O passado, modos de usar : história, memória e política
 9789899751910

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O passado, modos de usar

O passado, modos de usar história, memória e política Enzo Traverso

edições unipop

O passado, modos de usar. História, memória e política. Título original Le passé, modes d’emploi: histoire, mémoire, politique Autores Enzo Traverso Tradução Tiago Avó Revisão Unipop Capa AnaMary Bilbao Paginação Unipop Impressão Guide Artes Gráficas Copyright La fabrique 2005. Unipop para a presente edição Depósito legal 349477/12 ISBN 978-989-97519-1-0 1.ª edição Lisboa, Fevereiro de 2012 2.ª edição Lisboa, Outubro de 2012 http://www.unipop.info [email protected]

Introdução – A emergência da memória

9

I – História e memória: uma dupla antinómica? 21 Rememoração 21 Separações 29 Empatia 38 II – O tempo e a força Tempo histórico e tempo da memória «Memórias fortes» e «memórias fracas»

55 55 71

III – O historiador entre juiz e escritor Memória e escrita da história Verdade e justiça

89 89 100

IV – Usos políticos do passado A memória da Shoah como «religião civil» O eclipse da memória do comunismo

109 109 120

V – Os dilemas dos historiadores alemães O desaparecimento do fascismo A Shoah, a RDA e o antifascismo

129 129 138

VI – Revisão e revisionismo Metamorfoses de um conceito A palavra e a coisa

149 149 155

Nota bibliográfica e agradecimentos

165

Notas

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À memória de Roland Lew (1944-2005)

«A história é sempre contemporânea, ou seja, política» Antonio Gramsci Quaderni del carcere

Introdução A emergência da memória São raras as palavras tão banalizadas como «memória». A sua difusão é ainda mais impressionante dada a sua entrada tão tardia no domínio das ciências sociais. Durante os anos 1960 e 1970 ela estava praticamente ausente dos debates intelectuais. Não figura na edição de 1968 da International Encyclopedia of the Social Sciences, publicada em Nova Iorque sob a direcção de David L. Sills, nem na obra colectiva intitulada Faire de l’histoire, publicada em 1974 sob a direcção de Jacques le Goff e Pierre Nora, nem mesmo em Keywords, de Raymond Williams, um dos pioneiros da história cultural1. Alguns anos mais tarde teria já penetrado profundamente no debate historiográfico. 9

A «memória» é recorrentemente utilizada como sinónimo de história e tem uma particular tendência para absorvê-la, tornando-se ela própria numa espécie de categoria meta-histórica. Captura o passado numa rede de malha mais larga do que a disciplina tradicionalmente denominada história, aí depositando uma dose bem maior de subjectividade, de «vivido». Em suma, a memória aparece como um história menos árida e mais «humana»2. A memória invade hoje em dia o espaço público das sociedades ocidentais. O passado acompanha o presente e instala-se no seu imaginário colectivo como uma «memória» extremamente amplificada pelos meios de comunicação e frequentemente regida pelos poderes públicos. A memória transforma-se em «obsessão comemorativa» e a valorização, por vezes mesmo a sacralização, dos «lugares de memória» engendra uma verdadeira «topolatria»3. Esta memória superabundante e saturada sinaliza o espaço4. Tudo doravante contribui para «fazer» memória. O passado transforma-se em memória colectiva depois de ter sido seleccionado e reinterpretado segundo as sensibilidades culturais, as interrogações éticas e as conveniências políticas do presente. Assim toma forma o «turismo da memória», com a transformação de locais históricos em museus e em lugares de visitas organizadas, dotadas de estruturas de acolhimento adequadas (hotéis, restaurantes, lojas de 10

recordações, etc.), e promovido junto do público através de estratégias publicitárias dirigidas. Os centros de investigação e as sociedades de história local são incorporados nos dispositivos deste turismo da memória em que por vezes encontram os seus meios de subsistência. Por um lado, este processo decorre indubitavelmente de uma reificação do passado, ou seja, da sua transformação em objecto de consumo, estetizado, naturalizado e rentabilizado, pronto para ser utilizado pela indústria do turismo e do espectáculo, especialmente pelo cinema. O historiador é frequentemente chamado a participar nesse processo, na qualidade de «profissional» e de «especialista» que, nos termos de Olivier Dumoulin, faz da sua arte um «produto comercial» da mesma forma que o são os bens de consumo que invadem as nossas sociedades. A Public History americana, com os seus historiadores a trabalhar para instituições ou mesmo empresas privadas sujeitas à lógica do lucro, há muito que nos indica o caminho5. Por outro lado, este fenómeno parece-se igualmente, em vários aspectos, ao que Eric Hobsbawm chamou «a invenção da tradição»6: um passado real ou mítico em torno do qual se constroem práticas ritualizadas que visam reforçar a coesão de um grupo ou de uma comunidade, legitimar algumas instituições e inculcar valores na sociedade. Por outras 11

palavras, a memória tende a tornar-se o vector de uma «religião civil» do mundo ocidental, com o seu sistema de valores, crenças, símbolos e liturgias7. De onde vem esta obsessão memorial? A sua proveniência é múltipla, mas deve-se sobretudo a uma crise de transmissão no seio das sociedades contemporâneas. Poderia evocar-se a esse propósito a distinção sugerida por Walter Benjamin entre a «experiência transmitida» (Erfahrung) e a «experiência vivida» (Erlebnis). A primeira perpetua-se quase naturalmente de uma geração para a outra, forjando as identidades dos grupos e das sociedades num tempo longo; a segunda é a vivência individual, frágil, volátil e efémera. No seu Passagen-Werk, Benjamin considera a «experiência vivida» como um traço marcante de modernidade, com o ritmo e as metamorfoses da vida urbana, os choques eléctricos de uma sociedade de massas e o caos caleidoscópico do universo mercantil. A Erfahrung é típica das sociedades tradicionais e a Erlebnis é própria das sociedades modernas, por vezes como marca antropológica do liberalismo, do individualismo possessivo, outras vezes como produto das catástrofes do século XX, com o seu cortejo de traumas que afectaram gerações inteiras sem que fosse possível inscreverem-se como uma herança no curso natural da vida. A modernidade, segundo Benjamin, caracteriza-se precisamente pelo de12

clínio da experiência transmitida, um declínio marcado simbolicamente pelo início da Primeira Guerra Mundial. Durante esse momento de grande trauma europeu, muitos milhões de pessoas, sobretudo jovens camponeses que tinham aprendido com os seus antepassados a viver segundo os ritmos da natureza, no interior dos códigos do mundo rural, foram brutalmente arrancados ao seu universo social e mental8. Foram subitamente submersos «numa paisagem em que quase nada era reconhecível além das nuvens e, no meio, num campo de forças atravessado de tensões e explosões destrutivas, o minúsculo e frágil corpo humano»9. Os milhares de soldados que voltaram da frente de guerra, mudos e amnésicos, comocionados pelos Shell Shocks* provocados pela artilharia pesada que bombardeava, sem cessar, as trincheiras inimigas, corporizaram esse corte entre duas épocas; a da tradição forjada pela experiência herdada e a dos cataclismos que se furtam aos mecanismos naturais de transmissão da memória. As desventuras do smemorato di Collegno – um ex-combatente amnésico de dupla identidade, ao mesmo tempo filósofo de Verona e operário tipográfico de Turim – que apaixonaram os italianos no período entre as duas guerras, e inspiraram obras de Luigi Pirandello, José Carlos Mariátegui * Nome dado na Primeira Guerra Mundial ao que hoje se designa, na gíria militar, por combat stress reaction (CSR). N.T. 13

e Leonardo Sciascia, inscrevem-se nessa mutação profunda da paisagem memorial europeia10. Mas, no fundo, a Grande Guerra não fazia mais do que completar, de uma forma convulsiva, um processo cujas origens foram magistralmente estudadas por Edward Palmer Thompson num ensaio sobre o advento do tempo mecânico, produtivo e disciplinar da sociedade industrial11. Outros traumas marcaram a «experiência vivida» do século XX, sob a forma de guerras, genocídios, depurações étnicas ou repressões políticas e militares. A recordação que deles resultou não foi efémera nem frágil. Para várias gerações incapazes de ter uma percepção da realidade que não fosse a de um universo fracturado foi mesmo uma recordação fundadora que, porém, não se constituiu como uma experiência do quotidiano transmissível a uma nova geração12. Uma primeira resposta à nossa questão inicial poderia, assim, formular-se da seguinte forma: a obsessão memorial dos nossos dias é um produto do declínio da experiência transmitida num mundo que perdeu as suas referências, desfigurado pela violência e atomizado por um sistema social que apaga as tradições e fragmenta as existências. É necessário que nos interroguemos sobre as formas dessa obsessão. A memória – a saber, as representações colectivas do passado tal como se forjam no presente – estrutura as identidades sociais, inscrevendo-as numa 14

continuidade histórica e dotando-as de um sentido, ou seja, de um conteúdo e de uma direcção. A sociedades humanas possuíram, sempre e em todo o lado, uma memória colectiva mantida através de ritos, cerimónias e mesmo políticas. As estruturas elementares da memória colectiva residem na comemoração dos mortos. Tradicionalmente, no mundo ocidental, os ritos e os monumentos funerários celebravam a transcendência cristã – a morte como passagem para o Além – e, ao mesmo tempo, reafirmavam as hierarquias sociais «aqui em baixo». Na modernidade, as práticas comemorativas metamorfoseiam-se. Por um lado, com o fim das sociedades do Antigo Regime, democratizam-se ao investirem a sociedade no seu conjunto; por outro, secularizam-se e tornam-se funcionais, veiculando novas mensagens dirigidas os vivos. A partir do século XIX, os monumentos comemorativos consagram os valores laicos (a Pátria), defendem princípios éticos (o Bem) e políticos (a Liberdade) ou celebram acontecimentos fundadores (guerras, revoluções). Começam a tornar-se símbolos de um sentimento nacional vivido como uma «religião civil». Segundo Reinhart Koselleck, «O declínio da interpretação cristã da morte deixou o campo livre para interpretações puramente políticas e sociais»13. Iniciado com a Revolução Francesa, berço das primeiras guerras democráticas do mundo moderno, o fenómeno apro15

fundou-se depois da Grande Guerra, quando os monumentos aos soldados caídos em combate começaram a organizar o espaço público em todas as povoações. Hoje, o trabalho de luto mudou de objecto e de formas. Nesta viragem de século, Auschwitz tornou-se a base da memória colectiva do mundo ocidental. A política da memória – comemorações oficiais, museus, filmes, etc. – tende a fazer da Shoah a metáfora do século XX como idade de guerras, de totalitarismos, de genocídios e de crimes contra a humanidade. No centro deste sistema de representações instala-se uma figura nova, a testemunha, o sobrevivente dos campos nazis. A recordação de que é portador e a atenção que lhe é reservada (após décadas de indiferença) abalaram o historiador, ao criarem desordem na sua oficina e ao perturbarem o seu modo de trabalho. Por um lado, o historiador teve de se render à evidência das limitações dos seus procedimentos tradicionais e das suas fontes, bem como ao contributo indispensável das testemunhas para a reconstrução de experiências como o universo concentracionário e a máquina exterminadora do nazismo. A testemunha pode oferecer-lhe elementos de conhecimento factual inacessíveis através de outras fontes, mas sobretudo pode ajudá-lo a restituir a qualidade de uma experiência histórica cuja textura se modifica depois de enriquecida pelas vivências dos seus 16

actores. Por outro lado, o aparecimento da testemunha e, em consequência, a entrada da memória na oficina do historiador vieram pôr em causa alguns práticas habituais, como por exemplo as de uma história estrutural concebida enquanto um processo de acumulação, no tempo longo, de vários estratos (território, demografia, trocas, instituições, mentalidades) que permitem apreender as coordenadas globais de uma época, mas que deixam muito pouco espaço à subjectividade dos homens e das mulheres que fazem a História14. Entrámos, para usar as palavras de Annette Wieviorka, na «era da testemunha», que, colocada sobre um pedestal, encarna um passado cuja recordação é prescrita como um dever cívico15. A testemunha identifica-se cada vez mais com a vítima, outra marca desta era. Ignorados durante décadas, os sobreviventes dos campos de extermínio nazis tornaram-se hoje, contra a sua vontade, ícones vivos. São cristalizados numa posição que não escolheram e que nem sempre corresponde à sua necessidade de transmitir a experiência vivida. Outras testemunhas, antes apontadas como heróis exemplares, tal como a resistência que pegou em armas para combater o fascismo, perderam a sua aura ou caíram mesmo no esquecimento, engolidas pelo «fim do comunismo» que, eclipsado da história com os seus mitos, na sua queda arrastou as utopias e as esperanças que havia encarnado. 17

A memória destas testemunhas já só a poucos interessa, numa época de humanitarismo onde já não há vencidos mas apenas vítimas. Esta dissimetria da recordação – a sacralização das vítimas antes ignoradas e o esquecimento de heróis anteriormente idealizados – indica a ancoragem profunda da memória colectiva no presente, com as suas mutações e regressões paradoxais. A memória conjuga-se sempre no presente, que determina as suas modalidades: a sucessão de acontecimentos de que se devem guardar recordações (e de testemunhas a escutar), a sua interpretação, as suas «lições», etc. Ela transforma-se em questão política e toma a forma de uma injunção ética – o «dever da memória» – que frequentemente se transforma em fonte de abusos16. Os exemplos não faltam. Todas as guerras destes últimos anos, da primeira à segunda guerra do Golfo, passando pela guerra do Kosovo e pela do Afeganistão, foram também guerras da memória, pois foram justificadas pela evocação ritual do dever de memória17. Saddam Hussein, Arafat, Milosevic e George W. Bush foram comparados com Hitler nas palavras de ordem das manifestações, nos cartazes, nos meios de comunicação e no discurso de alguns líderes políticos. O islamismo político é muitas vezes identificado com o fanatismo nazi. O historiador israelita Tom Segev indica que Menahem Begin tinha vivido a invasão israelita do Líbano, em 1982, como um 18

acto reparador, um sucedâneo fantasmático de um exército judaico que teria expulso os nazis de Varsóvia em 194318. Mais recentemente, em 2002, o Consistório central dos israelitas de França declarou que o país estava à beira de uma onda de antissemitismo comparável à que se abateu na Alemanha nazi durante a Noite de Cristal em Novembro de 193819. Para o escritor português José Saramago, em contraposição, a ocupação israelita dos territórios palestinos seria comparável ao Holocausto20. Durante a guerra na ex-Jugoslávia, os nacionalistas sérvios viam as depurações étnicas contra os albaneses do Kosovo como uma vingança contra a antiga opressão otomana, enquanto em França os profissionais do anticomunismo viam as bombas sobre Belgrado como uma defesa da liberdade contra o totalitarismo. A lista poderia continuar. A dimensão política da memória colectiva – e os abusos que a acompanham – não pode deixar de afectar a maneira de escrever a história. Este livro propõe-se explorar as relações entre a história e a memória e analisar alguns aspectos do uso público do passado. A matéria que se oferece a essa reflexão é inesgotável. Baseei-me em alguns temas conhecidos e sobre os quais tenho trabalhado nos últimos anos. Outros de igual importância ficaram excluídos ou são pouco evocados neste ensaio, que pretende participar num debate muito vasto e ainda em aberto. 19

I História e memória: uma dupla antinómica? Rememoração História e memória nascem de uma mesma preocupação e partilham o mesmo objecto: a elaboração do passado. No entanto, existe uma «hierarquia» entre as duas. De acordo com Paul Ricoeur, a memória possui um estatuto matricial 1. A história é um relato, uma escrita do passado segundo as modalidades e as regras de um ofício – de uma arte ou, com muitas aspas, de uma «ciência» – que tenta responder a questões suscitadas pela memória. A história nasce, portanto, da memória, libertando-se desta ao colocar o passado à distância, ao considerá-lo, segundo a expressão de Oakeshott, como 21

«um passado em si»2. A história acaba, enfim, por fazer da memória um dos seus domínios de investigação, como prova a história contemporânea. Também chamada de «história do tempo presente», a história do século XX analisa o testemunho dos actores do passado e integra o relato oral nas suas fontes, a par dos arquivos e de outros documentos materiais ou escritos. Em suma, a história nasce da memória, de que é uma das dimensões, e posteriormente, adoptando uma postura auto-reflexiva, transforma a memória num dos seus objectos. Proust continua a ser uma referência obrigatória para toda e qualquer meditação sobre a memória. Nos seus comentários sobre a obra Em Busca do Tempo Perdido, Walter Benjamin sublinha que Proust «não descreveu uma vida tal como ela foi, mas uma vida como a rememora alguém que a viveu». E continua comparando a «memória involuntária» de Proust – que traduz como «trabalho de rememoração espontânea» (Eingedenken), onde a recordação é a embalagem e o esquecimento é o conteúdo – com um «trabalho de Penélope» onde é «o dia que desfaz o que a noite tinha feito». Cada manhã, ao acordar, «não temos em mãos mais do que algumas franjas, em geral frágeis e lassas, da tapeçaria do vivido que o esquecimento em nós teceu»3. Tirando a sua força da experiência vivida, a memória é eminentemente subjectiva. Fica ancorada aos fac22

tos a que assistimos, dos quais fomos testemunhas, ou mesmo actores, e às impressões que deixaram no nosso espírito. A memória é qualitativa, singular, pouco preocupada com comparações, com a contextualização, ou com generalizações. Quem a transporta não necessita de apresentar provas. O relato do passado prestado por uma testemunha – sempre que não seja um mentiroso consciente – será sempre a sua verdade, ou seja, a imagem do passado em si deposto. Pelo seu carácter subjectivo, a memória nunca é cristalizada; mais se parece com um estaleiro aberto, em contínua operação. Não é apenas, segundo a metáfora de Benjamin, «a tela de Penélope» que se modifica todos os dias devido ao esquecimento que «ameaça» em permanência, para reaparecer mais tarde, por vezes muito mais tarde, tecida de uma forma diferente. Não é só o tempo a erodir e a enfraquecer a recordação. A memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos adquiridos posteriormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por experiências que se sobrepõem à primeira e modificam a recordação. O exemplo clássico é, uma vez mais, o dos sobreviventes dos campos nazis. Muitas vezes, o relato da permanência em Auschwitz por um ex-deportado judeu e comunista modifica-se consoante a sua relação com o Partido Comunista. Durante os anos 1950, antes da ruptura com o Partido, coloca a sua identidade 23

política em primeiro plano ao apresentar-se como um deportado antifascista. Depois, durante os anos 1980, consumada a ruptura, considera-se em primeiro lugar um deportado judeu, perseguido como judeu e testemunha do aniquilamento dos judeus na Europa. Bem entendido, seria absurdo distinguir entre dois testemunhos prestados pela mesma pessoa em dois momentos diferentes da sua vida, elegendo um como falso e outro como verdadeiro. Os dois são autênticos, mas cada um deles ilumina uma parte da verdade filtrada pela sensibilidade, pela cultura e também, poderia acrescentar-se, pelas representações identitárias, ou mesmo ideológicas, do presente. Resumindo, a memória, individual ou colectiva, é uma visão do passado que é sempre filtrada pelo presente. Nesse sentido, Benjamin definiu o procedimento de Proust como uma «presentificação» (Vergegenwärtigung)4. Seria ilusório pensar-se no «antes» (das Gewesene) como uma espécie de «ponto fixo» de que nos poderíamos aproximar através de uma reconstrução mental a posteriori. O «acontecido» é em larga medida configurado pelo presente, visto ser a memória a «estabelecer» os factos: trata-se, segundo Benjamin, de uma «revolução coperniciana na visão da história»5. Benjamin reafirma este conceito nas «reflexões teóricas» do seu Passagen-Werk, quando considera «o passado em colisão com o presente», acrescentando que «é o presente que 24

polariza o acontecimento (das Geschehen) em história anterior e história posterior». A história, continua Benjamin, «não é apenas uma ciência», já que é «ao mesmo tempo uma forma de rememoração (Eingedenken)»6. Mais recentemente, numa linha semelhante, François Hartog forjou a noção de «presentismo» a fim de descrever uma situação em que «o presente se tornou o horizonte», um presente que, «sem futuro e sem passado», permanentemente engendra os dois segundo as suas necessidades7. A história, que no fundo, lembrava Ricoeur, não é mais do que uma parte da memória, escreve-se sempre no presente. Para existir como campo do saber, no entanto, a história deve emancipar-se da memória, não rejeitando-a mas colocando-a à distância. Um curto-circuito entre história e memória poderia ter consequências prejudiciais para o trabalho do historiador. Uma boa ilustração deste fenómeno é oferecida pelo debate dos últimos anos em torno da «singularidade» do genocídio judeu8. A irrupção desta controvérsia no domínio do historiador relaciona-se, inevitavelmente, com o percurso da memória judaica, com a sua emergência no seio do espaço público e a sua interferência nos métodos tradicionais de pesquisa que foram subitamente confrontados com autobiografias e com arquivos audiovisuais que apresentam os teste25

munhos dos sobreviventes dos campos de concentração. Se uma tal «contaminação» da historiografia pela memória se revelou extremamente frutuosa, não deve no entanto ocultar uma observação metodológica tão banal como essencial: a memória singulariza a história, na medida em que é profundamente subjectiva, selectiva, muitas vezes desrespeitadora da cronologia, indiferente às reconstruções de conjunto e às racionalizações globais. A sua percepção do passado não pode ser senão irredutivelmente singular. Onde o historiador não vê mais do que uma etapa de um processo, do que um aspecto de um quadro complexo em movimento, a testemunha pode captar um acontecimento crucial, o ponto de viragem numa vida. O historiador pode decifrar, analisar e explicar as fotografias conservadas do campo de Auschwitz. Ele sabe que aqueles que descem do comboio são judeus, ele sabe que o SS que os observa fará uma selecção e que a grande maioria das figuras daquela fotografia não terá mais do que algumas horas de vida à sua frente. A uma testemunha, essa fotografia dirá muito mais. Lembrar-se-á das sensações, das emoções, dos ruídos, das vozes, dos cheiros, do medo e da desorientação da chegada ao campo, da fadiga de uma longa viagem efectuada em condições horríveis, sem dúvida da visão do fumo dos crematórios. Dito de outra forma, lembrar-se-á de um 26

conjunto de imagens e de recordações todas elas singulares e completamente inacessíveis ao historiador, senão com base num relato a posteriori, fonte de uma empatia incomparável àquela que a testemunha pôde reviver. A fotografia de um Häftling* significa aos olhos do historiador uma vítima anónima; para um parente, um amigo ou um camarada de detenção, evoca um mundo absolutamente único; para o observador exterior, não representa – como diria Siegfried Kracauer – mais do que uma realidade «não redimida» (unerlöst)9. O conjunto daquelas recordações forma uma parte da memória judaica, uma memória que o historiador não pode ignorar e que deve respeitar, que deve explorar e compreender, mas à qual não se deve submeter. O historiador não tem o direito de transformar a singularidade dessa memória num prisma normativo da escrita da história. A sua tarefa consiste muito mais na inscrição dessa singularidade da experiência vivida num contexto histórico global, tentando esclarecer as causas, as condições, as estruturas, a dinâmica de conjunto. Isto significa aprender com a memória depois de a passar pelo crivo de uma verificação objectiva, empírica, documental e factual, assinalando, se necessário for, as suas contradições e armadilhas. Este * Prisioneiro. N.T. 27

procedimento pode ajudar a recordação a tornar-se mais nítida, a clarificar os seus contornos, a tornar-se mais exigente, e também a trazer luz sobre aquilo que na lembrança não é redutível a elementos factuais10. Se pode haver uma singularidade absoluta da memória, a da história será sempre relativa11. Para um judeu polaco, Auschwitz significa qualquer coisa de terrivelmente único: o desaparecimento do universo humano, social e cultural onde nasceu. Um historiador que não consiga compreender isso jamais conseguirá escrever um bom livro sobre a Shoah, mas o resultado da sua pesquisa também não seria melhor se concluísse – tal como o fez, por exemplo, o historiador norte-americano Steven Katz – que o genocídio judaico foi o único da história12. Segundo Eric Hobsbawm, o historiador não se deve subtrair a um dever de universalismo: «Uma história que diga respeito apenas aos judeus (ou aos negros americanos, aos gregos, às mulheres, aos proletários, aos homossexuais, etc.) não será uma boa história, mesmo que possa reconfortar quem a pratica.»13. É normalmente muito difícil, para os historiadores que trabalham sobre fontes orais, encontrar o equilíbrio justo entre empatia e distanciação e entre o reconhecimento das singularidades e a perspectiva geral.

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Separações É apenas a partir do início do século XX, quando os paradigmas do historicismo clássico entraram em crise, questionados simultaneamente pela filosofia (Bergson), pela psicanálise (Freud) e pela sociologia (Halbwachs), que história e memória passaram a formar um par antinómico. Até então a memória era considerada o substrato subjectivo da história. Para Hegel, a história (Geschichte) possuía duas dimensões complementares, uma objectiva e outra subjectiva: de um lado, os acontecimentos (res gestae); do outro, a sua narração (historia rerum gestarum); isto é, os «factos» e o seu «relato histórico»14. A memória acompanha o desenrolar da história como uma espécie de sua protectora, já que constitui o seu «fundamento interior», e as duas encontram a sua realização no Estado, cuja história escrita («a prosa da História»15) reflecte, como um espelho, a racionalidade intrínseca. Hegel apresenta esse domínio estatizado do passado sob a forma alegórica do conflito entre Cronos, o deus do tempo, e Zeus, o deus político. Cronos mata os seus próprios filhos. Engole tudo à sua passagem, não deixando rasto. Mas Zeus consegue dominar Cronos, porque criou o Estado, capaz de transformar em história tudo aquilo que Mnemósina, a deusa da memória, pôde colectar após a passagem devastadora do tempo. Na Fenomenologia do Espírito, a me29

mória define a historicidade do Espírito (Geist), que se manifesta simultaneamente como «recordação» (Erinnerung) e movimento de «interiorização» (Er-Innerung), enquanto que o Estado constitui a sua expressão exterior16. Para Hegel, apenas os povos estatizados, dotados de uma história escrita, possuem uma memória. Os outros – «os povos sem história» (geschichtlose Völker), ou seja, o mundo não europeu desprovido de um passado estatal e do seu relato codificado pela escrita – não podem superar o estádio de uma memória primitiva, feita de «imagens» mas incapaz de se condensar em consciência histórica17. Daqui resulta uma visão dupla da história, como prerrogativa ocidental e como dispositivo de dominação. Não só é pertença exclusiva da Europa, como só pode existir enquanto relato apologético do poder18, aquilo que Benjamin denunciou como empatia historicista com os vencedores19. No entanto, no seguimento da crise do historicismo, da crítica ao paradigma eurocentrista no período da descolonização e, depois, com a emergência das classes subalternas como sujeitos políticos, a história e a memória dissociaram-se. A história democratizou-se, rompendo as fronteiras do Ocidente e o monopólio das elites dominantes; a memória, por sua vez, emancipou-se da dependência exclusiva da escrita. A relação entre história e memória reconfigurou-se como uma tensão 30

dinâmica. A transição não foi nem linear nem rápida e, de uma certa forma, ainda não foi concluída. Nos últimos trinta anos, os historiadores alargaram as suas fontes, mas continuam a privilegiar os arquivos, que não deixaram de ser o depósito dos vestígios de um passado conservado pelo Estado. Só recentemente é que os «subalternos» foram reconhecidos como sujeitos da história e se tornaram objecto de estudo. E foi ainda mais recentemente que se começou a tentar escutar a sua voz. Em 1963, François Furet ainda pensava que podia integrar as classes subalternas na história apenas num plano quantitativo, tomando-as em consideração unicamente sob o signo «do número e do anonimato», como elementos «perdidos no estudo demográfico ou sociológico», ou seja, como entidades condenadas a permanecer «silenciosas»20. No fundo, para aquele admirador de Tocqueville, as classes trabalhadoras permaneciam ainda como «povos sem história». A mutação operou-se precisamente no decurso dos anos 1960. A primeira grande obra de história social das classes subalternas, The Making of the English Working Class, de Edward Palmer Thompson, data de 1963; a Histoire de la folie à l’âge classique, de Foucault, data de 1964; e o ponto de partida da micro-história, Il formaggio e i vermi, de Carlo Ginzburg, que reconstrói o universo de um moleiro de Friuli no século XVI, data de 197621. De igual 31

modo, para a historiografia, as mulheres só passaram a ter uma história há trinta anos22. Até então, as mulheres estavam excluídas da mesma forma que o estavam os «povos sem história» de Hegel. Os Subaltern Studies, por seu lado, nasceram na Índia no início dos anos 1980. O seu objectivo é rescrever a história já não como «a obra da Inglaterra na Índia», nem como a das elites indianas formadas durante a dominação colonial, mas como história dos «subalternos», o povo cuja «pequena voz» (small voice) procura escutar-se e que «a prosa da contra-insurreição» depositada nos arquivos de Estado não nos pode restituir, pois a sua função consiste exactamente em submergi-la23. É neste contexto de alargamento das fontes do historiador e de questionamento das hierarquias tradicionais que se inscreve a emergência da memória como uma nova oficina de escrita do passado. O primeiro a codificar a dicotomia entre as flutuações emocionais da recordação e as construções geométricas do relato histórico foi Maurice Halbwachs, na sua obra já clássica sobre a memória colectiva. Aí denunciou o carácter contraditório da expressão «memória histórica» por unir dois elementos que, a seu ver, se opõem. Para Halbwachs, a história começa onde termina a tradição e «se decompõe a memória social»24, estando as duas separadas por uma clivagem insanável. 32

A história supõe um olhar exterior sobre os acontecimentos do passado, enquanto a memória implica uma relação de interioridade com os factos relatados. A memória perpetua o passado no presente, enquanto a história fixa o passado numa ordem temporal fechada, acabada, organizada seguindo procedimentos racionais nos antípodas da sensibilidade subjectiva do vivido. A memória atravessa as épocas, enquanto a história as separa. No fundo, Halbwachs opõe a multiplicidade das memórias – ligadas aos indivíduos e aos grupos que delas são portadores e sempre elaboradas em quadros sociais definidos25 – ao carácter unitário da história, que se declina em histórias nacionais ou em história universal, mas que exclui a coexistência de vários regimes temporais num mesmo relato26. Em resumo, Halbwachs opõe uma história positivista – o estudo científico do passado, sem interferências com o presente – a uma memória subjectiva baseada nas vivências dos indivíduos e dos grupos. Radicalizando a perspectiva, compara a clivagem que separa a história da memória à que opõe o tempo matemático ao «tempo vivido» de Bergson27. A história, refere o autor, ignora as percepções subjectivas do passado ao privilegiar cortes convencionais, impessoais, racionais e objectivos (Halbwachs refere o exemplo da Chronologie universelle, de Dreyss, publicada em Paris em 1858)28. 33

