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Portuguese Pages 125 Year 1985
tudo é história 48
— MTUBAS * A Renúncia de Jânio Quadros e a Crise Pró-64 - Moniz Bandeira * Desenvolvimento Capitalista no Brasil - Ensaios sobre Crise - Div. Autores + Desenvolvimento e Crise no Brasil -L. C, Bresser Pereira *Direitos Civis no Brasil, Existem? - Hélio Bicudo * Economia Brasileira - Uma Introdução Crítica - . C. Bresser Pereira « Estado e Subdesenvolvimento industrializado - L. C. Bresser Pereira * PCB - 1922/1982 - Memória Fotográfica - Div. Autores
Coleção * O que * O que * O que
Primeiros Passos. é Política - Wolfgang Leo Maar é Revolução - Florestan Fernandes é Reforma Agrária - José Eli Veiga
Coleção Tudo é História * A Burguesia Brasileira - Jacob Gorender * Cultura e Participação nos Anos 60 - Heloisa B. de Hollanda/Marcos A. Gonçalves * Militarismo na América Latina - Clóvis Rossi * O Governo de Jânio Quadros - Maria Victória Benevides. * O Governo J. Kubitschek - Ricardo Maranhão * O Movimento Estudantil no Brasil - Antonio Mendes Jr. * Teatro Oficina - Fernando Peix Coleção Antologias e Biografias
* Vianinha - Teatro, Política e Televisão - Fernando Peixoto (Org)
Caio Navarro de Toledo
O GOVERNO GOULART E O GOLPE 64 1 edição 1982 6% edição
p
1985
Copyright O Caio Navarro de Toledo
123 (antigo 27)
Artistas Gráficos
Tustrações: Emílio Damiani Revisão:
José E. Andrade Túlio D. Gaspar
:
Editora Brasiliense S.A.
R. General Jardim, 160 01223 — São Paulo — SP Fone (011) 231-1422
ÍNDICE
Um governo no entreato golpista ......ccio 7 O “golpe branco” ou “a solução de compromisso” . cao id A crise político-institucional na versão parlamentarista . 2 Um governo no trapézio . .. 41 A politização da sociedade — esquerda e direita mobilizam-se . 68 O golpe político-militar . 89 Conclusões ... 116 Indicações para leitura 121
UM GOVERNO NO ENTREATO GOLPISTA O governo João Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o signo do golpe de Estado. Se, em agosto de
1961, o golpe militar pôde ser conjurado, em abril de 1964,
no entanto,
ele deixaria
de se constituir
no
fantasma — que rondou e perseguiu permanente-
mente o regime liberal-democrático inaugurado em
1946 — para se tornar numa concreta realidade. No dia 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros
resignava sem ao menos completar sete meses na Presidência da República. Na carta-renúncia — au-
têntica paródia e pastiche da carta-testamento de Getúlio Vargas, como observaram diversos autores —, Quadros não formulou uma única razão convin-
cente para explicar e justificar o seu teatral gesto. Se, naquele momento, a denúncia do golpe janista soava
como uma mera especulação, hoje restam poucas
dúvidas a esse respeito. A rigor, a renúncia consti-
Caio Navarro de Toledo
tuía-se no primeiro ato de uma trama golpista. Julgaya o demissionário que os ministros militares não apenas impediriam a posse de João Goulart, como também procurariam impor, juntamente com o mas-
sivo e sonoro “clamor popular”, o retorno do “gran-
de líder”. Na sua fantasia, Quadros voltaria, pois, nos “braços do povo”. As ilusões do renunciante, contudo, logo se desvaneceram. Nem os ministros militares e, menos ain-
da, as massas populares tomaram qualquer iniciativa no sentido de reivindicar a volta de Quadros.
Em
várias partes do país, os setóres populares e demo-
cráticos sairiam às ruas para defender, isto sim, a posse de João Goulart, ameaçada por um arbitrário
veto militar, plenamente respaldado pela UDN e demais setores conservadores. As manifestações popu-
lares, associadas com as de políticos democráticos e de militares nacionalistas, conseguiram impedir o
golpe militar que se configurava em agosto de 1961. Assim, com à diferença de poucos dias, duas
tentativas de golpe se sucediam: a de Jânio Quadros e a dos setores militares. Três anos depois, tendo sido alcançada uma forte coesão ideológica no seio das
Forças Armadas, os militares impuseram, juntamente com a significativa mobilização política das
classes dominantes e de setores das classes médias, uma nova ordem político-institucional no país. Os
setores populares e democráticos, a partir de então, pagariam um preço muito elevado pela resistência oferecida aos golpistas em 1961. Foi, portanto, no entreato de alguns ensaios
O Governo Goulart e o Golpe de 64 nã golpistas e de um doipe político-militar, plenamente vitorioso, que existiu o governo João Goulart. Nos seus dois anos e meio de vigência (setembro de 1961 a março de 1964), um novo contexto político-social emergiu no país. Este novo quadro caracterizou-se por uma intensa crise econômico-financeira, frequentes crises político-institucionais, extensa mobilização política das classes populares, ampliação e fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo, crise do sistema partidário e acirramento da luta ideológica de classes. Este período da história política brasileira é significativo ainda pois nele se intensificam e se con-
densam alguns dos impasses e dos conflitos da democracia burguesa. Se entendemos que as contradições sociais são processos constitutivos da formação social capitalista e de seus regimes políticos, então o período de 1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida política brasileira posto que nele ocorreu uma polarização política e ideológica com dimensões inéditas e com características singulares.
Para os que vêem nos conflitos e nos antagonismos o
sinal da desagregação social, os “tempos de Goulart" só podem ser encarados como trágicos “tempos do caos e da anarquia”. 1964 é, pois, um marco divisor e uma referência obrigatória em qualquer avaliação sobre o passado recente. Decorridos menos de 20 anos da queda do regime liberal-democrático, não deixam de ser ainda conflitantes as interpretações sobre o período Goulart. A nosso ver, motivações antagônicas parecem
1
Caio Navarro de Toledo
estar presentes em algumas dessas interpretações. As esquerdas — não obstante reconheçam os reais avanços sociais e políticos ocorridos no período —, buscam, fundamentalmente, investigar as razões dos limites e das impossibilidades da democracia burguesa com características “populistas”. A direita, ao definir os “tempos de Goulart” como a expressão acabada de toda a perversidade social (subversão, corrupção, crise de autoridade, desordem, etc.), procura justificar a implantação do regime autoritário e a perpetuação do poder de Estado militarizado.
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O “GOLPE BRANCO” OU “A SOLUÇÃO DE COMPROMISSO” O veto militar Com a renúncia de Jânio Quadros, o Congresso
Nacional, reunido extraordinariamente no dia 25 de agosto de 1961, dava posse, na Presidência da República, a Ranieri Mazzilli (presidente da Câmara dos
Deputados). Tal solução era encontrada em virtude
de se encontrar ausente do país o vice-presidente da
República, João Goulart. Imediatamente, os meios de comunicação do
país passavam a divulgar versões — cuja veracidade
seria confirmada nos dias seguintes — segundo as quais haveria, da parte de expressivos círculos mi tares, uma forte oposição à posse constitucional de
João Goulart na Presidência da República, As notí-
cias iam mais longe: afirmava-se que os ministros militares não apenas desaconselhayam o retorno imediato de Goulart, como estavam decididos a detê-lo
Caio Navarro de Toledo no momento em que pisasse o território nacional. Ao mesmo tempo que difundiam estas informações, vários jornais da chamada grande imprensa — expressando a opinião política dos setores conservadores das classes dominantes — conclamavam as Forças Armadas à assumirem um papel decisivo na crise política que se configurava com a renúncia de Jânio Quadros. Em outras palavras, tais setores estimulavam e apoiavam o golpe militar. No dia 28 de agosto, através do presidente-interino, os três ministros militares buscaram impor ao
Congresso a aprovação de uma breve nota onde — sem qualquer justificativa — era vetada a posse de Goulart, Por uma expressiva maioria, os congressistas manifestaram-se contra aquela arbitrária e ilegal exigência. No dia 30, os ministros militares voltariam à carga. Através de um manifesto à nação, agora se dignavam a explicitar as razões do veto a João Goulart. A certa altura, afirmava o documento: “Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal ao chefe do governo, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o País mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil”. Todas estas “previsões” eram feitas na base do passado político de Goulart,
Na ótica dos militares e dos demais setores civis
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golpistas, Jango simbolizava tudo aquilo que havia
de “negativo” na vida política brasileira: demagogo, subversivo e implacável inimigo da ordem capitalista. Seria o “diabo” tão vermelho como p pin-
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O Governo Goulart e o Golpe de 64 tavam?
Goulart: por um capitalismo “humano” e “patriótico” Nos primeiros anos de sua rápida trajetória política, os estreitos laços de amizade mantidos com o ex-ditador — seu vizinho de estância na longínqua São Borja (RS) — transformavam Goulart em fi-
gura altamente suspeita aos olhos dos setores antige-
tulistas. Como deputado pelo Rio Grande do Sul, eleito em 1950, Goulart sofreu contundentes ataques pela imprensa; esteve seriamente ameaçado de perdero mandato parlamentar, pois raramente comparecia à Câmara Federal. Dedicava-se às suas tarefas de presidente do Diretório Estadual do PTB e, desde então, orientava toda a sua ação política em direção ao movimento sindical. Destacando-se neste tipo de atividade, foi escolhido, em 1953, por Vargas, para o cargo de ministro do Trabalho. Foi um “deus nos acuda”. Como admitir, num Ministério do Estado, indagavam os setores de direitae liberais conservadores, o “chefe do peronismo brasileiro”, o “demagogo sindicalista”, o “corrupto negociante"? Pior ainda, prognosticavam: controlando e manipulando a classe operária e as massas
populares, a partir do Ministério do Trabalho, Jango
se constituiria numa peça importante para o sucesso de um novo golpe de Estado que estaria sendo engen-
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Caio Navarro de Toledo
drado pelo “maquiavélico” Vargas.
Como ministro do Trabalho, Goulart é diariamente acusado de insuflar greves e de pregar a luta de classes. Seu maior sonho, afirmam ainda seus críticos, seria o de implantar no Brasil a “República sindicalista” nos moldes do justicialismo peronista. Fazendo blague, mas iradamente, um influente periódico das classes dominantes denunciava que Jango, ao invés de ser ministro do Trabalho, transformarase num autêntico “ministro dos Trabalhadores'
Diante desta lamentação, a resposta de Goulart seria
extremamente elucidativa. Numa entrevista, expressou com muita clareza a estratégia do Estado democrático-burguês quanto à questão sindical: “(...) essa confiança do proletariado na secretaria de Estado que dirijo deveria constituir-se num motivo de tranqúilidade (para os patrões), e nunca de alarme, Pretender-se-ia, talvez, que o operariado brasileiro, já tão desencantado, não acreditasse nos poderes constitucionais ?” (grifo nosso). Como her de imensa fortuna pessoal e grande proprietário de terras (“um latifundiário com saudável instinto de propriedade privada”, como afirmou um de seus colaboradores), Goulart era, tal como seus críticos de direita, um fiel defensor do capitalismo. No entanto, asseverava ele, sua dife-
rença em relação a estes residia na sua aspiração a
um capitalismo mais “humanizado” e “patriótico”; ou seja, Jango dizia opor-se àquilo que hoje se convencionou chamar de “capitalismo selvagem”. “Não
passa de torpe intriga o boato de que sou contra o
O Governo Goulart e o Golpe de 64
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capitalismo. À frente do Ministério do Trabalho estou pronto a estimular e a aplaudir os capitalistas que fazem de sua força econômica um meio legítimo de produzir riquezas, dando sempre às suas iniciativas um sentido social, humano e patriótico. Pouco mais de oito meses permaneceria no Ministério do Trabalho do segundo governo Vargas. Enquanto Goulart defendia publicamente um aumento de 100% para os trabalhadores que ganhavam salário mínimo, Vargas, através de seu ministro da Guerra,
tomava conhecimento
de um
documé
(“Memorial dos Coronéis”) assinado por 81 oficiais
do Exército. Nele se adyertia o Exército e a Nação dos perigos do “comunismo solerte sempre à espreita”, do “clima de negociata, desfalques e malyer-
sação de verbas”, da “crise de autoridade” que sola-
pava a coesão de “classe militar”, etc. Em nenhum instante o nome de Jango era citado no “Memorial”,
mas a consequência da sua divulgação pela imprensa foi a sua imediata demissão do Ministério do Trabalho. (Entre os signatários do documento, redigido pelo então ten.-cel. Golbery do Couto e Silva, estavam militares que, dez anos mais tarde, afastariam Goulart definitivamente da vida política brasileira: Amaury Kruel, Syzeno Sarmento, Sílvio Frota, Ednardo
D'Ávila, Euler Bentes, etc.) Como vice-presidente da República, durante o
quinguênio desenvolvimentista de Juscelino Kubits-
chek, João Goulart não deixaria de estar sob o fogo cerrado da direita e de setores liberais-conservado-
res. No manifesto de agosto de 1961, os ministros
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Caio Navarro de Toledo militares alinhavam algumas acusações: “No cargo
de vice-presidente, sabido é que usou sempre de sua
influência em animar e apoiar,
mesmo
ostensiy:
mente, manifestações grevistas promovidas por conhecidos agitadores. E, ainda há pouco, como re-
presentante oficial em viagem à URSS e à China Comunista, tornou clara e patente sua incontida admiração ao regime destes países, exaltando o êxito das.comunas populares”. Desta forma, na ótica dos políticos e militares, comprometidos com as ideologias liberal-conservadora e de direita, de nada adiantava Goulart reiteradamente afirmar a sua crença no capitalismo. Dei-
xavam, pois, de reconhecer que a atuação política de Jango (seja na condição de ministro de Trabalho, seja na de vice-presidente) contribuia objetivamente
para um melhor controle do Estado burguês sobre as atividades sindicais. Igualmente, aqueles setores dei-
xavam de perceber que — tal como concebia e exer-
cia suas funções políticas e administrativas — Jango era uma eficiente porta-voz, nos meios sindicais e
populares, da ideologia populista do Estado protetor
e “acima das classes”. Obstinadamente reacionários
e intransigentemente anticomunistas, não conseguiam deixar de representar Jango na figura de “pe-
rigoso agitador” e de “demagogo sindicalista”.
A luta pela legalidade Nem
todos os setores sociais e políticos, no en-
”
O Governo Goulart e o Golpe de 64
tanto, interpretavam nessa direção a trajetória polí-
tica de João Goulart. Não viam, pois, razões para lhe
negar o direito de assumir a Presidência da Repú-
blica.
Ideologicamente,
estes setores afinavam-se
com o nacionalismo reformista, com a liberal-democracia, com a esquerda revolucionária. Gove: de estados, parlamentares federais e estadus catos de trabalhadores, entidades de empresários (CONCLAP), estudantese alguns setores militares, se manifestavam em defesa da ordem constitucional. Dos governadores estaduais que declararam seu apoio à posse de Goulart (Carvalho Pinto, São Paulo; Ney Braga, Paraná; Mauro Borges, Goiás e Leonel Brizola, Rio Grande do Sul), foram estes dois últimos os que mais intensamente se empenharam na “defesa da legalidade”. Contudo, foi a partir de
Porto Alegre que se unificou a oposição nacional ao
golpe militar, em virtude da decidida ação política de seu governador e da adesão do III Exército, sob o comando do gal. Machado Lopes. Brizola mobilizou
amplos recursos de seu estado, chegando, inclusive,
a se dispôr a distribuir armas à população civil para
combater eventuais ataques das forças golpistas. Através
das emissões
da
“Rede
da Legalidade”,
acompanhava-se o desenrolar dos acontecimentos em
todo o país e articulava-se o movimento antigolpista em nível nacional. Militares nacionalistas (o mal. Lott fora preso
por ter lançado um manifesto contra o golpe), altos oficiais do Exército, organizações militares sediadas nos estados do Pará, Minas Gerais, Rio Grande do
Caio Navarro de Toledo
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Sul, São Paulo, Goiás, Guanabara e até mesmo em Brasília, almirantes, associavam-se ao movimento contra a solução conspiratória. Apesar de proibidas e
reprimidas,
manifestações
populares
sucediam-se
nos grandes centros urbanos (passeatas, comícios, panfletagem, etc.). Várias entidades de classe condenavam os golpistas e defendiam a posse de Goulart.
Inúmeras greves políticas em diversos setores (têxtil,
transportes, bancários, metalúrgicos, portuários, etc.) culminam numa greve nacional em “defesa da legalidade”, deflagrada pelo Comando Geral da Greve (CGG), embrião do CGT. A UNE decretou “greve nacional"; na Bahia os estudantes criavam a Frente de Resistência Democrática.
A “solução de compromisso”
O Congresso Nacional, expressando o sentimento geral dos setores democráticos e populares, negava-se, no primeiro momento, a transigir com os golpistas. Contudo, os dois grandes partidos conservadores (UDN e PSD) articulavam, desde as primeiras horas da crise, a chamada “solução de compromisso": a emenda constitucional que institufa o regime parlamentarista no País. Se o golpe militar era derrotado, um golpe político, no entanto, era perpetrado contra o regime vigente, pois a carta de 1946 taxativamente, toda e qualquer reforma constitucional num clima insurrecional. Um outro significado deste “golpe branco” é que a emenda
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O Governo Goulart e o Golpe de 64
parlamentarista retirava a eleição do presidente da República do âmbito popular, transferindo-a para o espaço reduzido da Câmara Federal. Por 236 votos a favor e 55 contra (40 eram do PTB), à emenda constitucional era aprovada no Congresso Nacional. Os congressistas julgavam-se vitoriosos, pois afirmavam ter evitado uma “guerra civil” no país. Na verdade, o Congresso, através de sua maioria conservadora e liberal-democrata — com o incentivo dos militares dissidentes e com a anuência dos golpistas —, adiantou-se em oferecer tal solução, pois o avanço das forças populares passava a se constituir numa ameaça política indesejável. Para os ideólogos burgueses da Ciência Política, o Congresso Nacional, neste episódio, dava uma excelente lição daquilo que denominam de “realismo político” ou da “arte de conciliação”. Alguns analistas afirmam, hoje, que o páriamentarismo não se configurava,
naquela conjuntura,
como uma saída política inescapável. Argumentam que o tempo corria na direção favorável à manutenção do regime presidencialista, posto que o erescimento da participação popular e a ampliação dos setores políticos e militares antigolpistas punham na defensiva e em minoria as forças reacionárias. Como sugere o ex-deputado Almino Afonso: “Com mais alguns dias de resistência política do presidente João Goulart teria havido a solução normal, que seria à sua posse dentro do sistema presidencial”. Ao contrário disso, João Goulart não apenas concordou com a emenda constitucional, como se apressou em esco-
”
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Caio Navarro de Toledo
lher uma solene efeméride nacional para ser empos-
sado. No dia 7 de setembro de 1961, João Belchior
Marques Goulart recebia no Congresso Nacional a faixa presidencial, sob o manto do regime parlamen-
tarista. De acordo com a emenda parlamentarista, o
Poder Executivo passava a ser exercido pelo presidente da República e por um Conselho de Ministros
(Gabinete Parlamentar), a quem caberia a “direção e a responsabilidade da política do governo, assim como a administração federal”. Ao presidente competiria nomear o presidente do Conselho de Minis-
tros (primeiro-ministro) ou chefe do governo e, por
indicação deste, os demais membros ministros de Estado. Na verdade, transformava-seo presidente da República em autêntico chefe de Estado, perdendo a sua iniciativa de elaborar leis, orientar a política
externa, elaborar propostas de orçamentos, etc. O
governo se efetivava fundamentalmente através do
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Conselho de Ministros que, por sua vez, dependia permanentemente do voto de confiança do Congresso Nacional. A emenda constitucional nº 4, nas suas Disposições Transitórias, previa a realização de um plebiscito que viesse a decidir acerca da ““manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial”. Tal consulta popular devia ocorrer nove meses antes do término do período presidencial de Goulart. Sob rédeas relativamente curtas, João Goulart iniciava, assim. seu governo na versão parlamentarista. Mas, conforme confessaria a um assessor, faria
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O Governo Goulart e o Golpe de 64 ele de tudo para abreviar a vida do novo regime. Recusava-se a representar o papel de uma “Rainha Elizabeth”. Queria governar, não apenas reinar...
