O Celeste Porvir - A inserção do protestantismo no Brasil [1 ed.] 8505002164

Obra clássica sobre a chegada do protestantismo ao Brasil.

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Português Pages 268 [256] Year 1984

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O Celeste Porvir - A inserção do protestantismo no Brasil [1 ed.]
 8505002164

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CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câm ara Brasileira do Livro, SP

M endonça, A ntônio G ouvêa, 1922O celeste porvir: a inserção do protestantism o no Brasil / Antônio Gouvêa M endonça. — São Paulo: Ed. Paulinas, 1984. (Estudos e debates latino-am ericanos; IP) O riginalm ente apresentado como tese de doutorado ao D epartam ento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências H um a­ nas da U niversidade de São Paulo. ISBN 85-05-00216 1. Protestantism o — Brasil 2. Brasil — Condições sociais, 1859-1900 I. Título. II. T ítulo: A inserção do protestantism o no Brasil. CDD-280.40981 -309.18104 84-1618 -309.18105

M494c

índices p ara catálogo sistem ático: 1. Brasil: Protestantism o 280.40981 2. Im pério: Brasil: Condições sociais 309.18104 3. R epública, 1889-1900: Brasil: Condições sociais 309.18105

Coleção ESTU D OS E DEBATES LATIN O-AM ERICAN O S 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.

Política e Igreja, O scar Figueiredo Lustosa M orte das cristandades e nascimento da Igreja, P. Richard Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais, Cehila Os santos nôm ades e o D eus estabelecido, Luiz R oberto Benedetti A vida religiosa no Brasil, Cehila C aminhos de libertação latino-americana — tom o I: Interpretação histórico-teológica, E nrique D. Dussel C aminhos de libertação latino-americana — tom o II: História, colo­ nialismo e libertação, E nrique D. Dussel* Caminhos de libertação latino-americana — tom o I I I : Interpretação ético-teológica, E nrique D. Dussel* C aminhos de libertação latino-americana — tom o IV : R eflexões para Teologia da libertação, E nrique D. Dussel* O celeste porvir. A inserção do protestantism o no Brasil, A ntonio G ouvêa M endonça Religiosidade popular na teologia latino-americana, H elcion Ribeiro A m ulher pobre na história da Igreja latino-americana, CEH ILA

* Em preparação

ANTÔNIO GOUVÊA MENDONÇA

O CELESTE PORVIR A inserção do protestantismo no Brasil

Digitalizado por: jolosa

Revisão Eliane Henrique Nogueira Frias

Cp EDIÇÕES P A U LIN A S

Rua Dr. Pinto Ferraz, 183 04117 — São Paulo — SP (Brasil} End. tefegr.: PAULINOS

Com aprovação eclesiástica © EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO - 1984 ISBN 85-05-00216-4

AGRADECIMENTOS

Este trabalho foi apresentado originalmente como tese de doutorado ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Ê o resultado de alguns anos de estudos naquele Departamento sob a orientação do falecido Prof. Douglas Teixeira Monteiro, a quem devo muitas pistas para a compreensão de várias questões que me preocupavam a respeito do protestantismo no Brasil. O projeto inicial e algumas linhas mestras foram delineadas ainda sob a orien­ tação do Prof. Duglas, a quem registro minha gratidão e admiração. À sua memória, minha homenagem. Com o falecimento do Prof. Duglas Teixeira Monteiro, em 1978, passei a trabalhar sob a orientação do Prof. Lísias Nogueira Negrão, que me pro­ porcionou a interlocução intelectual necessária para que este trabalho ganhasse corpo e fosse conchádo. Sou muito grato ao Prof. Lísias pela sua paciência, amizade e, principalmente, pelas críticas e sugestões que me foram oferecidas ao longo de quatro anos de convívio. Aos demais componentes da banca que examinou este trabalho, Profs. Oracy Nogueira, Ruy Galvão de Andrada Coelho, João Baptista Borges Pereira, da Universidade de São Paulo, e Rubem César Fernandes, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, fico reconhecido pelas críticas e confrontos de idéias que me conduziram a uma visão mais adequada das relativas dimensões da tese exposta. Agradeço também à CAPES pela ajuda financeira que me concedeu durante a maior parte do tempo dedicado à pesquisa e à elaboração final. Muitas pessoas colaboraram comigo de diversos modos, mas não posso deixar de registrar as seguintes: Rev. Dr. Rubens Cintra Damião, que me emprestou muitos livros antigos de sua biblioteca, sem o que o meu acesso a eles teria sido muito difícil; Dr. Benjamim Themudo Lessa, que me pôs nas mãos volumes importantes do arquivo de seu pai, o historiador do protestantismo, Rev. Vicente Themudo Lessa; Rev. Roldão Trindade Ávila e Azir Garcia de Almeida, pelas informações sobre o uso dos hinos entre os protestantes; Revs. Jairo Honório Correia e Ronan Pereira da Silva, pelos

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documentos de igrejas que me forneceram; Sr. Alfredo Marques do Vale, que me hospedou em sua casa e me proporcionou acesso aos documentos da Igreja Presbiteriana Independente de Cachoeirinha do Avaré-SP e ao meu dileto amigo Rev. Josué Xavier, que me auxiliou na leitura desses documentos; José Carlos Wiezel, pelo preparo do gráfico sobre as denominações protes­ tantes; Antonio Br az Menck e Araci Z. Menck, distinto casal que muito me incentivou e apoiou. Á Elisa, dedico.

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"Comparando com a plenitude do universo católico, o protestantismo aparece como um truncamento radical, uma redução ao essencial, às expensas de uma grande riqueza de conteúdos religiosos.” Peter Berger, O Dossel Sagrado, Edições Paulinas.

INTRODUÇÃO

Embora sejam muito raros os momentos em que, de algum modo, a presença protestante no Brasil se faça sentir na sociedade brasileira, existe um protestantismo no Brasil. O protestante não aparece, não se apresenta, não se insere de modo sensível na política, na cultura. Não há um impacto protestante na sociedade brasileira. Mas ele existe, está aí. Por toda parte, no campo e nas cidades, vêem-se templos, às vezes rústicas e feiosas “casas de oração”, às vezes suntuosas catedrais góticas ou modernas. Há pequenas escolas, grandes colégios ou conjuntos universitários, assim como duas conhecidas universidades. Os protestantes publicam revistas, jornais e livros, embora de circulação doméstica e restrita, mas que evidenciam significativa movimentação de recursos. Têm quase uma centena de seminários e faculdades de teologia que reúnem perto de cinco mil estudantes e centenas de professores, com bibliotecas especializadas e que somam, no conjunto, mais de duzentos mil volumes1. Mas por que a essa presença sensível não corresponde uma participação ideológica, cultural e política? Por que o protestantismo no Brasil, já com mais de um século de presença, não manteve o ritmo de crescimento das primeiras décadas de sua implantação? Por que parece estar diminuindo por não receber tantas adesões como no início, além de perder fiéis para formas mais novas de prática religiosa cristã? Este estudo procura propor respostas a essas questões com relação ao protestantismo de missão, uma vez que o protestantismo de imigração tem outras características e não cabe nas interrogações levantadas. Embora procure manter a maior abrangência possível com relação ao protestantismo de missão, o presbiterianismo servirá de modelo, principalmente porque foi o ramo do protestantismo brasileiro que mais se expandiu no período considerado neste estudo, que vai de 1859 até o fim do século XIX. A proposta apresentada neste trabalho terá três facetas: primeiro, que a inserção 1 Dados de 1980, Instituições Evangélicas de Ensino Teológico no Brasil, ASTE, São Paulo.

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do protestantismo na sociedade brasileira deu-se num momento histórico-social propício (e que talvez outro melhor não chegaria a haver); segundo, que a aceitação do protestantismo ocorreu na camada “livre e pobre” da população rural e só ali provavelmente poder-se-ia dar; terceiro, que a expressão do protestantismo foi facilitada pela expansão do café ou melhor, seguiu a trilha do café.

Ao lado do esforço de análise dessas três facetas do mundo social brasileiro da segunda metade do século XIX, terá naturalmente de ser levado em conta o conteúdo ideológico da mensagem missionária protestante, recebida e filtrada a partir do lugar social em que o receptor da mensagem se encontrava. Ao reconstruir essa mensagem acabei percebendo que ela só teria sentido se fossem rastreadas suas vicissitudes históricas que remontam às lutas da Pós-Reforma, principalmente na Inglaterra, assim como suas repercussões na formação do protestantismo norte-americano, raiz do protestantismo brasileiro. Daí, justificar-se o longo levantamento que tive de fazer das lutas teológicas que se desenvolveram por quase três séculos. É minha convicção que, apesar de todos os preconceitos, é a teologia a mais importante fonte de construção que a mente humana já tenha criado. Creio poder ser entendido, assim, esforço que faço ao longo de todo este trabalho para involucrar sempre as disputas teológicas nas tensões sociais cujas origens e soluções são, na maior parte das vezes, buscadas na história e na filosofia. O preconceito repousa na idéia mais ou menos explícita de que a teologia não passa de “querela de clérigos” . Mas quando a linguagem teológica é desvelada mostra todo o seu poder de explicação da realidade, assim como a sua capacidade modeladora da sociedade. Aliás, esta é a compreensão de Max Weber: a religião aponta para um além mas suas motivação é o “aqui e agora”: “A ação cuja motivação é religiosa ou mágica aparece em sua exis­ tência primitiva orientada para este mundo. A s ações religiosas mágicas devem realizar-se para “que te vá bem e vivas largos anos sobre a terra”*! Não nos enganemos descartando a teologia como algo alheio à preocupação com a realidade terrena. A relação entre a teologia e a filosofia pode ser vista como uma questão de linguagem. É isso o que diz Leszek Kolakovski: “Temos jeito o possível para que as questões capitais que há séculos vêm atormentando os teólogos continuem conservando toda a sua vitalidade em nosso pensamento, ainda que hoje as formulemos de maneira diferente. De fato, a filosofia jamais se libertou da herança da teologia, o que prova que as questões colocadas por esta eram só formulações desafortunadas de enigmas essenciais dos quais tam­ pouco nós temos conseguido nos libertar”3. 2 Weber, Max, 1974, p. 328. 3

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Kolakovski, Leszek, 1970, p. 281.

O mesmo que Kolakovski diz da filosofia, desde que se leve em conta certos distanciamentos, pode ser válido para a sociologia. Não nos esquecendo de que a sociologia tem seu método próprio e que se esforça para ser uma ciência empírica, creio ser razoável admitir o mesmo paralelo. Quando a sociologia intenta compreender a relação entre o mundo construído pela religião e a sociedade, pelo menos ao nível da linguagem exerce uma função paralela à da filosofia. Peter Berger diz que “toda sociedade humana é uma empresa de edificação de mundos e que a religião ocupa um lugar destacado nesta empresa4. A minha já explícita convicção parte daqui, desta idéia de Peter Berger. A construção do mundo social pelo homem constitui, segundo Peter Berger, um processo dialético uma vez que o homem é um produto da sociedade. Peter Berger entende esse processo como composto de três momentos: externalização, objetivação e intemalização. A extemalização é um avanço em direção ao mundo como uma atividade física e mental que tem como efeito a sociedade que, assim, resulta um produto humano. A extemalização é uma necessidade antropológica, o homem se complementa como ser neste lançar-se sobre o mundo. A objetivação é o mundo criado pelo homem como estando “ali fora” e que alcança um caráter de realidade objetiva como a linguagem, os valores e as instituições. Por último, a intemalização é a reabsorção, na consciência, do mundo objetivado, de maneira que as estruturas deste mundo chegam a determinar as estruturas subjetivas da consciência. Assim, a internalização é um processo de socialização. A dialética reside, então, nessa contínua relação entre o produtor da sociedade e o seu produto.5 Então, se a teologia com a sua linguagem própria, expressa essa dialética da relação entre o homem e o mundo a partir da qual a religião pode ser vista como uma empresa construtora de mundos, justifica-se o esforço para aclarar os seus meandros e descobrir as ações e reações entre a religião e a sociedade. Esta é uma tarefa da sociologia e, a partir daqui, penso justificar os fastidiosos esforços para pôr em relçvo o pensamento teológico nos vários momentos deste trabalho. Sendo o protestantismo brasileiro ponta de linha do norte-americano, sua índole e seu espírito deveriam proceder do “espírito” do protestantismo norteamericano em geral e, especificamente, da corrente teológica preponderante nas missões que empreenderam sua implantação no Brasil. Procurei investigar o modelo teológico missionário para entender o “espírito” do protestante brasileiro comum. Em suma, a convicção de que os fatores específicos da ordem históricosocial do Brasil, aliados à especificidade da mensagem religiosa dos missionários modelaram aqui um protestantismo com características muito próprias, até certo ponto negador de seus modelos históricos ligados ao liberalismo e à modernidade, é que me levou a empreender este estudo. Pretendo encontrar 4 Berger, Peter, 1971, p. 13. 5 Berger, Peter, 1971, p. 15ss. o

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caminhos para compreender o “espírito” do protestantismo no Brasil e para dar respostas às questões levantadas no início desta Introdução. Este trabalho é uma análise, uma tentativa de compreensão. Isso explica o uso preponderante de fontes secundárias que, no confronto, permitiram uma certa forma de reconstrução. Mas o valor das fontes secundárias usadas pode conferir uma boa margem de segurança às propostas apresentadas no final. Trabalhei principalmente do ponto de vista do receptor da mensagem protestante, das formas de assimilação das crenças propostas. Além das fontes usadas para isso, pesaram muito as minhas próprias experiências pessoais. O protestantismo brasileiro começa a ser estudado como uma realidade social. Temos de deixar de lado, naturalmente, todas aquelas obras exclusi­ vamente preocupadas com os problemas eclesiásticos ligados institucionalmente às denominações protestantes. Neste caso, estão as obras de Júlio Andrade Ferreira, “História da Igreja Presbiteriana do Brasil”, as de A. R. Crabtree e A. N. de Mesquita, “História dos Batistas no Brasil”, J. L. Kennedy, “Cin­ qüenta Anos de Metodismo no Brasil”, J. G. da Rocha, “Lembranças do Passado” (história dos Congregacionais), George Lepton Krischke, “História da Igreja Episcopal Brasileira”, Egmont M. Krischke, “História da Igreja Episcopal no País do Futuro”, assim como os “Anais da Primeira Igreja Pres­ biteriana de São Paulo”, de Vicente Themudo Lessa. São obras de história inteiramente desvinculadas da realidade social brasileira. Pode-se incluir neste rol, embora com reservas, dada a sua maior objetividade e ausência de triunfalismo eclesiástico, a obra de Émile G. Léonard, “O Protestantismo Brasileiro”. Uma obra de história muito abrangente e vinculada à História do Brasil é a recente “O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa”, de David Gueiros Vieira, importante pela sua objetividade e independência mas, prin­ cipalmente, pela rica documentação e fontes primárias que apresenta. Deverá constituir-se, portanto, numa fonte de referência constante para o estudo do protestantismo no Brasil. Com objetivos de interpretação sociológica ou antropológica, só nos restam praticamente o trabalho de Emílio Willems, “Cunha — Tradição e Transição de uma Cultura Rural no Brasil”, os de Boanerges Ribeiro, “Pro­ testantismo no Brasil Monárquico” e o recente “Protestantismo e Cultura Brasileira”, Waldo César, “Para uma sociologia do Protestantismo Brasileiro”, e Cândido Procópio F. de Camargo, “Católicos, Protestantes e Espíritas” . O trabalho de Willems, ao abranger no complexo social específico de uma vila brasileira um grupo de metodistas, fornece de passagem importantes subsídios para o estudo do papel dos protestantes diante da sociedade mais ampla e das mudanças que ali ocorrem. As duas de Boanerges Ribeiro têm objetivo mais dilatados ao pretender demonstrar que o protestantismo se inseriu na cultura brasileira e como isso ocorrey. O pequeno trabalho de Waldo César, dentro dos limites de uma conferêppià, Emita-se a fornecer elementos para estudos sociológicos do protestantismír? Cândido Procópio F. de Camargo fornece dados comparativos do crescimento dos vários segmentos protestantes, assim

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como observações sobre a sua ética em relação à sociedade brasileira. Mas dentro dos limites propostos, a parte referente ao surgimento do protestantismo no Brasil, só apresenta um relato histórico.6 Há outras obras sociológicas e históricas significativas em que o protes­ tantismo de missão é tratado de passagem, como Roger Bastide que dedica um capítulo de seu extenso trabalho “As Religiões Africanas no Brasil”, ao sincretismo produzido pelo negro em relação ao catolicismo e ao protestantismo. Outra é a de Richard Graham, “Grã-Bretanha e o Início da Modernização do Brasil” que, no seu capítulo 11, introduz um estudo muito interessante sobre a doutrina da salvação individual no protestantismo e sua contribuição para a concretização do ideal individualista e do Estado secularizado. Sobre o único movimento messiânico protestante conhecido no Brasil temos a descrição e análise que Maria Isaura Pereira de Queiroz faz em “O Messia­ nismo no Brasil e no Mundo” sobre os Mucker. Um estudo específico sobre este movimento é o de Janaína Amado, “Conflito Social no Brasil — A Revolta dos ‘Mucker’”. Há ainda um outro trabalho sobre a sociologia de pequenos grupos protestantes, o de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Ebe Martha Urbano, “Estudo sociológico de um grupo protestante do Município de Itapecerica da Serra” (São Paulo, s/data). Nenhuma das obras relacionadas responde às indagações que coloquei de início. Aliás, não se propuseram a isso. As de Boanerges Ribeiro, as mais abrangentes e que colocam a questão da inserção do protestantismo na socie­ dade brasileira, não descem à análise da crença protestante e nem ao seu confronto com o campo religioso brasileiro. Não tentam construir um perfil do protestantismo. Têm um significativo valor informativo por que partem de informações documentais primárias, principalmente “Protestantismo e Cultura Brasileira”, que, apesar do título, não chega a demonstrar que o protestantismo se inseriu na cultura brasileira. Aliás, a tese deste trabalho é inteiramente oposta como se verá ao longo dele. Ainda, os trabalhos de Boanerges Ribeiro focalizam exclusivamente os presbiterianos como se eles constituíssem a tota­ lidade do protestantismo. Feito este balanço, creio poder contribuir para os estudos do protestantismo histórico e de missão no Brasil ao tentar um levantamento de maior abran­ gência e profundidade que leve em conta o pensamento protestante, a sociedade brasileira e as formas de assimilação da nova forma de crença. Em suma, este estudo é uma busca de caracterização do “espírito” do protestantismo brasileiro. 6 A recensão feita atém-se às obras referentes ao protestantismo histórico e de missão publicadas no Brasil. Há diversas publicadas principalmente nos Estados Unidos. Na França encontram-se as de Émile G. Léonard, VÉglise 'prebytérienne du Brésil, et ses experiences eclesiastiques e Vllluminisme dam un protestantisme de constitution recente. No terceiro volume de sua extensa obra Histoire Générale du Protestantisme, Léonard inclui uma parte sobre o protestantismo no Brasil. Em David Gueiros Vieira, lMJJr^Cap. I, encontra-se um pormenorizado levantamento da literatura sobre o protestantismo no Brasil e no exterior. A mesma coisa se encontra em Waldo César, 1973.

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Reafirmo que a pretensão desse trabalho, apesar de seu volume, não vai além de uma contribuição inicial. Se as suas conclusões não forem as melhores, espero que, pelo menos, as questões levantadas estimulem o dire­ cionamento de estudos posteriores.

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PARTE I

A HISTÓRIA

CAPITULO I

PRESENÇA PROTESTANTE NO BRASIL: UM ESBOÇO HISTÓRICO NECESSÁRIO

“Utilizando linguagem jornalística, diríam os que no Brasil, e desde os prim órdios da colonização, ‘religião é notícia’ ”*

Do mesmo modo como no domínio político, Portugal foi constantemente assediado em sua colônia sul-americana por parte de invasores, corsários e piratas que, valendo-se da extensão da costa brasileira, não lhe davam tréguas, a Igreja Católica teve que desdobrar-se para não permitir que outros grupos cristãos, e ainda em plena efervescência da Reforma, aqui se estabelecessem de modo a pôr em risco sua proeminência. Naturalmente que os contínuos fracassos por parte de protestantes para se estabelecerem no Brasil-Colônia não se devem só à tenaz oposição por parte da Igreja Católica, mas a outros fatores que oportunamente serão focalizados. Vale ainda considerar o fato de que a resistência portuguesa aos invasores era sempre feita não somente em nome de sua soberania política e de seus interesses comerciais mas também na defesa de sua fé contra as heresias. De modo que a história da presença protestante no Brasil frente à incipiente cultura ibero-católica nada mais é do que um constante exemplo de choque cultural. O protestantismo só conseguiu implantar-se definitivamente quando condições políticas e sociais apresentaram condições de neutralizar a presença protestante de modo que ela não viesse a conseguir, por causa de seu enquistamento, transformações sensíveis na cultura católica luso-brasileira. A posse religiosa, portanto, à semelhança da posse política, não foi tranqüila, a não ser num lapso de cerca de duzentos anos em que a presença protestante foi esporádica, não institucional, mas individual. * Queiroz, Maria Isaura P., 1977, p. 161.

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1. BRASIL COLÔNIA

A primeira tentativa de manifestação de uma colonização protestante no Brasil deu-se logo após o início da colonização portuguesa (1549), com a chegada da expedição de Villegaignon em 1555 que, sob o amparo de Coligny, pretendia fundar a França Antártica e construir um refúgio onde os huguenotes pudessem praticar livremente o culto reformado. Embora o caráter duvidoso de Villegaignon tivesse para conseguir seus intentos, obtido o apoio do partido católico,, os calvinistas que a ele se associaram tinham uma “visão do paraíso”, lugar em que poderiam, pela pregação do Evangelho, reconstruir o cristianismo em sua pureza original1. Assim, o intento era religioso, o que se justifica diante do período de pleno fervor da Reforma e da pressão da Contra-Reforma. O próprio Calvino foi levado a se interessar pela empresa, enviando pastores e dando orientação em assuntos controvertidos, o que não evitou que o projeto fracassasse. Embora não se deva esquecer de que fatores de ordem não-religiosa tenham colaborado para a ruína da França Antártica, entre eles a resistência portuguesa naturalmente, é bastante interessante o fato de que se tenha repro­ duzido sob céus da América, ainda no século XVI, uma das controvérsias centrais da Reforma, isto é, sobre o significado dos elementos da eucaristia e a manutenção de elementos católicos, o sal e óleo, juntos com a água do batismo2. A questão, levantada pelo ex-frade Jean Cointac, foi imediatamente encampada por Villegaignon que, traindo sua tendência católica, acrescen­ tou-lhe outras como a invocação dos santos, as orações pelos mortos, purgatório e sacrifício da missa3. De modo que, reproduzidas as lutas da Reforma no seu interior, o pequeno grupo não pôde persistir nos seus intentos religiosos de unidade e tranqüilidade. Com a expulsão de Villegaignon e a destruição da colônia da Guanabara (1560), estava findo o primeiro intento protestante de se estabelecer na América do Sul. Resta, no entanto, àqueles fervorosos huguenotes, o prestígio de terem organizado, sob céus da América, a primeira igreja protestante segundo o modelo da Igreja Reformada de Genebra e aqui realizado o primeiro culto, em 10 de março de 15574. A mais séria e duradoura tentativa de implantar uma civilização protes­ tante no Brasil foi no Período Holandês, quando reformados se estabe­ leceram no Nordeste com toda a sua organização eclesiástica à moda genebrina. Não há indícios de que a intenção dos holandeses tenha sido religiosa no sentido de uma visão de terra prometida; esta hipótese, porém, não deve ser de todo descartada, uma vez que integrava o clima da época. O mais simples, 1 Holanda, Sérgio Buarque de e Pantaleão, Olga, in Holanda, Sérgio Buarque (org.) 1960 (A), p. 149.

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2

Lery, Jean de 1972, p. 61.

3

Ribeiro, Domingos 1937, p. 37.

4

Lery, Jean 1972, p. 52; Braga, Erasmo e Crubb, Kenneth G. 1932, p. 47.

no entanto, é ver no grande empreendimento holandês na época do Brasil filípico, a expansão colonialista e capitalista da Companhia das Índias, visando o comércio do açúcar. Tivesse, contudo, a conquista sido definitiva, é bem pouco provável que o Brasil permanecesse católico, ao menos uniformemente católico. A história tem mostrado que o conquistador quase sempre acaba impondo a sua cultura e, com ela, o seu sistema religioso. Durante quinze anos (1630-1645), Pernambuco e outras áreas do Nordeste brasileiro foram protestantes. Embora Maurício de Nassau fosse bastante tolerante com os católicos, o esforço dos “predicantes” logo conseguiu reunir flamengos, ingleses e franceses moradores no Recife e, com eles, organizar a primeira igreja5. Procurando aprender a língua geral, os pregadores neerlandeses não perderam de vista os indígenas, os africanos e os portugueses. Abriram guerra à imoralidade reinante entre os locais e mesmo entre os próprios neerlandeses. Consoante às normas reformadas foram organizadas duas classes (pres­ bitérios), uma no Recife e outra na Paraíba, e, unindo ambas, o Sínodo, o primeiro a ser instituído no Brasil. Com os consistórios (conselhos) das congregações locais, estava implantada, de modo completo, a organização eclesiástica calvinista6. A disciplina religiosa na Colônia era rigorosa e atingia a ordem civil e política, uma vez que cabia às Classes examinar os documentos de identidade trazidos pelos colonos flamengos e extraditá-los, no caso de mau comporta­ mento, assim como realizar casamentos. Essas Classes estavam jurisdicionadas à Igreja da Metrópole sendo, assim, fácil sentir como os interesses da Com­ panhia das Índias se ajustavam à disciplina eclesiástica7. A leitura das Atas Clássicas e Sinodais8 mostra como a Igreja Reformada Holandesa no Brasil era caracteristicamente puritana e rigorosa na disciplina. Ordem e silêncio próximos aos locais de culto, santificação absoluta do domingo com a proibição do trabalho e de diversões, interdição de juramentos, praguejamentos e duelos, lembram Genebra dos tempos de Calvino9. Com a restauração portuguesa, em 1649, desapareceram, por muito tempo, os vestígios institucionais do cristianismo reformado no Brasil10. Na primeira década do século XVII novamente tentaram os franceses ocupar um espaço no Brasil. A expedição de Rasily e La Ravardière tinha a intenção de fundar a França Equinocial no Maranhão. Apesar de Rasily ser católico militante e de se fazer acompanhar de numerosos capuchinhos", havia 5 Ribeiro, Domingos 1937, p. 56. 6 Ibidem, p. 57. 7

Ribeiro, Domingos 1937, p. 58.

8 Atas Clássicas, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tradução do holandês por Pedro Souto Mayor. 9

Registros nas Atas Clássicas de 1637, 1638, 1640, 1641, etc.

10 Braga, Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932, p. 47. 11 Abbeville, Claude 1975.

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na expedição um significativo contingente de huguenotes. É certo, no entanto, que havia no Maranhão um clima de liberdade religiosa sob a inspiração do Edito de Nantes12. Com a presença numericamente mais significativa de cató­ licos e a liderança religiosa dos frades capuchinhos, é possível que os protes­ tantes tenham se limitado às devoções particulares domésticas. A curta exis­ tência da França Equinocial encarregou-se, também, de eliminar as possíveis futuras influências protestantes no Maranhão. O século XVIII foi a era da Inquisição no Brasil. A intensificação das atividades do Santo Ofício e a legislação restritiva quanto à imigração quase paralisou a vida na Colônia nos seus mais variados aspectos. Foi a “idade das trevas” na expressão de Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb13. Em 1720, uma lei proibiu que qualquer pessoa entrasse no Brasil, a não ser a serviço da Coroa ou da Igreja. Estrangeiros foram proibidos de visitar a Colônia. Em 1800, o Barão von Humboldt foi proibido de entrar na Colônia, pois que o Governo Português informou ao seu representante no Pará que Humboldt podia influenciar o povo com “novas idéias e falsos princípios” 14. Isso natu­ ralmente porque o Barão procedia de país protestante. Pode-se dizer que até a vinda da Família Real não houve mais protestantes no Brasil. Com a profunda modificação política ocorrida com a presença de D. João VI, principalmente por causa da dependência portuguesa em relação à Inglaterra e expressa no ato de abertura dos portos “às nações amigas”, é que protestantes anglo-saxões começam a chegar e se estabelecer no Brasil, com relativa liberdade para suas práticas religiosas. O Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação, celebrado com a Inglaterra em 1810, criou um impasse com a hegemonia católica, uma vez que a intolerância religiosa seria forte obstáculo à execução do Tratado e, conseqüentes dificuldades políticas à Coroa por causa de sua situação de de­ pendência da Inglaterra. Assim, progressivamente passando pela Constituição de 1824 até a de 1891, foi sendo reduzida a hegemonia católica e os protes­ tantes foram conquistando o seu lugar no espaço social brasileiro. Vão che­ gando, espalhando suas bíblias e praticando seu culto dentro de normas legais muito restritivas, tanto à propaganda religiosa quanto às formas arquitetônicas de seus lugares de serviço religioso15. Assim, até 1824, ingleses, alemães, suecos e americanos foram chegando e vivendo sua fé conforme a situação lhes per­ mitia. Os ingleses e os americanos constituíam comunidades religiosas fechadas à sociedade brasileira16, ao passo que os alemães e suecos, pela falta inicial de 12 Holanda, Sérgio Buarque de e Pantaleão, Olga, in Holanda, Sérgio Buarque (org.), 1960 (A), p. 211. 13 Braga, Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932, p. 47. 14 Ibidem, p. 47. 15 O Tratado de 1810 permitia aos súditos britânicos liberdade religiosa “dentro de suas capelas e igrejas” desde que elas não tivessem formas diferentes de casas de habitação, respeitas­ sem a Igreja Católica e não fizessem prosélitos. 16 £ o caso das capelas anglicanas destinadas às reuniões de britânicas em trânsito, comerciantes e funcionários do governo inglês e dos “confederados” norte-americanos que, a

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assistência religiosa, foram sendo absorvidos pela sociedade abrangente ao ponto de grande parte deles abandonar a antiga fé17. Há algumas referências à presença de comerciantes escoceses, suecos e dinamarqueses, principalmente no norte do Brasil, mas de curta permanência18, sendo provável ter havido entre eles numerosos protestantes.

2 . BRASIL IMPÉRIO

A questão da liberdade religiosa foi motivo de grandes debates na Constituinte de 1823. Havia numerosos parlamentares, portadores de idéias liberais, que propugnavam abertura maior provavelmente porque, além de suas idéias, pressentiam a inevitabilidade de um contato cada vez mais intenso com nações protestantes. Houve cerrada oposição. Nem podia ser diferente, pois que dos noventa constituintes, dezenove eram padres19. Mas, por fim, embora continuasse reconhecendo a religião católica como a religião do Estado par excellence, e a única a ser mantida por ele, reconhecia a Constituição o Brasil como nação cristã em todas as suas comunhões e estendia os direitos políticos a todas as profissões cristãs20. Estabelecia, também, que respeitada a religião oficial, ninguém seria perseguido por questão de religião. Esses direitos e garantias foram muito importantes para os protestantes que, nos primeiros tempos, tiveram, por diversas vezes, de se valer deles. Continuavam, no entanto, as restrições quanto aos lugares de culto, à construção de templos e ao proselitismo. Também os cemitérios, administrados com exclusividade pela Igreja Católica, permaneciam defesos aos não-católicos, o que criou para os protestantes situações muito difíceis para o sepultamento de seus mortos. Em alguns lugares ainda existem cemitérios protestantes, como em São Paulo e Brotas-SP, remanescentes daquele período de ajustamento de convivência religiosa. Mas nem em todôs os lugares foram estabelecidos cemitérios protes­ tantes; como foram sepultados os adeptos da “nova religião” não se sabe. Mas é de se crer que tenha havido, aqui e ali, tolerância por parte da Igreja Católica porque, caso contrário, os cemitérios protestantes teriam sido mais numerosos. Tolerância para com o proselitismo também foi ocorrendo por diversas razões; as principais, porém, devem ter sido o espírito liberal e o enfraquecimento da Igreja Católica debaixo do regime do padroado. A análise das brechas através das quais o protestantismo pode penetrar, fazendo prosépartir de 186S, estabeleceram-se principalmente na região de Santa Bárbara, Província de S. Paulo (sobre os sulistas americanas é muito interessante a leitura de Jones, Judith Mac Knight 1967). 17 Lessa, Vicente Themudo 1938, p. 20, Ribeiro, Boanerges 1973, p. 96. 18 Holanda, Sérgio Buarque de, 1960, pp. 247/48. 19 Mclntire, Robert L. 1959, pp. 3/12. 20 Constituição Imperial de 1824, art. 15.

21

litos, apesar da interdição constitucional, será feita no capítulo 5. Ademais, a liberdade para vender e distribuir bíblias por parte de agentes das sociedades bíblicas estrangeiras, bem antes da chegada e estabelecimento das missões protestantes, constituiu-se num fator ponderável da estratégia protestante de penetração. Documentos significativos desse preâmbulo da história do pro­ testantismo no Brasil são as narrativas de Daniel P. Kidder e J. C. Fletcher21. É certo, portanto, que foram os protestantes aproveitando as oportunidades que o clima de tolerância oferecia e no final do século XIX já estavam prati­ camente implantadas no Brasil todas as denominações clássicas do protestan­ tismo. Os distribuidores de bíblias encontraram simpatias e facilidades por parte de membros das várias camadas da sociedade, que manifestavam boa vontade em recebê-las23. Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb afirmam que os primeiros livros publicados no Brasil contra o protestantismo foram entre 1837 e 1889 pelo Padre Luiz Gonçalves dos Santos que, em linguagem pesada e grosseira, reagia contra a atividade de Kidder33, o mais importante distri­ buidor de bíblias. Não há indícios de que os livros do Padre Luiz tenham criado obstáculos ao trabalho de Kidder. A distribuição de bíblias não se limitou às cidades onde, por certo, o potencial de leitores era mais significativo. Entrou pelas áreas rurais em que, ao contrário, poucos eram os que podiam lê-las porque poucos eram os alfabetizados. Houve, porém, resultados. A distribuição de bíblias como fator estratégico importante da penetração do protestantismo será retomada no capítulo 4. A necessidade de incrementar a imigração esbarrou logo com a questão das garantias religiosas, como apontou o Marquês de Barbacena24. O Parla­ mento teve, então, que abordar problemas como casamento, registro de crianças, sepultamentos em cemitérios públicos e assim por diante. Uma ne­ cessidade trazia outra. Mais tarde não teria a Constituição republicana outra saída a não ser abrir mão da religião oficial para o que concorreu, por outro lado, a forte pressão dos liberais e dos positivistas. Vencendo gradativamente as dificuldades nos últimos quarenta anos do Império, os protestantes, tanto os imigrantes quanto os brasileiros que iam aderindo, espalharam-se bastante pelo território nacional, embora nunca che­ gassem a ser parcela significativa da população. Os anglicanos e alemães foram sempre nesse período comunidades fechadas que não tiveram origem missionária, mas que se constituíam em capelanias de assistência religiosa aos imigrantes. A partir de 1810 foram surgindo as igrejas anglicanas com seus capelães. Os primeiros imigrantes alemães, entre 1824 e 1863, não tiveram nenhuma assistência religiosa por intermédio de 21

Kidder, Daniel P. 1940, e Kidder, D.P. e Fletcher, J.C. 1941.

22 Ibidem.

22

23

Braga, Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932, p. 53.

24

Ibidem, p. 48,

pastores; leigos faziam o papel dos pastores sem poderem, no entanto, realizar os atos privativos dos agentes oficiais da religião, principalmente os que se referem aos sacramentos. O governo brasileiro chegou a prover o sustento de pastores habilitados mas em número insuficiente para atender às necessidades cada vez maiores dos vários pontos de colonização alemã. Só em 1863 foi que os constantes pedidos das igrejas protestantes alemãs do Brasil começaram a ser atendidos com o envio de pastores através de um comitê organizado em Barmen. Em 1835, chegou o primeiro missionário metodista ao Rio de Janeiro, o Rev. Fountain E. Pitts, do Board of Mission of the Methodist Episcopal Church in the United States, que começou a pregar em residências particulares. Em 1836, aporta outro missionário, o Rev. Justus Spaulding, que organizou uma igreja com quarenta membros, todos estrangeiros. Em 1837, chegou Daniel P. Kidder, o distribuidor de bíblias já mencionado, também metodista. Em 1842, essa primeira igreja metodista encerrou suas atividades. As causas do encerramento dessa primeira missão metodista não são muito claras, mas, certamente, não foram as violentas acusações do Padre Luiz Gonçalves dos Santos dirigidas diretamente aos metodistas. O mais provável é que a crise das igrejas protestantes americanas por causa da escravidão e que atingiu a Igreja Metodista em 184425, tenha cortado os recursos missionários. Vinte e cinco anos depois, em 1871, os metodistas fundaram uma nova igreja no Brasil, desta vez entre os imigrantes confederados em Santa Bárbara, Província de São Paulo24. Essa missão parece ter-se encerrado com a retirada de seu fundador e mantenedor, o Rev. J. E. Newman (1890), e o melancólico e, até certo ponto, misterioso desaparecimento da colonização americana no Brasil27. A Igreja Metodista parece considerar como seu estabelecimento oficial no Brasil o ano de 187628, quando o Rev. J. J. Ramson fundou, no Rio de Janeiro, a terceira igreja metodista no Brasil com seis pessoas, todas estran­ geiras. Só aos poucos, como ocorreu com as demais denominações, é que foram chegando os primeiros elementos brasileiros. A partir daí os metodistas se estabeleceram definitivamente no país. Até o período já considerado, o protestantismo no Brasil era constituído quase que unicamente de estrangeiros. Havia muito poucos brasileiros conver­ tidos. Mas, em 1855, chega ao Rio de Janeiro o médico escocês Robert Reid Kalley que, fugindo de violenta perseguição religiosa na Ilha da Madeira, reúne em tomo de si alguns correligionários também fugidos da perseguição e começa 25

Kennedy, J.L. 1926, p. 16.

26

Ibidem.

27

Moog, Viana, 1974, p. 31.

28 A publicação comemorativa do Livro de J.L. Kennedy parece confirmar essa idéia. O próprio Kennedy diz: “o Sr. Ramson, dentre os elementos estrangeiros da população carioca, organizou a primeira Igreja Metodista dessa cidade”, não levando em conta, aparentemente, as outras que já ali existiram entre 1836 e 1842 (Kennedy, J.L., 1926, p. 21).

23

em Petrópolis atividade proselitista em português. Em 1858, organiza a igreja congregacional com pequeno número de prosélitos brasileiros, além dos madeirenses. Em 1873, foi fundada outra igreja congregacional em Pernambuco, mas não ligada, como a do Rio de Janeiro, a qualquer organização missionária. Usando com liberdade o vernáculo, pois seu líder procedia de área de língua portuguesa, os congregacionais produziram um importante instrumento para que outras denominações, principalmente os presbiterianos, atingissem os brasileiros. Esse instrumento, que nos capítulos finais deste trabalho terei oportunidade de examinar mais detidamente, foi o SALMOS E HINOS29. Posteriormente, em 1892, o Dr. Kalley organizou, na Grã-Bretanha, a Help for Brazil Mission que incrementou bastante a atividade missionária dos congregacionais. O afã missionário norte-americano, começado com os distribuidores de bíblias, como Kidder e Fletcher, da American Bible Society, tendo prosseguido com os metodistas, continuou com a chegada do missionário Ashbel Green Simonton, da Presbyterian Church in the United States of America30, em 12 de agosto de 1859, ao Rio de Janeiro. Foi enviado pela Junta de Missões Estrangeiras, mais conhecida pelos brasileiros como Board de Nova Iorque, atendendo ao pedido do próprio Simonton que escolhera o Brasil como campo de sua atividade missionária. Naturalmente conhecia o Board a situação religio­ sa do Brasil e, por isso, as condições oferecidas a Simonton previam o seu envio para outro campo se “as portas não estivessem abertas no Brasil”31. Simonton gastou os seus três primeiros anos no Rio e em vários lugares na Província de São Paulo, enfrentando as dificuldades do novo meio e da língua. Como os missionários anteriores, organizou a primeira igreja presbite­ riana no Brasil com pouquíssimos membros, e todos estrangeiros. Eram só dois adeptos, um americano e um português. Foram chegando outros estrangei­ ros e, dois meses mais tarde, chegou e foi recebido o primeiro brasileiro, Serafim Pinto Ribeiro32. A fundação da primeira igreja presbiteriana deu-se em 12 de janeiro de 1862. Naquela altura Simonton já não estava só pois tinham chegado dois novos missionários para ajudá-lo: o Rev. Alexander L. Blackford, em 24 de julho de 1860, e o Rev. F.J.C. Schneider, em 1861. Simonton, provavelmente alertado por Kalley, com quem logo entrara em contato33, embora vivendo e convivendo com estrangeiros, mostrava grande preocupação em começar a pregar em português e em não se misturar muito com os seus compatriotas34 e outros estrangeiros. Sua intenção primordial era 29 Primeira edição: Tipografia Universal de Laemmert, Rio de Janeiro, 1861 (Braga, Henriqueta Rosa Fernandes, 1961, p. 111). 30 Essa era a Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos, fruto do cisma de 1857, em conseqüência do problema abolicionista (Olmstead, C.E., 1961, p. 99). 31

Braga, Erasmo, e Grubb, Kenneth G. 1932, p. 57.

32 Simonton, A.G., 1962, p. 82 e Ferreira, Julio A., 1959, 1.° vol., p. 19. 33 Simonton, A.G., 1962, p. 52. 34 Ibidem, pp. 53 e 58.

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envolver-se com brasileiros e conseguir adeptos entre eles. Talvez seja essa a explicação para o crescimento relativamente rápido do presbiterianismo35. Em 5 de março de 1865, Blackford organiza em São Paulo a segunda igreja presbiteriana, com dezoito pessoas. De São Paulo, lançam-se os presbi­ terianos para o interior, o que veio a caracterizar a ação missionária tipicamente rural dessa denominação em seu período inicial. Assim, em 13 de novembro de 1865, em Brotas, no sertão paulista, organizaram a terceira igreja presbi­ teriana, com onze pessoas. Pela primeira vez eram todas brasileiras36. Além do missionário A.L. Blackford, que presidiu o ato, estava presente José Manoel da Conceição, ex-padre e ex-vigário de Brotas, e que viria a ser o primeiro pastor protestante brasileiro. Aquelas pessoas, ex-paroquianas de Conceição, tinham sido influenciadas por ele no seu período de crise religiosa com relação ao catolicismo. Posteriormente à sua ordenação como pastor presbiteriano, passou Conceição a viajar incansavelmente por suas ex-paróquias propagando as suas novas crenças e, com isso, certamente colaborou para a já dita expansão do protestantismo na Província de São Paulo e na zona fronteiriça de Minas37. Outro fator favorável à expansão presbiteriana foi o estabelecimento em Campinas, em 1868, da Missão da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos. Esta Igreja sulista preocupou-se com a situação religiosa dos emigran­ tes confederados que, em 1866, estabeleceram-se em Santa Bárbara — SP, nas vizinhanças de Campinas38. As igrejas do Sul, não somente a presbiteriana, mas a metodista e a batista, não ficaram insensíveis aos apelos dos seus fiéis que emigraram. Todas elas procuraram atender aos pedidos que partiram de Santa Bárbara. Em 1868, o Sínodo Presbiteriano da Carolina do Sul enviou os missionários Edward Lane e G. Nash Morton, que se estabeleceram em Campinas. No entanto, o atendimento religioso aos confederados de Santa Bárbara não parece ter sido o objetivo exclusivo da Igreja do Sul, porque logo mais, em 1873, os missionários William Leconte e J. Rockwell Smith foram enviados para o Recife. Pode ter havido, entre 1868 e 1873, alguma mudança na política missionária dos sulistas, mas o fato é qué houve a intenção inicial de atender aos norte-americanos de Santa Bárbara, caso contrário não seria uma cidade do sertão paulista escolhida para sede missionária. As profundas diferenças de forma de pensar que deveriam estar presentes nas duas facções presbiterianas não impediram que elas no Brasil ao formarem em 1888, o Sínodo do Brasil, constituíssem uma única igreja sob o ponto de vista institucional39. Essa união deu-se em 6 de setembro de 1888, logo após 35 Em 1863, a Igreja do Rio tinha 18 membros e, em 1864, acima de 100. (Erasmo Braga e Grubb, Kenneth G. 1932, p. 58. 36 Lessa, Vicente Themudo 1938, p. 34. 37 Há duas boas biografias de José Manoel da Conceição. Uma é de Boanerges Ribeiro, O Padre Protestante, e a outra é de Vicente Themudo Lessa, Padre José Manoel da Conceição. 38 Braga, Erasmo e Grubb, Kenneth G., 1932, pp. 59/60. 39 Braga, Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932.

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a abolição do escravismo no Brasil. Isto parece ser sugestivo. Mas, se for aceita a hipótese de Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb, o simples fato de não mais existir escravidão no Brasil não foi suficiente para eliminar as diferenças de ordem política e eclesiástica que permaneciam entre os dois grupos. A união entre presbiterianos sulistas e nortistas no Brasil, embora tivesse contribuído para o crescimento dessa denominação, provavelmente tenha contribuído para a evolução das crises futuras do presbiterianismo brasileiro40. Entre a chegada de Simonton (1859) e o fim do Império, já tinham os presbiterianos mais de dnqüenta igrejas, quatro presbitérios (unidades regionais eclesiásticas), um seminário para preparar pastores nacionais, dois colégios e diversos periódicos4’. Os mesmos confederados de Santa Bárbara serviram de atração para os batistas. Em 1845, já os batistas americanos tinham organizado a Southern Baptist Convention por causa dos mesmos problemas escravocratas, embora em clima de boa vontade e sem ressentimentos42. Em 10 de setembro de 1871, em Santa Bárbara, foi fundada a primeira igreja batista no Brasil, provável» mente pelo Pastor Richard Ratcliff43. A nova igreja previa ser reconhecida como missão e, provavelmente, expandir-se entre os brasileiros. Vários pedidos foram feitos, nesse sentido, à Junta Missionária de Richmond, até que, em 1881, chegou o primeiro missionário batista para pregar aos brasileiros, William B. Bagby. Após ter naturalmente passado por Santa Bárbara, pastoreando ali duas igrejas dos colonos e aprendido a língua, escolheu a Bahia como base missionária entre os brasileiros. Na Bahia fundou, em companhia do ex-padre Antonio Teixeira, em 15 de outubro de 1882, a primeira igreja batista nacional, com cinco pessoas, quatro americanos e um brasileiro44. Estabelecida esta base, os batistas se expandiram pelo nordeste e norte do Brasil, espaço ainda relativamente desocupado pelos protestantes. Os presbi­ terianos, já presentes na área, ainda não tinham começado a se estender, o que ocorreu mais tarde. A missão mais tardia, entre as principais denominações protestantes, foi a da Igreja Protestante Episcopal dos Estados Unidos da América. A American Church Missionary Society enviou dois jovens missionários para iniciarem suas atividades no Brasil, os Revs. James Watson Morris e Lucien Lee Kinsolving, chegados aqui em 1889. No ano seguinte, em 1.° de junho de 1890, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, oficiaram o primeiro culto episcopal no Brasil. Os presbiterianos do Board de Nova Iorque já haviam iniciado uma missão na 40

Ibidem, p. 60.

41 Atas do Sínodo da Igreja Presbiteriana doBrasil, 1894; pp. 91/92.

26

42

Olmstead,

Clifton E.,

43

Crabtree, A.R. 1962, p. 60; Jones Judith MacKnight,

44

Crabtree, A.R. 1962, p. 75.

Léonard, Émile G., 1963,

1961, pp. 97/98. p. 202.

cidade de Rio Grande mas, por um acordo de divisão de território, cederam aos episcopais a área do sul do Brasil. O trabalho de propagação foi promissor, pois que na primeira visita episcopal, em 1893, foram ordenados quatro diáconos das cento e quatorze pessoas confirmadas. Na visita seguinte, em 1897, foram ordenados três diáconos e confirmados cènto e cinqüenta e seis convertidos. Em 1900, um dos dois primeiros missionários, Kinsolving, foi consagrado bispo. Isto, até certo ponto, atesta o desenvolvimento dos episcopais no Brasil, especialmente na Província do Rio Grande do Sul45. Deixando de lado, por causa dos objetivos destes trabalhos, os luteranos e os anglicanos, por não se terem envolvido na sociedade nacional, pelo menos no período histórico em questão, isto é, até o fim do Império, vemos que os presbiterianos foram os que mais cresceram. Segundo os dados coletados por Boanerges Ribeiro, nas atas do Sínodo da Igreja Presbiteriana no Brasil, o número de membros comungantes, em 1891 (era de 2.947, o que acusa uma média de crescimento anual (de 1859 a 1891) de mais de 90 novos membros. Naturalmente, este cálculo é muito precário porque não leva em conta os que entraram e saíram ou que faleceram. Nesse mesmo ano de 1891 a Igreja contava com 31 pastores, sendo 12 nacionais e 19 missionários, o que não leva em conta, também, os que faleceram, tanto nacionais como missionários, assim como os missionários que regressaram à pátria44. Se os dados não são muito impressionantes, considerando-se, no entanto, as dificuldades da época e os problemas naturais de uma religião que procurava espaço numa sociedade que lhe era inteiramente estranha e já ocupada por uma religião nela culturalmente enraizada, o crescimento dos presbiterianos não deixa de ter alguma significação. O crescimento relativo dos presbiterianos aparece no gráfico anexo47. Entre 1859 e 1889, as duas missões presbiterianas, entre evangelistas e educadores, enviaram para o Brasil 45 missionários. Empregaram, também, 17 pastores nacionais48. A relação entre o vulto da empresa missionária e os adeptos em 1891 mostra cerca de 50 convertidos para cada agente empregado. Por este prisma, os recursos humanos empregados pelas missões revelam ser um investimento, confiantes que estavam nas possibilidades futuras de desen­ volvimento do presbiterianismo brasileiro.

45

Braga, Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932, 65; Ferreira, Júlio A. 1959, 1.° vol., p. 193.

46

Ribeiro, Boanerges, 1981, 331 (quadro 5).

47

Extraído de Braga Erasmo e Grubb, Kenneth G. 1932.

48

Ribeiro, Boanerges 1981, p. 325 (quadro 3).

C A PITU L O II

AS RAIZES

“Uma disciplina devota era, de fato, a própria arca da aliança puritana” — Tawney.

Introdução Na segunda metade do século XVIII, com o movimento metodista de João Wesley, na Inglaterra, estava praticamente encerrado o longo ciclo da Reforma protestante. Daí por diante o protestantismo esteve mais ou menos sujeito a ondas e desdobramentos que nada mais foram do que ênfases periódicas nesta ou naquela corrente teológica ou litúrgica. Embora não se deixe de lado o movimento luterano, que geograficamente ocupou os territórios alemães e os países escandinavos, e que oportunamente teve desdobramentos que se incorporaram às formas protestantes que se transportaram para a América do Norte no período da grande emigração européia, são a Inglaterra, a Irlanda e a Escócia que vão constituir o grande laboratório em que se fundiu o protestantismo que séculos depois saltou para o Brasil, pelo menos em sua forma mais aproximada. Portanto, uma visão global do protestantismo inglês é necessária para que se compreenda o norte-americano e conseqüentemente o brasileiro. Na parte final, será feita rápida abordagem, inclusive, do protestantismo luterano.

1. A REFORMA NA INGLATERRA

O protestantismo dos ingleses, incluindo-se naturalmente irlandeses e escoceses, foi constituído mais pelas lutas internas do calvinismo do que pelo

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choque da Reforma em relação à Igreja Católica. Naturalmente, no extremo do percurso entre o calvinismo ortodoxo e o último produto que foi o Wesleyanismo, sente-se a acomodação da teologia reformada mais extrema com certos resíduos da teologia católico-romana’ Por questões políticas, Henrique VIII, que reinou entre 1509 e 1547, separou a Igreja da Inglaterra da Igreja Romana. O Parlamento não teve dúvidas em apoiar o Rei uma vez que jamais os ingleses se sentiram à vontade sob a supremacia de bispos italianos. Pelo ATO DE SUPREMACIA, votado em 1535, o Rei foi transformado em chefe da Igreja da Inglaterra. A Igreja Anglicana continuou, no entanto, mantendo as formas e os credos católicoromanos. Mas durante a maioridade de Eduardo VI os nobres começaram a protestantizar a Igreja reformando o culto de acordo com as idéias da Reforma, fazendo publicar as duas primeiras versões do Livro de Oração Comum. A violenta reação chefiada pela Rainha Maria, que pretendia fazer a Inglaterra voltar ao que era antes de Henrique VIII, paralisou a reforma da Igreja, mas não impediu que o espírito do protestantismo permanecesse, e talvez se fortifi­ casse, por causa da violência da perseguição. A maioria dos ingleses estranhou essa forma de cristianismo2 e, por isso, aceitou normalmente o restabelecimento do anglicanismo no reinado de Isabel I. Isabel I, filha de Henrique VIII, que reinou entre 1558 e 1603, restabe­ leceu o anglicanismo com a LEI DOS TRINTA E NOVE ARTIGOS (1563), de inspiração calvinista, e do LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, usado até hoje sem grandes modificações. A solidez da Igreja Anglicana, apoiada no Estado como igreja oficial, e o crescente poderio econômico e político fizeram da Inglaterra o baluarte do protestantismo no mundo. No entanto, sob o ponto de vista teológico, a Igreja Anglicana não permaneceu monolítica. A efervescência de idéias filosóficas e políticas que afluem do Continente e vão constituir o esplendor da “era isabelina” levam no seu bojo as lutas que já se manifestavam dentro do calvinismo.

a) A evolução da teologia calvinista Para o calvinismo ortodoxo, que tinha sua origem na reforma genebrina de Calvino, já consubstanciada na sua obra principal conhecida por INSTITUTAS3, a salvação era pela graça sem a participação das obras, resultando daí a predestinação de alguns eleitos para a salvação. Como conseqüência, essa predestinação ou eleição é obra de uma graça irresistível da parte de Deus, e dela o agraciado jamais poderá se afastar (doutrina da perseverança dos 1 Alguns calvinistas, como Jorge Whitefield, acusaram João Wesley de papista porque sua teologia dava lugar a participação da vontade humana na salvação. Lembre-se quepara o calvinista ortodoxo, a salvação é obra exclusiva da graça de Deus. 2 Nichols, Robert H. 1978, p. 177. 3 Christianae Religionis Institutio, publicada em 1S36, em Basiléia.

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santos). Toda essa seqüência lógica é extraída do ponto de partida fundamental de Calvino que é a sua tese de Soberania Absoluta de Deus. Para a maioria dos defensores de Calvino, a ênfase da sua teologia não estava na doutrina da predestinação, mas na da Soberania. Aquela era meramente uma ilação natural desta, mas não constituía preocupação central do Reformador. A insis­ tência na predestinação foi obra dos discípulos de Calvino que afluíam a Genebra e de lá refluíam para várias partes da Europa. Quem desses discípulos provocou a rachadura mais importante no calvinis­ mo ortodoxo foi Theodoro Beza (1519-1605), que ensinava ter Deus decretado a queda do homem mesmo antes de tê-lo criado4. Essa doutrina extrema, que fazia de Deus um déspota temível, só podia levar os espíritos mais liberais da época a reagir. Realmente essa reação ocorreu na Holanda quando Tiago Armínio (1560-1609), que havia estudado com Beza em Genebra, envolveu-se em lutas teológicas decorrentes das críticas mais ou menos generalizadas contra o calvinismo extremado5. Essas lutas o levaram a reestudar o predestinismo de Beza que não se coadunava com o espírito holandês da época. O ambiente na Holanda era de reação contra o fanatismo e a intolerância que respirara durante o domínio espanhol. A aspiração à liberdade, tanto civü como religiosa, influenciou naturalmente Armínio para quem a predestinação era contra a natureza de Deus e do homem, gerava o desespero, tirava o estímulo para a vida de santidade e diminuía a importância do Evangelho. Procurando uma posição intermédia entre SOLA FIDE e SOLA GRATIA cria que a justificação era pela fé mediante a graça4. Essa posição intermédia introduz uma parcela de participação humana no processo de salvação, o que é compreensível no clima de humanismo que caracteriza o tempo da Reforma. Logo adversários de Armínio, como o seu colega de Leiden, Gomarus, o acusaram de pelagiano7. O Sínodo de Dort (1618-1619), pressionado pelos partidos em luta, ameni­ zou o calvinismo original adotando a teoria sublapsoriana, segundo a qual o decreto da eleição vem depois do que permitiu a queda do homem. Em termos mais explícitos, essa amenização é a seguinte: a eleição só se refere aos que aceitam a Cristo como seu Salvador; quanto aos que o não aceitam, essa atitude que os perderá, é tomada por eles mesmos e não por força de um decreto divino. Vê-se que o Sínodo, ao adotar essa posição, tenta preservar 4 Princípio denominado supralapsorianismo, ou seja, doutrina ensinada por teólogos que afirmam que o decreto de Deus antecedeu a queda de Adão e que Deus criou os que hão de ser salvos, assim como os que serão condenados. A doutrina é também chamada de “dupla predestinação”. 5 Após a execução de Serveto, em 1554, Sebastião Castellis publicara De Haereticis, manifesto em favor da tolerância religiosa. “Em matéria de religião não deve haver constrangi­ mento”, escrevera Guilhaume Feugiéres, professor em Leiden. 6 Salvador, José G. s/ data, passim. 7 Do monge britânico Pelágio (sécs. IV/V) responsável pela corrente teológica que ensinava a cooperação do homem na salvação pelas boas obras que praticava. Na época da Reforma a corrente que negava a doutrina da graça e da predestinação, mas não a do pecado original, era chamada de semipelagianismo.