Essa dicotomia foi retomada, mais recentemente, por Yosef Haym Yerushalmi que, na sua qualidade de historiador, se apresenta como um recém-chegado ao mundo judaico. Numa comunidade unida pela religião, a imagem do passado foi forjada no decorrer dos séculos graças a uma memória ritualizada que fixava as modalidades e os ritmos de uma temporalidade judaica separada do mundo exterior. Por consequência, a historiografia judaica nasce de uma ruptura com a memória judaica, a única que anteriormente tinha assegurado uma continuidade, em termos de identidade e de auto-representação, no seio do mundo judaico. Essa ruptura foi marcada pela Emancipação judaica, movimento que engendrou um processo de assimilação cultural com o meio envolvente e, no interior da comunidade, o desmoronamento da antiga organização social centrada na sinagoga. Inscrevendo-se num mundo secularizado e adoptando as divisões temporais da história profana, a história judaica – cujo início foi marcado pela escola da Wissenschaft des Judentums, nascida em Berlim no início do século XIX – não poderia senão operar uma ruptura, pelas suas modalidades, fontes e objectivos, com a memória judaica29. A antinomia entre história e memória foi reafirmada por Pierre Nora, a quem se deve a renovação, a partir dos anos 1980, do debate historiográfico sobre 34

a memória. Recuperou para si a tese de Halbwachs, mas apresentando uma visão bem mais problemática das vicissitudes da escrita da história. Memória e história, explica Nora, estão longe de ser sinónimos, já que «tudo as opõe». A memória é «a vida», o que a expõe «à dialéctica da recordação e da amnésia, inconsciente das suas deformações sucessivas, vulnerável a todas as utilizações e manipulações, susceptível de longas latências e de súbitas revitalizações». Ora, esse «vínculo vivido no presente eterno» não pode ser assimilado à história, representação do passado que, mesmo se problemática e sempre incompleta, se quer objectiva e retrospectiva, fundada na distância. A memória é «afectiva e mágica», com tendência para sacralizar as recordações, enquanto a história é uma visão secular do passado, sobre o qual constrói «um discurso crítico». A memória tem uma vocação singular, ligada à subjectividade dos indivíduos e dos grupos, a história tem uma vocação universal. «A memória é um absoluto e a história apenas conhece o relativo».30 A partir dessa constatação, Nora não pode conceber senão uma relação entre história e memória, a de uma análise e reconstrução da memória segundo os métodos das ciências sociais de que a história faz parte. Nessa perspectiva, Nora abriu um novo campo historiográfico extremamente ambicioso: reconstruir a história nacional em torno dos «lugares da memória», 35

do território às paisagens, dos símbolos aos monumentos, das comemorações aos arquivos, dos emblemas aos mitos, da gastronomia às instituições, de Joana d’Arc à Torre Eiffel. Todavia, longe de serem o quinhão exclusivo da memória, os riscos de sacralização, mitificação e amnésia espreitam permanentemente a escrita da própria história e uma grande parte da historiografia moderna e contemporânea caiu nessa armadilha. O projecto de Nora não escapa a essa regra, ao reservar um espaço bem modesto para o passado da França colonial entre a multitplicidade de «lugares de memória». Segundo Perry Anderson, o mais severo dos seus críticos, o projecto editorial de Nora reduz as guerras coloniais francesas, da conquista da Argélia à derrota na Indochina, «a uma exposição de bugigangas exóticas que poderiam ter estado presentes na exposição universal de 1931. O que valem os lugares de memória que se esquecem de incluir Diên Biên Phû?»31 A história, da mesma forma que a memória, não tem apenas as suas falhas; pode também desenvolver-se e encontrar a sua razão de ser no desaparecimento de outras histórias e na negação de outras memórias. Como referiu Edward Said, a arqueologia israelita, que procura trazer à superfície os traços milenares do passado judaico da Palestina (vista por alguns como uma 36

«arqueologia – religião nacional»), escavou a terra com o mesmo afinco com que os bulldozers destruíram os traços materiais do passado árabo-palestino32. Por outro lado, deve ter-se em conta a influência da história sobre a própria memória, já que não existe memória literal, original e não contaminada: as recordações são constantemente elaboradas por uma memória inscrita no espaço público, submetidas aos modos de pensar colectivos, mas também influenciadas pelos paradigmas especializados da representação do passado. Esta situação deu lugar a híbridos – certas autobiografias entram nessa categoria – que permitem à memória revisitar a história, destacando os pontos cegos e as generalizações apressadas, e à história corrigir as armadilhas da memória, obrigando-a a transformar-se em análise auto-reflexiva e em discurso crítico. Uma obra como Os que sucumbem e os que se salvam, de Primo Levi33, articula história e memória num relato de novo tipo, inclassificável, fundado sobre um vai e vem permanente entre os dois. Pierre Vidal-Naquet, na sua auto-biografia, relata as suas recordações com o rigor de um historiador que verificou as suas fontes e submete a sua memória ao teste de apresentação de provas, dando-lhe, no entanto, a forma de um balanço retrospectivo e muitas vezes crítico. Não se trata apenas do seu relato, como refere no prefácio, porque ele tem em 37

conta a correspondência dos seus pais, o diário do seu pai e o diário que a sua irmã começou a escrever depois da detenção e deportação dos seus pais, mas também e sobretudo porque se apoia no seu conhecimento de todo um período histórico. «É nesse sentido – escreve – que se trata tanto de um livro de história como de memória, um livro de história de que sou, a uma só vez, o autor e o objecto.»34 Pertencendo ao mesmo tempo ao registo da memória e ao da história, estes dois exemplos não entram na dicotomia estabelecida por Halbwachs, Yerushalmi e Nora.

Empatia A mesma oposição entre história e memória está fortemente presente na historiografia do nacional-socialismo, como o demonstrou claramente, em meados dos anos 1980, a correspondência entre dois grandes historiadores, Martin Broszat e Saul Friedländer35. Procurando sustentar a sua defesa de uma historicização do nazismo capaz de romper a tendência para «insularizar» o período de 1933-1945 por razões morais, Broszat reivindica um método cientifico capaz de se emancipar da «recordação mítica» das vítimas36. A memória dos sobreviventes do genocídio dos judeus suscita evidentemente o seu respeito, mas deveria ficar ex38

cluída das fontes do historiador e não interferir com o seu trabalho. Face ao positivismo radical de tal posição, perguntamo-nos se ela não encobre a parte de memória vivida e afectiva presente na historiografia alemã do pós-guerra, nomeadamente a historiografia do nazismo elaborada pela «geração da Hitlerjugend *» 37. Para lá dos julgamentos que sobre esses resultados – muitas vezes notáveis – possam ser feitos, uma constatação impõe-se: uma característica partilhada pela maior parte dos seus representantes reside precisamente na exclusão das vítimas do nazismo do seu campo de investigação, para não dizer do seu horizonte epistemológico. Essa característica perpetuou-se, aliás, no trabalho de uma nova geração, muitas vezes centrada na análise da máquina de morte do nazismo, mas que raramente se interessa pelo testemunho das vítimas. Nessa historiografia, as vítimas ficam num plano secundário, anónimas e silenciosas38. Esse problema poderia ser também abordado a partir de uma outra perspectiva. O recalcamento dos anos negros na Alemanha do pós-guerra – recalcamento da Schuldfrage** e dos crimes nazis – não terá tido, entre os seus efeitos, o de transformar numa espécie de tabu os bombardeamentos que destruíram as cidades alemãs, * Juventude hitleriana. N.T. ** A questão da culpa. N.T. 39

tema que tem sido ignorado até a uma época recente, tanto pela literatura como pelo cinema e pela historiografia? Essa é a hipótese sugerida por W. G. Sebald, para quem a ausência de qualquer debate público e de obras literárias sobre esse trauma colectivo se deve ao facto de «um povo que havia assassinado e explorado até à morte milhões de homens ter ficado impossibilitado de exigir às potências vitoriosas que prestassem contas sobre a lógica de uma política militar que tinha ditado a erradicação de cidades alemãs»39. Opor radicalmente história e memória é, pois, uma operação perigosa e discutível. Os trabalhos de Halbwachs, Yerushalmi e Nora contribuíram para mostrar as diferenças profundas que existem entre história e memória, mas seria errado deduzir daí a sua incompatibilidade ou considerá-las como irredutíveis. O que a sua interacção cria é um campo de tensões no interior do qual se escreve a história. Sem dúvida que Amos Fukenstein tem razão quando indica, no ponto de encontro entre história e memória, a emergência de um terceira instância, a que chamou consciência histórica40. A correspondência com Broszat foi, aliás, o ponto de partida de Saul Friedländer para uma reflexão fecunda sobre as condições de escrita da história. Se o historiador não trabalha fechado na clássica torre de marfim, ao abrigo dos rumores do mundo, também não vive 40

dentro de uma câmara frigorífica, imune às paixões do mundo. Ele está submetido às condicionantes de um contexto social, cultural e nacional. Não escapa às influências das suas recordações pessoais, nem às de um saber herdado, de que pode tentar libertar-se, não através da sua negação, mas de um esforço de distanciamento crítico. Nessa perspectiva, a sua tarefa não consiste em tentar pôr de lado a memória – pessoal, individual e colectiva – mas em colocá-la à distância e em inscrevê-la num conjunto histórico mais vasto. Há então no trabalho do historiador uma dimensão de transferência que orienta a escolha, a abordagem e o tratamento do seu objecto de pesquisa, e da qual ele deve estar consciente. Friedländer define assim a escrita da história, recorrendo ao léxico da psicanálise, como um acto de «perlaboração» (working through). A distância cronológica que separa o historiador do objecto da sua investigação cria uma espécie de ecrã protector, mas a emoção que, muitas vezes de forma imprevista e súbita, ressurge no decurso do seu trabalho inevitavelmente quebra este diafragma temporal41. Esta empatia ligada à vivência individual do historiador não tem necessariamente efeitos negativos. Pode também revelar-se frutuosa, se o historiador dela estiver consciente e a souber «dominar»42. A obra de Friedländer constitui um bom exemplo de uma tal capacidade de domínio. Em Nazi Germany 41

and the Jews, inscreveu uma constelação de «destinos individuais» num relato histórico global da Alemanha no período anterior à Segunda Guerra Mundial. Foi assim capaz de ultrapassar a clivagem tradicional dos estudos do nazismo: de um lado as pesquisas, feitas essencialmente nos arquivos, que focalizam a atenção sobre a ideologia e as estruturas do regime; do outro lado, uma reconstrução do passado exclusivamente fundada sobre a memória das vítimas, por vezes baseada numa vasta literatura testemunhal, outras preservada nos arquivos visuais e sonoros. Friedländer tentou integrar essas duas perspectivas para chegar a uma reconstrução global do processo histórico, introduzindo a voz das vítimas numa narrativa que de outro modo se reduziria à análise das decisões políticas e dos decretos administrativos43. Apesar da sua postura positivista, os historiadores alemães da geração da Hitlerjugend, ou seja, aqueles que nasceram entre 1925 e o início dos anos 1930 (Martin Broszat, Hans Mommsen, Andreas Hillgruber, Ernst Nolte, Hans-Ulrich Wehler, etc.), tendem, também eles, a estabelecer uma empatia com os actores de um passado que implica recordações pessoais. As investigações sobre a história da vida quotidiana sob o nazismo (Alltagsgeschichte) desenham, na maior parte das vezes, um quadro social de que as vítimas simplesmente desaparecem44. Outros não escaparam à armadilha do 42

relato apologético. Para Andreas Hillgruber, jovem soldado da Wehrmacht* em 1945, ao descrever o último ano da Segunda Guerra Mundial, o historiador «deve identificar-se com o destino da população alemã de leste e com os esforços desesperados e custosos do Ostheer** (…) que visavam defender essa população contra a vingança do exército vermelho, as violações colectivas, os assassinatos arbitrários e as inúmeras deportações, e manter abertas rotas terrestres e marítimas que permitissem aos alemães dos territórios orientais fugir em direcção ao Oeste…»45. Ora, como lhe recordou Jürgen Habermas, a resistência encarniçada da Wehrmacht nesse último ano de guerra foi também o que permitiu a continuação das deportações para os campos de concentração nazis, onde as câmaras de gás continuavam a funcionar. Tradicionalmente, a historiografia não se apresentou sob a forma de um relato polifónico pela simples razão de que as classes subalternas não eram tomadas em consideração, o que resultou na redução da narração do passado aos relatos dos vencedores. Foi esse historicismo que Benjamin denunciou nas suas Teses * Conjunto das forças armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich. ** Exército de Leste. N.T. 43

sobre o conceito de história, descrevendo o seu método como uma forma de empatia unilateral com os vencedores46. Na verdade, essa «empatia» – a Einfühlung do historicismo clássico – não é sempre sinónimo de apologia. Alguns recusam-na, como Ian Kershaw, na sua biografia de Hitler, por ele apresentada como um trabalho de um historiador «estruturalista»47. A sua escolha é motivada tanto pela inconsistência da vida privada do führer, que reduziria toda a empatia a uma adesão aos seus desígnios políticos, como pelo seu desejo de distinguir a sua biografia da, mais antiga, de Joachim Fest. Fascinado pela «grandiosidade demoníaca» de Hitler, Fest não conseguiu deixar de lhe reservar, mesmo sem intenção, «um bom lugar no panteão dos heróis alemães»48. Outros adoptaram uma atitude de empatia crítica – muito mais um motivo de abalo do que de identificação (mais do que empatia, deveríamos falar de aproximação «heteropática»)49 – que ajuda a «compreender» o comportamento dos actores sem procurar justificá-los. É o esforço empreendido por Hanna Arendt ao penetrar no universo mental do SS Adolf Eichmann, esforço que não foi compreendido e que não lhe foi perdoado aquando da publicação do seu ensaio sobre a «banalização do mal»50. É também o sentido do trabalho micro-histórico de Christopher Bowning, que tentou compreender por que meio e por 44

que etapas certos «homens comuns», como os membros do 101.º batalhão de reserva da polícia alemã na Polónia em 1941, se puderam transformar numa equipa de massacre profissional51. Os percalços que resultam de uma empatia de sentido único, desprovida de distância crítica em relação ao seu objecto, são mais frequentes quando a polifonia dos actores se torna inaudível, escutando-se apenas uma voz, não havendo lugar a uma interacção entre memórias antagonistas no espaço público. Se na Argélia a independência deu rapidamente lugar a uma história oficial da guerra de libertação, em França o esquecimento não se podia eternizar. Deveria, mais tarde ou mais cedo, dar lugar a uma escrita da história alimentada pela multiplicidade de memórias. A memória da França colonial, a dos pied-noirs*, a dos harkis**, a dos emigrantes argelinos e dos seus filhos, e ainda a do movimento nacional argelino, mantida também pelos seus representantes entretanto exilados, enleiam-se numa memória da guerra da Argélia que impede uma escrita da história fundada sobre uma empatia unilateral, exclusiva. A escrita dessa história só se pode fazer sob o olhar vigilante e crítico de várias memória paralelas, que se exprimem no espaço pú* Cidadãos franceses que viviam na Argélia. N.T. ** Milicianos nativos ao serviço do exército francês. N.T. 45

blico. Esta interacção de memórias obrigou mesmo os próprios torcionários a sairem do seu silêncio, a formularem a sua versão do passado52. Concluindo, história e memória interagem aqui, para retomar uma expressão muito pertinente de David N. Myers, como «categorias flutuantes no seio de um campo dinâmico»53. Do outro lado dos Alpes, a paisagem memorial e historiográfica é bem diferente. Pouco antes da sua morte, George L. Mosse, um dos mais fecundos historiadores do fascismo do pós-guerra, fez o elogio do seu colega italiano Renzo De Felice, bem conhecido pela sua monumental biografia de Mussolini. O principal mérito de De Felice, segundo Mosse, residia precisamente na sua empatia com o fundador do fascismo, no facto de ter «tentado proceder desde o interior, imaginando como o próprio Mussolini concebia os seus actos»54. Na sua autobiografia, Mosse conta, em jeito de anedota, um episódio da sua adolescência em que se cruzou com o ditador italiano. Em 1936, Mosse estava em Florença com a sua mãe. O Eixo, entre a Itália fascista e a Alemanha nazi, tinha acabado de ser estabelecido, o que provocou agitação entre os judeus alemães que se tinham refugiado na península, temendo ser entregues às autoridades nazis (ameaça que se concretizará pela expulsão em massa em 1938, com a promulgação das leis raciais). A mãe do jovem Mosse decidiu então escre46

ver a Mussolini para lhe pedir a sua protecção, depois de lhe relembrar o auxílio financeiro que o seu marido, um importante editor alemão durante a República de Weimar, lhe havia oferecido antes da sua chegada ao poder. A curta chamada telefónica que o Duce fez à sua mãe para a tranquilizar mostra, segundo George L. Mosse, o «carácter de Mussolini, ou pelo menos o seu sentido de gratidão»55. Ao contrário de Mosse, De Felice não tinha anedotas pessoais para contar sobre o ditador italiano, mas tentou compreender a sua personalidade ao longo dos diferentes volumes da sua biografia, enorme trabalho escrito com uma Einfühlung sempre crescente ao longo dos anos. Pouco antes da sua morte, De Felice publicou uma obra muito controversa, Rosso e Nero, na qual interpreta a última etapa do itinerário de Mussolini, ou seja, o seu papel na guerra civil italiana de 1943-1945. Segundo De Felice, «Mussolini, agrade-nos ou não, aceita o projecto de Hitler por motivação patriótica: foi um autêntico “sacrifício” no altar da defesa da pátria»56. Os historiadores franceses estão familiarizados com esta tese, já defendida por Robert Aron, que apresentou o regime de Vichy como um «escudo» protector contra os tormentos de uma ocupação total do país57 (evitando desta forma um destino semelhante ao da Polónia). Os historiadores do colonialismo fascista trouxeram à luz documentos que tinham sido ignorados pelas pes47

quisas arquivísticas, bastante extensas, de De Felice. O ditador italiano demonstra aí um aspecto diferente do seu carácter e esses documentos emprestam um outro significado tanto ao seu sentido de gratidão como ao seu espírito de sacrifício. A 8 de Julho de 1936, Mussolini telegrafou a Rodolfo Graziani, um dos principais responsáveis militares durante a guerra da Etiópia, uma directiva autorizando-o «mais uma vez (...) a levar a cabo de forma sistemática a política de terror e de extermínio contra os rebeldes e populações suas cúmplices»58. Com uma notável devoção patriótica, Graziani não hesitou em utilizar as armas químicas para pôr fim à resistência etíope. E foi com gratidão que Mussolini reconheceu os seus méritos, ao nomeá-lo ministro da Defesa da República de Saló no Outono de 1943. Foi através da pesquisa de uma enorme quantidade de documentos deste género que alguns investigadores italianos puderam reconstituir a história do genocídio fascista na Etiópia em 1935-1936. Mas o reconhecimento desse genocídio permanece uma aquisição (no fim de contas, muito recente) exclusivamente historiográfica. Nunca penetrou verdadeiramente na memória colectiva dos italianos, para quem, no seu conjunto, a recordação da guerra da Etiópia permanece como uma aventura ingénua e inocente, bem resumida pela letra de uma célebre canção da época, que todos conhecem, 48

Faccetta nera, um concentrado de estereótipos do imaginário colonial. Um conjunto de circunstâncias históricas (as crises, guerras e ditaduras conhecidas pela Etiópia até ao presente, tal como a reduzida imigração etíope em Itália, que nunca foi um lugar de formação de uma elite intelectual e política africana) impediu que a voz das vítimas desse genocídio encontrassem um lugar no relato italiano dessa guerra. Apesar dos seus esforços, a historiografia não poderá tapar os buracos de uma memória mutilada. No melhor dos casos, esta tornar-se-á, como na Alemanha, uma história na qual haverá «crimes sem vítimas» ou vítimas completamente anónimas sem identidade e sem rosto. Nós não conhecemos a versão da guerra contada pelos companheiros de Hailou Tchebbedé, um dos chefes de resistência etíope; dele conhecemos apenas as fotos da sua cabeça exibida como um troféu pelos soldados italianos59. Esperemos que os estudos pós-coloniais venham brevemente quebrar esta dialéctica asfixiada entre história e memória. Na sua última obra, History. The Last Things Before the Last, Siegfried Kracauer utiliza duas metáforas para definir o historiador. A primeira, a do judeu errante, visa a historiografia positivista. Como «Funes, el memorioso», o herói do célebre conto de Borges, Ahasvérus, que atravessa os continentes e as épocas, nada pode esquecer e está condenado a deslocar-se incessantemente, carrega49

do com o seu fardo de recordações, memória viva do passado de que é o infeliz guardião. Alvo de compaixão, ele não encarna qualquer sabedoria, nenhuma memória virtuosa ou educativa, apenas um tempo cronológico, homogéneo e vazio60. A segunda metáfora, a do exilado – poderíamos também dizer a do estrangeiro, segundo a definição de Georg Simmel –, faz do historiador uma figura de extraterritorialidade. À semelhança do exilado, dividido entre dois países, a sua pátria e a sua terra de adopção, o historiador encontra-se clivado entre o passado que explora e o presente em que vive. É assim obrigado a adquirir um estatuto «extraterritorial», em equilíbrio entre o passado e o presente61. Como o exilado, que é sempre um outsider no país de acolhimento, o historiador procede a uma intrusão no passado. No entanto, da mesma forma que o exilado se pode familiarizar com o país de acolhimento, e sobre ele fazer incidir um olhar crítico, simultaneamente interior e exterior, feito de adesão e distanciação, o historiador – não é a norma, é uma virtualidade – pode conhecer em profundidade uma época já passada e, graças ao seu olhar retrospectivo, reconstituir os seus traços com uma muito maior clareza do que os contemporâneos. A sua arte consiste em reduzir ao máximo as desvantagens que a distância provoca e tirar o maior proveito das vantagens epistemológicas que dela provêm. 50

Enquanto «passador» (Grenzgänger) extraterritorial, o historiador é devedor da memória, embora, por seu lado, actue sobre esta, já que contribui para a formar e para a orientar. Precisamente porque, em vez de viver encerrado numa torre, participa na vida da sociedade civil, o historiador contribui para a formação de uma consciência histórica e, portanto, de uma memória colectiva (plural e inevitavelmente conflituosa, atravessando o conjunto do corpo social). Dito de outra forma, o seu trabalho contribui para aquilo que Habermas chamou «uso público da história»62. Trata-se de uma constatação que não precisa de ser sublinhada: os debates alemães, italianos e espanhóis em torno do passado fascista, os debates franceses em torno do passado vichista e colonial, os debates argentinos e chilenos em torno do legado das ditaduras militares, os debates europeus e americanos em torno da escravatura – a lista seria inesgotável –, ultrapassam largamente as fronteiras da investigação histórica. Invadem a esfera pública e interpelam o nosso presente. O livro de Ludmila da Silva Catela, No habrá flores en la tumba del pasado, sobre a memória das vítimas da ditadura militar argentina, é um bom exemplo de investigação histórica que faz da memória o seu objecto, ao mesmo tempo que se inscreve num contexto sensível, inevitavelmente participando numa utilização pública da 51

história63. Trata-se, desde logo, de história oral, porque a autora fez um inquérito entre os familiares (pais, filhos, irmãos e irmãs) dos desaparecidos de La Plata, cidade onde a repressão militar foi particularmente virulenta e extensiva. É o relato do seu medo, da sua esperança, da sua espera, da sua ira, da sua coragem, da sua necessidade de agir, do seu alívio depois de cada pequena acção pública. Trata-se, em seguida, de história política: como se começaram a organizar, como encontraram a força para agir publicamente, como inventaram formas de luta (denúncia, contra-informação) e símbolos (o pañuelo*, etc.). De que forma estas acções responderam a um imperativo moral, a uma necessidade pessoal, e como deram lugar a um movimento político com um forte impacto no conjunto da sociedade civil. Como as mães, e por vezes as avós, que eram domésticas, se tornaram as dirigentes de um movimento da sociedade civil contra a ditadura militar. Trata-se ainda, a par da história oral e da história política, de antropologia e psicologia: um estudo sobre o sofrimento e sobre a impossibilidade do luto ligados ao desaparecimento. Os familiares sabem que os desaparecidos morreram mas não os podem considerar como tal porque os seus corpos nunca foram encontrados. Daí a especificidade, e * Lenço que as mulheres usam na cabeça. N.T. 52

até a criatividade, de uma rememoração que acompanha esse luto simultaneamente inesgotável e impossível (os desfiles das Madres, o aparecimento dos pañuelos, as fotografias dos desaparecidos na imprensa, o «assédio» às autoridades, a abertura dos arquivos, os processos, a procura dos corpos das vítimas, os escraches, ou seja, as denúncias públicas em frente às casas dos torcionários, etc.). Uma rememoração profundamente ancorada no presente, como o provam as madres e os hijos que apoiam os piquetes dos desempregados, porque a luta dos piqueteros pela «dignidade humana» é a mesma que a dos seus filhos e dos seus pais mortos pela ditadura. Assim é este livro de história, fundado numa empatia crítica que volta a dar um rosto e uma voz a quem a ditadura militar tinha querido apagar sem deixar rasto, explorando a sua memória, através da suas famílias, na Argentina de hoje.

53

II O tempo e a força Tempo histórico e tempo da memória A história e a memória têm as suas próprias temporalidades, que se cruzam, se chocam e se entretecem constantemente, sem que, no entanto, cheguem a coincidir inteiramente entre si. A memória é portadora de uma temporalidade que tende a pôr em causa o continuum da história. Walter Benjamin ilustra-o nas suas Teses sobre o conceito de história. Na tese XV é evocado um episódio curioso da revolução de Julho de 1830: ao cair da noite, depois dos combates, em vários locais de Paris e ao mesmo tempo, as pessoas disparavam sobre os relógios como se quisessem parar o dia1. A temporalidade da revolução – a Revolução Francesa tinha introduzido 55

um novo calendário – não é a dos relógios, mecânica e vazia, mas antes, esclarecia Benjamin, a da «lembrança», a da revolução como acto redentor da memória dos vencidos. Nos seus comentários sobre as teses de Benjamin, Michael Löwy mostra uma outra imagem espantosamente homóloga à dos insurrectos de 1830. É uma fotografia datada de Abril de 2000, onde figuram indígenas a disparar sobre o relógio das comemorações oficiais do quinto centenário da descoberta do Brasil2. A memória dos oprimidos não se priva de protestar contra o tempo linear da história. Ela exige, segundo Benjamin, «um presente que não é de forma alguma a passagem do tempo, mas antes a sua paragem e bloqueio»3. Para ter lugar, a prática historiográfica exige um distanciamento, uma separação ou mesmo uma ruptura com o passado, pelo menos na consciência dos contemporâneos. Isto constitui uma premissa essencial para proceder a uma historicização, ou seja, uma perspectivação histórica do passado. Essa distância instala-se muito mais através de fracturas simbólicas (por exemplo na Europa, 1914, 1917, 1933, 1945, 1968, 1989, etc.) do que em virtude de um simples distanciamento temporal. A essa distância engendrada por uma ruptura corresponde normalmente a acumulação de certas premissas materiais da investigação; desde logo, a cons56

tituição e abertura de arquivos privados e públicos. Mas esta condição é secundária e derivada. A Era dos Extremos de Eric Hobsbawm ou a obra colectiva O Século dos Comunismos não poderiam ter visto a luz do dia antes da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento da URSS4. Um trabalho pioneiro como Le Breviaire de la haine de Léon Poliakov (1951) pressupunha não apenas o fim da guerra e a queda do nazismo, como também a possibilidade de consultar os arquivos que tinham permitido instruir os processos de Nuremberga5. Enfim, para escrever um livro de história que não seja somente um trabalho de erudição é também necessária uma procura social, pública, o que remete para a intersecção da investigação histórica com os percursos da memória colectiva. É por isso que La Destruction des juifs d'Europe de Raul Hilberg teve um impacto muito reduzido no momento da sua primeira edição em 1960, tornando-se uma obra de referência apenas a partir dos anos 19806. A memória, por seu lado, tende a atravessar várias etapas que poderíamos, retomando o modelo proposto por Henry Rousso em Le Syndrome de Vichy, descrever da seguinte forma: primeiro, um acontecimento marcante, uma viragem, muitas vezes um trauma; depois, uma fase de recalcamento, mais tarde ou mais cedo seguida de uma inevitável anamnese (o «regresso do recalcado») que pode, por vezes, converter-se em ob57

sessão memorial7. No caso do regime de Vichy, esse modelo corresponde ao fim da guerra e à Libertação, ao recalcamento dos anos 1950 e 1960, à anamnese a partir dos anos 1970 e, por fim, à obsessão actual. No caso alemão: a Schuldfrage de Jaspers em 1945, o recalcamento no período de Adenauer, a anamnese a partir de 1968 e, por fim, uma obsessão com o passado que teve o seu ponto culminante com a Historikerstreit *, o caso Goldhagen, a polémica Bubis-Walser e a exposição sobre os crimes da Wehrmacht organizada pelo Institut für Sozialforschung de Hamburgo. Durante a fase do recalcamento, a reivindicação do «direito de memória» assume um tom crítico, quando não a aparência de uma revolta ético-política contra o silêncio cúmplice. Quando o governo de Adenauer incluiu entre os seus ministros antigos nazis, como Hans Globke, um dos autores das leis de Nuremberga, Adorno considerou a expressão «superar o passado» (Vergangenheit Bewältigung), então muito em voga, como uma mistificação que procurava «virar definitivamente a página e se possível apagá-la da própria memória». Falar de «reconciliação» significa neste caso reabilitar os culpados, numa época em que «a sobrevivência do nazismo dentro da democracia representa maior * A controvérsia dos historiadores. N.T. 58

perigo potencial do que a sobrevivência de tendências fascistas dirigidas contra a democracia»8. Jean Améry reivindica o seu «ressentimento» quando «o tempo fez o seu trabalho, em paz», e «a geração dos exterminadores» envelhece placidamente, sob o respeito geral; e neste cenário, conclui, é ele quem «carrega o fardo da culpa colectiva», não eles, «o mundo que perdoa e esquece»9. Pelo contrário, durante a fase da obsessão, como a que hoje atravessamos, o «dever de memória» tende a se tornar uma fórmula retórica e conformista. A historiografia seguiu, grosso modo, o percurso da memória. Não seria difícil mostrar que a produção histórica sobre Vichy e sobre o nazismo conheceu um assinalável desenvolvimento no momento da anamnese e alcançou um pico durante a fase da obsessão. Foi alimentada por essas etapas e, por sua vez, moldou-as. Basta pensar na Alemanha Federal, que domina hoje em dia a investigação sobre o genocídio dos judeus, mas onde, nos anos 1950, os trabalhos pioneiros de Joseph Wulf e Léon Poliakov foram rejeitados como «não científicos»10. Esta correlação não é, todavia, linear: as temporalidades histórica e memorial podem também entrar em colisão, numa espécie de «não-contemporaneidade» ou de «discordância dos tempos» (a Ungleichzeitigkeit teorizada por Ernst Bloch11). 59

