamos num capítulo anterior (seção “A via moderna” do capítulo 4), a aliança entre Deus e a humanidade estabeleceu um con­ texto em que um esforço humano relativamente pequeno resultava numa recompensa divina desproporcionalmente grande. Não obstante, um es­ forço humano definido é exigido para colocar Deus sob a obrigação de recompensar o pecador com sua graça. O argumento de Lutero é que a compreensão pactuai da justificação proposta pelos teólogos da via moderna- tal como Gabriel Biel - permite que um pequeno esforço humano de resistir ao mal e buscar o bem seja considerado suficiente para “me­ recer” (num sentido atenuado do termo) a aceitação divina e sua justi­ ficação. A justiça divina era demonstrada no fato de que Deus fielmente garantia o perdão aos que faziam quod in se est, e condenava os que não faziam assim.

A descoberta da "justiça de Deus" por Lutero No entanto, Lutero encontrava cada vez mais dificuldades sérias nes­ sa ideia da “justiça de Deus”. O que acontece quando os pecadores não conseguem satisfazer essa precondição básica? O que acontece quando os pecadores estão tão danificados pelo pecado e aprisionados nele que não conseguem cumprir a exigência feita a eles? Pelágio e Gabriel Biel, ambos operando com essa ideia da “justiça de Deus”, assumiam que os seres hu­ manos eram capazes de satisfazer essa precondição sem qualquer dificul­ dade exagerada. Lutero, no entanto, cria cada vez mais que a humanidade

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estava tão presa em sua pecaminosidade que não poderia se desenredar de sua própria situação, exceto por meio de uma intervenção especial divina. Numa passagem escrita perto do final de sua carreira, Lutero relata como tentou com todas as suas forças fazer o que era necessário para al­ cançar a salvação, mas a cada vez se convencia mais que não podia ser salvo. Se fosse possível a um monge entrar no céu por meio da disciplina monástica, Lutero observa, ele seria esse monge. Contudo, ele continuava em dúvida: “Você não fez isso da maneira correta. Você não estava con­ trito o suficiente. Você deixou de confessar aquilo”. Parecia a Lutero que ele simplesmente não conseguia satisfazer a precondição para a salvação. Ele não tinha os recursos necessários para ser salvo. Não havia modo pelo qual Deus poderia recompensá-lo justamente com a salvação - apenas com a condenação. A ideia da “justiça de Deus”, portanto, se tornou uma ameaça para Lu­ tero. Só podia significar condenação e punição. A promessa de justificação era real, mas a precondição anexada à promessa tornava impossível seu cumprimento. Era como se Deus tivesse prometido um milhão de dólares a um cego, desde que ele pudesse ver. O pessimismo crescente de Lutero quanto às habilidades da humanidade pecadora o levou a desesperar de sua própria salvação, que lhe parecia cada vez mais uma impossibilidade. “Como posso encontrar um Deus gracioso?” ele perguntava. No final de 1514, parecia que Lutero não havia encontrado uma resposta para sua própria pergunta. Esse não era um simples problema teológico de interesse puramen­ te acadêmico. A ansiedade crescente de Lutero quanto a isso demonstra uma dimensão fortemente existencial. Dizia respeito a ele, pessoalmente; não era uma simples dificuldade de um livro-texto. Para Lutero, assim como para muitos outros, a questão crucial da existência humana era a de como garantir a salvação. É compreensível que alguns leitores atuais possam achar difícil se identificar com essa preocupação. Entretanto, para adentrar na situação pessoal de Lutero e, consequentemente, apreciar a importância de sua “descoberta teológica”, é necessário compreender o quanto essa questão era crucial para ele. Era a questão central na sua agenda pessoal. Mas, então, algo aconteceu. Provavelmente nunca saberemos exata­ mente o que foi ou quando ocorreu. Não sabemos sequer onde ocorreu: muitos estudiosos se referem à descoberta por meio do termo alemão Turmerlebnis, “a experiência da torre”, por causa de uma recordação pes­ soal posterior de Lutero (um tanto confusa), que parece implicar que sua descoberta aconteceu numa torre do monastério agostiniano. Seja o que for que aconteceu, não importa onde e quando, isso mudou totalmente a

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perspectiva de Lutero a respeito da vida. No final das contas, isso o impul­ sionou para a frente de batalha da Reforma. Em 1545, um ano antes de morrer, Lutero escreveu um prefácio para o primeiro volume da edição completa dos seus escritos em latim. Ali ele descreve como chegou ao rompimento com a igreja dos seus dias. O prefácio é escrito com o claro objetivo de apresentá-lo a leitores que não sabiam como ele se tornara um defensor das concepções reformistas ra­ dicais associadas com seu nome. Nesse “fragmento autobiográfico” (como geralmente é conhecido), Lutero deseja fornecer a esses leitores informa­ ções contextuais sobre o desenvolvimento de sua vocação como um refor­ mador. Depois de lidar com alguns preliminares históricos, que conduz sua narrativa até o ano de 1519, ele passa a descrever suas dificuldades pessoais com o problema da “justiça de Deus”: Eu certamente queria entender Paulo em sua carta aos romanos. O que me impedia de fazer isso não era relutân­ cia, mas sim aquela expressão do primeiro capítulo: “a jus­ tiça de Deus se revela no evangelho” (Rm 1.17). Isso porque eu odiava esta expressão, “a justiça de Deus”, tendo aprendi­ do a entendê-la como a justiça pela qual Deus é justo e pune os pecadores injustos... Finalmente, ao meditar dia e noite na relação das pa­ lavras “a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito, o justo viverá por fé”, comecei a com­ preender essa “justiça de Deus” como aquilo pelo qual o justo vive por meio do dom de Deus (a fé). Entendi que essa sentença, “a justiça de Deus se revela”, se refere a uma justiça passiva, por meio da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: “o justo viverá por fé”. Isso imediatamente me fez me sentir como se tivera nascido novamente, e como se tivesse entrado pelos portões abertos do próprio paraíso. A partir daquele momento, passei a ver toda a Escritura sob uma nova luz... E, então, quando antes odiava a expressão “a justiça de Deus”, comecei a amá-la e a enaltecê-la como a mais doce das expressões, de modo que essa passagem de Paulo se tornou o próprio portão do paraíso para mim.1

Então, o que exatamente Lutero está descrevendo nessa famosa passa­ gem, a qual vibra com a agitação da descoberta? É óbvio que sua compre­ ensão da expressão “a justiça de Deus” mudou radicalmente. A percepção

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crucial de Lutero é que o Deus do evangelho cristão não é um juiz hostil e indiferente que recompensa os indivíduos de acordo com seus méritos, mas sim um Deus misericordioso e gracioso que concede justiça a peca­ dores como um dom. O arrependimento verdadeiro deve ser visto como o resultado da graça, não sua precondição. Então, quando essa mudança ocorreu? Embora as evidências sejam di­ fíceis de interpretar em certos pontos, parece que a mudança básica des­ crita por Lutero em 1545 ocorreu em algum momento de 1515. O Lutero que publicou as 95 teses em outubro de 1517 já possuía as percepções sobre as quais basearia seu programa de reformas. A doutrina da “justificação somente pela fé” (solafide) é central a essas percepções. É importante compreender o que significa essa expressão. Já exploramos a ideia da “justificação” acima. Mas o que significa a expressão “somente pela fé”? Qual é a natureza dessa “fé justificadora”?

A natureza da fé justificadora “A razão pela qual algumas pessoas não compreendem porque somen­ te a fé justifica é que elas não sabem o que é a fé.” Ao escrever essas pala­ vras, Lutero chama a nossa atenção para a necessidade de pesquisar mais de perto essa palavra enganosamente simples: “fé”. Podem-se distinguir três pontos relativos à ideia de Lutero sobre fé como sendo de importân­ cia especial para sua doutrina da justificação. Cada um desses pontos foi desenvolvido por escritores posteriores, tais como Calvino, indicando que Lutero fez uma contribuição fundamental ao desenvolvimento do pensa­ mento da Reforma nesse momento. Os três pontos são: 1. A fé tem uma referência pessoal, em vez de ser puramente histórica. 2. A fé se refere à confiança nas promessas de Deus. 3. A fé une o crente a Cristo. Consideraremos cada um desses pontos individualmente. Primeiro, a fé não é simplesmente um conhecimento histórico. Lutero argumenta que uma fé que se contenta em crer na confiabilidade histórica dos Evangelhos não é uma fé que justifica. Os pecadores são perfeitamente capazes de confiar nos detalhes históricos dos Evangelhos, mas esses fatos em si mesmos não são adequados para a verdadeira fé cristã. Segundo, fé é essencialmente “confiança” (fiducia). Fé se refere a estar preparado para confiar nas promessas divinas e na integridade e fidelida­ de do Deus que fez essas promessas. Contudo, essa fé não é uma atitude ocasional em relação a Deus. Para Lutero, essa é uma perspectiva de vida

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que confia de modo invariável, uma postura constante de convicção da fidedignidade das promessas divinas. Terceiro, a fé une o crente a Cristo. Lutero declara esse princípio clara­ mente em seu escrito de 1520, A liberdade de um cristão: A fé une a alma com Cristo como uma noiva é unida com

seu noivo.... Assim, segue-se que tudo que eles têm é comum aos dois, seja bom ou mau. Dessa maneira, o crente pode se gabar e se gloriar em qualquer coisa que Cristo possui, como se fosse seu; e o que quer que o crente tenha, Cristo reivin­ dica como seu. Vejamos como isso funciona e como isso nos beneficia. Cristo é cheio de graça, vida e salvação. A alma hu­ mana é cheia de pecado, morte e danação. Agora deixe a fé intervir entre eles. Pecado, morte e danação passam a ser de Cristo; e graça, vida e salvação passam a ser do crente.2

A fé, portanto, não é um assentimento a um conjunto abstrato de dou­ trinas. Antes, é um “anel de casamento” (expressão de Lutero), indicando compromisso mútuo e união entre Cristo e o crente. É a resposta da pes­ soa inteira do crente a Deus, a qual leva por sua vez à presença real e pes­ soal de Cristo no crente. A fé disponibiliza ao crente tanto Cristo quanto seus benefícios - tais como perdão, justificação e esperança. A doutrina da “justificação pela fé”, portanto, não afirma que o pecador é justificado porque crê, por causa de sua fé. Antes, envolve reconhecer que Deus fornece tudo o que é necessário para a justificação, de modo que tudo o que o pecador precisa fazer é receber. Na justificação, Deus é ativo e os seres humanos são passivos. A expressão “justificação pela graça por meio da fé” revela mais claramente o sentido da doutrina: a justificação do pecador é baseada na graça de Deus e é recebida por meio da fé. Ou talvez possamos citar o título um tanto digressivo de Henrique Bullinger, em sua obra de 1554 sobre essa questão, como uma declaração abrangente, talvez até particularmente eloqüente, das ideias de Lutero: A graça de Deus que nos justifica por causa de Cristo por meio da fé somente, sem boas obras, embora a fé por sua vez abunde em boas obras. Os críticos de Lutero sugeriram que isso parecia minimizar o papel das boas obras na vida cristã. Lutero foi estigmatizado como um “antinomiano” por alguns - em outras palavras, alguém que não dá lugar à lei (no grego, nomos) na vida religiosa. Na realidade, contudo, Lutero argumenta que as boas obras não são a causa da justificação, e sim seu resultado, um ponto captado de forma laboriosa no título do livro de Bullinger citado acima. Ou seja, Lutero trata as boas obras como o resultado natural de ter sido justificado,

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não como a causa dessa justificação. Longe de destruir a moralidade, Lutero simplesmente se vê como colocando-a no seu devido contexto. O crente realiza boas obras como um ato de gratidão a Deus por tê-lo perdoado, não como uma tentativa de fazer Deus perdoá-lo em primeiro lugar.

Conseqüências da doutrina da justificação de Lutero Então, por que essa mudança de pensamento foi tão significativa? Al­ guns podem sugerir que a questão de como os pecadores são aceitos aos olhos de Deus é algo puramente acadêmico, que poderia ser deixado para as seções apropriadas dos livros-texto teológicos. Na realidade, foi muito significativa. Agora o perdão podia ser visto como um assunto entre o indivíduo e Deus. Nem a igreja nem seus sacramentos ou sacerdotes eram necessariamente exigidos para alguém ser aceito por Deus. De fato, Lutero foi menos radical nesse ponto do que muitos imagi­ nam. Ele manteve um papel real em sua teologia para os sacerdotes, os sacramentos e a instituição da igreja. Contudo, a ênfase da sua teologia reformista caía no indivíduo. Como pode um indivíduo encontrar perdão e aceitação aos olhos de Deus? Essa ênfase levou Lutero a um conflito imediato e direto com uma característica importante da vida religiosa do período medieval posterior: a indulgência. No final da Idade Média, o pecado era considerado como uma ques­ tão visível e social, algo que precisava ser perdoado de um modo visível e social. O perdão não era uma questão particular entre a pessoa e Deus; era uma questão pública envolvendo a pessoa, a igreja e a sociedade. Em 1215, o Quarto Concilio de Latrão declarou que “todos os crentes de am­ bos os sexos que chegaram à idade adulta devem confessar fielmente seus pecados pessoalmente ao seu próprio sacerdote e buscar cumprir a peni­ tência imposta”. Tanto o sacerdote como a penitência, portanto, estavam firmemente estabelecidos como partes do processo medieval pelo qual se compreendia que Deus perdoava pecados, ou seja, por meio de represen­ tantes humanos e meios terrenos para isso designados. No entanto, a imprecisão eclesiástica sobre o papel exato tanto do pe­ nitente quanto do sacerdote na penitência levou inevitavelmente ao de­ senvolvimento de diversas tendências altamente questionáveis na crença popular. A salvação era geralmente considerada como algo que se podia alcançar ou merecer por meio de boas obras. A confusa e vaga teologia do perdão do final da era medieval fortalecia a sugestão de que era possível comprar o perdão dos pecados e obter a remissão de “penalidades purgatórias” por meio da aquisição de indulgências. Em outras palavras, podia-se reduzir ou até eliminar as penalidades eternas resultantes de ações

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pecaminosas pelo pagamento de uma quantia apropriada de dinheiro à figura eclesiástica apropriada. Desse modo, o cardeal Albrecht de Brandemburgo conseguiu acumular uma remissão de penalidades purgatórias que totalizavam 39.245.120 anos, mais ou menos alguns milênios. Se essas crenças eram contrárias ao ensino da igreja, nenhuma tenta­ tiva foi feita por essa igreja para corrigi-las e livrar seus membros desse erro. De fato, há razões para se pensar que elas eram toleradas a ponto de serem incorporadas não oficialmente nas estruturas da igreja. O poder e a renda de muitos da elite eclesiástica governante e de seus protegidos dependiam realmente da continuidade de tais práticas e crenças. O que era uma indulgência? Originalmente, uma indulgência parece ter sido uma doação em dinheiro para a caridade como uma expressão de gratidão pelo perdão. No início do século 16, no entanto, essa ideia inocente havia se transformado numa fonte importante de renda para um jpapado que enfrentava uma crise financeira e que estava preparado para ser flexível em sua teologia de modo a vencê-la. A ira de Lutero foi acesa particularmente pelas técnicas de comercialização de Johannes Tetzel. Por apenas três marcos, um pecador podia ser liberado de todas as punições que enfrentaria no purgatório; muitos achavam difícil recusar essa oferta pelo preço anunciado. Numa época que sabia como gozar dos pecados veniais, a possibilidade de fazer isso sem medo da punição divina era ex­ tremamente tentadora. Tetzel também sugeria que, por uma quantia ra­ zoável (baseada numa escala móvel conforme a riqueza do indivíduo), era possível livrar imediatamente a alma de alguém amado de seus sofri­ mentos no purgatório. Essa sugestão de Tetzel foi calculada para apelar poderosamente à culpa dos vivos em relação a seus mortos. No início do século 16, as indulgências eram a fonte principal da recei­ ta papal. Como indica o acordo trilateral um tanto sórdido entre o papa, Albrecht de Brandemburgo e a casa bancária dos Fuggers, essa receita se destinava a vários cofres. Num período em que os cargos eclesiásticos eram frequentemente comprados, e não merecidos, os compradores ge­ ralmente se sentiam justificados em buscar retorno para seus investimen­ tos. Por esse motivo, práticas como o pagamento de missas pelos mortos eram incentivadas. Como resultado, existiam diversos interesses ocultos confissão Termo que se refere empenhados em assegurar que fosse primariamente à admissão de mantida a imprecisão do início do sé­ pecado. No século 16, era tam­ culo 16 quanto à doutrina da justifica­ bém um documento declarando ção. O papel singular e indispensável os princípios de fé de uma igreja do sacerdote na confissão e perdão protestante. estava obviamente sujeito à corrupção.

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A evidência sugere que a venalidade clerical não era um problema peque­ no às vésperas da Reforma. Assim, a doutrina de justificação pela fé de Lutero, com sua doutrina associada do “sacerdócio de todos os crentes”, assumiu uma importância que transcendeu muito a esfera da teologia acadêmica. Ela derrubou as bases desses interesses velados que acabamos de mencionar. O perdão é uma questão entre o crente e Deus: ninguém mais está envolvido. Nenhum sacerdote precisa pronunciar que a pessoa foi perdoada. O crente pode ler na Escritura as promessas de perdão àqueles que confessam seus pecados, e não precisa que alguém as repita ou as ponha em prática. Nenhum paga­ mento de qualquer tipo é exigido para se receber o perdão divino. Ao publicar as 95 teses sobre as indulgências em 31 de outubro de 1517 (agora celebrado como o “Dia da Reforma” na Alemanha), a ação de Lute­ ro não foi meramente um protesto contra as reivindicações de Tetzel quan­ to às indulgências, as quais rivalizavam até com as reivindicações otimistas dos fabricantes modernos de detergentes. Nem foi apenas um pedido para que a igreja esclarecesse seu ensino sobre o perdão. De fato, marcou o sur­ gimento de uma nova teologia do perdão (ou, mais precisamente, o ressur­ gimento de uma teologia do perdão antiga e aparentemente esquecida), a qual ameaçava tirar da igreja institucional qualquer papel no perdão. Dessa maneira, ameaçava os interesses velados do papa, muitos clérigos, alguns príncipes e uma casa bancária muito importante (os Fuggers de Augsbur­ go, que substituíram os Médicis como banqueiros oficiais da igreja quando Leão X, ele mesmo um Médici, se tornou papa em 1513). A doutrina de justificação pela fé somente reafirma que o perdão divi­ no é dado, não comprado, e está disponível a todos, independentemente de seus meios financeiros ou condição social. A doutrina correlata do “sa­ cerdócio de todos os crentes” significa que o crente, com a assistência mi­ sericordiosa de Deus, pode fazer tudo o que é necessário para sua própria salvação sem ter que depender do sacerdote ou da igreja (embora Lutero cresse que tanto os ministros profissionais como a instituição da igreja tivessem um papel significativo a desempenhar na vida cristã). Não é de admirar, portanto, que as concepções de Lutero fossem consideradas com tamanha ansiedade pela elite eclesiástica governante e fossem recebidas com grande interesse por muitos leigos da época.

O conceito de "justificação forense" Uma das percepções centrais da doutrina de justificação pela fé so­ mente de Lutero é a de que o pecador individual é incapaz de autojustificar-se. É Deus quem toma a iniciativa na justificação, fornecendo todos

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os recursos necessários para justificar o pecador. Um desses recursos é a “justiça de Deus”. Em outras palavras, a justiça pela qual o pecador é justificado não é a sua própria, mas uma justiça que lhe é dada por Deus. Agostinho já havia argumentado nesse sentido antes; Lutero, contudo, dá ao argumento uma sutil alteração, que leva ao desenvolvimento do con­ ceito de “justificação forense”. O ponto em questão é um pouco difícil de explicar. Trata-se da locali­ zação da justiça justificadora. Tanto Agostinho quanto Lutero concorda­ vam que Deus dá misericordiosamente aos pecadores uma justiça que os justifica. Porém, onde essa justiça está localizada? Agostinho argumenta que ela se encontra dentro dos crentes; Lutero insiste que ela permanece fora dos crentes. Ou seja, para Agostinho a justiça em questão é interior; para Lutero, é exterior. Na concepção de Agostinho, Deus concede a justiça justificadora ao pecador de tal maneira que ela se torna parte da pessoa dele. Como resultado, embora se originando fora do pecador, essa justiça se tor­ na parte dele. Em contraposição, na concepção de Lutero, a justiça em questão permanece fora do pecador: é uma “justiça alheia” (iustitia aliena). Deus trata, ou “reconhece”, essa justiça como se fosse parte da pessoa do pecador. Em suas palestras sobre Romanos em 1515 e 1516, Lutero desenvolveu a ideia de que a “justiça alheia de Cristo” é imputada - não transmitida - ao crente pela fé, como base para justificação. Seu comentário sobre Romanos 4.7 é especialmente importante: “somos jus­ tos somente pela imputação de Deus, não de nós mesmos ou de nossas próprias obras”. Desse modo, de acordo com Lutero, os crentes são justos por causa da justiça alheia de Cristo que lhes é imputada. Ou seja, ela é considerada como se fosse deles por meio da fé. Anteriormente, observamos que um elemento essencial do conceito de fé de Lutero é que ela une o crente a Cristo. A fé justificadora, portanto, permite ao crente se conectar com a justiça de Cristo, e ser justificado com base nela. Os cristãos, portanto, são “justos pela imputação de um Deus misericordioso”. Por meio da fé, o crente é revestido com a justiça de Cristo, Lutero sugere, de maneira semelhante a como Deus cobre nossa nudez com ves­ timentas, como fala em Ezequiel 16.8. Para Lutero, fé é o relacionamen­ to correto (ou justo) com Deus. Pecado e justiça coexistem deste modo: permanecemos pecadores interiormente, mas somos justos por fora, aos olhos de Deus. Ao confessar nossos pecados pela fé, permanecemos num relacionamento correto e justo com Deus. Da nossa própria perspectiva, somos pecadores; porém, na perspectiva de Deus, somos justos. Lutero afirma, comentando Romanos 4.7:

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0 pensamento da Reforma Os santos estão sempre conscientes do seu pecado e buscam a justiça de Deus de acordo com a misericórdia di­ vina. E, por essa mesma razão, eles são considerados justos por Deus. Assim, a seus próprios olhos (e na realidade!) eles são pecadores; mas aos olhos de Deus eles são justos, por­ que Deus os reconhece assim por causa de sua confissão de pecados. Na realidade são pecadores; mas são justos pela imputação de um Deus misericordioso. Sem saber são jus­ tos, mas pecadores de maneira consciente. São pecadores de fato, mas justos na esperança.3

Lutero não está necessariamente sugerindo que essa coexistência de pe­ cado e justiça seja uma condição permanente. A vida cristã não é estática, como se - para falar de maneira imprecisa - as quantidades relativas de pe­ cado e justiça permanecessem constantes por toda sua duração. Lutero está perfeitamente consciente de que a vida cristã é dinâmica: espera-se que o crente cresça em justiça. Em vez disso, seu argumento é que a existência do pecado não nega nosso status como cristãos. Na justificação, recebemos o status da justiça enquanto trabalhamos com Deus para alcançar essa natu­ reza justa. Deus cobre o nosso pecado com a justiça de Cristo. Essa justiça é como uma cobertura protetora, sob a qual podemos bata­ lhar contra nosso pecado. Como Deus prometeu nos tornar justos um dia, eliminando de forma final o nosso pecado, há um sentido em que já somos justos aos olhos de Deus. Lutero argumenta isso da seguinte maneira: É como um homem doente, que crê no médico que pro­ mete sua total recuperação. Enquanto isso, ele obedece às ordens do médico na esperança da recuperação prometida, abstendo-se daquelas coisas que lhe foi dito para se abster, para que não atrapalhe o prometido retorno à saúde... Ora, essa pessoa doente está bem? De fato, ele está tanto doen­ te quanto bem ao mesmo tempo. Está doente na realida­ de, mas bem por causa da promessa segura do médico, em quem ele confia, e o qual o considera como já curado.4

Lutero leva essa analogia médica ainda mais longe. Depois de estabe­ lecer que a doença é análoga ao pecado e a saúde à justiça, ele conclui: “Assim [o crente] é ao mesmo tempo pecador e justo - um pecador na re­ alidade, mas justo pela segura imputação e promessa divina de que Deus continuará a libertar essa pessoa do pecado até que o tenha curado com­ pletamente. Assim, [o crente] está inteiramente saudável na esperança,

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mas na realidade é um pecador”. Essa abordagem explica a persistência do pecado nos crentes, e ao mesmo tempo dá espaço para a transformação gradual do crente e a eliminação futura desse pecado. Contudo, não é ne­ cessário ser perfeitamente justo para ser um cristão. O pecado não indica incredulidade ou uma falha da parte de Deus; antes, indica a necessidade contínua de nos entregarmos ao cuidado gentil de Deus. Desse modo, Lu­ tero afirma que o crente é “ao mesmo tempo justo e pecador” (simul iustus et peccator): justo na esperança, mas de fato pecador; justo aos olhos de Deus e por meio de sua promessa, mas um pecador na realidade. Essas ideias foram ainda mais desenvolvidas pelo seguidor de Lutero, Filipe Melanchthon, tendo resultado numa declaração explícita da dou­ trina agora geralmente denominada como “justificação forense”. Embora Agostinho tenha ensinado que o pecador é tornado justo na justificação, Melanchthon ensina que ele é considerado justo ou declarado ser justo. Para Agostinho, “a justiça justificadora” é transmitida; para Melanchthon, é imputada no sentido de ser declarada como justa. Melanchthon agora traça uma clara distinção entre o evento de ser de­ clarado justo e o processo de ser feito justo, designando o primeiro “jus­ tificação” e o segundo, “santificação” ou “regeneração”. Para Agostinho, estes eram apenas aspectos diferentes da mesma coisa. De acordo com Melanchthon, Deus pronuncia o veredito de que o pecador é justo na cor­ te celestial {in foro divino). Essa abordagem legal à justificação gerou o termo “justificação forense”, a partir do termo latino forum (“mercado” ou “tribunal”), o lugar tradicionalmente associado com a administração da justiça na Roma clássica. A importância desse desenvolvimento reside no fato de que ele mar­ cou uma ruptura total com o ensino da igreja até aquele momento. Do tempo de Agostinho em diante, a justificação sempre foi entendida como se referindo tanto ao evento de ser declarado justo como ao processo de ser tornado justo. O conceito de Melanchthon de justificação forense diverge radicalmente disso. Como isso foi assumido praticamente por todos os principais reformadores na seqüência, tornou-se uma diferença-padrão entre os protestantes e os católicos dali em diante. Além das diferenças sobre como o pecador é justificado, há agora uma discordân­ cia adicional sobre o que o termo “justificação” designa em primeiro lu­ gar. O Concilio de Trento, a reação definitiva da igreja católica ao desafio protestante, reafirmou as concepções de Agostinho a respeito da nature­ za da justificação e censurou as concepções de Melanchthon como sendo tragicamente inadequadas. Como sugerimos acima, o conceito de justificação forense repre­ senta na realidade um desenvolvimento do pensamento de Lutero. Isso

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O pensamento da Reform a

naturalmente nos leva a perguntar quais outros desenvolvimentos e diver­ gências quanto à justificação podem ser discernidos dentro da Reforma.

Divergências entre os reformadores a respeito da justificação Relatos populares da Reforma em geral criam a impressão de uma uni­ formidade monolítica dentro do movimento quanto à doutrina da justifi­ cação. Na realidade, há diferenças substanciais de essência e ênfase quanto à doutrina entre reformadores individuais. Esta seção visa a explorar algu­ mas dessas diferenças.

A justificação e a Reforma suíça Especialmente em livros didáticos introdutórios, a Reforma da Euro­ pa é geralmente retratada como um fenômeno homogêneo. Em outras palavras, é apresentada como se tivesse sido consistente em suas ideias e ênfases fundamentais. Na realidade, essa é uma concepção incorreta, e o papel desempenhado pela doutrina da justificação somente pela fé na Reforma suíça é uma ilustração particularmente importante deste ponto. No período de 1515 a 1520, como vimos, a doutrina da justificação se tornou importante no pensamento de Lutero. Além de se tornar o centro de sua teologia, também se tornou o foco de seu programa de reformas. Os escritos polêmicos de Lutero, suas inovações e reformas litúrgicas, e seus sermões do período revelam a importância prática da doutrina da justificação pela fé para seu programa de reformas. Como observamos acima, um componente essencial da doutrina de justificação pela fé de Lu­ tero se refere à sua compreensão da própria fé justificadora - uma fé que une o crente a Cristo e viabiliza a presença real e pessoal de Cristo com ele. No entanto, durante o mesmo período, o reformador suíço Ulrico Zu­ ínglio desenvolveu abordagens que refletiam os interesses das confrarias humanistas do leste da Suíça. Numa pesquisa magistral dos escritos da Reforma que se originaram nessa região da Suíça nessa época, Ernst Ziegler argumenta que, para esses escritores, o termo “Reforma” designa uma reforma de vida e moralidade. A expressão “justificação pela fé” geralmen­ te se destaca devido à sua ausência nesses escritos. O etos moralista do humanismo do leste da Suíça contrasta acentuadamente com a ênfase de Lutero no dom não merecido da graça, dado antes de qualquer ação moral humana e de maneira independente delas. Isso não significa que escritores como Vadiano ou Zuínglio defendiam uma doutrina de justificação por obras, como se a salvação se desse como resultado de feitos morais hu­ manos. Antes, esses reformadores escolheram enfatizar as conseqüências

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morais do evangelho, resultando na tendência de não valorizar tanto as questões que eram de grande importância para Lutero. Concepções semelhantes são encontradas no anabatismo. Escritores como Kaspar Schwenkfeld preferiam falar da regeneração moral dos cren­ tes. O crente deve imitar a Cristo nos níveis moral e espiritual, em vez de simplesmente confiar nas promessas divinas. Uma vez mais, encontramos uma suspeita da doutrina da justificação somente pela fé de Lutero fun­ damentada nas possíveis implicações morais dela. Para Schwenkfeld, o crente é justificado ativamente por meio de ações morais, não por meio da recepção passiva de virtudes divinas. Como vimos anteriormente, a doutrina da justificação de Lutero é di­ recionada para o crente individual, esclarecendo seu relacionamento com Deus e com a igreja, de modo que sua consciência perturbada pudesse encontrar paz. De muitas maneiras, isso ilustra a preocupação de Lutero com o indivíduo e sua consciência subjetiva, refletindo o crescimento do individualismo associado com a Renascença. Porém, o que se deduz da Reforma suíça, onde mais atenção foi dada à reforma da comunidade? Zuínglio via a Reforma como algo que afeta a igreja e a sociedade, e não simplesmente o indivíduo. De acordo com Zuínglio, essa Reforma é primariamente moral em seu caráter, afetando atitudes e ações, e não diz respeito a assegurar crenças corretas. Zuínglio estava interessado na regeneração moral e espiritual de Zurique segundo o modelo do Novo Testamento, e não com qualquer doutrina de justificação. Ele não estava interessado em como os indivíduos se encontram com um Deus miseri­ cordioso. A ênfase de Lutero na justificação pela fé estava, então, ausente em Zuínglio. De fato, as diferenças entre os dois quanto a essa doutrina se estendem a questões de essência e de ênfase. Por exemplo, Zuínglio tende a tratar Cristo como um exemplo moral externo, e não como uma presença pesso­ al dentro do crente. Mas não seria correto afirmar que no seu período ini­ cial Zuínglio ensinava a justificação por obras, ou seja, que feitos humanos têm poder aquisitivo capaz de alcançar a salvação. A ênfase nos escritos iniciais de Zuínglio é na prioridade da renovação moral humana sobre o perdão divino. Para escritores como Vadiano, o evangelho se refere pri­ mariamente à renovação e regeneração moral de indivíduos e instituições, sendo a justificação subsequente a esses processos (é interessante observar que o termo “justificação” é raramente usado por Vadiano). Durante a década de 1520, as ideias de Zuínglio sobre a justificação se tornaram mais próximas das de Lutero, talvez por causa da maior familia­ ridade de Zuínglio com os escritos dele. No entanto, o leitor ainda pode discernir uma diferença fundamental entre os dois escritores, refletindo

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abordagens diferentes da justificação. Para Lutero, a Escritura declara as promessas divinas, que dão segurança e consolo ao crente; ela está interessada primariamente em narrar e proclamar o que Deus fez em Cristo pela humanidade pecadora. Para Zuínglio, a Escritura estabelece as exigências morais que Deus faz aos crentes; ela está interessada pri­ mariamente em indicar o que a humanidade deve fazer em resposta ao exemplo dado por Cristo. Portanto, já na década de 1520, eram evidentes na Reforma concep­ ções divergentes a respeito da justificação. As concepções amplamente diferentes de Lutero e Zuínglio talvez ilustrem duas posições extremas. Tentativas de mediar entre elas naturalmente se seguiram, e nossa atenção agora se volta àquelas associadas com Bucer e Calvino.

