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Portuguese Pages 184 Year 2011
Vinícius Casalino
O direito e a mercadoria para uma crítica marxista da teoria de Pachukanis
universitário
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dobra EDITORIAL
Editor Reynaldo Damazio Consel ho Editorial Adolfo Montejo Navas, Carlos Felipe Moisés, Edison Carmagnani Filho, Eduardo Sterzi, Frederico Barbosa, Tarso de Melo. Arte Regina Kashihara Com ercial Paula Amorim Interne t Ricardo Botelho con tato
Rua Domingos de Morais, 1039 • conj. 2. V. Mariana • São Paulo • SP • CEP 04009-002 Tel. 11 5083-3090 [email protected] www.dobraeditorial.com.br
© Dobra Editorial 2011 Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou armazenada, por quaisquer meios, sem a autorização prévia e por escrito da editora e do autor. Casalino, Vinícius
O direito e a mercadoria: para uma crítica marxista da teoria de Pachukanis. / Vinícius Casalino. -- São Paulo : Dobra Editorial, 2011. 184 p.
ISBN 978-85-63550-22-4
1. Filosofia do Direito. 2. Teoria marxista. I. Título. CDD 340
Índice para catálogo sistemático I. Direito : Século 21 : Brasil
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Para Vanessa
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Eu rio dos chamados homens “práticos” e de sua sabedoria. Se alguém escolhesse ser um boi, poderia evidentemente voltar as costas para as agonias da humanidade e cuidar de sua própria pele. Karl Marx
Minha tarefa não era a de resolver em definitivo todos os problemas da teoria do direito ou mesmo apenas alguns. Meu desejo era mostrar unicamente sob que ângulo é possível abordá-los e como se devem equacionar os problemas. E.B.Pachukanis
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Sumário PREFÁCIO...........................................................................................................................9 INTRODUÇÃO................................................................................................................. 17 01. O CONTEXTO.......................................................................................................... 37 1.1. Delimitação do objeto e verificação do problema........................ 37 1.2. A atualidade histórica da análise marxista..................................... 47 1.3. Para interpretar A teoria geral do direito e o marxismo................ 58 02. APARÊNCIA E ESSÊNCIA..................................................................................... 67 2.1. A preocupação metodológica de Pachukanis................................. 67 2.2. O falso concreto........................................................................................ 78 03. FORMA MERCANTIL E FORMA JURÍDICA...................................................... 95 3.1. O direito e a mercadoria: aspectos elementares da teoria de Pachukanis............................................................................................ 95 3.2. A mercadoria e o direito: crítica da teoria pachukaniana.........118 04. A PRETEXTO DE CONCLUSÃO........................................................................169 BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................175
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PREFÁCIO
Este livro é uma crítica; mas é uma crítica de segundo grau; uma metacrítica ou crítica da crítica; uma autocrítica feita no interior do pensamento marxista do direito, a partir de suas próprias categorias. Seu autor, Vinícius Gomes Casalino, a realizou com grande penetração e sutileza, a partir da análise dos fundamentos do direito feita por Pachukanis, que o considerava como forma aproximada da forma mercantil, isto é, com base no modelo da equivalência das trocas de bens na circulação mercantil. Segundo este último autor, o direito provém de uma relação social específica e não genérica, uma relação objetiva fundada nas relações de troca econômica, pautada na teoria do valor de Karl Marx. A posição crítica de Pachukanis partiu de uma concepção oposta a então visão positivista e normativista dominante na teoria jurídica europeia, visão esta que considerava abstrata, a-histórica, puramente formal e voluntarista. Mesmo essa crítica marxista do direito não foi poupada de ser avaliada por inúmeros teóricos marxistas e não marxistas, como, por exemplo, Vichinsky, Max Adler, Kelsen, Karl Renner, Bernard Edelman, Max Weber, Umberto Cerroni, quer para confirmar, quer para desconfirmar alguns aspectos ou mesmo a doutrina de Pachukanis por inteiro. Nessa linha encontra-se este trabalho de Vinícius Casalino. A original construção teórica de Pachukanis a respeito do direito foi publicada em 1924, na então novel URSS, utilizando a metodologia dialética e a teoria econômica de Karl Marx. As tradicionais categorias do direito, como sujeito de direito, contrato, propriedade, O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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relação jurídica, direito subjetivo, liberdade, igualdade, Estado, direito público e direito privado são todas reexaminadas, pelo autor russo, com aplicação original dos princípios teóricos marxistas a respeito da dinâmica da economia capitalista, e caracterizadas essencialmente em função da organização mercantil desse sistema, especialmente em razão da circulação de valores equivalentes. Pachukanis parte da ideia marxista de que a práxis produtiva condiciona dialeticamente as manifestações culturais, incluindo a da vida jurídica. Segundo Vinícius Casalino, entretanto, Pachukanis, apesar da grande originalidade na abordagem teórica do direito, inaugurando empreitada histórica bem diversa, crítica e inovadora na análise dialética do fenômeno jurídico, desenvolve seus argumentos de forma ainda incompleta, o que o induz a cair na pseudoconcreticidade, nos termos da dialética do concreto de Karel Kosik. Isso porque, aponta nosso autor, Pachukanis considera o direito dentro de uma dimensão fundamentalmente privatista e consensual, ao sublinhar a importância do sujeito jurídico, da propriedade privada, do contrato e da vontade na troca de valores equivalentes, destacando sobremaneira a esfera da circulação de bens econômicos. Neste mesmo passo e por consequência, secundariza, na caracterização essencial do direito, o papel do Estado, da normatividade jurídica, do direito público, da sanção jurídica e da luta de classes, em que pese não desconhecer a realidade dessas manifestações. Tais manifestações são colocadas na dimensão do fenômeno político e não do jurídico propriamente dito. Casalino, por esse motivo, considera que Pachukanis, embora partindo da especificidade da produção econômica capitalista, faz uma análise ainda não aprofundada daquilo que Marx chamou de circulação complexa, pautada dialeticamente na singular produção da mais-valia, distanciada qualitativamente da circulação simples, mais própria dos sistemas econômicos pré-modernos. Para aquele sistema ter viabilidade, Vinícius Casalino mostra ser impossível, ao capitalismo, obter a produção para o mercado de modo permanente e sistemático, apenas louvado na troca de equivalentes, mediante o contrato, sem a fundamental participação do mundo político, do Estado, e da verticalização das relações de comando jurídico, especialmente no processo produtivo. 10
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Assim, o direito é imediatamente inferido da circulação e, apenas, mediatamente, da produção. Por isso a verticalidade é secundária para definir a essência do direito. Aqui está a principal crítica que procede apenas em parte. Pachukanis considera a especificidade da troca capitalista em função da produção especificamente capitalista, visto que considera que o direito burguês é precisamente a forma mais desenvolvida do direito na história. Isso só é possível se se considerar a troca complexa do modo de produção capitalista. O que Pachukanis não considera é a relação de “complementaridade dialética” – a qual implica identidade complementar e contraditória a um só tempo – entre a produção capitalista e a circulação de bens (mercadorias). Daí proceder a crítica de Vinícius acerca da abstração relativa em relação ao momento da circulação. A produção, segundo o autor, porque profundamente relacionada de forma dialética com a circulação, faz parte essencial, estrutural e dinâmica do processo de troca das mercadorias, especialmente da força de trabalho. No processo produtivo, também se encontra o direito de caráter vertical, relativo aos comandos sancionáveis do capital no interior das unidades produtivas, bem assim nas relações externas àquele processo, entre Estado e as instituições da sociedade civil, incluindo aquelas unidades produtivas. Sem essa verticalidade, certamente não ocorre também a horizontalidade da troca de equivalentes. E é isso que Pachukanis, embora consciente, não destaca com o devido valor, ou melhor, considera ser a subordinação jurídica entre capital e força de trabalho uma mera consequência do contrato de trabalho, isto é, de uma relação de equivalência. Portanto, para ele, a subordinação ou dependência jurídica é apenas secundária e derivada da relação originária, da relação de equivalência nascida nos termos do contrato entre iguais. Situação e crítica similar ocorrem em relação ao Estado, ao poder público. Este só existe como derivado das exigências da circulação mercantil. Por consequência, Pachukanis só vê o autêntico e originário direito nas relações privadas, no direito civil, para cuja existência tudo o mais é apenas um condicionamento externo ou uma consequência derivada. Não há, pois, uma profunda relação dialética entre o político e o jurídico. O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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Assim, o contrato de trabalho é considerado contrato de equivalentes – um contrato de direito privado – e a subordinação subjetiva posterior no processo produtivo só tem a forma jurídica exterior, porque, em última instância, refere-se a uma relação social de subordinação, de caráter político e não jurídico. Pachukanis argumenta que originariamente essa subordinação resulta, antes de tudo, de uma troca de equivalentes, mediante o contrato civil. Porém, o contrato entre pessoas iguais (os proprietários, respectivamente, de força de trabalho e de capital-salário) desaparece exatamente para dar lugar a pessoas desiguais no processo produtivo, sem o que não existe a exploração e a extração da mais-valia. Pachukanis admite isso, não é ingênuo. Mas, o faz em nível político e não jurídico. Aqui se manifesta o que Casalino chama de pseudoconcreticidade na análise do direito. Há também a presença do Estado, como poder público, nas contratações trabalhistas, objetivando possibilitar a correção, até certo ponto, da desigualdade material reconhecida juridicamente pelo próprio sistema capitalista. Isso tudo sem levar em conta a intervenção do Estado, na infraestrutura social e material e nos serviços públicos, cuja ausência deixaria cabalmente o sistema capitalista sem sustentação. É essencial para o sistema, por exemplo, a arrecadação forçada e juridicamente condicionada de recursos, sem o que o próprio Estado não subsistiria, levando à inevitável desestruturação da própria sociedade capitalista, com sua circulação complexa de mercadorias, seus contratos e relações de troca de equivalentes. Todas essas referências à subordinação, força ou imposição, sanções, autoridade, dependência, hierarquia etc. são, para Pachukanis, manifestações da forma política e não da forma jurídica propriamente dita. O direito, cujo exercício se realiza plenamente na sociedade civil, pela manifestação da vontade nos contratos, não suporta a função impositiva ou autoritária; ele é essencialmente distinto da forma política. Uma fragilidade no sistema teórico de Pachukanis, apontada por Vinícius Casalino, é que toda troca pressupõe o exercício da vontade dos homens proprietários que realizam o escambo em termos contratuais privados, em sua expressão individual. Essa vontade é dos indivíduos e não da autoridade do Estado, porque esta é de caráter 12
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essencialmente político, originária da classe social dominante. É, por consequência, exercida no plano hierárquico de comando normativo, de caráter político e não propriamente jurídico, embora ideologicamente se manifeste superficialmente sob a forma jurídico-normativa. A vontade na troca de mercadorias, por outro lado, é apenas um momento do processo muito mais abrangente em que existe o inafastável encontro dos homens com a natureza – seja a sua própria, com suas necessidades e exigências, o que por certo os induzem ao movimento do escambo generalizado (homem/homem), seja a natureza das coisas com suas leis e necessidades causais (homem/natureza). A vontade, pois, tem uma elasticidade bastante relativa e até, em certos casos, reduzida. Assim, a troca não provém, como à primeira vista parece, de um mero acordo de vontades mediante contrato, formulado pelos sujeitos proprietários interessados e autônomos. Adotar tal concepção seria, em última análise, propugnar pela volta à autonomia da vontade, de claro sabor metafísico. Na realidade, a vontade é um fenômeno antes social do que individual. Ela decorre, sim, das necessidades humanas, condicionadas social e materialmente, e das exigências de acumulação do capital que, precisamente, explicam as trocas de equivalentes na circulação mercantil, aparentemente igualitárias do ponto de vista do resultado material geral. Portanto, a origem da forma direito é muito mais abrangente e complexa do que sua mera redução à forma mercantil, compreendendo também e essencialmente o processo de reprodução do capital e as dimensões políticas que viabilizam o sistema como um todo. Daí a pseudoconcreticidade. No entanto, indo mais longe, pode-se ver que em Pachukanis não há cabal explicação da especificidade da relação jurídica, como relação social de exigência obrigacional mediante o contrato, que implica o “dever-ser”, a normatividade, em face da relação de troca econômica de equivalentes. Na equação 2+2=4, entre composições equivalentes, os membros da equação são o que são simplesmente porque “são” e não porque “devem” ser assim, no sentido normativo. Não são assim porque têm obrigação de ser assim! Como se pode deduzir, de uma relação de equivalência quantitativa, uma relação de dever-ser (normativa)? Por isso, Pachukanis não releva o caráter normativo do direito. Para ele, o direito positivado pelo Estado, como expressão de O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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poder da classe dominante, não é verdadeiro direito. Ele se revela pela oportunidade (política) e não pela equivalência objetiva. Não estaria Pachukanis se envolvendo numa explicação jusnaturalista? Isso não é certo; porém, alguém poderia levantar a questão. Por outro lado e aprofundando a questão, pode-se mostrar que o valor de troca de equivalentes, de caráter objetivo, sugere que se parta, antes de tudo, de uma relação de quantidade (tempo de trabalho abstrato) e não de qualidade (própria do valor de uso), em que pese esta última estar também e sempre implicada. Assim, em Pachukanis, só há direito onde existe igualdade, equivalência. Deve existir a propriedade privada para ser trocada entre os sujeitos proprietários livres e iguais, através do contrato. No entanto, a realidade parece nos mostrar outra coisa. Não restam dúvidas de que, segundo o autor russo, parece só existir direito onde existe a propriedade privada e seu escambo generalizado; porém, é também patente que a desigualdade entre os homens provém precisamente da propriedade distribuída desigualmente. Por todos os lados, existem contratos para troca de equivalentes. No entanto, só encontramos, na sociedade capitalista, a não-equivalência, as profundas desigualdades sociais. O direito, então, existe também e precisamente para assegurar a manutenção da não-equivalência, isto é, para a garantia da desigualdade social. O próprio Pachukanis afirma, em uma passagem de sua obra, ser um dos princípios fundamentais da sociedade burguesa assegurar “igual oportunidade de aceder à desigualdade”! Aliás, se todos os homens fossem iguais, para que serviria o direito? Mas, se a desigualdade também caracteriza o direito, então teríamos explicação para a sanção jurídica porque a força teria que imperar para manter a sociedade desigual, isto é, manter a sociedade em sua estrutura de classes. Mas Pachukanis renega tal princípio por identificá-lo antes à autoridade pública ou política, na manifestação de seu oportunismo ou conveniência, do que ao direito de feição objetiva. Entretanto, conforme Casalino, neste caso aparece a questão política como indispensável à caracterização do próprio direito burguês e que, por isso mesmo, não pode ser dispensada ou posta de lado, sob pena de se cair em um irrealismo jurídico da sociedade capitalista. 14
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Pachukanis, portanto, ao denegar o valor nuclear da sanção, acaba por negligenciar a normatividade jurídica e por identificar a equivalência econômica com a “exigência jurídica de equivalência”. O fato do valor econômico é um fenômeno socialmente objetivo e nem sempre dá lugar a interpretações de exigibilidade subjetiva. O autor, Vinícius Casalino, realiza exemplar crítica da crítica, ou seja, uma autocrítica no âmbito das categorias marxistas. Certamente, a relação entre a circulação e a produção não é simplesmente linear de causa e efeito, não é sequencial. Ele sublinha que a relação entre os dois momentos é dialética, de caráter complementar e contraditório ao mesmo tempo. Elas se interpenetram dialeticamente. A circulação apanha o momento da coordenação e da igualdade e a produção apanha o momento da subordinação e desigualdade, porém, ambos os momentos são complementares e contraditórios, e se identificam em um só processo dialético. A produção artesanal é base da circulação simples e a produção capitalista é base da circulação complexa de mercadorias. A produção artesanal é feita com base no trabalho imposto, forçado politicamente. A produção capitalista é feita com base no trabalho consensual, acordado, “livremente” contratado. Porém, na sociedade burguesa, a imposição política está igualmente presente, pois sem ela não existiria, em última análise, tal forma de escambo e ele é imprescindível ao movimento do capital. Assim, na produção capitalista, a troca de mercadorias em sua totalidade constitui um momento da reprodução do capital, envolvendo de forma dialética toda a estrutura econômica e política da sociedade burguesa. Levando-se em conta a forma do direito apenas com fundamento na forma da troca de equivalentes, como admitir a juridicidade do ganho de capital (lucro, mais-valia)? Como justificar a acumulação do capital? Se o capitalista, o agente legitimado, fica cada vez mais rico, como justificá-lo juridicamente? Isso seria apenas um fato político? Certamente, nessa forma o capital legitima-se pela legitimidade do lucro que passa a ser um ganho de caráter misterioso ou, então, justificado pelo resultado da utilidade marginal do capital! Todos são iguais, parece que ninguém explora ninguém, embora Pachukanis jamais concordasse com isso. É assim, no entanto, que o sistema O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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burguês, em sua base, consagra a dominação e a exploração, sob o manto igualitário, impessoal e ideológico do direito. Contra a visão pseudoconcreta de Pachukanis, Vinícius conclui que “a troca de mercadorias exerce um papel qualitativamente distinto no modo de produção capitalista. Ela passa a conformar o próprio nível produtivo”, bem como este nível confere àquela troca (circulação complexa) uma especificidade que envolve dialeticamente ambos os níveis. Daí ser necessário consagrar o momento de desigualdade na formação essencial do próprio direito, representado pela verticalidade necessária do direito no processo produtivo, bem como nas referências fundamentais ao sistema político, leia-se Estado, indispensáveis para a existência das trocas, da circulação e da própria produção no modo capitalista de produção. Assim, a superestrutura não pode ser considerada como faixa meramente determinada ou condicionada pela infraestrutura, em caráter mais linear do que dialético. A superestrutura é dialeticamente complementar da infraestrutura, uma não pode existir sem a outra. A equivalência e a coordenação, presentes na circulação mercantil, exigem dialeticamente a subordinação e a imposição de autoridade, presentes tanto no processo produtivo quanto na esfera pública. Uma dimensão não existe sem a outra. Ao mesmo tempo em que são complementares são contraditórias entre si, formando uma identidade e uma contradição na unidade dialética do todo. Da mesma forma o público e o privado, o direito estatal e o direito civil, não podem dispensar um ao outro, ambos são fundamentais para a formação socioeconômica do sistema capitalista. Aí está, numa breve e abusiva súmula, o tesouro que se esconde nessa fecunda obra de Vinícius Casalino. Fecunda não apenas pela riqueza e profundidade que nos oferece a respeito da notável obra de Pachukanis, mas pelos amplos caminhos que se abrem para a posterior exploração da teoria marxista do direito em nosso país, tão pouco presenteado com seus princípios e reflexões. É, portanto, uma obra inovadora e promissora aos que desejam investigar novos horizontes para a teoria crítica do direito. Alaôr Caffé Alves Professor Adjunto Faculdade de Direito da USP 16
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INTRODUÇÃO I. Karl Marx afirmou, certa vez, que o movimento repleto de contradições da sociedade capitalista faz sentir-se de modo mais contundente nas vicissitudes dos ciclos periódicos que a indústria moderna percorre, e em seu ponto culminante – as crises gerais. Estas, tanto pela presença por toda parte quanto pela intensidade de seus efeitos, têm a capacidade de enfiar a dialética até mesmo na cabeça dos “parasitas mais afortunados”. Ao que parece, ele acertou. A recente crise “financeira”, que assolou boa parte das economias capitalistas e fez soar o sinal de alerta, deu-nos provas definitivas disso. De fato, o antigo discurso neoliberal, outrora cheio de pompas e circunstâncias, simplesmente evaporou. Ninguém que esteja, hoje, no gozo pleno de suas faculdades mentais, ousará dizer que o mercado tem plena capacidade de se autoregular ou que o poder público é um empecilho, um estorvo, para a economia. O Estado, por sua vez, cumpriu bem o papel de sempre. Absorveu sem maiores problemas – inclusive jurídicos – as enormes dívidas privadas criadas pelos “agentes financeiros”. Até aí nada de novo, pois é da essência da forma estatal oferecer o subsídio necessário à exploração capitalista; à extorsão, por poucos, da riqueza coletiva. Não disse Marx, no clássico capítulo da “acumulação primitiva”, que “a dívida do Estado, a venda deste, seja ele despótico, constitucional, ou republicano, imprime sua marca à era capitalista”? Já não alertara para o fato de que “a única parte da chamada riqueza nacional que é realmente objeto da posse O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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coletiva dos povos modernos é a dívida pública”?1 Não parece que nos caiba, agora, reclamar. Os ideólogos do capital insistem em afirmar que a crise tem origem nas finanças, na ausência de confiança ou em desvios éticos. Uma vez que não conseguem, dado o ponto de vista de classe, ultrapassar as névoas espessas da ideologia, cingem-se à explicação rasteira, aparente, enganosa. Se o discurso neoliberal dissolveu-se rapidamente, em seu lugar apresenta-se outro. Certo keynesianismo, enrubescido, volta a dar o ar da graça. O Estado é novamente chamado a “regular” o mercado. Os agentes financeiros devem ser submetidos a rígidos padrões de conduta; o mercado, controlado, é civilizado. Quantum mutatus ab illo! A crise capitalista é uma crise estrutural, cujas causas remontam à impossibilidade, cada vez mais acentuada, de obter-se o mais-valor2. As capacidades produtivas atingiram um nível tão elevado de desenvolvimento tecnológico que a força de trabalho humana passa a ser desnecessária. As máquinas, os robôs, os computadores, os softwares, a rede mundial fazem o trabalho que, outrora, homens, mulheres e crianças executavam. Esquece-se, entretanto, que o valor provém do trabalho humano; o mais-valor, do mais-trabalho. Por isso, quanto menor for o número de seres humanos agregados a máquinas, tanto menor será o mais-valor produzido. Foge-se, então, para o mundo encantado das finanças. Como se fosse possível criar dinheiro a partir do próprio dinheiro, os capitalistas mundiais abarrotaram as bolsas de valores. A negociata com os chamados “títulos podres”
1 “Daí ser totalmente consequente a doutrina moderna de que um povo torna-se tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público torna-se o credo do capital. E com o surgimento do Estado, o lugar do pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, é ocupado pela falta de fé na dívida do Estado”. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 2a ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985 (Os economistas). Livro Primeiro. Volume II, p.288. 2 Cf. a respeito: MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Tradução de Francisco Raul Cornejo et al. São Paulo: Boitempo, 2009.
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foi generalizada. Os glutões empanzinaram-se. Quando, finalmente, percebeu-se que entre D e D’ é necessário M, a tempestade já havia feito suas vítimas. Até que se perceba que M não passa de “trabalho coagulado”, talvez os esforços sejam todos em vão. A crise realmente enfia a dialética na cabeça de qualquer parasita. O problema talvez resida no fato de que, por ocasião da próxima crise, já não haja quaisquer cabeças dentro das quais seja possível enfiar alguma dialética. O que quero dizer é que a próxima crise mundial será tão ampla e tão devastadora, que suas consequências são absolutamente imprevisíveis. E não somos nós, marxistas alarmados, os anunciadores do caos. As instituições bancárias e financeiras um pouco mais independentes – se é que existe tal coisa no mundo do capital – alertaram seus “investidores” quanto aos piores cenários possíveis3. O próximo turbilhão dissolverá a ideologia do “mercado civilizado”. Talvez então se perceba que o modo capitalista de produção tem apenas um objetivo: a valorização do valor. Não quero, contudo, subestimar a capacidade de adaptação do capitalismo e de seus Estados nacionais. O sistema provou sua versatilidade mais de uma vez. A sociedade do capital não hesitará – como não hesitou – em lançar-se em uma nova guerra mundial, em formar alguns campos de concentração, em deleitar-se com barbáries genocidas. É de sua natureza a irracionalidade destrutiva. Que caiam alguns milhões de cabeças, o importante será salvar o lucro.
II. O papel do marxismo, num primeiro momento, é fazer a crítica da sociedade capitalista. Marx trabalhou a vida inteira com esse objetivo e o resultado final foi sua obra máxima, O capital, cujo subtítulo é: crítica da economia política. A finalidade última de seu imenso esforço teórico foi descobrir “a lei econômica do movimento da sociedade moderna”. Ele cumpriu, com denodo, sua missão. 3 Cf., por exemplo, o documento The worst-case debt scenario, elaborado pelo banco francês Société Générale.
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A crítica da sociedade capitalista, contudo, apenas faz algum sentido, apenas possui algum propósito, se estiver entrelaçada dialeticamente com o projeto de construção de uma nova sociedade, de uma nova e diferente organização das forças produtivas e das relações de produção. As formas de gestão do capital, desde o liberalismo econômico, passando pela social-democracia, até o abominável sistema estatal soviético, não obtiveram sucesso na proposta de civilizar o capital – se é que, em algum momento, essa proposta realmente existiu. A promessa do Iluminismo, de uma sociedade igualitária, justa e fraterna, não pode ser cumprida no capitalismo. As relações de produção e circulação capitalistas organizam-se sob a forma de exploração do trabalho assalariado. Uma sociedade emancipada é absolutamente impossível nesse contexto – isso, sim, é “utopia”. Portanto, a crítica da sociedade capitalista deve apontar para uma nova sociedade; para a suprassunção das relações de produção capitalistas; enfim, para o socialismo. O marxismo, entretanto, parece ter-se perdido depois de 1989. A queda do muro de Berlin e o esfacelamento do sistema soviético fizeram com que os pensadores “marxistas” debandassem. Ao estilo “esqueçam o que eu escrevi”, muitos emudeceram; outros mudaram de opinião; os mais pragmáticos puseram-se a trabalhar para o capital. Em um dos momentos mais importantes da história humana, quando o marxismo era chamado a apontar a demagogia da saída pelo mercado, seus representantes calaram-se. Envergonhados, partiram. Pode-se apontar com certa precisão o motivo dessa diáspora. A fragilidade do marxismo como movimento crítico, sua quase extinção após 1989 devem-se, penso eu, a um fator predominante: o constante afastamento com relação a Marx; a não compreensão de seus princípios e de suas categorias fundamentais; o abandono de seu pensamento e de sua perspectiva política originais. A análise atenta das principais obras dos marxistas que viveram o século XX permite concluir que, paulatinamente, distanciaram-se dos princípios fundamentais. Assim, encontraremos Lukács lamentando seu História e consciência de classe; Althusser admitindo que mal lera O capital; a Escola de Frankfurt distanciando-se da análise da sociedade de classes, para concentrar-se na crítica da instrumentalização da razão. 20
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Existem razões históricas para esses movimentos e, aqui, não é o espaço adequado para discuti-las. É preciso apenas que fiquem registrados. Não encontramos, com frequência, obras que proponham a crítica sistemática do modo de produção capitalista e uma reflexão responsável sobre o socialismo. A exceção que pode, certamente, ser apontada, é István Mészáros. Esse autor cumpre um papel de extrema importância no contexto dos acontecimentos do pós-1989. Seu Para além do capital: rumo a uma teoria da transição ocupa, justamente, o espaço deixado pela diáspora marxista. O autor húngaro pensa a sociedade capitalista com vistas a uma sociedade futura, de orientação socialista.
III. Em 1926, por ocasião do prefácio à segunda edição de A teoria geral do direito e o marxismo, Pachukanis afirmava que a crítica marxista da teoria geral do direito ainda estava no início; era preciso um profundo estudo de cada ramo da ciência do direito; nesse campo havia ainda muito por fazer. Passados pouco mais de oitenta anos, escassos avanços foram registrados. Uma análise mais cuidadosa, mais acurada, permitirá dizer, com certa tranquilidade, que houve retrocessos. Há razões históricas e estruturais para tanto. Fixar-me-ei nos problemas epistemológicos. A crítica marxista do direito, com raras exceções, não conseguiu – se é que alguma vez realmente tentou – abandonar os limites estabelecidos pelos pressupostos dos quais parte a teoria jurídica tradicional. Primeiramente, insiste-se no estudo do direito como “norma”, como puro “dever-ser”. Se Kelsen teve a ideia de fixar a noção de “norma” como o único objeto possível de estudo de uma pretensa “ciência do direito”, isso não deveria ter significado a concordância dos marxistas com o professor austríaco de forma tão unânime. Concordaram com ele, entretanto. Certo marxismo dirá, então, que o conteúdo aparentemente “racional” do direito não passa da carapaça sob a qual se escondem os interesses políticos mais comezinhos da classe dominante – ignorando, peremptoriamente, o problema da forma jurídica. O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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Um segundo limite epistemológico que não pôde ser afastado consiste na precedência lógica do Estado com relação ao direito. Para ser mais específico, trata-se do pressuposto de que o Estado “produz” o direito, seja por meio da função legislativa, executiva ou judicial. O ponto de vista que se pode encontrar já nas obras de juventude de Marx, segundo o qual a sociedade civil precede o Estado4, foi sumariamente ignorado. Qualquer um que esteja minimamente familiarizado com as obras de Karl Marx percebe que o Estado, como forma política, é o resultado de um conjunto específico de relações de produção, dentro das quais se encontra o direito. Nesse sentido, o direito antecede logicamente o Estado e não o contrário. Também aí o marxismo relutou5. Outro problema sério relaciona-se ao estatuto teórico da “propriedade” no seio de certa crítica marxista do direito. Não obstante Marx 4 “A sociedade civil compreende o conjunto das relações materiais dos indivíduos dentro de um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas. Compreende o conjunto da vida comercial e industrial de um estágio e ultrapassa, por isso mesmo, o Estado e a nação, embora deva, por outro lado, afirmar-se no exterior como nacionalidade e organizar-se no interior como Estado. O termo sociedade civil apareceu no século XVIII, quando as relações de propriedade se desligaram da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil enquanto tal só se desenvolve com a burguesia; entretanto, a organização social resultante diretamente da produção e do comércio, e que constitui em qualquer tempo a base do Estado e do restante da superestrutura idealista, tem sido constantemente designada por esse mesmo nome”. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.33/34. 5 Nesse sentido, Antonio Negri e Michael Hardt em O trabalho de Dioniso, dedicam um capítulo à discussão das “potencialidades de um Poder Constituinte”. À certa altura indagam: “(...) Como os patriarcas nos ensinaram, no êxodo se acumulou uma enorme energia criativa. Podemos reconhecer a energia criativa do êxodo como um novo poder constituinte? O que significa hoje o exercício do poder constituinte? NEGRI Antonio; HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso: para a crítica do Estado pós-moderno. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-Pazulin, 2004, p.130/131. É interessante notar como os autores, a pretexto de elaborarem uma “crítica marxista”, reforçam essa categoria mística tradicional: “poder constituinte originário”. “Não só em suas respostas, mas também nas próprias questões, havia uma mistificação”. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.07.
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tenha gasto boa parte de sua vida e três espessos tomos de O capital para demonstrar que a função da propriedade, no modo de produção capitalista, é viabilizar a exploração do trabalho assalariado e a extração do mais-valor, é possível encontrar, ainda hoje, um conjunto teórico “crítico” favorável a uma pretensa “função social da propriedade”. Pachukanis já alertara para o fato de que “a representação do direito de propriedade burguês como uma obrigação social, por sua vez, não passa de mera hipocrisia”. Essa hipocrisia, contudo, muitas vezes não é percebida e está enraizada nas mentes dos pensadores mais honestos. É extremamente difícil eliminá-la. Finalmente, para não me alongar muito, um pressuposto que representa a síntese mais explicitamente ideológica do que foi exposto até aqui. A tendência teórica de atribuir às conquistas políticas da classe trabalhadora um caráter especificamente “jurídico”. Explico. No momento em que o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista, ele o faz por intermédio do contrato – o famoso contrato de trabalho. Ao redor dessa relação, orbita um complexo legislativo que tem por objetivo garantir o implemento do quanto fora, ali, pactuado. No primeiro caso, estamos tratando justamente da relação social por meio da qual a classe trabalhadora vende a si e sua descendência à “serpente de seus martírios”. No segundo, estamos falando do conjunto normativo que garante essa exploração. O contrato de trabalho e o direito do trabalho são instrumentos do capital, pelo capital e para o capital. Se alguns “benefícios” existem hoje – como o salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho, férias, direito de greve, entre outros – isso se deve ao fato de que os trabalhadores organizaram-se como classe, isto é, politicamente, e os arrancaram. Não foram o direito ou o Estado os responsáveis por essas conquistas, mas a própria classe trabalhadora. A postura teórica que faz a apologia pura e simples do direito do trabalho é, portanto, conservadora.
IV. Não pretendo, contudo, jogar fora o bebê juntamente com a água do banho. Não estou dizendo que os elementos teóricos acima O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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enumerados são irrelevantes para a compreensão do que é o direito e do papel que cumpre na sociedade do capital. O princípio da “totalidade concreta em movimento” – do qual faço uso, inclusive, ao longo deste trabalho – não permitiria tal procedimento. Certamente, é impossível compreender o direito sem que se compreenda seu aspecto “normativo”. A relação social que assume a forma especificamente jurídica, no modo de produção capitalista, depende do ajuste de vontades dos participantes da troca. Ora, esse “ajuste de vontades”, que resulta numa “norma” a ser seguida pelos contratantes, é fundamental para que a troca ocorra a bom termo e o valor valorize-se. Contudo, colocar a “norma” como o “objeto” de estudo da ciência jurídica é incorrer em erro. A norma gira em torno da relação social e não o contrário. Os partidários do positivismo jurídico dirão que o estudo da relação social é da alçada da “sociologia jurídica”. O marxismo não deveria dar ouvidos a tal argumento. Tampouco se compreende o direito sem que se compreenda o Estado. É preciso deixar claro, contudo, de uma vez por todas, que, a partir dos princípios epistemológicos marxianos, o Estado deve ser explicado a partir do direito e não o contrário. Há referências muito claras, já nas obras marxianas de juventude, como Para a questão judaica e A sagrada família. Além do mais, a organização política da sociedade só pode ser denominada “Estado” a partir do momento em que relações capitalistas estão atuando de forma hegemônica. Não por outra razão, a palavra “Estado” aparece pela primeira vez com Maquiavel, em O príncipe. Obra, aliás, escrita em uma época e região que são o “berço do capitalismo”, segundo o próprio Engels6. O enquadramento teórico da “propriedade”, no seio de uma crítica marxista do direito, passa pela constatação de que ambas as categorias 6 “O Manifesto Comunista presta plena justiça à ação revolucionária do capitalismo no passado. A primeira nação capitalista foi a Itália. O fim da Idade Média feudal, o limiar da era capitalista moderna é assinalado por uma figura colossal: um italiano, Dante, ao mesmo tempo o último poeta da Idade Média e o primeiro poeta dos tempos modernos”. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998, p.83. Prefácio de Engels à edição italiana.
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– direito e propriedade – apenas podem ser apreendidas num entrelaçamento dialético-material. As relações sociais que assumem a forma do “direito” e da “propriedade” haurem suas especificidades no contexto de uma relação de reciprocidade dialética. O “sentido” moderno de propriedade, com o qual trabalha a “ciência do direito”, concentra-se na liberdade absoluta de disposição, decorrente justamente desse entrelaçamento. Construir uma noção de propriedade capitalista, por meio da qual se possa fazer “justiça social” não passa, realmente, de hipocrisia. Entretanto, em termos práticos, não há quaisquer problemas em atribuir ao proprietário capitalista algum “incômodo”. No fundo, a “função social da propriedade” não passa de certos “aborrecimentos” impostos ao proprietário. Não se trata, nem de longe, de questionar a propriedade privada, mas tão-somente de legitimá-la em um determinado contexto histórico. Em termos de atuação política prática, todos os progressistas somos favoráveis a esse procedimento paliativo. Em termos teóricos, contudo, a crítica não pode nutrir ilusões, como as que consideram a função social a antítese da propriedade privada. Seria estranho para um pensador marxista posicionar-se, em termos práticos, de forma contrária aos “direitos sociais”. Em uma época histórica em que forças políticas conservadoras – muitas vezes travestidas como progressistas – avançam contra as conquistas sociais como tentativa de contornar os impactos causados pela dificuldade de extração do mais-valor, a defesa prática e política dos direitos sociais é uma obrigação, um dever. Contudo, não se pode esquecer, com Marx, que se está a lutar contra os “efeitos” da doença e não contra as “causas”. Em termos teóricos, deve-se deixar muito claro para os trabalhadores o que são os “direitos sociais” e que papel cumprem dentro do capitalismo. E isso para que a classe trabalhadora possa, ao final, substituir o moto conservador, “um salário justo por uma jornada de trabalho justa”, pelo moto progressista “abolição do sistema de salários”. Todos os elementos acima enumerados são importantes para a compreensão “científica” do direito. É preciso, contudo, que sejam considerados a partir dos princípios epistemológicos da dialética marxiana. Caso contrário, a análise permanecerá na perspectiva rasteira da O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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aparência e da ideologia, tal como as análises empreendidas pelo positivismo jurídico e sua versão pós-moderna, o “pós-positivismo”.
V. Em O dezoito brumário de Luís Bonaparte, Marx inicia sua exposição recordando um filósofo do qual se confessava discípulo, Hegel. Este, em uma de suas obras, assinalava que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. O autor de Fenomenologia do espírito teria esquecido, segundo Marx, de acrescentar: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”7. As observações ecoam como um sinal de alerta. A história do século XX parece tê-las confirmado com certo ar de cinismo. O século XXI caminha na mesma direção. A humanidade vê-se rodeada por problemas muito semelhantes aos que a afligiram em tempos não tão remotos. Vigora em todo o globo terrestre um capitalismo selvagem e brutal. O Oriente Médio integra-se ao mercado mundial à custa de sangue e ódio e as muralhas da China cederam definitivamente ao ímpeto do modo de produção hegemônico8. A aventura do “socialismo real” é particularmente lamentável. Se não resta dúvida de que terminou como uma tragédia, a questão a ser respondida é: acontecerá novamente como uma farsa? Se a integração econômica globalizada é “inevitável”, os graves problemas políticos e socioeconômicos daí resultantes também são. Há muito tempo a literatura socialista revelou as contradições que tornam o modo de produção capitalista uma ameaça à sobrevivência dos seres humanos. As bases sobre as quais se assenta – a separação do
7 MARX, Karl. O dezoito brumário de Luís Bonaparte. 7ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p.21. 8 “Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da china e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros”. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998, p.44.
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trabalhador com relação aos meios de produção, a livre concorrência dos capitais, a propriedade privada, uma organização política ainda baseada em Estados nacionais9 – engendram uma série de conflitos estruturais que se arrastam continuamente, sem previsão de solução. Não é fora de propósito a constatação de que o modelo atual parece repetir o panorama sombrio anterior à primeira guerra mundial10. Mas o diabo não se mostra como é; a sociedade segue anestesiada. A reificação, a ideologia, as novas tecnologias aplicadas aos meios de comunicação de massa, o monopólio acachapante da grande imprensa mundial, criam uma crosta de aparente felicidade e bem-estar, difícil de ser penetrada. O sono é profundo. A dialética da história humana, contudo, pode ser bastante cruel. O breve século XX deu indícios de como, num futuro muitíssimo próximo, a “solução final” das contradições estruturais que vêm acumulando-se pode ser o extermínio total da humanidade. À época de Marx, essa preocupação estava fora de cogitação, em face do poder destrutivo limitado de que dispunham as nações. Atualmente, contudo, essa problemática coloca-se na ordem do dia, mormente porque a “corrida armamentista” parece ter retornado ao cenário mundial, com a pompa e o horror que lhe são característicos11.
9 “Mas dar as costas é exatamente o que nós, europeus e descendentes de europeus estabelecidos nas antigas colônias europeias do além-mar, estamos fazendo. Sintonizados às regras de uma democracia aprisionada (para seu próprio risco), nas fronteiras de um Estado-nação ou de um conjunto de Estados-nações, mantemos e multiplicamos as nossas riquezas às expensas dos pobres do lado de fora”. BAUMAN, Zygmunt. Europa: uma aventura inacabada. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2006, p.37. 10 Cf., a respeito: ŽIŽEK, Slavoj. Às portas da revolução: escritos de Lênin de 1917. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. 11 “Se você quiser se preocupar com países que possuem armas nucleares, não precisa ir muito longe. Os próprios Estados Unidos estão aumentando a proliferação ao rejeitar tratados, impedir quaisquer esforços para coibir a militarização do espaço exterior, desenvolver o que chamam ‘mini-nukes’ (pequenas armas nucleares), que na verdade são engenhos de enorme poder destrutivo”. CHOMSKY, Noam. Ambições imperiais: o mundo pós-11/9. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p.82.