São inumeráveis os exemplos de coexistência de temporalidades diferentes. A literatura, o cinema e uma imensa produção sociológica analisaram o conflito entre tradição e modernidade, que assume, sobretudo nas grandes cidades, a forma de um choque geracional entre pais emigrados e filhos nascidos no país de acolhimento. Os judeus polacos de Nova Iorque descritos por Isaac Bashevis Singer, os paquistaneses de Londres narrados por Hanif Kureishi, os italo-americanos filmados por Martin Scorcese nos seus primeiros trabalhos, justapõem no seio de uma mesma família visões do mundo e modos de vida distintos que remetem para percepções do tempo e para memórias completamente diferentes, por vezes incompatíveis. Os zapatistas de Chiapas fazem coabitar o tempo cíclico das comunidades indígenas com um projecto político de libertação que se inscreve numa narrativa marxista da modernidade (embora liberta de mitologias progressistas) e também no «presente perpétuo» do mundo contemporâneo, o da dominação globalizada que combatem12. Queria apresentar como exemplo um caso significativo e paradoxal de discordância de tempos, de colisão entre o olhar histórico e a memória colectiva: a recepção do ensaio de Hannah Arendt sobre o processo de Eichman em Jerusalem, cujo subtítulo, «a banalidade do mal», provocou escândalo13. Esse processo foi pre60

cisamente uma viragem que pôs fim ao longo período de ocultação e esquecimento do genocídio dos judeus e deu início ao momento da anamnese. Pela primeira vez, o judeucídio* tornou-se um tema de reflexão para a opinião pública internacional, muito além do mundo judaico. Foi também um momento catártico de libertação da palavra, já que um grande número de sobreviventes do extermínio nazi veio ao processo prestar testemunho. Ora, no momento em que o mundo tomava consciência da amplitude do genocídio judaico, que aparecia agora como um crime monstruoso e sem precedentes, Hanna Arendt focalizava o seu olhar em Eichmann, um representante típico da burocracia alemã que encarnava, a seus olhos, a banalidade do mal. Arendt, cujos escritos dos anos 1940 provam ter sido dos primeiros, num mundo então cego, a perceber a dimensão desse crime, já não concentrava a sua atenção nas vítimas mas no carrasco. Adoptava aquilo que Raul Hildberg definiria, bastante mais tarde, como a «perspectiva do executor»14, um executor que ela podia enfim observar olhos nos olhos, em carne e osso. Ao adoptar essa perspectiva, Arendt confrontava-se com um crime monstruoso perpetrado por executores que não eram monstros habitados pelo ódio e pelo fanatismo, mas * Na versão original, «judéocide». N.T. 61

gente normal. Os observadores e os comentadores do processo, pelo contrário, tinham adoptado uma outra perspectiva, a da memória dos sobreviventes que reviviam o seu sofrimento no presente. A ferida estava ainda aberta e a sangrar; apenas tinha estado escondida e aparecia agora à luz do dia. A sua atenção estava concentrada nos testemunhos dramáticos prestados durante o processo pelos sobreviventes, em face dos quais Eichmann não era mais do que um símbolo. Em tais circunstâncias, a banalidade do mal invocada por Arendt não foi vista como uma noção susceptível de compreender as motivações e as categorias mentais dos executores mas, muito simplesmente, como uma tentativa de banalizar um dos piores crimes da História da humanidade15. O modelo tomado de empréstimo a Henry Rousso pode, contudo, conhecer numerosas variantes. Na Turquia, por exemplo, a memória e a história do genocídio dos arménios nunca podem ser elaboradas e escritas no espaço público. Foram desenvolvidas fora do país, na diáspora e no exílio americano, com todas as consequências que isso implica16. Por um lado, a memória erigiu-se não apenas contra o esquecimento, mas sobretudo contra um regime político que oculta e nega o crime no presente. Por outro lado, a escrita da história sofreu diversos entraves, visto que a ocultação passou 62

pelo encerramento dos arquivos e a multiplicação dos obstáculos à investigação17. O recalcamento pode perpetuar-se também de outras formas. A memória do estalinismo é profundamente heterogénea, uma vez que é simultaneamente memória da revolução e do Gulag, da «grande guerra patriótica» e da opressão burocrática. Acompanhou, durante várias décadas, um regime no poder. Nesse contexto, a sua expressão pública aparecia como uma forma de combate – e assim foram considerados os livros de Gustav Herling, de Alexandre Soljenitsyne, de Vassili Grossman e de Varlam Chalamov – contra um regime que não se podia arquivar como passado, nem colocar à distância. Essa memória é hoje em dia asfixiada, dez anos depois da queda da URSS. O processo de integração da memória do estalinismo na consciência colectiva iniciou-se no decurso dos anos 1980, no período de Gorbatchev, quando se multiplicaram as associações dos antigos deportados e as reivindicações em favor da reabilitação das vítimas. Esse movimento foi bruscamente interrompido sob a presidência de Ieltsine, que marcou uma viragem. O trabalho de luto e de apropriação de um passado proibido abriu caminho a uma reabilitação massiva da tradição nacional. A vergonha ligada à tomada de consciência do estalinismo foi substituída pelo orgulho de um passado russo (a que pertencem tan63

to os czares como Estaline)18. Um fenómeno análogo caracterizou os países do ex-Império Soviético, onde a introdução da economia de mercado e a emergência de novos nacionalismos marginalizaram completamente a recordação das lutas por um «socialismo de rosto humano». Em Itália, onde o antifascismo foi o pilar das instituições republicanas nascidas no fim da Segunda Guerra Mundial, a interpretação histórica do fascismo foi, durante uns bons trinta anos, indissociável da sua condenação ética e política. A partir do fim dos anos 1970 desenvolveu-se uma nova leitura do passado, muito mais preocupada em colocar em evidência os consensos sobre os quais se apoiou o regime de Mussolini e, ao mesmo tempo, decidida a libertar-se dos constrangimentos da tradição antifascista. Durante os anos 1990, essa viragem historiográfica acentuou-se com o fim dos partidos que tinham criado a república (o Partido Comunista, a Democracia Cristã e o Partido Socialista) e a legitimação dos herdeiros do fascismo como força de governo (a actual Aliança Nacional). Esta mutação foi acompanhada pelo regresso do recalcado (o fascismo) ao espaço público, com efeitos inesperados e paradoxais. Por um lado, traduziu-se no fim do esquecimento das vítimas do genocídio judaico (anteriormente sacrificados no altar da guerra de 64

libertação nacional, na qual todos os deportados se tornaram automaticamente mártires da pátria, portanto deportados políticos) e, por outro lado, na reabilitação do fascismo, ou seja, dos seus perseguidores. A crise dos partidos e das instituições que encarnavam a memória antifascista criou as condições para a emergência de uma outra memória, até então silenciosa e estigmatizada. O fascismo é agora reivindicado como uma parte da história nacional, o antifascismo rejeitado como uma posição ideológica «antinacional» (o 8 de Setembro de 1943, data da assinatura do armistício e início da guerra civil, foi apresentado como um símbolo da «morte da pátria»19). O resultado foi, no Outono de 2001, um discurso do presidente da República, Carlo Azeglio Ciampi, comemorando indistintamente «todas» as vítimas da guerra, ou seja, judeus, soldados, resistentes e milicianos fascistas, agora afectuosamente apelidados «os rapazes de Salò»20. Dito de outro modo, tratou-se de uma comemoração conjunta dos que morreram nas câmaras de gás e dos que os identificaram, prenderam e deportaram, como se, ao render homenagem, o Estado não tivesse que se pronunciar sobre os valores e as motivações dos actos praticados, ou, pior ainda, como se pudesse colocar no mesmo plano carrascos e vítimas, objectos de memórias «simétricos e compatíveis»21. 65

Nessa perspectiva, a instituição por decreto governamental de um «dia da memória» (27 de Janeiro) para comemorar as vítimas da Shoah foi logicamente seguida pela instituição de dois outros dias: o «dia da recordação» (10 de Fevereiro) e o «dia da liberdade» (9 de Novembro). O primeiro visa evocar os italianos expulsos da Ístria em 1947, com base num tratado internacional, e aqueles que foram mortos pela resistência jugoslava entre 1943 e 1945, atirados para fendas nas montanhas que encimam Trieste (Foibe). O segundo dia celebra a recordação das vítimas do comunismo que simbolicamente recuperaram a liberdade no dia da queda do Muro de Berlim. A simetria antitotalitária torna-se assim perfeita, mesmo se a sua consequência, como nos lembra Claudio Magris, consiste em transformar a igualdade das vítimas – todas dignas de memória e de pietas – em «igualdade das causas pelas quais elas morreram»22, ao misturar crimes de natureza completamente diferente. Essa simetria antitotalitária coincide agora, porém, com uma dissimetria da memória nacional que mantém viva a recordação das vítimas italianas da resistência titista mas esquece, tranquilamente, as vítimas jugoslavas da ocupação protagonizada pelo fascismo italiano, cuja violência assumiu contornos semelhantes à dos nazis na frente oriental23. E nem será preciso referir que as vítimas do colonialismo italiano escapam a esta lógica de memória antitotalitária. 66

Em Espanha, a recordação da guerra civil foi confiscada e instrumentalizada pela propaganda do regime franquista que, durante trinta e cinco anos, organizou o apagamento dos rastos da sua própria violência enquanto estigmatizava a dos republicanos. Depois da morte do ditador, em 1975, a opção por uma transição pacífica para a democracia no quadro das instituições monárquicas foi aceite pelo conjunto das forças políticas, tanto de direita como de esquerda, que partilhavam o receio de uma outra guerra civil (o que prova que a sua memória, ainda que subterraneamente, estava bem viva)24. Mas, contrariamente à África do Sul dos anos 1990, onde, graças ao trabalho da comissão «Verdade e Justiça», a transição pacífica para a democracia pós-apartheid pôde ser acompanhada de um reconhecimento da verdade e de uma elaboração do luto, em Espanha optou-se por uma transição amnésica, prolongando o recalcamento oficial por mais de uma geração. Foi apenas no final dos anos 1990 que a questão da memória da guerra civil voltou ao primeiro plano. Enquanto a historiografia dedicou a sua atenção à violência do regime franquista – procedendo a uma nova contagem das vítimas, até aí bastante deficitária25 – ou a outros fenómenos anteriormente ignorados, caso do exílio republicano26, a nível da sociedade civil iniciou-se um trabalho de luto pelas vítimas da ditadura que havia sido impossibilitado 67

pela amnistia e pelas formas políticas da transição. Foram exumados os restos mortais de várias centenas de militantes republicanos, anarquistas ou comunistas que tinham sido fuzilados de forma sumária, sem processo e sem certidão de óbito, e que, como tal, haviam ficado fora dos cemitérios, sem direito a uma sepultura legal. O luto clandestino das famílias pôde finalmente tornar-se público, provocando uma anamnese colectiva e suscitando um vasto debate sobre a relação da Espanha contemporânea com o seu passado27. Nesse contexto surgiu a tentação ilusória e mistificadora de uma memória reconciliada super partes, manifesta na decisão governamental, em Outubro de 2004, de fazer desfilar juntos, numa festa nacional, um velho exilado republicano e um ex-membro da División Azul que Franco enviou para a Rússia em 1941 a fim de combater ao lado dos exércitos alemães. Ocorreu também, inevitavelmente, um debate sobre o destino dos inumeráveis monumentos erigidos em honra do Caudillo e que decoram as cidades e vilas espanholas: devem ser conservados como lugares de memória (uma memória que, para uma parte da sociedade, assume uma feição nostálgica)? Devem ser demolidos, à semelhança do que foi feito em todos os países da Europa Central no momento da queda das ditaduras estalinistas, num gesto emancipador, neste caso muito (se não mesmo demasiado) tardio? Há uma dezena de 68

anos que estas questões são apaixonadamente debatidas em Espanha, país onde a memória está longe de se encontrar apaziguada. Na Argentina, ao invés, a memória dos crimes da ditadura militar começou a manifestar-se na cena pública antes do fim da própria ditadura, ajudando ao seu isolamento e deslegitimação (escrevo «memória» porque os desfiles com as fotos dos desaparecidos eram já formas de comemoração). Devido às modalidades específicas que a criminalidade do regime assumiu – o desaparecimento de dezenas de milhares de pessoas cujos corpos nunca foram encontrados –, a fase do luto e da dor perenizou-se, não houve lugar para o esquecimento. Ao mesmo tempo, por causa das formas que a transição para a democracia assumiu, sem ruptura radical, sem um verdadeiro saneamento das instituições militares, com alguns processos a que se seguiram leis de amnistia que deixaram os carrascos impunes, a memória não deu lugar à história28. A ditadura militar não se desmoronou como o fascismo na Europa em 1945, retirou-se discretamente de cena. Em suma, não foi possível estabelecer uma distância em relação ao passado: houve um distanciamento cronológico mas não uma separação marcada por rupturas simbólicas fortes. Somos aqui confrontados com aquilo a que Dan Diner chamou um «tempo comprimido» (gestaute Zeit) que se recusa a 69

dar-se como passado29. Uma das condições fundamentais para o nascimento de uma historiografia das ditaduras do Cone Sul, tanto a chilena como a argentina, não está ainda estabelecida. O que nos leva, de novo, a Israel. Se o processo Eichmann é um exemplo de colisão entre a memória e a escrita da história, o itinerário do sionismo oferece outros exemplos de encontros (tardios) entre os dois. É o caso da releitura da guerra de 1948 pelos «novos historiadores» israelitas (Benny Morris, Ilan Pappé e outros). Tendo por base uma investigação arquivística – embora ignorando a historiografia palestiniana e os testemunhos dos refugiados –, esses historiadores puseram radicalmente em causa o mito sionista da «fuga» palestina e apresentaram a guerra de 1948, se não como uma expulsão planificada, pelo menos enquanto um conflito que se tornou, de facto, a ocasião para realizar o projecto sionista de um Estado judaico sem árabes. Historiadores como Ilan Pappé detectaram nesta guerra traços de uma campanha de depuração étnica. Essa historiografia confirma os relatos da Nakba (a «catástrofe»), a recordação do êxodo preservada pela memória dos refugiados e reconstituída por uma historiografia palestina nascida no exílio sob o impacto desse trauma30. Essa memória e essa escrita da história tinham até agora permanecido acantonadas no mundo árabe, 70

colidindo quer com o relato sionista (a história como epopeia nacional judaica), quer com a consciência histórica do mundo ocidental. Uma vez que o Estado de Israel tinha sido criado como uma forma de reparação pelo genocídio sofrido pelos judeus na Europa, seria difícil admitir que o seu nascimento tivesse coincidido com um acto de opressão. Essa convergência entre o relato palestino da Nakba e a revisão do relato da «guerra de libertação» pela historiografia judaica é a premissa indispensável para que duas memórias nacionais possam um dia coexistir num espaço comum (sob a forma de dois Estados, de uma federação ou de um Estado binacional). Existiria assim uma convergência entre o «tempo comprimido» da memória palestina – a Nakba como eterno presente – e uma anamnese israelita impulsionada pelo trabalho historiográfico.

«Memórias fortes» e «memórias fracas» A única diferença entre uma língua e um dialecto, diz um aforismo difundido entre os povos minoritários, é que uma língua é protegida por uma polícia e um dialecto não. Poderia estender-se essa constatação à memória. Existem memórias oficiais, alimentadas pelas instituições, ou seja, os Estados, e memórias subterrâneas, escondidas ou interditas. A «visibilidade» e o reconheci71

mento de uma memória dependem também da força de quem a possui. Dito de outra forma, existem «memórias fortes» e «memórias fracas». Na Turquia, a memória arménia é ainda hoje proibida e reprimida. Na América Latina, a memória indígena exprimiu-se durante o quinto centenário da descoberta do continente como uma memória antagonista, directamente oposta à memória oficial dos Estados nascidos da colonização e do genocídio. Força e reconhecimento não são dados fixos e imutáveis, evoluem, consolidam-se ou fragilizam-se, contribuindo em permanência para a redefinição do estatuto da memória. Numa época em que a URSS era uma grande potência, e o movimento operário dispunha de uma força social e política considerável, a memória comunista era poderosa, sectária e arrogante; hoje parece novamente atirada para a clandestinidade. Perpetua-se como recordação de uma comunidade de vencidos, estigmatizada, quando não abertamente criminalizada, pelo discurso dominante. A memória arménia permanece fraca, já que os seus negadores dispõem de um Estado reconhecido no plano internacional, a quem os outros Estados frequentemente preferem não recordar o passado, por conveniência económica ou geopolítica. A memória homossexual apenas agora começa a exprimir-se publicamente. Durante décadas, as associações que representavam os homossexu72

ais deportados para os campos de concentração nazis foram expulsas manu militari das celebrações oficiais como portadoras de uma recordação vergonhosa e inominável. As leis que tinham permitido a sua deportação – o parágrafo 75 do código penal da República de Weimar – foram abolidas bem tardiamente no pós-guerra, quando um grande número de ex-deportados já tinha sido indemnizado. A memória da Shoah, cujo estatuto é hoje tão universal que funciona como «religião civil» do mundo ocidental, ilustra bem essa passagem de uma «memória fraca» a uma «memória forte». O historiador americano Peter Novick estudou essa mutação no seio da sociedade americana31. Abordou quatro etapas fundamentais. Primeiro, os anos de guerra, quando para os Estados Unidos da América o principal inimigo era o Japão. Roosevelt teve nesse período uma preocupação maior: evitar que a intervenção americana na Europa aparecesse como uma «guerra pelos judeus». Durante este período, o extermínio dos judeus não é, em nenhum momento, objecto de uma atenção particular e o país não estava minimamente atormentado pelos remorsos de não ter podido, ou de não ter querido, impedir tal crime. Os judeus não deram prova, à época, de uma maior consciência ou sensibilidade no que respeita aos acontecimentos trágicos do velho mundo do que os 73

outros cidadãos americanos; no fim do conflito, estavam sobretudo orgulhosos do seu país, que contribuira para a derrota do nazismo. Durante um segundo período – os anos 1950 e a primeira metade dos anos 1960 –, o judeucídio está ausente do espaço público. A lembrança do Holocausto não encontra terreno fértil mas exigências da luta contra o «totalitarismo». No momento em que a Guerra Fria faz da URSS o inimigo totalitário contra o qual devem ser mobilizadas todas as energias do «mundo livre», a evocação dos crimes nazis pode desorientar a opinião pública e criar obstáculos à nova aliança com a República Federal da Alemanha. Os judeus americanos são suspeitos de simpatia para com o comunismo. Julius e Ethel Rosenberg serão dos poucos a falar de Auschwitz na América dos anos 1950, durante o processo que os condenará à morte, e as instituições judaicas opõem-se a toda e qualquer edificação de monumentos ou lugares comemorativos referentes ao massacre hitleriano. É o tempo de valorização dos heróis e de exibição da força como uma virtude nacional: os judeus americanos querem identificar-se (e integrar-se) nessa América conquistadora e, sobretudo, não querem aparecer como uma comunidade de vítimas. A transição inicia-se, segundo Novick, no decurso dos anos 1960. E inica-se, desde logo, com o proces74

so Eichmann, que constitui a primeira aparição pública da memória do Holocausto. Continua, posteriormente, com a guerra dos Seis Dias, em 1967, após a qual o termo «Holocausto», até então pouco ou nada utilizado para definir o genocídio dos judeus, entra no uso corrente. Essa guerra produziu uma clivagem singular que persiste: uma grande parte dos judeus da diáspora vive o conflito como ameaça de um novo aniquilamento, enquanto a opinião árabe considera Israel como um poder neocolonial. Desde então que a memória de Auschwitz está intimamente ligada à percepção do conflito israelo-árabe, com todos os curto-circuitos ideológicos e os usos políticos a estes associados. Aí reside uma das fontes do negacionismo difundido no mundo árabe, que não tem relação com a história do antissemitismo europeu. Para uma parte da opinião árabe, a Shoah seria um «mito» judaico utilizado, se não mesmo fabricado, para legitimar uma política de opressão dos palestinos. Israel, pelo contrário, tem tendência a olhar a recusa árabe através do prisma da Shoah, a tal ponto que os responsáveis de Tsahal tinham o hábito de chamar às fronteiras de 1967 «a fronteira de Auschwitz»32. Para uns, o nascimento de Israel é o símbolo de uma ressurreição, para os outros, de uma catástrofe, a Nakba: uma confrontação violenta entre memórias que não conseguem encontrar a via de um diálogo. 75

Em 1982, indignado com os crimes cometidos durante a ocupação israelita do Líbano, o director do Instituto de História das Ciências da Universidade de Tel-Aviv, Yehuda Elkana, sobrevivente de Auschwitz, publicou no diário Haaretz um artigo provocador sugerindo aos seus concidadãos a virtude do esquecimento. «Nós, nós devemos esquecer». É preciso construir o futuro, escreveu ele, e não «ocupar-se, dia e noite, com o simbolismo, as cerimónias e a herança do genocídio. O jugo da memória deve ser extirpado das nossas vidas»33. Redescobria assim as virtudes cívicas do esquecimento, que os gregos antigos tinham prescrito como uma política de reconciliação, em 403 a.c., depois da oligarquia dos Trinta Tiranos34. O sentido da reflexão de Elkana é claro: se o esquecimento é, tratando-se dos perseguidores e dos que recolheram a sua herança, repreensível, a memória não é sempre virtuosa e pode ser também fonte de abusos. A última fase é aberta pela difusão da série televisiva Holocaust (1978), que terá um impacto tremendo, tanto nos Estados Unidos como na Europa, especialmente na Alemanha. O genocídio judaico torna-se um prisma de leitura do passado e um elemento essencial de definição tanto da consciência histórica ocidental como, sobretudo, da identidade judaica. Tornou-se um objecto de investigação científica e de ensino (desde então que 76

os Holocaust Studies são uma disciplina consolidada na universidade), de comemoração pública (com a criação de monumentos, memoriais, museus, cerimónias oficiais) e mesmo de reificação mercantil pelos média e pela indústria cultural (Hollywood). A memória do genocídio conhece então, sublinha Novick, um processo de americanização, ou seja, entra na consciência histórica dos Estados Unidos, e de sacralização, até se tornar numa espécie de «religião civil», com os seus dogmas (o seu carácter único e incomparável) e os seus «santos seculares» (os sobreviventes transformados em ícones vivos). O surgimento de tal memória oficial inscreve-se num contexto cultural marcado pelo abandono, por parte dos judeus americanos, do ethos integracionista dos anos 1950 e 1960, a favor de um ethos particularista. A fórmula de Wiesel – o Holocausto como acontecimento que tem tanto de único como de universal – resume bem essa americanização do Holocausto e ao mesmo tempo a sua transformação em pilar da identidade étnico-cultural judaico-americana. Essa identificação com as vítimas, explica Novick, é possível não pela fraqueza mas pelo poderio dos judeus no seio da sociedade americana. Daí o seu cepticismo: a sacralização do Holocausto é uma má política da memória. Se o reconhecimento do carácter único do judeucídio, sublinha ainda, desempenhou um papel importante na 77

formação da consciência histórica europeia, nos Estados Unidos favorece, pelo contrário, uma «evasão da responsabilidade moral e política»35. Chegamos assim ao paradoxo da criação de um museu federal do Holocausto, consagrado a uma tragédia consumada na Europa, enquanto nada de comparável existe para as duas experiências fundadoras da história americana, que são o genocídio dos índios e a escravidão dos negros. Enquanto se inaugurava o museu do Holocausto em 1995, os Correios emitiam um selo que celebrava o bombardeamento atómico de Hiroshima e Nagasaki como o feliz acontecimento que havia posto fim à Segunda Guerra Mundial36. Na sua última obra, Olhando o Sofrimento dos Outros, Susan Sontag apontou o dedo a esse uso muito selectivo da memória. O Holocausto, escreve, foi «nacionalizado» e transformado em vector de uma política da memória singularmente alheada dos crimes em que a América não desempenhou o papel de libertadora mas antes de perseguidora. «Instituir um museu que contasse esse grande crime que foi a escravidão dos africanos nos Estados Unidos da América significaria relembrar que o mal estava aqui. Os americanos, pelo contrário, preferem relembrar o mal que estava lá, e de que os Estados Unidos (…) estão isentos. O facto de este país, como todos os outros, ter um passado trágico, não se compagina inteiramente com a confiança fundacional, 78

ainda pujante, no destino excepcional americano.»37 Nos Estados Unidos, acrescenta Novick, «a memória do Holocausto é tão banal, tão inconsequente, que não é verdadeiramente uma memória, precisamente por ser tão consensual, desligada das divisões reais da sociedade americana, apolítica»38. Novick não é o primeiro a fazer esta constatação. Há dez anos, Arno Mayer denunciou um «culto da recordação» rapidamente transformado em «sectarismo exacerbado», graças ao qual o massacre dos judeus se tinha desligado das circunstâncias históricas totalmente profanas que o tinham gerado, ficando isolado numa memória sacralizada, «de que não é permitido desviar-se e que se subtrai ao pensamento crítico e contextual»39. As manifestações exteriores dessa «memória forte» lembram o narcisismo compassivo denunciado por Gilbert Achcar a propósito do ritual comemorativo das vítimas do 11 de Setembro de 200140. O Ocidente, incorporando as vítimas no seu imaginário, na sua consciência, na sua memória, e assim transformando-as em elemento constitutivo da sua própria identidade, auto-celebra-se quando as comemora. Semelhante situação não teria sido possível logo após a guerra, quando as vítimas do Holocausto, longe de surgirem como representantes típicos do mundo ocidental, eram entendidas como «judeus de leste», encarnação de uma alteridade negativa e 79

mal tolerada no seio das diferentes comunidades nacionais. O silêncio da cultura ocidental sobre Auschwitz em 1945 inscreve-se na mesma lógica que preside à indiferença ou à compaixão distante com que, nos nossos dias, reage às violências que devastam o Sul ou contempla as vítimas das suas próprias guerras «humanitárias». Um contra-exemplo de «memória forte» merece, contudo, ser mencionado. O impressionante «Memorial aos judeus europeus assassinados» (Denkmal für die ermordeten Juden Europas) inaugurado em Maio de 2005 em Berlim revela um uso público do passado bem diferente daquele denunciado nos Estados Unidos por Peter Novick e Susan Sontag. Erigido no coração da capital alemã, ao lado da porta de Brandeburgo, entre o Reichstag e a Potsdamer Platz, este gigantesco monumento sóbrio e frio cobre um espaço de quase 20 mil m2 com milhares de estelas em betão de altura desigual41. O seu arquitecto, o americano Peter Eisenman, não quis conceder à sua obra uma simbologia explícita, deixando ao público a sua própria interpretação. As visões são bastante díspares: alguns viram um cemitério, um labirinto, um campo de trigo, um mar, outros ainda uma terrível caricatura da arquitectura totalitária do Terceiro Reich ou um triunfo do «ornamento da massa» (no sentido de Kracauer) numa imensa construção sem conteúdo. Na senda de Régine Robin, 80

podemos ver o monumento como uma dessas «construções desconcertantes» – a cidade de Berlim alberga várias – que «transmite qualquer coisa do passado na sua ilegibilidade, não na sua inexplicabilidade»42. Este monumento é o resultado de um intenso debate intelectual e político que se desenrolou durante mais de dez anos tanto no seio da sociedade civil como no Bundestag*. Ligado a um centro de documentação, este memorial único no seu género preenche várias funções: é um monumento à memória dos judeus exterminados e também de advertência à nação alemã. Dito de outra forma, um acto de piedade para com as vítimas e uma relembrança do crime dirigida à nação que engendrou os seus responsáveis e que recebeu a sua herança. Alguns, como o escritor Martin Walser, viram na obra um inaceitável «monumento à vergonha» (Schandmal); outros, como o filósofo Jürgen Habermas, a prova de que a Alemanha integrou Auschwitz na sua consciência histórica. De uma certa maneira, este memorial cumpriu a sua função antes mesmo de ver a luz do dia, se tomarmos em consideração os debates apaixonados que suscitou. Testemunha também as mutações que fizeram da Shoah uma «memória forte», no fim de uma controvérsia que, de início, não excluía outras opções. Entre a proposta * Parlamento da Alemanha. N.T. 81

de Helmut Kohl, chanceler no momento em que a discussão se iniciou, que desejava um monumento «a todas as vítimas da guerra e da tirania», e a escolha final de um Holocaust Denkmal, foi percorrida uma distância considerável. A proposta de Kohl visava diluir os crimes nazis numa comemoração global das vítimas da guerra, incluindo os judeus, os civis e os soldados alemães, as vítimas do genocídio e as vítimas dos bombardeamentos aliados, os deportados e os seus perseguidores caídos durante o conflito. Alguns anos antes, o chanceler Kohl tinha-se distinguido pela sua visita, na companhia do presidente norte-americano Ronald Reagan, ao cemitério militar de Bitburg onde estão enterrados numerosos SS. Logo após a reunificação, em 1993, conseguiu trazer o SPD para o seu lado, ao inaugurar em Berlim um novo memorial da Alemanha Federal (Zentrale Gedenkstätte der Bundesrepublik Deutschlands). O local escolhido para o memorial foi a Neue Wache, edifício erigido no coração de Berlim no início do século XIX pelo arquitecto Karl Friedrich Schinkel, que foi durante dois séculos o espelho fiel das políticas memoriais dos diferentes regimes que se sucederam na Alemanha. Nascido como um local de recordação dos combates patrióticos contra a opressão napoleónica, transformou-se sob a República de Weimar num monumento aos mortos da Grande Guerra e, mais tarde, sob a República Democrática Ale82

mã, em memorial dedicado às vítimas do fascismo. Com a sua pietá esculpida por Käthe Kollwitz entre as duas guerras, o local comemora agora todas as «vítimas» da Segunda Guerra Mundial (a palavra alemã Opfer designa tanto as vítimas inocentes como os mártires)43. É patente que o Holocaust Denkmal rompe com esta memória ambígua que mostra explicitamente o seu carácter apologético. Contudo, a escolha final de um memorial do Holocausto (e não de todas as vítimas do nazismo) expõe-se ao risco que ameaça toda e qualquer «memória forte»: o de esmagar as memórias mais «fracas». Do historiador Reinhart Koselleck ao escritor Gϋnter Grass, passando pelo filósofo Micha Brumlik, numerosas personalidades criticaram o carácter judeo-centrado desse monumento. «Aceitar um monumento exclusivamente para os judeus – escreve Koselleck – significa legitimar uma hierarquia fundada sobre o número de vítimas e sob a influência dos sobreviventes, aceitando no fundo as mesmas categorias de extermínio adoptadas pelos nazis. Enquanto nação dos executores, nós deveríamos interrogar-nos sobre as consequências de uma tal lógica.»44 Koselleck propunha assim erigir um monumento concebido como «monumento de advertência (Mahnmal)» dirigido aos alemães e consagrado à recordação do conjunto das vítimas do nazismo. Habermas, que considera legítima a escolha de um memorial do 83