Desenvolvimentos posteriores: a justificação segundo Bucer e Calvino As divergências entre Lutero e Zuínglio estabeleceram o cenário para uma longa discussão a respeito do entendimento correto da doutrina da justificação na continuidade da Reforma. Duas questões exigiam resolu­ ção: o papel de Cristo na justificação e o relacionamento entre o misericor­ dioso ato divino de justificação e a obediência humana à vontade divina. O próprio Lutero, principalmente por meio de exageros e confusões ocasio­ nais, gerou a impressão a muitos (tal como ao humanista Georg Spalatin, 1484-1545) de que uma vez que o pecador estivesse justificado, ele não tinha qualquer obrigação de realizar ações morais. Na realidade, a posi­ ção básica de Lutero era que as boas obras eram uma resposta totalmente apropriada para o misericordioso ato divino de justificação, mas elas não podiam - e não deviam- ser consideradas a causa dessa justificação. Toda­ via, uma parte significativa do seu público na década de 1520 entendeu que ele deduzia disso que os cristãos eram dispensados das obrigações morais. Talvez a tentativa mais significativa de reparar os erros aparentes nes­ sa abordagem seja devida ao reformador de Estraburgo, Martin Bucer. Numa série de escritos, especialmente durante a década de 1530, Bucer desenvolveu uma doutrina de dupla justificação, que lhe parecia evitar a dificuldade gerada pela ênfase unilateral de Lutero na graça divina. Bu­ cer argumentou que há dois estágios na justificação. O primeiro estágio, que ele denominou “justificação dos ímpios” (iustificatio impii), abrange o misericordioso perdão divino do pecado humano. (A teologia protestan­ te posterior se refere a esse estágio simplesmente como “justificação”.)0 segundo estágio, que ele denominou “justificação do piedoso” (iustificatio pii), consiste na resposta humana de obediência às exigências morais do

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evangelho. (A teologia protestante posterior se refere a este processo como “regeneração” ou “santificação”.) Cristo é considerado como um exemplo moral externo, misericordiosamente fornecido por Deus, ao qual os peca­ dores justificados devem imitar, com a assistência do Espírito Santo. Desse modo, uma conexão causai foi estabelecida entre a justificação e a regeneração moral. A menos que ambas ocorressem, não se podia afir­ mar que o pecador fora justificado. Visto que a “justificação do ímpio” causa a “justificação do piedoso”, segue-se que a ausência de regeneração moral num indivíduo indica que ele ainda não foi justificado. Bucer cria que assim havia protegido com êxito tanto a realidade da graça quanto a necessidade da obediência humana. Outros não tinham tanta certeza. A teoria parecia um tanto artificial, além de reduzir Cristo a um exemplo moral externo. O que tinha acontecido com a ênfase de Lutero na presen­ ça pessoal e real de Cristo no interior dos crentes? O modelo de justificação que finalmente alcançou predomínio no pe­ ríodo posterior da Reforma foi o formulado por Calvino nas décadas de 1540 e 1550. A abordagem de Calvino evita as deficiências de uma com­ preensão externa do papel de Cristo na justificação e da concepção de que a justificação causa a renovação moral. O elemento básico da sua aborda­ gem pode ser resumido da seguinte maneira. A fé une o crente a Cristo numa “união mística”. (Nesse caso, Calvino recupera a ênfase de Lutero na presença real e pessoal de Cristo no interior dos crentes, estabelecida por meio da fé.) Essa união com Cristo tem um efeito duplo, ao qual Calvino se refere como “uma dupla graça”. Primeiro, a união do crente com Cristo leva diretamente à sua justifi­ cação. Por meio de Cristo, o crente é declarado justo aos olhos de Deus. Segundo, por causa da união do crente com Cristo - e não devido à sua justificação - o crente dá início ao processo de se tornar como Cristo por meio da regeneração. Enquanto Bucer argumenta que a justificação causa a regeneração, Calvino afirma que tanto a justificação como a regeneração são resultados da união do crente com Cristo por meio da fé. Esta breve pesquisa dos entendimentos da justificação dentro da Re­ forma demonstra que o movimento estava longe de ter uniformidade quanto a essa questão. Se o espaço permitisse considerar a visão de ou­ tros reformadores - tais como Wolfgang Capito, Andreas Bodenstein von Karlstadt e João Ecolampádio- ainda outras diferenças teriam surgido. Se os reformadores estavam unidos em rejeitar a opinião de que os se­ res humanos podem alcançar sua própria salvação, essa unidade não se estendia ao modo preciso pelo qual Deus realiza essa salvação por meio de Cristo. Na primeira geração da Reforma havia uma gama de opiniões, com as de Calvino e Melanchthon gradualmente ganhando supremacia,

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por meio de um longo processo de debates dentro das igrejas reformadas e luteranas, respectivamente.

Diplomacia teológica: a "dupla justificação" Durante a década de 1530, havia considerável otimismo em alguns círculos de que se poderia chegar a um acordo entre protestantes e cató­ licos quanto à questão da justificação que os dividia. Embora o próprio Lutero tenha adotado o que pode ser denominado de modelo “curativo” ou “transformador” da justificação no final da década de 1510 (óbvia na sua analogia, emprestada de Agostinho, de um doente que está se recu­ perando), na década de 1520 cristalizou-se a noção de que a justificação é um conceito declarativo. Ser justificado é ser declarado justo aos olhos de Deus, com base na justiça externa de Cristo e não em alguma justiça interior localizada dentro da alma humana. No entanto, o catolicismo permaneceu fiel à noção de Agostinho de que a justificação é um processo essencialmente transformador, no qual o crente é “tornado justo”. Os crentes são reconhecidos como justos porque são justos - muito embora essa justiça seja entendida como um dom divi­ no, não uma realização humana. Sendo assim, seria possível transpor o abismo entre essas duas posi­ ções? Martin Bucer, amplamente considerado como um dos reformadores mais conciliadores, certamente pensava que sim. Sua própria abordagem à justificação, como já vimos acima, unifica essas duas “justiças justificadoras” e defende que ambas estão envolvidas - embora de maneiras dife­ rentes - na justificação do crente. Essa abordagem desenvolvida por Bucer é geralmente designada livremente de “dupla justificação”. Esse não é um termo útil, pois se presta a múltiplas interpretações. Na verdade, parece que Bucer queria apenas produzir uma conexão teológica segura entre a justificação totalmente gratuita dos pecadores e as obrigações morais que isso acarreta subsequentemente para eles. No entanto, a muitos parecia que sua abordagem continha a chave para resolver as tensões crescentes entre teólogos protestantes e católicos sobre a questão de como os peca­ dores são aceitos por Deus. Teologicamente, a questão real era a seguinte: é possível manter a gra­ tuidade da justificação, independentemente da localização da justiça jus­ tificadora? Calvino, por exemplo, defendia que qualquer noção de justiça dentro da humanidade eqüivale ao pelagianismo, ou seja, uma doutrina de justificação pelas obras. Seus oponentes católicos argumentavam que Agostinho defendeu com êxito a gratuidade da justificação contra Pelágio, sem depender de uma noção de justiça justificadora “externa”.

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Na década de 1530, vários escritores - incluindo o católico holandês Albert Pighius (1490-1542) e o católico alemão Johann Gropper (15031559) - argumentaram que é possível proteger os interesses de protes­ tantes e católicos ao se desenvolver uma doutrina de justificação baseada numa “dupla justiça” - a justiça que Deus imputa ao crente, e a justiça no interior do crente que resulta da regeneração e renovação. Embora a ex­ pressão “dupla justificação” seja usada frequentemente para a posição de Gropper e Pighuis, isso não é correto. Não se defende uma “causa formal dupla da justificação”, há apenas o reconhecimento de que ambas as no­ ções de justiça estão envolvidas na justificação. O Colóquio de Regensburg (1541), que reuniu representantes católicos e protestantes, incluiu um artigo que tentou transpor o abismo entre as duas posições confessionais, admitindo que há uma justiça externa im­ putada e uma justiça inerente transmitida envolvidas na justificação hu­ mana. No entanto, essa abordagem da justificação não obteve apoio de nenhum dos lados. No final, o Concilio de Trento formulou sua própria abordagem da doutrina da justificação, sem sancionar a abordagem reco­ mendada em Regensburg.

A reação católica: a justificação segundo Trento É óbvio que a igreja católica precisava produzir uma resposta oficial e definitiva a Lutero. Por volta de 1540, Lutero tinha se tornado um nome famoso por toda a Europa. Seus escritos eram lidos e digeridos com graus variados de entusiasmo, mesmo nos mais altos círculos eclesiásticos da Itália. Algo precisava ser feito. O Concilio de Trento - assim intitulado de­ vido à cidade do norte da Itália em que se reuniu (“Trentino” em italiano) - foi convocado em 1545 e começou um longo processo de formular uma resposta abrangente a Lutero. A doutrina da justificação era uma priori­ dade alta em sua agenda. Deve se levar em conta que, na década de 1540, havia discordâncias significativas dentro do catolicismo quanto à doutrina da justificação. Os estudiosos geralmente concordam que é possível discernir duas posições principais entre os que se reuniram em Trento para debater a questão. Os dominicanos e os franciscanos tinham abordagens relativamente bem de­ senvolvidas à questão, sendo que os franciscanos colocavam maior ênfase nas contribuições positivas que os seres humanos podem dar quanto à sua própria justificação. Contudo, talvez o desenvolvimento mais significativo tenha sido o abandono da linguagem dos escritores do período medie­ val inicial quanto à justificação (por exemplo, suas referências a “hábitos

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criados da graça”). Trento tendia a usar uma linguagem predominante­ mente bíblica e agostiniana ao estabelecer suas ideias. A sexta sessão do Concilio de Trento se encerrou em 13 de janeiro de 1547. O Decreto Tridentino sobre a Justificação, como ficou conhecido o produto substancial dessa sessão, representa provavelmente a realização mais significativa desse concilio. Seus dezesseis capítulos estabelecem o ensino católico sobre justificação com considerável grau de clareza. Uma série de 33 cânones condena opiniões específicas atribuídas a oponentes da igreja católica, incluindo Lutero. É interessante observar que o concilio parecia alheio à ameaça apresentada por Calvino, dirigindo a maior parte de suas críticas contra as concepções que eram conhecidas como defendi­ das pelo próprio Lutero. A crítica de Trento à doutrina de justificação de Lutero pode ser subdi­ vidida em quatro seções principais: 1. A natureza da justificação 2. A natureza da justiça justificadora 3. A natureza da fé justificadora 4. A certeza da salvação Consideraremos cada uma dessas questões individualmente.

A natureza da justificação Na sua fase inicial, por volta dos anos de 1515 a 1519, Lutero tendia a compreender a justificação como um processo de transformação, no qual o pecador é gradualmente conformado à semelhança de Jesus Cristo por meio de um processo de renovação interior. Sua analogia de um doente sob o competente cuidado médico aponta para essa compreensão da justi­ ficação, assim como sua famosa declaração nas palestras de 1515-16 sobre Romanos: 'fieri est iustificatio, “justificação diz respeito à transformação”. Nos seus escritos posteriores, porém, datados após a metade da década de 1530, talvez sob a influência da abordagem mais forense de Melanchthon à justificação (veja à seção “O conceito de ‘justificação forense’” acima), Lutero tende a tratar a justificação como uma questão de ser declarado justo, não como um processo de se tornar justo. Cada vez mais ele pas­ sou a entender a justificação como um evento, que é complementado pelo processo distinto da regeneração e renovação interior por meio da ação do Espírito Santo. A justificação altera a situação exterior do pecador aos olhos de Deus (coram Deo), enquanto a regeneração altera a natureza in­ terior do pecador.

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Trento se opôs com veemência a essa concepção e defendeu vigorosa­ mente a ideia - originalmente associada com Agostinho - de que a justi­ ficação é o processo de regeneração e renovação no interior da natureza humana, o qual realiza uma mudança tanto na situação exterior quanto na natureza interior do pecador. O capítulo 4 fornece a seguinte definição precisa de justificação: A justificação do pecador pode ser definida brevemente como uma translação do estado em que um ser humano nasce como filho do primeiro Adão para o estado de graça e de adoção como filho de Deus por meio do segundo Adão, Jesus Cristo nosso Salvador. De acordo com o evangelho, essa translação não pode ocorrer a não ser pela limpeza da regeneração, ou um desejo por ela, como está escrito: “quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3.5).5

Portanto, a justificação inclui a ideia da regeneração. Essa breve decla­ ração foi ampliada no capítulo 7, que enfatizava que a justificação “não é apenas uma remissão de pecados, mas também a santificação e a re­ novação da pessoa interior por meio da recepção voluntária da graça e dos dons pelos quais uma pessoa injusta se torna uma pessoa justa”. Esse argumento recebeu ênfase adicional por meio do cânon 11, que condena quem ensina que a justificação ocorre “ou pela imputação única da justiça de Cristo ou pela remissão única de pecados, excluindo a graça e a carida­ de... ou que a graça pela qual somos justificados é apenas a benevolência de Deus”. Trento insiste que a justificação está estreitamente ligada com os sacra­ mentos do batismo e da penitência. O pecador é justificado inicialmente por meio do batismo; entretanto, por causa do pecado, essa justificação pode ser perdida. Pode ser renovada, contudo, pela penitência, como dei­ xa claro o capítulo 14: Aqueles que, por causa do pecado, perderam a graça recebida da justificação podem ser novamente justifica­ dos quando, movidos por Deus, se empenham em obter por meio do sacramento da penitência a recuperação, pe­ los méritos de Cristo, da graça que foi perdida. Ora, esse modo de justificação é uma restauração àqueles que caíram em pecado. Os santos pais apropriadamente denominaram isso de uma “segunda tábua depois do naufrágio da graça

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0 pensamento da Reforma perdida”. Isso porque Cristo Jesus instituiu o sacramento da penitência, a favor daqueles que caem em pecado após o batismo... O arrependimento de um cristão depois de ter caído em pecado é, pois, muito diferente daquele do mo­ mento do batismo.6

Em suma, portanto, Trento manteve a tradição medieval, que vem des­ de Agostinho, que vê a justificação como sendo tanto um evento quanto um processo: o evento de ser declarado justo por meio da obra de Cristo e o processo de ser feito justo por meio da obra interior do Espírito Santo. Reformadores como Melanchthon e Calvino fazem distinção entre essas duas áreas. Consideram o termo “justificação” como referente apenas ao evento de ser declarado justo; o processo concomitante de renovação in­ terior, que denominam “santificação” ou “regeneração” eles entendiam como teologicamente distinto. Desse modo, surgiu uma séria confusão: católicos e protestantes usam a mesma palavra “justificação” para significar coisas bem diferentes. Tren­ to a usa para se referir ao que, de acordo com os protestantes, é tanto justificação quanto santificação.

A natureza da justiça justifkadora Lutero enfatiza que os pecadores não possuem qualquer justiça em si mesmos. Não têm nada dentro deles que possa ser considerado como base para a misericordiosa decisão divina de justificá-los. A doutrina de Lutero da “justiça alheia de Cristo” (iustitia Christi aliena) deixa claro que a justiça que justifica os pecadores vem de fora deles. Foi imputada, não transmitida; é exterior, não interior. Os primeiros críticos da Reforma argumentavam, seguindo Agosti­ nho, que os pecadores são justificados com base numa justiça interior, misericordiosamente infundida ou implantada por Deus dentro de suas pessoas. Essa justiça é dada como um ato de graça; não é algo merecido. Porém, argumentavam, devia haver algo dentro dos indivíduos que per­ mitisse a Deus justificá-los. Lutero repudiava essa ideia. Se Deus decide justificar alguém, ele pode fazê-lo diretamente em vez de fazer por meio de um dom intermediário de justiça. Em marcante contraste, Trento defende com veemência a ideia agostiniana de justificação com base numa justiça interior. O capítulo 7 deixa este ponto bem claro: A única causa formal (da justificação) é a justiça de Deus - não a justiça pela qual Deus é justo, mas a justiça

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pela qual Deus nos torna justos, de modo que, ao sermos providos com ela, somos “renovados no espírito do nosso entendimento” (ver Ef 4.23). Não somos apenas considera­ dos como justos, mas somos chamados de justos e, na reali­ dade, somos justos.... Ninguém pode ser justo se Deus não lhe comunicar os méritos da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, e isso acontece na justificação do pecador.7

É preciso esclarecer a expressão técnica “única causa formal”. Uma causa “formal” é a causa direta, ou mais imediata, de algo. Trento afirmou, portanto, que a causa direta da justificação é a justiça que Deus misericor­ diosamente nos transmite, em oposição a causas mais distantes da justi­ ficação, tais como a “causa eficiente” (Deus) ou a “causa meritória” (Jesus Cristo). Mas o uso da palavra “única” também deve ser observado. Uma proposta para alcançar um acordo entre católicos e protestantes, a qual ganhou proeminência especial no Colóquio de Regensburg (também conhecido como Ratisbona) em 1541, foi que deviam ser reconhecidas duas causas de justificação: uma justiça exterior (a posição protestante) e uma interior (a posição católica). Esse meio-termo parecia ter algum potencial. No entanto, Trento não tinha tempo para ele. O uso da palavra “única” foi deliberado, com o objetivo de eliminar a ideia de que podia haver mais de uma causa como essa. A única causa direta da justificação é o dom interior da justiça.

A natureza da fé justificadora A doutrina de justificação somente pela fé de Lutero recebeu críticas severas. O cânon 12 condenou um aspecto central da concepção de Lutero quanto à fé justificadora ao rejeitar a ideia de que a “fé justificadora nada mais é que a confiança na misericórdia de Deus, que perdoa o pecado por causa de Cristo”. Em parte, essa rejeição da doutrina de justificação de Lutero reflete a ambigüidade, observada logo acima, a respeito do sentido do termo “justificação”. A preocupação de Trento era que alguém pudesse crer que podia ser justificado - no sentido tridentino do termo - pela fé, sem qualquer necessidade de obediência ou renovação espiritual. Ao interpretar “justificação” como tanto o início da vida cristã quanto sua continuação e crescimento, Trento cria que Lutero estava sugerindo que a base de toda a vida cristã fosse a simples confiança em Deus (sem qualquer exigência de que o pecador fosse transformado e renovado por Deus). Na realidade, Lutero nunca sugeriu algo assim. Ele estava afirmando que a vida cristã começa pela fé, e pela fé somente; as boas obras seguem

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a justificação, mas não são a causa dessa justificação em primeiro lugar. Trento também estava perfeitamente pronto para admitir que a vida cristã começa pela fé, desse modo chegando bem perto da posição de Lutero. Como declara o capítulo 8 do Decreto sobre a Justificação: “Afirma-se que somos justificados pela fé, porque a fé é o início da salvação humana, a fundação e a raiz de toda justificação, sem a qual é impossível agradar a Deus”. Esse é talvez um caso clássico de um mal-entendido teológico deri­ vado do sentido polêmico de um termo teológico importante.

A certeza da salvação Para Lutero, assim como para os reformadores em geral, é possível ter certeza da salvação. A salvação se fundamenta na fidelidade de Deus às suas promessas de misericórdia; deixar de ter certeza da salvação seria, de fato, duvidar da confiabilidade e fidedignidade de Deus. Todavia, isso não deve ser visto como confiança suprema em Deus, nunca perturbada por dúvidas. Fé não é o mesmo que certeza; embora a base teológica da fé cristã seja segura, a percepção humana e seu compromisso com essa base podem oscilar. Esse argumento é ressaltado claramente por Calvino, em geral conce­ bido como o reformador mais confiante em questões de fé. Sua definição de fé certamente aponta nesta direção: Portanto, podemos obter uma definição perfeita de fé, se dissermos que ela é o firme e seguro conhecimento da divina benevolência para conosco, fundado sobre a vera­ cidade da promessa graciosa feita em Cristo, e que é tanto revelado à nossa mente, quanto selado no nosso coração pelo Espírito Santo.8

No entanto, a certeza teológica dessa declaração, de acordo com Calvi­ no, não leva necessariamente à segurança psicológica. Ela é perfeitamente consistente com a luta contínua do crente com suas dúvidas e ansiedades: Quando enfatizamos que a fé deve ser certa e segura, não temos em mente uma certeza sem dúvida, ou uma se­ gurança sem qualquer ansiedade. Antes, afirmamos que os crentes têm uma luta perpétua com sua falta de fé, e estão longe de possuírem uma paz de consciência que nunca é interrompida por qualquer perturbação. Por outro lado, queremos negar que eles poderão cair, ou se afastar daque­ la confiança na misericórdia divina, não importa o quanto possam estar perturbados.9

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O Concilio de Trento considerou a doutrina de certeza da salvação dos reformadores com considerável ceticismo. O capítulo 9 do Decreto sobre a justificação, intitulado “Contra a vã confiança dos heréticos”, critica a “confiança ímpia” dos reformadores. Conquanto ninguém deva duvidar da bondade e generosidade de Deus, os reformadores erram seriamente ao ensinar que “ninguém é absolvido de pecados e justificado a menos que creia com certeza que é absolvido e justificado, e essa absolvição e justifi­ cação são efetuadas apenas por essa fé”. Trento insistiu que “ninguém pode saber, com convicção de fé não sujeita a erros, se obteve a graça de Deus”. O argumento de Trento é que os reformadores parecem tomar a con­ fiança humana como base para a justificação, de modo que a justificação passa a depender de uma convicção humana falível, e não da graça de Deus. Entretanto, os reformadores entendiam estar enfatizando que a jus­ tificação depende das promessas de Deus; deixar de crer sem temor nessas promessas é equivalente a duvidar da confiabilidade de Deus. Neste capítulo, consideramos a importância da doutrina da justifica­ ção para a Reforma. Contudo, embora essa doutrina fosse importante para o desenvolvimento do movimento reformista, pode-se argumentar que uma doutrina correlata teve importância ainda maior nas fases pos­ teriores do movimento. Se a doutrina da justificação conquistou a imagi­ nação da primeira onda da Reforma, a segunda onda foi forçada a refletir cuidadosamente sobre as conseqüências disso para a natureza da igreja. Investigaremos esse desenvolvimento no próximo capítulo, ao considerar­ mos as teologias da igreja associadas com o século 16.

Notas lWA 54.185-86. Para o texto latino completo e uma tradução para o inglês, veja McGRATH, Luthers theology ofthe cross, p. 128-31. Nessa “cita­ ção” do texto, parafraseei um pouco Lutero e omiti algumas de suas expressões mais técnicas para alcançar maior clareza. 2WA 7.25-6. 3WA 56.269 4WA 56.272. 5Concílio de Trento, sexta sessão, Decreto sobre Justificação, capítulo 4. 6Concílio de Trento, sexta sessão, Decreto sobre Justificação, capítulo 14. 7Concílio de Trento, sexta sessão, Decreto sobre Justificação, capítulo 7. 8João Calvino, Institutas da religião cristã, III.ii.7. 9João Calvino, Institutas da religião crista, III,ii,17.

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A igreja medieval na Europa ocidental fornecia um relato fortemente institucionalizado de como acontecia a salvação. Não há salvação fora da instituição da igreja; é pelo fato de ser membro da comunidade sacra e pela observação de seus ritos que a pessoa assegura a sua salvação. A con­ tinuidade com os apóstolos é garantida pela continuidade institucional histórica, transmitida pela imposição de mãos, passada de uma geração de sucessores dos apóstolos para a próxima. Essa visão fortemente ins­ titucionalizada da igreja era frequentemente defendida citando-se uma máxima de Cipriano de Cartago, mártir do século 3o: “fora da igreja não há salvação”. Se você quisesse ser salvo, deveria pertencer à igreja católica. A separação forçada desse corpo por parte das incipientes igrejas pro­ testantes, que teve início na década de 1520, estava, portanto, repleta de perigos teológicos. Essas comunidades separadas eram realmente igrejas cristãs? Elas podiam realmente oferecer a mesma certeza de salvação e segurança espiritual que a igreja católica? Essas não são perguntas aca­ dêmicas, mas sim questões de suprema importância. A salvação era um assunto sério no século 16. A resposta protestante a essas perguntas, as quais eram completamente apropriadas, foi a de fornecer uma nova concepção do que significa ser uma “igreja cristã”. Essa nova concepção eliminava qualquer necessida­ de de continuidade institucional com a igreja medieval. Embora indícios de continuidade histórica com a igreja apostólica fossem bem-vindos, o mais importante era a continuidade com o ensino apostólico. Contudo, essa ênfase na continuidade teológica, e não na institucional, com a igreja apostólica, gerou algumas dificuldades importantes, uma das quais se re­ fere a como a Reforma se relacionava com as ideias do teólogo principal da igreja ocidental, Agostinho de Hipona (354-430).

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O teólogo de Princeton, Benjamin B. Warfield (1851-1921), não tinha dúvidas sobre as tensões teológicas que surgiram a partir da redescoberta da doutrina da graça de Agostinho por escritores como Lutero no início do século 16. “A Reforma”, ele declarou, foi “o triunfo final da doutrina da gra­ ça de Agostinho sobre a doutrina da igreja de Agostinho.’nO comentário de Warfield demonstra uma percepção histórica e teológica considerável. Seu argumento básico é que a situação eclesiástica daquela época tornava impossível defender ambas as doutrinas de Agostinho - a da graça e a da igreja - em sua totalidade. Algo precisava ceder, ou ser modificado. Já vimos como ambas as alas da Reforma magistral reivindicavam as percepções de Agostinho de Hipona quanto à graça. Tanto a doutrina da justificação somente pela fé de Lutero quanto a ênfase colocada por Zuín­ glio e Calvino na predestinação divina representam modos levemente difeescritos antipelagianos Defesa rentes de interpretar os escritos antide Agostinho de suas conceppelagianos de Agostinho. Como ções a respeito da graça e da vimos, a Reforma surgiu num contexjustificação, to intelectual que colocou nova ênfase sobre a importância desse grande escritor cristão do final do século 4o e início do século 5o, o que se refletiu na publicação das obras de Agostinho em 1506, numa edição de Amerbach. De muitos modos, as concepções dos reformadores a respeito da igreja representavam seu calcanhar de Aquiles. Os reformadores foram confron­ tados com duas consistentes concepções rivais de igreja e não consegui­ ram fazer frente à lógica delas: a dos oponentes católicos e a dos radicais. Para os primeiros, a igreja é uma instituição histórica, visível, que possui continuidade histórica com a igreja apostólica; para os últimos, a igreja verdadeira está no céu e nenhuma instituição de qualquer tipo na terra merece o nome de “igreja de Deus”. Os reformadores magistrais tentaram reivindicar um meio-termo entre essas duas concepções rivais, mas isso resultou em se acharem envolvidos em sérias inconsistências. Os reformadores estavam convencidos de que a igreja de sua época tinha se esquecido da doutrina da graça, que Lutero considerava o centro do evangelho cristão. Assim, Lutero declarou que sua doutrina de justifi­ cação somente pela fé era o articulus stantis et cadentes ecclesiae, “o artigo pelo qual a igreja permanece em pé ou cai”. Convencido de que a igreja católica tinha se esquecido dessa doutrina, ele conclui (com alguma relu­ tância, aparentemente) que ela havia perdido o direito de ser considerada como a igreja cristã autêntica. A igreja católica reagiu a essa sugestão com certo grau de escárnio: Lutero estava simplesmente criando uma facção separada que não tinha

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mais conexão com a igreja. Em outras palavras, era um cismático - e o próprio Agostinho não havia condenado o cisma? Ele não havia colocado enorme ênfase na unidade da igreja, cisma Um rompimento delibera- que agora Lutero ameaçava abalar? do da unidade da igreja. Parecia que Lutero só poderia defen­ der a doutrina da graça de Agostinho rejeitando a doutrina da igreja de Agostinho. É no contexto dessa tensão entre dois aspectos do pensamento de Agostinho, que se demonstravam incompatíveis no século 16, que devemos investigar os entendimentos da Reforma a respeito da natureza da igreja. Os debates da Reforma a respeito da natureza da igreja nos permitem apreciar as principais diferenças que existiam dentro da própria Reforma, assim como entre a Reforma e seus oponentes católicos. Embora tanto a Reforma magistral quanto a radical rejeitassem a definição institucional de igreja oferecida pelo catolicismo, a Reforma magistral defendia uma definição mais “institucional” de igreja contra seus oponentes radicais. Num capítulo anterior, exploramos as diferenças entre a Reforma radical, a magistral e o catolicismo quanto ao papel da tradição. Podem-se obser­ var diferenças correlatas quanto à doutrina da igreja.