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O direito tem sua responsabilidade. A filosofia do direito é cúmplice dessa situação. A relação jurídica atua como mediadora dos intercâmbios mercantis e do consumo avassalador sobre os quais se assenta a “pujança” do capitalismo tardio. O sujeito de direito é a coroação do homem capitalista abstrato, possuidor “natural” de propriedades, liberdades e igualdades formais. Entretanto, a maioria esmagadora dos homens reais, concretos e históricos não vive a igualdade e muito menos a liberdade. O real é um deserto12. Colorir esse deserto com falsos oásis é tarefa da filosofia jurídica que personifica os interesses do capital. O estudo filosófico do direito tem como objetivo a formulação dos principais problemas do campo jurídico. Não há como negar, entretanto, que o pensamento filosófico “está enraizado no processo histórico-social e reflete, inevitavelmente, os conflitos dos valores e dos interesses hegemônicos com os das parcelas dominadas da sociedade”13. O presente trabalho posiciona-se do ponto de vista desses últimos; das camadas dominadas da sociedade. Situa-se, portanto, no âmbito da crítica do direito. Uma crítica consciente de seu objeto, porque consciente de seu objetivo. Uma crítica, sobretudo, radical14.
12 Em Bem-vindo ao deserto do real, Slavoj Žižek elabora uma excelente reflexão sociológica, mas de cunho psicanalítico também, de como a sociedade se depara com o real hoje. Uma das conclusões possíveis é a de que o “real”, em razão de seu caráter traumático e excessivo não pode ser integrado à realidade das pessoas (no que sentem como tal) e que, portanto, são forçadas a senti-lo (o real), como um pesadelo fantástico. ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. 13 Cf.: ALVES, Alaôr Caffé. “As raízes sociais da filosofia do direito: uma visão crítica”. In: O que é a filosofia do direito? Barueri-SP: Manole, 2004, p.81. 14 “A desorientação teórica dos novos contestatários é o espelho do completo desmoronamento da crítica social nas duas últimas décadas. A ausência de uma verdadeira crítica, coerente e de vasto alcance, quando não mesmo a recusa explícita de toda e qualquer teoria ‘totalizante’, impede que os indivíduos que pretendam assumir uma posição crítica tenham um conhecimento real das causas e das consequências daquilo que criticam. Correm assim o
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Criticar radicalmente significa apreender o objeto de forma aprofundada, em todas as suas determinações. Significa buscar as raízes dos problemas. Para o homem, contudo, a raiz é o próprio homem15. Por isso, apreender o direito e criticá-lo radicalmente significa afastar todos os véus mistificadores para encará-lo como o que realmente é: uma relação entre homens, uma relação social16. A filosofia tradicional do direito elabora suas teorias, organiza seus conceitos, sistematiza seus princípios, mas esquece, quase sempre, de um ponto fundamental: identificar a forma específica de uma relação social que a caracterize como jurídica17.
risco de ver sua crítica, muitas vezes ao arrepio de suas melhores intenções, degenerar no exacto contrário de toda e qualquer perspectiva de emancipação social”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa, Portugal: Antígona, 2006, p.08. 15 “A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominen, e demonstra-se ad hominen logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem”. MARX, Karl. “Crítica da Filosofia do direito de Hegel – Introdução”. In, Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p.151. 16 “As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas, são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são, pois, verificáveis por via puramente empírica”. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.10. “O homem que produz em sociedade é o pressuposto que forma o ponto de partida da teoria econômica. A teoria geral do direito, na medida em que cuida de definições fundamentais, deveria partir igualmente dos mesmos pressupostos fundamentais”. PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p.54. 17 “Se, à primeira vista, se considera o direito como a forma de toda e qualquer relação social, então pode dizer-se a priori que suas características específicas passarão sem serem percebidas. Muito pelo contrário, o direito, como forma de relações de produção e troca, desvenda facilmente, graças a uma análise mais ou menos cuidadosa, os seus traços específicos”. PACHUKANIS, E. B. Ibidem, p.20.
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VI. O ponto de vista da classe trabalhadora é o marxismo. Forjado a partir da “dupla revolução”18, o conjunto teórico que tem como fonte de inspiração as obras de Karl Marx e Friedrich Engels demonstrou ser, historicamente, a expressão teórica dos interesses materiais e políticos mais amplos e estruturais dos trabalhadores19. O materialismo histórico significou uma ruptura com o saber filosófico tradicional. Elaborado com base na análise dialética e materialista da história, o marxismo possui premissas capazes de viabilizar a pesquisa objetiva de uma dada formação social, apontando suas
18 “Mas não seria exagerado considerarmos essa dupla revolução – a francesa, bem mais política, e a industrial (inglesa) – não tanto como uma coisa que pertença à história dos dois países que foram seus principais suportes e símbolos, mas sim como a cratera gêmea de um vulcão regional bem maior. O fato de que as erupções simultâneas ocorreram na França e na Inglaterra, e de que suas características difiram tão pouco, não é nem acidental nem sem importância (...) É igualmente relevante notar que elas são, neste período, quase inconcebíveis sob qualquer outra forma que não a do triunfo do capitalismo liberal burguês” HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. 19ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p.16. 19 “(...) os períodos de criação filosófica são raros. Entre os séculos XVII e XX vejo três desses períodos, que eu designaria pelos nomes dos homens que os dominaram: há o ‘momento’ de Descartes e Locke, o de Kant e Hegel e, finalmente, o de Marx. Essas três filosofias se tornaram, cada uma por sua vez, o húmus de qualquer pensamento particular e o horizonte de toda a cultura; não há como ir além delas enquanto o homem não tenha ido além do momento histórico que essas filosofias expressam. Tenho dito frequentemente que um argumento ‘antimarxista’ é apenas o aparente rejuvenescimento de uma ideia pré-marxista. Uma pretensa ‘superação’ do marxismo seria, na pior das hipóteses, apenas um retorno ao ‘pré-marxismo’; na melhor, apenas a redescoberta de um pensamento já contido na filosofia que alguém acredita ter superado”. SARTRE, Jean Paul. Questions de méthode. Paris: Gallimard, 1960, p.12.
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contradições internas e a respectiva oposição de interesses entre as classes que a constituem20. A dinâmica na abordagem do objeto, característica que confere ao marxismo sua relevância e estatura teóricas, não advém da genialidade de seus fundadores ou da opinião de intelectuais de renome, como Sartre. A âncora que o torna “o horizonte de toda a cultura” é ser a expressão teórica e a própria manifestação intelectual dos interesses materiais da classe trabalhadora. A posição desse conjunto de homens reais, dentro da estrutura do processo produtivo e na condição de explorados, é o que torna esse ponto de vista dinâmico, contestador e crítico – porque visa à emancipação. Nesse sentido, a abordagem científica do direito implica o reconhecimento da posição ideológica assumida pelo estudioso – esta decorrente da situação de classe em que se encontra. “O sujeito cognoscente faz parte do objeto estudado”21. Assim, a “verdade” do discurso científico depende de sua aptidão para orientar a ação no sentido da transformação social. Alaôr Caffé Alves explica: “Neste passo, é conveniente notar que a expressão ‘discurso objetivo’ não equivale a ‘discurso livre de valores’. A neutralidade valorativa não é um critério de objetividade, visto que a parcialidade ideológicovalorativa não desvirtua necessariamente a verificabilidade ou o potencial transformativo (da realidade) da explicação; além disso, a ‘neutralidade valorativa’ é consignada exatamente para dar maior credibilidade a uma posição ideológica inconfessável. A introdução de posições ideológicas ou esquemas valorativos em
20 “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito”. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto comunista. Op. cit., p.40. 21 ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p.39.
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um discurso cancela a imparcialidade, porém não necessariamente a objetividade”22. No interior do marxismo busquei o pensamento que se debruçou sobre as principais questões relativas ao direito como objeto de estudo científico. Dentre as obras que o abordaram a partir dessa perspectiva, posso apontar A teoria geral do direito e o marxismo como a mais fiel aos princípios metodológicos marxianos. Pachukanis foi um estudioso privilegiado. O período e o palco históricos de sua vida intelectual, dentro dos quais esteve submerso nos problemas jurídicos, são particularmente importantes. O autor escreveu A teoria geral do direito e o marxismo nos anos posteriores à tomada do poder político na Rússia pelos bolcheviques – foi publicada pela primeira vez em 1924. Tratava-se de um dos momentos mais fascinantes da história humana, quando o sonho “utópico” de emancipação e igualdade parecia ganhar existência real. Período de acirramento máximo das contradições de classe, revelador dos conflitos de interesses que usualmente permanecem latentes sob o mofo anestésico da ideologia e que, temporariamente, resolveram-se em favor do proletariado. Sua posição pessoal não foi menos estratégica, sobretudo antes do início das perseguições políticas. Foi vice-comissário do povo para a justiça na gestão de Stutchka como comissário. Ou seja, tratou muito de perto dos problemas práticos que a revolução instaurou no âmbito da regulamentação jurídica. Não obstante, foi sua postura teóricocientífica inicial que confere à Teoria geral do direito e marxismo o status que logrou alcançar através dos tempos. Isso porque, nos dizeres acertados de Márcio Bilharinho Naves: “Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao direito encontradas em O capital – e não seria exagero dizer que ele é o primeiro que verdadeiramente as lê – mas, principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx, ao recuperar o método marxiano”23. 22 Idem, ibidem, p.41. 23 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p.16. “O segundo elemento diz respeito a uma maior agudeza metodológica, que se insere numa cultura filosófica mais
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Retornar a Marx talvez seja o principal desafio do marxismo neste século XXI. Compreender o projeto marxiano e restabelecer sua continuidade estão na ordem do dia. Ao longo do século XX, as vicissitudes políticas impuseram aos pensadores marxistas alguns “desvios teóricos”, ora para sustentar, ora para criticar o “socialismo” tal como estava arranjado. Atualmente, o tempo é de ciência. Por isso, o presente trabalho insere-se numa perspectiva mais ampla, em que busco efetuar uma crítica marxista dos marxismos. É preciso cotejar as diversas obras e as várias tradições marxistas com o pensamento original de Karl Marx e Friedrich Engels. É preciso, sobretudo, verificar em que acertaram e em que erraram, para que a história não se repita, nem como tragédia, nem como farsa.
VII. Finalmente, uma palavra sobre esta obra. Ela é fruto do mestrado defendido junto ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no ano de 2007. A dissertação, elaborada sob a orientação do Professor Associado Alaôr Caffé Alves, foi depositada com o título de A teoria do direito de Pachukanis e pseudoconcreticidade: uma contribuição à crítica marxista do direito. Renovo, neste momento, minha sincera gratidão pelas oportunidades acadêmicas e profissionais que me foram concedidas pelo Professor Alaôr, eterno mestre de todos nós na crítica do direito. Compareceram à banca examinadora os Professores Márcio Bilharinho Naves e Gilberto Bercovici, aos quais, evidentemente, ficam aqui os meus agradecimentos. Ao Professor Márcio uma deferência especial, por ter sido um dos pioneiros no estudo da obra de Pachukanis no Brasil.
profunda e numa meditação muito penetrante sobre o método de O capital. Não é por acaso que Pachukanis é talvez o primeiro estudioso marxista que trabalha na base da Introdução de 1857, um texto de Marx que por muito tempo ficou de lado na tradição da exegese marxista”. CERRONI, Umberto. O pensamento jurídico soviético. Tradução: Maria de Lurdes Sá Nogueira. Póvoa de Varzim, Portugal: Publicações Europa-América, 1976, p.65.
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No período compreendido entre 2004 e 2007 permaneci, por assim dizer, “submerso” no marxismo. Meu único objetivo, ao ingressar na pós-graduação do Largo São Francisco, foi o de estudar e aprofundarme. Muito embora o resultado obtido tenha sido considerado satisfatório pela banca de examinadores, relutei em publicar a dissertação. O trabalho pareceu-me – e parece-me ainda hoje – mal escrito. Além do mais, perdi a oportunidade de desenvolver algumas perspectivas que tornariam a dissertação mais rica e aproveitável. Deixei, por exemplo, de explorar com mais profundidade a conexão dialética fundamental entre a forma jurídica e a forma estatal. Problema importantíssimo para o marxismo e que, ainda hoje, deixa a desejar uma explicação convincente. De qualquer modo, terei sempre a desculpa de que “extrapolaria o objeto de estudo”. É uma desculpa “acadêmica”, portanto, avessa ao marxismo. O ano de 2009, entretanto, alterou minha percepção. Dois importantes trabalhos na área da crítica do direito foram publicados. Direito e ideologia, de Tarso de Melo e Crítica da igualdade jurídica, de Celso Naoto Kashiura Jr. Este último, em especial, enfoca a teoria do direito de Pachukanis. Trata-se, juntamente com a obra de Márcio Bilharinho Naves, da “melhor e mais clara exposição do pensamento de Pachukanis entre nós”. A excelente recepção que essas obras obtiveram no meio jurídico crítico e a possibilidade de diálogo com as mesmas fizeram com que surgisse, em mim, algum pensamento quanto à eventual publicação. Além do mais, o frequente convívio e a troca de ideias constantes com Oswaldo Akamine Jr. colocaram em evidência o potencial positivo do trabalho, como contribuição à compreensão mais aprofundada do pensamento de Pachukanis. No decorrer do ano, encontrei algumas referências bibliográficas à dissertação. Isso mostrou que algum interesse há no estudo, uma vez que os únicos exemplares do trabalho encontram-se “escondidos” na biblioteca da Faculdade de Direito da USP. Tomei conhecimento, também, de que alguns alunos de graduação do Largo São Francisco estavam extraindo cópias do trabalho, a fim de estudar de maneira mais pormenorizada a obra de Pachukanis. Nesse momento, soou o alarme de minha irresponsabilidade como marxista. Ora, se é 34
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verdade, como afirma Marx, que a teoria pode transformar-se em força material ao se apoderar das massas, parece-me conveniente que estas últimas possam ter acesso à primeira, caso contrário, a transformação nunca ocorrerá. Outro evento importante para a mudança de minha opinião foi meu ingresso junto ao grupo de estudos sobre direito e teoria crítica, coordenado pelo Professor Carlos Eduardo Bianca Bittar. Um trabalho destacado que reúne pesquisadores das mais variadas tendências intelectuais. O diálogo, em especial com a Escola de Frankfurt, foi muito rico e generoso; um enorme incentivo à retomada de meus estudos acadêmicos. Finalmente, o ingresso, em 2010, no programa de pósgraduação da Faculdade de Direito da USP para cursar o Doutorado sob a orientação do Professor Eduardo Bittar encerrou a convicção de que a publicação era necessária. Para tanto, efetuei uma revisão minuciosa do texto. Busquei remover algumas imprecisões estilísticas que tornavam a leitura, ora confusa, ora pesada. Tentei também simplificar alguns pontos de vista, visando principalmente o leitor não iniciado no marxismo. Reescrevi em boa parte a presente introdução para fazer constar algumas preocupações que me acompanham desde a redação do trabalho, em 2006, e que acabaram por permanecer fora do texto original. Eliminei um item da dissertação que se concentrava em questões excessivamente “acadêmicas”, desconexas com o espírito do trabalho. Quanto ao restante, pouco foi alterado com relação ao conteúdo. As principais ideias de então permanecem válidas em sua inteireza. O reencontro com o texto original fez-me crer que o mesmo passou pelo “crivo do tempo”. O esforço teórico que empreendi tem como objetivo oferecer uma resposta aos críticos de Pachukanis que acusam sua teoria de ter olvidado questões substanciais para a compreensão do direito. Em particular, o nexo específico entre direito e Estado – mais precisamente, o estatuto teórico que a norma estatal assume em seu pensamento – parece ser o ponto nevrálgico dos ataques. Busquei assinalar a diferença qualitativa existente entre a circulação simples de mercadorias (M-D-M) e a circulação capitalista de mercadorias O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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(D-M-D’) como o eixo central a partir do qual as críticas à teoria pachukaniana podem ser combatidas. De fato, a circulação capitalista aponta para a produção, portanto, para a política – enfim, para o Estado e para a normatividade que daí provém. Para fundamentar a ideia central do trabalho servi-me essencialmente de O capital, de Karl Marx. Obviamente, o movimento de “defesa” da teoria de Pachukanis apenas poderia ser efetuado sob a forma de crítica à mesma. O próprio Marx confessou-se abertamente discípulo de Hegel perfazendo o mesmo movimento24. Por mais que o trabalho seja deficiente, parece-me que a publicação é um mal menor do que o abandono da dissertação à “crítica roedora dos ratos”. Além de possibilitar um acesso mais fácil ao leitor eventualmente interessado, também expõe os pensamentos aqui construídos a alguma crítica, o que pode e deve ser aproveitado para a elaboração da tese de doutoramento. Faço esse pequeno esclarecimento tendo em vista as mesmas preocupações que desafiaram Marx certa vez: “quis apenas mostrar que minhas opiniões, seja qual for o julgamento que mereçam, e por muito pouco que concordem com os preconceitos interessados das classes dirigentes, são o resultado de longas e conscienciosas pesquisas”.
24 “Há quase trinta anos, numa época em que ela ainda estava na moda, critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana. Quando eu elaborava o primeiro volume de O capital, epígonos aborrecidos, arrogantes e medíocres que agora pontificam na Alemanha culta, se permitiam tratar Hegel como o bravo Moses Mendelssohn tratou Espinosa na época de Lessing, ou seja, como um ‘cachorro morto’. Por isso, confessei-me abertamente discípulo daquele grande pensador e, no capítulo do valor, até andei namorando aqui e acolá os seus modos peculiares de expressão”. MARX, Karl. O capital. Op. cit., p.20. Posfácio à segunda edição.
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01. O CONTEXTO 1.1. Delimitação do objeto e verificação do problema O objeto de estudo do presente trabalho é a obra de Evgeny Bronislavovich Pachukanis, A teoria geral do direito e o marxismo, publicada na União Soviética em 192425. Nesse livro, o autor russo pesquisa o direito sob o ângulo de seu desenvolvimento histórico e real, considerando-o na perspectiva do movimento dialético entre forças produtivas e relações de produção, numa tentativa de elucidar como uma relação social assume, em determinadas circunstâncias e não em outras, a forma jurídica. Característica marcante de seu pensamento é o resgate do método marxiano26. No prefácio de Contribuição à crítica da economia política, Marx ressalta como as formas jurídicas e as formas de Estado não podem ser compreendidas por si mesmas, ao contrário, devem ser investigadas a partir das condições materiais da sociedade civil. A organização das forças produtivas de uma sociedade, na conexão
25 Valho-me basicamente de duas publicações brasileiras de A teoria geral do direito e o marxismo. A publicação da Editora Acadêmica, de 1988, com tradução de Silvio Donizete Chagas, como fonte principal, e a versão da Editora Renovar, de 1989, com tradução de Paulo Bessa, como fonte subsidiária. 26 Recuperar o método marxiano é, para Márcio Bilharinho Naves, a característica de A teoria geral do direito e o marxismo responsável por provocar, à época de sua publicação, uma verdadeira “revolução teórica na jurisprudência”. NAVES, Márcio B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Op. cit., p.16.
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dialética com as respectivas relações de produção é, assim, a base material a partir da qual deve ser identificado e analisado o direito. Retomar o método marxiano significava, à época, investigar a forma jurídica como forma histórica específica. Seus estudos levaram-no a uma aproximação bastante original, que relaciona a forma do direito à forma da mercadoria27. Para chegar a essa conclusão, contudo, Pachukanis enredou-se em um debate que lhe custou praticamente a vida. De fato, ao estabelecer a relação acima mencionada, comprometeu-se toda uma linha de investigação que caracterizava o direito como expressão normativa, autoritária e estatal. Dificultava-se a afirmação, oportuna para um momento de transformações revolucionárias, segundo a qual, por emanar de um Estado proletário, também o direito seria um direito proletário. A obra de Pachukanis inaugura uma maneira original de apreender o direito, situá-lo em um ponto de vista concreto e, a partir daí, formular os principais problemas da teoria geral do direito. Além do mais, pode-se vislumbrar um caminho relativamente seguro, dentro da perspectiva marxiana, para equacioná-los. Isso não significa, como se pode pensar em um primeiro momento, o total abandono da filosofia tradicional do direito, mas uma nova abordagem crítica. Uma das contribuições mais originais do pensamento pachukaniano é a compreensão da forma jurídica dentro do eixo da propriedade privada. O sujeito de direito é o ponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas. Com o intuito de garantir um determinado tipo de “liberdade” – de contratar e dispor da propriedade da maneira que bem lhe aprouver – o direito tutela os interesses
27 “Acho conveniente adiantar, desde já, neste prefácio, algumas observações prévias quanto às ideias fundamentais do meu trabalho. O companheiro P. I. Stucka definiu, muito corretamente, a minha posição com relação à teoria geral do direito, como uma ‘tentativa de aproximar a forma do direito da forma da mercadoria’. Na medida em que o balanço final permite julgar, esta ideia foi reconhecida em geral, e salvo algumas reservas, como feliz e frutuosa”. PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p.08. Grifo meu.
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desse sujeito que, em essência, são os interesses egoísticos que se contrapõem àqueles dos demais membros da sociedade capitalista. Do ponto de vista econômico, o sujeito de direito encontra-se situado no mercado como um agente das trocas, isto é, como comprador e vendedor de mercadorias. A repetição desses atos constitui a circulação de mercadorias. Pachukanis parte desse ato simples de compra e venda e da circulação em geral para, ao longo dos capítulos de A teoria geral do direito e o marxismo, demonstrar quão importante é o direito para assegurar a reprodução perpétua desses mecanismos fundamentais do capitalismo. Por situar a gênese da forma do direito na forma mercantil, isto é, na relação contratual da qual emergem os sujeitos de direito e todo o aparato normativo necessário à sua preservação, o autor russo ressalta como o direito civil e comercial são as vigas mestras de todo o ordenamento jurídico. Os demais ramos do direito – inclusive o direito público – buscam no direito privado suas raízes, e são, mais ou menos, o desenvolvimento dos institutos privados fundamentais. “Efetivamente – assinala Pachukanis – o núcleo mais sólido da nebulosa esfera jurídica (se assim me é permitido falar) situa-se, precisamente, no domínio das relações do direito privado. É justamente aí que o sujeito de direito, ‘a pessoa’, encontra uma encarnação, totalmente adequada à personalidade concreta do sujeito econômico egoísta, do proprietário, do titular de interesses privados. É precisamente no direito privado que o pensamento jurídico encontra a maior liberdade e segurança e onde as suas construções revestem a forma mais acabada e harmoniosa”28. Se, contudo, o objeto do presente estudo é a obra de Pachukanis, isso apenas se justifica na medida em que se considere o direito como fenômeno dinâmico e histórico, assim como os problemas que suscita atualmente. Uma vez que pretendo elaborar uma crítica marxista do direito, o trabalho deve situar-se no interior da metodologia inaugurada por Karl Marx e Friedrich Engels. Nesse sentido, uma
28 PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.43.
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característica fundamental do materialismo histórico é a necessidade veemente e constante de autocrítica29. Ao “inverter”30 a dialética hegeliana, afirmando que o espírito deve ser compreendido a partir de uma perspectiva material e não o contrário, o marxismo está fadado a uma constante revisão de suas categorias, haja vista que história é movimento. Isso levaria Lukács a afirmar, nos idos de 1923 que, “em matéria de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método”31. Por isso, também o objeto deste trabalho, A teoria geral do direito e o marxismo, deve ser submetido à crítica rigorosa. Não pretendo, por isso, limitar este estudo a uma análise descritiva da obra de Pachukanis ou a uma sistematização de outras leituras críticas efetuadas. Isso fugiria completamente ao objetivo que o norteia: contribuir, de maneira positiva, com a análise marxista do direito. Houve, portanto, a necessidade de incluir na pesquisa as principais obras de maturidade do próprio Karl Marx. Em razão disso, pode-se afirmar que o objeto da presente pesquisa é A teoria geral do direito e o marxismo, iluminada a partir das obras de maturidade de Karl Marx, sobretudo de O capital.
29 “Uma vez que não existem princípios eternos, nem verdades absolutas, todas as teorias, doutrinas, interpretações de realidade, têm que ser vistas na sua limitação histórica. Esse é o coração mesmo do método dialético, é o primeiro elemento do método e da análise dialética. Nessa consideração radical da historicidade, da transitoriedade de todos os fenômenos sociais, o próprio marxismo tem que aplicar a si próprio esse princípio, tem que considerar a si mesmo em sua transitoriedade”. LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 17ª ed. São Paulo: Cortez, 2006, p.16. 30 “Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do invólucro místico”. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 16ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.29. As referências ao longo do texto ao Livro I de O capital remetem a esta edição. 31 LUCKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.64.
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Assentadas essas premissas posso, desde logo, explicitar o problema identificado em A teoria geral do direito e o marxismo e que será o fio condutor deste estudo: ao aproximar a forma jurídica da forma mercantil, Pachukanis permanece no ponto de vista e nos limites da pseudoconcreticidade. “No mundo da pseudoconcreticidade – ensina Karel Kosik em Dialética do concreto – o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece”32. O estudo científico dialético impõe, como exigência epistemológica prévia, a rigorosa distinção entre a aparência e a essência das relações sociais objeto de análise. A existência efetiva dessas relações e suas formas fenomênicas correspondentes, que se refletem na consciência dos homens e são racionalizadas por meio de categorias, podem ser diferentes e, muitas vezes, contraditórias. “O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos assumindo um aspecto independente e natural constitui o mundo da pseudoconcreticidade”33. As relações sociais engendram certas formas aparentes que podem não corresponder e que, muitas vezes, são opostas à essência interna. O problema ocorre quando as categorias elaboradas pela consciência humana são construídas a partir dessas formas aparentes. Somente a “ciência” – aqui compreendida como o materialismo histórico – pode afastar essas “expressões imaginárias”34 e atingir o ponto de vista da existência “real”. Quando o cientista elabora suas categorias com base nas formas aparentes, sem se preocupar em averiguar se expressam ou não a essência das relações sociais, diz-se que permanece na perspectiva do falso concreto. 32 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p.16. 33 Idem, ibidem, p.15. 34 Cf.: MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.617.
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A essência, contudo, não é mais ou menos real do que a aparência e vice-versa. “A realidade é a unidade do fenômeno e da essência”35. A essência pode ser tão irreal quanto a aparência e a aparência menos real que a essência, quando se apresentem isoladas e, em tal isolamento, sejam consideradas, cada qual, como a única ou autêntica realidade. Alaôr Caffé Alves, a propósito da pesquisa do Estado e do método a ser utilizado, explica: “Isso não quer dizer, e é bom observar com rigor, que devemos desprezar o Estado enquanto forma aparente, como se essa forma não fizesse parte de sua realidade. Puro engano; a teoria que visa explicar esse fenômeno deve dar conta dessa aparência e de suas conexões com a essência subjacente, em função da qual aquela aparência se manifesta como aparência”36. Partindo das orientações marxianas relativas ao método científico encontradas em O capital e na Introdução à crítica da economia política, e com fundamento nas obras de István Mészáros, Karel Kosik, Alaôr Caffé Alves, dentre outros, tentarei demonstrar como Pachukanis, ao relacionar a forma jurídica à forma mercantil, permanece no ponto de vista e nos limites da pseudoconcreticidade. Explico: ao aproximar a forma do direito da forma da mercadoria, o pensador russo apreende a relação social que assume a forma de troca de mercadorias de maneira reificada37.
35 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Op. cit., p.16. “O mundo fenomênico, porém, não é algo independente e absoluto; os fenômenos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma ordem diversa da do fenômeno”. Idem, ibidem, p.16. 36 ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 29. 37 “A essência da estrutura da mercadoria já foi ressaltada várias vezes. Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma ‘objetividade fantasmagórica’ que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo o traço de sua essência fundamental: a relação entre homens (...) Nosso objetivo é somente chamar a atenção – pressupondo as análises econômicas de Marx – para aqueles problemas fundamentais que resultam
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A mercadoria é a forma específica que adquire o produto do trabalho humano e que se generaliza no capitalismo. A forma mercantil do produto depende da relação social da troca, mas isso não significa que esta, a troca de mercadorias, seja uma e mesma sempre. Pelo contrário, a troca pode assumir sentidos absolutamente distintos, dependendo do contexto específico dentro do qual esteja inserida. Apenas para clarificar, a troca, considerada isoladamente, sempre existiu e conviveu com modos de produção diferentes e que antecederam historicamente o capitalismo, como o escravista e o feudal, por exemplo. Esses modos de produção caracterizavam-se por uma divisão social do trabalho em que o trabalho excedente era extraído do produtor direto por meios predominantemente políticos. As forças produtivas e as relações de produção estavam organizadas de tal maneira que a extração do sobretrabalho não dependia da troca de mercadorias – ou dependia muito pouco – uma vez que se dava diretamente, pela utilização da coerção política. O vínculo entre o escravo ou servo da gleba (produtores diretos) e o proprietário de escravos ou senhor feudal (proprietários dos meios de produção) era de compulsoriedade. No modo de produção capitalista, por outro lado, a troca de mercadorias exerce um papel qualitativamente distinto. O capitalismo pressupõe certas condições, dentre as quais a separação do trabalhador em face dos meios de produção, de maneira que a extração do trabalho excedente – que aqui assume a forma de mais-valia – dá-se por intermédio da troca de mercadorias. Ou seja, a divisão social do trabalho adquire determinada forma dentro da qual o surgimento do valor e do valor excedente ocorre no momento da produção, mas apenas realiza-se no momento da circulação, pela troca de mercadorias. “Essa metamorfose – ensina Marx –, a transformação de seu dinheiro em capital, sucede na esfera da circulação e não sucede nela. Por intermédio da circulação, por depender da compra da força de trabalho do caráter fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, de outro”. LUCKÁKS, Georg. História e consciência de classe. Op. cit., p.194.
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no mercado. Fora da circulação, por esta servir apenas para se chegar à produção da mais-valia, que ocorre na esfera da produção”38. Assim, a troca de mercadorias, que nos modos de produção anteriores caracterizava tão-somente o momento da circulação, passa a ser, no modo de produção capitalista, constitutiva do momento produtivo. A própria produção passa a depender da integração aos meios de produção de uma mercadoria especial: a força de trabalho. “O que caracteriza a época capitalista – afirma Marx em uma nota de rodapé – é adquirir a força de trabalho, para o trabalhador, a forma de mercadoria que lhe pertence, tomando seu trabalho a forma de trabalho assalariado. Além disso, só a partir desse momento se generaliza a forma mercadoria dos produtos do trabalho”39. Ademais – o que constitui o eixo central deste trabalho e possui importância científica decisiva – da perspectiva interna ao próprio modo de produção capitalista, não se pode confundir a troca, como momento da circulação simples de mercadorias (M-D-M), com a troca que constitui um momento da circulação capitalista de mercadorias (D-M-D’). Uma e outra possuem finalidades diversas e haurem sentidos absolutamente distintos, o que impõe uma diferença qualitativa entre ambas. Essa diferença assume importância especial uma vez que a circulação capitalista aponta para o nexo dialético fundamental entre circulação e produção. Aponta para a presença do momento político na constituição das relações econômicas e jurídicas e, por isso mesmo, para o Estado. Logo, para o entrelaçamento dialético das formas jurídicas e estatais e, assim, das normas jurídicas e estatais. Pachukanis, desse modo, teria permanecido no ponto de vista da pseudoconcreticidade ao relacionar a forma jurídica à mercantil, uma vez que considera a relação social que assume a forma de troca de mercadorias de maneira coisificada. O autor russo promove uma abstração generalizante ao considerar que a troca de mercadorias é uma e mesma, sempre, sem levar em conta as especificidades relativas ao modo de produção e à forma de circulação dentro dos quais pode 38 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.228. 39 Idem, ibidem, p.200.
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estar inserida. Permanece, assim, nos lindes da totalidade abstrata, quando o correto é buscar a totalidade concreta. Além do mais, o desenvolvimento e a ampliação das relações de produção sob a forma capitalista apenas são possíveis se amparadas por uma organização política específica que, além de condição de reprodução dessas relações, tem suas características moldadas por elas. Esse novo modo de organização política da sociedade civil assume a forma do que se convencionou denominar “Estado”40 e apenas pode ser compreendido dentro da dialética de produção e reprodução do sistema capitalista, sendo condição e resultado do mesmo. Percebese, portanto, que há uma alteração qualitativa também na forma de organização política da sociedade. Em A teoria geral do direito e o marxismo, Pachukanis apega-se de tal maneira à análise da forma mercantil que negligencia, em parte, as demais características constitutivas do direito sob o modo de produção capitalista. Dessa maneira, acaba por aprisionar a análise do direito em uma relação social abstrata: a troca de mercadorias. Como consequência, o autor russo assume uma perspectiva que dificulta a compreensão do papel político decisivo assumido pelo Estado como agente assegurador das condições necessárias à manutenção e reprodução do sistema; da importância dos momentos da coerção institucionalizada e da verticalidade normativa, como elementos essenciais à constituição e ao desenvolvimento pleno do direito moderno. Ter permanecido no ponto de vista do falso concreto acarreta outra problemática à análise de A teoria geral do direito e o marxismo, bastante importante nos dias atuais. Trata-se da forma de abordagem e da distinção estabelecida por Pachukanis entre direito público e direito privado. De fato, ao derivar a forma jurídica da relação de troca mercantil sem considerar as especificidades da circulação capitalista de mercadorias, torna-se demasiado difícil para o autor russo compreender o direito público como forma jurídica. Pachukanis, nesse 40 Cf.: ADLER, Max. La concepción del Estado en el marxismo. México: Siglo Veintiuno Editores, 1982. Especialmente o capítulo “El concepto marxiano de sociedad”.
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sentido, é claro: “Na esfera da organização política, o direito público não pode existir a não ser como reflexo da forma jurídica privada ou então deixará, de maneira geral, de ser direito. Toda tentativa visando apresentar a função social pelo que ela é, ou seja, simplesmente como função social, e visando também apresentar a norma simplesmente como regra organizatória, significa a morte da forma jurídica”41. Não obstante, o direito público ganha especial importância ao longo do desenvolvimento do capitalismo, à medida que se apresenta como instrumento de implementação de políticas públicas, especialmente necessárias para corrigir os graves problemas sociais causados pelo sistema, bem como para assegurar o processo de acumulação do capital. Por isso, a crítica à obra da Pachukanis deve abordar esse aspecto tão importante atualmente. É necessário, portanto, afastar a pseudoconcreticidade em que permaneceu Pachukanis ao relacionar a forma jurídica à mercantil, para que se compreenda que a troca de mercadorias, como momento da circulação capitalista de mercadorias, aponta decisivamente para o momento produtivo, exigindo, pois, uma forte atuação política levada a cabo pelo Estado. Trata-se de um aspecto da análise empreendida pelo autor russo que deve ser tratado cuidadosamente, uma vez que este, em princípio, privilegiou o estudo do direito pela perspectiva da forma jurídica, considerando em menor medida outros aspectos essenciais para a compreensão do direito na atualidade. Atentar para esse aspecto da obra pachukaniana é importante porque oferece aos críticos do autor russo uma resposta à acusação de ser sua teoria “circulacionista”, “economicista” ou, mesmo, “antinormativista”. Na verdade, e aqui saliento um ponto de fundamental importância, a interpretação da obra de Pachukanis deve ser construída à luz das obras marxianas. Enfrentar o rico texto pachukaniano com o pensamento de Karl Marx como pano de fundo, esvaece uma série de dúvidas e supre uma variedade de “lacunas” que toda uma tradição crítica insiste em cultivar.
41 PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.63.
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Em suma, o objeto do presente trabalho é A teoria geral do direito e o marxismo, de E.B. Pachukanis, iluminada a partir das obras de maturidade de Karl Marx. O problema suscitado como fio condutor é o fato de Pachukanis ter situado a análise da forma jurídica nos limites da pseudoconcreticidade, uma vez que apreendeu a troca de mercadorias de maneira reificada. Tentarei demonstrar como a relação social por intermédio da qual se opera a troca de mercadorias haure “sentidos” diferentes, dependendo da forma de circulação e do contexto produtivo dentro do qual esteja inserida. A compreensão “científica” do direito, como forma social específica, depende do exato sentido atribuído à categoria “troca de mercadorias”.
1.2. A atualidade histórica da análise marxista No início de Certa herança marxista, José Arthur Giannotti afirma que “para muitos, principalmente os que se comprazem com as modas parisienses, o marxismo parece ter sido inteiramente derrotado pelos fatos. Não foi preciso uma batalha intelectual para derrotá-lo”42. Em Marxismo y filosofía del derecho, Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero assinalam que, para alguns, hoje o marxismo é a única corrente de pensamento que não pode ser adotada, ao menos por quem queira que seus trabalhos gozem de uma certa respeitabilidade acadêmica43. Como as modas parisienses há muito perderam seu encanto e a “respeitabilidade acadêmica” não é o objetivo primordial do pensamento crítico, deve-se refutar a tese de que a análise marxista estaria 42 GIANNOTI, José Arthur. Certa herança marxista. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.07. 43 ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Marxismo y filosofía del derecho. México: Fontamara, 1998, p.09. A afirmação foi traduzida livremente e está, obviamente, retirada de seu contexto. Os autores não comungam da opinião acima citada, mas apenas descrevem como o marxismo perdera sua “credibilidade acadêmica”. Segue o trecho original: “Hoy, sin embargo, podría decirse que el marxismo há pasado a ser la única corriente de pensamiento que no puede adoptarse, al menos por quien aspire a que sus trabajos gocem de uma cierta respetabilidad acadêmica”.
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ultrapassada ou teria sido derrotada. A tentativa de enterrar o quanto antes o marxismo, parece fazer parte de uma estratégia para eliminar, senão o único, com certeza o mais eficiente conjunto de princípios teóricos e práticos aptos a criticar e denunciar o capitalismo e toda opressão que lhe é inerente44. O fato, entretanto, é que a queda do muro de Berlim e a derrocada do sistema de capital estatal soviético são indevidamente associados à obra marxiana e à teoria marxista. O fim de uma época histórica seria também o término de toda uma tradição filosófica e científica. Além do mais, a postura intelectual da maioria dos pensadores marxistas, para não citar os políticos que empunhavam a bandeira do “socialismo”, foi de recuo. “A atual ‘crise do marxismo’ – afirma István Mészáros – se deve principalmente ao fato de que muitos dos seus representantes continuam a adotar uma postura defensiva, numa época em que, tendo acabado de virar uma página histórica importante, deveríamos nos engajar numa ofensiva socialista em sintonia com as condições objetivas”45. A “reafirmação” do marxismo como conjunto de princípios teóricos e práticos historicamente atuais tem como fundamento três perspectivas principais: primeiro, a teoria marxista, compreendida como método, propicia a análise de quaisquer formações econômico-sociais46; segundo, as análises marxianas sobre o capital, particularmente em
44 “Mas como pode então acontecer que passados alguns anos Marx tenha voltado, e sobretudo num estado de saúde capaz de fazer inveja aos seus coveiros de véspera? Infelizmente tal sucede porque – é preciso que se diga – há quem preferisse viver num mundo em que as obras de Marx estivessem efectivamente ultrapassadas e já não constituíssem senão uma recordação de um mundo totalmente passado!”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Op. cit., p.14. 45 MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo César Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p.787. 46 Considerando, claro, as importantes observações formuladas por Sartre, de que o pensamento filosófico está enraizado e, consequentemente, é limitado, pelas forças produtivas de determinada época histórica. Conferir nota de rodapé nº. 19, p.30.