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o que parecia essencial na doutrina de Calvino e ao mesmo pagar tributo aos anseios de participação humana em tudo o que lhe diz respeito, especialmente naquilo que na época era o mais importante, como a salvação da própria alma. Embora a crença da Igreja Holandesa institucionalizada continuasse sendo a do calvinismo original, a posição arminiana, mais adequada ao clima social e de pensamento da Holanda em fins do século XVI, foi ganhando o consenti­ mento do clero e de muitos leigos influentes. Na sua essência, a teologia de Armínio pode ser resumida assim: Cristo morreu por todos os homens e o propósito de Deus desde o princípio foi salvar todos os que crêem em Cristo. Desse modo, os propósitos soberanos de Deus deixam uma margem para a decisão humana, o que valoriza de certo modo o homem ao lhe garantir a liberdade de aceitar ou não pela fé, essa graça que lhe é oferecida.

b) O calvinismo na Inglaterra Muitos britânicos que, por um motivo ou por outro, haviam estado no Continente, ao voltar à Inglaterra, à Irlanda e à Escócia, portavam idéias novas sobre filosofia política e religião. Especialmente nos Países Baixos as idéias de “self-govemment” e liberdade individual triunfavam no século XVT8. A tradição do direito natural se identificava com a vontade de Deus interpretada através da razão humana e dos ditames da consciência. Sustentava-se que tanto gover­ nantes como governados tinham que conformar sua conduta aos princípios da dita lei. Durante os séculos XVI, XVII e XVIII vão se formando e cristalizando as doutrinas antimonárquicas do contrato social e dos direitos naturais. Reúnem-se as divergências contra o absolutismo. Propõe-se liberdade religiosa e individual contra as tiranias dos reis e da Igreja. Na Inglaterra, forte corrente de pensamento político é gerada no período dos Tudor e no primeiro período dos Stuart. Tanto Morus como Bacon susten­ tavam a idéia de tolerância religiosa e, ao mesmo tempo, combatiam o absolu­ tismo. E nesse clima que se processa toda a reforma religiosa da Inglaterra, tanto no que refere à da Igreja Anglicana como na sua perda de hegemonia ao ter que admitir ao seu lado outras poderosas e influentes instituições eclesiásticas que foram se estendendo pela Inglaterra, Irlanda e Escócia, sob a inspiração das idéias religiosas do calvinismo. O produto típico desse período de ajustamento entre o pensamento político e o religioso é o puritanismo, cujo “spectrum” iria permear a colonização da América do Norte e deixar sua marca em tudo aquilo que se pode chamar protestantismo americano9. No período de intensas lutas políticas na Inglaterra, principalmente no regime de Cromwell, 8 Gettell, R.G., 1951, I vol., pp. 267ss. 9 A s colônias que se fundam constituem experimentos religiosos e de organização social — Gettell, R.G., 1951, I vol. p. 273. Este autor está se referindo às colônias inglesas do Novo Mundo.

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já se nota a influência do calvinismo genebrino na severidade da moral pública instituída: havia uma polícia de costumes que proibia os bailes, vestimentas luxuosas e tudo o que pudesse parecer mundano10. As sucessivas edições das INSTITUTAS, tanto em latim como em francês, já em 1540 haviam feito de Calvino um dos líderes mais destacados da Reforma. Sua influência começou a ser muito ampla, chegando às áreas de influência do pensamento de Lutero onde penetrou em profundidade, pondo em choque alguns pontos fundamentais da teologia luterana, como as questões sobre a primazia da fé ou da graça e, especialmente, sobre o significado do sacramento da eucaristia. Esse desacordo entre os dois reformadores só serviu para enfraquecer, de algum modo, o movimento da Reforma em territórios alemães quando “evangélicos” (luteranos) e “reformados” (calvinistas) começa­ ram a se defrontar violentamente, do que se aproveitou a Contra-Reforma para obter algum êxito11. No entanto, fora dos territórios alemães e da Escandi­ návia, Calvino suplantou Lutero. Comunidades calvinistas proliferaram ao ocidente da Europa. Depois de 1550, foi o calvinismo penetrando lentamente nos Países Baixos, suplantando seus predecessores luteranos e anabatistas. Sua penetração se deu principalmente entre os camponeses atrasados e o proletariado das cidades. Em 1560 introduziu-se na Escócia de nobres turbulentos e camponeses pobres, em que não havia comerciantes e nem classes médias. Embora o calvinismo tivesse se expandido também pela Polônia, Boêmia e Hungria, seu domínio mais relevante foi nos Países Baixos, Inglaterra e Escócia onde, acentue-se, encontrou guarida mais entre dominados do que entre dominantes. A explica­ ção talvez possa ser encontrada tanto na doutrina da predestinação do calvi­ nismo ortodoxo, em que a soberania de Deus suplanta todas as soberanias humanas e extrai os eleitos de qualquer classe social não levando em conta nem ricos nem pobres, assim como no calvinismo mitigado em que o amor de Deus oferecido a todos os homens indistintamente oferece margem de participação humana na graça de Deus, que valoriza o indivíduo seja qual for a sua extração social. Desse modo, embora o calvinismo possa parecer elitista com a sua doutrina da eleição, na realidade parece ter exercido na Inglaterra o papel oposto ao combater toda forma de autoridade, tanto eclesiás­ tica como civil, sendo cada vez mais levado a assumir posturas revolucionárias, tanto diante da Igreja Oficial, com seu clero hierarquizado, como das autorida­ des civis, que tendiam sempre a exercer o poder de cima para baixo. O calvinismo, ao contrário do luteranismo, não teve a intenção de aliar-se a governantes para que estes o impusessem por decreto. Ao contrário, sua índole republicana o conduzia a opor-se às formas políticas dominantes na Inglaterra. Por outro lado, o rejuvenescimento da Igreja Romana, a partir de 1550, como resultado da Contra-Reforma, fazia dela novamente um inimigo poderoso que tendia a se manifestar através da Igreja Anglicana que mantinha, 10 Mosca, G. e Bouthoul, G., 1958, p. 171. 11 Elton, G.R., 1974, p. 277.

2 -C eleste porvir

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pelo menos por via de suas formas institucionais e litúrgicas, o seu parentesco temivelmente próximo do papismo. Aprofundando um pouco mais a questão, o calvinismo contava com dois elementos a seu favor na sua expansão por entre povos que começavam a se despertar para a luta contra formas despóticas de poder, sendo eles as duas principais contribuições da teologia de Calvino nessa direção. Primeiro, a teologia da predestinação dava aos calvinistas a certeza do triunfo: se contavam com a amizade de Deus, o que mais importava? A convicção de que eram eleitos os transformava em sectários cônscios de que estavam do lado certo e de que o erro devia ser combatido e eliminado. Daí, a tenacidade calvinista que se manifestava nos vários aspectos da vida e que se sobressaía de modo tão evidente no puritanismo. Segundo, o modo calvinista de governo eclesiástico com seu sistema eletivo e sua dinâmica combinação de participação leiga e clerical, lhe permitiu concretizar sua organização em paróquias autônomas, sem bispos e sem qualquer outro sistema autoritário de disciplina que lembrasse a Igreja Católica ou a Anglicana. Os calvinistas podiam fazer funcionar, pelo menos na área religiosa, um sistema republicano-democrático que atendia às aspirações vigentes de liberdade e, ao mesmo tempo, respeitava o individua­ lismo uma vez que a participação nas congregações era voluntária. O plano de governo de Calvino era popular, democrático e republicano: permitia eleições de baixo para cima mais do que nomeações e ações de cima para baixo. A esses dois elementos, a doutrina da predestinação e o sistema de governo eclesiástico, pode-se acrescentar ainda, como significativos para à expansão do calvinismo, a clareza e a sistematização dos escritos de Calvino em relação aos de Lutero. Embora Lutero tenha sido mais prolífico e mais humanamente sensível, seus escritos são pouco sistemáticos, ao passo que Calvino construiu um sistema coerente e lógico, que dava resposta a todas as perguntas. No entanto, a rigidez calvinista, mais tarde irá ser, talvez, o seu ponto fraco porque não conseguiu ajustar-se a formas sociais diversas ou em mudança. Acrescen­ te-se ainda que o calvinismo teve um centro poderoso de irradiação que foi Genebra. Ao mesmo tempo em que se erigia como modelo de uma sociedade moldada nos princípios cristãos da Reforma, Genebra, com a sua Academia (fundada por Calvino em 1558) formava calvinistas fervorosos e de largo preparo intelectual, aliás uma grande preocupação de Calvino. Essa valorização inicial do preparo acadêmico dos pastores, assim como a sistematização da teologia calvinista, muito ao gosto da época, foram sempre fatores de grande atração para os intelectuais. Como muitos estudantes da Academia eram estrangeiros, ela se tomava um dos poderosos elementos da dinâmica expansionista do calvinismo. Genebra, desde logo, ultrapassou em influência a Wittemberg de Lutero e a Estrasburgo de Bucer12. Em princípios do século XVII o calvinismo já se espalhava pela Inglaterra, Irlanda e Escócia, seja com sua participação teológica dentro da Igreja Angli­ 12 Elton, G.R., 1974, p. 286.

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cana, seja pela presença das igrejas presbiterianas, congregacionais e batistas. O movimento responsável por essa vitória do calvinismo foi o puritanismo que ocupará a parte seguinte deste capítulo.

c) O puritanismo A Reforma da Igreja da Inglaterra, sob a influência de Isabel I, fora cautelosa porque a rainha não desejava que o abalo fosse grande ao ponto de desagradar muita gente. Embora a teologia fosse reformada, o sistema de governo hierarquizado tradicional e as antigas formas de culto foram mantidas'3. Já durante o reinado de Isabel, havia na Igreja Anglicana um forte contingente de partidários de uma reforma mais profunda na Igreja. Esse contingente era composto por pessoas que haviam fugido para o Continente, principalmente para Genebra, durante as perseguições desfechadas pela Rainha Maria. Ali entraram em contato direto com movimentos protestantes que tinham ido muito mais longe em suas reformas do que a Igreja da Inglaterra. Assim diz Robert Hastings Nichols: “Insistiam por que (sic) o culto da igreja inglesa se libertasse de muitas coisas que os desagradavam, vestimentas e aparatos cerimoniais que tinham sido conservados da velha ordem medieval. Opunham-se ao governo da igreja pelos bispos. Muitos deles pugnavam pela forma de governo presbiteriana. Alguns queriam que a congregação de cristãos fosse independente, sem estar sujeita a qualquer governo geral pelo que foram chamados independentes e, depois, congregacionalistas” (mesma p. da nota 13). O partido dos puritanos, como era chamado esse contingente, desejava também que a Igreja adotasse disciplina severa contra clérigos e leigos cuja conduta moral não satisfazia aos padrões elevados do modelo genebrino. Eram esforçados estudantes da bíblia e calvinistas na teologia. Os puritanos alcançaram vitórias e chegaram a moldar o sentimento religioso do povo inglês, assim como elevar o ideal político no sentido da luta em favor de um governo constitucional representativo. No entanto, durante os reinados de Tiago I e Carlos I, muitos puritanos emigraram para a América onde iriam exercer notável influência na construção de uma sociedade como aspiravam.

c) 1 — A teologia do Pacto e o puritanismo Uma das mais importantes tendências do puritanismo foi a de adaptar o dogma reformado às necessidades de uma religião pública e pessoal. Antes 13 Nichols, R.H., 1978, p. 178.

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mesmo do surgimento do movimento puritano, a partir de certos textos de Calvino, desenvolvera-se a corrente teológica do Pacto ou Federal. Essa corrente ganhou muita ênfase por causa dos escritos de Heinrich Bullinger (1504-1575), sucessor de Zuinglio, em Zurique, e que é destacada no Catecismo de Heidelberg (1563). Foi desenvolvida e detalhada por uma sucessão de teólogos no Reno e nos Países Baixos. Na Inglaterra pontificou na Universidade de Cambridge, onde se destacou William Ames (1576-1633), que, em 1610, deixou suas aulas na universidade por se recusar a usar a sobrepeliz. Foi para a Holanda, onde deixou um famoso discípulo: Johannes Cocceius (1603-1669), que levou a teologia do Pacto à sua mais completa e sistemática expressão, tomando-se líder de uma extremada escola de pensamento. Note-se, desde logo, que Ames viria a ser o mentor teológico dos puritanos da Nova Inglaterra através da tradução para o inglês de seus livros originalmente escritos em latim'4. “O coração da Teologia do Pacto reside na insistência em que os decretos predestinantes de Deus não são parte de vasto esquema impessoal e mecânico, mas que, sob a dispensação do Evangelho, Deus estabeleceu um pacto de graça com a semente de Abraão. Isto deve ser apropriado pela fé e, por essa razão, é irredutivelmente pessoal”15. Embora os puritanos não concordassem “in totum” com a idéia, propenderam a admitir que o efetivo chamado de cada eleito seria através de um encontro pessoal com as promessas de Deus. O pacto entre Deus e Abraão (Gênesis, 17) foi pessoal e de iniciativa divina, logo um ato de graça. Pede-se ao homem, portanto, mais do que um ato de adesão à divina mercê. A verdadeira fé exige íntima, manifesta e obediente preparação, apropriação, humildade, dedicação, gratidão e uma disposição para andar nos caminhos de Deus de acordo com a sua lei. Embora os dispositivos do calvinismo continuassem presentes, como a iniciativa divina na concessão da graça e a ênfase no ascetismo, havia um elemento novo: a iniciativa humana e pessoal na apropriação dessa graça. Surge assim uma valorização do homem e da pessoa. Apesar disso, a específica experiência de conversão raramente ocorria; para a maioria bastava adquirir a segurança da eleição. O que era importante na Teologia do Pacto, encampada pelos puritanos, era o individualismo nos seus mais variados aspectos e que fornecia armas para a oposição a todas as formas de soberania de cima para baixo, especial­ mente os episcopados, tanto romanos como anglicanos. É importante notar que os “presbiterianos escoceses tomaram-se literalmente um povo do pacto”16. Quando a Assembléia de Westminster se reuniu (1643-1649) por convo­ cação do parlamento, as várias tendências teológicas calvinistas convergiam para a Teologia do Pacto e a confissão de Westminster surgiu como a mais 14 Medulla Theologiae (Amsterdã, 1623) e De Conscieníia (1632). 15 Ahlstrom, Sidney E., 1975, vol. X, pp. 177/178. 16 Ahlstrom, Sidney E., 1975, 1.° vol. p. 177.

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definitiva confissão pactuai da história da pós-Reforma. Sua adoção por numerosas igrejas e pelos presbiterianos em geral'7 fará dessa Confissão o mais influente símbolo doutrinai na história da América Protestante. A Teologia do Pacto, talvez pela sua quase universalidade entre as igrejas de origem calvinista, via Confissão de Westminster, e estar na origem da própria história do povo americano, parece ser a raiz da ideologia do Destino Manifesto.

c) 2 — O “spectrum” do puritanismo Embora o puritanismo tenha suas raízes no calvinismo ortodoxo, com ele não se identifica e nem mesmo com as sucessivas modificações que histori­ camente a teologia reformada foi sofrendo. O puritanismo foi mais um modo de ser da vida religiosa que se foi ajustando, nem sempre passivamente, às várias correntes de pensamento que vão desembocar na América e se prolonga pela história do protestantismo naquele país e pelas suas áreas de influência missionária. Sem muita dificuldade, ainda hoje se podem identificar formas e áreas de influência do pensamento religioso puritano. O importante é a influên­ cia do puritanismo na vida civil e social, e parece ter sido uma feliz tradução do calvinismo no sentido de sua viabilidade eclesiástica e política. Não se pode, portanto, com exatidão dar uma definição do puritanismo. É um modo de ser, de ver os homens e as coisas sob o prisma da fé religiosa. É, essencialmente, um modo de viver. Por isso, a melhor coisa ao tentar entendê-lo é construir do puritanismo um “spectrum”18. A luta dos puritanos contra a Igreja estabelecida teve importantes desdo­ bramentos políticos e eclesiásticos. Sob o ponto de vista político basta dizer que a Revolução Gloriosa (1688-89) que depôs Carlos I, e inaugurou o período republicano e posteriormente ditatorial de Cromwell, foi essencialmente uma revolução puritana. Sob o ponto de vista eclesiástico, o puritanismo foi o responsável pelo surgimento das igrejas livres, embora muitos puritanos, apesar de perseguidos, continuarem sempre na Igreja oficial. Pode-se resumir, sob o ponto de vista eclesiástico, duas tendências no puritanismo: a de formar igrejas locais autônomas que se bastavam a si mesmas e em si eram completas e a de se organizarem essas congregações locais em federações sob um regime republicano representativo através de consistórios locais, presbitérios e sínodos regionais e assembléias gerais nacionais. A primeira tendência foi encarnada pelas igrejas congregacionais e batistas, e a segunda 17 A Confissão de Westminster foi adotada na América, sucessivamente, pelo Sínodo de Cambridge, dos Puritanos da Nova Inglaterra (1648); pelo The Connecticut Saybrook Synod (1658), pelos English Baptists (1677), pelo Massachussets Saybrook Synod (1677), pela Church of Scotland (1689) e pela Philadelphia Association of Baptists in America (1707). Entre os presbiterianos em geral teve livre curso. Ainda é adotada pelos presbiterianos no Brasil. 18 “Spectrum” é o termo que usa Ahlstrom na sua descrição do Puritanismo. (Ahlstrom, Sidney E., 1975, 1.° vol., pp. 178ss.)

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pelas presbiterianas em geral. Houve outros grupos menores e mais radicais que não chegaram a exercer grande influência. É importante não esquecer que na base dessas organizações eclesiásticas estava a teologia do pacto: cada congregação é composta por “santos visíveis” que têm um pacto individual com Deus e com mais ninguém. A congregação é que determina quem são os santos, estabelece a disciplina e exclui seus membros quando julga necessário. As nuanças desse princípio estabelecem as diferenças entre os vários tipos de igrejas puritano-reformadas. Mas o que é significativo é o ponto de partida em que o voluntarismo e o individualismo são ressaltados. Só entra para a igreja quem quer e as relações do fiel com Deus é questão que somente a ele toca. O sistema de governo eclesiástico dos calvinistas puritanos foi muito importante para a expansão do protestantismo, uma vez que sua estrutura era facilmente ajustável a outras situações político-sociais. Isso a história se encar­ regou de mostrar. Mas o que mais impressionou no puritanismo foi a sua visão do mundo e a sua maneira de viver nele, seu ascetismo austero e sua piedade bíblica. A teologia do puritanismo está expressa, em seus termos mais radicais, nas obras de Milton (Paraíso Perdido, 1667) e de João Bunyan (O Peregrino, 1678). Para Max Weber só a leitura deste último já é suficiente para se conhecer a atmosfera peculiar do puritanismo19, no que parece estar ele certo. Bunyan mostra a vida do cristão como uma caminhada áspera em direção à Cidade de Deus. Nesta caminhada o cristão passa por toda sorte de perigos, tentações e dúvidas. A caminhada é muito penosa porque o caminho é íngreme e estreito. No entanto, a escolha deste caminho foi um ato de vontade, uma opção que o cristão tomou diante de uma outra alternativa que se lhe oferecera: a do caminho largo e tranqüilo em que o andar não é penoso, ao contrário, é alegre, festivo, cheio de atrações, mas que conduz ao sofrimento eterno na Cidade da Destruição. A famosa alegoria de Bunyan contém elementos desviantes da teologia calvinista, devidos às várias influências já sofridas por ele naquela altura do século XVII. A possibilidade de escolha por parte do indivíduo, do caminho a seguir (contra a predestinação) e a possibilidade de, mesmo no fim da carreira, passar para o lado oposto (contra a graça irresistível e a perseverança dos santos). Veja-se esta passagem final da obra de Bunyan: “Fiquei surpreendido; mas serviu-me isto de importante lição, pois fiquei sabendo que da porta do céu há caminho para o inferno, do mesmo modo que o há na cidade da Destruição”50. A célebre obra de Bunyan foi, posteriormente mas em data incerta, repre­ sentada pela célebre gravura conhecida como “O caminho largo e o estreito”, muito difundida nos meios protestantes em várias adaptações do original. O 19 Weber, Max, 1967, p. 74. 20 Bunyan, João, 1972, p. 209.

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quadro mostra o plano individual e o coletivo na escatologia cristã,21 consti­ tuindo-se em típico exemplo de uma visão dualista da História. A teologia do calvinismo puritano parece ser a dominante ainda hoje numa extensa área do protestantismo, especificamente naquele que percorreu o longo caminho Inglaterra-Estados Unidos-América Latina. É o que ten­ tarei mostrar na parte final desta trabalho.

d) O fim da Reforma na Inglaterra A partir do fim do século XVI até princípios do século XVIII, o calvi­ nismo da Lei dos Trinta e Nove Artigos, que regia a Igreja Anglicana, foi cedendo lugar ao arminianismo, isto é, a Igreja continuava fiel a ela mas seus ministros, assim como o laicato, já eram arminianos na prática. Desde Richard Hooker (1554-1600), o famoso teólogo antipuritano da era isabelina,22 os teólogos vinham tentando conciliar a doutrina calvinista da graça com a das obras, esta segundo a Igreja Romana. Como conseqüência, aproximavam-se da posição intermediária representada pelo Arminianismo. O sistematizador dessa conciliação foi George Buli, em sua obra “A Harmonia Apostólica”, cuja doutrina pode ser resumida mais ou menos assim: Jesus Cristo, por sua obra expiatória, é o Salvador dos homens, mas cada qual tem sua parte a fazer, procurando ativamente reformar a própria vida. O seguinte hino de D. HAZLETT (1852- ? ) explicita bem essa doutrina: Morri na cruz por ti, Morri p ’ra te livrar; Meu sangue, sim verti, E posso te salvar. Morri, morri na cruz por ti, Que fazes tu por mim7a Esse fazer humano acaba identificando fé e obras, pois que a fé inclui todas as obras da piedade cristã. A fé não é simplesmente a adesão aos ensinos evangélicos, mas envolve o desejo de ser bom e de fazer o bem. A redenção é oferecida universalmente pela graça de Deus, e os meios para dela se apropriar são os sacramentos. Buli se equilibra entre o calvinismo, ao valorizar a graça, e o romanismo, ao conceder virtudes aos sacramentos. Em linhas gerais a teologia de Buli, que se tomou muito generalizada na Igreja Anglicana, era Arminiana: graça ao alcance de todos, a extensão uni21 Sobre esta gravura, ver o sugestivo trabalho de Duglas Teixeira Monteiro, Cadernos do ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), n.° 5, nov. 1975, p. 21. 22 Richard Hooker é considerado o teólogo clássico do anglicanismo pela sua obra em oito volumes: The Laws of Ecclesiastical Polity (publicada a partir de 1594). 23 Salmos e Hinos, n.° 360, edição de 1899.

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versai da obra vicária de Cristo e a responsabilidade do homem pela sua própria salvação.24 Na segunda metade do século XVII a Igreja da Inglaterra entrou em declínio. No século XVII dá-se o grande avivamento de João Wesley (1703­ 1791), que já na Universidade de Oxford, onde estudara, manifestara preo­ cupação com a santificação da vida religiosa. Ministro da Igreja Anglicana, estivera na Geórgia onde teve contato com os moravianos, cuja doutrina influiu sobre ele. Em 1738 “converteu-se” em Londres durante um movimento reli­ gioso. Wesley, por cinqüenta anos, viajou por toda a Inglaterra, Irlanda e Escócia, pregando e organizando sociedades metodistas, verdadeiras igrejas, embora não reconhecidas. Logo, João Wesley e seu irmão Carlos, assim como Jorge Whitefield, grande pregador do movimento, todos clérigos anglicanos, foram proibidos de pregar nas igrejas oficiais, o que não impediu de surgir dentro delas um significativo grupo de adeptos. A teologia do avivamento de Wesley era arminiana, bem nutrida no pensamento de George Buli: a livre graça de Deus em Cristo, salvação livre pela fé no Salvador mediante o convite de Deus ao arrependimento e à fé. Parece que, pela primeira vez, a música é usada espe­ cificamente como canal da mensagem religiosa ao mesmo tempo que apela para as emoções. Carlos Wesley (1707-1788) foi o grande compositor do metodismo, mas outros, como Augustus Toplady (1740-1778), deram sua contri­ buição. Veja-se este conhecido hino de Toplady: Rocha eterna! meu Jesus! Como posso me salvar? Por minh’obras Tua luz Nunca poderei ganhar; Pois, se me fiar na lei, No inferno penarei15. E este de Carlos Wesley: Ô amante Salvador, Sê tu meu amparador! Negras ondas de aflição Fortes ventos perto estão; D ’este espanto e do terror Salve-me meu bom Senhor; E no porto faz entrar Minha barca sem quebrar16. 24

Na exposição da teologia de George Buli segui o que está em Salvador, A.G., pp. élss.

25 Salmos e Hinos, n. 274, edição de 1899. 26 Salmos e Hinos, n. 28, edição de 1899.

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Nota-se, nestes cânticos, forte inspiração pietista que, sem dúvida, trazia a sua contribuição emotiva. Embora não fosse intenção de João Wesley organizar uma nova igreja, pois que o seu desejo era melhorar a situação religiosa da sua própria, foi inevitável que isso ocorresse. Sua maneira de pregar e seus cultos informais, assim como a sua insistência na conversão mais do que no batismo, na experiência religiosa pessoal mais do que pertencer a uma instituição eclesiás­ tica27, não lhe ofereciam espaço na Igreja Oficial. Wesley alargou ainda mais a brecha entre o arminianismo e calvinismo com a sua doutrina da perfeição cristã, que é a sua mais importante contribuição para a teologia protestante. A justificação do pecador é absolu­ tamente necessária à salvação, mas a santificação era a “plenitude da fé” (“fulness of faith”). Salienta uma interação entre a graça divina e a vontade humana, o que levou o seu companheiro Whitefield, assim como outros cal­ vinistas, a acusarem Wesley de “papista”28. Os metodistas continuaram enfatizando o conflito penitencial (arrependi­ mento), a convicção de pecado e a experiência pessoal de regeneração. Em seus pontos principais, a teologia de Wesley é Reformada e Puritana, espe­ cialmente na ênfase moral. O pietismo moraviano parece fortalecer a ênfase no conflito penitencial do pecador. A presença do pietismo no pensamento de Wesley surge após a sua experiência de conversão em uma reunião religiosa em certa casa da Rua Aldersgate, em Londres, em 24 de maio de 1738. Eis como o próprio Wesley relata essa experiência: “Esta noite fui com muita má vontade a uma sociedade na rua Aldersgate, onde alguém estava lendo o prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos. Por volta das oito e quarenta e cinco, enquanto ele estava descrevendo a mudança que Deus opera no coração mediante a fé em Cristo, senti um estranho ardor em meu coração. Senti que confiava em Cristo, somente em Cristo, para a minha salvação; e me foi dada a segurança de que ele havia pago os meus pecados e me havia salvo da lei do pecado e da morte”29. Essa confissão de fé de Wesley, ao relatar a sua experiência religiosa, é caracteristicamente pietista e se deu logo após a sua volta da Geórgia, onde os moravianos que visitara lhe deixaram profunda impressão. Foi como se o que estava confuso na mente se tomasse evidente no coração. Talvez essa experiência tenha estimulado Wesley a visitar Herrnhutt30, o que fez um pouco depois. 27 Olmstead, Clifton E , 1961, p. 46. 28

Ahlstrom, 1975, vol. I, pp. 399/400.

29 John Wesley’s Journal, Philosophical Library, 1951, p. 51 (citado por J. Dillenberger y C. Welch, 1958, p. 126). 30 Lugar na Alemanha onde o Conde Von Zingendorf reuniu um grupo de remanescentes dos hussitas (1727) que se tomaram conhecidos por Irmãos Moravianos.

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O misticismo e o pietismo fazem, portanto, parte da herança religiosa de Wesley, assim como isto também é verdade em relação ao puritanismo. Ocorre que Wesley soube fazer uma produtiva síntese dessas três correntes, o que valeu ao seu movimento religioso e social um extraordinário crescimento na Inglaterra e ainda mais extraordinário na América. Apelo para a conversão e mudança de vida, a ação social no sentido da moralidade e o emocionalismo lembram, respectivamente, a pregação arminiana da responsabilidade pessoal, o puritanismo e o pietismo. O sentimento de conhecer a Deus através da união íntima com ele lembra o misticismo que, por sua vez, deve ter influído no pietismo. É bom lembrar, no entanto, que Wesley tinha restrições ao pietismo por causa de sua compassividade originada na crença de que a piedade, por si só, produziria resultados na vida pessoal e social3'. Wesley cria, a sua atividade religiosa o comprova, que a prática é uma conseqüência necessária da vida e da experiência religiosa. Por outro lado, nem Wesley como tampouco os pietistas atacavam o “status quo”. Econômica e politicamente eram conserva­ dores, porém, o sentido de disciplina e de direcionamento da vida que Wesley sustentava teve conseqüências sociais muito importantes. Seu conhecido afo­ rismo “ganha tudo o que podes, economiza tudo o que podes, dá tudo o que podes” indica componentes de atividade, frugalidade e caridade na vida cristã. Consiste, por outro lado, num estímulo à vida econômica, proporcionando-lhe uma consciência muito clara das situações que a vida urbana, que começava a sentir os efeitos da industrialização, já apresentava como novas. Como resultado, os metodistas a miúdo estavam na primeira fila nos movimentos de reforma relacionados com o novo industrialismo®, não no sentido de sub­ verter as estruturas, mas no de disciplinar e direcionar os movimentos que tendiam a tumultuar a vida social. “Wesley conseguiu combinar nas proporções corretas democracia e disciplina, doutrina e emotividade”33. A teologia básica de Wesley está nos “Quarenta e Quatro Sermões”, em sua “Notas sobre o Novo Testamento” e nos “Vinte e Cinco Artigos da Re­ ligião”, versão condensada dos “Trinta e Nove Artigos” da Igreja Anglicana, depurados dos elementos calvinistas ou, dizendo de outro modo, vistos pelo prisma arminiano. Como já disse alguém, a teologia de Wesley é um arminia­ nismo tingido pelo emocionalismo. Com o movimento wesleyano, o processo da Reforma atingiu o seu termo e, parece, com uma feliz síntese das tendências do protestantismo que, na linha da Reforma de Calvino, passou pelo arminianismo e pelo puritanismo, não deixando, por outro lado, de capitalizar elementos do luteranismo, como a ênfase na fé do luteranismo ortodoxo e o emocionalismo dos pietistas. Daí a sua vigorosa ascensão nas colônias inglesas da América logo após a Inde31

J. DiUenberger y C. Welch, 1958, p. 127.

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Ibidem, pp. 127ss.

33 Fry, Peter H., Manchester, Século XIX e São Paulo, Século XX — Dois Movimentos Religiosos, in Religião e Sociedade, n. 3, out. 1978, p. 33.

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pendência34. Essa ascensão teve que ter suas razões, e elas parecem residir em dois pontos principais que serão analisados oportunamente: primeiro, na sua convergência teológica já mencionada e, segundo, por introduzir uma forma de vida e ação religiosa que se adaptava melhor a uma sociedade em for­ mação35. O estudo do protestantismo americano e sua empresa missionária tem necessariamente que levar em conta, entre outros múltiplos fatores, essa síntese feliz das tendências protestantes que foi o metodismo.

2 . O PROTESTANTISMO MISSIONÁRIO AMERICANO

Para se compreender a força do protestantismo missionário americano é necessário, antes de tudo, conhecer a sua história, história esta indissoluvelmente ligada à própria civilização que se formou ao norte do continente. O protestantismo americano é um protestantismo de povoamento, isto é, ele se foi formando à medida que protestantes europeus passavam para as posses­ sões inglesas à busca de novas condições de vida. Na medida em que os terri­ tórios anglo-saxões foram sendo alargados, tanto por conquista, como por aquisição, espanhóis e franceses católicos foram gradativamente afastados, pouco deles restando. A presença católica, que vai começar a incomodar, se dará no século XIX, quando intensas imigrações de franceses, irlandeses e alemães católicos provocam um grande e ameaçador crescimento da Igreja Católica. O catolicismo americano, portanto, é um catolicismo de imigração. No final deste capítulo este assunto será novamente enfocado. Os protestantes americanos podem ser divididos nas duas grandes linhas mestras procedentes da Reforma: luteranos e calvinistas. Os primeiros se orga­ nizaram entre si procurando viver sua piedade e não se preocupando em ser o “sal da terra”. Os de linha calvinista, os primeiros a chegar à nova terra, dadas as circunstâncias próprias do sentido calvinista e puritano da vida e dos fatores que condicionaram historicamente o seu êxodo da Inglaterra para as colônias, sentiam-se responsáveis pela ordem das coisas na sociedade. De modo que se pode dizer que a construção na nacionalidade americana, no seu espírito, está intimamente ligada ao calvinismo considerado em todas as suas variantes. Eficácia e bom êxito na ação como sinais de beneplácito divino são as velhas normas do espírito calvinista e, seguramente, foram elas que involucraram o ideal dos construtores de um novo esquema de vida social no solo americano. Vou tentar expor, em linhas gèrais, o processo histórico através do qual se constitui esse protestantismo. 34 Reily, Duncan A., A Igreja Americana na Época Missionária (Conferência proferida no Seminário Teológico Presbiteriano Independente, 1977, São Paulo. Datilografado, não publicado.) 35

Reily, ibidem.

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a) A formação do protestantismo americano “A história do culto protestante nos Estados Unidos começa com a Inglaterra e o Livro de Oração Comum. Na costa ocidental da Califórnia, num rochedo que se eleva a trinta pés acima do mar, num lugar chamado Drake’s Bay, ergue-se uma cruz de arenito azul de cinqüenta e sete pés de altura, marcando o lugar onde o capelão Francis Fletcher, que acompanhava Sir Francis Drake, leu o serviço do livro de Oração Comum e pregou, em 1579, o primeiro sermão ouvido naquela região. Aquela cruz é significativa: ela lembra ao historiador da igreja que o pano de fundo de toda a vida e de todo o culto protestante na América se estabelece sobre a influência do Livro de Oração Comum”34. “Livro de Oração Comum” significava Igreja Anglicana e que foi sob sua égide que se estabeleceram definitivamente os primeiros protestantes em terras da América do Norte. Isto se deu em Jamestown, Vir­ gínia, em 1607. É interessante notar, segundo Carl J. Hahn37, que o Livro de Oração Comum continuou sendo o livro litúrgico usado pelas novas igrejas na América do Norte durante largo tempo, e o mesmo ocorreu entre os protes­ tantes no Brasil nos seus inícios38. Além de Virgínia, a Igreja Anglicana se estabeleceu também oficialmente em Maryland. Mas os protestantes que iriam mesmo marcar o espírito do protestantismo americano seriam os puritanos e os sucessivos desdobramentos do puritanismo. Perseguidos por questões político-religiosas, os puritanos da Inglaterra emigra­ ram em grande número para terras da América. Em 1620, os “Pilgrim Fathers” atravessam o oceano no “Mayflower” e fundam a Colônia de Massachusetts. A emigração puritana foi muito intensa entre 1628 e 1640. Esses puritanos, membros da Igreja da Inglaterra, assumem agora a forma congre­ gacional de governo eclesiástico, continuando calvinistas em teologia. Parti­ dários que sempre foram do governo igualitário-democrático, podiam, na nova sociedade que estavam criando, organizar-se política e eclesiasticamente segundo os seus ideais. No entanto, por questões diversas, mais adiante algumas igrejas organizaram-se federativamente, assumindo a forma presbiteriana de governo, isto é, a hierarquia de representação conciliar. Desde as origens, por conse­ guinte, já se evidencia uma notável indiferenciação teológica, litúrgica e disci­ plinar que irá caracterizar todo o protestantismo americano. Nesses primórdios tanto anglicanos como congregacionais e presbiterianos são calvinistas em teologia e usam a mesma liturgia (Livro de Oração Comum), embora eclesias­ ticamente sejam os anglicanos episcopais e os congregacionais e presbiterianos que venham a assumir formas democráticas diretas ou representativas indife­ rentemente, conforme as circunstâncias. 36 Hahn, Carl J. 1970, pp. 146/47. 37

Ibidem.

38 “Foi um dos primeiros livros protestantes a ser traduzido para o português, sendo encontrado nas bibliotecas dos missionários e mesmo nas dos pastores brasileiros de igrejas não litúrgicas” — Ibidem p. 147.

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Os puritanos, cansados de suas lutas pelo igualitarismo e liberdade reli­ giosa na sua pátria, lutas permeadas de vitórias e perseguições, sentem-se agora com o direito e a liberdade de construir no Novo Mundo um Estado Puritano (Puritan Model State) para servir de orientação a todos os verdadeiros cristãos em todos os lugares. Sentiam-se como o Povo Escolhido de Deus (God’s Chosen People), tanto no sentido espiritual como no intelectual. Evi­ dencia-se desde logo o ideal de uma sociedade em que o sagrado e o profano seriam indistintos, a concretização renovada do “Corpus Christianum”. Isto realmente ocorreu, como escreve Duncan A. Reily: “ .. . nunca houve uma separação entre cristianismo e povo americano”. .. . “Os exemplos são bastante numerosos, porém só mencionaremos alguns. O moto ‘In Good we Trust’ na moeda americana. Os capelães como por exemplo o capelão do Senado, que faz uma breve oração na abertura das sessões do Senado. Há capelães nas forças armadas, oficiais do exército, mari­ nha e força aérea, sustentados pelas próprias forças armadas. Os templos e outras propriedades das igrejas são isentos de impostos”39. Realmente, o objetivo dos puritanos era bem concreto e foi levado a termo logo após o desembarque do “Mayflower” através do instrumento de governo chamado “Mayflower Compact” (Pacto do Mayflower). Nesse do­ cumento está explicitado que eles tinham empreendido a viagem de colonização “para a glória de Deus e o avanço da fé cristã e honra de nosso rei e país. . . solene e mutuamente, na presença de Deus e cada um dos demais, compactua­ mos e combinamos em corpo político civil”. Como novos israelitas, os “puri­ tanos querem construir no ‘deserto’ americano uma cidade edificada sobre o monte, um modelo de sociedade humana segundo a planta que Deus revelou no Novo Testamento”40. Antes de traçar, em linhas gerais, o desenvolvimento do protestantismo americano de linha calvinista, é bom registrar a orientação a que obedeceram seus fundadores. O protestantismo americano desenvolveu o fenômeno religioso que se chama denominacionalismo, desenvolvimento esse que obedeceu a certos princípios que caracterizaram um modelo novo de sociedade civil-religiosa. Para facilitar, tomo ainda de empréstimo a Duncan A. Reily os princípios característicos coletados por ele em vários autores41. Primeiro, a denominação americana é uma associação voluntária o que significa a realização do ideal puritano. Na Inglaterra, pertencer à Igreja Oficial e freqüentá-la era uma obri­ gação a que ninguém podia furtar-se a não ser sob severas penas. A denomina­ ção era uma igreja desestabilizada, composta por pessoas que a ela aderiam espontaneamente e de acordo com suas preferências e convicções pessoais. Por outro lado, a liberdade religiosa conduzia à realização do Reino de Deus nos moldes do espírito da livre empresa. Os fundamentos teológicos desta característica religiosa serão examinados mais adiante. Segundo, a associação 39 Reily, Duncan R., 1977. 40

Reily, D.A., ibidem.

41

Reily, D.A., Ibidem.

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voluntária tinha um propósito ou intenção, o que justificava a existência de denominação diante de outras, com seus pontos a serem propagados, seus mé­ todos e seus traços definitivos. Certamente, os propósitos deviam contar, como suporte, com uma base teológica que caracterizava a doutrinação como porta­ dora de um propósito divino. Terceiro, a denominação americana de um propósito unitivo e ecumênico, isto é, nenhuma denominação se julgava exclu­ siva dona da verdade. Vejamos o que Winthrop Hudson® diz sobre esta característica, o que parece suficiente para a sua compreensão: “A palavra ‘denominação’ sugere que o grupo referido é apenas membro de um grupo maior, chamado ou denominado por um nome particular. A afir­ mação básica da teoria denominacional de Igreja é que a igreja verdadeira não deve ser identificada em nenhum sentido exclusivo com qualquer instituição eclesiástica particular. .. Nenhuma denominação afirma representar toda a igreja de Cristo. Nenhuma denominação afirma que todas as outras igrejas são falsas. Nenhuma denominação insiste que a totalidade da sociedade e igreja devem submeter-se aos seus regulamentos eclesiásticos. No entanto, todas as denominações reconhecem sua responsabilidade pela totalidade da sociedade e esperam cooperar em liberdade e respeito mútuo com outras denominações e cumprir tal responsabilidade”. Finalmente, a denominação era instrumental na tarefa comum de cristianizar a sociedade, não somente a República, mas o mundo. Toda a estrutura do protestantismo americano aparece como o outro lado da moeda em relação ao protestantismo inglês, em que a Igreja Oficial se erige como um bloco monolítico, que funciona dentro do princípio de coerção e a partir de uma hierarquia autoritária.

b) O desenvolvimento do protestantismo americano Por volta de 1640 já havia cerca de quinze mil puritanos na Nova Inglaterra. Não tinham ministro mas eram liderados na vida religiosa por Guilherme Brewster, um leigo experiente e de grande autoridade. A Colônia da Baía de Massachusetts era composta por gente culta, educada e de elevada moral religiosa, características mais ou menos gerais dos puritanos. Apesar de haver numerosos contingentes de presbiterianos na Colônia, a forma de organização eclesiástica preferida foi a congregacional. Isto talvez possa ser explicado pelo desejo de liberdade total de quem saía de uma igreja clerical e hierárquica como a Igreja da Inglaterra. A forma congregacional em que o governo é exercido democrática e diretamente em cada congregação local significava o reverso da medalha e se mostrava como a realização completa dos ideais libertários de autogestão na vida religiosa. Mais tarde, com a crescente complexidade da sociedade americana, vão sendo reproduzidas 42 “Denominationalism as a Basis for Ecumenicity; A Seventeenth Century Conception”, Church History, XXIV (marco, 1966), p. 32 — Apud Ducan A. Reily, ibidem.

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outras formas européias de organização e governo eclesiásticos, prevalecendo no entanto, na maioria quase absoluta, formas intermediárias entre a congre­ gacional e a hierárquica clerical. Esta última forma eclesiástica permaneceu minoritariamente na Igreja Anglicana colonial e na sua sucessora, a Igreja Episcopal Protestante. Bem mais tarde surge e cresce a Igreja Católica Romana como resultado de intensa imigração de católicos. Mas o que prevalece na sociedade americana, em seu espírito, é o protestantismo composto por asso­ ciações voluntárias, de organização livre a partir de representações das bases embora se encontrem resíduos de clericalismo hierárquico, como os bispos metodistas. Não foi só o sistema de organização das igrejas que refletiu os anseios dos puritanos. Cansados também da pesada liturgia anglicana, continuadora da igreja medieval, simplificaram os puritanos de maneira profunda, o culto nas novas igrejas. O culto passou a ter uma simplicidade extrema, estando ausente praticamente toda a tradição litúrgica. A pregação passou a ocupar o lugar central nas celebrações religiosas. A centralidade da pregação exigiu, compreensivelmente, um elevado padrão de preparo acadêmico dos pastores, preo­ cupação que se perpetua ao longo da história da tradição calvinista, exata­ mente por causa dessa centralidade do discurso teológico. Por outro lado, o modelo puritano de costumes e as implicações do testemunho pessoal como exemplo da própria pregação, exigia dos pastores elevados padrões de vida moral. O empenho no preparo acadêmico dos pastores e a concepção intelec­ tualizada de cultura dos puritanos levou-os logo a organizar escolas, algumas das quais permanecem até hoje, como Harvard, fundada em 1636. Aliás, um histo­ riador americano contemporâneo, André Siegfried43, ao construir as tipologias dos vários ramos protestantes norte-americanos, coloca os congregacionais e presbiterianos, descendentes diretos da tradição dos puritanos da Nova Ingla­ terra, na categoria dos intelectuais. Volto a insistir que a centralidade da pre­ gação em detrimento do ritual podia muito bem estar por trás dessa preocupação intelectual e acadêmica. Mais adiante, no lugar apropriado, voltarei às tipo­ logias de André Siegfried. A disciplina rígida dessas igrejas indicava uma religião puritana, solida­ mente bíblica, de espiritualidade profunda, zelosa e severa, dominando todos os setores da vida, tanto social como individual. O historiador Robert H. Ni­ chols44 entende que foi salutar para a jovem nação a grande influência inte­ lectual e moral dos puritanos da Nova Inglaterra. As perseguições que ocorreram subseqüentemente parecem indicar que os puritanos não tinham a intenção de manter o pluralismo religioso como forma de expressão de liberdade. Sugere, antes, que a liberdade era vista sob o prisma de uma igreja não tutelada pelo estado e o “pertencer à igreja” não fosse obrigatório como na Inglaterra. 43 Siegfried, André, Os Estados Unidos Hoje (apud Èmile G. Léonard, 1964, III vol. pp. 425/427.) 44 Nichols, R.H., 1978.

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As igrejas congregacionais logo se organizaram de maneira sólida. Outros grupos, como batistas e “quakers”, foram perseguidos. Onde prevalecia maior liberdade religiosa foram surgindo novas associações, batistas em maior nú­ mero. No fim do século XVII começou a prevalecer o espírito de tolerância. Paulatinamente, o pluralismo protestante foi se acentuando por causa das sucessivas imigrações européias. A Igreja Reformada Holandesa estabeleceu-se em 1628 em Nova Iorque, colônia da Cia. das índias Ocidentais. Nessa mesma colônia havia puritanos, presbiterianos escoceses, luteranos suecos e alemães, católicos romanos e judeus. Quando essa colônia, que se chamara Nova Ams­ terdã, passou para o domínio inglês, estabeleceu-se ali a Igreja Anglicana com apoio oficial. Durante o reinado de perseguições de Carlos II (1660-1685) houve uma emigração em massa para as colônias. Milhares de “quakers” vieram para Nova Iorque, entre eles William Penn, fundador da Pensilvânia, para onde afluiram também europeus do Continente, como alemães do Palatinado, na maioria anabatistas e menonitas, luteranos e membros da antiga Igreja Reformada Alemã também afluiram nas primeiras décadas do século XVIII. Nova Jersey recebeu grande contingente de presbiterianos, principalmente esco­ ceses. Desperta intensa admiração o fato de que uma sociedade tão pluralista, sob o ponto de vista das tradições religiosas, tenha sido o cadinho onde se fundiu o mais poderoso protestantismo, tão diversificado nas suas formas his­ tóricas mas com um mesmo e sólido espírito. A explicação deve residir no fato de que, à semelhança do Brasil formado à sombra do catolicismo romano e dele recebendo um colorido indesbotável, a sociedade americana constituiu-se numa atmosfera protestante, toda ela embebida daquilo que se chama Espírito do Protestantismo. Mais tarde esse sólido espírito vai se constituir na mais formidável empresa missionária de todos os tempos.

c) Enfraquecimento e despertaraento Em princípios do século XVIII a efervescência religiosa e o puritanismo tinham declinado muito nas colônias. São diversas as causas desse enfraque­ cimento, mas à primeira vista surgem duas mais ou menos claras. A primeira contém motivos de ordem histórico-estrutural, como as lutas políticas com a Inglaterra que desembocaram na Guerra de Independência, e o avanço do secularismo que vinha no bojo do Iluminismo. A segunda contém motivos de ordem especificamente religiosa, como a teologia e a disciplina prevalecentes nas igrejas. As lutas políticas e a guerra podem ter desviado as atenções da religião para interesses mais imediatos. A Era da Razão, por outro lado, pesou forte­ mente sobre o pensamento e o sentimento.religiosos. No fim do século XVII as idéias iluministas se espalharam pela América. Nada escapou ao crivo da razão soberana que teve como sua vítima principal, na religião, o coração mesmo do protestantismo que é a Bíblia. A crença na revelação divina foi fortemente atingida pelo deísmo naturalista que tendia para uma religião alcan­

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çada ou criada pela razão. O Iluminismo tocou também a Teologia do Pacto, que involucrava o pensamento puritano. Aos poucos essa poderosa forma de pensamento teológico foi cedendo lugar a um moralismo individualista45. A sujeição do homem à vontade soberana de Deus e o conseqüente caráter elitista da Teologia do Pacto não saíram incólumes do impacto iluminista do alto conceito da natureza humana e das novas idéias sobre os direitos do homem. A teologia e a disciplina prevalecentes nas igrejas, ainda fortemente carregadas de calvinismo ortodoxo,' firmavam o princípio da incapacidade total do homem para se aproximar de Deus, o que não deixava de ser motivo de desânimo para muita gente. Por outro lado, a exigência muito rigorosa de experiência religiosa para a admissão de membros nas igrejas, era também sério estorvo para o crescimento delas. Essa característica elitista do protes­ tantismo será mais tarde transportada pelos missionários para todas as áreas de ação das missões. Será uma marca distintiva dos protestantismos de origem americana. Essa situação de enfraquecimento demandava novas formas teológicas e eclesiais que atendessem às exigências diferentes da sociedade. O estudo dos Grandes Despertamentos (“revivais”) do protestantismo americano pode mos­ trar a evolução de seu pensamento religioso que, apesar das tradições muito diversificadas e de algumas divergências internas, apresenta notável unidade na teologia e no espírito. Pode-se dizer que foi nos movimentos de despertamento que se forjou e consolidou essa teologia e esse espírito. Fato interessante é o paradoxo do puritanismo que, na Inglaterra, lutava por liber­ dade religiosa e política, vindo buscar na América o espaço de vida que almejava. Aqui tende a se tomar exclusivista e só cede mediante o poder de idéias que não eram tão novas e das quais eles, os puritanos, de certo modo, tinham sido portadores. Parece que essa ambigüidade está no cerne do pro­ testantismo: ao mesmo tempo que conduz idéias libertárias e proclama o livre exame, tende a enrijecer-se no dogmatismo. O racionalismo produziu a negação de certas doutrinas cristãs, um forte espírito ateísta e o enfraquecimento sensível do primitivo fervor cristão das colônias. O Grande Despertamento, caracterizado por movimentos de avivamentos do fervor religioso que vão surgindo em diversos lugares e grupos religiosos distintos, começa na terceira década do século XVIII e vai até a Guerra de Independência. Em 1734, Jonathan Edwards, pastor em Northampton (Mass.), começou a pregar no sentido de conduzir seus ouvintes ao arrependimento dos pecados e à fé em Jesus Cristo. O avivamento se espalhou pelas cidades vizinhas, atingindo puritanos e presbiterianos tradicionais. Parece que a chegada de George Whitefield, companheiro de João Wesley no movimento metodista da Inglaterra e notável pregador, deu o tom característico à teologia deste e dos demais avivamentos, dada à grande influência que exerceu. Os resultados desse avivamento foram sensíveis: aumentou o número de membros das igrejas 45

Ahlstrom, Sydney E., 1975, p. 346.

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existentes e novas igrejas surgiram. Começa, também, o interesse missionário pelos índios. Ao mesmo tempo que os metodistas se firmavam, presbiterianos e congre­ gacionais que compunham a maioria da sociedade, aumentaram bastante o seu poder religioso. O historiador Robert H. Nichols, na sua “História da Igreja Cristã”, entende que o sentimento religioso muito contribuiu para a Independência Americana. Esses presbiterianos e congregacionalistas, descen­ dentes históricos diretos dos peregrinos puritanos, temiam que a Inglaterra estabelecesse a Igreja Oficial em todas as colônias, uma vez que isso já se dava em algumas delas. Ora, fora exatamente a imposição de uma igreja oficial que levara seus ancestrais a saírem da Inglaterra cerca de dois séculos antes. Daí, a intensificação do desejo de cortar os vínculos políticos com a Inglaterra. A morte de Jonathan Edwards, em 1758, marca o fim do I Despertamento. Nas décadas seguintes há uma nova queda do fervor religioso. É nesse período que o metodismo penetra oficialmente na América com sua ênfase mais na conversão do que no batismo, na experiência religiosa mais do que simplesmente pertencer a uma instituição eclesiástica. Embora originado no anglicanismo, divergia dele no pensamento e na ênfase46. A certeza da conversão se dava pela capacidade de renúncia aos prazeres sociais: jogo de cartas, jogos de azar, dança, freqüência a teatros e assim por diante. A moralidade metodista irá exercer grande influência nas concepções protestantes na América e nas suas áreas de missão. A expansão do metodismo na América do Norte se dá na esteira da conquista e colonização do sudoeste americano e das áreas do sudoeste que, por compra ou conquista, foram sendo incorporadas ao território da nova nação. As demais denominações acompanharam essa expansão, mas os meto­ distas, por suas peculiaridades, conseguiam se adaptar melhor às condições sociais da “fronteira”. Os metodistas estavam habituados à prática religiosa informal, a realizar suas reuniões ao “ar livre”, com seus pregadores leigos e itinerantes e sua teologia simples e emotiva. Desse modo, a igreja metodista estava sempre na linha de frente, era a primeira a chegar, pois não exigia lugares sagrados, nem ministros formados e nem aparato litúrgico. Os acam­ pamentos, as clareiras na floresta, eram lugares para seus pastores cavaleiros realizarem cultos e prédicas. As outras denominações, como os presbiterianos por exemplo, mais formalistas, ajustavam-se com certa dificuldade a essas novas condições e por isso ficaram mais ou menos na esteira dos metodistas, que cresceram extraordinariamente. Fator importante, ainda, eram as diferenças teológicas entre os metodistas e os demais de origem calvinista. “A mensagem metodista arminiana. . . era mais condizente com a demo­ cracia fronteiriça do que a doutrina elitista de Calvino; quando o pregador 46

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Olmstead, Clifton E., 1961, p. 46.

metodista pregava, ele convidava ‘todo aquele que quer’ ; o calvinismo oferecia salvação só aos eleitos”47. O mesmo autor aduz ainda, como fator ponderável, a linguagem comuni­ cativa dos pregadores metodistas que, não tendo preparo acadêmico, era mais acessível àquela gente rude do que a dos presbiterianos. A “era metodista”, como foi chamado o extenso período que marca a expansão territorial dos Estados Unidos, parece ter contribuído para cunhar o espírito do protestantismo americano, que afastou-se dos modelos europeus ao ajustar-se de modo perfeito à cultura “sui-generis” que surgiu no médiooeste, fundada sobre o valor do homem e sua capacidade de realizar coisas, em suma o individualismo e o desempenho. “Na fronteira o broto do individualismo e do progresso esculpiu uma nova civilização, selvagem e rude, fundada na dignidade do homem e em sua infinita perfectibilidade”48. Na primeira década do século XIX uma nova onda avivalista se ergue entre as várias denominações e prossegue pelas décadas seguintes até à metade do século. E interessante que as mesmas idéias do Iluminismo que haviam contribuído para enfraquecer a religião americana, agora ajudam o surgimento do novo despertamento. É a era do idealismo romântico do homem comum e da democracia popular. Tanto o indivíduo como a sociedade podem caminhar infinitamente no sentido do aperfeiçoamento. As cruzadas evangélicas refletem o novo espírito de democracia, na sua ênfase sobre as obras humanas, na capacidade do homem de tomar decisões e de desempenhar tarefas cada vez mais complexas, afastando-se, desse modo, do elitismo calvinista. A soberania de Deus vai sendo cada vez mais esquecida, assim como a clássica doutrina da eleição foi relegada para segundo plano à medida que os homens, dentro do novo espírito de desempenho, tornavam-se seguros de que todo o que quer se salvar pode fazê-lo através de uma “fé viva” e “obras de justiça”. Essa era exatamente a tendência da pregação metodista. O ano de 1858 caracteriza o Segundo Grande Despertamento do protes­ tantismo americano. Esse ano foi chamado o ANNUS MIRABILIS em que as reuniões de avivamento, desde pequenos grupos até verdadeiras multidões tomaram conta de todos os espaços. A ênfase era na “descida do Espírito Santo” e na guerra contra os vícios em gigantescas reuniões de conversão e santificação. A pregação procurava introduzir todas as tradições teológicas contribuindo, assim, para amainar muitas controvérsias sectárias49. Sobre esse despertamento assim se refere o Bispo Mc Ilvaine, de Ohio, em seu Relatório de 1858: “Tempos de refrigério pela presença do Senhor”50 47

Reily, Duncan A., 1977, p. 10.