a
A CRISE POLITICO-[NSTITUCIONAL
NA VERSÃO PARLAMENTARISTA Na curta existênci
ime parlamentarista
(setembro de 1961 a janeiço de 1969), o país veria
sucederem-se três Conselhos de Ministros, além de se
defrontar com o agravamento de Sua Situação econô-
miconlinanceira é se debater ainda com noyas crises
político-institucionais, A dministrativamente ineficiente é politicamente inviável, o parlamentarismo — sistema natimorto, como alguns O denominaram teria os seus dias contados dentro da vida republi-
cana brasileira. Do ponto de vista
co, O governo parla-
mentarista não apenas hesdera às Profundas distor-
sões da política desenvolvimentista do governo Ku-
bitschek como também tinha de fazer face às conseauências imediatas das medidas econômico-finan-
ceiras postas em prática pela fracassada adminis:
tração Quadros. No período Kubitschek, ao se optar
O Governo Goulart e o Golpe de 64
por um elevado nível de investimentos e ao se manter as importações de equipamentos necessários ao desenvolvimento econômico, apelou-se para um progressivo endividamento externo. No período 1956/60, mostram os dados oficiais, o déficit nas transações correntes (mercadoriase serviços) alcançou a elevada cifra de 1,2 bilhões de dólares. De outro lado, “como o investimento externo fazia-se com a regalia da Ins-
trução 113, isto é, sem cobertura cambial, o atendi-
mento do déficit fez-se, principalmente, através de
empréstimos a curto prazo e de atrasos comerciais, aumentando o endividamento externo” (Cibilis Via-
na, Reformas de Base e a Política Nacionalista de
Desenvolvimento). À taxa inflacionária elevou-se significativamente nos últimos anos do governo Kubitschek, agravada fundamentalmente pela “deterioração das relações de troca, acúmulo de estoques invendáveis de café adquiridos pelas autoridades monetárias; crescimento insuficiente da oferta de produtos agrícolas e oligopolização do comércio atacadista de gêneros alimentícios” (Idem, ibidem). No período desenvolvimentista anterior, houve um acentuado descompasso entre o crescimento do setor industrial e o da agricultura. Ainda segundo o autor acima, “a produção agrícola apresentou a taxa
anual média de crescimento de 4,3% inferior a de todos os demais períodos”. Com o aumento da população urbana (75% entre 1952 a 1961) e um
aumento do poder de compra dos assalariados em geral, houve, consequentemente, a expansão da demanda de alimentos, Com o insuficiente crescimento
Caio Navarro de Toledo
da produção agrícola para o mercado interno, passaram a ocorrer, a partir de 1961, agudas crises de abastecimento, gerando inquietações sociais e mo-
vimentos reivindicatórios de grande extensão nos cam-
pos e nas cidades. Além desses problemas, o governo que se empossava tinha de enfrentar as graves consequências da reforma cambial precipitadamente realizada por Quadros, Através da famigerada Instrução 204 da SUMOC, instituiu-se o regime de liberdade cambial (enganosamente denominado de “verdade cam-
bial"). A partir de agora, as importações passavam a ser realizadas a taxas de mercado livre, ficando suprimidos os subsídios governamentais às compras de petróleo, trigo e papel. Na justificativa oficial, bus-
cava-se alcançar o equilíbrio das transações com o exterior, altamente comprometido no governo Kubitschek. A eliminação dos subsídios teve como consegiiência uma brusca e imediata alta do custo de
vida, particularmente daqueles produtos que eram fundamentais doras.
no orçamento
das classes trabalha-
Um gabinete de “união nacional” No dia 8 de setembro
de 1961,
o Congresso
Nacional aprovava o primeiro Conselho de Ministros; era ele presidido por Tancredo Neves, conhecida figura do PSD mineiro. Goulart e Tancredo denominaram o gabinete de “união nacional”. Uma vez
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O Governo Goularte o Golpe de 64 mais, pois, a fórmula da “união nacional” era desenterrada do arsenal ideológico das classes dominantes afim de encobrir a existência de conflitos e antagonismos no interior da conjuntura política. Na ver-
dade, o primeiro gabinete representava uma nítida derrota do movimento popular que, alguns dias an-
tes, havia empolgado o país. Como as esquerdas
viriam a denunciar, tratava-se de um autêntico “ga-
binete de conciliação”:
“conciliação para evitar que
fossem colhidos os frutos da vitória popular. Conciliação com os imperialistas, conciliação com os golpistas” (PauloM. Lima, in Revista Brasiliense, nº 22). A vitória das forças politicamente conservadoras do Congresso evidenciava-se mediante a composição do Gabinete, onde 4 ministros representavam o PSD e 2 a UDN; ao partido do qual o presidente da República era o presidente nacional, PTB, coube
apenas uma pasta: o Ministério das Relações Exte-
riores, na figura de Francisco San Tiago Dantas. O importante Ministério da Fazenda teve sua responsabilidade entregue ao banqueiro Walter Moreira Salles — ideologicamente identificado com os ma-
nuais ortodoxo-conservadores em matéria de política
econômico-financeira. Procurava-se, assim, conquistar o apoio do FMI e das autoridades financeiras norte-americanas.
Em matéria de política econômica, pode-se afir-
mar que “o programa do Conselho de Ministros obedecia aos mesmos princípios conservadores enunciados nos efêmeros governos Café Filho e Jânio Qua-
dros, revelando-se, sob muitos aspectos, antagônicos
Caio Navarro de Toledo
ao ideário do nacionalismo desenvolvimentista” (Ci-
bilis Viana, op. cit.). Segundo este programa, por exemplo, não se fazia nenhuma crítica à reforma
cambial implementada pelo governo anterior. Não seria este, no entanto, o pensamento que orientava a assessoria econômica de Goulart (Goulart e Tancredo tinham assessorias distintas). Composta de petebistas e nacionalistas-reformistas, a assessoria de Goulart buscaria influir sobre a orientação conser-
vadora do gabinete ao defender, por exemplo, o for talecimento do setor estatal da economia. Nos seus primeiros pronunciamentos, Goulart faria críticas ao regime de “verdade cambial” e postularia a realização das Reformas de Base, Embora majoritariamente conservador, o gabi-
nete de Tancredo Neves, logo: nos seus primeiros meses de existência, tomou duas decisões amplamente apoiadas pelos setores progressistas e nacionalistas. À rigor, contudo, estas duas medidas nada mais faziam do que concretizar estudos oriundos do governo Quadros. Por proposta do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos (um nacionalista quase solitário na “constelação entreguista” da UDN), o Conselho de Ministros cancelava todas as autorizações feitas ao truste norte-americano Hanna Corporation (companhia de mineração que explorava jazidas em Minas Gerais). À outra decisão que repercutiu favoravelmente nos meios progressistas do
país foi o restabelecimento das relações diplomáticas com a URSS (rompidas no governo Dutra, em plena “guerra fria”), Dava-se, assim, continuidade à polí-
E.
O Governo Goulart e o Golpe de 64 tica externa independente cujos princípios básicos
(''não intervenção de um Estado nos negócios inter-
nos de outro” e “autodeterminação dos povos”) foram enunciados no governo do contraditório Jânio
Quadros.
Exatamente dois meses depois, uma prova deci-
siva teria de enfrentar a política externa independente do Brasil. Em Punta del Este, Uruguai, reunia-se a Organização dos Estados Americanos (OEA)
a fim de debater a situação de Cuba, após seu go-
verno revolucionário ter-se definido oficialmente pelo socialismo. Além da expulsão, proposta pelos EUA, pretendiam estes fazer aprovar sanções contra o governo presidido por Fidel Castro. O Brasil se opôs a qualquer forma de sanção (militar, econômica, rom-
pimento das relações comerciais e diplomáticas) contra Cuba. No entanto, aprovou uma declaração onde se afirmava a “incompatibilidade entre um regime marxista-leninista e os princípios democráticos do sistema interamericano”. Cedendo parcialmente às fortes pressões norte-americanas, o governo brasileiro se absteria na votação que propunha a expulsão
de Cuba da OEA.
As relações norte-americanas/brasileiras sofre-
riam ainda um sério abalo quando, duas semanas após o encerramento da reunião da OEA, o governador Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, de-
sapropriou os bens da Companhia Telefônica Nacio-
nal, no Rio Grande do Sul, subsidiária da International Telephone & Telegraph (ITT). “O Departa-
mento do Estado protestou, energicamente, classi-
Caio Navarro de Toledo
ficando o ato de Brizola como um “passo atrás! nos planos da Aliança para o Progresso (...). E o Con-
gresso dos EUA, diante da perspectiva de outras estatizações, votou a emenda Hinckenlooper, que determinava a suspensão de qualquer ajuda aos países que desapropriassem bens americanos, sem indenização imediata, adequada e efetiva” (Moniz Bandeira, O Governo João Goulart). Diante de futuras tentativas de encampações
(Carlos Lacerda, governador da Guanabara, anunciou — demagogicamente —
que expropriaria em-
presas estrangeiras em seu estado), o governo federal apressou-se em declarar sua disposição em negociar um acordo geral com as empresas de serviços públi-
cos de propriedade estrangeira. Procurava, assim, o
governo brasileiro demonstrar sua “boa
vontade”
face ao capital estrangeiro; ao mesmo tempo tentava limpar o terreno dos possíveis obstáculos que pode-
riam dificultar as conversações a serem mantidas,
nas semanas seguintes, entre os presidentes do Brasil
e dos EUA. Assessorado
pelo
embaixador
brasileiro
nos
EUA, Roberto Campos, e por Moreira Salles, o presidente Goulart — no discurso pronunciado perante
o Congresso norte-americano e no comunicado conjunto dos presidentes do Brasil/EUA — procura
trangiilizar a opinião pública e os homens de negó-
cios norte-americanos quanto aos caminhos a serem trilhados pelo governo brasileiro nos próximos anos. Entre outros temas, Goulart manifestou a adesão de
seu governo aos “princípios democráticos”; defendeu
O Governo Goulart e o Golpe de 64 enfaticamente a participação do capital privado es-
trangeiro no desenvolvimento brasileiro; aprovou o
princípio da “justa compensação” nos casos de desapropriações de empresas
estrangeiras operando
no
Brasil, etc. Embora revelasse preocupações quanto
às dificuldades de execução do programa reformista da Aliança para o Progresso, Goulart elogiou a iniciativa de Kennedy (provocada pela Revolução Cu-
bana). Adyertindo sobre os perigos que representaria o fracasso deste programa para os “povos democrá-
ticos”, o presidente brasileiro fez seu o ideário refor-
mista de Kennedy: “Aqueles que tornarem impossível a revolução pacífica, farão inevitável a revolução
violenta”, Apesar de todas as “juras de fidelidade e de amor” feitas por Goulart à democracia e ao capital estrangeiro, o país pouco lucraria com a festejada viagem de Goulart aos EUA e México. Como obser-
vou um estudioso:
“(. .) o FMI e os outros principais
credores do Brasil voltaram à sua atitude de esperarpara-ver dos últimos anos do governo Juscelino. Sentiam-se pessimistas. Não confiavam em que Jango tivesse o desejo, nem o poder de continuar o duro
programa antiinflacionário empreendido por Jânio” (Thomas Skidmore, De Getúlio a Castelo).
Caio Navarro de Toledo
A campanha das Reformas.
Goulart X Gabinete
Internamente,
a viagem
de Goulart aos EUA
rendeu-lhe alguns proveitos; pela primeira vez, em
toda a sua carreira política, a direita mais conservadora prestou-lhe homenagens. A UDN, através de
seu líder na Câmara, Herbert Levy, saudou a sua
performance nos EUA como a de um verdadeiro estadista. Porém, muito curto seria o período de
tréguas que a oposição conservadora concederia ao
governo de Goulart. A partir do dia 1º de maio, a
guerra novamente lhe seria declarada.
Em reiteradas oportunidades, o presidente da República tinha se pronunciado acerca da urgência
de o Executivo é de o Congresso aprovarem as refor-
mas estruturais exigidas para a superação dos graves problemas econômicos,
sociais e institucionais en-
frentados pelo país. Não obstante se pudesse afirmar
que era praticamente consensual — no Gabinete, no
Congresso, nas Forças Armadas, nas associações e confederações rurais, na Igreja, nas organizações de
trabalhadores rurais, etc. — o reconhecimento da necessidade da Reforma Agrária, as concepções acerea do seu sentido social e político, da sua extensão e das pré-condições legais à sua realização eram conflitantes. No seu discurso de 1º de maio, em Volta Redonda, Goulart chamou sobre si a fúria dos con-
servadores. Embora não explicitamente, Jango se
opôs à forma moderada e conciliadora pela qual o
O Governo Goulart e o Golpe de 64 debate do anteprojeto de Reforma Agrária de autoria do ministro da Agricultura, o conhecido usineiro
pernambucano Armando Monteiro (PSD). Apesar
de ter criado importantes assessorias técnicas (Superintendência da Reforma Agrária, SUPRA, e o Con-
selho Nacional de Reforma Agrária), o primeiro gabinete não chegou a enviar nenhum projeto de Reforma Agrária ao Congresso. A rigor, o que provocou a violenta reação dos
setores de direita foi o apelo do presidente ao Con-
gresso no sentido de este realizar uma reforma da
Carta de 1946. A reforma constitucional reivindicada por Goulart visava basicamente a alterar o 8 16 do Art. 141 que condicionava as desapropriações de
terra à “prévia e justa indenização em dinheiro”. A
vigência de tal preceito constitucional, na prática, impedia — pelos altos recursos a serem dispendidos
pelo governo — a realização de uma Reforma Agrária que implicasse uma ampla redistribuição de terras âqueles que nela efetivamente trabalhavam. Di-
ante da proposta do presidente da República, unem-
se proprietários rurais, setores da Igreja, congressistas liberais e conservadores, imprensa, etc., para denunciar a “reforma agrária radical” cogitada, se-
gundo eles, por Goulart. Na ótica desses grupos, a “revolução agrícola" deveria se fixar na “obediência
aos preceitos constitucionais aliada ao interesse prioritário pelo estímulo à produção” (Aspásia Camargo,
“A Questão Agrária”, in Brasil Republicano). Como observou a autora acima, o discurso de
a
Caio Navarro de Toledo
Volta Redonda pode ser considerado como um im-
portante marco político: seja porque representou o
primeiro esforço concentrado do governo em torno da realização das Reformas de Base (o segundo momento dessa campanha ocorreria a partir de abril de 1963), seja porque significou o afastamento político do presidente da República face ao Conselho de Ministros e ao regime parlamentarista propriamente
dito. Reconhece-se, também, nessa data, o início da intensificação da luta pela antecipação do Plebiscito. Sem o apoio do presidente da República, o Gabinete Tancredo Neves tinha os seus dias contados.
Sob o pretexto de terem de cumprir a exigência legal de desincompatibilização funcional a fim de poderem concorrer às eleições de outubro de 1962, todos os membros do Gabinete Tancredo pediram demis-
são em junho.
As crises de Gabinete
A formação do 2º gabinete parlamentarista implicou uma complicada batalha política para o presidente Goulart. Os dois grandes partidos conservadores do Congresso, PSD e UDN, uniam suas forças para rejeitar o nome do petebista San Tiago Dantas, indicado por Jango para presidir o novo gabinete. As razões da recusa eram evidentes: San Tiago, que fazia parte da chamada “esquerda positiva”, notabilizara-se, nos meses anteriores, pela condução da política externa independente. O febril anticomu-
O Governo Goulart e o Golpe de 64
3
nismo da direita brasileira jamais poderia perdoar-
lhe o reatamento das relações diplomáticas do Brasil com a URSS; igualmente, a sua intransigente oposição, dentro da OEA, a qualquer sanção contra Cuba socialista lhe valeria a pecha de “traidor da pátria”, por parte dos setores conservadores. Além
do mais, era um elemento da estrita confiança de Goulart, estando, pois, inteiramente solidário na luta que este movia contra o parlamentarismo e a favor das reformas de base.
Sendo forçado a buscar apoio no PSD, Goulart apresentou um outro candidato: Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado. No entanto, esta decisão desagradou as lideranças sindicais comprometidas com a luta pelas Reformas e que, desde o mês de junho, vinham defendendo a formação de um “Conselho de Ministros nacionalista e democrático”.
Diante da negativa face ao nome de San Tiago e da eminente aprovação do Conselho de Ministros a ser chefiado pelo conservador Moura Andrade, o Comando Geral da Greve (CGG) decretou uma greve
geral em todo o país para o dia 5 de julho. No dia anterior, porém, o senador do PSD desistia da sua indicação a primeiro-ministro. Apesar da renúncia de Moura Andrade e dos insistentes apelos de Jango,
a greve foi mantida. Na Guanabara, estado onde se concentrou praticamente todo o movimento
pare-
dista, os militares doI Exército — sob o comando do
general nacionalista Osvino Alves — colaboraram com os grevistas; não cederam veículos de seu uso para transporte público e também participaram das nego-
Caio Navarro de Toledo
ciações para a libertação dos líderes sindicais reprimidos pela polícia do reacionário governador da
Guanabara, Carlos Lacerda (S. Amad Costa, CGT e
as Lutas Sindicais Brasileiras). A greve — considerada pelo líder comunista Jover Telles como a maior
da história do movimento operário brasileiro — foi
igualmente vitoriosa pelo fato de o presidente Gou-
lart sancionar, uma semana depois, a lei que insti-
tuiu o 13º salário, uma das principais reivindicações da greve geral. O novo gabinete, presidido por Brochado da
Rocha (PSD), recebia voto de confiança no dia 13 de
julho. Tratava-se de um gabinete de centro com
orientação reformista. Nos seus dois curtos meses de existência, este conselho distinguiu-se basicamente
por duas iniciativas políticas. À primeira consistiu
num projeto de lei enviado ao Congresso visando antecipar a realização do Plebiscito; propunha-se o dia 7 de outubro, data marcada para as eleições da
renovação do Congresso e escolha de alguns governadores de estado. Nova derrota de Goulart e do
gabinete; nova greve geral seria decretada pelas lideranças sindicais. Embora tivesse uma extensão me-
nor do que a anterior, a greve foi igualmente vitoriosa pois, na madrugada de 15 de setembro (data
fixada para a paralisação dos trabalhadores), o Congresso aprovou um projeto conciliador dos pessedistas Gustavo Capanema e Benedito Valadares. O Plebiscito, finalmente, tinha agora seu dia definido: 6 de janeiro de 1963. No entanto, a greve não reivindicava apenas a convocação do referendum popular;
O Governo Goulart e o Golpe de 64 exigia, também, a sanção da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo Congresso mas ainda não regulamentada pelo Executivo), a elevação dos níveis de
E úrio mínimo na base de 100%, etc. Posto que o
governo prometeu realizar estudos no sentido de
atender àquelas reivindicações, o Comando Geral do Trabalhadores (CGT), recentemente criado, sus-
pendia a greve.