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sua formação capitalista, permanecem superiores a quaisquer análises até hoje empreendidas, porque as forças produtivas e as relações de produção, atualmente e mais do que nunca, assumem essa forma social específica; e terceiro, porque na dialética metodologia/ideologia, quaisquer perspectivas teóricas colocam-se, necessariamente, como o ponto de vista de uma das classes em conflito na sociedade, e, enquanto tal classe possuir papel histórico relevante, também sua “filosofia” permanecerá atual. Vejamos a primeira dessas perspectivas. Qualquer tentativa de conceituar o materialismo histórico estará muito próxima do fracasso, porquanto deixará de ressaltar – ou ressaltará de maneira muito deficiente – algum sentido específico, dada a multiplicidade de características que orbitam em torno desse conceito. Com isso em mente, posso afirmar que o materialismo histórico é, de maneira geral, a concepção segundo a qual as forças produtivas e as relações de produção de uma dada sociedade, historicamente situada, são o fundamento material da vida social dos homens, determinantes lógico-causais de toda a “superestrutura” jurídica, política e ideológica, as quais, por sua vez, sob modalidades diferentes, possuem certa autonomia e influenciam, dialeticamente, a infraestrutura econômica. Controvérsias à parte, há um consenso mais ou menos geral de que o materialismo histórico47 foi delineado inicialmente por Marx e Engels por ocasião da redação de A ideologia alemã, escrita por ambos em 1845. 47 “Eu acho que não há uma maneira única de definir o método inaugurado por Marx. Existe uma maneira um pouco codificada, eu diria que quase doutrinariamente codificada, que é a do materialismo histórico e do materialismo dialético. Eu acho que seria muito empobrecedor limitar a definição do marxismo a esses dois conceitos que, sem dúvida, têm a sua utilidade (...) Deste modo, eu acho que filosofia da práxis é um termo tão adequado quanto os outros que são utilizados geralmente e não acho que exista uma razão para que se use um único termo. Todos esses conceitos apontam para elementos do método marxista, é por isso que considero correto usá-los a todos designando um mesmo objeto, apenas que cada um deles aponta mais para uma direção, para um aspecto”. LÖWY, Michel. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 17ª ed. São Paulo: Cortez, 2006, p.27/29.
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Marx e Engels elaboraram uma nova metodologia, cujo objetivo histórico era a contraposição em face das teorias filosófico-metodológicas até então existentes e que, situadas do ponto de vista da classe burguesa, assentavam-se sobre pressupostos idealistas ou materialistas vulgares. A relevância do prisma científico do marxismo foi ressaltada por Lukács em História e consciência de classe: “O que era o materialismo histórico? Era, sem dúvida, um método científico para compreender os acontecimentos do passado em sua essência verdadeira. Mas, em oposição aos métodos de história da burguesia, ele nos permite, ao mesmo tempo, considerar o presente sob o ponto de vista da história, ou seja, cientificamente, e visualizar nela não apenas os fenômenos da superfície, mas também aquelas forças motrizes mais profundas da história que, na realidade, movem os acontecimentos”48. O famoso prefácio à Contribuição à crítica da economia política é considerado, segundo alguns, a formulação mais sucinta dessa nova metodologia: “Nas minhas pesquisas – relata Karl Marx em janeiro de 1859 – cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindose, pelo contrário, nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de ‘sociedade civil’; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política. Tinha começado o estudo desta em Paris, continuando-o em Bruxelas, para onde emigrei após uma sentença de expulsão do Sr. Guizot. A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas. O conjunto destas relações 48 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.414/415.
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de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem certas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais tinham se movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura”49. O materialismo histórico, portanto, é o conjunto de princípios que servem como fio condutor metodológico para a análise de quaisquer50 49 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.04/05. “Detalhando um pouco mais – afirma Louis Althusser – podemos dizer que o materialismo histórico tem por objeto os modos de produção que surgiram e que surgirão na história. Estuda sua estrutura, sua constituição e as formas de transição que permitem a passagem de um modo de produção para outro”. ALTHUSSER, Louis; BADIOU, Alain. Materialismo histórico e materialismo dialético. São Paulo: Global Editora, 1979, p. 34. 50 “O ‘materialismo histórico’ – cuja codificação não é obra de Marx – só é apropriado como análise do capitalismo: no capitalismo, a produção material não constitui somente a base da sociedade (o que acontece sempre), antes constitui também o princípio organizador autonomizado da sociedade, o seu princípio de síntese social”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.202. Grifo meu. Essa afirmação contraria, a olhos vistos, o que sustento juntamente com Engels, a saber, que o materialismo histórico, como método, está apto à análise de quaisquer formações históricas, guardados seus próprios limites históricos. O posicionamento de Jappe decorre da distinção que ele elabora, entre, de um lado, trabalho, e, de outro, o metabolismo do homem com a natureza. O primeiro seria circunscrito à época capitalista da produção. O segundo seria a base organizacional da sociedade em qualquer
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formações socioeconômicas. Não pretendo, obviamente, apreender essa característica do marxismo de forma reificada, sem efetuar a crítica época histórica. Contudo, para ele, o marxismo se constitui sobre a sociedade do trabalho (no sentido acima mencionado), de maneira que seus princípios metodológicos seriam capazes de propiciar apenas a análise científica dessa específica época histórica. Penso, contudo, parecer óbvio que quando Marx se refere à “economia” como base da organização de qualquer sociedade – como faz no prefácio – não está se referindo apenas ao trabalho (restrito à época capitalista), mas ao metabolismo humanidade/natureza, vital, necessário e eterno, sendo seu método, portanto, apto à análise de quaisquer sociedades. Esse posicionamento é reforçado pelas próprias palavras de Marx, presentes em O capital, quando comenta as críticas proferidas contra o referido prefácio após sua publicação: “É oportuna, aqui, uma breve resposta à objeção levantada por um periódico teuto-americano, quando apareceu meu livro Contribuição à crítica da economia política, 1859. Segundo ele – minha ideia de ser cada determinado modo de produção e as correspondentes relações de produção, em suma ‘a estrutura econômica da sociedade a base real sobre que se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social’; de ‘o modo de produção da vida material condicionar o processo da vida social, política e intelectual em geral’ – tudo isso, seria verdadeiro no mundo hodierno, onde dominam os interesses, mas não na Idade Média, sob o reinado do catolicismo, nem em Roma ou Atenas, sob o reinado da política. De início, é estranho que alguém se compraza em pressupor o desconhecimento por outrem desses lugarescomuns sobre a Idade Média e a Antiguidade. O que resta claro é que nem a Idade Média podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo, da política. Ao contrário, é a maneira como ganhavam a vida que explica por que, numa época, desempenhava o papel principal a política e, na outra, o catolicismo. De resto, basta um pouco de conhecimento da história da república Romana para saber que sua história secreta é a história da propriedade territorial. Já Dom Quixote pagou pelo erro de presumir que a cavalaria andante era compatível com qualquer estrutura econômica da sociedade”. MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.104. Grifo meu. Quando Marx se refere à “maneira como ganhavam a vida”, está se reportando ao metabolismo entre homem e natureza (condição vital e eterna) e não ao trabalho considerado no sentido dado por Jappe (categoria específica da época capitalista). Parece claro que Marx aplica seu próprio método – aquele que não teria sido codificado por ele, mas apenas por Engels – à análise da Idade Média e da Antiguidade.
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do próprio método51. Contudo, é preciso deixar claro a superioridade do materialismo dialético inclusive nesse ponto, tanto mais quando a própria práxis demonstra essa superioridade52. Ademais, essa “vocação universal” foi ressaltada por Engels no prefácio à edição inglesa de Do socialismo utópico ao socialismo científico: “Assim, confio em que a ‘respeitabilidade’ britânica, que em alemão se chama filisteísmo, não se aborrecerá demasiado que eu empregue em inglês, como em tantos outros idiomas, o nome de ‘materialismo histórico’ para designar esta concepção dos roteiros da história universal que vê a causa final e a causa propulsora decisiva de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento econômico da sociedade, nas transformações do modo de produção e de troca, na consequente divisão da sociedade em diferentes classes e nas lutas dessas classes entre si”53. 51 Cf. a respeito “Metodologia e Ideologia”. In: MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução: Paulo Cezar Castanheiras. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p.301/324. 52 “A questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas sim uma questão prática. É na práxis que o homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade de seu pensamento. A discussão sobre a realidade ou a irrealidade do pensamento – isolada da práxis – é puramente escolástica”. MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.100. 53 ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Editora Moraes, p.15/16. Grifo meu. “Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante da história é, em última instância, a produção e reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu dissemos outra coisa a não ser isto. Portanto, se alguém distorce esta afirmação para dizer que o elemento econômico é o único determinante, transforma-a numa frase sem sentido, abstrata e absurda (...) Marx e eu temos em parte a culpa pelo fato de que, às vezes, os jovens escritores atribuam ao aspecto econômico maior importância do que é devida. Tivemos que enfatizar esse princípio fundamental frente a nossos adversários, que o negavam, e nem sempre tivemos tempo, lugar e oportunidade para fazer justiça aos outros elementos que participam da ação recíproca (...) Não posso livrar desta reprimenda muitos dos recentes ‘marxistas’, explicando-se assim muitas das coisas absurdas que têm produzido”. Idem. “Carta de Engels a Joseph Bloch”. In: Cartas filosóficas e o manifesto comunista. São Paulo: Editora Moraes, 1987, p.39-42 (passim).
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A segunda perspectiva a subsidiar a reafirmação da atualidade histórica da análise marxista parte da constatação de que, atualmente e mais do que nunca, as forças produtivas e as relações de produção, generalizadas globalmente, estão organizadas sob a forma do capital, especialmente em sua modalidade capitalista. A queda do muro de Berlim, a derrocada do “socialismo real” e a integração da China ao mercado internacional na qualidade de potência econômica, abriram definitivamente as portas à mundialização do modo de produção capitalista. Nesse sentido, a principal obra de Karl Marx, O capital, tem como objeto de pesquisa justamente essa forma específica de organização das forças produtivas, quer dizer, o modo de produção capitalista54, já agora completamente “globalizado”. Quando foi escrito, as relações capitalistas já estavam estabelecidas, especialmente na Europa e, em particular, na Inglaterra. Isso permitiu a Marx a elaboração de uma crítica que acompanha o desenvolvimento do capital, permanecendo, portanto, contemporânea. Não há dúvida de que a evolução tecnológica das forças produtivas acarreta uma série de alterações nas relações de produção e, consequentemente, em toda a série de “superestruturas” e formas de consciência com as quais os homens assimilam tais alterações55. Não obstante, as categorias utilizadas por Marx em sua época podem – e devem – ser submetidas à atualização pelos marxistas. Como o
54 “Nessa obra, o que tenho de pesquisar é o modo de produção capitalista e as correspondentes relações de produção e de circulação”. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.16. Prefácio à 1ª edição. 55 A apreensão “exagerada” dessas transformações deu origem à assim denominada “pós-modernidade”. Não compreendem, entretanto, seus ideólogos, que modificações nas forças produtivas e relações de produção nem sempre ocasionam uma alteração qualitativa nas formas de sociabilidade vigentes. Vale dizer, o capitalismo passou por uma série de revoluções tecnológicas e culturais, mas que não afetaram a forma especificamente capitalista de produção (capital versus trabalho assalariado). Dessa maneira, por mais que as “superestruturas” tenham se modificado, a sociedade ainda é regida pelo capital. Não ultrapassamos, ainda, a modernidade.
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capital é a forma hegemônica assumida pelas forças produtivas e relações de produção, as análises marxianas ainda são as mais aptas à apreensão das diversas contradições que caracterizam a sociedade “pós-moderna”. E mais, continuarão sendo, enquanto a humanidade conviver com essa forma particular de exploração56. Ainda que algumas categorias estejam eventualmente desatualizadas pela evolução tecnológica das forças produtivas, o materialismo histórico, como método, permite as reformulações necessárias para que a filosofia da práxis continue evoluindo e desenvolvendo-se como ciência. Para subsidiar a última consideração quanto à atualidade histórica da análise marxista, valho-me, inicialmente, de uma passagem do “jovem” Marx: “É certo que as armas da crítica não podem substituir a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas”57. A contemporaneidade de qualquer conjunto teórico, filosófico e metodológico – como é o caso do marxismo – e, consequentemente, a defesa de sua “atualidade”, não podem fundamentar-se apenas no cotejamento de seus princípios orientadores com a realidade objeto de análise, e a constatação de sua superioridade em relação a outras teorias e metodologias. Para que o marxismo seja uma “teoria viva” e, portanto, atual, deve estar ancorado em uma força material viva. Ou seja, seus princípios metodológicos, bem como o conteúdo de suas reflexões, têm de atuar no amparo e defesa de interesses que sejam contemporâneos, atuais, e, acima de tudo, estratégicos. “Não importa – afirma acertadamente István Mészáros – o quanto esta força – e, em consequência, a correspondente substância teórica da filosofia analisada – possa ser
56 “Meu argumento é que na ressurgência triunfal do capitalismo, e na sua abrangência global, o único pensador que teve suas ideias confirmadas é justamente Karl Marx”. MEGHNAD, Desai. A vingança de Marx: a ressurgência do capitalismo e a morte do socialismo estatal. São Paulo: Códex, 2003, p.16. 57 MARX, Karl. “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”. In: Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p.151.
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problemática (ou mesmo reacionária) se considerada a partir de uma perspectiva histórica mais ampla. Enquanto ela puder se reproduzir com êxito no contexto de um continuado antagonismo social, nada mais é preciso para sustentar suas reivindicações de vitalidade do que seu poder para combater o adversário com eficácia nos relevantes planos da vida social e intelectual”58. Ou seja, é preciso averiguar se o marxismo ainda fornece os elementos “espirituais” necessários e suficientes à defesa dos interesses materiais de alguma força viva da sociedade, isto é, de alguma das classes que compõem a estrutura produtiva do ser social. Caso o faça, há nesse conjunto de interesses o substrato material suficiente para conceder ao marxismo o “status” de teoria contemporânea, atual, “moderna”. Ora, talvez seja desnecessário mencionar que a teoria marxista nasceu no seio da classe trabalhadora, como representante dos interesses dessa última. Hoje, mais do que nunca, essa classe é, como afirma Ricardo Antunes, a classe-que-vive-do-trabalho: “Nosso primeiro desafio é procurar entender de modo abrangente o que é a classe trabalhadora hoje, que compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho e são despossuídos dos meios de produção, não tendo outra alternativa de sobrevivência senão a de vender sua força de trabalho sob a forma de assalariamento. Nesse desenho amplo, compósito e, por certo, muito heterogêneo, a classe trabalhadora (ou classe-que-vive-do-trabalho) encontra seu núcleo central no conjunto dos trabalhadores produtivos, para lembrar Marx especialmente em seu Capítulo VI inédito de O capital. Esse núcleo central, dado pela totalidade dos trabalhadores produtivos, compreende aqueles que produzem diretamente a mais-valia e que participam também diretamente do processo de valorização do capital por meio da interação entre trabalho vivo e trabalho morto, entre trabalho humano e maquinário científico-tecnológico. Ele se constitui, por isso, no pólo central da classe trabalhadora moderna (...) Portanto, uma 58 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 306.
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noção ampliada, abrangente e contemporânea de classe trabalhadora, hoje, a classe-que-vive-do-trabalho, deve incorporar também aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário, como o enorme leque de trabalhadores precarizados, terceirizados, fabris e de serviços, part-time, que se caracterizam pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na totalidade do mundo produtivo. Deve incluir também o proletariado rural, os chamados bóias-frias das regiões agroindustriais, além, naturalmente, da totalidade dos trabalhadores desempregados que se constituem monumental exército industrial de reserva”59. A classe-que-vive-do-trabalho, como categoria metodologicamente atualizada, representa a classe trabalhadora moderna que fornece – como o “antigo proletariado” fazia à época de Marx –, o substrato material, o elemento vivo capaz de sustentar a relevância e eficácia do marxismo enquanto conjunto de princípios filosóficos e metodológicos aptos à apreensão, compreensão e modificação da realidade. Finalizo esse item convidando o leitor a refletir sobre a seguinte passagem de Para além do capital: “A princípio, portanto, torna-se absolutamente irrelevante saber se a necessária ruptura em direção ao socialismo – não em um só país, nem em uma dúzia de países ou mais, mas irreversivelmente em toda a humanidade – precisará de algumas décadas ou de um tempo muito longo para ser alcançada. A relevância dos princípios orientadores marxianos se afirma pelo fato inevitável de que sem eles o trajeto se torna extremamente problemático porque perde a direção, com as consequências mais desorientadoras e desanimadoras”60. O materialismo histórico é, sobretudo, um método dialético. Dialética implica movimento; no caso, a apreensão teórica e unificadora
59 ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p.48-49 e 52 (passim). 60 MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p.876.
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do movimento do real61. Assim, não há como fugir de uma conclusão simples: o modo de produção capitalista é uma forma histórica e, portanto, acabará. Essa constatação, por si só, bastaria como justificativa à reafirmação do marxismo, mormente no campo do direito.
1.3. Para interpretar A teoria geral do direito e o marxismo É lícito exigir de uma obra mais respostas do que ela se propõe a oferecer? Seria plausível criticar O capital, por exemplo, obra-prima de Marx, porque, em princípio, não oferece respostas aos problemas das novas estéticas oriundas da hegemonia do modo de produção capitalista? É possível, certamente, encontrar naquela crítica da economia política, muitas orientações e mesmo soluções aos problemas que a arte passa a oferecer com a generalização do capitalismo. Isso autorizaria, entretanto, uma crítica de cunho depreciativo à obra, porque se concentra predominantemente em problemas econômicos? A teoria geral do direito e o marxismo sobreviveu ao século XX de maneira admirável. Da literatura jurídica marxista pós-revolucionária, a obra de Pachukanis é uma das que mais despertou a atenção dos estudiosos62. As razões dessa particular perenidade são muitas, mas não seria exagero afirmar que a predominância do aspecto científico, em face do político, seria um dos motivos principais. Afinal de contas, sua concepção jurídica, justamente porque se vinculava ao método marxiano, confrontava, por um lado, o pensamento burguês, por outro, os interesses estabelecidos com a ascensão da nova burocracia stalinista. À época, era de bom tom ver o direito como normatividade
61 “Nada é mais fácil do que julgar o que tem conteúdo e solidez; apreendê-lo é mais difícil; e o que há de mais difícil é produzir sua exposição, que unifica a ambos”. HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2005, p.27. 62 “Apenas dois teóricos do direito marxistas – Karl Renner e E.B. Pachukanis – atraíram o interesse e a consideração dos teóricos do direito não-marxistas”. KAMENKA, Eugene. In: Dicionário do pensamento marxista. Op. cit., p.110.
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emanada de um “Estado proletário”, cujo conteúdo, portanto, apenas poderia ser a tutela dos interesses mais nobres da classe trabalhadora. Pachukanis percorreu caminho diverso, elegendo a “forma do direito” como objeto de seus estudos, vinculando-a ao modo de produção capitalista e enunciando a impossibilidade de um “direito proletário”, mas, tão-somente, da extinção do direito63. Esse “dúplice conteúdo” confere à Teoria toda a pujança que adquiriu ao longo dos anos. Por outro lado, é responsável pelas ácidas críticas que provêm, como não poderia deixar de ser, de vias opostas, conservadoras e progressistas. Umas afirmam o caráter economicista do pensamento pachukaniano, outras apontam o desprezo pelo conteúdo do direito, e assim por diante. Para que se cumpra, contudo, o objetivo proposto por este trabalho – o de contribuir com a crítica marxista do direito –, duas observações devem ser levantadas. A primeira gira em torno de compreender os objetivos e limites teóricos de A teoria geral do direito e o marxismo. A segunda, entrelaçada à anterior, levanta o problema das lacunas e omissões, e de como interpretar o pensamento pachukaniano nesses casos. Na perspectiva de retomada do pensamento marxiano, essa última questão é de suma importância. O primeiro aspecto deve ser equacionado partindo das observações do próprio autor russo. “Quando da publicação do meu livro – afirma Pachukanis no prefácio de 1926 – não pensava se fizesse necessária uma segunda edição, sobretudo em tão pouco tempo após a primeira. Aliás, me convenci hoje de que isso decorreu em razão de este trabalho ter sido usado como manual – o que nunca imaginei – quando, na melhor das hipóteses, deveria servir apenas como estímulo”64.
63 “Assim, A teoria geral do direito e o marxismo possui um inequívoco sentido prático de polêmica política contra os juristas burgueses e de discussão fraterna entre os camaradas do partido que tinham tarefas a serem cumpridas na área do Direito. Esse dúplice conteúdo da obra que ora se apresenta torna-a extremamente viva e fascinante”. BESSA, Paulo. “Apresentação”. In: A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p.VII. 64 PACHUKANIS. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p.07.
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“De qualquer forma – continua o autor –, esse trabalho não pretende ser o fio de Ariadne marxista no domínio da teoria geral do direito, ao contrário, pois em grande parte foi escrito com o fim de esclarecimento pessoal. De onde a abstração e a forma concisa e mesmo assim apenas esboço de exposição; de onde também o seu aspecto unilateral que se deve inevitavelmente à concentração da atenção sobre determinados aspectos do problema que se revelam essenciais. Todas essas particularidades demonstram que este livro não pode de modo algum servir de manual”65. “Meu livro – finaliza Pachukanis –, que põe à discussão algumas questões da teoria geral do direito, tem por tarefa principal a de preparar todo esse trabalho. Por isso resolvi conservar do livro o essencial do seu antigo caráter sem tentar reestruturá-lo em forma de manual. Fiz apenas complementações necessárias, devidas em parte às observações da crítica”66. Percebe-se que A teoria geral do direito e o marxismo não foi concebida como obra que se dispusesse à análise definitiva do direito67. Pelo contrário, seu escopo, como afirma o próprio Pachukanis, era preparar o terreno para as investigações que, à época, apenas começavam. O autor salienta, ademais, a inviabilidade da utilização de seu livro como manual, ou seja, como conjunto de apontamentos
65 Idem, ibidem, p.07. Grifo meu. 66 Id., ibid., p.08. 67 Em um texto escrito em 1927, denominado A teoria marxista do direito e a construção do socialismo, Pachukanis se manifesta acerca das “limitações” de sua obra anterior, A teoria geral do direito e o marxismo, nos seguintes termos: “First, I readily agree that [my] above-mentioned essay in many respects needs further development and perhaps reworking. A whole series of problems could not be covered in the book and indeed, at that time simply did not come within the author’s field of vision. Such for example, is the problem of the law of the transitional period, or Soviet law, fully posed by Stuchka, which is among his outstanding contributions to the theory of law”. PACHUKANIS, Evgeny. The Marxist Theory of Law and the Construction of Socialism. University of Illinois at Urbana – Champaign. Pashukanis: Selected Writings - Contents. Disponível em: http://home.law.uiuc.edu/~%20 pmaggs/pch4.htm. Acesso em: 31 de outubro de 2006.
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sistematizados, fruto de reflexão definitivamente exaurida. A Teoria prestava-se a ser utilizada como “estímulo”, como ponto de partida – e não de chegada – de uma ciência que se desenvolvia de maneira bastante profícua com o acender da chama revolucionária68. Por isso, o problema verificado no início do presente trabalho deve ser bem contextualizado, para que se possa oferecer uma resposta cientificamente sustentável aos críticos de Pachukanis. Ter permanecido na perspectiva do falso concreto, ao analisar a relação social que assume a forma de troca de mercadorias, não foi um “erro” teórico do autor russo e, muito menos, uma má compreensão do pensamento marxiano. Isso ocorreu porque sua obra concentrou a atenção sobre determinados aspectos do problema que se revelavam mais essenciais. Atentemos para esse aspecto. Não parece difícil compreender que a aproximação efetuada – entre a forma do direito e a forma da mercadoria –, por sua originalidade, exigiu uma elaboração teórica cuidadosa, mas também muito específica, porquanto o panorama jurídico da época, burguês e marxista, pautava-se por um sem-número de teorias explicativas do direito, expressões de um momento histórico em que borbulhavam forças políticas e interesses econômicos, que lutavam pela conquista da hegemonia na maioria dos países europeus. Por isso, na relação dialética entre forma jurídica e forma mercantil, o jurista russo deitou atenção à primeira – que é o objeto, digamos, “natural”, de uma teoria geral do direito. “Desde o princípio – explica Pachukanis – estava perfeitamente consciente do objetivo a que, segundo a opinião de Il’inskij, teria chegado inconscientemente. Este objetivo era o de dar uma interpretação sociológica da forma jurídica e das categorias específicas que a exprimem. Foi justamente por isso que dei a meu livro o subtítulo de “Ensaio de crítica dos conceitos jurídicos fundamentais”69. 68 “Aliás, de que outra forma poderia ser, se, até muito pouco, os meios marxistas se mostravam céticos quanto à própria existência de uma teoria geral do direito?”. Idem. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.07. 69 Id., ibid., p.66/67. Grifo meu.
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Tais observações são importantes porque conduzem a duas conclusões: primeiro, os objetivos e limites teóricos da obra de Pachukanis não o incitaram a ampliar o objeto de seu estudo, razão pela qual foi lícito concentrar a análise na forma jurídica e nas categorias que a exprimem, olvidando, em parte, o “outro lado da moeda”, ou seja, a troca de mercadorias. Em segundo lugar, a crítica marxista ao pensamento pachukaniano deve dar conta desses limites, porquanto são de suma importância como indicativo das orientações interpretativas a serem adotadas na supressão de eventuais lacunas ou omissões, resultantes justamente da problemática acima salientada. Na esteira desta última observação, István Mészáros chama a atenção para algumas condições vitais, sem as quais a construção de um pensamento marxista de orientação marxiana cairia em um relativismo extremo e paralisante. “Em primeiro lugar – explica o autor húngaro –, as várias abordagens marxistas (na medida em que estejam realmente comprometidas com a perspectiva marxiana, indo além dos meros comprometimentos ‘da boca para fora’, qualquer que seja a razão histórica ou tática destes últimos) devem conservar tanto as ideias centrais como os correspondentes princípios metodológicos da concepção original”70. “A segunda condição vital – continua Mészáros – que, apesar de tudo, permanece operativa, sustentando e justificando também a primeira condição, diz respeito ao ponto final histórico real da ascendência global do capital. É esta que, em última análise, decide a questão, ativando as contradições estruturais do sistema produtivo injusto e destrutivo do capital e de seu modo de controle social universalmente desumanizador (...) Não obstante, por mais que sejam compreensíveis as determinações particulares e as exigências mediadoras que se originam da contingência histórica dada, a concepção original da ‘nova forma histórica’ – que, como tal, não admite em sua estrutura conciliações com a velha ordem social – deve, por fim, prevalecer”71. 70 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p.316. 71 Idem, ibidem, p.317 (passim).
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“As generalizações filosóficas – finalizando as citações – exigem sempre uma certa distância (ou ‘posição marginal’) do filósofo em relação à situação concreta sobre a qual baseia suas generalizações. Isso se deu, evidentemente, na história da filosofia de Sócrates a Giordano Bruno, que foram liquidados por serem marginais radicais. Porém, mesmo mais tarde, os ‘marginais’ desempenharam um papel extraordinário no desenvolvimento da filosofia: os escoceses com relação à Inglaterra economicamente muito mais adiantada (...)”72. Tais indicações são centrais para a interpretação do pensamento pachukaniano nos moldes do que proponho. De acordo com a primeira orientação, o intérprete da obra pachukaniana deve apreendê-la à luz das ideias centrais e princípios metodológicos marxianos. Para tanto, impõe-se a necessidade de inserir a Teoria geral do direito e marxismo no contexto da obra de Karl Marx, extraindo os sentidos possíveis e suprindo quaisquer lacunas dentro dos limites desse pensamento. Nesse ponto, é importante deixar claro o seguinte: não seria lícito excluir o cotejo da obra pachukaniana com o pensamento de qualquer outro autor – pelo contrário, isso é essencial ao desenvolvimento do materialismo histórico como ciência – mas é lícito exigir que isso apenas ocorra depois da tentativa de inserção e resolução dos problemas e lacunas, a partir da perspectiva marxiana. Quando mais não fosse, porque o próprio autor russo manifesta-se nesse sentido: “O futuro mostrará até que ponto minha concepção é frutuosa. Naturalmente, nesta breve tentativa, não poderia delinear os grandes traços de evolução histórica e dialética da forma jurídica. Para esse empreendimento servi-me, essencialmente, das ideias que encontrei em Marx”73. O segundo aspecto salientado por Mészáros é também de suma importância, especialmente quando utilizado como vetor de interpretação da obra de Pachukanis. Isso porque os fins visados pelo cientista orientam os meios utilizados na apropriação do objeto, e isso desemboca 72 Id. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p.71-75 (passim). 73 PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.14. Grifo meu.
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em questões metodológicas relevantes. Apenas para citar um exemplo, a troca de mercadorias resume-se, afastado o fetiche que a acompanha, à troca de trabalho humano. Nesse sentido, pergunta-se: a suprassunção da forma capitalista de produção (que pressupõe a suprassunção da forma mercadoria) abolirá o intercâmbio de trabalho entre os seres humanos? Mas, se o trabalho é condição natural eterna da vida humana, sem depender de qualquer forma dessa vida, tal abolição é impensável. Assim, como se dará esse intercâmbio na “nova forma histórica”? O cientista elabora essa pergunta porque pretende (e aqui entra o viés político de todo cientista), suprassumir o capital; caso contrário, sua pergunta seria qualitativamente distinta. Ao introduzir seu projeto político como um “dever-ser” específico, o cientista avalia o objeto presente a partir dessa perspectiva particular, abordando-o de maneira que possa descobrir, em seu modo de ser, os pressupostos que lhe permitirão superá-lo (suprassumir). No contexto do presente trabalho, tal compreensão é de importância candente. Com fundamento nela, pode-se indagar: Pachukanis compreendia a troca de mercadorias como uma relação social eterna como fazem os pensadores que se colocam do ponto de vista do capital? Ou, pelo contrário, pensava-a como um pressuposto histórico, necessário à sua própria superação (Aufhebung)? Deixemos que o autor russo fale por si mesmo: “O aniquilamento de certas categorias (precisamente de certas categorias e não de tais ou quais prescrições) do direito burguês, em nenhum caso significa a sua substituição pelas novas categorias do direito proletário. Da mesma forma como o aniquilamento das categorias do valor, do capital, do lucro etc., no período de transição para o socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias do valor, do capital etc”74. Percebe-se que a “nova forma histórica”, ou, em suas palavras, o “socialismo evoluído”, era o ponto de convergência de suas aspirações políticas e de sua produção científica, dialeticamente entrelaçadas. A observação de István Mészáros, portanto, era compartilhada pelo
74 Idem, ibidem, p.26.
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pensador russo, de maneira que a troca de mercadorias era tida como histórica, portanto, destinada a ser superada (suprassumida). Talvez seja lícito afirmar, com alguma segurança, que o projeto político de suprassunção do capital por uma nova forma histórica, estruturada com base nos “indivíduos livremente associados”, deve ser utilizado como parâmetro, como objetivo final e, portanto, como critério orientador de qualquer perspectiva a ser construída sobre a obra de Pachukanis75. Finalmente, mas não menos importante, tem-se a “posição marginal do filósofo”, mencionada por Mészáros, como necessária à formulação de generalizações filosóficas. É importante consignar que tanto Marx como Pachukanis comungavam dessa posição “marginal”. Ambos provinham de países atrasados com relação aos demais países europeus de suas respectivas épocas – Alemanha e Rússia. Tal afastamento proporcionou a apreensão da realidade em sua dinamicidade e, portanto, em suas múltiplas contradições. Isso é necessário a todo intérprete que almeja a superação do estado de coisas dentro do qual se encontra. Não parece difícil compreender que o ponto de vista de dominantes e dominados está impregnado de subjetivismo resultante dos interesses que devem ser defendidos por cada qual – os primeiros, de manutenção da situação social dada; os segundos, de superação. À época da juventude de Marx, esse “ponto de vista marginal” – dialeticamente entrelaçado às condições históricas em que o mesmo emergiu – possibilitou, como salientou Mészáros, “o entendimento da natureza do utopismo como a exacerbação da parcialidade em pseudo-universalidade”. Seu distanciamento com relação aos países
75 Aqui seria o momento adequado para a compreensão de outra problemática existente no pensamento de Pachukanis. Trata-se da postura teórica segundo a qual não se pode sustentar a existência de um eventual “direito proletário”, mas, tão-somente, a extinção da forma jurídica. Os limites do presente trabalho não permitem uma abordagem desse tema específico, tão caro à obra pachukaniana, mas permitem que se reafirme o que acima foi dito: os sentidos de seu pensamento devem ser construídos à luz das ideias fundamentais e metodológicas marxianas. A partir desse ponto de vista – o pensamento marxiano – Pachukanis pode ser acusado de tudo, menos de niilista.
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desenvolvidos daquele momento histórico foi fundamental para sua compreensão acerca da posição ontologicamente fundamental do trabalho como criador e reprodutor da história humana em todos os aspectos. “Marx compreende claramente – afirma Mészáros a respeito deste ponto de vista “marginal” – que a superação prática da alienação é inconcebível em termos exclusivamente políticos, tendo em vista o fato de que a política é apenas um aspecto parcial da totalidade dos processos sociais, por mais importante que possa ser em situações históricas específicas (por exemplo, na França de fins do século XVIII)”76. Tal perspectiva teria sido adotada por Pachukanis? Parece claro que sim. Basta recordar que quase todas as teorias jurídicas de sua época – relacionadas à filosofia ou teoria geral do direito – consideravam-no (o direito) do ponto de vista do normativismo político, portanto, como um conjunto de normas ou regras de comportamento emanadas do Estado e sancionadas. O autor russo rompe com essa perspectiva e resgata o ponto de vista marxiano para apontar o direito como uma relação concreta, histórica, intimamente ligada às forças produtivas e relações de produção, tendo, inclusive, precedência lógica quanto ao poder político77. Em suma, Pachukanis supera a compreensão do direito como uma simples “parcialidade da parcialidade”, recolocando-o no contexto da totalidade dos processos sociais. A crítica marxista do direito precisa estar atenta a essa observação, sobretudo na interpretação do pensamento pachukaniano. Compreender o direito em termos concretos significa situá-lo como parcialidade própria no contexto da totalidade social. Tal constatação é importante na presente época histórica para todos aqueles que almejam, de uma forma ou de outra, superar as perspectivas rasas do positivismo jurídico.
76 MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Op. cit, p.75. 77 “O Estado, ou seja, a organização do domínio político de classe, nasce no terreno de dadas relações de produção e de propriedade. As relações de produção e sua expressão jurídica formam aquilo que Marx chamava, na sequência de Hegel, de sociedade civil. A superestrutura política e, notadamente, a vida política estadual oficial, constituem um momento secundário e derivado”. PACHUKANIS. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.52. Grifo meu.
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02. APARÊNCIA E ESSÊNCIA 2.1. A preocupação metodológica de Pachukanis O objeto de estudo de A teoria geral do direito e o marxismo é o conjunto de relações que os homens estabelecem entre si e que assumem uma determinada forma, cuja especificidade as caracteriza como jurídica78. A chave para que se possa atingir essa especificidade, segundo o autor russo, é a análise da forma mercantil. Assim, Márcio Bilharinho Naves afirma: “O critério que orienta a démarche de Pachukanis é a possibilidade de a teoria ser capaz de analisar a forma jurídica como forma histórica, permitindo compreender o direito como fenômeno real”79. Entretanto, antes de passar ao estudo das formas mercantil e jurídica, Pachukanis estabelece uma série de reflexões de cunho metodológico, importantes para definir como apreender o direito como objeto científico. O autor recorre às observações elaboradas por Karl Marx, especialmente quando tratou do método da economia política em um
78 “O direito igualmente nas suas determinações gerais, o direito como forma não existe somente na mente e nas teorias dos juristas especializados. Ele tem uma história real, paralela, que não se desenvolve como um sistema de pensamento mas antes como um sistema particular de relações que os homens realizam em consequência não de uma escolha consciente, mas sob pressão das relações de produção”. PACHUKANIS. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p. 32/33. Grifo meu. 79 NAVES, Márcio B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Op. cit., p.40.
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escrito datado de 185780. Para os propósitos do presente trabalho, é importante compreender quais foram as preocupações do autor russo e como se relacionam com os apontamentos de Marx. Isso porque, como afirmamos, aproximar a forma jurídica da forma mercantil acarretou a necessidade de “purificar” a troca de mercadorias, o que instaura uma problemática relativa ao método também. Pachukanis, inicialmente, salienta que toda ciência dirige-se a uma única e mesma realidade total e concreta, e o que distingue um estudo científico de outro é a diferença de métodos, ou seja, das formas de abordagem dessa mesma realidade. Nas ciências humanas, especificamente, há um sério problema em decompor a realidade em seus elementos mais simples, por isso, a capacidade de abstração é o que auxilia o cientista81. Na construção da teoria geral do direito, esse problema também ocorre. Por isso, na elaboração das abstrações necessárias à compreensão de um determinado aspecto da realidade a ser abordado, deve-se iniciar do mais simples para o mais complexo. Pachukanis ressalta que quando se parte da forma mais simples de um “processus” para suas formas mais concretas, segue-se uma via metodológica mais precisa. Tais apontamentos metodológicos seguem as orientações de Marx, presentes na Introdução à crítica da economia política. “Parece que o melhor método – afirma o pensador alemão – será começar pelo real e pelo concreto, que são a condição prévia e efetiva; assim, em economia política, por exemplo, comerçar-se-ia pela população, que é a base e o sujeito do ato social como um todo. No entanto, numa observação atenta, apercebemo-nos que há aqui um erro. A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes de
80 Cf. “Introdução à crítica da economia política”. In: Contribuição à crítica da economia política. MARX, Karl. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 246/258. “O método da economia política”. 81 “Além disso, na análise das formas econômicas não se pode utilizar nem microscópio nem reagentes químicos. A capacidade de abstração substitui esses meios”. MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.16. Prefácio à 1ª edição.
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que se compõe. Por seu lado, essas classes são uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc., não é nada. Assim, se começássemos pela população teríamos uma visão caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaríamos a abstrações cada vez mais delicadas até atingirmos as determinações mais simples. Partindo daqui, seria necessário caminhar em sentido contrário até chegar finalmente de novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinações e relações numerosas”82. Esse “duplo movimento”, que vai do abstrato ao concreto e do simples ao complexo, deve ser aplicado ao estudo do direito também. Por isso, Pachukanis não inicia sua análise da forma jurídica partindo de uma abstração como o “Estado”, por exemplo, mas sim da troca de mercadorias, seguindo os passos do que fizera Marx a propósito do estudo do modo capitalista de produção, em O capital83. Se a mercadoria é a forma trivial assumida pelos produtos do trabalho humano na sociedade capitalista, o núcleo concreto em torno do qual se forma toda a anatomia da sociedade civil, a teoria geral do direito deve iniciar sua abordagem da realidade a partir dessa específica relação social. Vale a pena ressaltar que esse procedimento metodológico atende também às indicações elaboradas por Marx no prefácio de Contribuição à crítica da economia política, como já mencionado. A partir dessa perspectiva metodológica, compreende-se porque A teoria geral do direito e o marxismo tem como eixo fundamental a circulação de mercadorias. Contrariamente ao que boa parte da crítica
82 Idem. Introdução à crítica da economia política. Op. cit., p.247. 83 “A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em ‘imensa acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza. Por isso, nossa investigação começa com a análise da mercadoria”. Idem. O capital. Livro I. Op. cit., p.57.
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afirma sobre a análise pachukaniana – de que representaria a velha ortodoxia marxista que compreende o direito como mero “reflexo” da economia – trata-se, na verdade, de um recurso metodológico extremamente importante, porque assume como corretas as orientações marxianas de elaboração de categorias, num movimento de passagem das mais simples às mais complexas e, assim, do abstrato ao concreto. Ora, se as formas jurídicas e as formas de Estado devem ser perscrutadas na sociedade civil e a forma mercantil é a célula de riqueza da sociedade capitalista, esta é a relação mais simples, a partir da qual devem se elevar as demais abstrações a serem elaboradas. É por isso que as categorias centrais na análise pachukaniana do direito, como, por exemplo, o sujeito de direito, são o resultado de um movimento dialético que parte daquela relação fundamental supramencionada. Tal procedimento metodológico segue a via aberta por Marx: “A partir do momento em que esses fatores isolados foram mais ou menos fixados e teoricamente formulados, surgiram sistemas econômicos que, partindo de noções simples tais como o trabalho, a divisão do trabalho, a necessidade, o valor de troca, se elevavam até o Estado, as trocas internacionais e o mercado mundial. Este segundo método é evidentemente o método científico correto”84. Uma segunda preocupação pachukaniana quanto à metodologia refere-se aos conceitos utilizados pelas ciências sociais. Mais especificamente, à relação que se estabelece entre esses conceitos e o substrato material que lhes dá amparo. É necessário prestar atenção à evolução desses conceitos em sua relação dialética com o real processo histórico. “Nós conhecemos deste modo – afirma Pachukanis – o substrato histórico real dessas abstrações conceituais que utilizamos, e podemos igualmente verificar os limites dentro dos quais a utilização destas abstrações tem um sentido coincidente com o quadro da evolução histórica real e são mesmo determinadas por ele”85. 84 MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. Op. cit., p.248. 85 PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.32.