Holocausto, tendo em conta o papel desempenhado pelos judeus na história da Alemanha, admitiu implicitamente a boa fundamentação desta crítica, escrevendo que esse monumento tomava a parte, os judeus, pelo todo45. Ainda assim, confrontado com as reivindicações de outras vítimas, o governo federal decidiu criar dois memoriais suplementares, um dedicado aos ciganos e outros aos homossexuais deportados. Como memória e história não estão separadas por uma barreira inultrapassável, mas sim em interacção permanente, existe uma relação privilegiada entre memórias «fortes» e a escrita da história. Quanto mais forte é a memória – em termos de reconhecimento público e institucional –, mais o passado de que é vector se torna susceptível de ser explorado e historicizado. O exemplo de Raul Hildberg citado anteriormente ilustra bem esse fenómeno. No fim da guerra, quando a memória do Holocausto era «fraca», Franz Neuman aconselhou-o a mudar o tema do seu doutoramento, dizendo-lhe abertamente que com tal pesquisa jamais iniciaria uma carreira universitária (e, com efeito, durante um longo período Hilberg permaneceu um marginal no mundo académico americano, onde terminou a sua carreira, na Universidade de Vermont)46. Hoje em dia, a expansão da memória da Shoah no espaço público é acompanhada pelo desenvolvimento dos Holocaust Studies nos campus universitários. De forma aná84

loga, é quase banal interpretar a emergência dos estudos pós-coloniais e do multiculturalismo como uma consequência, a longo prazo, da descolonização, do acesso dos antigos povos colonizados ao estatuto de sujeitos históricos e do aparecimento, no seio das instituições cientificas, de uma intelligentsia de origem indiana ou afro-americana. Não se trata, evidentemente, de estabelecer uma relação mecânica de causa e efeito entre a «força» de uma memória de grupo e a amplitude da historicização do seu passado. Não foi a força institucional nem a visibilidade mediática dos Bororos que levou Claude Lévi-Strauss a escrever Tristes Trópicos. Essa relação não é directa, uma vez que se define no seio de contextos diferenciados e está submetida a múltiplas mediações, mas seria absurdo negá-la. A memória das vítimas do massacre de Nankin, a capital da China nacionalista, perpetrado pelo exército imperial japonês durante a ocupação da cidade em Dezembro de 193747, ou a memória das «mulheres de conforto» forçadas a prostituir-se pelas autoridades japonesas durante a Segunda Guerra Mundial foram durante muito tempo circunscritas aos seus descendentes, sem presença no espaço público48. Foi a emergência da China e da Coreia do Sul como grandes potências económicas que transformou essa memória num elemento das relações diplomáticas 85

entre esses dois países e o Japão, obrigando este a reconhecer os seus crimes e a apresentar um pedido oficial de desculpas. Estas considerações são também válidas, em larga medida, para a memória da guerra da Argélia. Podemos certamente falar, a propósito do reconhecimento recente dos crimes do exército francês entre 1954 e 1962, de um «regresso do recalcado», ligado às etapas de elaboração do passado colonial francês. Não há dúvida, contudo, que esse reconhecimento está também ligado à emergência de uma memória argelina – mais precisamente beur* – que se exprime actualmente no interior da sociedade francesa, onde os descendentes dos antigos colonizados constituem uma minoria importante. O reconhecimento do massacre de 17 de Outubro de 1961, no coração da capital, Paris, não foi negociado entre o governo francês e as autoridades argelinas (contrariamente ao caso do massacre de Sétif, de Maio de 194549). Permanece essencialmente simbólico, limitando-se a algumas declarações de responsáveis políticos, a uma decisão judicial, a uma placa comemorativa colocada na presença do presidente da câmara da capital, mas, ainda assim, fez o seu caminho na sociedade francesa. Trata-se sobretudo da consequência de um vasto movimen* Filhos de emigrantes argelinos nascidos em França. N.T. 86

to, no qual as lutas da geração beur pela igualdade e pela reapropriação do seu próprio passado se conjugaram com os esforços de uma historiografia pós-colonial, susceptível de integrar a voz dos colonizados no seu relato do passado; e, ainda, poderíamos acrescentar, com a resistência de uma pequena minoria de arquivistas que, entrando em guerra com a hierarquia da sua corporação que esteve desde sempre ao serviço da razão de Estado, colocaram a verdade histórica à frente das suas carreiras50. A emergência dessa memória pós-colonial abalou a memória da esquerda francesa que tinha até então ignorado o massacre de Outubro de 1961, ocultando-o através da comemoração dos seus próprios mártires: as nove vítimas da manifestação de Charonne de 8 de Fevereiro de 1962. A esquerda foi assim confrontada com as suas falhas de memória, que mais não fazem do que revelar a sua submissão a um imaginário colonial, com as suas hierarquias, que atribuem mais valor à vida dos anticolonialistas franceses do que à vida dos nacionalistas argelinos.

87

III O historiador entre juiz e escritor Memória e escrita da história O linguistic turn – rótulo sob o qual reagrupamos um conjunto de correntes intelectuais nascidas nos Estados Unidos América do encontro, no final dos anos 1960, entre o estruturalismo francês com a filosofia analítica e o pragmatismo anglo-saxónico – teve um efeito frutífero na historiografia contemporânea1. Permitiu quebrar a dicotomia que separava até então a história das ideias e a história social, assim como ultrapassar os limites simétricos de uma história do pensamento auto-referencial e de um historicismo fundado sobre a ilusão de que a interpretação histórica se reduziria ao simples reflexo de uma prática rigorosa de objectivação 89

e contextualização dos acontecimentos do passado. O linguistic turn sublinhou a importância da dimensão textual do saber histórico, reconhecendo que a escrita da história é uma prática discursiva que incorpora sempre uma parte de ideologia, de representações e de códigos literários herdados que se refractam no itinerário individual de um autor. Fazendo isso, permitiu estabelecer uma dialéctica nova entre realidade e interpretação, entre textos e contextos, redefinindo as fronteiras da história intelectual e questionando de forma salutar o estatuto do historiador, cuja implicação multiforme no seu objecto de estudo não se pode continuar a ignorar. Esta corrente conheceu também desenvolvimentos discutíveis, muitas vezes denunciados (e sobre os quais se concentrou de forma quase exclusiva a sua recepção na Europa continental). A mais generalizada das suas derivas metodológicas foi, segundo as palavras de Roger Chartier, a tendência para «uma perigosa redução do mundo social a uma pura construção discursiva, a um puro jogo de linguagem»2. Os proponentes mais radicais do linguistic turn renunciaram, deste modo, à busca da verdade que preside à escrita da história, esquecendo que «o passado que ela toma como objecto é uma realidade exterior ao discurso e que o seu conhecimento pode ser controlado»3. Levando ao extremo algumas premissas desse movimento, chegaram mesmo a de90

fender uma espécie de «pantextualismo» que Dominick LaCapra qualificou de «criacionismo secularizado»4: a história não seria mais do que uma construção textual, constantemente reinventada segundo os códigos da criação literária. Porém, a história não é assimilável à literatura, uma vez que a mise en histoire do passado, isto é, o tornar o passado em história, deve sujeitar-se à realidade e a sua argumentação não pode evitar a obrigação de, quando necessário, apresentar provas. É por isso que a afirmação de Roland Barthes, segundo a qual «o facto nunca tem mais do que uma existência linguística»5, não é aceitável. Como não o é o relativismo radical de Hayden White que, considerando os factos históricos como artefactos retóricos subsumíveis a um «protocolo línguistico», identifica a narrativa histórica com a invenção literária, uma vez que as duas têm como fundamento, a seu ver, as mesmas modalidades de representação. Segundo White, «as narrativas históricas [são] ficções verbais em que os conteúdos são tão inventados como encontrados, e cujas formas estão mais próximas da literatura do que da ciência»6. Tanto Barthes como White ausentam o problema da objectividade do conteúdo do discurso histórico. Se a escrita da história assume sempre a forma de um relato, este último é qualitativamente diferente de uma ficção romanesca7. Não se trata de negar a dimensão criadora da escrita histórica, 91

uma vez que o acto de escrever implica sempre, como lembrou Michel de Certeau, a construção de uma frase «enquanto se percorre um espaço supostamente branco, a página»8. No entanto, De Certeau não deixava de acrescentar que a escrita não pode evitar uma relação com o dado: «O discurso histórico pretende dar um conteúdo verdadeiro (que releva do verificável) mas sob a forma de uma narração.»9. White tem razão em alertar para os perigos da ilusão positivista que consiste em fundar a história sobre uma pretensa auto-suficiência dos factos. Sabemos, por exemplo, que os arquivos – as principais fontes dos historiadores – nunca são um reflexo imediato e «neutro» do real, uma vez que também podem mentir. É por isso que exigem sempre um trabalho de descodificação e interpretação10. O erro de White consiste na confusão entre a narração histórica (o mise en histoire através de um relato) e a ficção histórica (a invenção literária do passado)11. Eventualmente, poderíamos considerar a história, segundo as palavras de Reinhart Koselleck, como uma «ficção do factual»12. É certo que o historiador não se pode esquivar ao problema da «passagem a texto» da sua reconstrução do passado13, mas nunca poderá, se pretender fazer história, arrancá-la à sua irredutível base factual. Diga-se de passagem que é aí que reside toda a diferença entre os livros de história sobre o genocídio judaico e a li92

teratura negacionista, uma vez que as câmaras de gás permanecem um facto antes de se tornarem um objecto de construção discursiva e de uma «passagem a intriga histórica» (historical emplotement)14. Foi precisamente o desenvolvimento do negacionismo que levou François Bédarida a reconsiderar, no decurso dos anos 1990, a posição de «um certo desdém» que os historiadores tinham tido tendência a manifestar, durante as décadas precedentes, face à noção de facto, e a «exortá-los vigorosamente a não rejeitarem o bebé-objectividade com a água do banho positivista»15. O questionamento do historicismo positivista e do seu tempo linear, «homogéneo e vazio», da sua causalidade determinista e da sua teleologia que transformam a razão histórica em ideologia do progresso, não implica necessariamente a rejeição de qualquer noção de objectividade factual na reconstrução do passado. Pierre Vidal-Naquet colocou o problema em termos muito claros: «se o discurso histórico não estivesse ligado, mesmo que através de todo o tipo de intermediários, ao que nós chamaremos, à falta de melhor, o real, estaríamos ainda no discurso, mas esse discurso deixaria de ser histórico»16. O relativismo radical de Hayden White parece coincidir de forma bastante paradoxal com o fetichismo do relato memorial, oposto a qualquer arquivo do real, defendido incansavelmente por Claude Lanzmann, o 93

realizador de Shoah. Esse filme extraordinário foi um momento essencial, em meados dos anos 1980, tanto para a integração do genocídio dos judeus na consciência histórica do mundo ocidental, como para a integração do testemunho entre as fontes do conhecimento histórico. Os trabalhos sobre a memória tiveram nesse filme um impulso importante e, sem dúvida, que não será exagerado afirmar que o estatuto do testemunho na investigação histórica não voltou a ser o mesmo após esta obra. No entanto, esse resultado não satisfez Lanzmann, que veio a considerar o seu filme como um acontecimento, que foi substituindo a pouco e pouco o acontecimento real, até ao ponto de recusar o valor dos «arquivos», ou seja, das provas factuais desse acontecimento (por exemplo, as fotografias da exterminação realizadas pelo Sonderkommando de Auschwitz em Agosto de 1944)17. Lanzmann defendeu este ponto de vista várias vezes, nomeadamente em 2000, quando o filme foi de novo mostrado nas salas de cinema: «Shoah não é um filme sobre o Holocausto, não é um derivado, não é um produto, mas um acontecimento originário. Que isso agrade ou não a um certo número de pessoas (…), o meu filme não faz apenas parte do acontecimento da Shoah: ele contribui para a constituir como acontecimento.»18 Desta forma, primeiro Lanzmann erigiu em «monumento» – é a sua própria expressão – os teste94

munhos coligidos em Shoah. Depois, opôs o seu «monumento» ao «arquivo», qualificando de «insuportável pretensiosismo interpretativo» o esforço dispendido pelos historiadores na análise de certos documentos herdados do passado. Por fim, substituiu o seu filme ao acontecimento real, reivindicando mesmo o direito de destruir as provas da sua existência. É este o sentido de uma sua hipérbole provocadora, que causou grande ruído aquando da estreia do filme de Steven Spielberg, A Lista de Schindler: «E se eu tivesse encontrado um filme – um filme secreto porque era estritamente proibido – rodado por um SS mostrando como três mil judeus, homens, mulheres e crianças, morreram juntos, asfixiados numa câmara de gás do crematório II de Auschwitz, se eu tivesse encontrado isso, não só não o teria mostrado, como o teria destruído. Não sou capaz de dizer porquê. É assim mesmo.»19 Afirmar desta forma peremptória que Shoah é a Shoah significa simplesmente reduzir esta última a uma construção discursiva, a um relato moldado pela linguagem no qual o testemunho deixa de remeter para uma realidade factual originária e fundadora, mas na qual, pelo contrário, a memória se basta a si própria ao constituir-se como acontecimento. E uma vez que Shoah se apresenta como uma sucessão de diálogos cujo protagonista é sempre o próprio Lanzmann, o filme revela também a postura narcísica 95

do seu autor, que se considera ele próprio, em última análise, como um elemento consubstancial do acontecimento. Acrescente-se que Lanzmann não se limita a substituir o acontecimento pela memória, já que ele a opõe à história, ou seja, ao relato do passado que visa a sua interpretação. «Não compreender», escreve, foi a sua «lei de ferro» durante os anos de preparação de Shoah: uma «cegueira» que reivindica não só como condição do «acto de transmitir» implícito à sua criação, mas também como postura epistemológica que opõe «à questão do porquê, com a sucessão indefinida de frivolidades académicas ou de patifarias que esta não cessa de induzir20». Essa postura remete para a regra que os nazis haviam imposto em Auschwitz: Hier ist kein Warum» («aqui, não há porquê»), regra que Primo Levi achava «repulsiva»21, mas que Lanzmann decidiu interiorizar como a sua própria «lei». É difícil não ver nessa interdição do «porquê» uma sacralização da memória (alguns chamam-lhe uma forma de «religiosidade secular»22») de matiz bastante obscurantista. Trata-se de uma interdição normativa da compreensão que atinge o coração do próprio acto da escrita da história como tentativa de interpretação, aquilo a que Levi chamava «a salvação da compreensão» (la salvazione del capire) e que a seus olhos constituía o objectivo de todo o esforço de rememoração do passado23. 96

Uma outra forma de substituição da memória à realidade histórica é sugerida por um filósofo de entre os mais originais dos últimos anos, Giorgio Agamben. No seu Ce qui reste d’Auschwitz, interroga a «aporia» no cerne do extermínio dos judeus, «uma realidade tal que excede necessariamente os seus elementos factuais», criando assim uma clivagem «entre os factos e a verdade, entre a constatação e a compreensão»24. Para sair desse impasse, socorre-se de Primo Levi que, em Os que sucumbem e os que se salvam, apresenta o «muçulmano» – o detido de Auschwitz chegado ao último estado de esgotamento físico e de aniquilação psicológica, reduzido a um esqueleto incapaz de pensamento e de palavra – como a «testemunha integral». É ele, escreve Levi, a verdadeira testemunha, aquele que tocou o abismo e que não sobreviveu para o contar, de quem os sobreviventes seriam, no fundo, o porta-voz: «Nós, nós falamos por eles, por delegação.»25 Enquanto Levi, ao invocar a figura do «muçulmano», queria sublinhar o carácter precário, subjectivo, incompleto dos relatos feitos pelas testemunhas realmente existentes, os sobreviventes, aqueles que não tinham visto «a Górgona», ou seja, aqueles que tinham escapado às câmaras de gás, Agamben, por seu lado, transforma o «muçulmano» no paradigma dos campos nazis. A prova irrefutável de Auschwitz, e logo a refutação derradeira do negacionismo, 97

escreve em conclusão da sua obra, reside precisamente nessa impossibilidade de testemunhar. Segundo Agamben, Auschwitz é «o que é impossível de testemunhar» e os sobreviventes dos campos da morte, ao tomarem a palavra no lugar do «muçulmano», aquele que não pode falar, não são mais do que testemunhas dessa impossibilidade do testemunho26. Aos seus olhos, o núcleo profundo de Auschwitz não se encontra no extermínio, mas na produção do «muçulmano», essa figura híbrida entre a vida e a morte (non-uomo)27. É por isso que ele a transforma num ícone (tomando como pretexto a modéstia de que faz prova Primo Levi quando indica os limites do seu próprio testemunho). Mas essa visão dos campos nazis como lugares de dominação biopolítica sobre os detidos reduzidos à «vida nua» (nuda vida) carece singularmente de espessura histórica. Agamben parece esquecer que a grande maioria dos judeus exterminados nos campos nazis não eram «muçulmanos», uma vez que não eram enviados para a câmara de gás no final das suas forças mas no próprio dia em que chegavam ao campo28. Se Agamben pôde negligenciar um facto tão evidente, é precisamente porque isso não constitui, a seu ver, o cerne do problema. Toda a sua argumentação parte do postulado segundo o qual a prova de Auschwitz não reside no facto do extermínio – uma verdade que se encontra desqualificada na sua perspec98

tiva pelo hiato que separa o acontecimento da sua compreensão – mas na impossibilidade da sua enunciação, incarnada pelo «muçulmano». Se Auschwitz existiu, não foi tanto porque existiram câmaras de gás, mas porque os sobreviventes puderam restituir uma voz ao «muçulmano», a «testemunha integral», arrancando-o do seu silêncio. Mais uma vez, a história é reduzida a uma construção linguística de que a memória – dissociada do real – constitui a trama. Fundar a crítica do negacionismo numa tal metafísica da linguagem (de inspiração tanto existencialista como estruturalista29) é uma operação duvidosa que corre o risco de manter intacta a «aporia» de Auschwitz, ao mesmo tempo que retira à sua verdade a sua base material. Podemos também compreender o desconforto com que os sobreviventes de Auschwitz, as testemunhas realmente existentes, acolheram Ce qui reste de Auschwitz. Philippe Mesnard e Claudine Kahan sublinharam justamente esse aspecto do problema na conclusão da sua crítica: «A escuta daquilo que podem dizer os sobreviventes, como podem dizê-lo, dá lugar [no livro de Agamben] a uma glosa sobre o silêncio que lhes é assim imposto. No lugar deste, Agamben apresenta o muçulmano, a única testemunha que vale a seus olhos, um ser sem referência – a partir do qual Agamben pode precisamente construir a sua própria referência –, abandonado pela identidade, cuja 99

existência se reduz ao espaço que na linguagem ocupa a sua imagem quase transparente.»30

Verdade e justiça Na relação complexa que a história estabelece com a memória inscreve-se o vínculo que as duas mantêm com as noções de verdade e de justiça. Este vínculo torna-se hoje cada vez mais problemático com a tendência crescente para uma leitura judiciária da história e uma «judiciarização da memória»31. Doravante no centro da nossa consciência histórica, a visão do século XX como um século de violência conduziu frequentemente a historiografia a trabalhar com categorias analíticas tomadas do direito penal. Os actores da história são, assim, cada vez mais frequentemente colocados no papel de executores, vítimas e testemunhas32. Os exemplos mais conhecidos que ilustram essa tendência são os de Daniel J. Goldhagen e de Stéphane Courtois. O primeiro interpretou a história da Alemanha moderna como um processo de construção de uma comunidade de executores33. O segundo, ao trocar as vestes do historiador pelas do procurador, reduziu a história do comunismo ao desenvolvimento de uma operação criminosa para a qual reclama um novo processo de Nuremberga34. 100

No fundo, a relação entre justiça e história é uma velha questão (veja-se a intervenção dos mais eminentes historiadores durante o processo de Zola, em 189835), que hoje volta à ordem do dia por uma série de processos no decurso dos quais numerosos historiadores foram convocados na qualidade de testemunhas. Seria difícil compreender os processos Barbie, Touvier e Papon em França, o processo Priebke em Itália ou ainda as tentativas de instrução de um processo a Pinochet, tanto na Europa como no Chile, sem os relacionar com a emergência, no seio da sociedade civil desses países e na opinião pública mundial, de uma memória colectiva do fascismo, das ditaduras e da Shoah. Esses processos foram momentos de rememoração pública da história onde o passado foi reconstituído e julgado numa sala de tribunal. No decorrer das audiências, os historiadores foram convocados para «testemunhar», ou seja, para clarificar graças às suas competências o contexto histórico dos factos em julgamento. Diante do tribunal, os historiadores prestaram juramento declarando como qualquer testemunha: «Juro dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade.»36 Esse «testemunho» suis generis colocava evidentemente questões de ordem ética, mas também retomava questões mais antigas de ordem epistemológica. Punha em causa a relação da justiça com a memória de um país e a do juiz com 101

o historiador, com as suas modalidades respectivas de tratamento das provas e do estatuto diferente da verdade quando ela é produzida pela investigação histórica ou é enunciada pelo veredicto de um tribunal. Atento à distinção entre os domínios respectivos da justiça, da memória e da história, Henry Rousso recusou-se a testemunhar no processo Papon, justificando a sua escolha com argumentos rigorosos e em vários aspectos esclarecedores. «A justiça – afirmou – coloca a questão de saber se um indivíduo é culpado ou inocente; a memória nacional é resultante de uma tensão existente entre as recordações memoráveis e comemoráveis e os esquecimentos que permitem a sobrevivência da comunidade e a sua projecção no futuro; a história é uma operação de conhecimento e de elucidação. Estes três registos podem sobrepor-se e foi o que se passou durante os processos por crimes contra a humanidade. Mas era desde logo colocar-lhes aos ombros um fardo insuportável: não poderiam estar, de forma equivalente, à altura dos requerimentos respectivos da justiça, da memória e da história.»37 Essa mistura de géneros parece recuperar o antigo aforismo de Schiller, retomado por Hegel, sobre o tribunal da história: Die Weltgeschichte ist das Weltgericht, «A história do mundo é o tribunal do mundo», aforismo que secularizou a moral e a ideia de justiça, ao 102

situá-la na temporalidade do mundo profano e fazendo do historiador o seu guardião38. Podemos interrogar-nos sobre a pertinência dessa afirmação a propósito de processos que, longe de julgarem um passado já ido e então encerrado, susceptível de ser contemplado à distância, não foram mais do que momentos de elaboração de «um passado que não quer passar». No entanto, para a parte civil, assumiram os traços de uma Némesis reparadora da História. Contra esse adágio hegeliano, era inevitável opor um outro: o historiador não é um juiz, a sua tarefa não consiste em julgar mas antes em compreender. Na sua Apologie pour l'histoire, Marc Bloch deu-lhe uma formulação clássica: «Quando o especialista observou e explicou, a sua tarefa está terminada. Ao juiz resta ainda dar a sentença. Ao silenciar qualquer inclinação pessoal, pronuncia-a segundo a lei? Achar-se-á imparcial. Ele sê-lo-á, com efeito, no sentido dos juízes. Não no sentido dos especialistas. Porque não se pode condenar ou absolver sem tomar partido por um quadro de valores que já não releva de nenhuma ciência positiva.»39 Mas deve também ser lembrado que, em Une étrange défaite, Bloch não se abstém de julgar e, se não queremos preconizar uma visão já gasta (e ilusória) da historiografia como ciência «axiologicamente neutra», somos obrigados a reconhecer que todo o trabalho histórico veicula também, implicitamente, 103

um julgamento sobre o passado. Seria falso não ver mais do que arrogância detrás do aforismo hegeliano sobre a história como «tribunal do mundo». Pierre Vidal-Naquet relembra, nas suas memórias, a impressão que lhe causou a passagem marcante de Chateaubriand em que este atribui ao historiador, «quando, no silêncio da abjecção, já só se ouve o ressoar das correntes do escravo e a voz do delator», a nobre tarefa da «vingança dos povos». Antes de ser a fonte de uma vocação, relembra, este desejo de redenção e de justiça foi para ele «uma razão de viver»40. A contribuição mais lúcida sobre esta delicada questão é a de Carlo Ginzburg, por ocasião do processo Sofri em Itália41. O historiador, sublinha Ginzburg, não deve erigir-se em juiz, não pode emitir sentenças. A sua verdade – resultado da sua pesquisa – não tem um carácter normativo; permanece parcial e provisória, jamais definitiva. Apenas os regimes totalitários, onde os historiadores são reduzidos à categoria de ideólogos e de propagandistas, possuem uma verdade oficial. A historiografia nunca está cristalizada, uma vez que em cada época o nosso olhar sobre o passado – interrogado a partir de novos questionamentos, sondado com a ajuda de categorias de análise diferentes – se modifica. O historiador e o juiz, no entanto, partilham um mesmo objectivo: a procura da verdade e esta busca da 104

verdade necessita de provas. Verdade e prova são duas noções que se encontram no cerne do trabalho tanto do juiz como do historiador. A escrita da história, acrescenta Ginzburg, implica além disso um procedimento argumentativo – uma selecção dos factos e uma organização do relato – cujo paradigma continua a ser a retórica de matriz judicial. A retórica é «uma arte da persuasão nascida diante dos tribunais»42; foi aí que, diante de um público, se codificou a reconstrução de um facto através das palavras. Isto não é negligenciável, mas acaba aqui a afinidade. A verdade da justiça é normativa, definitiva e vinculativa. Não procura compreender mas estabelecer responsabilidades, absolver os inocentes e punir os culpados. Comparada à verdade judiciária, a do historiador não é apenas provisória e precária, é também mais problemática. Resultado de uma operação intelectual, a história é analítica e reflexiva, procurando pôr em evidência as estruturas subjacentes aos acontecimentos, as relações sociais nas quais estão implicados os homens e as motivações dos seus actos43. Em suma, é uma outra verdade, indissociável da interpretação. Não se limita a estabelecer os factos, tenta colocá-los no seu contexto, explicá-los, formulando hipóteses e procurando as causas. Se é verdade que o historiador adopta, para retomar ainda a definição de Ginzburg, um «paradigma indiciário»44, a sua 105

interpretação não possui a racionalidade implacável, quantificável e incontestável das deduções de Sherlock Holmes. Os mesmos factos engendram verdades distintas. Se a justiça cumpre a sua missão ao designar e condenar o culpado de um crime, a história começa o seu trabalho de pesquisa e interpretação ao tentar explicar como este se tornou um criminoso, qual a sua ligação com a vítima, o contexto em que agiu, assim como a atitude das testemunhas que assistiram ao crime, que reagiram, que não souberam como impedi-lo, que o toleraram ou aprovaram. Estas considerações podem servir para reforçar a posição dos historiadores que decidiram não «testemunhar» durante o processo de Papon. As suas motivações são tão válidas como as dos que acederam à convocatória dos juízes. Estes últimos fizeram-no para não se subtraírem, enquanto cidadãos, a um dever cívico que o seu ofício tornava, a seu ver, ainda mais imperativo. Por um lado, o seu «testemunho» contribuiu para confundir os géneros e conferir o estatuto de um veredicto histórico oficial a um veredicto judicial, transformando o tribunal em «tribunal da História». Por outro lado, pôde clarificar um contexto e relembrar factos que se arriscavam a ficar ausentes tanto das actas do processo como da reflexão que a acompanhou no seio da opinião pública. 106

«Moralizar a história»45, essa exigência avançada por Jean Améry na suas sombrias meditações sobre o passado nazi, está na origem dos processos evocados anteriormente. As vítimas e os seus descendentes viveram-nos como actos simbólicos de reparação. Noutros casos, continuam a bater-se para que esses processos venham a ter lugar, como hoje em dia fazem, no Chile, os sobreviventes da ditadura de Pinochet e os seus descendentes. Não se trata de identificar justiça e memória, mas muitas vezes fazer justiça significa também render justiça à memória. A justiça foi, ao longo de todo o século XX – pelo menos desde Nuremberga, se não mesmo desde o caso Dreyfus – um momento importante na formação de uma consciência histórica colectiva. A imbricação da história, da memória e da justiça está no centro da vida colectiva. O historiador pode operar as distinções necessárias, mas não pode negar essa imbricação; deve assumi-la, com as contradições decorrentes. Charles Péguy teve essa intuição durante o caso Dreyfus, quando escreveu que «o historiador não pronuncia juízos judiciários; não pronuncia juízos jurídicos; poderíamos quase dizer que não pronuncia sequer juízos históricos; elabora constantemente juízos históricos; está em trabalho perpétuo»46. Poderíamos ver aí uma confissão de relativismo; na realidade, é o reconhecimento do carácter instável e provisório da 107

verdade histórica que, para lá do estabelecimento dos factos, contém a sua parte de juízo indissociável de uma interpretação do passado como problema aberto, mais do que inventário fechado e definitivamente arquivado.