A segunda importante iniciativa do Gabinete
Brochado da Rocha consistiu numa mensagem enviada ao Congresso na qual se solicitava a autori-
zação deste para que o Conselho de Ministros pu-
desse legislar, através de decretos, sobre as Reformas de Base, remessa de lucros, regulamentação do direito de greve, abuso do poder econômico, etc. Ex-
pressando os interesses dos proprietários e das associações rurais, bem como da burguesia associada ao capital multinacional, a aliança PSD/UDN
fechava
a questão contra a “delegação de poderes” pedida
pelo gabinete. Prevendo a iminente derrota no plemário do Congresso, Brochado da Rocha demi e Desta forma, o Congresso cedia quanto à convocação do Plebiscito, mas a sua maioria não abriria mão de
sua condição de intransigente defensora dos interesses das classes proprietárias e dos setores politicamente conservadores e de direita. Uma vez mais,
Brizola se encarregaria de expressar a insatisfação dos movimentos populares e das correntes políticas
nacionalistas e de esquerda: “O povo não poderia
esperar outra coisa de um Congresso constituído, em
sua maioria, de latifundiários, financistas, ricos co-
Caio Navarro de Toledo.
merciantes e industriais representantes da indústria
automobilística, empreiteiros e integrantes da velha
oligarquia brasileira” (apud M. Victor, 5 Anos que
A campanha do plebiscito O terceiro e último sidido pelo ex-ministro duraria pouco mais de meados de setembro de
Conselho de Ministros, predo Trabalho, Hermes Lima, 4 meses. À rigor, a partir de 1962, o comando do Execu-
tivo passava praticamente para as mãos do presi dente da República.
Como
viria a assinalar mais
tarde o último premier do governo parlamentarista: Vivia-se no país uma atmosfera mais presidenci
lista que parlamentarista”” (Hermes Lima — apud M. Bandeira, op. cit). Nesse sentido, deve-se reconhecer que o Gabinete provisório — oficialmente
empossado dois meses depois — estava inteiramente
solidário com o mais importante objetivo político perseguido por Goulart naquele momento: articular as forças políticas e sociais do país a fim de derrotar o
parlamentarismo na eleição plebiscitária de 6 de janeiro.
Pode-se afirmar que este gabinete esteve intei-
ramente envolvido com a campanha do Plebiscito. Excluída a direita mais ardorosamente anticomunista e antijanguista (a maioria da UDN, IPES/
IBAD, imprensa conservadora, etc.), poucos “move-
ram uma palha” em defesa do parlamentarismo. Em
(O Governo Goulart e o Golpe de 64
Revista Manchete, 22.12.1962.
37
Caio Navarro de Toledo contrapartida, inúmeras foram as entidades e orga-
nizações que se empenharam na batalha política pelo
retorno do presidencialismo. Importantes figuras políticas nacionais (algumas delas particularmente interessadas
em
se candidatar,
em
eleições
diretas,
para a sucessão presidencial de Jango) apoiaram ostensivamente
a derrubada
do
regime
parlamenta-
rista. Entre eles se incluíam Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola, Cid Sampaio, Magalhães Pinto, Ju-
raci Magalhães e Carlos
Lacerda (a UDN,
partido
dos três últimos, defendia a manutenção do parla-
mentarismo). Durante a campanha do Plebiscito, importantes
figuras da oficialidade militar posicionaram-se a fa-
vor da volta do presidencialismo. Poucas razões igual-
mente tinham os trabalhadores para apoiarem
o
regime parlamentarista. Nas últimas semanas de 1962, a CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria) conclamava os trabalhadores brasileiros a comparecer ao referendum: “Todos, no
dia 6 de janeiro de 1963, assinalem o NÃO: NÃO à
espoliação do país; NÃO aos exploradores do povo;
NÃO à carestia e à fome. Portanto, companheiro, um NÃO grande ao parlamentarismo”. A rigor, para os trabalhadores, a luta pela retomada do presiden-
cialismo significava, simplesmente, dar um “voto de confiança” ao presidente defendendo publicamente fundamentais na estrutura No dia 6 de janeiro
da República que vinha a realização de reformas da sociedade brasileira. de 1963, depois de uma
intensa e dispendiosa campanha político-publicitária
O Governo Goulart e o Golpe de 64 contra O regime parlamentarista —
comandada
por
Goulart e financiada por setores da burguesia brasi-
leira —, cerca de 13 milhões de eleitores compareciam às urnas. Numa proporção de 5 votos para 1,
rejeitava-se o regime implantado na crise políticomilitar de agosto de 1961. O regime parlamentarista fracassou pois se reve-
lou altamente ineficaz do ponto de vista administra-
tivo, como também pelo fato de ter-se constituído
numa fonte permanente de crises institucionais e
políticas. O caráter híbrido e dualista do sistema — o presidente da República e o Conselho de Ministros, além de disputarem o controle do Executivo, diver-
giam quanto aos seus programas e prioridades de governo — dificultava a tomada de decisões que a realidade econômica e social do país urgentemente
demandava. Não se sustentam, pois, aquelas inter-
pretações que atribuem exclusivamente à “má vontade” ou ao “desinteresse” de Goulart a responsabi-
lidade pela “triste sorte” que veio a ter o parlamentarismo no país. Ressalte-se que o gabinete presidido
por Brochado da Rocha buscou agilizar as decisões no campo administrativo e econômico; mas as Refor-
mas de Base e outras medidas que estavam previstas para serem implementadas esbarraram na intransi-
gente oposição da aliança PSD/UDN. O Congresso que encerrava a sua legislatura em 1962, sendo majo-
ritariamente conservador, constituiu-se, assim, num forte obstáculo ao encaminhamento de políticas de caráter reformista oriundas do Executivo (seja da Presidência da República, seja do Gabinete).
Caio Navarro de Toledo
Na crise político-militar de agosto de 1961, os
dois maiores partidos conservadores apressaram-se
em instituir no país um regime que lhes permitiria deter maiores possibilidades para o controle do Executivo. Como vimos, em certa medida, foram bem-
sucedidos nesse intento, pois conseguiram impor limites e barreiras à ação do Executivo reformista — reconhecidamente mais eficazes do que aqueles tradicionalmente utilizados em regime presidencialista,
No entanto, o parlamentarismo — forjado a toque de clarim e em ritmo marcial — não resistiu às inú-
meras crises políticas que seu funcionamento provocou e não conseguiu resolver.
UM GOVERNO NO TRAPÉZIO No dia 23 da janeiro de 1963, com a revogação
da emenda parlamentarista, João Goulart reassumia
os plenos poderes que a Carta de 1946 conferia ao
presidente da República. Após o malogro da experiência parlamentarista, todas as indagações polí-
ticas resumiam-se na seguinte: conseguiria o governo presidencialista de Goulart superar a crise econômico-financeira, aliviar as tensões sociais e afastar as
crises políticas que vinham continuadamente desgas-
tando a administração pública? Não seria exagerado
afirmar que — entre os diferentes setores sociais — era praticamente consensual o reconhecimento de que da solução da crise econômico-financeira dependia fundamentalmente o encaminhamento satisfa-
tório dos demais problemas que afetavam o país. As
propostas que as diversas classes sociais e grupos políticos ofereciam para resolver os problemas
da
inflação, do déficit da balança de pagamentos, da
Caio Navarro de Toledo
“2
continuidade do desenvolvimento econômico, ete., não deixavam de ter orientações diferentes e, por vezes, antagônicas. A este respeito deve-se ressaltar que os tempos de Goulart constituíram-se em anos “extremamente férteis” na medida em que neles se processaram intensos debates sobre os rumos e direqões que deveriam ser trilhados pela economia e sociedade brasileiras. Como observou um economista: “Ao contrário dos anos anteriores, em que reduzidas
minorias controlavam a formulação política, nestes anos novos agrupamentos passaram a fazer ouvir sua
voz no processo de decisão social. A política econômica não foi indiferente a este contexto social mais complexo" (Carlos Lessa, 15 Anos de Política Eco-
nômica).
Como tende a ocorrer em todo regime democrá-
tico-burguês, o Executivo anunciava que o seu Plano de Governo tinha condições de resolver em profun-
didade os impasses e as dificuldades enfrentados pelo conjunto da sociedade brasileira. Essa ambiciosa proposta foi denominada de “Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico-Social: 1963-1965”, tendo sido elaborada pelo economista Celso Furtado (ministro do Planejamento), com a colaboração de San Tiago Dantas (ministro da Fazenda). A concepção e a execução do Plano Trienal — bem como as reações dos diferentes setores sociais e políticos a ele — contribuem de forma significativa para entendermos o que foi o governo Goulart.
A análise da composição do primeiro ministério presidencialista, bem como o exame crítico do Plano
O Governo Goulart e o Golpe de 64
Trienal, anunciavam muito expressivamente o estilo conciliador que iria predominar durante o governo Goulart — autêntico “governo de trapézio”, segundo o julgamento de um jornalista político. No Ministério encontravam-se políticos conservadores do PSD (Antonio Balbino e Amaral Peixoto), petebistas do grupo “fisiológico” (San Tiago Dantas e José Ermírio de Moraes — um dos expoentes da chamada “burguesia nacional”), um petebista do “grupo compacto” ou “ideológico” (Almino Afonso), técnicos “apartidários” como Celso Furtado e militares “duros” como o gal. Amaury Kruel. Por outro lado, o Plano Trienal, na sua formulação teórica, julgava poder harmonizare satisfazer interesses contraditórios — de patrões c empregados, de proprietários e trabalhadores assalariados. Quais os principais objetivos e propostas do Plano? Plano Trienal:
“combater a inflação
com desenvolvimento"
Diante das duas mais importantes tendências do comportamento da economia brasileira no início dos anos 60 — “aceleração inflacionária” (37% em 1961 e 51% em 1962) e “desaceleração do crescimento” (taxa de 7,3% em 1961 e 5,4% em 1962) —, o Plano
Trienal pretendia compatibilizar o combate ao surto inflacionário com uma política de desenvolvimento
que permitisse ao país retomar as taxas de cresci-
Caio Navarro de Toledo mento do PIB (em torno de 7%) alcançadas durante o período de 1957 a 1961. Como reconheciam os setores de esquerda, o Plano constituía-se num avanço em relação às teses ortodoxas dominantes, pois buscava combater o processo inflacionário “sem sacrifício do desenvolvimento”. Paralelamente a estes dois objetivos principais, o Plano pretendia contribuir para uma melhor distribuição dos frutos do desenvolvimento econômico, juntamente com “a redução das desigualdades regionais de níveis de vida”. Enfatizava, porém, o Plano Trienal, que se o processo inflacionário não fosse reduzido a limites toleráveis, o País — com uma iminente hiperinflação (prevista em 100% para fins de 1963, caso o plano de estabilização falhasse) — teria toda a sua atividade econômica paralisada e, consequentemente, passaria a ser o palco de perigosas lutas sociais.
Tanto a análise feita pelo Plano sobre as causas
do processo inflacionário, como as soluções ali apontadas, não deixariam de ser objeto de intensas polêmicas. Do lado do setor externo, admitiam as esquerdas que era correta a afirmação segundo a qual a inflação era provocada pela drenagem de recursos para oexterior (através da “deterioração das relações de trocas”) e pela transferência de renda (na forma de subsídios
governamentais)
para
o setor expor-
tador. Contudo, os “remédios” propostos — “refinanciamento da dívida externa” e “entrada de recur-
sos externos” para a amortização de empréstimos
anteriormente contraídos — eram praticamente ineficazes como medidas antiinflacionárias; além do
O Governo Goulart e o Golpe de 64 idas com a entrada de capitai estrangeiros agravaria ainda mais o nosso endividamento no exterior. Para as esquerdas, o Plano constitufa-se numa nova capitulação ao latifúndio e ao imperialismo: não se propunha a eliminação dos subsídios ao setor latifundiário-exportador nem se reconhecia o papel inflacionário representado pelas remessas ao exterior de “juros, lucros e royalties, e a entrega de enorme soma de recursos públicos às grandes companhias estrangeiras, diretamente e através de isenções de impostos e favores cambiais” (H. Hoffmann, “O Plano Trienal e a Inflação”, in Estudos Sociais, nº 16). Em relação ao setor público, a estratégia adotada para reduzir a pressão inflacionária consistia num “conjunto de medidas de ação convergente”. Destacava, contudo, a “redução do dispêndio público programado” como o mais importante fator responsável pela inflação no País. Contra esta perspectiva, críticos à esquerda advertiam: “(...) o nível de gastos públicos não pode ser comprimido se se quer que a economia se desenvolva” (Paul Singer, Análise Crítica do Plano Trienal). Como se verá mais adiante, a realidade não deixará de dar razão a esses críticos.
as
Caio Navarro de Toledo
Um plano antipopular e capitulacionista Para o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas,
o êxito da política econômico-financeira
depender da não oficiais” enfrentava o oficiais, que
passava
a
“compreensão geral das áreas oficiais e acerca da “dramática situação” que País. Era voz corrente, nos círculos “o País não suportaria, no momento,
nem reivindicações salariais nem a pressão por maiores lucros, e as medidas que se adotam para evitar que a conjuntura desemboque num colapso financeiro devem ter a compreensão e a colaboração dos
dirigentes das classes produtoras e dos sindicatos de
trabalhadores” (Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de 1964). Na perspectiva do governo, nivelavam-se, assim, as “boas vontades”: de um la-
do, a dos empresários que deveriam moderar, provisoriamente, o apetite por Incros crescentes; de outro,
a dos trabalhadores assalariados, que deveriam dei-
xar de pressionar — adiando, pois, suas greves e
reivindicações — por salários mais elevados. Ora, bem se sabia que tais reivindicações visavam, simplesmente, recompor para a classe trabalhadora um
nível de participação menos deteriorado na renda
nacional. (Como mostrou um economista, a partir de 1958, com a única exceção de 1961, houve uma acentuada deterioração do salário mínimo real.) (Francisco de Oliveira, “Crítica à Razão Dualista”, in Estudos Cebrap.) Apesar da sua formulação teórica
O Governo Goulart e o Golpe de 64 não considerar os salários como fatores inflacionários, na prática, no entanto, o Plano pedia aos trabalhadores — como sempre o fazem os planos de “sal-
vação nacional” — “patriotismo”.
Mas,
acima
mente) “apertassem os cintos”
de
, “paciência” e
tudo,
que
(nova-
O entusiasmo governamental começou a se es-
boçar em fevereiro e março, em virtude do apoio que o Plano recebia de associações das “classes produtoras” (a Confederação Nacional da Indústria, CNI),
de governadores de estados, etc.; contudo, ele sofre-
ria seus primeiros e fortes abalos com
as críticas
vindas de setores sindicais e das organizações polí-
ticas nacionalistas e de esquerda. Logo nos primeiros dias de fevereiro um manifesto do CGT revelaria que seria tormentosa a administração do presidente Goulart. Nesse documento combatia-se a política financeira do Plano Trienal, pois enquanto este deixava intactos os lucros fabulosos do capital estrangeiro, dos latifundiários e dos grandes grupos econômicos nacionais, impunha, por outro lado, maiores sacrifícios às classes populares e trabalhadoras. Um crítico de esquerda assinalaria: “(...) o Plano Trienal visa a combater a inflação sem reduzir o crescimento
econômico do país, no que se manifesta, tipica-
mente, a inspiração da burguesia nacional. Do ponto de vista dos defensores do Plano esta seria uma razão
suficiente para que os trabalhadores o apoiassem. A verdade é, porém,
que esta não é uma
razão sufi-
ciente, mas uma razão burguesa e, portanto, inacei. tável para os trabalhadores” (Jacob Gorender,
“O
Caio Navarro de Tolk
Plano Trienal e o Combate à Inflação”, Novos Rumos, fevereiro de 1963). As críticas avolumaram-se e se intensificaram a
partir do momento em que as conseqiências da poli-
tica de eliminação de subsídios ao trigo e ao petróleo (uma das medidas prioritárias no combate à inflação) começaram a ser sentidas pelos setores popu-
lares. Em fevereiro, calculou-se que o fim da política
de subsídios aumentaria o custo do transporte em
40% e o preço do trigo e do pão em 177%. Nos três
primeiros meses de 1963, o índice geral dos preços
subiu 16%, enquanto no mesmo período de 1962 o índice de aumento foi de 8%. A condenação ao Plano, unânime por parte dos setores sindicais e popu-
lares e das organizações políticas de esquerda (CGT, PUA, FPN, UNE, “grupo compacto” do PTB, etc.), iria ter repercussões dentro do próprio Ministério, na medida em que a “diretriz de Almino Afonso no Ministério do Trabalho, ao fortalecer as direções operárias mais independentes, como o CGT, PUA, etc., colidiu com os interesses de Goulart” (Moniz
Bandeira, op. cit.). Do lado dos empresários (parti-
cularmente da poderosa indústria automobilística concentrada em São Paulo) havia “queixas generalizadas de falta de crédito”. Diante das “violentas
críticas” destes setores — encampadas pela própria
CNI — haverá, no segundo trimestre de 1963, o relaxamento da política monetária que fará os meios de pagamento crescerem de 179,4 bilhões de cru-
zeiros contra a expansão projetada de 74,1 bilhões, “o que afetou definitivamente o esquema do Plano
E
O Governo Goulart e o Golpe de 64 les E Trienal” (C. Lessa,
Os aspectos antinacionais da política econômico-financeira do governo Goulart ficariam tam-
bém evidenciados quando das conversações entre Brasil e EUA acerca da negociação da assistência econômica norte-americana e refinanciamento da dí-
vida externa. Em março de 1963, San Tiago Dantas viajava a Washington com um forte argumento para convencer O governo norte-americano a fornecer as-
sistência financeira ao Brasil: o Plano Trienal era a decisiva prova de que o País passava a se enquadrar
dentro do receituário econômico-financeiro propugnado pelo governo dos EUA e pelo FMI. Mas os EUA, além de exigirem um compromisso formal por
parte do governo brasileiro de que o plano “não ficaria apenas no papel”, impuseram ainda uma nova condição para a concessão do empréstimo solicitado:
o governo Goulart deveria resolver com a má-
xima urgência a questão da desapropriação da AM-
FORP (American Foreign Power, subsidiária da Bond & Share). Duas cartas de Goulart foram entregues a Kennedy por intermédio de San Tiago Dantas: nelas o governo brasileiro comprometia-se a
cumprir as duas exigências norte-americanas. (Entre
os políticos norte-americanos circulava a versão de que a chamada “ajuda externa” dos EUA era frequentemente desperdiçada pela má administração dos governos latino-americanos. No caso brasileiro,
deixava, pois, de ser informado que,
““na verdade, o
que ocorria não era uma transferência de capitais dos EUA para o Brasil e, sim, ao contrário, um escoa-
“9
Caio Navarro de Toledo.
mento de recursos do Brasil para os EUA”. Entre 1947 e 1960 entraram (empréstimos e investimentos) US$ 1.814 milhões e “'saíram no mesmo período... US$ 2.459 milhões sob a forma de remessas de lucros e juros, deixando um saldo negativo da ordem de US$ 645 milhões” que, “acrescidos de US$ 1.022 milhões, sob a rubrica Serviços, ou seja, remessas de lucros clandestinas, perfaziam um total de US$ 1.667 milhões. Em suma, num período de 13 anos, um volume considerável de dólares foi transferido do Brasil para os EUA. Rigorosamente, exportávamos muito mais capitais do que recebfamos” — Moniz Bandeira, op. cit.) Para tornar ainda mais complicada a situação do governo brasileiro nas negociações de Washington, um porta-voz do Departamento de Estado — baseado nos relatórios de Mr. Gordon enviados regularmente da embaixada norte-americana no Brasil — alertava a opinião pública de seu país sobre a “perigosa atuação de comunistas” dentro da assessoria técnica de Goulart. Apesar das duas cartas do governo brasileiro (onde se garantia o acatamento às exigências norte-americanas) e de uma solene declaração oficial que negava a existência de “esquerdistas”” na assessoria governamental, os EUA aprovaram um empréstimo de apenas US$ 84 milhões, prometendo US$ 314,5 milhões para o ano fiscal de 1964, caso as medidas de contenção inflacionária fossem efetivamente aqui aplicadas; antes, contudo, deveriam elas ser aprovadas por uma comissão do FMI, cuja visita ao Brasil estava prevista para mea-
Eo Governo Goulart
e o Golpe de 64
dos de 1963. Embora os “brios nacionalistas” do o brasileiro fossem feridos — noticiou-se que San Tiago Dantas ameaçara abandonar as negocia-
ções com os EUA —, “razões pragmáticas” fizeram com que as imposições norte-americanas fossem aceitas, conforme se verificou através do acordo Dantas/ IL.