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A partir dessa perspectiva, o autor russo salienta como os pensadores burgueses desenvolveram suas ideias e elaboraram suas teorias sob o influxo dos interesses da classe à qual pertenciam e do momento histórico em que estavam inseridos. Assim, a escola do direito natural representou a expressão mais saliente da ideologia burguesa, à época, revolucionária. A escola histórica do direito significou a formulação filosófica e ideológica da reação feudal aristocrática e, em parte, pequeno-burguesa corporativista. Com o apagar da chama revolucionária da classe em ascensão, o estudo da forma jurídica deixa de ser fundamental como suporte ideológico. Elaborar os elementos teóricos capazes de legitimar o exercício do poder e de racionalizar o uso da força passa a ser a tarefa dos filósofos do direito. “Finalmente – assinala Pachukanis –, o extremo formalismo da escola normativa (Kelsen) exprime, sem sombra de dúvida, a decadência geral do mais recente pensamento científico burguês, o qual, glorificando o seu total afastamento da realidade, se dilui em estéreis artifícios metodológicos e lógico-formais”86. Dessa maneira, resgata-se toda a pujança do pensamento marxiano, salientando-se que as categorias jurídicas modernas têm um lastro material, ou seja, não são apenas o resultado do trabalho conceitual de um sujeito pensante, mas o produto da evolução socioeconômica da sociedade burguesa ocidental. “Esse exemplo do trabalho – explica Marx – mostra com toda a evidência que até as categorias mais abstratas, ainda que válidas – precisamente por causa da sua natureza abstrata – para todas as épocas, não são menos, sob a forma determinada desta mesma abstração, o produto de condições históricas e só se conservam plenamente válidas no quadro destas”87. Tal observação vai ao encontro do que expusemos acerca da atualidade histórica da análise marxista88. As categorias marxianas podem e devem ser utilizadas nos dias de hoje, desde que sejam historicamente
86 Idem, ibidem, p. 34. 87 MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. Op. cit., p.253. 88 Ver item 1.2. do presente trabalho.
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atualizadas, o que é possível pela aplicação do método marxiano89. A dinâmica das análises marxiana e marxista torna as categorias do materialismo histórico mais concretas, ricas de determinações e mais atualizadas do que as categorias de quaisquer outros sistemas filosófico-epistemológicos. Finalmente, o terceiro aspecto levantado por Pachukanis. Tratase da orientação marxiana segundo a qual as formas da sociedade mais desenvolvida são a chave para a compreensão das formações anteriores. “A sociedade burguesa – ensina Marx – é a organização histórica da produção mais desenvolvida e mais variada que existe. Por este motivo, as categorias que exprimem as relações desta sociedade e que permitem compreender a sua estrutura permitem ao mesmo tempo perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se edificou, de que certos vestígios, parcialmente ainda não apagados, continuam a subsistir nela, e de que certos signos simples, desenvolvendo-se nela, enriqueceram de toda a sua significação. A anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco”90. “Aplicando-se tal orientação à teoria geral do direito, – explica Pachukanis – deve-se começar a análise da forma jurídica na sua configuração mais abstrata e pura, para depois, por progressão, atingir o concreto histórico. Deve-se ter em mente que a evolução das categorias corresponde à evolução não apenas do conteúdo de determinado dispositivo jurídico, mas também a uma alteração de sua forma. Por isso, as categorias jurídicas surgem, desenvolvem-se e atingem seu apogeu na moderna sociedade capitalista. Metodologicamente, pois, as definições claras apenas podem ser elaboradas, desde que se parta
89 “Então, quando se diz materialismo histórico, tem-se que insistir tanto no histórico quanto no materialismo, porque o método de Marx é, antes de tudo, histórico. O historicismo é o centro, é o elemento motor, é a dimensão dialética e revolucionária do método”. LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 17ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2006, p.29. 90 MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. Op. cit., p.254.
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da análise da forma jurídica inteiramente desenvolvida, que, por sua vez, revela as formas anteriores e embrionárias”91. Márcio Bilharinho Naves resume os pontos mais importantes dessa última preocupação metodológica de Pachukanis: “Pachukanis estabelece aqui alguns pontos que merecem atenta consideração: em primeiro lugar, é a partir da forma jurídica burguesa, a forma mais evoluída do direito, que é possível a compreensão das formas jurídicas das sociedades pré-capitalistas, particularmente a compreensão das razões de, nessas sociedades, o direito permanecer ‘contido’ e amalgamado a outras formas sociais; em segundo lugar, Pachukanis enfatiza a necessidade de apreender a especificidade da forma jurídica, que corresponde a uma forma particular de organização da sociedade; finalmente, Pachukanis mostra – retomando indicações fornecidas por ele em outras passagens – que não é suficiente examinar apenas o conteúdo do direito em cada época histórica, mas é necessário examinar o modo mesmo como tais conteúdos se exprimem”92. “A concepção de Pachukanis – continua Bilharinho – corresponde inteiramente às reflexões que Marx desenvolve nos Grundrisse e em O capital, a propósito do lugar central que ocupa a análise da forma para compreender as relações capitalistas”93. Como salienta o pensador alemão, é necessário identificar não apenas como uma relação social opera dentro do modo capitalista de produção, mas, especialmente, como tal relação é produzida em tais condições. Caso contrário, corre-se o risco de oferecer apenas uma justificação dessas relações como formas naturais e eternas do desenvolvimento econômico das sociedades. Seguindo as orientações metodológicas elaboradas por Marx, Pachukanis desenvolve sua análise do direito elegendo como objeto
91 “Somente nesse caso conseguiremos captar o direito não como um atributo da sociedade humana abstrata, mas como uma categoria histórica que corresponde a um regime social determinado, edificado sobre a oposição de interesses privados.” PACHUKANIS. E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., 36. 92 NAVES, Márcio B. Marxismo e direito. Op. cit., p. 47/48. 93 Idem, ibidem, p.48.
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de estudo a forma jurídica. Uma primeira questão deve ser formulada: por que o pensador russo aproxima a forma jurídica da relação de troca mercantil? Seria apenas porque deveria seguir a “ortodoxia marxista”, segundo a qual as formas do direito devem ser determinadas pelas formas econômicas, como exigia a boa etiqueta bolchevique? Mas, se assim fosse, seria possível associar a forma jurídica a qualquer forma econômica e não a uma específica – a mercantil. Pachukanis oferece-nos a resposta: “Na literatura marxista e, em primeiro lugar, no próprio Marx, é possível encontrar elementos suficientes para uma tal aproximação. Basta citar, além das passagens mencionadas neste livro, o capítulo intitulado ‘A moral e o direito. A igualdade’ do Anti-Dühring. Nele é dada por Engels uma formulação absolutamente precisa do vínculo existente entre o princípio da igualdade e a lei do valor; numa nota ele afirma que ‘esta dedução das modernas ideias de igualdade, a partir das concepções econômicas da sociedade burguesa, foi exposta pela primeira vez por Marx em O capital’94. Por conseguinte, faltava compilar os diversos pensamentos de Marx e de Engels, unificá-los e tentar aprofundar algumas conclusões daí decorrentes. Depois de Marx, a tese fundamental, a saber, de que o sujeito jurídico das teorias do direito se encontra numa relação muito íntima com o proprietário de mercadorias, não precisava mais uma vez ser demonstrada”95. Uma vez mais, o autor aponta para Marx: “Marx mostra simultaneamente a condição fundamental, enraizada na estrutura econômica da própria sociedade, da existência da forma jurídica, ou seja, a unificação
94 A nota citada por Pachukanis foi aposta por Engels ao seguinte comentário: “Finalmente, a igualdade e a igual valorização de todos os trabalhos humanos, na qualidade de manifestações de trabalho do homem, encontrou a sua mais forte expressão, embora inconsciente, na lei do valor da economia burguesa moderna, segundo a qual o valor de uma mercadoria se mede pelo trabalho socialmente necessário contido nela”. ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 3ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p.88. 95 PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.08.
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dos diferentes rendimentos do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes. Ele descobre assim o profundo vínculo interno que existe entre a forma jurídica e a forma mercantil”96. Ou seja, eleger a troca de mercadorias como a forma social pela qual se exprime também a forma jurídica, é uma decorrência imediata dos critérios metodológicos adotados por Pachukanis, bem como da atenta análise do conteúdo das obras de crítica da economia política elaboradas por Marx. Não se trata, portanto, de seguir uma dada ortodoxia qualquer, mas sim de aplicar à teoria geral do direito o rigor metodológico e as descobertas marxianas no campo das ciências humanas. Entretanto, esse é o momento adequado para ferir outra importante questão: até que ponto o procedimento metodológico pachukaniano, que consiste em estabilizar e identificar, na troca de mercadorias, a relação social que permite a descoberta da forma jurídica em sua configuração mais abstrata e “pura”97 corresponde, inteiramente, às orientações metodológicas estruturadas por Karl Marx? Para equacionarmos tal pergunta, é necessário voltar a atenção para algumas importantes observações elaboradas pelo pensador alemão no mesmo escrito utilizado por Pachukanis: “Por exemplo – ensina Marx –, a categoria econômica mais simples, o valor de troca, por hipótese, supõe a população, uma população produzindo em condições determinadas; supõe ainda um certo gênero de família, ou de comuna, ou de Estado, etc. Só pode pois existir sob a forma de relação unilateral e abstrata de um todo concreto vivo, já dado”98. “Antes como depois – continua Marx –, o objeto real conserva sua independência fora do espírito; e isso durante o tempo em que o espírito tiver uma atividade meramente especulativa, meramente teórica. Por consequência, também no emprego do método teórico é
96 Idem, ibidem, p.28. Grifo meu. 97 “Se quisermos aplicar as citadas reflexões metodológicas à teoria do direito, teremos de começar pela análise da forma jurídica na sua configuração mais abstrata e mais pura, para depois irmos por complexidade progressiva até o concreto histórico”. Id., ibid., p.35. 98 MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. Op. cit., p.248.
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necessário que o objeto, a sociedade, esteja constantemente presente no espírito como dado primeiro”99. “Do mesmo modo que em toda a ciência histórica ou social em geral – ainda com Marx –, é preciso nunca esquecer, a propósito da evolução das categorias econômicas, que o objeto, neste caso a sociedade burguesa moderna, é dado, tanto na realidade como no cérebro; não esquecer que as categorias exprimem, portanto, formas de existência, condições de existência determinadas, muitas vezes simples aspectos particulares desta sociedade determinada, deste objeto, e que, por conseguinte, esta sociedade de maneira nenhuma começa a existir, inclusive do ponto de vista científico, somente a partir do momento em que ela está em questão como tal. É uma regra a fixar, porque dá indicações decisivas para a escolha do plano a adotar”100. E, para finalizar os apontamentos de Marx: “Em todas as formas de sociedade é uma produção determinada e as relações por ela produzidas que estabelecem a todas as outras produções e às relações a que elas dão origem a sua categoria e a sua importância. É como uma iluminação geral em que se banham todas as cores e que modifica as tonalidades particulares destas. É como um éter particular que determina o peso específico de todas as formas de existência que aí se salientam”101. Esse conjunto de indicações elaboradas por Marx aponta para um ponto de importância decisiva na estruturação metodológica utilizada na abordagem de um dado objeto. O fio condutor das indicações é a insistência em que uma dada categoria deve ser estruturada sempre dentro de um contexto mais amplo. No caso das ciências humanas, esse contexto designa uma determinada sociedade que é historicamente dada, e apenas pode ser concretamente apreendida, desde que se considere as formas de produção e relações correspondentes como um processo, sendo certo que “nada pode emergir 99 Idem, ibidem, p.249. 100 Id., ibid., p.255. 101 Id., ibid., p.255/256.
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ao final desse processo que não tenha aparecido como premissa e pré-condição no começo”102. Quer dizer, o cientista social deve estar atento ao fato de que existem sempre formas específicas de sociedades, historicamente situadas, caracterizadas por um determinado conjunto de forças produtivas e relações de produção, dentro das quais certas formas podem ser identificadas num sentido unilateral, mas nunca apreendidas concretamente, a não ser que se considere que essa dialética – forças produtivas e relações de produção – não começa a existir por ocasião da análise científica e também não cessa de existir ali. Por isso, a concreticidade de qualquer categoria depende da circunstância de considerar-se que ela (a categoria) relaciona-se dialeticamente com um conjunto historicamente determinado de forças produtivas e relações de produção e que seu sentido específico (ou “puro”) apenas pode ser apreendido dentro dessa perspectiva103. Assim, toda a análise deve se desenrolar com a importantíssima preocupação de apreender cada categoria pela lógica interna de seus múltiplos contextos. Mészáros, como de costume, vai ao ponto: “Segundo esses princípios metodológicos, a tarefa teórica consiste na identificação e na elucidação de todas aquelas pressuposições e pré-condições objetivas que tenham uma relação importante com qualquer outro particular em questão. O empreendimento crítico parte da imediaticidade do fenômeno investigado e, por meio da compreensão e da explicação das condições e pressuposições relevantes da sua composição estrutural, age como parteira das conclusões que emergem objetivamente. Essas, por sua vez, constituem as pressuposições e précondições necessárias de outros conjuntos de relações neste sistema dialético e inerentemente objetivo de determinações recíprocas”104. A preocupação metodológica de Pachukanis foi formulada de maneira bastante clara, quando o autor russo salienta a necessidade 102 MARX, Karl. Grundrisse. London: Penguim Books, 1993, p. 304. 103 O que István Mészáros denomina “modificação significativa”. Para além do capital. Op. cit., p.518. 104 MÉSZÁROS, István. Ibidem, p.518.
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de aplicar-se à teoria geral do direito toda a série de apontamentos metodológicos elaborados por Karl Marx. Entretanto, resta ainda uma última pergunta: ao fixar a troca de mercadorias como relação social da qual surge a forma jurídica como a “outra face da moeda”, teria Pachukanis aplicado o acervo metodológico estruturado por Marx em toda a sua profundidade? Ou, pelo contrário, estabilizou a forma mercadoria como se fosse uma e mesma, sempre? Tal problemática será enfrentada no próximo capítulo. Antes, a elucidação de mais um aspecto é de rigor: trata-se do falso concreto.
2.2. O falso concreto Como vimos, o movimento epistemológico efetuado por Pachukanis, que consiste em identificar na forma da mercadoria a chave para a compreensão da forma jurídica, não foi o resultado de uma escolha arbitrária, pautada por qualquer dogmatismo de cunho político, muito em moda à sua época. Foi resultado, tão-somente, da aplicação dos princípios metodológicos desenvolvidos por Karl Marx à construção da teoria geral do direito. Os princípios metodológicos marxianos, sua epistemologia, por outro lado, têm relação íntima com sua perspectiva ontológica e com o projeto político de emancipação da classe trabalhadora. Controvérsias à parte105, pode-se afirmar que, para Marx, a determinação ontológica
105 Anselm Jappe, por exemplo, parece não concordar com a opinião de que o trabalho seria o princípio ontológico de Marx: “O famoso ‘papel do trabalho na transformação do macaco em homem’ é uma invenção de Engels; Marx, no geral, não se orienta para uma instância acrítica que constituísse uma ‘ontologia do trabalho’(...) Todavia, não somente em função da lógica geral de sua teoria, mas também em consequência de certas referências precisas, torna-se evidente que o trabalho vivo, enquanto base da produção, é precisamente o que Marx quer submeter à crítica, em vez de ver nele um princípio ontológico que fosse necessário desvelar e trazer à luz do dia”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.112. O autor, entretanto, ressalta: “Contudo, só fazendo a identificação entre ‘trabalho’ e o metabolismo com a natureza se poderá apresentar o trabalho como categoria supra-histórica e 78
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fundamental da humanidade é o trabalho, compreendido como o eterno metabolismo entre homem e natureza; atividade relacional prática produtiva e reprodutiva da sociedade. “O trabalho – afirma Marx em O capital –, como criador de valores de uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade –, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana”106. “O processo de trabalho – continua o pensador alemão –, que descrevemos em seus elementos eterna. Mas trata-se então de uma tautologia”. Idem, ibidem, p.110. Cito, em seguida, no corpo do texto, o trecho de O capital em que Marx assinala que “o processo de trabalho (...) é condição necessária de intercâmbio material entre o homem e a natureza, é condição natural e eterna da vida humana”. O capital. Op. cit., p.218. Parece óbvio que o que Marx critica é o trabalho abstrato, forma assumida pelo metabolismo do homem com a natureza, no capitalismo. Tanto mais, quando se considera essa passagem particular de Contribuição à crítica da economia política: “Atividade sistemática visando a apropriação dos produtos da natureza sob uma ou outra forma, o trabalho é a condição natural do gênero humano – independente de qualquer forma social – da troca de substâncias entre o homem e a natureza. O trabalho criador de valor de troca, pelo contrário, é uma forma de trabalho especificamente social (...) O trabalho, fonte de riqueza material, era tão familiar ao legislador Moisés como ao funcionário aduaneiro Adam Smith”. MARX, Karl. Op.cit., p.22. Grifo meu. Em uma nota de rodapé de O capital, Marx assinala, com a ironia de sempre: “F. List, que nunca foi capaz de compreender a diferença entre o trabalho pelo qual se cria qualquer coisa útil, um valor de uso, e o trabalho criador de uma determinada forma social da riqueza, o valor de troca – compreender era, aliás, no fim das contas, coisa desconhecida de sua inteligência prática e utilitária –, viu nos economistas ingleses modernos simples plagiadores de Moisés e do velho Egito”. Idem, ibidem, p.52. Nota de rodapé nº.11. Grifo meu. De qualquer maneira, a mim me parece que a ressalva feita por Jappe é bastante a sustentar que o trabalho, compreendido como metabolismo humano com a natureza, condição natural e eterna da vida humana, é o princípio ontológico marxiano. À polêmica levantada por esse autor cabe bem a observação de Marx e Engels de que tudo o que é sólido e estável desmancha no ar. 106 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.64/65. Grifo meu.
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simples e abstratos é atividade dirigida com o fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma desta vida”107. István Mészáros, analisando a teoria da alienação em Marx, afirma: “O trabalho (atividade produtiva) é o único fator absoluto em todo o complexo: trabalho – divisão do trabalho – propriedade privada – intercâmbio. (Absoluto porque o modo de existência humano é inconcebível sem as transformações da natureza realizadas pela atividade produtiva)”108. Essa posição ontológica fundamental do trabalho – “atividade especial produtiva adequada a determinado fim e que adapta certos elementos da natureza às necessidades particulares humanas”109 –
107 Idem, ibidem, p.218. Grifo meu. “O que distingue as diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz”. Id., ibid., p.214. Em uma nota de rodapé aposta a essa última passagem, Marx afirma: “Por escasso que seja o conhecimento revelado até agora pela historiografia a respeito do desenvolvimento da produção material, que é o fundamento de toda a vida social e, em consequência, da verdadeira história, pelo menos dividiu ela o tempo pré-histórico, utilizando as pesquisas da ciência natural e não a investigação histórica. Distinguiram-se, desse modo, na pré-história, a idade de pedra, a do bronze e a do ferro, de acordo com o material dos instrumentos de trabalho e das armas”. Id., ibid., p.214. É interessante notar como Marx é claro nessa observação, de que o “fundamento” de toda a “vida social” é o “desenvolvimento da produção material”. 108 MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p.78. 109 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.64. Pelo aspecto predominantemente “filosófico”, o trabalho – atividade mediadora do metabolismo homem-natureza –, foi enunciado por Marx, de maneira mais ampla, como princípio ontológico fundamental da humanidade nas famosas Teses sobre Feuerbach, sob o conceito de práxis: “Até agora, o principal defeito de todo o materialismo (inclusive o de Feuerbach) é que o objeto, a realidade, o mundo sensível só são apreendidos sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, enquanto práxis, de maneira não subjetiva.
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foi fixada por Marx em 1844, quando da redação dos Manuscritos econômico-filosóficos, e definitivamente sistematizada, juntamente com Engels, por ocasião da elaboração de A ideologia alemã, em 1845. Essa perspectiva foi o resultado de dois movimentos primordiais:
Em vista disso, o aspecto ativo foi desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo – mas só abstratamente, pois o idealismo naturalmente não conhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente distintos dos objetos do pensamento; mas ele não considera a própria atividade humana como atividade objetiva. É por isso que em A essência do Cristianismo ele considera como autenticamente humana apenas a atividade teórica, ao passo que a práxis só é por ele apreendida e firmada em sua manifestação judaica sórdida. É por isso que ele não compreende a importância da atividade ‘revolucionária’, da atividade ‘prático-crítica’ (...) Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão desta práxis”. MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. Op. cit., p.99. Teses I e VIII. (Os itálicos são de Marx). Adolfo Sánchez Vásquez, debruçado sobre as mesmas Teses, conclui: “Partindo dessa concepção de Marx, entendemos a praxis como atividade material humana, transformadora do mundo e do próprio homem. Essa atividade real, objetiva, é, ao mesmo tempo, ideal, subjetiva e consciente. Por isso insistimos na unidade entre a teoria e a prática, unidade que implica também uma certa distinção e relativa autonomia. A praxis não tem para nós um âmbito tão amplo que possa inclusive englobar a atividade teórica em si, nem tão limitado que se reduza a uma atividade meramente material”. VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da praxis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.406. Também Kosik trata da questão de maneira clara, relacionando a práxis à totalidade: “Assim, a praxis compreende – além do momento laborativo – também o momento existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a esperança etc., não se apresentam como ‘experiência’ passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo de realização da liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de ser parte da praxis”. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Op. cit., p.224.
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primeiro, a crítica aos “jovens hegelianos”, direcionada ao problema da alienação, e, segundo, o encontro de Marx com a economia política, cujo caminho primordial foi o estudo elaborado pelo jovem Engels e publicado nos Anais franco-alemães110. A formulação do conceito de auto-alienação do trabalho é o ponto fundamental dessa “nova” perspectiva ontológica. “Nova”, porque o desenvolvimento de tal categoria era impossível antes da época histórica dentro da qual Marx estava inserido. Um período de gritantes e profundas contradições sociais, que puderam espelhar o dinamismo do desenvolvimento humano por meio desse conceito. A centralidade dessa perspectiva exigia a elaboração de novas categorias conceituais dialéticas, para dar conta da complexidade dos problemas e possibilitar o afastamento dos fenômenos mistificadores da alienação. O trabalho, então, passa a ser considerado sob dupla perspectiva: primeiro, como determinação ontológica fundamental da humanidade, isto é, o modo realmente humano de existência dos indivíduos; segundo, numa acepção particular, sob a forma de trabalho estranhado, por intermédio do qual se desenvolve uma relação de exploração. Nesta última perspectiva está a origem de toda a alienação. Propriedade privada; divisão do trabalho; intercâmbio; são formas de mediação assumidas pelo trabalho compreendido como atividade estruturada em moldes capitalistas. A crítica marxiana da alienação dirige-se a essas mediações denominadas por Mészáros “mediações de segunda ordem”. “Uma rejeição
110 “Friedrich Engels, com quem, desde a publicação do seu genial esboço de uma contribuição para a crítica das categorias econômicas nos DeutschFranzösische Jahrbücher, tenho mantido por escrito uma constante troca de ideias, chegou por outras vias (confrontar a sua Situação das classes operárias na Inglaterra) ao mesmo resultado, e quando, na primavera de 1845, veio a se estabelecer também em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto a fim de esclarecer o antagonismo existente entre nossa maneira de ver e a concepção ideológica da filosofia alemã;” MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.06.
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de toda mediação – ensina o autor húngaro – estaria perigosamente próxima do simples misticismo em sua idealização da ‘identidade entre sujeito e objeto’. O que Marx combate como alienação não é a mediação em geral, mas uma série de mediações de segunda ordem (propriedade-privada – intercâmbio – divisão do trabalho), uma ‘mediação da mediação’, isto é, uma mediação historicamente específica da automediação ontologicamente fundamental do homem com a natureza. Essa ‘mediação de segunda ordem’ só pode nascer com base na ontologicamente necessária ‘mediação de primeira ordem’ – como a forma específica, alienada, desta última. Mas a própria ‘mediação de primeira ordem’ – a atividade produtiva como tal – é um fator ontológico absoluto da condição humana”111. Se o trabalho é apreendido como atividade produtiva ontologicamente formadora da “humanidade”, não é difícil compreender, por outro lado, que indivíduos “alienados”, isto é, deformados, só podem ser o resultado da alienação do (e no) próprio trabalho. “A atividade produtiva passa a ser compreendida como a fonte da consciência, e a ‘consciência alienada’ é o reflexo da atividade alienada ou da alienação da atividade, isto é, da auto-alienação do trabalho”112. A elevação do trabalho a fundamento ontológico da humanidade instaura o problema de se compreender como ocorre o intercâmbio entre homem/natureza/homem. As mediações poderiam ocorrer de forma clara, transparente, se a humanidade tivesse plena consciência de que
111 MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Op. cit., p.78. Sem querer antecipar conclusões, talvez seja permitido afirmar, desde logo, que a teoria pachukaniana do direito está alicerçada sobre uma mediação de segunda ordem, qual seja, a troca de mercadorias. Ao aproximar a forma jurídica da forma mercantil, Pachukanis identifica a gênese material do direito em uma forma alienada, ou seja, a forma mercantil. Poderíamos, pois, formular a seguinte questão: seria essa a gênese efetivamente material da forma jurídica? De outra maneira e retomando a pergunta efetuada ao fim do primeiro item deste capítulo: teria Pachukanis aplicado a metodologia marxiana em toda a sua profundidade? 112 Idem, ibidem, p. 80.
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é a autoprodutora de sua subsistência113. Isso pressupõe, obviamente, uma forma de organização das forças produtivas e relações de produção orientada por um tipo de racionalidade oposta àquela que predomina no modo de produção capitalista, baseada na busca desenfreada de interesses privados. Nesse sentido, ensina Marx no clássico item do fetiche da mercadoria: “A estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material, só pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico no dia em que for obra de homens livremente associados, submetida a seu controle consciente e planejado”114. Essa nova concepção ontológica evidencia que o fundamento não alienado daquilo que se reflete como esfera particular de forma alienada na filosofia burguesa é a esfera ontológica fundamental da existência humana: o trabalho – o fundamento último das formas de sociabilidade humanas. Toda a epistemologia marxiana passa a girar em torno dessas constatações ontológicas fundamentais. A filosofia burguesa de até então não havia formulado princípios epistemológicos que dessem conta dessa problemática, simplesmente porque ela ainda não havia sido posta. Marx e Engels formularam tais problemas e precisaram, para equacioná-los, de um novo conjunto de princípios metodológicos. Eis a novidade do materialismo histórico como ciência115. 113 “O trabalho, na sua forma verdadeira, é um meio para a auto-realização autêntica do homem, para o pleno desenvolvimento das suas potencialidades; a utilização consciente das forças da natureza poderia ocorrer para a sua satisfação e prazer. Na sua forma corrente, entretanto, ele deforma todas as faculdades humanas e proscreve a satisfação”. MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p.240. 114 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.101. “A grande realização histórica de Marx foi cortar o nó górdio dessas séries mistificadoramente complexas de mediações, afirmando a validade absoluta da mediação de primeira ordem, ontologicamente fundamental (em oposição aos defensores românticos e utópicos de uma unidade direta), contra a sua alienação na forma de divisão do trabalho – propriedade privada e intercâmbio capitalistas. Essa grande descoberta teórica abriu o caminho para uma ‘desmistificação científica’, bem como para uma negação real, prática, do modo de produção capitalista”. MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Op. cit., p.82. 115 Ver item 1.2 do presente trabalho.
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Maurice Godelier analisa os conceitos e procedimentos epistemológicos de Marx de forma bastante elucidativa: “(...) Marx distingue as conexões visíveis e as conexões ‘reais’, e o trabalho da ciência consiste precisamente em passar das aparências para a estrutura interna oculta do real. Assim, ele distingue a forma na qual aparecem as relações e as estruturas, Erscheingsformen, sua aparência visível, e chama de Kern Form, a forma-núcleo, ou Kern-Struktur, estrutura-núcleo, isto é, uma relação captada em sua estrutura interna, não diretamente visível, mas que o conhecimento científico deve descobrir e reconstruir. ‘É tarefa da ciência elevar-se do movimento aparente, puramente fenomênico, ao movimento real interno’. O procedimento epistemológico de Marx se funda nessa série de princípios”116. Em várias passagens de suas obras, inclusive de maturidade, Marx alerta para essa problemática que foi evidenciada já nos Manuscritos de Paris. É interessante notar como ele distingue o pensamento científico como aquele que sabe distinguir as formas fenomênicas, aparentes – “Erscheingsformen” – das formas essenciais, estruturais – “Kern Form” – e como as categorias científicas devem ser construídas com base nestas últimas, sendo meramente ideológicas as que exprimem as primeiras. “Essas expressões imaginárias – afirma Marx –, entretanto, têm sua origem nas próprias relações de produção. São categorias que correspondem a certas formas aparentes de relações essenciais. Todas as ciências, exceto a economia política, reconhecem que as coisas apresentam frequentemente uma aparência oposta à sua essência”117. “À forma aparente – continua Marx – ‘valor e preço do trabalho’ ou ‘salário’, em contraste com a relação essencial que ela dissimula,
116 GODELIER, Maurice. “O marxismo e as ciências do homem”. In: HOBSBAWM, Eric J. (org.) et alii. História do marxismo: o marxismo hoje (primeira parte). Volume 11. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 363. 117 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.617. Grifo meu. Marx comete, evidentemente, uma injustiça. Não poderia ter deixado de fora da exceção mencionada a “ciência jurídica”, que até hoje trabalha com uma “teoria da norma fundamental”, uma pura ficção – ou, como diria Marx, uma “licença poética” – como reconhece o próprio Kelsen em sua Teoria geral das normas.
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o valor e o preço da força de trabalho, podemos aplicar o que é válido para todas as formas aparentes e seu fundo oculto. As primeiras aparecem direta e espontaneamente como formas correntes de pensamento; o segundo só é descoberto pela ciência. A economia política clássica avizinhou-se da essência do fenômeno, sem, entretanto, formulá-la conscientemente. E isto não lhe é possível enquanto não se despojar de sua pele burguesa”118. “Se, como o leitor certamente reconheceu por seu próprio sofrimento, a análise das reais conexões íntimas do processo de produção capitalista é uma coisa muito complicada e um trabalho muito circunstanciado; se é uma tarefa da ciência reduzir o movimento visível e apenas aparente ao movimento real interno, então é evidente que nas cabeças dos agentes capitalistas da produção e da circulação têm de se construir representações sobre as leis da produção que divergem completamente dessas leis e que são apenas a expressão consciente do movimento aparente”119. 118 Idem, ibidem, p.622. Grifo meu. Importa notar, nessa passagem, como Marx vincula o pensamento científico ao ponto de vista de classe. “Todos esses fenômenos – continua o pensador alemão – parecem contradizer tanto a determinação do valor pelo tempo de trabalho como a natureza da maisvalia consistente em mais-trabalho não pago. Na concorrência aparece, pois, tudo invertido. A figura acabada das relações econômicas, tal como se mostra na sua superfície, em sua existência real e portanto também nas concepções mediante as quais os portadores e os agentes dessas relações procuram se esclarecer sobre as mesmas, difere consideravelmente, sendo de fato o inverso, o oposto, de sua figura medular interna, essencial mas oculta, e do conceito que lhe corresponde”. Id. O capital: crítica da economia política. Livro III. São Paulo: Nova Cultural, 1985/1986 (Os economistas, Volume IV), p.159/160. 119 Idem, O capital. Livro III. São Paulo: Nova Cultural, 1985, (Os economistas, Volume IV), p.234. Grifo meu. “O autor de Observations e S. Bailey inquinam Ricardo de ter convertido o caráter relativo do valor de troca em algo absoluto. Ricardo, ao contrário, reduz essa relatividade aparente que essas coisas, diamantes e pérolas, por exemplo, possuem como valores de troca. É verdadeira a relação oculta por trás dessa aparência, a relação existente entre elas como meras expressões do trabalho humano. Se os adeptos de Ricardo respondem a Bailey de modo impetuoso mas não convincente, foi apenas
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Karel Kosik, com base nos princípios epistemológicos desenvolvidos por Karl Marx, aprofunda a análise da relação existente entre aparência e essência em sua obra, Dialética do concreto. A apropriação da realidade por parte do cientista deve distinguir entre “representação” e “conceito” da coisa, como duas qualidades da práxis humana. O autor alerta para o fato de que a observação comum, o trato prático-utilitário da realidade, faz com que o indivíduo crie suas próprias representações, elaborando toda uma sorte de noções que captam apenas o aspecto fenomênico da realidade. Alaôr Caffé Alves, tratando dos problemas epistemológicos relacionados à pesquisa do Estado, ensina: “Por esta linha, rejeitamos a perspectiva do empirismo por considerar que o conhecimento científico não pode se limitar a mostrar muitos casos de um fenômeno, a compará-los uns com os outros e a fixar seus elementos coincidentes; na verdade, o que importa é chegar à lógica do fenômeno, às suas leis internas, às condições necessárias de sua existência”120. Para Kosik, esse conjunto de fenômenos apreendidos pela aparência, desde uma perspectiva meramente prático-utilitária, cotidiana, constitui o que denominou pseudoconcreticidade: “O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes,
porque não encontraram no mestre nenhum esclarecimento sobre a íntima conexão entre valor e sua forma, o valor de troca”. Id. O capital. Livro I. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.105. Nota de rodapé nº36. Grifo meu. “A inadequação entre existência e a essência – explica Herbert Marcuse – pertence ao cerne mesmo da realidade. Se a análise devesse se confinar às formas em que a realidade aparece não poderia apreender a estrutura essencial a partir da qual se originam essas formas e sua inadequação. A explanação da essência do capitalismo requer que se façam abstrações provisórias daqueles fenômenos que possam ser atribuídos a uma forma de capitalismo contingente e imperfeita”. MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. Op. cit., p.262. 120 ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. Op. cit., p.36.
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assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade”121. O mundo fenomênico tem sua ordem própria, muitas vezes oposta à essência dos fenômenos. Entretanto, isso não significa que um e outro sejam completamente apartados e diferentes. “A realidade é a unidade do fenômeno e da essência”122. Portanto, o início da pesquisa científica deve guardar absoluta atenção, porquanto o cientista, “já antes de iniciar qualquer investigação – adverte Kosik –, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, ‘coisa em si’, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente”123. O que confere aos fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é sua existência por si mesma, mas a independência com que se manifestam. Destruir o falso concreto significa demonstrar o caráter “ilusório” – uma ilusão real, diga-se de passagem – dessa pretensa independência, pesquisando a lógica interna, a relação estrutural entre aparência e essência. Tais observações vão ao encontro dos apontamentos elaborados por Godelier acima citados. Esse pensador também põe em relevo a importância que Marx atribuiu à compreensão da “estrutura” da coisa, como já foi salientado: “A leitura dos maiores textos de Marx nos revela como seu intento primário foi a análise da ‘estrutura’ das relações sociais: por exemplo, as estruturas econômicas ou as estruturas políticas da sociedade. O que significa, para Marx, o termo ‘estrutura’? (...) Para Marx, portanto, o estudo das estruturas sociais é o estudo de um conjunto de elementos, ou de relações, ligados mediante um vínculo de mútua dependência. Trata-se, porém de uma ligação provisória, que só se reproduz dentro de certos limites”124.
121 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Op. cit., p.15. 122 Idem, ibidem, p.16. 123 Id., ibid., p. 17. 124 GODELIER, Maurice. “O marxismo e as ciências do homem”. In: História do Marxismo. Volume 11. Op. cit., p.363. O trecho citado dá a impressão de que o autor efetua uma análise “estruturalista”. A leitura de todo o artigo também
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Os elementos acima alinhavados permitem concluir que o princípio metodológico norteador da pesquisa científica apta a destruir o falso concreto dentro do qual se inserem as categorias que expressam as relações sociais submersas na estrutura do modo de produção capitalista é o da totalidade concreta em movimento125. Trata-se de identificar, na dialética, seu nódulo racional, afastando o contorno místico a que o idealismo a relegou. O princípio da totalidade concreta em movimento permite que o pensamento assimile o que é próprio da realidade, ou seja, o relacionamento e o movimento. Tudo se relaciona com tudo e tudo está em movimento126. O relacionamento determina a verdade de cada ente, visto que nenhum ente é, por si mesmo. O significado e a verdade prendem-se, dessa maneira, à conexão com o todo no momento presente e no curso do processo em que está inserido. É a compreensão da realidade como movimento, em um todo de criação e superação; cada forma, como expressão determinada de um aspecto da realidade, apenas pode ser apreendida nesse contexto de existência e superação. Assim, cada parte relaciona-se com o todo e vice-versa, de maneira que a totalidade concreta transforma-se em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos. “Assim – adverte Alaôr Caffé Alves, a propósito do estudo da norma jurídica –, se cada coisa se define e existe pela relação com outras, compreende-se que a verdade é o todo em
leva, a meu ver, a essa perspectiva. Entretanto, aproprio-me do texto com o cuidado de afastar os elementos e os sentidos estruturalistas ali presentes. 125 “O princípio da totalidade como categoria metodológica obviamente não significa um estudo da totalidade da realidade, o que seria impossível, uma vez que a totalidade da realidade é sempre infinita, inesgotável. A categoria metodológica da totalidade significa a percepção da realidade social como um todo orgânico, estruturado, no qual não se pode entender um elemento, um aspecto, uma dimensão, sem perder sua relação com o conjunto”. LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 17ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2006, p.16. 126 “A verdade é seu próprio movimento dentro de si mesma”. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2005, p.54.
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movimento, a totalidade; cada ente adquire sentido dentro da totalidade como processo, pelas propriedades e dinamicidade que possui dentro de um todo, perdendo-as se houver separação da referida totalidade”127. Nesse ponto da exposição, devo colocar em destaque uma constatação epistemológica de extrema relevância para o presente trabalho: a “verdade” de cada ente apenas pode ser alcançada desde que ele (o ente) seja considerado em um movimento dialético com o todo dentro do qual está inserido. Suas características específicas apenas podem ser rigorosamente apreendidas, desde que se leve em consideração os contextos diferentes e historicamente situados, particularizados no tempo e no espaço, com o cuidado de recordar a lição de Marx segundo a qual as categorias que se formam na (e expressam a) sociedade capitalista contém, também, a chave para a compreensão das sociedades passadas. Enfim, as determinações categoriais surgem do todo real em processo128.
127 ALVES, Alaôr Caffé. Linguagem, sentido e realidade da norma jurídica: dialética da norma jurídica. São Paulo, 1998. Tese de Livre Docência – Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, p. 13. 128 “Não me parece – explica Giannotti – haver dificuldades em afirmar que, para Marx, os agentes econômicos estão desenvolvendo ações com sentido, desde que esse sentido seja constituído na própria trama das relações sociais em que estão inseridos, tornando-se, por isso mesmo, compreensíveis para aqueles que os tomam do ponto de vista do conhecimento. Sentidos são então categorias objetivas, ‘formas de modos de ser, determinações de existência’ (G, 26; trad.,127) pelas quais os agentes se pautam, medem as forças produtivas que mobilizam. Mas, porque essas categorias, no modo de produção capitalista, estão ligadas à forma mercadoria, elas estão residindo de maneira direta ou indireta em produtos signos dos comportamentos que a elas se reportam. Acresce que esses produtos, que também são regras de comportamento, apresentam sentidos contraditórios (...) Mas, se emprego o conceito de ‘jogo de linguagem’, isso não implica que estou aderindo à filosofia de Wittgenstein no seu conjunto, a não ser neste ponto importante: os signos possuem sentido segundo a forma pela qual se articulam entre si e se ligam a atividades discriminadoras, formando assim padrões que determinam comportamentos corretos e incorretos”. GIANNOTTI, José Arthur. Certa herança marxista. Op. cit., p.128/129.