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IV Usos políticos do passado A memória da Shoah como «religião civil» Poderemos fazer um uso crítico da memória? A este respeito as comemorações do sexagésimo aniversário da libertação do campo de Auschwitz oferecem-nos matéria abundante para reflexão. A própria dimensão das comemorações, nas quais participaram dezenas de chefes de Estado, é em si mesmo um fenómeno notável. Revela, certamente, o lugar que ocupa o genocídio dos judeus na paisagem memorial deste início do século XXI e a sua integração na nossa consciência histórica. As diferenças entre essas comemorações e as do cinquentenário são igualmente reveladoras. Bastante mais modestas, as comemorações do cinquentenário ficaram 109

marcadas pelo receio do esquecimento. A muito recente reunificação da Alemanha levantava interrogações legítimas quanto ao lugar que a memória dos crimes nazis ocuparia num país que voltara a ser «normal» e, diziam alguns, se libertara dos seus fantasmas. Temia-se que o fim da divisão – uma espécie de recordação permanente do passado e do nazismo segundo Günter Grass, um dos mais acérrimos críticos da reunificação – fosse pretexto para um novo recalcamento. Hoje em dia, é forçoso constatar que esse recalcamento não teve lugar, que a memória do nazismo, ainda que sempre conflitual, permanece viva tanto na Alemanha como no resto do mundo ocidental. O receio do esquecimento já não existe. Se existe um receio, deve-se mais, como sublinharam alguns comentadores, aos «excessos da memória». O risco não é o de esquecer a Shoah, mas o de fazer um mau uso da sua memória, de embalsamá-la, de a fechar nos museus e de neutralizar o potencial crítico, ou, pior, de a submeter a um uso apologético da actual ordem mundial. Não creio ter sido o único a sentir um certo incómodo perante as imagens de Dick Cheney, Tony Blair e Sílvio Berlusconi em Auschwitz. A sua presença parecia enviar-nos uma mensagem tranquilizadora, mas no fundo apologética, que consistia em ver o nazismo como uma legitimação em negativo do Ocidente liberal, 110

considerado como o melhor dos mundos. O Holocausto funda assim uma espécie de teodiceia secular que consiste em rememorar o mal absoluto para nos convencer que o nosso sistema encarna o bem absoluto. Nos dias seguintes, durante uma emissão de rádio, num programa de manhã de domingo, com uma grande audiência, um politólogo francês repetiu várias vezes que «Auschwitz não é Guantánamo». Auschwitz não é Guantánamo: a insistência em sublinhar tal facto, evidente e incontestável, levanta uma interrogação. Fica-se com a impressão que para alguns a comemoração da libertação dos campos de Auschwitz seria uma boa ocasião para demonstrar que, no fundo, Guantánamo não é assim tão grave. Ora, não se trata de estabelecer uma homologia entre Auschwitz e Guantánamo, mas sim de questionar se depois de Auschwitz podemos tolerar Guantánamo ou Abou-Ghraib, se não existe algo de indecente no facto de serem precisamente os responsáveis por Guantánamo e Abu-Ghraib que nos representam durante uma cerimónia consagrada às vítimas do nazismo. Para não falar de Putin, o carrasco dos chechenos, que conseguiu a façanha de, na sua alocução em Auschwitz, não pronunciar uma única vez a palavra «judeus». O problema já se tinha colocado, há uma dezena de anos, durante a guerra da ex-Jugoslávia. A quem escandalizava a comparação entre Milosevic e 111

Hitler, certamente excessiva, Marek Edelman, um dos últimos sobreviventes do gueto de Varsóvia, retorquiu que Srebrenica era, a seus olhos, uma «vitória póstuma de Hitler»1. Seria sem dúvida mais frutuoso aproveitar as comemorações do sexagésimo aniversário da libertação de Auschwitz para iniciar uma reflexão crítica sobre o presente, tentando responder às interrogações sobre as nossas sociedades que são levantadas pela memória dos campos de concentração nazis. Esse exercício já tinha sido tentado, logo após a guerra, por Horkheimer e Adorno, os nomes cimeiros da Escola de Frankfurt. Em contra-corrente à visão então dominante, que consistia em interpretar o nazismo como a expressão de uma recaída da civilização na barbárie, viam-no como o resultado de uma dialéctica negativa que tinha transformado a razão de instrumento emancipador em instrumento de dominação e o progresso técnico e industrial em regressão humana e social. Adorno definia o Holocausto como a expressão de «uma barbárie que se inscreve no próprio princípio da civilização»2. Contra a tendência tranquilizadora que vê no nazismo uma legitimação em negativo do Ocidente liberal, estes filósofos lançaram um sério grito de alerta. O totalitarismo nasceu no seio da própria civilização, é seu filho. Essa civilização continua a ser a nossa e nós continuamos a viver num mundo em 112

que Auschwitz delimita um horizonte de possibilidade, ainda que essa violência possa assumir outras formas ou outros alvos. Podemos compreender Habermas quando escreve que é apenas «depois e por Auschwitz (nach und durch Auschwitz)» que a Alemanha integrou o Ocidente3. É com efeito sob o impacto do genocídio dos judeus que a Alemanha iniciou uma ruptura com a sua auto-percepção tradicional enquanto comunidade étnica (exclusivamente fundada sobre o direito de sangue) e começou a redesenhar a sua identidade segundo as linhas de uma comunidade política, como uma nação de cidadãos. Trata-se de uma consequência frutuosa da memória do Holocausto. Mas o Ocidente não se reduz ao Estado de direito e à democracia liberal. O nazismo não se inscreve na história do Ocidente apenas como expressão extrema do contra-Iluminismo. A sua ideologia e a sua violência condensaram várias tendências presentes na Europa desde o século XIX: o colonialismo, o racismo e o antissemitismo moderno. Foi um filho da história Ocidental. E a Europa liberal do século XIX foi a sua incubadora. O problema que se coloca é então o da ligação da Shoah com o processo de civilização. O Holocausto implicou o monopólio estatal da violência que Norbert Elias e Max Weber, na senda de Hobbes, tinham inter113

pretado como um vector de pacificação da sociedade e, por consequência, como uma conquista do processo de civilização. Para se poder realizar, esse genocídio pressupunha as estruturas constitutivas da civilização moderna: a técnica, a indústria, a divisão do trabalho, a administração burocrático-racional. Foi a técnica industrial que permitiu a produção em série da morte. Resumindo, a fórmula convencional – que diz que Auschwitz funcionava como uma fábrica produtora de morte – não implica, certamente, que todas as fábricas sejam um campo de extermínio potencial, mas impõe um questionamento sobre a normalidade das nossas sociedades modernas e sobre a sua compatibilidade com a violência totalitária que, longe de suprimir essa normalidade, a pressupõe e a utiliza. Depois de ter constatado que «o Holocausto não atraiçoou o espírito da modernidade», o sociólogo Zygmunt Bauman sublinhou que «as condições propícias à perpetração do genocídio são especiais mas não de todo excepcionais. Raras, mas não únicas (...). No que diz respeito à modernidade, o genocídio não é nem uma anomalia nem um disfuncionamento»4. Pensar a ligação de Auschwitz com a modernidade ocidental pode levar a colocar em causa a nossa «normalidade». Os centros de retenção onde são colocados os estrangeiros em situação irregular e os requerentes 114

de asilo – que proliferaram na Europa no decurso dos últimos anos – não são evidentemente comparáveis aos campos de concentração nazis. Possuem, no entanto, no seio das sociedades democráticas, alguns traços essenciais que definem o paradigma do campo de concentração, ou seja, segundo Giorgio Agamben, «um espaço que se abre quando o estado de excepção começa a tornar-se a regra»5. São, com efeito, espaços anómicos em que tudo é possível, não porque sejam concebidos como espaços de aniquilamento, mas porque se tratam de lugares de não-direito. As pessoas aí internadas correspondem à definição de «pária» dada por Hannah Arendt: um fora-da-lei, não porque tenha transgredido a lei, mas porque não há nenhuma lei que o possa reconhecer e proteger. Indivíduos, acrescenta Arendt evocando os apátridas, que são «supérfluos» aos olhos da comunidade das nações. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados contabiliza 50 milhões no mundo de hoje. Várias dezenas de milhar são internados todos os anos em países da União Europeia, invisíveis, como presenças «metaforicamente imateriais»6. Existe uma passagem de As Origens do Totalitarismo que hoje não pode ser lida sem que sejamos remetidos para a actualidade: «antes de fazer funcionar as câmaras de gás, os nazis tinham cuidadosamente estudado a questão e tinham descoberto, para sua grande satisfação, que 115

nenhum país iria reclamar essa gente. O que é importante registarmos é que tinha sido criada uma condição de completa privação de direitos bem antes de ter sido contestado o direito de viver.»7 Há também, no entanto, uma outra memória de Auschwitz. Na época em que o genocídio judaico estava ausente do discurso oficial, a sua recordação suscitava uma reflexão e um comprometimento que não tinham nada de conformista. Em França, a memória de Auschwitz e Buchenwald foi uma alavanca poderosa para as mobilizações contra a guerra da Argélia. A França colonial, que torturava e matava, evocava recordações a todos aqueles que, alguns anos mais cedo, se tinham batido contra a ocupação alemã. Alain Resnais realizou Nuit et Brouillard em 1955 como uma forma de lembrar a história. Testemunhando em 1960 no processo de Francis Jeanson, julgado por ter criado em França uma rede de apoio à FLN, Pierre Vidal-Naquet comparou os massacres cometido na Argélia pelo exército francês às câmaras de gás de Auschwitz, onde os seus pais tinham sido mortos. A comparação era certamente exagerada, como veio a reconhecer nas suas memórias8. Hoje em dia, tais posições suscitariam a cólera dos «guardiões do templo» da memória do Holocausto. São posições que revelam uma paisagem memorial e política bem diferente da nossa e também os limites da historiografia (no 116

sentido mais tradicional do termo), numa época em que a distinção entre campos de concentração e campos de extermínio estava longe de ser clara. Mas revelam também a presença de uma recordação ainda recente, viva, quente, que funcionava como uma incitação muito forte para lutar contra as injustiças e as opressões do presente. Foi essa recordação que inspirou a decisão de vários dos signatários do «Manifesto dos 121» pela insubmissão na Argélia, e foi evocada em vários dos processos da época. Para o trotsquista holandês Sal Santen, sobrevivente dos campos nazis e depois condenado em 1960 por ter participado na criação de uma fábrica de armas clandestina para a FLN, não havia dúvida que o compromisso anticolonialista não fazia mais do que prolongar o compromisso antifascista. A comparação entre crimes nazis e violências coloniais atravessa os escritos de Frantz Fanon e mesmo as declarações do Tribunal Russell sobre o Vietname. A memória de Auschwitz, subterrânea mas activa, é uma chave igualmente indispensável para explicar o antifascismo do movimento estudantil e da esquerda revolucionária depois de 1968. Esse substrato da memória colectiva, à época ocultada no discurso oficial, podia por momentos reemergir à superfície, como aquando da expulsão de Daniel Cohn-Bendit pelo general de Gaulle, que fez descer à rua dezenas de milhares de jo117

vens gritando «nós somos todos judeus alemães». Esse slogan possuía então uma força libertadora cujo alcance é hoje difícil de compreender. Na Alemanha, após o silêncio da era Adenauer, a memória de Auschwitz iria reaparecer, logo a partir dos anos 1960, como um motor do protesto estudantil. Uma nova geração exigia que a anterior prestasse contas, recolocando em causa o passado alemão e denunciando as ligações que uniam a nova Alemanha de Bona ao Terceiro Reich. Não se trata de idealizar essa revolta ou de esconder os seus limites e ambiguidades. Vários analistas sublinharam os resíduos de um nacionalismo de traços antissemitas que poderia estar apenas adormecido na virulência do antissionismo, do anti-imperialismo e do antiamericanismo da esquerda extraparlamentar9. Mas tal não deveria impedir de observar que esta revolta foi o ponto de partida de todas as querelas das décadas seguintes em torno do «passado que não quer passar» e da formação de uma consciência histórica nova em que a memória dos crimes nazis constitui um elemento central. Essa rememoração encontrou uma ilustração literária notável, em 1975, em W ou le souvenir d'enfance, de Georges Perec. Esse romance articula-se em torno de um duplo relato, o da memória e o de uma ficção política inspirada na actualidade: por um lado, as suas recor118

dações de órfão, filho de judeus polacos emigrados em França, deportados e exterminados em Auschwitz; por outro, a crónica de uma sociedade totalitária, W, situada na América Latina, organizada como uma sistema totalitário fundado sobre o princípio da competição desportiva e que acaba em massacre. O romance termina com as seguintes palavras: «Eu esqueci as razões que, com doze anos, me fizeram escolher a Terra do Fogo para aí instalar W: os fascistas de Pinochet encarregaram-se de dar ao meu fantasma uma última ressonância: várias ilhotas da Terra do Fogo são hoje em dia campos de deportação.»10 Podemos, todavia, encontrar exemplos recentes de um bom uso da memória do Holocausto. Por exemplo, o do africanista Jean-Pierre Chrétien que publicou em Abril de 1994 um artigo no Libération em que denunciou os crimes de um «nazismo tropical» no Ruanda11. De um ponto de vista analítico, o conceito não parece muito pertinente, na medida em que assimila dois genocídios, o dos Tutsi e o dos judeus, muito diferentes pelos seus contextos, pela natureza dos regimes políticos que os conceberam e pelos meios com que foram perpetrados. Contudo, do ponto de vista do uso público da história, esse conceito foi muito bem escolhido. Em Abril de 1994, quando a opinião pública aparecia ainda largamente incrédula e indiferente face aos massacres 119

que os média caracterizavam frequentemente como «conflitos tribais», falar de «nazismo tropical» tinha um sentido, o de se apoiar na consciência histórica do mundo ocidental, onde a Shoah ocupa hoje em dia um lugar central, para chamar a atenção sobre um genocídio em curso. Tratava-se de mostrar que o Ruanda estava a viver uma tragédia tão grave como a Shoah e que era necessário reagir para a tentar impedir. De um ponto de vista ético-político, a noção de «nazismo tropical» era portanto perfeitamente justificada. Infelizmente, é mais fácil comemorar genocídios, sobretudo a décadas de distância, do que impedi-los.

O eclipse da memória do comunismo Em Le spleen contre l’oublie, Dolf Oehler mostrou até que ponto a cultura francesa do Segundo Império foi assombrada pela memória de Junho de 1848, numa sociedade que tentava exorcizar por todos os meios a recordação dessa revolta que se tornou quase inominável12. Hoje acontece qualquer coisa de semelhante. A própria ideia de revolução é criminalizada, automaticamente remetida para a categoria do «comunismo» e assim arquivada no capítulo «totalitarismo» da história do século XX. Foi assimilada ao Terror e o Terror reduzido à execução coerente de uma ideologia crimi120

nosa13. O capitalismo e o liberalismo parecem ter-se tornado novamente o destino inelutável da humanidade, como tinham sido descritos por Adam Smith na época da Revolução Industrial e por Tocqueville depois da Restauração. Não é identificada uma nova ordem a construir, de que apenas poderíamos ver os traços gerais, mas um sistema social e político apresentado como a única resposta possível para os horrores do século XX. O contraste com a paisagem memorial do século agora findo é evidente. Durante os momentos mais sombrios da «era dos extremos», quando o velho mundo estava sacudido por uma guerra destrutiva que lembrava um quadro de Hieronymus Bosch, quando se generalizava o sentimento de que a humanidade estava à beira do abismo e a civilização se arriscava a conhecer um eclipse definitivo, o comunismo aparecia, aos olhos de milhões de homens e de mulheres, como uma alternativa pela qual valia a pena lutar. Na ideia de comunismo havia certamente uma parte de ilusão, de mistificação e de cegueira de que apenas uma minoria, de entre os seus defensores, tinha consciência. Estava contudo fortemente enraizado na sociedade, na cultura e nas expectativas das classes populares. Comunismo era uma palavra portadora de múltiplos significados. Queria dizer tomar em mãos o seu próprio destino, emancipar-se, bater-se contra o fascismo, contra a in121

justiça, contra a opressão, construir uma sociedade de iguais. Remetia também para realidades mais sombrias: o avanço «libertador» do Exército Vermelho, a disciplina, a razão do partido, o culto de Estaline. Aspirações libertárias, cálculos maquiavélicos e ameaças totalitárias ombreavam-se numa dialéctica histórica que a «era dos extremos» tinha levado ao seu paroxismo. Em França e em vários outros países do Oeste europeu, a memória do comunismo é em primeiro lugar a de uma «contra-sociedade»14 – caserna, igreja e comunidade fraternal à vez – que já não existe. Se as sombras e as contradições que essa ideia de comunismo transportava são doravante bem visíveis, se as suas ilusões estão destruídas, temos de reconhecer que também o seu horizonte de esperança desapareceu. Os movimentos de massas mais radicais já não ousam reclamar-se dele, nem reivindicá-lo. Os zapatistas mexicanos não falam de comunismo mas de dignidade e justiça. As forças que se mobilizaram no decurso destes últimos anos contra a mundialização neo-liberal, de Seattle a Génova, têm ideias muto claras sobre aquilo que não querem – um mundo reificado e transformado em mercadoria –, mas não ousam propor um modelo alternativo de sociedade. Os estudantes chineses reunidos na Praça de Tiananmen em 1989 não reivindicavam, como em Praga em 1968, um «socialismo de rosto humano», mas 122

a liberdade e a democracia. Nos países da Europa central, são numerosos os que, depois de terem lutado por um socialismo autêntico, se tornaram responsáveis não apenas pelo regresso à democracia mas também pela restauração do capitalismo. Introduzida na consciência histórica do mundo ocidental desde o fim dos anos 1970 como um acontecimento central do século XX, a recordação dos campos de morte nazis uniu-se, após a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento do Império Soviético, à memória do «socialismo realmente existente». Tornaram-se indissociáveis, como os ícones de uma «era de tiranos», definitivamente acabada15. A elaboração da memória dos passados fascista e nazi, iniciada alguns anos antes em vários países europeus, – enleou-se com o fim do comunismo. A consciência histórica do carácter assassino do nazismo serviu de parâmetro para medir a dimensão criminal do comunismo, rejeitado em bloco – regimes, movimentos, ideologias, heresias e utopias incluídas – como um dos rostos do século da barbárie. A noção de totalitarismo, antes arrumada nas estantes menos consultadas das bibliotecas da Guerra Fria, conheceu um regresso espectacular como a chave de leitura mais capaz, se não a única, de decifrar os enigmas de uma era de guerras, ditaduras, destruições e massacres16. Uma vez decapitado o monstro totalitário com cabeça de 123

Jano, o Ocidente conheceu uma nova juventude, quase uma nova virgindade. Se o nazismo e o comunismo são os inimigos irredutíveis do Ocidente, este deixa de constituir o seu berço para se tornar a sua vítima, erigindo-se o liberalismo como o seu redentor. Esta tese exprime-se sob diferentes variantes, das mais vulgares às mais nobres. A versão vulgar é a do filósofo do Departamento de Estado americano, Francis Fukuyama, para o qual a democracia liberal designa, no sentido hegeliano do termo, «o fim da História», implicando que é impossível conceber um mundo que seja ao mesmo tempo distinto e melhor do que o mundo actual17. A versão nobre é a de François Furet. Sublinhando, em O Passado de uma Ilusão, que «nem o fascismo, nem o comunismo foram os sinais inversos de um destino providencial da humanidade»18, Furet deixa entender que um tal destino providencial na verdade existe e é representado pelo seu inimigo comum: o liberalismo. Depois de ter assimilado o movimento e os aparelhos políticos, a revolução e o regime, as suas utopias e a sua ideologia, os sovietes e a Tcheca, os historiadores da nova Restauração empreenderam a condenação em bloco do comunismo como uma ideologia e uma prática intrinsecamente totalitárias. Desprendida de toda a dimensão libertadora, a sua memória foi alojada nos arquivos do século dos tiranos. 124

É certo que o século XX suscitou uma interrogação fundamental quanto ao diagnóstico de Marx relativo ao papel do proletariado como libertador da humanidade. A Revolução Russa (e, na sua senda, as que se lhe seguiram) engendrou um regime totalitário. Tudo aquilo contra o qual o comunismo, desde Babeuf e Marx, se havia insurgido – a opressão, a desigualdade, a dominação – converteu-se pouco tempo depois na sua condição normal de existência. A violência «parteira» da história foi institucionalizada como o seu modo de funcionamento. O aparelho concebido como meio tornou-se o seu próprio fim, um fetiche que exigia o seu quinhão de vítimas sacrificiais. O movimento que tinha prometido a emancipação do trabalho, finalmente liberto da sua forma capitalista, deu lugar a um sistema de alienação e de opressão. O comunismo, tal como nós o conhecemos nas suas formas históricas concretas depois de 1917, foi engolido com o século que o tinha engendrado. Após uma época de guerras e de genocídios, de fascismos e de estalinismo, o socialismo já só subsiste, como nas suas origens, na sua forma utópica. Mas esta utopia é, doravante, fortemente carregada pelo peso da história, que a transforma, segundo as palavras inspiradas de Daniel Bensaïd, numa «aposta melancólica»19. Alimenta-se de um sentimento agudo das derrotas sofridas, das catás125

trofes sempre possíveis, e esse sentimento torna-se no verdadeiro fio condutor que tece a continuidade da história como história dos vencidos. Ao contrário de Marx, que definia as revoluções como as «locomotivas da História», Benjamin interpretava-as como o «travão de emergência», que poderia parar o curso do comboio rumo a uma catástrofe eternamente renovada e, assim, romper o continuum da história20. A metáfora de Marx continuava prisioneira da mitologia do progresso que ao longo de todo o século XIX tinha tido o seu símbolo no caminho-de-ferro, expressão da sociedade industrial, imagem da potência e da velocidade. Depois dos carris de Birkenau, depois das vias-férreas que os zeks* construíram nos gulags da Sibéria, as locomotivas já não evocam a revolução. Nós já não estamos no meio da tempestade, como os nossos antepassados do período de entre-guerras. Vivemos, pelo menos provisoriamente, numa paisagem pós-catastrófica, ao abrigo das calamidades que afligem outras regiões do planeta. E com a catástrofe afastou-se a revolução, o seu corolário. Uma vez que o seu «campo de experiência» se afasta de nós como um passado já ido, o seu «horizonte de esperança» tornou-se invisível21. Não sabemos se o comunismo poderá um dia * Prisioneiros nos campos de trabalho forçado. N.T. 126

voltar a ser um «horizonte de esperança», uma «utopia concreta», como o definia Ernst Bloch. O que é certo é que o seu campo de experiência se eclipsou da nossa paisagem memorial e que espera ainda a sua anamnese. Desse ponto de vista, a memória do comunismo conheceu uma parábola análoga à de outros movimentos emancipadores. Como sublinharam vários historiadores, Maio de 68 já não evoca, no imaginário colectivo, a maior greve geral da história francesa, mas o rito de passagem para uma sociedade individualista e o momento de formação de uma nova elite «liberal-libertária». A analogia mais impressionante é sem dúvida a do anticolonialismo, cuja memória pública conheceu um eclipse quase total. Uma gigantesca revolta dos povos colonizados contra o imperialismo foi esquecida, recoberta por outras representações do «Sul» do mundo, acumuladas durante três décadas: primeiro, a das valas comuns do Camboja e do Ruanda; depois, as «guerras humanitárias»; e por último o terrorismo islâmico, cujos porta-vozes substituíram a imagem do guerrillero. Os ex-colonizados ainda não adquiriram o estatuto de sujeitos históricos, transformaram-se simplesmente em «vítimas», objecto de salvamento pelos países desenvolvidos, que continuam a cumprir, como no século XIX, a sua «missão civilizadora», agora envolta na capa ideológica dos «direitos do homem». Assim enterra127

da, a recordação do comunismo e do anticolonialismo como movimentos emancipadores, como experiência de constituição dos oprimidos em sujeito históricos, subsiste como memória escondida, por vezes como contra-memória oposta às representações dominantes.

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V Os dilemas dos historiadores alemães O desaparecimento do fascismo A Alemanha constitui um laboratório interessante para estudar a interacção entre a memória do nazismo e a escrita da sua história. Neste país, a emergência de uma consciência histórica do genocídio dos judeus coincidiu com o desaparecimento da noção de «fascismo» do campo historiográfico. Raros são os historiadores que se envolveram numa análise comparada dos fascismos1, raríssimos aqueles que hoje aceitam considerar o fascismo como um fenómeno de alcance europeu. Depois de no mundo académico se ter «acertado o passo» com a reunificação, sobram apenas alguns sobreviventes da 129

historiografia da Alemanha de leste. É a própria noção de fascismo que, para lá do Reno, parece constituir uma espécie de tabu. O fenómeno não é novo. Estava identificado desde 1988 por Timothy Mason, um grande investigador que colocou a história comparada dos fascismos no centro da sua obra. Num artigo significativamente intitulado «Whatever happened to «fascism»?», sublinha uma tendência que se acentuou no decorrer da década seguinte: o desaparecimento, na historiografia alemã, do conceito de fascismo2. Os últimos vinte anos foram marcados, na Alemanha, por cinco grandes debates, alguns exclusivamente no interior da disciplina, outros projectados para o exterior, até se tornarem grandes debates da sociedade. O primeiro foi a «controvérsia dos historiadores» (historikerstreit), que polarizou em 1986-1987 a atenção dos média e teve um impacto considerável além das fronteiras alemãs. Depois, no ano seguinte, a correspondência entre Martin Broszat e Saul Friedländer, que não saiu das revistas e das publicações especializadas, mas que constitui uma reflexão metodológica de primeira importância. Em 1996, foi a controvérsia em torno do livro de Daniel J. Goldhagen sobre os «carrascos voluntários de Hitler» que fez furor, com fortes repercussões na cena internacional. Por fim, as polémicas exclusivamente internas à historiografia e puramen130

te «germano-alemãs», suscitadas pelo Historikertag* de 1998, e a que se seguiram altercações em torno de uma exposição itinerante sobre os crimes da Wehrmacht. Primeiro debate, portanto, o Historikerstreit, iniciado em 1986-1987 pelas teses de Ernst Nolte sobre o passado alemão «que não quer passar». A sua interpretação do nazismo como reacção à Revolução Russa e, sobretudo, a sua visão do genocídio dos judeus como «cópia» de um «genocídio de classe» perpetrado pelos bolcheviques foram objecto de polémicas bastante divulgadas. Jürgen Habermas foi o principal antagonista de Nolte, a quem acusou de ter encontrado uma maneira cómoda de «liquidar os danos», de «normalizar» o passado e de dissolver a responsabilidade histórica pelos crimes do nacional-socialismo3. O segundo debate teve lugar um ano mais tarde, em suplementos da imprensa diária e nos ecrãs de televisão: um debate metodológico destinado a ter um impacto muito forte nos meios de investigação. Publicado quase simultaneamente em alemão e em inglês, a correspondência já mencionada entre Martin Broszat e Saul Friedländer abordava a delicada questão da possibilidade e dos limites de uma historicização do nazismo, revelando em simultâneo a fecundidade do diálogo e as * Jornada historiográfica. N.T. 131

diferenças de abordagem geradas a partir de dois pontos de observação distintos: o de um historiador alemão e o de um historiador judeu4. Deve sublinhar-se esta diferença, que constitui um dos aspectos centrais dessa correspondência, não para «etnicizar» o debate, mas para relembrar as diferentes perspectivas epistemológicas que sustentam a «posição» do historiador (aquilo a que Karl Mannheim chamou o seu Standort)5, isto é, a sua inserção num contexto social, político, cultural, nacional e memorial específico6. Terceiro debate: em meados dos anos 1990, a obra do politólogo americano Daniel Goldhagen suscitou, bem para lá dos meios universitários, um vasto debate público sobre a ligação da sociedade alemã com o regime nazi e o grau de implicação dos alemães «normais» na efectivação dos crimes nazis. Se a tese de Goldhagen, visando apresentar o genocídio judaico como um «projecto nacional» alemão, foi objecto de sólidas críticas por parte da maioria dos historiadores, foi também um momento importante na confrontação da Alemanha reunificada com o seu passado nazi e na formação de uma consciência histórica, especialmente entre os jovens, no centro da qual se inscreve a memória de Auscwitz7. A abordagem funcionalista, que via os crimes do nazismo como o produto de uma máquina de morte, impessoal e quase anónima, foi fortemente abalada 132

por Goldhagen, que colocou a tónica na participação activa dos alemães nesses crimes ao desviar a atenção dos campos de extermínio para as execuções em massa levadas a cabo pelas unidades especiais do SS (as Einsatzgruppen), pelos batalhões de polícia e pelo exército. Quarto debate: em 1998, o tradicional encontro de historiadores alemães, que tem lugar de dois em dois anos, foi marcado por debates muito intensos a respeito do passado da sua disciplina. O compromisso com o regime nazi, ou mesmo a adesão aberta, por parte de certas figuras de proa da historiografia do pós-guerra – como Werner Conze e Theodor Schieder, os antigos mestres de vários investigadores que dominam a disciplina hoje em dia – foi objecto de revelações e de críticas muito severas8. Foi esse congresso que desenhou o perfil de uma nova geração – no sentido histórico, e não simplesmente cronológico do termo, segundo a definição de Mannheim – que emergiu no decurso da última década. (Por vezes mesmo mais cedo, especialmente no caso de um dos porta-vozes da vaga contestatária, Götz Aly9.) Foi de certa forma inevitável que, após ter sido um dos vectores privilegiados da elaboração de uma consciência histórica e do desenvolvimento de um vasto debate na sociedade sobre o uso público da história, a comunidade de historiadores se visse obrigada a cen133

trar o seu olhar sobre o seu próprio percurso e a proceder, muito honestamente e portanto dolorosamente, à sua autocrítica. Existe aqui uma identificação completa entre o juiz e o historiador, num processo em que os historiadores se constituíram como juízes dos seus próprios antecessores e da sua própria história. Quinto debate: a exposição sobre os crimes da Wehrmarcht, organizada pelo Institut fϋr Sozialforschung de Hamburgo e inaugurada em 1995, tem uma longa e tormentosa história, cuja conclusão podemos referenciar ao ano de 200210. Resultado de um importante trabalho de investigação, essa exposição rompeu com um lugar-comum instalado na opinião pública alemã, segundo o qual o exército não teria estado implicado nos crimes do nazismo, que teriam sido responsabilidade quase exclusiva dos SS e da Gestapo. Apoiando-se num vasto material ilustrado por imagens e documentos da época, a exposição de Hamburgo mostrava que, pelo contrário, o exército tinha perpetrado numerosos massacres de populações civis na União Soviética – sobretudo na Ucrânia e na Bielorrússia – e na Sérvia, ao mesmo tempo que participava na eliminação dos judeus. Tinha estado no centro de uma guerra de conquista e de extermínio contra o comunismo, os povos eslavos, os judeus e os ciganos, guerra que foi radicalizada face à resistência soviética e que tinha rapidamente assumido as característi134

cas de uma guerra colonial e de uma cruzada antissemita. Os milhões de jovens soldados que tinham servido sob o uniforme da Wehrmacht representavam o conjunto da sociedade alemã, com a qual mantinham contactos e trocavam informações. Mostrar a implicação da Wehrmacht no genocídio dos judeus significou, portanto, demolir o mito segundo o qual os alemães «não sabiam». As ferozes polémicas suscitadas por esta exposição atingiram o seu ponto alto em 1999, quando os seus detractores conseguiram provar a presença de alguns documentos falsos (quatro fotografias de crimes do NKVD atribuídos erroneamente à Wehrmacht) e impor o seu encerramento. Depois do trabalho de investigação de uma comissão de inquérito independente que rejeitou todas as alegações de falsificação e de manipulação, a exposição foi enfim reaberta em 2002, expurgada das fotografias controversas – uma parte mínima no conjunto dos documentos reunidos – e acompanhada de um novo catálogo enriquecido por um importante aparato crítico11. É verdade que estas controvérsias apresentam características muito diferentes. Trata-se respectivamente de três grandes debates de sociedade que ultrapassaram largamente as fronteiras de uma disciplina científica (o Historikerstreit, o caso Goldhagen e a exposição sobre os crimes da Wehrmacht), de uma reflexão metodológica 135

sobre a interpetação de um passado que se furta aos procedimentos tradicionais da historicização (a correspondência Boszat-Friedländer) e, por fim, de uma crise de identidade no interior de uma comunidade intelectual (o Historikertag de 1998). Mas, no entanto, se virmos bem, as três primeiras controvérsias, que constituem também a premissa e a base sobre a qual se desenvolveram as outras, andam em torno de uma mesma questão: a singularidade histórica do nazismo e dos seus crimes12. O reconhecimento dessa singularidade é doravante o postulado implícito à maior parte das pesquisas alemãs sobre o nazismo. Não se trata aqui de pôr em causa essa singularidade, que podemos muito bem admitir e que constitui, em vários aspectos, uma aquisição importante da historiografia. O que merece ser sublinhado, em contrapartida, é o seu corolário, ou seja, as consequências problemáticas, algumas vezes inquietantes, que acompanharam esse reconhecimento. Na primeira linha dessas consequências negativas deve inscrever-se, precisamente, o desaparecimento do conceito de fascismo. Sobre essa questão crucial, temos a impressão de que todos se posicionaram silenciosamente, mas com firmeza, ao lado de Karl Dietrich Bracher, o historiador liberal-conservador que com mais coerência sempre rejeitou o conceito de fascismo. Há mais de quarenta anos que Bracher opõe a sua visão «totalitarista» da Alema136

nha nazi às diferentes teorias do fascismo, categoria que para ele só se aplica à Itália de Mussolini13. Alguns dos seus discípulos, como Hans-Helmut Knϋter, recusam mesmo atribuir ao fascismo o estatuto de um conceito (Begriff), reduzindo-o a uma simples «palavra de ordem» (schlagwort), a uma ideologia e a um instrumento de propaganda14. Essa atitude não é nova. O que é isso sim novo é que a ela adiram historiadores e politólogos provenientes da esquerda, como Wolfgang Kraushaar ou Dan Diner. O primeiro defende hoje em dia a ideia de totalitarismo, que apresenta como antinómico em relação ao fascismo (sendo a Alemanha nazi totalitária, já não poderia ser fascista)15. O segundo publicou recentemente uma ambiciosa e interessante tentativa de «compreensão» do século XX (Das Jahrhundert verstehen), em que praticamente não recorre à noção de fascismo16. O nacional-socialismo aparece aqui como um fenómeno exclusivamente alemão, completamente distinto e independente do fascismo italiano, tanto no seu conteúdo como na sua forma, insusceptível de ser associado a um fenómeno fascista de escala europeia. Na maior parte dos casos os historiadores que continuam a utilizar a noção de fascismo são os representantes da escola histórica da antiga RDA, como Kurt Pätzold, marxistas como Reinhard Kϋhnl17, ou discípulos de esquerda de Nolte, como Wolfgang Wippermann18. Entre os 137

grandes historiadores da RFA, a única excepção é Hans Mommsen, autor de uma obra imponente e notável mas que, no entanto, não se distingue pelo seu comparatismo. Mommsen reconhece a pertinência do uso do conceito de fascismo, mesmo se a ele não recorre. É significativo que a única obra hoje em dia disponível na Alemanha sobre os fascismos seja traduzida do polaco: Schulen des Hasses, de Jerzy W. Borejsza19. Outro sinal revelador dessa mutação na paisagem intelectual é o abandono da noção de fascismo por quem mais tinha contribuído para a sua difusão: Ernst Nolte. Celebrizado no inicio dos anos 1960 graças a um livro ambicioso em que interpretou o fascismo como um fenómeno europeu de que analisa três variantes principais – o regime de Mussolini em Itália, o nacional-socialismo alemão e a Action française – , hoje em dia Nolte prefere qualificar o nacional-socialismo como totalitarismo, para o qual tentou dar uma explicação «histórico-genética»20.