O contexto dos debates da Reforma: a controvérsia donatista Devemos começar nossa investigação retornando à questão do legado de Agostinho. Pelo menos parcialmente, a Reforma pode ser considerada como um endosso da teologia da graça de Agostinho. Mas quais eram as concepções de Agostinho a respeito da igreja - concepções com as quais os reformadores supostamente entraram em conflito? Para compreender as complexidades dos debates do século 16, precisamos examinar a con­ trovérsia donatista, na qual questões muito semelhantes haviam sido de­ batidas mil anos antes da Reforma. Há notáveis paralelos entre os debates da Reforma quanto à identidade e função da igreja e aqueles associados com a controvérsia donatista. A “controvérsia donatista” se originou na África do Norte no século 3o. Em parte, a controvérsia reflete tensões entre os cristãos nativos da África do Norte (os berberes) e os colonos romanos que se estabeleceram na re­ gião. A questão real, entretanto, era a situação dos crentes e congregações que tinham caído sob a ameaça da perseguição. Sob o imperador romano Diocleciano (284-313), a igreja cristã foi submetida a vários graus de perseguição. O início das perseguições foi em 303; elas finalmente terminaram com a conversão de Constantino e

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a proclamação do Edito de Milão em 313. Um edito de fevereiro de 303 ordenava que livros cristãos fossem queimados e as igrejas, demolidas. Os líderes cristãos que entregaram seus livros para serem queimados ficaram conhecidos como traditores- “os que cederam”. A palavra atual “traidor” deriva da mesma raiz. Um desses traditores foi Felix de Aptunga, que mais tarde consagrou Ceciliano como bispo de Cartago em 311. Muitos cristãos locais ficaram indignados pelo fato de que uma pessoa desse tipo se envolvesse nessa consagração. Como conseqüência, declara­ ram que não podiam aceitar a autoridade de Ceciliano. A hierarquia da igreja católica ficou manchada em decorrência desses acontecimentos. A igreja devia ser pura e não podia permitir a inclusão de tais pessoas. Quando Agostinho retornou da Itália para a África em 388, uma facção separatista tinha se estabelecido como o principal corpo cristão da região, com um forte apoio da população local africana. O debate teológico foi obscurecido por questões sociológicas. Os donatistas (denominados assim devido a Donato, líder da igreja separatista africana) tinham o apoio da população nativa, enquanto os católicos tinham o apoio dos colonos romanos. As questões teológicas envolvidas são de importância considerável e estavam diretamente relacionadas com séria tensão na teologia de uma figura principal da igreja africana do século 3o: Cipriano de Cartago. Na sua obra Unidade da igreja católica (251), Cipriano defende duas crenças principais correlatas. Primeiro, o cisma é total e absolutamente injustifi­ cado. A unidade da igreja não pode ser quebrada, sob nenhum pretex­ to. Pisar fora dos limites da igreja é abandonar qualquer possibilidade de salvação. Segundo, segue-se consequentemente que bispos cismáticos ou que se desviaram ficam despojados de toda habilidade para administrar os sacramentos ou para agir como ministros da igreja cristã. Ao terem se colocado fora da esfera da igreja, haviam perdido seus dons espirituais e autoridade. Portanto, não deviam ter permissão para ordenar sacerdotes ou bispos. Quem fosse ordenado por eles deveria ser considerado como ordenado de modo inválido; quem fosse batizado por eles deveria ser con­ siderado como batizado de modo inválido. Porém, o que acontece se um bispo cede sob perseguição, mas subse­ quentemente se arrepende? A teoria de Cipriano é profundamente ambí­ gua nesse ponto importante e está sujeita a duas linhas bem diferentes de interpretação: 1. Ao se desviar, o bispo cometeu o pecado da apostasia (literalmen­ te, “desligamento”). Consequentemente, ele se colocou fora dos limites da igreja e não pode mais administrar os sacramentos de maneira válida.

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2. Pelo seu arrependimento, o bispo foi restaurado à graça, e é capaz de continuar a administrar os sacramentos de maneira válida. Os donatistas defendiam a primeira posição, enquanto os católicos (como seus oponentes se tornaram universalmente conhecidos) defen­ diam a segunda. Os donatistas criam que todo o sistema sacramental da igreja católica havia se tornado corrupto. Era necessário, portanto, substituir os traditores por pessoas que tivessem permanecido firmes em sua fé sob perse­ guição. Também era necessário rebatizar e reordenar todos que tivessem sido batizados e ordenados por traáitores. Inevitavelmente, isso resultou na formação de uma facção separada. Quando Agostinho retornou para a África, a facção separatista já era maior do que a igreja da qual se separara. No entanto, Cipriano havia proibido completamente cismas de qual­ quer tipo. Um dos grandes paradoxos do cisma donatista é que ele resulta de princípios devidos a Cipriano, porém contradiz esses mesmos princí­ pios. Como resultado, tanto os donatistas quanto os católicos apelavam a Cipriano como autoridade, mas a aspectos bem diferentes do seu ensino. Os donatistas salientavam o caráter ultrajante da apostasia; os católicos enfatizavam por sua vez a impossibilidade do cisma. Chegou-se a um im­ passe, pelo menos até a chegada de Agostinho e ele se tornar bispo de Hipona na região. Agostinho conseguiu resolver as tensões dentro do legado de Cipriano, apresentando uma concepção “agostiniana” da igreja, a qual permaneceu consideravelmente influente desde aquela época. Primeiro, Agostinho enfatiza a pecaminosidade dos cristãos. A igreja não foi chamada a ser uma sociedade de santos, mas um “corpo misto” (.corpus permixtum) de santos e pecadores. Agostinho encontrou essa imagem em duas parábolas bíblicas: a da rede que pega muitos peixes e a do trigo e do joio. É esta última parábola (Mt 13.24-31) que tem impor­ tância especial e exige maior análise. A parábola narra que um fazendeiro semeou sementes, mas descobriu que a lavoura resultante incluía tanto trigo quanto joio - grãos e ervas daninhas. O que se poderia fazer quanto a isso? Tentar separar o trigo e o joio enquanto ainda estavam crescendo poderia ser desastroso, pela pos­ sibilidade de danificar o trigo ao tentar eliminar as ervas daninhas. Porém, na colheita, todas as plantas - trigo e joio - são cortadas e separadas sem perigo de danificar o trigo. A separação dos bons e maus, portanto, ocor­ rerá no final dos tempos, não na História. Para Agostinho, essa parábola se refere à igreja no mundo. A expectati­ va da igreja deve ser a de encontrar em seu meio tanto santos quanto peca­ dores. Tentar fazer uma separação neste mundo é prematuro e impróprio.

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Essa separação ocorrerá no tempo apropriado de Deus, no final da His­ tória. Nenhum ser humano pode fazer esse julgamento ou separação no lugar de Deus. Sendo assim, em que sentido a igreja é santa? Para Agos­ tinho, a santidade em questão não é a de seus membros, mas a de Cristo. A igreja não pode ser uma congregação de santos neste mundo, pois seus membros estão contaminados com o pecado original. Contudo, a igreja é santificada e tornada santa por Cristo - uma santidade que será aperfei­ çoada e finalmente cumprida no Juízo Final. Além dessa análise teológica, Agostinho fez a observação prática de que os donatistas não conseguiam viver de acordo com seus próprios elevados padrões de moral. Agostinho sugere que os donatistas eram tão capazes quanto os católicos de ficarem bêbados ou baterem em outras pessoas. Segundo, Agostinho argumenta que tanto cisma quanto traditio (a en­ trega de livros cristãos, ou qualquer tipo de deslize da fé) são realmente pecaminosos, mas que, para Cipriano, o cisma é de longe o pecado mais sério. Assim, os donatistas são culpados de uma séria deturpação do ensi­ no do grande bispo e mártir da África do Norte. Com base nessas considerações, Agostinho argumentou que o donatismo era fatalmente defeituoso. A igreja é um corpo misto e foi chamada a ser assim. O pecado é um aspecto inevitável da vida da igreja na era atual, porém não deve ser ocasião nem justificação para cismas. Todavia, o exato cisma que Agostinho tanto temia e detestava ocorreria finalmente no século 16, com a formação das igrejas protestantes separadas na Euro­ pa ocidental como conseqüência da Reforma. São esses acontecimentos principais que passaremos agora a considerar.

O contexto das visões a respeito da igreja da Reforma No seu tempo como reformador acadêmico, Lutero tinha uma aversão profunda por cismas. Nem mesmo a disputa quanto às 95 teses sobre as indulgências em 31 de outubro de 1517 persuadiu Lutero a se separar da igreja. No século 20, estamos acostumados com o fenômeno do “denominacionalismo”, mas a mera ideia de a igreja ocidental se dividir em partes menores era algo totalmente alheio ao pensamento do período medieval. Resumindo grosseiramente, um cisma era algo impensável. Como o pró­ prio Lutero escreveu no início de 1519: “Se, infelizmente, há coisas em Roma que não podem ser melhoradas, não há - e nem pode haver - qual­ quer motivo para alguém se separar da igreja num cisma. Pelo contrário, mesmo que as coisas fiquem ainda piores, mais se deve ajudá-la e ficar ao lado dela, pois nada pode ser resolvido pelo cisma ou pelo desprezo”. As

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concepções de Lutero aqui são paralelas às de outros grupos reformistas por toda a Europa: a igreja deve ser reformada a partir de dentro. A suposição de que a alienação crescente entre a Reforma de Wittenberg e a igreja católica era apenas temporária parece fundamentar boa parte do pensamento dos escritores luteranos no período de 1520 a 1541. Parece que a facção evangélica em Wittenberg acreditava que a igreja ca­ tólica iria realmente se reformar, talvez por meio da convocação de um concilio reformista, em questão de anos, permitindo desse modo que os luteranos voltassem a se unir a uma igreja renovada e reformada. Por isso, a Confissão de Augsburgo (1530), ao estabelecer as linhas principais da crença luterana, é de fato notavelmente conciliatória quanto ao cato­ licismo. Tais esperanças de reconciliação, contudo, foram frustradas na década de 1540. Em 1541, o Colóquio de Regensburg parecia oferecer a esperança de uma reconciliação, ao reunir um grupo de teólogos protes­ tantes e católicos para debater suas diferenças. No entanto, essas discus­ sões não conseguiram alcançar esse objetivo. Em 1545, o Concilio de Trento finalmente se reuniu para modelar a resposta da igreja católica à Reforma e instituir um grande programa de reformas dentro da igreja. Alguns dos presentes nesse Concilio, tais como o cardeal Reginald Pole, tinham esperanças de que ele se demonstraria conciliatório quanto aos protestantes. Entretanto, como ficou patente, o Concilio identificou e condenou as ideias principais do protestantismo. Quaisquer esperanças de reconciliação foram eliminadas. As igrejas pro­ testantes tinham que reconhecer que sua existência como entidades sepa­ radas agora era permanente, não mais temporária. Tinham que justificar sua existência como igrejas cristãs ao longo de um corpo que parecia ter uma reivindicação bem mais forte a esse título - a própria igreja católica. Com base nesse preâmbulo histórico, fica óbvio que o interesse par­ ticular dos reformadores na teoria da igreja data da década de 1540. Foi depois de Regensburg e, especialmente, ao se tornar claro que os grupos evangélicos seriam excluídos permanentemente da igreja católica que a questão da verdadeira identidade da igreja adquiriu importância crucial. Essa foi uma questão que envolveu a segunda geração de reformadores, não a primeira. Se Lutero estava interessado na questão: “Como posso en­ contrar um Deus misericordioso?”, seus sucessores foram forçados a lidar com a questão que surgiu a partir dela: “Onde posso encontrar a verda­ deira igreja?”. Era necessário fornecer uma justificativa teórica para a exis­ tência separada das igrejas evangélicas. Entre os reformadores da segunda geração, o mais influente foi João Calvino, obviamente. É nos seus escritos que possivelmente encontramos as contribuições mais importantes a esse debate. Nossa atenção, contudo, inicialmente se volta para Lutero.

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A natureza da igreja segundo Lutero Os primeiros reformadores estavam convencidos de que a igreja me­ dieval havia se corrompido e de que sua doutrina estava distorcida devido ao abandono das Escrituras, por um lado, e a adições humanas a elas, por outro. As concepções iniciais de Lutero a respeito da natureza da igreja refletem sua ênfase na Palavra de Deus: a Palavra de Deus segue adiante conquistando, e a igreja se estabelece onde ela conquista e gera verdadei­ ra obediência a Deus. “Ora, em qualquer lugar onde você ouve ou vê [a Palavra de Deus] pregada, crida, confessada e praticada, não duvide que a verdadeira ecclesia sancta catholica, um ‘povo santo cristão’ deve estar presente, muito embora haja poucos destas”.2 Um ministro ordenado de modo episcopal, portanto, não é necessário para proteger a existência da igreja, embora isso possa ser benéfico, se constituído de maneira apro­ priada; contudo, a pregação do evangelho é essencial à identidade dessa igreja: “Onde a palavra está, há fé; e onde a fé está, há a verdadeira igreja”. A igreja visível é constituída pela pregação da Palavra de Deus: nenhuma assembleia humana pode reivindicar ser a “igreja de Deus” a menos que esteja fundamentada no evangelho. Já vimos acima como esse entendimento da igreja é funcional, em vez de histórico: o que legitima a igreja ou seus oficiais não é a continuidade histórica com a igreja apostólica, mas a continuidade teológica. É mais importante pregar o mesmo evangelho que os apóstolos do que ser mem­ bro de uma instituição que é derivada historicamente deles. Um entendi­ mento semelhante da igreja era compartilhado por Filipe Melanchthon, colega de Lutero em Wittenberg, que concebia a igreja primariamente em termos de sua função de administrar os meios de graça. Lado a lado com essa concepção da natureza da igreja, Lutero estabe­ leceu uma nova compreensão do papel dos cristãos individuais. A igreja medieval defendia uma distinção absoluta entre sacerdotes e leigos, po­ rém Lutero insiste que essa distinção é funcional, não ontológica. Todos os cristãos são sacerdotes em virtude de seu batismo, fé e evangelho - uma doutrina que geralmente é denominada de “sacerdócio de todos os cren­ tes”. A única distinção que pode ser reconhecida entre eles se refere ao seu “cargo” ou “função” (Am t) diferente, ou ainda ao “trabalho” ou “res­ ponsabilidade” (Werk) que recebem para fazer. Os sacerdotes devem ser reconhecidos como “oficiais”, cujos privilégios e funções só podem conti­ nuar enquanto forem aceitos por aqueles que os designaram ou elegeram. Portanto, Lutero deixa bem claro que, quando os sacerdotes se aposentam ou são despedidos, revertem ao papel de leigos:

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0 pensamento da Reforma Ê uma invenção a ideia de que o papa, os bispos, sacer­ dotes e monges sejam denominados de “categoria espiritual” [geistliche Stand], enquanto os príncipes, senhores, artesãos e fazendeiros sejam denominados de “categoria secular” [weltliche Stand]. Essa é uma ideia espúria, e ninguém deve temê-la pela seguinte razão. Todos os cristãos verdadeira­ mente pertencem à categoria espiritual, e não há diferença entre eles exceto pelo seu cargo [Amt]... Todos temos um batismo, um evangelho, uma fé, e todos somos igualmente cristãos, pelo fato de que são o batismo, o evangelho e a fé somente que nos tornam espirituais e um povo cristão. ... Todos somos sacerdotes consagrados por meio do batismo, como diz S. Pedro: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real” (lPe 2.9)... Portanto, quem tem o status de sacerdote nada mais é que um oficial. Ele tem prioridade enquanto permanece nesse ofício; quando é deposto, torna-se um camponês ou cidadão como todos os demais... Segue-se disso que não há diferença verdadeira básica entre leigos, sacerdotes, príncipes e bispos, entre espirituais e seculares, exceto em seu ofício e trabalho (e não em seu status).3

A visão de igreja de Lutero possui a grande virtude da simplicidade. Entretanto, simplicidade frequentemente eqüivale à inadequação. Ao ficar cada vez mais claro que Lutero e Zuínglio não concordariam sobre o que era o evangelho (sua discordância deles a respeito da Eucaristia ressalta esse ponto), a credibilidade da visão de igreja de Lutero ficou debilitada. Em parte, as dificuldades de Lutero se referem ao desafio proposto pela Reforma radical, para a qual agora nos voltamos.

A visão radical da igreja É importante observar as implicações do termo “Reforma”. Para os re­ formadores magistrais, como Lutero e Calvino, a tarefa da Reforma era re­ formar uma igreja que tinha se corrompido ou desfigurado como resultado de desenvolvimentos vários na Idade Média. A pressuposição essencial que fundamentava esse programa deve ser observada cuidadosamente: refor­ mar uma igreja é pressupor que já existe uma igreja. Lutero e Calvino deixa­ ram claro que a igreja medieval era, de fato, uma igreja cristã. A dificuldade era que ela se perdera no caminho e precisava ser reformada. Os teólogos da ala radical da Reforma, contudo, não compartilhavam dessa pressuposição básica. Para eles, a igreja tinha simplesmente deixado

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de existir. Como a igreja poderia ser reformada, se não havia mais uma igreja? Ela precisava de restauração, não de reforma. Ao “reformar” a igre­ ja medieval, Lutero tinha alterado somente a aparência externa de uma instituição corrupta que não tinha mais o direito de se chamar de igreja cristã. É o que salienta Menno Simons no seu tratado de 1552, A confissão de cristãos atribulados: O brilho do sol não tem aparecido por muitos anos... Entretanto, nestes últimos dias, pelos ricos tesouros do seu amor, o misericordioso e grande Deus abriu novamente as janelas do céu e deixou cair o orvalho de sua palavra divina, de modo que a terra mais uma vez como outrora produza ramos verdes e plantas de justiça que deem fruto ao Senhor e glorifiquem seu grande e adorável nome. A santa palavra e os sacramentos do Senhor se levantam no­ vamente das cinzas.4

De modo semelhante, Sebastian Franck argumentou que a igreja apostólica havia se tornado totalmente comprometida por meio de suas estreitas conexões com o estado, isso desde a conversão do imperador Constantino. Como instituição, a igreja foi corrompida por lutas e am­ bição pelo poder humano. Assim como a maioria dos radicais era muito consistente em sua aplicação do princípio scriptura sola, era igualmente consistente em suas concepções da igreja institucional. A igreja verdadei­ ra estava nos céus, e suas paródias institucionais na terra. Fica claro, portanto, que a visão radical da igreja está bem mais próxi­ ma da visão donatista do que da agostiniana. Para Menno Simons, a igreja é uma sociedade de santos, um corpo puro que não é contaminado pelo pecado de qualquer modo. Em contraposição àquelas igrejas falsas reco­ nhecidas pelo estado e que gozam de seus privilégios, a verdadeira igreja é totalmente pura e regenerada: A verdadeira congregação de Cristo consiste daqueles que são verdadeiramente convertidos, que nasceram de cima, de Deus, que têm uma mente regenerada pela ope­ ração do Espírito Santo por meio de ouvir a palavra divina, e se tornaram filhos de Deus, submeteram-se a obedecê-lo, e vivem irrepreensivelmente conforme seus santos manda­ mentos, e de acordo com sua santa vontade todos os seus dias, ou a partir do momento do seu chamado.5

Por essa razão, é importante observar que a questão da disciplina eclesiástica é altamente significativa para os líderes da igreja radical. A

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disciplina é o meio pelo qual se pode exigir a pureza doutrinária e moral dentro da igreja. A “excomunhão” (veja o capítulo 11) serve para assegu­ rar a pureza da igreja, e elimina qualquer pessoa que possa contaminar ou comprometer a congregação nesse quesito. Se a igreja é definida pela sua pureza, essa pureza precisa ser protegida por medidas institucionais apropriadas, das quais a disciplina é a mais efetiva. Essa visão radical da igreja era altamente coerente e apresentava um desafio sério aos reformadores prineclesioiogia Seção da teologia cipais, tal como Lutero, que seguiam cristã que lida com a teoria da a visão de Agostinho de que a igreja, igreja. de fato, inclui tanto santos como pe­ cadores. Ou seja, defendiam uma eclesiologia de “corpo misto”. Consideraremos algumas dessas dificul­ dades na próxima seção.

Tensões na doutrina da igreja de Lutero Como vimos, Lutero foi obrigado a lidar com duas dificuldades rela­ cionadas à sua compreensão da igreja. Se a igreja não é definida institucionalmente, mas pela pregação do evangelho, como ele poderia distinguir suas concepções das dos radicais? Ele mesmo havia admitido que “a igreja é santa até mesmo onde os fanáticos [termo de Lutero para os radicais] predominam, desde que eles não neguem a palavra e os sacramentos”. Alerta quanto às realidades políticas de sua situação, Lutero reagiu aos seus críticos radicais nessa questão afirmando a necessidade de uma igreja institucional. Assim como ele já havia amenizado as implicações radicais do princípio scriptura sola por meio de um apelo à tradição (veja a seção “A Bíblia e a Reforma protestante” no capítulo 6), do mes­ mo modo ele amenizou suas concepções potencialmente radicais sobre a natureza da igreja verdadeira, ao insistir que ela precisa ser considerada como uma instituição histórica. A instituição da igreja é o meio de graça divinamente ordenado. Todavia, ao se opor aos radicais e afirmar que a igreja era de fato visível e institucional, Lutero passou a ter dificuldades em distinguir suas concepções dos seus oponentes católicos. Ele mesmo reconhece esse problema: De nossa parte, confessamos que há muito do que é cristão e bom sob o papado; de fato, tudo que é cristão e bom se encontra lá e veio para nós dessa fonte. Por exem­ plo, confessamos que na igreja papal há as Santas Escri­ turas, o verdadeiro batismo, o verdadeiro sacramento do

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altar, as verdadeiras chaves do perdão de pecados, o ver­ dadeiro ofício do ministério, o verdadeiro catecismo na forma da Oração do Senhor, dos Dez Mandamentos e dos artigos do Credo.6

Assim, Lutero é forçado a declarar que “a igreja falsa tem apenas a apa­ rência, embora também possua os ofícios cristãos”. Em outras palavras, a igreja medieval parecia ser a coisa real, mas era na verdade algo bem diferente. A lógica da situação se tornou cada vez mais difícil, por diversas ra­ zões. Talvez uma das mais óbvias seja a seguinte: as cartas de Paulo no Novo Testamento aos coríntios e aos gálatas os acusam de terem abando­ nado o evangelho em pontos cruciais. Contudo, Paulo ainda se dirige a es­ ses grupos como igrejas cristãs, e se refere aos seus membros inconstantes como cristãos. Lutero deveria imitar Paulo quanto a isso? Quando muito, os críticos de Lutero argumentam, a igreja católica era como a igreja dos gálatas. Pode até ter se desviado do evangelho em certas questões, todavia ainda podia e devia ser tratada como uma igreja cristã. Uma segunda dificuldade surge de um aspecto da teoria de Agosti­ nho da igreja, que remonta à controvérsia donatista do início do século 5o, como vimos antes. Os donatistas eram um movimento separatista na igreja da África do Norte, que insistia que a igreja católica de seus dias havia se tornado comprometida em razão de sua atitude para com as au­ toridades romanas durante o período de perseguição. Apenas aqueles que não tivessem comprometido sua integridade religiosa pessoal podiam ser reconhecidos como membros da igreja verdadeira. Pode-se perceber que isso corresponde de perto à visão radical da igreja. Agostinho defende o caso católico: a igreja deve ser reconhecida como tendo uma membresia mista, composta tanto de santos quanto de peca­ dores. O justo e o ímpio coexistem dentro da mesma igreja, e nenhum ser humano tem autoridade para arrancar o ímpio da igreja. Para isso, Agostinho se fundamenta na passagem geralmente conhecida como “pa­ rábola do trigo e do joio” (Mt 13.24-31). A maioria dos intérpretes bíblicos entende que essa parábola fornece uma explicação para a persistência do mal no mundo. No entanto, de acordo com Agostinho, essa parábola se aplica à igreja. Como o campo na parábola, a igreja contém tanto trigo quanto joio, o justo e o ímpio, que coexistem até o Dia do Juízo Final. Naquele dia, Deus julgará entre eles, e nenhum ser humano tem permissão para apropriar-se antecipadamente do juízo divino. A igreja conterá, portanto, tanto o bom quanto o mau até o final dos tempos. Agostinho argumenta que o termo

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“católico” (que literalmente significa “inteiro”), tal como aplicado à igreja, descreve sua membresia mista de santos e pecadores. Lutero seguiu Agostinho ao adotar uma eclesiologia de “corpo misto”. Porém, isso gera um problema sério. Lutero havia argumentado que os er­ ros morais da igreja medieval levantaram dúvidas sobre suas credenciais. Todavia, sua aceitação da igreja agostiniana parece a muitos implicar ne­ cessariamente que sempre haverá corrupção na igreja verdadeira, por ser um corpo misto de santos e pecadores. Com base na teoria de Agostinho, a corrupção na igreja católica não significa necessariamente que ela seja uma “igreja falsa”. Na prática, a força desse segundo argumento ficou reduzida pela in­ sistência de Lutero na prioridade da teologia sobre a moral. Lutero con­ siderava sua crítica da moral da igreja medieval como secundária à sua crítica às deficiências teológicas. Contudo, as considerações estabelecidas nesta seção deixam claro que a Reforma magistral às vezes vivenciou difi­ culdades com seu conceito de igreja. As visões católica e radical da igreja possuem um grau considerável de consistência interna e coerência, o que por vezes parece ausente do ponto de vista de Lutero. É nos escritos de João Calvino que encontramos uma abordagem mais pensada e rigorosa a essa doutrina importante. Passaremos agora a consi­ derar suas influentes ideias.

A natureza da igreja segundo Calvino Se algum reformador se debateu com o problema imposto pela doutri­ na da igreja, esse foi Calvino. A primeira discussão principal da teoria da igreja se encontra na segunda edição de suas Institutas da religião cristã, publicada em 1539. Embora Calvino lide com o assunto na primeira edi­ ção das Institutas (1536), ele não tinha qualquer experiência de gerência ou responsabilidade eclesiástica, o que explica a natureza curiosamente dispersa de sua discussão. Na época da segunda edição de sua obra, Calvi­ no havia ganho mais experiência com os problemas apresentados às novas igrejas evangélicas.

. As duas marcas da igreja Para Calvino, as marcas da verdadeira igreja são que a Palavra de Deus deve ser pregada e os sacramentos devem ser corretamente administrados. Visto que a igreja católica não se conformava nem mesmo com essa defini­ ção minimalista de igreja, os evangélicos estavam completamente justifica­ dos em deixá-la. Na medida em que as igrejas evangélicas se conformem a essa definição de uma igreja, não há justificativa para divisões posteriores

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dentro delas. Esse ponto é de importância particular, pois reflete o julga­ mento político de Calvino de que a fragmentação adicional das congrega­ ções evangélicas seria desastrosa para a causa da Reforma. O texto no qual Calvino estabelece estes princípios merece estudo cuidadoso: Sempre que virmos a Palavra de Deus sendo sincera­ mente pregada e ouvida, e os sacramentos sendo admi­ nistrados segundo a instituição de Cristo, não se pode de modo algum duvidar que existe uma igreja de Deus. Isso porque sua promessa não pode deixar de se cumprir: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20)... se o ministro tem a Palavra e a honra, se ela tem a administração dos sacramentos, merece sem dúvida ser tida e considerada como uma igreja.7

A definição de Calvino é significativa tanto pelo que não diz como pelo que afirma explicitamente. Não há referência à necessidade de qualquer continuidade histórica ou institucional com os apóstolos, ou com qualquer concepção institucionalizada da igreja - ou de modo mais notável, com a igreja medieval. Para Calvino, a continuidade institucional não é suficiente para garantir fidelidade intelectual e espiritual. É mais importante ensinar o que os apóstolos ensinaram do que ser capaz de apresentar uma linha ininterrupta de continuidade institucional com eles. (Deve ser lembrado aqui que o próprio Calvino nunca foi realmente “ordenado”; ele foi sim­ plesmente licenciado como pastor pelo conselho municipal de Genebra.) Esse novo entendimento radical da igreja de fato considerava a igreja como uma comunidade que se reúne ao redor da pregação da Palavra de Deus, e que celebrava e proclamava o evangelho por meio dos sacra­ mentos. Onde o evangelho é verdadeiramente pregado, ali uma igreja se reúne. Os teólogos protestantes, sensíveis à acusação de que essa nova abordagem representaria uma distorção de uma teologia correta da igreja, ressaltaram uma declaração clássica do bispo e mártir do século Io, Inácio de Antioquia: “onde Cristo está, aí também está a igreja” (ubi Christus ibi ecclesia). Reunir-se em nome de Cristo assegura sua presença; com essa presença, a igreja passa a existir. A pregação e os sacramentos são os dois meios de graça pelos quais Cristo se torna presente aos fiéis.

As estruturas da igreja Dessa maneira, Calvino assenta uma base teológica para sua doutrina da igreja, baseada na presença de Cristo dentro da comunidade cristã.

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Mas, e quanto à organização dessa igreja? Por volta de 1543, Calvino já ha­ via obtido bem mais experiência em responsabilidade eclesiástica, parti­ cularmente durante seu período em Estrasburgo. Bucer, a força intelectual por trás da Reforma em Estrasburgo, tinha uma reputação considerável como administrador eclesiástico, e é provável que a teoria posterior de Calvino da igreja reflita a influência pessoal dele. O ofício quádruplo de pastor, doutor (ou mestre), presbítero e diácono deve sua origem a Bucer, assim como a distinção entre a igreja visível e a invisível (veja abaixo). No entanto, Calvino não aceitou a sugestão de Bucer de que a discipli­ na eclesiástica é uma característica essencial (tecnicamente, uma “nota” ou “marca”) da igreja. Pode ser algo bom para a igreja, mas não é necessário para que uma igreja verdadeira exista. Embora Calvino inclua “exemplo de vida” entre as “marcas indubitáveis” da igreja na edição de 1536 das Institu­ tas, edições posteriores enfatizam a pregação apropriada da Palavra de Deus e a administração dos sacramentos. A disciplina fortalece o nervo da igreja, mas as doutrinas salvíficas de Cristo estabelecem seu coração e alma. Calvino argumenta que há orientações bíblicas específicas quanto à ordem correta de ministérios na igreja visível, de maneira que um modo específico de ordem eclesiástica então se torna um item doutrinário. Em outras palavras, ele inclui uma maneira específica de administração ecle­ siástica (e aqui ele empresta do campo do governo secular o termo aãministratio) no “evangelho pregado puramente”. A importância da administração externa da igreja foi reconhecida há algum tempo dentro dos círculos reformados. A Primeira Confissão Helvética (1536), redigida em Zurique, ressalta que a igreja se distingue por certos sinais externos: É a comunhão e a congregação de todos os santos que é a noiva e esposa de Cristo, a qual ele lava com seu sangue para finalmente apresentar ao Pai sem mácula ou qualquer mancha. E embora esta igreja e congregação de Cristo seja visível apenas aos olhos de Deus, contudo ela também se faz conhecida e se reúne e se edifica por sinais, ritos e orde­ nanças visíveis, os quais o próprio Cristo instituiu e indicou pela Palavra de Deus como uma disciplina universal, públi­ ca e ordenada. Sem essas marcas (falando de maneira geral, e sem uma permissão especial revelada por Deus), ninguém pode ser considerado parte desta igreja.8

A definição minimalista da igreja de Calvino agora recebe novo signi­ ficado. A igreja verdadeira se encontra onde o evangelho é corretamente

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pregado e os sacramentos corretamente administrados. Entende-se que se inclui nessa definição uma forma específica de instituição e administração eclesiástica. Calvino se refere à “ordem pela qual o Senhor deseja que sua igreexegese Ciência de interpreta ja seja governada”, e desenvolve uma çáo textual, geralmente se refe teoria detalhada de governo eclesiástirindo especificamente à Bíblia, co baseada em sua exegese do Novo Testamento, usando extensivamente a terminologia da administração do Império Romano. Contrário ao que os radicais afirmavam, Calvino insiste que uma for­ ma específica de estrutura e administração da igreja é estabelecida pela Escritura. Assim, Calvino defendia que o governo ministerial da igreja é ordenado divinamente, assim como a distinção entre “ministro”, “presbí­ tero”, “diácono” e “povo”. Enquanto Lutero considerava a organização da igreja como uma ques­ tão de contingência histórica, sem necessidade de prescrição teológica, Calvino defendia que um padrão definido de governo eclesiástico é pres­ crito pela Escritura. Então, qual é a importância desse novo desenvolvi­ mento na teoria da igreja? É preciso lembrar que Lutero tinha definido a igreja em termos do ministério da Palavra de Deus, o que pouco ajudava a distinguir a Reforma magistral da posição católica, por um lado, e da po­ sição dos radicais, por outro. Embora mantenha a ênfase na importância do ministério da Palavra de Deus, Calvino então insiste que esta mesma Palavra de Deus especifica uma forma particular de governo eclesiástico. Esse foi um novo e ousado passo na interpretação da Escritura. Tam­ bém deu a Calvino um critério pelo qual julgar (e determinar como defi­ cientes) seus oponentes católicos e radicais. Onde Lutero foi vago, Calvino foi preciso. Quando Calvino morreu (1564), a Igreja Reformada estava tão institucionalizada quanto sua rival católica, e havia se tornado seu opo­ nente mais formidável. Grande parte desse sucesso se deve ao papel do Consistório, talvez o aspecto mais distintivo e inovador do plano de Cal­ vino para estruturar sua igreja.