EO O caso da compra da AMPORP — o “escândalo da AMFORP” como ficou conhecido na imprensa da época — transformou-se em grave problema político
para a administração Goulart. Enquanto retirava os
subsídios para o trigo e o petróleo e cortava alguns investimentos públicos, sob o pretexto de combater a inflação, o governo brasileiro anunciava, em fins de abril, que se ultimayam os entendimentos para a compra da AMFORP (que congregava 12 empresas
de serviços públicos). San Tiago Dantas e Roberto Campos (que a esquerda nacionalista ironicamente
chamava de “Bob Fields”, por ser ele um “refinado entreguista”) tinham acertado com os representantes
da empresa norte-americana o valor da transação: 188 milhões de dólares. Na mesma ocasião, um gru-
po de trabalho integrado por técnicos brasileiros (CONESP) — dissolvido logo a seguir por Goulart —
avaliava os bens da AMFORP em torno de S7 miThões de dólares. Para os setores nacionalistas, estava-se diante de uma imensa negociata, pois, além do preço extorsivo, as 12 usinas norte-americanas estavam obsoletas, constituindo-se em verdadeiro “ferro velho”. Tais denúncias tiveram ampla repercussão política. Goulart recuou, protelando a realização da
s1
Caio Navarro de Toledo:
compra, para desagrado do governo norte-americano. (Em outubro de 1964, demonstrando eloqiente “boa vontade” para com os empresários e governo dos EUA, o governo do mal. Castelo Branco adquiria a AMFORP.) O prestígio político de Goulart foi seriamente abalado neste episódio; inclusive os setores conser-
vadôres não lhe pouparam duras críticas, ao ser conivente com negociações que os grupos nacionalistas classificavam de autêntico “crime de lesa-pátria”.
O
plano, antes de completar 6 meses de duração, inviabilizava-se política e economicamente. Nem os empresários, nem os trabalhadores lhe ofereciam qual-
quer apoio. Em maio, o Ministério da Fazenda, diante das fortes pressões dos assalariados, tomava
uma decisão inteiramente contrária às projeções do
Plano, ao conceder um aumento de 70% aos funcio-
nários civis e militares, quando estava previsto apenas 40%. De outro lado,
o governo — face às
como já foi mencionado,
reivindições de setores indus-
triais — voltaria atrás em suas medidas de contenção do crédito.
O malogro do Plano se revelou de forma completa ao se proceder ao balanço do ano de 1963: nem desaceleração da inflação, nem aceleração do crescimento foram alcançadas. Houve, sim, inflação sem
desenvolvimento. Razão, pois, tinham os críticos de esquerda quando — denunciando a retórica progressista do Plano — adyertiam para os aspectos recessionistas, antipopulares e antinacionais das medidas concretas ali propostas.
5
O Governo Goulart e o Golpe de 64 E As reformas:
como garantir
a propriedade e impedir a “convulsão
social”
Outra batalha política que esteve em pauta durante todo o governo Goulart foi a das Reformas de
Base (Agrária, Bancária, Administrativa, Fiscal, Eleitoral, Urbana, etc.). Recorde-se que esta proble-
mática fazia parte dos programas dos três gabinetes
parlamentaristas e agora aparecia como um dos objetivos básicos do Plano gavam de divulgar os cianos, Goulart queria tica do Brasil como o
Trienal. (Como se encarreconfidentes e cronistas palanotabilizar-se na história polí“presidente da Reforma So-
cial”.) Reconhece-se, no entanto, que a bandeira das
Reformas passou a ser empunhada pelo governo, de forma
mais enérgica,
no período
presidencialista,
apenas a partir do instante em que se começou a perceber o malogro do Plano Trienal. Logo nos primeiros meses do ano, análises feitas pelas esquerdas não apenas denunciavam o “cozimento em água fria das reformas” — amplamente agitadas por Goulart durante a campanha do Plebiscito —, como também passavam a duvidar do conteúdo efetivamente trans-
formador de que poderiam se revestir as propostas governamentais (Caio Prado Jr., Revista Brasiliense,
nº 44). Qual seria, enfim, a perspectiva oficial acerca das Reformas de Base?
Assinala um sociólogo que, na visão dos gover-
nantes, “se não houvesse Reformas de Base
(. ) não
secriariam as novas 'condições institucionais” para o
Caio Navarro de Toledo
desenvolvimento de outra etapa da economia brasileira” (Octavio Ianni, Estado e Planejamento Econômico no Brasil); significava isso — conforme o reconhecimento do próprio Plano Trienal — que as Reformas de Base eram indispensáveis, ao lado do planejamento, a fim de que o capitalismo industrial brasileiro pudesse alcançar um nível de desenvolvimento superior. Afirmava o Plano, por exemplo, que as reformas fiscal e agrária eram essenciais se se
pretendesse a “eliminação de entraves institucionais à utilização ótima dos fatores de produção”. Razões
econômicas e sociais impunham a urgente realização das reformas, dentre elas a que mais debates provo-
cou naquele período: a Reforma Agrária.
De um lado, era preciso aumentar a produção agrícola (alimentos que suprissem as demandas da população urbana em crescimento; matérias-primas para a expansão industrial, etc.), ao mesmo tempo que se buscava criar um mercado interno mais amplo para os bens manufaturados. De outro lado, prevendo-se situações incontroláveis de tensões e distúrbios sociais, propunha-se uma melhor redistribuição
da terra (em mãos de um reduzido número de latifundiários e frequentemente mantida de forma improdutiva). É exemplar a este respeito o testemunho
de um dos mais íntimos colaboradores de Goulart, acerca da concepção que este defendia de Reforma Agrário .) o que Jango tentava fazer não tinha nada de muito ousado nem
de radical.
Ele dizia
sempre que, se o número de proprietários rurais fosse elevado de 2 para 10 milhões, a propriedade seria
pe O Governo Goulart
e o Golpe de 64
muito melhor defendida, e simultaneamente possibi-
lidades maiores seriam abertas a mais gente de co-
'mer mais, de se educar melhor, de viver mais dignamente. Por isso é que Jango, latifundiário, queria
fazer a Reforma Agrária para defender a proprie-
dade e assegurar a fartura, evitando o desespero
popular e a convulsão social” (Darci Ribeiro, “Governo Goulart caiu por suas qualidades, não por seus defeitos”, in A História Vivida HI — O ESP, grifos nossos). “Apesar de não ter nenhum sentido revolucionário, correspondendo, pois, de um lado, às necessidades da consolidação do capitalismo industrial e, de outro lado, à estratégia da dominação social bur-
guesa, a Reforma Agrária proposta por Goulart será objeto de intensa e constante oposição por parte dos
proprietários rurais e seus setores políticos, de setores da Igreja Católica, etc. (Recorde-se que, no período parlamentarista,
idêntica foi a reação desses
grupos. A diferença estava no fato de que naquele
momento Goulart não tinha ainda formulado oficial-
mente a sua proposta de Reforma Agrária e de Reforma Constitucional.) Tais setores não admitiam,
por exemplo, a alteração dos preceitos constitucio-
nais sob a alegação de que — caso isso viesse a
Ocorrer — corria-se o risco de ser invalidado o estatuto da propriedade privada no Brasil... Além do mais, conforme assinalou um historiador, as demais
reformas propostas (eleitoral, educacional, etc.) poderiam implicar a “alteração do equilíbrio político” que permitia até então a hegemonia das forças con-
Caio Navarro de Toledo
servadoras e de direita, particularmente no Legislativo. A preocupação política maior das classes domi-
nantes diante das possíveis mudanças no campo são
ressaltadas por uma estudiosa: “Havia, sem dúvida, o incontrolável temor de se ver ingressar na cena política camadas sociais constituídas em “clientelas
políticas! que pudessem ser enquadradas, tal como o fora a classe operária com Getúlio Vargas. Tais temores eram, sem dúvida, realimentados pela aceleração da eclosão de conflitos rurais, que cada vez mais se orientavam para a ocupação de terras” (As-
pásia Camargo, op. cit.).
Enquanto setores do PSD —
apesar dos fortes
compromissos do partido com os proprietários rurais — chegaram, num primeiro momento, a aceitar a discussão do anteprojeto do Executivo, a UDN fe-
chava a questão contra qualquer alteração constitu-
cional. Mas, a posição do PSD será outra a partir da Convenção da UDN realizada em abril de 1963, (Na cronologia do golpe de 64, esta reunião da UDN teve
um papel decisivo: nela, ilustres figuras do partido
defenderam a intervenção das Forças Armadas e dos EUA a fim de porem termo ao “comunismo legal” de Goulart.) Influenciado pelas manifestações das cl madas “bases” da UDN, o PSD recuará defini vamente face às suas primeiras conversações com o governo. Tal fato mostrou-se de forma evidente na votação da “emenda Bocaiúva” (emenda constitucional, apresentada pelo PTB, que buscava tornar financeiramente viável a Reforma Agrária). Por 7 votos (PSD, UDN e PSP) contra 4 (PTB e PDC), a
E O Governo Goulart e o Golpe de 64
s7
emenda seria rejeitada na Comissão Especial da Câmara, no mês de maio. Em Plenário, a emenda foi
derrotada, em outubro, graças à aliança PSD e UDN
— após intensa mobilização dos proprietários rurais,
comandados principalmente pela Confederação Rural Brasileira (CRB). Como ainda observaria a autora acima, a partir do veto na Comissão Especial, os setores naciona-
listas desencadeariam uma campanha de pressão na-
cional sobre o Congresso para a imediata aprovação
das reformas. Através de comícios, passeatas, manifestos, os setores nacionalistas e populares exigem
“reformas já!”, ao mesmo tempo que denunciam o
reacionarismo do Congresso controlado pelo PSD/ UDN pelo “milionário IBAD”. (Brizola diria que o
PSDe a UDN, ao exigirem o pagamento prévio e em dinheiro, tornavam
“negócio agrário”.)
a questão agrária em
autêntico
De outro lado, após ter sido batido na Comissão
Especial, Goulart — apesar das fortes críticas vindas
dos grupos nacionalistas e de esquerda — volta-se
novamente para o PSD.
Em
busca de apoio, aceita
mudanças no anteprojeto de Reforma Agrária do Executivo, a fim de torná-lo “menos radical” e, as-
Sim, aceitável para o conservadorismo do PSD. Para isso, afastou toda a “assessoria gaúcha”,
vinculada
politicamente a Leonel Brizola, que não concordava em fazer “concessões programáticas” no antepro-
jeto. Porém, serão infrutíferos os esforços do novo ministro da Justiça, Abelardo Jurema, figura de relevo do PSD,
a quem foi atribuída a específica tarefa
ce
pisos]
Caio Navarro de Toledo de articular a antiga aliança PSD/PTB. (Jurema sintetizaria a visão conciliadora do governo através de
uma famosa frase: “O PSD sem o PTB irá para a reação; o PTB sem o PSD irá para a Revolução”.
Idêntica missão foi confiada a Tancredo Neves (PSD) ao ser indicado líder da bancada do Governo na Câmara. Porém, o fosso entre o PTB e o PSD apro-
fundava-se na razão direta da aproximação deste com a UDN, os quais se alarmavam com a “agitação
a “desordem” e a “comunização crescente do país” promovidas— segundo estes — por Goulart, pelo PTB e pelas “forças subversivas” (CGT, UNE, FMP, etc.). De outro lado, os setores nacionalistas e de esquerda, criticavam Goulart pela sua indecisão e indefinição em relação a uma série de medidas concretas
de caráter nacionalista e popular que poderiam ser tomadas pelo governo, independentes de qualquer
reforma constitucional. Entre essas medidas — algumas delas defendidas pelo próprio presidente em seus discursos — ressaltavam as seguintes: regula-
mentação da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo Congresso, mas “engavetada” pelo Executivo);
nacionalização das concessionárias de serviços públicos, moinhos, frigoríficos e indústria farmacêutica; intervenção no mercado de gêneros alimentícios; monopólio das operações de câmbio pelo Banco
do Brasil;
monopólio das exportações de café pelo
IBC; ampliação do monopólio estatal do petróleo,
ete.
Administrativamente pouco se realizava, pois o
=,
| O Governo Goulart e o Golpe de 64 governo se consumia em sucessivas crises políticas. Como assinalavam os observadores políticos, havia — do ponto de vista administrativo — “uma pasmaceira geral contaminando todas as hostes governistas”; da mesma forma, o Congresso apresentaria em 1963 um dos seus períodos de maior improdutividade legislativa. Esta realidade dava munição aos setores de direita que alardeavam a “incompetência administrativa” do Executivo e a “crise de autoridade”. O isolamento e debilidade política do governo
l
A sucessão de crises políticas advinha das contradições em que se debatia o governo: ao mesmo tempo que agitaya a bandeira do nacionalismo e das Reformas — solicitando, pois, o apoio das massas populares e dos setores políticos de esquerda —, Goulart, por outro lado, protelava indefinidamente a realização de medidas populares, afastava colaboradores ideologicamente progressistas, combatia os setores independentes (não pelegos) do movimento sindical, condenava abertamente iniciativas políticas de esquerda (em abril de 1963, na cidade de Marília, SP, usou a típica linguagem de direita ao proibir um congresso “comuno-fidelista”). As concessões à reação não se reduziam estes fatos, pois o governo reservava os cargos mais importantes da administração
federal (p;
larmente aqueles responsáveis pela
s
Caio Navarro de Toledo
política econômico-financeira) apenas para os repre-
sentantes das classes domixantes, indicava também ““duros” das Forças Armadas para estratégicos postos de comando e mantinha compromissos com o conservador PSD. Sob a permanente desconfiança da direita e da esquerda, o governo Goulart acabaria isolando-se
politicamente. A ambigilidade e a debilidade política
do governo se mostrariam de forma definitiva no episódio do Estado de Sítio. No dia 4 de outubro, o
presidente da República encaminhava ao Congresso mensagem solicitando a decretação do Estado de Sítio em todo o território nacional, pelo prazo de 30 dias. A justificativa do Ministério da Justiça escla-
recia que o Executivo necessitava de poderes especiais para impedir “grave comoção intestina com
caráter de guerra civil” que punha em
“perigo as
instituições democráticas e a ordem política”, Expli-
citamente eram indicadas algumas das situações internas que perturbavam a ordem institucional: “manifestações coletivas de indisciplina” nas polícias mi-
litares de alguns estados; “sublevação de graduados e soldados" (Revolta dos Sargentos) que punha em risco a disciplina e hierarquia militares; as frequen-
tes reivindicações salariais que passavam a “ser fatores de agravamento da crise político-social” (na oca-
sião ocorria a greve dos bancários em São Paulo e o
PUA anunciava a decretação de uma greve geral caso aquela paralisação fosse julgada ilegal por parte da
justiça trabalhista) e, por fim, o fato de existirem governadores
de importantes estados “conspirando
O Governo Goulart e o Golpe de 64
“2
Caio Navarro de Toledo
contra à Nação”. À ira de Goulart e de seus ministros militares voltava-se particularmente contra o governador da Guanabara que, em entrevista a um jornal norte-americano (Los Angeles Times), havia ridicularizado a autoridade do presidente da República, além de insinuar que os militares brasileiros estavam confusos e desorientados diante de uma administração inteiramente “desastrosa” para o país. Coerente com a “vocação golpista” de seu partido, Carlos Lacerda conclamava o Departamento de Estado à deixar de lado sua “passividade” face à grave situação em que se encontrava o Brasil, presidido por um “totalitário à moda sul-americana” e que “descambaya para a esquerda”. Não havia dúvida de que o Estado de Sítio objetivava, imediatamente, a intervenção na Guanabara e a consegilente derrubada do conspirador-mor da UDN. (Carlos Lacerda afirmaria, posteriormente, que havia escapado, naqueles dias, de um atentado por parte de um comando pára-quedista a mando de Goulart. Embora a demúncia fosse negada por oficiais militares, a UDN e o PSD conseguiram aprovar a constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito a fim de apurar a denúncia de Lacerda.) Logo a seguir, caso manifestasse solidariedade ao seu aliado da Guanabara, poderia “rolar a cabeça” do governador de São Paulo, Adhemar de Barros — acusado de fornecer armas (contrabandeadas da Bolívia) a grupos paramilitares (“milícias patrióticas"). Mas, indagavam os setores de esquerda: quem garantiria que Miguel Arraes também não fazia parte da “lista de saneamento”
O Governo Goulart e o Golpe de 64
8
si, elaborada pelos militares, com a inteira complacência de Goulart? Idêntica pergunta faziam as lideranças sindicais e populares de todo o País acerca do destino
que viriam
militavam.
a ter as organizações
em
que
Embora por razões distintas, todos os grupos
políticos e associações
de classe —
à direita e à
esquerda — opuseram-se à concessão do Estado de
Sítio (apenas os setores “pelegos" do movimento sindical e fração do PTB tradicionalmente fiel a Goulart
tentaram o apoio inútil à medida de força). Os seto-
res nacionalistas e de esquerda viam no Estado de Sítio uma grave ameaça às liberdades democráticas e
aos movimentos progressistas. Afirmava, por exem-
plo, uma nota do CGT: “Somos, por princípio, con-
trários ao Estado de Sítio porque entendemos que a manutenção e ampliação das ticas são meios insubstituíveis os inimigos do Brasil A direita, por seu lado,
liberdades democráe necessários às lutas e aos interesses do via no Estado de Sítio
uma tentativa de golpe tramada por Goulart a fim de permanecer no poder, tal como o fizera Getúlio Vargas em 1937, Diferentemente da ditadura estadono-
vista, estaríamos, então, face a uma “ditadura esquerdizante”, proclamavam os setores de direita.
Quem dará o golpe?
Nos meses seguintes ao frustrado pedido de Es| | “tado de Sítio — retirado pelo governo tão logo se deu RE ss
ss
Caio Navarro de Toledo: conta da fragorosa derrota que sofreria no Congresso
—, ressurgiria, mais vigorosamente ainda na cena
política, o fantasma do golpe de Estado. Na visão da
direita, era Goulart quem o articulava através de seu “dispositivo militar” e com a colaboração de setores
de esquerda. Enquanto a direita promovia uma siste-
mática campanha alarmista, verberando o “golpe de Jango”, as esquerdas — que não deixavam de denunciar a trama golpista da direita — levantavam suspeitas e desconfianças face ao governo. Ainda no mês
de outubro, como assinalou um cronista político, as
esquerdas se sentiriam “abandonadas por Goulart”. Alguns fatos pareciam comprovar essa observação: substituição de Bocaiúva Cunha (“grupo compacto") por Doutel de Andrade; contactos com o PSD; autori-
zação da chamada “operação Arraes" (treinamento
do IV Exército, cujo objetivo foi o de fazer uma “clara advertência” ao “governador esquerdista” de Pernambuco) e a condenação, por parte do governo,
de um congresso das forças populares e de esquerda programado para fins de outubro em Recife. Embora
criticassem o governo, em virtude de suas constantes
“idas e vindas”, as esquerdas entendiam que não
lhes convinha romper politicamente com
Goulart.