48

Olmstead, Clifton E., 1961, p. 61.

49 Smith, Timothy L., 1957, Cap. 4. 50 Ibidem, p. 70.

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d) A teologia dos avivamentos A teologia dos Avivamentos foi uma resposta necessária da religião às condições de uma sociedade “sui-generis” em que as oportunidades estavam abertas para todos. A ascensão dependia das aspirações e do desempenho e as diferenciações sociais ainda estavam por se fazer. Desse modo, uma religião montada sobre o velho calvinismo era pouco viável, pois que suas doutrinas da soberania absoluta de Deus e da total incapacidade do homem chocavam-se contra o princípio do desempenho, assim como o da eleição contra o princípio do voluntarismo. Por outro lado, o elitismo calvinista repugnava ao igualitarismo. Ainda, as idéias filosóficas evolucionistas reforçavam o crédito na capacidade de aperfeiçoamento e progresso do indivíduo e da sociedade. Não havia como fugir à uma reformulação teológica, reformulação essa que teve como matriz o arminianismo metodista. Não é muito fácil tentar uma tipologia da teologia dos avivamentos que, parece, iria cristalizar-se como o núcleo do pensamento protestante americano. No meio dos movimentos de avivamento houve controvérsias teológicas que obscurecem um pouco a questão. Mas uma visão cuidadosa dessas contro­ vérsias permite ver que os avivamentos desembocam sempre e necessariamente no princípio do voluntarismo. O homem é senhor de sua vontade e respon­ sável por suas ações e é capaz de, por seus próprios esforços, aperfeiçoar-se constantemente. Contra a doutrina da eleição surge a doutrina do amor de Deus: Deus ama a todos os homens e quer que todos se salvem. A contra­ partida humana é a disposição individual para aceitar esse amor e dispor-se a modificar a vida para melhor, o que implica em novas formas de vida involucradas numa ética rigorosa. Há grande ênfase na capacidade humana e no seu desempenho. O avivamento de 1858 mostra fortes indicações da influência das dou­ trinas perfeccionistas que sustentam ser possível aos crentes, ainda nesta vida, a obtenção relativa dos objetivos cristãos através da graça de Deus51. O ensino do perfeccionismo já surgira na chamada Teologia de Oberlin, na década de 30. Ela pode ser resumida assim: “todo crente é santificado na medida em que tendo aceito a Cristo e dado a ele integralmente seu coração, renuncia totalmente ao pecado”52. Outra importante fonte do perfeccionismo foi a doutrina metodista da santificação que afirma ser a recepção de Cristo dispo­ sitivo de poder para o homem vencer seus impulsos pecaminosos. As décadas seguintes a 1850 testemunham uma crescente maré de pregações perfeccionistas nas maiores denominações protestantes. Para os campeões do perfeccionismo, o reavivamento de 1858 pareceu o presságio da conversão das nações e o 51

Olmsted, Clifton., 1961, p. 90.

52 Smith, Timothy L., 1957, p. 112. A Teologia de Oberlin refere-se ao ensino dado no Seminário de Oberlin, cidade próxima a Cleveland, Ohio.

estabelecimento do Reino de Deus na Terra. A idéia expandiu-se entre os protestantes americanos durante e depois da Guerra Civil53. Em resumo, as condições históricas e sociais da América pré e pós Independência e a presença do puritanismo desde o início conseguem traduzir a teologia protestante no sentido de atender às necessidades emergentes de uma sociedade que, ao se formar, tendia para o humanismo igualitarista e pragmatista, tudo sob o colorido do racionalismo e do progressismo evolucionista. Desse modo, é bastante compreensível a centralidade teológica no homem como agente moral livre, no Cristo crucificado (o Deus homem que arrasta e vence as próprias condições humanas), na religião ética e na fé racional e experimental. Uma escatologia otimista e progressista marca a dinâmica dessa teologia fortemente antropológica. Assim, o protestantismo ame­ ricano do século XIX orientou-se no sentido de conduzir o pensamento cristão a uma unidade orgânica com o ponto de vista evolucionista, com os movimen­ tos de reconstrução social e com as esperanças de “um mundo melhor” , pensamento dominante, então, na mente humana em geral54. Permeando toda essa teologia profundamente encarnada no social, encontra-se uma corrente de pensamento que parece estranha ao contexto histórico americano, mas que irá, ao ser conduzida pelas missões, constituir-se numa forte tendência do protestantismo no Brasil. Parece que as discussões sobre a escravidão iam gradativamente se tornando perigosas para a tranqüi­ lidade das igrejas e é, nesse contexto, que surge a tendência teológica de não comprometer a igreja com a questão social do escravismo, isto é, de separar o espiritual do temporal. Essa tendência surge na ala conservadora, especificamente na chamada “Velha Escola” presbiteriana que tinha sua maior influência no Sul e que chegou mesmo a defender o sistema social da escra­ vidão como sendo uma instituição civil, portanto fora da competência dos interesses diretos da Igreja. A Escritura, tida como constituição da Igreja, estabelece o princípio do dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Questões de juris­ prudência e política pertenciam a Cesar; daí, questões “espirituais”, como conversão e conduta, constituírem as reais preocupações da Igreja. James H. Thomwell, por exemplo, afirmou que “as Escrituras não apenas deixam de condenar a escravidão, mas claramente a sancionam como qualquer outra condição social do homem”55. Thornwell, sulista e líder da “Velha Escola” presbiteriana, parece ter sido o principal defensor da Doutrina da Igreja Espi­ ritual54. O platonismo da Igreja Espiritual, que parecia deslocado no contexto social americano, surge como uma racionalização teológica do escravismo e teve como conseqüência os diversos cismas nas denominações americanas. 53

Olmstead, Clifton E., 1961, p. 90.

54 Oliveira, Clory T., A Teologia deKarl dezembro de 1979, p. 234. 55

Reily, Duncan A., 1977, p. 16.

56

Reily, op. cit, e Olmstead, Clifton

Barth e a Missão da Igreja, Simpósio, n. 20,

E., 1961, pp. 96/97.

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3 . CIVILIZAÇÃO PROTESTANTE E “DESTINO MANIFESTO"

As lutas políticas e religiosas na Europa que tinham impulsionado os “pais peregrinos” para a América na segunda década do século XVII ainda marcavam os ideais do protestantismo americano no século XIX. Uma civili­ zação cristã segundo o modelo protestante era a meta. Já foi visto como a teologia dos calvinistas foi ao encontro das peculiaridades de uma sociedade que buscava seus caminhos e como tudo isto foi construindo o que se pode chamar de “espírito do protestantismo americano”. A esperança e a possibili­ dade aberta de se construir uma civilização cristã modelo e que pudesse desbordar-se para além das fronteiras americanas tomou corpo após a Indepen­ dência e vai servir de base para a empresa missionária. Os componentes da nova civilização cristã seriam, de um lado, a desinstitucionalização eclesiástica, (contra o “stablishment”) e, de outro, a ordenação da vida segundo o tripé religião-moralidade-educação. A desinstitucionalização garantia o princípio do voluntarismo segundo o qual as igrejas se constituíam como associações e, ao mesmo tempo, prevenia a corrupção eclesiástica. O tripé religião-moralidade-educação cumpria o seu papel normativo e civilizador. Em outras palavras, garantia a estabilidade e o progresso social ao mesmo tempo. Deve-se compreender o espírito do ideal de civilização cristã. Parece que os am ericanos não afirmavam ter realizado ou estar prestes a realizar o Reino de Deus na Terra, mas que tinham, a duras penas, encontrado o caminho. Para muitos pensadores e pregadores, a civilização cristã apontava para o milênio57, o que parece comprovar-se pelo número significativo de cânticos sacros que foram transferidos para o protestantismo brasileiro e que será objeto de estudo em outro capítulo deste trabalho. O avanço da civilização, nos princípios do progressismo, norteava-se pela vinda do Reino de Deus, aperfeiçoamento e coroação dessa civilização. A expectativa milenarista no século XIX na América era intensa e extensa, embora variassem os detalhes teológicos. Henri Desroche, no seu estudo sobre micromilenarismos e comunitarismos utópicos na América do Norte58, faz remontar o espírito milenarista americano à história dos movimentos pacíficos e revolucionários de cunho religioso ou político ocorridos na Europa. Aliás, embora Desroche não tenha mencionado, os peregrinos do “Mayflower” tinham saído em busca do “Éden perdido”. Desroche entende que os mais sugestivos concomitantes americanos dos movimentos milenaristas europeus foram as especulações escatológicas provo­ cadas pela Revolução Francesa no sentido de que ela decretaria a queda do papismo e instauraria uma Nova Era, mais ou menos como o Milênio Apoca­ 57 Handy, Robert T„ 1971, p. 31. 58 Desroche, Henri, Heavens on Earth — Micromillénarismes et communautorisme utopique eit Amérique du Nord du XVIIe. au XIXe. siecle, Archives de Sociologie des Religions, n. 4, Paris 1957, pp. 57-91.

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líptico, e a efervescência “millerista” que se cristalizou ulteriormente no adventismo eclesiástico59. Ao lado dessa mentalidade mais ou menos generali­ zada sobre uma sociedade teocrática, cujo projeto era o “Céu na Terra”, desenvolveram-se dezenas de comunidades micromilenaristas com característi­ cas diversas, mas ostentando todas elas os traços de espera do milênio. Das trinta e seis que Desroche relaciona, destacam-se pelas suas peculiaridades os SHAKERS (1776-1940), característica pela presença de um “messias feminino”, Ann Lee, que surgiu como o Segundo Cristo, a UNITED ORDER (mórmons), que após sucessivas experiências comunitárias a partir de 1830, acabou no amplo movimento dos LATER-DAY SAINTS, e a WOMEN’S COMMONWEALTH (1874-1908), uma “República de mulheres” mais ou menos perfec­ cionistas na linha dos “Shakers”. É bastante curiosa a comunidade dos BLACK JEWS, cuja principal declaração do profeta fundador era que os descendentes das “tribos perdidas de Israel” eram os negros. Em suma, o estudo de Desroche mostra uma incrível inquietação messiânico-milenarista na América do Norte que atinge o auge no século XIX, refletindo-se de modo amplo nas denomina­ ções religiosas. A Conferência Metodista de Nova Iorque, em 1808, declarava: “Os campos estão brancos para a ceifa diante de nós”. O mesmo ocorria com a Assembléia Geral Presbiteriana, em 1815, que recomendava orações especiais para que a “vinda gloriosa do Reino se apres­ sasse”. Para muitos líderes e pensadores eclesiásticos a vida do Reino se daria após a implantação da civilização cristã; por isso, a cristianização da sociedade seria uma preparação para a vinda do Reino de Deus60. Sendo a vinda do Reino, não algo particular para os americanos mas um evento cósmico, é mais ou menos claro que foi fácil passar dessa crença para a empresa missio­ nária via “Destino Manifesto”. A crença na possibilidade da realização do Reino de Deus na terra intensificou a cooperação entre todas as denominações protestantes que, embora mantivessem suas características próprias assim como suas formas específicas, nivelavam-se numa teologia mais ou menos uniforme como produto dos reavivamentos e do metodismo. As denominações dispunham-se a cooperar para a reforma do mundo61 a partir da visão de uma população religiosa, livre, letrada, industriosa, honesta e obediente às leis62. Durante todo o século XIX imperava a idéia de que religião e civilização estavam unidas na visão da América cristã e que Deus tem sempre agido através de povos escolhidos. Os de língua inglesa, escolhidos mais do que quaisquer outros, são obrigados a propagar as idéias cristãs e a civilização cristã. Alguns autores escreveram que a mais alta expressão da civilização 59 Referente a William Miller (1782-1849), fundador do movimento adventista, que vem até nossos dias. As Testemunhas de Jeová, sob a liderança de Charles T. Russel (1852-1916), são um peculiar desenvolvimento do ensino adventista. 60 Ver Handy, Robert T., 1971, pp. 31ss. 61 Ibidem, p. 47. 62 Handy, 1971, p. 48.

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anglo-saxônica eram os Estados Unidos. Um ministro metodista disse: “Deus está usando os anglo-saxões para conquistar o mundo para Cristo a fim de despojar as raças fracas e assimilar e moldar outras”. O destino religioso do mundo está nas mãos dos povos de fala inglesa. À raça anglo-saxã Deus parece ter entregue a empresa de salvação do mundo”63. A preocupação com a construção de uma sociedade digna dessa grandiosa missãó levava as igrejas a grandes esforços para regular a vida social em todos os seus detalhes, revelando que o velho espírito do puritanismo, colorido pelo metodismo tinha muito poder, embora tudo fosse feito sem coerção pois que a liberdade religiosa não permitia ir além do esforço de persuasão. Se a persuasão não produzir efeitos, a opinião pública bem formada se encarregará de mediante pressão social e coerção moral, ir corrigindo as distorções e os abusos. “Os ideais, as convicções, a linguagem, os costumes, as instituições sociais estão tão entrelaçados com as pressuposições cristãs que a própria cultura é nutrida e mantida pela fé cristã”64. Desse modo, buscava-se resolver a questão de como poderia uma nação ser distintamente cristã e ao mesmo tempo religiosamente livre. Dentro do princípio da persuasão e dos mecanismos de autocontrole social, foram desen­ volvidas intensas campanhas pela temperança, principalmente pela moderação no uso de bebidas alcoólicas. Se o alcoolismo, o tabagismo e os jogos de azar eram combatidos por constituírem males sociais, observâncias de natureza especificamente religiosa também foram objeto de lutas por parte das igrejas, como a observância da guarda do domingo em que se conseguiu que nem o Correio funcionasse nesse dia por lei do Congresso. O domingo era regulado nos moldes do Decálogo mosaico: “Faça tudo no sábado. Comece o domingo ao entardecer do sábado. Não visite nem assuma compromissos em qualquer negócio secular no domingo. Gaste a maior parte do dia do Senhor em oração, meditação e na leitura da Escritura”65. Buscava-se um modelo de sociedade, e a certeza de tê-lo encontrado estava na mente da maioria, assim como a convicção de que esse modelo servia, no espírito do evangelho, ser compartilhado com todas as nações para que se abreviasse a vinda do Reino de Deus. O ideal do milênio surge no fim de um processo de construção social de que todos deviam participar no mundo inteiro e sob a inspiração e a liderança americanas. é nesse contexto que se insere a ideologia do “Destino Manifesto” calcada, parece, na Teologia do Pacto. O mesmo comissionamento outorgado aos judeus através de Abraão se transferia agora para os americanos num messianismo nacional66 direcionado para a redenção política, moral e religiosa do mundo. 63 Ibidem, pp. 105ss. 64 Handy, 1971, p. 64. 65 Handy, 1971, pp. 49-50. 66 Bandeira, Moniz, 1973, p. 86. Este mesmo autor se refere ao movimento “Young América” que pretendia levar também à Europa a Democracia e a República.

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“A profunda convicção alimentada pelos americanos de que sua nação tinha sido escolhida para uma missão universal foi nutrida e sustentada através da Guerra Civil e recebeu um novo batismo de poder no período que se seguiu. Muitas forças se combinaram para exaltar o papel do “Destino Manifesto” na consciência americana. A partir do danvinismo os americanos tiveram a intuição de que pela seleção natural os Estados Unidos tinham-se tornado uma nação superior destinada a dirigir os povos mais fracos. A s filosofias idealistas enfati­ zavam a capacidade natural do homem e, interpretada a história em termos de progresso, tudo vinha favorecer a ideologia expansionista. Num período em que as nações européias expandiam seus interesses imperialísticos pela África, Ásia, América Latina e Pacífico, os ameri­ canos se sentiram comissionados para estender as bênçãos da civilização cristã e o governo democrático”.67 Pelo menos no século XIX, o melhor e mais eficiente condutor da ideolo­ gia do “Destino Manifesto” foi a religião americana, ou melhor dizendo, o protestantismo americano com a sua vasta empresa educacional e religiosa, que preparou e abriu caminho para o seu expansionismo político e econômico. No caso do Brasil, se no campo religioso seu sucesso foi quase nulo, na educação e na cultura em geral, para não dizer no político e econômico, a influência americana não pode deixar de ser sentida, embora não logo após a implantação do protestantismo, mas ao longo dos cento e tantos anos de sua chegada.

4 . A EMPRESA MISSIONÁRIA

A expansão missionária das igrejas americanas no último terço do século XIX foi produto do sentimento nacional expansionista combinado com motivos teológicos. O desejo de salvar os “pagãos” da danação eterna originava-se no espírito da teologia dos avivalismos que enfatizava a conversão instantânea e o conseqüente redirecionamento da vida para a obtenção da perfeição. Para muitos a pregação da salvação era urgente; devia ser feita antes da segunda vinda de Cristo, do milênio portanto. Alguns missionários, dadas certas e inevitáveis resistências, sentiram a urgência do avanço dos interesses econômi­ cos e políticos americanos, acreditando que no fim todos seriam beneficiados pela expansão americana. O historiador Clifton E. Olmstead48, que desenvolve esta idéia, relaciona alguns fatos históricos que possibilitam o estabelecimento de missões, quando antes tinha sido impossível: 67 Olmstead, 1961, p. 133. 68 Olmstead, 1961, p. 134ss.

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O motim de Sepoy (Nidia) dominado pelos ingleses em 1857. O fim da Rebelião de Taiping (China), em 1864, após o que o interior da China foi aberto aos missionários. Conclusão do Tratado entre os Estados Unidos e o Governo Coreano, em 1883. N o Japão, só depois da queda do “shogunado” Tokugawa (1867) é que as missões floresceram. Se quisermos relacionar essa mesma idéia com o Brasil, veremos que o início das atividades protestantes só foi possível após o Tratado de Comércio e Navegação com a Inglaterra (1810) que permitiu, apesar de muito restrito, o culto protestante. As missões chegaram logo após a Independência, mas a expansão irrestrita do culto só se deu mesmo após a Proclamação da República. O fato da expansão missionária americana esbarrar quase sempre com eventos políticos parece mostrar bem o que significa esta afirmativa de Clifton E. Olmstead: “Para a América Cristã, no final, a extensão do poder e influência nacionais e a propagação da fé são os dois lados da mesma moedcé’.i9 Este mesmo autor vai desenvolvendo estas idéias que, em resumo, expli­ cam a ideologia da empresa missionária americana. Os missionários foram chamados para promover o avanço da influência política americana no sentido de salvar os países atrasados do despotismo nativo ou do imperialismo europeu. Nesse sentido, Theodore Roosevelt (1858-1919) — e o Capitão Alfred T. Mahan pediram uma marinha mais poderosa para promover o imperialismo mercantil da nação e estender uma cultura superior. Roosevelt e Mahan defendiam uma doutrina nova para os americanos, de que a guerra não é o maior dos males, desde que assegure o triunfo da justiça de Deus. As igrejas e os americanos, preparados ideologicamente, aceitaram a guerra contra a Espanha, visando interesses em Cuba, Porto Rico e Filipinas. A expansão da fé tudo justificava. Nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros vinte do século XIX surgiram, nos Estados Unidos, mais de vinte sociedades missionárias, com o objetivo de evangelizar os índios e dar assistência religiosa às frentes pioneiras. Entre congregacionais e batistas, na formação dessas sociedades, prevaleceu o princípio da associação voluntária, e entre presbiterianos e reformados holande­ ses, o princípio institucional70. As missões americanas se inserem no período em que o cristianismo mais se expandiu em toda a sua história (séc. XIX). A expansão colonial européia, ligada à época do progresso dos meios de comunicação e transporte, muito contribuiu para isso. A euforia do expansionismo colonialista das nações protestantes parecia indicar realmente uma “era 69 Olmstead, 1961, p. 134. 70 Elsbree, Oliver W., 1928, cap. III.

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protestante”. O historiador Robert T. Handy expressa essa euforia, quando assim descreve esse período: “O Cristianismo na América tem uma visão mundial, um sonho de um mundo ganho para Cristo. No ímpeto missionário dos séculos XVIII e XIX procurou-se tomar esse sonho realidade.. . O futuro do mundo parece estar nas mãos de três grandes forças protestantes: Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos . . . Os seguidores do verdadeiro Deus estão herdando o mundo . . . O cristianismo é a religião dos povos dominantes da terra. Em pouco tempo ele será a única religião do mundo. O plano divino era que os não-cristãos se tomassem cristãos . . . O progresso das nações cristãs se explica pela sua descoberta da verdade, dos etemos princípios com que Deus criou o mundo”71. É bom não perder de vista que cristianismo para os pensadores desse período era protestantismo, pois que a idéia de que o catolicismo romano era cristão foi sendo posta em xeque ao longo desse período, chegando a ser ponto polêmico nos congressos missionários de Edimburgo (1910) e do Panamá (1916), pendendo a balança sensivelmente contra os católicos. Embora muitas mentes influentes naqueles congressos e antes deles relutassem em negar que os católicos fossem cristãos, num sentido geral a ação missionária protestante dirigiu-se de modo a desconhecer essa qualidade nos católicos. Eles foram nivelados aos demais não-cristãos, embora de modo diverso. Os católicos foram vistos como produtos da descaracterização e paganização do verdadeiro cristia­ nismo recuperado pela Reforma, ao passo que os pagãos eram encarados a partir de conceitos evolutivos. Para aqueles a mensagem era recuperadora e para estes um esforço para fazê-los passar para um estágio superior de evolução em que o desenvolvimento da compreensão religiosa os levaria rumo à revela­ ção mais elevada e plena de Deus72. Foram organizadas diversas missões nos Estados Unidos com objetivos internos. Além da já mencionada preocupação com as frentes pioneiras, escra­ vos e índios também caíram na mira missionária. Mas como o objetivo era o mundo, logo se organizaram missões estrangeiras, como fez a ala conservadora da Igreja Presbiteriana (Velha Escola) ao fundar o BOARD OF FOREIGN MISSIONS (1837) com planos para a África,Oriente e América Latina. O desenvolvimento desta parte girou, até agora, em torno da ideologia do “Destino Manifesto”. Mas há fatores filosóficos e teológicos que contribuí­ ram para o direcionamento da atividade missionária. Dentre os fatores filosó­ ficos, além do evolucionismo, estão os da renovada ênfase na dignidade e importância do homem, a filosofia do direito natural e o individualismo jeffersoniano. O conceito da importância do homem tende a criar maior interesse em seu progresso. A mola propulsora desse interesse filosófico pelo homem parece ter sido a teoria da “bondade desinteressada” (“desinterested benevolence”), de Samuel Hopkins, congregacional da Nova Inglaterra. Hopkins acreditava que enquanto Deus desejava o melhor para todos os homens, o 71 Handy, Robert T., 1971, cap. V. 72 Dillemberger, J. e Welcta, C., 1958, p. 194.

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verdadeiro cristão, com maiores motivos devia sacrificar seus interesses pessoais em favor do interesse de seus semelhantes. Esta teoria levou muita gente a dedicar suas vidas ao trabalho missionário entre os pagãos73. No entanto, para concluir, a empresa missionária tinha, sem dúvida, como fulcro de sua atividade a doutrina arminiana do INFINITO AMOR DE DEUS e sua mercê para todos os homens, que só podia ser universalmente conhecida através da extensão das missões. Termino esta parte com mais uma citação de Clifton E. Olmstead: “Para o protestante americano parecia bem claro que Deus o havia escolhido para ser, política e religiosamente, mestre da raça humana .. . Antes do fim do século X IX , os empreendimentos missionários haviam dado provas de invulgar importância, talvez inconsciente, de sua aliança com o imperialismo americano”.7*

5. ATIVIDADES MISSIONÁRIAS LEIGAS

Um dos mais importantes subprodutos da Era da “Bondade Desinteressa­ da” foi a paixão pela educação. Denominações importantes nos Estados Unidos reconheceram que a educação era pré-requisito para uma América Cristã. Só uma cidadania adequadamente preparada podia desenvolver sua divina missão no mundo. Logo, entre 1780 e 1860, o número de instituições educativas subiu de nove para quase duzentas. Grande parte dessas escolas, principal­ mente presbiterianas, congregacionais e episcopais, possuíam cursos para a for­ mação de seus ministros, mas, acima de tudo, eram elas sinal de uma grande preocupação com o reforço dos ideais de vida protestantes, especialmente diante do grande incremento da população católica devido à imigração, nos anos 30 e 40. Uma outra versão dessa preocupação com a educação foi a Escola Domi­ nical (First Day School ou Sabbath School Society). A Escola Dominical surgira, em 1780, em Gloucester, Inglaterra, por iniciativa de Robert Raikes, como resultado do avivamento wesleyano. A escola de Raikes destinava-se às crianças pobres e ministrava educação religiosa e secular, e foi o ponto de partida da educação popular na Inglaterra. Antes do fim da década de 80 as escolas dominicais haviam chegado à América e, em 1824, já havia sido fundada a Associação das Escolas Dominicais da América. Em 1800, essa escola assumia a função de ensino religioso. Dedicada ao ensino religioso de crianças, ela teve que se fundamentar numa teologia própria. Essa teologia foi a de Horace Bushnell (1802-1876) que, em seu livro “Christian Nurture” (1847), rejeita a doutrina da depravação total do homem e insiste que a

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Olmstead, 1961, p. 68.

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Olmstead, 1961, pp. 70/71.

criança é susceptível ao bem, mesmo que seja contaminada por tendências pecaminosas desde o nascimento. Os cristãos não devem refrear a experiência de conversão em seus filhos, mas conduzi-los como parte da família da fé, de modo que eles jamais venham a pensar ter sido outra coisa que não cristãos75. A doutrina de Bushnell foi instrumento valioso como uma nova filosofia de educação cristã contra o calvinismo e, principalmente, como pano de fundo generalizado do princípio do voluntarismo. A Escola Dominical, como instituição paralela à Igreja, passou a desem­ penhar função importante no desenvolvimento e consolidação das igrejas. A sede de aprender construiu, pouco a pouco, uma epistemologia cristã-protestante, desenvolveu métodos próprios e, nas áreas missionárias, foi servindo de atração para futuros convertidos, principalmente por intermédio das crianças que aderiam às reuniões conduzidas por habilidosas missionárias-professoras. Por outro lado, exerceu também o papel de fixar as doutrinas e a ética nos recém-convertidos. Após a Guerra Civil Americana surgiram as sociedades auxiliadoras femininas. Essas associações leigas exerceram poderoso papel na empresa missionária, seja entusiasmando jovens para as missões, seja sustentando-os com suas contribuições, ao lado das agências missionárias oficiais. A YMCA (Young Men’s Christian Association), fundada em Londres em 1844, logo passou para os Estados Unidos (Boston, 1856) atingindo, em 1861, duzentas associações em todo o país76. A YMCA tinha por objetivo o desenvolvimento espiritual dos moços, promovia reuniões devocionais, classes bíblicas, escolas missionárias e organizava bibliotecas e salas de leitura. Após a Guerra Civil, dedicou-se ao desenvolvimento físico dos jovens da classe média, não perdendo de vista, no entanto, o desenvolvimento neles do conhecimento e virtudes cristãs77. Enfim, desenvolvia atividades sociais, educacionais, esportivas e religiosas. A distribuição de Bíblias foi outra atividade importante na era missionária. A convicção de que a simples leitura da Bíblia, “sem notas e sem comentários”, era capaz de formar mentes e sentimentos cristãos, promoveu a fundação de associações livres para imprimir e distribuir Bíblias em todas as nações da Terra. Depois de 1816, o principal trabalho passou a ser feito pela AMERICAN BIBLE SOCIETY. Organização semelhante foi a AMERICAN TRACT SOCIETY, fundada em 1825. Seu objetivo era espalhar as doutrinas básicas do protestantismo através de biografias e de folhetos devocionais exortativos. São expressão das exortações à temperança, folhetos como “The Evils of Excessive Drinking” e “The Ruinous Consequences of Gambling”. A doutrina humanitarista da “bondade desinteressada” parece ter, realmen­ te, colorido o impulso do “Destino Manifesto” nas áreas missionárias estran­ geiras, que exigiram dos americanos o dispêndio de vultosos recursos financeiros e humanos. Mas a instauração mundial do Reino de Deus bem que valia a pena. 75 Olmstead, 1961, p. 76. 76 Olmstead, 1961, p. 92. 77 Olmstead, 1961, p. 127.

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6 . RESISTÊNCIA ÀS MUDANÇAS

As controvérsias teológicas nas igrejas americanas, produtoras de um natural cansaço do pensamento, assim como a queda da dinâmica da própria sociedade, acabaram produzindo fortes traços de ortodoxia que se incorpora­ ram à mentalidade do protestantismo. Essa mentalidade conservadora, resistente às mudanças tanto eclesiásticas como sociais, desenvolveu-se à medida que o século X IX caminhava para o fim. O primeiro desses traços foi o desenvolvimento e o reforço da autoridade da Igreja. O ponto de partida era preservar o espírito de autoridade, fosse qual fosse: o papa, a sucessão apostólica, a inerrância da Bíblia ou um sistema teológico78. Não se tratava de valorizar as autoridades por si mesmas, mas de vê-las como caminhos para a aproximação de Deus. Podiam elas ser considera­ das como depositárias da unção divina. Perder isso de vista era deixar fugir o absoluto e cair no caos do relativismo. O segundo foi o escolasticismo teológico. Os teólogos presbiterianos de Princeton, influenciados pelo realismo escocês do senso comum, elegeram o método das ciências naturais como método teológico. Se a natureza era o ponto de partida para aquelas, a Bíblia o era para esta. Dos dados da Bíblia, pelo método indutivo, o teólogo construía sua teologia sistemática. A teologia buscava, assim, uma rigorosa objetividade. Proposições corretas, definições elaboradas, a fundamentação da fé em termos racionalmente coerentes, intro­ duziram no protestantismo um sensível escolasticismo. A rigidez teológica congelou a fé, primado da Reforma. O terceiro foi a absorção do pietismo combinado com o apocalipsismo. No final do século XIX, a herança do avivamento bifurcava-se. Uma parte abandonara a técnica avivalista, combinando a sua ênfase na íntima experiência espiritual com o sentimentalismo do idealismo romântico, base da nova teologia liberal. Era uma reação contra a rigidez teológica assim como uma tendência para Valores espirituais subjetivos. A outra assimilara a tendência para a expèctâçãõ de um fim apocalíptico da história. Ambas as saídas do avivalismo continham um forte traço de descrença nas possibilidades humanas de construir uma sociedade melhor. A religião assume um colorido sensivelmente individualista. Depois de 1865 o pietismo e o escolasticismo tomaram-se os dois princi­ pais fundamentos do conservantismo protestante. O escolasticismo tomou-se pedante e frio e com pouco poder para mudanças; o pietismo, embora conser­ vasse seu antigo fervor, continuou viajando no bojo da teologia. O pietismo conseguiu combinar as experiências religiosas individuais com um rígido sistema de crenças. O pietismo não estava interessado só na conversão, mas na santifi­ cação cristã, após a conversão (perfeccionismo). William E. Boardman, em 78

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Smith, H. Shelton et alii, 1963, vol. II, pág. 309/310.

1859, um presbiteriano influenciado pelo metodismo, iniciou grande movimento em favor da possibilidade de uma vida de perfeita santidade. O perfeccionismo foi definitivamente “quietista”, ensinando que o cristão é capaz de conseguir a santificação quando abandona todo esforço e permite uma inteira possessão pelo divino. O apocalipsismo às vezes acompanhou o avivalismo na América. A idéia do retomo de Cristo à terra teve duas interpretações: a pós-milenista e a pré-milenista. A primeira interpretação afirma que a volta de Cristo se dará após o milênio, que será conseguido pela ação normal da Igreja na história; a segunda afirma que Cristo virá e estabelecerá pessoalmente o seu Reino milenário antes do julgamento final da humanidade. O pós-milenismo, entendendo que o milênio seria uma continuação da vida presente, uma transformação para ótimo das instituições sociais, sob o poder cada vez maior da Igreja, introduzia na teologia um colorido de secularização, cuja expressão mais conhecida foi o Evangelho Social. O pós-milenismo, ensinado por Jonathan Edwards no século XVIII, foi uma das inspirações da empresa missionária americana nos princípios do século XIX. O Reino de Deus não seria um evento sobrenatural mas um ápice glorioso da história, mediante os esforços da própria Igreja. O milênio era algo que estava, em boa medida, afeto aos desígnios humanos. A concepção pré-milenista do retomo de Cristo desenvolveu-se simulta­ neamente com a pós-milenista. É uma concepção radicalmente sobrenaturalista. Por volta da década de 70 do século XIX, o pré-milenismo ganhou grande ímpeto e gradativamente foi estabelecendo um distanciamento entre a Igreja e o mundo, formando um hiato que só será suprimido pela volta de Cristo. A volta de Cristo será uma ponte que restabelecerá a unidade entre dois mundos adversos. O pré-milenismo incompatibilizou a Igreja com qualquer atividade de melhoria social. A Igreja concentrou-se em salvar almas, em arrancar “tições da fogueira” — “plucking brands from the buming”79 antes do breve retomo de Cristo. Muito crítico do Evangelho Social, o pré-milenismo mostrou grande zelo na evangelização e nas missões estrangeiras. Vê-se que tanto o pós-milenis­ mo como ô pré-milenismo eram dedicados à empresa missionária, mas variavam nas ênfases; enquanto aquele se ocupava com as mudanças soôiais na direção da implantação do Reino de Deus na terra, estabelecendo assim o milênio, este tinha em mira o discipulado de indivíduos para que o retomo de Cristo se abreviasse. Embora à primeira vista possa não significar grande diferença, a compreensão das estratégias das missões americanas no estrangeiro depende muito da distinção entre essas duas ideologias. De certo modo, o pós-milenismo iria usar a educação como estratégia, como veículo de transplante de institui­ ções sociais; visava a cristianização da sociedade como um todo, era uma cultura a serviço do Reino de Deus. Já o pré-milenismo se apresentava eminen­ 79 Smith, H. Shelton, et alii, 1963, vol. II, p. 314. A expressão é bíblica, conforme Zacarias 3,2 — “não é este um tição tirado do fogo?"

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temente como uma religião, como uma crença na irrupção do sobrenatural na história para a consumação dos negócios humanos. Tanto o pietismo como o apocaliptismo, juntos ou separados, recusam os termos das mudanças teológicas ou sociais; o pietismo por ignorá-las e preocupar-se unicamente com a vida espiritual, e o apocaliptismo por escapar para um tempo futuro de bem-aventurança. No último quartel do século XIX o pré-milenismo firmou-se em igrejas como a presbiteriana, a reformada, a episcopal e a congregacional. Com freqüência, embora seja estranho, o escolasticismo pode desenvol­ ver-se em áreas ocupadas pelo pré-milenismo. Por sua excessiva ênfase na razão não é confortável para o escolasticismo estar ao lado do sobrenaturalismo pré-milenista, mas isto pode ocorrer quando há um inimigo comum a combater, neste caso o liberalismo. Resumindo, o escolasticismo com suas fórmulas acabadas, com a sua sistemática, o autoritarismo com sua ênfase no reforço da autoridade, seja ela institucional, pessoal ou dogmática, o pietismo com seu subjetivismo e o apocaliptismo com a sua indiferença pelos eventos da história tornaram-se instrumentos de entrave para mudanças tanto teológicas como sociais80.

Considerações finais Quando Alexis de Tocqueville desembarcou nos Estados Unidos, em 1831, sentiu e descreveu com perspicácia o espírito da religião e da sociedade americana81. Notou uma multidão inumerável de seitas, diferentes no culto, mas pregando uma mesma moral, os mesmos deveres dos homens uns para com os outros. Para a sociedade, foi escrevendo Tocqueville, não era importante, que os cidadãos professassem a verdadeira religião, mas que tivessem uma religião. A ação da religião não era sobre as opiniões políticas mas sobre os costumes e sobre a família. Daqui a religião rege o Estado. Nos Estados Unidos a religião não regulava apenas os costumes mas estendia seu domínio até à inteligência: uns professavam os dogmas cristãos porque criam neles e outros porque temiam parecer não crer. A eternidade era apenas uma das preocupa­ ções do americano; ele queria o cristianismo implantado na sociedade. Max Weber, que esteve nos Estados Unidos em 1904, fez observações que mostram que a situação descrita por Tocqueville não tinha mudado em seu espírito82. A tendência ainda era bastante forte para pertencer às igrejas, talvez pelas mesmas razões que Tocqueville apontara, de que o pertencer à igreja se dava por convicção ou por interesse social, já que toda a vida 80 Devo muito do que foi escrito nesta parte a Smith, H. Shelton et alii, 1963, vol. II, capítulo V III — “Variant Orthodoxies”. 81 Tocqueville, A., 1977. 82 Weber, Max. 1974, cap. 12 (Parte III).

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comercial girava em tomo da filiação religiosa. Parece não haver razão, no entanto, para descartar o velho temor das penas eternas. O que se faz errado aqui será corrigido no além. Por isso é melhor pagar as dívidas aqui mesmo. Por isso só tinham êxito nas atividades comerciais os que, de algum modo, provassem sua filiação a alguma das numerosas seitas. A credibilidade residia no fato de que as seitas só admitiam como membros, pessoas cuja conduta fosse ilibada. A exclusão de uma igreja por motivos de ofensas morais signifi­ cava, economicamente, a perda de crédito e, socialmente, a perda de “status” . As pregações nas igrejas refletiam a ética burguesa respeitável e consis­ tente, do gênero mais doméstico e sólido. Testemunha Max Weber que as congregações não apreciavam sermões sobre dogmas e distinções entre as seitas. Os metodistas, mais numerosos e talvez já liderando o comércio83, extrema­ vam-se na regulamentação da vida, proibindo coisas como: regatear nos preços, negociar mercadorias antes de pagar os tributos a elas referentes, cobrar juro mais alto do que o legal, “amontoar tesouros na terra”, transformar capital de investimento em riqueza consolidada, tomar empréstimo sem ter certeza de poder pagar a dívida, luxos de todos os tipos etc. Essa regulamentação religiosa da vida, na opinião de Max Weber, deve ter operado com penetrante eficiência na formação e consolidação da sociedade americana. Observou ainda Max Weber que as seitas eram a antítese mais coerente da Igreja Católica universalista e compulsória para a administração da graça. Esta observação de Max Weber foi feita num momento da história da religião americana em que a Igreja Católica já se apresentava como séria concorrente do protestantismo, mas o espírito deste tinha sido formado dentro do antago­ nismo histórico com a Igreja Anglicana. “Mutatis mutandis”, a observação continua válida. Concluindo, aquilo que se tem chamado, com muita propriedade, de religião civil americana84, com suas seitas e sua teologia mais ou menos indiferenciada, sua regulamentação da vida social dentro da ética rigorosa do puritanismo colorido pelo metodismo, constituiu-se sem dúvida numa das mais perfeitas simbioses entre religião e sociedade, na história ocidental moderna.

83 Sigfried, André, Les États-Unis d’ajourd’hui, citado por Léonard, 1964, III vol. p. 426. 84 Reily, Duncan A., 1977.

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3 - Celeste porvir

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A P Ê N D IC E I

O PIETISMO

Historiadores há, como Bengt Hãgglund (História da Teologia), que vêem dificuldades na busca das origens do pietismo e preferem não ir muito além de certas conjecturas, como procurar causas imediatistas relativas ao ambiente social, assim como religiosas em que os movimentos pietistas históricos ocorre­ ram. Os movimentos pietistas alemães, por exemplo, são relacionados com o luteranismo pós-Lutero, expresso eclesiasticamente de modo a deixar áreas abertas à insatisfação religiosa. Realmente, a busca das origens do pietismo não é fácil porque ele se manifesta em toda a extensão da história do cristianismo como uma de suas facetas, como uma posição dialética face ao intelectualismo e ao clericalismo. Embora essa dialética tenda sempre para o equilíbrio, há momentos em que um dos extremos avança dando a impressão falsa de que a validez de um ou de outro foi obscurecida ou mesmo negada, apesar de que a tendência seja a de um caminhar paralelo. O pietismo protestante é, ressalvada de certo modo a tendência para o monasticismo, o equivalente do misticismo católico. Se este tem características solitárias, aquele é individualista. Tanto o misticismo como o pietismo são uma ascese pessoal no sentido de um apropriar-se do sagrado sem a ajuda de fatores de ordem epistemológica. Parecem ser fatores morfológicos dessas manifestações de vivência religiosa, o platonismo e o individualismo. Estes fatores estão também na base do puritanismo, cujas teorizações mais conhecidas são as de John Milton (“O Paraíso Perdido”) e J. Bunyan (“O Peregrino”) já referidos na primeira parte deste capítulo1. Fatores desencadeadores parecem ser o excessivo clericalismo e eclesiasticismo, assim como o dogmatismo doutri­ nário que tende a reduzir a religião a uma epistemologia. Os momentos da 1 A idéia de Paraíso está ligada ao caminhar sofrido do peregrino em sua direção. Dois mundos opostos e em planos diferentes. O Quadro “Os dois caminhos”, também já citado, mostra a ascese do peregrino pela via tortuosa e íngreme de sucessivas experiências pessoais que são como que degraus nessa ascensão.

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história do cristianismo em que estas tendências se tornaram demasiadamente fortes, mostram quase sempre o recrudescimento de movimentos de caráter pietista. Um outro fator, este de ordem mais social e política, é a intolerância religiosa que se manifesta em pressões e perseguições que dificultam a vivência eclesial livre. Nos períodos de perseguição os mestres de doutrinas (pastores etc.) raramente estão presentes, porque são eles os primeiros a serem presos ou eliminados, por isso os fiéis ficam a sós com a sua fé e a sua Bíblia, isto essencialmente no caso dos protestantes. “Abandonados a si mesmos, mas com a Bíblia e a oração”, como diz Émile G. Léonard2. O mesmo Émile G. Léonard, na mesma página citada, referindo-se a período de grandes perseguições aos protestantes na França (fins do século XVII), transcreve as palavras de um mentor espiritual dos perseguidos: “Nós nos reunimos — escreve o Dieppois Jean Périgal, — cuja casa tinha sido reduzida às quatro paredes pelos dragões — para ler com muita freqüência a palavra de Deus e cantar louvores; sobretudo lemos as passagens do Evange­ lho onde se encontram exortações à perseverança. . . Isto é que fortalece muito a nossa coragem e a nossa fé e nos dá uma santa alegria na alma, que nos faz olhar sem parar para tudo o que nos possa acontecer, colocar só nas mãos de Deus os nossos cuidados e todas as nossas preocupações, seguros de que se tivermos de passar por duras provas, ele nos dará forças suficientes para vencermos”. Com freqüência, a leitura bíblica se acompanha de outras leituras piedosas que se destinam a suprir a ausência de pastores e a falta de cultos3. A piedade pessoal, exercitada pelas leituras bíblicas e devocionais, acompanhava-se de reuniões que podiam se realizar em qualquer lugar. Há dois caracteres impor­ tantes no pietismo, portanto: o culto privado, pessoal da família, e os cultos comunitários, que não dependem dos ministros ordenados e nem de templos. A prática piedosa é, parece, típica de tempos de insegurança e de insatisfações e de modos de vida que não favorecem a prática de religião institucionalizada, pelo menos no que se refere à presença física de ministros ordenados e ao acesso a lugares ou edifícios consagrados. Dadas essas características gerais do pietismo, torna-se mais fácil com­ preender o ramo dessa forma de religiosidade que parece ter influído mais na teologia protestante que, no fim de um longo processo histórico, acabou colorindo acentuadamente o protestantismo americano e, conseqüentemente, o brasileiro, é o pietismo de Hermhut. O pietismo em territórios luteranos parece ser, nos seus caracteres mais gerais, resultado, ao mesmo tempo, de novo clima de pensamento proporcio­ nado pelo Iluminismo e da insatisfação gerada pela situação decadente da 2

Léonard, Êmile G., 1964, tomo III, p. 59.

3 Exemplos: La pratique de la religion chrétienne pour les fidèles qui sent privés du saint ministère (Genève, 1685), de Claude ou de Du Bourdieu, e o “Nouveau trésor de prières propres en tout temps et sourtout en celui de l’affliction de 1’Eglise”, de François Murat.

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Igreja Luterana, presa a uma ortodoxia fechada e pouco propícia à vida religiosa mais intensa. A vida religiosa estava presa ao “saber da reta doutrina”, ligada, portanto, a uma epistemologia oficial que limitava o acesso ao texto bíblico, uma vez que ele já estava interpretado e sistematizado. O racionalismo iluminista, ao mesmo tempo que levanta problemas, que põem em xeque algumas crenças por causa de formas novas de abordar os textos bíblicos e mesmo certas doutrinas estabelecidas, fornece um clima de liberdade intelectual que permite abandonar os dogmas e procurar na Escritura, na própria fonte, inspiração e normas para a vida. Daí a importância que assumem no pietismo a leitura e a meditação bíblicas, assim como os estudos bíblicos que começam a surgir com características novas: interpretação livre das peias doutrinárias, sob a iluminação do Espírito, envolta num halo de piedade, embora rigorosamente montada sobre os textos originais da Bíblia4. A literatura devocional também tem sua origem nesse clima de libertação doutrinária e da necessidade de auto-satisfação pessoal em questões de religião. O pietismo medra também em áreas de pressão, perseguição e. insatisfação; é freqüente nele um certo sentido milenarista que se revela, principalmente, numa clara condenação da sociedade abrangente. O próprio Bengel, um dos mais ilustres teólogos do pietismo, chegou a marcar o ano de 1736 como o início dos Últimos Tempos5. O fundador do pietismo dentro do luteranismo foi Felipe Jacó Spener (1635-1705), cuja obra principal (PIA DESIDERIA, 1675) traça um quadro severo dos males da sociedade leiga e sacerdotal e indica o remédio em seis “desejos pios”: “ 1. Instituição de conventículos encarregados de difundir o conhecimento da Palavra; 2. restabelecimento do sacerdócio universal; 3. ensino da preponderância da vida cristã sobre a teologia; 4. introdução da caridade nas polêmicas; 5. a restauração dos estudos teológicos pelo recurso a Tauler, à IMITA­ ÇÃO e à TEOLOGIA ALEMÃ, assim como a pequenas reuniões de estudo entre professores e alunos; 6. uma reforma completa da pregação no sentido catequético, servindo Arndt como exemplo”6. 4 Um dos mais importantes desses eruditos estudiosos da Bíblia foi João Albrecht Bengel (1687-1751). SUa obra mais famosa foi Gnomon N ovi Testamenti (1742). O subtítulo desta obra é sintomático — “in qua ex nativa verborum vi simplicitas, profunditas, concinnitas, salubritas sensum coelestium indicatur”. 5 Léonard, Émile G., 1964, III vol, P- 88. 6 Citado por Léonard, Émile G , 1964, III vol, p. 81. João Tauler (1300-1361), dominicano, notório pregador místico que influenciou Lutero; João Arndt (1555-1621), teólogo luterano místico. A TEOLOGIA ALEMA é uma obra mística anônima elogiada por Lutero. A IMITAÇAO é a IMITAÇÃO DE CRISTO, geralmente atribuída a Tomás de Kempis.

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Vê-se aí toda uma recorrência de Spener ao misticismo medieval no sentido de substituir o escolasticismo. A epistemologia de Spener se funda na experiên­ cia que é o fundamento de toda certeza, tanto no nível natural como no da revelação. Assim, a experiência pessoal é fundamento da certeza em matéria do conhecimento teológico. Há um conhecimento físico e um conhecimento espiritual. A doutrina é acessível sem o auxílio do Espírito, mas o verdadeiro conhecimento vem através de experiência pessoal com Deus. A teologia de Spener, bem na tradição mística, era negativa face à vida neste mundo. O cristão deve morrer para o mundo, isto é, abster-se de tudo o que é mundano, dos prazeres e diversões. Embora a vida perfeita dos cristãos não seja possível neste mundo, há alguns que conseguem libertar-se dos pecados intencionais. Como resultado, o pietismo, principalmente o de Spener, produziu uma ética mais ou menos ambivalente: exigências mais rigorosas feitas aos cristãos do que aos homens em geral. A interpretação da Bíblia tem um sentido literal, espiritual e místico, o que facilita a superação de passagens embaraçosas, principalmente do Antigo Testamento. Em suma, o pietismo foi e é, no seu todo, uma reação contra o racionalismo, as especulações teológicas particulares que não valia a pena defender e suas conseqüências sociais como perseguições e guerras de religião. O núcleo da fé pietista consiste na “experiência com Cristo” e no cultivo de sua presença. A experiência com Cristo santifica um sentimento vivido de seu sofrimento substitutivo, que ao mesmo tempo mostra ao fiel a extensão de seus próprios pecados diante da justiça divina, justiça que se transforma em amor e perdão na cruz. O cultivo da presença do Cristo sofredor mantém viva a premência do pecado assim como a certeza do amor e do perdão. Dentre as correntes diversas do pietismo alemão parece-nos mais impor­ tante para os objetivos propostos neste trabalho, o desenvolvido pelos Irmãos Moravianos na Comunidade de Hermhut, onde se estabeleceram em 1727, a convite do Conde von Zinzendorf. Remanescentes dos hussitas da Boêmia, recusaram-se a entrar para a Igreja Luterana, constituindo sua própria Igreja. Zinzendorf é o teólogo dos moravianos, sendo consagrado bispo em 1737. Os moravianos, embora tivessem alto conceito de igreja, não eram sectaristas mas abertos a todas as denominações. O centro da teologia de Zinzendorf é a comunhão com Cristo através da contemplação da cruz, no que não difere de outros grupos pietistas. O interes­ sante em Zinzendorf é a função epistemológica da cruz e dos sofrimentos do Crucificado, que são o único caminho para o conhecimento de Deus. Ao contemplar a cruz, os ferimentos e o sangue, fica-se sabendo que Deus é amor e ama os homens, assim comó se tem consciência do pecado e do perdão. Mas o que chama mais a atenção é o elevado tom emocional e a subjetividade da teologia da cruz. O herrnhutismo exagerava a experiência emocional do sofrimento de Cristo, sendo a relação com Deus descrita em linguagem de intimidade humaná freqüentemente vista como de mau gosto, como já foi dito. Noutra parte deste

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trabalho esta questão será vista em maiores detalhes. Por enquanto, basta citar este hino de H.M. Wright: Foi na cruz, foi na cruz, onde, um dia eu vi meu pecado castigado em Jesus; Foi ali, pela fé, que os olhos abri, E agora me alegro em sua luz7.

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Vê-se aí a implicação epistemológica da cruz: abrir os olhos, luz. Este outro hino, de autor anônimo, mostra o tipo de relacionamento do homem com Deus: Ês tu, Jesus, meu bem e meu tesouro; RiqueZa e fonte de prazer do céu; Ês tu, meu Deus, meu Pai, e meu Amigo, Ês meu, Jesus, e eu sou somente teu? Em suma, o pietismo é essencialmente uma crença em Jesus, uma fé centrada no Crucificado. Zinzendorf, em sua adolescência, teve uma experiên­ cia marcante quando viu, em Dusseldorf, a seguinte inscrição embaixo de um ECCE HOMO: HOC FECI PRO TE, QUID FACIS PRO ME?9. É uma grande devoção à Bíblia, à sua leitura, estudo e interpretação pessoal. É uma certa descrença neste mundo onde, no entanto, se deve viver asceticamente a espera de outro melhor. O pietismo aceita a igreja institucionalizada, à qual atribui uma função purificadora, mas valoriza mais a devoção pessoal e as reuniões de oração e estudo da Bíblia em qualquer lugar que seja. Não se pense, porém, que o pietismo é um simples quietismo. Os Irmãos Moravianos, por exemplo, manifestaram um grande impulso missionário e se tomaram muito conhecidos pelo seu esforço educacional.

7 Salmos e Hinos, edição de 1899, n. 234. 8 Salmos e Hinos, n. 424, edição de 1899. 9 Léonard, Émile G., 1964, III vol. p. 92. Esse tipo de experiência está bem expresso neste hino de D.M. Hazlett, — Salmos e Hinos, n.° 360: Morri, morri, na cruz por ti, Que fazes tu por mim?

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A P Ê N D IC E II

O PROTESTANTISMO AMERICANO E A IGREJA CATÓLICA

Durante a primeira metade do século XIX, por causa da intensa imigração de novos grupos como franceses, irlandeses e alemães católicos, que chegou a provocar um certo desequilíbrio nas relações sociais, desenvolveu-se, nos Estados Unidos, um movimento misto de nativismo e anticatolicismo. A Igreja Católica, antes pequena e perseguida, toma-se rapidamente uma grande Igreja. Mas não era só a massa de estrangeiros de outra religião que preocupava, mas pruridos políticos surgem como, por exemplo, dentro do iluminismo “jeffersoniano” que via na Igreja Católica a mais poderosa e perigosa institucionalização da superstição medieval, obscurantismo sectário e despotismo monárquico em religião. “Ã medida que os imigrantes chegavam e a Igreja Católica crescia, sérias dúvidas sobre a democracia na América começavam a deslocar o velho otimismo1’.' Isso no começo do século XIX. A reação contra o catolicismo na América provocou esforços no sentido de unir as igrejas protestantes. Surgiram vozes e publicações de combate como “THE PROTESTANT VINDICATOR” (1834), órgão oficial da AMERICAN SOCIETY TO PROMOTE THE PRINCIPLES OF THE PROTESTANT REFORMATION (1836). A linha de oposição era unificada2 entre os protes­ tantes e, segundo Sidney E. Ahlstrom, constituiu-se um padrão para a causa evangélica e reformada. Segundo o hábito, foi uma associação voluntária de âmbito nacional. A Igreja Católica defendeu-se com os seus jornais “UNITED STATES CATHOLIC MISCELLANY” (1822), “CATHOLIC TRACT SOCIETY” (1827) e diversos mais. 1 Ahlstrom, 1975, 1.° vol., p. 671. 2 Handy, Robert T„ 1971, Cap. IV.

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A literatura polêmica nem sempre foi limpa. Célebres sermões anticatólicos foram proferidos e publicados, como “PLEA FOR THE WEST” (1834), de Lyman BEECHER, que fala dos católicos imigrantes como agentes dos reis católicos reacionários da Europa, engajados numa conspiração organizada para tomar o Vale do Mississipi3. Participa da luta SAMUEL F. B. MORSE, o inventor do telégrafo, com o seu “FOREIGN CONSPIRACY AGAINST THE LIBERTIES OF THE UNITED STATES” (1834). O nativismo anticatólico imaginava uma formidável conspiração, uma santa aliança, entre o papa, a hierarquia e os jesuítas “para subverter a democracia pela promoção da imigração católica na América”. Em 1849 foi fundada a “AMERICAN AND FOREIGN CHRISTIAN UNION” com o programa de difundir os “princípios de liberdade religiosa e o puro e evangé­ lico cristianismo, tanto na pátria como fora dela, onde exista cristianismo corrupto.”4 Como se vê, mesmo na luta entre as históricas facções do cristianismo, protestantes e católicos, a religião está profundamente envolvida pelas preo­ cupações sociais e políticas em que se reconhece a religião, não somente como legitimadora da organização da sociedade, mas como a matriz geradora dessa organização. A discussão teológica não gira em tomo de seus próprios gonzos na busca de uma verdade metafísica, mas se projeta numa práxis sócio-política apaixonante porque é quase uma luta de vida ou de morte entre ideais sociais e políticos, distintos e bem nítidos. A projeção protestante no Brasil e na América Latina vai produzir uma sensível ambigüidade no confronto entre protestantismo e catolicismo. Enquanto alguns missionários e, principalmente, os líderes nacionais falam em verdade e não-verdade, reproduzindo assim as polêmicas da Reforma, uma grande facção de missionários se preocupa com os ideais democráticos e republicanos conduzidos pelo protestantismo, assim como o seu liberalismo e progressismo5. De um lado, vê-se a preocupação conversionista de católicos ao protestantismo, de outro o transplante cultural, a exportação da “American way of life”, tudo em obediência ao “Destino Manifesto”. Enfim, o tenaz esforço missionário americano na América Latina pôde ter muitas razões, mas uma delas e, talvez, a não menos importante, foi o “monroísmo”. A idéia de que a Igreja Católica era portadora e legitimadora de regimes políticos antagônicos aos ideais nòrte-americanos podia justificar uma grande preocupação com a América Latina que se apresentava como um grande bloco oficialmente católico. Apesar de que os sucessivos movimentos de independência vão, na América Espanhola, partindo para regimes republi­ canos, a presença da Igreja Católica não era tranqüilizadora, pois ela tendia 3 Ahlstrom, Sidney E., 1975, 1.° vol., p. 674. 4

Ahlstrom, 1975, 1.° vol. p. 677.