A igreja e o Consistório segundo Calvino O aspecto mais distintivo e controverso do sistema de governo ecle­ siástico de Calvino era o Consistório. Essa instituição surgiu em 1542, com doze presbíteros leigos (escolhidos anualmente pelos magistrados) e todos os membros da Venerável Companhia de Pastores (nove em 1542; dezenove em 1564). O grupo devia se reunir semanalmente às quintas-feiras, com o propósito de manter a disciplina eclesiástica. As origens

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dessa instituição não são claras. Parece que tribunais matrimoniais da época podem ter servido como modelo, e que um protótipo já tinha sido estabelecido em Genebra, na realidade, durante o exílio de Calvino em Estrasburgo. Certamente é significativo que uma das atividades iniciais do Consistório centrava-se nos problemas conjugais, considerados como uma dificuldade pastoral tanto quanto legal; isso bem pode refletir o papel de tribunais matrimoniais já existentes (que eram predominantemente leigos quanto ao caráter). Se as Institutas da religião cristã foram os músculos da reforma de Cal­ vino, a espinha dorsal foi sua organização eclesiástica. A obra Ordenanças eclesiásticas (1541), que deu à igreja de Genebra seu formato e identidade característicos, foi redigida por Calvino praticamente logo depois do seu retorno à Genebra, findo seu exílio em Estrasburgo. Convencido da neces­ sidade de uma igreja disciplinada, bem ordenada e estruturada, Calvino passou a formular orientações detalhadas que governassem cada aspecto de sua existência. O estabelecimento de um aparato eclesiástico apropria­ do aos objetivos de Calvino deve ser considerado como um dos aspectos mais significativos do seu ministério. Além disso, isso gera apoio adicio­ nal à comparação entre Calvino e Lênin: ambos estavam admiravelmen­ te conscientes da importância de instituições para a propagação de suas respectivas revoluções, e trataram logo de organizar o que era necessário. Calvino concebeu o Consistório primariamente como um instrumen­ to para o “policiamento” da ortodoxia religiosa. Seria o garantidor da dis­ ciplina, a qual Calvino reconhecia como essencial para a sobrevivência da cristandade reformada, com base em sua experiência em Estrasburgo. Sua função primária era lidar com aqueles que tivessem concepções religiosas suficientemente divergentes para gerar ameaça à ordem religiosa estabe­ lecida em Genebra. Pessoas com comportamentos considerados inaceitá­ veis por outras razões, pastorais ou morais, deviam ser tratadas da mesma maneira. Em primeira instância, devia-se demonstrar a esses indivíduos o erro de suas escolhas; se isso não desse certo, a penalidade da excomu­ nhão estava disponível como meio de intimidação. Essa, contudo, era uma penalidade eclesiástica, não civil. Podia-se ne­ gar acesso ao incrédulo a um dos quatro cultos anuais de Ceia em Gene­ bra, mas ele não poderia ser sujeitado a qualquer penalidade civil pelo próprio Consistório. O conselho municipal, eternamente cioso de sua au­ toridade, insistira que “tudo deve acontecer de modo que os ministros não tenham jurisdição civil, nem usem qualquer outra coisa senão a espada espiritual da Palavra de Deus... nem o Consistório deve depreciar a autori­ dade do Senhorio ou da justiça ordinária. O poder civil deve permanecer sem impedimentos”.

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A importância das estruturas eclesiásticas, tal como o Consistório, para o desenvolvimento internacional do calvinismo pode ser mais bem apreciada ao se comparar as situações bem diferentes em que o luteranis­ mo e o calvinismo vieram a se estabelecer na Europa ocidental e na Amé­ rica do Norte. O luteranismo avançou em geral por meio da simpatia de monarcas e príncipes, talvez parcialmente conscientes do importante pa­ pel eclesiástico atribuído a eles pela doutrina dos “dois reinos” de Lutero. Embora Calvino estivesse consciente de que seria bom convencer os monarcas acerca de suas ideias (sua ambição particular era a de conquis­ tar ouvidos favoráveis na corte francesa), o calvinismo em geral sobrevi­ veu e avançou em situações distintamente hostis (como a da França na década de 1550), nas quais tanto o monarca existente quanto a elite gover­ nante da igreja se opunham ao seu desenvolvimento. Sob tais condições, a mera sobrevivência de grupos calvinistas dependia de uma igreja forte e bem estruturada, capaz de subsistir à hostilidade do seu meio ambiente. As estruturas eclesiásticas calvinistas, que eram mais sofisticadas, se pro­ varam capazes de resistir a situações consideravelmente mais difíceis do que suas equivalentes luteranas. Isso forneceu ao calvinismo um recurso vital para ganhar espaço no que, à primeira vista, pareciam ser situações políticas completamente sem esperanças.

O papel da igreja segundo Calvino Por que, antes de tudo, há necessidade de uma igreja - entendida como uma instituição, não como um edifício? Assim como Deus redimiu os se­ res humanos dentro de um processo histórico por meio da encarnação, do mesmo modo ele os santifica dentro desse mesmo processo ao fundar uma instituição dedicada a esse objetivo. Deus usa determinados meios terrenos para desenvolver a salvação dos seus eleitos; embora ele não esteja preso de modo absoluto a esses meios, normalmente opera por meio deles. A igreja, portanto, é identificada como um corpo divinamente formado, dentro do qual Deus efetua a santificação de seu povo. Como afirma Calvino: Começarei, então, pela igreja, em cujo seio Deus quer que seus filhos se agreguem, não apenas para que sejam nu­ tridos de seu labor e ministério, por tanto tempo quanto são infantes e crianças, mas também de seu cuidado materno sejam guiados até que amadureçam e, finalmente, cheguem à meta da fé. “Portanto, o que Deus ajuntou, não o separe o homem” [Mt 19.6; Mc 10.9], de sorte que àqueles de quem ele é o Pai, a igreja também será a mãe.9

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Calvino confirma essa elevada doutrina da igreja citando as duas gran­ des máximas eclesiológicas de Cipriano de Cartago: “Você não pode ter Deus como pai senão tiver a igreja como sua mãe”, usada acima, e “Fora da igreja não há esperança de remissão de pecados ou de qualquer salvação”. A doutrina da igreja de Calvino nos lembra de que é completamen­ te inadequado retratar os reformadores como individualistas radicais e extremados, sem lugar para concepções corporativas da vida cristã. Já vimos (seção “O papel da tradição” no capítulo 6) como a interpretação bíblica da Reforma principal não apresenta o individualismo frequente­ mente projetado nela pelos seus críticos; o mesmo é verdadeiro quanto à compreensão da Reforma da vida cristã. A imagem da “igreja como uma mãe” (que Calvino de bom grado toma emprestada de Cipriano de Cartago) sublinha a dimensão corporativa da fé cristã. A instituição da igreja é um meio necessário e útil para o crescimento espiritual, dado e ordenado por Deus. Calvino traça uma distinção importante entre a igreja visível e a invi­ sível. Num nível, a igreja é a comunidade dos crentes, um grupo visível. No entanto, é também a comunhão dos santos e a companhia dos eleitos - uma entidade invisível. No seu aspecto invisível, a igreja é a assembleia invisível dos eleitos, conhecidos apenas por Deus; em seu aspecto visível, é a comunidade dos crentes na Terra. A primeira consiste apenas dos eleitos; a última inclui os bons e os maus, os eleitos e os condena­ dos. A primeira é um objeto de fé e esperança; a última, da experiência presente. Calvino enfatiza que todos os crentes são obrigados a honrar a igreja visível e a permanecer comprometidos com ela, a despeito de suas fraquezas, por causa da igreja invisível, o corpo verdadeiro de Cristo. Não obstante, há apenas uma igreja, uma entidade única que tem Jesus Cristo como seu cabeça. A distinção entre igreja visível e invisível tem duas conseqüências im­ portantes. Em primeiro lugar, espera-se que a igreja visível inclua tanto os eleitos quanto os condenados. Agostinho de Hipona já tinha argumenta­ do assim contra os donatistas, baseando-se na parábola do trigo e do joio (Mt 13.24-31). Está além da competência humana discernir a diferença entre eles, correlacionando qualidades humanas com o favor divino (de qualquer modo, a doutrina da predestinação de Calvino exclui tais bases para a eleição). Em segundo lugar, contudo, é necessário questionar qual das diversas igrejas visíveis corresponde à igreja invisível. Dessa maneira, Calvino reconhece a necessidade de articular critérios objetivos pelos quais a autenticidade de uma igreja possa ser julgada. Dois critérios são estipulados: “Sempre que vemos a Palavra de Deus sendo sinceramente pregada e ouvida, e os sacramentos sendo administrados

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segundo a instituição de Cristo, não podemos duvidar que uma igreja existe”. Portanto, não é a qualidade dos seus membros, mas a presença dos meios autorizados de graça que constitui uma igreja verdadeira. É interessante observar que Calvino não segue Bucer, e torna a disciplina uma marca da igreja verdadeira. Embora estivesse realmente interessado numa disciplina benevolente dos membros da igreja, Calvino não a con­ siderava como essencial para a definição ou avaliação das credenciais de uma igreja.

O debate a respeito da catolicidade da igreja O Credo Niceno afirma crer na “igreja una, santa, católica e apostóli­ ca”. Cada uma dessas quatro características (em geral denominadas como as “quatro marcas da igreja”) tem sido tema de debates substanciais na teologia cristã, com a controvérsia donatista tendo dado um ímpeto con­ siderável às questões envolvidas. Na época da Reforma, atenção particular foi dada ao significado do termo “católico”. O que significa afirmar crer na catolicidade da igreja? As igrejas protestantes podem afirmar tal crença, tendo se separado da corrente principal - a igreja medieval? Hoje, na nossa língua, o termo “católico” em geral é confundido com “católico romano”, especialmente em círculos não religiosos. Embora essa confusão seja compreensível, a distinção deve ser mantida. Não são ape­ nas os católicos romanos que são católicos, assim como não são apenas os escritores da Igreja Ortodoxa Oriental que são ortodoxos em sua teologia. De fato, muitas igrejas protestantes, constrangidas pelo uso do termo “ca­ tólico” em seus credos, o substituíram por “universal”. O termo “católico” procede da expressão grega katKholou (“que se re­ fere ao todo”). Essas palavras gregas mais tarde geraram a palavra latina catholicus, que passou a significar “universal” ou “geral”. Esse sentido da palavra transparece na expressão inglesa “gosto católico”, que significa “um gosto diversificado”, e não “um gosto por coisas que são católico-romanas”. Algumas versões antigas da Bíblia em geral se referem a algumas das cartas do Novo Testamento (como as de Tiago e João) como “epístolas católicas”. Isso significa que elas se dirigem a todos os cristãos, de modo diferente das de Paulo, que são dirigidas às necessidades e situações de determinadas igrejas individuais, tais como a de Roma ou Corinto. Em nenhum lugar o Novo Testamento usa o termo “católico” para se referir à igreja como um todo. O Novo Testamento usa o termo grego ekklesia para se referir a igrejas ou comunidades de adoração locais. De qual­ quer modo, compreende-se que estas representam ou incorporam algo que transcende seu corpo local. Conquanto uma igreja individual não seja

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a igreja em sua totalidade, ela, no entanto, compartilha dessa totalidade. É essa noção de “totalidade” que é subsequentemente encapsulada no termo “católico”. O termo passou a ser usado nos séculos posteriores numa ten­ tativa de unir percepções centrais do Novo Testamento, conectando-as a um termo único. O primeiro uso conhecido da expressão “a igreja católica” ocorreu nos escritos de Inácio de Antioquia, martirizado em Roma por volta de 110: “Onde está Cristo, aí também está a igreja”. Outros escritos do século 2o usam o termo para se referir à existência de uma igreja universal ao lado das congregações locais. O sentido do termo mudou fundamentalmente depois da conversão de Constantino. Ao final do século 4o, a expressão “a igreja católica” sig­ nifica “a igreja imperial”, ou seja, a única religião legal dentro do Império Romano. Todas as demais formas de crença foram declaradas como ile­ gais, inclusive as crenças cristãs que divergiam da corrente principal. A contínua expansão da igreja nesse período contribuiu para um desenvolvimento na compreensão do termo. No início do século 5o, o cristianismo estava firmemente estabelecido por todo o mundo mediter­ râneo. Em reação a esse desenvolvimento, o termo “católico” passou a ser interpretado como “abarcando o mundo inteiro”. Esses temas gerais po­ dem ser encontrados nos escritos de Tomás de Aquino, que estabeleceu o consenso medieval sobre “catolicidade” da seguinte maneira: A igreja é católica, ou seja, universal, primeiramente em relação ao lugar, porque ela está em todo o mundo, contra os donatistas. Veja Romanos 1.8: “em todo o mundo, é pro­ clamada a vossa fé”; Marcos 16.15: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura”. Nos tempos antigos, Deus era conhecido apenas na Judeia, mas agora no mundo inteiro. Além disso, esta igreja tem três partes. Uma está na terra, outra no céu e a terceira no purgatório. Em segundo lugar, a Igreja é universal em relação à condição das pes­ soas, porque ninguém é rejeitado, seja mestre ou escravo, homem ou mulher. Veja Gálatas 3.28: “nem homem nem mulher”.' Em terceiro lugar, ela é universal em relação ao tempo. Isso porque alguns disseram que a igreja só duraria por um tempo, mas isso é falso, pois esta igreja começou no tempo de Abel e durará até o final do mundo. Veja Mateus 28.20: “E eis que estou convosco todos os dias até à consu­ mação do século”. E depois da consumação do século, ela permanecerá no céu.10

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Com base nesse entendimento de catolicidade, é argumentado que a continuidade com a igreja apostólica só pode ser mantida institucionalmente, ou seja, por meio de continuidade histórica direta com a igreja primitiva. Separar-se da instituição histórica da igreja, representada pelos seus bispos, é sair da igreja. Cipriano de Cartago argumenta que não há salvação fora da igreja; colocar-se fora da instituição da igreja significa, portanto, abandonar toda esperança de salvação. Na época da Reforma, ocorreu um reexame fundamental da noção de “catolicidade”. Parecia a muitos que a catolicidade e a unidade da igre­ ja tinham sido destruídas simultaneamente pela fragmentação da igreja da Europa ocidental no século 16. Os oponentes católicos da Reforma declararam que os protestantes tinham se separado da igreja católica ao introduzir inovações (como a doutrina da justificação somente pela fé) ou ao abandonar as estruturas tradicionais da igreja (como o papado e o episcopado). Ao romper com a continuidade da igreja, os reformado­ res tinham abandonado qualquer direito de denominarem suas igrejas de “cristãs”. Um dos marcos essenciais de uma igreja autenticamente cristã seria, portanto, a continuidade institucional. Era óbvio para os oponentes católicos da Reforma que essa continuidade tinha sido destruída ou des­ prezada pelos reformadores. Por essa razão, as congregações protestantes não podiam ser consideradas como igrejas cristãs, em nenhum sentido expressivo da palavra. Por sua vez, os escritores protestantes argumentaram que a essência da catolicidade não está nas instituições da igreja, mas nas questões dou­ trinárias. O escritor Vincent of Lérins, do século 5o, definiu catolicidade como “aquilo que é crido em todos os lugares, em todas as épocas e por todas as pessoas”. Os reformadores argumentavam que eles permaneciam católicos, a despeito de terem se separado da igreja medieval, pois conser­ varam os elementos centrais e universalmente reconhecidos da doutrina cristã. A continuidade histórica ou institucional era secundária à fidelida­ de doutrinária. Por essa razão, as igrejas protestantes principais insistiam que eram simultaneamente católicas e reformadas. Ou seja, mantinham continui­ dade com a igreja apostólica na questão do ensino, depois de terem eli­ minado práticas e crenças não bíblicas. Essa abordagem é adotada por Filipe Melanchthon: Por que esse termo é acrescentado ao artigo do credo, de modo que a igreja é denominada católica? Porque é uma assembleia dispersa por todo o mundo e porque seus mem­ bros, onde quer que estejam, não importa quão separados

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0 pensamento da Reforma espadalmente, aceitam e professam externamente a mesma única declaração ou verdadeira doutrina por todas as épo­ cas desde o início até o final... É uma coisa ser denominada católica, outra ser católica na realidade. São verdadeira­ mente denominados católicos os que aceitam a doutrina da verdadeira igreja católica, ou seja, aquela que é apoiada pelo testemunho de todos os tempos, de todas as eras, que crê naquilo que os profetas e apóstolos ensinaram, e que não tolera facções, heresias e assembleias heréticas.11

Observe como Melanchthon insiste em que a essência da “catolicidade” da igreja se refere ao ensino universal da fé verdadeira. Os reforma­ dores reivindicam, portanto, ensinar a fé verdadeira sem estarem presos à instituição da igreja medieval. Com essa interpretação ^doutrinária da catolicidade, as conexões institucionais de uma congregação não são con­ sideradas como de importância fundamental. O que é importante é en­ sinar o que os apóstolos ensinaram, mais do que ter evidência física de continuidade histórica (por exemplo, por meio da imposição de mãos). Também fica claro a essa altura que a ênfase de Lutero e Calvino na pregação do evangelho como uma marca da igreja é de importância fun­ damental. Se o evangelho verdadeiro é pregado, uma igreja cristã verda­ deira está presente, independentemente do seu pedigree histórico. Nesse sentido, os reformadores conseguiram enfraquecer a força dos argumen­ tos apresentados contra eles pelos seus oponentes católicos, enquanto, ao mesmo tempo, forneceram uma interpretação teológica da noção de “catolicidade” que permitia que a igreja fosse definida funcionalmente. As implicações desse desenvolvimento para o cristianismo ocidental são substanciais, pois assim a proliferação denominacional recebeu uma jus­ tificativa teológica importante.

A igreja segundo o concilio de Trento Curiosamente, o Concilio de Trento afirmou relativamente pouco quanto à doutrina da igreja. Em parte, isso pode refletir o fato de que as questões eclesiológicas só começaram a ser significativas para protestantes e católicos depois do fracasso final das tentativas de reconciliá-los no Colóquio de Regensburg (1541). Depois dessa data, os escritores protestantes começaram a perceber a importância de consolidar suas próprias con­ cepções distintas da igreja. Até aquele momento, muitos escritores pro­ testantes tinham esperanças de que fosse reconhecida a validade de seus movimentos e ministérios. Enquanto a primeira geração de reformadores

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centralizou-se na doutrina da justificação, a segunda geração focou em questões eclesiológicas. Portanto, essas questões surgiram tarde demais para serem consideradas pelo Concilio de Trento. A contribuição de Trento para os debates do século 16 a respeito da igreja se referem primariamente a questões práticas, não teóricas. A quin­ ta sessão do Concilio (1546), por exemplo, fez provisões para a posição de “Palestrante nas Escrituras Sagradas” em cada igreja principal, para apro­ fundar a consciência geral do conteúdo da Bíblia e sua relevância para a vida de fé. A sétima sessão do Concilio (1547) se concentrou nas reformas práticas, projetadas para revigorar a vida da igreja e eliminar abusos e corrupções, particularmente da parte de seu clero e bispos. No entanto, há pouca dúvida de que as pressuposições eclesiológicas fundamentais por trás do Concilio de Trento são as desenvolvidas por Agostinho de Hipona durante a controvérsia donatista, as quais foram ampliadas no início da Idade Média, especialmente quanto à ênfase emer­ gente na autoridade espiritual e temporal do papa. Como observamos antes, a igreja católica foi a única agência interna­ cional a possuir qualquer credibilidade ou influência significativa durante toda a Idade Média. Ela exerceu um papel decisivo em resolver as disputas internacionais. Sob Inocêncio III (papa de 1198 a 1216), o papado medie­ val alcançou um nível de autoridade política sem precedentes na Europa ocidental. Uma justificativa teológica é apresentada no decreto Sicut universitatis conditor, publicado em outubro de 1198, no qual Inocêncio III estabelece o princípio da subordinação do Estado à igreja. Assim como Deus estabeleceu luzeiros “maiores” e “menores” nos céus para governar o dia e a noite - uma referência ao sol e à lua (Gn 1.16) -, do mesmo modo Deus ordenou que o poder do papa excedesse o de todos os monarcas. “Assim como a lua deriva sua luz do sol, e é inferior ao sol em termos de tamanho e qualidade, assim o poder do rei deriva da autoridade do papa”. Tais ideias são assumidas claramente por Trento, porém não são rea­ firmadas explicitamente nem defendidas diante das críticas. Dos aspectos teológicos tratados por Trento, os relacionados mais diretamente à vida cotidiana da igreja se referem à teologia dos sacramentos, que se tornou tema de intenso debate entre os reformadores principais durante a década de 1520. No próximo capítulo, consideraremos esses debates em detalhes.

Notas 'WARFIELD, B. B„ Calvin and Augustine. Filadélfia, PA, 1956, p. 322. 2WA 50.630. 3WA 6.406-8.

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Complete writings of Menno Simons, org. J. C. Wenger, Scotsdale, PA, 1956, p. 502. 5Complete writings of Menno Simons, p. 300. 6WA 50.630. 7CALVINO, João, Institutas da religião cristã, IV.i.9. 8Primeira Confissão Helvética, 1536, art. 14; in MÜLLER, E. F. K. (org.), Die Bekenntnissschriften der reformierten Kirche, Leipzig, 1903, p. 101. 9CALVINO, João, Institutas da religião cristã, IV.i.10. 10AQUINO, Tomás, In Symbolum Apoistolorum, 9; em S. Thomae Aquinitatis Opera Onmia, vol. 6, org. R. Busa, Holzboog, 1980, p. 20nCR 24.397-9.

A doutrina dos sacramentos

Os grandes debates do século 16 quanto à posição, identidade e fun­ ção da igreja se estenderam às suas cerimônias e ritos. Desenvolveram-se importantes debates sobre o que os cristãos pensavam fazer quando batizavam crianças ou quando se reuniam para obedecer à ordem de Cristo de comer pão e beber vinho em sua memória. A Reforma protes­ tante teve um impacto significativo na adoração cristã - de modo mais notável, ao insistir que os rituais de culto e pregação deviam ser condu­ zidos numa língua que pudesse ser compreendida pelo povo comum. No entanto, um debate particularmente significativo se desenvolveu a respeito dos sacramentos do batismo e da Eucaristia, o qual será consi­ derado neste capítulo.

O contexto dos debates a respeito dos sacramentos O termo “sacramento” deriva do latim sacramentum, que significa “algo que é consagrado”. Passou a se referir a uma série de ações eclesiásticas ou rituais da igreja considerados como possuidores de qualidades espirituais especiais, como a habilidade de transmitir a graça de Deus. Duns Scotus definiu sacramento como “um sinal físico, instituído por Deus, que repre­ senta de modo eficaz a graça divina ou a ação misericordiosa de Deus”. Outras definições afirmam as mesmas coisas, mas de modo mais breve. A ideia básica é que os sacramentos são sinais visíveis da graça invisível, os quais de algum modo atuam como “canais” da graça. A era medieval teste­ munhou uma consolidação da teologia dos sacramentos, particularmente nos escritos de Pedro Lombardo. Foram reconhecidos sete sacramentos - batismo, Eucaristia, penitência, confirmação, casamento, ordenação e

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extrema-unção - e uma complexa teologia foi desenvolvida para justificar e explicar a importância deles. Era evidente, já no início da década de 1520, que o sistema sacramental da igreja medieval estava se tornando objeto de consideráveis críticas pe­ las facções reformistas. Os reformadores armaram um ataque prolongado contra a compreensão medieval quanto ao número, à natureza e à função dos sacramentos, e reduziram o número de sacramentos autênticos de sete para dois (batismo e Eucaristia). Mas por que os reformadores estavam tão preocupados com a teologia dos sacramentos? Para muitos, isso parece ser uma questão notavelmente irrelevante e obscura. No entanto, uma reflexão sobre o contexto no qual operavam os reformadores irá aju­ dar a esclarecer porque essa questão era tão importante para eles. Talvez o ponto mais importante a ser afirmado aqui é que os sacramen­ tos representavam aface publicamente visível da igreja. Para a maioria dos leigos, o ponto principal de contato com a igreja, e também com o mundo mais amplo, era por meio dos cultos aos domingos. Era exatamente por isso que o púlpito era uma das plataformas públicas mais importantes do período medieval; daí o desejo, tanto de reformadores quanto de conse­ lhos municipais, de controlar o que era dito nos púlpitos. Ao participarem dos cultos dominicais, os leigos eram expostos às ideias da Reforma por dois meios: o sermão e a liturgia. Assim, reformar a teoria ou a prática dos sacramentos significaria fa­ zer mudanças óbvias na vida pública da igreja e da comunidade. O culto principal da igreja medieval era a missa. Essa cerimônia era celebrada se­ gundo um formato estabelecido de palavras, em latim, conhecido como “liturgia”. Os reformadores fizeram objeções a essa liturgia específica, por dois motivos. Primeiro, a missa era celebrada em latim, que a maioria dos leigos não conseguia entender. Segundo, e bem mais sério, o modo como se celebrava a missa parecia exigir diversas suposições que os re­ formadores não aceitavam. Eles discordaram da teoria conhecida como “transubstanciação”, a qual defende que o pão e o vinho da missa, ao se­ rem consagrados, retêm suas aparências externas, mas, de fato, são trans­ formados na substância do corpo e do sangue de Jesus Cristo. Além disso, ficaram indignados com a implicação de que os sacerdotes que celebram missas estão realizando algum tipo de boa obra. Reformar a liturgia, por­ tanto, iria ajudar a mudar o modo como as pessoas pensavam a respeito do evangelho. Um dos modos mais efetivos de promover a causa da Reforma, portan­ to, era reescrever a liturgia no vernáculo (de modo que todos pudessem compreender o que acontecia), alterando-a onde fosse necessário para eliminar as ideias que os reformadores consideravam inaceitáveis. Tanto

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as palavras quanto as ações de cerimônias como o batismo articulavam a teologia que estava por trás delas. Contudo, logo ficou claro que os principais representantes do primeiro período da Reforma - especialmente Lutero e Zuínglio - não consegui­ ram concordar nem na teoria nem na prática dos sacramentos. Concorda­ vam que havia dois sacramentos, e não sete; e concordavam que se devia permitir aos leigos receberem tanto o pão como o vinho. Porém, quanto ao restante, descobriram que eram incapazes de alcançar sequer um pen­ samento semelhante a respeito da teoria e da prática dos sacramentos. Vários fatores haviam se combinado para provocar essa discordância: por exemplo, as diferenças no modo de interpretar a Escritura e os dife­ rentes contextos sociais das reformas de Wittenberg e Zurique. A seguir, esboçarei suas compreensões diferentes quanto aos sacramentos e indica­ rei a importância dessas diferenças para a história da Reforma. Entre essas diferenças, devemos observar uma divergência significa­ tiva na terminologia. A Reforma gradualmente testemunhou uma rejei­ ção do termo “missa”, sem que fosse alcançada qualquer concordância sobre como denominar o equivalente evangélico. O culto cristão em que o pão e o vinho eram consagrados e consumidos passou a ser conheci­ do por vários nomes, incluindo “missa” (termo mantido por Lutero), “o pão”, “comunhão”, “memorial” (ou “recordação”), “a Ceia do Senhor” ou “Eucaristia”. Devido a essa discordância, era difícil saber qual escolher. No final das contas, o termo “Eucaristia” foi escolhido para identificar o equivalente protestante da missa, devido ao seu uso recente nos principais documentos ecumênicos protestantes. Mas observe a variedade de termos que ainda podem ser usados.

Os sacramentos e as promessas de graça O tema da acomodação divina às fraquezas humanas é central à ênfa­ se da Reforma na importância dos sacramentos para uma espiritualidade evangélica. A ideia está associada especialmente com Calvino, que geral­ mente é considerado seu expositor mais claro. Ele argumenta do seguinte modo. Todos os bons oradores conhecem e entendem as limitações dos seus respectivos públicos e adaptam seu modo de falar de acordo com isso. Eles modificam seu linguajar para satisfazer às necessidades e limitações dos seus ouvintes, evitando palavras e ideias difíceis quando necessário e usando em seu lugar meios mais apropriados de falar. Esse “princípio de acomodação” também se estende ao uso de analogias e auxílios visuais. Muitas pessoas acham difícil lidar com ideias e conceitos, forçando oradores públicos res­ ponsáveis a usarem histórias e ilustrações para dizerem o que desejam.

u pensamento aa Kerorma

Assim também acontece com Deus, argumenta Calvino. Deus se aco­ moda às nossas limitações. Ele desce ao nosso nível, usando poderosas imagens e meios de comunicação como instrumentos de autorrevelação. Ninguém é excluído do aprendizado sobre Deus por causa do seu nível de instrução. O fato de Deus escolher se revelar desse modo reflete uma fra­ queza de nossa parte, a qual ele misericordiosamente reconhece e leva em conta. Assim, Deus pode acionar uma ampla faixa de recursos para criar e sustentar a fé - palavras, conceitos, analogias, modelos, sinais e símbolos. Os sacramentos devem ser considerados como um elemento importante nesse arsenal de revelação e recursos espirituais. Para a primeira geração de reformadores, os sacramentos são a res­ posta divina às fraquezas humanas. Sabendo da nossa dificuldade para receber suas promessas e responder a elas, Deus suplementou a Bíblia com sinais visíveis e concretos da graça e do favor divinos. Eles são uma acomodação às nossas limitações. Os sacramentos representam as pro­ messas de Deus, mediadas por objetos do mundo cotidiano. Na sua obra Proposições quanto à missa (1521), Filipe Melanchthon ressaltou que os sacramentos são primariamente uma misericordiosa acomodação' divi­ na às fraquezas humanas: “Sinais são instrumentos pelos quais podemos tanto ser lembrados da palavra da fé quanto fortalecidos nela”. Nem todo sinal é um sacramento; um sacramento é um sinal da graça instituído e autorizado, cujas credenciais se baseiam numa fundação evangélica firme. Não são sinais de nossa própria escolha; foram escolhidos para nós. Num mundo ideal, sugere Melanchthon, os seres humanos estariam preparados para confiar em Deus apenas com base na sua Palavra. No en­ tanto, uma das fraquezas da humanidade caída é sua necessidade de sinais (para esse argumento, Melanchthon apelou para a história de Gideão). Para Melanchthon, os sacramentos são sinais: “O que alguns chamam de sacramentos, nós chamamos de sinais - ou, se preferirem, sinais sacra­ mentais”. Esses sinais sacramentais aumentam nossa confiança em Deus. “Para mitigar essa desconfiança no coração humano, Deus acrescentou sinais à palavra”. Assim, os sacramentos são sinais da graça divina acres­ centados às promessas de graça de modo a reassegurar e fortalecer a fé de seres humanos caídos. Embora as teorias escolásticas sobre os sacramen­ tos enfatizem sua capacidade de transmitir graça, os reformadores enfa­ tizaram sua capacidade de confirmar e transmitir as promessas de Deus. Lutero defendeu algo semelhante, definindo os sacramentos como “promessas com sinais anexados a elas” ou “sinais divinamente instituídos e a promessa do perdão de pecados”. É interessante observar que Lutero usa o termo “penhor” (Pfand) para enfatizar o caráter da Eucaristia em gerar segurança. O pão e o vinho nos asseguram da realidade da promessa

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divina de perdão, facilitando que a aceitemos e, depois de tê-la aceito, que permaneçamos firmes nela. “Para que possamos ter certeza dessa pro­ messa de Cristo, e verdadeiramente confiar nela sem qualquer dúvida, ele nos deu a garantia e o selo mais precioso e custoso - seu próprio corpo e sangue, dados na forma de pão e vinho”. Portanto, o pão e o vinho da mis­ sa (observe que Lutero continua a usar esse termo tradicional) recordam simultaneamente a realidade e o custo da graça de Deus, por um lado, e a nossa resposta a essa graça pela fé, por outro lado. As promessas divinas, portanto, são tanto reais e quanto custosas. A morte de Cristo é um sinal tanto da confiabilidade quanto do elevado cus­ to da graça de Deus. Lutero desenvolve esse argumento usando a ideia de um “testamento”, entendido no sentido de “últimas disposições e vonta­ des”. Esse argumento é completamente desenvolvido na sua obra de 1520, O cativeiro babilônico da igreja cristã: Um testamento é uma promessa feita por alguém que está para morrer, no qual uma herança é definida e herdeiros de­ signados. Portanto, um testamento envolve, primeiramente, a morte do testador e, em segundo lugar, a promessa de uma herança e a nomeação de herdeiros [...] Vemos tais coisas claramente nas palavras de Cristo. Ele testifica a respeito da sua morte ao dizer: “Isto é o meu corpo, que é dado” e “Isto é meu sangue, derramado”. Ele nomeia e designa a herança ao dizer “para remissão de pecados”. E ele indica os herdeiros ao dizer “por vós” e “em favor de muitos”, ou seja, para aqueles que aceitam a promessa do testador e creem nela.1

A percepção de Lutero aqui é que um testamento envolve promessas que se tornarão operacionais apenas depois da morte da pessoa que fez tais promessas em primeiro lugar. Assim, a liturgia - ou missa ou culto de comunhão - afirma três pontos importantes: 1. Afirma as promessas de graça e perdão. 2. Identifica aqueles a quem essas promessas foram feitas. 3. Declara a morte daquele que fez essas promessas. A missa, portanto, proclama dramaticamente que as promessas de gra­ ça e perdão estão em vigor agora. É “uma promessa do perdão de pecados feita a nós por Deus, e tal promessa tal como foi confirmada pela morte do Filho de Deus”.