A Shoah, a RDA e o antifascismo Na origem deste «ostracismo» conceptual encontramos, bem entendido, vários factores. Poderíamos sublinhar pelo menos quatro, ligados tanto à evolução intrínseca da investigação histórica como a uma mutação da paisagem memorial da Alemanha. 138

O primeiro vem dos limites hoje evidentes das teorias clássicas do fascismo, nomeadamente as de inspiração marxista. Dificilmente poderemos ficar satisfeitos com uma explicação do nazismo como expressão, segundo a fórmula canónica, dos sectores mais agressivos do grande capital e do imperialismo alemão, ou mesmo, em termos mais matizados, como simples resultado de uma alteração das relações de força entre as classes21. Os limites de uma tal leitura são agora reconhecidos, ainda que, diga-se de passagem, as interpretações marxistas, nos nossos dias pouco frequentadas, são muitas vezes bem mais ricas e complexas do que se pensa (os marxistas estão entre os primeiros a ter falado do fascismo em termos de totalitarismo, de policracia, de carisma, de psicologia de massas, etc.)22. A indiferença às bases de classe do nazismo corre o risco de levar a um impasse tão grave como uma leitura do Estado hitleriano em termos simplesmente classistas. Se ninguém pode seriamente pretender que as câmaras de gás foram projectadas pelo capitalismo monopolista alemão, a implicação deste no sistema concentracionário nazi é incontestável, tal como o apoio das elites alemãs tradicionais ao regime nazi até ao fim da Segunda Guerra Mundial. O segundo factor procede da amplitude das diferenças entre o fascismo italiano e o nacional-socialismo, 139

sobretudo no plano da ideologia. O antissemitismo, que ocupa um lugar central na mundivisão e nas políticas nazis, está ausente no fascismo italiano até 1938, dezasseis anos depois da chegada ao poder de Mussolini. De uma forma mais geral, as matrizes culturais do fascismo italiano (a presença de uma componente «de esquerda» nas suas origens), a sua exaltação do Estado «totalitário» (em vez da völkische Gemeinschaft) e mesmo a sua definição do nacionalismo (mais espiritualista do que biológica), revelam diferenças tão profundas em relação ao nacional-socialismo que uma visão monolítica do fascismo como fenómeno homogéneo, cujas variantes nacionais fossem apenas superficiais, é necessariamente contestável23. Se é certo que essas lacunas e essas limitações objectivas favoreceram o questionamento do conceito de fascismo, um terceiro factor que determinou o seu eclipse é de natureza essencialmente política. A noção de fascismo era um dogma para a escola histórica da RDA, num contexto em que eram muito débeis as fronteiras entre investigação e ideologia, entre interpretação do passado e apologia da ordem dominante. Com a reunificação, essa noção desapareceu após a demolição, no sentido literal do termo, da escola histórica que a defendia. Esse processo foi acompanhado primeiro por um questionamento, seguido pela sua rejeição radi140

cal, de uma outra noção, a de antifascismo, que aparecia muito mais como uma ideologia de Estado do que como a herança de um movimento de resistência. O estudo da resistência comunista – cuja amplitude está longe de ser negligenciável24 – permaneceu apanágio da historiografia leste-alemã, submetida a um forte controlo ideológico. A Oeste, foi privilegiada a oposição no seio do exército, que teve como momento final o atentado contra Hitler em Julho de 1944, enquanto a história social tendia a colocar entre parêntesis o próprio conceito de resistência (Widerstand), desviando a atenção para as diferentes formas de «dissensão» ou de «inadaptação» (Resistenz) da sociedade civil face ao regime. Como sugeriu Saul Friedländer, a consequência do uso desse conceito – que literalmente significa «a imunidade, num sentido biológico»25 – era legitimar a visão lenitiva e apologética, largamente difundida no seio da opinião pública desde 1945, de uma sociedade civil alemã em última análise estranha aos crimes do nazismo. Com o desenvolvimento dos estudos sobre a vida quotidiana (Alltagsgeschichte) na Alemanha nazi, a resistência perdia o seu interesse26. Essa mutação era ainda mais fácil uma vez que apenas a historiografia da RDA podia legitimamente considerar-se herdeira de uma tradição antifascista; não se considerariam, certamente, os historiadores oeste-alemães pertencentes ao que hoje em dia 141

é corrente chamar-se a «geração da Hitlerjugend» e ainda menos os seus mestres que dominavam a disciplina durante a era Adenauer e que antes de 1945, em muitos casos, haviam aderido ao partido nazi. Existe uma diferença fundamental em relação à historiografia italiana, cujas discussões actuais procedem do questionamento de um «paradigma antifascista» sobre o qual ela se tinha reconstituído após 1945. Este quadro estaria incompleto, porém, sem um outro elemento político. O conceito de fascismo, na sociedade oeste-alemã dos anos 1960 e 1970, designava mais o presente do que o passado e servia para motivar a luta contra as tendências autoritárias de um sistema político nascido das cinzas do Terceiro Reich. Segundo a célebre fórmula de Adorno, o perigo representado pela sobrevivência do fascismo na democracia era bem maior do que a ameaça de um retorno ao fascismo27. A solidez das instituições democráticas alemãs, de que a reunificação foi um teste decisivo, mostrou o carácter datado e agora obsoleto de uma tal concepção. Vamos agora ao quarto elemento, sem dúvida o mais importante. O que mais contribuiu para o abandono da noção de fascismo no seio da historiografia alemã foi a emergência de uma consciência histórica fecundada pela memória de Auschwitz. O fascismo aparece como uma categoria demasiado geral para compreender 142

Auschwitz. O carácter único do extermínio dos judeus da Europa não pode ser explicado por um conceito que foi também aplicado à Itália de Mussolini, à Espanha de Franco, ao Portugal de Salazar, à Áustria de Dollfuss, à Roménia de Antonescu, etc. A noção de fascismo, escreve Dan Diner numa fórmula categórica, «não permite chegar ao núcleo de Auschwitz»28. O eclipse do conceito de fascismo aparece assim como o epílogo de um longo caminho da historiografia alemã que desemboca numa visão do passado no centro da qual se inscreve, doravante, a Shoah, o «ponto fixo» do sistema nazi, caracterizado por uma irredutível «unicidade» (Einzigartigkeit). A forma empenhadíssima como alguns historiadores se desembaraçaram do conceito de fascismo aparece quase como uma espécie de nihilismo compensatório, através do qual tentaram apagar o longo período durante o qual os seus precursores foram incapazes de pensar e de investigar o genocídio dos judeus. Surge então um problema grave: a noção de totalitarismo, que conheceu um renascimento espectacular no decurso da última década, na Alemanha como no resto da Europa, será a mais apta para analisar uma tal singularidade? O deslocamento do comparatismo histórico da ligação entre o fascismo italiano e o nazismo para a ligação entre o nazismo e o comunismo será mais 143

clarificador para compreender a natureza do regime hitleriano e a singularidade dos seus crimes? Colocar em paralelo o «duplo passado totalitário» da Alemanha – o do Terceiro Reich e o da RDA ou, retomando a fórmula de Étienne François, o de um regime que acumulou uma montanha de cadáveres e o de um regime que acumulou uma montanha de dossiers29 – permitirá chegar a conclusões de um maior valor heurístico? É duvidoso. Não se trata de contestar o valor da noção de totalitarismo – limitada mas real – nem de recusar uma comparação entre os crimes do nazismo e os do estalinismo. O problema surge do uso que disso se faz. Por que se deverá pensar o totalitarismo e o fascismo como categorias analíticas incompatíveis e alternativas? Por que se deverá atribuir um maior alcance heurístico à comparação entre nazismo e comunismo do que à comparação entre fascismo e nazismo? Não se trata também de negar a singularidade histórica dos crimes nazis, uma vez que o extermínio industrial dos judeus da Europa é uma característica singular do nacional-socialismo. Mas, se as câmaras de gás não têm equivalente fora do Terceiro Reich, as suas premissas históricas – o antissemitismo, o racismo, o colonialismo, o contra-iluminismo, a modernidade técnica e industrial – estão largamente presentes, em graus de intensidade distintos, no conjunto do mundo ocidental. Por outro lado, a singularidade dos crimes 144

do nazismo não exclui a sua pertença, apesar de todas as suas particularidades, a uma família política mais vasta, a dos fascismos europeus. Ora, é precisamente esta hipótese que, desde o Historikerstreit até aos mais recentes debates em torno do Livro Negro do Comunismo (cujo impacto na Alemanha não foi negligenciável), praticamente se eclipsou. Assistimos assim, apesar dos avanços incontestáveis da investigação, ao regresso de um «consenso antitotalitário» que, para pegar nas palavras de Jürgen Habermas a propósito da Alemanha de antes de 1968, supunha um a priori «anti-antifascista»30. Resumindo, o eclipse do fascismo surge do encontro entre duas tendências: por um lado, o consenso antitotalitário liberal e «anti-antifascista», por outro, a emergência de uma consciência histórica fundada sobre a memória da Shoah e o reconhecimento da sua singularidade. Em Itália, estas tendências foram impulsionadas por certas correntes da historiografia que, fortemente amplificadas pelos média, teorizaram uma clivagem radical entre fascismo e nazismo a fim de reabilitar o fascismo e criminalizar o antifascismo. O fascismo italiano, afirmava Renzo De Felice, durante uma entrevista que suscitou enorme alvoroço, fica fora do «cone de sombra do Holocausto»31. Este fenómeno perverso – o reconhecimento da singularidade do judeucídio que actua na Alemanha como vector de formação de uma 145

consciência histórica e em Itália como pretexto de uma reabilitação do fascismo – é uma fonte permanente de mal-entendidos e ambiguidades. Os riscos de tais tendências são os que Martin Broszat tinha denunciado no início da sua correspondência com Saul Friedländer, e que este último parece hoje em dia admitir, pelo menos em parte: um «isolamento» do passado nazi que impede captar os seus vínculos com os outros fascismos europeus e, de uma maneira mais geral, com o modelo civilizacional do mundo ocidental. Reconhecer esses vínculos não significa «normalizar» ou reabilitar o nazismo, mas antes «desnormalizar» a civilização que é a nossa e colocar em causa a história da Europa. Se existe um Sonderweg alemão, este não explica as origens do nazismo mas apenas o seu resultado32. Dito de outro modo, a singularidade da Alemanha nazi deve-se à sua síntese, que não se realizou nos outros países, entre vários elementos – antissemitismo, fascismo, Estado totalitário, modernidade técnica, racismo, eugenismo, imperialismo, contra-revolução, anticomunismo – aparecidos no conjunto da Europa no fim do século XIX e que com a Primeira Guerra Mundial foram fortemente disseminados à escala continental. Este «isolamento» arrisca-se a afastar a historiografia alemã das principais correntes da investigação internacional, onde a legitimidade do conceito de fascismo 146

como «tipo ideal» é geralmente admitida. São inumeráveis os historiadores, nos anos mais recentes, que fizeram e fazem uso dele. Além disso, a rejeição da noção de fascismo (e por consequência de antifascismo) não faz mais do que recolocar a eterna questão das relações entre história e memória. Abre um hiato radical entre a historicização actual do nacional-socialismo e a percepção que tinham os seus contemporâneos, quando o fascismo, antes de ser uma categoria analítica, era um perigo contra o qual se tinha de lutar e quando o antifascismo, antes de se tornar uma ideologia de Estado, constituía um ethos partilhado pela Europa democrática e, nesse contexto, pela cultura alemã no exílio.

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VI Revisão e revisionismo Metamorfoses de um conceito «Revisionismo» é uma palavra camaleão que assumiu ao longo do século XX significados diferentes e contraditórios, prestando-se a usos múltiplos e suscitando muitas vezes mal-entendidos. As coisas complicaram-se ainda mais por ter sido apropriada pela seita internacional que nega a existência das câmaras de gás e o genocídio dos judeus da Europa em geral1. Os negacionistas tentaram apresentar-se como os porta-vozes de uma escola histórica «revisionista» oposta a uma outra escola, que eles classificam como «exterminacionista», e que inclui, bem entendido, o conjunto dos estudos históricos dignos desse nome, seja qual for a sua corrente, 149

consagrados ao genocídio judaico. A fim de defenderam as suas teses, os negacionistas lançaram em 1987 uma revista intitulada Annales d’histoire révisionniste que se tornou depois Révue d’histoire révisionniste. É inútil acrescentar que esse movimento – cuja verdadeira intenção Pierre Vidal-Naquet pôs a nú ao rebaptiza-los «os assassinos da memória»2 – nunca atingiu o seu objectivo, uma vez que não obteve o menor reconhecimento no seio da historiografia nem foi aceite no debate público. Ao invés – este facto foi muitas vezes sublinhado –, o seu aparecimento teve o efeito de estimular a investigação que no decorrer dos últimos anos alcançou um conhecimento muito mais preciso e detalhado dos meios e das modalidades do processo de extermínio dos judeus. Os negacionistas, contudo, conseguiram contaminar a linguagem e criar uma confusão considerável em torno do conceito de revisionismo. François Bédarida recordava-o há uma dezena de anos, quando escreveu que os negadores dos judeucídio, ao se apropriarem desse termo, tinham praticado «uma verdadeira usurpação». Tinham tomado uma palavra existente que traduzia «uma atitude mais que honorável, uma atitude à vez legítima e necessária, para lhe darem uma respeitabilidade enganadora e falsa»3. É agora indispensável, quando utilizamos o termo, explicitar o seu significado, como o 150

fez por exemplo Pierre Vidal-Naquet, que assinala no início das suas «Teses sobre o revisionismo» (1985) a sua escolha deliberada em o utilizar numa acepção restritiva, limitada à «doutrina segundo a qual o genocídio praticado pela Alemanha nazi contra os judeus e os ciganos não existiu e apenas releva do mito, da fabulação e da fraude». Vidal-Naquet prossegue sublinhando os diferentes sentidos que a palavra pode veicular segundo os contextos, relembrando que também ela conheceu os seus títulos de nobreza. Em França, escreve, «os primeiros revisionistas modernos» foram os partidários da revisão do processo que tinha terminado com a condenação do capitão Alfred Dreyfus4. Em linhas gerais, a história do revisionismo – negacionismo excluído – poderia reduzir-se a três momentos principais: uma controvérsia marxista, um cisma no interior do mundo comunista e também, no sentido mais lato, uma série de debates historiográficos posteriores à Segunda Guerra Mundial. Primeiro, o revisionismo clássico, pelo qual a palavra foi introduzida no vocabulário da cultura política moderna: trata-se evidentemente da Bernsteindebatte, que despoletou no fim do século XIX no seio da social-democracia alemã e se estendeu imediatamente ao conjunto do movimento socialista internacional. O antigo secretário de Engels, Eduard Bernstein, teorizava a necessidade de «rever» 151

certas concepções de Marx, como a polarização crescente entre as classes na sociedade burguesa ou, ainda, a tendência para o colapso do capitalismo devido às suas crises internas. Destas revisões teóricas, Bernstein tirava conclusões políticas que visavam harmonizar a teoria da social-democracia alemã com a sua prática, a de um grande partido de massas que tinha abandonado a via revolucionária e se encaminhava para uma política reformista5. O «revisionismo» foi vigorosamente criticado por Kautsky, Rosa Luxemburgo e Lenine, mas ninguém pensou em algum momento expulsar Bernstein do SPD e a querela, por vezes de um alto nível teórico, permaneceu sempre dentro dos limites do debate de ideias. Foi seguida de outras «revisões» – por Rodolfo Mondolfo em Itália, Georges Sorel em França e Henri de Man na Bélgica – que levaram alguns dos seus promotores do socialismo para o fascismo6. O termo começava assim a estender-se para lá dos meios marxistas. Nos anos 1930, qualificava-se de «revisionista» Vladimir Jabotinsky, que rejeitou a via diplomática defendida pelos fundadores do sionismo político (Herzl, Nordau) e que projectava a criação de um Estado judaico na Palestina através do uso da força7. A controvérsia socialista assumirá uma conotação dogmática, quase religiosa, após o nascimento da União Soviética e a transformação do marxismo em ideologia 152

de Estado, com os seus dogmas e os seus guardiães da ortodoxia. A palavra «revisionista» torna-se então um epíteto infamante, sinónimo de «traição». Foi amplamente utilizada durante o cisma jugoslavo em 1948 e sobretudo durante o conflito sino-soviético, no início dos anos 1960. Por vezes, tornou-se um adjectivo associado a um substantivo mais insidioso, como na fórmula «hiena revisionista», que os ideólogos do Cominform gostavam de aplicar ao marechal Tito. As controvérsias em torno de Bernstein, Jabotinsky e Tito porém não diziam respeito – pelo menos directamente – à escrita da história. O terceiro campo de aplicação da noção de revisionismo, pelo contrário, diz respeito à historiografia do pós-guerra. Várias tentativas que visavam renovar a interpretação de uma época ou de um acontecimento, colocar em causa a visão dominante, foram qualificadas de «revisões». Essa palavra visava sublinhar o seu carácter inovador, e não deslegitimá-las, e os seus representantes foram sempre reconhecidos como membros de corpo inteiro da comunidade dos historiadores. Entre as «revisões» mais marcantes, poderíamos relembrar a que foi impulsionada no início dos anos 1960 por Fritz Fisher, que renovava o debate sobre as origens da Primeira Guerra Mundial (relembrando, contra a tendência dominante no seio da historiografia alemã, as visões pan-germa153

nistas do estado-maior prussiano)8. Depois, a dos politólogos americanos que, como Gabriel Kolko, puseram em causam a tese então corrente das origens soviéticas da Guerra Fria9. Mais recentemente, tivemos a «revisão» de um historiador como Gar Alperowicz a respeito da bomba atómica: a escolha americana de lançar as bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki em Agosto de 1945 foi, explicou, mais uma tentativa de afirmar uma superioridade estratégica dos Estados Unidos da América sobre a União Soviética – fazendo pesar sobre a cena mundial o seu monopólio da arma nuclear – do que de colocar um fim à guerra poupando mais vidas humanas, como argumentava o presidente Truman10. Nos Estados Unidos, qualificam-se ainda hoje de «revisionistas» os sovietólogos como Moshe Lewin, Arch Getty e Sheila Fitzpatrick que, desde os anos 1970, se distanciaram das abordagens anticomunistas da época da Guerra Fria e começaram a estudar, para lá da fachada totalitária do regime, a história social do mundo russo e soviético11. Mas numerosas «revisões» apareceram também na Europa. Por exemplo em Itália, no início dos anos 1960, num debate historiográfico sobre o Risorgimento, onde «revisionismo» se refere às teses de Gramsci e Salvemini acerca dos limites do processo de unificação nacional dirigido pela monarquia piemontesa12. Alguns anos mais tarde, François Furet procede à 154

«revisão» da interpretação jacobino-marxista da Revolução Francesa – interpretação a que chama «vulgata populista-leninista» – e orienta-se para uma releitura liberal da ruptura de 1789, apoiado em Tocqueville e Augustin Cochin, suscitando um vasto e polémico debate internacional13. Aquando do bicentenário da Revolução, esta tese antes «revisionista» impôs-se como a leitura dominante. A última «revisão» importante, já mencionada em capítulos anteriores, é a dos «novos historiadores» israelitas. Rompendo com certos mitos persistentes, Benny Morris e Illan Pappé apresentaram o conflito de 1948 em toda a sua complexidade, como uma guerra simultaneamente de auto-defesa e de depuração étnica14. Uma guerra em que o Estado hebraico que tinha acabado de ser proclamado lutava, por um lado, pela sua sobrevivência, e procedia, por outro lado, à expulsão de várias centenas de milhares de palestinos. Aqui está um exemplo de «revisão» nos antípodas de qualquer objectivo apologético, e que se esforça, pelo contrário, em pôr fim a um longo período de amnésia colectiva e de ocultação oficial do passado.

A palavra e a coisa Estas «revisões» historiográficas convidam-nos a precisar algumas questões de método. A primeira diz respei155

to ao uso das fontes. Se o relato histórico é uma reconstrução dos acontecimentos do passado «tal como verdadeiramente aconteceu», segundo a fórmula canónica de Ranke (wie es eigentlich gewesen) – definição certamente simplificadora mas nem por isso falsa –, então algumas «revisões» inscrever-se-ão de forma natural no seu desenvolvimento. A descoberta de novas fontes, a exploração de arquivos e o enriquecimento dos testemunhos podem fazer incidir uma nova luz sobre acontecimentos que se julgava serem perfeitamente conhecidos ou de que tínhamos um conhecimento erróneo. A revisão em baixa do número de vítimas do gulag na URSS – estimado em dez milhões por Robert Conquest, reduzido a um milhão e meio pelas pesquisas mais recentes15 – foi o resultado de uma análise escrupulosa das fontes e do acesso a uma documentação essencial até então inacessível. Outras «revisões» dependem de uma mudança de paradigma interpretativo. Por vezes, a introdução de um novo paradigma pode estar ligado a fontes até então ignoradas, como sabem todos aqueles – ou melhor, aquelas – que começaram a elaborar uma história das mulheres (necessariamente revisionista, uma vez que implica uma mutação do olhar, dos objectos e das fontes na forma de fazer a história). A história escreve-se sempre no presente e o questionamento que orienta a 156

nossa exploração do passado modifica-se segundo as épocas, as gerações, as transformações da sociedade e os percursos da memória colectiva. Se a nossa visão da Revolução Francesa ou da Revolução Russa já não é a mesma de há cinquenta anos ou de há um século, tal não resulta apenas da descoberta de fontes inéditas, mas de uma perspectivação histórica nova, própria da nossa época. Não é difícil reconhecer que a leitura romântica da Revolução Francesa proposta por Michelet, a leitura marxista de Albert Soboul e a leitura liberal de Furet pertencem a distintos contextos históricos, culturais e políticos. Nessa acepção, as «revisões» da história são legítimas e mesmo necessárias. No entanto, algumas revisões – aquelas que qualificamos habitualmente como «revisionismo» – implicam uma viragem ético-política na nossa forma de olhar o passado. Correspondem ao que Jürgen Habermas chamou, durante o Historikerstreit, a emergência de «tendências apologéticas» na historiografia16. Utilizado nesse sentido, o conceito de «revisionismo» assume necessariamente uma conotação negativa. Não é portanto surpreendente que certos historiadores acusados de «revisionismo» tenham tentado justificar que a «revisão» faz parte da forma de trabalhar do historiador e que, por definição, este último seria sempre «revisionista». Na sua correspondência com François Furet, 157

Ernst Nolte sublinhou que «as «revisões» são o pão de cada dia de que o trabalho científico se alimenta»17. É bem evidente que nunca ninguém se queixou dos historiadores «revisionistas» por terem usado arquivos inexplorados ou por terem baseado os seus trabalhos sobre uma documentação nova. O que lhes é apontado é o objectivo político subjacente à sua releitura do passado. Um exemplo clássico de uma tal revisão é justamente a de Ernst Nolte. Em Der europäische Bürgerkrieg apresenta os crimes nazis como a simples «cópia» de uma «barbárie asiática» introduzida pelo bolchevismo em 1917. Ameaçada de aniquilação, a Alemanha reagiu exterminando os judeus, construtores do regime bolchevique, cujos crimes constituem para Nolte o «precedente lógico e factual» dos crimes nazis18. A ausência total de distância crítica em relação às suas fontes – a literatura nazi da época – justifica algumas perplexidades, como bem sublinhou Hans-Ulrich Wehler19, mas o problema fundamental não resulta do manuseamento das fontes. É evidente que o resultado da historicização do nazismo proposta por Nolte é uma releitura do passado em que a Alemanha já não ocupa a posição de opressor mas a de vítima. E as suas vítimas reais, a começar pelos judeus, são considerados, no melhor dos casos, como «danos colaterais», e, no pior, como a fonte do mal, já que responsáveis pela Revolução Bolchevique20. 158

Quanto a Renzo De Felice, a sua pesquisa monumental sobre a Itália fascista produziu numerosas «revisões» que são hoje aquisições historiográficas em regra aceites, como por exemplo o reconhecimento da dimensão «revolucionária» do primeiro fascismo, do seu carácter modernizador ou ainda do «consenso» obtido pelo regime de Mussolini no seio da sociedade italiana, sobretudo durante a guerra da Etiópia21. Bem mais discutível, pelo contrário, é a sua interpretação da guerra civil italiana, entre 1943 e 1945, como sendo a consequência da escolha antinacional de uma minoria de resistentes, a maior parte deles comunistas. Ou ainda, como já vimos, a sua concepção do fascismo italiano como um regime completamente distinto, pelas suas raízes, a sua ideologia e as suas metas, do nazismo, com o qual teria estabelecido uma aliança contra-natura em 1940. Ou, por fim, a forma como De Felice faz de Mussolini um «patriota» que teria escolhido sacrificar-se ao fundar a República de Saló, a fim de poupar a Itália a um destino comparável ao da Polónia. Trata-se aqui de uma releitura apologética do fascismo fundada sobre a reabilitação de Mussolini. Se lhe acrescentarmos que as suas teses são desenvolvidas num livro – Il rosso e il nero22 – cuja publicação coincide com o advento do primeiro governo de Berlusconi, que incluía pela primeira vez desde o fim da guerra uma partido «pós-fascista» her159

deiro da República de Saló, esta revisão histórica aparece como suporte intelectual de um projecto político restaurador. Somos quase tentados a opor a revisão histórica francesa à de De Felice e dos seus discípulos. Em França, no trilho de Zeev Sternhell e de Robert J. Paxton (ums israelita e um americano), os historiadores procederam a uma «revisão» que permitiu reconhecer as raízes autóctones do regime de Vichy, o seu carácter autoritário ou mesmo fascista, a parte activa que tomou no colaboracionismo e a sua cumplicidade com o genocídio dos judeus23. Em Itália, em oposição, sob o impulso do último De Felice, apareceu uma tendência historiográfica que fez da reabilitação do fascismo o seu objectivo declarado. As revisões que acabo de mencionar – independentemente do seu objectivo e valor – ultrapassam as fronteiras da historiografia enquanto disciplina científica para tocarem um campo mais vasto, o da relação que cada país estabelece com o seu passado, aquilo que Habermas definiu, através de uma fórmula notável, como o uso público da história24. Dito de outra maneira, essas revisões questionam, para lá de uma interpretação dominante, uma consciência histórica partilhada, uma responsabilidade colectiva a respeito do passado. Tocam sempre acontecimentos fundacionais – a Revolução Francesa, a 160

Revolução Russa, o fascismo, o nazismo, a guerra israelo-árabe de 1948, etc. – e a sua releitura do passado tem sobretudo a ver, muito para lá da interpretação de uma determinada época, com a nossa forma de ver o mundo em que vivemos e a nossa identidade no presente. Existem portanto revisões de natureza diferente: algumas são fecundas, outras discutíveis, outras, enfim, profundamente nefastas. Fecunda é a revisão dos «novos historiadores» israelitas que reconhece uma injustiça até agora negada, que se junta à memória palestina e lança as bases para um diálogo israelo-palestino. Discutível é a revisão de Furet que acaba, em O Passado de uma Ilusão, por pôr radicalmente em causa toda a tradição revolucionária – fonte, a seus olhos, dos totalitarismos modernos – e por fazer uma apologia melancólica do liberalismo como horizonte inultrapassável da história25. Nefastas, por fim, são as revisões de Nolte e De Felice cujo objectivo – ou pelo menos a consequência – é o de recuperar a imagem do fascismo e do nazismo. Se algumas revisões da história devem ser combatidas, podemos interrogar-nos sobre a utilidade de as catalogar numa mesma categoria negativa – o «revisionismo» – que relembra o «inferno» onde antigamente se guardava a literatura pornográfica na Biblioteca Nacional. Transformada em combate «anti-revisionista», a crítica das teses de Nolte e de De Felice arrisca-se 161

a conhecer uma deriva semelhante à da controvérsia marxista sobre o revisionismo evocada anteriormente, ou seja, a passagem de um debate de ideias a uma prática inquisitória, à excomunhão de todos aqueles que se afastam de uma ortodoxia predefinida, de um cânone normativo. Isto é, falar de «revisionismo» remete sempre para uma história teologizada. O antifascismo transformado em ideologia de Estado nos países do bloco soviético, nomeadamente na RDA, deu a longo prazo resultados desastrosos, comprometendo finalmente a sua própria legitimidade. Sem chegar às mesmas proporções, a retórica antifascista consensual que reinou em Itália durante quarenta anos teve consequências lesivas para a investigação histórica. A obra de Claudio Pavone – historiador de esquerda e antigo resistente – que interpreta a Resistência não apenas como uma luta de libertação nacional mas também como uma guerra de classe, e sobretudo como uma guerra civil, data apenas de 199026. Em poucas palavras, o antifascismo institucionalizado e transformado em epopeia nacional não foi um antídoto eficaz contra a reabilitação do fascismo. Deve evitar-se que algo análogo se produza com a Shoah, doravante tornada, como vimos, numa «religião civil» do Ocidente, com as consequências positivas mas também com todos os perigos que daí resultam. 162

As tendências apologéticas na historiografia do fascismo e do nazismo devem ser combatidas mas não contrapondo-lhes uma visão normativa da história. É por isso que as leis contra o negacionismo podem revelar-se perigosas. Se o negacionismo deve ser combatido e isolado em todas as suas formas – o de Robert Faurisson e o de David Irving, tal como o de Bernard Lewis, aparentemente mais respeitável27 –, vários historiadores (entre os quais me incluo) expressaram as suas dúvidas sobre a oportunidade de o sancionar pela lei, o que levaria a instituir uma verdade histórica oficial protegida pelos tribunais, com o efeito perverso de transformar os assassinos da memória em vítimas de uma censura, defensores da liberdade de expressão. Dito de outro modo, se aceitarmos a noção de «revisionismo» teremos de admitir o princípio de uma história oficial. Krzysztof Pomian tem razão ao afirmar que não deveriam existir nem historiadores oficiais nem historiadores revisionistas, mas apenas historiadores críticos28. «Revisionismo» é uma palavra herdada de um século onde o engajamento dos intelectuais passava pelo seu compromisso ideológico e partisan. Acreditou-se, na altura, que vestir um uniforme ideológico era o melhor meio para defender valores. O preço dessa escolha foi, demasiadas vezes, a demissão dos intelectuais da sua função crítica. Hoje tal situação já não tem cabimento. Incorporada 163

na linguagem e de uso corrente nas polémicas, a noção de «revisionismo» continua a ser muito problemática e frequentemente nefasta. Proponho que não seja utilizada, a não ser para designar uma controvérsia datada, há mais de um século levantada por Bernstein.