5 Embora escrito em 1926, é um bom exemplo o ensaio de Thomas Porter, missionário presbiteriano do Sul, intitulado O Presbitério (sic) na Religião Cristã, citado e comentado no capítulo 4.

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a forçar a reprodução da sociedade hierárquica independentemente do regime político. Para concluir, não seria fora de propósito ver o Brasil como o objetivo principal da preocupação norte-americana. Constituía o maior território e o seu potencial político podia se tomar relevante na América Latina e, ainda por cima, ao fazer sua independência, tomara-se monarquia. Este fator pode ter justificado o grande esforço da empresa missionária americana no Brasil, que parece ter sido muito mais volumoso do que nos demais países latino-ame­ ricanos. Nem mesmo a febre amarela, que dizimava impiedosamente pregado­ res e educadores-missionários, conseguiu deter a “invasão”6 que continuou crescendo à medida que o século XIX caminhava para o fim.

6 Esta palavra aparece no título do livro do Missionário Samuel R. Gammon, publicado em 1910: “The Evangelical Invasion of Brazil, or a Half Century of Evangelical Missions in the Land of Southern Cross”.

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PA R T E II

A ESTRATÉGIA

C A PÍTU L O I

O CATOLICISMO BRASILEIRO NA VISÃO DO PROTESTANTISMO TRADICIONAL

"Fora de R om a, dentro do cristianismo” Eduardo Carlos Pereira*

INTRODUÇÃO Quando o protestantismo chega ao Brasil para ficar, isto é, em meados do século XIX, encontrou aqui uma religião já confortavelmente instalada, tendo já vencido, pelo menos aparentemente, todos os obstáculos. Antes de ser religião do Estado, era a religião do povo brasileiro, era a configuração de seu mundo em todos os sentidos da vida. Para entender a estratégia protestante e as formas que o próprio protestantismo teve que assumir para fazer face a esse adversário respeitável é necessário tentar construir uma imagem do cato­ licismo brasileiro, não descompromissada, mas a partir da ótica dos missioná­ rios anglo-saxões e, posteriormente, dos líderes protestantes nacionais. Estou certo de que as peculiaridades do protestantismo no Brasil, suas diferenças em relação às suas origens, têm algo a ver com a maneira como ele enfrentou e contornou o catolicismo. A visão que o protestantismo tradicional foi constru­ indo do catolicismo no Brasil estruturou sua estratégia missionária. Partir do ponto de vista protestante e tentar perceber os contornos com que o protestante via, nos seus primórdios, o catolicismo brasileiro, é o meu intuito nesta parte do meu trabalho. Um procedimento empírico vai nortear esta tentativa, pois pretendo construir uma imagem do catolicismo através do testemunho direto dos missionários e de outros líderes que os acompanharam, estes nacionais, por intermédio de seus escritos e sermões, assim como da estratégia por eles usada nas várias formas de mensagem e propaganda. * Pereira, Eduardo Carlos, 1920, p. 442.

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a) O ponto de partida A luta dos protestantes por um espaço religioso na sociedade brasileira desenrolou-se em três níveis: o polêmico, o educacional e o proselitista. O educacional se desenvolveu em dois outros níveis: o ideológico, cujo objetivo era introduzir elementos transformadores na cultura brasileira a partir dos escalões mais elevados, e o instrumental, cujo objetivo era auxiliar o proseli­ tismo e a manutenção do culto protestante na camada inferior da população. O primeiro foi representado pelos grandes colégios americanos e o segundo pelas escolas paroquiais. O proselitista, isto é, o esforço desenvolvido pelos protestantes para converter os católicos, constituiu-se no confronto direto com o catolicismo uma vez que se tratava de tentativa de substituição de princípios de fé e procedimentos religiosos profundamente arraigados em três séculos livres de concorrência. Estes dois níveis, isto é, o educacional e o proselitista, serão tratados nos capítulos 4 e 5, respectivamente. No presente capítulo o que vai me preocupar é o primeiro, quer dizer, o nível polêmico. Os protes­ tantes tinham pela frente um adversário a ser combatido e, para isso, era necessário conhecê-lo. Era preciso formar dele uma imagem nítida e objetiva para que seus ataques não se perdessem no vazio. A polêmica, estabelecida no início do protestantismo no Brasil, irá caracterizá-lo quase que de modo definitivo, acompanhando o protestantismo brasileiro ao longo de sua história, se não explícita, pelo menos latente como componente do “espírito” protestante. Nos missionários, a polêmica se desenvolve, talvez por motivos políticos, num clima de prudência; nos líderes nacionais, a partir da primeira geração de pasto­ res brasileiros, ela é franca e agressiva embora a linguagem, quase sempre cavalheiresca, escorregasse às vezes para a ironia1. A polêmica versou sempre sobre as questões controversas da Reforma. O período polêmico terminou no século XX, nos anos vinte, e com a maior de todas elas que, iniciada pelo Rev. Eduardo Carlos Pereira e Padre Leonel Franca, envolveu, após a morte daquele, outros conhecidos líderes protestantes da época2. A análise do comportamento protestante na fase de sua implantação e consolidação, o que se dá muito provavelmente, creio, ao findar o Primeiro Período Republicano, mostra a visão peculiar que o protestantismo teve da Igreja Católica. Como essa visão é importante, como já foi dito, para se enten­ der a estratégia protestante em seus diversos níveis de ação, ela merece ser reconstruída. Por outro lado, a ótica protestante do catolicismo brasileiro reve­ lou justeza em certos aspectos porque mostrou as brechas pelas quais ele pode entrar. 1 Por exemplo, o Rev. Miguel Gonçalves Torres que, por volta de 1879, sai a campo para refutar o “Catecismo sobre a Igreja Católica”, escrito por D. Antonio de Macedo Costa, Bispo do Pará. O título completo da obra de Miguel Torres é “A Igreja Romana à Barra do Evangelho e da História na Pessoa de seu Campeão o Bispo do Pará ou Análise do Catecismo sobre a Igreja Católica de D. Antonio de Macedo Costa”. O Rev. Miguel Torres pertenceu à primeira geração de pastores nacionais composta, além dele, por Antonio Bandeira Trajano, Antonio Pedro de Cerqueira Leite e Modesto Perestrelo Carvalhosa. 2

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Otoniel Mota, Ernesto Luiz de Oliveira e Lisâneas Cerqueira Leite.

Vou tentar, a seguir, estabelecer os pontos de partida para se construir uma imagem do catolicismo brasileiro que se ajuste à visão que dele tinha e, quase certo ainda tenha, o protestantismo implantado na sociedade nacional.

b) Asbbel G. Simonton Como pretendo mostrar em outro lugar, o protestantismo que chegou ao Brasil foi um produto nuclearmente indiferenciado do protestantismo norteamericano na sua era missionária. Assim, embora até o fim do Império já se estivessem estabelecido no Brasil todas as grandes denominações protestantes, as distinções que entre elas havia eram de natureza secundária, niveladas que foram pela teologia originada dos movimentos religiosos norte-americanos de um lado, e das condições peculiares do Brasil, por outro lado. Desse modo, a teologia pregada, conversionista e polêmica contra o cato­ licismo, era a mesma, o que possibilita buscar seus contornos formais nos ser­ mões e escritos vários dos líderes de uma só das denominações. A tese da unidade teológica e ideológica do protestantismo transplantado para o Brasil, que será sustentada ao longo deste trabalho, permitirá o uso de material exclusivamente presbiteriano como modelo. Embora o meu trabalho se restrinja ao Império, creio ser lícito examinar o pensamento de líderes que se projetaram já na Primeira República porque certamente não houve variação na imagem que desde o início fora formada do catolicismo. Naturalmente a prioridade cabe a Simonton, o primeiro missionário presbiteriano. Simonton, que viveu no Brasil de 1859 e 1867 e pastoreou a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, por ele fundada em 1862, até a sua morte, naquele mesmo ano de 1867, foi notoriamente prudente nas suas refe­ rências à religião oficial do Brasil. A leitura de seus sermões, por exemplo, mostra que ele nunca se refere explicitamente à Igreja Católica, mas à “reli­ gião de nossa sociedade” ou aos “costumes religiosos deste país”. Não se nota nele espírito abertamente polêmico, mas intenção proselitista, conver­ sionista e exortativa para os fiéis de sua Igreja no sentido de consolidar neles os princípios distintivos da nova fé que haviam abraçado. Os sermões de Simonton3 mostram um bom escritor, orador e, ainda, um arguto observador da sociedade do Rio de Janeiro de seu tempo. Suas referên­ cias aos costumes religiosos são produto de conversas com pessoas do povo, leituras de anúncios e convites funerários, necrológicos e, obviamente, das manifestações públicas de religiosidade. Simonton chama a atenção de seus fiéis para a falsa segurança que o seguir a religião da maioria confere,4 principalmente porque ela não está estru­ turada sobre o conhecimento dos fundamentos da fé, mas sobre os costumes 3 Simonton, A.G., 1869. 4 Ibidem, sermão “Entrai pela Porta Estreita”.

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e sobre o rito inconsciente do batismo5. Os hábitos e o desconhecimento da Bíblia é que conduzem às exterioridades da sua prática religiosa que não condu­ zem a nenhum consolo ou conforto na morte e nas vicissitudes da vida6. Reli­ gião que não dá segurança (imortalidade) e consolação de nada serve. Então, a melhor religião não é a da maioria, mas a que tem os elementos de acesso à verdadeira salvação e está ao alcance de todos. As penitências pelo sofri­ mento corporal voluntário atemorizam as pessoas mais débeis e as dispendiosas providências funerárias tornam-se só acessíveis aos ricos7. O temor a um Deus cruel e vingativo deixa as pessoas aterrorizadas com a vida futura e lança-as às superstições e à gerência de homens que fazem da religião meio de vida e negócio8. Em resumo, com toda a prudência mas com clareza, Simonton vai construindo nos seus sermões a figura que ele tinha da Igreja Católica. Seu sermão “A Morte e o Futuro Estado dos Justos”, bastante longo e publicado inicialmente na “Imprensa Evangélica”’, por partes, durante 1868 (em forma de artigos ou “tratados” como se dizia), é um dos mais ricos de alusões ao catolicismo. Nesse sentido (talvez nem tenha sido pregado tal como está na coletânea em exame), Simonton diz que a Igreja Católica, naturalmente, é “ . . . um triste sistema. Nem sabemos que haja nada mais doloroso no meio da cegueira do espírito humano” . Essa cegueira decorre do abandono e desco­ nhecimento da Bíblia por parte dos teólogos10 e que reflete nos fiéis que nada sabem da existência de Deus, de sua alma, da imortalidade e da vida futura". As práticas litúrgicas, os ritos, as cerimônias, a pompa, os intermediários (santos) identificam a Igreja Católica como uma religião pagã com forte dependência da mitologia12. Não é cristã, uma vez que se afastou do Evangelho13. É também uma religião de ricos, porque só eles podem financiar as cerimônias e pagar o necessário para a salvação das almas14. O culto católico é culto inferior e apaga­ do em que “se pede a intervenção de amigos na corte do céu”15. Ainda, o 5

Ibidem,

6

Simonton, ibidem, sermão “A Morte e o Futuro dos Justos”.

sermão “A morte e o Futuro Estado dosJustos”.

7

Ibidem,

“A Fé e a Visão”.

8

Ibidem,

“Tudo está Cumprido”.

9

Ibidem,

prefácio do editor A.L. Blackford, p. 6.

10 “Ser teólogo sem saber o caráter de Deus é o mesmo que ser geógrafo sem saber a forma do Mundo” — Simonton, ibidem, sermão “Deus é caridade”. 11 Ibidem, sermão “A Morte e o Futuro Estado dos Justos”. 12 Ibidem, o mesmo sermão. 13 É um “anti-evangelho” — Ibidem, sermão “A Morte e o Futuro Estado dos Justos”. 14 “A verdade é que todo esse aparato de ofícios. .. não se ostenta em homenagem a Deus, mas em honra dos mortos e pelo honorário que toca aos celebrantes”. Ibidem, mesmo sermão. 15

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“As portas do purgatório giram sobre eixos de o u r o ...” Ibidem, sermão “A fé e a visão”. Ibidem, sermão “Deus é Caridade”.

catolicismo é uma religião contraditória porque quanto melhor a pessoa, mais cerimônias são feitas em sua intenção, o que indica a sua maior dificuldade em passar para “o melhor lugar”, quando o contrário é que seria o certo. Simonton afirma isto a partir da leitura, em jornais, de anúncios de missas e de necrológios de pessoas importantes16. Essas contradições contribuem para que muitas pessoas se refugiem no indiferentismo e na incredulidade. Uma religião cristã só de nome, distante de suas origens, mitológica, mais propícia aos ricos, contraditória, mantida por um cerimonial externo e respon­ sável por boa parte da irreligiosidade reinante na sociedade e que caracterizava a Igreja Católica pelas facilidades que oferecia aos seguidores17 era a religião da maioria. Por isso, Simonton exortava os seus ouvintes a se acautelarem contra essa aparente superioridade.

c) José Manuel da Conceição O Pe. José Manuel da Conceição, que exercera o sacerdócio em várias paróquias da Província de São Paulo, abandonou oficialmente as ordens em 28 de setembro de 1864. Suas dúvidas a respeito da Igreja Católica começaram quando aos dezessete anos caiu-lhe nas mãos um exemplar da Bíblia e começou a lê-la. Um pouco mais tarde passou a conviver com os europeus, ingleses, alemães e dinamarqueses que trabalhavam na fundição de ferro de Ipanema, perto de Sorocaba, cujo modo de viver, com suas devoções e respeito pelo domingo, impressionou-o, especialmente por serem protestantes. A amizade que Conceição fez com o médico dinamarquês João Henrique Theodoro Langaard, que clinicava entre os trabalhadores de Ipanema, parece ter completado a sua protestantização, não tanto pelo seu exemplo de vida religiosa, mas pelo ensino que lhe ministrou do alemão18. O conhecimento do alemão e o acesso aos livros de Langaard podem ter aberto a Conceição os conheci­ mentos históricos e críticos que mais tarde poriam em xeque a sua fé católica. Conceição, nessa época, era subdiácono. José Manuel da Conceição foi ordenado sacerdote (presbítero) em 29 de junho de 1845 e até 1864, quando abandonou as ordens, foi um padre singular cujos ensinos destoavam das doutrinas católicas. Em Brotas, pequena cidade do interior de São Paulo, e sua última paróquia, já ensinava que a Bíblia era a Palavra de Deus e não uma heresia, que as imagens de santos não possuíam nenhuma santidade e que podiam ser atiradas fora como qualquer outro objeto, que não havia obrigação de confissão de pecados ao padre, mas que isso podia ser feito a Deus por intermédio de Cristo. Pelos seus ensinos é quase certo que Conceição havia sido largamento influenciado pela história da Reforma nos 16 Ibidem, sermão “A Morte e o Futuro dos Justos”. 17 Simonton, Ibidem, sermão “Entrai pela Porta Estreita”. 18 Langaard era um protestante um tanto desleixado de sua religião. É o que afirma Boanerges Ribeiro, 1950, p. 45.

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livros de Langaard19. Conhecido desde logo por “Padre Protestante”, Con­ ceição, em seus vinte anos de sacerdócio, vagou por numerosas paróquias, mudado constantemente pelos bispos, preocupados com sua influência não ortodoxa. Parece que as intenções de Conceição, quando agindo na Igreja Católica, eram reformistas. Mas a época, falta dos meios de comunicação, as distâncias, o despovoamento e o meio cultural pobre eram inteiramente adversos aos seus esforços. Homem inconformado e inquieto, quando se encontrou com os missionários presbiterianos, em 1863, iniciou uma jornada que iria ser um dos grandes triunfos do protestantismo no Brasil. Em setembro de 1864, por carta enviada ao Bispo D. Sebastião Pinto do Rego, abandonava o sacerdócio e a Igreja Católica e, no mês seguinte, era batizado pelo missionário Rev. A. L. Blackford, no Rio de Janeiro. Em dezembro de 1865 foi ordenado pastor evangélico pelo Presbitério do Rio de Janeiro reunido em São Paulo. Foi, historicamente, o primeiro pastor pro­ testante a ser ordenado no Brasil. As biografias de Conceição20 mostram um homem inquieto e melancólico, mas não fica claro se se tratava de algum problema de saúde ou se as dúvidas religiosas teriam afetado seriamente o seu comportamento. Logo após o seu batismo por Blackford, atitudes estranhas por parte dele começaram a preocupar os missionários, atitudes essas que o acompanharam durante toda a vida. Segundo testemunharam os missionários, Conceição, acometido de intenso zelo religioso, sentia “remorsos de ter sido padre, de ter praticado e deixado praticar a idolatria da hóstia e das imagens e de haver pastoreado almas para o erro”21. Depois de ordenado pastor, dedicou-se a visitar e revisitar suas antigas paróquias a fim de corrigir seus ensinamentos passados e apresentar uma nova mensagem religiosa. Em que pese sua profissão de fé presbiteriana, não parece ter Conceição aderido inteiramente às formas eclesiásticas denominacionais. Não assumiu, nenhum pastorado e só se dedicava a anunciar a mensagem nuclear da Reforma, a salvação pela fé em Jesus Cristo, e isso de sítio em sítio, de casa em casa, de cidade em cidade, viajando incansavelmente, quase sempre a pé e até a exaustão. Parece não se ter preocupado em nenhum momento com conversão e proselitismo denominacionais, em conduzir conversos para entrar oficialmente para a Igreja Presbiteriana. Embora comparecesse sempre às reuniões conciliares e apresentasse relatório de suas atividades missionárias, ao que tudo indica não há indícios de disciplina e submissão aos programas missionários. Ao contrário da maioria dos padres que se convertem ao protes19 Ribeiro, Boanerges, 1950, p. 46. 20 pode-se Fausto vol. 39 21

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Às já citadas biografias de José Manuel da Conceição (ver nota 37 do capítulo I), acrescentar outra, pouco conhecida mas interessante por ter sido o seu autor, o Major de Souza, testemunha da morte do ex-padre. Trata-se de um folheto que consta do do arquivo do Rev. Vicente Themudo Lessa. Ribeiro, Boanerges, 1950, p. 117.

tantismo, Conceição nunca revelou espírito diretamente polêmico nem anticlerical22. Entendia, dentro do espírito da Reforma do século XVI, que a Igreja Católica continuava com os mesmos erros que os reformadores apontaram. Era a mesma Igreja conforme ele mesmo expõe na resposta que deu à sua excomunhão23. Nessa resposta,24 Conceição condena a missa, os sacrifícios e penitências e reafirma os princípios da Reforma da salvação pela fé em Jesus Cristo, cuja causa eficiente é a leitura da Bíblia. Foi dito antes que Conceição não parece ter orientado sua ação missioná­ ria no sentido de engrossar as fileiras do protestantismo com novos conversos. Realmente, sua forma de agir e de pregar dá a idéia de que ele estava mais preocupado com uma reforma nos hábitos religiosos do povo a partir do conhecimento da Bíblia. Não se vê nele a prática usual dos missionários de concentrar suas atividades em torno de um grupo inicial de simpatizantes até conseguir formar uma congregação permanente. Ao contrário, contentava-se em apresentar sua proposta reformista e ia embora. Por isso, parece ter razão Boanerges Ribeiro em dizer que Conceição não desejava o estabelecimento de uma “igreja protestante transplantada de outra raça, outra cultura, diversa tradição e temperamento, mas um movimento profundo de Reforma nos senti­ mentos e experiência religiosa do povo aliada ao esclarecimento bíblico, que tomasse possível a criação de um cristianismo brasileiro. . . ”25. De qualquer modo, a ação evangelística de Conceição traçou o itinerário da expansão protestante nas províncias de São Paulo e Minas Gerais e, com certeza, foi uma das causas do rápido desenvolvimento do presbiterianismo nos seus primórdios.

d) Eduardo Carlos Pereira Eduardo Carlos Pereira (1855-1923) entrou para a Igreja Presbiteriana em 1875 e, embora tivesse a intenção de ser advogado, conquistado pelos missionários, ordenou-se pastor em 1881, aos vinte e seis anos. Provindo naturalmente do catolicismo e sob o impacto da preparação protestante, deve ter formado desde cedo a sua opinião sobre a Igreja Católica. Aliás, como se verá adiante, a sua posição anticatólica norteará boa parte de toda a sua atividade de liderança dentro da jovem Igreja Presbiteriana. Por isso, embora boa parte dos seus escritos que serão examinados seja de período posterior ao que me estou restringindo, parece não haver dúvidas refletirem eles o pensamento que desde o início norteara a sua atividade pastoral. 22 Ibidem, p. 205. 23

Publicada no Correio Paulistano, de 23/4/1866.

24 José Manuel da Conceição, Sentença de Excomunhão e sua Resposta, apud Ribeiro, Boanerges, 1950, pp. 168 e 169. 25

Ribeiro, Boanerges, 1950, p. 206.

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Sem dúvida, Eduardo Carlos Pereira foi uma das grandes conquistas dos missionários presbiterianos norte-americanos. No entanto, entendia ser distan­ ciada a visão que as missões norte-americanas tinham sobre a evangelização na América Latina, visão essa involucrada pela posição de indulgência para com a Igreja Católica24 e pelos ideais civilizatórios que regra geral acompanha­ vam as missões cristãs. Procurou, desde logo, encaminhar os esforços da Igreja nascente, com vigorosas atuações nos concüios, na direção da evangeli­ zação conversionista de católicos ao protestantismo. Esse seu esforço, visava o fortalecimento cada vez maior da igreja nacional, com a formação cada vez melhor e em maior número de pastores brasileiros e, para isso, esforçou-se pela criação de seminários e quando percebeu que os missionários estavam cada vez mais preocupados com a educação leiga, encetou campanha para a educação teológica. Conseguiu seu intento, embora a duras penas. Ainda bem antes, tomara outras iniciativas para dotar a Igreja Presbite­ riana de maior poder proselitista. Uma delas foi fundar a Sociedade Brasileira de Tratados Evangélicos (1883) com o objetivo de produzir literatura evangé­ lica em linguagem bem trabalhada e acessível ao povo dentro do contexto nacional. Bem depois, já no fim da vida, Eduardo C. Pereira se referiu à sociedade de Tratados como sendo “o prenúncio sagrado da independência eclesiástica”27. Dos dezessete folhetos publicados, deles sendo distribuídos mais de noventa mil exemplares28, foi o autor de nove. Pelos títulos dos seus folhetos pode-se ver que eram, na maioria, dirigidos contra as doutrinas da religião dominante: “O Culto dos Santos e dos Anjos”, “O Único Advogado dos Pecadores”, “Um Brado de Alarma”, “Trabalho e a Economia ou a Felicidade de Deus”, “O Nosso Pai nos Céus”, “Aventura da Virgem Maria” e assim por diante. Em 1886, Eduardo concebe o Plano de Missões Nacionais com o fim de tom ar a igreja brasileira auto-suficiente o mais rapidamente possível para sustentar pastores, professores e evangelistas sem ajuda estrangeira29. Para incrementar o plano, toma ainda Eduardo C. Pereira, a iniciativa de fundar a Revista das Missões Nacionais, em 1887,30 publicação sempre preocupada com os recursos financeiros da jovem igreja. Em 1893 fundou, juntamente com outros, “O Estandarte” que, por algum tempo, encartou a Revista. Vê-se, portanto, a grande preocupação de Eduardo Carlos Pereira em libertar o presbiterianismo brasileiro da tutela norte-americana, ao seu ver enviesada, com o sentido de orientá-lo para a evangelização protestante exclu­ 26 Simonton como já foi visto, embora procurasse apresentar uma nova mensagem religiosa, nunca atacou diretamente a Igreja Católica. 27 Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 229. 28

Ibidem, p. 232.

29

Pierson, Paul E., 1974, p. 34.

30 Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 281. 86

sivamente. Essa preocupação vai orientar a ação ministerial de Eduardo Carlos Pereira. Essa é a primeira face de Eduardo Carlos Pereira. Achava que o Brasil precisava, antes de tudo, ser evangelizado e nesse sentido é que o protestan­ tismo devia caminhar. Por isso, insurgiu-se contra a orientação dos Boards missionários e com eles abriu polêmicas por muito tempo. A outra face de Eduardo Carlos Pereira foi a sua longa polêmica com a Igreja Católica. Essa polêmica pode ser dividida em dois momentos: antes do Congresso do Panamá31 e depois do Congresso do Panamá. Antes do Congresso destaca-se a que foi travada com um representante da Federação Católica de São Paulo32 que, através do jornal ou revista “A Pátria”, dirigiu pesadas críticas ao protestan­ tismo. Não tive acesso ao que escreveu o adversário de Eduardo, mas pela resposta dada pelo “O Estandarte”, em duas séries de artigos33, pode-se sentir que a tese fora para provar que o protestantismo é “uma nulidade estigmatizada por três séculos de maldições e divisões”34. Nesses artigos, Eduardo C. Pereira procura refutar seu adversário baseado em fatos históricos quase que exclusi­ vamente fundamentado num só autor35, buscando mostrar que a afirmação de “N.C.” de que “o protestantismo era uma nulidade” aplicava-se antes, e com maior justeza, ao catolicismo. Comparando os povos católicos, sempre seguindo Laveleye, com os povos protestantes, procura provar a superioridade civilizatória do protestantismo que se espelhava tanto no progresso material como moral dos países anglo-saxões. Responsabiliza veementemente as doutrinas e práticas católicas pelo atraso material e moral dos países latinos. Esses artigos contêm, naturalmente, pontos de vista que o polemista firma a respeito da Igreja Católica, mas que serão resumidos no fim deste tópico. O segundo e mais importante momento da polêmica de Eduardo C. Pereira com a Igreja Católica foi motivado diretamente pelo Congresso do Panamá, a que esteve presente com dois outros pastores brasileiros, Álvaro Reis e Erasmo Braga. O Congresso, à semelhança do anterior realizado em Edimburgo30, não abriu a discussão do problema das relações com a Igreja Católica, sendo o clima geral do Congresso, ao contrário, de cooperação entre todas as igrejas protestantes e com a esperança de conseguir a da própria Igreja Católica. 31 Congresso de Ação Cristã na América Latina, realizado na Zona do Canal, em fevereiro de 1916. . 32 As iniciais do autor dos ataques ao protestantismo publicados em A Pátria, órgão católico, era N.C., que apesar do autor dizer que eram “transparentes”, não consegui decifrar. 33 Esses artigos publicados em O Estandarte, em 1894, acrescidos de algumas notas como diz o A. no Prólogo, foram publicados num volume sob o título O Protestantismo é Vma Nulidade, em 1896. 34 Citado por Eduardo C. Pereira, 1896, p. 2. 35

E. de Laveleye, O Futuro dos Povos Católicos.

36 O Congresso Missionário de Edimburgo, realizado em 1910, havia excluído a América Latina como campo missionário, parece que, por considerá-la cristã, embora católica.

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Essa cooperação se encaminharia no sentido de cristianizar os pagãos latinoamericanos, índios e negros escravos, aliás na linha de Edimburgo. A América Latina continuava sendo considerada pelas missões protestantes anglo-saxônicas como cristã37. As poucas vozes latino-americanas no Panamá foram abafadas. A orienta­ ção do Congresso acabou sendo esta: a nova preocupação não devia ser a de converter católicos-romanos, mas atender às necessidades de milhões de latino-americanos não evangelizados. Mas os representantes latino-americanos, principalmente Eduardo Carlos Pereira e Álvaro Reis, continuavam entendendo que a América Latina era pagã. Eduardo C. Pereira reagiu energicamente, como era de seu estilo, ao Congresso do Panamá. Chegando ao Brasil, empreendeu a tarefa de publicar o documento que ele pretendia ter sido discutido pelo Congresso. O resultado foi o livro “O Problema Religioso da América Latina” , publicado em 1920, e que reflete, creio, toda a visão que o protestantismo tem tido, desde seu início no Brasil, da Igreja Católica. É por isso que, embora esteja fora do período histórico considerado neste trabalho, julgo pertinente trazê-lo à baila para os fins pretendidos de construir uma imagem do catolicismo a partir da ótica protestante. É uma retroprojeção válida no meu entender. “O Problema Religioso na América Latina” provocou talvez a maior polêmica católico-protestante que já houve no Brasil, embora Eduardo C. Pereira tenha saído dela antes que começasse, pois faleceu em 1923, antes do Pe. Leonel Franca publicar a sua resposta38. A réplica aLeonelFranca foi dada por Ernesto Luiz de Oliveira39 e seguiu-se a tréplica, entrando na liça Otoniel Mota e Lisâneas Cerqueira Leite. A leitura dos volumosos textos dessa polêmica mostra como a Igreja Católica era vista pelo protestantismo brasileiro. O que Eduardo Carlos Pereira diz em seu livro pode ser o resumo de tudo aquilo que ele pensava sobre o catolicismo latino-americano. No Congresso Evangélico Regional do Rio de Janeiro40 ele apresentou um documento em que o seu pensamento está por inteiro4', cujo resumo tento apresentar em seguida.

1. A Igreja Católica merece ser reconhecida como um dos ramos do Cristianismo por conservar os credos, os grandes dogmas da cristandade e por seu valor como guardiã da “idéia” cristã e que ela, por suas crenças, tem produzido no seu seio numerosos caracteres nobres; 37 Os Congressos de Edimburgo e do Panamá, pelo espírito de abertura para com a Igreja Católica, foram, parece, o ponto de partida para o movimento ecumênico. 38 Franca, Leonel, A Igreja, a

Reforma e a Civilização.

39 Oliveira, Luiz Ernesto, Roma, a Igreja e o Anti-Cristo. 40 Abril de 1916. 41

88

Pereira, Eduardo Carlos, 1920, pp. 396ss.

2. Aberra, no entanto, a Igreja Católica, por seu apego à tradição, à nova trindade Jesus, Maria e José, aos Santos e às obras meritórias, indulgên­ cias, absolvição sacerdotal, purgatório, missas, culto à Virgem Maria, mono­ pólio do clero, uso mágico dos sacramentos (ex opere operato) e o Papa como corporificação da Igreja visível; 3. Por tudo isso, a Igreja Católica Romana desfigurou o cristianismo e se tomou pagã; 4. Pelas suas aberrações, a Igreja Católica fracassara na sua missão civilizadora. Comparando os países católicos com os protestantes, Eduardo Carlos Pereira concluiu que o grande mal da América Latina era o catolicismo romano, responsável pelo seu atraso moral e material comparado com o grande progresso dos países protestantes, em ambos os campos. Da extensa lista de erros que Eduardo C. Pereira atribui à Igreja Católica, além dos pontos doutrinários impugnados pelo protestantismo, constam algumas práticas típicas do chamado catolicismo popular: uso e adoração de imagens, água benta, rosários, relíquias, benzeduras, sinal da cruz. Para Eduardo C. Pereira, o catolicismo com seus dogmas multiplicados, suas cerimônias pueris, milagres e peregrinações, colocava-se fora do pensamento moderno. O excesso de superstição conduz inevitavelmente à incredulidade e à apatia religiosa encoberta sob a capa da religião social que se nota nos intelectuais mais liberais42. A seguinte citação que Eduardo faz de Agassiz parece englobar suas idéias sobre os efeitos do catolicismo sobre o povo: “O padre é o instrutor do povo. Deve cessar de crer que o espírito possa se contentar por único alimento, com procissões grotescas, com santos coloridos, velas acesas e ramalhetes baratos. Enquanto o povo não reclamar outro gênero de instrução religiosa, irá se deprimindo e não se levantará”43. Eduardo Carlos Pereira, em suma, via a Igreja Católica como um dos ramos do cristianismo por guardar ainda os seus grandes princípios, mas que na prática havia se paganizado. Suas práticas supersticiosas e pueris tornavam-na avessa aos espíritos cultivados, sendo por isso responsável pela irreligiosidade das classes intelectuais.

e) Álvaro Reis e a polêmica com o Pe. Júlio Maria A luta do Pe. Júlio Maria contra os “inimigos da Igreja no Brasil”44 abrangeu, além dos positivistas e regalistas, os protestantes. Mas entrando Júlio Maria tardiamente para a Igreja, certamente o fez com uma visão exterior e crítica. Por isso, não somente polemizou com os “inimigos” de fora, mas 42

Pereira, Eduardo Carlos, 1896, p. 30.

43

Agassiz, Viagem ao Brasil, citado por Eduardo, ibidem, p. 31.

44 Torres, João Camilo de Oliveira, 1968, p. 177.

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também com os de dentro, isto é, com o estado de desprestígio e de atraso da Igreja no Brasil. A descrição que o Pe. Júlio faz da Igreja em fins do século XIX45 parece sair da pena de qualquer protestante. Para ele, a Igreja estava desviada por uma falsa devoção composta de festas que apenas divertiam, cerimônias que não edificavam e pelo desvirtuamento do simbolismo católico. Esse estado de coisas levava a Igreja a sofrer muitas críticas, entre elas a de que as festas, procissões e romarias obrigavam o povo a despesas desnecessárias e que o seu culto pueril só interessava a mulheres e crianças. A empresa do Pe. Júlio é dirigida para a recuperação do prestígio da Igreja pela doutrinação, isto é, pela teologia, visando purificá-la de suas “puerilidades”, para que ela pudesse ser não somente uma religião do povo, mas também dos intelectuais. Entendia, também, que a Igreja tinha uma função política a desempenhar no Brasil e só podia fazê-lo se se reformasse. Parece que o Pe. Júlio diagnosticou bem a situação da Igreja no seu tempo. Reivindica para ela, como de direito, algumas das depurações que seus adversários positivistas e protestantes tenta­ vam assumir. Em princípios do século, Pe. Júlio Maria pronunciou, no Rio de Janeiro e em Fortaleza, uma série de conferências contra o protestantismo. As de Fortaleza foram respondidas pelo pastor presbiteriano Jerônimo Gueiros e publicadas em 190546 e as do Rio de Janeiro pelo pastor, também presbiteriano, Álvaro Reis,47 e publicadas em 1908. Interessam-me estas últimas. O pregador redentorista fez em suas conferências três afirmações que Álvaro Reis empreendeu refutar: 1.° que o protestantismo é uma negação religiosa, 2.° que o protestantismo é uma negação da autoridade da Igreja e 3.°, que o protestantismo é uma negação política. Álvaro pronuncia do púlpito da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro48 três conferências refutando as teses de Júlio Maria. A leitura dessas conferências mostra-nos sua eloqüência e ardor polêmico, assim como certa fraqueza de provas, uma vez que à semelhança de Eduardo Carlos Pereira que se funda­ menta quase que exclusivamente num autor49, Álvaro baseia seu argumentos em Rui Barbosa, na sua famosa introdução ao “Papa e o Concilio”, de Doelinger, da qual cita extensos trechos. As idéias de Álvaro Reis sobre a Igreja Católica são mais ou menos as mesmas de Eduardo Carlos Pereira, mas são expostas com certa irreverência. Para ele, a Igreja Católica não professava mais o cristianismo e o seu culto 45

Maria, Júlio, 1981, pp. 86ss.

46 Infelizmente o exemplar que tenho em mãos não traz nenhuma indicação sobre a publicação, se em livro, folheto ou jornal. É de se supor que tenha saído originalmente em O Puritano, periódico dirigido por Álvaro Reis. 47

Reis, Álvaro, 1908.

48 As conferências foram publicadas em jornais e posteriormente no volume citado à nota 46. 49 Laveleye, op. cit.

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se paganizava tomando-se supersticioso. Os oratórios, os terços, a cinza benta, os jejuns com as pingües consoadas, a missa, a procissão, tudo se superpõe à ignorância religiosa do povo e contribui para a superstição e o fanatismo. Na segunda conferência, faz Álvaro Reis forte crítica às representações católicas: Deus como um velho de cabelos e barbas brancas, as várias fisionomias de Cristo, os diversos nomes da Virgem Maria (chega a ridicularizar alguns)50 e até a cor de N.S. Aparecida5'. O cultivo da superstição e do fanatismo tomava o povo fetichista. Para Álvaro, a Igreja Católica falhara na educação religiosa e moral do povo, pois, em vez de distribuir os Sagrados Livros (a Bíblia) que ensinam e libertam o homem do vício, espalhava “rosários, verônicas, bentinhos e palmas bentas. . . bugigangas da idolatria papal que rebaixam o nosso povo até o fetichismo!”52. Como conseqüência do conteúdo religioso que a Igreja Católica oferecia ao povo brasileiro, Álvaro Reis diagnosticava: “A plebe é ignorante e crendeira; as outras classes indiferentes e incrédulas”53. Paradoxalmente, suas conclusões coincidem até certo ponto com as críticas que Júlio Maria fazia à sua própria Igreja. Para este, no entanto, a salvação estava na correção dos devios pela doutrinação, uma vez que só a Igreja Católica tinha condições de exercer o papel de mentora dos povos; para Álvaro Reis, como para outros líderes protestantes, esse papel civilizatório só poderia ser exercido pelo protestantismo. Para provar essa tese lança mão dos costumeiros argumentos da diferença entre os povos latinos católicos e os anglo-saxões protestantes. Como Eduardo Carlos Pereira, Álvaro Reis esforçou-se muito no Congres­ so do Panamá para que a América Latina católica-romana fosse considerada campo missionário à semelhança das nações pagãs, contra o expresso desejo do Congresso de cooperar com a Igreja Católica. Evidentemente sua visão religiosa do Brasil não poderia levá-lo a outra posição54.

Conclusão Como se vê, para os missionários e líderes protestantes nacionais, o catolicismo brasileiro apresentava o mesmo aspecto do cristianismo da pré-Reforma agravado por práticas locais que mais se aproximavam do folclore do que de uma verdadeira religião cristã. Aos clássicos pontos de controvérsia religiosa do século XVI acrescentavam-se as festividades e cerimônias popula­ 50 “N.S. da Penha, do Rosário, das Candeias, do Parto, do Muquém, da Volta Grande, do Pântano, da Boca Aberta, do Ó e tantas outras! — Reis, Álvaro, 1908, p. 30. 51 “Esta imagem de Nossa Senhora é COR DE CUIA — QUASE PRETA — É FULA!” ibidem. 52 Ibidem, p. 61. 53

Ibidem, p. 13.

54

Pierson, Paul E., 1974, p. 90.

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res, oriundas do sincretismo local sob a complacência de uma religião exterior e despreocupada, provavelmente por causa de sua hegemonia absoluta. A religião dominante, por isso, nada fizera pelo progresso moral e material da sociedade. Não cumprira seu papel. De cristã só tinha o nome. Embora alguns historiadores, como Léonard55 e Boanerges Ribeiro,54 refiram-se ao protestantismo brasileiro como a Reforma no Brasil, isso creio que só se aplica por referência histórica, uma vez que a ação protestante foi, antes de tudo, conversionista. A não ser Eduardo Carlos Pereira, que admite ser a Igreja Católica pelo menos um dos ramos cristãos, embora termine seu livro mais importante com um convite para sair dela e entrar no cristianismo57, todos os demais negam que ela seja cristã. Portanto, não se trata de reformar mas de apresentar uma alternativa religiosa verdadeira58. A mensagem era um convite para sair do erro e entrar na posse da verdade e a partir daí sim, uma reforma dos costumes no sentido dos padrões de moral típicos do protestantismo. Penso, portanto, que colocada a questão por esse prisma, poder-se-á entender melhor a ação missionária protestante contra o catolicismo. Não somente isso, mas também suas próprias questões internas.

55 Léonard, Êmile G., 1963. 56 Ribeiro, Boanerges, 1950. 57 Fora de Roma, dentro do cristianismo

— Pereira,Eduardo Carlos, 1920, p.

442.

58 A maior parte dos historiadores doprotestantismo no Brasilrefere-se à mensagem protestante como “a verdade” — exemplo, Lessa, Vicente Themudo, 1938.

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C A PITU LO II

A ESTRATÉGIA MISSIONÁRIA

“Tais colégios prepararão o cam inho para a m archa das igre­ jas. . — Wiliam B. Bagby, primeiro missionário batista*

Introdução No capítulo anterior esforcei-me por construir uma imagem da religião dominante no Brasil a partir da ótica dos primeiros líderes protestantes. Afirmei que os protestantes tinham um adversário a combater e, para isso, era necessário conhecê-lo, formar dele uma imagem bem nítida para que os ataques não se perdessem no vazio. Procurei entender e mostrar o nível polêmico da estratégia de penetração protestante no campo religioso brasileiro. O segundo nível da estratégia foi o educacional. É o que vou procurar analisar no presente capítulo. A educação, como estratégia missionária, nunca deixou de acompanhar os missionários norte-americanos. Os missionários desempenhavam sempre o duplo papel de evangelistas e professores, não se esquecendo, porém, as empresas missionárias, de incluir no seu pessoal especialistas em educação, principalmente mulheres. Algumas destas conquistaram reconhecimento na edu­ cação brasileira, como Carlota Kemper, Mareia Brown e Martha Watts. O missionário batista William B. Bagby, que era um “professor-pregador”’, ao tomar conhecimento das condições do Brasil sob o ponto de vista de seus objetivos religiosos, estabeleceu o seu plano de ação para o “trabalho tão gigantesco” e a “magnitude da tarefa” que tinha pela frente. Um “plano bom e sábio” devia conter um programa de educação. Diz ele: * Apud Crabtree, A.R. 1962, p. 69. 1 Crabtree, A.R., 1962, p. 65.

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“tais colégios prepararão o caminho para a marcha das igrejas.. . Colégios fundados nestes princípios triunfarão sobre todo o inimigo e conquistarão a boa vontade até dos nossos adversários. Mandai mis­ sionários que estabeleçam colégios evangélicos, e o poder irresistível do evangelho irá avante na América do Sul e a terra do Cruzeiro do Sul brilhará com a luz resplandescente do Reino de Cristo’’.2 Ashbel G. Simonton, o primeiro missionário presbiteriano, já firmara, bem antes, o seu ponto de vista de que a Igreja Católica não tinha poder sobre a sociedade3 e que a religiosidade do brasileiro parecia superficial4. Julgou, além disso, ver um certo desejo de liberdade religiosa5. Justas ou não, as impressões que Simonton teve da sociedade e da religião no Brasil, que mais tarde impressionariam também a Bagby, eram as de um campo aberto para uma nova forma de religião que trouxessem em si formas novas de vida, em todos os seus aspectos. A conversão dos católicos ao pro­ testantismo tinha de partir de uma base sólida. O processo de conversão religiosa, individual e lento, exigia, para que alguns objetivos fossem mais rapidamente atingidos, uma estratégia global que influenciasse a sociedade como um todo. Que mudasse a sua fisionomia. A educação, então, constituiu-se num dos importantes níveis da estratégia missionária. Mais tarde, no entanto, terei de voltar a esta questão num outro capítulo porque o problema, como está sendo colocado aqui, parece indicar que conversionismo e educação com­ punham um todo como as duas faces de uma mesma moeda. Pode ser que para a maior parte dos missionários assim fosse, mas a evolução da história do protestantismo no Brasil irá mostrar que proselitismo e educação compu­ nham ideologias opostas no interior das missões. Mas, agora, o meu intento é mostrar, sem outras implicações, de que modo a educação foi componente da estratégia missionária. O protestantismo constituía um “modo de vida” e aceitá-lo nos seus prin­ cípios de crença implicava em mudança de padrões de cultura. No capítulo anterior afirmei que o esforço protestante de penetração na sociedade brasi­ leira no nível educacional ocorreu em dois planos: o ideológico, quando pro­ curou, através dos grandes colégios, atingir os altos escalões da sociedade e o instrumental, auxiliar do proselitismo e da manutenção do culto na camada inferior da população. Este último plano foi representado pela escolas pa­ roquiais. 2 Apud Crabtree, A.R., 1962, pp. 69 e 70. As expressões entre aspas, que vêm antes da citação são de Crabtree, à p. 69. 3 “Embora não conheça o Romanismo muito bem, concluo que ele perdeu seu poder nesta sociedade” —. Simonton, Board Leters I, 12 de novembro de 1859 (citado por Mclntire, 1959, p. 4/12). 4 “O brasileiro é pouco religioso, e o pouco que tem parece ser superficial, limitando-se a tirar o chapéu e curvar-se às portas das igrejas”, ibidem. 5 “Tenho a impressão de que há um grande sentimento público por liberdade religiosa” — Simonton, Board Letters I, 23/10/1859 — (citado por Mclntire, ibidem, 4/13).

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O intento de transplante cultural, do qual o veículo intencional foram os grandes colégios cuja clientela foi principalmente conquistada nos escalões dominantes, trazia no seu bojo a visão do Reino de Deus na terra que animou os primeiros puritanos que chegaram à nova Inglaterra. O “Puritan Model State”, que ainda entusiasmava a nação americana no século XIX através da ideologia do “manifest destiny”, impulsionava a grande empresa de exportação do “American way of life” pois que, para isso, se acreditava chamada por Deus6. Por outro lado, sendo o protestantismo a “religião do livro”, deve ter surgido logo um severo embaraço para os missionários: o analfabetismo do segmento da sociedade que lhes oferecia espaços para a tarefa conversionista, isto é, a dos homens livres e pobres da população rural7. Os protestantes têm como postulado básico de sua fé que a leitura da Bíblia, por si só, não somente instrui os indivíduos na religião, mas é instrumento de conversão. Além disso, o próprio culto protestante exige a leitura, pois que o seu material litúrgico são a Bíblia e o livro de hinos. Para atender a esta necessidade, os missionários colocaram ao lado de cada comunidade uma escola. Estas foram as escolas paroquiais, alfabetizadas e elementares.

Educação e estratégia missionária O sistema educacional protestante, introduzido no Brasil na segunda metade do século XIX, ainda continua desconhecido na sua índole, objetivos e resultados. Autores como Fernando de Azevedo8 e Jorge Nagle9, que fizeram análises demoradas da educação brasileira, limitaram-se a referências de pas­ sagem à educação protestante. A obra relativamente recente de Jether P. Ramalho, “Prática Educativa e Sociedade”,10 é o primeiro estudo do assunto em profundidade, embora seja restrito à questão da prática educativa e sua relação com a ideologia, não trazendo à tona os problemas históricos, intencionais e religiosos que parceem estar por trás da educação missionária americana. De certo modo, a realidade educacional protestante continua como um sistema à margem das preocupações com a história da educação brasileira, mesmo em estudos de profundidade a respeito das sucessivas reformas educa­ cionais, como aquele feito recentemente por Jorge Nagle. A introdução da educação protestante na sociedade brasileira deu-se ao mesmo tempo que a pregação dos primeiros missionários, isto é, com a orga6

Hahn, Carl, J„ 1970, p. 149.

7

Estou usando a terminologia de

Maria SylviadeCarvalho

8

Azevedo, Fernando, 1958, tomo

III.

9 Nagle, Jorge, A Educação na PrimeiraRepública, in 2.° vol.

Franco, 1976.

Fausto, Boris(org.) 1977, tomo III,

10 Ramalho, Jether P., 1976.

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nização das primeiras igrejas já se implantaram também as escolas paroquiais'1. Mas logo a seguir, por volta de 1870, surgem os primeiros colégios em várias partes do país, quase sempre nas capitais e cidades mais importantes sob o ponto de vista da estratégia missionária. A maior parte das escolas paroquiais desapareceu com o tempo e com a evolução das escolas públicas, assim como alguns colégios se fecharam por circunstâncias várias. Podemos avaliar a importância do sistema educacional protestante, consi­ derando que o protestantismo é minoria religiosa no Brasil'2, ao verificar-se que hoje, depois de cessada, ou quase cessada a atividade das missões ameri­ canas, conta o protestantismo com mais de trinta colégios, quase todos eles de significativa expressão'3, não se contando evidentemente escolas não con­ troladas pelas cúpulas denominacionais, mas adstritas a concílios regionais ou congregações locais e que, por isso, não são relacionadas nas publicações ecle­ siásticas oficiais. Apesar do aparente desinteresse inicial das missões pelos cursos superiores, há hoje duas universidades protestantes e diversas faculdades isoladas ou federadas em funcionamento. Essas escolas superiores, na sua maioria, evoluíram de colégios fundados no século passado'4. Para imprimir uma seqüência hierárquica a este estudo, procurarei ana­ lisar a educação protestante de um modo global e dentro dos estreitos limites que se impõem, do seguinte modo: escolas paroquiais, colégios e cursos supe­ riores. Não pretendo ter compreendido perfeitamente o fenômeno da educação protestante. O meu objetivo é simplesmente enfocá-la, nos seus diversos planos, como uma estratégia missionária, como um canal de inserção do protestantismo nà sociedade brasileira. A leitura dos historiadores das denominações protestantes no Brasil'5 mostra, com insistência, embora de passagem e sem maiores comentários, a 11 Parece, no entanto, que as escolas particulares de índole protestante pelo menos por causa da crença de seus fundadores, já tinham sido implantadas muito antes do estabelecimento das primeiras missões. Disso há uma indicação em Gilberto Freyre, 1975, p. 418. 12 Segundo o Anuário Estatístico do Brasil de 1975, era de 3.202.383 o número de protestantes no país. Considerando-se que nesse momento estão cerca de 2.000.000 de pentecostais, cujas igrejas geralmente não criam escolas, restam cerca de 1.200.000 das chamadas igrejas históricas, que são responsáveis pelo sistema educacional no país. Quanto a essa proporção da população protestante, ver Cândido Procópio F. de Camargo, 1973, p. 122. 13 Dados extraídos de: Relatório da Equipe de Pesquisas sobre a Avaliação de Doze Escolas Presbiterianas Relacionadas com a Igreja e Missões no Brasil, Conselho Interpresbiteriano, 1961, e Estudo das Instituições de Ensino Metodista, COGEIME, 1968/69. Quanto aos colégios batistas vali-me de Jether P. Ramalho, 1976, pp. 175/79. Não estão incluídas as escolas luteranas e episcopais (Comunhão Anglicana) por me faltarem dados e, também, por não serem relevantes para os fins deste estudo. 14 Universidade Mackenzie, em São Paulo, da Igreja Presbiteriana do Brasil, e Universidade Metodista de Piracicaba, da Igreja Metodista. A primeira evoluiu do Colégio Protestante, fundado em 1870; a segunda, do Instituto Educacional Piracicabano, fundado em 1881. 15 Chamam-se denominações históricas as igrejas presbiterianas, metodistas, batistas, congregacionalistas, luteranas e episcopais (ramo do anglicanismo). Para fins do presente estudo, estou considerando as três primeiras, cuja infiltração e aclimatação na sociedade brasileira é mais nítida.

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contínua fundação de escolas ao mesmo tempo que de igrejas’6. Parecem mesmo, ser as escolas um complemento natural das igrejas. Estas escolas paroquiais permanecem ainda misteriosas quanto aos seus objetivos principais, métodos, currículos, professores etc. As referências são raras e esparsas quanto a essas questões, assim como não há nada a respeito da extinção delas, isto é, se tive­ ram sucesso, se atingiram suas finalidades e se, no momento oportuno, cederam lugar ao sistema oficial, por influência do positivismo no início da República, e assim por diante. Procurarei, a partir de algumas indicações desses historiadores e da própria ideologia do protestantismo, levantar algumas hipóteses justificadoras das es­ colas paroquiais protestantes17. O sistema escolar no Império apresentava notável fraqueza, especialmente quanto à sua extensão. Não conseguia alcançar todas as crianças em idade escolar. A zona rural era, naturalmente, a mais prejudicada. Como a vida urbana era menos intensa do que a rural18, compreende-se porque essa carência educacional atingia na classe dirigente elevado grau de preocupação. Ocorre que a infiltração do protestantismo deu-se principalmente na zona rural, bairros, sítios e fazendas. Isso ocorreu muito nitidamente com os presbiterianos como será demonstrado no capítulo 5. Embora os historiadores protestantes pequem pela imprecisão de suas indicações quanto à localização das igrejas que se iam organizando, um estudo mais atencioso revela o caráter rural das primeiras igrejas. Havia circunstâncias especiais vigentes no Império, isto é, nos primeiros anos da propaganda pro­ testante, que condicionavam essa inserção rural do protestantismo19. Nesses primórdios, por essas razões de ordem cultural e política, as igrejas protes­ tantes tinham características neo-testamentárias20 que precisam ser compreen­ didas, sob pena de nos escaparem aspectos fundamentais de sua estrutura. A igreja era, simplesmente, o grupo de pessoas inscritas no livro de rol após a sua admissão segundo o rito de cada denominação, e que se reunia regular16 J.K. Kennedy, 1926, mostra que todos os relatórios eclesiásticos indicavam a fundação e a situação das escolas como rotina na vida da Igreja; Vicente Themudo Lessa, 1938, p. 127: “Como de costume, criou-se escola e construiu-se casa de oração”. Esse registro também é constante neste historiador presbiteriano. 17 Dos historiadores eclesiásticos brasileiros só os batistas justificam a fundação de escolas a partir da ideologia protestante. Ver A.R. Crabtree, 1962. 18 A decadência da vida urbana, depois de um certo progresso a partir do início da colonização, começa no séc. XVIII, com o “grande ciclo do ouro” (Oliveira Viana, 1973, vol I, p. 87). A nova expansão da vida urbana dá-se no início da República (Otávio Ianni, O Progresso Econômico e o Trabalhador Livre, in Sérgio Buarque de Holanda (org.), 1976, tomo II, vol. 3, p. 313. 19 Sendo a Igreja Católica oficial, gozava de favores especiais de exclusividade, quanto as manifestações religiosas. Sobre este ponto, ver Boanerges Ribeiro, op. cit. Havia ainda o interessante estatuto do “patrimônio dos santos” que vinculava os incipientes centros urbanos ao domínio exclusivo da Igreja Católica. Ainda hoje, em algumas cidades, pelo menos no Estado de São Paulo, há algumas igrejas protestantes que não têm a posse de seus imóveis e pagam laudêmio às respectivas dioceses. 20 “Diariamente. . . partiam o pão de casa em casa” (Atos dos Apóstolos, 2:26). O capítulo 6 da Epístola aos Romanos mostra que a “igreja” se reuniu nas casas dos adeptos.

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mente para o culto, os sacramentos e a instrução religiosa. Reuniam-se nas casas dos adeptos, não havendo lugar fixo, as mais das vezes. Só com o passar do tempo é que foram surgindo os salões especiais para as reuniões religiosas e, com eles, as salas para a escola. Mas mesmo antes de surgirem os salões de culto já funcionavam as escolas nas casas particulares, às vezes do próprio pastor21. Quais as razões que levavam os missionários, e também os pastores nacio­ nais, a essa preocupação com a educação paralela à propaganda religiosa? Poderia haver algum traço de espírito filantrópico diante da escassez de instru­ ção vigente que chocava os norte-americanos vindos de uma sociedade muito mais complexa sob todos os aspectos. Mas por outro lado, a carência de instrução podia ser um notável empecilho ao aprendizado da doutrina protes­ tante, todo ele calcado na leitura da Bíblia, livros, revistas e jornais, que logo começaram a ser publicados por iniciativa das missões22. O culto protestante, especialmente como foi introduzido aqui é, ao contrário do católico, essen­ cialmente simbólico e ritualizado, caracteristicamente informal e discursivo. O informal supõe improvisação (que requer atenção e certa vivacidade mental), e o discurso, uma progressiva aquisição de vocabulário para entender a prédica do pastor. Além disso, o cântico dos hinos sagrados exige leitura relativa­ mente rápida, embora a memorização pudesse ser largamente usada. De qualquer modo, o livro e o discurso estão sempre presentes na prática religiosa protestante. Daí não ser difícil concluir que a evolução do protestantismo dependia, em grande dose, da alfabetização de seus adeptos atuais e em po­ tencial, a criança. Se na zona rural os protestantes estavam mais ou menos à vontade por causa da distância da influência da religião dominante23, nas cidades onde conseguiam se estabelecer a situação parece não ter sido tão tranqüila. Há algumas referências nas obras dos cronistas a respeito de discriminação e into­ lerância religiosa contra as crianças filhas de protestantes nas escolas públicas. Essa é a razão inicial, por exemplo, da fundação do Mackenzie24. Creio, porém, que não se deve exagerar esta causa como fortemente impulsionadora da educação protestante. Pode ter sido causa de urgência em certos lugares, mas a principal seria, com certeza, a questão da permanência do protestantismo 21 Além desse fato, ocorria que o pastor podia também ser o professor (Júlio A. Ferreira, 1950, p. 44). 22 Foi intensa a preocupação dos missionários e pastores brasileiros com a imprensa para a publicação de livros e periódicos com o intuito de doutrinar. Como exemplo, A Sociedade Brasileira de Tratados Evangélicos instituída pelos presbiterianos em 1883. Publicava sermões e folhetos evangelísticos, livros com historietas piedosas e até “cartilhas para a infância nas escolas” (Vicente Themudo Lessa, 1938, pp. 229ss.). Foram numerosas também as publicações pelas outras denominações protestantes. Sobre estas o mesmo autor fornece muitas informações. 23 A falta de assistência religiosa é fartamente sentida por parte da maioria dos estudiosos da sociedade brasileira. “Os sacerdotes, em sua maioria, permanecem nas cidades ou nas zonas mais populosas; no sertão e nas zonas rurais em geral são sempre escassos” (Queiroz, Maria Isaura P., 1973, p. 74). 24 Garcez, Benedito Novaes, 1970, pp. 14 e 15.