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Ao proclamar a morte de Cristo, a comunidade da fé afirma que as preciosas promessas de perdão e vida eterna estão agora em vigor para aqueles que têm fé. Como o próprio Lutero argumenta: Assim, vemos que o que chamamos de missa é uma pro­ messa de perdão dos pecados feita a nós por Deus, e essa pro­ messa foi confirmada pela morte do Filho de Deus. Isso por­ que a única diferença entre uma promessa e um testamento é que este envolve a morte daquele que o faz [...] Ora, Deus fez um testamento. Portanto, era necessário que ele morresse. Mas Deus não podia morrer a menos que se tomasse um ser humano. Assim, a encarnação e a morte de Cristo estão ambas incluídas explicitamente nesta única palavra, “testamento”.2

Como observamos acima, uma função central dos sacramentos é a de assegurar aos crentes que eles são verdadeiramente membros do corpo de Cristo e herdeiros do reino de Deus. Lutero desenvolveu esse argumento com alguns detalhes no seu tratado de 1519, O abençoado sacramento do santo e verdadeiro corpo de Cristo, ressaltando a segurança psicológica que o sacramento disponibiliza aos crentes: Receber este sacramento em pão e vinho, portanto, nada mais é que receber um sinal certo dessa comunhão e uíiião com Cristo e todos os santos. É como se um cidadão rece­ besse um sinal, um documento ou algum outro símbolo, para assegurá-lo de que é de fato um cidadão da cidade e um membro dessa comunidade particular [...] Nesse sacramen­ to, portanto, a pessoa recebe um sinal certo do próprio Deus de que ela está unida com Cristo e os santos, e que tem tudo em comum com eles, e que o sofrimento e a vida de Cristo são também dela.3

Essa ênfase nos sacramentos como símbolos de pertença à comunida­ de cristã talvez seja mais característica de Zuínglio do que de Lutero (veja a seção correspondente abaixo). Não obstante, é um elemento significati­ vo do pensamento de Lutero sobre esse tema. Já começamos a tratar da posição de Lutero quanto aos sacramentos; agora devemos considerá-la com mais detalhes.

Os sacramentos segundo Lutero No seu tratado reformista de 1520,0 cativeiro babilônico da igreja cristã, Lutero fez um grande ataque ao entendimento católico dos sacramentos.

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Beneficiando-se dos mais recentes estudos filológicos humanistas, ele afir­ mou que, com base no texto grego, praticamente não havia justificativa para o uso que a Vulgata fazia do termo sacramentum. Embora a igreja católica reconhecesse sete sacramentos, Lutero inicialmente reconheceu apenas três (batismo, Eucaristia e penitência), mas logo depois, apenas dois (batismo e Eucaristia). A transição entre essas duas posições pode ser vista na própria obra O cativeiro babilônico. Podemos fazer uma pausa para exa­ minar essa mudança e determinar sua razão. (A propósito, Henrique VIII da Inglaterra ganhou do papa o título Fidei Defensor, “defensor da fé”, a seu próprio pedido, por causa de sua obra antiluterana Assertio septem sacramentorum, “Afirmo que há sete sacramentos”. Esse título, que ainda apare­ ce em moedas britânicas na forma abreviada, F. D., representa uma réplica às posições desenvolvidas por Lutero na obra O cativeiro babilônico.) A obra inicia com uma poderosa declaração de princípios, que aban­ dona o consenso medieval quanto aos sacramentos: “Eu nego que existam sete sacramentos e mantenho agora que há apenas três: batismo, penitên­ cia e o pão. Todos os três foram sujeitados a um cativeiro miserável pelas autoridades romanas, e a igreja foi roubada de toda a sua liberdade”.4No entanto, no final da obra, Lutero já coloca considerável ênfase na impor­ tância de um sinal físico visível. Lutero indica essa mudança significativa em sua posição com a seguinte declaração: Contudo, parece correto restringir o nome de sacra­ mento àquelas promessas de Deus que têm sinais anexados a elas. As demais, não estando conectadas a sinais, são me­ ramente promessas. Portanto, a rigor, há apenas dois sacra­ mentos na igreja de Deus - o batismo e o pão. Isso porque apenas nesses dois encontramos o sinal divinamente insti­ tuído e a promessa da remissão de pecados.5

Assim, segundo Lutero, a penitência deixa de ter status de sacramen­ to, pois as duas características essenciais de um sacramento são a Palavra de Deus e um sinal sacramental externo (tal como a água no batismo e o pão e vinho na Eucaristia). Os únicos verdadeiros sacramentos na igreja do Novo Testamento, portanto, eram o batismo e a Eucaristia; a penitên­ cia, por não ter um sinal externo, não podia mais ser considerada como um sacramento. Lutero ainda argumenta que o sistema sacramental medieval dava uma proeminência totalmente injustificada ao papel do sacerdote. Teori­ camente, esse desenvolvimento não deveria ter acontecido, devido à teo­ logia sacramental que se desenvolveu em reação à controvérsia donatista

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do final do século 4o e do início do século 5o. A questão nessa controvérsia era se um sacerdote imoral (tal como os que colaboraram com as autori­ dades romanas durante a época da perseguição) poderia ser autorizado a batizar ou celebrar a Eucaristia. Desenvolveram-se duas teorias rivais quanto ao papel desempenhado pelo sacerdote: 1. Os sacramentos operam ex opere operantis (literalmente, “por meio da operação daquele que opera”). Nesse caso, a eficácia dos sacramentos é entendida como dependente das qualidades espirituais e morais do próprio sacerdote. Os crentes só se bene­ ficiarão dos sacramentos se estes forem administrados por um sacerdote fiel. 2. Os sacramentos operam ex opere operato (literalmente, “por meio da operação que é operada”). Nesse caso, a eficácia dos sacramentos é entendida como não dependente das qualidades pessoais do sacerdote, mas sim da qualidade inerente aos pró­ prios sacramentos. As bases finais da eficácia sacramental estão em Cristo, cuja pessoa e benefícios são transmitidos pelos sacra­ mentos, não pelo sacerdote em si. Portanto, um sacerdote imo­ ral pode ser autorizado a celebrar os sacramentos, pois a base da validade deles não está no sacerdote. A primeira posição corresponde à posição rigorosa dos donatistas; a segunda, à posição de Agostinho (e, subsequentemente, à da igreja cató­ lica). Lutero e os reformadores magistrais não hesitaram em seguir essa opinião majoritária. Portanto, pode-se pensar que estava firmemente estabelecido o prin­ cípio de que o sacerdote não desempenha um papel importante quanto aos sacramentos. De fato, argumenta Lutero, aconteceram diversas coisas pelas quais os sacramentos foram “feitos cativos pela igreja”. Ele lista três modos pelos quais surgiu essa situação inaceitável: 1. A prática da “comunhão de um tipo” (em outras palavras, dar aos leigos apenas o pão, .e não o pão e o vinho). Até o século 12, era prática geral permitir que todos os presentes na missa consumissem tanto o pão consagrado quanto o vinho consagrado. No entanto, parece que durante o século 11, considerou-se cada vez mais como pecado o descuido dos leigos com o vinho, pois estes deixavam cair sobre o chão nada limpo das igrejas aquilo que, segundo a emergente teologia da transubstanciação, era o sangue de Cristo. Ao despontar o século 13, os leigos já tinham sido efetivamente barrados de receber o vinho.

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Segundo Lutero, isso não é justificável nem tem precedentes bíblicos ou patrísticos. Ele declara que é pecaminosa a recusa clerical de oferecer o cáli­ ce (o recipiente contendo o vinho) aos leigos. A razão principal para Lutero tomar essa posição se refere às suas implicações teológicas: impede-se aos leigos o acesso ao que o vinho significa. O simbolismo do sacramento só pode ser aceitável se os leigos tiverem acesso tanto ao pão quanto ao vinho: todos os benefícios de Cristo para todos do povo de Cristo. A atitude de Lutero foi tão influente que a prática de oferecer o cálice aos leigos se tornou uma marca da fidelidade de uma congregação à Reforma. 2. A doutrina da transubstanciação (que analisaremos abaixo) parecia um absurdo a Lutero, uma tentativa de racionalizar um mistério. Para ele, o ponto\crucial é que Cristo está realmente presente na Eucaristia - não uma teoria particular sobre como ele está presente. Se o ferro é colocado no fogo e é aquecido, ele brilha; nesse ferro brilhante, tanto o ferro quanto o calor estão presentes. Por que não usar uma analogia simples do cotidia­ no como essa para ilustrar o mistério da presença de Cristo na Eucaristia, em vez de racionalizá-la usando sutilezas escolásticas? De minha parte, se não consigo compreender como o pão é o corpo de Cristo, eu levarei minha razão cativa à obediência a Cristo. Apegando-me simplesmente às suas palavras, creio firmemente não apenas que o corpo de Cris­ to está no pão, mas que o pão é o corpo de Cristo. Minha garantia disso são as palavras que dizem: “tomou o pão; e tendo dado graças, o partiu e disse: Isto [ou seja, este pão que ele tomou e partiu] é o meu corpo” (ICo 11.23-24).6

Não é a doutrina da transubstanciação que deve ser crida, mas sim­ plesmente que Cristo está realmente presente na Eucaristia. Esse fato é mais importante que qualquer teoria ou explicação. 3. Também é igualmente não bíblica a ideia de que o sacerdote faz uma oferta ou realiza uma boa obra ou sacrifício em nome do povo. Para Lute­ ro, o sacramento é primariamente uma promessa de remissão de pecados, a ser recebida pelo povo por meio da fé: Veja, pois, que o que chamamos de missa é uma pro­ messa de perdão de pecados feita a nós por Deus, e essa promessa foi confirmada pela morte do Filho de Deus [...] Se a missa é uma promessa, como foi dito, então o acesso

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O pensamento da Reforma a ela deve ser ganho não por qualquer obra, ou poder, ou mérito pessoal, mas somente pela fé. Pois onde há a palavra do Deus que promete, necessariamente deve haver a fé do crente que aceita. Fica evidente, portanto, que o início da nossa salvação é uma fé que se apega à palavra do Deus que promete, o qual - sem qualquer esforço de nossa parte - em misericórdia gratuita e não merecida toma a iniciativa e nos oferece a palavra de sua promessa.7

Para Lutero, os sacramentos têm a ver com a geração e o fortalecimen­ to da fé do povo de Deus, enquanto a igreja medieval tendia a tratá-los como um tipo de mercadoria comerciável, capaz de acumular mérito. Consideramos até aqui a posição de Lutero quanto aos sacramentos em geral. Nas duas seções seguintes, consideraremos sua posição quanto a sacramentos específicos. Iniciamos considerando um aspecto do seu pen­ samento que posteriormente se provou controverso, levando finalmente a uma divisão dentro do movimento reformista na Alemanha e na Suíça, até esse ponto mais ou menos unido. A questão se refere à “presença real” - ou seja, se é possível pensar que Cristo está fisicamente presente na Eu­ caristia, e de que maneira isso acontece.

A presença real segundo Lutero Lutero foi ordenado como sacerdote em 1507, e celebrou sua primeira missa em Erfurt no dia 2 de maio desse ano. Ao compartilhar sua lem­ brança desse evento à mesa de jantar, em 5 de dezembro de 1538, Lutero recordou que suas principais lembranças dessa grande ocasião se referiam ao fato de ter se sentido importante e sua ansiedade de acidentalmente se esquecer de algo. Não encontramos em seus escritos qualquer dúvida quanto à compreensão católica tradicional da missa, contudo, até 1519. Já comentamos sobre a “descoberta teológica” de Lutero em 1515, quan­ do ele teve sua celebrada percepção do novo sentido da “justiça de Deus” (veja a seção “A descoberta da ‘justiça de Deus’ por Lutero” no capítulo 7). Embora essa descoberta inicialmente não pareça ter tido efeito sobre sua atitude quanto aos sacramentos, parece já se prenunciar nela um aspecto de sua crítica posterior à teologia medieval dos sacramentos. Significativa­ mente, está ligada a essa descoberta uma nova hostilidade ao uso de ideias aristotélicas na teologia. Em sua obra Disputa contra a teologia escolástica, de 1517, Lutero deixa clara sua rejeição total ao aristotelismo na teologia. A importância desse desenvolvimento antiaristotélico reside na sua relação com a doutrina medieval da transubstanciação. Essa doutrina foi

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definida pelo Quarto Concilio de Latrão (1215), usando a famosa distin­ ção de Aristóteles entre “substância” e “acidente”. Segundo Aristóteles, a substância de algo é sua natureza essencial, enquanto seus acidentes são suas aparências externas (por exemplo, sua cor, formato, cheiro, etc.). A teoria da transubstanciação afirma que os acidentes do pão e do vinho (sua aparência externa: sabor, cheiro, etc.) permanecem sem mudança no momento da consagração, mas a substância de pão e vinho é mudada em substância do corpo e sangue de Jesus Cristo. Lutero rejeitava essa “pseudofilosofia” como absurda e incentivou a re­ jeição de tais ideias aristotélicas. Aristóteles não tinha espaço na teologia cristã. Apesar disso, é essencial reconhecer que Lutero não criticou a ideia básica subjacente de que o pão e o vinho se tornam o corpo e o sangue de Cristo: “Esse erro não é importante, se tão somente se deixar o corpo e o sangue de Cristo junto com a Palavra”. A objeção de Lutero não era quan­ to à ideia da “presença real” em si, mas sim quanto a um modo específico de explicar essa presença. Para ele, Deus não está meramente por trás dos sacramentos: ele também está neles. A posição de Lutero de que o pão e o vinho realmente se tornavam o corpo e o sangue de Cristo não resulta de mero conservadorismo teoló­ gico. De fato, Lutero afirma que, se pudesse demonstrar que essa posição não era bíblica, ele seria o primeiro a abandoná-la. No entanto, parecia-lhe que esse era realmente o significado óbvio das passagens bíblicas, tais como Mateus 26.26: hoc est corpus meum, “isto é meu corpo”. O versículo era perfeitamente claro e, para ele, não admitia qualquer outra interpre­ tação. Para Lutero, parecia que todo o princípio da clareza da Escritura (que ele considerava fundamental para o seu programa reformista nesse momento) estava em jogo na interpretação desse versículo. Andreas Karlstadt, seu ex-colega em Wittenberg que finalmente se tor­ nou seu oponente na década de 1520, pensava diferente: para ele, Cristo apontou para ele mesmo ao dizer tais palavras. Lutero não teve dificulda­ de em desconsiderar isso como uma interpretação incorreta da passagem. Ele teve muito mais dificuldade em lidar com a afirmação de Zuínglio de que a palavra “é” era simplesmente uma figura de linguagem retórica (conhecida como alloiosis), que na verdade quer dizer “significa” ou “re­ presenta” e que não deve ser entendida literalmente.

O batismo infantil segundo Lutero Uma controvérsia importante da era da Reforma se refere à legitimi­ dade do batismo de crianças - e, se era legítimo, que justificativa teoló­ gica podia ser fornecida para a prática. O Novo Testamento não inclui

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referências específicas ao batismo de crianças. Entretanto, não proíbe explicitamente a prática. Há também diversas passagens (tais como At 16.15,33; 1Co 1.16) que podem ser interpretadas como permitindo ou im­ plicando tal prática - por exemplo, referências ao batismo de famílias in­ teiras (o que provavelmente teria incluído crianças). Paulo trata o batismo como uma contrapartida espiritual da circuncisão (Cl 2.11-12), sugerindo que o paralelo possa ser estendido à sua aplicação às crianças. A prática de batizar as crianças de pais cristãos - em geral denominada como “pedobatismo” - parece ter sido uma resposta a diversas pressões. É possível que o paralelo com o rito judaico da circuncisão tenha levado os cristãos a conceber um rito de passagem equivalente para as crianças cristãs. De modo mais geral, parece ter havido uma necessidade pastoral de que os pais cristãos celebrassem o nascimento de uma criança dentro de uma família crente. O batismo infantil bem pode ter se originado par­ cialmente como reação a essa preocupação. No entanto, deve-se enfatizar que há genuína incerteza a respeito tanto das origens históricas como das causas sociais ou teológicas dessa prática. O que se pode dizer é que a prática se tornou comum, se não universal, no século 2o ou 3o. Porém, deve-se manter essa tradição? Os anabatistas argumentavam que essa prática representava uma dis­ torção da Bíblia. Em nenhum momento o Novo Testamento endossa ou requer explicitamente o batismo infantil. Se a igreja deveria ser reformada devidamente segundo a Palavra de Deus, devia abandonar essa prática e batizar apenas os adultos que a aprovassem. O batismo pressupõe fé da parte do indivíduo. Como, pois, uma criança pode ser batizada? Conside­ raremos as inquietações anabatistas a respeito dessa prática mais à frente neste capítulo (veja a seção correspondente abaixo). Em comum com todos os reformadores magistrais, Lutero manteve a prática tradicional do batismo infantil. Ele argumentou que a igreja pri­ mitiva estava correta em batizar as crianças, pois isso repousa sobre sóli­ da base bíblica. O batismo infantil é claramente consistente com o Novo Testamento. Porém, e quanto ao argumento de que o batismo requer fé? Lutero insiste que a ênfase no batismo não está na fé ou no mérito de quem é batizado, mas na graça e generosidade daquele que concede graça e ordena que sejamos batizados. Tudo depende da Palavra e da ordem de Deus. Isso ago­ ra talvez seja algo sutil, mas repousa inteiramente sobre o que eu já disse, que o batismo nada mais é do que água e a Palavra de Deus em e com cada um - ou seja, quando se adiciona a Palavra à água, o batismo é válido, mesmo que a fé esteja ausente.8

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Pode-se pensar que a doutrina de justificação somente pela fé de Lu­ tero contradiz essa prática. Afinal de contas, não se pode dizer de modo significativo que as crianças têm fé, se a fé for entendida como uma res­ posta consciente e deliberada às promessas de Deus. Entretanto, deve-se ressaltar que a doutrina de justificação pela fé de Lutero não afirma que o indivíduo que tem fé é justificado por esse motivo: antes, como já vimos (veja a seção “A descoberta da ‘justiça de Deus’ por Lutero” no capítulo 7), afirma que Deus graciosamente concede a fé como um dom. De um modo paradoxal, o batismo infantil é totalmente consistente com a doutrina da justificação pela fé, porque ele enfatiza que a fé não é algo que podemos alcançar, mas algo que nos é dado graciosamente. Para Lutero, os sacramentos não apenas fortalecem a fé dos crentes, mas são capazes de gerar essa fé em primeiro lugar. O sacramento media a Palavra de Deus, que é capaz de evocar a fé. Assim, Lutero não encontra dificuldades com a prática do batismo infantil. O batismo não pressupõe fé; antes, ele gera fé. “Uma criança se torna um crente se Cristo no batismo fala com ela por meio da boca daquele que batiza, visto que é sua Palavra, seu mandamento; e sua Palavra não pode ficar sem fruto”. O batismo efe­ tua o que ele significa: “Assim, vemos quão grande e excelente é o batismo, pois nos livra das mandíbulas do diabo e nos torna propriedade de Deus, suprime e tira o pecado, diariamente fortalece a nova pessoa, e é (e sem­ pre permanecerá) eficaz até que passemos deste estado de miséria para a glória eterna”.9

Os sacramentos segundo Zuínglio Como Lutero, Zuínglio também tinha graves apreensões quanto ao termo “sacramento” em si. Ele observou que o termo tinha o sentido bá­ sico de “juramento” e, inicialmente, tratou os sacramentos do batismo e da Eucaristia (tendo rejeitado os demais cinco sacramentos do sistema católico) como sinais da fidelidade de Deus ao seu povo e de sua promessa graciosa de perdão. Assim, escreveu em 1523 que a palavra “sacramento” podia ser usada para se referir àquelas coisas que “Deus tinha instituído e ordenado na sua palavra, o que é tão firme e certo quanto se ele tivesse feito um juramento nesse sentido”. Até esse ponto, há certo grau de se­ melhança entre as posições de Lutero e Zuínglio quanto às funções dos sacramentos (embora, como veremos abaixo, a questão da presença real de Cristo na Eucaristia os tenha dividido radicalmente). Essa concordância limitada, contudo, já tinha se evaporado em 1525. Zuínglio reteve a ideia de “sacramento” como juramento ou garantia; po­ rém, antes, ele entendera isso como sendo o juramento divino defidelidade

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para conosco, enquanto a essa altura ele afirmava que se refere ao nosso juramento de obediência e lealdade uns para com os outros. Deve-se recor­ dar que Zuínglio era capelão do exército da Confederação Suíça (e estava presente na derrota desastrosa em Marignano em setembro de 1515). Inspirando-se no uso militar de juramentos, Zuínglio argumentou que um “sacramento” é basicamente uma declaração de lealdade da pessoa para com a comunidade. Assim como um soldado jura lealdade ao seu exército (na pessoa do general), da mesma maneira o cristão jura lealdade aos seus companheiros cristãos. Zuínglio usa o termo alemão Pflichtszeichen, “uma demonstração de lealdade”, para designar a essência de um sacramento. Um sacramento, portanto, é o instrumento “pelo qual alguém prova à igreja que deseja ser, ou já é, um soldado de Cristo, e que informa à igreja inteira, mais do que a si mesmo, a respeito da sua fé”. No batismo, o crente jura lealdade à comunidade da igreja; na Eucaristia, ele demonstra publi­ camente essa lealdade. Assim, Zuínglio desenvolveu a ideia de que os sacramentos são subor­ dinados à pregação da Palavra de Deus. É essa pregação que traz a fé à existência; os sacramentos apenas fornecem uma ocasião na qual essa fé pode ser demonstrada publicamente. A pregação da Palavra de Deus é de importância central; os sacramentos são como o selo que lacra uma carta - confirma sua substância sem acrescentar algo a ela. Zuínglio desenvolveu o significado da Eucaristia com uma analogia mi­ litar adicional, tirada de sua experiência como capelão do exército suíço: Se alguém prende no seu peito uma cruz branca, pro­ clama que deseja ser um confederado. Se faz a peregrinação até Nâhenfels e rende louvores e ações de graças a Deus pela vitória concedida aos nossos ancestrais, testifica que é real­ mente um confederado. Do mesmo modo, quem recebe a marca do batismo é aquele que resolveu ouvir o que Deus lhe diz, aprender os preceitos divinos e viver sua vida de acordo com eles. E quem na congregação dá graças a Deus na recordação ou Ceia testifica que se regozija na morte de Cristo do fundo de seu coração, e agradece a Cristo por ela.10 O texto se refere à vitória da Suíça sobre os austríacos em 1388, perto de Nâhenfels, no cantão de Glarus. Essa vitória geralmente é considerada como o início da Confederação Suíça (ou Helvética), e era comemorada com uma peregrinação ao local da batalha na primeira quinta-feira de abril. Zuínglio argumenta duas coisas. Primeiro, o soldado suíço usa uma cruz branca (então incorporada à bandeira nacional suíça, é claro) como

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uma Pflichtszeichen, demonstrando publicamente sua lealdade à Confede­ ração. Do mesmo modo, o cristão demonstra publicamente sua lealdade à igreja, inicialmente pelo batismo e, depois, ao participar da Eucaristia. O batismo é a “entrada visível e o selo em Cristo”. Segundo, o evento histórico que gerou o início dà Confederação é co­ memorado como um símbolo da lealdade a esta mesma Confederação. Do mesmo modo, o cristão comemora o evento histórico que gerou o início da igreja cristã (a morte de Jesus Cristo) como um símbolo do seu compromisso com essa igreja. A Eucaristia, portanto, é um memorial do evento histórico que levou ao estabelecimento da igreja cristã e é uma de­ monstração da lealdade do crente a essa igreja e a seus membros. Esse entendimento da natureza da Eucaristia é confirmado no trata­ mento de Zuínglio de Mateus 26.26: no latim da Vulgata, o texto afirma hoc est corpus meum, “isto é meu corpo”. Essas palavras foram ditas por Cristo durante a Última Ceia, no dia anterior à sua morte, indicando a maneira pela qual desejava ser lembrado pela sua igreja. É como se, Zuín­ glio afirma, Cristo tivesse dito: “Eu confio a vocês um símbolo desta mi­ nha rendição e testamento, para despertar em vocês a memória de mim e de minha bondade para com vocês; assim, ao verem esse pão e esse cálice exibidos nessa ceia memorial, poderão se recordar de mim como tendo sido entregue por vocês, como se me vissem diante de vocês assim como me veem agora comendo com vocês”. Para Zuínglio, a morte de Cristo tem a mesma importância para a igreja que a batalha de Náhenfels teve para a Confederação Suíça. É o evento de fundação da igreja cristã, central à sua identidade e autocompreensão. As­ sim como a comemoração de Nãhenfels não envolve a encenação daquela batalha, do mesmo modo a Eucaristia não envolve a repetição do sacrifício de Cristo, nem sua presença na comemoração. A Eucaristia é “um memo­ rial do sofrimento de Cristo, não um sacrifício”. Por motivos que explo­ raremos abaixo, Zuínglio insiste que as palavras “isto é meu corpo” não podem ser entendidas literalmente; desse modo, elimina qualquer ideia da “presença real de Cristo” na Eucaristia. Assim como um homem, ao sair de casa para uma longa jornada, pode dar seu anel à sua esposa para ela se re­ cordar dele até sua volta, do mesmo modo Cristo deixa para sua igreja um símbolo para que ela se recorde dele até o dia em que ele voltará em glória.