164

Nota bibliográfica e agradecimentos Um primeiro esboço deste ensaio foi apresentado na Universidade de La Plata, na Argentina, na Primavera de 2002, durante um colóquio organizado pela Comisión Provincial por la Memoria, instituição que reúne os arquivos da ditadura militar dos anos 1975-1983 e constitui um lugar essencial para o estudo da memória dos «desaparecidos» na região de Buenos Aires. Uma versão italiana surgiu com o título «Storia e memoria. Gli usi politici del passato», na revista Novecento. Per una storia del tempo presente, 2004, n.º 10. O parágrafo do capítulo IV consagrado ao comunismo foi retirado de uma conferência proferida em Berlim na Primavera de 2001, depois publicada em Jour fixe initiative berlin (ed.) (2002), 165

Geschichte nach Auschwitz, Mϋnster: UNRAST. O capítulo V é uma comunicação realizada numa jornada de estudos sobre o tema «Fascismo, nazismo, comunismo: debates e controvérsia historiográficas na Alemanha e em Itália», organizada sob a direcção de Bruno Groppo, no Centro de História Social do Século XX do CNRS, em 2001. Uma primeira versão foi publicada, com as actas deste encontro, na revista Matériaux pour l’Histoire de notre temps, 2002, n.º 68, e depois em espanhol (Argentina) na revista Políticas de la Memoria, 2003-2004, n.º4. O último capítulo é a versão revista de uma comunicação apresentada num colóquio dirigido por Catherine Coquio na Universidade de Paris IV-Sorbonne, em 2002, e foi publicada sob o mesmo título no volume das actas: Coquio, Catherine (ed.) (2003), L’Histoire trouée. Négations et témoignage, Nantes: L’Atalante. Foi em seguida traduzido para espanhol na revista de Valência Pasajes, 2004, n.º 14. Todos estes textos foram completamente revistos neste ensaio. Gostaria então de agradecer aos amigos que inicialmente me encorajaram a escrevê-los: Patricia Flier, Elfi Mϋller, Bruno Groppo e Catherine Coquio. Por fim, e sobretudo, gostaria de agradecer a Eric Hazan, amigo e cúmplice na La Fabrique: tanto a forma como o conteúdo deste pequeno livro devem muito à sua leitura crítica.

Paris, Junho de 2005 166

A unipop agradece à Embaixada de França em Portugal o apoio à deslocação de Enzo Traverso a Lisboa no contexto do lançamento deste livro. A unipop agradece igualmente a colaboração, para o mesmo efeito, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e do Centro Mário Dionísio. 167

168

Notas Introdução

1. Sills, David L. (ed.) (1968), International Encyclopedia of the Social Sciences, 7 vols., Nova Iorque: Macmillan; Le Goff, J. e Nora, P. (eds.) (1974), Faire de l’histoire, Paris: Gallimard; Williams, Raymond (1976), Keywords. A Vocabulary of Culture and Society, Londres: Fontana. 2. Cf. Klein, Kerwin Lee (2000), «On the Emergence of Memory in Historical Discourse», Representations, n.º 69, p. 129. 3. Reichel, Peter (1998), L’Allemagne et sa mémoire, Paris: Odile Jacob, p. 13. 4. Maier, Charles (1993), «A Surfeit of Memory? Reflections on History, Melancholy and Denial», History & Memory, 5, pp. 136-151; Robin, Régine (2003), La Mémoire saturée, Paris: Stock. 5. Dumoulin, Olivier (2003), Le Rôle social de l’historien. De la chaire au prétoire, Paris: Albin Michel, p. 343. 6. Hobsbawm, Eric (1983), «Introduction: Inventing Traditions», em Hobsbawm, Eric e Ranger, T. (eds.) (2005), The Invention of Tradition, Cambridge: Cambridge University Press, 169

p. 9. [Ed. port.: A Invenção das Tradições, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.] 7. Sobre o conceito de «religião civil», cf. sobretudo Gentile, Emilio (2005), Les Religions de la politique. Entre démocraties et totalitarismes, Paris: Seuil, uma obra largamente inspirada pelos trabalhos de George L. Mosse. 8. Sobre este tema, cf. sobretudo Gibelli, Antonio (1990), L’officina della guerra. La Grande Guerra e le trasformazioni del mondo mentale, Turim: Bollati Boringhieri. 9. Benjamin, Walter (2000), «Le conteur. Réflexions sur l’œuvre de Nicolas Leskov», em Benjamin, Walter, Œuvres III, Paris: Gallimard, p. 116. 10. Cf. a peça de Pirandello, Come tu me vuoi e Leonardo Sciascia, Il teatro della memoria. La sentenza memorabile, Milão: Adelphi, 2004. 11. Thompson, E. P. (2004), Temps, discipline du travail et capitalisme industriel, prefácio de Alain Maillard, Paris: La Fabrique. 12. Cf. Agamben, Giorgio (2003), Enfance et histoire. Destruction de l’expérience et origine de l’histoire, Paris: Rivages, p. 25. [Ed. port.: Infância e História: destruição da experiência da história, Belo Horizonte: UFMG, 2005.] 13. Koselleck, Reinhart (1997), «Les monuments aux morts, lieux de fondation de l’identité des survivants», L’Expérience de l’histoire, «Hautes Études», Paris: Gallimard-Seuil, pp. 140, 151. 14. Entre os inúmeros contributos para este debate historiográfico, cf. a síntese de Noiriel, Gérard (1996), Sur la «crise» de l’histoire, Paris: Belin. 15. Wieviorka, Annette (1998), L’Ère du témoin, Paris: Plon. 16. Todorov, Tzvetan (1995), Les abus de la mémoire, Paris: Arléa. 17. Cf. nomeadamente, a propósito da primeira guerra do Golfo, Diner, Dan (1996), Krieg der Erinnerung und die Ordnung der Welt, Berlim: Rothbuch Verlag. 170

18. Segev, Tom (1993), Le Septième Million. Les Israéliens et le génocide, Paris: Liana Lévi, p. 464. 19. Cf. Libération de 2 de Abril de 2002. 20. Cf. Bédarida, Catherine, «Le faux pas du romancier José Saramago», Le Monde de 29 de Março de 2002.

Capítulo I

1. Ricœur, Paul (2000), La Mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris:

Seuil, p. 106. Uma posição análoga tinha já sido defendida com convicção por Hutton, Patrick H. (1993), History as an Art of Memory, Hanover, N.H.: University Press of New England. 2. Oakeshott, Michael (1962), Rationalism in Politics and Other Essays, Londres: Meuthen, p. 198. 3. Benjamin, Walter, «Zum Bilde Prousts», Illuminationen, p. 336 (trad. fr. «L’image proustienne», Œuvres II, Paris: Galimard, p 136). 4. Id, ibid., p. 345 (trad. fr., p. 150). 5. Benjamin, Walter (1983), Das Passagen-Werk, Frankfurt/M: Suhrkamp, Bd. I, p. 490 (trad. fr. Paris, capital du XIXe siècle, Paris: Éditions du Cerf, 1989, p. 405). 6. Id., ibid., p. 589 (trad. fr., p. 489). 7. Hartog, François (2003), Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris: Seuil, p. 126. 8. Retomo aqui uma discussão já apresentada no meu ensaio «La singularité d’Auschwitz. Hypothèses, problèmes et dérives de la recherche historique», em Coquio, Cathérine (ed.) (1999), Parler des camps, penser les génocides, Paris: Albin Michel, pp. 128-140. 9. Kracauer, Siegfried (1977), «Die Photographie», Das Ornament der Masse. Essays, Frankfurt/M: Suhrkamp, p. 32, e, do mesmo autor, Theory of Film, Nova Iorque: Oxford University Press, 1960, p. 14. 171

10. Cf. LaCapra, Dominick (1998), «History and Memory:

In the Shadow of the Holocaust», History and Memory After Auschwitz, Ithaca: Cornell University Press, p. 20. 11. Chaumont, Jean-Michel (1994), «Connaissance ou reconnassance? Les enjeux du débat sur la singularité de la Shoah», Le Débat, nº 82, p. 87. 12. Katz, Steven (1996), «The Uniqueness of the Holocaust: The Historical Dimension», em Rosenbaum, Alan S. (ed.) (1996), Is the Holocaust Unique? Perspectives on Comparative Genocide, Boulder: Westview Press, pp. 19-38. 13. Hobsbawm, Eric (1997), «Identity History is not Enough», On History, Londres: Weidenfeld & Nicolson, p. 277. [Ed. port.: Sobre a História, Lisboa: Relógio d'Água, 2010.] 14. Hegel, G. W. F. (1965), La Raison dans l’Histoire. Introduction à la philosophie de l’histoire, Paris, Éditions 10/18, p. 193. [Ed. port.: A Razão na História, Lisboa: Edições 70, 1991.] 15. Id., ibid., pp. 193-194. 16. Hegel, G .W. F. (1980), «Phänomenologie des Geistes», Gesammelte Werke, Bd. 9, Hamburgo: Felix Meiner Verlag, p. 433 (trad. fr. Phénoménologie de l’Esprit, Hyppolite, Jean (ed.) (1941) Paris: Aubier Montaigne, t. II, pp. 311-312) [Ed. Port.: Fenomenologia do Espírito, Petrópolis: Vozes, 2008]. Ver a esse respeito os comentários de d’Hondt, Jacques (1987), Hegel. Philosophe de l’histoire vivante, Paris: Presses Universitaires de France, pp. 349-450. 17. Hegel (1965), op. cit., p. 195. 18. Cf. Guha, Ranajit (2002), History at the Limit of World-History, Nova Iorque: Columbia University Press, particularmente o capítulo III. 19. Benjamin, Walter, «Über den Begriff der Geschichte», Illuminationen, p. 254 (trad. fr. Œuvres III, op. cit., p. 432). 20. Furet, François (1963), «Pour une définition des classe inférieures à l’époque moderne», Annales ESC, XVIII, n.º 3, p. 459. Esta passagem é criticada por Ginzburg, Carlo (1980), Le fromage et les Vers. L’univers d’un meunier du XVIe siècle, Paris: 172

Aubier, p. 15. [Ed. port.: O Queijo e os Vermes, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.] 21. Thompson, E. P. (1988), La Formation de la classe ouvrière anglaise, Paris: Seuil, EHESS [Ed. port.: Formação da Classe Operária Inglesa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987]; Foucault, Michel (1964), Histoire de la folie à l’âge classique, Paris: Gallimard [Ed. port.: História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo: Perspectiva, 1978]; Ginzburg (1980), op. cit. 22. Perrot, Michelle (2001), Les Femmes ou les silences de l’histoire, Paris: Flammarion. 23. Guha, Ranajit (1983), «The Prose of Counter-Insurgency», Subaltern Studies, n.º 2, Nova Deli: Oxford University Press, pp. 1-42, e também, do mesmo autor, «The small Voice of History», ibid., n.º 9, 1996, pp. 1-12. 24. Halbwachs, Maurice (1997), La Mémoire collective, Paris: Albin Michel, p. 130 [Ed. port.: A Memória Coletiva, São Paulo: Centauro, 2005]. Sobre Halbwachs, cf. Hutton, Patrick H. (1993), History as an Art of Memory, Hanover e Londres: University Press of New England, cap. IV, pp. 73-90. 25. Halbwachs, Maurice (1994), Les Cadres sociaux de la mémoire (1925), Paris: Albin Michel. 26. Halbwachs (1997), op. cit., p. 136. 27. Id., ibid., p. 157. Ver sobretudo Bergson, Henri (1959), La Perception du changement, Paris: Presses Universitaires de France. 28. Halbwachs (1997), op. cit., p. 161. 29. Yerushalmi, Yosef H. (1982), Zachor. Jewish History and Jewish Memory, Seattle: University of Washington Press (trad. fr. Zachor. Histoire juive et mémoire juive, Paris, La Découverte, 1984, pp. 101, 110-111, 118). 30. Nora, Pierre (1984), «Entre histoire et mémoire. La problématique des lieux», em Nora, Pierre (ed.) (1984), Les Lieux de mémoire. I. La République, Paris: Gallimard, p. xix. Para uma análise interessante dessa abordagem, colocada em paralelo 173

com a oposição de Lévi-Strauss entre sociedades «quentes» e sociedades «frias», cf. LaCapra, Dominick (1998), «History and Memory: in the Shadow of the Holocaust», History and Memory After Auschwitz, op. cit., pp. 18-22. 31. Anderson, Perry (2005), La Pensée tiède, Paris: Seuil, p. 53. 32. Said, Edward (2003), Freud and the Non-European, Londres: Verso [Ed. port.: Freud e os Não Europeus, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004]. A definição de arqueologia como uma «religião nacional» é desenvolvida por Silberman, Neil Asher (2001), «Structurer le passé. Les Israéliens, les Palestiniens et l’autorité symbolique des monuments archéologiques», em Hartog, François e Revel, Jacques (eds.) (2001), Les Usages politiques du passé, Paris: Éditions de l’EHESS. 33. Levi, Primo (1986), I sommersi e i salvati, Turim: Einaudi (trad. fr. Les Naufragés et les Rescapés, Paris: Gallimard, 1989). 34. Vidal-Naquet, Pierre (1995), Mémoires, I, La brisure et l’attente 1930-1955, Paris: Seuil-La Découverte, p. 12. 35. Broszat, Martin e Friedländer, Saul (1988), «Um die ‘Historisierung des National-sozialismus’. EIn Briefwechsel», Vierteljahreshefte fur Zeitgeschichte, n.º 36, (trad. fr. «Sur l’historisation du national-socialisme. Échange de lettres», Bulletin trimestriel de la Fondation Auschwitz, 1990, n.º 24, pp. 43-86). 36. Id., ibid., p. 48. 37. Cf. Berg, Nicolas (2003), Der Holocaust und die westdeutschen Historiker. Erforschung und Erinnerung, Göttingen: Wallstein, pp. 420-424, 613-615. 38. Cf. Herbert, Ulrich (2003), «Deutsche und jüdische Geschichtsschreibung über den Holocaust», em Brenner, Michael e Myers, David N. (hg.), Jüdische Geschichtsschreibung heute. Themen, Positionen, Kontroversen, Munique: C. H. Beck, pp. 247-258. 39. Sobre este assunto, cf. Sebald, W. G. (2001), Luftkrieg und Literatur, Frankfurt/M: Fischer, p. 21 (trad. fr. De la destruction comme élément de l´histoire naturelle, Arles: Actes Sud, 2004, p. 25). 174

40. Funkenstein, Amos (1989), «Collective Memory and

Historical Consciousness», History & Memory, I , n.º 1, p. 11. Cf. também, do mesmo autor, Perceptions of Jewish History, Berkeley: University of California Press, 1993, pp. 3, 6. 41. Friedländer, Saul (1992), «Trauma, Transference and ‘working through’ in Writing the History of the Shoah», History & Memory, n.º 1, pp. 39-59, e, também do mesmo autor, «History, Memory, and the Historian. Dylemmas and Responsabilities», New German Critique, 2000, n.º 80, pp. 3-15. 42. Dominick LaCapra analisou de forma muito minuciosa as vantagens potenciais deste «desassossego empático» (empathic unsettlement) na investigação crítica de um acontecimento traumático (Writing History, Writing Trauma, John Baltimore: Hopkins University Press, 2001, p. 41). Noutro ensaio, LaCapra indica duas regras básicas a que devemos dar atenção: «a "empatia" com os carrascos implica admitir que, em certas circunstâncias, quem quer que seja pode levar a cabo actos extremos, enquanto a empatia com a vítima implica um respeito e uma compaixão que não significam nem identificação nem falar no lugar dos outros» («Tropisms of Intellectual History», Rethinking History, 2004, vol. 8, n.º 4, p. 525). 43. Friedländer, Saul (1997), L’Allemagne nazie et les Juifs. I. Les années de persécution 1933-1939, Paris: Seuil. 44. Sobre os trabalhos da escola historiográfica dirigida por Martin Broszat no Institut für Zeitgeschichte de Munique, cf. Broszat, Martin (hg.) (1984), Alltagsgeschichte. Neue Perspektive oder Trivialisierung?, Munique: Oldenbourg. Uma obra desta escola que escapa a esta tendência, escrita por um historiador pertencente a uma geração posterior, é a de Peukert, Detlev (1987), Inside Nazi Germany. Conformity, Opposition and Racism in Everyday Life, Londres: Penguin Books. 45. Hillgruber, Andreas (1986), Zweierlei Untergang. Die Zerschlagung des Deutschen Reiches und das Ende des europäischen Judentums, Berlim: Siedler, pp. 24-25. 175

46. Benjamin, Walter, «Über den Begriff der Geschichte»,

Illuminationen, p. 254 (trad. fr. Œuvres III, op. cit, p. 432). 47. Kershaw, Ian (1998), Hitler. 1889-1936, Paris: Flammarion, p. 9. [Ed. port.: Hitler, uma Biografia, Lisboa: Dom Quixote, 2009.] 48. Id., ibid., p. 25. A referência implícita diz respeito a Fest, Joachim (1973), Hitler, Paris: Gallimard, 2 vol. [Ed. port.: Hitler V.2, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.] 49. LaCapra (2001), op. cit., p. 41. 50. Arendt, Hanna (1991), Eichmann à Jérusalem, Paris: Gallimard [Ed. port.: Eichmann em Jerusalém. Um Ensaio sobre a Banalidade do Mal, São Paulo: Companhia das Letras, 1999]. Para uma releitura e uma contextualização da sua obra, cf. Aschheim, Steven E. (2001), Hanna Arendt in Jerusalem, Berkeley: University of California Press. 51. Browing, Christopher (1994), Des hommes ordinaires. Le 101e Bataillon de réserve de la police allemande et la Solution finale en Pologne, prefácio de P. Vidal-Naquet, Paris: Les Belles Lettres. 52. Cf. Général Aussaresses (2001), Services spéciaux. Algérie 1955-1957, Paris: Perrin. 53. Myers, David N. (2003), «Selbstreflexion im modernen Erinnerungsdiskurs», em Brenner e Myers (hg.), op. cit., p. 66. 54. Mosse, George L. (1998), «Renzo De Felice e il revisionismo storico», Nuova Antologia, n.º 2206, p. 181. 55. Mosse, George L. (2000), Confronting History. A Memoir, Madison: The University of Wisconsin Press, p. 109. 56. De Felice, Renzo (1995), Rosso e Nero, Milão: Baldini e Castoldi, p. 114. 57. Aron, Robert (1954), Histoire de Vichy, 1940-1944, Paris: Fayard. 58. Citado em Del Boca, Angelo (1996), I gas di Mussolini. Il fascismo e la guerra d’Etiopia, Roma: Editori Riuniti, p. 75. De 176

Felice não faz referência aos massacres do exército italiano na Etiópia na sua biografia de Mussolini (Mussolini il Duce. Gli anni del consenso 1929-1936, Turim: Einaudi, 1974, cap. VI, pp. 597-756). Sobre De Felice e a guerra da Etiópia, cf. Labanca, Nicola (2000), «Il razzismo coloniale italiano», em Burgio, Alberto (ed.), Nel nome della razza. Il razzismo nella storia d’Italia 1870-1945, Bolonha: Il Mulino, particularmente pp. 158-159. 59. Estas fotografias estão reproduzidas em Del Boca (1996), op. cit, pp. 115-116. 60. Kracauer, Siegfried (1969), History. The Last Things Before the Last, Nova Iorque: Oxford University Press, p. 157. 61. Id., Ibid., p. 83. Cf. Simmel, Georg (1983), «Exkursus über den Fremden», Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung, Berlim: Dunker & Humblot, pp. 509-512 (trad. fr. Sociologie, Paris: Presses Univesitaires de France). 62. Esta fórmula foi forjada por Habermas, Jürgen (1987), «Vom öffentlichen Gebrauch der Historie», Historikerstreit, Munique: Piper, pp. 243-255 (trad. fr. «De l’usage public de l’histoire», Écrits politiques, Paris: Cerf, 1990, reedit. Paris: Champs-Flammarion, pp. 247-260). 63. Catela, Ludmila da Silva (2001), No habrá flores en la tumba del pasado. La experiencia de reconstrucción del mundo de familiares de desaparecidos, La Plata: Al Margen.

Capítulo II 1. Benjamin, Walter, «Über den Begriff der Geschichte», Illuminationen, p. 259. 2. Löwy, Michael (2001), Walter Benjamin: Avertissement d’incendie. Une lecture des thèses «Sur le concept d’histoire», Paris: Presses Universitaires de France, pp. 105-108. [Ed. port.: Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses «sobre o conceito de história, São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.] 177

3. Benjamin, Walter, «Über den Begriff der Geschichte», Illuminationen, p. 259. 4. Hobsbawm, Eric (1994), Age of Extremes. The Short XXth Century, Nova Iorque: Pantheon Books [Ed. port.: A Era dos Extremos, Lisboa: Presença, 1996]; Pudal, Bernard, Groppo, Bruno e Pennetier, Claude (eds) (2000), Le Siècle des communismes, Paris: Éditions de l'Atelier [Ed. port.: O Século dos Comunismos, Lisboa: Editorial Notícias, 2004]. 5. Poliaknov, Léon (1951), Bréviaire de la haine, Paris: Calmann-Lévy. 6. Hilberg, Raul (1985), The Destruction of European Jews, 3 vols., Nova Iorque: Holmes & Meier. 7. Rousso, Henry (1990), Le Syndrome de Vichy de 1944 à nous jours, Paris: Seuil; ver também, sobre as diferentes etapas, Ricœur (2000), op. cit., p. 582. 8. Adorno, Theodor W. (1963), «Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit?», Eingrief. Neeun kritische Modelle, Frankfurt/M: Surkamp. 9. Améry, Jean (1977), Jenseits von Schuld und Sϋn, Estugarda: Lett-Cotta, p. 120. 10. Cf. Berg, Nicolas (2003), Der Holocaust und die westdeutshen historiker. Erforshung und Erinnerrung, Gotinga: Wallstein Verlag, pp. 215-219. 11. Bloch, Ersnt (1935), Erbschaft dieser Zeit, Frankfurt/M: Suhrkamp, pp. 104-125; cf. também os ensaios de Daniel Bensaïd reunidos em La discordance des temps, Paris: Éditions de la Passion, 1995. 12. Cf. Baschet, Jérôme (2001), «L’histoire face au présent perpétuel. Quelques remarques sur la relation passé-futur», em Hartog e Revel (eds.) (2001), op. cit., p. 67. 13. Arendt (1991), op. cit.. Sobre esse processo, ver também o filme de Ronny Brauman e Eyal Sivan, Un spécialiste. 14. Hilberg, Raul (1996), The Politics of Memory, Chicago: Ivan R. Dee. 178

15. Cf. Diner, Dan (2000), «Hanna Arendt Reconsidered: über das Banale und das Böse in ihrer Holocaust-Erzählung», em Smith, Gary (ed.) (2000), Hannah Arendt Revisited. «Eichmann in Jerusale» und die Folgen, Frankfurt/M: Suhrkamp, pp. 120-135. 16. Cf. Vidal-Naquet, Pierre (1991), «En part le pouvoir d’un mot…», Les Juifs, la mémoire et le présent II, Paris, La Découverte, pp. 267-275. 17. Cf. Ternon, Yves (1983), Les Arméniens: histoire d’un génocide, Paris: Seuil, e Dadrian, Vahakan N. (1996), Histoire du génocide arménien, Paris: Stock. 18. Cf. Ferreti, Maria (1993), La memoria mutilate. La Russia ricorda, Milão: Corbacio. 19. della Loggia, Ernesto Galli (1999), La morte della patria, Bari-Roma: Laterza, Bari-Roma. 20. Cf. o texto da alocução do presidente Ciampi em Focardi, Filipo (ed.) (2005), La guerra della memoria. La Resistenza nel dibatti politico italiano dal 1945 a oggi, Bari-Roma: Laterza, pp. 333-335. A expressão «os rapazes de Saló» foi forjada pelo ex-presidente do Senado Luciano Violante, membro da coligação de centro-esquerda Olivo, durante uma alocução na Primavera de 1996 (incluída numa recolha dirigida por Focardi, pp. 285-286). Ver também a crítica feita por Antonio Tabuchi ao presidente Ciampi (pp. 335-338, trad. fr., «Italie: les fantômes du fascisme», Le Monde, 19 de Outubro de 2001). 21. Luzzato, Sergio (2004), La crisi dell’antifascismo, Turim: Einaui, p. 31. Luzzato sublinha justamente que todas as democracias modernas se fundam sobre uma «hierarquia retrospectiva da memória», ou seja, sobre escolhas que redefinem a sua identidade (p. 30). As memórias «simétricas e compatíveis», hoje reivindicadas pelo chefe de Estado e por uma larga parte da elite política, vêm precisamente colocar em causa as escolhas feitas no momento do nascimento da república. 22. Magris, Claudio, «La memoria è liberta dall’ossessione del passato», Il corriere della Sera, 10 de Fevereiro de 2005. 179

23. Cf. Rodogno, D. (2003), Il nuovo ordine mediterrâneo. Le politiche d’occupazione dell’Italia fascistas in Europa (1940-1943), Turim: Bollati Boringhieri, 2003, e Di Sante, C. (ed.) (2005), Italiani senza onore. I crimini in Jugoslavia e i processi negati (1941-1951), Verona: Ombre Corte. 24. Cf. Paloma Aguilar (1996), Memoria y olvido de la guerra civil española, Madrid: Alianza Editorial. Sobre ese tema, cf. as contribuições reunidas em Matérieux pour l’histoire de notre temps, 2003, n.º 70, consagrada a «Espagne: la memoire retrouvé (1975-2002)». 25. Cf. especialmente Casanova, Julián (ed.) (2002), Morir, matar, sobrevivir. La violencia en la dictadura de Franco, Barcelona: Crítica. 26. Muito significativo o impacto da exposição «Exilio», organizada em Madrid em Setembro/Outubro de 2002 pela Fundação Pablo Iglesias, no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia. 27. Cf. especialmente Aguilar (2006), op. cit., e Campos, Ismael Saz (2004), «El pasado que aún no puede pasar», Fascismo y Franquismo, Valência: PUV, pp. 277-291. 28. Groppo, Bruno (2001), «Traumatismos de la memoria e imposibilidad del olvido en los países del Cono Sur» em Groppo, Bruno e Flier, Patricia (eds.) (2001), La imposibilidad del olvido, La Plata: Ediciones Al Margen, pp. 19-42. 29. Diner, Dan (1993), «Gestaute Zeit. Massensenvernichtung und jϋdische Erzählung», Kreisläuf, Berlim: Berlin Verlag, pp. 123-140. 30. Cf. especialmente Pappé, Ilan (2000), La Guerre de 1948 en Palestine. Aux origins du conflit israelo-arabe, Paris: La Fabrique. Cf. também as observações de Warschwski, Michel (2001), Israel-Palestine. Le défi binational, Paris: Textuel, pp. 39-46. Sobre o nascimento da historiografia palestina, cf. Khaliji, Rashid (1997), Palestinian Identity, Nova Iorque: Columbia University Press, e também Sanbar, Elias (2001), «Hors de lieu, hors du temps. Pratiques palestiniennes de l’histoire», em Hartog e Revel (eds.) (2001), op. cit., p. 123. 180

31. Novick, Peter (2000), The Holocaust in American Life, Nova Iorque: Houghton Miffin. 32. Cf. Diner, Dan (2000), «Cumulative Contingency. Historicizing Legitimacy in Israel Discourse», Beyond the Conceivable. Studies on Germany, Nazism and the Holocaust, Berkeley: University of California Press, p. 215. 33. Cf. Segev, Tom (1993), op. cit., pp. 578-580. 34. Loraux, Nicole (1997), La cite divisée. L’oublie dans la mémoire d ‘Athènes, Paris: Payot. 35. Novick (2000), op. cit., p.15. 36. Cf. Todeschini, Maya Morioka (ed.) (1995), Hiroshima 50 ans, Paris: Autrement. 37. Sontag, Susan (2003), Devant la douleur des autres, Paris: Bourgois. [Ed. port.: Diante da Dor dos Outros, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.] 38. Novick (2000), op. cit., p. 279. 39. Mayer, Arno (1988), Why did the Heavens not Darken? The final Solution in History, Nova Iorque: Pantheon Books. 40. Achcar, G. (2002), Le Choc des barbaries, Bruxelas: Complexe. 41. Já existe uma bibliografia abundante sobre esse monumento. Cf. particularmente o catálogo publicado pela fundação que o gere, Stifgung Denkmal fϋr die ermordeten Juden Europas, Materialen zum Denkmal fϋr die ermordeten Juden Europas. Berlim: Nicolai Verlag, 2005. 42. Robin, Régine (2001), Berlin chantiers, Paris: Stock, p. 394. 43. Sobre a Neue Wache, cf. Reichel, Peter (1998), L’Allemagne et sa mémoire, Paris: Odile Jacob, pp. 212-225. 44. Koselleck, Reinhart (1998), «wes darf vergessen werden? Das Holocaust Mahnmal hierarchisiert die Opfer», Die Zeit, n.º 13. 45. Hbermas, Jürgen (1999), «Der Zeigefinger. DieDeutschen und ihr Denkmal», Die Zeit, n.º 14. 46. Cf. Hilberg (1996), op. cit., pp. 61-62. 181

47. Cf. Fogel, Joshua (ed.) (2000), The Nanjing Massacre in History and Historiography, Berkeley: University of California Press. 48. Cf. Buruma, Ian (1994), The Wages of Guilt. Memories of War in Germany and Japan, Londres: Phoenix. 49. Cf. Beaugé, Florence, «Paris reconnaît que le massacre de Sétif en 1945 était "inexcusable"», Le Monde, 9 de Março de 2005. 50. Cf. Stora, Benjamin (1991), La Gangrène et l’oubli. La mémoire de la guerre d’Algérie, Paris: La Découverte. Sobre o massacre de 17 de Outubro de 1961, cf. Einaudi, Jean-Luc (2001), Octobre 1961, Paris: Fayard, e Grandmaison, Olivier Lecour (ed.) (2001), Le 17 octobre 1961. Un crime d’État à Paris, Paris: La Dispute.