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depois de pregado, o que parecia ser a praxe das missões americanas25. As escolas paroquiais foram instrumentos necessários para a implantação e per­ manência do protestantismo em qualquer lugar. É importante saber como funcionavam essas escolas. As referências são muito parcas, no entanto. Podemos buscar, aqui e ali, alguma informação e levantar algumas hipóteses. Primeiramente, quem seriam os professores nessas escolas? Sabemos que, às vezes, era o próprio pastor. Mas, dado o caráter iti­ nerante do ministério protestante, nos primeiros tempos26, o magistério do pastor devia ser exceção. Evidentemente, não seriam contratados professores fora da comunidade protestante: haveria de ser alguém dentre os arrolados na igreja e que tivesse algumas letras27. Mas não encontrei, no caso desse professorado primitivo e certamente masculino, como era o uso da época, nenhuma afirmação que possa esclarecer essa questão. Mais tarde sim, e com notável progresso da obra educativa missionária, é que surge um magistério qualificado feminino, e como procedia dos quadros das missões americanas, está bem registrado, e com detalhes, nos livros e documentos oficiais. O primeiro aspecto interessante dessa educação protestante é o magistério feminino. Os historiadores, principalmente os presbiterianos e os metodistas, registram a chegada anual de várias missionárias educadoras. São mesmo deze­ nas delas nos primeiros anos da atividade missionária, isto é, nos últimos trinta anos do século XIX, tomando-se algumas delas notáveis mesmo fora do âmbito exclusivamente protestante28. Além do aspecto naturalmente maternal desse magistério feminino, os novos métodos de ensino trazidos por essas missionárias contribuíram bastante para modificar o ambiente das escolas, antes amedrontador e maçante, conforme afirmam alguns autores29. Entre outras coisas é pertinente perguntar até que ponto o contraste entre as escolas pro­ testantes e a tradicional brasileira não influiu na modificação gradual da disciplina. Outro aspecto, já levemente tocado mas que merece mais algumas consi­ derações, é o método que logo passou a ser usado tanto nas escolas paroquiais 25 “É pela experiência de anos de trabalho que os mensageiros do Senhor chegam a reconhecer o valor de um sistema de educação a fim de conseguir resultados maiores e mais permanentes (grifo meu) no estabelecimento do Reino de Deus em qualquer p a ís ...” — Crabtree. A.R., 1962, p. 135. 26 Ver Leonard, Émile G., 1963, e segs. 27 “N a campanha, ao lado do Rev. Eduardo, tinha sua escola o prof. Joaquim Pereira de Camargo” — Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 274. Trata-se da cidade mineira de Campanha e do já citado Rev. Eduardo Carlos Pereira, conhecido gramático e então futuro professor do Mackenzie, São Paulo. 28 Como no caso de Miss Carlota Kemper: “Dona Carlota, em vida, foi honrada de muitas maneiras. A Prefeitura do Rio de Janeiro deu o seu nome a uma das ruas daquela cidade”. (Ferreira, Julio A., 1959, 2.° vol., p. 196). E o de Miss Mareia Brown, que participou da reforma educacional do Estado de São Paulo, em 1890, ao lado de Caetano de Campos (Azevedo, Fernando, 1958, tomo III, p. 140). 29 Ver a descrição vivida que Gilberto Freyre dá da disciplina na escola e da monotonia do método de ensino (Freyre, Gilberto, 1975, pp. 419 e 420). Contrastar com o ambiente da escola do Rev. Miguel G. Torres, em Caldas — MG, Julio A. Ferreira, 1950, p. 45).

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como nos colégios. O sistema de cantarolar as sílabas e a tabuada em coro, foi substituído pelo método americano, intuitivo e silencioso, sem a excessiva memorização30. Os historiadores protestantes são unânimes em afirmar que os métodos americanos eram superiores aos tradicionais usados no Brasil3'. Essa opinião parece ser confirmada pelo fato de Miss Mareia Brown ter sido cha­ mada pelo governo para participar de uma reforma do ensino primário no Estado de São Paulo junto com outra educadora brasileira32 que se preparara nos Estados Unidos e pela preferência que muitas famílias, quase sempre não protestantes, davam às escolas americanas33. Isso pode ser levado em conta da novidade, mas como houve sensível mudança na pedagogia brasileira com a proclamação da República, é necessário reconhecer que a educação missio­ nária protestante deve ter entrado com alguma contribuição nessa transforma­ ção. Em que grau isso se deu é uma questão que me parece não ter sido ainda avaliada. O que era ensinado nas escolas paroquiais e nos cursos elementares dos colégios divergia dos currículos em voga na escola tradicional. Nota-se a intro­ dução de várias novidades no ensino elementar, como regras da arte literária, ciências, recitação de poesias em português, francês e inglês, execuções musicais, canto ao piano, exercícios calistênicos etc.34. É quase certo, porém, que nas escolas paroquiais rurais esse currículo devia ser bastante simplificado, embora contivesse elementos característicos do protestantismo, como o ensino da Bíblia, do catecismo e dos Dez Mandamentos. Havia cânticos de hinos sa­ grados durante a aula35. A escola tradicional, sob a forte influência da religião dominante, dava muita ênfase ao latim e à história sagrada. Quanto à história sagrada, tal como era dada em compêndios, os protestantes a recusavam por fidelidade aos princípios da Reforma36. O latim, embora não tanto enfatica­ mente, permaneceu por causa da tradição humanística brasileira e mesmo por­ que os norte-americanos não eram infensos aos estudos humanísticos. Há numerosos registros de exames de candidatos ao ministério pastoral em que o latim ocupa lugar destacado, entre outras matérias. O Presbitério do Rio de 30 “Coisa terrivelmente melancólica aprender a ler” (‘Freyre, Gilberto, 1975, p. 420). 31 “ ...o s métodos americanos estavam acima dos n o sso s...” (Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 153). 32 Maria Guilhermina Loureiro de Andrade, que estudou quatro anos nos Estados Unidos (Azevedo, Fernando, 1958, tomo III, p. 140). 33 “O Rev. Tucker abriu na Corte um colégio particular, porém de todo evangélico, cujos alunos, quase todos, assistiam à Escola Dominical” (J. L. Kennedy, 1926, p. 54). “A Bíblia era ensinada diariamente pelo Diretor, e diversos alunos se converteram e fizeram sua profissão de fé” (‘Long, Eula K., 1968, p. 184). Essas afirma$ões revelam que a maioria dos alunos não era protestante. 34 Ferreira, Júlio A., 1960, 2.° vol., p. 396, referindo-se aos exames finais do ano de 1902, no Colégio Americano de Natal — RN. 35 Ver Ferreira, Júlio A., 1950, pp. 44/45 e 1959, 1.° vol., p. 379. Ver, também, a nota 33. Referindo-se a G. Nash Morton e E. Lane, educadores presbiterianos que se destacaram em Campinas, diz Mclntire, Robert L., 1969, pp. 7/15: “ ...c a d a aluno, tão logo aprenda a ler, começa a estudar a Escritura”. 36 A Bíblia como “única regra de fé e prática” e o “livre exame”.

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Janeiro da Igreja Presbiteriana, por exemplo, inclui no seu plano de “Estudos para os Candidatos ao Ministério Evangélico”, o estudo do latim do 2.° ao 5.° ano, num currículo de seis anos37. Mas o latim não era veículo de expressão religiosa, como no caso da religião dominante, mas simplesmente, instrumento de cultura do espírito, uma vez que toda a literatura religiosa que chegava ao Brasil para ser usada nas escolas era em inglês. O uso da Bíblia como livro-texto nas escolas protestantes aparece com freqüência nos registros dos historiadores. Não se sabe como isso se dava, conhecendo-se a insistência protestante em recusar qualquer simplificação, atualização ou paráfrase do texto bíblico. É de se imaginar as crianças lutando com as dificuldades da versão usada no Brasil no século passado38. Mesmo que os textos fossem selecionados, as dificuldades não seriam pequenas. As escolas paroquiais e os cursos elementares, dos colégios protestantes, tinham o objetivo fundamental de oferecer um mínimo de instrução como condição “sine qua non” da introdução do protestantismo na sociedade bra­ sileira. A leitura da Bíblia, como canal de conversão, era tão importante que os missionários, possivelmente como medida de emergência, chegaram a em­ pregar leigos para ler a Bíblia para os prosélitos, quase que na totalidade analfabetos. Esses “leitores da Bíblia” substituíam, assim, os pregadores pro­ fissionais sempre insuficientes em número39. Por outro lado, a educação das crianças dentro dos princípios protestantes seria a garantia da permanência e do progresso do protestantismo. Se a escola paroquial estava ligada diretamente à atividade de introdução e permanência da nova forma de fé, através da leitura da Bíblia e participação no culto, a ação educativa dos colégios tinha como meta o estabelecimento de uma “civilização cristã”, de um reino de Deus na terra segundo os ideais norte-americanos que vinham na esteira de seu sistema econômico, em plena expansão em fins do século passado. Émile G. Léonard, historiador do pro­ testantismo, não vê na intenção missionária do protestantismo americano nada de novo. Ao contrário, na sua opinião, o protestantismo reproduzia, no século XIX, a prática católica da era dos descobrimentos e que se estendeu ao longo do período de expansão colonialista dos povos ibéricos40. Natural­ mente que o modelo de civilização diferia entre católicos e protestantes, mas as intenções eram as mesmas. Talvez a mensagem religiosa conversionista que penetrou na camada pobre da zona rural estivesse mais ligada à tradição dos grandes reformadores, cuja preocupação primordial fora “unicamente religiosa 37 Imprensa evangélica, 17/1/1878, p. 22, apud. Ribeiro, Boanerges, 1981, pp. 355/6. 38 A versão corrente entre os protestantes do Brasil, no século passado, era a do Padre Antonio Pereira de Figueiredo, feita da Vulgata Latina em 1778. . .quase nada tínhamos para ler senão a bíblia, que fora praticamente o livro de leitura (na escola primária)”. Júlio A. Ferreira, 1959, 1.° vol. p. 150. 39 Diversas referências a esses “leitores da bíblia” podem ser encontradas em Ferreira, Júlio A., 1959, 1.» vol., pp. 117/118, 151 e 238. 40 Leonard, Émile G., 1963, p. 133.

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e diretamente evangélica”, como diz Léonard41. O objetivo dos colégios, no entanto, era de serem mais ou menos conscientemente exportadores de um novo esquema sócio-político. Era uma evangelização segundo o modelo protestante, mas indireta, visando a vinculação de uma ideologia religiosa profundamente abrangente no sentido de mudar os rumos de uma sociedade ainda em busca de seus caminhos42. O exame dos currículos desses colégios pouco revela de diferente, a não ser algumas disciplinas novas na direção de uma certa ênfase pragmatista de cunho científico-tecnológico43. A chave da questão está nos objetivos que orien­ tam a prática educativa e que procuram encaminhar os educandos para a aceitação de uma maneira nova de ver a realidade, especialmente a valoriza­ ção da natureza e do trabalho. Sabe-se muito bem que os efeitos de uma educação indireta por via de atitudes, modos de vida, visão uniforme e coe­ rente da realidade etc. são mais importantes do que a instrução. A combinação da educação humanística com o trabalho e a tecnologia está bem exemplifi­ cada nesta descrição pitoresca de um dia de estudos feita por um ex-aluno do colégio presbiteriano de Ponte Nova, Bahia: “Que vida a do Dr. Bixlerl Pela manhã, conosco na faina intelectual, tendo César e começando Xenofonte! Isto no centro daquelas matas! Â tarde ele mesmo ia com os alunos na baixa do canavial, arado em punho, suando. . . A agricultura, auxiliada pela grade, pelo arado, pelo Planet. . . e o Dr. Bixler de ‘over-all’ azul, capacete branco, rente com a gente! Quem era ele! Universitário de Princetort.. , ”M O admirado aluno referia-se ao Dr. C. Edwin Bixler, missionário que trabalhou no colégio de Ponte Nova, de 1914 a 1924. Enquanto que para o Dr. Bixler, estudar os clássicos com seus alunos pela manhã, e à tarde ensinarlhes praticamente as técnicas agrícolas nada tinha provavelmente de extra­ ordinário, para o autor daquelas linhas era difícil de entender um “doutor” segurando o cabo de um arado. O pensar e o fazer eram incompatíveis na mentalidade tradicional, mas as atitudes dos educadores protestantes procura­ vam indicar o contrário. O modo de vida americano aparecia no contraste entre o ambiente de suas escolas, e as escolas e casas brasileiras. Eis como uma missionária educadora descreve a sua escola: “Não quer você visitar a Escola Americana de Curitiba?. . . Entremos na sala de visita. Não parece casa de morar? Os móveis são muito velhos — das nossas próprias casas. A s paredes cheias de livros fazem-na muito atraente — as enciclopédias e outros livros velhos de nossos pais; alguns, porém, são novos, comprados aqui e outros 41

Léonard, Êmile G., 1963, p. 133.

42

Azevedo,

43

À propósito, é útil examinar Ramalho,

Fernando, 19S8, tomo III, p. 129. Jether P.,1976,pp. 89ss.

44 Ferreira, Júlio A., 1959, 2.° vol., p. 150. Sobre esta mesmaquestão, ver pp. 68, 96 e 97 do mesmo volume,

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mandados por amigos generosos de nossa pátria. . . Veja a grande bandeira como ‘portiere’ no grande corredor. ‘A s estrelas e as listratf (a bandeira americana) são a primeira cousa que se vê quando se entra em nossa casa. Percorramos as grandes salas de aula, altas, arejadas, bem iluminadas, enfeitadas com quadros interessantes, colhi­ dos de muitos lugares. Da varanda podemos apreciar as brincadeiras no quintal. Olhemos o jardim além, com centenas de rosas, cravos, lírios de toda espécie, dálias e outras maravilhas”*5. João do Rio, menos suspeito, tem a seguinte impressão da casa do Rev. Álvaro Reis, no Rio de Janeiro: “A casa do pastor fica ao lado esquerdo do templo, oculta nos roseirais. O protestantismo trouxe para os nossos costumes latino-america­ nos não sei se pureza da alma, de que o mundo sempre desconfia, mas o asseio inglês, o regime inglês, a satisfação de bem cumprir os deveres religiosos e de viver com conforto”.*6 Tanto na escola como nas casas de seus professores, encontravam os educandos um mundo novo e estranho para eles, quase que de sonho. Alegria, ordem, limpeza, disciplina amiga, embora enérgica, recreação e contato com gente de um outro universo. Era de se esperar que esse mundo novo marcasse o educando para o resto da vida e que, aos poucos, ele fosse substituindo um modo de vida identificado pelos missionários como antagônico aos princí­ pios cristãos. Mas não é fácil separar a prática educativa liberal norte-americana da propaganda religiosa, por causa da conhecida dificuldade de se separar a religião da cultura, o que aconteceu em todas as partes do mundo para onde se dirigiram as missões protestantes. Realmente, sob o ponto de vista da sociologia, tal separação não existe e, a partir desta idéia, as missões, à parte seu sucesso ou fracasso, estavam com a razão. A educação não era uma contribuição da religião de um povo mais evoluído para um mais atrasado, mas uma “causa” tão importante como a propaganda religiosa47. Essa confusão estava introjetada na mente dos próprios missionários que ora se preocupavam com a inoculação ideológica, ora com a conversão indireta por via da edu­ cação48. E realmente estavam convencidos, não somente da superioridade da 45

Apud Ferreira, Júlio A, 1959, 1.® vol., pp. 378/9.

46

Rio, João do, 1976, pág. 87.

47 “A causa da educação está avançando de dia em dia” (Kennedy, J.L., 1916, p. 73). “Em 1894 fundaram um colégio industrial, na cidade da Bahia, que funcionou por poucos anos, mas contribuiu para o progresso da C ausa... (Crabtree, A.R. 1962, p. 109). Moniz Bandeira entende mesmo que as missões religiosas americanas eram cabeças de ponte da penetração americana no Brasil e que a catequese religiosa era o veículo através do qual vinha a educação colonizadora (Bandeira Moniz, 1973, p. 124). 48 “Seus objetivos eram fazer conversos através das instituições educacionais” (referência ao trabalho dos missionários Morton e Lane, em Campinas, Mclntire, R.L., 1969, pp. 7/14).

religião protestante, mas da própria cultura dos povos protestantes49. Assim, educação e propaganda religiosa direta seriam as duas faces de uma mesma moeda. A grande disposição das missões em investir na educação fundamentava-se na convicção de que a implantação do protestantismo no Brasil defrontava-se com um conflito ideológico50. O catolicismo levava a vantagem de ter vindo com o conquistador e de ser implantado desde o primeiro momento da colo­ nização e, assim, ter contribuído largamente para a construção de um campo religioso nitidamente da Contra-Reforma. Tranqüilamente estabelecido, o cato­ licismo exigiria muito esforço para ser desalojado51. A educação católica, pre­ ponderantemente jesuítica, endereçava-se às elites e formava o pensamento na­ cional através de seus colégios. Mas colégios de outras ordens religiosas também se estabeleceram desde logo e se tomaram notáveis pela influência que exer­ ceram, cada um na sua época52. O sistema educacional brasileiro em fins do século XIX, que se debatia permanentemente com idéias de reforma por causa das suas precárias condições, pode ser dividido em religioso (católico), forte e tranqüilo, e leigo (oficial), fraco em todos os sentidos. A escola secundária oficial não deixava de sofrer influências da pedagogia católica vigente, e a educação rural era débil e quase ausente53. Ainda em 1922, o descaso pela educação primária era foco de preocupação por parte da elite dirigente. Na Primeira República, que não apresenta maiores novidades em relação ao Império, pois que os problemas continuaram os mesmos, o quadro ideológico brasileiro era de que a ignorância reinante era a causa de todas as crises, que a educação do povo é a base da organização social, portanto, o primeiro problema nacional, e que a difusão da instrução é a chave para a solução de todos os problemas sociais, econômicos, políticos e outros54. Devido ao “doutorismo” nacional, endereçavam-se à escola secundária os filhos das famílias dos escalões mais elevados, só com o objetivo de atingir as academias, as escolas de medicina e de engenharia. A escola secundária não formava, só preparava para as escolas superiores. Sua falta de objetivos próprios tirava-lhe o caráter formativo da cultura média, isto é, popular. Para mim, no entanto, 49 “ . . . o povo culto em geral não aceita o evangelho antes de ficar convencido da superioridade da cultura evangélica” (Crabtree, A.R., 1962, p. 139. 50 “Cada sistema tem a sua ideologia e as suas vantagens. Nós, evangélicos, estamos plenamente convencidos da superioridade de nossos ideais” (Crabtree, A.R. ibidem). 51 “É simplesmente impossível que a religião evangélica concorra com o catolicismo sem se munir do poder e da influência da educação” (Crabtree, A.R., 1962, p. 139). “Mas vale a pena considerar que os colégios e escolas paroquiais desempenharam um papel importante no programa da Igreja, no seu período de pioneirismo, como ainda o fazem hoje. . . ” (Isnard, Rocha, 1967, p. 44). 52 Exemplos notórios desses colégios católicos do século passado são o Colégio dos Jesuítas, Itu-SP, 1867, o Colégio Anchieta, também dos Jesuítas, em Nova Friburgo-RJ, 1886, e o Caraça, dos padres lazaristas, fundado em 1820. 53 Nagle, Jorge, op. cit., pp. 268ss. 54 Nagle, Jorge, op. cit., p. 263.

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a questão explorada deste modo, não leva em conta o problema da definição de classe social no Brasil nesse período, isto é, Império e Primeira República. O fato de a escola média ser preparatória para as superiores não se devia a outro fato se não que a ela só tinham acesso os que possuíam condi­ ções de aspirar ao “doutorado”, ou seja, a elite dirigente. A ausência de uma definição de classes, nesse período, era, provavelmente, a responsável pela dificuldade que a elite dirigente tinha para estabelecer uma política educacional para a nação. Embora me adiante um pouco no assunto, cabe aqui perguntar se os colégios protestantes, que se inserem exatamente nessa conjuntura, e que procuraram suprir essa lacuna, conseguiram essa formação média e por meio dela, a modificação da mentalidade brasileira, como era seu objetivo inicial. Penso que é necessário fazer um balanço para ver na ideologia brasileira atual se há traços da influência educativa protestante. Embora alguns autores, como Waldo César55, apoiado em Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb56, assim como em Sérgio Buarque de Holanda57, tenham levantado este problema pelo lado negativo, um estudo em profundidade ainda deverá ser feito, apesar de o protestantismo não ter crescido na proporção do aumento da população do país e do relativo esvaziamento ideológico de seus colégios. O protestantismo trazido pelas missões americanas para o Brasil já não era o original da Reforma. Sofrerá, no seu transplante para o solo norte-ame­ ricano, mutações oriundas do amálgama das múltiplas correntes protestantes que floresceram na Europa a partir do século XVII. De modo que, diante da ideologia que se forma paulatinamente a partir da independência política norte-americana, vai surgir um protestantismo teologicamente indiferenciado, com ênfase na salvação individual58, embora guardasse os limites de suas res­ pectivas formas de governo eclesiástico59. Assim, no bojo das missões protes­ tantes e expressos na pregação religiosa e, especialmente na educação, vinham o liberalismo, o individualismo e o pragmatismo. A responsabilidade pessoal diante de Deus, implícita na idéia de salvação individual, requer liberdade indi­ vidual na busca e aceitação de princípios religiosos e, no caso protestante especialmente, no livre exame e interpretação privada da Bíblia. Individualismo e liberalismo andam intimamente unidos. 55 César, Waldo, 1973, p. 42. 56 Braga, Erasmo and Grubb, Kenneth G., 1932, pp. 133ss. 57 A descrença na aptidão do brasileiro para a submissão a princípios superindividuais de organização está clara nesta afirmativa de Sérgio Buarque de Holanda, 1975, p. 113: “a persona­ lidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador”. Thomas Ewbank, com referência à religião, já fora bem mais direto: “nenhum metodismo ou puritanismo rigoroso poderá jamais florescer nos trópicos” (1973, 1.° vol., p. 224). 58 Sobre esta característica essencial do protestantismo pregado no Brasil ver o interessante estudo de Richard Graham, 1973, pp. 287ss. Depreende-se desse estudo que o protestantismo inglês, na época da colonização da América do Norte, já havia sofrido, por sua vez, algumas mutações. 59 Os presbiterianos, metodistas e batistas que, neste estudo ocupam o centro das preo­ cupações, têm distintas formas históricas de governo eclesiástico: os primeiros têm governo democrático-representativo e hierárquico-conciliar, os segundos têm governo episcopal e os últimos democrático-direto e autonomia da congregação local.

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De todos os historiadores protestantes no Brasil, vinculados aos interesses de suas respectivas denominações, os batistas são os mais francos em deixar bem clara a ideologia embasadora de sua missão religiosa e educativa40. Os demais simplesmente deixam entrever como esse liberalismo estava presente na prática religiosa e, principalmente, educativa. A idéia predominante na obra educativa protestante era a da não-discriminação, o que já estava presente na mente de Ashbel G. Simonton, primeiro missionário presbiteriano61, o que parece confirmar a idéia de que a formação de uma “mentalidade” protestante caminhava lado a lado ou mesmo se superpunha à obra de propaganda conversionista religiosa. Esta última suposição parece fundamentar-se razoavel­ mente no fato de que o antagonismo que progressivamente se formou no protestantismo presbiteriano entre a pregação exclusivamente religiosa e as metas educacionais, foi a causa da dissensão entre os elementos nativos de liderança e os missionários norte-americanos62. A idéia do individualismo religioso, antagônico ao catolicismo tridentino preso ao magistério da Igreja e à hierarquia, na opinião dos missionários, só podia ser disseminada através da educação. £ interessante notar que havia uma conotação política intimamente ligada a essa preocupação63, o que demonstra profundo amálgama entre a teologia das missões e a ideologia norte-americana. Princípios evangélicos e ideologia norte-americana era uma coisa só, isso na expressão de um entusiasmado missionário, como A. R. Crabtree, do que não temos razões para duvidar, porque está no contexto implícito e ex­ plícito dos demais64. A partir daqui podemos compreender o aparente exagero de Moniz Bandeira ao referir-se às missões protestantes americanas, através de seus colégios, como um dos instrumèntos da ação colonizadora norte-ame­ ricana no Brasil, comparando-as com a catequese jesuítica em relação a Por­ tugal, no início de nossa história65. Quanto ao pragmatismo norte-americano, ele está presente na escolatrabalho a que já me referi. Foram fundadas várias escolas agrícolas e, nas escolas urbanas, que já recebiam moças da elite66, as próprias professoras mis­ sionárias davam exemplo de trabalho manual67. Em alguns colégios os alunos 60 Crabtree, A R ., 1962, passim. Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., p. 398, ao referir-se ao político brasileiro João Café Filho, que estudara no Colégio Americano de Natal, diz: “Ali bebeu sem dúvida seu espírito liberal, o Sr. João Café Filho”. 61 Carta de Ashbel C. Simonton à junta de Missões nos Estados Unidos, em 24/4/1867: “Parece-me quç é chegada a ocasião propícia de conseguir licença para abrir aqui uma escola, sem qualquer cunho religioso” (Simonton, 1962, p. 163). 62 grandes

“Protestamos em nossa longa campanha primeiro contra a enfeudação da Igreja aos colégios m issionários...” (Pereira, Eduardo Carlos,1965,p. 41).

63 “A democracia não pode florescer entre um povo sem instrução” (A R . Crabtree, 1962, p. 140).. “ .. .semeava o evangelho entre os alunos, desenvolvia o sentido de responsabili­ dade pessoal e outros princípios evangélicos. . . ” (Ibidem), p. 295). 64

Ramalho, Jeter P., 1976, passim.

65 Bandeira Moniz, 1973, p. 124.

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66

Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., p. 398; Long, Eula K.,

67

Ferreira, Júlio A., 1959, 2.° vol. p. 195.

1968, p. 68.

eram levados a executar trabalhos manuais para prover, no todo ou em parte, o custo da permanência e estudos68, além de terem de fazê-los também como itens obrigatórios do currículo escolar. Aliás, a própria prática religiosa do protestantismo brasileiro não escapou ao entranhado pragmatismo ameri­ cano, o que levou um historiador francês69 a compará-lo com o europeu da seguinte forma: a divisa do europeu é “adorar e orar” e a do brasileiro é “aprender e trabalhar”. As próprias reuniões religiosas dos protestantes bra­ sileiros são chamadas “trabalho”, exceto a Escola Dominical, da qual, parti­ cipam também os adultos, cuja divisa é “aprender”. Aprende-se a vida toda. Nela estão presentes pessoas que nasceram no protestantismo e que no fim da vida ainda ali permanecem. Na época em que as missões protestantes se estabeleceram definitivamente no Brasil, já se esboçavam desejos de modernização, de encaminhamento da vida política e econômica nacional no sentido da civilização anglo-saxônica como conseqüência da expansão capitalista dos países protestantes. De maneira que a ideologia do protestantismo norte-americano foi bem recebida pelas elites dirigentes, não faltando mesmo o apoio de alguns expoentes da vida nacional da época. Havia outros grupos pregando as mesmas doutrinas com objetivos políticos; o individualismo e o estado secular, componentes da ideo­ logia da modernidade, receberam alguma ajuda do protestantismo, como diz Richard Graham70. Penso que esta questão precisa ser mais aprofundada para ver até que ponto e em que medida a pregação e a educação protestantes foram relevantes para esse esforço, uma vez que Graham parece fundamentar-se tão somente no depoimento de Thomas Ewbank7', um tanto unilateralmente, portanto. Mas é fora de dúvida que a educação nos colégios protestantes reproduzia os padrões da ideologia norte-americana do individualismo, do liberalismo e do pragmatismo. Não desconheceram os missionários, logo de começo, o formi­ dável obstáculo que representava a civilização católica, transplantada da Penín­ sula Ibérica pelos jesuítas, logo no começo da colonização. Transplantar para cá e ver medrar aqui a cultura norte-americana era tarefa de gigantes. Recursos materiais e humanos empregados nela foram grandes, embora ainda não avaliados. Embora alguns segmentos importantes da empresa missionária protestante mundial não incluíssem os países católicos nas áreas de missão, prevalecia entre os missionários que trabalhavam no Brasil, inclusive a maioria dos pas­ tores nativos, a idéia de que os povos católicos deviam ser considerados pagãos. A implantação da fé protestante era equivalente ao estabelecimento do reino de Deus na terra, isto é, uma “cilivização cristã” em contraposição a uma “civilização pagã” , devotada a um culto idólatra. Como a elite nacional era 68

Ibidem, p. 96.

69 Léonard, Émile G., 1963, p. 241. 70 Graham, Richard, 1973, pp. 287/288. 71

Ewbank, Thomas, 1973, passim.

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cliente da educação jesuítica, era necessário conquistar essa clientela. Bons e modernos colégios seriam uma forte atração para um povo que vivia numa época de busca de um novo pólo de orientação. Daí ser uma constante nos relatos dos cronistas protestantes as entusiasmadas referências à aceitação, por parte das elites, dos seus estabelecimentos, que tinham por bandeira o ensino moderno e mais eficiente do que o tradicional. Como meio de propa­ ganda dessa desejada superioridade, faziam festas de conclusão dos anos letivos, introduzindo nos programas, como demonstração de eficiência, amos­ tras, por parte dos alunos, de aprendizado e de capacidade artística adquiridas no decorrer dos trabalhos escolares72. A cultura americana, isto é, o ambiente típico da vida americana, era reproduzida nas escolas protestantes, como já vimos. O reforço do estudo das línguas inglesa e alemã mostra os novos ideais de educação e a inserção de um novo universo de idéias, num mundo de cultura latina. O historiador batista Crabtree entende que o conflito de sistemas, isto é, a cultura católica e a cultura protestante colocadas frente a frente no Brasil, só seria resolvido se a educação evangélica comprovasse a sua superioridade. Somente a doutrinação religiosa não seria suficiente para a solução do conflito a favor dos protestantes. Para Crabtree a “superioridade do cristianismo evan­ gélico” só seria demonstrada de modo indireto, quer dizer, por meio do teste­ munho da superioridade da cultura que vinha no bojo da educação missionária protestante73, Crabtree exprime uma convicção que provavelmente estivesse na consciência de todos os missionários: eles eram portadores de uma cultura superior que devia ser compartilhada com outros povos porque era a expressão do reino de Deus. Princípios como democracia, individualismo, igualdade de direitos, responsabilidade pessoal, liberdade intelectual e religiosa, que encerram todo um complexo ideológico, e que, no entender de Crabtree, estão no conteúdo do evangelho, são abstratos demais para poderem ser com sucesso transmitidos nas práticas religiosas; eles necessitam de um mecanismo mais apropriado para atingir a camada social dirigente, que dificilmente seria parti­ cipante das reuniões religiosas protestantes. Os missionários estavam cônscios de sua missão de preparar os povos para o exercício dos direitos de soberania e democracia, e a América Latina estava no centro dessa preocupação. Os presbiterianos, portadores das tradições genebrinas de governo eclesiástico que reproduz, em todos os seusescalões, a prática de Calvino em Genebra, procuram mostrar que talprática política só é possível num povo educado. Sentiam como missão do protestantismo preparar o Brasil para esse evento renovador74. O missionário presbiteriano Thomas Porter, em 1926, escrevia assim: “A Igreja precisa ponderar os problemas da educação. O cristianismo sendo a verdade sem a qual o mundo não pode viver, esta verdade 72 Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., pp. 396ss.

108

73

Crabtree, A.R., 1962, p. 139.

74

Crabtree, A.R., 1962, p. 140.

precisa ser levada a todo o campo da vida humana em todas as relações para endireitar o mal e conseguir o bem do reino de Deus. ... Do longo e rico estudo pela Assembléia Americana seria proveitoso citar muito que o Brasil precisa ponderar tanto como a América do Norte. Nós da Igreja Presbiteriana temos a certeza do Evangelho e do seu poder de encontrar a todas as condições novas” (sic).75 É justo pensar que parecia estar presente no espírito missionário a neces­ sidade de reproduzir no Brasil o acontecido na América do Norte, quer dizer, que se o êxito americano podia ser atribuído à colonização por povos protestantes, o Brasil podia ser colocado no mesmo caminho por via de um transplante cultural em todos os seus aspectos. Se nas bases, isto é, nas congregações locais preponderantemente rurais, era necessário alfabetizar para tom ar possível o culto e a instrução diretamente religiosa, nas cidades era preciso educar as elites para aquela transformação de mentalidade que estava presente nos objetivos missionários. O analfabetismo popular e a falta de preparo da elite dirigente eram fatais para o desenvolvi­ mento dos ideais republicanos e democráticos. Para um presbiteriano essas deficiências não somente dificultavam o funcionamento eclesiástico, que na sua forma já era um início de prática política democrática mas impediam também o país de pôr em ação suas próprias leis76. Assim, as expressões “sociedade paulistana”, “lugar de destaque na sociedade”, “melhores famílias da sociedade”, “famílias importantes da cidade” etc., constantemente encontra­ das nos relatórios oficiais e nos historiadores presbiterianos, batistas e metodis­ tas, são indicadoras, não somente da receptividade da educação protestante, mas principalmente de que os objetivos principais das missões estavam sendo alcançados. O protestantismo do século XIX, afirma Peter Berger, reflete uma era de otimismo em todos os planos da vida humana, e a sua ética se colocava como provedora de “um conjunto de valores positivos para o indivíduo e para a cultura, aspecto este que serviu de base para o que foi apropriadamente chamado KULTURPROTESTANTISMUS, união do liberalismo protestante com a cultura liberal da burguesia”77. Assim, os princípios do KULTURPROTESTANTISMUS podiam estar vindo num momento em que a instituição religiosa oficial já não estava conseguindo manter como definitivas as suas definições da realidade diante dos anseios de modernidade presentes em certas 75 Porter, Thomas, 1926, p. 83. Porter escreveu em português, daí a linguagem um tanto desajustada. 76 “Apenas alguns cidadãos entre os milhões são inteligentes no tocante ao republicanismo e desejosos dele e capazes e preparados para as suas responsabilidades da sua operação no nosso Brasil. Portanto, o eleitorado restrito e as dificuldades políticas no vasto país de povo variado” (sic). Thomas Porter, 1926, p. 83. Notar a dificuldade do autor missionário, ao escrever o português, sendo por vezes difícil de apreender o sentido, como nesta última frase. Parece querer ele dizer que os males do eleitorado restrito e as dificuldades políticas são decorrentes da incapacidade brasileira de exercer os direitos políticos por causa da falta de instrução popular. 77

Berger, Peter, 1971, p. 191.

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camadas da elite dominante. Neste sentido, ainda na linha de pensamento de Peter Berger, o protestantismo se apresentava como uma estrutura viável de plausibilidade que ia ao encontro da necessidade de racionalização, por parte da burguesia liberal, de programas de mudanças que começavam a ser ensaia­ das. A ação educativa protestante parecia repousar, portanto, na crença de que “uma estrutura social particular é o resultado de certos movimentos no âmbito das idéias”78. Cônscios de que estavam apresentando uma proposta que vinha ao encontro de anseios, pelo menos da camada da burguesia ligada aos ideais de modernidade, é compreensível o entusiasmo dos missionários pelos seus triunfos iniciais ao verem crescer as matrículas em seus colégios com representantes dessa burguesia. Num período em que as classes sociais no Brasil ainda não estavam definidas suficientemente e que a elite dirigente era muito reduzida, não era desmedida a ambição de mudar a mentalidade dessa elite através da educação. Se esse objetivo foi atingido é questão de uma averiguação que não cabe nos limites deste trabalho. Como os missionários não distinguiam religião de ideologia, o que talvez não seja mesmo possível fazer, a religião era componente da prática educativa dos colégios. Já citei registros de que a Bíblia não somente aparece como leitura nas devoções diárias dos alunos dos colégios, mas até como livro-texto em algumas escolas. Daniel P. Kidder, pastor metodista que se dedicou à distribuição de Bíblias no Brasil antes do estabelecimento definitivo das missões, conseguiu do governo da Província de São Paulo autorização para colocar em cada escola pública primária da Província, gratuitamente, doze exemplares do Novo Testamento traduzido para o português pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo e distribuídos pela American Bible Society79. Embora a autorização fosse oficial, a distribuição nunca foi executada, talvez por interferência oficiosa. O governo da Província, no entanto, nunca revogou essa autorização, naturalmente para não arranhar a honrabilidade dele mesmo. Essa é a razão que dá o próprio Kidder. Ê muito pouco provável que as missões protestantes tenham conseguido introduzir a Bíblia como leitura habitual na sociedade brasileira. Havia obstáculos quase intransponíveis, desde os oficiais até o analfabe­ tismo da população. Daí ser difícil a compreensão do esforço tão grande desses missionários educadores, que davam instrução e, ao mesmo tempo, propagavam sua fé e ideologia através do livro que era, para eles, “a única regra de fé e prática”, um dos princípios da Reforma. Não é minha intenção fazer um levantamento numérico desse esforço educativo protestante no Brasil. Desejo somente levantar algumas questões que julgo importantes no sentido de compreender aquilo que penso ser a missão ideológica da empresa missioná­ ria, missão essa que o protestantismo esperava cumprir especialmente pela 78

Berger, Peter, 1971, p. 187.

79 Kidder, Daniel P., 1940, pp. 269ss.

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educação. Mas a leitura dos historiadores das denominações objeto deste trabalho mostra que esse esforço foi sem querer exagerar e consideradas as circunstâncias da época, imenso. Creio, ainda, que o possível exame dos arquivos das missões nos Estados Unidos revelará aspectos novos e ampliadores do que estou afirmando. Alguns missionários, educadores e educadoras protestantes tomaram-se conhecidos fora de seu próprio meio. É o caso de Samuel Rhea Gammon, em Lavras-MG, William A. Wadell, no Mackenzie, em São Paulo, G. Nash Morton, em Campinas-SP e em São Paulo, e as bem conhecidas Carlota Kemper, em Lavras-MG, e Mareia Brown, em São Paulo. Mas quem percorrer os historiadores, verá que a cada ano vinham novas missionárias educadoras que se esparramavam por quase todo o território nacional. Muitas regressaram depois de algum tempo para os Estados Unidos, mas um bom número delas ficou definitivamente no Brasil. Alguns resultados desse esforço educativo são já conhecidos. Magistério feminino, classes mistas, novos métodos pedagógicos e de disciplina, valoriza­ ção do trabalho, educação física e desportos, são notáveis antecipações do que, provavelmente, ainda demoraria algum tempo para chegar ao Brasil. Mesmo um autor como João Camilo de Oliveira Torres80, que dá tão pouca atenção ao protestantismo reconhece esses resultados. Mas esses fatores são externos, não sendo preciso muito esforço para percebê-los. Um estudo de grande valor seria buscar na ideologia brasileira os traços que a educação protestante teria aí introduzido, para ver se as verdadeiras intenções das missões teriam dado algum fruto. João Camilo de Oliveira Torres entende que a influência protestante foi escassa, mas não mostra como chegou a essa conclusão.

Resumo Procurei mostrar que a estratégia missionária protestante não podia prescindir da educação para atingir a sociedade brasileira, pelas próprias características do protestantismo. O livre exame, um dos princípios da Reforma, exige que o indivíduo tenha acesso direto ao Texto Sagrado. Parece justo acrescentar que o individualismo, um dos pilares do protestantismo do período histórico considerado, muito contribuiu para reforçar a tese do livre exame. Por outro lado, o culto protestante, letrado e discursivo por excelência, só pode ser conduzido de modo satisfatório quando os fiéis estão em condições de acompanhá-lo, ouvindo e compreendendo a prédica, seguindo as leituras e/ou lendo eles mesmos os textos sagrados e os cânticos sacros. Melhor dizendo, o culto protestante é mais do discurso do que do gesto. 80 Torres, João Camilo de Oliveira, 1968.

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Por outro lado, a ideologia americana, em expansão, procurava atingir, de modo indireto e por saturação, as classes dirigentes, intelectuais e políticas. Mais precisamente, contribuir para a construção de uma civilização cristãprotestante, no modelo anglo-saxão. Era uma missão divina. Desse modo, as escolas paroquiais tinham função de apoio à pregação conversionista e os colégios a de introduzir a nova ideologia.

A P Ê N D IC E I

A ESCOLA DO REV. MIGUEL TORRES

Abriu, logo, escola. Diz um entrevistado: — “A Escola de ‘seu’ Miguel, que começara em casa de D. Bárbara, foi instalada no prédio onde é hoje o hotel de Caldas. Morava o Rev. na própria casa do externato. A sala de aula era a mesma que servia para Escola Dominical e cultos. Nas paredes dessa sala viam-se os mapas geográficos, quadro negro e num cartaz grande, em letras mui legíveis, os dez mandamentos. A um canto, harmônio. No começo das aulas, canta­ vam-se hinos evangélicos, um dos quais principiava com as seguintes palavras: “Eis-nos, grande Instruidor. . . ”. Havia, na residência, sala de visitas com biblioteca. Lembra-se o informante de dois lindos quadros, ambos de borboletas de várias cores, feitos pelo Rev. Miguel Torres. Aprazível esse cômodo”. “Foram alunos do externato, entre outros, o menino que hoje é o Dr. Vital Brasil, de nome aureolado, cujos pais professaram a fé com o Rev. Miguel Torres; Antonio de Freitas Guimarães, já falecido, do alto comércio de Santos; os irmãos Cobra, falecidos também, havendo sido fazendeiros abastados em Poços de Caldas; d. Josefina Paixão, irmã de d. Chiquita Clark e de d. Cacilda de Cerqueira Leite — mais tarde professora do Jardim de Infância da Escola Americana de São Paulo. “Quem dava lição boa ganhava prêmio — gravura com versículo impresso da Bíblia. Vinte dos cartões pequenos davam direito à troca por um colorido grande, com dizeres bíblicos também. O castigo em uso consistia na restituição ao Rei dos cartões antes recebidos. Certó aluno, que jamais ganhava prêmio, por vadio, esse tinha de ficar de pé. Eram tão freqüentes as vezes em que isto acontecia que ao entrar certa ocasião em aula, o rapazinho permaneceu de pé. — “Por que fica assim, ‘seu’ Agostinho? —■ “Porque eu tenho mesmo de ficar de p é . . . ” respondeu ele ao professor. * Exemplo de uma escola paroquial presbiteriana.

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O certo é que o Rev. era geralmente estimado e conquistava a afeição dos alunos. Deixemos por ora a palavra do Sr. Eduardo Westin. Ouçamos as filhas da casa: “O Rev. Miguel levantava-se cedo. Estudava muito. Depois do almoço é que dava aula”. “Os bancos da escola tinham umas tábuas móveis que, erguidas, se tomavam carteiras”. “À tarde fazia muitas visitas. Cada criança queria recebê-lo na porta”. Fála o Dr. Horácio Nogueira, filho do saudoso Rev. Caetaninho: “Quando papai estudava com ele para o ministério e o auxiliava nas aulas, eu, com 7 para 9 anos, fui seu aluno. “Lembro-me até das perguntas de uma lição religiosa: — “Quem é Deus? É Espírito? Estará aqui? Vê o que se faz? Recompensa?” J. Andrade Ferreira, O APÓSTOLO DE CALDAS, pp. 44/45.

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A P Ê N D IC E II

O COLÉGIO PIRACICABANO*

Desde o seu início, a Igreja Metodista considerara de máxima importância a instrução do povo, fato natural considerando a sua herança intelectual, pois nascera na grande Universidade de Oxford, na qual Wesley fora estudante. E fato lógico, pois enviou uma educadora com as suas primeiras forças missionárias. Miss Watts já exercera o magistério alguns anos na sua terra, quando sentiu-se chamada para a obra missionária. Filha de um lar culto e material­ mente abençoado, ela era de inteligência e preparo fora do comum, mas também de uma consagração extraordinária. O seu alvo, repetia ela, “não era somente instruir meninas, mas ganhar almas para Cristo”. Não perdeu tempo em começar um educandário — O Colégio Piracicabano como foi denominado — ainda no fim do ano escolar. Para o evento que se deu no dia 13 de setembro, somente uma aluna compareceu para matricular-se, a pequena Maria Escobar, cujo nome lembramos como o da primeira d u m do primeiro colégio metodista no Brasil. Mas a diretoria não desanimou nem recuou. Conforme o Rev. Kennedy, “com tenacidade dirigiu o colégio como se houvesse cem alunas em vez de uma só; e para essa aluna conservou o estabelecimento aberto com três professoras!” A sua cultura profunda e a eficiência da sua administração, conquistaram duma vez a simpatia da família Moraes e Barros (já admiradores da família Newman). As moças da família passavam horas no Colégio sentadas nas bancas examinadoras, observando o seu trabalho educacional que era o que de mais progressista havia na educação do sexo feminino, então atrasadíssima no Brasil. A “Gazeta de Notícias”, de Piracicaba, noticiando os exames do Colégio, escreveu: “Numa das salas do edifício e com grande concorrência de famílias e cavalheiros dos mais distintos da nossa sociedade, foram examinadas as * Um dos grandes colégios protestantes, constituiu o núcleo da atual Universidade Meto­ dista de Piracicaba “ UNIMEP.

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alunas em diversas matérias, como sejarti: português, francês, inglês, aritmética, álgebra, história e retórica. O adiantamento que todas mostraram naquelas discipinas chegou a surpreender as muitas pessoas que estavam presentes. Não trepidamos em afirmar que é um dos melhores estabelecimentos de ensino do Estado de São Paulo” (27/12/1890). Diz-se que quando o Senador Prudente foi eleito presidente da Província estava tão convicto dos princípios e ideais de Miss Watts, que a convidou para vir a São Paulo para ajudá-lo a estabelecer na Província um sistema de escolas públicas. Foi tal a influência do Colégio que outro editorial em Piracicaba declarou: “A transformação radical, a adoção de métodos america­ nos no ensino, a orientação inteiramente nova na pedagogia e na formação do magistério que o Senador João Sampaio afirmou ter saído do Colégio Piracicabano, através de Prudente de Moraes, foi obra de madura reflexão e longa experiência que só no tempo de Miss Watts se tomou possível”. O número de alunos aumentava de ano a ano, e eram das melhores famílias da cidade. Miss Watts escreveu à Junta das Missões de Senhoras Metodistas que o Colégio não só progredia financeiramente, mas que sua arrecadação pagava todas as despesas, menos as dos salários das missionárias. Acrescentou que estava trazendo almas a Cristo: “Há entre as alunas verda­ deiro interesse em coisas espirituais; e três alunas e uma empregada já se uniram à igreja”. Eula K. Long, DO MEU VELHO BAÚ METODISTA pp. 65 a 68.

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A P Ê N D IC E III

A ESCOLA AMERICANA DE CURITIBA

“Não quer você visitar a Escola Americana de Curitiba? Venha amanhã às nove horas da manhã e eu a mostrarei antes que ela se abra às nove e meia. Nossa casa, agora tão agradável, tem “experimentado a vida”, como aqui se diz. Um alemão construiu esse prédio para escola. É bem construído; tem, diferen­ temente de outras casas brasileiras, uma parte básica em que se vêem arcos bem fortes, que suportam o edifício. Serviu, tal construção, para sala de dança; foi, depois, usado para fábrica de sabão, de cuja situação suja e cheia de graxa a veio salvar Miss Kuhl. Essa tarefa não foi nada fácil. Limpar, pintar, caiar as paredes foi simples em comparação com a drenagem de sujeira no quintal, e a reestruturação do mesmo e seu embelezamento, bem como a feitura do jardim. Os vizinhos, europeus, olhavam com suspeita a drenagem de canos. Podiam eles ter esgotos, por que não nós? Lógico que Miss Kuhl logo ficou com calo de sangue na mão; mas com paciência imperturbável, amabilidade e firmeza foi ganhando a parada. Construiu uma varanda de incalculável valor para as garotas nos dias de chuva. A escada íngreme foi substituída por outra, com patamar, de modo que as alunas tenham menos probabilidade de quebrar o pescoço. Nosso senhorio, alemão, está tão convencido de nossa conveniência como arrendatários que, embora a criançada se espalhe às centenas pela propriedade, ele é quase que o único senhorio na cidade que não tem aumen­ tado o aluguel. O ano passado forrou três grandes salas com tábuas para evitar que alguém fosse morto por causa dos grandes pedaços de estuque que caíam inesperadamente. “Olhemos estas filas silenciosas de pequeninos simpáticos esperando no corredor para marcharem através da rua para o Primário. O belo comporta­ mento deles é devido a Miss Effie Lenington que, com voz suave e maneiras mansas, realiza inexoravelmente tudo o que quer. Aqui vem uma pequena professora primária para conduzi-las, Dna. Maria Augusta. Ela é uma jóia. * Outro grande colégio protestante, este presbiteriano. Não permaneceu.

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Perfeita como aluna, ela é a mesma como professora; uma firmeza otimista leva estes pequenos malandros à uma atividade em perfeita ordem. “Entremos na sala de visita. Não parece casa de morar? Os móveis são muito velhos: das nossas próprias casas. As paredes cheias de livros fazem-na muito atraente — as enciclopédias e outros livros velhos de nossos pais; alguns, porém, são novos, comprados aqui e outros mandados por amigos generosos de nossa pátria. . . Esta estante de revistas ilustradas e encadernadas serve muito para as aulas de geografia e para a sociedade missionária, como também para divertir e instruir as famílias que se reúnem aos sábados à noite para ensaiar os hinos. Veja a grande bandeira como “portiere” no grande corredor. “As estrelas e as listras” (a bandeira americana) são a primeira coisa que se vê quando se entra em nossa casa. “Percorramos as grandes salas de aula, altas, arejadas, bem iluminadas, enfeitadas com quadros interessantes, colhidos de muitos lugares. Da varanda, podemos apreciar as brincadeiras no quintal. Olhemos o jardim além, com centenas de rosas, cravos, lírios de toda espécie, dálias, e outras maravilhas. “Quantas crianças vêm cedo para a aula. Orgulho-me de seu zelo. Algu­ mas vêm às sete horas, pois o estudo, em muitas casas, é quase impossível. Em nossa mesa de estudo, os grandes dicionários e livros de referência, com espaço, tranqüilidade e flores, fazem do estudo um prazer. “As classes intermediárias, dirigidas por nossa admirável Dna. Bertha, formam-se em fila no salão nobre para tomar parte nos hinos, cânticos. Há uma marcha rá p id a ... “Vocês têm interesse de escutar as aulas? Alemão, com a graciosa e competente Fraulein Mathilde; francês e português com o Sr. Raposo. E inglês, matemática, história, geografia... “Não estudam eles bem e não parecem bem espertos? Nosso estudo bíblico está a acabar agora. É o único ensino religioso que muitos deles recebem e não pode deixar de impressioná-los. “Depois do jantar, às quatro horas, as moças internas fazem rápido passeio; ou, se chover, um jogo de bola ou de “sacos de feijão”. Voltam às pressas para ouvir a leitura de algum livro dos clássicos. Depois, na grande sala de estudo, passa-se a hora agradável, süenciosa, ocupada, em estudo das obrigações escolares, seguida de um chá e de uma noite grande de descanso. No inverno e no verão levantamo-nos às seis horas; tomamos café, fazemos ginástica, temos vinte minutos para devoções pessoais, uma lufa-lufa para arrumarmos a casa toda muito bem”. The Brazilian Bulletin, 1898, citado e trans­ crito por Júlio Andrade Ferreira, História da Igreja Presbiteriana do Brasil, vol. 1, pp. 378/9.

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CAPITULO III

RELIGIÃO, MUNDO RURAL E FRENTES PIONEIRAS

“Toda sociedade hum ana é um a empresa de edificação de m undoj ” — Peter Berger, E l D osei Sagrado.

Introdução 0 momento histórico da inserção do protestantismo na sociedade brasileira é meados do século XIX. As tentativas anteriores, seja pelas vias das expedi­ ções de conquista ou pela presença esporádica de protestantes, não chegaram a abalar, no seu conjunto, a hegemonia católica implantada com o descobridor e colonizador. Os protestantes invasores chegaram e se foram sem deixar traços. Os demais visitantes, viajantes, comerciantes e mesmo imigrantes, como o caso dos alemães em Ipanema, Rio G aro e algumas áreas do Espírito Santo que, por fatores variados, foram sendo absorvidos pelo catolicismo, não chegaram a fazer do protestantismo talvez nada mais do que mera curiosidade por uma religião exótica. Os embates da Reforma estavam muito distantes no tempo e no espaço para perturbarem a placidez de uma religião em estado de simbiose profunda com a cultura brasileira. Talvez seja por isso mesmo que, quando os missionários americanos começaram a percorrer o Brasil e a pregar, no intuito direto de conseguir prosélitos, tiveram entre seus ouvintes mais de uma vez, os próprios padres do lugar, que os ouviam placidamente1 e os recebiam em suas casas freqüentemente com simpatia2. O clima geral para com a nova religião que começava a ser anunciada, salvo para alguns elementos mais atentos do clero era, paradoxalmente, de 1 Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., pp. 52, 53, 104, 134 etc., ver também apêndices 3 e 4 deste capítulo. 2

Lessa, Vicente Themudo, 1938, pp. 99 e 127; Ferreira, Julio A., 1959, 1.° vol., pp. 17.

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curiosidade, interesse e indiferença. A maioria do clero brasileiro, espalhado pelas vilas sertanejas, pacato e mais interessado, talvez na política e em seus próprios negócios3 parecia estar mais curioso do que preocupado. Alguns, não excluindo um ou outro bem situado na hierarquia, tendo como exemplo suges­ tivo o Padre Feijó, manifestavam franca simpatia pelos protestantes. Neste sentido, é muito atrativa a hipótese de que as idéias jansenistas que permeavam o clero4 estivessem dando a sua contribuição para essa atitude, especialmente por causa da centralidade bíblica da pregação protestante. O anticlericalismo, como é sabido, tinha guarida em setores liberais da liderança política interessa­ da na modernidade5. Isso podia conduzir esses setores da sociedade, senão ao interesse, pelo menos à indiferença quanto à presença protestante. Por outro lado, a maçonaria ao mesmo tempo que contava com a franca oposição católica, era solidária com os protestantes e “muitas vezes ajudou as causas protestantes”6. Realmente, e acima de tudo, parecia estar a Igreja Católica em período de letargia e suas instituições principais em questionamento7. A história dos atos de perseguições regra geral se insere nos quadros dos atos particulares e individuais8, sendo logo condenados esses atos pelas autoridades políticas e reprimidos pelos policiais, de acordo com a Constituição do Império’. Mesmo quando a crônica procura realçar as perseguições, sendo que em alguns casos elas foram mesmo violentas, pode-se dizer que nem o Estado nem a Igreja Católica oficialmente se levantaram contra o protestan­ tismo. Muito menos se registraram grandes levantes de massa como a história registra em outras partes do mundo, à semelhança do que se deu na Ilha da Madeira, em 1846, que dispersou totalmente os protestantes, vindo alguns para o Brasil ajuntar-se à Congregação de Robert R. Kelley, no Rio de Janeiro, indo outros para os Estados Unidos10. Estes últimos buscaram guarida num país protestante, mas os primeiros ao se dirigirem para um país católico, 3 Benedetti, Luiz R., 1981, p. 66 e ss.; Carrato, José Ferreira, 1968, pp. 66/67. 4 Fragoso, Hugo, A Igreja na Formação do Estado Liberal, in História da Igreja no Brasil, tomo 11/2, 1980, 211. 5 Exemplo sugestivo é Tavares Bastos. Ver Vieira, David Gueiros, 1980, pp. 95ss. 6 Vieira, David Gueiros, 1980, p. 279. 7 O interesse de Feijó pela vinda dos Irmãos Morávios para educar os indígenas (Ferreira, Julio A., 1959, 1.° vol. p. 14) e a sua luta pela abolição do celibato clerical (Feijó, Diogo Antonio, 1887) são exemplos deste questionamento. . 8 Tarsier, Pedro, 1936; Leite, Antonio Pedro Cerqueira, 1879 (o Autor deste manuscrito se refere à tenaz oposição que lhe faz o Padre Sizenando, pároco da Faxina (hoje Itapeva — SP).) 9 Constituição Imperial, arts. 5 e 179; o pastor G.A. Landes registra no livro de atas do Conselho da Igreja Presbiteriana de Rio Novo — SP, que dois soldados, por ordem do delegado, tentaram interromper o culto que realizava. Informados os dois soldados de que tinham ordem do Governo, levaram avante o serviço religioso. Mais tarde, o delegado informou que se enganara por ter sido informado de que o culto se realizava na rua (a Constituição só permitia cultos não-católicos em recintos fechados sem forma exterior de templo) — Livro n.° 1, fls. 25, 22/7/1883. 10 Braga, Henriqueta Rosa Fernandes, 1961, p. 107.