A presença real segundo Zuínglio O pano de fundo da posição de Zuínglio quanto à presença real de Cristo pode ser remontado a alguns acontecimentos aparentemente in­ significantes de 1509. Em novembro desse ano, ocorreu uma mudança

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de pessoal numa pequena biblioteca na Baixa Escócia, que necessitava de catalogação do seu acervo. O trabalho foi confiado a Cornelius Hoen, que descobriu que a biblioteca continha uma coleção significativa dos escri­ tos do notável humanista Wessel Gansfort (c. 1420-89). Um destes era intitulado Sobre o sacramento da Eucaristia. Embora Gansfort não tenha negado a doutrina da transubstanciação, ele desenvolveu a ideia de uma comunhão espiritual entre Cristo e o crente. Hoen, aparentemente atraído por essa ideia, a transformou numa crítica radical à doutrina da transubs­ tanciação, apresentando-a na forma de uma carta. Parece que essa carta chegou até Lutero em algum ponto de 1521 (embora a evidência não seja inteiramente conclusiva). Em 1523 a carta já havia alcançado Zurique, onde foi lida por Zuínglio. Nessa carta, Hoen sugeria que a palavra est em hoc est corpus meum não deve ser interpretada literalmente como “é” ou “é idêntica a”, mas sim como significai, “significa”. Por exemplo, quando Cristo diz “Eu sou o pão da vida” (Jo 6.48), ele claramente não está se identificando com um pe­ daço de pão ou com o pão de modo geral. A palavra “é” aqui deve ser entendida num sentido metafórico ou não literal. Os profetas do Antigo Testamento podem ter realmente predito que Cristo iria “tornar-se car­ ne” (incarnatus), mas isso aconteceria apenas uma única vez. Em nenhum momento os profetas predisseram ou os apóstolos pregaram que Cristo iria, por assim dizer, “tornar-se pão” (impanatus) diariamente por meio das ações de todos os sacerdotes que oferecem o sacrifício da missa. Hoen desenvolveu várias ideias que finalmente se insinuaram no pen­ samento eucarístico de Zuínglio. Duas merecem atenção aqui. A primeira é a ideia de que a Eucaristia é como um anel dado por um noivo à sua noi­ va para assegurá-la de seu amor. É um penhor- uma ideia que ressoa por todos os escritos de Zuínglio sobre esse tema. Zuínglio usa a imagem do anel como penhor do amor com considerável destreza em diversos mo­ mentos, e é possível que tenha sido Hoen quem implantou essa poderosa imagem na sua mente. A segunda noção que Hoen usa é a da comemora­ ção de Cristo em sua ausência. Observando que a expressão “isto é meu corpo” de Cristo é seguida imediatamente pelas palavras “Fazei isto em memória de mim”, Hoen argumenta que o segundo conjunto de palavras claramente indica a comemoração de “uma pessoa que está ausente (pelo menos, fisicamente ausente)”. Embora Lutero tenha reagido com notável falta de entusiasmo às ideias de Hoen, Zuínglio foi consideravelmente mais positivo em sua rea­ ção. Em novembro e dezembro de 1524, ele já promovia as ideias de Hoen com razoável vigor. No ano seguinte, providenciou para que a carta fosse publicada. No verão de 1525, o erudito Ecolampádio de Basiléia se juntou

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ao debate, produzindo um livro no qual argumenta que os escritores do período patrístico nada sabiam sobre a transubstanciação ou a posição de Lutero sobre a presença real, mas tendiam à posição agora cada vez mais associada com Zuínglio. Zuínglio argumentou que a Escritura usa muitas figuras de linguagem. Assim, a palavra “é” pode em certos trechos indicar “é absolutamente idêntico a” e em outros indicar “representa” ou “significa”. Por exemplo, no seu tratado Sobre a Ceia do Senhor (1526), ele escreve: Por toda a Bíblia encontramos figuras de linguagem, chamadas em grego de tropos, ou seja, algo que é metafórico ou que deve ser entendido em outro sentido. Por exemplo, em João 15 Cristo diz “Eu sou a videira”. Isso significa que Cristo é como uma videira ao considerarmos sua relação conosco, pois somos sustentados e crescemos nele do mes­ mo modo que os galhos crescem na videira [...] Do mesmo modo, em João 1 lemos: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. A primeira parte desse versículo é um tropo, pois Cristo não é literalmente um cordeiro.11

Depois de uma exploração um tanto tediosa das passagens bíblicas re­ levantes, Zuínglio conclui que “há inúmeras passagens na Escritura nas quais a palavra e’ quer dizer ‘significa’”. A questão que deve ser resolvida, portanto, é se as palavras de Cristo em Mateus 26, “isto é meu corpo”, também podem ser entendidas metaforicamente ou in tropice. Já ficou su­ ficientemente claro que nesse contexto a palavra “é” não pode ser toma­ da literalmente. Portanto, conclui-se que deve ser entendida de maneira metafórica ou figurada. Nas palavras “isto é meu corpo”, a palavra “isto” significa o pão, e a palavra “corpo” significa o corpo que morreu por nós. Desse modo, a palavra “é” não pode ser entendida literalmente, pois o pão não é o corpo. Esse ponto foi desenvolvido por Ecolampádio em 1527, que afirmou que “ao lidar com sinais, sacramentos, quadros, parábolas e interpreta­ ções, podemos e devemos entender as palavras de modo figurado e não literal”. Zuínglio desenvolveu esse argumento quanto à relação entre o si­ nal e a coisa que é significada. Ele usa essa distinção para argumentar que é inconcebível que o pão possa ser o corpo de Cristo: Um sacramento é o sinal de algo santo. Quando eu digo “o sacramento do corpo do Senhor”, estou simplesmente me referindo ao pão que é o símbolo do corpo de Cristo que

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O pensamento da Reforma morreu em nosso lugar [...] Mas o corpo real de Cristo é o corpo que está assentado à direita de Deus, e o sacramento do seu corpo é o pão, e o sacramento do seu sangue é o vinho, do qual compartilhamos com ações de graças. Ora, o sinal e aquilo que é significado não podem ser a mesma coisa. Portanto, o sacramento do corpo de Cristo não pode ser o próprio corpo.12

Um argumento adicional usado por Zuínglio contra Lutero, insinuado na passagem citada acima, se refere à localização de Cristo. Para Lutero, Cristo está presente na Eucaristia. Quem recebe o pão e o vinho, recebe Cristo. Contudo, Zuínglio ressalta que tanto a Escritura quanto os credos afirmam que Cristo está agora “assentado à direita de Deus”. O fato é que Zuínglio não tem a menor ideia de onde isso possa ser, e não desperdiçou tempo especulando sobre sua localização - mas, ele argumentou, onde quer que Cristo esteja agora, isso significa que ele não está presente na Eucaristia. Ele não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Lutero argumenta que a expressão “à direita de Deus” é metafórica, na verdade, e não deve ser entendida literalmente. Significa de fato “a esfera de influ­ ência de Deus” ou “o governo de Deus”. Dizer que “Cristo está assentado à direita de Deus” não significa que agora Cristo está posicionado num local definido da estratosfera, mas simplesmente que Cristo está presente sempre que Deus governa. Uma vez mais, a questão de quais passagens bíblicas interpretar literalmente e quais interpretar metaforicamente surge como central ao debate a respeito da presença real. O mesmo se aplica à noção de “alimentar-se de Cristo”, uma imagem com uma história distinta de uso na igreja cristã, tradicionalmente liga­ da à doutrina da transubstanciação. Visto que o pão é o corpo de Cristo, pode-se dizer que ao comer o pão o crente se alimenta de Cristo. Zuínglio insiste que essa imagem bíblica deve ser interpretada figuradamente como referência a confiar em Deus por meio de Cristo. Então, o que é diferente no pão da comunhão? O que torna o pão num culto de comunhão diferente de qualquer outro pão? Se não é o corpo de Cristo, então o que é? Zuínglio responde a essa pergunta com uma analo­ gia. Considere o anel de uma rainha, ele sugere. Agora considere esse anel em dois contextos bem diferentes. No primeiro contexto, o anel está me­ ramente presente. Talvez você possa imaginar o anel deixado sobre uma mesa, sem associações. Agora imagine esse anel transferido para um novo contexto. É colocado no dedo da rainha, como presente do seu rei. Agora ele tem associações pessoais, derivadas de sua conexão com o rei - tais como a autoridade, o poder e a majestade dele. Seu valor agora é muito

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maior que o do ouro do qual é feito. Essas associações surgem por meio da transferência do contexto original para o novo contexto: o anel em si mesmo permanece completamente sem mudanças. Assim, o anel ganha associações e valor por meio do seu novo contexto; essas associações e valor não são inerentes, mas adquiridos. Assim também acontece com o pão da comunhão, argumenta Zuín­ glio. O pão e o anel permanecem sem mudanças, mas sua significação se altera dramaticamente. A significação - em outras palavras, as associações do objeto - pode mudar, sem ter havido qualquer mudança na natureza do objeto em si. Zuínglio sugere que é exatamente o mesmo processo que opera no caso do pão e do vinho. No seu contexto cotidiano comum, são simples pão e vinho, sem associações especiais. Mas quando são movidos para um novo contexto, assumem associações novas e importantes. Ao serem colocados no centro de uma comunidade adoradora e ao se rela­ tar a história da última noite de vida de Cristo, eles se tornam poderosos lembretes dos acontecimentos que formaram a base da fé cristã. É o seu contexto que lhes dá esse significado; eles permanecem sem mudanças em si mesmos.

O batismo infantil segundo Zuínglio Zuínglio foi obrigado a enfrentar uma dificuldade óbvia quanto ao ba­ tismo infantil. Como, era perguntado, ele poderia justificar o batismo de crianças, se estas não tinham fé que podia ser demonstrada publicamen­ te? A resposta tradicional a esse dilema se baseava no pecado original. O batismo purificava a culpa do pecado original. Esse mesmo argumento procedia de Agostinho no início do século 5o, e fora usado por Lutero em sua defesa da prática do batismo infantil. No entanto, Zuínglio tinha dúvidas aqui. Seguindo Erasmo, ele tinha dificuldades com a noção do pecado original, e tendia à opinião de que as crianças não tinham qualquer pecaminosidade original inerente que precisasse ser perdoada. Desse modo, o batismo infantil parecia não ter propósito - a menos que surgisse outra justificativa teórica para a prática. Zuínglio não tinha dificuldade com a ideia de que os indivíduos cometem pecados. Seu problema estava com a noção de um estado de pecado origi­ nal, que ele considerava uma ideia não bíblica. É fato que Zuínglio, no final da década de 1510 e no início da de 1520, sentiu apreensão em continuar a prática do batismo infantil à luz de sua rejeição da noção do pecado original. Em 1524, contudo, ele já parece ter desenvolvido uma teoria do batismo que superava totalmente essa difi­ culdade. Zuínglio ressaltou que, no Antigo Testamento, os meninos eram

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circuncidados alguns dias depois de nascidos como um sinal de pertença ao povo de Israel. A circuncisão era o ritual estabelecido pela aliança do Antigo Testamento para demonstrar que a criança circuncidada pertencia à comunidade da aliança. A criança nascera dentro de uma comunidade, à qual agora ela pertencia - e a circuncisão era o sinal de que ela pertencia a essa comunidade. Havia uma antiga tradição dentro da teologia cristã que defendia o batismo como o equivalente cristão da circuncisão. Zuínglio desenvol­ veu essa ideia, indicando que o batismo é mais suave que a circuncisão, pois não envolve dor ou derramamento de sangue, e mais inclusivo, pois abrange tanto meninos quanto meninas. Também é um sinal de pertença a uma comunidade - nesse caso, a igreja cristã. O fato de a criança não estar consciente dessa pertença é irrelevante: ela é um membro da comu­ nidade cristã, e o batismo é a demonstração pública dessa membresia. O contraste com Lutero nesse ponto se torna óbvio. Subsequentemente, Zuínglio aperfeiçoou seu argumento. Já observa­ mos (veja a seção “O contexto social da Reforma” no capítulo 1) como as cidades eram vistas como comunidades orgânicas no final da Idade Média, um fator que parece ter sido significativo para muitas cidades ao conside­ rarem se aceitavam a Reforma. Esse mesmo conceito aparece em Zuínglio, que trata “estado” e “igreja” como virtualmente equivalentes: “Uma cidade cristã nada mais é que uma igreja cristã”. Por isso, os sacramentos não sig­ nificavam apenas lealdade à igreja, mas também lealdade à comunidade da cidade; nesse caso, Zurique. Recusar permitir que uma criança fosse batizada, portanto, era um ato de deslealdade para com a comunidade da cidade de Zurique. Assim, os magistrados estavam autorizados a expulsar de Zurique todos que se recusassem a ter suas crianças batizadas. Como já vimos, os anabatistas consideravam injustificável o batismo infantil. Visto que a Reforma radical era uma importante ameaça à Re­ forma em Zurique na década de 1520, tanto por suas noções religiosas quanto políticas, a compreensão de batismo de Zuínglio como um even­ to tanto eclesiástico quanto cívico forneceu um meio excelente de impor conformidade. Desse modo, o batismo passou a ter importância vital para Zuínglio, pois fornecia um critério pelo qual se podia distinguir entre dois conceitos totalmente diferentes de igreja. O conceito de Zuínglio de igreja munici­ pal ou estatal era desafiado de maneira crescente pelos anabatistas, cuja visão de igreja envolvia o retorno à simplicidade da igreja apostólica. Para os radicais, a pureza daquela igreja tinha sido totalmente destruída devi­ do à conversão do imperador romano Constantino no início do século 4o, o que gerou uma estreita aliança entre igreja e estado. Os anabatistas

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queriam romper essa ligação, enquanto Zuínglio desejava mantê-la na forma específica desenvolvida em Zurique. Portanto, Zuínglio se sentiu justificado em declarar que “a questão não é o batismo, mas sim revolta, facção e heresia”. O batismo representava o critério que determina se um indivíduo era um cidadão leal de Zurique ou um traidor dessa cidade. Quando o anabatismo se tornou uma ameaça crescente à cidade na década de 1520, os magistrados reconheceram a importância da teologia de Zuínglio nesse ponto. Mas isso simplesmente enfatiza quão estreita era a ligação entre teologia e política, igreja e cidade, na primeira era da Re­ forma. O próprio termo “Reforma magistral” indica esse estreito relacio­ namento entre os magistrados e a Reforma.

Lutero versus Zuínglio: um resumo e avaliação O debate entre Lutero e Zuínglio é um tanto técnico, e o leitor pode ter encontrado dificuldades em compreendê-lo. Por isso, pode ser útil re­ sumir os principais pontos de diferença entre eles, tanto para recapitular como para ampliar a análise acima. 1. Os dois reformadores rejeitaram o esquema sacramental medieval. Embora a teologia medieval tivesse identificado sete sacramentos, os reformadores insistem que apenas dois sacramentos - o batismo e a Eucaristia - são autorizados pelo Novo Testamento. Lutero é possivelmente mais conservador que Zuínglio a esse respeito, ten­ do permitido inicialmente que a penitência fosse considerada um sacramento, até abandonar essa noção em 1520. 2. Lutero entendia que a Palavra de Deus e os sacramentos estão li­ gados de modo inseparável. Ambos testemunham de Jesus Cristo e ambos mediam seu poder e presença. Assim, os sacramentos têm a capacidade de criar fé, bem como de fortalecê-la e demonstrá-la publicamente. Para Zuínglio, a Palavra de Deus cria a fé e os sa­ cramentos a demonstram publicamente. Palavra e sacramento são coisas bem distintas, sendo a primeira de maior importância. 3. Embora ambos os reformadores tenham mantido a prática tradi­ cional do batismo infantil, eles o fizeram por razões bem diferentes. Para Lutero, os sacramentos geram fé; por isso o batismo pode ge­ rar fé na criança. Para Zuínglio, os sacramentos demonstram per­ tença e lealdade a uma comunidade; por isso o batismo demonstra que a criança pertence a uma comunidade.

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4. Lutero foi consideravelmente mais tradicional em sua abordagem à celebração da Eucaristia que Zuínglio. Na sua principal obra de reforma litúrgica, Sobre a ordem do culto público (1523), Lutero dei­ xou claro que admitia manter o título tradicional de “missa”, desde que não fosse entendido como se implicasse um sacrifício, e autori­ zava celebrar a Eucaristia todas as semanas, preferivelmente no ver­ náculo, como o principal culto dominical. Contudo, Zuínglio aboliu o título de “missa” e sugeriu que o ritual evangélico equivalente fos­ se celebrado apenas três ou quatro vezes por ano. Ele não era mais o centro da adoração cristã. Embora Lutero tenha acrescentado uma nova ênfase na pregação no contexto da Eucaristia, Zuínglio insiste que a pregação desloca a Eucaristia de sua usual celebração domi­ nical semanal. 5. Lutero e Zuínglio não conseguiram concordar sobre o significado das palavras hoc est corpus meum (Mt 26.26), centrais à Eucaristia. Para Lutero, est significa “é”; para Zuínglio, quer dizer “significa”. Por trás dessa discordância há dois modos bem diferentes de inter­ pretar a Escritura. 6. Ambos os reformadores rejeitaram a doutrina medieval da tran­ substanciação. Porém, Lutero o fez com base na sua fundamenta­ ção aristotélica, e estava preparado para aceitar a ideia básica por trás da doutrina - a presença real de Cristo na Eucaristia. Zuínglio rejeitou o termo e a ideia. Para ele, na Eucaristia Cristo é relembra­ do em sua ausência. 7. Zuínglio afirma que, como Cristo agora está assentado à direita de Deus, ele não pode estar presente em outros lugares. Lutero rejeitou a declaração de Zuínglio como pouco sofisticada filosoficamente, e defendeu a ideia de que Cristo está presente sem quaisquer limites impostos por espaço ou tempo. A defesa de Lutero da “ubiquidade de Cristo” se baseia em algumas distinções associadas a Guilherme de Ockham, o que persuadiu ainda mais os oponentes de Lutero de que ele tinha caído em alguma nova forma de escolasticismo. A disputa entre Lutero e Zuínglio foi importante tanto no nível teo­ lógico quanto no político. No nível teológico, gerou a dúvida mais séria sobre o princípio da “clareza da Escritura”. Lutero e Zuínglio não con­ seguiam concordar sobre o significado de frases como “isto é meu cor­ po” (que Lutero interpretava literalmente e Zuínglio, metaforicamente)

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e “à direita de Deus” (que - com aparente inconsistência em ambos os lados - Lutero interpretava metaforicamente e Zuínglio, literalmente). Pode-se considerar que o otimismo exegético do início da Reforma foi a pique contra esta rocha: parecia que a Escriturá não era tão fácil assim de ser interpretada. No nível político, a disputa assegurou a separação permanente das duas facções evangélicas da Reforma. Surgiu uma tentativa de mediar entre suas noções rivais no Colóquio de Marburg (1529), ao qual com­ pareceram notáveis como Bucer, Lutero, Melanchthon, Ecolampádio e Zuínglio. A essa altura, tornava-se cada vez mais óbvio que, se a Re­ forma não alcançasse um grau significativo de unidade interna, pelo menos alguns de seus ganhos seriam perdidos. Os católicos não pude­ ram iniciar ações militares contra as cidades da Reforma por causa das contínuas disputas entre o imperador Carlos V e o rei Francisco I da França, de um lado, e o papa Clemente VII, de outro. Em 1529, essas duas disputas foram resolvidas com diferença de poucas semanas. De repente, as duas alas da Reforma passaram a enfrentar uma poderosa ameaça política e militar. O curso de ação mais óbvio diante dessa ameaça teria sido o de chega­ rem a um acordo quanto às suas diferenças. Bucer insistiu nesse procedi­ mento, sugerindo que deviam ser toleradas diferenças entre os evangélicos, desde que concordassem em reconhecer somente a Bíblia como a fonte normativa da fé. O governante local protestante, Filipe de Hesse, ansioso diante das implicações da nova situação política, reuniu Lutero e Zuínglio no salão do castelo de Marburg numa tentativa de resolver as diferenças entre eles. Essa tentativa fracassou em apenas um único ponto. Lutero e Zuínglio conseguiram concordar quanto a quatorze artigos. O décimo quinto continha seis pontos, a respeito dos quais eles concordaram em cinco. O sexto apresentava dificuldades. Relutantemente, Lutero e Zuín­ glio foram forçados a declarar que não tinham “chegado a um acordo so­ bre se o corpo e sangue reais de Cristo estão presentes fisicamente no pão e no vinho”. Portanto, esse único ponto permanecia sem solução. Para Lutero, Cris­ to está realmente presente na Eucaristia, enquanto para Zuínglio ele está presente apenas no coração dos crentes. Ficou frustrada a esperança de Filipe de Hesse de ter uma frente evangélica unificada contra as forças católicas recentemente reorganizadas. Além disso, a credibilidade política da Reforma ficou seriamente comprometida. Em 1530, Carlos V já co­ meçava a reafirmar sua autoridade sobre a Reforma alemã, auxiliado em grande medida pelas conseqüências políticas das diferenças entre Lutero e Zuínglio quanto à Eucaristia.

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Conscientes do que estava acontecendo, os líderes protestantes tenta­ ram curar as feridas resultantes o mais rápido possível. Deve-se registrar uma tentativa importante de definir uma posição protestante comum a respeito dos sacramentos: o Consensus Tigurinus, ou “Consenso de Zuri­ que”, uma fórmula de fé pactuada em maio de 1549. O documento, redigi­ do por grandes líderes como João Calvino e Henrique Bullinger (sucessor de Zuínglio como reformador principal da cidade de Zurique), conseguiu estabelecer um denominador comum significativo num protestantismo até esse ponto dividido quanto a essa questão. Todavia, as rachaduras dentro do protestantismo eram mais profundas que as discordâncias entre Lutero e Zuínglio. Elementos mais radicais do movimento evangélico queriam aplicações mais radicais do princípio da sola scriptura.

Os sacramentos segundo os anabatistas Uma das características teológicas mais distintivas do movimento anabatista foi sua rejeição da prática tradicional do batismo infantil. A razão principal para isso era sua falta de apoio bíblico. Menno Simons (14961561) fez uma crítica detalhada à prática do batismo infantil, argumen­ tando que essa é uma tradição não bíblica que deve ser abandonada por todos que desejam retornar a um cristianismo apostólico mais autêntico. “Em todo o Novo Testamento, não há uma palavra dita ou ordenada sobre batizar crianças, nem por Cristo nem pelos apóstolos”. Contudo, a crítica anabatista ao batismo infantil ia além de sua falta de apoio bíblico. Como observamos antes, os escritores anabatistas argu­ mentavam que o Novo Testamento pressupõe claramente que as pessoas que devem ser batizadas possuem fé. Como Simons argumentou, Cristo “ordenou que o evangelho fosse pregado e que aqueles que cressem de­ viam ser batizados”. Ele insistia que é uma distorção da fé verdadeira per­ mitir que crianças sejam batizadas, visto que elas não demonstram sinais de fé, conhecimento da verdade ou regeneração interior. A maioria dos escritores anabatistas entende que o batismo é uma ceri­ mônia ou ritual realizado ao se reconhecer que uma pessoa mostra claros sinais de fé, arrependimento e regeneração. Esse princípio geral, e suas conseqüências para o batismo infantil, são claramente estabelecidos na Confissão de Schleitheim (1527), uma das mais importantes confissões de fé anabatistas: O batismo deve ser ministrado a todos aqueles que de­ monstram arrependimento e mudança de vida, e creem

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verdadeiramente que seus pecados foram tirados por Cris­ to, e a todos aqueles que andam na ressurreição de Jesus Cristo, e desejam ser enterrados com ele na morte, de modo que possam ressuscitar com ele [...] Isso exclui todo batismo infantil, a principal e pior abominação do papa.13

Assim, o batismo é claramente visto como um sinal físico externo de uma realidade espiritual interior, para a qual ele aponta, mas não causa. Como Simmons ressaltou: “somos batizados porque fomos regenerados por meio da fé na palavra de Deus, visto que a regeneração não é o resul­ tado do batismo, mas o batismo é o resultado da regeneração”. Desse modo, o batismo infantil é claramente inconsistente com essa teologia ge­ ral do batismo. Entretanto, Simmons deixou claro que sua rejeição do ba­ tismo infantil não implicava excluir as crianças do Reino de Deus. O batismo é um sinal, não a causa, dessa membresia. “Cristo prometeu o reino às criancinhas sem batismo”. Também é importante considerardonatismo Movimento que enmos como essa teologia do batismo se fatizava a necessidade de purerelaciona com a eclesiologia anabatisza e santidade, insistindo que a ta, que em geral é donatista quanto ao igreja era uma comunidade de caráter (veja a seção sobre “A controsantos e não um corpo misto de vérsia donatista” no capítulo 8). A prájustos e ímpios. tica de batizar apenas crentes define e assegura uma igreja de crentes. Como declara Balthasar Hubmaier: “sem batismo não há igreja; sem batismo não há discipulado”. O batismo define o ponto de entrada à membresia completa da igreja, e representa uma de­ claração pública de que determinada pessoa é considerada possuidora das características necessárias à admissão. A Reforma radical também discordava da teologia eucarística de Lute­ ro, tendendo na direção da opinião de Zuínglio - e ocasionalmente indo além dela. A noção de que o pão e o vinho da Eucaristia são idênticos fisi­ camente de alguma forma ao corpo e sangue de Cristo foi rejeitada como contrária à razão, à natureza e à Escritura. Como afirma Menno Simons, isso representa uma confusão do sinal sacramental com a realidade que ele representa. Afinal de contas, Israel celebrava o festival da Páscoa sem crer de modo algum que ele recriava fisicamente os acontecimentos do êxodo do Egito. Agora Cristo permanece à direita de Deus, e não pode ser considerado “presente” no pão ou no vinho em qualquer sentido físico. A Ceia do Senhor tem o objetivo de relembrar o passado e reafirmar a fé e o compromisso mútuo dos crentes.

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Os sacramentos segundo Calvino Para Calvino, assim como para todos os reformadores magistrais, os sacramentos são considerados como doadores de identidade: sem os sa­ cramentos, não pode haver igreja cristã. “Onde quer que encontremos a Palavra de Deus sendo pregada de modo puro e ouvida, e os sacramentos administrados segundo a instituição de Cristo, não podemos duvidar de que existe uma igreja”. Portanto, não é a qualidade dos seus membros, mas a presença dos meios autorizados de graça que constitui uma igreja ver­ dadeira. Assim, depois de ter definido uma das “marcas da igreja” (notae ecclesiaé) como a administração dos sacramentos, Calvino foi compelido a dar detalhada consideração ao que são os verdadeiros sacramentos do evangelho e como devem ser entendidos. Ao fazer isso, Calvino estava bem consciente das divergências entre Lutero e Zuínglio e tentou manter um meio-termo entre os pontos de vista rivais. Calvino forneceu duas definições de sacramento: como “o sinal ex­ terno mediante o qual o Senhor sela na consciência as promessas de sua benevolência para conosco, a fim de sustentar a fraqueza da fé”, e como um “sinal visível de uma coisa sagrada; ou, a forma visível de uma graça invisível”. A primeira é uma definição do próprio Calvino, enquanto a se­ gunda é devida a Agostinho (embora Calvino a achasse breve demais para ser útil). Ao insistir que o sacramento deve ser baseado “numa promessa e numa ordem do Senhor”, Calvino segue seus colegas e rejeita cinco dos sete sacramentos tradicionalmente aceitos pela igreja católica, deixando ficar apenas o batismo e a Eucaristia. Para Calvino, os sacramentos são acomodações misericordiosas às nossas fraquezas. Deus, conhecendo a fraqueza de nossa fé, se adapta às nossas limitações: Um sacramento nunca existe sem uma promessa pre­ cedente, mas é associado a ela como um tipo de apêndice, com o propósito de confirmar e selar a própria promessa, tornando-a mais clara para nós, e num sentido ratificá-la [...] Mas como nossa fé é fraca a menos que seja sustentada de todos os lados e mantida de todos os modos, ela tremu­ la, vacila e finalmente colapsa. Aqui nosso misericordioso Senhor, de acordo com sua infinita bondade, de tal modo se acomoda à nossa capacidade que, uma vez que somos criaturas que sempre rastejam no solo e se apegam às coisas carnais, e que não pensam em nada que seja espiritual, e nem mesmo as concebem, condescende em atrair-nos a ele

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por meio desses elementos terrenos, e coloca diante de nós na carne um espelho das bênçãos espirituais.14

O debate central entre Lutero e Zuínglio se referia à relação entre o sinal sacramental e o dom espiritual que ele significa. Pode-se dizer que Calvino ocupa uma posição aproximadamente no meio entre os dois ex­ tremos representados por eles. Nos sacramentos, ele argumenta, há uma ligação tão estreita entre o símbolo e o dom que é simbolizado que se pode “passar facilmente de um para o outro”. O sinal é visível e físico, mas a coisa significada é invisível e espiritual. Contudo, visto que a ligação entre o sinal e a coisa significada é tão estreita, é permitido aplicar um ao outro. Assim, a coisa significada é manifesta pelo seu sinal. Calvino podia man­ ter, portanto, a diferença entre sinal e coisa significada, e ao mesmo tempo insistir que o sinal realmente aponta para o dom significado. Pode-se considerar que o entendimento de Calvino do batismo com­ bina elementos tanto zuinglianos quanto luteranos. Acenando na dire­ ção de Zuínglio, Calvino argumenta que o batismo é uma demonstração pública de lealdade a Deus: “O batismo é o sinal de iniciação pelo qual somos recebidos na sociedade da Igreja” [Institutas §4.15.1]. Assim como Zuínglio afirma que os sacramentos são primariamente eventos eclesiás­ ticos, servindo para demonstrar a lealdade dos crentes à igreja ou co­ munidade cívica, do mesmo modo Calvino enfatiza o papel declaratório do sacramento do batismo. No entanto, ele também incorpora a ênfase caracteristicamente luterana do batismo como um sinal da remissão de pecados e da nova vida dos crentes em Jesus Cristo: “Ainda outro fruto depara o batismo, visto que nos mostra nossa mortificação em Cristo e nossa nova vida nele. [...] Assim sendo, no batismo nos é prometido, pri­ meiro o perdão gratuito dos pecados e a imputação da justiça; segundo, a graça do Espírito Santo, que nos transforma para novidade de vida” [Institutas §4.15.5], Calvino defendeu a validade do batismo infantil, algo comum a to­ dos os reformadores magistrais. Ele argumenta que a prática é uma tra­ dição autêntica da igreja primitiva, e não um desenvolvimento posterior medieval. Zuínglio havia justificado a prática por meio de um apelo ao rito judaico da circuncisão. Por esse rito, ele argumenta, meninos eram apresentados como membros da comunidade da aliança. De um modo semelhante, o batismo é a marca de que uma criança pertence à igreja, à comunidade da nova aliança. A influência crescente dos anabatistas, que Calvino vivenciou em primeira mão durante seu período em Estrasburgo, demonstrava a importância de justificar a prática do batismo infantil, que os anabatistas rejeitavam vigorosamente.

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Assim, Calvino reiterou e estendeu a justificativa pactuai de Zuínglio do batismo infantil: se as crianças cristãs não pudessem ser batizadas, fi­ cariam em desvantagem em relação às crianças judias, que eram seladas de maneira pública e externa na comunidade da aliança por meio da cir­ cuncisão: “De outro modo, se o testemunho pelos quais os judeus eram assegurados da salvação de sua posteridade é tirado de nós, a vinda de Cristo teria tornada a graça divina mais obscura e menos atestada a nós do que aos judeus que viviam antes de nós”. Desse modo, Calvino argumenta que as crianças devem ser batizadas, e não ter negados a elas os benefícios que ele transmite. Na sua análise da Eucaristia, Calvino distinguiu três aspectos da ver­ dade espiritual que é apresentada (monstretur) e oferecida por meio dos elementos visíveis do pão e do vinho. O significado consiste nas promessas divinas, que estão incluídas ou encerradas no próprio sinal. Os crentes são assegurados, particularmente por meio das palavras de instituição, que o corpo de Jesus Cristo foi partido e o seu sangue foi derramado por eles. O sacramento confirma “aquela promessa pela qual Jesus Cristo atesta ser sua carne verdadeiramente alimento; e seu sangue, verdadeiramente be­ bida; com os quais somos nutridos para a vida eterna” [Institutas §4.17.4]. A substância ou matéria da Eucaristia se refere à nossa recepção do corpo de Cristo: Deus nos comunica o que ele nos prometeu. Ao recebermos o sinal do corpo de Cristo (em outras palavras, o pão), simultaneamente recebemos o corpo do próprio Cristo. Finalmente, a virtude ou efeito da Eucaristia se localiza nos beneficia Christi- os benefícios que, por meio de sua obediência, Cristo obteve para o crente. O crente participa pela fé de todos os benefícios de Cristo, tais como redenção, justiça e vida eterna. Por último, os sacramentos incentivam os cristãos a valorizar a cria­ ção. Elementos materiais podem representar a graça, a generosidade e a bondade de Deus. Essa percepção está rigorosamente fundamentada na doutrina de Calvino da criação. Para ele, a criação reflete seu Criador em todos os pontos. Diante dos nossos olhos surge imagem após imagem à medida que Calvino tenta comunicar a multiplicidade de formas pelas quais a criação testemunha sobre seu Criador: é como uma vestimenta visível que o Deus invisível usa para se fazer conhecido; é como um livro no qual o nome do Criador aparece como o autor; é como um teatro no qual a glória divina é mostrada publicamente; é como um espelho no qual as obras e a sabedoria de Deus são refletidas. Isso nos dá uma nova motivação para desfrutarmos da natureza. Em­ bora Calvino seja geralmente retratado como um estraga-prazeres ascé­ tico, determinado a barrar a qualquer custo os crentes de terem prazer, na verdade ele está genuinamente interessado em enfatizar que a criação

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existe para que possamos nos regozijar nela, não apenas sobrevivermos por meio dela. Citando o salmo 104.15, Calvino ressalta que Deus criou o vinho que alegra o coração humano. O alimento não apenas nos permite sobreviver; ele é saboroso. Calvino desenvolveu esse ponto detalhadamente nas Institutas, sa­ lientando como somos capazes de apreciar e desfrutar as boas coisas da vida. “Todas as coisas são feitas para nós, de modo que saibamos e re­ conheçamos seu autor e celebremos sua bondade para conosco ao lhe dar ações de graças”. O pão e o vinho da Eucaristia, pois, indicam não apenas o ato divino de redimir o mundo em Cristo, mas também seu ato precedente de criação, pelo qual o mundo que agora podemos desfrutar foi trazido à existência.

A reação católica: os sacramentos segundo Trento Trento levou algum tempo para reagir às opiniões sobre os sacramen­ tos associadas à Reforma. A sétima sessão do Concilio de Trento chegou a uma conclusão em 3 de março de 1547, com a publicação do seu “Decreto sobre os sacramentos”. De vários modos, é melhor considerar essa como uma medida provisória, visando a reagir às opiniões protestantes sem for­ necer uma réplica católica detalhada. O decreto assume o formato de um prefácio seguido de treze cânones gerais, cada um condenando algum as­ pecto das “heresias que, na nossa época turbulenta, se levantam contra os sacramentos mais sagrados”. Depois desses, há cânones específicos quanto ao batismo e à Eucaristia. Os seguintes cânones são de importância particular, pois explicitamente condenam as opiniões dos reformadores quanto ao número de sacramen­ tos e ao modo em que operam. A crítica é particularmente dirigida contra a opinião de que os sacramentos apenas representam a graça, que deve ser recebida pela fé. Para Trento, os sacramentos causam o que representam. 1. Se alguém diz que os sacramentos da nova lei não foram todos ins­ tituídos pelo nosso Senhor Jesus Cristo, ou que há mais ou menos que sete - a saber, batismo, confirmação, Eucaristia, penitência, extrema-unção, ordenação e casamento - ou que algum desses sete não é verdadeira e intrinsecamente um sacramento, que seja con­ denado [...] 5. Se alguém diz que esses sacramentos foram instituídos apenas para o fortalecimento da fé, que seja condenado.