Capítulo III 1. Para uma boa apresentação sintética do linguistic turn, cf. Dosse, François (2003), La marche des idées. Histoire des intellectuels, histoire intellectuelle, Paris: La Découverte, pp. 207-226. Sobre o impacto na história social, cf. Eley, Geoff 1992, «De l'histoire social au «tournant linguistique» dans l'historiographie anglo-américaine des ânées 1980», Genèses, n.º 7, pp. 163-193. 2. Chartier, Roger (1998), Au bord de la falaise. L'histoire entre certitudes et inquiétude, Paris: Albin Michel, p. 11. 3. Ib., ibid., p.16. 4. LaCapra, Dominick (2004), «Tropisms of Intellectual History», Rethinking History, vol. 8, n.º 4, p.513. 5. Barther, Roland (1984), «Le discours de l'histoire», em Le bruissement de la langue. Essais Critiques IV, Paris: Seuil, p. 175. 6. White, Hayden (1985), «The historical text as a literary artefact», Tropics of Discourse. Essais in Cultural Criticism, Baltimore: John Hopkins University Press, p. 82. Essa tese tinha já sido formulada em Metahistory. The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, Baltimore: John Hopkins University Press, 1973, pp. Xi-xii, 5-7, 427. Para uma apresentação críti182

ca das teses de White, cf. Chartier (1998), op. cit., cap. IV, pp. 108-125, e Kantsteiner, Wulf (1993), «Hayden White's Critique of the Writing of History», History and Theory, n.º 3, pp. 273-295. 7. Entre as numerosas análises críticas da concepção de história de White, cf. Momigliano, Arnaldo (1984), «La retorica della storia della retorica: sui tropi di Hayden White», Sui fondamenti della storia antica», Turim: Einaudi, pp. 465-476; Chartier (1998), «Figures rhétoriques et représentation historique», op. cit., pp. 320-339; e sobretudo Evans, Richard (1999), In Defense of History, Nova Iorque: Norton, cap. III, pp. 65-88 [Ed. port.: Em Defesa da História, Lisboa: Temas e Debates, 1999]. 8. de Certeau, Michel (1975), L'Écriture de l'histoire, Paris: Gallimard, p.12. [Ed. port.: A Escrita da História, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.] 9. Id, ibid., p.13. 10. Sobre a ligação dos arquivos à escrita da história, cf. Combe, Sonia (2011), Archives interdites. L'histoire confisquée, Paris: La Découverte. 11. LaCapra (2011), op. cit., pp. 1-42. É a partir de considerações análogas que Paul Ricoeur tende a qualificar de antinomia o par «relato histórico/relato ficcional» (Ricœur (2000), op. cit., p. 339). 12. Koselleck (1997), «Histoire sociale et histoire des concepts», op. cit., p. 110. 13. Robin (2003), op. cit., p. 299. 14. Cf. sobre esse debate as contribuições reunidas em Friedländer, Saul (ed.) (1992), Probing the Limits of Representations. Nazism and the «Final Solution», Cambridge: Harvard Univeristy Press (especialmente o debate entre H. White, «Historical Emplotment and the Problem of Truth», pp. 37-52, e Carlo Ginzburg, «Just One Witness», pp. 82-96). Ginzburg retira das teses de White uma nova versão da filosofia idealista do jovem Benedeto Croce, expressa numa obra de 1893 intitulada La Storia ridotta sotto il concetto generale dell'arte (pp. 87-89). 183

15. Bédarida, François (2003), «Temps présent et présence de l'histoire», Histoire, critique et responsabilité, Bruxelas: Complexe, p. 51. 16. Vidal-Naquet, Pierre (1987), Les assassins de la mémoire, Paris: La Découverte, pp. 148-149. 17. Lanzmann, Claude, «La question n'est pas celle du document mais celle de la vérité», Le Monde, 19 de Janeiro de 2001, p. 29. Trata-se de um comentário à exposição «Mémoire des camps» (cf. Chéroux, Clément (ed.) (2001), Mémoire des camps. Photographie des camps de concentration et d'extermination nazis (1933-1999), Paris: Marval). A posição de Lanzmann foi desenvolvida por Wajcman, George (2001), «La croyance photographique», Les Temps Modernes, n.º 613, pp. 47-83, e por Pagnoux, Elisabeth, «Reporter photographe à Auschwitz», ibid., pp. 84-108. Sobre este debate cf. a obra fundamental de Didi-Huberman, Georges (2003), Images malgré tout, Paris: Éditions Minuit, assim como o excelente ensaio de About, Ilsen e Cheroux, Clément (2001), «L'histoire par la photographie», Études photographiques, n.º 10. 18. Lanzmann, Claude, «Parler pour les morts», Le Monde de débat, Maio de 2000, p. 15. 19. Lanzmann, Claude, «Holocauste, la représentation impossible», Le Monde, 3 de Março de 1994, p. VII. 20. Lanzmann, Claude (1990), «Hier ist kein Warum», Au sujet de Shoah. Le film de Claude Lanzmann, Paris: Belin, p. 279. 21. Levi, Primo (1997), «Se questo è un uomo», Opere I, Turim: Einaudi, p. 23. [Ed. port.: Se Isto É um Homem, Alfragide: Teorema, 2009.] 22. LaCapra (1998), «Lanzmann's Shoah: "Here There Is No Why"», op. cit., p. 100. 23. Levi (1997), «La ricerca delle radici», op. cit., p. 1367. 24. Agamben, Giorgio (1998), Quel che resta di Auschwitz. L'archivio e il testimone, Turim: Bollati-Boringhieri, p. 8. [Ed. Port.: O que Resta de Auschwitz, São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.] 184

25. Levi (1997), «I sommersi e i salvati», op. cit., p. 1056. 26. Agamben (1998), op. cit., p. 153. 27. Id., ibid, p. 47. 28. Robin (2003), op. cit., p. 250. 29. Cf. LaCapra, Dominick (2004), «Approaching Limit Event: Siting Agamben», History in Transit. Experience, Identity, Critical Theory, Ithaca: Cornell University Press, p. 172. 30. Mesnard, Philippe e Kahn, Claudine (2001), Giorgio Agamben à l'épreuve d'Auschwitz, Paris: Kimé, p. 125. 31. Cf. a introdução de Henry Rousso à sua recolha Vichy. L'Événement, la mémoire, l'histoire, Paris: Gallimard, 2001, p. 43. 32. Cf. Hillberg, Raul (1993), Exécuteurs, victimes, témoins, Paris: Gallimard. Esta tendência é sublinhada por Evans, Richard L. (2002), «History, Memory and the Law. The Historien as Expert Witness», History and Theory, vol. 41, n.º 3, p. 344. 33. Goldhagen, Daniel J. (1997), Les Bourreaux volontaires de Hitler, Paris: Seuil. [Ed. port.: Os Carrascos Voluntários de Hitler, Lisboa: Editorial Notícias, 1999.] 34. Courtois, Stéphane (ed.) (1997), Le Livre noir du communisme. Crimes, terreur, répression, Paris: Laffont. [Ed. port.: O Livro Negro do Comunismo, Lisboa: Quetzal, 1998.] 35. Cf. Jeanneney, Jean-Noel (1998), Le Passé dans le prétoire. L'historien, le juge et le journaliste, Paris: Seuil, p. 24, e Dumoulin (2003), op. cit., pp. 163-176. 36. Cf. Baruch, Marc Olivier (1998), «Procès Papon: impressions d'audience», Le Débat, n.º 102, pp. 11-16. Cf. sobre esse tema, Dumoulin (2003), op. cit., e Frei, Norbert, Van Laak, Dirk e Stolleis, Michael (hg.) (2000), Geschichte vor Gericht historiker, Richter un die Suche nach Gerechtigkeit, Munique: C.H. Beck. 37. Rousso, Henry (1998), La Hantise du passé, Paris: Textuel, p. 97. Cf. também Conan, Éric e Rousso, Henry (1996), Vichy, un passé qui ne passe pas, Paris: Gallimard, pp. 235-255. 185

38. Schiller, Friedrich (1992), «Resignation», Werke und Briefe, Berlim: Deutscher Klassiker Verlag, Bd. 1, p. 420. Cf. Koselleck, Reinhart (1990), «Historia magistra vitae», Le Futur passé. Contribution a la sémantique des temps historiques, Paris: EHESS, p. 50; e também, para uma actualização do problema, Bensaïd, Daniel (1999), Qui est le juge? Pour em finir avec le tribunal de l'Histoire, Paris: Fayard [Ed. port.: Quem É o Juiz? Direito e Direitos do Homem, Lisboa: Instituto Piaget, 2001]. 39. Bloch, Marc (1974), «L'analyse historique», Apologie pour l'histoire, Paris: Armand Colin, p. 118. Carr, Edward H. (1961), What is History?, Londres: Macmillan, cap. I. 40. Vidal-Naquet (1995), op. cit., pp. 113-114 (esta passagem é retirada de Chateaubriand, Mémoire d'Outre-tombe, Paris: La Pléiade-Gallimard, p. 630). 41. Ginzburg, Carlo (1991), Il giudice e lo storico, Turim: Einaudi, Turim. [Ed. port.: ensaio incluído em A Micro-História e Outros Ensaios, Lisboa: Difel, 1991.] 42. Id., ibid. 43. Aquilo que conduziu George Duby, talvez de uma forma um pouco prematura, a escrever que «a noção de verdade histórica modificou-se (…) porque a história doravante interessa-se menos nos factos do que nas relações» (L'Histoire continue, Paris: Odile Jacob, 1991, p. 78). [Ed. port.: A História Continua, Rio de Janeiro: Zahar, 1993.] 44. Ginzburg, Carlo (1986), «Spie, radici di un paradigma indiziario», Miti, emblemi, spie. Morfologia e storia, Turim: Einaudi, pp. 158-209. 45. Améry (1977), op. cit. 46. Péguy, Charles (1987), «Le jugement historique», Oeuvres, vol. I, «La Pléiade», Paris: Gallimard, p. 1228. Este texto está incluído em Hartog e Revel (eds.) (2001), op. cit., p. 184.

186

Capítulo IV 1. Entrevista a Marek Edelman por Pol Mathil, Le Soir de Abril de 2003. 2. Adorno, Theodor W. (1969), «Erziehung nach Auschwitz», Stichworte. Kiritsche Modelle 2. Frankfurt/M: Suhrkamp. 3. Habermas (1987), «Conscience historique et identité post-traditionelle», op. cit. (trad. fr.), p.294. 4. Bauman, Zygmunt (1989), Moderity and the Holocaust, Cambridge: Polity Press, p. 114. [Ed. Port.: Modernidade e Holocausto, Rio de Janeiro: Zahar, 1998.] 5. Agamben, Giorgio (2002), «Qu’est-ce qu’un camp?», Moyens sans fins, Paris: Rivages, p. 49. 6. Sossi, Frederica (2003), «Témoigner de l’invisible», em Coquio, Catherine (ed.) (2003), L’Histoire trouée. Négations et Témoignage, Nantes: L’Atlante, p. 398. 7. Arendt, Hannah (2002), Les Origines du totalitarisme, Paris: Quarto-Gallimard, p. 598. [Ed. port.: As Origens do Totalitarismo, Lisboa: Dom Quixote, 2006.] 8. Vidal-Naquet, Pierre (1998), Mémoire II. Le Trouble et la lumière, Paris: La Découverte-Seuil, p. 107. 9. Cf. Diner, Dan (1993), Verkehrte Welteen, Frankfurt/M: Eichborn. 10. Perec, Georges (1975), W ou le Souvenir d’enfance, Paris: Gallimard, p. 220. 11. Chrétien, Jean-Pierre, «Un nazisme tropical», Libération de 26 de Abril de 1994. 12. Oehler, Dolf (1996), Le Spleen contre l’oubli. Juin 1848. Baudelaire, Flaubert, Heine, Herzen, Paris: Payot. 13. Cf. Wahnich, Sophie (2003), La Liberté ou la mort. Essai sur la Terreur et le terrorisme, Paris: La Fabrique. 14. Cf. Lavabre, Marie-Claire (1994), Le fil rouge. Sociologie de la Mémoire communiste, Paris: Presses de la Fondation Nationale de Sciences Politiques. O conceito de «contra-sociedade» foi 187

forjado por Kriegel, Annie (1974), Communismes au miroir français, Paris: Gallimard, p. 183. 15. A fórmula pertence a Hildebrand, Klaus (1987), «Das Zeitalter der Tyranen», Historikerstreit. Die dokumentation der Kontroverse um die Einzigartigkeit der Nationalsozialistischen Judenvernichtung, Munique: Piper, pp. 84-92. 16. Para uma história desse conceito, cf. Traverso, Enzo (ed.) (2001), Le Totalitarisme. Le XXe siècle en débat, Paris: Seuil. 17. Fukuyama, Francis (1993), La Fin de l’histoire et le dernier homme, Paris: Flammarion. [Ed. port.: O Fim da História e o Último Homem, Lisboa: Gradiva, 1999.] 18. Furet, François (1995), Le Passé d’une illusion. Essai sur l’idée de communisme au XXe siécle, Paris: Laffont-Calmann-Lévy, p. 18. [Ed. port.: O Passado de uma Ilusão, Lisboa: Presença, 1996.] 19. Bensaïd, Daniel (1997), Le Pari mélancolique. Métamorphoses de la politique, politique de las metamorphoses, Paris: Fayard. 20. Benjamin, Walter (1977), «Einbahnnstrasse», Gesammele Schrften, Frankfurt/M: Suhrkamp, Bd. I, 3, p. 1232. 21. Cf. Koselleck (1990), «"Champ d’experience" et "horizon d’attente"; deux categories historiques», op. cit., pp. 307-329. Sobre o advento da ideia de comunismo, cf. sobretudo as reflexões de Anderson, Perry (1992), «The Ends of History», A zone of engagement, Londres: Verso [Ed. port.: Zona de Compromisso, São Paulo: UNESP, 1996].

Capítulo V 1. Schieder, Wolfgang (1983), Faschismus als Soziale Bewegung, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht. 2. Mason, Tim (1995), «Whatever happened to "Fascism"?», Nazism, Fascism and the Working Class, Essays by Tim Mason, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 323-331. 3. Nolte, Ernst (1987), «Vergangenheit, die nicht vergehen will», e Habermas, Jϋrgen (1987), «Ein Art Schadensabwicklung», Historikerstreit, Munique: Piper, pp. 39-47 e 62-76. 188

4. Broszat, Martin e Fiedländer, Saul (1988), «Um die "historisierung des National-sozialismus". Ein Briefwechsel», Vierteljahreshefte fϋr Zeitgeschichte, n.º 36. 5. Mannheim, Karl (1969), Ideologie und Utopie, Frankfurt/M: Verlag Schulte & Bulmke, pp. 130-131. 6. Cf. Herbert, Ulrich (2003), «Deutsche un jϋdische Geschichsschreibung ϋber den Holocaust», em Brenner e Meyers (hg.) (2003), op. cit., pp. 247-258. Este postulado está no centro da reconstrução da trajectória da historiografia alemã por Berg (2003), op. cit. 7. Goldhagen (1997), op. cit. Cf. a esse respeito Traverso, Enzo (1997), «La Shoah, les historiens et l’usage public de l’histoire», L’Homme et la société, n.º 125, pp. 17-26. 8. Cf. Schulze, Winfried e Oexle, Otto G. (hg.) (1999), Deutsche Historiker I, Nationalsozialismus, Frankfurt/M: Fischer. Para uma visão de conjunto, cf. Cattaruzza, Marina (1999), «Ordinary Men? Gli storici tedesci durante il nazionalsocialismo», Contemporanea, II, n.º 2, pp. 331-339. 9. Husson, Edouard (2000), Comprendre Hitler et la Shoah, Paris: Presses Universitaires de France, pp. 271-272. 10. Cf. Bartov, Omer (2002), «The German Exhibition Controversy. The politics of evidence», em Bartov, O., Grossman, A. e Nolan, M. (eds.) (2002), Crimes of War. Guilt and Denial in Twentieth Century, Nova Iorque: The New Press, pp. 43.60. [Ed. Port.: Crimes de Guerra, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.] 11. Institut fϋr Sozialforschung (hg.) (2002), Verbrechen der Wehrmacht. Dimensionen des Vernichtungkrieges 1941-1944, Hamburgo: Hamburger Edition. 12. Traverso, Enzo (1999), «La singularité d’Auschwitz. Próblemes et dérives de la recherche historique», em Catherine Coquio (ed.) (1999), op. cit., pp. 128-140. 13. Bracher, Karl-Dietrich (1976), Zeitgeschichtlich Kontroversen. Um Faschismus, Totalitarismus, Demokratie, Munique: Piper. 189

14. Knutter, Han-Helmut (1993), Die Faschismus-Keule. Das letze Aufgenbot der deutschen Linken, Frankfurt/M: Ullstein, p. 14. 15. Kraushar, Wolfgang (2001), «Die auf dem linken Auge binde Linke. Antifaschismus und Totalitarismus», Linke Geisterfahrer. Denkanstösse fϋr eine antitotalitäre Linke, Frankfurt/M: Verlag Neue Kiritik, pp. 147-155. 16. Diner, Dan (1999), Das Jahrhundert verstehen. Ein universalhistorische Deutung, Munique: Luchterhand. 17. Kuhnl, R. (1998), Der Faschismus, Berlim: Distel. 18. Wipperman, W. (1995), Faschismustheorien. Die Entwicklung der Diskussion von den Anfang bis heute, Darmstadt: Primus Verlag. 19. Borejsza, Jerzy W. (1999), Schulen des Hasses. Faschistische Système in Europa, Frankfurt/M: Fischer. 20. Nolte, Ernst (1970), Le Fascisme dans son époque, Paris: Julliard. A sua interpretação «histórico-genética» do totalitarismo é apresentada na sua correspondência com François Furet, Fascisme et communisme, Paris: Plon, 1998 [Ed. port.: Fascismo e Comunismo, Lisboa: Gradiva, 1999]. 21. Para um balanço geral da historiografia da RDA sobre o nazismo, cf. Roth, Karl Heinz (2001), «Glanz un Elend der DDR – Geschichtswissenschaft ueber Faschimus un zweiten Weltkrieg», Bulletin fϋr Faschismus und Weltkriegsforschung, n.º 17, pp. 66-72. Sobre a questão do genocídio judaico, cf. Kwiet, Konrad (1976), «Historians of the German Democratic Republic, Atisemitism and Persecution», Leo Baeck Institute Yearbook, vol. 21, pp. 173-198. 22. Cf. Beetham, David (ed.) (1983), Marxists in face of Fascism. Writings by Marxists on Fascism from the Inter-War Period, Manchester: Manchester University Press. 23. Traverso (2001), «Le totalitarisme. Jalons pour la histoire d’un débat», op. cit., p. 27. 24. O historiador da Alemanha Federal Herman Weber estima em 150 mil o número de comunistas aprisionados pelo regime nazi e em 20 mil os que foram executados (Kommunistischer 190

Widerstand gegen die Hitler-Diktatur, 1933-1939, Berlim: Gedenkstatte deutscher Widerstand, 1990, p. 3). 25. Friedländer (2002), «The Wehrmacht and Mass Extermination of the Jews», em Bartov, Grossman e Nolan (eds.) (2002), op. cit. 26. Broszat, Martin (1986), «Resistenz un Widerstand», Nach Hitleri, Munique: C.H. Beck, pp. 68-91. Para uma apresentação desse debate, cf. Kershaw, Ian (1997), Qu’est-ce que le nazisme? Preblèmes et perspectives d’interpretation, Paris: Folio-Gallimard, cap. 8. Para uma crítica do conceito de resistenz, cf. Friedländer, Saul (1993), Memory, History, Extermination of the Jews of Europe, Bloomington: Indiana University Press, pp. 92-95. 27. Adorno, Theodor W. (1984), «Que signifie  : repenser le passé?», Módelles critiques, Paris: Payot, pp. 97-98. 28. Diner, Dan (1995), «Antifaschistische Weltanschauung. Ein Nachruf», Kreisläufe, Berlim: Berlin Verlag p. 91. Para seguir a emergência do Holocausto no centro do debate historiográfico na Alemanha Federal, cf. Berg (2003), op. cit., pp. 379-383. 29. François, Étienne (1999), «Révolution archivistique et réécriture de l’histoire  : l’Allemagne de l’Est», em Rousso, Henry (ed.) (1999), Nazisme et stalinisme. Histoire et mémoire comparées. Paris: Complexe, p. 346. 30. Habermas (1987), «Conscience historique et identité post-traditionalle», op. cit. (trad. fr.), pp. 315-316. 31. Cf. entrevista a Renzo De Felice em Jacobelli, Jader (ed.) (1998), Il fascismo e gli storici oggi, Bari-Roma: Laterza, p. 6. Para um paralelismo entre a abordagem de Nolte e a de De Felice, cf. Schiedler, Wolfgang (1991), «Zeitgeschichtliche Vershränkungen ϋber Ernst Nolte und Renzo De Felice», Annali dell’Instituto ítalo-germanicode Trento, XVII, pp. 359-376. 32. Steinmetz, George (1997), «German exceptionalism and the origins of Nazism: the career of a concept», em Kershaw, Ian e Lewin, Moshe (eds.) (1997), Stalinism and Nazism. The Dictatorships in Comparison, Cambridge: Cambridge University Press, p. 257. 191

Capítulo VI 1. Entre as últimas obras importantes consagradas a este tema, cf. Ignouet, Valérie (2000), Histoire du révisionisme en France, Paris: Seuil; Brayard, Florent (1996), Comment l’idée vint à M. Rassinier, Paris: Fayard; e Fresco, Nadine (1999), Fabrication d’un antisémite, Paris: Seuil. 2. Vidal-Naquet (1987), op. cit. 3. François, Bédarida (1993), Comment est-il possible que le «Révisionnisme» existe?, Reims: Presses de la Comédie de Reims, p. 4. 4. Vidal-Naquet (1987), «Thèses sur le révisionnisme», op. cit., p. 108. 5. Bernstein, Edouard (1974), Les Présupposés du socialisme, Paris: Seuil. [Ed. port. Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas das Social-Democracia, Lisboa: Dom Quixote, 1976.] 6. Sobre a projecção europeia deste debate, cf. Bongiovanni, Bruno (1997), «Revisionismo e totalitarismo. Storie e significati», Teoria politica, XIII, n.º 1, pp. 23-54. Parte das peças deste debate foram reunidas por Weber, Henri (ed.) (1983) Kautsky, Luxemburg, Pannekoek, Socialisme, la voie occidentale, Paris: Presses Universitaires de France. 7. Laquer, Walter (1973), «Par le fer et par le feu: Jabotinsky et le révisionnisme», Histoire du sionism, Paris: Calmann-Levy, pp. 371-420. 8. A esse propósito, cf. sobretudo Husson (2000), op. cit., cap. III, pp. 69-84. 9. Kolko, Gabriel (1968), The Politics of War, Nova Iorque: Random House. 10. Alperovitz, Gar, Atomic Diplomacy. Hiroshima and Potsdam, Nova Iorque: Penguin Books, 1985, e The Decision to Use the Atomic Bomb, Nova Iorque: Vintage Books, 1996. 11. Para uma apresentação do conjunto de trabalhos dessa escola, cf. Werth, Werth (1996), «Totalitarisme ou révisionnisme? L’histoire soviétique, une histoire en chantier», Com192

munisme, n.º 47-48, pp. 57-70. Entre os trabalhos de síntese dessa corrente historiográfica, cf. Fitzpatrick, Sheila (1994), The Russian Revolution, Nova Iorque: Oxford University Press. 12. Cf. Pavone, Claudio (2000), «Negazionismi, rimozioni, revisionismi: storia o politica?», em Colloti, Enzo (ed.) (2000), Fascismo e antifascismo. Rimozioni, revisioni, negazioni, Bari-Roma: Laterza, pp. 34-35. 13. Cf. sobretudo Furet, François (1978), Penser la Révolution française, Paris: Gallimard [Ed. port.: Pensar a Revolução Francesa, Lisboa: Edições 70, 1988]. Para uma reconstrução desse debate, cf. Kaplan, Steven L. (1993), Adieu 89, Paris: Fayard. Entre os críticos do revisionismo de Furet, cf. Vovelle, Michel (2001), «Réflexions sur l’interprétation révisionniste de la Révolution française», Combates pour la Révolution française, Paris: La Découverte. Sobre a projecção internacional desse debate, cf. Bongiovanni, Bruno (1989), «Rivoluzione borghese o rivoluzione del politico? Note sul revisionismo storiografico», em Bongiovanni, Bruno (1989), Le repliche della storia. Karl Marx tra la rivoluzione francese e la critica dela pollitica, Turim: Bollati Boringhieri, pp. 33-61, e Comninel, G. C. (1987), Rethinking the French Revolution. Marxism and the Revisionist Challange, Londres: Verso. 14. Para uma reconstrução do conjunto do debate, cf. Greilsammer, Ilan (1993), La Nouvelle Histoire d’Israel, Paris: Gallimard, e Pappé (2000), op. cit. 15. Werth, Nicolas (1993), «Goulag: les vrais chiffres», L’Histoire, n.º 169, p. 42. 16. Habermas (1987), «Eine Art Schadensabwicklung. Die apologetischen Tendenzen in der deutschen Zeitgestchichtsschreibung», op. cit., pp. 62-76. 17. Furet e Nolte (1998), op. cit, pp. 88-89. 18. Nolte (1987), «Vergangenheit, die nicht vergehen will», op. cit., pp. 39-47, e La Guerre civile européene 1917-1945, Paris: Editions des Syrtes, 2000. 193

19. Wehler, Hans-Ulrich (1988), Entsorgung der deutschen Vergangenheit? Ein polemischer Essay zum «Historikerstreit», Munique: Beck. 20. Friedländer (1993), «A Conflict of Memories ? The New German Debate about the "Final Solution"», op. cit., pp. 33-34. 21. Para uma visão de conjunto da obra de Renzo De Felice na historiografia italiana do fascismo, cf. Santomassino, Gianpasquale, «Il ruolo di Renzo De Felice», em Colloti (ed.) (2000), op.cit., pp. 415-429. 22. De Felice (1995), op. cit. 23. Cf. sobretudo Paxton, Robert J. (1997), La France de Vichy, Paris: Seuil. 24. Habermas (1987), «De l’usage public de l’histoire», Écrits politique, op. cit. (trad. r.), pp. 247-260. 25. Furet (1995), op. cit. Retomo a crítica de Bensaïd (1999), op. cit. 26. Pavone, Claudio (1990), Una guerra civile. Saggio sulla moralità della Resistenza, Turim: Bollati Boringhieri. 27. A respeito de Irving, cf. Evans, Richard J. (2002), Telling lies about Hitler. The Holocaust, History and the David Irving Trial, Londres: Verso; a respeito de Bernard J. Lewis, que considera o genocídio dos arménios «uma visão arménia da história», cf. Ternon, Yves (1994), «Lettre ouverte à Bernard Lewis et à quelques autres», em Davis, Leslie A. (1994), La Province de la mort. Archives américaines concernant le genocide des Arméniens, Bruxelas: Complexe, pp. 9-26. 28. Pomian, Krzysztof (2002), «Storia ufficiale, storia revisionista, storia critica», Mappe del Novecento, Milão: Bruno Mondadori, pp. 143-150.

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Outros títulos das edições unipop: O direito de fuga Sandro Mezzadra (Abril de 2012)

Quem canta o Estado-nação? Judith Butler e Gayatri Spivak (Outubro de 2012)