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deviam estar relativamente seguros de que não seriam molestados por motivo de religião. Além desse clima político e religioso, se não favorável de todo, mas de certo modo não repressivo soube o protestantismo encontrar uma brecha no campo social por onde penetrou. O estudo das camadas sociais que compunham a sociedade brasileira nos meados do século XIX, assim como as formas de dominação política e religiosa, pode dar-nos a chave de como o protestantismo evitou ou contornou os naturais obstáculos que lhe oferecia uma sociedade patriarcal, informada por uma religião tradicional e do estado. A história dos presbiterianos, denominação protestante que estou tomando como modelo pelas razões já expostas, mostra que apesar de terem èles se estabelecido nos seus primeiros dez anos no Rio de Janeiro, São Paulo (capital e interior), Pernambuco e Ceará, o seu alto índice de crescimento em relação às demais denominações e a eles mesmos nos anos anteriores" deve-se ao fato de se terem embrenhado pelas zonas rurais da Província de São Paulo e zonas fronteiriças da Província de Minas Gerais12. Aí encontraram as condições favoráveis para expandir-se e fixar-se definitivamente. Pretendo explorar a hipótese sugestiva de que os presbiterianos aproveitaram o momento da expan­ são cafeeira e acompanharam o domínio rural na trilha do café, quando as frentes pioneiras apresentavam uma população móvel e em estado de cresci­ mento. Se tal não aconteceu com as outras denominações foi porque tentaram penetrar nas áreas urbanas, onde as condições não eram favoráveis ao protes­ tantismo, não só pela incipiência desses núcleos, como no caso de cidades e vilas do interior, mas principalmente pela proximidade física da Igreja Católica. Este último fator é válido, com maioria de razão, para os centros urbanos mais importantes, as capitais e sedes de município. A presença física da Igreja Católica não deve ser entendida só como área de influência religiosa em que uma outra mensagem religiosa não encontrasse espaço espiritual. Essa presença física era também uma presença jurídica, pois que a formação dos bairros, vilas, cidades e municípios brasileiros está intima­ mente ligada à Igreja. Havia terras devolutas em grande quantidade, mesmo considerando as distribuições oficiais de sesmarias que eram feitas para favorecer a colonização. Assim, os pioneiros iam chegando abrindo fazendas e sítios, chamando parentes e conhecidos que, por sua vez, iam se estabelecendo nas vizinhanças. Agricultores e criadores se multiplicavam. O sentimento religioso do colonizador o levava, em breve, a erguer rústica capela onde logo os vizinhos passavam a se reunir, para os atos religiosos. Como testemunho de sua fé, o posseiro um dia procura o tabelião e faz escritura pública de doação do terreno da capela e adjacências para o santo de sua devoção, passando esses terrenos para uma pessoa jurídica, administra­ dos pela Igreja. A fundação de Avaré-SP, por exemplo, é narrada assim: 11

Braga and Grubb, 1932, p. 68.

12 Em 1873 os presbiterianos já haviam fundado umas doze (Read, William R., s/ data, pp. 49/50).

igrejas nas áreas rurais

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“E m 1861, o major Vitoriano da Silva Rocha ergueu uma capela com o nome de Nossa Senhora das Dores do R io Novo. Em 1862, o major Vitoriano e seu vizinho e compadre Domiciano Santana vieram a Botucatu e procuraram o tabelião Francisco Antonio de Castro para redigir uma escritura de doação que ambos faziam de um terreno de um quarto de légua (27 hectares) para o patrimônio de Nossa Senhora das Dores. Nesse tempo já havia um cruzeiro em frente da capela e oito casinhas de pau a pique, cobertas de sapé. A capela foi inaugurada em 10/7/1861, dizendo a Missa ( l.a) que ali se realizou, com licença do Sr. Bispo, o vigário de Botucatu, padre Joaquim Gonçalves Pache­ c o . . . O Bispo de São Paulo, em 1870, criou a paróquia de Nossa Senhora do Rio Novo”'3. Brotas-SP, que veio a se tornar o primeiro e importante núcleo presbite­ riano no sertão paulista, cuja igreja foi organizada num sítio nos seus arredores (1865), dando início à marcha rural daquela denominação, começou assim: “Em 1839 ou 1840, d. Francisca Ribeiro dos Reis mandou construir uma capela sob a invocação de N.S. das Dores de Brotas, dando assim começo à povoação, no lugar que era anteriormente um sítio conhe­ cido com a denominação de Salto, de propriedade daquela senhora e de seu irmão Antonio Ribeiro da Silva, filhos e herdeiros de José dos Reis, que foi o primeiro proprietário de terras do lugar”'*. Em tomo da capela, mais tarde substituída por um templo, começa a surgir a aglomeração urbana. Como esse núcleo urbano é um patrimônio do santo invocado como seu padroeiro, ninguém é proprietário mas paga foro para o sustento do culto. Toda a vida urbana incipiente agora e mais tarde desenvolvida, assim como a de todos os sítios e fazendas a ela ligados, situados às vezes a léguas de distância, passava a girar em tomo do “Patrimônio”15, uma vez que à Igreja Católica cabia regular os atos importantes da vida e da morte (batismo, casamento e sepultamento com valor civil). O progresso ia da capela ao município, passando pelo curato, freguesia ou paróquia, quando então se erigia a matriz14. Assim, é fácil entender como era ampla a presença física da Igreja Católica, não sendo possível a uma outra religião encontrar espaço para se inserir. Mesmo que quisessem os protestantes construir salas, já que lhes era proibido erigir templos para o seu culto, é de se crer que não encontrariam meios. 13 Avaré (História e Geografia), 1939. 14 Egas, Eugênio, 1925, p. 319. 15 Daí a designação tradicional de “Patrimônio” dada às vilas e até cidades. 16 Devo muito, nesta questão, ao estudo de Ataliba Nogueira, Teoria do Município, in Revista de Direito Público, vol. 6, São Paulo. Eugênio Egas 1925, mostra como isto ocorreu invariavelmente em todos os municípios paulistas. Consta que, ainda hoje, algumas igrejas protestantes estabelecidas nas cidades a partir da República, continuam pagando laudêmio à Igreja Católica através das Dioceses.

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Não lhes restava alternativa a não ser as áreas rurais, distantes fisicamente da Igreja e fora do patrimônio do santo. Em outras regiões do Brasil onde o fenômeno do café não ocorreu, e em que na época ainda predominavam os grandes engenhos, como no Norte e Nordeste, e era ainda escassa a população livre, dispersa por grandes extensões geográficas, principalmente na economia de pastoreio, parece ter o protestan­ tismo aguardado o momento em que o urbano se desenvolveu suficientemente. A evolução do protestantismo nessas áreas parece ter ficado à espera de um outro ciclo de desenvolvimento, que foi a passagem do predomínio do rural para o predomínio do urbano. O que estou querendo dizer é que o protestan­ tismo nas áreas fora do âmbito da civilização do café foi predominantemente urbano, mas teve de aguardar momentos de mudanças sociais propícios. E esse momento só vai começar a se apresentar em princípios do século XX. Considerando todos esses fatores julgo compreensível a curva tão expressi­ vamente ascendente do crescimento dos presbiterianos entre 1859, ano de seu início no Brasil, e 1905, quando começaram a ceder terreno para outras denominações'7. Pretendo, pois, neste capítulo, investigar como os presbiterianos se situam como raízes do protestantismo de missão no Brasil.

1. O HOMEM POBRE E SEU CAMPO RELIGIOSO

a) Projeção de um “spectrum” abrangente A sociedade brasileira, ao tempo da chegada das grandes missões protes­ tantes norte-americanas, isto é, na segunda metade do século XIX, apresentava características já bem estudadas hoje. Uma minoria dominante representada pela burguesia rural, a camada de escravos naturalmente ligada a essa burguesia e o vasto segmento de “homens livres e pobres”18 que formava a maior parte da população rural embora praticamente fora do sistema por não estar ligada à monocultura de exportação, mas que à medida que se vislumbrava a abolição e em conseqüência da progressiva redução da mão-de-obra escrava19 ia sendo gradativamente incorporado, formava uma sociedade que ainda não se podia chamar de sociedade de classes20. A maneira como esse segmento livre foi se 17 Ver quadro anexo extraído de Braga and Grubb, 1932, p. 68. 18 Esta expressão que será bastante usada daqui por diante, tomei-a de empréstimo a Maria Sylvia de Carvalho Franco, 1976. 19 Os já muito estudados estertores do regime escravista: redução do tráfico, curto ciclo vital do escravo. Leis restritivas, fugas, etc. (Maurício Goulart, 1975). 20 Embora o censo no Império fosse precário, há um certo acordo a respeito de que, por volta de 1872, a população brasileira era mais ou menos de 2 milhões de habitantes, assim dividida: População livre: 94,5% — População escrava: 5,-5%. Extraindo-se pequena parte da população livre para compor o segmento da classe dominante, os estamentos burocráticos

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inserindo no sistema ao lado da imigração estrangeira é importante para se entender como se deu a penetração protestante. Esse segmento de homens livres e pobres tinha características peculiares que o distinguia de vários modos do contingente estrangeiro. Entre outras características do imigrante que o tornava pouco permeável à mensagem religiosa protestante estava o seu catolicismo arraigado, no caso específico dos italianos em São Paulo, como componente forte de sua própria cultura. Embora esta questão exija tratamento mais aprofundado, é possível, pelo menos como hipótese, afirmar que a contínua entrada de italianos, espanhóis e portugueses, reforçou e deu consistência à religião dominante, isto é, o catolicismo, no momento em que ela mais precisava. Este fator, quer dizer, a imigração de europeus católicos e de orientais não-cristãos para os centros mais desenvolvidos do país, aliado a outras causas, pode ter oferecido forte resistência à expansão protestante, tão promissora nos primeiros tempos. Só tardiamente foi que a mensagem protestante atingiu os imigrantes, principalmente os seus descendentes, mas isto já na fase urbana do protestantismo. A burguesia rural, representada pelos grandes proprietários de terras, engajada no sistema capitalista de economia de exportação, no período consi­ derado, isto é, na segunda metade do século XIX, politicamente dominante, estava profundamente envolvida pela religião tradicional. A posse da terra e o processo colonizador deram-se ao mesmo tempo e do mesmo modo com que fora formada a ideologia nacional paternalista e hierárquica exatamente dentro do modelo regalista e católico romano. É lugar comum na história do Brasil o mesmo ideal milenarista dos povos ibéricos quanto à colonização de novas terras, isto é, a implantação do “corpus christianum” à semelhança do que foi dito a respeito dos norte-americanos21. Ê notável como a posse ideoló­ gica é o instrumento de posse territorial e suas conseqüências. A absorção cultural é condição para outras absorções no sistema de expansão capitalista22. À burguesia rural brasileira não interessava nenhuma mudança de esquema uma vez que o vigente lhe dava o conforto de uma situação consolidada, além do que a ideologia religiosa católica viera com ela e como representante do colonizador. Por outras palavras, a posse da terra e a colonização foram feitas dentro do esquema monárquico, hierárquico e paternalista em que se confundem as estruturas políticas e religiosas do reino português. Fortalece este argumento o célebre regime do padroado regalista vigente em Portugal ao tempo dos e a incipiente população urbana, restará um vasto contingente para compor a população livre, rural e pobre. (Números extraídos de Cardoso, Fernando Henrique, in História Geral da Civilização Brasileira, cap. I, vol. 8). 21 “Os jesuítas fizeram o trabalho de catequese para os colonizadores portugueses através da religião e do ensino. Os protestantes para os americanos” (Bandeira, Moniz, 1973, p. 124). 22 Hoomaert, Eduardo, 1977, defende com vigor a tese de que a doutrinação católica no Brasil foi sempre “uma imposição cultural” (ver especialmente o primeiro capítulo, embora a tese se encontre presente por todo o livro, ao menos nas partes escritas pelo citado Autor.)

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descobrimentos portugueses e da colonização do Brasil23 e que, curiosamente, se estende até o final do regime monárquico brasileiro. Esse sistema é funda­ mental para se conhecer bem a formação da classe dominante brasileira, uma vez que a subordinação da hierarquia eclesiástica à hierarquia política fez com que a ideologia religiosa assumisse o relevante papel de legitimadora do sistema político de dominação. Por outras palavras, na medida em que o grande senhor de engenho e do café, pelas circunstâncias especiais da povoação do solo brasileiro e da respectiva distribuição do espaço geográfico, assumia uma grande parcela de poder em suas mãos, estendia também esse domínio sobre a própria religião que passava, através especialmente do dero secular pobre e, até certo ponto, desamparado, a exercer o fraco papel de sacramentalizadora e legitimadora do poder político desse mesmo senhor de terras. Hoomaert chama o produto dessa simbiose entre religião e poder local de “catolicismo patriarcal”24. É mais ou menos compreensível que a Igreja não tinha outra alternativa, embora protestasse com freqüência, senão submeter-se a essa injunção como decorrência histórica do poder do rei sobre a Igreja25. Assumia ela, assim, aquele papel assinalado por Pierre Bourdieu26 de legitimada e legitimante no sistema político social brasileiro. Isto é, Igreja e camada dominante estavam muito entrelaçadas de modo que uma não podia sobreviver sem a outra, mas isto com sensível desequüíbrio a favor da classe dominante representada pelo senhor de terras. Se a burguesia rural representada pelos grandes latifundiários inseridos no sistema de monocultura de exportação intentasse aceitar e assumir uma outra forma ideológica que viesse no bojo de qualquer outra religião, poria em risco o sistema e conseqüentemente os seus próprios interesses. Mesmo que visse uma ou outra vantagem, haveria os riscos naturais das mudanças de estrutura27. É razoavelmente fácil concluir que a pregação protestante, principalmente a presbiteriana, portadora de uma ideologia formalmente democrática e repu­ blicana, dificilmente conseguiria atingir, de modo a alterar o comportamento, a classe dominante brasüeira. Os historiadores do protestantismo brasileiro 23 Sobre o padroado, ver o mesmo Hoomaert, Eduardo, 1977, que trata mais ou menos extensamente do assunto. É útil também, Ribeiro, Boanerges, 1973, p. 34ss. 24 Hoomaert, Eduardo, 1974. 25 É interessante observar as diferenças de comportamento entre os clérigos membros das ordens religiosas, sempre tentando vencer as peias do padroado, e do clero secular, quase sempre no papel de capelães de bandeiras, engenhos e fazendas, pobre e quase abandonado e, por isso, dependente dos chefes das bandeiras e do senhor de terras. Ver Hoomaert, Eduardo, 1974 e 1977 e Oliveira Viana, 1973, vol. I. 26

Bourdieu, Pierre, 1974.

27 Sobre a profunda imbricação entre a estrutura político-social brasileira e a ideologia católica há vários estudos. São bons exemplos Pereira de Queiroz, Maria Isaura, 1973, Freyre, Gilberto, 1975, Monteiro, Duglas Teixeira, 1974. Parece valiosa nesse sentido, a literatura regional, como José Lins do Rego, que mostra pitorescamente, a relação de subordinação do padre ao senhor de engenho para os atos religiosos que ele mesmo, o senhor de engenho, programa e faz executar.

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fazem referências a alguns Barões do Império que manifestaram simpatia pela ideologia protestante,28 mas não se encontra em nenhum deles, nem em outro lugar qualquer, registro de que algum deles tenha sido admitido numa igreja protestante. Há numerosas referências a conversões ao protestantismo de famílias da elite brasileira de fins do século XIX, mas curiosamente, só na linhagem feminina29 e, talvez por isso, suas descendências não tenham perma­ necido nas igrejas protestantes por causa do tipo de constituição da família patriarcal. Com algum cuidado pode-se distinguir ainda na Igreja brasileira alguns nomes de brasão, mas já diluídos e sem nenhuma participação na vida política atual. Acresce ainda que essas conversões femininas deram-se sempre nas cidades, o que parece indicar que a vida urbana e o distanciamento do núcleo familiar patriarcal que permanecia ainda na fazenda, as desligava de certo modo dos compromissos do esquema em vigor. Assim é que, em 1878, a Igreja Presbiteriana de São Paulo recebeu a adesão de “sete damas da mais alta aristocracia brasileira”. Júlio A. Ferreira30 relaciona uma irmã do Marquês do Paraná e do Barão de Santa Maria e ainda “a paulista de 400 anos, Dna. Maria Antonia da Silva Ramos, filha do Senador do Império, barão de Antonina”. A mesma Igreja de São Paulo recebeu, ainda, a adesão de várias representantes femininas da família do Brigadeiro Luiz Antonio de Souza Barros. São só exemplos. O levantamento total não daria cifra desprezível dada a pequenez do grupo protestante que ensaiava seus primeiros passos. Mas é importante não perder de vista o fator intrigante de que as adesões só eram de mulheres. Esta questão da presença da elite dominante no protestantismo brasileiro teria de constituir um estudo à parte para verificar exatamente o que se deu, e em que proporção, e se houve permanência. No entanto, volto a insistir que há duas questões que devem ser levadas em conta. Primeiro, que essas adesões foram proporcionalmente pequenas e não chegaram nem de longe a influir na ideologia dominante principalmente, como já foi abordado, porque se deram na ala feminina das famílias e, segundo, porque quando os historia­ dores compreensivelmente triunfalistas, falam em fazendeiros deve-se desconfiar de que se tratava de simples sitiantes31. Podiam ser até relativamente abasta­ dos, mas isso não significava que pertencessem à burguesia agrária politicamente dominante. Então, para os fins deste estudo, considero, a partir das razões 28 Ashbel G. Simonton relata em seu Diário (12/2/86) que se hospedou na casa do Barão de Piracicaba, em Sorocaba. Achou-o um liberal e bom cristão. Mas não registra e não se encontra em outro documento, qualquer que se tenha, o Barão convertido ao protestan­ tismo (Simonton, 1962, p. 75). 29 A propósito destas conversões femininas de famílias importantes do Império, ver Léonard, Émile G., 1963, p. 95ss. 30 Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., p. 195ss. 31 O próprio Émile, G. Léonard, historiador arguto, apesar de aparentemente ir na corrente dos historiadores e cronistas protestantes, desconfia da terminologia destes e diz: “a distinção entre fazendeiros e sitiantes é difícil e delicada” (Léonard, Émile A., 1963, p. 100).

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expostas, que a mensagem religiosa protestante no Brasil não atingiu a classe dominante. Quanto ao segmento escravo, pouco se tem a dizer no que se refere à propaganda protestante entre eles. Se a mensagem protestante não teve acesso ao grande fazendeiro na casa grande, muito menos à senzala32. Mesmo a catequese católica dos escravos foi praticamente inexistente. Por ordem do fazendeiro limitava-se o capelão a ministrar-lhes assistência religiosa nas épocas propícias do calendário cristão. Há, por outro lado, relatos de admissões de escravos às igrejas protestan­ tes, mas trata-se, creio, na falta de maior precisão por parte dos registros, de escravos domésticos, não do eito nem da senzala. Parecem ser, ainda, não de propriedade de fazendeiros, mas de sitiantes que tinham condições de possuir um ou outro para pequenos serviços, inclusive domésticos. São geralmente escravos que acompanhavam as senhoras à igreja, e eram, segundo o costume conhecido, quase tidos como da família33. Isso acontecia nas cidades e também nos sítios, onde parece tratar-se de escravos nas mesmas condições34. Esses casos indicam que havia uma camada de sitiantes relativamente abastados e não ligados diretamente ao sistema, mas que tinham condições para possuir alguns escravos. Não há, portanto, indícios de acesso da mensagem protestante ao escravo da senzala e do eito, ligado ao grande latifúndio da monocultura de exportação. A partir daí creio poder afirmar que o segmento escravo inserido no sistema não foi objeto da ação missionária protestante35.

b) O homem pobre e seu mundo O setor de serviços da população brasileira, numerosa, composta de homens livres, brancos, mulatos, mamelucos e negros libertos, espalhava-se 32 Encontrei um único registro de mensagem protestante a escravos numa fazenda paulista, quando o missionário George W. Chamberlain “muito se enterneceu” ao ver desfilar de manhã a escravaria do fazendeiro, Inácio Pereira Garcia, dono da Fazenda Figueira, em Dois Córregos — SP. “Em certa manhã, quando os escravos marchavam para o eito, dirigiu-lhes a palavra, dando-lhes conselho e ensinando-lhes um hino: “Vós os que seguro/alívio buscais/nas duras desgraças/que aflito passais/correi, vinde todos/ao manso Jesus/que, qual um cordeiro/se imolou na cruz/” — Salmos e Hinos n.° 436, edição de 1899 (Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 128). Este mesmo Autor, na mesma página, afirma que Inácio Pereira Garcia, embora admitindo a existência de uma Igreja Presbiteriana em sua fazenda, nunca chegou a “professar”, isto é, a entrar para a Igreja segundo o seu rito. 33 “Tratava-se, o mais das vezes, de criados domésticos que adotavam a religião de sua patroa” — (Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol. p. 198). 34 No livro de Atas da Igreja Presbiteriana do Rio Novo — SP hoje Cachoeirinha do Avaré, igreja rural, consta que em 13/5/1884 e em 26/2/1886 foram arroladas como membros segundo o ritual próprio, as escravas Benedita e Josefa, respectivamente. Estes nomes constam do Livro de Rol de Membros, por mim examinados. Igualmente os livros de rol das Igrejas Presbiterianas da Faxina — SP (hoje Itapeva) e de Borda da Mata — MG, registram escravos pertencentes a sitiantes membros das igrejas. 35 Tal não ocorreu nos Estados Unidos, onde foram organizadas missões para catequizar os escravos nas grandes plantações. (Reily, Duncan A., 1972, pp. 137 e 138).

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pelos meios rural e urbano, indo sua gama de ocupação desde a posse de razoáveis porções de terra onde se ocupavam de, às vezes, prósperas agriculturas de subsistência, em certos casos até com algum excedente, a paupérrimos campesinos vivendo da simples extração dos meios de subsistência e, nos centros urbanos incipientes, de pequenos expedientes36. A questão fundamental desse segmento da população na segunda metade do século XIX, principalmente a que habitava o vasto mundo rural, a que me interessa para os fins deste estudo, é que era despossuído dos meios de produção. Embora boa porção desse segmento possuísse terra, às vezes até extensa, porque geralmente não era comprada, mas simplesmente ocupada nas zonas pioneiras, não tinha meios para organizar empresa produtiva de bens de exportação o que significava entrar no sistema capitalista e ascender à camada dominante, embora isso pudesse se constituir em aspiração. Essas propriedades constituíam o que comumente se chama sítio. É difícil estabelecer a distinção entre sítio e fazenda, porque essa distinção se faz tendo em vista a extensão da propriedade, quando devia ser feita a partir da forma econômica de seu uso, isto é, se ela tem em vista a produção de bens de subsistência, mesmo que ofereça algum excedente, explorada pela família, ou se visa a comercialização extensa da produção, com uso amplo de mão-de-obra escrava ou assalariada. No primeiro caso, teríamos a sítio e no segundo a fazenda. O fato de aparecer um ou outro agregado ou assalariado, ou mesmo algum escravo, juntamente com a família do sistiante, não alteraria a situação37. O pequeno excedente dessa agricultura de subsistência quase nunca chega a favorecer a acumulação necessária para que o dono da terra alcance o nível da grande lavoura caracterizada pela monocultura com trabalho escravo ou assalariado. De maneira que o modo de vida do sitiante continua sendo o de pobre, uma vez que o seu único bem é a terra, de escasso ou mesmo nenhum valor. Isto é provado pelo fato de que ela era abandonada com freqüência, passando o seu ocupante adiante em busca de novas terras. O campesinato brasileiro parece não ter noção de posse da terra, mas só de seu cultivo, o que tende a indicar uma certa herança indígena, ao contrário do notável apego à terra que deveria proceder de seus ancestrais europeus. Alguns desses sítios constituíam marcos distantes e isolados de ocupação do território, mas com bastante freqüência vários deles se localizavam lado a lado como verdadeiros cortes longitudinais com cabeceira no mesmo espigão e fundos para um rio comum. A casa principal, moradia do sitiante, ia do barrote coberto de sapé à madeira aparelhada e coberta de tabuinhas ou telhas de bica, pequena ou às vezes espaçosa, mas de qualquer maneira revelando extrema simplicidade e pobreza no arranjo interno, sendo a falta 36 Fernandes, Florestan, 1965; Oliveira Viana, 1973. 37 Queiroz, Maria Isaura P., 1973 (A), pp. llss. O mesmo aparece em Antonio Cândido, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Eunice Durham, etc.

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de ordem e limpeza uma constante. Esta foi uma constatação sempre chocante para o viajante estrangeiro38. A proximidade desses sítios produzia, regra geral, o bairro caipira tão bem estudado por Maria Isaura P. de Queiroz e Antônio Cândido39, caracteri­ zado pela capela, pela venda e por alguns moradores, constituindo rudimentar centro comunitário. Os sítios distantes constituíam verdadeiro fator de isola­ mento, sendo raras as incursões desses sitiantes nos bairros para fazer seus suprimentos40. Além dos sitiantes, outros moradores faziam parte do vasto mundo rural. Famílias se estabeleciam nas fímbrias das grandes fazendas, formando núcleos de moradores vivendo em regime de parceria com o fazendeiro ou simplesmente, sob licença do mesmo, à custa de rudimentar agricultura de subsistência41. Para os objetivos deste estudo, isto é, verificar como foi possível a aceitação do protestantismo pela sociedade brasileira e de que maneira ele se expandiu, só vou considerar os núcleos de sitiantes, formando ou não bairros, e os parceiros e agregados das grandes propriedades monocultoras nas regiões do café, tentando fazer um levantamento das características dos “homens livres e pobres” que são importantes para se compreender o fenômeno da expansão protestante, caracteristicamente rural na sua implantação e crescimento inicial42. Vou deixar de lado os sitiantes isolados porque ficaram naturalmente fora da linha dos vendedores de bíblias e dos missionários43. A partir dos mais importantes estudos feitos sobre o segmento da população brasileira que me preocupa, vou tentar construir dele uma tipologia a mais compreensiva possível e que sirva de base para a tese que pretendo defender. A integração do escravo à produção mercantil expropriou uma vasta camada de homens livres dessa mesma produção. Os grandes latifúndios deixaram ociosas grandes áreas das antigas sesmarias que puderam ser cedidas para uso de outrem, o que ocorreu quando os sesmeiros, por doações legais, incorporaram terras já ocupadas por posseiros. Para Maria Silvia de Carvalho 38 “Passei a maior parte do tempo no sítio de João Carlos Nogueira. A família é extrema­ mente hospitaleira e cordial. Proporcionaram uma recepção sincera e mesa farta, embora servida com pouca cerimônia. Mas a casa, tão descuidada e suja em conseqüência da falta de assoalho, janelas e portas, porcos e frangos, cães, vacas, cavalos e mulas entrando e saindo, crianças brancas e pretas engatinhando no chão, impediam-me de apreciar a hospitalidade” — (Simonton, 1962, p. 75). 39

Queiroz, Maria Isaura P., 1973 (A) e 1973 (B), Antonio Cândido, 1975.

40 A literatura regional mostra-nos o isolamento e a pobreza em que vivia o sitiante avançado: Valdomiro Silveira, O Mundo Caboclo; Otoniel Mota, Selvas e Choças; Monteiro Lobato, Cidades Mortas, Negrínha. 41 Antônio Cândido, 1975. Embora este estudo tenha sido feito mais ou menos recente­ mente, reflete o mundo arcaico a que me refiro. 42

Reid, William R., s/ data, pp. 49/50.

43 “ . . . j á haviam organizado pelo menos umas doze igrejas nos centros mais importantes das áreas rurais (grifo meu) — Reid, William R., ibidem, p. 50.

5 -C eleste porvir

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Franco isso possibilitou a existência de homens não proprietários, mas que tinham acesso ao uso da terra; não submetidos a pressões econômicas porque o sistema não dependia deles; que não conheceram os rigores do trabalho e, portanto, não se proletarizaram. “Formou-se assim uma ‘ralé’ que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade”44. Essa colocação de Maria Silvia permite estabelecer pelo menos quatro categorias descritivas para o tipo humano de que estou tratando. Era indepen­ dente porque tinha acesso à terra, ou por posse de devolutas ou por permissão dos latifundiários, assim como não estava sujeito ao sistema; era livre porque não era assalariado e muito menos escravo; era extremamente móvel em decorrência dos dois fatores anteriores; era participante de um universo igualitário por não haver, nele, nenhuma descriminação de autoridade. É bom que fiquem livres de equívocos as expressões “independente” e “livre” . Estou entendendo por independente o homem isento de dependência de qualquer tipo e, no caso específico de que trato, não sujeito ao sistema e livre por oposição ao escravo e às obrigações do trabalho regulamentado. A independência desse tipo humano “sui generis” era tanto econômica como política. Creio ser essa independência decorrente de sua simplicidade de vida e conseqüentemente de suas parcas necessidades45, quase totalmente supridas pela abundância da natureza circundante que lhe fornecia frutas e verduras silvestres, caça e pesca acompanhada da criação de animais domésti­ cos. A necessidade de bens de uso e de consumo, só obteníveis no mercado, era suprida, ou pelo sistema de trocas ou pelo dinheiro obtido através de pequenos excedentes da agricultura ou da predação46. Esta simplicidade de vida era responsável pela sua independência econômica e, como conseqüência, por sua independência política. Não estava ligado aos grandes senhores de terras porque não dependia deles e nem ao governo porque, estando na periferia do sistema, não estava implicado nas flutuações e demandas de mercado do mundo capitalista47. É certo que essa independência é relativizada em vários momentos pela troca de favores econômicos e lealdade política entre fazendeiros e sitiantes, como alguns estudos importantes evidenciam48, assim como a eclosão da dominação nos momentos cruciais em que os interesses dos grandes proprie­ tários eram postos em xeque. Mas esses mesmos estudos revelam que a dominação só se dá no plano político, ficando pois o dominado livre em 44

Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976, p. 14.

45

Antônio Cândido, 1975.

46 Dean, Warren, 1977, p. 33. 47 Monteiro Lobato, Urupês. Com as atenuações necessárias, a Caricatura de Monteiro Lobato pode dar alguma idéia sobre a indiferença política do homem livre e pobre. Mais importante ainda é Queiroz, Maria Isaura P., 1973 (A), p. 21, 34 e 35; Ibidem, 1976, p. 112. 48

130

Durhan, Eunice, 1973, e Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976.

outros setores da vida como a organização do trabalho e do lazer, as relações familiares e vicinais e o mundo do pensamento49 e da religião. Essa área de independência do sitiante era, talvez, gerada pelo igualitarismo50 e pelos resíduos dos sentimentos de honra e cavalheirismo51 que regulavam as relações entre as pessoas e, logo, entre os fazendeiros e sitiantes. Seria, portanto, mais justo falar-se em interdependência, uma vez que, no plano das situações normais da vida o fazendeiro pedia ao sitiante o seu apoio político,52 mas não interferia nas demais formas de pensar e agir dos sitiantes. É verdade que instituições de cunho religioso como o compadrio, ao tentar reforçar a situação de igual­ dade só fazia acentuar uma certa assimetria nas relações entre uns e outros. Creio, no entanto, que mesmo essa assimetria só se tomava transparente no plano das relações políticas, quando o fazendeiro esperava do sitiante a sua contraparte em lealdade política. Não vejo, portanto, razões que impeçam considerar o sitiante como independente nos níveis de condução de sua vida pessoal. Há ainda um outro ponto a considerar. Não se deve exagerar as conse­ qüências desse relacionamento entre sitiantes e fazendeiros a ponto de se construir a tipologia do sitiante a partir dessa relação. É certo que numerosos sitiantes isolados ou reunidos em grupos vicinais não mantinham relações com fazendeiros por não existirem estes na região. Numerosos bairros caipiras viviam distantes das fazendas e suas relações eram simplesmente familiares e vicinais. Nesses casos, a autonomia podia deixar de ser relativa para ser integral, mesmo no plano político53. Nesse sentido, parece-me ser típico para os fins deste estudo, o mundo arcaico que Antonio Cândido descreve,54 que se projeta como um verdadeiro recorte do passado. O mesmo se pode dizer dos agregados que, vivendo nas fímbrias das grandes fazendas, fímbrias estas às vezes ainda não incluídas na monocultura escravista, gozavam de liberdade desde que não perturbassem os interesses do fazendeiro. Eram estes agregados, às vezes simples inquilinos vivendo de favor em terras da fazenda, úteis ao fazendeiro para preservar os limites de suas terras e garantir-lhe, de certo modo, a posse ou evitar esporádicas intromissões. Eram como que sentinelas de seus vastos domínios. A segunda característica do homem “livre e pobre” era exatamente a sua liberdade. Por liberdade estou entendendo a sua totaldisponibilidade. Podia ir e vir, organizar o seu trabalho, ocupar o seu tempo como bem lhe aprouvera. Nenhuma regulamentação o atingia. Como diz Maria Sylvia, “eram homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à 49 Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976. 50 Ibidem, 1976; Queiroz, Maria Isaura P., 1976, pp. 176/177. 51

Psicologia do Melindre (Queiroz, Maria Isaura P., 1976, p. 177).

52 Queiroz, Maria Isaura P., 1973 (A), p. 35; Dean, Warren, 1977, pp. 33 e 35. 53

Queiroz, Maria Isaura P. 1973 (A), p. 37.

'

54 Antonio Cândido, 1975.

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sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão simultaneamente abria espaço para sua existência e os deixava sem razão de ser”55. A terceira era a sua mobilidade. Não estou preocupado com as causas dessa mobilidade,56 mas somente em considerá-la como um fato influente no que pretendo demonstrar. Parece-me plausível afirmar que a mobilidade desse segmento da população brasileira está ligada, pelo menos em parte, ao desapego à terra, oriundo não de um atavismo qualquer, mas de sua pobreza. A falta de meios para construir casas boas e duráveis, instalações adequadas para a guarda dos excedentes da produção (galpões, currais, cercas limítrofes etc.) e, principalmente, a incapacidade material para cultivar adequadamente a terra, permitindo que ela logo se mostrasse pouco produtiva, exigia do homem pobre o abandono periódico de seus sítios ou de seus cultivos de agregação ou de parceria. Em poucos anos, quatro ou cinco, as terras estavam fracas e já com os primeiros sinais das “pragas” (ervas daninhas, formiga), a casa e as cercas em ruínas. Era mudar para construir tudo de novo em terras ainda não ocupadas ou nas orlas das grandes fazendas que ainda tinham terras virgens e disponíveis. E, por último, os homens livres e pobres constituíam o setor mais escassa­ mente regulamentado da vida social. Estavam mesmo à margem e distantes da vida social organizada, com divisão de trabalho e discriminação de autori­ dade. Diz Maria Sylvia: “Basta lembrar que o soldado, o padre, a autoridade pública estiveram sempre referidos a instituições alheias ao mundo caipira”57. Os núcleos de povoamento eram feitos sempre na base de núcleos de famílias independentes, sitiantes, posseiros ou proprietários, mas todos com acesso à terra em igualdade de posição social58. A vida rústica e simples sem divisão de trabalho não sustenta formas de especialização e nem estratificação social. Daí o igualitarismo presente no interior desses grupos59. A vida comunitária gira em tomo de três setores fundamentais: a proximi­ dade espacial (vizinhança), a cooperação (trocas de dias de trabalho, mutirões e ajuntamento para construção ou conservação de estradas vicinais etc.) e o ser comum (parentesco). Como a competição não está presente porque ela pertence à sociedade regulamentada, todos os setores apontados, estavam permeados pelo lúdico, mas na própria falta de estrutura social lúdica, o lúdico acabava envolvendo as pessoas, os corpos das pessoas. As atividades lúdicas tendiam a estabelecer os valores pessoais, isto é, a dar o lugar devido ao valor de cada um. A violência e o lúdico caminhavam de parelha. 55

Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976, p. 14.

56 A tipologia do camponês brasileiro tem sido construída a partir de várias teorias etnológicas, psicológicas e românticas. Em Queiroz, Maria Isaura P., 1973, pp. 7ss, há um balanço dessas teorias. 57 Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976, p. 32. 58 Ibidem, p. 31.

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59 Queiroz, Maria Isaura P., 1973 (B), p. 141.

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As relações de vizinhança se davam em dois níveis: a troca de favores, especialmente de alimentos60, e as ocasionais festas, principalmente religiosas, que pareciam ser freqüentes dados os numerosos dias santificados. O escritor anônimo da história de Avaré-SP assim descreve uma dessas festas: “Todos os domingos havia ladainha ‘puxada’ pelo major Vitoriano, na capela, com a presença da caboclada. Após a ladainha, no terreiro da capela, Chico Biriba, famoso violeiro da redondeza, entoava com aplauso geral, modinhas sertanejas. Depois, o major distribuía quentão jeito com pinga de seu pequeno engenho de açúcar”.6' A cooperação, embora se desse em diversos planos, adquiriu o seu símbolo no mutirão, já suficientemente estudado por muitos autores. O meu interesse aqui reside na intensa expressão de competição pessoal e na permeabilidade ao lúdico que o mutirão apresenta. No momento oportuno retomarei a este ponto. As relações de parentesco são caracterizadas ainda, na linha de expo­ sição de Maria Sylvia, por relações exclusivamente pessoais, faltando nessa cultura da pobreza os referenciais econômicos, cujos níveis de interesse podiam colocar em outro plano as relações estritamente pessoais. Isto é visível na família tipicamente patriarcal. Na família patriarcal, a sua constituição se assen­ tava sobre a tendência para a formação de poderosos grupos econômicos. Como diz Maria Sylvia, “A família moldou-se dominantemente para realizar essa função ordenadora das relações sociais, antes que para resolver problemas, de ordem emocional ou sexual” .62 Por ilação, e sem querer simplificar demais, pode-se dizer que a família da cultura da pobreza se constituía para resolver estes problemas. São seguramente bases frágeis, fundadas estritamente em relações de ordem diretamente pessoal. Linhas atrás afirmei que o lúdico caminhava de parelha com a violência. Mas antes seria preciso dizer que a competição e o lúdico seguiam a mesma trilha. Como a sociedade não oferecia àqueles homens estrutura em que os níveis de ascensão e auto-afirmação fossem independentes das pessoas e isto por causa da falta de divisão de trabalho, as tarefas comunitárias eram mo­ mentos propícios para a competição. Os canais de prestígio estavam abertos para aqueles que revelassem mais destreza e competência na realização de tarefas. A ausência de referenciais externos para a avaliação das “perfor­ mances” abria espaço para o confronto direto entre as pessoas. Mais ainda pelo fato da ausência daqueles referenciais, a competição assumia caracte­ rísticas lúdicas, o colorido do jogo. Por outro lado, a pobreza e a vida à margem da sociedade não propiciava àqueles homens outra forma de preen­ chimento do lazer. De maneira que, tanto no trabalho como no próprio lazer, 60 Antonio Cândido, 1975, pp, 143 e 209. A instituição do “potlatch” foi extensamente estudada por Mauss, Mareei, 1971. 61

Avaré, 1939.

62 Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976, p. 42.

133

a competição colorida pelo lúdico estava presente. Ora, em tudo isso, o con­ fronto pessoal direto gerava extrema violência por ser a única forma de afir­ mação pessoal. Tanto no trabalho como nas festas de fim de mutirão, casa­ mentos, batizados ou domingueiras no povoado da capela, o potencial de violência estava presente. As simples relações de vizinhança também propiciavam motivos para a violência. O não cumprimento do princípio do “potlatch” podia ocasionar malquerenças geradoras de violência. Aliás, Mareei Mauss no seu estudo sobre o “potlatch”, liga-o à rivalidade e à guerra entre clãs43. É sugestiva a hipó­ tese de que o princípio da prestação e contraprestação de favores ligados à cultura da pobreza, além de se constituir em meio de repartição de alimentos, num ambiente social caracterizado pela carência de tudo, como diz Antônio Cândido, “tenha seus fundamentos antropológicos em ritos muito antigos, regu­ ladores da paz e da guerra. A complicadíssima etiqueta da oferta e aceitação de alimentos, por exemplo, tão bem observada e descrita por Antônio Cân­ dido, geradora, quando não suficientemente observada, de ressentimentos pro­ fundos e duradouros”64, não dificilmente desencadeadores de atos de violência, parece ser elemento fortemente regulador de relações de vizinhança ao lado do trabalho comunitário. Maria Sylvia descreve as circunstâncias de um assas­ sinato entre vizinhos em que cenas de oferta e consumo de aguardente e comida desembocam em ato de violência extrema65. As relações de parentesco, por se situarem ao nível das relações pessoais muito fracas, eram facilmente perturbáveis por interesses irrisórios. Maria Sylvia analisa vários relatos de violência interfamiliar por questões de tra­ balho, de alimentos e outras em que surge “a labilidade do conteúdo das relações pessoais definidas com base em vínculos íntimos e não submetidos a controles formalmente estatuídos”66. Em suma, a violência como componente essencial da cultura da pobreza revela a fraqueza dos laços sociais em todos os níveis que regulavam a vida dos homens livres e pobres. A luta e a violência permeavam o cotidiano e o valor pessoal é o único instrumento de conquista de um lugar no espaço social67.

c) O homem pobre e sua religião Na primeira parte deste capítulo tentei estabelecer um panorama muito amplo da estratificação social brasileira na segunda metade do século XIX 63

Mauss, Mareei, 1971, p. 161.

64 Antônio Cândido, 1975, pp. 147ss. 65

Franco, Maria Sylvia de Carvalho, p. 51.

66 Ibidem, p. 47. 67

134

Ibidem.

com o objetivo de mostrar como uma nova religião teria escassas vias de acesso tanto à camada dominante quanto à de escravos. Para isso, foi neces­ sário levar em conta a estreita vinculação entre a classe dominante e, por conseguinte o Estado, com a religião representada oficialmente pela Igreja Católica. Espero ter ficado claro que naquele “spectrum” o nível de discussão era o da religião oficial, institucional. Ali, a religião era a do “Deus estabe­ lecido”48, o catolicismo patriarcal em que o padre, capelão e mestre, estavam mais ligados ao senhor de terras do que ao bispo, não tendo nenhuma ligação com o povo, não formando portanto comunidades. Desse modo, sua função tinha um colorido mais legitimante e estabilizador do sistema do que propria­ mente religioso. A organização da Igreja se confunde com a estratificação política: “Nos velhos documentos paulistas, bairro sempre aparece como divisão administrativa da freguesia, que o é por sua vez, da vila. Esta era a sede da Câmara e Paróquia e cabeça de todo o território, quase sempre vasto; a freguesia supunha um núcleo de habitação compacto e uma igreja provida de sacerdote, geralmente coadjutor do vigário da paróquia; o bairro era divisão que abrangia moradores esparsos, não raro com sua capelinha e às vezes cemitério”49. Assim, a presença oficial da Igreja se confunde com a presença da socie­ dade organizada hierarquicamente, com sua organização de trabalho e sistema de valores70. O bairro, às vezes com sua capelinha e cemitério, e os moradores esparsos pela amplidão do território, ainda em processo de ocupação, com­ punham o mundo do homem livre e pobre, com suas características já des­ critas e com a sua religião. Se a religião do mundo organizado e estratificado era a do “Deus estabelecido”, a religião do mundo dos homens pobres era a dos “santos nômades”71. Se tomarmos como referencial teórico o que Bourdieu propõe como universos propícios à diferenciação entre “monoteísmo” e “politeísmo”, o mundo dos homens pobres com seus “santos nômades” corresponderia a esta última forma de religião. De fato, o mundo dos homens pobres com sua economia indo da coleta à uma agricultura primitiva, era o universo dos deuses múltiplos e nômades. Naturalmente, à medida que os espaços geográ­ ficos iam sendo alcançados e incorporados à exploração mercantil e, conse­ qüentemente, incluídos nas cartas políticas, os santos nômades tendiam a se transformar no Deus estabelecido da religião oficial. Se for possível descartar qualquer preconceito de valor com referência à relação entre politeísmo e monoteísmo, é extremamente atraente a idéia de que o processo de expro­ priação religiosa, teoricamente muito bem desenvolvida por Benedetti, corres­ 68

Benedetti, Luiz Roberto, 1981.

69 Antônio Cândido, 1975, p. 63. 70

Bourdieu, Pierre, 1974, p. 34.

71

Benedetti, Luiz Roberto, 1981.

135

ponde ao processo da clássica passagem de uma estrutura indiferenciada de produção religiosa, peculiar à ausência de divisão de classes, para uma estru­ turação expressamente diferenciada de produção e gestão de bens religiosos, em que o surgimento da classe sacerdotal, no plano da dominação religiosa, corresponde à dominação no plano sócio-político. Embora o processo de expropriação religiosa seja importante para o meu propósito, vou abandoná-lo para retomá-lo mais adiante. O importante agora é tentar levantar algumas características sugestivas da religião do homem pobre, ou melhor, de seu campo religioso. Toda vez que se intenta a teorização do popular esbarra-se com dificuldades. Por isso, vou buscar somente caracte­ rísticas que, ao mesmo tempo que são mais ou menos aceitas, sirvam paia os meus objetivos teóricos. De maneira que não haverá nada de novo nesta exposição. Em primeiro lugar, a religião do homem pobre era uma religião difusa. Não sistematizada, estava em tudo e em todos. Era produzida e consumida como o eram os outros bens necessários à existência. Era coletiva e indife­ renciada, sem autonomia como o era a própria sociedade a ela correspon­ dente. Correspondia, assim, ao que Bourdieu afirma: " . . . domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamentos e de ação objetivamente sistemáticos, adquiridos em estado impUcito por simples familiarização e, portanto, comuns a todos os membros do grupo e praticados segundo a modalidade pré-reflexiva. . .”n O fato de ser difusa não significa caos e competição, ou se quiser-se, fraqueza. Ao contrário, a religiosidade do homem pobre dava sinais de pro­ fundo enraizamento nos atos comuns ou dramáticos do cotidiano. A descrição que Maria Sylvia faz da cena dos últimos momentos de um assassinato73 intro­ duz formas de comportamento religioso, que refletem a religião como um componente fundamental da vida e que, nos seus componentes simbólicos, pode-se encontrar a tessitura de uma visão mágica do mundo, razoavelmente coerente. Na cena em questão, uma das pessoas presentes pergunta ao mori­ bundo se ele queria ser ajudado a “bem morrer” . Diante da resposta afirma­ tiva, seguiu-se a reza. Sem dúvida, está presente a crença em boas e más alternativas para um mundo futuro e que a reza tem um poder mágico para assegurar o melhor. A bênção que o moribundo dá aos seus filhos reproduz a relação de poder entre o sagrado e os homens. A vela acesa que lhe colo­ caram nas mãos traduz “a correspondência analógica entre a chama da vela e as luzes divinas”74. A difusão a que me refiro é a qualidade de oposição a qualquer sistema de dominação ou imposição por parte de um corpo autônomo de gerência 72

Bourdieu, Pierre, 1974, p. 40.

73

Franco, Maria Sylvia de Carvalho, 1976, p. 20ss.

74 Ibidem, p. 22.

136

í [

religiosa. Significa, ainda, a crença comum em objetos e palavras com poderes mágicos para definir o destino das pessoas. Não é exagero dizer que a religião do homem pobre tinha uma razoável uniformidade neste aspecto. Em segundo lugar, como já foi sugerido, pelo menos como um refe­ rencial teórico, a religião santorial do homem pobre revela um colorido politéico pela presença de numerosos santos de devoção regional, familiar e pes­ soal. Isto não afasta a crença cristã institucionalizada no “deus único e verda­ deiro”. Ela devia estar por trás de toda a prática religiosa dele, mas a neces­ sidade de uma proximidade maior com o sagrado, uma intimidade mesmo com ele exigia uma forma de intermediação que ele não tinha à mão pela ausência do sacerdote. Este fato pode ter favorecido as formas de especiali­ zação dos santos, o que não excluía as devoções familiares e pessoais que, às vezes, não levava em conta as especializações. O santo da casa servia para todas as ocasiões. Uma visão mais ou menos abrangente da religião santorial parece mostrar uma certa racionalização das necessidades existenciais e de seus canais de satisfação. É como diz Bourdieu: “Nem o pensamento nem a atividade religiosa encontram-se igualmente distribuídos entre a massa de fiéis. Conforme os meios, as circunstâncias, tanto as crenças como os ritos são percebidos de maneira diferentes”75. Pedro A. R. de Oliveira, num artigo publicado em 197574, afirma que as relações entre o fiel e os santos têm duas modalidades básicas. A primeira é uma relação de aliança em que o santo desempenha um papel de “padrinho celeste” do fiel e este lhe presta um culto de modo regular. O cumprimento desse culto por parte do fiel é expresso em oferendas, penitências e atos de devoção diversos conforme as particularidades de cada santo. Este por sua vez deve proteger o fiel nesta vida e facilitar-lhe a entrada na outra (no Céu). A aliança entre o fiel e o santo, estabelecida no ato do batismo, voto ou tradição familiar, não deve ser rompida. É permanente. A segunda modali­ dade é uma relação contratual entre o fiel e o santo com a finalidade de obter uma graça mediante uma oferenda por parte do fiel. Obtida a graça, o fiel cumpre a sua parte, sob pena de ficar em débito grave para com o santo. A relação contratual, ao contrário da aliança, é transitória; satisfeitas ambas as partes, está encerrado o contrato. Sem dúvida é uma religião prática, utilitária, no sentido do intercâmbio de interesses entre o devoto e o sagrado. Diz Maria Isaura: " . . . o culto dos santos, a festa, a novena, as orações têm por objetivo assegurar a boa vontade dos seres sobrenaturais e uma retribuição. A relação religiosa básica entre os homens e o sobrenatural é o do ut des: dou para receber em troca”77. 75

Bourdieu, Pierre, 1974, p. 41.

76 Catolicismo Popular como base religiosa, CEI — Suplemento n.° 12, setembro, 1975. 77

Queiroz, Maria Isaura P., 1973, p. 94.

137

Mas, diz ainda Pedro A. R. de Oliveira, tanto a aliança quanto o con­ trato entre o fiel e o santo têm como marca característica o relacionamento direto e pessoal. O devoto não precisa de intermediários e nem o santo é uma entidade abstrata longe de seu alcance. Ao contrário: " . . . vai diretamente a ele, conversa com ele, expõe seus problemas, agradece as 'graças’, ou simplesmente presta seu ato de culto”78. A familiaridade com o sagrado79 ia a ponto de haver desavenças de ordem muito pessoal entre o fiel e o santo: "De onde a possibilidade tanto do santo se zangar com seus devotos, quanto dos devotos se zangarem com o santo, acarretando nos dois casos represálias de parte a parte”.80 No catolicismo popular, os santos, pelo lugar preeminente que ocupam, colocam fora de centro o culto a Jesus Cristo. Realmente ele ocupa, na prática religiosa rústica, posição acentuadamente secundária: "Os 'santosf ocupam posição central no catolicismo ‘popular’ porque, nele, a figura de Cristo revelada no Novo Testamento e praticamente desconhecida. Nele, Jesus, em suas várias invocações, é um ‘santo’ entre outros. . . ”8’. João Dias Araújo, no seu estudo “Imagens de Jesus Cristo na cultura do Povo Brasileiro”, afirma que o “Cristo Brasileiro” tem quatro formas de apresentação na mente e prática populares: é um Cristo morto, distante, sem poder, que não inspira respeito e docético ou desencarnado. No confronto com o catolicismo santorial é que essas formas de apresentação de Cristo assumem maior significado, especialmente quando se refere ao Cristo distante: “Quando falamos de distância espiritual, queremos dizer que a pessoa de Cristo não ocupa lugar central na espiritualidade da maioria do povo, não é figura chegada e íntima da vida devocional”82. Julgo importante assinalar que uma das fontes importantes usadas por João Dias na sua construção do “Cristo brasileiro” foi a literatura de cordel. A figura e a presença de Jesus Cristo na teodicéia do catolicismo popular brasileiro foram historicamente formadas ao longo do catolicismo ibérico, e mesmo brasileiro, através de circunstâncias e componentes diversos. No en­

138

78

Oliveira, Pedro A.R., 1975, p. 6.

79

Benedetti, Luiz Roberto, 1981, p. 2.

80

Queiroz, Maria Isaura P., 1973, p. 94.

81

Oliveira, Pedro A.R., 1975, p. 7.

82

Araújo, João Dias, in Boff, Leonardo, e outros, 1974, p. 46.

tanto, um fator lembrado por Hubert Lepargneur83 parece ser muito signifi­ cativo: a falta de aparato conceituai e filosófico, por parte do catolicismo popular, para operar a síntese metafísica do Deus-Pai (espiritual) e do DeusFilho (encarnado). Daí, a presença muito pouco significativa de Jesus Cristo, ora como o Cristo-Morto ora como o Cristo docético (desencarnado) como verifica João Dias. Se essa articulação constitui historicamente um desafio para o teólogo profissional, é lícito imaginar-se o que representa para o cris­ tianismo popular, aduz ainda Lepargneur. Para concluir esta tentativa de reconstrução da teodicéia da religião do homem livre e pobre, resta registrar o aspecto predominantemente messiânico que ela parece apresentar e que decorre entre outros fatores não menos impor­ tantes, de sua cristologia. Sigo aqui a hipótese muito atraente que ainda acompanha a linha de raciocínio de Lepargneur. A dificuldade que atinge o cristianismo popular para operar a síntese entre Deus-Pai e Deus-encamado produz nele duas saídas: ora Jesus Cristo é confundido com Deus-Pai (Deus encarnado) ora ele aparece na galeria dos santos menos invocados. Se enten­ dermos, como o faz Lepargneur, que o cristianismo comporta duas interpre­ tações fundamentais, uma na linha das religiões de salvação (salvação como vida bem-aventurada além desta vida terrestre e outra na linha das religiões messiânicas (a universal reconciliação de tudo e de todos na história) será possível perceber o colorido messiânico que a história social do Brasil apre­ senta. O relacionamento popular com o Deus-Pai, espiritual e afastado do mundo, orienta mais para uma salvação além da vida terrestre, ao passo que as afinidades do povo com os seus santos, exemplos temporais de sofrimentos, humilhações e renúncia a um mundo pecador e injusto, pode produzir modelos de um mundo historicamente reverso do presente. Agora, algumas questões de ordem mais sociológica com respeito à reli­ gião do homem pobre. A primeira é que ao nomadismo do homem pobre, seguia-se o nomadismo religioso. Sua religião santorial possibilitava esse noma­ dismo; o lugar do santo de devoção pessoal ou familiar era o nicho, o altar caseiro ou a bandeira fronteira à casa. Altares, nichos e bandeiras eram tão transitórios quanto a casa mesma. Os santos emigravam com seus devotos como os parcos utensílios da casa. Mesmo quando os sitiantes pediam com empenho às autoridades a ereção de capela em seus bairros, não estavam aspirando ao estabelecimento da religião, sua fixação ao espaço, mas a assis­ tência religiosa do padre, de outro modo impossível. Presença temporária e esporádica do padre significava ao mesmo tempo, a desobriga periódica dos deveres religiosos, só possível mediante o agente religioso oficial, e a autonomia do campo religioso construído e mantido pela difusa ação cole­ tiva. Assim, ao nomadismo dos homens e de seus deuses, seguia-se a itinerância do padre. “ . . . a preocupação por parte dos sitiantes pobres, apenas com a pre­ sença ocasional do padre, traduz a ausência de controle religioso efetivo 83

Lepargneur, Hubert, in Boff, Léonardo e outros 1974, p. 69.