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6. Se alguém diz que os sacramentos da nova lei não contêm a gra­ ça que representam, ou que não conferem essa graça aos que não põem obstáculos em seu caminho (como se fossem apenas sinais externos da graça ou justiça, recebidos pela fé, e marcas definidas da profissão cristã pelas quais os crentes, no nível humano, se dis­ tinguem dos incrédulos), que seja condenado [...] 8. Se alguém diz que os sacramentos da nova lei não conferem gra­ ça ex opere operato (veja a seção “Os sacramentos segundo Lutero” acima), mas que somente a fé na promessa divina é suficiente para obter graça, que seja condenado.15 A esses treze cânones, então, segue-se uma série de quatorze cânones sobre o batismo e três sobre a confirmação. O Concilio de Trento reafirmou fortemente a validade do batismo in­ fantil, criticando a opinião anabatista de que o batismo deve se limitar aos adultos que o desejem e de que os batizados na infância devem ser nova­ mente batizados ao alcançar a maturidade espiritual. A declaração do cânon 13 é particularmente importante, pois condena todos que defendem a opinião de que “as crianças, sendo incapazes de agir com fé, não devem ser reconhecidas entre os fiéis após seu batismo e, portanto, ao chegarem à idade da discrição devem ser rebatizadas”.16 Foi apenas na décima terceira sessão do concilio, a qual concluiu suas deliberações em 11 de outubro de 1551, que Trento finalmente estabele­ ceu o posicionamento positivo da igreja católica no “Decreto sobre o mui­ tíssimo santo sacramento da Eucaristia”. Até esse momento, Trento tinha apenas criticado os reformadores, sem produzir uma posição alternativa coerente. Então essa deficiência foi remediada. O decreto inicia com um ataque vigoroso aos que negam a presença real de Cristo. Embora não mencione especificamente Zuínglio nem os anabatistas, as alusões do concilio a Cristo assentado à direita de Deus e ao uso impróprio de “tropos” deixam claro que o objeto desse ataque são as opiniões deles: Depois da consagração do pão e do vinho, nosso Se­ nhor Jesus Cristo está verdadeira, real e substancialmente contido no sacramento venerável da Santa Eucaristia, sob a aparência dessas coisas físicas. Pois não há oposição no fato de que nosso Salvador se assenta à direita do Pai no céu segundo seu modo de existência natural, enquanto está presente sacramentalmente entre nós em sua própria

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substância em diversos outros lugares [...] É uma ação das mais desprezíveis, da parte de algumas pessoas contencio­ sas e ímpias, distorcê-las (as palavras de Cristo) em tropos fictícios e imaginários, fazendo com que a verdade do corpo e do sangue de Cristo seja negada.17

O Concilio defendeu vigorosamente tanto a doutrina quanto a termi­ nologia da transubstanciação: “Pela consagração do pão e do vinho, uma mudança é efetuada em toda a substância do pão em substância do corpo de Cristo e em toda a substância do vinho em sangue de Cristo. A essa mudança, a Santa Igreja Católica denomina justa e apropriadamente de transubstanciação”. Os tópicos analisados neste capítulo representam tópicos de rivalidade entre protestantes e católicos, de um lado, e entre grupos protestantes es­ pecíficos, de outro lado. No próximo capítulo, consideraremos uma ques­ tão teológica que não foi considerada como particularmente significativa pela maioria dos escritores católicos da época, mas que foi debatida inten­ samente dentro do protestantismo - a saber, a questão da predestinação.

Notas XWA 6.513-14. 2WA 6.513-14. 3LUTERO, Martinho. Ein sermon Von dem hochwirdigen sacrament, 5-8, em Luther's works, vol. 35, Filadélfia, 1960, 51-2. 4WA 6.509-12. 5WA 6.512-13 6WA 6.509-12. 7WA 6.513-14. 8LUTERO, Martinho. Catecismo maior, Sobre o batismo infantil, 53. 9LUTERO, Martinho. Catecismo maior, Sobre o batismo infantil, 83. “ ZUÍNGLIO, Ulrico. Sobre o batismo; CR 91.217. nZUÍNGLIO, Ulrico. Sobre a Ceia do Senhor (1526); CR 91.796-800. 12ZUÍNGLIO, Ulrico. Sobre o batismo; CR 91.218. n Confissão de fé de Schleitheim (1527), Art. 1. 14CALVINO, João. Institutas da religião cristã, IV.xiv.1-3. 15Concílio de Trento, sétima sessão, Decreto sobre os sacramentos, câno­ nes 1-8. 16Concílio de Trento, sétima sessão. Decreto sobre os sacramentos, cânone 13. 17Concílio de Trento, décima terceira sessão, Decreto sobre o mais sagrado sacramento da Eucaristia, cap. 1.

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Geralmente se pensa que a doutrina da predestinação é a característica central da teologia reformada. Para muitos, o termo “calvinista” é prati­ camente idêntico a “colocar grande ênfase na doutrina da predestinação”. Por que motivos o conceito da graça, que para Lutero estava ligado espe­ cificamente com a justificação do pecador, veio a se referir à soberania de Deus, especialmente como expressa na doutrina da predestinação? E como aconteceu esse desenvolvimento? Neste capítulo, investigaremos os diversos entendimentos da predestinação que se desenvolveram durante a Reforma. Tendo em vista a complexidade delas, precisamos explorar seus antecedentes tanto na teologia de Agostinho de Hipona quanto na teolo­ gia do final da Idade Média.

Os antecedentes dos debates sobre a predestinação na época da Reforma A graça é um dom, não uma recompensa. Essa percepção é funda­ mental para o entendimento de Agostinho de Hipona sobre como a salvação é assegurada. Se a graça fosse uma recompensa, os seres huma­ nos poderiam comprar sua salvação por meio de boas obras. Poderiam merecer sua redenção. Contudo, para Agostinho, isso seria totalmen­ te contrário à proclamação do Novo Testamento acerca da doutrina da graça. Segundo Agostinho, a graça não é nada mais e nada menos que um dom, que reflete a liberalidade daquele que dá. Se a graça fosse dada em resposta a uma ação ou capacidade humana, seria uma recompensa, não um dom. Mas Deus não é obrigado a dar o dom da graça para todas as pessoas. A graça só é dada a alguns. A defesa de Agostinho sobre “a benevolência

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divina” se baseia parcialmente na sua crença de que Deus deve ser livre para dar ou reter a graça. Se essa percepção for ligada com a doutrina de Agostinho do pecado, ficam claras todas as suas implicações. Toda a humanidade está contaminada pelo pecado e é incapaz de se libertar do domínio dele. Apenas a graça pode libertar a humanidade. Porém, a gra ­ ça não é concedida universalmente; só é dada a algumas pessoas. Como resultado, apenas algumas serão salvas - aquelas a quem a graça é dada. Para Agostinho, a predestinação envolve o reconhecimento de que Deus retém os meios de salvação daqueles que não são eleitos. “Esta é a predestinação dos santos, e nada mais: a presciência e a preparação dos benefícios de Deus, pelas quais quem é liberto é certa­ mente liberto.” Agostinho enfatizou que isso não significa que alguns são predestinados para a condenação. Significa que Deus escolheu al­ guns dentre a massa da humanidade caída para salvação. O restante, segundo Agostinho, não foi condenado ativamente à danação; eles simplesmente não foram eleitos para salvação. Agostinho tende (con­ quanto não seja completamente consistente quanto a isso) a tratar a predestinação como algo que é positivo e ativo. É uma decisão deli­ berada da parte de Deus de redimir. Isso pode ser descrito como uma doutrina de “predestinação simples”, na qual Deus toma uma decisão de eleger - a de redimir algumas pessoas. Entretanto, como indicam os críticos, essa decisão de redimir alguns eqüivale à decisão de não redimir outros. Essa questão ressurgiu com nova força durante a grande controvér­ sia sobre predestinação no século 9o, na qual o monge beneditino Godescalc de Orbais (c.804-c.869, também conhecido como Gottschalk) desenvolveu uma doutrina de predestinação dupla semelhante àquela associada posteriormente a Calvino e seus seguidores. Seguindo com lógica incansável as implicações de sua afirmação de que Deus havia predestinado alguns para a condenação eterna, Godescalc ressaltou que é, então, totalmente incorreto, portanto, falar que Cristo morreu por es­ sas pessoas; se ele o tivesse feito, teria morrido em vão, pois o destino delas não seria afetado. Hesitante a respeito das implicações dessa afirmação, Godescalc pro­ pôs que Cristo morreu apenas pelos eleitos. O escopo de sua obra reden­ tora era restrito, limitando-se apenas àqueles que foram predestinados a se beneficiarem de sua morte. A maioria dos escritores do século 9o reagiu criticamente a essa declaração. Contudo, ela iria reaparecer no cal­ vinismo posterior. Na Idade Média, a predestinação provou ser uma questão controver­ sa. A via moderna tendia a interpretar essa ideia como “presciência”. No

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entanto, durante o século 14, a schola Augustiniana moderna reafirmou uma doutrina de predestinação dupla. Deus estava totalmente no controle, schola Augustiniana moderna salvando ativamente alguns e con­ Forma do escolasticismo do final do período medieval que en­ denando outros. Essa noção foi de­ fatizava a doutrina da graça de senvolvida por Thomas Bradwardine Agostinho, adotando ao mesmo em Oxford e por Gregório de Rimini tempo uma posição nominalista em Paris. na questão dos universais. Os debates sobre a predestinação na época da Reforma ocorreram con­ tra esse pano de fundo. Lutero afirmou a ênfase de Agostinho na “gra­ tuidade da graça”; contudo, ele a interpretava primariamente em termos de sua doutrina da justificação pela fé. Deus dá a justiça justificadora às pessoas sem necessidade de qualquer mérito por parte delas. Calvino, no entanto, usa a doutrina da predestinação para afirmar a generosidade da salvação, desenvolvendo uma doutrina de “predestinação dupla” seme­ lhante à da “escola agostiniana moderna”. É possível que Calvino tenha conhecido essa abordagem à predestinação, direta ou indiretamente. Iniciamos considerando as opiniões de Zuínglio a respeito da predes­ tinação, que começaram a se desenvolver no início da década de 1520.

A soberania divina segundo Zuínglio Zuínglio iniciou seu ministério em Zurique em I o de janeiro de 1519. Esse ministério chegou perto de se extinguir em agosto desse mesmo ano, quando Zurique foi atingida pela praga. Tais surtos eram comuns no início do século 16, mas isso não deve minimizar a sua seriedade. Pelo menos uma em cada quatro pessoas - possivelmente uma em cada duas - morreu por causa dela em Zurique entre agosto de 1519 e fevereiro de 1520. Os deveres pastorais de Zuínglio incluíam a consolação dos mori­ bundos, e foi talvez inevitável que ele mesmo contraísse a doença. Como a morte parecia se aproximar, Zuínglio parece ter tido consciência de que sua sobrevivência era uma questão que dependia de Deus. Temos uma poesia, geralmente denominada de Pestlied, “Canção da praga”, que data de óutono de 1519. Nela, encontramos Zuínglio refletin­ do sobre seu destino. Não o vemos fazer apelos aos santos pela sua recu­ peração, nem há sugestão de que a igreja possa de algum modo interceder por ele. Em vez disso, encontramos uma rigorosa determinação de aceitar o que quer que fosse que Deus tivesse preparado para ele. O que Deus tivesse ordenado quanto ao seu destino, Zuínglio estava preparado para aceitar: “Eu sou teu vaso, para ser restaurado ou destruído”.

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É impossível ler esse poema sem perceber a rendição de Zuínglio à vontade divina. De fato, Zuínglio sobreviveu à sua doença. Provavelmente foi a partir dessa experiência que surgiu sua convicção de ser um instru­ mento nas mãos de Deus, para ser usado exclusivamente para os propó­ sitos divinos. Num capítulo anterior, observamos que as dificuldades de Lutero quanto à “justiça de Deus” eram tanto existenciais quanto teológicas (veja a seção “A descoberta da ‘justiça de Deus’ por Lutero” no capítulo 6). É óbvio que o interesse de Zuínglio pela providência divina também tinha uma forte dimensão existencial. Para Zuínglio, a onipotência de Deus não era mais uma questão teórica, mas sim algo que exerceu uma influência direta sobre sua existência. Enquanto a teologia de Lutero é modelada em grande medida, pelo menos inicialmente, pela sua experiência da justifi­ cação divina dele, um pecador, a teologia de Zuínglio é quase totalmente modelada pela sua percepção da soberania absoluta de Deus e da total dependência que a humanidade tem dele. A ideia de Zuínglio a respeito da soberania absoluta de Deus foi desen­ volvida na sua doutrina da providência, especialmente no famoso sermão De providentia, “Sobre a providência”. Muitos dos leitores mais críticos de Zuínglio notam semelhanças entre as ideias dele e o fatalismo de Sêneca, e sugerem que Zuínglio apenas batiza esse fatalismo. Dá-se algum crédito a essa sugestão devido ao interesse de Zuínglio por Sêneca e suas referências a ele em De providentia. É Deus apenas quem decide se uma pessoa é salva ou condenada, e ele toma sua decisão livremente na eternidade. No entan­ to, parece que a ênfase de Zuínglio na onipotência divina e na impotência humana deriva, no final das contas, de sua leitura de Paulo. Ela foi mera­ mente reforçada pela sua leitura de Sêneca e recebeu importância existen­ cial por meio de seu encontro íntimo com a morte em agosto de 1519. É instrutivo comparar as atitudes de Lutero e de Zuínglio quanto à Es­ critura, pois isso reflete suas diferentes abordagens à graça de Deus. Para Lutero, a Escritura se refere primariamente às promessas misericordiosas de Deus, culminando na promessa de justificação do pecador pela fé. Para Zuínglio, a Escritura se refere primariamente à lei divina, com um código de conduta, com exigências feitas por um Deus soberano ao seu povo. Lu­ tero faz uma distinção nítida entre “lei” e “evangelho”, enquanto Zuínglio considera os dois como essencialmente a mesma coisa. Foi o crescente interesse de Zuínglio pela soberania de Deus que, afi­ nal, levou ao seu rompimento com o humanismo. É notoriamente difícil dizer quando Zuínglio deixou de ser um humanista e começou a ser um reformador: de fato, há excelentes razões para sugerir que Zuínglio per­ maneceu um humanista por toda a sua vida. Como vimos antes (veja a

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seção “A noção de humanismo de Kristeller” no capítulo 3), a definição de Kristeller de humanismo tem a ver com seus métodos e não com suas doutrinas. Se essa definição de humanismo for aplicada a Zuínglio, ele permaneceu um humanista ao longo de toda a sua carreira. O mesmo é verdadeiro quanto a Calvino. Mas, pode-se objetar, como tais pessoas podem ser consideradas humanistas, quando ambas desenvolveram uma doutrina tão rigorosa da predestinação? Certamente é verdade que nem Zuínglio nem Calvino podem ser con­ siderados como “humanistas” no sentido dado à palavra pelo século 20mas isso é irrelevante quanto ao século 16. Quando nos lembramos que vários escritores da Antiguidade - tais como Sêneca e Lucrécio - desen­ volveram filosofias fortemente fatalistas, podemos perceber que a ideia de tratar ambos os reformadores como humanistas é mais sólida do que se poderia pensar. No entanto, parece que, em algum ponto de sua carreira, Zuínglio mudou de ideia quanto a uma pressuposição central comparti­ lhada pela maioria dos humanistas suíços que lhe eram contemporâneos. Se Zuínglio permaneceu um humanista depois disso, então ele passou de­ fender uma forma diferente de humanismo, que muitos de seus colegas humanistas consideravam como levemente excêntrica. O programa de reformas em Zurique iniciado por Zuínglio em 1519 era essencialmente humanista. Seu uso da Escritura era completamente erasmiano, assim como seu estilo de pregação, embora seu ponto de vista político refletisse o nacionalismo suíço que Erasmo tanto detestava. Para os nossos propósitos, é mais importante observar que ele considerava a re­ forma como um processo educacional, ecoando assim as noções tanto de Erasmo quanto das congregações de humanistas suíços. Ao escrever para seu colega Miconio em 31 de dezembro de 1519, revendo as realizações de seu primeiro ano em Zurique, Zuínglio anuncia que havia “mais de duas mil pessoas razoavelmente esclarecidas em Zurique”. No entanto, as coisas começaram a emperrar. Numa carta de 27 de julho de 1520, encontramos Zuínglio aparentemente admitindo o fracasso de sua concepção humanista de reforma: era necessário algo mais que as percepções educacionais de Quintiliano para que a Refor­ ma tivesse sucesso. O destino da humanidade em geral e da Reforma em particular é determinado pela providência divina. É Deus, e não a humanidade, que é o ator principal no processo de reforma. As técni­ cas educacionais humanistas são medidas deficientes, incapazes de lidar com a raiz do problema. Esse ceticismo a respeito da viabilidade do programa humanista de reformas veio a público em março de 1525, quando Zuínglio publicou sua obra Comentário sobre a religião verdadeira e a falsa. Zuínglio atacou

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dois pressupostos centrais ao programa de reformas erasmiano: a ideia de “livre-arbítrio” (liberum arbitrium), que Erasmo havia defendido vigoro­ samente em 1524, e a sugestão de que os métodos educacionais podiam reformar a humanidade corrupta e pecaminosa. Segundo Zuínglio, era necessária uma intervenção divina providencial, sem a qual uma reforma verdadeira seria impossível. O ano 1525 também presenciou a publicação da obra De servo arbítrio“Sobre a escravidão da vontade” - de Lutero, violentamente antierasmiana, que também ataca explicitamente a doutrina erasmiana da “liberdade da vontade”. A obra de Lutero está permeada de uma ênfase na soberania total de Deus, ligada com uma doutrina da predestinação semelhante à de Zuínglio. Muitos humanistas consideraram inaceitável essa ênfase na pecaminosidade humana e na onipotência divina, e isso resultou em certa alienação entre Zuínglio e muitos de seus antigos defensores. Alguns estudiosos sugerem que a influência do humanismo pode ter levado o reformador luterano Filipe Melanchthon a reduzir seu compro­ misso inicial com uma forte doutrina da predestinação - assunto para o qual nos voltamos agora.

A mudança de opinião de Melanchthon a respeito da predestinação Embora inicialmente favorável à ideia da predestinação divina desen­ volvida por Lutero em 1525, Filipe Melanchthon começou a ter dúvidas sobre a noção no final da década de 1520. Seu compromisso inicial com a doutrina fica evidente nos seus comentários na edição de 1521 da obra Loci Communes (“Lugares-comuns”). Ali Melanchthon declara que, quan­ to a questões espirituais, “visto que tudo que acontece ocorre por meio da predestinação divina, não existe liberdade da vontade humana”. Essa posição é reafirmada na edição de 1525 dessa obra. Contudo, desse ponto em diante, torna-se perceptível um grau de hesi­ tação. Melanchthon tinha uma clara preocupação: considerava a doutrina como produtora de dissensões. Melanchthon, que teve um papel decisivo em redigir o texto da Confissão de Augsburgo (1530), omitiu qualquer ar­ gumentação sobre essa doutrina, claramente vendo-a como uma barreira potencial para debates significativos com outros grupos cristãos. Sabe-se que Lutero ficou infeliz com o tom conciliador desse documento, o que talvez seja bem óbvio a essa altura. Em 1532, já era claro que Melanchthon tinha se afastado da posição de Lutero acerca da predestinação, tal como estabelecida na obra De servo arbitrio. É difícil situar a posição de Melanchthon num mapa teológico.

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Talvez seja mais bem compreendida como uma tentativa de navegar a “meio-termo” entre o pelagianismo, pelagianismo Os seres humapor um lado, e a posição de Lutero em nos são capazes de merecer sua 1525, por outro lado. Enquanto Lutero salvação por meio de boas obras; argumenta que Deus predestinou as deprecia a ideia da graça divina. pessoas de tal modo que elas não po­ dem resistir à vontade divina, Melan­ chthon via cada vez mais a predestinação em termos comunitários, em vez de individuais. Enquanto Lutero defende que Deus predestinou indivíduos para sal-" vação ou para condenação, Melanchthon chegou à posição um tanto dife­ rente de que Deus predestinou uma comunidade para salvação - a saber, a igreja. Depende de cada indivíduo a escolha de responder ao chamado de Deus unindo-se à igreja ou não. Melanchthon localizou três motivos para uma conversão assim: a Palavra, o Espírito e o livre-arbítrio individual. Um indivíduo pode, de fato, ouvir a Palavra proclamada e interpretada pelo Espírito. Mas permanece sendo dele a decisão sobre aceitar ou não a salvação que lhe é oferecida dessa maneira. Na edição de 1535 da obra Loci Communes, Melanchthon confere aos seres humanos a possibilida­ de de rejeitarem a graça: “Deus nos precede, nos chama, nos ajuda e nos move - mas devemos procurar não lutarmos contra Deus”. Os motivos para a mudança de ideia de Melanchthon permanecem em debate. Alguns percebem aqui a influência de Erasmo; outros entendem isso como resultado de suas reflexões filosóficas sobre a liberdade huma­ na. Nenhuma dessas explicações é convincente. Melanchthon parece ter chegado à posição de que a fé que resulta da Palavra e do Espírito é ins­ trumental para a salvação, e não causativa. Em outras palavras, ela não resulta na salvação do indivíduo, mas o coloca numa posição na qual ele pode aceitar essa salvação mediante uma escolha informada. A importância dessa mudança de ênfase também permanece em de­ bate. Alguns argumentam que o desenvolvimento de Melanchthon, na década de 1530, sobre a noção de justificação é simplesmente uma reelaboração da posição de Lutero. Outros sugerem que ele se move na di­ reção de conceder aos homens o poder de decisão quanto a estarem ou não justificados. No, entanto, não há dúvida que esse se tornou um tópico fortemente debatido depois da morte de Lutero em 1545, e Melanchthon passou a ser visto como “revisionista” por alguns dos intérpretes de Lutero da época. A posterior Fórmula de Concórdia (1577) parece endossar uma doutrina de predestinação simples, em vez do conceito de predestinação dupla encontrado no Lutero de 1525 e nas Institutas de Calvino. Sob essa ótica, a predestinação se refere à “ordenação divina para a salvação, que

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não se estende simultaneamente sobre piedosos e ímpios, mas apenas so­ bre os filhos de Deus que foram eleitos e ordenados”.

A predestinação segundo Calvino O conceito popular do pensamento religioso de Calvino é de um siste­ ma rigorosamente lógico centrado na doutrina da predestinação. Embora essa imagem popular possa ser persuasiva, ela possui pouca relação com a realidade. Embora a doutrina da predestinação possa ser importante para os seguidores posteriores de Calvino (veja a seção “A predestinação na te­ ologia reformada posterior” abaixo), isso não se reflete na exposição dele desse tema. No final do século 16, diante da necessidade de impor método ao pensamento de Calvino, seus sucessores perceberam que sua teologia se prestava muito bem a ser reestruturada. Assim, eles a remodelaram dentro das estruturas mais rigorosamente lógicas sugeridas pela meto­ dologia aristotélica favorecida pela Renascença italiana posterior (veja a seção “Definição de escolasticismo’” no capítulo 4). Isso possivelmente gerou a fácil conclusão de que o pensamento do próprio Calvino possui o molde sistemático e o rigor lógico da ortodoxia reformada posterior. Por sua vez, isso permitiu que a preocupação ortodoxa com a doutrina da predestinação fosse interpretada como se já estivesse presente nas Institu­ tas de 1559. No entanto, muitos argumentam que há uma diferença sutil entre Calvino e o pensamento reformado quanto a esse ponto, marcando e refletindo uma mudança significativa na história intelectual em geral. Se os seguidores de Calvino desenvolveram as ideias dele, isso foi em res­ posta ao novo espírito da época, o qual considerava a sistematização e o interesse pelo método como algo não apenas intelectualmente respeitável, mas também altamente desejável. O pensamento de Calvino reflete uma preocupação com a pecaminosidade humana e a onipotência divina, e essa preocupação encontra sua expressão mais completa na sua doutrina da predestinação. No seu período inicial, Calvino parece ter defendido noções de reforma levemen­ te humanistas, talvez semelhantes às de Lefèvre d’Etaples (Stapulensis). Em 1533, no entanto, ele parece já ter adotado uma posição mais radical. Em 2 de novembro de 1533, Nicolas Cop, reitor da Universidade de Pa­ ris, proferiu um discurso para marcar o começo do novo ano acadêmico. No decurso de sua fala, ele aludiu a diversos temas principais associados naquela época com a Reforma Luterana. Embora as alusões tenham sido discretas e estivessem misturadas com tratados substanciais de teologia católica tradicional, o discurso provocou um clamor. Tanto o reitor quan­ to Calvino, que parece ter estado envolvido de algum modo na elaboração

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desse discurso, foram obrigados a fugir de Paris. Mas, como e guando o jovem humanista se tornou um reformador? A questão da data e da natureza da conversão de Calvino tem intri­ gado gerações de estudiosos, mas isso produziu muito pouco em termos de resultados concretos. É consenso geral que Calvino mudou de um programa de reformas levemente humanista para uma plataforma mais radical no final de 1533 ou no início de 1534. Porém, não sabemos o mo­ tivo. Calvino parece descrever sua conversão em dois momentos dos seus escritos posteriores, mas não temos a riqueza de detalhes autobiográficos fornecidos por Lutero. Apesar disso, fica evidente que Calvino compre­ ende sua conversão como algo devido à providência divina. Ele afirma que era tão profundamente devotado às “superstições do papado” que so­ mente um ato de Deus poderia tê-lo libertado. Ele afirma que Deus “do-, mou seu coração e o reduziu à obediência”. Uma vez mais encontramos a característica ênfase da Reforma quanto à impotência da humanidade e à onipotência de Deus. São essas ideias que são ligadas e desenvolvidas na doutrina de Calvino da predestinação. Embora alguns estudiosos tenham sugerido que a predestinação cons­ titui o centro do pensamento de Calvino, é evidente que esse não é o caso. É simplesmente um aspecto da sua doutrina da salvação. A contribuição principal de Calvino para o desenvolvimento da doutrina da graça é o ri­ gor lógico com que ele a abordou. Isso se vê melhor, talvez, ao se comparar Agostinho e Calvino quanto a essa doutrina. Para Agostinho, a humanidade depois da Queda é corrupta e impoten­ te, precisando da graça de Deus para ser redimida. Essa graça não é dada a todos. Agostinho usa o termo “predestinação” para se referir à ação divina em conceder graça a alguns. Designa a decisão e ação divina especial pe­ las quais Deus concede sua graça àqueles que serão salvos. Mas, pode-se perguntar, o que acontece com o restante das pessoas? Deus as ignora, segundo Agostinho. Ele não decide ativamente que elas serão condena­ das; simplesmente se omite de salvá-las. Para Agostinho, a predestinação se refere apenas à decisão divina de redimir, não ao ato de abandonar o restante da humanidade caída. Para Calvino, o rigor lógico exige que Deus escolha ativamente redimir ou condenar. Não se pode pensar que Deus faça algo à revelia: ele é ativo e soberano em suas ações. Portanto, Deus ativamente deseja a salvação da­ queles que serão salvos e a condenação daqueles que não o serão. Assim, a predestinação é o “decreto eterno de Deus, pelo qual ele determinou o que deseja fazer quanto a cada indivíduo. Pois ele não cria todos na mesma condição, mas ordena vida eterna para alguns e condenação eterna para outros”. Uma das funções centrais da doutrina é enfatizar a benevolência

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de Deus. Para Lutero, a benevolência divina se reflete no fato de Deus justificar pecadores, homens e mulheres que são totalmente indignos des­ se privilégio. Para Calvino, a benevolência divina é demonstrada em sua decisão de redimir pessoas independentemente de seus méritos: a decisão de redimir uma pessoa sem referência a quão digna essa pessoa possa ser. Para Lutero, a benevolência divina é demonstrada em salvar pecadores a despeito de seus deméritos; para Calvino, em salvar pessoas sem considerar seus méritos. Embora Lutero e Calvino defendam a benevolência divina de modos um tanto diferentes, o mesmo princípio é afirmado em suas respectivas posições sobre a justificação e a predestinação. Embora a doutrina da predestinação não fosse central ao pensamento do próprio Calvino, ela se tornou o núcleo central da teologia reformada posterior por meio da influência de escritores como Pedro Mártir Vermigli e Teodoro Beza. De 1570 em diante, o tema da “eleição” veio a dominar a teologia reformada e permitiu uma fácil identificação das congregações reformadas com o povo de Israel. Assim como Deus havia escolhido Isra­ el antes, agora ele escolhera as congregações reformadas como seu povo. Desse momento em diante, a doutrina da predestinação começou a assu­ mir uma função social e política importante - uma função que ela não tinha na época de Calvino. Calvino expôs sua doutrina da predestinação no livro 3 da edição de 1559 das Institutas da religião cristã, como um aspecto da doutrina da redenção por meio de Cristo. Na edição inicial da obra (1536), ela foi tra­ tada como um aspecto da doutrina da providência. Da edição de 1539 em diante, é tratada como um tópico importante por si mesmo. A análise de Calvino a respeito da “maneira de obter a graça de Cristo, os benefícios que ela confere e os efeitos resultantes disso” pressupõe que há uma possibilidade de redenção por causa do que Cristo alcançou por meio da sua morte na cruz. Depois de analisar como essa morte pode ser a base da redenção humana (veja a seção “A relação de Calvino com o es­ colasticismo do final do período medieval” no capitulo 4), Calvino então prossegue para analisar como os seres humanos podem aproveitar os be­ nefícios que resultam disso. Assim, a análise muda das bases da redenção para a forma em que ela se torna concreta. A ordem dos tópicos usada por Calvino tem intrigado os estudiosos já por algum tempo. Ele analisa as questões na seguinte ordem: fé, rege­ neração, vida cristã, justificação e predestinação. Com base na análise de Calvmo da relação dessas entidades com a ordem da salvação, esperava-se que a prdem fosse um tanto diferente, com a predestinação precedendo a justificação, e a regeneração depois da justificação. A ordem de Calvino parece refletir considerações educacionais, e não precisão teológica.