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O ponto de vista da totalidade concreta em movimento é o que permite a descoberta da realidade nas suas leis íntimas, revelando, sob a superfície do fenômeno – sua aparência ou mediações de segunda ordem –, as conexões internas essenciais – as formas-núcleo. Assim, para que seja destruído o falso concreto pelo qual se apresenta o objeto do estudo científico, deve-se compreender que a realidade, considerada em sua totalidade, transforma-se em “estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos”129. “Princípio metodológico da investigação dialética da realidade social – explica Karel Kosik – é o ponto de vista da totalidade concreta, que antes de tudo significa que cada fenômeno apenas pode ser compreendido como momento do todo. Um fenômeno social é um fato histórico na medida em que é examinado como momento de um determinado todo; desempenha, portanto, uma função dupla, a única capaz de fazer dele efetivamente um fato histórico: de um lado definir a si mesmo, e de outro, definir o todo; ser ao mesmo tempo produtor e produto; ser revelador e ao mesmo tempo determinado; ser revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo; conquistar o próprio significado autêntico e ao mesmo tempo conferir sentido a algo mais. Esta recíproca conexão e mediação da parte e do todo significam a um só tempo: os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e concreticidade”130. Não parece difícil compreender que um dado objeto de estudo científico, uma relação social como a troca de mercadorias, por exemplo, considerada isoladamente, fora do contexto produtivo e reprodutivo dentro do qual está inserida, permanece uma simples abstração, afastando-se da concreticidade que poderia adquirir caso fosse considerada num processo sócio-histórico específico, como um momento que haure seu sentido do todo, ao mesmo tempo em que confere sentido ao todo. 129 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Op. cit., p.44. 130 Idem, ibidem, p.49. Grifo meu, exceto em “dupla”.
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Conhecer o real é conhecer o lugar ocupado por um fato ou conjunto de fatos na totalidade do próprio real. O processo de concretização, portanto, procede do todo para as partes e das partes para o todo; das contradições para a totalidade e da totalidade para as contradições. É esse movimento recíproco que elucida e dá concreticidade ao conceito, tornando-o não uma simples abstração, mas um concreto pensado. Nesse sentido, uma das passagens epistemológicas mais clássicas de Marx: “O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, a unidade da diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado, e não apenas o ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação”131. Karel Kosik resume a totalidade concreta em movimento, como método de apreensão da realidade, no seguinte processo indivisível cujos momentos são: destruição da pseudoconcreticidade; conhecimento do caráter histórico do fenômeno; e conhecimento do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno. “Se o conhecimento não determinou a destruição da pseudoconcreticidade – insiste Kosik –, se não descobriu, por baixo da aparente objetividade do fenômeno, sua autêntica objetividade histórica, assim confundindo a pseudoconcreticidade com a concreticidade, ele se torna prisioneiro da intuição fetichista, cujo produto é a má-totalidade”132. A destruição do falso concreto, por isso, é fundamental para a análise científica de qualquer objeto. A falsa totalidade (ou má totalidade) pode surgir da ausência de destruição da pseudoconcreticidade, levando a concepções estruturalistas, por exemplo, que concebem o todo acima e distanciado das partes e vice-versa. Nesse ponto, preciso chamar a atenção do leitor para o seguinte: ao situar o objeto deste estudo – A teoria geral do direito e o marxismo – no interior dessa perspectiva, podemos compreender com mais 131 MARX, Karl. “Introdução à crítica da economia política”. In: Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.248. 132 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Op. cit., p.61.
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rigor a amplitude alcançada pelo problema proposto no início deste trabalho. Isto é, se a troca de mercadorias revela a forma jurídica em sua pureza, constituindo, portanto, o ponto de partida para a construção da teoria geral do direito, é necessário submeter, também a forma mercadoria, ao processo epistemológico de concretização. Caso contrário, trabalharemos sobre uma forma alienada e alcançaremos apenas a má totalidade. Se a troca de mercadorias é uma mediação de segunda ordem, a categoria científica que a reflete deve dar conta dessa problemática; se não tomarmos esse cuidado, as categorias jurídicas elaboradas a partir dessa premissa estarão também no terreno do falso concreto. Essa compreensão leva à necessidade de concretizar a categoria que exprime a forma mercadoria, situando-a no contexto metodológico da totalidade concreta em movimento. É preciso também situar a troca no contexto do processo produtivo dentro do qual está inserida e constitui um momento dialético. Temos, finalmente, que perquirir como se dá a relação dessa forma predominantemente econômica com as formas políticas, mais precisamente, com o Estado. Isso é fundamental para a elaboração científica do direito. O processo de destruição do falso concreto, a partir do qual a troca de mercadorias foi apreendida por Pachukanis, representa a tentativa de oferecer uma resposta aos críticos que o acusam de ter olvidado questões substanciais para a compreensão do direito, como o conteúdo das relações jurídicas, o “circulacionismo” de sua teoria, a distinção entre direito público e privado, o problema da “extinção” definitiva da forma jurídica, entre outras.
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03. FORMA MERCANTIL E FORMA JURÍDICA
3.1. O direito e a mercadoria: aspectos elementares da teoria de Pachukanis A aplicação dos princípios metodológicos desenvolvidos por Karl Marx ao campo da teoria geral do direito fundamentou a aproximação efetuada por Pachukanis entre a forma mercantil e a forma jurídica. Ora, no prefácio de Contribuição à crítica da economia política, o filósofo alemão alerta para o fato de que as formas jurídicas e estatais não podem ser compreendidas por si mesmas, ao contrário, devem ser inseridas no interior da sociedade civil, cuja anatomia deve ser procurada na economia política. Por outro lado, anos mais tarde, Marx iniciava sua obra-prima, O capital, pelo estudo da mercadoria, considerada por ele a forma elementar da riqueza na sociedade capitalista133. O procedimento metodológico utilizado por Pachukanis, seguindo uma trilha que conduziria do simples ao complexo e do abstrato ao concreto, ainda que tomado isoladamente, indicaria a anatomia
133 “A célula econômica da sociedade burguesa é a forma mercadoria, que reveste o produto do trabalho, ou a forma de valor assumida pela mercadoria”. MARX, Karl. O capital. Livro I. Prefácio à 1ª edição. Op. cit., p.16. “Seja como for, negligenciar as análises que Marx havia colocado no início da sua principal obra foi uma característica constante de todas as variantes do marxismo tradicional; as ruínas dessa tendência constituem hoje mais uma razão que deve incitar-nos a interessarmo-nos por aquilo que ela negligenciou”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.24.
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da mercadoria como ponto de partida para o estudo do direito. O próprio Marx, contudo, em O capital, aproxima decisivamente a forma mercantil da forma jurídica, o que confere ao ponto de partida do autor russo importância especial: “Não é com os pés que as mercadorias vão ao mercado – inicia Marx o segundo capítulo –, nem se trocam por decisão própria. Temos, portanto, que procurar seus responsáveis, seus donos. As mercadorias são coisas; portanto, inermes diante do homem. Se não é dócil, pode o homem empregar a força, em outras palavras, apoderar-se delas. Para relacionar essas coisas, umas com as outras, como mercadorias, têm seus responsáveis de comportar-se, reciprocamente, como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que um só se aposse da mercadoria do outro alienando a sua, mediante o consentimento do outro, através, portanto, de um ato voluntário comum. É mister, por isso, que reconheçam, um no outro, a qualidade de proprietário privado. Essa relação de direito, que tem o contrato por forma, legalmente desenvolvida ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo da relação jurídica ou de vontade é dado pela própria relação econômica”134. Essa aproximação não se encontra apenas em O capital. “No Direito Romano – explica o pensador alemão nos Grundrisse – o servo é, então, corretamente definido como aquele que não pode entrar no processo de troca com o propósito de adquirir algo para si próprio (ver as Institutas). Consequentemente, fica igualmente claro que, embora esse sistema legal corresponda a um estado social no qual a troca não era, de jeito algum, desenvolvida, havia um certo desenvolvimento em uma esfera limitada; este que tornou possível
134 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.109. Grifo meu. Em alemão, esse último trecho: “Dies Rechtsverhältnis, dessen Form der Vertrag ist, ob nun legal entwickelt oder nicht, ist ein Willensverhältnis, worin sich das ökonomische Verhältnis widerspiegelt. Der Inhalt dieses Rechts- oder Willensverhältnisses ist durch das ökonomische Verhältnis selbst gegeben”. Idem. Das Kapital: Kritk der politischen Ökonomie. Berlim, Alemanha: Dietz Verlag, 1962, p.99.
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estabelecer os atributos da pessoa jurídica, precisamente os do indivíduo envolvido em um processo de troca, antecipando, dessa maneira, (nos seus aspectos básicos), o fato de que as relações jurídicas da sociedade industrial teriam necessariamente que se posicionar contra a sociedade medieval. Por fim, o desenvolvimento deste direito coincide completamente com a dissolução da comunidade Romana”135. A adequada compreensão da teoria pachukaniana do direito passa pela assimilação dos apontamentos efetuados por Marx quanto ao desenvolvimento das relações jurídicas. Nessas poucas passagens fica claro que a esfera das trocas de mercadorias é, simultaneamente, o palco donde surgem os atributos jurídicos dos portadores das mercadorias. Para que o circuito de trocas mercantis desenvolva-se plenamente – o que é pressuposto do capitalismo – é necessário que os portadores de mercadorias reconheçam-se, uns aos outros, reciprocamente, como legítimos proprietários, livres e iguais, de maneira que a apropriação do produto alheio ocorra na forma de mútua vontade aquiescente. Nos casos específicos de troca de mercadorias a forma assumida pela relação de direito é o contrato. Este, por sua vez, segundo Marx, pode ser reconhecido legalmente ou não. Aqui se situa, dentre outras peculiaridades do pensamento pachukaniano, a origem da concepção segundo a qual a lei, considerada por si mesma, isoladamente, não representa uma forma jurídica par excellence, mas apenas quando seu 135 Idem. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy (Rought Draft). Londres, Inglaterra: Penguin Books, 1973, p.245/246. No original: “In Roman law, the servus is therefore correctly defined as one who may not enter into exchange for purpose of acquiring anything for himself (see the Institutes). It is, consequently, equally clear that although this legal system corresponds to a social state in which exchange was by no means developed, nevertheless, in so far as it was developed in a limited sphere, it was able to develop the attributes of the juridical person, precisely of the individual engaged in exchange, and thus anticipate (in its basics aspects) the legal relations of industrial society had necessarily to assert against medieval society. But the development of this right itself coincides completely with the dissolution of the Roman community”.
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conteúdo eleva-se sobre um conflito de interesses opostos, ou seja, sobre uma relação jurídica que assuma a forma contratual136. Uma primeira indagação pode, desde logo, ser formulada: ao aproximar a forma do direito à forma mercantil, Marx e Pachukanis estariam desprezando toda a importância e influência da organização política na constituição e no desenvolvimento das formas jurídicas? Obviamente, não. Parece desnecessário lembrar que as relações econômicas, jurídicas, políticas, entre outras, não se desenvolvem por si mesmas e nem mesmo isoladamente. Todas fazem parte da totalidade concreta em movimento e devem ser explicadas desde essa perspectiva. Se Marx e Pachukanis não deitaram maior atenção a essa conexão específica, isso ocorreu em virtude de opções metodológicas ou problemas históricos, parte dos quais foram explicitados anteriormente, e não porque considerassem o direito um mero reflexo da economia, como sói asseverar o marxismo vulgar. Retomando o fio da meada, o portador da mercadoria, ao aliená-la no mercado, tem reconhecida concretamente sua qualidade de livre proprietário, cuja vontade habita na própria coisa, colocando-se numa
136 “Uma das premissas fundamentais da regulamentação jurídica é, assim, o antagonismo dos interesses particulares ou privados. Este antagonismo é tanto condição lógica da forma jurídica quanto causa real de evolução da superestrutura jurídica. A conduta dos homens pode determinar-se pelas regras mais complexas, mas o momento jurídico desta regulamentação iniciase onde começam as diferenças e as oposições de interesses (...) A unidade de fim, ao contrário, representa a condição da regulamentação técnica. Por essa razão é que as normas jurídicas relativas à responsabilidade das estradas de ferro pressupõem direitos privados, interesses privados diferenciados, enquanto que as normas técnicas de tráfego ferroviário pressupõem um fim unitário, por exemplo, o da capacidade de rendimento máximo (...) Tomemos um outro exemplo: a cura de um doente pressupõe uma série de regras, a serem observadas tanto pelo doente como pelo pessoal médico. Na medida em que tais regras sejam estabelecidas do ponto de vista unitário do restabelecimento do doente, elas têm um caráter técnico (...) O jurista nada tem que fazer aqui.” PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.44. Grifo meu.
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relação de igualdade material frente ao vendedor ou comprador de seu produto. Essa isonomia não advém da “ideia” da igualdade, mas do fato de que portam, cada qual, um equivalente137. A forma do valor é uma forma de equivalência em que os dispêndios de trabalhos humanos concretos e, por isso, diferentes entre si, igualam-se, representando trabalho abstrato. O trabalho abstrato, como se sabe, é o fundamento alienado do capital. A forma do valor, diferente do valor em si, é a relação concreta que realiza, por um lado, o produto como mercadoria e, por outro, o portador como sujeito de direito. A relação jurídica existe concretamente nessa particular relação social138. O valor e o valor de troca
137 “Nota – Entram os homens em relações contratuais (dádivas, trocas, negócios) por uma necessidade que é tão racional como aquela que os faz proprietários (§45º, nota). Para a consciência deles, o que motiva o contrato é a satisfação de uma exigência geral, o gosto ou a utilidade, mas em si é a razão, isto é, a ideia da personalidade livre e realmente existente (quer dizer: como pura vontade). O contrato supõe que os contratantes se reconheçam como pessoas e proprietários; como se trata de uma relação do espírito objetivo, nela está contido o suposto fator de validade (§35º e 57º, nota)”. HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.70. Nota ao §71. Grifo meu. Essa nota de Hegel demonstra o vínculo entre seu pensamento e o de Marx. O trecho põe em evidência a relação íntima existente entre a forma do contrato e a relação de propriedade. Perceba-se que a dialética de Hegel, como afirma Marx no posfácio à segunda edição de O capital, apresenta a forma geral do movimento “de maneira ampla e consciente”. Entretanto, o “pô-la de cabeça para cima”, descobrindo dentro do “invólucro místico” a “substância racional”, permite compreender que esse movimento – aqui, em particular, dos contratantes – não resulta da “razão” ou da “ideia da personalidade livre e realmente existente”, mas sim, pelo contrário, das exigências concretas, materiais, de realização do valor pela troca de mercadorias. 138 “O respectivo valor exprime-se como sendo diferente de seu próprio valor de uso. É preciso ter em mente a diferença entre valor e valor de troca: o valor, que permanece abstracto, não perceptível, exprime-se num valor de troca perceptível, designadamente a mercadoria com a qual a primeira mercadoria é trocada”JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p. 30.
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são formas históricas, ou seja, aparecem em uma específica forma social de se produzir. Marx ressalta a importância dessa distinção: “A forma do valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata, mais universal, do modo de produção burguês, que, através dela, fica caracterizado como uma espécie particular de produção social, de acordo com sua natureza histórica. A quem considere esse modo de produção a eterna forma natural da produção social, escapará, necessariamente, o que é específico da forma do valor e, em consequência, da forma mercadoria dos seus desenvolvimentos posteriores, a forma dinheiro, a forma capital etc”139. Ao relacionar o valor e o valor de troca à forma jurídica Pachukanis faz ressaltar o caráter histórico do próprio direito. Além do mais, possibilita a compreensão, tão exata quanto possível, de sua perspectiva teórica segundo a qual não há que se falar em um eventual direito proletário, mas, tão-somente, da extinção do direito. Para ser mais preciso: o valor e o valor de troca imprimem ao modo de produção capitalista sua característica histórica específica. Ademais, como vimos, o valor e o valor de troca são também os portadores da forma jurídica como o “outro lado da moeda”. Logo, a extinção dos primeiros acarreta, como consequência necessária, a extinção desta última. O fim do valor é o fim do direito140. A forma de valor do produto do trabalho, como afirma Marx, é a forma mais abstrata, mais universal, do modo de produção capitalista e é, também, a relação da qual exsurge a forma jurídica. Justamente por isso, na mesma medida em que assume a forma de uma “enorme acumulação de mercadorias”, a sociedade capitalista assume também, por outro lado e simultaneamente, a forma de uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas. “A troca de mercadorias – explica Pachukanis – pressupõe uma economia atomizada. O vínculo entre as diferentes unidades econômicas, privadas e isoladas, é mantido a todo o momento graças aos contratos que celebram. A relação jurídica entre os 139 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.102. Nota de rodapé nº 32. Grifo meu. 140 Cf. a respeito, as importantíssimas observações de Marx em sua Crítica do programa de Gotha.
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sujeitos não é mais do que o reverso da relação entre os produtos do trabalho tornados mercadorias”141. Para o pensador russo, a relação jurídica concreta prevalece sobre a norma posta pelo Estado, abrindo uma via de discussão com os positivistas, nomeadamente Kelsen, historicamente conhecida. Para esse último, por sua vez, qualquer fato apenas haure seu sentido jurídico porque uma norma estatal, previamente posta, qualifica-o como tal142. O conflito entre ambas as posições não poderia ser mais evidente. O que está no seio dessa problemática, contudo, não é apenas a querela acadêmica que opõe os positivistas às demais correntes críticas da filosofia do direito. Não se trata apenas da luta intelectual consistente em validar ou não a proposição segundo a qual “o Estado põe o direito”. A dialética entre relação e norma está no centro mesmo do materialismo histórico e traduz, em última análise, o problema das relações recíprocas entre “superestrutura” política e “superestrutura” jurídica. “Considerando, pois, – alerta Pachukanis –, sob todos os pontos de vista, a norma como momento primário, então, antes de analisarmos qualquer superestrutura jurídica, nós temos que pressupor a existência de uma autoridade que formula as normas, em
141 PACHUKANIS. E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.47. 142 “O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a este ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação (...) A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma (...) Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.04/05.
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outros termos, a existência de uma organização política. Devemos concluir daí que a superestrutura jurídica é uma consequência da superestrutura política”143. O pensador russo, entretanto, recusa tal pressuposição. Pachukanis assinala que, para Marx, as relações de propriedade estão em contato tão estreito com as relações de produção que não seriam mais do que a expressão jurídica destas últimas144. A superestrutura política e o Estado seriam, assim, “um momento derivado e secundário”145. Esse posicionamento teórico de Pachukanis é fundamental porque desmistifica um pressuposto importante para a filosofia tradicional do direito, segundo o qual o direito seria meramente uma expressão normativa estatal. Assim, ele arremata: “O poder do Estado confere clareza e estabilidade à estrutura jurídica, mas não cria as premissas, as quais se enraízam nas relações materiais, isto é, nas relações de produção”146. O importante dessa perspectiva é que ela pode ser encontrada já nos textos de juventude de Marx. “A constituição do Estado político – ensina Marx em A questão judaica – e a dissolução da sociedade burguesa nos indivíduos independentes – cuja relação se baseia no direito, ao passo que a relação entre os homens dos estamentos e dos grêmios se fundava no privilégio – se processa num só e mesmo
143 PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.52. 144 Para Cerroni, Pachukanis detém uma particular postura teórica que o diferencia sensivelmente de seus contemporâneos marxistas. Para o autor russo, as formas jurídicas e econômicas devem ser compreendidas como expressões simultâneas de um mesmo fato, de forma a eliminar a “aparente” seção, – tão cara ao marxismo tradicional – entre, de um lado, relação econômica e, de outro, jurídica: “Mas a sua investigação realiza, pelo menos, um progresso em relação a Stutchka, na medida em que reconstitui a relação economia-direito, não só como uma relação historicamente determinada, mas ainda como um nexo unitário que estrutura uma mesma e global relação social”. CERRONI, Umberto. O pensamento jurídico soviético. Póvoa de Varzim, Portugal: Publicações Europa-América, 1976, p.69. 145 PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.52. 146 Idem, ibidem, p.55.
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ato”147. “Não é, pois, – continua a explicação, agora com Engels em A sagrada família –, o Estado que mantém coesos os átomos da sociedade burguesa, mas eles são átomos apenas na representação, no céu de sua própria imaginação ... na realidade, no entanto, eles são seres completa e enormemente diferentes dos átomos, ou seja, nenhuns egoístas divinos, mas apenas homens egoístas. Somente a superstição política ainda pode ser capaz de imaginar que nos dias de hoje a vida burguesa deve ser mantida em coesão pelo Estado, quando, na realidade o que ocorre é o contrário, ou seja, é o Estado que se acha mantido em coesão pela vida burguesa”148. Uma vez que as modernas relações de domínio, ou relações políticas, elevam-se sobre uma base econômica caracterizada pela predominância da forma mercantil, ou, o que constitui o outro lado da moeda, pela hegemonia das relações de direito, pode-se concluir que “a relação jurídica é diretamente gerada pelas relações materiais de produção”149. “Concluímos daí – insiste Pachukanis – que não é necessário partir do conceito de norma como lei autoritária externa para analisar a relação jurídica em sua forma mais simples. É suficiente fundamentar a análise numa relação jurídica ‘cujo conteúdo é dado pela própria relação econômica’ e, seguidamente, examinar a forma ‘legal’ dessa relação jurídica como um caso particular”150. Convido o leitor a uma reflexão mais demorada sobre essa última constatação. Note que Pachukanis não despreza a norma autoritária estatal como possível expressão do direito. O que coloca em evidência é o fato de que a forma “legal” apenas pode ser considerada como “caso particular” de uma relação jurídica quando se eleva sobre essa mesma relação. Podemos, ademais, voltar à afirmação pachukaniana
147 MARX, Karl. A questão judaica. 4ª ed. São Paulo: Centauro Editora, 2002, p.41. 148 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família (ou a crítica da crítica crítica): contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p.139. 149 PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.57. 150 Idem, ibidem, p.57.
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segundo a qual a lei, considerada isoladamente, não representa a forma jurídica par excellence, posto que seu conteúdo deve abrigar, justamente, um conflito de interesses opostos. Essa “dicotomia”, entre relação jurídica concreta e norma autoritária estatal também evidencia, segundo Pachukanis, toda a problemática existente entre direito subjetivo e direito objetivo. Como se sabe, para Kelsen, por exemplo, o direito subjetivo sequer existe, devendo ser compreendido como mera “aparência” distorcida do direito objetivo151. Tal ponto de vista é resultado, obviamente, da perspectiva lógico-normativa radical do mesmo152. Pachukanis 151 “O entendimento da essência do direito subjetivo é dificultada pelo fato de com esta palavra serem designadas várias situações muito diferentes umas das outras. A uma delas se refere a afirmação de que um indivíduo tem o direito de se conduzir de determinada maneira. Com isso pode não se significar mais que o fato negativo de que a tal indivíduo não é proibida juridicamente a conduta em questão, de que, neste sentido negativo, tal conduta lhe é permitida, de que ele é livre para realizar ou omitir determinada ação. Com essa afirmação, porém, pode também significar-se que um determinado indivíduo se encontra juridicamente obrigado, ou mesmo, que todos os indivíduos estão juridicamente obrigados a conduzirem-se por determinada maneira diretamente em face de um outro indivíduo, o indivíduo que é titular do direito (...) Esta situação, designada como ‘direito’ ou ‘pretensão’ de um indivíduo, não é porém, outra coisa senão o dever do outro ou dos outros. Se, neste caso, se fala de um direito subjetivo ou de uma pretensão de um indivíduo, como se este direito ou esta pretensão fosse algo de diverso do dever do outro (ou dos outros), cria-se a aparência de duas situações juridicamente relevantes onde só uma existe.” KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p.141/142. Pachukanis, entretanto, insurge-se contra a aparente supressão desse dualismo: “Partindo desta concepção teremos, então, de um lado, como norma a regra imperativa, autoritária e, de outro, a obrigação subjetiva que corresponde a essa regra e foi criada por ela. O dualismo parece radicalmente suprimido; esta supressão, contudo, é simplesmente aparente”. PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.58. 152 “Com efeito, quando confrontamos uns com os outros os objetos que, em diferentes povos e em diferentes épocas, são designados como ‘Direito’, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de condutas humanas.
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direciona sua argumentação justamente contra a posição “daqueles para quem o direito deve ser compreendido exclusivamente como norma objetiva”153. Tratando do direito à propriedade privada, o autor russo ressalta que a tentativa de caracterizá-lo como uma série de proibições dirigidas a terceiros, resulta em uma construção lógica mutilada e deformada; a intenção de transformá-lo em uma obrigação social, ressaltando uma eventual “função social”, por sua vez, nada mais seria do que mera hipocrisia. Nesse sentido, o direito que assiste ao proprietário é diametralmente oposto à obrigação que lhe pode ser eventualmente imposta. Isso porque o direito subjetivo corresponde aos interesses materiais de cada proprietário, que existem independentemente de qualquer regulamentação externa, consciente, da vida social. “O sujeito – explica Pachukanis – como portador e destinatário de todas as pretensões possíveis, o universo de sujeitos ligados uns aos outros por pretensões recíprocas, é que forma a estrutura jurídica fundamental que corresponde à estrutura econômica, isto é, às relações de produção de uma sociedade alicerçada na divisão social do trabalho e na troca (...) A organização social que dispõe dos meios de coação é a totalidade concreta a que devemos nos conduzir depois de termos concebido previamente a relação jurídica em sua forma mais pura e mais simples. A obrigação, enquanto consequência de um imperativo ou de um comando, aparece, por conseguinte, no estudo da forma jurídica, como um momento que concretiza e complica as coisas (...) Em sua forma mais abstrata e mais simples, a obrigação
Uma ‘ordem’ é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p.33. 153 PACHUKANIS. E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.58.
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jurídica deve ser considerada como o reflexo e a contrapartida da pretensão jurídica”154. Pachukanis arremata seu ponto de vista salientando que a relação jurídica não mostra apenas o direito em seu movimento real, mas o revela também como categoria lógica. Sim, porque a norma, isto é, a prescrição imperativa, considerada isoladamente, é um elemento caracterizador da moral, da ética, da estética, da técnica etc. Assim, o elemento específico da norma jurídica está em pressupor uma pessoa munida de “direitos”. Considerar o momento da regulamentação externa como o momento lógico fundamental não representaria nada mais, segundo o autor russo, do que a ascendência e hegemonia dos interesses do capital monopolista, em face da livre concorrência que caracterizou o capitalismo em suas origens. Essa dicotomia também está presente na aparente “cisão”, tantas vezes ressaltada por Karl Marx, entre sociedade civil e Estado político. Na primeira, predomina o homem burguês, egoísta; na segunda, o interesse público abstrato. Assim, desemboca-se na oposição, já mencionada neste trabalho155, entre direito público e direito privado. Faço, contudo, uma afirmação que poderá surpreender o leitor mais apegado a preconceitos teóricos: Pachukanis não nega a existência do direito público, pelo contrário, afirma-a. “A separação do direito em público e em direito privado – explica o pensador russo – caracteriza esta forma jurídica, tanto do ponto de vista lógico como do ponto de vista histórico. Se negamos esta oposição, de modo algum nos elevaremos acima daqueles juristas práticos ‘retrógrados’, mas, ao contrário, seremos coagidos a servirmo-nos daquelas mesmas definições formais e escolásticas com as quais eles operam”156. Ora, a forma jurídica predomina em uma sociedade caracterizada pela hegemonia das relações mercantis, ou seja, pela prevalência de possuidores privados, independentes entre si, cujas vontades 154 Idem, ibidem, p.60. O contraste com a posição de Kelsen não poderia ser mais evidente. 155 Conferir o item 1.1, “Delimitação do objeto e verificação do problema”. 156 PACHUKANIS, E.B. Op. cit., p.65.
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devem aquiescer reciprocamente para que a oposição de interesses seja composta, possibilitando, assim, a circulação de mercadorias e a acumulação de capital157. Dessa maneira, em maior ou menor medida, um conjunto amplo de relações sociais – muitas vezes alheias ao intercâmbio mercantil – acaba por encarnar essa característica específica, ou seja, passam a representar, ainda que apenas formal-
157 Incluindo, obviamente, a força de trabalho. Eu trato aqui a categoria “força de trabalho” como se faz tradicionalmente dentro do marxismo, ou seja, também como uma mercadoria. Entretanto, oportunamente, essa categoria será analisada não do ponto de vista predominantemente econômico – como fez Marx – mas do ponto de vista predominantemente jurídico. Então, demonstrarei como sua integração aos meios de produção pode ser considerada tudo, menos uma relação jurídica. Os limites do presente trabalho não admitem, ainda, tal aprofundamento, mas é lícito apontá-lo. “O modo de produção simples de mercadoria é a face exterior do círculo reflexionante do capital, penetra nesse círculo pelo lado exterior do excedente econômico, mas então suas categorias são redefinidas no seu circuito reflexionante. Dessa maneira, se num primeiro plano toda a sorte de dominação aparece como contrato, na forma mais desenvolvida a contratualidade é apenas a aparência de uma dominação a ser fundada na apropriação da mais-valia”. GIANNOTTI. José A. Certa herança marxista. Op. cit., p.169. Grifo meu. “Explica-se, desse modo, por que Hegel tomava as relações de propriedade, à primeira vista cinicamente, como expressões de um contrato entre vontades livres, e a propriedade como se fosse o terreno onde a liberdade viceja. Como ele desconhecia a mais-valia (pela qual Marx mais tarde demonstrará a exploração fundamental da sociedade moderna), enxergava as relações contratuais econômicas da sociedade civil pelos óculos da teoria do valor da economia política de seu tempo. De acordo com esta, como se sabe, tudo se passa como se houvesse um acordo livre entre as partes que intercambiam valores equivalentes. É o melhor dos mundos possíveis, onde as várias vontades individuais podem, automaticamente, encontrar conciliação no instituto da propriedade quantificada. Em Marx, a propriedade moderna, o capital, exprimirá relações contraditórias entre patrões e empregados que caracterizarão a sociedade burguesa. Em Hegel, ao contrário, a propriedade exprime relações igualitárias entre proprietários, o que caracteriza sua sociedade civil”. SAMPAIO, Benedicto A.; FREDERICO, Celso. Dialética e materialismo: Marx entre Hegel e Feuerbach. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2006, p.40.
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mente, o exercício de um “direito subjetivo” ou de uma “pretensão jurídica”158. Isso ocorre também com a forma estatal, que passa a expressar-se, concretamente, por intermédio da assunção formal de um “direito subjetivo” ou de uma “pretensão jurídica”. No entanto, a natureza da organização política, do Estado, não permite que os interesses “públicos” possam ser tutelados como ocorre no âmbito da sociedade civil. Pelo contrário, a finalidade da forma política, no capitalismo, é justamente oposta – o poder político visa à imposição de uma vontade sobre a outra e não à composição das mesmas. Dessa maneira, a imposição política estatal aparece como resultado do exercício de um direito subjetivo ou de uma pretensão jurídica. Em sua essência, contudo, não significa mais do que a implementação
158 “O sujeito egoísta, o sujeito jurídico e a pessoa moral são as três máscaras fundamentais utilizadas pelo homem da sociedade da produção mercantil. A economia das relações de valor possibilita-nos a compreensão da estrutura jurídica e moral, não como conteúdo concreto da norma jurídica ou moral, mas como a própria forma do direito e da moral (...) Os conceitos fundamentais da moral perdem assim seu significado se desligados da sociedade de produção mercantil e se tentamos aplicá-los a uma outra estrutura social. O imperativo categórico em nenhum caso é um instinto social, já que o seu destino essencial é o de ser ativo aí onde qualquer motivação natural, orgânica, supra-individual parece impossível. Aí onde exista entre os indivíduos uma estreita união emocional que amenize os limites do eu individual, não pode haver lugar para o fenômeno da obrigação moral. Se quisermos compreender esta categoria, é necessário partirmos não da união orgânica existente, por exemplo, entre mãe e filho ou entre a família e cada um de seus membros, mas sim do estado de isolamento. O ser moral é um complemento indispensável ao ser jurídico e os dois, por sua vez, são modos de relações entre produtores de mercadorias (...) As doutrinas morais são pretensiosas em querer transformar o mundo e de melhorá-lo, pois, na verdade, nada mais são do que um reflexo deformado, do que um aspecto deste mundo verdadeiro, aspecto que mostra justamente as relações humanas submissas à lei do valor. Não podemos nos esquecer de que a pessoa moral nada mais é que uma das hipóstases do sujeito trinitário; o homem como fim em si é somente um outro aspecto do sujeito econômico egoísta”. PACHUKANIS, E.B. Op. cit., p.105;107;109 (passim).
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coercitiva do domínio de classe. O “direito subjetivo público”, por isso, não pode surgir senão como algo efêmero e o Estado não pode ser compreendido – ao menos pela perspectiva científica – como uma “superestrutura” jurídica, podendo ser, quando muito, apenas “pensado” como tal159. Nesse ponto, é importante retomar uma perspectiva levantada no início. É necessário recordar que, para Marx, as mercadorias não podem ir sozinhas ao mercado, dependendo, pelo contrário, de seus possuidores; a normatividade “jurídica” surge desse acordo de vontades opostas e assume a forma contratual. Essa relação jurídica pode ser reconhecida legalmente ou não. A retomada dessa perspectiva marxiana é importante para compreender a concepção geral de Pachukanis sobre o direito público e não subestimá-la como sói ocorrer com análises mais apressadas. “É fácil provar – assinala Pachukanis – que a ideia da submissão incondicional a uma autoridade normativa externa não tem a mínima relação com a forma jurídica (...) Estes exemplos são suficientes para se concluir que quanto mais e de maneira coerente se aplica o princípio da regulamentação autoritária, que exclui toda a referência a uma vontade particular autônoma, mais restrito se torna o campo de aplicação da categoria direito”160.
159 “Pensado” no sentido de captado mentalmente a partir das formas fenomênicas aparentes. Assim, a teoria que afirma o caráter essencialmente jurídico da forma estatal não passa da expressão ideológica dos interesses do capital. À crítica marxista cabe o papel não de negar a aparência jurídica do Estado, mas de explicá-la, demonstrando a conexão com a essência política do mesmo, colocando em evidência, pois, a maneira historicamente específica por meio da qual a dominação política se expressa no modo de produção capitalista. 160 PACHUKANIS, E.B. Op. cit., p.61/62. Os exemplos mencionados por Pachukanis são o da formação militar e o da ordem jesuítica. Em ambos os casos, a normatividade vigente se assenta sobre um único princípio ativo e autônomo consistente na vontade do comandante. Pode-se, é certo, não concordar com a formulação pachukaniana que nega a tais exemplos de normatividade a caracterização de “jurídicas”, mas há que se ter em mente a concepção marxiana do direito formulada em O capital.
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A normatividade jurídica apenas pode ser compreendida como a normatividade oriunda de uma relação social concreta cuja forma exprima a oposição de duas vontades autônomas, reciprocamente aquiescentes, que compõem os interesses necessários à circulação de mercadorias e caracterizada, em última análise, pela troca de equivalentes. A relação social que exprime uma normatividade representativa de uma vontade única e autoritária distancia-se do direito. Portanto, retorno à citação pachukaniana utilizada no início do presente trabalho161 para afirmar que, no âmbito do Estado, o direito público apenas pode existir como reflexo da forma jurídica privada, ou, então, deixará de ser direito; não se sustenta amparado apenas na noção de norma imperativa posta de forma coativa pela organização política. É interessante notar, como afirma Pachukanis, que a sociedade capitalista caracteriza-se justamente pelo fato de que os interesses gerais destacam-se dos interesses privados e opõem-se a eles162, acabando por revestir, aparentemente, a forma do direito. É por isso que o autor russo afirma o direito público, mas com uma condição: “O conceito de ‘direito público’ não pode, ele próprio, desenvolver-se a não ser em seu movimento: aquele mediante o qual ele é continuamente repelido do direito privado, enquanto tende a determinar-se
161 Ver citação referente à nota de rodapé nº 41, à página 46. 162 Tal assertiva deve ser considerada com cuidado. Não é possível, nesse momento, trabalhar o conceito de Estado e aprofundar sua análise, o que extrapolaria os limites do presente trabalho. Entretanto, é necessário fazer consignar, ao menos de passagem, a importância da obra de Alaôr Caffé Alves, ao apontar como a “aparência” do Estado (de tutor do interesse “público”) é fundamental para que ele cumpra sua finalidade e seja o que é, sua “essência” (tutor dos interesses do sistema do capital como um todo, e não dos interesses dos capitalistas particulares). “Por isso, no plano da sociedade política, nossa demonstração se concentrará na tese de que o Estado aparece, no mundo fenomênico, precisamente como aquilo que não é; porém, esse modo negativo da aparecer, esse modo de não ser, é fundamental e necessário para que o Estado seja o que ele realmente é; ao ocultar sua essência, ele perfaz sua própria realidade na exata medida em que a oculta”. ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. Op. cit., p.19.
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como o seu oposto e através do qual regressa a ele como o seu centro de gravidade”163. O direito público, por isso, existe apenas na relação dialética com o direito privado. A atuação política estatal aparece concretamente como o exercício de um direito subjetivo ou de uma pretensão jurídica. Aparece como uma vontade “pública” oposta às vontades particulares. Em sua essência, contudo, não passa da implementação política das necessidades objetivas impostas pelo mecanismo de produção e reprodução econômicas do sistema do capital. A tentativa de fundamentar o direito público na “norma”, compreendida como vontade autoritária externa, descambará em construções artificiais, repletas de contradições internas. Ao mesmo tempo em que a relação jurídica desenvolve-se concretamente, revelando o direito em seu movimento real, os portadores de mercadorias, cujas vontades habitam as próprias coisas e cujos interesses opostos devem ser compostos na forma de normatividade contratual, surgem dessa específica relação com alguns atributos especiais, por assim dizer, “misteriosos”: propriedade, liberdade, igualdade, e, diria Marx, Bentham. O mistério é tão grande e enraízase tão profundamente nos alicerces da sociedade capitalista, que os primeiros artigos dos diplomas constitucionais e civis dos principais países ditos “evoluídos” têm quase que a obrigação de consagrá-lo. Toda essa gama de atributos que decorrem da esfera da circulação são arbitrariamente abstraídos pela filosofia tradicional do direito e passam a ser concebidos como um esquema a priori da vontade humana, traduzidos racionalmente no princípio da subjetividade jurídica, ou, para ser mais exato, na forma sujeito de direito164.
163 PACHUKANIS, E.B. Op. cit., p.65. 164 “Em princípio, o uso tradicional reporta-se à noção de direito subjetivo para identificar o sujeito em geral. A ideia de que se trata do portador do direito reporta-se à liberdade no sentido de autonomia (...) A base ideológica dessa concepção é fácil de perceber: trata-se de afirmar o sujeito como titular da propriedade privada enquanto instituição que cabe ao direito objetivo proteger e garantir.” FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas Jurídico, 2003, p.154.
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Para Pachukanis, pelo contrário, essa forma tem uma existência concreta e ínsita à relação jurídica material. Seu movimento expressa, ao fim e ao cabo, o movimento real da circulação de mercadorias. “Toda relação jurídica – explica o autor russo – é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o seu elemento mais simples, que não se pode decompor. É por essa razão que começaremos nossa análise pelo sujeito”165. A categoria sujeito de direito deve servir, pois, para o autor russo, como fundamento ao estudo da forma jurídica. E não é sem motivo, uma vez que, seguindo as orientações marxianas, fica fácil compreender que a categoria sujeito de direito é a abstração do conjunto de características e atributos místicos que acompanham os possuidores de mercadorias, quando se encontram, no mercado, para trocá-las. Quer dizer, a consideração recíproca de serem proprietários de seus produtos, livremente determinados, igualmente confrontados, cuidando, cada um, de sua pele. Para os representantes do direito natural, tais atributos seriam uma característica “humana”, ou seja, vinculada à essência do homem, encontrados por qualquer um que se disponha a procurar cuidadosamente (ou “cientificamente”) na seara da razão. Para os positivistas, pelo contrário, tal construção não passa de uma sombra do direito objetivo positivado pelo Estado, devendo ser mencionado apenas na medida em que auxiliar na construção da ciência do direito166.