Levavam em conta, para tal decisão, o avanço golpista da direita. Novamente a esquerda nacionalista
buscaria convencer Goulart de que a sua única “saí. da”, diante do seu crescente isolamento político, era vincular-se de forma inequívoca e definitiva com os
setores populares e progressistas. Esta também seria uma condição fundamental, argumentavam os seto-
O Governo Goulart e o Golpe de 64
Es ÊÊ res de esquerda, para a efetiva realização das Reformas de Base e para se impedir o golpe. Uma longa entrevista de Goulart, concedida em
novembro a uma revista de ampla circulação em todo o País, ao mesmo tempo que provocava contundentes críticas da direita (os líderes da UDN identificavam no depoimento do presidente um “esforço de preparação de ambiente subversivo”), ia, por outro lado,
reforçar as expectativas das esquerdas de influírem
sobre a composição de um novo Ministério e de um
novo programa de governo. No depoimento, em tom. pessimista e quase patético, Goulart reiterou a ur-
j
gência das reformas (“desejo evitar que a crise cami nhe para um desfecho caótico e subversivo"); denunciou as “forças reacionárias” anti-reformistas; responsabilizou a “deterioração das relações de troca”
como principal causa das dificuldades cambiais do
País e defendeu enfaticamente a “intervenção dos trabalhadores na vida pública”. Interpretando recente decisão política da Frente de Mobilização Popular, Miguel Arraes, após se referir ao importante
depoimento de Goulart, iria expressar o programa
das forças populares face ao governo. A certa altura, afirmava a nota do governador de Pernambuco: “(...) * se o presidente da República, fiel à sua formação política e aos compromissos que tem com as massas trabalhadoras, deseja superar nossa aguda crise interna e manter nossa política externa independente, ele precisa apoiar-se nas “forças populares' e com elas
estabelecer um novo governo, capaz de elaborar e executar um programa democrático, nacionalista e
6s
progressista", Mais abaixo era esclarecido que, no “novo governo”, deveria estar garantida a “parti-
cipação de representantes das “forças populares' em (seus) setores fundamentais”.
Duranteo mês de dezembro, a FMP — particularmente o seu setor “brizolista” — acalentou a esperança de ver Brizola ocupar o cargo de ministro da Fazenda, em substituição a Carvalho Pinto. Para a direita, que se alarmava com a intensa mobilização popular (um dos slogans dizia: “Contra a espoliação, Brizola é a solução”), a nomeação teria o sentido inequívoco
de
uma
“provocação”
e seria
tado (com
a exceção de Pernambuco,
a prova
- definitiva da consolidação da esquerda dentro do governo. (Afirmavam os “brizolistas” que o novo ministro, logo após a sua posse, decretaria a “moratória no plano internacional”.) Governadores de Es-
Sergipe e
Piauí), PSD e UDN ameaçaram com represálias ime-
diatas. No plano internacional, os EUA — através da embaixada no Brasil — declaravam que suspenderiam todas as operações de financiamento e assistência, além de bloquearem suas relações comerciais com o país (Carlos Castello Branco, op. cit.). Depois de alimentar, por algumas semanas, as ilusões das esquerdas, o próprio Goulart — que tinha ainda vivo na memória o episódio da desastrada indicação de “Bejo” (Benjamim Vargas) para a chefatura de polícia do Distrito Federal em 1945 — encarregou-se de
“jogar água fria” na febril agitação dos brizolistas. Para o Ministério da Fazenda foi designado um banqueiro, Nei Galvão. Segundo era voz corrente, tia-
O Governo Goulart e o Golpe de 64
tava-se de um burocrata “despreparado para o car-
go”; um
“homem
de centro-direita” (Brizola diria
que, com este ato, Goulart afastava as forças popu-
jares da “ante-sala do Ministério da Fazenda” Igualmente tal decisão desagradou frações das classes dominantes, pois Carvalho Pinto — tido como um eficiente administrador — vinha, segundo esses
setores, tentando revitalizar algumas medidas de estabilização propostas pelo Plano Trienal. A demissão de Carvalho Pinto representou, assim, o rompimento
de um dos últimos elos que a burguesia brasileira ainda mantinha com o governo de Goulart. O balanço do ano de 1963 revelaria de forma dramática o fracasso da política econômica do .governo: o índice geral dos preços alcançou 78% (preria-se 25%); a taxa do PIB chegou ao ponto mais baixo que se conhecia nos últimos anos, 1,5%; o déficit da caixa do Tesouro Nacional atingiu 500 bilhões de cruzeiros (previa-se 300 bilhões); os meios de pagamentos cresceram de 65% (previa-se 34%). Sem crescimento econômico e com uma vertiginosa
inflação, o descontentamento passa a ser generali-
Zado: nunca o País assistiu, num curto período de
tempo, ao surgimento de tantos movimentos reivin-
dicatórios. Os “tempos de Goulart” singularizam-se (dentro da história política brasileira: neles, a política deixou de ser privilégio do parlamento, do governo e
das classes dominantes, para alcançar de forma in-
tensa a fábrica, o campo, o quartel.
k
7
|
A POLITIZAÇÃO DA SOCIEDADE — ESQUERDA E DIREITA MOBILIZAM-SE
O recrudescimento da luta de classes no início dos anos 60 foi responsável por uma intensa politização de inúmeros movimentos sociais, além de implicar transformações no sistema partidário e na vida parlamentar. Uma das dimensões da crise do sistema partidário brasileiro residiu no fato de que os partidos políticos legais — em número de 13 nas eleições de 1962 — mostravam-se incapazes de refletir, em toda a sua extensão, a correlação de forças existentes no interior da formação social. Igualmente era reconhecido que tais agremiações políticas reproduziam com pouca fidelidade a diversidade das tendências e dos conflitos ideológicos que perpassavam a realidade social do País (O. Brasil de Lima Jr., O Sistema Partidário Brasileiro).
O Governo Goulart e o Golpe de 64 > A crise do sistema partidário:
FNP versus ADP
A “crise de representatividade” dos partidos políticos evidenciava-se por alguns sintomas caracteristicos; nas duas últimas eleições, verificou-se tanto um aumento do número de votos em branco e nulos (votos de protesto”), como o número de alianças e coligações (em alguns estados, assistiu-se à formação 'de “esdrúxulas” alianças entre o PTB e UDN; 47% dos eleitos pela Câmara Federal vieram de coligações). À luta ideológica de classes — que se expressava pelo confronto entre diferentes orientações acerca das reformas sociais (“radical”, “modernização-conservadora”, anti-reformismo) e acerca do nacionalismo (antiimperialismo, nacionalismo moderado, entreguismo) implicará na divisão dos grandes partidos em alas e facções, cujos pontos de vista sobre
aquelas questões eram, frequentemente, irreconci-
liáveis. Neste sentido, os dois maiores partidos conservadores do País (PSD e UDN) — em 1962 detêm, juntos, 54% da representação na Câmara Federal — refletiram em suas fileiras a polarização ideológica que ocorreu no período de Goulart. O PSD — partido que sempre se beneficiou da máquina administrativa do Estado (no nível federal e estadual) — não deixou de ter os seus “dissidentes”, a “ala moça”. Contrariamente às perspectivas da maioria dos mem-
“o
7
Caio Navarro de Toledo bros do partido — comprometida com a defesa dos grandes proprietários rurais e dos “industriais tradicionais” —, este pequeno núcleo do PSD condenava o anti-reformismo visceral de suas “elites” e apoiava as Reformas de Base e algumas propostas nacionalistas. A UDN também teve a sua ala progressista: a “Bossa Nova”, que defendeu as Reformas (inclusive a reforma constitucional), a política externa independente, a lei de remessa de lucros, a democra-
tização do ensino, etc. — teses a que se opunha
energicamente a ortodoxia reacionária dos setores dirigentes do partido (Maria toria Benevides, A UDN o Udenismo). O PTB — que, ao contrário dos outros dois partidos, teve um significativo crescimento em todo o período liberal-democrático — igualmente se encontrava fraccionado. O partido —
cujos quadros provinham principalmente do Ministério do Trabalho — apresentava-se dividido em duas grandes facções: o “grupo compacto” (ou “ideológico”) e o “grupo fisiológico”. Enquanto o primeiro procurava manter uma linha de independência. face ao comando populista de Goulart, o segundo aceitava, sem a menor restrição, a política de conciliação do presidente da República, que acumulava
também a função de presidente nacional do PTB. Esta facção do partido postulava a realização de
reformas sociais “não radicais” e, para isso, defendia uma maior aproximação com o PSD. Na formulação de San Tiago Dantas, tratava-se de uma “esquerda positiva” — “construtiva”, pragmática, “não ideológica”, Por seu lado, o “grupo compacto” destacou-
O Governo Goulart e o Golpe de 64
se por uma negação da tradicional política clientelís-
tica desenvolvida pela “velha guarda” petebista que controlava a burocracia sindical e a máquina da
Previdência Social. Contra o “fisiologismo”, entendia este grupo que o PTB deveria ter uma atuação tica que correspondesse a uma orientação ideoló-
gica mais nítida e mais definida. Ao defender a reali-
zação de reformas de base de cunho radical e pro-
pugnar medidas político-econômicas de caráter anti-
imperialista, o “grupo compacto” identificava-se
«com os demais setores da esquerda nacionalista brasileira. A Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e Ação Democrática Parlamentar (ADP) surgirão na cena
política com o propósito de articular, respectiva-
mente, “progressistas” e “conservadores” .que atuavam nos diferentes partidos políticos. Tais organi-
zações suprapartidárias constituíam-se, assim, na
demonstração eloquente do aguçamento das contradições sociais e da consegúente intensificação da luta ideológica de classes no seio da formação social brasileira. O chamado “realinhamento do sistema partidário”, nos anos 60, realizava-se, pois, através des-
ses dois “superpartidos” dentro do Congresso. Os
mais importantes projetos e discussões que passavam
pelo Legislativo tinham, na verdade, suas decisões encaminhadas por estas duas entidades. Nas votações em plenário, a fidelidade dos parlamentares era
dada, em muitas ocasiões, não aos partidos aos quais pertenciam, mas a uma daquelas organizações. Esta
Situação levava algumas lideranças políticas conser-
mn
vadoras a lamentar a debilidade dos partidos e a “desordem” da vida parlamentar: “(...) estas duas frentes parlamentares, FPN e ADP, em muito con-
correram para a balbúrdia que se instalou no Con-
gresso, principalmente na Câmara, durante todo o
governo Goulart. Quase que os partidos desapareceram e as lideranças, de governo e de oposição,
passaram a ter existência nominal (...)” (Abelardo
Jurema, Sexta-feira 13). Enquanto a FPN reunia a
maioria dos deputados federais do PTB e do PSB (mais os setores “nacionalistas” do PSD, UDN e PDC), a ADP tinha seu núcleo básico proveniente da aliança PSD/UDN/PSP e dos demais pequenos par-
tidos. Até mesmo alguns deputados do PTB — de
uma diminuta “ala direita” — alinhavam-se com o reacionarismo e o entreguismo da ADP.
A politização à esquerda A luta política e a luta ideológica, no entanto,
não estiveram reduzidas à esfera político-institucio-
nal; pelo contrário, elas alcançaram seus mais signi-
ficativos desdobramentos a partir do momento em
que envolveram outros setores da sociedade brasileira. De um lado, estariam os trabalhadores urba-
nos e rurais, os soldados, os estudantes; de outro, os
empresários, os militares, a Igreja, etc.
O sindicalismo brasileiro, no triênio 61/63, alcançou um dos seus momentos de mais intensa atividade (de 1958 a 1960, no governo Kubitschek, ti-
o Governo Goulart e o Golpe de 64 ham ocorrido no País cerca de 177 greves, enquanto
nos três anos seguintes foram deflagradas um total
de 435 paralisações); o que mais distinguiu o movi-
mento sindical nestes 3 anos, porém, foi o seu cres-
cente engajamento nas lutas partidárias dessa con-
juntura de crise. “O envolvimento dos sindicatos nas
jutas políticas tornou mais urgente a necessidade de
unificar a ação dos sindicatos cujas direções seguiam
a mesma orientação política, Deste modo, na medida
em que as disputas ideológicas envolviam o sindica-
lismo brasileiro, assistiu-se à formação de diferentes
organizações de coordenação que agrupavam sin
catos de tendências diferentes” (L. Martins Rodrigues, Sindicalismo e Classe Operária). Foi assim que surgiram, em fins dos anos 50 e início de 60, o CPOS, o PUA, o PAC, o Fórum Sindical de Debates de Santos (SP), etc. Da mesma forma que as demais uniões sindicais, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) nasceu de movi-
mentos grevistas: em S de julho de 1962, lideranças comunistas e trabalhistas que apoiavam o governo de
Goulart criaram o Comando Geral de Greve a fim de coordenar uma greve nacional em defesa de um “ga-
binete nacionalista”.
No mês seguinte, por ocasião
do IV Encontro Sindical Nacional, três mil trabalhadores propuseram a transformação do CGG em CGT. Embora contrariasse a legislação sindical brasileira
— que ainda hoje proíbe a criação de organizações
Sindicais horizontais —, o CGT funcionou até abril de 64; houve, inclusive, em abril de 63, uma tentativa = no final frustrada pela Justiça — do então mi-
Caio Navarro de Toledo.
7
nistro do Trabalho, Almino Afonso, no sentido de legalizar esta central sindical nacional, apesar dos veementes protestos das classes dominantes. No triênio 61/63, o CGT e outros organismos de
alianças intersindicais tiveram uma intensa atuação política. Diversos acontecimentos
e circunstâncias
políticas levaram o CGT e estes órgãos a decretarem (ou ameaçarem) greves políticas. Algumas das razões
dessas decisões foram: defesa da posse de Goulart em, agosto de 1961, pressão para convocação do Plebiscito, defesa da Revolução Cubana, ameaçada pelos EUA por ocasião da “crise dos mísseis”, pressão sobre o Congresso para a aprovação das Reformas de
Base, apoio aos sargentos, negação do Estado de
Sítio, etc. Para afronta dos setores de direita, os líderes do CGT eram frequentemente reconhecidos como interlocutores do presidente da República e de importantes lideranças políticas do País. Daí a fama
que passaram a ter de “Quarto Poder” da Repú-
blica... Não obstante tenha demonstrado uma relativa independência face ao comando de Goulart e de sua
assessoria sindical — particularmente por ocasião de algumas crises políticas e durante a realização de algumas greves —, o CGT colaborou estreitamente com o governo, apoiando-o publicamente na maioria de suas iniciativas políticas. Tal compromisso era justificado pelo fato de a ideologia nacional-reformista elaborada pelo PCB e hegemônica dentro do CGT
ser convergente com as propostas reformistas
75 O Governo Goulart e o Golpe de 64 E do governo Goulart. Contudo, o controle político da entidade por parte de comunistas e petebistas de esquerda sempre foi aceito com muitas reservas por parte de Goulart; tentativas foram feitas pelo governo para “eriar a sua própria base no meio sindical” — foi o caso, por exemplo, do apoio de Goulart à fracassada UST e ao arquipelego Ari Campista por ocasião da eleição para a renovação da diretoria do CNTI, em 1963. Razão parece ter um estudioso quando observ “o CGT foi mais uma organização política das lideranças comunistas e nacionalistas, destinada a ampliar seu poder de pressão na coligação nacional-populista, do que um organismo sindical propriamente dito” (L. Martins Rodrigues, op. cit.). Como comprovação desta última afirmativa, cita-se, entre outras, a preocupação secundária do CGT com o fortalecimento dos sindicatos no interior das empresas. Ou seja, absorvido pelgs grandes batalhas nacionais — lutas pelas reformas estruturais, pela limitação do capital estrangeiro espoliativo, pela defesa das liberdades democráticas, pela ampliação do papel do Estado na economia, ete. —, o CGT deixou de realizar um trabalho permanente junto às bases sindicais, De outro lado, deve ser observado que as greves políticas
deflagradas pela organização tiveram êxito apenas junto às empresas estatais ou controladas pelo governo, sendo praticamente nula à participação do operariado de São Paulo (empresas privadas, nacionais e estrangeiras) nessas paralisações de caráter
político. Ressaltou das greves políticas o “apoio tácito dos nhado o fato de tais
onde
ocorria
um
um pesquisador que a maioria alcançou sucesso quando obteve militares”. Igualmente é subligreves coincidirem com períodos
pronunciado
declínio
do
salário
real, pois “a inflação predispunha os trabalhadores a
sair às ruas” (K. Erickson, Sindicalismo no Processo Político do Brasil). A debilidade político-organiza-
tiva deste chamado “Quarto Poder” (ou “V Exército”, como a ele se referia Jango) ficou definitivamente evidenciada quando, em abril de 1964, a classe operária brasileira assistiu — sem nenhuma. resistência — à preparação e ao desfecho do golpe antipopular e antioperário. A politização dos movimentos de trabalhadores
do campo igualmente se constituiu numa realidade
nova dentro da história política brasileira. “No final dos anos 50, a amplitude que assume a proletari-
zação da força de trabalho e suas repercussões na conjuntura política do momento permitiram
que se
manifestasse uma reação massiva dos foreiros e dos
trabalhadores rurais, dando origem ao que se cha-
mou globalmente de 'movimento camponês!" (M. Nazareth Wanderley, Capital e Propriedade Fun-
diária). As Ligas Camponesas nasceram da resis-
tência — muitas vezes armada — dos foreiros (pequenos agricultores e não proprietários) contra a ten-
tativa de expulsão das terras onde trabalhavam, mo-
vida pelos proprietários; de 1959 a 1962, as Ligas
tiveram uma acelerada expansão em todo o Nor-
(O Governo Goulart e o Golpe de 64
HÉAPÉÔÂ ÊPJPP deste, As Ligas contestavam, abertamente, a dominação política e econômica
a que estavam secular-
mente submetidas as massas rurais. Em algumas localidades, ocorreram conflitos armados entre “camponeses” e proprietários de terra; lideranças camponesas serão perseguidas e assassinadas à mando dos latifundiários, alarmados com a politização das massas rurais. Para Francisco Julião, deputado federal por Pernambuco, cuja legendária fama adyinha da liderança que exercia sobre as Ligas, a luta é contra o latifundiário: “não vemos inimigo no soldado, no padre, no estudante, no industrial, no comunista; o inimigo é o latifundiário”. Neste sentido, a principal bandeira empunhada pelas Ligas foi a Reforma Agrária Radical. Na luta pela Reforma Agrária, as Ligas associam-se às demais organizações políticas de todo o País que, através de comícios, passeatas, manifestos, pressões diretas sobre o Congresso, clamam pela realização das Reformas de Base. (Julião e as Ligas Camponesas, durante muito tempo, foram
objeto de extensas reportagens em conhecidas revistas semanais do País e do exterior (Time, Look, ete.). O Nordeste faminto e sedento, tal como era caracte-
rizado nessas matérias — onde se entatizava também
a presença de “perigosa literatura subversiva” no seio das Ligas —, estava a um passo de uma “guerra camponesa”.)
Paralelamente, os trabalhadores rurais organizam-se através de sindicatos. Embora, de início, tais organizações tivessem uma orientação distinta à das
”
78
Caio Navarro de Toledo,
Ligas — partindo do pressuposto de que no campo
predominavam relações capitalistas, os sindicatos buscavam reforçar a “consciência proletária” dos trabalhadores rurais, estimular as greves, ete. —, a atuação concreta de ambas tornou irrelevantes as suas diferenças ideológicas. Como observou à autora acima, progressivamente os sindicatos incorporam em suas reivindicações a luta pela Reforma Agrária.