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Calvino adota uma abordagem distintamente sóbria à doutrina da pre­ destinação, dedicando apenas quatro capítulos à sua exposição (capítulos 21 a 24 do livro 3). A predestinação é definida como “o (eterno decreto de Deus, pelo qual ele determinou o que queria fazer de rada pessoa. Isso porque ele não criou todas na mesma condição, mas ordena vida eterna para algumas e condenação eterna para outras”. A predestinação é algo que deve provocar um senso de reverência em nós. O decretum horribile não é um “decreto horrível”, como pode sugerir uma tradução grosseira e insensível às nuances do latim; antes, é um decreto “que inspira reverên­ cia” ou “intimidador”. A própria localização da discussão de Calvino da predestinação na edi­ ção de 1559 das Institutas é significativa em si mesma. Ela segue sua ex­ posição da doutrina da graça. Somente depois de ter exposto os grandes temas dessa doutrina - tal como a justificação pela fé - é que Calvino passa a considerar o misterioso e desconcertante tema da predestinação. Logica­ mente, a predestinação deveria preceder uma análise como essa; afinal de contas, a predestinação estabelece as bases para a eleição de uma pessoa e, consequentemente, para sua posterior justificação e santificação. Contudo, Calvino se recusa a subordinar-se às regras dessa lógica. Por quê? Para Calvino, a predestinação deve ser considerada em seu contexto apropriado. Ela não é o produto da especulação humana, mas um misté­ rio de revelação divina. Entretanto, foi revelada num contexto específico e de uma maneira específica. Essa maneira está relacionada com o próprio Jesus Cristo, que é o “espelho no qual podemos contemplar o fato da nossa eleição”. O contexto se refere à eficácia da proclamação do evangelho. Por que algumas pessoas respondem ao evangelho cristão e outras não? O fato de que algumas não respondem é devido à falta de eficácia ou alguma inadequação inerente ao evangelho? Ou há alguma outra razão para essa divergência na resposta? Calvino argumenta da seguinte maneira: O pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente, e entre aqueles a quem é pregado não encon­ tra a mesma aceitação, seja constantemente ou no mesmo grau... Deus não adota a esperança da salvação a todos in­ discriminadamente, mas dá a uns o que nega a outros.1

Longe de ser uma especulação teológica árida e abstrata, a análise de Calvino da predestinação começa a partir de fatos observáveis. Alguns creem no evangelho e outros não. A função primária da doutrina da predestinação é explicar por que alguns respondem ao evangelho e ou­ tros não. É uma explicação ex postfacto da particularidade das respostas

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humanas à graça. A defesa de Calvino da predestinação deve ser conside­ rada como uma reflexão a posteriori a respeito dos dados da experiência humana, interpretados à luz da Escritura, não como algo que é deduzido a priori com base em ideias preconcebidas a respeito da onipotência divina. A crença na predestinação não é um artigo de fé por si mesmo, mas é o resultado final de uma reflexão fundamentada biblicamente acerca dos efeitos da graça nas pessoas à luz dos enigmas da experiência. A experiência, declara Calvino, indica que Deus não toca todos os co­ rações humanos. Por que não? Isso se deve a alguma deficiência da parte de Deus? Ou há algo errado com o evangelho, que evita que ele converta a todos? À luz da Escritura, Calvino se sente capaz de negar a possibilidade de qualquer fraqueza ou inadequação da parte de Deus ou do evangelho; o padrão observável de respostas ao evangelho reflete um mistério, pelo qual alguns são predestinados a reagir favoravelmente às promessas divi­ nas e outros, a rejeitá-las. “Alguns foram aquinhoados com a vida eterna, e outros com a condenação eterna”. Deve ser enfatizado que essa não é uma inovação teológica. Calvino não está introduzindo uma noção até então desconhecida na esfera da teologia cristã. Como já vimos, a “escola agostiniana moderna” (schola Augustiniana moderna), exemplificada por importantes teólogos medie­ vais como Gregório de Rimini, também ensinava uma doutrina de pre­ destinação dupla absoluta - que Deus aquinhoa alguns com a vida eterna e outros com a condenação eterna, sem qualquer referência a seus méritos e deméritos. O destino de cada um se baseia totalmente na vontade de Deus, não em suas individualidades. De fato, é possível que Calvino te­ nha se apropriado de maneira consciente desse aspecto do agostinismo do final do período medieval, o qual certamente tem uma semelhança excepcional com o seu próprio ensino. Assim, a salvação está situada fora do controle do indivíduo, que não tem poder para alterar a situação. Calvino enfatiza que essa seletividade não é de modo algum peculiar à questão da salvação. Em todas as áreas da vida, ele argumenta, somos forçados a reconhecer o mistério do inexplicável. Por que alguns são mais prósperos do que outros na vida? Por que uma pessoa tem dons intelectuais que são negados a outra? Mesmo na hora do nascimento, dois bebês podem se encontrar em circunstân­ cias totalmente diferentes sem terem qualquer culpa quanto a isso: um pode receber um seio cheio de leite para sugar e receber nutrição, outro pode sofrer de má nutrição por sugar um seio que está quase seco. Para Calvino, a predestinação é simplesmente outro exemplo do mistério geral da existência humana, na qual alguns são inexplicavelmente favorecidos com dons materiais ou intelectuais que são negados a outros. Isso não

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apresenta dificuldades que já não estejam presentes em outras áreas da existência humana. Mas essa ideia de predestinação não implica que Deus é desobrigado das noções comuns de bondade, justiça ou racionalidade? Embora Cal­ vino repudie especificamente o conceito de Deus como um poder ab­ soluto e arbitrário, sua análise da predestinação insinua um Deus cujo relacionamento com sua criação é volúvel e caprichoso, e cuja concepção e exercício de poder não são ligados a qualquer lei ou ordem. Nesse ponto, Calvino se alinha claramente com a análise do final do período medieval a respeito dessa controversa questão, particularmente dentro da via mo­ derna e da schola Augustiniana moderna, quanto à relação de Deus com a ordem moral estabelecida. Deus não está sujeito de modo algum à lei, pois isso colocaria a lei acima de Deus, como se fosse um aspecto da criação ou até algo fora de Deus e anterior à criação - acima do Criador. Deus está fora da lei, no sentido de que a vontade divina é o fundamento dos con­ ceitos de moralidade existentes. Essas afirmações concisas refletem uma das afinidades mais claras de Calvino com a tradição voluntarista do final do período medieval. No final, Calvino argumenta que a predestinação deve ser reconhecida como sendo baseada nos juízos inescrutáveis de Deus. Não podemos saber por que Deus elege alguns e condena outros. Alguns estudiosos sugerem que essa posição pode revelar a influência dos debates do final do período medieval sobre o “poder absoluto de Deus” (potentia Dei absoluta), pelo qual um Deus volúvel ou arbitrário fica perfeitamente à vontade para fazer o que bem entende, sem se sentir obrigado a justificar essas ações. Entretanto, essa sugestão se baseia numa séria má compreensão do pa­ pel da dialética entre os dois poderes - absoluto e ordenado - de Deus no pensamento do final do período medieval. Deus deve ser livre para escolher quem deseja, caso contrário a liberdade divina fica comprome­ tida por considerações externas e o Criador se torna sujeito à criação. No entanto, as decisões de Deus refletem sua sabedoria e justiça, que são con­ firmadas - e não contraditadas - pelo fato da predestinação. Longe de ser uma premissa central no “sistema” (um termo totalmente inadequado, de qualquer modo) teológico de Calvino, a predestinação é uma doutrina subordinada, que tem o objetivo de explicar um aspecto desconcertante das conseqüências da proclamação do evangelho da graça. No entanto, quando os seguidores de Calvino procuraram desenvolver e remodelar seu pensamento à luz dos novos desenvolvimentos intelectuais, foi talvez inevitável (se o leitor me permitir resvalar para um modo de fa­ lar potencialmente predestinariano) que ocorressem alterações na forma como ele estruturou a teologia cristã.

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A predestinação na teologia reformada posterior Como vimos antes, não é correto falar que Calvino desenvolveu um “sistema”, no sentido estrito do termo. As ideias religiosas de Calvino, tais como apresentadas na edição de 1559 das Institutas, estão dispostas siste­ maticamente com base em considerações pedagógicas. Contudo, não são derivadas sistematicamente com base num princípio especulativo princi­ pal. Calvino considera a exposição bíblica e a teologia sistemática como praticamente idênticas, e se negava a fazer a distinção entre elas que se tornou lugar-comum depois da sua morte. A partir da década de 1570, um novo interesse por métodos - ou seja, a organização sistemática e a dedução coerente de ideias - ganhou força dentro dos círculos teológicos de Genebra. Teólogos reformados, particu­ larmente na Alemanha, passaram a precisar defender suas ideias contra oponentes luteranos e católicos. O aristotelismo, considerado com certo grau de suspeita pelo próprio Calvino, nesse momento era tomado como aliado. Tornou-se cada vez mais importante demonstrar a consistência e a coerência interna da construção reformada da fé cristã. Acima de tudo, a racionalidade da fé se tornou uma questão cada vez mais importante na guerra de palavras entre as igrejas reformadas e suas rivais luteranas e católicas. Como resultado, muitos escritores reformados se voltaram para Aristóteles, na esperança que seus escritos sobre método pudessem forne­ cer sugestões sobre como a teologia deles poderia se fundamentar numa base racional mais firme. Podemos observar quatro características da nova abordagem à teolo­ gia que começou a surgir nessa época: 1. Foi atribuído um papel principal à razão humana na exploração e defesa da teologia reformada. 2. A teologia reformada é apresentada como um sistema logicamente coerente je racionalmente defensível, derivado de deduções silogísticas baséadas em axiomas conhecidos. Em outras palavras, a teolo­ gia inicia de princípios básicos e procede deduzindo suas doutrinas com base neles. 3. A teologia era entendida como estando baseada na filosofia aristotélica, particularmente nas percepções aristotélicas quanto à natu­ reza do método. Alguns escritores reformados posteriores podem provavelmente ser mais bem descritos como teólogos filosóficos em vez de bíblicos.

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4. A teologia era vista como interessada em questões metafísicas e es­ peculativas, especialmente as relacionadas com a natureza de Deus, a vontade divina para a humanidade e a criação e, acima de tudo, à doutrina da predestinação. O ponto inicial da teologia, portanto, passou a ser os princípios gerais, não um evento histórico específico. O contraste com Calvino fica evidente. Para este, a teologia é centrada e derivada do evento de Jesus Cristo, como testificado pelas Escrituras. É esse novo interesse em estabelecer um ponto inicial lógico para a teologia que nos capacita a\compreendermos a nova importância que foi dada à doutrina da predestinação. Calvino se concen­ trou no fenômeno histórico específico de Jesus Crisme, a partir daí, passou a explorar suas implicações (ou seja, para usar a linguagem técnica apro­ priada, seu método foi analítico e indutivo). Em contraste, Teodoro Beza começou dos princípios gerais e prosseguiu deduzindo suas conseqüências para a teologia cristã (ou seja, seu método foi sintético e dedutivo). Então, que princípios gerais Beza usou como ponto inicial lógico para sua sistematização teológica? A resposta é que ele baseou seu sistema nos decretos divinos da eleição - ou seja, a decisão divina de eleger algumas pessoas para salvação e outras, para condenação. O restante da teologia trata de explorar as conseqüências dessas decisões. A doutrina da predes­ tinação, portanto, assume a posição de princípio controlador. Deve-se observar uma importante conseqüência desse desenvolvimen­ to: a doutrina da “expiação limitada” ou “redenção particular”. (O termo “expiação” é em geral usado para se referir aos “benefícios resultantes da morte de Cristo”) Considere a seguinte pergunta: por quem Cristo mor­ reu? A resposta tradicional a essa pergunta é a seguinte: Cristo morreu por todas as pessoas. Contudo, embora sua morte tenha o potencial de redimir a todos, foi efetiva apenas para aqueles que escolheram permitir que tivesse esse efeito. Em marcante contraste, o luteranismo posterior marginalizou as per­ cepções de Lutero em 1525 sobre a predestinação divina, preferindo tra­ balhar dentro do esquema de uma livre resposta humana a Deus do que de uma eleição divina soberana de pessoas específicas. Para o luteranismo do final do século 16, “eleição” significa uma decisão humana de amar a Deus, não a decisão divina de eleger algumas pessoas. De fato, a discor­ dância quanto à doutrina da predestinação foi uma das duas maiores con­ trovérsias que ocuparam escritores polemistas de ambas as confissões por séculos dali para a frente (a outra controvérsia se refere aos sacramentos). Os luteranos nunca tiveram a mesma percepção de serem os “eleitos de Deus” e, de modo correspondente, eram modestos nas suas tentativas de

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expandir sua esfera de influência. O sucesso notável do “calvinismo inter­ nacional”, em contraste, nos lembra do poder de uma ideia para transfor­ mar pessoas e grupos. A doutrina reformada da eleição e predestinação foi, sem dúvida, a força condutora por trás da grande expansão da Igreja Reformada no século 17. Finalmente, é importante refletir sobre a notoriedade da doutrina da predestinação nas disputas dentro dos círculos protestantes. A necessida­ de do luteranismo e do calvinismo de se diferenciarem entre si se tornou de não pouca importância nas décadas de 1560 e 1570, especialmente na Alemanha. Em muitos aspectos, os movimentos eram bem semelhantes. Ambos reivindicavam ser evangélicos; ou seja, ambos argumentavam ser baseados no próprio evangelho (evangelium, em latim), não em tradi­ ções humanas. Ambos rejeitavam aproximadamente os mesmos aspec­ tos centrais do catolicismo medieval. Todavia, a despeito dessas óbvias semelhanças, o luteranismo e o calvinismo precisavam ser distinguidos um do outro. A situação política exigia algum modo de fazer nítida se­ paração entre as duas confissões, a despeito de suas óbvias semelhanças. Os políticos alemães exigiam que se desenvolvesse algum modo simples de identificar o luteranismo e o calvinismo; a doutrina da predestinação provou ser o modo mais confiável de distinguir entre esses dois grupos razoavelmente semelhantes. Na maioria dos pontos doutrinários, os luteranos e os calvinistas con­ cordavam amplamente. Contudo, havia uma questão - a doutrina da predestinação - a respeito da qual eram radicalmente opostos. A ênfase colocada na doutrina da predestinação pelos calvinistas, no período de 1559 a 1622, reflete parcialmente o fato de que essa doutrina os distinguia dos seus colegas luteranos. Portanto, é importante perceber que a notorie­ dade da doutrina da predestinação pode refletir considerações polêmicas, e não a dinâmica interna da teologia reformada. Poucos argumentariam que a predestinação está no centro do pensamento de Calvino. Porém, a dinâmica dos o ra te s da igreja fez com que essa doutrina fosse acentuada tanto pelos seus críticos como pelos seus defensores, precisamente porque ela era um modo confiável de distinguir duas comunidades protestantes que, fora isso, eram muito semelhantes. Agora passaremos a considerar um aspecto diferente da questão de autoridade, debatido intensamente durante o período da Reforma - os fundamentos e os limites da autoridade política secular.

Notas CALVINO, João, Institutas da religião cristã, III.xxi.1, 5.

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Num capítulo anterior, observamos duas posições teológicas distin­ tas sobre a igreja associadas à Reforma, cada uma resultando num pa­ pel sociológico diferente para aquele grupo: o modelo agostiniano, que corresponde sociologicamente a uma “igreja”, e o modelo donatista, que corresponde sociologicamente a uma “seita” (veja a seção “O contexto dos debates da Reforma” no capítulo 8). Os reformadores magistrais adotaram o primeiro modelo; e seus oponentes radicais, o segundo modelo.

A Reforma radical e as autoridades seculares A Reforma radical concebia a igreja como uma “sociedade alternativa” dentro da cultura da Europa do século 16. Assim como a igreja pré-Constantino existira dentro do Império Romano, mas se recusara a se confor­ mar aos seus padrões, do mesmo modo a Reforma radical se imaginava existindo em paralelo ao seu ambiente do século 16, mas não dentro dele. Para Menno Simons, a igreja é “uma congregação de justos”, na contramão do mundo. Essa noção da igreja como um remanescente fiel em conflito com o mundo se harmoniza com a experiência anabatista de perseguição pelas forças do anticristo, personificado na magistratura. A Reforma radical em geral era hostil ao uso de coerção e advogava uma política de não resistência. Exceções a essa regra devem ser ob­ servadas: por exemplo, Balthasar Hubmaier considerava os poderes coercitivos do governo (como a prerrogativa de entrar em guerra e a pena de morte) como sendo um mal necessário. Ele afirmava que os cristãos podem assumir cargos como magistrados sem comprometer

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sua integridade. Porém, essa posição não é típica do anabatismo no seu todo, que considerava os juramentos, o uso de força coercitiva e a auto­ ridade do magistrado como satânicos. Jakob Hutter dá uma justificativa teológica a essa postura apolítica por meio de um apelo ao exemplo de Cristo: “Como todos podem ver, não temos armas físicas, como lanças ou mosquetes. Queremos mostrar, por nossas palavras e ações, que so­ mos verdadeiros seguidores de Cristo”. Hans Denck apelou à mansidão de Cristo e ao seu silêncio diante de seus acusadores para afirmar que “a força não é um atributo de Deus”. A declaração mais clara quanto à atitude geral anabatista para com as autoridades seculares pode ser encontrada na Confissão de Schleitheim (1527). Seus sexto e sétimo artigos explicam e justificam a política de nãoenvolvimento em questões seculares e de não resistência às autoridades seculares. A coerção tem lugar “fora da perfeição de Cristo” (ou seja, fora da comunidade radical); dentro dessa comunidade, entretanto, a força fí­ sica não tem lugar. A espada é ordenada por Deus fora da perfeição de Cristo [...] Não é apropriado para um cristão servir como magistrado, pelas seguintes razões. A magistratura do go­ verno é segundo a carne, mas a do cristão é segundo o Es­ pírito. As casas e habitações deles são deste mundo, mas as do cristão são no céu. A cidadania deles é deste mundo; a do cristão é no céu. As armas dos conflitos e guerras deles são físicas e contra a carne, mas as armas do cristão são es‘ >, contra a fortaleza do diabò. As pessoas do mundo m com ferro e aço, mas o cristão está armado com a ra de Deus, com verdade, justiça, paz, fé, salvação e a palavra de Deus.1

S

O anabatismo mantinha a disciplina dentro de suas comunidades por meio do “interdito”, um meio pelo qual membros da igreja podem ser excluídos de congregações anabatistas. Esse modo de disciplina é con­ siderado essencial para a identidade de uma igreja verdadeira. Parte do argumento anabatista por uma separação radical das igrejas principais (uma prática que continua até hoje entre os amish de Lancaster County, Pennsylvania, e em outros lugares) consiste no fato de essas igrejas não conseguirem manter uma disciplina correta dentro de suas fileiras. A Confissão de Schleitheim baseia sua doutrina do interdito nas palavras de Cristo, tal como registradas em Mateus 18.15-20:

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O pensamento da Reforma O interdito deverá ser usado para com todos que, tendo se entregue ao Senhor para andar em seus mandamentos, e tendo sido batizados no único corpo de Cristo e sido cha­ mados de irmãos e irmãs, ainda assim deslizam ocasional­ mente e caem inadvertidamente em erro e pecado. Essas pessoas devem ser advertidas duas vezes em secreto; na terceira ocasião, devem ser disciplinadas publicamente, ou banidas segundo a ordem de Cristo (Mt 18).2

O “banimento” era visto tanto como repressor quanto corretivo em seus efeitos, fornecendo tanto um incentivo para as pessoas banidas corri­ girem seu modo de vida quanto um desincentivo para outros os imitarem em seu pecado. O Catecismo Racoviano (1605), polonês, lista cinco razões para se manter uma disciplina rigorosa dentro dà&comunidades anabatistas; a maioria das quais reflete sua política de separação radical: 1. Para que o membro caído da igreja possa ser curado e trazido de volta à comunhão da igreja. 2. Para impedir outros de cometerem a mesma ofensa. 3. Para eliminar da igreja o escândalo e a desordem. 4. Para evitar que a Palavra do Senhor caia em descrédito fora da congregação. 5. Para evitar que a glória do Senhor seja profanada. A despeito de suas intenções pastorais, o “banimento” em geral era interpretado com muita severidade, o que muitas vezes fazia com que os membros da congregação evitassem todo contato social com a pessoa ba­ nida e com sua família. A maioria dos radicais, com suas posições rigorosas quanto à membresia da igreja, não tinha tempo para um compromisso com o estado ou com as autoridades da cidade. Contudo, os reformadores magistrais dependiam exatamente desses compromissos. De fato, como vimos, a própria expressão “Reforma magistral” indica a estreita cooperação entre reformador e magistrado na propagação e defesa da Reforma. Já observamos (veja a seção “Uma crise de autoridade dentro da igreja” no capítulo 2) o fortalecimento de poder dos governos seculares por toda a Europa, no início do século 16. A Concordata de Bolonha, por exemplo, deu ao rei da França o direito de indicar todo o alto clero da igreja france­ sa. A ascendência da igreja católica na França e na Espanha se mantinha

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primariamente por meio de interesses do estado. As realidades políticas do início do século 16 exigiam uma ligação semelhante entre os estados ou cidades e as igrejas da Reforma protagtante. Sendo assim, as atitudes sociais das congregações e pensadores radicais eram tão ameaçadoras e desestabilizadoras que estes foram gradualmente excluídos das cidades, sendo forçados para a zona rural e tendo negada qualquer autoridade po­ lítica ou social. Por exemplo, os 39 Artigos (1571), os quais estabeleceram os princí­ pios governantes da Igreja Reformada da Inglaterra durante o reinado de Elizabeth I, estipulam explicitamente que “as leis do reino podem punir os cristãos com a morte por crimes atrozes e graves. É legítimo que os cris­ tãos, sob o comando do magistrado, portem armas e sirvam em guerras” (artigo 37). A posição anabatista, portanto, foi rigorosamente excluída. Ao fazer isso, a igreja estatal inglesa seguiu um padrão que estava sendo estabelecido por toda a Europa. Não se deve pensar, contudo, que os reformadores magistrais eram marionetes políticas: o entendimento que eles tinham do papel das auto­ ridades da cidade ou do estado na reforma da igreja reflete suas pressupo­ sições teológicas. A seguir, examinaremos as posições políticas dos quatro principais reformadores magistrais: Lutero, Zuínglio, Bucer e Calvino.

A doutrina dos dois reinos de Lutero O período medieval testemunhou o desenvolvimento da “doutrina dos dois poderes”: o temporal e o espiritual. Segundo essa visão, promo­ vida ativarnente pelos defensores das manobras políticas papais, o cle­ ro pertencia aò \p o d er espiritual” e os leigos, ao “temporal”. Esses dois poderes, domínios ou esferas de autoridade eram totalmente distintos. -Embora o poder espiritual pudesse intervir (e de fato o fazia) nos assun­ tos do poder temporal, esse último não podia interferir no primeiro. Por trás dessa teoria está uma longa história de conflitos entre a autoridade papal e a autoridade secular, particularmente durante o período do pa­ pado em Avinhão. Visto de modo pragmático, esse entendimento das esferas de influên­ cia dos poderes secular e eclesiástico significava que a reforma da igre­ ja era uma questão que dizia respeito apenas à própria igreja: os leigos, quer fossem camponeses ou governantes seculares tais como o próprio imperador, não possuíam a autoridade necessária para realizar a reforma da igreja. Como vimos antes (veja a seção “O direito de interpretar a Es­ critura” no capítulo 6), esse foi o primeiro dos “três muros” da Jericó do seu tempo que Lutero se propôs a demolir. Convencido de que a igreja

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estava arraigada em noções corruptas de sacerdócio, Lutero desenvolveu a doutrina do “sacerdócio universal dos crentes” no seu famoso tratado reformista de 1520, À nobreza cristã da nação alemã-. É pura invenção que papas, bispos, sacerdotes e monges são denominados de poder espiritual, enquanto príncipes, senhores, artesãos e fazendeiros são chamados de poder temporal. [...] Todos os cristãos são verdadeiramente do poder espiritual e não há diferença alguma entre eles excetoquanto ao cargo [...] Todos somos sacerdotes consagrados por meio do batismo, como Pedro afirma em lPedro 2.9.3

Embora reconhecesse plenamente a necessidade de administração dentro da igreja, Lutero insiste que a diferença é puramente de cargo, não de posição. O catolicismo medieval reconhecia um ajdistinçãp fundamental entre o “poder espiritual” (ou seja, o clero, quer fossem sacerdotes, bispos ou papas) e o “poder temporal” (ou seja, todas as demais pessoas). Lutero declarou que essa distinção era nula e sem validade legal, uma invenção humana, e não uma ordenança de Deus: Todos os cristãos são verdadeiramente do poder es­ piritual e não há diferença alguma entre eles exceto a da função [A m t ]. Paulo diz em ICoríntios 12.12-13 que somos todos um corpo, e cada membro tem sua função pela qual serve os demais. Isso acontece porque temos um batismo, um evangelho e uma fé, e todos são cristãos, cada um tanto quanto os demais; isso porque apenas o batismo, o evan­ gelho e a fé nos tom am espirituais e um povo cristão [...] Assim, segue-se que não há diferença fundamental entre leigos e sacerdotes, entre príncipes e bispos, entre os que vivem nos monastérios e os que vivem no mundo. A única diferença nada tem a ver com a posição, mas com a função e trabalho de cada um.4

No cristianismo não há lugar para uma noção de uma classe profissio­ nal dentro da igreja que tenha um relacionamento espiritual mais íntimo com Deus do que as demais pessoas. No entanto, nem todos recebiam permissão para agir como um sa­ cerdote. A doutrina de Lutero sobre o sacerdócio universal dos crentes não acarreta a abolição de um ministério profissional. Seu princípio

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fundamental é que todos os cristãos compartilham da mesma posição sa­ cerdotal (Stand) por causa do seu batismo; podem, contudo, exercer fun­ ções (Am t) diferentes dentro da comunidade da fé, refletindo seus dons e capacidades individuais dados por Deus. Ser um ministro é permanecer ao lado dos companheiros cristãos, compartilhando de sua posição diante de Deus; mesmo assim, esses companheiros crentes reconhecem os dons daquele indivíduo e o convidam, direta ou indiretamente, a exercer essa função ministerial entre eles: Embora sejamos todos sacerdotes, isso não significa que todos nós possamos pregar, ensinar e exercer autoridade. Alguns dentre a comunidade devem ser escolhidos e sepa­ rados para esse ofício. Quem exerce esse ofício não é um sacerdote por causa do ofício, mas é um servo de todos os demais, que são tanto sacerdotes quanto ele. O reconhecimento da igualdade entre os crentes, por­ tanto, não implica a identidade entre todos os crentes.5

“Pelo batismo, somos todos sacerdotes consagrados.” Todos os crentes, por causa do seu batismo, pertencem ao poder espiritual. (Observe que Lutero consegue supor que todos os alemães são batizados.) “Cristo não tem dois corpos, um temporal e outro espiritual. Há somente uma cabeça e um corpo.” Portanto, os leigos têm o direito de exigir um concilio geral para reformar a igreja; e, com forte ironia, Lutero recorda a seus leitores que foi o imperador romano Constantino (um leigo, se já houve algum) o Responsável por convocar o concilio mais importante na história da igreja (o Concilio de Niceia, que ocorreu em 325). Por que não deveria a nobre­ za alemã convocar um concilio para reformar a igreja em 1520? Assim, depois de abolir a distinção medieval entre poder “temporal” e “espiritual”, Lutero prossegue e desenvolve uma teoria alternativa de esfe­ ras de autoridade, baseada numa distinção entre os “dois reinos” ou “dois governos”. Essa doutrina dos “dois reinos” é central para o pensamento social de Lutero. É nela que estamos interessados nesta seção. Lutero faz uma distinção entre governo “espiritual” e “terreno” da so­ ciedade. O governo espiritual de Deus é efetuado por meio da Palavra de Deus e da orientação do Espírito Santo. O crente que “anda no Espírito” não precisa de orientação adicional de outros quanto a como deve agir: ele está perfeitamente em sintonia com a vontade divina, e age de acordo. As­ sim como uma árvore boa não precisa de instruções para gerar frutos, do mesmo modo também o verdadeiro crente não precisa de legislação para guiar sua conduta. Assim como uma árvore gera frutos naturalmente,

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do mesmo modo também o crente naturalmente age de maneira moral e responsável. Lutero também enfatiza a diferença entre as concepções humana e divina de “retidão” ou “justiça”, um tema característico de sua “teologia da cruz”. Os padrões de justiça de Deus questionam os padrões do mundo. O governo terreno de Deus é efetuado por meio de reis, príncipes e magistrados, por meio do uso da espada e da lei civil. Estas não têm auto­ ridade em questões de doutrina. “Quando os príncipes e senhores tempo­ rais tentam alterar a Palavra de Deus ou tentam se tornar mestres dela de modo altivo- algo que lhes é proibido tanto quanto ao pedinte mais mise­ rável -, estão buscando serem eles mesmos Deus.” Sua esfera de autoridade apropriada se refere aos assuntos do mundo, as coisas de César, não as de Deus. Embora esses governantes temporais estejam envolvidos no/mundo secular, estão mesmo assim desempenhando a obra de DeusjSejam esses príncipes e magistrados crentes verdadeiros ou não, ainda assim desempe­ nham um papel divino (Lutero apela a Rm 13.1-7 e lPe 2.13-14 para apoiar essa alegação). Deus ordenou que se deve impor ordem sobre a Criação, para a manutenção da paz e a repressão do pecado. Há três hierarquias, ou “ordens”, dentro de uma sociedade cristã: o lar ou família, com o pai como cabeça (refletindo o paternalismo da época de Lutero); os príncipes e ma­ gistrados, que exercem autoridade secular; e o clero, que exerce autoridade espiritual. Todas essas estão fundamentadas na Palavra de Deus, e refletem a vontade divina para a estruturação e preservação do domínio terreno. Lutero reconhece que sua posição agostiniana a respeito do relaciona­ mento entre igreja e sociedade implica haver “excrementos de ratos entre os grãos de pimenta, erva daninha no meio do grão”: em outras palavras, o bom e o mal coexistem tanto na igreja quanto na sociedade. Isso não quer dizer que “bem” e “mal” não possam ser distinguidos: é simplesmente reconhecer, com o pragmatismo pelo qual Lutero é conhecido, que não podem ser isolados. O bem pode ser governado pelo Espírito, mas o mal precisa ser governado pela espada. Lutero insistia que as grandes massas de alemães batizados não eram crisSermão do Monte Modo comum tãos verdadeiros. Desse modo, Lutero de se referir ao ensino moral e reconhece que seria completamente pastoral de Cristo na forma espeimpraticável desejar que a sociedade cífica que toma em Mateus 5-7. pudesse ser governada pelos preceitos do Sermão do Monte. Talvez todos devessem ser governados assim - mas nem todos o seriam. O Espírito e a espada precisam coexistir no governo de uma sociedade cristã. No entanto, a ética social de Lutero parece sugerir que existem duas moralidades totalmente diferentes lado a lado: uma ética cristã particular,

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refletindo a regra do amor expressa no Sermão do Monte e desafiando os conceitos humanos de justiça; e uma moralidade pública, baseada na força, que sanciona os conceitos humanos de justiça. A ética cristã se baseia na doutrina da justificação somente pela fé, na qual o crente responde com gra­ tidão à graça de Deus por meio de boas obras; a moralidade pública se baseia na coerção, na qual os cidadãos obedecem à lei por medo das conseqüências de não o fazerem. O Sermão do Monte é um guia moral esplêndido para o cristão individual, mas suas exigências morais não são necessariamente aplicáveis à moralidade pública. Fica evidente, portanto, que Lutero colo­ ca o cristão, que também é uma figura pública (como um príncipe ou um magistrado), na posição praticamente impossível de ter que empregar duas éticas diferentes: uma para sua vida privada, outra para sua vida pública. Assim, Deus governa a igreja pelo Espírito Santo por meio do evan­ gelho, de uma maneira que exclui toda coerção; e governa o mundo pela espada da autoridade secular. Os magistrados têm permissão para usar a espada para fazer cumprir a lei, não porque a violência seja inerentemen­ te justificada, mas por causa da obstinação da pecaminosidade humana. Se não houvesse pecado humano, não seria necessária nenhuma coerção: todos reconheceriam a sabedoria do evangelho e modificariam seu com­ portamento de acordo com ele. Deus estabeleceu a ordem política para restringir a ganância e impiedade humana, as quais são resultado de ten­ dências pecaminosas.