165 PACHUKANIS. E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.68. 166 “Os conceitos personalísticos ‘sujeito jurídico’ e ‘órgão jurídico’ não são conceitos necessários para a descrição do Direito. São simplesmente conceitos auxiliares que, como o conceito de direito reflexo, facilitam a exposição. O seu uso somente é admissível quando se tenha consciência deste seu caráter. Revelá-lo é tarefa da Teoria Pura do Direito. Se também ela se serve destes conceitos, fá-lo no sentido aqui estabelecido (...) O conceito de um sujeito de Direito como portador (suporte) do direito subjetivo (no sentido de titularidade jurídica Berechtigung) é aqui, no fundo, apenas uma outra forma deste conceito de direito subjetivo que, no essencial, foi talhado pela noção de propriedade (...) Na verdade, ninguém pode conceder-se direitos a si próprio, pois o direito de um apenas existe sob o pressuposto do dever de outro, e uma tal conexão jurídica, de acordo com a ordem objetiva,
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Ora, a perspectiva marxista efetua a crítica dessas posições teóricas e busca decifrar a mística que envolve a figura sujeito de direito, voltando os olhos para a forma histórica expressa por essa categoria. Pachukanis salienta, então, o profundo vínculo existente entre a teoria do valor de Marx e a forma jurídica que se exprime pelo princípio da subjetividade jurídica: “A vida social desloca-se simultaneamente, por um lado, entre a totalidade de relações coisificadas, surgindo espontaneamente (como todas as relações econômicas: nível dos preços, taxa de mais-valia, taxa de lucros etc.), isto é, relações onde os homens não têm outra significação que não seja a de coisas, e por outro lado, entre totalidade de relações onde o homem não se determina a não ser quando é oposto a uma coisa, ou seja, quando é definido como sujeito. Essa é precisamente a relação jurídica. Estas são as duas formas fundamentais que originariamente se diferenciam uma da outra, mas que, ao mesmo tempo, se condicionam mutuamente e estão intimamente unidas entre si. Assim, o vínculo social, enraizado na produção, apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas; por um lado, como valor da mercadoria e, por outro, como capacidade do homem de ser sujeito de direito”167. Se as relações econômicas reinam sobre a vontade dos homens, que assumem dentro do circuito de valorização capitalista a forma de meras “personificações dos interesses do capital”168, há, por outro
apenas pode constituir-se, no domínio do direito privado, em regra através da manifestação concordante da vontade de dois indivíduos. E isso também somente na medida em que o contrato é assumido pelo Direito objetivo como fato criador do Direito, de tal forma que a regulamentação jurídica, em última análise, resulta precisamente deste Direito objetivo e não do direito subjetivo que lhe está subordinado. Sendo assim, também no direito privado não existe qualquer autonomia plena”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p.189/190. Grifo meu. 167 PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.72. Grifo meu. 168 “Como representante consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é donde sai e para onde volta o dinheiro. O conteúdo objetivo da circulação em causa – a expansão do
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lado, uma “compensação” para esses mesmos sujeitos sociais, no sentido de que suas vontades reinam juridicamente sobre as coisas. Estas se tornam mercadorias no ato específico da troca e, simultaneamente, seus portadores tornam-se sujeitos de direito169, dado que suas vontades devem ser respeitadas e preservadas. Para Pachukanis, vale relembrar, o Estado eleva-se sobre o circuito dessas relações e suas leis podem, no máximo, orientá-las num determinado sentido, mas nunca criá-las. Assim, a propriedade mística que acompanha a mercadoria sob a forma do valor, acompanha seu proprietário sob a forma de capacidade de se autodeterminar. O fetichismo da mercadoria completa-se com o fetichismo jurídico. As características dos possuidores de mercadorias, que ganham existência apenas nesses atos concretos de troca, são completamente abstraídas e reunidas em um conceito genérico. O idealismo jurídico pode afirmar peremptoriamente: “todo homem é sujeito de direito”. O desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção, acompanhado pela evolução das formas políticas reguladoras, reforça o conjunto de aparências que, espontaneamente, surge do modo capitalista de produção. O resultado é a perda do vínculo existente entre a categoria sujeito de direito e seu lastro material. O Estado passa a preencher de tal maneira os vários espaços das atividades econômicas e sociais, sua atividade legislativa passa a ser tão essencial valor – é sua finalidade subjetiva. Enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata for o único motivo que determina suas operações, funcionará ele como capitalista, ou como capital personificado, dotado de vontade e consciência”. MARX, Karl. Livro I. O capital. Op. cit., p.183. “Minha concepção do desenvolvimento da formação econômico-social como um processo histórico-natural exclui, mais do que qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações, das quais ele continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se julgue acima delas”. Idem, ibidem. Prefácio à 1ª edição, p.18. 169 “Na realidade, a categoria de sujeito é, evidentemente, estabelecida no ato de troca que ocorre no mercado. É justamente neste ato de troca que o homem realiza na prática a liberdade formal de autodeterminação”. PACHUKANIS, E.B. Op. cit., p.75.
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para a própria manutenção do sistema capitalista, que a figura sujeito de direito assume a aparência de ser determinada a priori, como um esquema meramente racional. Posteriormente, com a hegemonia definitiva da classe burguesa, passa a ser racionalizada como fruto da positivação da lei. Vale dizer, toda pessoa é sujeito de direito porque a lei assim o determina. A consolidação do modo de produção capitalista com a generalização da troca de mercadorias e a consequente hegemonia da categoria sujeito de direito é, por um lado, o substrato histórico e, por outro, o amparo ideológico à formulação de categorias cada vez mais abstratas como, por exemplo, a de “cidadão”. São condições, também, a partir das quais passa a fazer sentido a exigência de um comando normativo político que seja a expressão da vontade de todo o corpo social, ou seja, de homens livres, iguais e proprietários. É nesse terreno que se eleva o moderno conceito de lei, a forma normativa legítima (porque criada pela vontade conjunta de todos os cidadãos) a estabelecer restrições à igualdade, liberdade, propriedade etc. Não parece difícil compreender que também o moderno direito de propriedade tem origem na universalização do princípio da subjetividade jurídica, na hegemonia da forma sujeito de direito170.
170 “45 – Há alguma coisa que o Eu tem submetida ao seu poder exterior. Isso constitui a posse; e o que constitui o interesse particular dela reside nisso de o Eu se apoderar de alguma coisa para a satisfação de suas exigências, dos seus desejos e do seu livre-arbítrio. Mas é aquele aspecto pelo qual Eu, como vontade livre, me torno objetivo para mim mesmo na posse e, portanto, pela primeira vez real, é esse aspecto que constitui o que há naquilo de verídico e jurídico, a definição de propriedade (...) 46 – É a minha vontade pessoal, e portanto como individual, que se torna objetiva para mim na propriedade; esta adquire por isso o caráter de propriedade privada, e a propriedade comum, que segundo a sua natureza pode ser ocupada individualmente, define-se como uma comunidade virtualmente dissolúvel e na qual só por um ato de livre-arbítrio eu cedo minha parte”. HEGEL, G.W.F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.46/47. “No direito hegeliano, as relações pessoais ganham sua primeira ordenação jurídica ao passarem pela propriedade. É por essa razão que a propriedade é definida como a manifestação objetiva, material,
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A característica essencial da propriedade, em termos gerais, consiste em ser uma relação social cuja forma exprime a apropriação de trabalho ou sobretrabalho humanos171. Com a hegemonia das relações de troca, os atributos associados a essa particular esfera – igualdade, liberdade absoluta de disposição e autonomia da vontade – estendemse às diversas formas de apropriação do trabalho humano excedente. Uma vez que o trabalho humano objetiva-se em um produto, em um valor de uso, a relação entre indivíduos e “coisas” também assume essa forma específica. A propriedade imobiliária, por exemplo, passa a poder ser livremente alienada, sem quaisquer empecilhos de índole política ou social, como havia na época feudal. “Mas se a relação orgânica, ‘natural’, do homem com a coisa – explica Pachukanis –, a apropriação, gera o ponto de partida genético do desenvolvimento, a transformação dessa relação numa relação jurídica aconteceu essencialmente sob a influência das necessidades geradas pela circulação de bens (...) A formação de um mercado estável cria a necessidade de uma regulamentação do direito de dispor das mercadorias e, consequentemente, do direito à propriedade”172. A “mútua vontade aquiescente”, expressão da normatividade jurídica concreta necessária ao intercâmbio de mercadorias, passa a caracterizar também as formas de apropriação do sobretrabalho. A função de “realizadora do valor” da relação social que assume a
da vontade e de seu corolário inseparável: a liberdade. Através da propriedade, como manifestação exterior do encontro de vontades, os sujeitos individuais e particulares se relacionam como pessoas de direito, o que permite que a propriedade seja entendida como a conexão sensível das vontades pessoais livres, ou, nas palavras de Hegel, como o ‘terreno onde a liberdade está presente’”. FREDERICO, Celso; SAMPAIO, Benedcito A. Dialética e materialismo: Marx entre Hegel e Feuerbach. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2006, p.37. 171 “O modo capitalista de apropriar-se dos bens, decorrente do modo de produção capitalista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade individual, baseada no trabalho próprio”. MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.877. 172 PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.79/80.
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forma da troca também caracteriza a relação social que assume a forma de apropriação do trabalho excedente. Por isso, a “lei” que emana do Estado não é a “criadora” do direito de propriedade, mas apenas oferece o elemento textual-normativo necessário à garantia de reprodução dessas relações. O direito de propriedade pode ser compreendido, então, apenas como a garantia legal-normativa de uma relação de apropriação pré-estabelecida e já caracterizada, no modo de produção capitalista, pelos mesmos aspectos que surgem da relação de troca mercantil, ou seja: liberdade, igualdade, garantia de posse ou “propriedade” e Bentham ou “egoísmo”. “A garantia puramente política dada pelo aparelho de coação estatal – alerta Pachukanis –, limita-se, ao contrário, à proteção de uma certa posição pessoal dos proprietários, isto é, a um momento que não tem significação de princípio (...) Deste modo, apenas o desenvolvimento do mercado gera a possibilidade e a necessidade de transformar o homem, que se apropria das coisas pelo trabalho (ou pela espoliação), num proprietário jurídico. Entre estas duas fases não existem fronteiras rigorosas. O ‘natural’ passa insensivelmente para o ‘jurídico’, tal como o roubo a mão armada está estreitamente ligado ao comércio”173. Assim, a apropriação do excedente produzido pelo trabalho e sua proteção política apenas assumem a forma geral e acabada de “propriedade privada” com a passagem do sistema de metabolismo material humano – a maneira como se “ganha a vida”, como diria Marx – à forma de economia mercantil capitalista. O declínio do moderno conceito de “propriedade privada” e sua ulterior extinção somente podem ocorrer com a supressão das relações humanas que assumem essa determinada forma. Essa supressão, por sua vez, apenas é possível pela eliminação do momento jurídico das relações humanas, pela superação (suprassunção) tanto da forma valor assumida pelos produtos do trabalho humano, como da forma pela qual há a apropriação social do excedente. Isso significa que a antítese da propriedade privada, para Pachukanis, é a propriedade comum dos meios de produção – e nunca uma eventual “função social da propriedade”.
173 Idem, ibidem, p.81.
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Para finalizar, quero chamar a atenção do leitor para o seguinte: a suma do pensamento pachukaniano está em relacionar a forma do direito à forma da mercadoria. A importância teórica de seu pensamento, sua perenidade, se é que posso expressar-me assim, são devidas justamente a essa aproximação, vale dizer, à identificação de que a relação social que assume a forma de troca de mercadorias traz consigo, como o outro lado da moeda, a forma jurídica, o direito. As categorias contidas em sua obra – muitas das quais construídas originariamente pela própria filosofia tradicional do direito – são o fruto do desenrolar dialético da categoria que exprime essa específica relação fundamental. Quaisquer aproximações que se façam ao pensamento do autor russo com vistas a compreender dialeticamente suas categorias, mesmo as mais complexas, resultarão no encontro desse núcleo fundamental. É justamente com esse núcleo fundamental que nos ocuparemos no próximo item. Deslocaremos a atenção para o “outro lado da moeda”, quer dizer, para a forma mercadoria. Devo retornar à indagação que subsidiou o problema formulado no início deste trabalho: a forma mercantil é uma e mesma, sempre? É aconselhável pressupor uma forma mercantil “pura”, sem submetê-la ao processo de concretização? O próximo item tentará responder a essa pergunta.
3.2. A mercadoria e o direito: crítica da teoria pachukaniana O núcleo essencial do pensamento pachukaniano consiste na aproximação, tantas vezes ressaltada, entre a forma jurídica e a forma mercantil174. A adoção dessa premissa epistemológica é importante,
174 “De fato, a elaboração teórica de Pachukanis se dirige no sentido de estabelecer uma relação de determinação das formas do direito pelas formas da economia mercantil (...) Todas essas expressões denotam evidente afirmação do caráter derivado do direito, e de sua específica determinação pelo processo de trocas mercantis. É, portanto, a esfera da circulação de mercadorias que ‘produz’ as diversas figuras do direito, como uma decorrência necessária de seu próprio movimento”. NAVES, Márcio B. Marxismo e direito. Op. cit., p.53 e 54 (passim).
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porque significa a retomada do método marxiano, concretizado principalmente em O capital. Com fundamento no pensador alemão, Pachukanis ressalta: “Marx mostra simultaneamente a condição fundamental, enraizada na estrutura econômica da própria sociedade, da existência da forma jurídica, ou seja, a unificação dos diferentes rendimentos do trabalho segundo o princípio de troca de equivalentes. Ele descobre assim o profundo vínculo interno que existe entre a forma jurídica e a forma mercantil (...) Assim, antecipamos até um certo ponto a resposta à questão inicialmente exposta: onde haveremos de procurar essa relação social sui generis da qual a forma jurídica é o reflexo inevitável? Em seguida tentaremos demonstrar detalhadamente que essa relação é a relação dos proprietários de mercadoria entre si”175. A aproximação efetuada por Pachukanis representa uma opção epistemológica importante, uma vez que regata os princípios marxianos; mas introduz, por outro lado, um problema complexo: ao assinalar a troca de mercadorias como a forma pura cujo “reflexo inevitável” é a forma jurídica, não estaria o autor russo hipostasiando a categoria pela qual se exprime a relação social que assume a forma de troca de mercadorias? Não estaria Pachukanis tratando a troca de mercadorias como se fosse uma e mesma, sempre? Não estaria, finalmente, deixando de submeter a própria troca ao processo de concretização exigido pelo princípio da totalidade concreta em movimento? Como vimos, as categorias representam “formas de pensamento”, são “estruturas de sentido” que devem dar conta dos fenômenos que ocorrem na realidade. Entretanto, o cientista social deve permanecer atento à elaboração dessas categorias, porquanto têm como finalidade exprimir uma realidade que é contraditória, além de revelar, muitas vezes, apenas sua aparência, ocultando a essência oposta. A destruição do falso concreto passa por inserir a categoria, objeto de construção, dentro do contexto da totalidade concreta em movimento, momento em que a mesma passa a haurir seu sentido específico em 175 PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.28 e 45.
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contato com o todo, ao mesmo tempo em que empresta sentido a esse mesmo todo. Antecipemos, em certa medida, a resposta às indagações acima formuladas: de fato, ao assinalar a troca de mercadorias como momento puro a partir do qual surge, simultaneamente, a forma jurídica, Pachukanis procede, em certa medida, à hipóstase dessa categoria. Isso porque o autor russo deixa de lado uma série de características específicas assumidas por essa relação social (a troca de mercadorias), como, por exemplo, a finalidade visada e os diversos modos de produção dentro dos quais ela pode estar inserida. A suma do problema, então, consiste no seguinte: a relação social que assume a forma de troca de mercadorias apresenta características distintas, muitas vezes contraditórias, dependendo da finalidade e do modo de produção com o qual convive. A construção da categoria que a expressa, portanto, deve dar conta dessas especificidades, sob pena de permanecer no ponto de vista do falso concreto. Essa preocupação é fundamental para a construção da crítica marxista do direito. Apenas para ilustrar, em termos históricos, a troca de mercadorias, inicialmente, sequer assumia a forma de intercâmbio de produtos privados; pelo contrário, ocorria como escambo entre comunidades primitivas. “Com efeito – assinala Marx – originariamente o processo de troca das mercadorias não aparecia no seio das comunidades primitivas, mas sim onde estas se detêm, nas suas fronteiras, nos raros pontos em que entram em contato com outras comunidades. É aí que começa a troca e daí retrocede para o interior da comunidade sobre a qual exerce uma ação dissolvente”176. Nesse contexto, a forma jurídica sequer pode exprimir-se com alguma autonomia. O direito nem mesmo pode ser “pensado” como tal. Somente num período posterior, em que o intercâmbio de produtos assume uma forma privada e autônoma, ou seja, a forma mercadoria, é que o direito pode ser apreendido como objeto de estudo que detém certa autonomia. A pesquisa científica deve ressaltar essas diferenças específicas, elabo-
176 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.40.
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rando categorias que deem conta dessa multiplicidade de caracteres, ou seja, que exprimam a forma mercadoria como concreto pensado. Para iniciarmos o enfrentamento do problema, calha uma observação feita por Marx em uma nota de rodapé de O capital. Nessa nota, o pensador alemão critica a economia apologética justamente por aplicar a todos os períodos históricos da sociedade humana as mesmas categorias abstratas gerais da circulação, o que acarreta a impossibilidade de apreensão das peculiaridades de cada modo de produção e de seu sentido profundamente histórico: “A esse respeito, – comenta Marx – dois pontos caracterizam o método da economia apologética. Primeiro, ele identifica a circulação das mercadorias com a troca imediata dos produtos, simplesmente omitindo suas diferenças. Segundo, procura negar as contradições do processo capitalista, reduzindo as relações de seus agentes de produção às relações mais simples que decorrem da circulação de mercadorias. Produção e circulação de mercadorias são, porém, fenômenos que sucedem nos mais diferentes modos de produção, embora com extensão e importância diversas. Quando se conhecem apenas as categorias abstratas da circulação, comuns a todos esses modos de produção, é impossível saber qualquer coisa sobre as diferentes características desses modos de produção, não havendo condições para julgá-los”177. Convido o leitor a acompanhar-me na seguinte reflexão: se inserirmos essa preocupação de Marx no contexto do problema suscitado como fio condutor deste trabalho, talvez possamos afirmar que Pachukanis concebe a relação social que se exprime pela forma de troca de mercadorias como uma categoria abstrata da circulação, comum a todos os modos de produção e a todas as épocas. Ao proceder dessa maneira, o autor russo acaba por impossibilitar, em parte, que se reconheça o que há de específico e, portanto, de histórico, em cada um dos diferentes modos de produção. A categoria “troca de mercadorias” aparece de maneira hipostasiada em sua obra, o que acaba por aprisionar a forma jurídica num invólucro reificado.
177 Idem. O capital. Livro I. Op. cit., p.141. Nota de rodapé nº 73.
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Tal preocupação é particularmente importante quando o objeto de estudo científico é o direito. Isso porque uma relação social nunca se exprime de maneira “pura”. As relações humanas estão impregnadas de uma multiplicidade de características, inclusive normativas178. Como ensina Marx, no prefácio tantas vezes citado, as formas jurídicas, bem como as formas de Estado, não podem ser compreendidas por si mesmas. Pelo contrário, devem ser inseridas nas condições materiais de existência, ou seja, na sociedade civil, cuja anatomia é dada pela economia política. Ora, a crítica da economia política, ofereceu-nos Marx por ocasião de sua grande obra, O capital. Nela, os primeiros capítulos são dedicados à análise da estrutura da mercadoria, do processo de troca, do surgimento do dinheiro, como este se transforma em capital e assim por diante. Ou seja, o projeto marxiano de compreensão da sociedade capitalista parte da célula de riqueza dessa particular forma de produção e desenvolve-se, dialeticamente, rumo a categorias cada vez mais complexas – porém, cada vez mais concretas179. 178 “De qualquer forma, aqui estamos afirmando que uma relação social, a par de sua feição de suporte material, físico e biológico dos homens, implica sempre uma normatividade organicamente inserida nos atos que a constituem”. ALVES, Alaôr Caffé. Linguagem, sentido e realidade da norma jurídica: dialética da norma jurídica. São Paulo, 1998. Tese de Livre Docência – Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, p.18. 179 Talvez seja desnecessário mencionar que o projeto inacabado de Marx inicia-se pelo estudo da mercadoria, mas completar-se-ia com a análise do Estado e do mercado mundial. Não é raro deparar-se com opiniões as mais diversas, dando conta de que O capital seria uma obra eminentemente “econômica”. Nada mais enganoso. O próprio autor, em várias oportunidades, deixou clara sua intenção de efetuar uma crítica global ao sistema do capital. Assim, no prefácio aos Manuscritos econômico-filosóficos: “Farei, por conseguinte e sucessivamente, em diversas brochuras independentes, a crítica do direito, da moral, da política etc., e por último, num trabalho específico, a conexão do todo, a relação entre as distintas partes, demarcando a crítica da elaboração especulativa deste mesmo material. Assim, será encontrado o fundamento, no presente escrito, da conexão entre a economia nacional e
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Seria exagero afirmar que também o direito, como objeto de pesquisa científica, deve ser apreendido à luz da anatomia da sociedade civil, traçada criticamente por Marx? E mais: se Pachukanis aproxima a forma do direito da forma mercantil, seria fora de propósito propugnar que o desenvolvimento dialético das categorias jurídicas deve acompanhar bem de perto o das categorias mercantis? A resposta deve ser orientada pelos princípios da dialética marxiana. Por isso, aproximar a forma do direito da forma mercantil exige que se trate as categorias que exprimem esta última dentro do contexto da totalidade concreta em movimento, ou seja, acompanhando o desenvolvimento crítico-científico elaborado por Marx em O capital. Nesse sentido, a transformação do produto do trabalho humano – um valor de uso – em mercadoria ocorre na medida em que este seja transferido das mãos de seu possuidor para as mãos de um não possuidor por intermédio da troca180, isto é, por meio de o Estado, o direito, a moral, a vida civil, etc., na medida em que a economia nacional mesma, ex professo, trata destes objetos”. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p.19. Quinze anos mais tarde, no prefácio de Contribuição à crítica da economia política, Marx reafirma sua intenção de criticar globalmente a sociedade burguesa: “Examino pela ordem seguinte o sistema da economia burguesa: capital, propriedade fundiária, trabalho assalariado; Estado, comércio externo, mercado mundial. Nos três primeiros tópicos, estudo as condições econômicas de existência das três grandes classes em que se divide a sociedade burguesa moderna; a ligação das três restantes é evidente”. Idem. Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.03. Marx, na ocasião, alertava seu leitor: “Parto de um conjunto de documentos sob a forma de monografias escritas com longos intervalos para meu próprio esclarecimento, não para a impressão, e cuja elaboração sistemática, segundo o plano indicado, dependerá das circunstâncias”. Idem, ibidem, p.03. Infelizmente, as “circunstâncias” não permitiram que terminasse seu trabalho, sendo supérfluo recordar que o manuscrito de O capital foi interrompido justamente quando Marx começava a tratar das “classes”. 180 “[O produto, para ser tornar mercadoria, tem de ser transferido a quem vai servir como valor-de-uso por meio da troca]”. Marx, Karl. O capital. Livro I. Op. cit. p.63. Os colchetes foram apostos por Engels, que explica: “O trecho
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um ato voluntário e em contrapartida de um equivalente. Pressupõe, portanto, que o produto seja contraposto em face de outro, de mesmo valor, e que represente trabalho privado, autônomo e independente. Como esses produtos não têm vontade própria, deve-se atentar para a de seus possuidores. O acordo de vontades dos possuidores das mercadorias é a expressão normativa que assume a característica de “jurídica” e que ganha existência formal no contrato, reconhecido em lei ou não. “Só se contrapõem como mercadorias – ressalta Marx – produtos de trabalhos privados e autônomos, independentes entre si”181. Como antecipei, a relação social que assume a forma de troca de mercadorias não é uma e mesma sempre; pelo contrário, assume sentidos distintos, conforme a finalidade visada e o modo de produção dentro do qual esteja inserida. Nos primeiros capítulos de O capital, Marx expõe diferentes formas possíveis assumidas pelas relações sociais caracterizadas pela troca de mercadorias. Encontramos, assim, a troca direta de mercadorias (M-M), a troca que se insere na circulação simples de mercadoria (M-D-M) e a troca que é um momento da circulação capitalista de mercadorias (D-M-D’). Pela própria disposição das fórmulas que expressam essas relações, percebe o leitor a diferença existente entre as mesmas. Na troca direta (M-M) – mercadoria por mercadoria –, a finalidade visada é um valor de uso, a aquisição de um produto cujo objetivo é satisfazer uma necessidade humana concreta. Nesse caso, inclusive, sequer existe a figura autônoma do dinheiro. Na circulação simples de mercadorias (M-D-M) – mercadoria por dinheiro e dinheiro por mercadoria –, embora esteja presente a figura do dinheiro, a finalidade última ainda é o valor de uso. A forma autônoma do dinheiro afirmase como mero meio de circulação, vale dizer, como instrumento de que intercalei entre colchetes destina-se a evitar o erro, muito frequente, de achar que Marx considera mercadoria qualquer produto, desde que não seja consumido pelo produtor, mas por outro”. 181 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.64.
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facilitação das trocas. O objetivo final do processo ainda é um produto necessário à satisfação de uma necessidade humana concreta. Tudo muda na circulação capitalista de mercadorias (D-M-D’) – dinheiro por mercadoria e mercadoria por dinheiro (mais um acréscimo representado por D’). Neste último caso, a finalidade do movimento não é o valor de uso, mas o próprio dinheiro – a acumulação de dinheiro, a valorização do valor. As diversas formas de circulação atribuem à troca de mercadorias sentidos diferentes e opostos. A análise minuciosa das diferenças existentes entre as respectivas formas de circulação pode parecer “pedantismo”. Como diria Marx, contudo, “trata-se, efetivamente, de pedantismo, mas daquele que se ocupa a anatomia microscópica”182. De fato, estudar o corpo desenvolvido é mais fácil do que estudar as células do corpo. Como compreender o primeiro, contudo, se não compreendemos as últimas? Diluir a troca de mercadorias no processo de sua constituição significa submetê-la ao processo de concretização exigido pelo princípio da totalidade concreta em movimento. Essa concretização terá repercussões importantes para a compreensão da forma jurídica, como veremos. Não posso afirmar que Pachukanis estivesse absolutamente alheio a esse problema. Em um texto redigido em 1927183, A teoria marxista do direito e a construção do socialismo, o pensador russo assinala como a diferença entre a troca simples e a troca capitalista de mercadorias é importante, inclusive para questões práticas. “Sem dúvida – afirma Pachukanis nesse texto –, especial é a afirmação de Stuchka de que a vontade do possuidor de mercadoria sob a produção simples de mercadoria e a vontade do possuidor capitalista da mercadoria são vontades qualitativamente diferentes, embora em transações
182 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.12. Prefácio à 1a edição. 183 Apenas um ano após a publicação da segunda edição de A teoria geral do direito e o marxismo, que ocorrera em 1926. Essa, por sua vez, tem especial importância porque, nela, o autor responde a várias críticas efetuadas à primeira edição, que data de 1924.
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de compra e venda elas projetem uma aparência formal idêntica. A direção da vontade em um caso é expressa pela fórmula econômica M-D-M, e no outro caso pela fórmula D-M-D’. A importância central dessa distinção nos é claramente revelada em conexão com as recentes discussões internas ao partido, quando tivemos de lutar contra a utilização não crítica do termo ‘empresa privada’ e demonstrar a necessidade de uma distinção estrita entre a produção capitalista de um lado e a produção simples de mercadorias, de outro, como, por exemplo, a agricultura rústica”184. No capítulo IV, do Livro I, de O capital, Marx expõe a fórmula geral do capital. Ele inicia esclarecendo algo de absoluta importância, inclusive para a compreensão científica do direito: “A circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. A produção de mercadorias e o comércio, forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as condições históricas que dão origem ao capital. O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital”185.
184 PACHUKANIS, E.B. The Marxist Theory of Law and the Construction of Socialism. University of Illinois at Urbana – Champaign. Pashukanis: Selected Writings – Contents. Disponível em: http://home.law.uiuc. edu/~%20pmaggs/pch4.htm. Itálicos meus. Acesso em: 10 de dezembro de 2006. Tradução Livre. No original: “Especially beyond question is Stuchka’s statement that the will of the commodity owner under simple commodity production, and the will of the capitalist commodity owner, are qualitatively different wills, although in transactions of purchase and sale they project an identical formal appearance. The direction of will in one case is expressed by the economic formula C‑M‑C, and in the other case by the formula M‑C‑M‑+i. The central importance of this distinction is very clearly revealed for us in connection with the recent intra‑Party discussion when we had to struggle against the uncritical usage of the term ‘private enterprise’ and demonstrate the necessity for a strict distinction between capitalist production on the one hand and simple commodity production, i.e. peasant farming, on the other”. 185 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.177. Itálicos meus.
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Ora, mas não é justamente na circulação de mercadorias que se pode encontrar a “superestrutura jurídica concreta”, como afirma Pachukanis?186 Não são as formas jurídicas determinadas diretamente pelas formas mercantis? Não é, enfim, na circulação de mercadorias que se encontra o direito? Direito e capital seriam, então, sinônimos? Na realidade, o verdadeiro ponto de partida do capital não é o processo de circulação em si, mas uma forma econômica específica, que surge ao final do processo como forma acabada: o dinheiro. “Se pusermos de lado o conteúdo material da circulação de mercadorias, a troca dos diferentes valores-de-uso – explica Marx –, para considerar apenas as formas econômicas engendradas por esse processo de circulação, encontraremos o dinheiro como produto final. Esse produto final da circulação das mercadorias é a primeira forma em que aparece o capital”187. O intercâmbio de mercadorias, como vimos, pode assumir distintas formas. Relações sociais que vão se diferenciar de acordo com as características específicas de cada uma delas. Como antecipei, encontramos nos primeiros capítulos de O capital a troca direta de mercadorias (M-M), a forma simples de circulação de mercadorias (M-D-M) e a forma capitalista de circulação de mercadorias (D-M-D’). Não parece difícil compreender que há uma diferença qualitativa entre as primeiras formas mencionadas – a troca direta (M-M) e a circulação simples (M-D-M) – e a forma capitalista de circulação (D-M-D’). As primeiras têm como objetivo a aquisição de valores de uso, ou seja, de produtos necessários ao suprimento de necessidades humanas concretas. A última tem como objetivo o dinheiro, a valorização do
186 “Se a análise da forma mercantil revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e põe a nu os fundamentos dos esquemas abstratos da ideologia jurídica, o processo de evolução histórica da economia mercantilmonetária e mercantil-capitalista acompanha a realização destes esquemas sob a forma da superestrutura jurídica concreta”. PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.10. 187 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.177.
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valor, a acumulação de capital188; dinheiro que se movimenta segundo esta última fórmula vira capital – por sua destinação, é capital189. Do ponto de vista interno ao modo de produção capitalista, o aspecto qualitativo específico da circulação simples é bem salientado por Anselm Jappe: “A circulação simples não contém em si mesma o princípio de sua autoconservação: enquanto se limitar à fórmula mercadoria-dinheiro-mercadoria, terá ainda e sempre que se ‘encarquilhar’, como diz Marx. O valor só se conserva por força do crescimento. Na circulação simples, quando se chega ao final do processo, o valor (dinheiro) é trocado contra a mercadoria, enquanto valor de uso, e extingue no consumo dessa mesma mercadoria. O valor deixa de existir, para recomeçar o processo é preciso criar um outro valor. Na circulação simples, o valor não se conserva: desaparece”190. Na forma capitalista de circulação de mercadorias (D-M-D’) o movimento é bem diverso. Quando se inicia a circulação pela forma dinheiro, o que se busca como resultado final é, novamente, dinheiro. Ora, mas trocar dinheiro por dinheiro não faz sentido, é um absurdo; a não ser que no final do processo adquira-se mais dinheiro do que havia no início: eis o capital. Esse acréscimo ou excedente sobre o valor primitivo Marx denomina mais-valia. O valor antecipado não somente se mantém nessa última espécie de circulação, como também altera sua magnitude, expandindo-se – esse movimento transforma-o em capital. “A circulação simples da mercadoria – vender para comprar – explica Marx – serve de meio a um fim situado fora da circulação, a apropriação de valores-de-uso, a satisfação de
188 “Se, na circulação simples, o valor das mercadorias adquire, no máximo, em confronto com o valor-de-uso, a forma independente de dinheiro, na circulação do capital esse valor se revela subitamente uma substância que tem um desenvolvimento, um movimento próprio, e da qual a mercadoria e o dinheiro são meras formas”. Idem, ibidem., p.185. 189 “O dinheiro que é apenas dinheiro se distingue do dinheiro que é capital, através da diferença na forma da circulação”. Id., ibid., p.177. 190 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.60.
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necessidades. A circulação de dinheiro como capital, ao contrário, tem sua finalidade em si mesma, pois a expansão do valor só existe nesse movimento continuamente renovado. Por isso, o movimento do capital não tem limites”191. A circulação capitalista de mercadorias (D-M-D’) é a forma do movimento de trocas em que o valor ganha autonomia. O valor, que inicialmente assume a forma de dinheiro, movimenta-se entre os atos de troca num bailar vigoroso e incessante, assumindo ora a forma de mercadoria ora a forma de dinheiro para que possa, ao final, ter sua magnitude expandida192. A simples alteração na forma de circulação acarreta uma modificação qualitativa nas formas de sociabilidade caracterizadas pela predominância da circulação simples. “Não se exagera muito se se afirmar – explica Anselm Jappe – que a conversão da fórmula M-D-M na fórmula D-M-D’ encerra em si toda a essência do capitalismo”193. Não podemos, contudo, subestimar a dificuldade da questão. É necessário examinar o movimento com cuidado. A circulação simples e a circulação capitalista, embora representem movimentos antagônicos,
191 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.183. 192 “Em circunstâncias nas quais esta troca não é mediada pela actividade social consciente, mas sim pelo automovimento do valor, teremos que falar em uma alienação do laço social (...) O valor, na forma visível do dinheiro, tornou-se ele mesmo uma forma social de organização: suas leis tornaramse as de mediação social (...) Verifica-se aqui mais uma vez que a teoria do valor vai bastante para além da esfera ‘econômica’, comportando de fato uma teoria da sociedade no seu todo integral. Não se pode compreender o valor se não se reconhece nele a alienação do poder social. Mas isso é evidentemente muito mais do que os marxistas tradicionais e os seus adversários burgueses podiam conceber”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.51 e 53 (passim). “Assim, o valor parece provir da natureza das coisas enquanto coisas, não do fato de que elas tenham sido produzidas pelo trabalho humano numa sociedade organizada materialmente pela troca; assim, o capital aparece como coisa, não como relação social”. PAULANI, Leda. Modernidade e discurso econômico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. p.198. 193 JAPPE, Anselm. Op. cit., 61.
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projetam sempre duas relações formalmente idênticas: mercadoriadinheiro (M-D) e dinheiro-mercadoria (D-M). Na circulação simples, vende-se para comprar; na circulação-capital, compra-se para vender. “A forma de circulação na qual o dinheiro se transforma em capital – alerta Marx – contradiz todas as leis investigadas anteriormente sobre a natureza da mercadoria, do valor, do dinheiro e da própria circulação. O que a distingue da circulação simples de mercadorias é a ordem inversa da sucessão das duas fases opostas, venda e compra. Parece que só por encanto pode essa pura diferença formal entre esses processos mudar sua natureza”194. Na medida em que a relação social assume a forma de compra ou venda de mercadorias (D-M ou M-D), assume também, como consequência, a forma de troca de equivalentes. Nenhum possuidor de mercadoria lançará seu produto no mercado com o objetivo de receber um valor menor como contrapartida. Como afirma Marx, “a cavalo dado não se olha os dentes, mas ele não vai ao mercado para distribuir presentes”. Por outro lado, ninguém comparece ao mercado para comprar uma mercadoria por um valor maior do que a mesma possui, isso é de conhecimento trivial. “Desde que a circulação de mercadorias só implica mudança na forma do valor – explica Marx –, determina ela, quando o fenômeno se desenrola em sua pureza, troca de equivalentes (...) Se ambos os permutantes podem ganhar algo com relação ao valor-de-uso, não poderá haver ganho com relação ao valor-de-troca. Nesse caso rege, antes, o princípio: ‘Onde há igualdade, não há lucro’. As mercadorias podem ser vendidas realmente por preços que se desviam de seus valores, mas esses desvios representam violações da lei que regula a troca de mercadorias. Esta, em sua forma pura, é uma permuta de equivalentes; não é, portanto, nenhum meio de acrescer valor”195.
194 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.186. 195 Idem, ibidem, p.188/189. Itálicos meus. “Mas, na realidade, as coisas não se passam com essa pureza. Suponhamos, portanto, a troca de nãoequivalentes (...) A formação da mais-valia e, portanto, a transformação do dinheiro em capital não pode, por conseguinte, ser explicada por vender o
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O que há de comum em ambas as formas de circulação, simples e capitalista? Muito embora expressem movimentos antagônicos – (MD-M) no primeiro caso e (D-M-D’) no segundo – ambas são caracterizadas por relações de equivalência em seus extremos. A compra e a venda, nos dois casos, apenas podem realizar-se se comprador e vendedor efetuarem transações com base no “valor” das mercadorias. Valor contra valor é a relação social que põe a igualdade. Por outro lado, como afirma Pachukanis, o princípio da equivalência é exatamente o princípio que confere à relação social o caráter especificamente jurídico. Fica claro, portanto, que não apenas o circuito mercantil simples está impregnado de juridicidade, mas, também e especialmente, o circuito mercantil especificamente capitalista196.
vendedor as mercadorias acima do valor nem por comprá-las o comprador abaixo do valor (...) Seja o que for que façamos, o resultado permanece o mesmo. Se se trocam equivalentes, não se produz valor excedente (maisvalia), e, se se trocam não-equivalentes, também não surge nenhum valor excedente. A circulação ou troca de mercadorias não cria nenhum valor”. Id., ibid., p.190-193/194 (passim). Itálicos meus. 196 Pode-se afirmar, portanto, que o capitalismo, num certo sentido, pressupõe o direito, sendo este condição de aparecimento e desenvolvimento do primeiro. “Este conceito existia já muito antes – não sob a forma de um arquétipo platônico, mas enquanto valor, sendo que o valor é muito mais antigo do que o capital. O valor pré-capitalista não era auto-reflexivo e constituía somente uma mediação entre valores de uso”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.182. Explica-se, assim, o surgimento e o desenvolvimento do direito na sociedade romana. Naquele período histórico – e naquela sociedade em particular – o circuito de trocas simples já se apresentava bastante desenvolvido, na conexão dialética com a circulação complexa em sua forma de capital comercial. A sofisticação e o aspecto quantitativo do movimento de circulação simples e complexa – embora não tenham alcançado o momento da produção – são suficientes para suscitar a formação de um ordenamento jurídico concreto – não no sentido moderno, obviamente – inclusive reconhecido e, em certa medida, tutelado, pelo “Estado” romano. “É impossível datar o nascimento da mercadoria: uma produção especializada, destinada à troca, é algo que existe já, a título excepcional, em certas sociedades pré-históricas (...) Ocorreu uma grande
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Chegamos a um momento crucial da exposição. Devo colocar em relevo uma conclusão importante: a circulação simples tanto quanto a circulação capitalista de mercadorias são mediadas pela forma do direito. No circuito de ambas instauram-se relações de compra e de venda, caracterizadas pela troca de equivalentes. Em ambas está presente o ajuste de vontades entre possuidores privados e autônomos, cuja forma é o contrato, reconhecida legalmente ou não. “Enquanto a relação entre produtores individuais e a sociedade continuar mantendo a forma de troca de equivalentes – elucida Pachukanis –, esta relação manterá igualmente a forma do direito, uma vez que, ‘pela sua natureza, o direito só pode consistir no emprego de uma mesma unidade de medida’”197. O profundo vínculo existente entre a forma do direito e a forma da equivalência198 foi salientado por Marx em um de seus
transformação neste estado de coisas com o aparecimento da primeira moeda cunhada. Este acontecimento fundamental pode datar-se e localizar-se com bastante precisão: teve lugar por volta do ano 630 a.C. nas cidades da Jonia, na Ásia Menor (...) Assim, a circulação transforma em mercadoria produtos decorrentes de modos de produção não baseados na mercadoria (pequenos produtores independentes ou escravatura), não tendo repercussão sobre a esfera da produção. Tratava-se de uma troca de mercadorias, e não de uma produção de mercadorias (...) Era o acto de nascimento do sujeito ‘burguês’, o qual existe não como membro de uma comunidade que lhe permite viver, mas sim como ‘máscara’ que dá caracterização ao valor e que em nome da acumulação trata essa comunidade e seus membros – e todo o metabolismo com a natureza – como um ‘objeto’ exterior e abstratcto, pronto para ser usado para os fins da valorização”. Idem, ibidem, p.183/185. 197 PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.27. A citação utilizada por Pachukanis é de Marx e encontra-se na Crítica do programa de Gotha. 198 “Portanto, o direito está indissociavelmente ligado à existência de uma sociedade que exige a mediação de um equivalente geral para que os diversos trabalhos privados independentes se tornem trabalho social. É a ideia de equivalência decorrente do processo de trocas mercantis que funda a ideia de equivalência jurídica (...) A relação de equivalência permite que se compreenda a especificidade do próprio direito, a sua natureza intrinsecamente
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escritos clássicos, Crítica do programa de Gotha: “Trata-se aqui de uma sociedade comunista, não tal como se desenvolveu em suas próprias bases, mas, ao contrário, tal como acaba de surgir da sociedade capitalista (...) O produtor individual recebe, nessa medida, uma vez feitas as deduções, o equivalente exato do que dá à sociedade (...) Mas, no que se refere à partilha destes últimos entre os produtores individuais, reina o mesmo princípio que para a troca de mercadorias equivalentes: uma quantidade de trabalho sob uma forma é trocada pela mesma quantidade de trabalho sob outra. Portanto, o direito igual continua aqui – em seu princípio – a ser direito burguês, se bem que princípio e prática não se puxam mais pelos cabelos, ao passo que, para as mercadorias, a troca de equivalentes só existe em média e não em cada caso individual. Apesar desse progresso, o direito igual continua preso a uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que eles fornecem; a igualdade consiste aqui no emprego do trabalho como unidade de medida comum (...) Por sua natureza, o direito só pode consistir no emprego de uma mesma unidade de medida”199.
burguesa (...) A forma jurídica, portanto, só se constitui quando o princípio da equivalência se torna dominante, tornando possível distinguir o elemento jurídico do elemento biológico, ritual e religioso.” NAVES, Márcio B. Marxismo e direito. Op. cit., p.58-59. 199 MARX, Karl. “Crítica do programa de Gotha”. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001, p.104/106 (passim). Itálicos de Marx. É interessante salientar que a 2ª edição de O capital, em que Marx efetua uma série de revisões e alterações relativamente à 1ª – como ele mesmo explica no posfácio: “faz-se, com maior rigor científico, a dedução do valor por meio da análise das igualdades em que se exprime qualquer valor de troca, e dá-se um tratamento destacado à conexão, apenas mencionada na primeira edição, entre a substância do valor e a determinação de sua magnitude pelo tempo de trabalho socialmente necessário” – foi publicada em 1873. Ao passo que a Crítica do programa de Gotha foi redigida no início de 1875. Seria exagero sustentar que ambas as obras devam ser estudadas numa conexão bastante íntima?