Após a promulgação do Estatuto do Trabalhador
Rural (março de 1963) — do qual um dos signifi-
cados é a tentativa do Estado de exercer, à maneira
da CLT, um controle mais direto sobre as atividades
sindicais dos trabalhadores rurais —, Julião propõe que as Ligas se constituam na vanguarda política dos sindicatos rurais. “Quem faz parte da Liga, entre no
Sindicato, e o que entra no Sindicato permaneça na
Liga(...) O Sindicato pedirá o aumento dos salários, o 13º mês, as férias, as indenizações, a escola, o hospital, a maternidade, uma casa decente (...) A Liga, que não depende do Ministério do Trabalho, irá na frente, abrindo o caminho e lembrando a todos que nem o salário, nem o 13º mês são suficientes; são migalhas. O essencialé a terra” (M. N. Wanderley, op. cit., grifos nossos). No entanto, deve-se reconhecer que, a partir de 1962, diante da expansão do sindicalismo rural, diminuiu consideravelmente a
importância política das Ligas, O vanguardismo que
Julião a elas pretendia conferir, igualmente não se concretizou. Com orientação ideológica antagônica à dos mo-
O Governo Goulart e o Golpe de 64
RES
a
vimentos populares de tendência esquerdizante, se-
tores da Igreja católica fomentam a criação de sindicatos rurais “democráticos”. Condenando Julião e as
lideranças de esquerda, postulam que os trabalha-
dores rurais apenas devem defender os seus direitos trabalhistas; combatem, assim, qualquer envolvimento dos sindicatos na luta por uma Reforma Agrária radical posto que, afirmam, a “propriedade privada é um dos pilares da civilização democrática e cristã”. Ao lado das federações e sindicatos “democráticos”, criam-se outros sob a direção dos nacionalistas (PCB) e da “esquerda católica” (Ação Popular). Em dezembro de 1963, 26 federações de todo o País se reúnem para a fundação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Graças a uma aliança entre a AP e o PCB, os “democratas”, que contavam com o controle de 8 federações, saem derrotados. A primeira diretoria da CONTAG passou a ser constituída por4 membros do PCB, 3 da AP e 2 “independentes”. Uma das primeiras decisões da CONTAG foi a de se filiar à CGT, integrando-se, assim, às mobilizações conduzidas pe-
las forças nacionalistas (S. Amad, op. cit.).
À frente antilatifúndio e antiimperialista tam-
bém esteve vinculado o Movimento Nacional dos Sargentos. Além de reivindicarem melhores condições salariais, alterações dos rígidos regulamentos disciPlinares, etc., as camadas subalternas das Forças Armadas manifestavam-se contra a manutenção do Art. 138 da Carta de 1946, que lhes vedava um
7
|
| |
so
Caio Navarro de Toledo
direito elementar da “cidadania' direito de serem eleitos. As associações de sargentos de todo o país — muitas delas vinculadas à liderança brizolista — uniam-se aos trabalhadores rurais e urbanos, aos estudantes, aos parlamentares nacionalistas na luta pelas reformas e na denúncia da espoliação imperialista. (Ficou célebre uma declaração pública de um líder do movimento: “Se os reacionários não per-
| ]
|
mitem as reformas, usaremos, para realizá-las, nosso instrumento de trabalho: o fuzil”.)
As manifestações dos setores subalternos das
Forças
Armadas
—
severamente
contestadas
pela
maioria da oficialidade — culminaram com um gra-
ve acontecimento: a fim de protestarem contra a decisão do STF, que denegou o recurso de dois sargentos eleitos no ano anterior, 650 sargentos da Ma-
rinha e da Aeronáutica, na madrugada do dia 12 de setembro de 1963, rebelaram-se em Brasília. Apode-
raram-se de vários edifícios militares, equipamentos de rádio, serviços de telefonia e telegráficos. Pouco mais de 12 horas foram suficientes para tropas mili-
tares dominarem os sublevados. O CGT, a UNE, a FPN solidarizaram-se com o movimento dos sargen-
tos; o CGT, ameaçou decretar greve geral, caso o
governo solicitasse o Estado de Sítio, reivindicado por altos comandos das Forças Armadas. Apesar de terem sido “exemplarmente punidos” — os líderes
do movimento foram transferidos para as mais lon-
|
gínquas guarnições do País —, prosseguiriam até abril de 1964, os atos de “insubordinação” e de
O Governo Goulart e o Golpe de 64
Ea emma rebeldia" à hierarquia militar, por parte dos politizados setores subalternos das Forças Armadas. Era conhecida a tradição política do movimento estudantil brasileiro. Em décadas recentes, empunhou as bandeiras da redemocratização, do nacionalismo, da defesa do ensino público, da anistia aos presos políticos, etc. Embora tivessem a Reforma Universitária como reivindicação específica, os estudantes, através de sua entidade nacional, a UNE, integraram-se também na frente antilatifúndio e antiimperialista. Postulam, como tarefa política ime-
diata e decisiva, a formação de uma “aliança operário-estudantil-camponesa” (Constituição da UNE, 1963). Como observou um estudioso, para os estudantes que militam na UNE, à Reforma Agrária e a Reforma Universitária são simples momentos da “dialética social”. Argumentava, assim, um documento da entidade: “A aliança com os operários, camponeses, intelectuais progressistas, militares, democratas e outras camadas da vida nacional deve ser incrementada na certeza de que, entreiaçando nossas reivindicações,
torná-las-emos
infinitamente
mais
fortes. Esta aliança implica em fazer da reforma
agrária bandeira dos estudantes, do mesmo modo
que as transformações em nosso ensino possam ser
objetiva e subjetivamente aspiração de operários e camponeses; e assim por diante” (Octavio Ianni, O Colapso do Populismo no Brasil, grifos nossos). Na UNE defrontavam-se, neste momento, diferentes tendências da esquerda brasileira: PCB, PC
81
Caio Navarro de Toledo
doB, AP, Política Operária (POLOP), Quarta Internacional e outros grupos menores. Na luta ideológica
que af se trava, todos combatem o PCB. O apoio
político que este oferecia ao governo — excepcionais
foram os seus desacordos com a “política de conci-
liação” de Goulart — bem como a sua subordinação
aos estreitos limites da ideologia nacional-reformista, foram algumas das duras críticas que o PCB sofria das demais correntes de esquerda. Todas estas tendências — que se autoproclamavam de “esquerda revolucionária” — condenam a estratégia, oficial-
mente propugnada pelo PCB, de aliança do proletariado com a “fração progressista” da burguesia br: sileira como “exigência histórica” para a consolidação da “revolução democrático burguesa” — etapa prévia e necessária para a passagem ao socialismo. Algumas dessas correntes de esquerda, postulando o marxismo-leninismo, propõem uma “frente de esquerda” — e não uma “frente única” como defendia o PCB — a fim de libertar a luta de massas
do “reformismo" e da “política pequeno-burguesa da colaboração de classes'
Embora aquelas tendências pouco ortodoxas
fossem encontradas no interior do movimento estu-
dantil, a UNE não deixou de participar da ampla
frente
antilatifúndio
ativamente
e antiimperialista
coordenada pela Frente de Mobilização Popular (EMP). À FMP vinculavam-se o CGT, as Ligas Camponesas, a FPN, a UNE, o movimento dos sargentos. Em certa medida, o “radicalismo” do movimento
ii
O Governo Goulart e o Golpe de 64 estudantil, onde o confronto entre as diversas corren-
tes de esquerda era bastante visível, contribuía para a UNE pressionar o governo de Goulart e a FMP mais para a “esquerda”. A contramobilização de direita
Não foram apenas os setores populares e progressistas que politicamente se mobilizaram nesse período. Os empresários — bem como os militares e setores da Igreja Católica — organizaram-se para defender seus interesses e para combater o avanço político dos movimentos sociais de orientação nacionalista e de esquerda. Num estudo recentemente publicado, documenta-se, ampla e exaustivamente, a atuação político-ideológica dos empresários, aglutinados em torno do complexo IPES/IBAD, o qual teve um papel decisivo na contramobilização de direita. (Todo este item se baseia no trabalho de R. Armand Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado.) O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), criado em fins da década de 50, propunhaseo “ambíguo propósito de defender a democracia”; durante os “tempos de Goulart” sincronizou suas atividades às de organizações paramilitares e anticomunistas, tais como o Movimento Anticomunista (MAC), a Organização Paranaense Anticomunista (OPAC), a Cruzada Libertadora Militar Democrá-
bo
Caio Navarro de Toledo
tica (CLMD), etc. Intimamente associado à Aliança
Democrática Parlamentar, o IBAD financiou generosa e ostensivamente os candidatos apoiados pela ADP nas eleições de 1962 (cerca de 650 que postulavam
as Assembléias
Legislativas,
250 a Câmara
Federal e vários governos estaduais). Em julho de
1962, o IBAD uniu-se ao Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPES), pois seus objetivos programúáticos eram plenamente coincidentes. O IPES é fundado em fins de 1961; seus criadores são empresários — particularmente aqueles vinculados ao “bloco de poder multinacional e associado” — que “visavam a uma liderança política compatível com sua supremacia econômica € ascendência tecnoburocrática”. Tal objetivo era buscado, pois se afirmava que a “direção do país não podia mais ser deixada somente nas mãos dos políticos”. Com essa proposição, os empresários pretendiam dizer, pelo menos, duas coisas: a) o país não deveria ser dirigido por políticos de “esquerda”; b) diante dó crescente debilitamento político e ideológico dos par-
tidos conservadores e de direita, não deviam as classes dominantes confiar apenas nos mecanismos tradicionais de representação junto ao Estado burguês. O complexo IPES/IBAD procurou desempenhar, assim, o papel de “verdadeiro partido da burguesia — a vanguarda das classes dominantes — e seu estadomaior para a ação política, ideológica e militar”. Entre os objetivos perseguidos pela organização, destacavam-se: impedir a solidariedade da classe ope-
« «ni
O Governo Goulart e o Golpe de 64
rária; conter a sindicalização dos trabalhadores rurais e a mobilização dos camponeses; apoiar as facções de direita dentro da Igreja Católica; dividir o movimento estudantil; bloquear as forças nacionalreformistas no Congresso e nas Forças Armadas; mobilizar a alta oficialidade militar e as “classes médias” para a desestabilização do regime “populista”. A tarefa “construtiva” do IPES/IBAD estaria
na sua proposta de uma nova ordem sócio-política sob a hegemonia do capital multinacional e asso-
ciado.
A ação política do complexo IPES/IBAD se fazãa através de inúmeros grupos de trabalho — constituídos por intelectuais, burocratas e especialistas —
que tinham acesso direto às Forças Armadas, ao Executivo, ao Congresso, às associações de empresários, aos sindicatos, à Igreja, aos partidos políticos, aos meios de comunicação, etc. O IPES/IBAD igualmente financiou ativos grupos “democráticos” e “anticomunistas”” que atuavam nesses diferentes setores,
tais como o Movimento Sindical Democrático, a Frente da Juventude Democrática, o Grupo de Ação Patriótica, o Movimento de Arregimentação Feminina (MAF), a Campanha da Mulher pela Demoeracia (CAMDE), o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco
(SORPE),
Operários, etc.
a Federação
dos
Círculos
A ação ideológica do complexo direitista fez-se
de múltiplas formas: financiamento de importantes
jornais da “grande imprensa” e revistas que se ali-
86
Caio Navarro de Toledo
nhavam na luta anticomunista e anti-Goulart; na edição de livros, jornais, revistas, panfletos, com ou sem a chancela do IPES; realização de ciclo de conterências e estudos, seminários, fórum de debates; patrocínio de programas de rádio e de TV;produção de filmes, slides, cartuns, histórias em quadrinhos;fi nanciamento de centros de pesquisa, etc. Orcomplexo IPES/IBAD intensificava sua “ação conspiratória”” à medida que a crise econômica e a mobilização nacional-popular aprofundavam-se; contando em sua fundação com cerca de 80 membros, esse número, em meados de 1963, saltou para 500 empresários. Em São Paulo, 70% da liderança da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) faz parte da organização de direita. Os recursos financeiros do complexo IPES/IBAD provinham de industriais brasileiros e estrangeiros, de banqueiros nacionais e multinacionais, de proprietários rurais (cafeicultores, usineiros, pecuaristas, etc.), de companhias de segurança e de publicidade, etc. Miguel Arraes demonstrou com documentos que o IBAD recebeu contribuições da Texaco, Shell, Ciba, Schering, Coca-Cola, IBM, Esso, Cigarros Souza Cruz, Hanna Mining Corp., General Motors, etc. O IPES conseguiu ajudas financeiras de 297 corporações norte-americanas; contribuições também vieram da Alemanha Ocidental, Inglaterra, Bélgica, etc. Recursos da Central Intelligence Agency (CIA), agência governamental norte-americana, foram igualmente canalizados para as campanhas do IBAD.
;
j
O Governo Goulari e o Golpe de 64 Diante das denúncias de deputados da FPN, eriou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito p: ra investigaro envolvimento do IBAD e do IPES na “corrupção eleitoral” ocorrida em 1962. Como assinala o autor em cujo estudo nos apoiamos: “O IBAD
foi fechado por haver sido considerado culpado de
corrupção política. O IPES foi absolvido com base no fato de que não havia sido realizada pelo Instituto nenhuma atividade incomum que infringisse os seus objetivos publicamente declarados em sua Car-
ta”,
O IPES, pois, agia “sem aparecer”,
enquanto o
IBAD era a sua “tropa de choque”. Esta estratégia da direita golpista foi sintetizada por Raul Pilla — venerável liberal que saudou com entusiasmo a der-
rubada do regime constitucional — ao observar que
“duas instituições muito úteis foram organizadas, uma visando estudos doutrinários para disseminar
idéias e esclarecer os cidadãos, a outra para a ação política, levando-as a cumprir seus deveres patrió-
ticos” (grifos nossos). Nesta “feliz associação” entre ciênciae ideologia “iluminista”, por um lado, e ação política, por outro, ficava, pois, sintetizada a práxis
golpista.
Em abril de 1964, cumprindo seus “deveres pa-
trióticos”, setores da chamada “sociedade civil” e do
Estado, com o apoio do Departamento de Estado
norte-americano, “salvariam” a Nação. Através de um movimento político-militar, os “revolucionários” — como afirmou um de seus líderes, na comemoração do 11
Caio Navarro de Te
repudiar um conjunto de realidades, ditas “perversas”; “as greves políticas que duravam meses, a deação econômica, a inversão dos valores, a subyersão dos princípios da hierarquia e da di plina, a incompetência administrativa, o oportunismo político e, em suma, a anarquia”.
l
O GOLPE POLÍTICO-MILITAR
Analisando a política econômica brasileira nos
últimos seis meses do governo Goulart, um autor assinalou que o “governo vagava quase sem rumo no mar tempestuoso das dificuldades da situação econô-
miço-financeira do País”. Como foi anteriormente observado, as medidas econômico-financeiras ado-
tadas pela administração federal — a partir do reco-
nhecimento do fracasso do Plano Trienal —
pas-
saram a se revestir de um sentido praticamente errático. Contudo, o caráter transitório e instável dessas medidas não se devia apenas a uma “incompetência
administrativa”, como proclamavam os críticos conservadores. Numa certa medida, as vicissitudes e dificuldades da política econômico-financeira — a desaceleração do crescimento econômico e a aceleração do ritmo inflacionário — advinham de circunstâncias que escapavam parcialmente ao controle go-
Caio Navarro de Toledo. vernamental. De um lado, fatores de ordem estrutural contribuíam decisivamente para neutralizar o combate às pressões inflacionárias; de outro, o reduzido crescimento econômico — que se expressava pela diminuição do nível de inversão — deitava também as suas raízes na polarização política que carac-
terizava a conjuntura brasileira nos anos 1962/1963. Como formulou um estudioso, a inversão caiu “não
porque não pudesse realizar-se economicamente, 'mas sim porque não poderia realizar-se institucionalmente” (F. de Oliveira, op. cit., grifos do autor). A incontrolável alta do custo de vida, tendo
como consegiência uma drástica redução do poder aquisitivo dos salários, foi responsável pela eclosão
de sucessivas greves durante todo o período — greves que não mais se limitavam aos centros urbanos. Incentivada pelo governo Goulart, cresceu a sindicaliza-
ção no campo (calculava-se que o número de sindica-
tosrurais, 300 em meados de 1963, atingia o expressivonúmero de 1 500 em março de 1964). Em 1963 ocorreram em todo o país 172 greves de trabalhadores. Era igualmente significativo que as paralisações, a partir dos anos 60, deixavam de acontecer predominantemente no eixo Rio—São Paulo. Em 1963, por exemplo, 65% das greves foram defiagradas fora dos dois maiores centros industriais do País. O ano de 1964 prenunciava ser também bastante agitado em termos de movimentos reivindicatórios: em apenas
15 dias do mês de janeiro, ocorreram 17 greves na
Guanabara. Em fevereiro e março, as paralisações de
de 64 e o Golpeo Goulart rn O Gove
trabalhadores rurais no Nordeste foram intensas; em Pernambuco, cerca de 300 mil trabalhadores em engenhos e usinas desencadearam uma greve política. Diante do lock out, aventado pelas classes patronais, os trabalhadores — a fim de evitar a intervenção federal no estado governado por Miguel Arraes —, suspenderam a greve de protesto. Na Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais e Goiás as invasões de terras eram denunciadas com grande alarde pelos meios de comunicação. |
A direita “fecha o cerco”. As esquerdas
apóiam Goulart, desconfiando.
As classes dominantes tinham, assim, motivos
para verem aumentadas as suas apreensões: seus
lucros e suas propriedades — tal como apregoavam seus propagandistas— estavam sendo ameaçados e os trabalhadores em greve não eram reprimidos pelas forças federais. Em meados de janeiro, sob intensas críticas de setores da burguesia associada ao capital multinacional e dos credores estrangeiros, Goulart regulamentou a Lei de Remessa de Lucros que tinha sido aprovada pelo Congresso há mais de 16 meses. Algumas semanas atrás, para forte desagrado dos investidores estrangeiros, o presidente Goulart emitiu um decreto que implicava a “completa revisão de todas as concessões governamentais na indústria de mineração”. Para a direita brasileira e para a embaixada
Caio Navarro de Toledo norte-americana, não cabiam mais dúvidas quanto à
“esquerdização” do governo Goulart. Duas graves
denúncias passavam a circular com insistência nos
meios políticos, tendo ampla cobertura da imprensa
em geral. Bilac Pinto, presidente da UDN e porta-voz político do chefe do Estado-Maior do Exército, gal. Castelo Branco, com grande alarde, divulgou um do-
cumentoonde se declarava que estava em curso no país
uma “guerra revolucionária”; mais especificamente,
a “guerra revolucionária” já teria alcançado a sua terceira fase — a da “subversão da ordem e obtenção de armas”.
Ou seja, o país estava prestes a assistir à
“tomada do poder pelos comunistas”. Denunciava à direita que o governo Goulart insuflava as invasões
de terra, as greves operárias e de trabalhadores do
campo, além de “distribuir armas a sindicatos rurais e marítimos”. Na verdade, tra! do início da intensificação da “guerra psicológica” contra o governo constitucional, pois nenhuma prova concreta foi oferecida quanto à veracidade dos fatos denun-
ciados. O liberal Bilac Pinto assim justificaria a completa ausência de provas: “em caso de fatos notórios, a lei dispensa até mesmo as provas. Os tribunais diariamente condenam na base da notoriedade dos fatos”. A outra denúncia dizia respeito às “manobras continuístas” do presidente da República. Afirmava-se que, com a proposta de Reforma Constitucional, Goulart visava a alteração do dispositivo legal que vedava a reeleição do presidente da República. Calculava a direita que, com a extensão do voto aos analfabetos, com a realização das reformas
(O Governo Goulart e o Golpe de 64 9 as ama sociais é com o apoio das forças populares e de esquerda, Jango seria imbatível nas eleições previstas para 1965. (Esta possibilidade levou importantes políticos — com os olhos voltados para a presidência da República — a se afastarem ou hostilizarem Goulart. Entre eles estayam Juscelino Kubitschek, Magalhães Pinto e Leonel Brizola.) Se a direita “fechava o cerco” sobre o governo federal, nem todos os setores de esquerda apoiavam incondicionalmente o presidente da República. Em-
bora tivessem tido um comportamento unânime, ao aplaudirem as medidas nacionalistas do início do ano, as esquerdas consideravam inadmissível, por
exemplo, que O governo mantivesse em vigência a Instrução 263 da SUMOC; esta, ao liberar o câmbio, provocou forte desvalorização do cruzeiro, bem como uma elevada alta do custo de vida. Igualmente, cau-
sava “viva desconfiança nos meios progressistas a abertura de negociações para o reescalonamento das dívidas do Brasil com seus credores em bases confusas”. Setores da FMP — particularmente os “bri-
zolistas” que aí tinham hegemonia — também levantavam suspeitas quanto às intenções “continuístas” de Goulart
que,
segundo
aqueles
grupos,
teria o
apoio da direção do Partido Comunista Brasileiro.