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da Igreja através do especialista, produtor, reprodutor e difusor dos bens de salvação”*4. Nota-se que a carência religiosa do homem pobre é uma visão unila­ teral de quem observa do ponto de vista da religião institucional; na realidade, embora os sitiantes desejassem a presença do padre para as desobrigas, não pretendiam abrir mão de sua autonomia religiosa. “Mais do que uma religião ‘sem padre’ é uma religião de ‘recusa do padre”’85. Recusavam o padre fixo, preferiam o padre missionário, itinerante, ocasional. Daí ser muito lógica a resistência dos sitiantes à pretensão de senhores de terras e bispos de construir matrizes ao invés de capelas. Aquelas significavam sua expropriação religiosa e estas a preservação de seus santos, de sua autonomia religiosa86. A segunda questão sociológica é o caráter lúdico da religião do homem pobre. As suas relações com os seus santos são pessoais e íntimas e expressas, não nos rituais formalizados e rígidos da religião oficial, mas pelo diálogo informal às vezes contencioso até, pela dança e pelo canto; pelas cores dos santos e das suas fitinhas de adorno. Não há devoção sem festa nesse cato­ licismo rústico. O conhecido adágio “Primeiro a obrigação depois a devoção” parece estabelecer a prioridade do trabalho sobre o lazer, desde que possamos incluir na compreensão do conceito “devoção” a conotação “lúdico”. Ao lado dessas questões de ordem sociológica, é conveniente resumir agora os componentes da teodicéia da religião do homem livre e pobre. A teodicéia do homem pobre era difusa, santorial, de certo modo politéica, por­ tanto, mágica e com um razoável colorido messiânico. Era uma teodicéia até certo ponto criada e sustentada pelo leigo. O universo ou visão do mundo era tripartido: terra, céu e inferno. A vida na terra e sua posterior condição (céu ou inferno) dependia da manipulação dos poderes mágicos e da forma de relação com os santos, seja na forma de uma devoção específica e perma­ nente ou numa forma temporária. Era um cristianismo pouco cristológico e coloridamente messiânico. O mundo religioso do homem pobre, como diz Benedetti, tinha dois aspectos fúndamentais: a familiaridade com o sagrado, que resume a sua teodi­ céia, e o caráter lúdico, componente sociológico importante e subjacente à sua religiosidade.

2 . O ANÚNCIO DE UMA NOVA RELIGIÃO Quando a mensagem religiosa protestante começa a ser anunciada no Brasil — meados do século XIX — deu-se um confronto de plausibilidade 84

Benedetti, Luiz Roberto, 1981, p. 10.

85

Ibidem, p. 15.

86 Ibidem, cap. II

140

de teodicéias87. Esse confronto não se deu nos níveis da classe dominante com possibilidades iguais entre a católica e a protestante. Ao contrário, ali, embora contasse com a simpatia de alguns políticos e intelectuais liberais — Tavares Bastos, Rui Barbosa, Abreu Lima e, quem sabe se até o Imperador — o nível de interesse seguramente não foi o religioso. Ele se deu nos planos intelectual, político e ideológico, em voga no momento. Esta questão já foi explanada no início deste capítulo. O confronto de teodicéias, na linha da exposição de Peter Berger, ocorreu na camada dos homens livres e pobres da população rural. A pregação pro­ testante encontrou ali, não somente um espaço social aberto, mas interstícios através dos quais pôde penetrar e ocupar pequenos claros deixados pela reli­ giosidade dominante. Não quero afirmar que o protestantismo só ocupou es­ paços vazios, caso em que não teria havido confronto. Na parte c. deste capítulo procurei mostrar que havia realmente um certo distanciamento reli­ gioso entre a camada dos homens pobre e as agências religiosas oficiais, e isto deixava um espaço maior para o confronto. Por outro lado, o balanço entre as duas teodicéias apresentou, pelo menos a alguns pequenas grupos, vantagens para o lado protestante. É este balanço que pretendo fazer nesta parte. Quando se estuda o contato das missões protestantes com a população brasileira, pode-se ter uma falsa idéia de impacto, principalmente se partirmos dos historiadores protestantes e dos relatórios dos missionários, naturalmente triunfalistas por causa de seus sucessos parciais e locais vistos pelo prisma de seus ideais religiosos. Mas desde que se tenha o distanciamento necessário para uma visão de conjunto, sente-se que esse contato foi fraco e fragmen­ tário e, justamente por isso, apesar de todo o esforço e dos recursos dispendidos pelas missões, o Brasil esteve longe de se protestantizar. Fica logo descartada, portanto, a idéia de impacto. O que pretendo mostrar é a maneira pela qual o protestantismo conseguiu penetrar e ocupar um certo espaço e, principalmente, que a única via que encontrou para essa penetração foi a camada livre e pobre da população rural. O levantamento do conteúdo da mensagem protestante no Brasil deve ser feito, não abstratamente a partir das doutrinas históricas da Reforma, mas concretamente sobre os sermões publicados pelos missionários e pastores na­ cionais, de seus artigos em revistas, jornais e livros publicados no Brasil e dos cânticos sagrados impressos para uso nos serviços religiosos. Mas o que está nesse material todo é a mensagem oficial, produto da teologia do tempo, já um tanto distanciada da Reforma. Mas, de qualquer modo, era a teologia oficial emanada das missões. Mas essa mensagem foi apresentada a uma camada social com características muito próprias e que tinha o seu campo religioso estruturado. O problema real é saber como essa camada social recebeu essa mensagem e de que modo a assimilou e reproduziu. Isto é, o meu inte­ resse é conhecer o protestantismo no mesmo nível em que a camada social 87

Berger, Peter, 1971.

141

que o recebeu vivenciava a sua anterior religião. Em suma, desejo encontrar a crença do protestante comum brasileiro. Isto não é fácil, especialmente quando se trata do protestantismo, religião exclusivamente discursiva e ética. Sua expressão são palavras e formas de conduta, e nada mais. Quero captar o “popular” no protestantismo, a mensagem oficial filtrada e reinterpretada e, quem sabe, reinventada. A única via que encontrei foi a análise dos cân­ ticos sagrados que, por um processo de seleção natural por parte do receptor da mensagem, pode conduzir-nos à percepção aproximada do sistema de crenças do protestante comum. A ética foi, sem dúvida, um ajustamento am­ biental da oficialmente ensinada. “A religião popular não deixa testemunho e scrito .. . sintoma de religião dominada. Estamos num terreno em que se trabalha muitas vezes apenas com hipóteses”88. Os cânticos protestantes estão escritos, mas os critérios de sua seletividade e de sua interpretação pelo povo nunca o foram. Desejo fazer o levantamento proposto em dois níveis: primeiro, a prega­ ção oficial e os canais que lhe franquearam a penetração. Isto será feito agora; segundo, as formas de assimilação dessa mensagem, o que será feito nos dois últimos capítulos deste trabalho segundo o método proposto. Haverá, ao longo da exposição que se segue, algumas antecipações necessárias mas somente a título de exemplos de doutrinas expostas. Primeiramente, o protestantismo que nos chegou através da pregação missionária estava estreitamente vinculado ao liberalismo que no século XIX permeava tanto o pensamento europeu como o norte-americano. A primeira e única missão inglesa que se estabeleceu no Brasil89, e cuja mensagem não divergiu das missões norte-americanas, já demonstrava que o liberalismo atin­ gira o protestantismo também na Europa90. O protestantismo embora no período pós-Reforma tenha se manifestado, por vezes, tão intransigente quanto o cato­ licismo no que se refere à liberdade religiosa, posteriormente passou a propugnar essa liberdade à medida que o liberalismo tomava corpo. Desse modo, não é ilógico que no Brasil, em que o pensamento liberal encontrava tantos adeptos, as missões passassem a fazer intensa pregação liberal no sentido de conquistar, contra a religião do Estado, as prerrogativas inerentes à liberdade religiosa. O protestantismo norte-americano, assim como o inglês da “HELP FOR BRAZIL”, dava ênfase muito grande à liberdade do indivíduo quanto à sua salvação, isto é, para aceitar ou recusar a salvação. Essa responsabilidade individual que veio em certo momento histórico a ser comum a quase todo 88

Benedetti, Luiz Roberto, 1981, p. 9.

89 “Help for Brazil”, aqui estabelecida em 1893. Embora esta Missão congregacional seja relativamente tardia, já em 18S5 o missionário também congregacional Robert R. Kalley, por sua própria conta, tinha iniciado no Rio de Janeiro a sua pregação. 90 Graham, Richard, 1973, pp. 294/295.

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o protestantismo norte-americano91 parece ter dominado toda a pregação mis­ sionária protestante no Brasil, sendo realmente uma novidade a valorização do indvíduo, especialmente se considerada a camada social que recebeu dire­ tamente esta mensagem, composta por homens cujos referenciais de valor resi­ diam quase que somente no confronto pessoal em que a violência era decisiva. Outro ponto a considerar é o igualitarismo da pregação protestante que afirma serem todos os homens iguais perante Deus em virtude da universa­ lidade do pecado92. Embora os protestantes aprçsentassem esta mensagem, é bem possível que não estivessem pensando em mudar a ordem social no sen­ tido de qualquer forma de nivelamento, mas na aceitação do “status quo” com a consolação de que na vida futura todos seriam iguais e, ainda que as posições atuais de nada adiantariam na hora do julgamento final93. A doutrina da salvação pela fé e pela graça, ponto fundamental da Reforma, é básica na mensagem protestante. Ao contrário da Igreja Cató­ lica, que ensina serem as obras pias fundamentais para a salvação, cuja interme­ diária é a Igreja, a pregação protestante afirma que a salvação é uma decisão individual oriunda da responsabilidade exclusiva do indivíduo perante Deus e não depende de nenhum ato moral e nem de ofertas votivas ou filantrópicas94. A salvação é gratuita pela fé no ato expiatório de Jesus Cristo. O voluntarismo individualista, presente na teologia dos missionários, foi um produto relativamente tardio de Reforma Calvinista. Esta questão já foi discutida no capítulo 2 e será retomada no capítulo 6 deste trabalho. O protestantismo se apresenta, ainda, como uma visão maniqueísta do mundo. O mundo presente é mau e o homem nele luta e sofre como um 91 É conveniente lembrar que o individualismo se afastava do calvinismo, que ensinava que Deus elege e chama alguns para construir a Igreja. Sobre esta questão ver Graham, Richard, 1973, cap. 10. 92 “Todos pecaram e carecem da Glória de Deus” — Epístola de S. Paulo aos Romanos, 3,23. 93 Notar as palavras deste hino de João Gomes da Rocha, Salmos e Hinos, n.° 280 (edição de 1899): O mundo e os vãos prazeres murcharão A morte e o véu, e o juízo eterno vem; Desperta, pois, e atende o coração À voz do Espírito teu Sumo Bem. Estas de H. Maxwell Wright, idem n.° 505: ó buscai não as riquezas Deste mundo de incertezas, As do céu não tem tristezas... 94 Este hino de Kalley, Salmos e Hinos, 1899, n.° 182: Nada de bom se acha em mim, Dos meus esforços breve há fim, Mas, salva-me, Jesus, e assim, Oh! toma-me como estou! “Pois, se não podeis chegar a Jesus Cristo como cortesãos, vestidos com a justiça e as boas obras, deveis chegar como mendigos, vestidos com os andrajos do pecado. A causa principal é chegar. O rei está pronto a receber tanto a um como a outro” (Rev. D.M. Hazlett, Sermões Evangélicos, vol. I, Rio de Janeiro, 1879 — Coleção do Rev. Vicente Themudo Lessa, vol. 44).

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peregrino até chegar a uma terra feliz, e este final venturoso depende da forma de vida que ele escolher95. A idéia de peregrinação foi sempre, sem dúvida, um patrimônio comum das denominações protestantes no Brasil, pelo menos das de origem missionária96. Por essa doutrina, o indivíduo é levado a conformar-se com sua situação penosa atual, uma vez que a sua permanência nela é efêmera em comparação com a feliz eternidade futura97. Uma visão coerente da história é patrimônio de todo o cristianismo. O catolicismo rústico brasileiro, apesar de sua propensão para movimentos milenaristas, o que à primeira vista pode sugerir alguma visão sobre o desenrolar da história, aparentemente não desenvolveu algo de significativo nesse sentido. Esta questão de mentalidade milenarista será discutida mais adiante, no capí­ tulo 7. O protestantismo, porém, mais discursivo e intelectualizado, buscou desde logo um tempo histórico estruturado em torno de suas doutrinas do pecado e da salvação. O mundo é apresentado como originalmente bom e logo depois desordenado e corrompido pelo pecado para aguardar, em sofri­ mento e com resignação, sua regeneração futura e eterna. Esta visão do mundo inserido num tempo linear de três épocas contém a parte fundamental da doutrina cristã e aparece com clareza na mensagem protestante em que o fiel, como colaborador de Deus, empenha-se e espera pela vinda do mundo rege­ nerado em que ele, assim como todos os fiéis, será feliz. Esse mundo novo, a-histórico, colocado além do tempo, às vezes parece confuso ao entrecruzar-se com idéias divergentes, ao introduzir noções de espaço vertical, como a do universo clássico de três andares: céu, terra e inferno. Aqui, o mundo intemporal e feliz confunde-se com um lugar no céu. De qualquer modo, tanto um como outro significa negação do presente estado de coisas, o mundo da história. Ao morrer, o fiel tem garantido um lugar no céu e, após o grande julgamento, viverá no mundo perfeito e eterno. Apesar disso, a noção de tempo se superpõe à de espaço porque afinal sobrevirá um tempo a-histórico para substituir o presente. O lugar no céu-espaço — acaba cedendo ensejo a um não-tempo 95

Palavras de Ricardo Holden, Salmos e Hinos, 1899, n.° 472: Peregrino aqui no mundo, vou para Deus! Tudo, tudo é moribundo, vou para Deus! Nada pode aqui valer-me, Nada aqui satisfazer-me, Nada deve, pois deter-me: vou para Deus!

96 Robert R. Kalley, logo após chegar ao Brasil em 1855, traduziu o Pilgrim’s Progress, de John Bunyan, e publicou-o em série num dos jornais do Rio de Janeiro (Richard Graham, 1973, p. 297). Simonton, do mesmo modo, na primeira Escola Dominical que reuniu no Rio de Janeiro, em 22/4/1860, tendo presentes, entre outras pessoas, os filhos de Ewbank, usou como um dos textos, o mesmo Pilgrim’s Progress. (Simonton, 1962, p. 68). Não se sabe muita coisa sobre este Ewbank. Ribeiro, Boanerges desconfia ser ele irmão de Thomas Ewbank, autor de “A Vida no Brasil” (1981, pp. 172/73). 97 Hino traduzido por John Boyle, 1888; Salmos e Hinos, 1899, n.° 474: Pela fé avistamos além Uma terra que brilha em fulgor! Nas moradas de Jerusalém Um lugar nos prepara o Senhor! Sim, no doce porvir, viveremos no lindo país.

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porque o céu significa eternidade. De modo que o conceito de tempo pre­ valece sobre o de espaço. Mas o caminhar da história desembocará também num outro mundo intemporal, mas de eterno sofrimento, para o qual, após o grande julgamento, o infiel será enviado. A história, no seu desenlace, se bifurcará. Cabe ao indivíduo escolher desde agora o caminho que quer seguir: aceitar este mundo com seus prazeres temporais e entrar, após, num outro de sofrimentos eternos ou negar este com seus atrativos efêmeros e gozar eter­ namente no porvir. A escolha é individual, de modo que cada um participa livremente da escolha de seu destino eterno. Mas como este mundo é mau para o fiel, a história deve ser abreviada; para isso, o fiel colabora porfiando na propagação da fé numa verdadeira guerra contra o mal em que o crente se alista como soldado98. O mundo protestante é um mundo dual. É um tempo dual; tempo sagrado e tempo profano. O fiel vive a sua fé em atos que se realizam no tempo, suas devoções não estão ligadas ao espaço; qualquer lugar é adequado e sagrado para as suas devoções pessoais ou coletivas. Seus atos, sua ética, ao negarem os dos infiéis, constroem um outro tempo que é aquele em que ele vive. O tempo intemporal, a-histórico do futuro, é também dual: o de felicidade eterna e o de sofrimento eterno. Creio ter mostrado como a mensagem protestante tem uma vigorosa coerência interna que estrutura a realidade e apresenta com clareza ao indivíduo, para que ele escolha a forma de se inserir nessa realidade. E mais, que nessa mensagem, o tempo se superpõe ao espaço e que a relação do fiel com o sagrado é ética e não utilitária. Negando o tempo presente de prazeres o seu prêmio consistirá, não em retribuições efêmeras, mas na aquisição de um nãotempo futuro de felicidade. A mensagem protestante proporciona ao fiel, como conseqüência dessa estruturação da realidade, normas de vida que o orientam de modo seguro. É espiritual, isto é, transcendente e pragmática ao mesmo tempo. Se o crente está neste mundo e aqui tem de viver enquanto aguarda a irrupção de outro melhor, deve fazê-lo de acordo com certas regras que tendem a caracterizá-lo como um inconformado com o atual arranjo das coisas, de modo que suas ações são inconformistas. Este é um dos estranhos paradoxos do protestantis­ mo: sua maneira de viver é inconformista diante da sociedade mais ampla, mas nada faz para mudá-la como um todo. Antes, despreza-a e dela procura afastar-se. Nisto se resume todo o seu inconformismo. Há um amplo confor­ mismo e um inconformismo particular interno. Se o crente está na luta ao lado de Deus, tem de agir segundo os seus mandamentos: guardar o domingo, não matar, não roubar, não adulterar, não mentir, não beber, fugir dos pra98 Hino de Domingos J. Ferreira, 1902, Salmos e Hinos, 1916, n.° 524: Campeões da peleja sagrada! O clarim chama à luta os fiéis! Vamos nesta arena bendita Conquistar os vistosos lauréis!

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zeres, não ser ocioso". Enquanto ele se esforça por viver em conformidade com essas regras que colidem, na prática, com a sociedade abrangente, ele é inconformista; mas como está interessado num mundo que ainda está por vir, desinteressa-se pelo presente e nada intenta para modificá-lo e, neste sentido, é conformista. Assim, é inconformista e conformista, ao mesmo tempo. Em resumo, a teodicéia protestante é radicalmente transcendentalista na relação do fiel com o sagrado. A sua interpretação do cristianismo, a partir da dicotomia estabelecida por Lepargneur,100 é predominantemente a de uma religião de salvação; a salvação é gratuita através de uma concessão soberana de Deus aceita pelo fiel através da fé que consiste num ato individual e voluntário. É solidamente cristológica; Cristo, além de exercer a função de único mediador entre o fiel e Deus, no protestantismo brasileiro, como tentarei mostrar mais adiante, chega a incorporar as três pessoas da Trindade. A visão da história aparece bem estruturada no sentido linear, e o seu caminhar ganha sentido pelo implícito maniqueísmo muito bem elaborado no seu interior. Por fim, a relação do fiel com o sagrado dá-se no plano estritamente individual; as relações entre as pessoas, no plano religioso, são igualitárias porque as posições e bs haveres não contam na relação fiel-sagrado.

3 . TEODICÉIAS EM CONFRONTO

A apresentação da mensagem protestante à camada de homens livres e pobres do mundo rural brasileiro do século XIX provocou, sem dúvida, um confronto de teodicéias: a católica, na sua variante popular, e a protestante, na sua versão missionária selecionada e reinterpretada pelo receptor da mensagem. O protestantismo despojou-se de três concomitantes mais antigos do sagrado: o mistério, o milagre e a magia. Este “desencantamento do mundo”101 tomou a mensagem, assim como o seu culto, extremamente simples. Acompa­ nhando a forma como Peter Berger compara a teodicéia protestante e a católica, sob o ponto de vista estritamente sociológico, o protestantismo cons­ tituiu-se num empobrecimento do cristianismo quando comparado com o ca­ tolicismo. No protestantismo, a projeção de uma divindade radicalmente trans­ cendente e de uma humanidade radicalmente decaída estabeleceu um vácuo intermediário, um vazio também radical. O único canal que perpassa esse vazio para estabelecer ligação entre o homem e o sagrado é a graça que se objetiva 99 São conhecidos os trabalhos de Max Weber sobre a ética protestante do trabalho. 100 Lepargneur, Hubert, in Boff, Leonardo e outros, 1974, p. 68. 101 Berger, Peter, 1971, p. 140. O pano de fundo desta projeção de Peter Berger está em Max Weber, na sua análise da tensão entre a religião e o conhecimento intelectual. Weber, Max, 1974, pp. 400ss.

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na “Palavra de Deus”. A graça, diz Peter Berger, é o único e verdadeiro milagre protestante. O mundo em que o protestante vive é um mundo desen­ cantado. Por outro lado, para o católico, a divindade não é tão radicalmente trans­ cendente e a humanidade não é tão radicalmente decaída. A distância entre Deus e os homens não é tão longa; entre eles há uma variedade de canais de comunicação. “O católico vive num mundo em que o sagrado chega a ele através de toda uma variedade de canais — os sacramentos da Igreja, a intercessão dos santos, a recorrente irrupção do ‘sobrenatural’ nos milagres etc. — entre o visível e o invisível há uma vasta continuidade”,va O mundo do católico, na sua versão popular pelo menos, é um mágico, povoado de santos, anjos e milagres, e de mistérios como os sacramentos, a missa principalmente. Há lugar, também, para seres maléficos e perturbadores. Tanto o catolicismo quanto o protestantismo, versões do cristianismo, são religiões de salvação. No entanto, pelo menos no plano popular de que estou falando, a religião santorial do catolicismo transforma a salvação prin­ cipalmente num jogo com os poderes e canais à sua disposição para vencer os poderes maléficos. O católico não se conforma com as situações ruins; ele manipula, num plano quase de igualdade, os poderes que ocupam o espaço entre ele e o sagrado. Embora não descarte a idéia de “outro mundo” (in­ ferno e paraíso), parece ele valorizar o mundo presente; os prazeres e alegrias não lhe estão vedados. Se cometer excessos, os santos estão aí para ajustar as coisas. Talvez seja por isso que os movimentos messiânicos católicos freqüen­ temente assumem uma forma revolucionária, o que ocorre quando os desa­ justes e conflitos sociais são tão grandes que ultrapassam a manipulação cotidiana dos poderes à disposição. No protestantismo parece que Jesus Cristo incorpora as atribuições dos santos no sentido de se constituir na única instân­ cia de apelação nas emergências existenciais. Mas como Jesus se confunde com o transcendente radical, a distância embora amenizada, continua. Assim, a solução dos males presentes é projetada para o além, um mundo em que tudo é possível uma vez que se trata de um mundo invertido em relação a este. Mais uma vez se vê a simplicidade do protestantismo em relação ao catolicismo. Jesus soma todas as funções dos santos e reúne, num único, a multiplicidade de cultos. O catolicismo popular não descarta a oposição entre poderes benéficos e maléficos. Mas a sua prática religiosa que lhe permite, de certo modo, manipular esses poderes, atenua bastante o que se poderia chamar de maniqueísmo. No protestantismo, ao contrário, essa oposição é cósmica e, portanto, distante dele. Sua participação situa-se no plano da resistência aos poderes malignos através da ética e do esforço pela propagação do bem. A regra, no 102 Berger, Peter, 1971, p. 140.

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protestantismo, diante da expectação da vitória final do bem num embate cósmico, é a formação de uma mentalidade messiânica passiva. Até aqui tentei mostrar as distinções que se podem encontrar entre ambas as teodicéias. Entendo que a distinção mais significativa, até este ponto, reside no comportamento do católico e do protestante a respeito do mundo. Ê claro que esse comportamento decorre das teodicéias correspondentes, mas é im­ portante para compreender-se o encaminhamento do protestantismo na his­ tória do Brasil. Agora algumas questões correlatas. A pregação do protestantismo continha um elemento importante: o individualismo. A aceitação e a prática de uma religião dependia de uma decisão individual. Ora, no catolicismo popular embo­ ra o coletivo não deixe de estar presente nas ocasiões especiais, como nas festas, romarias e reuniões em torno da capela, o culto propriamente é privado, a devoção ao santo nas suas várias formas é individual103. Por outro lado, os antecedentes políticos do protestantismo davam-lhe um caráter igualitarista, justificado teologicamente pelo texto bíblico “Todos pecaram e carecem da glória de Deus”104. Ora, a contínua ameaça de expropriação religiosa fazia com que o homem pobre sentisse na própria pele o mundo desigual em que vivia105. Pode ser que o igualitarismo protestante fosse uma mensagem religiosa que fizesse eco, de um lado à própria situação de igualdade social do homem pobre; e de outro lado, à resistência dele à expropriação religiosa em favor do sistema de dominação. Benedetti entende que a instituição católica do compadrio, embora constituísse um mecanismo de igualização, só conseguia revestir de caráter religioso as relações assimétricas entre senhores e depen­ dentes106. Se está certa a colocação feita sobre o igualitarismo protestante, pode-se entender melhor o esvaziamento que ele fez da instituição do compadrio. Por último, a questão da itinerância. O sagrado protestante, radicalmente transcendente, não estava sujeito ao espaço. O seu espaço era o espaço ocupado pelo fiel. De modo que os indivíduos ou grupos imigravam sem preocupação com os “lugares dos deuses”. A igreja migrava, os pastores itineravam. O Deus protestante, embora estabelecido, nada tinha a ver com o nomadismo do homem pobre. O católico migrava e com ele os seus deuses. Sagrado e fiel itineravam. Os padres, como os pastores, também eram itinerantes. De modo que, estabelecidas as necessárias nuanças, o catolicismo e o protestantismo do homem pobre eram nômades107. 103 Oliveira, Pedro A.R. 1975, p. 6. 104 Epístola de S. Paulo aos Romanos, 3,23. 105 Benedetti, Luiz Roberto, 1981. 106 Ibidem, p. 60. 107 Esta comparação tem como ponto de partida as colocações de Benedetti, Luiz Roberto, 1981.

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a) Prós e contras; uma balança viciada Feito o confronto das duas teodicéias, cabe agora tentar verificar como a protestante conseguiu vencer o bloqueio de uma teodicéia estabelecida há séculos, componente vigoroso da cultura de todas as camadas sociais. Ela, a teodicéia protestante, encontrou naturalmente os interstícios, os espaços através dos quais se inseriu. O protestantismo não mudou o colorido e muito menos fissurou a cultura brasileira. Embora o confronto de teodicéias possa significar mudanças sensíveis naquela já estabelecida com as conseqüentes mudanças sociais, sendo isto empiricamente verificável, o inverso também pode ocorrer, isto é, que as mudanças sociais estruturais podem alterar as idéias religiosas108. Isto se insere na questão “bergeriana” da plausibilidade de uma determinada teodicéia. Embora Peter Berger conduza sua análise da relação dialética entre religião e sociedade na direção da compreensão do fenômeno da secularização, em que a credibilidade da religião é progressivamente posta em xeque, ela é importante para a percepção do confronto protestantismo-catolicismo ao nível das respectivas crenças. Realmente o confronto não foi no sentido de uma opção radical. A men­ sagem protestante veio na forma de uma nova proposta que, dadas as condições já descritas da camada social que a recebeu, oferecia alternativas plausíveis, Janto ao nível das crenças como ao das condições de existência. Vou tentar mostrar, em seguida, como isto se deu no interior da camada social dos homens livres e pobres. Mais adiante, como a classe dominante da burguesia rural, não opôs resistência à nova religião. Em primeiro lugar, a mensagem protestante encontrou um espaço religioso rarefeito. A população pobre do mundo rural era esparsa pela vastidão do território, formando núcleos distantes uns dos outros. As distâncias entre esses núcleos e a precariedade dos meios de comunicação faziam com que fossem praticamente auto-suficientes. À rarefação da população seguia-se o seu nomadismo. Fator e motivos destas afirmações têm sido muito estudados e aceitos de modo que é possível designar como rarefeito o campo religioso do homem livre e pobre da população rural. Núcleos pequenos, distantes e extremamente móveis, eram precariamente alcançados pelos agentes da religião oficial, e isto abria espaço para uma autogestão religiosa, uma autonomia no campo religioso que podia muito bem abrir brechas para outras formas de pensar religioso. Em segundo lugar, acompanhando a pesquisa de Benedetti sobre o campo religioso de Campinas109, é possível que o constante temor dos sitiantes diante da expropriação religiosa a que estavam sujeitos, uma vez que ela acompanhava a expropriação de seus domínios, abrisse campo para o rompimento com a sua religião, pelo menos no nível do inconsciente. É claro que a expropriação simbólica ocorria do mesmo modo, não sendo necessário dizer o mesmo sobre a terra. É uma hipótese sugestiva esta de uma forma impotente de reação. 108 Berger, Peter, 1971, p. 158. 109 Benedetti, Luiz Roberto, 1981.

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Em terceiro lugar, a presença do padre, representante do poder dominante, ora ele mesmo senhor de terras, ora como expropriador do simbólico, não era simpática ao sitiante. Daí a preferência deles por capelas em que a presença do padre era esporádica, só por ocasião das desobrigas ou dos ritos da vida e da morte. Este fator pode ter aberto pequenos espaços para o missionário ou o pastor protestante. Eles, pelo menos aparentemente, estavam muito longe daquilo que o padre representava como agente expropriador. A começar pelos trajes deles que, embora citadinos, não eram clericais; por outro lado, sendo estrangeiros na maior parte e morando nos centros urbanos mais adiantados e distantes, não estabeleciam relação visível com os grandes senhores de terras"0. O missionário e o pastor nacional, ao contrário do padre, hospeda­ vam-se nas casas humildes de seus paroquianos, comiam à mesa deles, tomando vivo o princípio do igualitarismo. “O caminho era esse: ir à casa deles; entrar; ler a Bíblia, explicá-la; orar com eles, e por eles, inclusive por sua conversão. Identificar-se com eles, comer sua comida, dormir em seus catres ou no chão, em couros curtidos. Aprender a lhes querer bem; ir-se embora com sau­ dades”. "°b Em quarto lugar, a pobreza do homem livre pode ter sido um interstício significativo para a opção pela forma de vida religiosa protestante. Nos vários estudiosos do catolicismo popular encontram-se referências aos gastos que os fiéis tinham de fazer no cotidiano religioso, desde o cumprimento de suas devoções e penitências, a participação nas festas comunitárias, até a construção e manutenção de capelas que era, regra geral, como diz Benedetti, o anseio mais elevado deles. Isto para não ir até a manutenção das igrejas com padre fixo o que parece, segundo o mesmo autor, uma das preocupações dos sitian­ tes pobres. O culto protestante não exigia nem capela, aliás, elas não podiam mesmo ser feitas por causa das leis que regulavam os cultos não católicos. O . culto protestante realizava-se em qualquer lugar: na sala de um dos membros da comunidade do bairro, ou mesmo sob um coberto ou uma árvore. Assim, imagina Boanerges Ribeiro, a cena da organização da Igreja Presbiteriana de Brotas (13/11/1865): “Na sala de chão batido, bancos toscos alinhados. Atrás da mesinha, o ex-padre, comovido e atento, e Blackford de pé. Caras curiosas pelas janelas. Um ou outro raio de sol vence o sapé do teto e infiltra-se, numa fita longa e cinzenta. Levantam-se o s . . . , desajeitados, sérios, as mulheres muito acanhadas, com esse andar anguloso de gente da roça. Blackford os batiza. . 110 Ribeiro, Boanerges, 1981, p. 101. 110b Ibidem, p. 95. 111 Ribeiro, Boanerges, 1950, p. 129. O ex-padre aí referido era José Manuel da Conceição, ordenado pastor presbiteriano em 17/12/1865.

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Essa descrição corresponde às que se encontram nos relatos dos missio­ nários e quase todos os protestantes sabem como ela é verdadeira. Nenhum material litúrgico. Nada que significasse despesas a não ser a hospedagem dos missionários e pastores, muito espaçadas. Há registros de que nas permanências mais longas eles alugavam casa para si mesmos, proviam suas próprias despe­ sas. Os proventos deles vinham das missões estrangeiras. O sistema continuou ainda durante muito tempo até que os protestantes começassem a contribuir para o culto. Mas no início a nova religião nada exigia de seus parcos recursos, o que podia, entre outros, ser um fator de atração. Em quinto e último lugar, o nomadismo para o protestante podia ser ainda mais simples do que para o católico. Embora reconhecendo que teorica­ mente a hipótese seja de consistência duvidosa, ela pode ser adicionada às demais como, pelo menos, uma tentativa de explicação a mais. Os santos do catolicismo popular estão muito ligados ao espaço; há um momento qualquer marcado por um evento qualquer que liga um determinado santo a um deter­ minado espaço. Isto ocorre no catolicismo popular embora, quase sempre, e posteriormente, a religião oficial acabe sancionando essa espacialização do sagrado. Quando isso ocorre com os santos de “aliança”, a que se refere Pedro A. R. de Oliveira112, os seus fiéis são obrigados a cumprir seus deveres de devoção para com eles através de penosas e dispendiosas caminhadas. É verdade, como demonstra Benedetti, que os santos acompanham o nomadismo de seus fiéis, mas a tendência do catolicismo é a sacralização do espaço e o processo de expropriação religiosa que persegue tenazmente o sitiante pobre, acaba introduzindo um elemento a mais na perturbação de seu campo religioso. Parece que, mais uma vez, a opção da teodicéia protestante pode se tornar atraente por ser ela desligada do espaço. O protestante emigra e onde ele se estabelecer o seu Deus lá está. Ou melhor, já lá estava. Nada tem de levar consigo e nem voltar ao encontro de seu santo que se fixou ao espaço que para trás ficou. Como já disse, pode esta razão não ser crucial, mas se cons­ titui num interstício, por mais estreito que fosse, oferecido à mensagem e à prática religiosa protestante. Em resumo, o campo religioso rarefeito, o temor constante da expropria­ ção religiosa, a recusa do padre como sinal dessa expropriação, a pobreza do receptor da mensagem protestante e, finalmente, o nomadismo religioso que parecia oferecer nuanças de vantagem ao protestantismo, afiguram-se ter sido as pequenas brechas através das quais, o protestantismo penetrou na camada livre e pobre da população rural113. No jogo dos prós e contras estabelecido pelo confronto das teodicéias protestante e católica pode se insinuar a idéia de equilíbrio de forças, e mesmo de um certo favoritismo para o protestantismo. Mas a balança estava viciada. Havia poderosas resistências à implantação do protestantismo que, se não forem percebidas, deixarão no ar questões fundamentais a respeito da presença do 112 Oliveira, Pedro, A.R. 1975. 113 Ao encerrar esta análise do campo religioso do homem pobre quero registrar a dívida que tenho para com Luiz Roberto Benedetti para a compreensão do catolicismo popular.

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protestantismo no Brasil. Por isso, na falta de uma balança de precisão, é necessário, pelo menos, ter uma bem aferida e não esquecer de colocar no prato nenhum dos pesos. Essas forças de resistência ao protestantismo são de duas naturezas: uma interna, isto é, componente da própria mensagem protestante, e outra externa, quer dizer, componente do meio que a recebeu. Essas forças conju­ gadas é que viciam a balança, uma vez que a teodicéia protestante parecia ter tão boas razões de plausibilidade quanto a católica. Pode parecer contraditório afirmar que o protestantismo resiste-se a si mesmo. Mas essa contradição está na sua natureza e tende a se tornar mais ou menos poderosa em suas áreas de missão, principalmente em países tradicio­ nalmente católicos. Isto porque as respectivas teodicéias não oferecem oposição tão radicais como regra geral se pensa e como já tentei mostrar; e as razões de opção entre uma e outra podem ficar um tanto diluídas o que, provavel­ mente, não acontece em áreas de missão ocupadas por religiões não-cristãs em que a opção é radical. A dificuldade de natureza interna que o protestantismo tem para penetrar em áreas de cultura católica oferece dois aspectos. O primeiro é o seu excessivo institucionalismo e o segundo é o seu intelectualismo. O excesso institucional protestante começou com a sua implantação nos Estados Unidos, mas o em­ brião já surgira nas igrejas livres da Inglaterra nas lutas eclesiásticas de pósReforma. O excesso institucional a que me estou referindo é a constituição de igrejas autônomas por associação voluntária por oposição ao universalismo da Igreja Anglicana. O rito de ingresso nas igrejas livres era mais rigoroso e os membros eram inscritos no livro de rol. O denominacionalismo americano parece ter reforçado essas exigências diante da necessidade de auto-identificação por causa da concorrência entre as denominações. Ora, num país católico como o Brasil a religião era oficial e universal. Os meios de rompimento com ela eram escassos e o rigor institucional protestante, como se comprova pelos documentos existentes, tornou-se muito apurado. Os que iam simpatizando com a “nova religião” eram observados por algum tempo para que as evidências de sua nova fé pudessem ser patenteadas, após o que eram submetidos a exames de experiência e conhecimentos religiosos. Muitos candidatos eram reprovados apesar do desejo natural de aumentar constantemente as fileiras de adeptos. O ingresso do neófito, após a sua aprovação, implicava em compromissos for­ mais e públicos perante a congregação reunida de assumir um comportamento que evidenciasse, diante da sociedade mais ampla, a sua nova opção religiosa. Daí por diante estaria sujeito a uma disciplina rigorosa exercida pela própria comunidade a que passara a pertencer. O ingresso numa igreja protestante significa o rompimento com a cultura, às vezes até com laços familiares114. 114 Os livros de Atas das igrejas presbiterianas atestam a disciplina rigorosa a que estavam submetidos os fiéis. No Livro da Igreja Presbiteriana do Rio Novo lê-se que, em 13/3/1887, foi suspenso da comunhão, Ananias Dias da Costa por “crimes de fomicação e embriagues” (Livro n.° 1, fls. 42). No Livro de Atas da Igreja Presbiteriana da Faxina (Itapeva-SP), lê-se que Paula Augusta de Souza foi “suspensa da comunhão da igreja indefinidamente e de todos os privilégios da Igreja por ter confessadamente quebrado o Sétimo Mandamento do Decálogo”

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O protestantismo, apesar de estar se esforçando por penetrar numa camada da sociedade brasileira caracterizada pelo analfabetismo, única via que lhe era oferecida, parece não ter em momento algum aberto mão de seu intelectualismo. Tanto não abriu que se esforçou por criar condições pró­ prias para introduzir-se, expandir-se e permanecer. Já procurei mostrar que uma de suas estratégias foi a educação por intermédio de escolas paroquiais. Apesar de ser este um aspecto muito positivo do protestantismo tendo em vista o serviço que prestou à uma coletividade praticamente à margem do sistema e, conseqüentemente da educação, pode ter sido nos primeiros tempos sério entrave para o aumento quantitativo de seus adeptos uma vez que as adesões eram de adultos e eles ainda não tinham tido acesso à alfabetização. O culto protestante não inclui o gesto e a imagem, não oferece o apoio do sensível: ele é discursivo e racional, mais uma aula do que um encontro com o sagrado. O pequeno espaço reservado à emoção corre por conta do cântico congregacional, mas os hinos também são discursos. De modo que a partici­ pação no culto protestante exige um significativo domínio da linguagem. Por outro lado, as provas de ingresso no rol de membros incluíam conhecimentos bíblicos que pressupunham leitura ou pelo menos a memorização de questões essenciais obtidas pelo ouvir. Mas ler a Bíblia fazia parte do essencial do cotidiano protestante. Daí, exigir-se conhecimentos bíblicos, tanto no rito de admissão como no do batismo de crianças em que os pais se comprometiam solenemente a “ler a bíblia com os seus filhos'15. Daí ser possível afirmar que um dos traços mais louvados do protestantismo pode ter sido no Brasil um componente negativo dadas as condições sociais que enfrentou, no momento de sua implantação. A dificuldade de natureza externa que o protestantismo teve para penetrar foi apresentar-se como uma contracultura. Ao exigir de seus adeptos comporta­ mento radicalmente diferenciado das normas de conduta usualmente aceitas não somente afastou a maior parte dos possíveis simpatizantes mas provocou reação por parte da sociedade mais ampla. Vou considerar aqui dois aspectos desta questão: primeiro, o rompimento com o lazer e com o lúdico e, segundo, a sua ética. É claro que a quebra do lazer e do lúdico e a ética são verso e reverso de uma mesma moeda. O que desejo considerar aqui, porém, é a resistência da cultura estabelecida que isolou, naturàlmente, os grupos pro­ testantes, não lhes oferecendo espaços para a convivência do cotidiano. As oportunidades de convivência daquela população rarefeita ocorriam nos dias de lazer, domingos e dias santos e no trabalho comunitário como os (Livro n.° I, folhas 48, 1887). Trata-se de adultério. A Ata do dia 10/4/1888, do mesmo Livro, fls. 63, registra o fato muito curioso de que Luís Antonio de Ávila, não tendo cumprido sua promessa de deixar a profissão militar e continuando, portanto, a violar o Quarto Mandamento, foi suspenso da comunhão da Igreja por tempo indeterminado. O Quarto Mandamento refere-se à guarda do domingo. Naturalmente, por ser militar, o acusado não podia deixar de trabalhar aos domingos. 115 Nas referidas atas da Igreja Presbiteriana do Rio Novo-SP encontram-se registros como este: “Foram examinadas Sebastiana Maria Gertrudes e Rita de Camargo, mas não foram recebidas por não terem ainda o necessário conhecimento.” (Livro 1, Ata de 23/4/1882).

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mutirões. A convivência nestas situações era colorida pelo lúdico; festas na capela, jogos de cartas, de malha e outras competições. Ora, além da tradição protestante repelir o ócio, negava-se a respeitar os dias santos porque estavam ligados à religião que haviam repudiado, e a desrespeitar o domingo que era o seu dia de guarda preceitual116. Os mutirões, exemplos típicos do trabalho comunitário do homem livre e pobre, eram motivos para festas após o dia de labor, com o correspondente consumo de bebidas alcoólicas. Os mutirões constituíam as melhores ocasiões para a violência, tanto pela competição pessoal que ensejavam, como pela ingestão de álcool. Ora, o protestante era contra o álcool e contra a violência, o que podia afastá-lo das oportunidades de traba­ lho comunitário117. A recusa do lúdico por parte do protestante não se limitava, porém, aos aspectos da abstinência do álcool e do repúdio à violência; a festa no seu todo, a dança118 e o cântico eram signos do profano. O profano não podia ocupar o tempo do protestante; o tempo protestante é um tempo inteiramente sagrado. A ética protestante, restritiva e severa em todos os aspectos da vida, concorria como elemento fortemente diferenciador e identificador do grupo e do indivíduo na sociedade abrangente. A ética protestante parece ter forne­ cido aos grupos que o aceitaram um forte elemento de coesão, organização e identificação social, um sub-sistema mais ou menos diferenciado do sistema vigente. A ética do protestantismo não traz em si nenhuma novidade para os que conhecem os trabalhos de Max Weber, mas o que me parece muito suges­ tivo é que no Brasil essa ética parece sugerir uma certa assimetria com a teodicéia proposta. O transcendentalismo radical assim como a corresponderite e também radical idéia de desvalorização do homem, produz um vazio histó­ rico. Ò mundo histórico do cotidianQ não vale, é efêmero e ilusório. Ora, isto deveria ter como correspondente um abandono total, uma fuga geográfica. Mas a teodicéia protestante, cuja transcendental radicalização teve conseqüên­ cias muito importantes no Brasil como tentarei mostrar nos capítulos poste­ riores, contentou-se com a sua ética tradicional que, nas suas origens européias, foi vista como um poder suficiente para alterar estruturas sociais. O confronto de teodicéias entre o catolicismo rústico e o protestantismo, que me parece não ter sido uma opção radical ao nível das crenças, não podia deixar de se constituir em visões diferenciadas do mundo: o mundo mais ou menos mágico do católico, em que os problemas do cotidiano eram solucionados na base das trocas simbólicas do dar e receber, ajustes imediatos sem maior 116 No mesmo livro de atas, citado na nota 115, está registrado que um adepto foi suspenso da comunhão porque “entregava-se a passeios aos domingos, não indo aos cultos” (Ata de 15/11/1880). 117 Willems, Emílio, 1947, pp. 30-40, entende que o comportamento dos protestantes metodistas dos bairros de Cunha com respeito aos mutirões concorria para a desorganização social tendo em vista a alteração de relações vicinais básicas. 118 O autor deste trabalho lembra-se de ter assistido a festas de casamento em que se dançou o cateretê. Isso parece significar que a razão principal da intolerância ao baile era a promiscuidade de sexos, o que não ocorre no cateretê.

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preocupação com a totalidade do real, não era o mesmo mundo do protestan­ te em que os ajustes entre as forças do bem e do mal se apresentavam com dimensões cósmicas, muito além da capacidade humana de participação. O campo religioso bifurcava-se em dois discursos diferentes em que o protestante via-se, de repente, num mundo desarticulado, “anomizado”. A urgência de restabelecer o “nomos” tem sua correspondência na construção de uma ética que insira o indivíduo numa ordem que reproduza a ordem cósmica119. Assim, a ética do protestante brasileiro surge nele como normas valorizadoras da vida e do mundo quando a sua teodicéia parece conduzir ao oposto. No contexto da mensagem protestante a sua ética surge como normas do provisório, como modo de vida da espera e da recusa, da desqualificação do mundo. Num universo pouco coeso socialmente, regulado por normas frágeis e cujo traço principal era a violência como força reguladora das relações entre os grupos e indivíduos, os protestantes se propuseram a seguir um ética que os afastou radicalmente do universo em que viviam. O melhor exemplo, e já clássico entre os protestantes, são as normas de vida que um sitiante e líder leigo de um grupo de protestantes em Minas fez circular entre os adeptos (“Recomendações aos Crentes”): 1. O crente não pode ficar ocioso, nem mesmo uma hora por semana. Se ficar estará perdendo tempo e roubando o sustento de sua família. 2 . O crente deve ter uma casa limpa, mesmo que ela seja um rancho. Ele também deve ser limpo. Jesus ama o pobre mas condena a preguiça. 3 . O crente não mente. Isso é condenável. 4 . 0 crente não faz dívidas. Não pagar ê roubar. 5 . O crente não é triste. Ele é o templo de Deus. 6 . O crente não é fanático, mas com amor procurará atrair os pe­ cadores aos pés de Jesus. 7. O crente não deixa de pagar impostos, mesmo que eles sejam pe­ sados. 8 . O crente não leva arma quando vai ao culto.'20 Não é difícil perceber como essas normas de vida deviam soar estranhas no universo cultural em que o protestantismo se introduziu. A recusa na dia­ lética religião-sociedade foi seguramente mútua, embora isso não signifique que os protestantes não tenham pela austeridade de vida que sustentavam, gozado de certa admiração e respeito. 119 Berger, Peter, 1$71: “ . . . esta realidade dirige-se a ele e insere sua vida numa ordem que possui uma significação última”, p. 41. 120 Chaves, Maria de Melo, Bandeirantes da Fé, apud Pierson. Paul, 1974, p. 104. Como, infelizmente, não tive acesso ao livro de Maria de Melo Chaves, muito conhecido e citado, não houve alternativa a não ser reverter do inglês ao português a citação de Paul Pierson.

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A institucionalização excessiva, com suas exigências e obrigações, assim como o intelectualismo, limitaram, sem dúvida, o ingresso de adeptos no pro­ testantismo. A sua ética muito distanciada dos padrões vigentes na sociedade brasileira fizeram do protestantismo uma contracultura. Os protestantes acaba­ ram se circunscrevendo a grupos pequenos, fechados. Para o católico, o pro­ testante era ou outro, o de fora. E vice-versa. Por isso, no confronto de teodicéias a balança estava viciada.

b) Gente esquisita mas simpática Na parte introdutória deste capítulo mostrei como a sociedade brasileira, apesar das restrições de ordem legal, política e ideológica, oferecia flancos para a inserção do protestantismo. Nas partes subseqüentes desenvolvi a idéia de que, como religião, o protestantismo só encontrou espaço para a sua inserção na camada livre e pobre da população rural dadas as suas condições de vida e as características do seu campo religioso. Mas, se nos altos escalões da vida nacional o protestantismo encontrava aqui e ali áreas de simpatia, resta ver o que ocorreu entre os protestantes e a burguesia rural, cujo contato foi mais direto. Sem dúvida, o protestantismo não encontrou oposição por parte dos grandes senhores de terra. Mas a liber­ dade que a classe dominante rural concedeu à nova religião não deve ter sido por razões ideológicas, como as que circulavam nos escalões mais altos da política. Essa liberdade deve ser vista ao nível dos interesses imediatos de classe. Creio que mesmo aqueles barões do Império, latifundiários todos, que manifestavam tendências liberais, assim como os membros liberais do clero, alguns deles também grandes fazendeiros, não estariam dispostos a tolerar uma nova religião próxima aos seus domínios, às vezes mesmo no interior deles, cujo sistema de idéias pudesse ser ameaçador aos seus interesses. Proponho o exame desta questão por dois ângulos: o da relação entre o fazendeiro e os sitiantes, posseiros e agregados, por um lado, e do modo de vida do protestante por outro, não vindo ao caso a sua proposta religiosa. O ângulo da relação entre o homem livre e pobre com a burguesia rural já foi exposto. Constituindo uma categoria à margem do sistema, composta por “homens dispensáveis”, na expressão de Maria Sylvia, não entravam na conta dos interesses diretos do sistema econômico. Politicamente o voto podia entrar no jogo de formas assimétricas de relação, mas as condições de inde­ pendência e liberdade dos sitiantes e semelhantes colocava esse jogo no plano de lealdade não coercitiva, mas cavalheiresca. Por certo, trocas de favores podiam estar por baixo dessa relação, sendo muito importantes na maioria dos casos as relações de compadrio. O certo é, no entanto, que o jogo do dom e contradom não ultrapassava o nível cavalheiresco do político, sendo possíveis, quem sabe, algumas oposições declaradas. O conto “Gunga-Muquixe”, de

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Valdomiro Silveira12', mostra como um sitiante protestante e liberal, embora sempre levasse desvantagem diante de seu oponente mais forte, talvez econo­ micamente, mas por certo politicamente porque votava no governo, era tole­ rado até com certa simpatia. Era visto mais como um teimoso do que como um inimigo. Resta ver a questão da lealdade compadresca. Essa relação, quando assi­ métrica, podia reforçar bastante as relações não só de lealdade, mas tam­ bém de dependência. Sendo o compadrio uma instituição católica, era natural­ mente desqualificada pelo protestante, mas possuo algumas experiências pes­ soais que me levam a estabelecer a hipótese de que os compromissos de compadrio assumidos antes da conversão eram mantidos pelo protestante, quer dentro quer fora do grupo. Faz parte das minhas recordações da infância o tratamento de compadre entre protestantes e entre estes e católicos. É certo que o campadrio se constitui numa forma de aliança sacralizada, mas entendo que ele não se constitui em entrave radical para a opção religiosa protestante. O fundamento religioso podia ser desqualificado pelo protestante mas os laços sociais podiam permanecer. Aliás, é o que parecia realmente contar. Em suma, quando a mensagem protestante começou a ser apresentada como uma opção religiosa, parece não ter encontrado obstáculos no plano das relações sociais, tanto econômicas como políticas ou religiosas. O outro ângulo da questão, quando se procura entender a penetração do protestantismo tendo em vista as possíveis reações por parte da classe rural dominante, é o modo de vida protestante, a sua ética. Já mostrei que a ética protestante ao lado de outros traços de sua teodicéia se constituiu em elemento regulador negativo do crescimento da nova religião, o que por si só já afastava a ameaça de perturbação do “status quo”. Uma simples leitura daquelas “Re­ comendações aos Crentes” já mostra que gente que adotava tais princípios como normas de vida, não somente deixava de criar problemas, mas poten­ cialmente se constituía em elementos favoráveis ao sistema. Os núcleos protestantes constituíam-se num mundo à parte sob todos os ângulos da vida social: a relação comunitária era reforçada pelos ideais comuns, pela fraternidade que de certo modo substituía o compadrio e pelas normas de comportamento ordenadas da vida num plano exterior e superior ao do mero nível pessoal, de modo a eliminar ou reduzir o potencial de violência. Era gente ordeira, pacífica, de confiança nos negócios e, acima de tudo, não afeita à ociosidade. Muito embora os núcleos protestantes continuassem, como todos os homens pobres, à margem do sistema, as relações com eles, tanto no plano individual como comunitário, eram sempre bem vistas. Se havia recusa, era por parte do protestante, mas isto ocorria sempre no aspecto lúdico de vida social e não no dos negócios. O modo de vida dos protestantes era esquisito por negar todos os valores vigentes. Mas eram simpáticos. Esquisitos mas sim­ páticos. 121

Silveira, Valdomiro, O Mundo Caboclo.

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4 . NA H ULHA DO CAFÉ

A expansão do protestantismo na sociedade brasileira deu-se na região sul do país e na zona rural. Foi o que procurei mostrar. Fatores como a forma de estratificação social, o campo religioso do homem livre e pobre e a men­ sagem protestante com suas características internas e seu confronto com a religião dominante, constituíram-se em fatores determinantes de análise de sua inserção e expansão. Nesta parte final desejo demonstrar como a expansão do protestantismo no século XIX acompanhou a trilha do café. Não se entenda por expansão exclusivamente o aumento numérico de adeptos, pois que, relativamente à população, as adesões foram pequenas. Pelas razões já discutidas, o protestan­ tismo desde o seu início se constituiu de pequenos núcleos. O que aumentou realmente foi o número de congregações que, pouco a pouco, na trilha das frentes pioneiras, foram pontilhando o mapa da Província de São Paulo e de parte de Minas, na região fronteiriça com São Paulo. Embora o número de adeptos aumentasse, o número crescente de pequenos núcleos podia dar uma idéia falsa de expansão. Na realidade, o protestantismo foi marcando a sua presença no espaço geográfico, mas não chegou a ser um peso significativo sob o ponto de vista da competição com a religião dominante. No último quartel do século XIX, período em que a ocupação da Pro­ víncia de São Paulo segue na direção norte e noroeste, famílias inteiras de protestantes se deslocavam e onde paravam espalhavam a nova religião, ha­ vendo lugares que se protestantizaram quase que inteiramente, formando bairros protestantes constituídos pelas famílias extensas e agregados122. Se olhar­ mos o mapa do Estado de São Paulo, incluindo nele as regiões fronteiriças do Estado de Minas, acompanhando a linha da Mantiqueira, poderemos ver que as áreas antigas povoadas no período das bandeiras e dos caminhos de tropas têm presença protestante muito pequena, ao passo que nas zonas de expansão do café ela aparece com muito maior vigor123. Essa expansão do café, que se inicia no terceiro quartel do século XIX, já é acompanhada de uma progressiva redução de mão-de-obra escrava que se vai extinguindo com a lavoura cafeeira do Vale do Paraíba. Embora a mão-de-obra escrava vá sendo substituída pela do imigrante, o trabalhador livre nacional começa a ter uma participação cada vez maior, especialmente no deslocamento sucessivo da lavoura para as frentes pioneiras, e isto pelas características próprias já assinaladas dessa camada da população. As suas condições se ajustavam às novas exigências. Parece que o trabalhador imigrante, 122 Como certas áreas do Triângulo Mineiro, como Alto Jequitibá e o Bairro dos Coutinhos, em Borda da Mata, e na Província de São Paulo como Jericó, no Município de Cunha, descrito por Willems, 1947. Os protestantes do Triângulo Mineiro foram descritos por Maria de Melo Chaves, 1947. 123 Exemplo mais recente é a vigorosa presença protestante no Norte do Paraná, região do café nos anos 30.