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Retomemos o fio da meada. Ambas as formas de circulação – simples e capitalista – têm em comum a mediação jurídica, como vimos. Por outro lado, qual é a diferença existente entre ambas? A distinção mais elementar reside na finalidade das ações e, como decorrência desta, na direção do movimento. Na primeira, encontramos M-D-M – mercadoriadinheiro-mercadoria; na segunda, D-M-D’ – dinheiro-mercadoria-dinheiro (mais um acréscimo de valor). Na circulação simples, o conteúdo da vontade do portador da mercadoria é um valor de uso, um produto que satisfaça suas necessidades concretas. Na circulação-capital é a ampliação do valor; a colheita, ao final do processo, de mais dinheiro do que foi lançado no início. A relação social que assume a forma de troca de mercadorias, portanto, tem um sentido completamente distinto, caso se trate de uma ou outra forma de circulação. Outra importante indagação deve ser formulada nesse momento: se a circulação simples e a circulação capitalista instauram relações jurídicas, quer dizer, relações de equivalência, de onde provém, nessa última, o valor excedente, a mais-valia? Ora, “se onde há igualdade não há lucro”, donde vem o acréscimo de valor? Marx responde: “Mostrou-se que o valor excedente (mais-valia) não pode originar-se na circulação e que, ao formar-se, algo tem que ocorrer fora dela e nela imperceptível (...) A transformação de dinheiro em capital tem de ser explicada à base das leis imanentes da troca de mercadorias, e, desse modo, a troca de equivalentes serve de ponto de partida. Nosso possuidor de dinheiro, que, no momento, prefigura o capitalista, tem de comprar a mercadoria pelo seu valor, vendê-la pelo seu valor e, apesar disso, colher, no fim do processo, mais valor do que lançou. Sua metamorfose em capitalista deve ocorrer dentro da esfera da circulação e, ao mesmo tempo, fora dela. Tais são as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta!”200. Saltemos, pois. O problema proposto por Marx é importante não apenas para a crítica da economia política, como também para a crítica marxista do direito. De fato, se a esfera da circulação não
200 MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.195-196/197 (passim).
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permite a valorização do dinheiro nela lançado, ainda que se trate da circulação capitalista, tal valorização deve ter lugar em outro momento. “Capital, portanto, – explica Marx – nem pode originar-se na circulação nem fora da circulação. Deve, ao mesmo tempo, ter e não ter nela sua origem”201. O valor inserido na circulação sob a forma de dinheiro não pode ter sua magnitude aumentada pela compra (D-M) ou venda da mercadoria (M-D), porque ambas caracterizam-se pela forma da equivalência; por serem relações jurídicas. A única possibilidade de obter-se o acréscimo na magnitude do valor reside em um momento fora da circulação. É preciso, pois, ainda que temporariamente, abandonar a esfera das trocas de mercadorias para ingressar em outro ambiente, que possibilite a expansão do valor. O problema pode ser resolvido, então, com o consumo de uma mercadoria adquirida ao longo do circuito D-M-D’, vale dizer, na fruição de um valor de uso específico, que tem a potencialidade de criar valor! A expansão da magnitude do valor exige que se abandone o momento da circulação e que se ingresse, temporariamente, no momento da produção. Existiria no mercado, entretanto, uma mercadoria portadora da especial qualidade de criar valor, de acrescentar valor com o próprio consumo? Sim. Para a alegria do capitalista e infortúnio do trabalhador essa mercadoria é a força de trabalho202. A característica especialíssima dessa mercadoria, tão cobiçada pelo capitalista, consiste em que “o consumo da força de
201 Idem, ibidem, p.196. 202 “Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, os quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie (...) A fim de que seu possuidor a venda como mercadoria, é mister que ele possa dispor dela, que seja proprietário livre de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor do dinheiro encontram-se no mercado e entram em relação um com o outro como possuidores de mercadorias, dotados de igual condição, diferenciando-se apenas por um ser o vendedor e outro o comprador, sendo ambos, juridicamente, pessoas iguais”. Id., ibid., p.197/198.
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trabalho é o próprio trabalho”203. Ora, o valor de qualquer mercadoria é dado pela quantidade de trabalho nela depositado204. Assim, o consumo da força de trabalho pelo capitalista cria valor, adiciona valor ao que já existe. A fonte do valor, tão precioso ao proprietário do capital, fornece-a o trabalhador, alienando sua capacidade de trabalho. O capitalista deixa aos professores de direito a honra de explicar ao trabalhador a sua relevância para o bem-estar geral da sociedade e como o direito do trabalho é importante como elemento civilizador da humanidade, uma vez que protege legalmente a relação de emprego. Isso porque o empresário, muito embora não tenha a menor ideia de como o capitalismo funciona, sabe, por meio de seu contador, que funciona. O que não conhece, mas intui, é suficiente para o sucesso de seu negócio: “o valor da força de trabalho e o valor que ela cria no processo de trabalho são duas magnitudes distintas”205. O leitor atento conclui que o dono do capital paga ao trabalhador apenas o valor de sua força de trabalho206, mas apropria-se de todo o valor por ela produzido ao longo de uma jornada inteira de trabalho. 203 Id., ibid., p.211. 204 “Sabemos que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor-de-uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção”. Id., ibid., p.220. 205 Id., ibid., p.227. 206 “O valor da força de trabalho é determinado, como o de qualquer outra mercadoria, pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e, por consequência, à sua reprodução. Enquanto valor, a força de trabalho representa apenas determinada quantidade de trabalho social médio nela corporificado. Não é mais que a aptidão do indivíduo vivo. A produção dela supõe a existência deste. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua manutenção ou reprodução. Para manter-se, precisa o indivíduo de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho reduz-se, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor (...) Um elemento histórico e moral entra na determinação do valor da força de trabalho, o que a distingue de outras mercadorias. Mas, para um país determinado, num período determinado, é dada a quantidade média dos meios de subsistência necessários”. Id., ibid., p.200/201.
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“O capitalista tinha em vista essa diferença de valor quando comprou a força de trabalho – explica Marx – (...) Mas o decisivo foi o valor-deuso específico da força de trabalho, o qual consiste em ser ela fonte de valor, e de mais valor que o que tem (...) O possuidor do dinheiro pagou o valor diário da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, o uso dela durante o dia, o trabalho de uma jornada inteira. A manutenção quotidiana da força de trabalho custa apenas meia jornada, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar, uma jornada inteira, e o valor que sua utilização cria num dia é o dobro de seu próprio valor-de-troca (...) Consumou-se finalmente o truque: o dinheiro se transformou em capital”207. “Comparando o processo de produzir valor com o de produzir mais-valia – continua Marx –, veremos que o segundo só difere do primeiro por se prolongar além de certo ponto. O processo de produzir valor simplesmente dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capitalista é substituído por um equivalente. Ultrapassado esse ponto, o processo de produzir valor torna-se processo de produzir mais-valia (valor excedente)”208. Ao cabo do quanto fora exposto até o presente momento, espero que tenha ficado definitivamente claro para o leitor que a tão decantada “troca de mercadorias” não é uma e mesma, sempre. A relação jurídica que a acompanha assume um sentido distinto e oposto, caso seja expressão da circulação simples ou da circulação capitalista de
207 Id., ibid., p.227. 208 Id., ibid., p.228. Podemos, nesse momento, formular uma pergunta importante: se a produção de mais-valia se inicia a partir do momento em que o tempo de trabalho executado pelo trabalhador passa a exceder o que seria estritamente necessário para pagar o valor de sua própria força de trabalho – ou seja, o equivalente da mesma – e se, por outro lado, uma relação jurídica caracteriza-se por ser, justamente, uma relação de equivalência, como afirmar que a integração da força de trabalho aos meios de produção é uma relação jurídica, por excelência? Os limites do presente trabalho não permitem o desenvolvimento dessa questão que fica, uma vez mais, apenas apontada. Seguindo o conselho de Marx, “parece-me que antecipar conclusões do que é preciso demonstrar em primeiro lugar é pouco correto”. Remeto o leitor à nota de rodapé nº.157, do item anterior (p.107).
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mercadorias. Tal constatação é fundamental em termos epistemológicos, porque possibilita um ponto de partida mais adequado para a apreensão do fenômeno jurídico. Devemos enfrentar, de passagem, uma questão crucial à compreensão do pensamento pachukaniano. Simultaneamente, podemos ensaiar uma resposta a certa crítica. À medida que Pachukanis relaciona a forma jurídica à forma mercantil e, portanto, ao momento da circulação, abre-se a possibilidade de atribuir à sua teoria a pecha de “circulacionista”. Poder-se-ia sustentar que o autor russo “aparta” o direito da esfera da produção, compreendendo-o como uma forma criada exclusivamente pelo circuito de trocas mercantis. Esse tipo de interpretação tem amparo, infelizmente, nas ambiguidades do pensamento de Pachukanis. Uma dessas ambiguidades reside na forma como o autor refere-se à troca de mercadorias. Ao mencionar a esfera de trocas como o momento primordial do qual derivam as formas jurídicas, a circulação simples é colocada em evidência. “A esfera da circulação – afirma Pachukanis no prefácio de 1926 – a esfera que se compreende pela fórmula Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria, desempenha um papel dominante”209. “A propriedade como apropriação é a consequência natural de qualquer modo de produção; – continua Pachukanis no mesmo prefácio – porém, a propriedade só reveste sua forma lógica mais simples e mais geral de propriedade privada quando se tem em vista o núcleo de uma determinada formação social onde ela é determinada como a condição elementar da ininterrupta circulação dos valores que se opera de acordo com a fórmula MercadoriaDinheiro-Mercadoria”210. Não se pode negar que o pensador russo refere-se, explicitamente, à circulação simples de mercadorias, quando poderia ter posto em relevo a forma complexa de circulação. Ademais, esse ponto de vista ganha suporte em certo marxismo – em minha opinião, equivocado – que pretende ver na esfera da circulação um momento relativamente “autônomo” em face da produção. O circuito de trocas engendraria 209 PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.11. 210 Idem, ibidem, p.14. Itálicos meus.
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um conjunto de formas específicas, em certa medida autônomas e apartadas da produção. O intérprete de A teoria geral do direito e o marxismo que buscar subsídio nesse “marxismo” não encontrará dificuldades, certamente, em compreender a perspectiva pachukaniana como “circulacionista”. Proponho, contudo, um retorno a Marx. Não é difícil encontrar em suas obras indicações segundo as quais a esfera da circulação está intimamente relacionada com a produção. São, na verdade, “momentos” de uma conexão dialética fundamental; apartá-las significa romper essa conexão e retirar do pensamento marxiano o que ele possui de mais precioso: a perspectiva dialético-material. Essa íntima relação é muito bem demonstrada por Marx em um escrito já mencionado, Introdução à crítica da economia política: “A própria circulação é apenas um momento determinado da troca, ou troca considerada em sua totalidade. Na medida em que a troca não é mais que um fator que serve de intermediário entre a produção e a distribuição que ela determina tal como consumo; na medida, por outro lado, em que este último surge como um dos fatores da produção, a troca constitui manifestamente um momento da produção (...) Não chegamos à conclusão de que a produção, a distribuição, a troca e o consumo são idênticos, mas que são antes elementos de uma totalidade, diferenciações no interior de uma unidade (...) Há uma reciprocidade de ação entre os diferentes momentos, o que acontece com qualquer totalidade orgânica”211. Não é preciso, pois, buscar em outros autores subsídios para afastar a pecha de “circulacionista” da teoria pachukaniana. Marx mesmo oferece o amparo necessário ao combate dessa perspectiva teórica. Por outro lado, devemos admitir que Pachukanis complica as coisas ao referir-se expressamente à circulação simples de mercadorias (M-D-M). Isso porque ele aprisiona a forma jurídica em uma espécie de troca que, como momento da circulação, não caracteriza o fundamento da sociedade capitalista. Ora, como afirma Marx, “a circulação é a troca 211 MARX, Karl. “Introdução à crítica da economia política”. In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.246. Itálicos meus.
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considerada em sua totalidade”. Uma circulação pautada pela fórmula M-D-M possui um sentido completamente diferente da circulação que se caracteriza pela fórmula D-M-D’. Esta última é a circulação de mercadorias especificamente capitalista. Dentro dessa perspectiva, pode-se compreender que na fórmula M-D-M o valor-dinheiro não aponta para a produção; para ser mais exato, o valor-dinheiro não precisa submeter a produção à sua lógica. A finalidade desse tipo de circulação é um valor de uso, ou seja, a satisfação de uma necessidade humana. O dinheiro, nesse caso, funciona como intermediário da troca de produtos, como meio de circulação, e não como forma autônoma do valor. Nesse sentido preciso, a forma da produção que satisfaça as necessidades humanas é irrelevante para o ponto de vista da circulação simples de mercadorias. Na circulação complexa (D-M-D’), por outro lado, o valor-dinheiro possui autonomia. Quando se inicia a circulação pela forma valor-dinheiro, o objetivo visado apenas pode ser um acréscimo do valor-dinheiro. A finalidade desse tipo de circulação não é satisfazer qualquer necessidade humana, pelo contrário, seu objetivo é o valor – especificamente, o mais-valor. Por isso, ela aponta para a produção; ela precisa submeter a produção à sua lógica para que possa alcançar seu objetivo único: valorizar o valor. Nesse último caso (D-M-D’) o valor, na forma de dinheiro, precisa, para ampliar sua magnitude, “mergulhar” no momento produtivo, o que faz na forma de mercadoria. Com esse “mergulho”, banha-se no trabalho vivo, representado pelo consumo da força de trabalho, tem acrescido seu valor e emerge, novamente, como mercadoria de outra espécie. Finalmente, inserida no processo de circulação, ela retoma, após a troca, sua forma primeva: dinheiro – já agora valorizado. Esse é o movimento de reprodução do capital, que não cessa. Todo esse movimento é decisivamente marcado por uma série de relações jurídicas que acompanham a esfera da circulação. Ocorre, entretanto, que a circulação-capital, justamente por implicar o “mergulho” do valor na esfera produtiva, exige algo que não aparece na circulação simples de mercadorias: a integração do trabalho vivo aos meios de produção pela mediação “jurídica”, que consiste na venda, pelo trabalhador, de sua força de trabalho ao capitalista; o famoso “contrato” de trabalho. 140
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Essa característica específica212 é responsável pela forma de organização jurídica e político-estatal de todas as sociedades modernas, ou seja, todas as nações cuja infraestrutura é formada hegemonicamente por relações capitalistas. Em um trecho de O capital, Livro III, aparentemente esquecido, Marx assinala como essa íntima relação entre possuidores dos meios de produção e produtores diretos funciona como fundamento e elemento caracterizador de todo o edifício social, inclusive em termos políticos: “A forma econômica específica em que se suga mais-trabalho não pago dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta surge diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage de forma determinante sobre ela. Mas nisso é que se baseia toda a estrutura da entidade comunitária autônoma, oriunda das próprias relações de produção e, com isso ao mesmo tempo sua estrutura política peculiar. É sempre na relação direta dos proprietários das condições de produção com os produtores diretos – relação da qual cada forma sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho e, portanto, a sua produtividade social – que encontramos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a construção social e, por conseguinte, da forma política das relações de soberania e de dependência, em suma, de cada forma específica de Estado”213.
212 “Nesse sentido, nenhuma relação ou fato social – que é, por definição, uma relação – pode ser aceito como dado. Tudo o que é específico, tudo o que tem uma forma (já que cada forma particular expressa uma relação específica com seu conteúdo) deve ser explicada em termos do vir-a-ser, e por isso nenhuma condição primordial pode ser suposta (...) Vemos aqui um bom exemplo de uma característica básica do pensamento marxiano; ou seja, a de que a abordagem histórica de tudo é, ao mesmo tempo, uma materialização das categorias da lógica em termos históricos concretos.” MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Op. cit., p.116. 213 MARX, Karl. O capital. Livro III. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção “Os economistas”, Volume V, Tomo 2, Parte Segunda), p.235. Itálicos meus.
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Sejamos mais precisos: a circulação capitalista, por sua natureza D-M-D’, precisa submeter a produção à sua lógica para que o valor possa valorizar-se incessantemente. Essa submissão consiste em transformar a força de trabalho em mercadoria, de propriedade do trabalhador. Este último é “livre”, ou seja, é “socialmente constrangido” a vender sua mercadoria ao capitalista por intermédio do “contrato” de trabalho para que possa adquirir o salário necessário à sua subsistência. O capitalista integra o trabalhador aos meios de produção e o faz trabalhar ao longo de uma jornada diária completa. Uma vez que o valor da força de trabalho corresponda, por exemplo, à meia jornada de trabalho, pode-se compreender que o empresário apropria-se do trabalho excedente produzido pelo empregado no restante do dia. A isso se dá o nome de mais-valia. Essa é a forma específica de extração do trabalho excedente não pago do produtor direto, à qual se refere Marx. É precisamente aí que se encontra “o fundamento oculto de toda a construção social e, por conseguinte, da forma política das relações de soberania e de dependência, em suma, de cada forma específica de Estado”. Portanto, quando se pensa o direito como relação social, inclusive do ponto de vista pachukaniano, não se pode olvidar essa circunstância específica e sumamente importante: a troca de mercadorias exerce um papel qualitativamente distinto no modo de produção capitalista, passando a caracterizar o próprio momento produtivo. O trabalho, o elemento vivo de todo o complexo, apenas pode ser integrado aos meios de produção pela mediação aparentemente jurídica, representada pela alienação da força de trabalho por parte do trabalhador por intermédio do contrato de trabalho. Essa situação repercute de maneira decisiva sobre todo o complexo “superestrutural” – Estado, moral, religião – porque se configura como uma forma histórica qualitativamente distinta de “extração do trabalho excedente não pago”. Os modos de produção que precederam o capitalismo – o escravista e o feudal, por exemplo – conviveram com a circulação de mercadorias, inclusive com a fórmula circulação-capital, representada pelo 142
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capital comercial214. Entretanto, em nenhum momento antes do capitalismo, o movimento que caracteriza a circulação atingiu a esfera da produção, alterando-a qualitativamente215. Pelo contrário, a circulação funcionava apenas como “ponte”, como elemento de conexão em que os produtos excedentes, apropriados privadamente, circulavam de uma parte a outra da sociedade216. “Pelo fato de o capital comercial estar preso à esfera da circulação – explica Marx – e sua função consistir exclusivamente em mediar o intercâmbio de mercadorias, então, para sua existência – abstraindose formas não desenvolvidas, que se originam do comércio de trocas 214 “No entanto, não só o comércio, mas também o capital comercial é mais antigo do que o modo de produção capitalista: de fato, ele é o modo de existência livre historicamente mais antigo do capital”. MARX, Karl. O capital. Livro III. São Paulo: Abril Cultural, 1986. (Os economistas, Volume IV), p.244. 215 “Historicamente o capital desenvolveu-se na esfera da circulação para depois tomar conta da produção; no capitalismo, porém, o capital nasce exclusivamente na produção. O capital que parece nascer na circulação (lucro comercial, juro monetário) é somente uma dedução feita a partir do lucro realizado na produção”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.86. 216 “Qualquer que seja, porém, a organização social das esferas da produção, cujo intercâmbio de mercadorias o comerciante medeia, sua fortuna existe sempre como fortuna monetária e seu dinheiro funciona sempre como capital. Sua forma é sempre D-M-D’; dinheiro, a forma autônoma do valor de troca, como o ponto de partida, e o aumento do valor de troca como o fim autônomo. O próprio intercâmbio de mercadorias e as operações que o medeiam – separados da produção e efetuados por não produtores – são mero meio de multiplicar não só a riqueza, mas a riqueza em sua forma social geral, como valor de troca. O motivo impulsionador e a finalidade determinante é transformar D em D’; os atos D-M e M-D’, que medeiam o ato D-D’, aparecem apenas como momentos de transição dessa transformação de D em D’. Esse D-M-D’ como movimento característico do capital comercial distingue-se de M-D-M, o comércio de mercadorias entre os próprios produtores, que está voltado para o intercâmbio de valores de uso como finalidade última”. MARX, Karl. O capital. Livro III. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986. (Coleção “Os economistas”, Volume IV, Tomo 1, Parte Primeira), p.245. Itálicos meus.
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diretas –, não são necessárias quaisquer outras condições que as da circulação simples de mercadorias e de dinheiro. Ou esta última é muito mais condição de sua existência. Seja qual for o modo de produção com base no qual se tenham produzidos os produtos que ingressam como mercadorias na circulação – seja com base na comunidade primitiva ou na produção escravista ou na pequena produção camponesa e pequeno-burguesa ou na capitalista –, isso em nada altera seu caráter enquanto mercadorias, e enquanto mercadorias eles têm de realizar o processo de intercâmbio e as alterações de forma que o acompanham (...) O capital comercial medeia apenas o movimento desses extremos, das mercadorias, enquanto pressupostos que lhe são dados”217.
217 Idem, Ibidem, p.244/245. Essa existência “marginal” do capital comercial explica também a característica marcante do direito sob a época feudal, ou seja, sua existência também “marginal”. O refluxo econômico que vigorou durante tal período histórico dispensava a utilização de categorias jurídicas mais complexas. Essa foi a razão pela qual, logo que houve o ressurgimento de uma atividade econômica modesta, recorreu-se, para regulamentá-la, às categorias e espécies normativas que vigoraram sob Roma antiga. É conhecido do estudioso marxista o debate que envolveu Paul Sweezy e Maurice Dobb na década de cinquenta, acerca da transição do feudalismo para o capitalismo. Para o primeiro, a transição ter-se-ia operado em razão do crescimento da atividade comercial que, evoluindo lentamente, passou a dominar o processo de produção, orientando o mesmo cada vez mais no sentido da troca, dissolvendo, assim, as relações de produção feudais – voltadas especificamente ao uso: “Quando, porém, ultrapassou esse estágio e começou a implicar o estabelecimento de centros de comércio e entrepostos locais um fator qualitativamente novo surgiu, pois esses centros, ainda que baseados no comércio a longa distância, tornaram-se inevitavelmente geradores de produção de mercadorias (...) Vemos, assim, como a troca a longa distância pôde ser uma força criativa, suscitando um sistema de produção para a troca paralelo ao antigo sistema feudal de produção para uso”. Dobb, por sua vez, considerava que forças conflituosas interiores ao próprio modo de produção feudal suscitaram sua superação: “Quanto ao ‘caráter conservador e imobilista do feudalismo europeu ocidental’, que exigiu alguma força externa para ser desalojado, e
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Não é difícil perceber que a circulação simples de mercadorias engendra uma série de formas jurídicas bastante modestas. Um simples contrato de compra e venda e algumas de suas variações são suficientes para cumprir com êxito as mediações necessárias a essas formas de circulação. Entretanto, o capital comercial e a forma de circulação que o traduz exigem formas jurídicas muito mais sofisticadas e complexas. O fator “tempo” exerce papel importante, bem como as formas pelas quais passa a circular o próprio crédito como elemento fundamental à expansão do comércio. O direito, nos modos de produção anteriores ao capitalista, permanece marginal na vida da sociedade. O capital comercial, porque se restringe à esfera da circulação, não tem a capacidade de se generalizar e tornar-se a forma hegemônica e determinante de todos os aspectos das “superestruturas”. Não ocorre, ainda, a “alteração significativa” que caracterizará todos os aspectos da vida moderna. Nesse período, portanto, é inútil pensar o ser humano como “sujeito de direito” ou atribuir ao mesmo características derivadas, como a qualidade de “cidadão”, portador de direitos subjetivos públicos. Pelo contrário, tais “formas de consciência social”218 correspondem, sempre, a um determinado estágio de evolução das forças produtivas e relações de produção, cuja determinação lógica – dialeticamente compreendida – é da esfera
que me acusam de haver negligenciado, me mantenho um tanto cético (...) Para mim houve uma interação dos dois, ainda que a ênfase, na verdade, recaia sobre as contradições internas; pois essas, acredito, operaram em todos os casos (ainda que em épocas bastante diferentes), e tendo em vista que eles determinaram a forma e a direção particulares dos efeitos provocados pelas influências externas”. DOBB, Maurice; SWEEZY Paul et al. A transição do Feudalismo para o Capitalismo: um debate. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.41/42 e 59/60 (passim). Ambos os autores, entretanto, são concordes na influência qualitativamente distinta operada pelo sistema de trocas no seio do modo de produção feudal, o que reforça o argumento central proposto por este trabalho. 218 MARX, Karl. Prefácio à Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.05.
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produtiva. Também não faz sentido, nesse momento, a concepção segundo a qual o poder político deve ser exercido por uma esfera “pública”, tutora de interesses da coletividade, separada e em oposição aos interesses privados, dos particulares. Contudo, acontecimentos históricos219, o desenvolvimento técnico das forças produtivas220 e a expansão das relações de produção sob a
219 “Também as categorias econômicas que observamos antes trazem a marca da história. A existência do produto como mercadoria implica determinadas condições históricas (...) Se tivéssemos ido mais longe em nossas pesquisas, investigando as circunstâncias sob as quais todos os produtos ou a maioria deles tomam a forma de mercadoria, ter-se-ia verificado que isto só ocorre num modo especial de produção, a produção capitalista (...) Com o capital é diferente. Suas condições históricas de existência não se concretizam ainda por haver circulação de mercadorias e dinheiro. Só aparece o capital quando o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra o trabalhador livre no mercado vendendo sua força de trabalho, e esta única condição histórica determina um período da História da humanidade. O capital anuncia, desde o início, uma nova época no processo de produção social”. Idem. O capital. Livro I. Op. cit., p.199/200. Itálicos meus. “É sabido o grande papel desempenhado na verdadeira história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato, em suma, pela violência. Na suave economia política, o idílio reina desde os primórdios. Desde o início da humanidade, o direito e o trabalho são os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se naturalmente o ano corrente. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva nada têm de idílicos (...) A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista”. Id., ibid, p.828. 220 “A técnica e a ciência aplicadas na produção capitalista devem ser entendidas como uma relação de exploração que se estabelece entre os capitalistas e os trabalhadores, como um método específico e aprimorado de extração de mais-valia relativa. Esse é o ‘princípio geral’ da maquinaria no capitalismo e o elemento do qual se deve partir na análise da mesma (...) Desse modo, foi possível que a revolução industrial fosse entendida por Marx como a passagem da subsunção formal à subsunção material do trabalho ao capital, caracterizada pela transformação dos instrumentos de trabalho de ferramentas e máquinas. O que permitiu compreender que
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forma do capital comercial, aderem paulatinamente à esfera da produção e passam a dominá-la definitivamente. A forma capitalista de circulação, que traz consigo a mediação jurídica nas etapas de compra (D-M) e venda de mercadorias (M-D’), deixa de caracterizar-se como momento autônomo, desconexo com a produção, e passa a integrar o
essa transformação realiza, na prática, o trabalho abstrato, ganhando uma existência real no processo de trabalho”. ROMERO, Daniel. Marx e a técnica: um estudo sobre os manuscritos de 1861-1863. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p.17 e 45. A passagem da subsunção formal à material do trabalho em face do capital é importante para a compreensão de como a forma circulação-capital passa a caracterizar também a esfera produtiva. István Mészáros explica: “Em termos históricos, podemos identificar três conjuntos de determinações que permanecem incorporadas à constituição estrutural do sistema do capital, como se fossem ‘camadas geológicas’ ou ‘arqueológicas’. Cronologicamente, a mais recente pertence à fase capitalista do desenvolvimento, que se estendeu apenas pelos últimos quatrocentos anos. Em compensação, a camada intermediária abrange uma escala de tempo bem maior, cobrindo muitos séculos em que emergem e se consolidam algumas mediações particulares de segunda ordem do capital, como acontece por exemplo com o primitivo capital monetário e comercial. Contudo, essas formas de mediação sociometabólicas resumemse apenas ao que Marx chama de ‘subordinação formal do trabalho ao capital’ – em comparação com a sua subordinação real sob as condições históricas específicas do capitalismo – como veremos no capítulo 17 (...) Assim, a divisão hierárquico-estrutural do trabalho, que, em seu devido momento, assume uma série de formas de dominação de classe, precede historicamente até as mais embrionárias manifestações do modo de controle do processo sociometabólico do capital. Contudo, através das mediações de segunda ordem do capital, a antiga divisão hierárquica do trabalho social assume uma forma historicamente específica, que pode explorar plenamente e de início utilizar para a acumulação do capital a subordinação formal do trabalho ao capital – base em que o cada vez mais poderoso capital pode chegar à incomparavelmente mais produtiva e lucrativa subordinação do trabalho a sim mesmo, resultando no triunfo global do sistema do capital plenamente desenvolvido, sob a forma da produção de mercadorias universalmente difundida”. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Op. cit., p.207.
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próprio núcleo produtivo. Ocorre o salto qualitativo histórico-dialético mais importante das sociedades humanas, pois a própria produção, a partir de então, organiza-se sob a forma capitalista221. Do ponto de vista jurídico, esse movimento ocasiona uma “revolução” nas relações entre os proprietários dos meios de produção e produtores diretos (trabalhadores), uma vez que a integração desses últimos aos insumos produtivos assume a forma contratual. “Um desenvolvimento autônomo e preponderante do capital enquanto capital comercial – explica Marx – equivale à não subordinação da produção ao capital, portanto ao desenvolvimento do capital com base em uma forma de produção que lhe é estranha e independente dele (...) O capital pode formar-se no processo de circulação, e tem de formar-se nele, antes de aprender a dominar seus extremos, as diferentes esferas da produção, entre as quais medeia a circulação (...) Essa autonomização do processo de circulação, no qual as esferas de produção estão ligadas entre si por um terceiro fator, expressa duas coisas. Por um lado, que a circulação ainda não se apoderou da produção, mas se relaciona com ela como pressuposto dado. Por outro, que o processo de produção ainda não absorveu em si a circulação como mero momento. Na produção capitalista, no entanto, ocorrem ambas as coisas. O processo de produção repousa completamente na circulação, e a circulação é mero momento, uma fase transitória da produção, apenas a realização do produto produzido como mercadoria de seus elementos de produção, produzidos como mercadorias (...) Dentro do modo de produção capitalista – isto é, assim que o capital se apoderou da própria produção e lhe deu uma forma completamente alterada e específica – o capital comercial aparece apenas como
221 “ ... sendo verdade que o capital comercial e usurário, portanto o capital que age dentro da circulação, precede historicamente o capital industrial, portanto, o capital produtivo, e sendo verdade também que este último tenha surgido a partir desse outro, o facto é que no capitalismo desenvolvido se passa exatamente o contrário: o capital comercial existe somente enquanto forma derivada do capital industrial e absorve uma parte da mais-valia criada por este”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.86.
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capital em uma função específica. Em todos os modos anteriores de produção – e tanto mais quanto mais a produção é produção direta dos meios de subsistência do produtor – o capital comercial aparece como sendo a função par excellence do capital”222. O “mergulho” da forma dinheiro do valor na esfera da produção, ou, de outra maneira, a alteração qualitativa operada no âmbito produtivo pela hegemonia da forma circulação-capital, introduz a necessidade de que o trabalhador, já agora completamente dissociado dos meios de produção, seja integrado a esses últimos por meio de um acordo de vontades, de um contrato ajustado com o capitalista. Nos modos de produção anteriores, o vínculo relacional entre o produtor direto (escravo ou servo), e o possuidor dos meios de produção era manifestamente político, vale dizer, pautava-se pela subordinação explícita. Já agora, no modo de produção capitalista, tal vínculo assume a forma contratual223, trazendo consigo toda a série de características formais decorrentes, como os pressupostos de liberdade, igualdade, propriedade e autonomia da vontade. Retomo o ensinamento marxiano citado páginas atrás e recordo que a “forma econômica específica em que se suga mais-trabalho não pago dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta surge diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage de forma determinante sobre ela”224. Nesse sentido, calha o ensinamento de Alaôr Caffé Alves: “Com o contrato (pacto) posto no centro mercantil do encontro entre o capital e a força de trabalho, objetivando a reprodução da vida material 222 MARX, Karl. O capital. Livro III. (Os economistas, Volume IV). Op. cit., p.245/247. 223 Cabe mencionar, uma vez mais, que o contrato entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário da força de trabalho assume a aparência de uma relação pautada pela igualdade. Entretanto, a pesquisa científica, desde a perspectiva do marxismo, permite que se revele sua essência oculta, que assume a forma de exploração, extorsão do sobretrabalho, ou seja, subordinativa em termos políticos também. 224 MARX, Karl. O capital. Livro III. (Os economistas, Volume V). Op. cit., p.235.
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de toda a sociedade, a origem de várias outras questões jurídicas é esclarecida sob o ângulo realista. Aqui, observa-se a relação entre o direito e as relações estruturais da sociedade e isso explica muitas das características do direito moderno, que é um direito abstrato e universal, porém específico de uma sociedade historicamente determinada: a sociedade capitalista. O nosso direito é um direito vinculado às exigências concretas das relações capitalistas de produção. É um direito burguês, que deve atender às condições específicas da lógica do capital, da acumulação capitalista, que não pode ser essencialmente contrariada, sob pena de haver subversão de todo o sistema, o que certamente não está nos planos das forças hegemônicas da sociedade. Os critérios jurídicos, para serem eficazes e operacionais, devem levar em conta as determinantes estruturais do sistema no qual se vive: a busca do lucro e a acumulação acelerada do capital”225. Quer dizer, um vínculo relacional qualitativamente diferente, entre proprietários dos meios de produção e produtores diretos (trabalhadores), pautado por um tipo de normatividade que expressa a aquiescência de vontades formalmente livres, iguais e autônomas e que caracteriza, a partir de então, as profundezas da esfera produtiva, mas “nisso é que se baseia toda a estrutura da entidade comunitária autônoma, oriunda das próprias relações de produção e, com isso ao mesmo tempo sua estrutura política peculiar”226. Tal vínculo relacional de novo tipo, resultado da hegemonia da forma circulação-capital também no âmbito produtivo reverbera, num movimento sempre dialético, de baixo a cima, em toda a série de “superestruturas”. Desse modo, também a “estrutura política peculiar”, ou seja, a forma política específica da modernidade – o Estado – assume, paulatinamente, uma série de características especiais que marcarão toda uma época da história humana.
225 ALVES, Alaôr Caffé. “Fundamentos do direito e meio ambiente”. In: PHILIPPI JR., Arlindo; ALVES, Alaôr Caffé. (orgs.) Curso interdisciplinar de direito ambiental. São Paulo: Manole, 2005, p.333. 226 MARX, Karl. O capital. Livro III. (Os economistas, Volume V). Op. cit., p.235. Itálicos meus.
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“O Estado moderno é, – explica Anselm Jappe – pois, uma criação da lógica da mercadoria. É a outra face da mercadoria; Estado e mercadoria estão ligados entre si como dois pólos inseparáveis (...) A lógica do valor baseia-se em produtores privados que não têm laço social entre si, e é por isso que essa lógica tem de produzir uma instância separada que se ocupe dos aspectos gerais (...) A política, longe de ser exterior ou superior à esfera econômica, move-se completamente no interior dela”227. O movimento executado pela circulação capitalista, propagado pela esfera produtiva, acaba por inverter o processo anterior. Como Marx assinala páginas atrás, o capital comercial torna-se apenas um momento derivado de todo o processo – e não mais a forma capital par excellence. Nessa perspectiva e contrariamente ao que a ideologia liberal propõe, o Estado não pode ser apreendido como esfera política apartada do âmbito econômico, ou como uma antítese do mesmo. Pelo contrário, todo esse processo de conquista da produção pela forma de circulação capitalista não poderia ter sido realizado sem que o poder político fosse utilizado como elemento aglutinador, ativador e constitutivo228. 227 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.157-158. 228 “Mas as coisas corriam de modo diverso durante a gênese histórica da produção capitalista. A burguesia nascente precisava e empregava a força do Estado, para ‘regular’ o salário, isto é, comprimi-lo dentro dos limites convenientes à produção da mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e para manter o próprio trabalhador num grau adequado de dependência. Temos aí um fator fundamental da chamada acumulação primitiva”. MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.851. “Os diferentes meios propulsores da acumulação primitiva se repartem numa ordem mais ou menos cronológica por diferentes países, principalmente Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, nos fins do século XVII, são coordenados através de vários sistemas: o colonial, o das dívidas públicas, o moderno regime tributário e o protecionismo. Esses métodos se baseiam em parte na violência mais brutal, como é o caso do sistema colonial. Mas todos eles utilizavam o poder do Estado, a força concentrada e organizada da sociedade para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção no modo capitalista, abreviando assim as etapas de transição. A força é a parteira de toda sociedade velha que traz uma nova em suas entranhas. Ela mesma é uma potência econômica”. Idem, ibidem, p.864. Capítulo XXIV: “A chamada acumulação primitiva”.