No dia 15 de janeiro, um experiente jornalista político escrevia, com todas as letras, em sua bem
informada coluna: “Março passou a ser o mês do golpe”.
Direita
e esquerda
acusam-se
reciproca-
mente quanto à autoria desse possível “ato contra a
democracia”. Mas, enquanto os grupos de direita,
Caio Navarro de Toledo civis e militares, aglutinavam-se e passavam à ofen-
siva contra o governo Goulart, este nem tinha o pleno
apoio das esquerdas nem estas conseguiam superar
suas divergências internas para uma ação comum antigolpista. (A rigor, nunca passou de arma propagandística, forjada pela direita, o “golpe tramado pelas esquerdas”.) Incumbido por Goulart, San Tiago Dantas, em princípios de fevereiro, tentaria unificar os setores políticos progressistas através de uma Frente Ampla — que iria do PSD ao PCB. O “programa mínimo” da Frente incluía emendas constitucionais concedendo voto aos analfabetos, elegibilidade dos praças e sargentos, revisão do art. 141 da Constituição (que impunha o pagamento à vista e em dinheiro nos casos de desapropriações de terra), legalização do PCB e negociação de uma moratória da dívida externa. Como objetivos imediatos, pretendiase garantir a aprovação das reformas e o fortale-
cimento político do governo diante das ameças gol-
pistas vindas da direita. Com
a exceção
do PCB,
todos os demais grupos de esquerda rejeitavam a
inclusão do PSD
progressistas”.
numa possível frente de “forças
O comício do dia 13, sexta-feira
As desconfianças de setores da esquerda face ao
governo Goulart ainda eram muito intensas; a pro-
posta de aliança com o PSD contribuiu para aumen-
tarem as suspeitas quanto à persistência da política
O Governo Goulart e o Golpe de 64 esquerda” do governo Goulart, na visão das esquerdas, apenas ocorreria com o “Comício de 13 de março” — o comício das Reformas. Organizado pelo CGT e pela assessoria sindical de Goulart (Gomes Talarico, Crockat de Sá e outros), o comício da Guanabara — ao qual deveriam seguir-se outros nos maiores centros urbanos do País — visava demonstrar o apoio popular às propostas de Reformas de
Base do governo. Além disso, o Executivo pretendia também pressionaro Congresso Nacional no sentido de que este aprovasse rapidamente os projetos a ele encaminhados. Na história da chamada
“democracia populis-
ta” brasileira, poucos atos públicos tiveram tanto impacto e repercussão política quanto o comício da-
quela sexta-feira 13. Com amplo apoio oficial e sob a proteção dum rigoroso esquema de segurança montado pelo I Exército, cerca de 200 mil pessoas demonstraram de forma muito significativa o elevado grau de politização que começava a atingir diferentes
Setores da sociedade brasileira. No extenso mar de cartazes e de faixas empunhados pela massa popular, liam-se alguns slogans que inquietariam as clas-
ses dominantes e atemorizariam as classes médias:
“Reformas ou Revolução”; “Forca para os gorilas!"; “Yankee, go home”; “Defenderemos as Reformas à bala!"; “Legalidade para o PCB”; “Reeleição de Jango!”. No palanque, ministros de Estado, milita
tes, governadores de estado, deputados, dirigentes sindicais, líderes estudantis comprimiam-se ao lado
Caio Navarro de Toledo
“FOGE EI 'Souiojog sup oropiuoo soja mouosy
|OGoverno Goulart e o Golpe de 64 do presidente da República. Após 3 horas de inflama-
dos discursos, Goulart encerrou o ato anunciando a
promulgação de dois decretos: o da nacionalização das refinarias particulares de petróleo e o da desapropriação das propriedades de terras (com mais de 100 hectares) que ladeavam as rodovias e ferrovias fede-
rais e os açudes públicos federais. Prometeu também
enviar ao Congresso outros projetos de reformas
(agrária, eleitoral, universitária e constitucional
anunciou ainda que nos próximos dias decretaria gumas medidas urgentes “em defesa do povo e das
classes populares” (tabelamento de aluguéis, controle dos preços, etc.).
No seu discurso, Goulart atacou a
“democracia dos monopólios nacionais e internacionais”, as “associações de classes conservadoras”, a
“mistificação do anticomunismo”, a campanha dos “rosários da fé contra o povo”, os “privilégios das minorias proprietárias de terras”, etc. Contudo, o radicalismo esquerdizante ficou por conta do líder nacional dos “Grupos de Onze”, Leonel Brizola. Pouco antes da fala de Goulart, Brizola, através de um elogil te discurso, defendeu o fim da “política de conci ção" e postulou a emergência de um “governo nacionalista e popular”. Criticando severamente o Le; tivo (“controlado por uma maioria de latifundiários, reacionários e ibadianos”), o líder nacionalista propôsa “derrogação do atual Congresso”; pediu, assim, | a convocação de uma Assembléia Constituinte (nos dias seguintes, a palavra de ordem do brizolismo Seria: “Constituinte sem golpe!"). A rigor, os dois decretos emitidos pelo governo
Caio Navarro de Tolede tinham efeitos bastante limitados: o da nacionalização das refinarias não atingia senão as empresas
nacionais (a lucrativa distribuição dos produtos pe-
trolíferos continuava com a Esso, Shell, Texaco, etc.); de outro lado, o-decreto da SUPRA — como o próprio Goulart reconheceu em seu discurso — não era senão o “primeiro passo" na direção da Reforma Agrária. As esquerdas, no entanto, comemoraram
com entusiasmo o significativo comparecimento popular ao comício; alguns setores destacaram, com grande regozijo, o “radicalismo das manifestações
populares”. Neste sentido, um dos líderes brizolistas comentaria: “Perante cerca de 200 mil pessoas, foi
sepultada, na praça da República, a política de con-
. Mas, um pouco mais adiante, o mesmo político advertiria para as possíveis vacilações de
Jango: “O presidente João Goulart — como disseram
Arraes e Brizola — conta com o povo para a grande transformação. Mas é preciso não esquecer que, na Legalidade e no Plebiscito, o povo também se mobilizou e tudo parecia encaminhar-se para as decisões
almejadas. O governo vacilou, perdeu-se numa teia
de pequenas manobras (...). O momento exige, além de palavras, decisões audazes e rápidas e o reconhe-
cimento de que o dia 13 foi a iniciação de uma nova etapa da história brasileira” (Neiva Moreira, in Paulo Schilling, op. cit., grifos nossos). Entre as “deci-
sões audazes e rápidas”,
esses setores nacionalistas
exigiam: “ministério nacionalista e popular”;
tamento dos militares suspeitos e golpistas”;
gação da Instrução 263”;
“afas-
“revo-
“congelamento dos pre-
O Governo Goulart e o Golpe de 64 >>> o
ços”; “intervenção federal na Guanabara, São Paujo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul”, ete. De fato, 13 de março de 1964 pode ser conside-| sado um marco decisivo na recente história política brasileira. Para grande decepção das esquerdas, o dia 13 significaria não a emergência de um governo nacionalista, democrático e popular mas, sim, o último ato da chamada “democracia populista”. A partir do dia 13 de março — enquanto as esquerdas se dividiam em discussões acerca da composição da frente ampla —, a direita passava inteiramente à ofensiva do movimento social. A ofensiva golpista
Desde o início de março, setores das classes médias e da burguesia, sob a bandeira do anticomunismo e da defesa da propriedade, da fé religiosa e da moral, saíram às ruas em diversas capitais a fim de pedir o impeachment do governo federal. Entre estas manifestações civis, destacou-se a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, realizada em São Paulo, no dia 19 de março, reunindo cerca de 500 mil pessoas. Organizada por movimentos femininos — com a inteira colaboração do governo do estado de São Paulo, de setores da Igreja Católica, da FIESP, da Sociedade Rural Brasileira —, a Marcha foi encerrada com elogientes discursos de deputados do PSD e da UDN contra o governo de Goulart. Como
3
Caio Navarro de Tole
observou um estudioso, tais demonstrações públicas tinham o propósito de “criar clima sócio-político favorável à intervenção militar, bem como de incitar diretamente as forças armadas ao golpe de Estado” (Décio Saes, “Classe Média e Política”, In: Brasil Republicano, vol. 3). Estas manifestações civis — onde praticamente era inexistente à presença popular e operária — nunca foram “espontâneas”; além de se inspirarem em campanhas anticomunistas realizadas em outros países, sempre foram estimuladas é incentivadas pelos conspiradores na área militar. Apesar de ter sido precipitada pelo comício do dia 13, a intervenção das Forças Armadas, na verdade, vinha sendo preparada desde os primeiros dias em que Goulart tomara posse no regime parlamentarista. Se naquela ocasião era reduzido o número dos “conspiradores de primeira hora”, vários acontecimentos ocorridos no período, envolvendo as fo ças armadas (Revolta dos Sargentos; Estado de Si atritos entre oficiais e setores políticos nacionalistas; tregientes substituições de ministros militares no governo, etc.), contribuiram para aumentar o quadro dos descontentes. Na perspectiva da alta oficialidade militar, no País e no interior da corporação vinham sucedendo-se “situações intoleráveis”: “"quebra da disciplina e da hierarquia”, “subversão da lei e da ordem”, “crise de autoridade”, “caos admin trativo”. A conspiração nos meios militares, inici mente desarticulada e dispersa em várias “células de oficiais”, conseguiu unificar-se mediante a liderança
do gal. Castelo Branco,
empossado
na chefia do
O Governo Goulart e o Golpe de 64
|
101
Estado-Maior do Exército em setembro de 1963. Uma semana após o comício do dia 13, num memorando de caráter reservado à alta hierarquia do Exército, o gal. Castelo Branco faria graves considerações sobre a situação político-institucional do país. Neste documento advertia-se para o período representado pela convocação de uma Constituinte (a ambicionada Constituinteé um objetivo revolucionário pela violência com o fechamento do atual Congresso” que implicaria a “instituição de uma ditadura síndico-comunista”) e para o desencadeamento de “agitações generalizadas do ilegal poder do CGT”. A retirada do apoio militar ao governo Goulart foi sintetizada no seguinte trecho: “os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os podetes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei”. Aqui estava a senha para o início da ofensiva na área militar. No entanto, a data para a deflagração do movimento visando à derrubada do governo Goulart ainda não tinha sido decidida pelos altos comandos militares. Nesta altura, julgava-se que o consenso quanto à “solução cirúrgica" ainda não tinha sido conseguido no interior da alta oficialidade. Além dos “moderados” ou “legalistas”, falava-se na existência de um “sólido dispositivo militar” de sustentação do governo. Uma nova revolta no seio dos setores subalternos das Forças Armadas contribuiu para que o
problemático
consenso
fosse
imediatamente
alcan-
Caio Navarro de Ti
102
cado. Foi a chamada “Revolta dos Marinheiros”. No dia 26 de março, mais de 1000 marinheiros e fuzileiros navais reuniam-se no Sindicato dos Metalúrgicos (Guanabara), a fm de comemorar o segundo aniversário da proibida Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Um contingente de fuzileiros navais, enviado para prender os manifestantes, insubordinou-see solidarizou-se com seus camaradas revoltosos. Tendo como intermediário o CGT, o governo convenceu os rebelados a se entregarem, levando-os presos a um quartel. Contudo, em poucas horas estes sairiam livres, anistiados pelo noyo ministro da Marinha. (Comentou-se que este
oficial tinha sido escolhido por Goulart, algumas horas antes, a partir de uma lista elaborada pelo “ilegal CGT",) A sublevação dos marinheiros, a anistia e a nomeação do novo ministro atingiram a alta oficialidade das forças armadas como uma “verdadeira bomba”. O Clube Militar e o Clube Naval denunciaram com veemência o “ato de indisciplina acobertado pela autoridade constituída, destruindo o princípio da hierarquia”. Estava, assim, selada a sorte de Goulart.
Segundo um historiador, naqueles dias, “o gal. Castelo Branco dissera aos conspiradores civis que a demissão do ministro da Marinha seria o sinal para a deposição de Jango”. A partir de agora, o golpe tinha data marcada: dia 2 de abril. Neste dia estava pre-
vista outra “passeata-monstro” de oposição no centro da Guanabara. Calculava-se que esta “manifestação civil” daria a suficiente “cobertura política”
a
(O Governo Goulart e o Golpe de 64 E
para a intervenção militar (T. Skidmore, op. cit.).
“Apesar dos evidentes sinais da trama golpista,
Goulart surpreenderia os seus mais íntimos e diretos
assessores ao decidir comparecer a uma reunião no
“Automóvel Clube, no dia 30 de março. Comemorava-
se, na oportunidade, o aniversário da Associação dos Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar da Guana-
bara. No discurso que pronunciou, transmitido por
rádio e televisão, Jango denunciou as pressões que vinha sofrendo da direita. Para ele, a tentativa de
golpe contra o seu governo estava sendo financiada pelo imperialismo e pela burguesia associada. Como
vários autores comentaram, o dramático pronuncia-
mento de Goulart tinha ressonâncias semelhantes às
da carta-testamento de Vargas. “(...) O discurso não passou de uma justificativa para a História, por parte de quem já tinha decidido, não o suicídio físico como
Vargas, mas o suicídio político” (Paulo Schilling, op. cit). O golpe vitorioso: nem resistência, nem “guerra civil”
Dois dias antes da data marcada pela alta oficialidade golpista, o gal. Mourão Filho (comandante da IV Região Militar, MG), na madrugada do 31 de março, ordenou às suas tropas que se movimentassem em direção ao Rio de Janeiro. Esta iniciativa tinha sido aprovada pelos governadores de São Paulo
103
104
|
Caio Navarro de Toledo)
Basta de intermediários: para presidente Lincoln Gordon. |
| Governo Goulart e o Golpe de 64 E
EE
e de Minás Gerais que incentivaram a antecipação da
ação militar. Os golpistas vindos de Minas aguardavam, no entanto, a decisão do comandante do II
| Exército, gal. Amaury Kruel, que até aquele mo-
mento vacilava em aderir a uma ação conjunta con-
tra 01 Exército, sediado no Rio. Julgava-se até aquele momento que, além do I Exército, o II Exército (extremo sul do País) se posicionaria ao lado da defesa da ordem constitucional. Relata a “crônica do golpe de 1964” que, antes de tomar a sua “grave decisão”, o gal. Kruel telefonou para o presidente da República instando-o para “abrir mão de suas bases
políticas”, Em
outras palavras,
Kruel exigia que
Goulart proibisse o CGT, o PUA, a UNE e todas as demais “entidades subversivas”. Em troca, prometia o militar, teria ele garantido o seu mandato presidencial. Diante da recusa de Jango, o gal. Kruel teria “lavado as mãos” e ordenado que as tropas de São Paulo se movessem para O Rio de Janeiro a fim de se
unir às do gal. Mourão.
De outro lado, os soldados do I Exército, ainda leais ao governo, sob o comando do gal. Âncora,
encaminhavam-se para um confronto, no Vale do Paraíba, com as tropas do gal. Kruel. No entanto, a luta armada que parecia ser iminente foi rapidamente afastada. Diante da notícia de que Goulart havia abandonado o Rio rumo a Brasília e informado ainda das “intenções pacifistas” do presidente da República, o gal. Âncora — reunido com o gal, Kruel na Academia Militar de Agulhas Negras — desistia do combate. Na tarde de 1º de abril, passava
105
106
Caio Navarro de Toledo,
com suas tropas para o lado dos golpistas.
Setores militares dispostos a defender a “legali-
dade” foram dissuadidos por Goulart a não se envolverem numa “luta fratricida”; outros, porém, fariam ainda algumas tentativas de resistir ao golpe, mas a
completa falência do comando do gal. Ássis Brasil,
chefe do “dispositivo militar”, fez frustrarem-se ra-
pidamente esses esforços isolados. Algumas horas depois de chegar a Brasília, Jango voaria para Porto
Alegre. Tendo na memória a “crise de agosto de
1961”, os setores democráticos esperavam, mais uma
vez, que a “salvação” viesse do Sul.
Os tempos eram outros. Apesar dos veementes
apelos de Brizola, que tentava convencer Goulart
acerca da necessidade de uma resistência armada, o presidente da República, informado sobre importantes defecções dentro do III Exército, recusou a
última cartada em defesa da legalidade democrática.
Novamente Goulart invocou a inutilidade dos gestos heróicos que implicariam no “derramamento do sangue inocente" (Moniz Bandeira, op. cit.). No dia 4 de
abril, Jango rumava para
o exílio no Uruguai.
Três dias antes, a direita conseguia no Congresso Nacional aprovar a dectaração de vacância da Presidência da República. Na madrugada do dia 2 de abril, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, era empossado como presidente da República. Poucas horas depois, estando João Goulart ainda em território nacional, o presidente dos
EUA, Lyndon Johnson, através de um telegrama,
saudava calorosamente o novo governo brasileiro.
de 64 e o Golpeo Goulart rn Gove O golpe político-militar:
made in Brazil?
Este telegrama, contudo, não poderia muita surpresa. Durante todo o período, foi
causar intensa a
atuação da embaixada norte-americana no combate político ao governo constitucional de Goulart. (Tal era a intervenção do seu embaixador, Lincoln Gordon, nos assuntos de exclusivo interesse do governo
brasileiro, que o humor popular criou e difundiu o
seguinte slogan: “Basta de intermediários:
para Pre-
sidente, Lincoln Gordon!”...) Gordon era assíduo fregientador do palácio presidencial. Sugeria nomes para compor os Ministérios, censurava as escolhas de
'esquerdistas” para as assessorias do presidente, cri-
ficava abertamente projetos e iniciativas governa-
mentais. Militares, governadores de estado, deputados, empresários e dirigentes sindicais, eram convidados permanentes do ativo embaixador.