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O Estado, “a força concentrada e organizada da sociedade”, não exerce apenas um papel “político”; é, também, elemento constitutivo da própria formação econômica produtiva. Atua, por exemplo, como financiador das várias unidades capitalistas particulares, suportado pelo moderno sistema de tributação, como um Robin Hood às avessas. Seu papel de “agente econômico” é tão importante quanto seu papel “natural”, ou seja, eminentemente político. “A dívida do Estado, – ressalta Marx – a venda deste, seja ele despótico, constitucional ou republicano, imprime sua marca à era capitalista. A única parte da chamada riqueza nacional que é realmente objeto da posse coletiva dos povos modernos é ... a dívida pública (...) O crédito público torna-se o credo do capital. E o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, é substituído pelo de não ter fé na dívida pública. A dívida pública converte-se numa das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital, sem ser necessário que seu dono se exponha aos aborrecimentos e riscos inseparáveis das aplicações industriais e mesmo usurárias (...) Apoiando-se a dívida pública na receita pública, que tem que cobrir os juros e demais pagamentos anuais, tornou-se o moderno sistema tributário o complemento indispensável do sistema de empréstimos nacionais”229. A generalização da circulação capitalista pelo momento produtivo acarreta uma transformação nas relações de dominação “políticas”, imprimindo uma alteração qualitativa nessa série particular de “superestruturas”, que constituem, a partir de então, o Estado “moderno” propriamente dito230. Esse movimento desenvolve-se sob duas perspec-
229 Idem, ibidem, p.867/868/869 (passim). 230 “A nosso ver, o Estado é apenas uma forma de organização política e não pode, por consequência, ser identificado com toda organização política possível (...) O Estado, portanto, tem características peculiares que só cabem ser consideradas no âmbito de um modo específico de realização material da vida social, ou seja, do modo capitalista de produção. O conceito de Estado só pode ser referido à instância política do modo de produção capitalista e, por isso, seu tratamento teórico tem de levar em conta não esquemas formais de poder válidos para
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tivas principais: primeiro, uma aparente separação entre interesses privados (das unidades produtivas particulares), de um lado, e interesses “públicos”, ou seja, de toda a “coletividade”, de outro – aqui se situa a aparente seção entre sociedade civil e Estado, característica da sociedade burguesa231. Em segundo lugar, a necessidade de controle da classe dos produtores diretos (os trabalhadores assalariados), que agora não estão vinculados aos proprietários das unidades produtivas por relações diretas de subordinação, mas por uma relação aparentemente jurídica, caracterizada pela forma contratual. O Estado torna-se a forma política específica de uma infraestrutura econômica qualitativamente distinta. O poder político estatal
todas as épocas, mas características inconfundíveis e identificáveis precisamente em razão do singular funcionamento do sistema econômico de mercado, cuja predominância se deu a partir do século XV (...) Assim, a utilidade do conceito de Estado se caracteriza exatamente pelo poder de explicar, de forma exclusiva, a específica organização política do modo capitalista de produção”. ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. Op. cit., p.211-214 (passim). 231 “Por esse enfoque, já se pode perceber a distinção, que vai tornar-se evidente a partir do século XVI, entre Estado e sociedade civil; o Estado se apresenta como algo distinto da sociedade civil, em que pese ser, ao mesmo tempo, a exata expressão desta. Como forma estrutural de organização política de um modo específico de produção, o da sociedade onde predomina o sistema de mercado, a referência ao conteúdo político dessa forma de poder não pode ser outra senão a relação entre capital e trabalho assalariado (...) Entretanto, o Estado não aparece diretamente como expressão dessa contradição, mas, ao contrário, aparece como forma política promotora da coesão social, como forma que busca o interesse coletivo, a harmonia e a ordem, conceitos esses expressos no singular gramatical cujo objetivo é disfarçar ideologicamente, sob o manto do abstrato indiferente ou da neutralidade universal, exatamente uma determinada harmonia, uma específica ordem, a ordem capitalista de produção”. ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. Op. cit., p.223. “Esta diversidade estrutural de funções produz uma separação extremamente problemática entre ‘sociedade civil’ e Estado político sobre a base comum do conjunto do sistema do capital, de que são partes constitutivas as estruturas básicas (ou órgãos metabólicos)”. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Op. cit., p.117.
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caracteriza-se por ser, simultaneamente, o resultado e a condição de possibilidade da generalização da forma contratual por todo o momento produtivo. “É assim que o Estado do sistema do capital alcança sua enorme importância, – assinala István Mészáros – não somente como a estrutura reguladora global das contingentes relações políticas, mas também como um constituinte material essencial do sistema no seu todo, sem o qual o capital não poderia firmar-se como força controladora do modo estabelecido de reprodução sociometabólica”232. A normatividade política engendrada pelo Estado é resultado da necessidade de consolidar e garantir as relações contratuais que ocorrem nos momentos dialeticamente entrelaçados da circulação e da produção. Trata-se do resultado e, ao mesmo tempo, do elemento constituinte dessas novas relações de produção; assume, por isso, também, uma forma específica. Essa normatividade política de novo tipo cumpre uma série de funções, mas duas são especialmente importantes: primeiro, efetua a composição dos interesses conflituosos existentes entre as várias unidades capitalistas entre si – ou seja, mantém a concorrência dentro de limites toleráveis233; segundo, leva a 232 MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Op. cit., p.839. 233 “Como vimos acima, o sistema do capital é constituído por componentes incorrigivelmente centrífugos, em cuja base se encontra a igualmente incorrigível ligação estrutural conflitiva comum a todos os seus componentes, desde o microcosmo até as maiores corporações transnacionais. O capital, como totalidade social, mantém a força centrífuga sob controle (e deve fazê-lo de uma forma adequada) por meio das regras universalmente dominantes e das determinações estruturais que objetivamente definem o próprio capital como um modo de controle sociometabólico. As determinações em questão são internas não apenas ao sistema como um todo, mas também a cada um de seus componentes particulares do capital, não obstante os interesses conflitantes de uns vis-à-vis dos outros. Sem compartilhá-los – o que simultaneamente também significa compartilhar o vital interesse comum de serem partes do sistema de controle da reprodução sociometabólica, do qual emerge a consciência de classe autocentrada das ‘personificações do capital’ –, não poderiam operar entre si como pluralidade de capitais afirmando seus interesses particulares dentro das restrições estruturais globais e da autopreservação dinâmica de seu sistema em toda situação histórica dada. Eis como o capital
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cabo o controle político da classe trabalhadora234. Tais funções – dentre outras, claro – são a gênese lógica da forma política “lei”, categoria “racionalizada” pela ideologia do capital como normatividade oriunda de uma suposta “vontade geral” ou de um suposto “interesse coletivo”, tutelados pelos representantes do povo. Nesse contexto, tanto a forma como o conteúdo da lei são consequências das alterações qualitativas do momento produtivo, acima mencionadas. A primeira, porque sua criação é resultado de uma organização política autônoma, o Estado, aparentemente apartado da sociedade civil e tutor dos interesses “públicos”. O segundo, porque o conteúdo da lei representa a garantia de reprodução das relações capitalistas materiais, caracterizadas pela extração predominantemente econômica do sobretrabalho – que, no capitalismo, assume a forma de mais-valia. Essa série de constatações é importante, porque revela como a integração dialética das formas econômicas, jurídicas e políticas é condição pela qual o capitalismo obteve êxito na luta pela dissolução em si, articulado como modo de reprodução sociometabólica atualmente existente, pode manter sob controle a instransponível força centrífuga de suas partes constituintes. Não simplesmente anulando esta força – com o que o sistema do capital deixaria de ser um sistema viável sui generis – mas, complementando-a por meio dos imperativos da reprodução sistêmica global e, desse modo, apenas impedindo o impacto desintegrador das insuperáveis interações de conflito”. Idem, ibidem, p.839. 234 O controle da classe trabalhadora não é levado a cabo apenas pelo exercício da violência, monopólio do Estado. Está alicerçada, na verdade, sobre uma série de componentes, ideológicos inclusive, que se elevam sobre uma real comunhão de interesses, consistente na manutenção da existência do todo social. “De certo modo, essa ambiguidade reflete aquela já examinada no que respeita aos interesses das classes antagônicas, caracterizados como dominantemente conflitivos e, ao mesmo tempo, relacionados com uma paradoxal identidade ou comunhão expressa nas formas ideológicas de suas manifestações aparentes. A comunhão aparente dos interesses de agrupamentos sociais economicamente opostos e antagônicos não é meramente imaginária, pois tem fundamento na realidade das exigências comuns de sobrevivência da sociedade global e na socialização da produção”; ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. Op. cit., p.191.
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de outros modos de produção e na conquista da hegemonia na organização das relações socioeconômicas, em praticamente todo o globo terrestre. A generalização da forma circulação-capital até o ponto em que agasalha hegemonicamente a esfera produtiva, não se teria operado se as formas políticas também não tivessem se alterado qualitativamente, de molde a integrar, constitutivamente, a esfera econômica. “(...) o Estado moderno – explica István Mészáros – como única estrutura corretiva viável não surge depois da articulação de formas socioeconômicas fundamentais, nem como mais ou menos diretamente determinado por elas. Não há dúvidas quanto à determinação unidirecional do Estado moderno por uma base material independente, pois a base socioeconômica do capital é totalmente inconcebível separada de suas formações de Estado”235. A essa altura da exposição, espero que o leitor tenha compreendido que a dimensão eminentemente política da sociedade capitalista, o Estado “moderno” é, simultaneamente, resultado e condição do desenvolvimento das formas capitalistas de produção. Proponho, então, a seguinte questão: seria possível “isolar” a troca de mercadorias do contexto sociopolítico específico dentro do qual está inserida? Esse problema coloca-se no íntimo da própria concepção marxiana a respeito das relações dialéticas entre “superestrutura” e “infraestrutura”. “As falhas estruturais de controle que vimos antes – assinala István Mészáros – exigiam o estabelecimento de estruturas específicas de controle capazes de complementar – no nível apropriado de abrangência – os constituintes reprodutivos materiais, de acordo com a necessidade totalizadora e a cambiante dinâmica expansionista do sistema do capital”236. “Foi assim que se criou o Estado moderno – continua o autor húngaro, nesta importante passagem – como estrutura de comando político de grande alcance do capital, tornando-se parte da ‘base material’ do sistema tanto quanto as próprias unidades reprodutivas socioeconômicas (...) Assim, seria completamente equivocado descrever o próprio Estado como uma superestrutura. Na qualidade de estrutura totalizadora de 235 MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Op. cit., p.117. 236 Idem, ibidem, p.118/119.
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comando político do capital (o que é absolutamente indispensável para a sustentabilidade material de todo o sistema), o Estado não pode ser reduzido ao status de superestrutura. Ou melhor, o Estado em si, como estrutura de comando abrangente, tem sua própria superestrutura – a que Marx se referiu apropriadamente como ‘superestrutura legal e política’ – exatamente como as estruturas reprodutivas materiais diretas têm suas próprias dimensões superestruturais (...) Como estrutura de comando político abrangente do sistema do capital, o Estado não pode ser autônomo, em nenhum sentido, em relação ao sistema do capital, pois ambos são um só e inseparáveis”237. Finalmente, Mészáros formula uma constatação de suma importância para o presente trabalho: “Em outras palavras, a dinâmica do desenvolvimento não deve ser caracterizada sob a categoria do ‘em consequência de’, mas em termos do ‘em conjunção a’ sempre que se deseja tornar inteligíveis as mudanças no controle sociometabólico do capital que emergem da reciprocidade dialética entre sua estrutura de comando político e socioeconômico”238 Assinalo agora o ponto culminante do problema sobre o qual nos debruçamos até o presente momento: a hegemonia do modo de produção capitalista, que ocorreu com a conquista da esfera produtiva pela forma de circulação especificamente capitalista, apenas foi possível porque se constituiu, simultaneamente, uma forma política qualitativamente distinta, que tem por objetivo assegurar o livre desenvolvimento das forças econômicas, bem como cumprir as funções naturalmente políticas, tais como assegurar a coesão social, a segurança interna, as relações externas e assim por diante. Nesse sentido, as trocas de mercadorias e, consequentemente, as relações jurídicas que se desenvolvem no seio da forma circulação-capital, não podem ser devidamente compreendidas, a não ser que se considere a forma política, ou seja, o Estado “moderno”, como elemento constitutivo dessas mesmas relações, e não como algo que está acima ou é posterior às mesmas. 237 Id., ibid., p.119 (passim). 238 Id., ibid., p.119.
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Compreende-se, pois, que a partir da perspectiva sustentada no presente trabalho, não é possível “apartar” as formas econômicas das formas políticas239. Vale dizer, não se pode “separar” as trocas de mercadorias e as formas jurídicas que a acompanham, de suas manifestações políticas específicas. Finalmente, não há como “cindir” as normatividades jurídica e política, posto que se constituem justamente por intermédio dessa precisa relação dialético-material. “Na verdade, – ensina István Mészáros – o Estado moderno pertence à materialidade do sistema do capital, e corporifica a necessária dimensão coesiva de seu imperativo estrutural orientado para a expansão e para a extração do trabalho excedente. É isso que caracteriza todas as formas conhecidas de Estado que se articulam na estrutura da ordem sociometabólica do capital (...) Entretanto, o princípio estruturador do Estado moderno, em todas as suas formas – inclusive as variedades pós-capitalistas –, é o seu papel vital de garantir e proteger as condições gerais de extração da mais-valia do trabalho excedente”240. 239 Sob pena de se perder de vista a conexão dialética que confere sentido a ambas. 240 MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Op. cit., p.121. O poder político – o Estado – é tão essencial para o desenvolvimento do capital – ao contrário do que a ladainha neoliberal prega no presente período histórico – que nos locais em que não houve uma acomodação de interesses entre as classes aristocrática e burguesa, a revolução foi o toque de recolher definitivo do antigo regime: “Houve três ondas revolucionárias principais no mundo ocidental entre 1815 e 1848 (...) A primeira ocorreu em 1820-4. Na Europa, ela ficou limitada principalmente ao Mediterrâneo, com a Espanha (1820), Nápoles (1820) e a Grécia (1821) como seus epicentros (...) A segunda onda revolucionária ocorreu em 1829-34, e afetou toda a Europa a oeste da Rússia e o continente norte-americano, pois a grande época de reformas do presidente Andrew Jackson (1829-37), embora não diretamente ligada aos levantes europeus deve ser entendida como parte dela (...) A terceira e maior das ondas revolucionárias, a de 1848, foi o produto desta crise. Quase que simultaneamente, a revolução explodiu e venceu (temporariamente) na França, em toda a Itália, nos Estados alemães, na maior parte do império dos Habsburgo e na Suíça (1847) (...) Nunca houve nada tão próximo da revolução mundial com que sonhavam os insurretos do que esta conflagração espontânea e geral, que conclui a era analisada neste livro. O que em 1789 fora o levante de uma só nação era agora, assim parecia, ‘a primavera dos povos’ de todo um continente”. HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. Op. cit., p.160-163 (passim).
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Podemos concluir, portanto, que na circulação-capital a extração da mais-valia tem que conviver, simultaneamente, com a mediação jurídica. Por isso, o mergulho do valor na esfera produtiva sob a forma de mercadoria, para que se banhe no trabalho vivo e se valorize, tem que ser assegurado por uma forma política específica – o Estado. Este, por sua vez, deve garantir o controle da classe produtora direta, a extração do mais-trabalho produzido pela mesma, preservar as formas jurídicas de mediação dos capitais particulares entre si e a forma contratual de integração da força de trabalho aos meios de produção. Mais uma vez, todo esse processo deve ser encarado do ponto de vista da totalidade concreta em movimento, sendo certo que cada parcialidade haure seu sentido da totalidade. Uma vez que o leitor tenha compreendido que a relação social que assume a forma de “troca de mercadorias” não é uma e mesma sempre, mas detém características específicas, de acordo com a finalidade visada e com o modo de produção dentro do qual esteja inserida, é possível retomar o ensinamento epistemológico marxiano segundo o qual o capital “constitui necessariamente o ponto de partida e o de chegada” da análise científica241. Se introduzirmos a teoria pachukaniana do direito dentro da série de apontamentos efetuados até o momento e admitirmos como ponto de partida de análise a forma expressa pela circulação capitalista (D-M-D’), constataremos que suas categorias e seu pensamento, de um modo 241 “O capital é a força econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Constitui necessariamente o ponto de partida e o ponto de chegada e deve ser explicado antes da propriedade fundiária. Seria portanto impossível e errado classificar as categorias econômicas pela ordem em que foram historicamente determinantes. A sua ordem é pelo contrário determinada pelas relações que existem entre elas na sociedade burguesa moderna e é precisamente contrária ao que parece ser a sua ordem natural ou ao que corresponde à sua ordem de sucessão no decurso da evolução histórica. Não está em questão a relação que se estabeleceu historicamente entre as relações econômicas na sucessão das diferentes formas de sociedade”. “Introdução à crítica da economia política – O método da economia política”. In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.257.
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geral, têm modificados seus sentidos e importância, como se fossem submetidos a “uma iluminação geral em que se banham todas as cores e que modifica as tonalidades particulares destas”242. Talvez não seja exagero considerar um genuíno “ponto de partida hermenêutico”. Isso porque, dependendo da escolha que o intérprete faça quanto ao sentido específico da categoria “troca de mercadorias” à qual se refere Pachukanis, os sentidos oriundos dessa escolha serão completamente diferentes, “como um éter particular que determina o peso específico de todas as formas de existência que aí se salientam”243. Se a troca de mercadorias expressa pela forma circulação-capital, ao apoderar-se da esfera produtiva, tem, necessariamente, que contar com uma forma política qualitativamente distinta, que seja elemento constitutivo dessa mesma relação, toda a série de críticas que consideram a teoria pachukaniana como “economicista”, “circulacionista”, ou “antinormativista”, perdem o sentido. Isso porque, como tentei demonstrar, o aspecto político, normativo, estatal, está implícito na categoria “forma mercantil”, desde que se tenha o cuidado de assinalar que se trata da troca que se insere na forma circulação-capital244. A afirmação pachukaniana segundo a qual a relação prevalece sobre a norma pode ser apreendida sob outra perspectiva. É possível,
242 Idem, ibidem, p.256. 243 Id., ibid., p.256. 244 Comentando A teoria geral do direito e o marxismo, Cerroni assim se manifesta: “E, acrescentamos nós, não recorre às normas jurídicas porque, tendo visto que a relação econômica não é constituída pelas normas, não viu, no entanto, que ela própria constitui (postula) as normas jurídicas. Em última análise, estas, e todo o sistema publicista que se insere no fenômeno do Estado político-jurídico moderno, são completamente estranhas à análise que empreendeu”. CERRONI, Umberto. O pensamento jurídico soviético. Op. cit., p.73/74. De fato, pode-se redarguir: não teria deixado de ver – Cerroni – que Pachukanis, utilizando o texto epistemológico marxiano da Introdução de 1857 – como ele mesmo, Cerroni, adverte (conferir nota de rodapé nº. 23. p.32) – teria partido da forma circulação-capital e, assim, essa normatividade jurídica constituída economicamente estaria, pois, implícita e, portanto, presente na análise que empreendeu?
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então, compreender que Pachukanis não alija a norma posta pelo Estado como uma forma possível do direito, mas apenas a situa num contexto em que a precedência lógica fica a cargo da relação material. “O direito, – explica o autor russo – enquanto fenômeno social objetivo, não pode esgotar-se na norma ou na regra, seja ela escrita ou não. A norma como tal, isto é, seu conteúdo lógico, ou é deduzida diretamente das relações já existentes ou, então, representa quando é promulgada como lei estadual apenas um sintoma que permite prever com certa probabilidade o futuro nascimento das relações correspondentes (...) O poder do Estado confere clareza e estabilidade à estrutura jurídica, mas não cria as premissas, as quais se enraízam nas relações materiais, isto é, nas relações de produção”245. Se Pachukanis estivesse munido da preocupação epistemológica de assinalar que trata especificamente da troca de mercadorias que se insere no circuito da circulação-capital, essa problemática poderia ser encarada de outra maneira246. Isso porque, já na estrutura de sentido 245 PACHUKANIS. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.49-55 (passim). Perceba-se que, segundo o autor russo, “as premissas” da “estrutura jurídica” se enraízam “nas relações de produção”. 246 No capítulo quinto de sua obra, intitulado “Direito e Estado”, pode-se encontrar o centro nevrálgico da postura metodológica pachukaniana, por meio da qual a “troca de mercadorias” permanece encarcerada nos limites do falso concreto. O autor russo deixa de grafar a diferença essencial que existe entre as várias modalidades de trocas de mercadorias. “A ‘relação jurídica’ – inicia-se assim o capítulo – não pressupõe por sua ‘natureza’ um Estado de paz, assim como também o comércio originariamente não exclui o roubo a mão armada, mas antes, pelo contrário, utiliza-o”. Idem, ibidem, p. 90. De qual “relação jurídica” está falando Pachukanis? Daquela vinculada à troca direta, à circulação simples ou à circulação-capital? Em verdade, no trecho citado o autor trata da troca direta e da forma simples de circulação, destacando: “Na realidade, nós cuidamos de uma forma jurídica embrionária que ainda não desenvolveu em si mesma as determinações opostas e correlativas de ‘direito privado’ e de ‘direito público’. Eis a razão por que todo o poder que possua os traços das relações patriarcais ou feudais é, ao mesmo tempo, caracterizado pela predominância do elemento teológico sobre o elemento jurídico. A interpretação jurídica, isto é, racional do fenômeno do poder não se torna possível a não ser com o desenvolvimento da
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referida a essa categoria, ter-se-ia a noção exata do papel cumprido pela forma política estatal. Como busquei assinalar, trata-se de uma forma econômica dialeticamente constituída pela política. A partir desse ponto de vista específico – o da forma de circulação capitalista – introduz-se na estrutura de sentido referida à categoria “troca de mercadorias” toda a série de considerações até aqui elaboradas. O leitor está apto a perceber, então, que a norma política posta pelo Estado – legal ou costumeira – é elemento constitutivo do circuito de trocas capitalistas e das relações jurídicas daí decorrentes, bem como responsável por sua hegemonia definitiva. Como propõe uma aparente “seção” entre a relação mercantil, de um lado, e a relação política, de outro, o autor russo pode analisar o Estado sob duas perspectivas distintas: o poder político apartado das relações de troca e a organização política que se coloca como garante dessas mesmas relações. “O Estado, – assinala Pachukanis – enquanto organização do domínio de classe e enquanto organização destinada a travar guerras externas, não necessita de interpretação jurídica e muito menos a permite. É um setor onde reina a chamada razão de Estado que nada mais é do que o princípio de oportunidade pura e simples. A autoridade como fiadora da troca mercantil, em contrapartida, não só pode exprimir-se na linguagem do direito, mas revelar-se ela própria, também, como direito e somente como direito, ou seja, confundir-se totalmente com a norma abstrata objetiva”247. A análise pachukaniana do Estado situa-se em um terreno logicamente delicado. Ao separar e contrapor, o Estado, como “organização do domínio de classe”, de um lado, e como “fiador da troca mercantil”,
economia monetária e o do comércio. Apenas tais formas econômicas criam a oposição entre a vida pública e a vida privada que, com o tempo, reveste um caráter ‘eterno’ e ‘natural’ e que constitui o fundamento de toda teoria jurídica do poder”. Id., ibid., p.92. Entretanto, a “economia monetária” e o “comércio” existiam já desde os primórdios da humanidade. Falta ressaltar o contexto específico dentro do qual esses dois elementos têm que estar inseridos para que produzam os efeitos propugnados pelo autor, qual seja, a hegemonia na esfera produtiva. 247 Id., ibid., p.93.
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de outro, Pachukanis afasta justamente a característica específica da forma estatal do sistema capitalista: a união dialética entre forma política e forma jurídica; um domínio de classe que se constitui efetivamente por intermédio do predomínio de relações de valor, vale dizer, de relações jurídicas. A forma estatal que prescinde da interpretação jurídica ou que simplesmente não a permite é, antes, a exceção do que a regra. A passagem da subsunção formal à subsunção material do trabalho ao capital, ou seja, a extensão, à esfera produtiva, das características específicas das trocas que constituem a circulação capitalista, impõe uma alteração qualitativa às formas políticas. O Estado passa a caracterizar-se por ser elemento constitutivo dessas relações. Sua própria ontologia não pode ser compreendida apartando-o das mesmas. Não está acima ou ao lado delas, mas compõe tais relações. “Como nesses múltiplos conflitos o direito não pode fundamentar-se apenas em seu conteúdo ético, – ensina Alaôr Caffé Alves – ele não dispensa, para a sua validade e realização efetiva, o poder subjacente às relações jurídicas, que assim se qualificam exatamente por agasalharem a possibilidade de se exigir de forma legitimada o cumprimento das obrigações correspondentes mediante o exercício, se necessário for, da coação invocada ao Estado. Portanto, a garantia da eficácia das relações contratuais privadas assenta-se na virtualidade dessa invocação, a despeito de esta ser poucas vezes atualizada, se considerarmos a totalidade dos negócios jurídicos emergentes num determinado período de tempo. Como a coerção oficial é a força legitimada pelo próprio Direito destinada a dobrar a possível resistência da vontade rebelde ao cumprimento do pactuado, seu monopólio concentrado nas mãos do Estado define um complexo cautelar que permite destacar com segurança e certeza esse agente político afiançador do sistema social como um todo. Nesse sentido, a relação contratual privada encontra sua condição de possibilidade não apenas no acordo ético de vontades livres e na igualdade formal das partes, mas também, e principalmente, na garantia implícita pela capacidade de invocação do Estado para, no caso de inadimplência, determinar sua efetivação forçada, especialmente quando, no caso da contratação da força de O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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trabalho pelo capital, se trata de uma relação materialmente desigual e conflitiva. Assim, a coatividade ou a possibilidade de exercer a coação, mediante a mobilização de recursos estatais, torna-se essencial à configuração da relação contratual”248. Tratar a categoria “troca de mercadorias” de forma abstrata, leva Pachukanis a generalizações do tipo: “Na medida em que a sociedade representa um mercado, a máquina do Estado estabelece-se, com efeito, como a vontade geral, impessoal, como a autoridade do direito etc. No mercado, como já foi visto, cada consumidor e cada vendedor é um sujeito jurídico por excelência. Nesse momento, quando entram em cena as categorias do valor e do valor de troca, a vontade autônoma dos que trocam impõe-se como condição indispensável”249. Podemos perguntar: de que mercado fala o autor? O mercado que se caracteriza por relações do tipo M-D-M, ou seja, que giram em torno da simples metamorfose das mercadorias? Ou o mercado que expressa a forma D-M-D’, o mercado da realidade efetiva (Wirklichkeit) do capitalismo? A troca de mercadorias acaba por ser inserida numa concepção abstrata de “mercado”, que não coloca em relevo as formas específicas de intercâmbio por intermédio das quais se constitui concretamente esse último. A apreensão da forma mercadoria recai no pseudoconcreto. “O contrato entre partes iguais e livres (formalmente) – assinala Alaôr Caffé Alves – pressupõe a necessária, permanente e implícita possibilidade de evocação do Estado, o que resulta na sua presença submersa e constante para assegurar a vigência e execução da relação contratual. A presença tácita e subjacente do Estado é, nessa relação, componente essencial da própria relação, visto que sem esse elemento constitutivo, a relação não seria dotada de recursos de poder territorialmente excludente para sustentá-la, se preciso for, sob a ameaça de sanções. Essa virtualidade pública do pacto aparentemente privado é elemento interno da relação que aparece desde o seu início e marca 248 ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. Op. cit., p.263/264. 249 PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.97.
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objetivamente os limites do pactuado pelas partes, isto é, do que podem decidir ou descumprir, orientando seus objetivos e expectativas com relação à validade, eficácia e formas de execução do contrato. Nesse sentido, a patente garantia do Estado, com subliminar presença nas relações contratuais privadas, especialmente no que se refere à fiança da articulação contraditória das relações de produção no marco dos limites toleráveis do sistema capitalista, não é acrescentada de fora, posteriormente ou de modo circunstancial, àquelas relações, visto que, como já foi dito, faz parte intrínseca, originária e constitutiva delas mesmas”250. O processo de concretização da categoria que expressa a relação social que assume a forma de “troca de mercadorias” e sua inserção no aparato teórico pachukaniano têm como objetivo fornecer uma resposta às diversas correntes críticas de seu pensamento. Insisto que
250 ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. Op. cit., p.264/265. “Como as relações contratuais, nesses termos, compreendem interesses radicalmente diferentes – visto que a força de trabalho resiste ao capital –, está claro que a possibilidade da ação coercitiva estatal deve estar sempre presente para o caso de as estruturas hegemônicas da sociedade não serem suficientes na contenção dos antagonismos sociais aflorados pelo movimento contraditório entre o capital e o trabalho. Assim, a possibilidade de se exercer a coação legítima, através das instituições estatais, está sempre presente, mesmo nas relações privadas, como condição de sua garantia e vigência no âmbito de um território determinado (...) Nesse sentido, a lei da estrutura social burguesa sobrepõe-se às relações concretas, singulares e contingentes; entretanto, se levarmos em conta apenas essa contingência, fora do determinismo social dialético (não natural), fatalmente cairemos no plano das ilusões ideológicas mistificadoras da realidade. Isso nos permite considerar que a ausência de coação direta do capitalista singular e de compulsão política estatal, para obrigar à venda da força de trabalho, é precisamente a condição indispensável à formação da paradoxal e objetiva aparência de igualdade e liberdade nas relações contratuais privadas. Aqui, portanto, já se percebe com maior clareza a razão da dissociação entre a coerção física (extra-econômica) a e coerção econômica, entre violência coativa oficial e o constrangimento econômico, enfim, entre o Estado e a sociedade civil”. Idem, ibidem, p.270-272 (passim). O d i r e i to e a m e rca d o r i a
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talvez não seja exagero propugnar por um novo “ponto de partida hermenêutico”. Vale ressaltar que tal perspectiva decorre diretamente da intelecção das obras de Karl Marx – especialmente de O capital –, no espírito de retomada do projeto marxiano e de interpretação do pensamento de Pachukanis sob este prisma particular. A crítica que se limita a atacar a vinculação da forma do direito à forma mercantil denunciando o “economicismo”, “circulacionismo” ou “antinormativismo” da teoria pachukaniana vê-se em complicações quando se lhe pergunta: de que forma mercantil falas? Daquela que expressa a troca direta, da que se insere na circulação simples, ou daquela que constitui a circulação-capital? Cada uma dessas formas adquire um sentido específico e oposto. A última designa uma relação mercantil que não se generaliza, não se torna hegemônica, sem uma alteração qualitativa do âmbito produtivo e sem o respectivo aparato normativo político constitutivo. “Circulacionismo”, “economicismo”, “antinormativismo”? Esse “ponto de partida hermenêutico” permite o enfrentamento de tais “acusações” com um arsenal teórico mais eficaz. A mente estreita do positivista não consegue enxergar o direito fora do horizonte da “norma”. Ao deparar-se com a concepção pachukaniana do direito, tende a remetê-la aos confins da “tradição do direito natural”. Isso quando sua repugnância ao marxismo não o afasta de qualquer contato com A teoria geral do direito e o marxismo. Infelizmente, esse ponto de vista raso contaminou mesmo as correntes mais críticas do pensamento jurídico. Uma quase unanimidade insiste em perguntar: mas onde está a norma? Precisamos da norma! Respondo: a norma está aí. A generalização da forma circulaçãocapital torna imprescindível a presença da norma posta pelo Estado como elemento constitutivo da própria forma jurídica. Adotando-se esse ponto de partida hermenêutico, complicam-se as coisas para os críticos; o exercício da reflexão passa a ser necessário. A teoria do direito de Pachukanis fere alguns aspectos decisivos para a compreensão do momento jurídico das relações humanas. Sua preocupação metodológica, bem como as formulações efetuadas com base nas considerações marxianas sobre a forma jurídica, colocam 166
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sua obra dentre as mais respeitáveis de todos os tempo. Entretanto, tratar a relação social que assume a forma de “troca de mercadorias” como uma e mesma sempre, acarreta o aprisionamento da categoria que a expressa nos limites do falso concreto. Sua concepção pode acabar confinada, sob determinado ponto de vista, ao momento da circulação. Entretanto, como afirma Marx, a verdadeira ciência só começa quando o “exame teórico passa do processo de circulação para o processo de produção”: “O primeiro tratamento teórico do modo de produção moderno – o sistema mercantilista – partiu necessariamente dos fenômenos superficiais do processo de circulação, como eles estão autonomizados no movimento do capital comercial, e por isso captou apenas a aparência. Em parte porque o capital comercial é o primeiro modo de existência livre do capital em geral. Em parte por causa da influência preponderante que exerce no primeiro período de revolucionamento da produção feudal, no período de surgimento da produção moderna. A verdadeira ciência da economia moderna só começa onde o exame teórico passa do processo de circulação para o processo de produção”251.
251 MARX, Karl. O capital. Livro III. São Paulo: Abril Cultural, 1986. (Os economistas, Volume IV), p.252. Itálicos meus. “Os marxistas fizeram eles mesmos aquilo que tanto gostavam de criticar aos seus adversários, nos termos de uma polémica esteriotipada: fixaram-se na circulação e perderam de vista a produção. Na verdade, consideravam, à semelhança da economia política burguesa, o modo de produção capitalista como sendo eterno e pré-social, uma vez que o identificavam com as forças de produção no sentido técnico. Os marxistas sabiam que a categoria essencial em Marx é a produção e que na relação com a produção a circulação é uma esfera subordinada”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Op. cit., p.94,95.
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04. A PRETEXTO DE CONCLUSÃO No prefácio da segunda edição de A teoria geral do direito e o marxismo, Pachukanis aponta uma série de “defeitos”252 que marcam seu trabalho, dentre os quais, a abstração, a forma concisa – quase um esboço de exposição –, o aspecto unilateral e a concentração da atenção em determinados pontos específicos. Entretanto, relata que, perfeitamente consciente dessas insuficiências, opta por não suprimi-las. E isso por uma razão simples: a crítica marxista da teoria geral do direito estava, à sua época, apenas no início. Qualquer conclusão definitiva seria precipitada e um profundo estudo crítico era mais do que necessário. Pergunta-se: a situação, hoje em dia, é muito diferente? Analisei, neste trabalho, apenas alguns aspectos do pensamento pachukaniano. Tentei demonstrar como a troca de mercadorias não pode ser considerada de maneira isolada, apartada do contexto dentro do qual está inserida. Ressaltei que a forma mercantil, na circulaçãocapital, precisa apropriar-se da recôndita esfera produtiva, sem a qual sua sobrevivência e hegemonia não são asseguradas. Esse mergulho exige, para seu sucesso, uma forma política qualitativamente distinta, que passa a ser constitutiva dessas novas relações de produção. A conclusão é que a reprodução desse mecanismo todo necessita do Estado. A relação jurídica, umbilicalmente relacionada à mercantil, não repele, ao contrário, exige a forma política estatal. Assim, as acusações de que a teoria pachukaniana seria “circulacionista”, “economicista”,
252 A expressão é do próprio autor. Teoria geral do direito e marxismo. Op. cit., p.07.
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“reducionista” ou “antinormativista”, podem ser encaradas com olhar mais crítico. O término deste trabalho só pode ser encarado como um “novo começo”253. Não apenas a análise da teoria pachukaniana merece ser aprofundada, ressaltando suas conexões à luz do que foi exposto, como também o próprio pensamento marxiano, pouco explorado por esse viés. Se Marx não se debruçou diretamente sobre o direito, isso deveria servir como estímulo à crítica marxista e não como elemento justificador de uma distância irresponsável. O pensador alemão iniciou seu percurso seguindo a trilha da economia política de sua época. Em uma determinada altura, alterou completamente a rota. Assumindo a perspectiva da classe trabalhadora, pôs-se a seguir novo e revolucionário caminho, abrindo passagem com novas e próprias ferramentas intelectuais. Para o direito, a direção está apontada; do que se trata, é de caminhar. A importância da crítica marxista do direito é patente. Justificála à luz da crise de imensa proporção pela qual passa a sociedade “pós-moderna” parece desnecessário. Entretanto, os mecanismos de controle – principalmente os ideológicos – cumprem muito bem sua função. A humanidade segue embriagada, impressionada pelas maravilhas proporcionadas pelo mundo da mercadoria. Portanto, uma vez mais, é preciso repetir: a crise não é uma crise do “homem”, mas do homem sob o capital254. A ciência e a filosofia tradicionais, 253 “Com efeito, a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização; nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado junto com seu vir-a-ser. O fim para si é o universal sem vida, como a tendência é o mero impulso ainda carente de sua efetividade; o resultado nu é o cadáver que deixou atrás de si a tendência (...) Portanto, o resultado é somente o mesmo que o começo, porque o começo é fim, ou, [por outra], o efetivo só é o mesmo que seu conceito, porque o imediato como fim tem nele mesmo o Si, ou a efetividade pura”. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Op. cit., p. 27 e 37 (passim). 254 “Mas a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”. MARX, Karl. “Teses sobre Feuerbach”. In, A ideologia alemã. Op. cit., p.101.
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postas do ponto de vista da classe dominante, não encontram – e não podem encontrar –, qualquer solução. Seus olhos estão inebriados pelos limites do sistema. E poderia ser de outra maneira, já que a única solução para a crise do capitalismo é sua própria superação (suprassunção)?255 No século XIX, Marx oferecia o seguinte diagnóstico sobre a sociedade do capital: “Essa exploração se opera pela ação das leis imanentes à própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista elimina muitos outros capitalistas. Ao lado dessa centralização ou da expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolve-se, cada vez mais, a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação consciente da ciência ao progresso tecnológico, a exploração planejada do solo, a transformação dos meios de trabalho em meios que só podem ser utilizados em comum, o emprego econômico de todos os meios de produção manejados pelo trabalho combinado, social, o envolvimento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista. À medida que diminui o número dos magnatas capitalistas que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumentam a miséria, a opressão, a escravização, a degradação, a exploração; mas cresce também a revolta da classe trabalhadora, cada vez mais numerosa, disciplinada, unida e organizada pelo mecanismo do próprio processo capitalista de produção. O monopólio do capital passa a entravar o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho alcançam um ponto em que se tornam incompatíveis com o envoltório capitalista. O invólucro rompe-se. Soa
255 “Isso quer dizer, contra aquela afirmação dos economistas conservadores, que não basta apenas o progresso científico-tecnológico para resolver os graves e profundos problemas da humanidade; é preciso reorganizar a produção e o consumo dentro de novas bases estruturais da sociedade, o que significa precisamente a superação da sociedade capitalista de produção”. ALVES, Alaôr Caffé. “Fundamentos do direito e meio ambiente”. In: Curso interdisciplinar de direito ambiental. Op. cit., p.320.
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a hora final da propriedade particular capitalista. Os expropriadores serão expropriados”256. Alguém que se depare com esse texto, abruptamente, sem maiores avisos, pensará que se trata de uma descrição precisa da sociedade contemporânea. Notará a perspicácia do autor, que não deixa de mencionar, com ênfase, o “caráter internacional do regime capitalista”, ou seja, a tão decantada “globalização”. Mas o capitalista nunca é pego de surpresa. Sabe da autoria do trecho. Consulta, sorrateiramente, o funcionário mais bem pago para explicar-lhe sobre a segurança do sistema; o professor de direito o tranquiliza. Ressalta como a Constituição, os Códigos, as Leis, os Decretos e as Portarias garantem que tudo está bem; afinal, a justiça é cega! O empresário, calmamente, responde que a economia cresce, que a riqueza mais do que nunca independe do trabalho e que a classe trabalhadora é dócil, como um cão fiel. Marx, paciencioso, esclarece: “Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio. É por isso que a humanidade só levanta problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para resolvê-lo já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer”257. O capitalista não altera a fisionomia; afinal, todas as correntes ditas “progressistas” estão devidamente ajustadas aos contornos legais das instituições democráticas. Mesmos as civilizações mais bárbaras estão aderindo ao “culto da democracia” – ainda que, eventualmente, seja necessário usar a força bruta. Expropriação dos expropriadores? Impossível! Não se dá um centavo por isso! Os mais exaltados que esperem sentados! 256 “Antes, houve a expropriação da massa do povo por poucos usurpadores; hoje, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo”. MARX, Karl. O capital. Livro I. Op. cit., p.876/877. 257 Idem. Contribuição à crítica da economia política. Op. cit., p.06. Prefácio.
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Esperar, contudo, é o que fazemos de melhor: “O que importa é aprender a esperar – ensina Ernst Bloch. O ato de esperar não resigna: ele é apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso. A espera, colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em nada. O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-las: ele nem consegue saber o bastante sobre o que interiormente as faz dirigem-se para um alvo, ou sobre o que exteriormente pode ser aliado a elas. A ação desse afeto requer pessoas que se lancem ativamente naquilo que vai se tornando e do qual elas próprias fazem parte. Essa ação não suporta uma vida de cão, jogada de modo meramente passivo no devir, no intocado, ou mesmo no lastimavelmente reconhecido. O ato contra a angústia diante da vida e as maquinações do medo é a atividade contra seus criadores, em grande parte bem identificáveis, e ele procura no próprio mundo aquilo que ajuda o mundo – isto é encontrável”258. O fim deste trabalho deve estar imbuído do bom espírito dialético. Por isso, a crise que rodeia aponta também para novas possibilidades. O que é medo e receio pode ser confiança e esperança. Recordemos, com Marx, que a humanidade não faz sua história como quer ou como determinam suas escolhas, mas sob circunstâncias legadas e transmitidas pelo passado, com as quais se defronta diretamente. Entretanto, ainda com Marx, sabemos que, ao fim e ao cabo, reluz uma verdade inelutável: “os homens fazem sua própria história”259.
258 BLOCH, Ernest. O princípio esperança. Volume 1. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. UERJ, 2005, p.14. Prefácio. 259 MARX, Karl. O dezoito brumário de Luís Bonaparte. Op. cit., p.21.
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Este livro foi impresso pela gráfica Orgrafic sobre papel Chamois Fine 80 g/m2, para a Dobra Editorial, em junho de 2011.
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