Entidades políticas e sindicais que faziam siste-
mática
oposição
a Goulart
foram
generosamente
contempladas com recursos financeiros do governo
norte-americano. Tudo que visava a minar o poder
do Executivo federal era incentivado pelos EUA. Thomas Mann, secretário de Estado para Assuntos Interamericanos, declarou a respeito: “quando assu-
|
mi o cargo, até mesmo antes, estávamos conscientes
de que o comunismo estava corroendo o governo do
presidente João
Goulart,
de
uma
forma
rápida,
e
antes de chegar ao cargo já tinhamos uma política
108
Caio Navarro de Toledk
destinada « ajudar governadores de certos estados”. Tal política ficou conhecida com o significativo nome de “ajuda às ilhas de sanidade administrativa”. Consistiu ela na liberação de verbas da Aliança para o Progresso apenas para aqueles estados cujos governadores eram hostis o governo federal. Desta forma, foram beneficiados, entre outros, os estados da Guanabara, São Paulo e Minas Gerais. Não havia, pois, nenhuma coincidência no fato de seus governadores serem notórios e importantes “conspiradores civis” — respectivamente, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhões Pinto. Documentos do Departamento de Estado norteamericano, recentemente revelados à opinião pública, evidenciam o grau de participação e de envolvimento dos EUA na conspiração e execução do golpe de abril de 1964. Examinemos aqui apenas o caso da chamada “Operação Brother Sam”. No dia 31 de março aprovou-se, numa reunião no Departamento de Estado um plano militar que consistia no envio às costas brasileiras de um porta-aviões de ataque pesado (o Forrestal), destróires de apoio, petroleiros bélicos, navios de munições e navios de mantimeniões transportando armas e munições (110 toneladas), aviões de caça, avides-tanques e um posto de comando-transportado deveriam se deslocar para o Rio de Janeiro. O objetivo de toda esta aparatosa operação era a de fornecer “apoio logístico, material e militar” aos golpistas. Contrariando as próprios prognósticos da CIA, que previa uma “guerra civil” prolongada no Brasil,
Goulart e o Golpe de 64
os “revolucionários de abril” não precisaram disparar praticamente um só tiro para derrubar o governo de Goulart. Alguns
telefonemas
foram
suficientes
para que o golpe fosse vitorioso. Desta maneira, a sigilosa “Operação Brother Sam” pôde ser cance-
lada, antes mesmo de ser efetivada. Este fato permitiu ao solerte embaixador norte-americano procla'mar com muita
alegria, mas com
idêntica soleni-
dade, que a “revolução de 1964" tinha sido um “pro-
duto 100% brasileiro”! Três dias após o golpe, Carlos Lacerda ouviria de Mr. Gordon a seguinte declaração: “Vocês fizeram uma coisa formidável! Essa
revolução sem sangue e tão rápida! E com isso pou-
param uma situação que seria produndamente triste,
desagradável e de consegiências imprevisíveis no futuro de nossas relações: vocês evitaram que tivés-
semos que intervir no conflito” (Carlos Lacerda, Depoimento). Não obstante todas estas evidências demonstrem o envolvimento norte-americano no pro| cesso de derrubada de Goulart, não se deve concluir
— como insistem certas interpretações mecanicistas
— que o “golpe começou em Washington” ou que a “CIA esteve por detrás de tudo", Nessa versão, os
" agentes internos — decisivos na preparação e no desencadeamento do golpe político-militar — não passariam de meros instrumentos da política do Pen-
| tágono...
no
Caio Navarro de Tolede As esquerdas: uma derrota
inevitável?
Parte das razões que explicam a tranquila e
rápida vitória da direita, residiu no comportamento político das esquerdas brasileiras durante os “tempos do populismo”. Analisando o “fracasso das esquerdas” em 1964, um autor, assim, comentou: “na pior das hipóteses, a derrota era provável. Em qualquer caso, não era inevitável. Sobretudo, não era inevi-
tável que fosse tão rápida, arrasadora e desmorali-
zante (...)” (J. Gorender, “64: o Fracasso das Esquerdas”, in Movimento, nº 299). Avaliação incor-
reta da correlação de forças existentes, isolamento
político em relação às grandes massas, radicalização apenas no nível da retórica, subordinação política ao reformismo populista, foram algumas das razões da “arrasadora derrota” sofrida pelas esquerdas em 1964. Em virtude do CGT ter tido uma intensa e ativa participação nas diferentes crises políticas do pe-
ríodo, passou-se a acreditar que ele teria uma força
política capaz de barrar o caminho de qualquer ação golpista de direita. O acesso fácil das suas cúpulas dirigentes aos corredores e gabinetes palacianos — realidade possível em algumas “democracias populistas” — e a retórica radical de seus pronunciamentos confundiram as esquerdas acerca do “poderio do CGT”, Nem sempre estar próximo do governo, constatariam amargamente as esquerdas, significa
|O Governo Goulart e o Golpe de 64
O estar junto ao poder político real. De outro lado, desconsiderava-se que o sucesso de algumas greves políticas — o “grande trunfo” do CGT — deveu-se, em párte.ao apoio oficial; igualmente, como se yiu, a maioria dessas paralisações pouco êxito obteve junto aos operários das empresas privadas. A greve geral, brandida tantas vezes ameaçadoramente contra os setores de direita, fracassou; no dia 31 de março, apenas a Guanabara teve paralisados os seus serviços de transporte (a repressão militar caiu imediatamente sobre à liderança sindical, impedindo-a, assim, de comandar a greve geral). Não obstante a classe operária brasileira não tenha participado do golpe nem aderido aos “vitoriosos”, deve-se ressaltar que ela se manteve indiferente aos insistentes apelos feitos pelo CGT em defesa da greve geral antigolpista. Este acontecimento, no fundo, traduzia uma inquestionável realidade: durante todo o período 1962/1963, foi reduzido o trabalho do CGT junto às bases sindicais; longe de desqualificar a importante atividade desenvolvida pela organização, no breve período em que existiu, deve-se, no entanto, teafirmar aqui que o CGT constituiu-se mais num organismo político — controlado pela esquerda nacionalreformista — do que num organismo propriamente sindical. A “força revolucionária” das Ligas Camponesas igualmente revelou-se numa decepcionante realidade para as esquerdas brasileiras, No golpe, somente Uma pequena resistência foi tentada por alguns lídetes populares junto aos trabalhadores rurais e forei-
am
112
Caio Navarro de Toledg
ros do Nordeste. Todas essas tentativas foram rapidamente vencidas pelo forte aparato repressivo. Apesar de as Ligas, a partir da sindicalização rural, terem entrado numa fase de declínio, mantinha-se ainda uma elevada expectativa política em relação a elas. Para isso contribuíam as fregúentes declarações de seus líderes. Era o caso, por exemplo, de Francisco Julião. No dia 31 de março de 1964, abrigado mo Congresso Nacional, o líder nacional das Ligas Camponesas faria uma solene declaração: “Senhor presidente, senhores deputados, deixo esta tribuna prometendo ocupá-la mais vezes, pois resolvi que este ano há de ser para mim o ano parlamentar; resolvi frequentar mais esta Casa, porque a minha no Nordeste já está arrumada. Se amanhã alguém tentar levantar os gorilas! contra a Nação, já podemos
dispor — por isso ficamos no Nordeste o ano todo — de 500 mil camponeses para a responder aos 'gorilas'” (in M. de Nazateth Wanderley e outros, Reflexões Sobre a Agricultura Brasileira). No dia seguinte, os “gorilas” do IV Exército davam ordem de prisão ao governador de Pernambuco, Miguel Arraes, sem que os camponeses — desarmados e desorganizados —
nada pudessem fazer diante da bem
armada e bem organizada repressão militar. De semelhante radicalismo verbal padeceu também a liderança de Leonel Brizola. Seus famosos Grupos de Onze, criados a partir de fins de 1963, revelaram-se frágeis demais para se anteporem a qualquer ação golpista. Embora a direita denunciasse sistematicamente o perigo representado por
Lo
O Governo Goulart e o Golpe de 64
DO TERR esses grupos, não foi observada nenhuma atuação
significativa dos brizolistas durante o movimento gol-
pista. A rigor, os adeptos de Brizola limitaram-se,
através das ondas da Rádio Mayrink Veiga, a conclamar o povo à lutar contra os “gorilas”.
Talvez uma das maiores fantasias contruídas pelas esquerdas nacionalistas tenha sido a de crer no
“legalismo das forças armadas”. Na época falava-se
frequentemente nos “generais do povo” que consti-
tuíam o inquebrantável “dispositivo militar” do gal. Assis Brasil. Voltava-se também a difundir o velho chavão: “militaré o povo fardado”. Igualmente acreditou-se no chamado “'sargentismo"; como advertiu
um autor, julgava-se que “segurança do regime demo|
crático, em geral, e do governo Goulart, em particular, repousava nos sargentos” (N. Werneck Sodré, Memórias de um Soldado). Desconsiderav; assim,
a““questão militar”, tal como foi interpretada por Go-
render: “por sua coesão institucional essencialmente
conservadora e antidemocrática, as forças armadas
tinham de reagir com violência às ameaças à sua estabilidade hierárquica e ideológica. Ameaças advindas
da
formação
de
uma
ala,
pequena
porém
influente, de oficiais nacionalistas e, sobretudo, do
surgimento de um movimento explosivo de sargentos.
& marinheiros (...) As precipitações infantis desse movimento(...) só fizeram enrijecer a reação conser-
vadora da instituição militar” (Jacob Gorender, op. eit.). Superestimando as suas forças (CGT, Ligas Camponesas, Grupos de Onze, movimento dos sar-
us
gentos, “dispositivo militar” constituído de “oficiais nacionalistas
e democráticos”,
etc.) e, consegúen-
temente, minimizando o poder dos adversários, as
esquerdas não conseguiam enxergar o golpe de direita “virando a esquina”. Numa autocrítica recente, um ex-militante brizolista, num trecho de seu depoimento, com sabor de anedota, observou: “sim, espe-
rávamos o golpe e estávamos preparando-nos febrilmente, com todas as forças, para enfrentá-lo, Acre-
ditávamos, porém, que o golpe, seguindo a tradição brasileira, viria no segundo
semestre (,
(Paulo
Schilling, op. cit.). Numa palestra pronunciada na
ABI, Rio de Janeiro, a 4 dias do desencadeamento do movimento militar, o secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes — conforme o depoimento de um ex-membro do CC do PCB à época do golpe de 1964'
—, “enfatizou que (...) Goulart tornava-se o portabandeira da revolução brasileira e que
não
havia
condições para um golpe reacionário. Se este ocorresse, 'os golpistas teriam as suas cabeças cortadas" ” (Jacob Gorender, op. cit., grifos do autor).
Fragmentadas em diferentes correntes ideoló-
Bicas e isoladas das grandes massas rurais e urbanas,
foram as esquerdas e os setores populares que tive-
ram as suas “cabeças cortadas”. Se, na retórica do líder comunista, as “cabeças cortadas” tinham um
valor simplesmente metafórico, tragi
rém, na prática dos “vencedores de abril"
são ganharia um significado real e concreto.
Desta forma, o imobilismo das esquerdas, em
geral, se explicaria em virtude de uma incorreta, pois
avaliação da correspondência de forças ites nos meses anteriores a abril de 1964; de
o lado, subordinadas e vinculadas ao “popuo janguista”, não conseguiram as esquerdas naalistas visualizar e implementar uma ação inde-
endente em relação à política capitulacionista de . Como um “castelo de cartas" desmoronou o
il e incipiente poder das organizações e entidades
CONCLUSÕES
No período de 1961 a 1964, verifica-se a emergência, no interior do Estado burguês, de um Executivo que se distinguiu fundamentalmente pela tentativa de realizar um amplo programa de Reformas (econômicas, sociais e políticas). Tais Reformas, no entanto, constituíram-se em simples consignas políticas, pois nunca conseguiram ser implementadas — seja pela negativa do Congresso Nacional (que expressava a oposição de expressivos setores da chamada “sociedade civil”), seja pela ambigiidade ou incapacidade política do governo (no parlamentarismo e no presidencialismo). Como se viu, quando o governo Goulart passou à demonstrar um maior empenho na aprovação das Reformas, teve seu caminho barrado pelo golpe. Estas reformas visavam, basicamente, a resolver alguns dos impasses enfrentados pelo capitalismo brasileiro no início dos anos 60. Não tinham, assim,
“7
aro Goulart e o Golpe de 64 Rs Cs CS
Te
Mi]
nenhum caráter transformador; muito menos revolucionário, como apregoavam setores das classes do-
'minantes. Elucidativo a este respeito foi o caso da
proposta mais polêmica e mais intensamente defendida pelo governo: a Reforma Agrária. Tal reforma
buscava responder às necessidades de expansão do capitalismo industrial brasileiro ao mesmo tempo
| que atendia aos imperativos da preservação da or-
| dem burguesa. Se o governo Goulart não podia senão prever a oposição dos grandes proprietários rurais — o que de fato ocorreu durante todo o período no entanto,
que teria ele o respaldo
—, supunha-se,
da burguesia
industrial brasileira para a consecução de seu pro-
| grama reformista. Em outras palavras, julgava-se
que a chamada burguesia nacional — cujos interesses o Executivo pretendia representar — não podia senão se integrar na defesa da política nacional-re-
formista. Ficou comprovado, posteriormente, para
igual decepção de setores da esquerda nacionalista — que postulavam a estratégia da aliança de classes | =, que nunca foi politicamente significativo o compromisso da burguesia brasileira com a realização das reformas. Conclusão análoga pode ser retirada acerca da questão do nacionalismo. O nacionalismo
da burguesia brasileira sempre teve um caráter prag-
|
mático; ou seja, dependendo das circunstâncias e das suas conveniências, setores da burguesia brasileira se opõem ou se associam ao capital multinacional. A propósito do chamado nacionalismo do governo Goulart, deve se afirmar que foi ele muito mais
us
Caio Navarro de Tole
retórico do que uma efetiva realidade. Em contrapartida, a conciliação com o imperialismo constituiu-se numa constante durante os “tempos de Goulart”. A mais importante medida de caráter nacionalista tomada pelo governo — a promulgação da Lei de Remessa de Lucros — somente se efetivou depois de intensas manifestações dos setores populares. Recorde-se que o projeto tinha sido aprovado pelo Conaresso e aguardou mais de 16 meses para ser sancionado, pois o Executivo aceitou e se submeteu às pressões contrárias vindas do governo dos EUA e da burguesia brasileira associada ao capital multinacional, Reconheça-se, contudo, que — apesar de não poder ser considerado um governo eminentemente nacionalista — o Executivo denunciou frequentemente a “espoliação imperialista” e sempre manteve estreitas relações com os setores nacionalistas e populares.
Esta aproximação com as organizações políticas das classes populares e trabalhadoras fazia-se atr vés: do reconhecimento da legitimidade de suas reivindicações, do apoio às entidades ditas ilegais (CGT, PUA, etc.), da não repressão às greves políticas, da extensão da legislação trabalhista ao campo, do respeito às liberdades políticas, etc. As medidas populares e nacionalistas, tomadas no início de 1964 e que culminaram com o Comício do dia 13, aprofundaram a-chamada “guinada popular e de esquerda” do governo populista de Goulart. Esta vinculação com os movimentos populares e de esquerda , no entanto, somente ocorre de forma mais intensa quando o go-
t64 Golpe de e o ar o Goul no verifica que não lhe resta nenhuma alternativa
sustentação política. Mas esta relação não se deu dificuldades e sem problemas.
Durante todo o período, as desconfianças, por
irte dos setores populares e de esquerda, em relaao governo Goulart, sempre foram muito fortes.
ressaltado, por exemplo, que o mais importante nto produzido pelo governo (Piano Trienal)
um inegável sentido antipopular e antiopeA “guinada para a esquerda” foi, inclusive, nterpretada com muitas reservas, pois se descon-
ra das “manobras continuístas” de Goulart. Desta
o governo Goulart nem conseguia o pleno
paido das classes populares e trabalhadoras, nem tes.
Até o momento em que se constata o malogro do
Plano Trienal, o governo conseguiu um relativo apoio
político de expressivos setores da burguesia indus| trial brasileira (na posse, no Plebiscito, na execução “inicial do Plano Trienal, etc.). Mas, diante da inca-
'pacidade do Executivo — de um lado, em reverter a
| tendência de estagnação da economia e, de outro, em
| pôr fim às crescentes reivindicações e greves das clas-
| ses trabalhadoras —, a quase totalidade da burgue-
Sia nacional passou a conspirar ativamente contra o
| governo. A crise econômica e o avanço político-ideo| lógico das classes populares e trabalhadoras passa-
vam a ser encarados como realidades sociais inacei ftáveis. No limite, difundiam os ideólogos da direita,
as classes subalternas buscariam impor soluções não
burguesas à crise econômico-social. Tal ameaça —
embora objetivamente remota, como se tentou mos-.
trar — provocou a unificação política das classes dominantes.
A crescente radicalização política do movimento
popular e dos trabalhadores, pressionando o Executivo a romper os limites do “pacto populista”, levou o conjunto das classes dominantes e setores das classes
médias — apoiados e estimulados por agências governamentais norte-americanas e empresas multinacionais — a condenar o governo Goulart. A derru-
bada do governo contou com a participação decisiva das forças armadas, as quais — a partir de meados de abril de 1964 — impuseram ao país uma nova ordem político-institucional com características crescente-| mente militarizadas. As reformas exigidas pelo capitalismo brasileiro seriam agora implementadas. Repudiando o nacional-reformismo, as classes domi-
nantes, através do Estado burguês militarizado, optariam pela chamada “modernização-conservadora”, excluindo, assim, as classes trabalhadoras e po-
pulares da cena política e pondo fim à democracia populista.
INDICAÇÕES PARA LEITURA
1. Abordando os diferentes aspectos (econômicos, políticos e sociais) do governo Goulart existe apenas uma obra na literatura política brasileira:
Moniz. Bandeira, O governo João Goulart: As Lutas Sociais no Brasil. Do ponto de vista documental, o livro de Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castelo, constitui-se numa interessante introdução para o conhecimento dos fatos relevantes no
período Goulart; documentos esparsos sobre o governoe sobre o período em questão encontram-se em Edgard Carone, A Quarta República; uma visão jornalística das principais questões políticas: Mário Victor, 5 anos que abalaram o Brasil. Um relato Jornalístico comentado do período que vai de meados de 1962 a abril de 1964 é oferecido em Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de 1964. H. Processos políticos e movimentos sociais no pe-
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Caio Navarro de To
ríodo: Francisco Weffort, O Populismo na Política Brasileira; Octavio Ianni, O Colapso do Populismo no Brasil; idem e outros, Política e Revolução Social no Brasil; Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira; S. Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais no Brasil; L. de Almeida Neves, CGT no Brasil; K. Paul Erickson, Sindicalismo no Processo Político Brasileiro. Recentemente foi publicado o 3º vol. tomo III de O Brasil Republicano, contendo importantes ensaios sobre o períado. III. Economia brasileira no período; Carlos Lessa, 15 Anos de Economia Brasileira; Francisco de Oliveira, “Crítica à Razão Dualista”, in Seleções, Cebrap; Maria Conceição Tavares, Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro; Octávio lamni, Estado e Planejamento Econômico no Brasil; Cibilis Viana, As Reformas de Base e a Política Nacionalista de Desenvolvimento; IV. Sobreo golpe político-militar: R. Armand Dreifuss, 1964: À Conquista do Estado; Paulo Schilling, Como se coloca a direita no poder (L e 11); Marcos Sá Correa, 1964: Visto e Comentado Pela Casa Branca; Phyllis Parker, 1964: O Papel dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 31 de Março; Hélio Silva, 1964: Golpe ou Contragolpe?; Jacob Gorender, “64: O Fracasso das Esquerdas”, in Movimento, nº 299. Há um elevado número de relatos jornalísticos e de memórias sobre os eventos de março/abril de 1964. Citam-se aqui apenas alguns deles: Alberto Dines e outros, Os Idos
; Abelardo Jurema, Sexta-feira, 13; Edmar , O golpe começou em Washington. Revistas com artigos sobre o período e sobre
o golpe de 1964:
Revista Brasiliense; Estudos Sociais; Revista CiBrasileira.
Sobre o Autor
Caio Navarro de Toledo. Doutor em Filosofia, leciona atualmente Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou alguns artigos em revistas universitárias e não acadêmicas. É autor de JSEB: Fábrica de Ideologias, Ed. Ática, SP.
Caro leitor: As opiniões expressas neste livro são as do autor. podemnão seras suas. Caso você ache quevalea pena escrever Um outro livro sobre o mesmo terna, nós estamos dispostos a estudar sua publicação com o mesmo título como "segunda visão
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