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por causa de hábitos de agricultura tradicional sedentária e por força de contratos com o fazendeiro, não tinha disposição e nem liberdade para deslocações constantes. Daí, embora esta hipótese requeira maior verificação, creio poder-se dizer que o trabalhador nacional, e entre eles os protestantes, foi o pioneiro na expansão do café'24. É surpreendente a mobilidade do trabalhador rural, mudando sempre de local, em busca de plantações novas125. Partindo da Baixada Fluminense, o café toma o rumo de São Paulo e, acompanhando os antigos caminhos do século XIX, estabelece-se no Vale do Paraíba e daqui se estende transpondo a Mantiqueira, de Embaú a Minas e, pela Serra do Mar, escoa-se pelos portos de Ubatuba e São Sebastião126. Do Sul de Minas sobe, acompanhando a linha fronteiriça correspondente à Pro­ víncia de São Paulo. Por esta Província desloca-se no sentido oeste via Cam­ pinas, para o norte e para o interior acompanhando a linha de Araraquara e, mais para o centro, Jaú, Bauru e assim por diante. Entre 1870 e 1890, a deca­ dência da cafeicultura no Vale do Paraíba já era notória. A região despovoa-se e paralisa-se127. Ao acompanhar a trilha do café o trabalhador livre leva seus hábitos de vida e de uso da terra, inclusive seus traços predatórios. Como a lavoura de café é permanente e só é compensatória como atividade comercial, ela é quase exclusiva nas grandes propriedades e, a não ser nos primeiros quatro anos, a partir do plantio, não admite outra cultura, mesmo cíclica e intercalada. Deste modo, a lavoura de subsistência, ocupação preferencial do trabalhador livre, só é admitida nas grandes plantações de café nos primeiros quatro anos de sua abertura. O ciclo de atividades do trabalhador livre pode ser discutido assim: o fazendeiro abre uma nova fazenda ou novas frentes em seu próprio território, planta o café e entrega o seu cuidado ao trabalhador livre que, em troca desse cuidado, tem licença para intercalar milho, arroz, feijão, mandioca, fumo, leguminosas e algumas frutas nos carreadores. Geralmente o contrato era feito por quatro anos, porque, a partir daí, por causa da altura do cafeeiro já em produção e do início do cansaço da terra tem de cessar o plantio intercalado. 124 O protestantismo não atingiu o imigrante europeu, oriundo de países tradicionalmente católicos e ■com doutrinação religiosa provavelmente melhor. Além disso, o imigrante estava muito ligado ao fazendeiro e ao sistema. A protestantização do imigrante católico e de seus descendentes é bem posterior e se deu no período do crescimento urbano. Os imigrantes de origem protestante, como os alemães na zona de Rio Claro, por falta de assistência religiosa acabaram se dispersando entre os católicos, apesar dos esforços, por exemplo, dos presbiterianos que destacaram um missionário para trabalhar entre eles, o Rev. F.J.C. Schneider, de origem alemã e que pregava aos colonos na língua deles. Pelos registros, Schneider não conseguiu muita coisa com os seus patrícios e retirou-se desanimado (Lessa, Vicente Themudo, 1938, pp. 20ss.) . 125

França, Ary, 1960.

126 Dias, Octacílio, 1967, p. 58. 127 Dias, Octacílio, p. 59; Monteiro Lobato, Cidades Mortas. É interessante o fato de que tendo o protestantismo começado a se implantar, no Vale do Paraíba, estagnou-se e praticamente desapareceu. O Vale permaneceu quase que inteiramente à margem da expansão protestante até agora em que, por causa da industrialização, o protestantismo começa a ter ali alguns progressos. Há a exceção registrada na nota 122.

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Daí por diante, outras formas de contrato deviam ser feitas, principalmente a do trabalho assalariado, o que não era muito do feitio do homem livre. A sua propensão para o trabalho mais livre fazia-o partir para novas frentes em que pudesse continuar com os seus hábitos de lavoura de subsistência, abando­ nando suas casas precárias que, a essa altura, já estavam em ruínas128. Os núcleos mais estáveis foram constituídos pelos sítios que iam sendo montados na mesma trilha por pioneiros, ocupando terras devolutas e que procuravam aliar o plantio de pequenas áreas de café (de três a cinco mil pés, na medida dos braços que a família possuía) à lavoura de exportação, uma vez que a quantidade de café que plantavam ultrapassava de muito às necessi­ dades do autoconsumo. Talvez o café lhes proporcionasse, ao lado de outros, os excedentes necessários para a aquisição de bens de mercado. Mas o que realmente importa é que talvez o café fosse o principal responsável pela relativa estabilidade de alguns sitiantes, o que permitiu a formação de bairros na medida em que a vizinhança ia aumentando. Já vimos como a mensagem protestante se ajustava, interna e externa­ mente, ao tipo de vida dessa camada da população. Não estando a religião protestante ligada ao espaço, mas sendo seu Deus radicalmente transcendente, o nomadismo podia ser até mais fácil para eles do que para os católicos. Onde estivessem alguns, ou mesmo uma só família, ali estava a igreja. O caminhar protestante na trilha do café foi um pontilhar de pequenas comuni­ dades, rurais na sua quase totalidade e constituídas de núcleos familiares extensos como regra geral, nos sítios, bairros e fímbrias das grandes fazendas de café129. A formação de comunidades protestantes independia da presença do agente oficial da religião. Elas surgiam com a simples presença de uma pessoa ou de uma família que, dado o campo religioso católico rarefeito, se propagava através da influência do leigo. Os missionários e pastores iam na esteira e regra geral, nada mais faziam do que oficializar e institucionalizar essas peque­ nas comunidades. Feito isso, iam adiante e deixavam-nas entregues a si mesmas. As comunidades protestantes eram essencialmente leigas e se autogeriam na falta de pastores. Diz Boanerges Ribeiro: “A maioria dessas igrejas é realmente um cacho extenso de rtódulos rurais, nem sempre próximos ou acessíveis, com pequenos grupos de fiéis arrolados em igreja distante. . . A s fronteiras da nova igreja não param, é um fluxo constante de gente que vai, gente que vem, gente que chama os pregadores e não pode ser atendida”n0. 128 “Com surpreendente facilidade, o trabalhador rural muda de em prego.. . ” — “Surpreen­ derão, por outro lado, a falta de raízes profundas ligando o homem ao solo e a sua instabilidade da população e do “habitat”. (França, Ari, 1960, p. 18). 129 Exemplos: o núcleo da Igreja Presbiteriana de Brotas foram os Gouvêa e os Cerqueira Leite, de Ribeirão do Veado (Pederneiras), os Coutinhos, em Dois Córregos, os Pereira Garcia, etc. (Lessa, Vicente Themudo, 1938). 130 Ribeiro, Boanerges, 1981, p. 101. Diz ainda Léonard, Êmile G., 1963, p. 88: “Estas comunidades de crentes, espontaneamente criadas viviam e se desenvolviam muitas vezes alheias aos cuidados de um pastor residente pelo simples zelo de seus membros”. Sobre esses núcleos

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Aí estão, nesse autor bem documentado, as notas distintivas das primeiras congregações protestantes: núcleos pequenos, distantes de seus respectivos centros de poder e com escassa assistência dos agentes de religião e, principal­ mente, extremamente móveis (“gente que vai, gente que vem”). Acompanhemos o roteiro das igrejas presbiterianas, denominação que tomei como modelo deste no período em questão, isto é, de meados do Império até o advento da República. Estou deixando de lado as demais regiões do país, em que o seu desenvolvimento foi mais lento e seguiu outros roteiros. As duas primeiras igrejas presbiterianas organizadas no Brasil foram urbanas: a primeira, no Rio de Janeiro, em 1862, formada por estrangeiros, e a segunda, em São Paulo, em 1865, com seis pessoas, na maioria estrangeiras. É notório o fato de que em dois dos mais importantes centros urbanos da época o crescimento inicial da Igreja deve-se a estrangeiros, sendo a presença de nacionais mínima, evidenciando condições sociais que pareciam dificultar a penetração urbana da nova religião em comparação com a relativa facilidade com que entrou na zona rural. A presença física institucional da Igreja Católica deve ser considerada como elemento ponderável nessa questão'31. Estabelecidas as cabeças-de-ponte urbanas do Rio de Janeiro e São Paulo, estenderam-se as igrejas presbiterianas pela zona rural no sentido do roteiro do café: Brotas, SP (1865), Lorena, SP (1868), Borda da Mata, MG (1869), Santa Bárbara, SP (1870), Caldas, MG (1873), Rio Novo, SP e Rio Claro, SP (1873), Embaú, SP, Machado, MG, Itapira, SP (1874), Dois Córregos, SP, São Carlos, SP (1875), Araraquara, SP e Faxina, SP (1879), Lençóis, SP e Ubatuba, SP (1880), Areado, MG e Cabo Verde, MG (1881), Guareí, SP. (1882), Itatiba, SP (1883), Campanha, MG e Mogi Mirim, SP (1884), Botucatu, SP, Itapetininga, SP, Pirassununga, SP (1885), Cana Verde, MG, Tatuí SP (1888), São João da Boa Vista, SP (1889), Boa Vista do Tatuí, SP, Espírito Santo do Pinhal, SP, Fartura, SP (1890), Boa Vista do Jacaré, SP, Jaú, SP, São Sebastião da Grama, SP (1891), Sengó, MG (1892), Araguari, MG, Bagagem, MG, Paracatu, MG (1893), Palmeiras, SP, Iacanga, SP, Ribeirão do Veado, SP (1895), Tietê, SP (1896), Cajuru, SP (1897) e Lavras, MG (1899). Apesar de os historiadores protestantes serem imprecisos, não indicando, regra geral, o lugar exato da criação das igrejas, elas sempre foram rurais como se pode ver nos livros de atas que ainda existem. William R. Read, missionário presbiteriano no Brasil, confirma esse fato no seu trabalho sobre o crescimento das igrejas protestantes no Brasil132. com autogestão religiosa, o Autor deste trabalho preparou duas pequenas memórias que consti­ tuem os apêndices 1 e 2 deste capítulo. 131 Dados comparativos mostram a diferença de crescimento entre as igrejas urbanas e as rurais. Por exemplo, durante todo o período do século XIX, a Igreja Presbiteriana de Brotas — SP, rural, foi maior do que as do Rio de Janeiro e São Paulo. Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 36 e Ferreira, Júlio A., 1959, 1.° vol., p. 40. Em 1870 essa Igreja tinha 289 membros arrolados (Lessa, Vicente Themudo, 1935, p. 39). 132 Read, William R., s/ data, p. 50. 6 -C eleste porvir

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N a lista de igrejas há algumas exceções no que se refere ao acompanha* mento do cinturão do café. As igrejas de Lorena-SP e Cruzeiro-SP, por exemplo, intercaladas e fora da seqüência cronológica, devem-se ao constante caminhar dos missionários entre Rio e São Paulo. Ubatuba era o porto que às vezes os missionários usavam para regressar do Vale do Paraíba para o Rio de Janeiro133. Outra exceção é a Igreja de Santa Bárbara-SP, núcleo dos imigrantes confederados norte-americanos que ali se estabeleceram após a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Algumas outras igrejas que estão em localidades fora do roteiro, ou que pelo menos não podem ser contadas entre a$ frentes pioneiras, devem-se às migrações ou contato entre pessoas de uma mesma família que levavam a mensagem protestante e formavam novos núcleos. Essa propagação familiar foi muito comum134.

Resumo Tentei mostrar neste capítulo que a sociedade brasileira não ofereceu resistência séria à penetração do protestantismo. Nos altos escalões políticos, simpatia por parte de alguns e indiferença por parte de outros. A camada dominante da política local, representada pela burguesia rural, praticamente não tomou conhecimento da infiltração protestante e, quando o fez, não deve ter visto neles ameaça alguma. Quanto à religião oficial, se sentiu alguma inquietação, pouco pode fazer porque não lhe era fácil alcançar os seus fiéis dispersos e nômades pela vastidão do território. Por outro lado, os protestantes encontraram espaços na camada social dos homens pobres dada a rarefação do seu campo religioso e a algumas vantagens de sua teodicéia em confronto com a dominante. Mas, apesar de encontrar brechas no campo religioso e de sua teodicéia apresentar aspectos positivos para a camada social que a recebeu, o protestantismo não triunfou. Forças negativas internas, como seu excesso de institucionalização e seu intelectualismo, assim como externas, representadas pela contracultura que representava, limitaram os protestantes a pequenos e esparsos grupos fechados. Finalmente, que a expansão numérica, mas principalmente geográfica do protestantismo, acompanhou a trilha do café. A rarefação do campo religioso católico, mais sensível nas zonas pioneiras, e o deslocamento constante de famílias já protestantizadas deram essa configuração à expansão protestante.

133 Lessa, Vicente Themudo, 1935, pp. 59ss. 134 A Igreja Presbiteriana de Borda da Mata — MG é um exemplo. A família convertida em Brotas — SP, tinha ramificações em Borda. Quando o ex-padre José Manoel da Conceição visitou Borda, encontrou muitas pessoas já protestantizadas no sítio dos membros da família Gouvêa. (Lessa, Vicente Themudo, 1938, p. 36 e Torres, Miguel, 1881 — manuscrito).

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A P Ê N D IC E 1

ESCOLA DOMINICAL NO SÍTIO*

Domingo de manhã. No casarão de Osório Monteiro reúnem-se todos os do bairro para a Escola Dominical. Roupas domingueiras, mas as crianças quase todas descalças. Formam-se as classes. Os grandes na sala. A meninada se divide em grupos de cinco ou seis, nos quartos, nas escadas, na tulha assentados sobre os sacos de mantimentos e até nos beldrames das portas. A professora chega, mocinha endomingada de vestido de chita pintadinho, cinto vermelho e laço de fita nos cabelos. Nas mãos, uma caderneta de chamada, o lápis e o catecismo. Começa a chamada, formalíssima: — Joaquim Venâncio Filho! (o menino demora para responder, atrapa­ lhado com o próprio nome. Ele sempre foi o Quinzinho, ora!) — Presente! — José Pereira Monteiro! (nova confusão, agora, para o conhecido Zezé). — Presente! Alguns, mais antigos na Escola Dominical, ensaiam uma complicação maior. Ao invés do trivial “presente”, respondem com um pequeno verso bíblico. — “Deus é amòr” ! — “Jesus chorou” ! Chega a hora temida do catecismo. A professora abre o livrinho e lança a primeira pergunta: — Quinzinho, “quem vos criou?” — “Deus”. — Zeca, “que mais criou Deus?” — “Todas as coisas”. — Tonho, “para que fim vos criou Deus a vós e a todas as coisas?” * Antonio Gouvêa Mendonça.

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— “Para a sua própria glória”. E assim ia a turma respondendo as perguntas, com muitos trejeitos, contorções e torcidas nas pontas das fraldas das camisas. O suplício dominical ia se escoando devagar. Os meninos não viam a hora de terminar tudo para saírem correndo dali para a liberdade. Liberdade restrita, embora. Não se podia caçar passarinhos de estilingue, nem jogar bola de meia no terreiro de café e muito menos ir nadar no remanso do ribeirão. Era domingo.

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A P Ê N D IC E II

CENA RELIGIOSA SERTANEJA*

Casarão achaparrado, coberto de telhas de bica, paredes de ripas e barrotes barreados, chão de terra batida. À frente, o largo terreiro de secar café, aos fundos os chiqueiros de porcos e ao lado o mangueirão das vacas e o paiol. Bem próxima da casa a tulha e a dependência onde se guardavam os arreiames e os correiames das carroças e as cangas, tiradeiras e correntes do carro de bois. Era o sítio do Neném Coutinho, bem no centro de um alinhamento de sítios, todos mais ou menos da mesma largura e comprimento. Todos também tinham seus limites no mesmo espigão e no mesmo Ribeirão dos Balbinos. Eram cinco sítios, sendo quatro de protestantes presbiterianos. Um dos cinco era do Osório Baldoino, que diziam ser até ex-sentenciado. Tratavam-no com respeito (talvez temor), sendo o relacionamento com ele formal, não indo além do “bom dia” e do “boa tarde”, quando passavam por sua porta na estrada vicinal. Tinham de aceitar a participação dele no mutirão periódico para conservar a estrada principal que passava por todos os sítios entre a cabeceira do pasto e o início do capão de mato. Mas a presença de Baldoino não era bem vista. Bebia e era valente. Positivamente era um elemento destoante naquele bairro de protestantes. O bairro começava com o sítio de Nhonhô Terra, espécie de patriarca do bairro e o mais abastado. Seguiam-se os de Arlindo Terra, filho de Nhonhô, o do dito Neném Coutinho, genro de Nhonhô, o de Osório Baldoino, a tal ovelha negra, e o de Osório Monteiro, o último, sítio ruim, quase só campos e sapezais. Neném Coutinho e Osório Monteiro eram os subpatriarcas da congregação presbiteriana, composta pelas quatro famílias de sitiantes e mais as dos agrega­ dos, também ligados a eles por laços de parentesco. Toda a congregação, quarenta ou cinqüenta pessoas, compunha uma família extensa. * Antonio Gouvèa Mendonça.

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Os cultos dominicais se realizavam geralmente nas extremidades do bairro, ora na casa de Nhonhô, ora na casa de Osório Monteiro. Suas casas eram melhores: de tábuas, grandes e altas, cobertas de telhas de bica, com parapeito em toda a extensão da ampla frente. Quem dirigia os cultos eram os subpatriarcas. O pastor vinha uma ou duas vezes por ano, quando orientava, disciplinava, casava e batizava a safra do ano anterior. Eram dias de festa e mesas fartas em que os frangos do terreiro sofriam diminuição sensível. Mas, no meio da semana, às quartas-feiras, o culto era na casa de Neném. Bem no meio do bairro, dividia as distâncias para a caminhada noturna. À noitinha iam chegando as pessoas. As mulheres, puxando as crianças pela mão, com alguns acavalados às ilhargas, outros no colo. Porque sempre havia os que estavam andando, engatinhando ou fazendo nem uma nem outra coisa. Os homens, sérios e compenetrados, iam entrando e pendurando os chapéus nos cabides e depondo suas armas numa mesinha à porta, coberta com uma toalha branca de crochê (muito respeito pelas armas!). Eram canivetões de meio palmo, facas, punhais de dois palmos com guarda e tudo (para picar fumo e cortar palha!), lustrosos porretes de pau-ferro, alguns deles verdadeiras bordunas de meter medo (para espantar cachorros!) e até rebrilhantes “rabos de égua” (pode aparecer algum bicho!). A pilha de armas tão diversas formava, na mesinha, impressionante arsenal. Porque não era permi­ tido assistir ao culto armado (mesmo que de armas só tivessem o nome, vez que eram instrumentos de uso inocente!). Assentavam-se todos ao redor da comprida mesa da sala da frente, em bancos longos, baixos e sem encosto. Nas paredes, em aparadores de folha, fumarentas lamparinas de querosene, e na cabeceira da mesa uma especial para o manejo do dirigente. Aqui, também, uma enorme Bíblia de capa preta, ocupando o lugar de honra. Neném Coutinho levanta-se e dá início ao culto. Abrem-se os “cadernos” e começam os cânticos. Alguém, mais “entoado”, “tira” o hino e os outros acompanham. Poucos são os “cadernos” porque poucos são os que sabem ler. Com Jesus há morada feliz, Prometida e segura nos céus: Avistamos o Santo país Pela fé na palavra de Deus. N o celeste porvir! Com Jesus no celeste porvir!' Geralmente são as mulheres que dirigem os cânticos, mas as orações são prerrogativas dos homens. Seguem-se as orações. Diversos, convidados pelo dirigente, fazem as suas. São feitas em linguagem estranha para o meio, com certa correção gramatical, embora algumas palavras saiam estropiadas. São sempre lembrados as viúvas e os encarcerados. Às vezes petições apropriadas 1 Salmos e Hinos (Edição antiga), n.° 140.

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são feitas, pelas chuvas que não chegam, pelas colheitas e pela saúde. Dificil­ mente pedem-se coisas de ordem pessoal. A linguagem das orações e a forma de dirigir o culto são copiadas dos pastores. Por isso soam esquisitas nas noites daqueles sertões. No momento próprio levanta-se Neném Coutinho com a grande Bíblia nas mãos calosas. Ajeita os óculos, aproxima a lamparina e começa a leitura do Salmo predileto. Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, À sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas estarás seguro: a sua verdade é escudo e broquel.. .2 Vai aos tropeções, caindo aqui e levantando ali, brigando com as sílabas e com as palavras, penosamente. Mas lê até o fim sob a atenção reverente de todos. Recomeçam os cânticos. Avante! avante! ó crentes! Soldados de Jesus! Erguei seu estandarte, Lutai por sua cruz! Contra hostes inimigas, Ante essas multidões, O Comandante excelso Dirige os batalhões.3 Novas orações e termina o culto. Todos permanecem à mesa como por um silencioso acordo. Algumas mulheres começam a amamentar os filhos. Homens faíscam as bingas e ascendem os crioulos. Conversam. Duas ou três pessoas reiniciam os cânticos e outras acompanham. Vão cantando os hinos preferidos do pequeno repertório. Aprendem aos poucos, só quando o pastor vem e ensina. Esticam as sílabas e ralentam a música para sentir e saborear mais a alegria e a esperança que emanam daquelas palavras. Pátria miiinha, por ti suspiiiro! Quando no teu bom descanso entrarei? Os Patriarcaaas, de Deus amiiigos, 2 Salmo n.° 91. 3 Salmos e Hinos (edição antiga), n.° 147.

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E os bons profetas, fiéis antigos, Já entraram na rua Glória, Onde vêm em esplendor o grande Rei!4 Chegam o grande bule e os terrinões de bolinhos de fubá. Servem-se, mas alguns continuam cantando. De repente, saem todos. As mulheres arreba­ nham as crianças e os homens se rearmam. Amanhã as lidas domésticas e as ruas de café os esperam.

VOCABULÁRIO caderno entoado tira, tirar

— livro de hinos sacros — afinado — começar e liderar o cântico. Em alguns lugares o termo usado é puxar, “puxar o hino”, rabo de égua — garrucha

4 Salmos e Hinos (edição antiga), n.° 468.

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A P Ê N D IC E III

O PADRE JOSÉ DE MOGI-MIRIM

Uma nota curiosa relatada pelo Rev. Chamberlain nessa visita inicial que servirá de subsídio para a história do Evangelho em Mogi. “Fomos visitados e obsequiados pelo venerável vigário dessa cidade que nos disse ser assinante da IMPRENSA EVANGÉLICA desde o princípio de sua publicação e que partilhava as idéias dela. Proibira os seus coadjutores de pregarem contra nós, dizendo que estimava a nossa presença na cidade. Cedendo ao manifesto interesse, demoramo-nos dias lá, pregando diariamente com auditório sempre crescente”. Quando morei em Mogi-Mirim ouvi alguma coisa a respeito daquele vigário amigo. Era o popular Padre José, cujo nome ficou ligado à rua em que se construiu depois o primitivo templo presbiteriano. Possuo na minha coleção o volume XI da IMPRENSA EVANGÉLICA, de 1875, oferta que me fez o presbítero José Soares. Contava-me o velho João Soares, antigo membro da igreja de MogiMirim, já falecido como o citado presbítero, que o Rev. Conceição quando passava por ali se hospedava com o Padre José. Passando em certa ocasião com destino ao Rio, necessitava de um camarada para a viagem. O vigário contratou para isso João Soares, que por fim se tornou evangélico. Não pude averiguar se Conceição pregou também em Mogi. Nesse caso teria, talvez, precedido a Chamberlain. Mas a linguagem deste parece decisiva quando diz haver inaugurado o culto na localidade. Não deixa de ser curioso que tanto o Padre José, que tão benevolente­ mente acolhia ao Padre Conceição, teve o seu nome consagrado numa das ruas de Mogi, como o mesmo se deu com João Soares, o camarada de Conceição, contratado pelo vigário. A rua João Soares (antiga 13 de maio)

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vai entroncar com a do Padre José, mesmo no local onde existiu o primeiro templo. João Soares, como funcionário da repartição sanitária, prestou excelen­ tes serviços à população mogiana em tempos de epidemia. Daí a sagração de seu nome. Vicente Themudo Lessa, Anais da Primeira Igreja Presbiteriana de São Paulo, pp. 99-100.

NOTA: Imprensa Evangélica foi o primeiro jornal protestante a ser publicado no Brasil, tendo o seu número inicial saído em 5 de novembro de 1864. Foi fundado pelo primeiro missionário presbiteriano, Rev. Ashbel G. Simonton (Nota do Autor).

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A P Ê N D IC E IV

MISSIONÁRIOS, PROTESTANTES E PADRES

“Segui para Itapetininga em companhia do Dr. Reinard a 22 de janeiro. Passei duas noites em casa do Major Paulino íris, um “liberal exaltado”, que culpa o governo de todos os vícios e defeitos da nação inteira e que não tem muita confiança na estrada de ferro atualmente em construção. Em casa dele encontrei-me com dois padres. Mantive com o mais jovem e mais inteligente uma controvérsia sobre a conveniência de colocar a Bíblia nas mãos do povo, o que levou a outros pontos de disputa entre católicos e protestantes. A discussão foi agradável, e como disse meu oponente, proveitosa. A seu pedido enviar-lhe uma Bíblia.

“No dia 6 de fevereiro cheguei a Sorocaba, onde encontrei uma caixa de bíblias à minha espera. Arranjei com o Sr. Abreu para enviar-lhe um estoque delas. Meu outro agente, Marciano da Silva, as tinha enviado ao bispo, por intermédio do vigário, a fim de saber se poderiam ser vendidas. Ele parece admirado da minha indiferença por bispos, papas e semelhantes, considerando-se, como católico, obrigado a obedecê-los. O vigário declarou-se pronto a ajudar na distribuição das bíblias se o bispo permitir”. Ashbel G. Simonton, Diário, 12/2/1861, in Maria Amélia Rizzo, Simonton : Inspira­ ções de uma Existência. Não é sem razão que o Presbitério de 67 manda à Igreja, nos Estados Unidos, um apelo por mais missionários. Gomo confirmar as igrejas que estão nascendo? Mas deixemos para depois o estudo deste problema. Vamos apreciar alguns instantâneos dos roteiros mencionados. Antonio Pedro, em Minas, 1868.

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“O nome do Padre José Manoel está espalhado pelo universo, não há lugar onde se passe que não falem em seu nome”. Em Cachoeira: “Aqui já estivemos com o vigário, e mostra ser uma bela pessoa; ele recolheu-nos em sua sala, conversamos muito tempo com ele sobre religião, e em muita coisa concorda conosco. Deseja muito ouvir o Padre José Manoel pregar, e disse que a religião do Padre José Manoel pouco diferença faz da s u a . . . ” Boanerges Ribeiro, referindo-se à mesma viagem: “Subiram, pregando, por Santa Isabel, Nazaré e Santo Antonio da Cachoeira. Nesta localidade é que o vigário, espicaçado pelas notícias dos paroquianos que mais de uma vez já tinham visto e ouvido o padre protestante, tanto desejava ouvi-lo também. Desta vez não perdeu a oportunidade e duas vezes foi à pregação, e levou consigo a mulher e as filhas, misturando-as com o povo que se comprimia para caber na casa”.

Antonio Pedro — “Aqui não há mais a desejar, pois que todas as noites fica em frente da casa onde se prega, isto é, a rua, muito cheia de gente, além dos que estão ocupando todos os assentos da sala. Ontem o Sr. Blackford e o Sr. Miguel Torres foram a Pindamonhangaba para pregar lá, e eu com o Sr. Conceição ficamos para pregar aqui e eu tenho feito o que posso, não só vendendo bíblias mas espalhando folhetos e falando; há muita gente que tem gostado, o que dá ânimo para prosseguirmos na causa do Evangelho. Aqui moram doze padres, e já experimentei a força de quatro, encontrando-me com dois numa casa, onde me recolheram para dentro e me trataram com muito agrado. Apresentaram a Bíblia e começamos logo a discussão por e l a . . . Os dois padres disseram que gostaram muito de mim, e que sentiam ser eu protestante, e eu lhes disse que também simpatizava com eles e sentia que eles não fossem protestantes”.

“Severo, ia me esquecendo, professou também. Severo, não sabe minha mãe? O irmão do Ernesto que está em Araraquara. Tia Sabina também está crente! Não pôde professar ainda, mas professará na primeira ocasião. Que coisa interessante! O Sr. Chamberlain, em Ouro Fino, foi esbarrar com o Sr. Lenington e eu, na casa do vigário. Foi mais feliz do que nós, porque encontrou-se com o vigário, que o tratou muito bem, sabendo mesmo que era protestante. O Sr. Chamberlain veio gostando muitíssimo de nossos parentes. Disse que em casa de Nhá Baba estava como em sua própria casa. Pregaram

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em Borda da Mata, mesmo dentro da freguesia. Houve boa reunião, à qual assistiu o vigário, que afirmou ao Sr. Chamberlain, na presença de todo o povo, concordar com tudo o que ele tinha pregado; era a verdade. Pregaram, também, em Samambaia onde houve uma grande reunião”. Júlio Andrade Ferreira, História da Igreja Presbiteriana do Brasil, 1.° vol., pp. 52, 53 e 134.

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A P Ê N D IC E V

O EVANGELISTA DOS SERTÕES

Entrando o Rev. Caetano para o ministério ativo, demonstrou logo seu verdadeiro espírito de pastor e evangelista. Continuou à frente de sua amada Igreja de S. Bartolomeu, evangelizando todo o sul de Minas, onde, até hoje, seu nome e obras são recordados e abençoados. Mais tarde mudou-se para a Fazenda do Pinhal do Campestre, berço da nobre família Franco. Ali morou vários anos pastoreando o rebanho local, bem como o de Botelhos, Pouso Alegre, Caldas, Borda da Mata etc. Depois transportou-se para a Fazenda do Guaricanga no Estado de São Paulo. Daí viajava pelo sertão paulista, chegando até mesmo a Goiás e Triângulo Mineiro, onde o Rev. Álvaro Reis organizou diversas igrejas. Foi um verdadeiro ministro de Deus, sendo sua obra toda realizada nas fazendas e interior. Não exerceu seu ministério em cidades. Sua obra foi toda rural, porém fê-la duma maneira esplêndida e abnegada. Viajava quase sempre a cavalo, sujeitando-se às mil peripécias da caminhada. É bem conhecida uma fotografia dele, a cavalo e acompanhado dum de seus filhos! Ê por isso apelidado: O Evangelista dos Sertões. Era amigo do povo da roça e a sua pregação simples e ungida era facilmente entendida! Gostava de ensinar hinos, possuindo boa voz e entendendo de música. Caracterizou-se pela bondade do seu coração, pela simpatia radiante e pelo espírito de oração. O Rev. V. T. Lessa e o Dr. Hempel testemunham tê-lo ouvido orar a altas horas da noite em favor do seu rebanho. Vivia perto de Deus, buscando fortalecer a sua alma para os duros trabalhos da sua vasta seara.

Era ainda moço quando a morte o trasladou para os céus. Contava apenas 53 anos. Estava viajando a cavalo pelo sertão, bem longe do lar, anunciando aos perdidos o Salvador Jesus, quando um antraz o prendeu ao leito em casa de crentes humildes da família de José Esteves. Sem recursos médicos e o conforto das grandes cidades, só recebeu os cuidados de alguns corações

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amigos, bem como de um dos seus filhos — o Samuel. Deus quis que ele morresse com a mesma simplicidade com que tinha vivido! Foi a 20 de abril de 1909, à uma hora da tarde, que ele expirou.

Seus restos mortais descansam no cemitério da Vila Ariranha, município de Monte Alto. Sherlock Nogueira, Esboço Biográfico do Rev. Caetano Nogueira Júnior (trechos)^ in O E STA N D A R T E de 7/1 /1943, pp. 23/24.

NOTA: O Rev. Caetano Nogueira Jr. foi ordenado pastor presbiteriano em 3/9/1886, pelo Presbitério do Rio de Janeiro.

PA R T E III

A NOVA RELIGIÃO

CAPÍTULO I

A MENSAGEM INSTITUCIONAL

“A teologia americana em 1865 tinha m uita m obília na despensa que nunca era usada na sala de visitas”*

Em 1910, Samuel Rhea Gammon, missionário do “Board of Nashville” da “Southern Presbyterian Church”, publicou um livro com o sugestivo título “The Evangelical Invasion of Brazil, or A Half Century of Evangelical Missions, in The Land of Southern Cross”. O prefácio desse livro, tão interessante e importante como uma visão retrospectiva e, ao mesmo tempo, como uma projeção da empresa missionária americana no Brasil, R.A. Lapsley, Editor Superintendente de Publicações do Comitê Executivo das Missões Estrangeiras da Igreja Presbiteriana do Sul, Richmond, Virgínia, informa que a intenção de Gammon era, ao comemorar o cinqüentenário das missões presbiterianas no Brasil, colocar nas mãos dos futuros missionários um manual sobre o país que lhes servisse de guia informativo. Queria, também, estimular a vinda de mais missionários para o Brasil dentro do “slogan” que então corria nos círculos missionários: o Brasil está de portas abertas (“open doors”) para o Evangelho. Ê claro que essas portas abertas tinham relação com a então recente implantação do regime republicano, que abolira, na sua Constituição, os privilégios legais da Igreja Católica e abrira as portas para outras religiões em pé de igualdade, ao menos no papel. Por outro lado, nesse período, isto é, nos últimos anos do Império e primeiros da República, a Igreja Católica ainda lutava para superar as suas próprias dificuldades com a romanização. De modo que o “slogan” do “open doors” se justificava, tanto do lado político como da religião socialmente dominante. Parece, ainda, que as dúvidas sobre a necessidade de missões protestantes em países civilizados e católicos que desembocaram nos Congressos Missioná* Smith, H. Shelton et alii, vol. II, p. 309.

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rios de Edimburgo (1910) e Panamá (1916) já vinham agitando os meios missionários e Gammon se esforça por defender a tese de que o Brasil, assim como a América Latina toda, era pagão por causa do afastamento da Igreja Católica das “verdades e práticas básicas do Cristianismo”. Daí, era imperioso que o Brasil não fosse riscado do mapa das Missões. Já tratei deste assunto em outro lugar deste trabalho. Gammon, após historiar, um tanto ingênua e triunfalisticamente, como era do estilo dos missionários, a “invasão evangélica da terra do Cruzeiro do Sul”, apela para que a invasão continue em “nossa República Irmã do Sul”. 0 exame do relato da “invasão”, como a história Gammon, pode dar-nos uma visão das contradições ideológicas que permeavam as missões americanas no século XIX e que, seguramente, ao se transferirem para o Brasil e ao encontrarem aqui condições adversas se aguçaram ou assumiram formas de ajustamento que vieram a marcar, e mesmo descaracterizar, o protestantismo brasileiro em relação às origens históricas do Cristianismo reformado. O ideal civilizatório do “Destino Manifesto” estava presente no pensamento de Gammon. Ele reconhecia que o Brasil era um grande e admirável país, para que o seu progresso continuasse era necessário algo mais. Nas suas próprias palavras: “Ê necessária a religião de Jesus Cristo em sua pureza. O propósito deste livro é apresentar os atrativos, as possibilidades e as necessidades da terra e do povo e que o Cristianismo Evangélico pode ser ativado com determinação e persistente esforço para ganhar a nação para Cristo e para seu Reino”'. Vê-se que o progresso e o desenvolvimento material e social estavam ideologicamente vinculados ao estabelecimento do Reino de Deus na Terra. Mas Gammon, ao defender seu ponto de vista da necessidade de intensificar a empresa missionária no Brasil, acaba desvelando a contradição fundamental que permeia toda a história do protestantismo no Brasil. Havia nos Estados Unidos os que entendiam não ser o Brasil campo missionário: era civilizado e era cristão, mesmo sendo “papista” . Na mesma página 68 Gammon conta a seguinte história: ‘‘Há alguns anos atrás, um missionário foi convidado para fazer uma conferência nas montanhas da Virgínia. Perante um auditório em que havia pessoas de idades diversas, credos variados assim como de interesses religiosos também múltiplos, o conferencista, à guisa de introdução, começou a falar sobre o progresso e a riqueza material do Brasil, suas estradas de ferro, luz elétrica e bondes, bancos, comércio e suas belas e modernas cidades. Ele, o missionário conferencista, quase caiu de costas quando um de seus ouvintes, interrompendo-o, disse que estava certo, após ouvir a conferência, de que o Brasil não precisava de missionários”. 1 Gammon, S.R., 1910, p. 68.

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Esta história ilustra a ideologia do modelo civilizatório do protestantismo americano. Mas Gammon argumenta com uma outra forma ideológica, e esta essencialmente religiosa e oriunda das lutas teológicas dos avivamentos america­ nos do século XIX: “O apóstolo Paulo não pensou assim quando levou o Evangelho nascido na ‘pobre e obscura Judéia’ para as ricas e cultas Atenas e Roma de seu tempo, porque a Judéia possuía o ‘Poder de Deus para a Salvação’. A civilização salva um homem ou uma nação? A luz elétrica ilumina os caminhos para o Reino dos Céus? Bondes e trens transportam pecadores aos Portais Eternos? À luz da Palavra de Deus e da História Sagrada, essa é uma idéia absurda”, conclui Gammon. Mas Gammon entendia que a objeção mais séria era a dos que colocavam seriamente em questão a propriedade de missões protestantes em “terras papistas”. O Brasil era um país católico, os brasileiros possuíam uma forma de Cristianismo. A essa objeção respondia Gammon com o ponto de vista mais ou menos uniforme dos missionários no Brasil e dos líderes protestantes nacionais: a Igreja Católica, dominante durante quatro séculos, por seus desvios, não havia conseguido cristianizar o Brasil. As classes educadas estavam quase que inteiramente tomadas pelo ceticismo nas suas variadas formas e as massas não educadas estavam absorvidas num sistema de supersticiosa idolatria que as aproximava mais dos antigos e modernos paganismos do que da religião de Jesus Cristo. Essa era, inclusive, a situação dos demais países católicos. Civilização e progresso material não são indícios seguros da presença do Reino de Deus, uma vez que a sociedade pode ser má porque os indivíduos não são bons; é necessário que os indivíduos sejam regenerados para que a sociedade seja transformada. Esta ideologia, bastante influenciada pelo individualismo, pode ser entendida como essencialmente religiosa e originada da teologia dos avivamentos americanos. A ideologia do protestantismo civilizador, isto é, de que as formas sociais e políticas que o povo americano havia descoberto e implantado em sua própria sociedade podia ser entendida como produto da Teologia do Puritanismo. As instituições americanas, refletindo os ideais puritanos de “povo escolhido por Deus”, eram modelos que deviam ser compartilhados com os outros povos a fim de que o Reino se implantasse no mundo todo. No fundo, essas ideologias só se contradizem no método. Uma queria transferir para outros povos as instituições americanas acabadas (“American way of life”) e a via escolhida era a educação; a outra queria começar pelas bases, isto é, converter os indivíduos à fé protestante segundo o modelo dos avivamentos na expectativa de que os indivíduos transformados em grande número acabariam por instituir uma nova sociedade segundo os modelos da civilização protestante. Esta ideologia escolheu a via religiosa propriamente dita. Em última instância, trata-se do grande sonho messiânico norte-americano do “Destino Manifesto” visto dos dois lados de uma mesma moeda2. No 2 Olmstead, Clifton E., 1961, p. 134.

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entanto, é curioso ver como ambas as ideologias, isto é, os dois lados da moeda, ocuparam seus espaços na empresa missionária americana e o resultado foi um verdadeiro despejo (“invasão” na expressão dç Gammon), no Brasil, de educadores, principalmente educadoras, e de pregadores. Isto ocorreu, sensivelmente, após a Guerra Civil Americana, quando problemas internos das igrejas, criados pela questão abolicionista, foram superados. Ocorreu que essa dupla invasão, portadora de duas ideologias pelo menos sob o ponto de vista metodológico, foi recebida no Brasil sob prismas diversos e provocou profundas dissenções nos campos missionários brasileiros3. É minha intenção, neste capítulo, buscar a compreensão do fenômeno protestante no Brasil pela via religiosa, isto é, a pregação e a aceitação da mensagem protestante e seus efeitos na caracterização de nosso protestantismo. Embora tenha estudado a educação protestante no capítulo intitulado “A Estratégia Missionária”, a intenção foi somente a de mostrar exatamente a educação como uma das estratégias missionárias e para ressaltar o ponto de apoio que as escolas paroquiais representaram para a evangelização propria­ mente dita. Fica, portanto, fora da minha preocupação, a educação protestante representada pelos grandes colégios embora ela possa, vez por outra, incidentalmente, vir à tona.

1. A TEOLOGIA DO PROTESTANTISMO MISSIONÁRIO NO BRASIL E SUAS FORMAS DE ASSIMILAÇÃO

O transplante do protestantismo norte-americano para o Brasil trouxe no seu bojo as suas próprias contradições e, em contato com uma cultura já estabelecida completamente diversa, com uma estrutura social praticamente já definida, teve de ajustar-se a demandas inesperadas que, pouco a pouco, foram assimilando e desenvolvendo elementos daquele protestantismo na direção dessas mesmas demandas. Noutra parte deste trabalho procurei mostrar que o protestantismo pene­ trou no Brasil através da camada “livre e pobre” do meio rural. Essa parte da população brasileira, no século XIX especialmente, tinha condições e necessidades próprias que, ao se defrontar com uma nova mensagem religiosa, procurou selecionar nela as respostas mais adequadas a essas mesmas condi­ ções e necessidades. Essa seleção foi resposta e estímulo, tanto interno dessa camada como da ordem social envolvente. Esse processo seletivo, que ocorre toda vez que se confrontam especialistas da religião com grupos de vida rústica, dá-se em dois níveis pelo menos: ao 3 Exemplo, o Cisma Presbiteriano de 1903, que deu origem à Igreja Presbiteriana Independente.

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nível do discurso religioso abstrato apresentado pelo especialista e ao nível da reinterpretação desse discurso a fim de fazer com que ele desça ao concreto e ao nível de ajustamento às necessidades existenciais imediatas. £ por isso que a religiosidade popular tende a escapar constantemente do controle dos especialistas4. Isto não significa, a experiência o demonstra, que ambos os lados não possam conviver, embora ressentimentos e atritos estejam constantemente em latência, podendo mesmo se tomarem conflituosos e excludentes conforme demonstra Pierre Bourdieu5. A divisão leigo-especialista pode introduzir no plano interno do campo religioso a oposição de classes existente no plano da sociedade global. Estudos recentes4 tendem a explicar os atritos e ressentimen­ tos, efetivos ou latentes, como uma rejeição ao especialista por parte dos leigos. Com referência ao protestantismo, no entanto, não creio que se possa falar em conflito como no caso da religião estabelecida e dominante, o catolicismo. Isto é verdade, pelo menos no momento da implantação do protestantismo. Mais tarde, após o reforço institucional das igrejas, é bem possível que o conflito tenha se estabelecido. É por isso que prefiro ficar, na relação mensagem religiosa do especialista/ assimilação por parte do receptor, no plano prévio da reinterpretação. Para fins de compreensão e de análise da apresentação da mensagem protestante e da forma que assumiu essa mensagem na crença e na prática do protestante comum brasileiro, vou tentar mostrar os dois lados da questão: o do especialista, isto é, do missionário, e o do receptor, isto é, do homem rural brasileiro. Por outras palavras, o aspecto institucional da mensagem e o aspecto da crença e/o u vivência religiosa propriamente dita. Sob o ponto de vista institucional, ou do especialista, a mensagem protestante foi dogmática-epistemológica e polêmica. O aspecto dogmáticoepistemológico envolveu o inculcamento da doutrina ou teologia, e sua respecti­ va visão do mundo e do homem; o polêmico foi o confronto com a religião dominante no sentido de mostrar a sua falsidade em relação à verdade7 do cristianismo protestante. A polêmica com o catolicismo foi necessária na medida em que representava a tentativa de desalojar a religião estabelecida para abrir espaço para a “nova religião”8. Sob o ponto de vista da crença ou vivência religiosa, o protestantismo se apresentou como pietista, de um lado, e milenarista-messiânico, de outro, embora em ambos os aspectos com características próprias. Estas formas de 4

Sobre estes níveis em relação à religião camponesa, ver Wolf, Eric R., 1976, p. 136.

5 Bourdieu, Pierre, 1974, capítulo 2. 6 Benedetti, Luiz R., 1981. 7 A palavra “verdade” para significar a mensagem protestante em relação à fé e prática católicas, é constante nos sermões e artigos de pregadores protestantes e assume um conteúdo epistemológico coloridamente racionalista. 8 “Nova Religião” era uma designação freqüentemente dada ã mensagem protestante pelos que a ouviam pelas primeiras vezes.

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crença, como já foi dito, resultaram da herança cultural religiosa fortemente inculcada e das condições sociais abrangentes. A conseqüência da relação entre a forma institucional da mensagem protestante e as respostas em formas de crenças foi uma forma de vida representada por uma ética fortemente individualista e ascética, negadora do mundo e apolítica.

a) A mensagem institucional O núcleo central da mensagem dos missionários americanos no Brasil foi, sem dúvida, a teologia dos avivamentos americanos de fins do século XVIII e do século XIX, que traz a marca e o colorido do wesleyanismo metodista. No entanto, ela não deixa de trazer, também, os traços das lutas teológicas que perpassaram as igrejas americanas durante todo o século XIX e que produziram um certo cansaço no protestantismo9. Como já procurei demonstrar no Capítulo II, todos os movimentos filosóficos e científicos dos séculos XVIII e XIX, como o Iluminismo e o Evolucionismo, repercutiram intensamente na teologia protestante, assumindo formas diversas como racionalismo, unitarianismo e liberalismo. Por outro lado, um neoplatonismo, surgido já no seio do antigo puritanismo inglês10, percorre persistentemente toda a história do pensamento teológico protestante como um ponto de descanso nas lutas teoló­ gicas. A teologia dos missionários traz as marcas desse protestantismo cansado. A luta no sentido de relacionar constantemente a religião com a sociedade civil em permanente mutação, como era o caso dos Estados Unidos antes e depois da Independência, era tarefa que exigia momentos de descanso. Assim diz Robert T. Handy: “Os líderes religiosos trabalhavam pelo progresso da religião e pelo melhoramento da civilização’’u. Os momentos de descanso consistiam num salto para o mundo do além, deixando este mundo entregue às suas próprias preocupações. Acredito que o melhor material para um levantamento da teologia dos missionários é a hinódia do protestantismo brasileiro, que está inteiramente à nossa disposição. Mas os sermões e outras referências também podem ser usados. Vou tentar combinar esse material no sentido de fazer ressaltar o pensamento teológico subjacente neles à luz da tradição do protestantismo puritano. 9

Sobre esse tema do “cansaço do protestantismo”, ver Handy, Robert T., 1971, p. 33.

10 Sintoma muito nítido na já comentada obra de João Bunyan, O Peregrino. 11 Handy, Robert T., 1971, p. 33.

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a) 1 — Robert R. Kalley (1809-1888) O primeiro missionário a se estabelecer permanentemente no Brasil com trabalhos religiosos, em português, foi o médico escocês Robert R. Kalley. Missionário por conta própria, com sua esposa Sara P. Kalley, é o represen­ tante legítimo do puritanismo escocês já mesclado de wesleyanismo-metodísta. A melhor fonte de sua teologia são os seus hinos, assim como os de sua esposa, muitos traduzidos e adaptados e outros escritos aqui, mas todos tendo em vista a disseminação do protestantismo no Brasil. A teologia do amor de Deus, isto é, que Deus ama a todos os homens, embora pecadores, e quer salvar a todos, pensamento que perpassa o purita­ nismo inglês e ganha grande importância no metodismo, está patente nos Kalley. A correspondência a esse amor universalista de Deus, que se contrapõe à doutrina clássica da predestinação calvinista, é individual e voluntária. A salvação assim aceita não é definitiva como no calvinismo ortodoxo, mas sujeita à “recaída”,12 mediante as tentações do mundo. Daí a necessidade de uma ética rigorosa que mantenha bem nítida a linha divisória que separa o fiel do mundo, linha esta que tem de ser robustecida num constante esforço de purificação e santificação. Kalley, logo que chegou ao Rio de Janeiro, traduziu e publicou, em série, no CORREIO MERCANTIL, “O Peregrino”, de João Bunyan13. A ideologia religiosa deste famoso livro, que já foi vista no capítulo II, reflete o universalismo do amor de Deus, o individualismo e a peregrinação do pecador, em meio a dúvidas e tentações que podem fazê-lo perder a rota, até a gloriosa Cidade de Deus. Por certo Kalley assumia a teologia de Bunyan, caso contrário não teria tido o trabalho de traduzi-lo e publicá-lo. Mais tarde, outra não menos famosa obra, o sugestivo quadro intitulado “Os dois caminhos”, também já mencionado neste trabalho e que, de certo modo, reproduz pictoricamente a teologia de Bunyan, veio a se tornar comum nas casas de protestantes brasileiros. Os hinos de Kalley testemunham a sua teologia. Este salienta o tema do amor universalista de Deus: Louvemos todos ao Pai do céu, Porque amou aos pecadores; E seu Filho querido deu Para sofrer as nossas doresu. Este, a decisão pessoal: 12 Graham, Richard, 1973, p. 295. 13 Rocha, João G., Lembranças do Passado, vol. 1, p. 47 — Kelley deu à obra o título de A Viagem do Cristão; os capítulos, em número de 35, saíram entre 5 de outubro de 1856 e 10 de dezembro do mesmo ano, de dois em dois dias. 14 Salmos e Hinos, n.° 32, 1899. Este foi o primeiro hino em português escrito por Kalley, em 1842, quando ainda na Ilha da Madeira (nota na edição de 1975 dos Salmos e Hinos com Músicas Sacras, em que o aludido hino traz o n.° 45).

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Assim como estou, sem ter que dizer Se não que por mim vieste morrer, E me convidaste a Ti recorrer; Bendito Jesus, me chego a Ti!'s Este sobre o temor da “recaída”, escrito por Sarah P. Kalley: Ensina-me a fugir Do lobo Satanás, E no caminho prosseguir Da Santidade e paz!'6 Sobre a vigilância dos atos da vida, este hino de Sarah P. Kalley: Quando para o mal tentados, vê-nos Jesus! Se cairmos nos pecados, vê-nos Jesus! Ele nunca está distante, Mas com coração amante, Nos contempla vigilante, vê-nos Jesus!'7 Em suma, o pensamento teológico de Kalley, por que não dizer dos Kalley, reflete o voluntarismo individualista voltado para a negação do mundo. Sarah P. Kalley assim expressa esse pensamento num hino escrito em 1863: A ndo errante no deserto Peregrino, triste, aqui; Fraco, e com o passo incerto, Olho, Cristo, para ti! Mas nos céus os fatigados Têm descanso! têm descanso! Livramento dos pecados! Sim há paz ali!'6 Kalley não estava ligado a nenhuma missão, não representava, portanto, nenhuma igreja. Não estava muito preocupado com a instituição, com sacra­ mentos e ordenações e nem com uma teologia determinada19. Seu ensino, porém, ao meu ver, era o do especialista e chegava ao fiel como sendo o da igreja, “lato sensu”. 15

Salmos e Hinos,n.° 39, edição 1899 (adaptação de Kalley).

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Salmos e Hinos, edição de 1899, n.° 109.

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Salmos e Hinos, edição de 1899, n.° 188.

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Salmos e Hinos, edição de 1899, n.° 62.

19 Graham, R., 1973, p. 297.

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a) 2 — Ashbel G. Simonton (1833-1867) No capítulo III já tive a oportunidade de estudar a mensagem deste pioneiro do presbiterianismo no Brasil, na tentativa de sentir o seu pensamento sobre a religião dominante. Agora, cabe a tarefa de buscar os contornos do seu pensamento teológico, verdadeira matriz do presbiterianismo. Nesta tarefa vou buscar, primeiro, as origens religiosas de Simonton e, depois, voltar à análise da coletânea de Sermões que dele possuímos, pregados no Rio de Janeiro entre 1864 e 186720. O Editor da Coletânea, Rev. Alexander L. Blackford, cunhado de Simonton e continuador imediato da missão presbite­ riana no Brasil, tendo aqui chegado em 1860, sete anos antes da morte do pioneiro, dá no prefácio alguns informes sobre o autor e sua obra. Simonton fora, no seu batizado, consagrado por seus pais ao ministério sagrado e o “instruíram cuidadosamente nas Sagradas Letras”. Em 1852, Simonton concluiu curso no Colégio de Princeton, Nova Jersey, “uma das melhores instituições de seu gênero nos Estados Unidos”. Encetou estudos de direito, mas logo mudou de rumo. Assim narra Blackford as razões dessa mudança: “Logo, porém, depois de começar o estudo de direito, foi convertido a Cristo. O seu coração, que por muitos anos, resistira aos convites do Salvador e aos impulsos do Espírito Santo, rendeu-se, afinal, humil­ de e dócil. A mudança foi radical, e dali em diante a sua vida teve nova mira em vista. Reconheceu por suás próprias as obrigações dos votos feitos por seus pais a seu batismo (sic), e não pode esquivar-se ao cumprimento dos deveres que importaram-lhe”7'. Simonton formou-se em teologia no Seminário de Princeton, em 1858. Recebeu ordens como ministro da Igreja Presbiteriana, em 1859. Chegou ao Rio de Janeiro, como missionário, em agosto do mesmo ano, e morreu em São Paulo, em 1867, provavelmente de febre amarela. Está sepultado no Cemitério do Redentor (Cemitério dos Protestantes), à Av. Dr. Arnaldo, ao lado de outro pioneiro do protestantismo no Brasil, o ex-padre Rev. José Manuel da Conceição. Informa ainda, Blackford, que “o tratado sobre A MORTE E O FUTURO ESTADO DOS JUSTOS não foi escrito pelo Sr. Simonton. É extraído de vários artigos publicados em 1868, no 4.° volume da IMPRENSA EVANGÉ­ LICA22, da qual ele foi por alguns anos o principal redator. A importância do assunto de que se trata nestas páginas e o precioso testemunho do Sr. Simonton nelas citado induziram o editor a inseri-la neste volume”. Naturalmente, Blackford está dizendo que a redação final, como aparece na 20 Simonton, A.G., 1869. 21

Blackford, A.L., prefácio a Simonton, 1869.

22 Semanário fundado por Simonton, em 1864, que circulou durante vinte e oito anos (até 1892).

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Coletânea, não é de Simonton, mas reproduz o seu pensamento, exposto em artigos na IMPRENSA EVANGÉLICA. Realmente, a afirmativa de Blackford sobre a “importância do assunto” e “o precioso testemunho de que se trata nestas páginas” põe em relevo o pensamento de Simonton nesse seu trabalho, que aparece às páginas 183 e seguintes da Coletânea. Já examinei esse trabalho nas suas alusões à Igreja Católica (Cap. III). Este prefácio de Blackford, parente e companheiro de trabalho de Simonton, é importante como testemunho do tipo de conversão do pioneiro, assim como de seu pensamento; a própria seleção de sermões feita por Blackford pode indicar que, com certeza, conhecendo ele muito bem o modo de pensar “simontoniano”, é o que melhor representa esse mesmo modo de pensar. Mas é necessário, antes de encetar a análise do pensamento de Simonton, buscar mais alguns informes sobre suas origens. Os anos de formação de Simonton foram o período de lutas políticas e econômicas que antecederam a Guerra Civil e que se refletiram em tensões dentro dos círculos presbiterianos. Principalmente por causa da questão escravocrata, os presbiterianos se dividiram em 1837, formando a Igreja do Sul e a Igreja do Norte, à semelhança do que ocorreu com a maioria das denominações americanas. Embora Simonton pertencesse ao “Board” de Nova Iorque, mantido pela Igreja do Norte, menos conservadora, suas tendências teológicas, seguindo sua experiência de con­ versão à maneira metodista, vão mostrar uma certa ambigüidade quando se tem em vista o clima do pensamento do protestantismo americano do seu tempo, já sob a intensa influência do metodismo. A partir de 1830 os pres­ biterianos já se achavam teologicamente divididos. A linha mais ortodoxa da tradição escocesa-irlandesa dos puritanos da Nova Inglaterra era represen­ tada pela chamada “Velha Escola” (Old School Presbyterians), e a linha de tendência avivalista nò espírito metodista pela “Nova Escola” (New School Presbyterians). Havia rachaduras mais profundas na teologia dos presbiteria­ nos, como a negação do pecado original por Albert Barnes, teólogo da “Nova Escola”, para quem “o pecador não era responsável pela transgressão de Adão”. Lyman Beecher, presidente do Lane Seminary, também foi acusado pelas autoridades eclesiásticas, em 1834, de heresia em relação ao pecado ori­ ginal23. A negação do pecado original era necessária para que pudesse ser ressaltada a capacidade humana em todos os sentidos e se constituía na avenida pela qual os presbiterianos podiam caminhar para a teologia dos avivamentos. Mas era uma rachadura imensa na ortodoxia calvinista. Segundo Clifton E. Olmstead, a menor causa de tensão entre os presbiterianos era a questão es­ cravista, embora a “Nova Escola” fosse mais agressivamente oposta à escra­ vidão do que a “Velha Escola”. Com o passar do tempo, a rigidez da “Velha Escola” foi diminuindo através de formas compromissadas de pensamento, 23 Olmstead, Clifton E., 1961, p. 79 — Sobre essas polêmicas entre os presbiterianos, ver também Elsbree, Oliver W , 1928, pp. 25/26.

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como Charles Hodge (1797-1878), que ensinava em Princeton a centralidade da Teologia do Pacto, assim como a inspiração verbal da Bíblia e ao mesmo tempo uma visão mais liberal nesta questão, ao admitir a possibilidade de erros por parte dos escritores sagrados. Insistia, também, na salvação de todos que morriam na infância. Hodge contribuiu para abrandar o espírito polêmico da “Velha Escola”24. ■ Apesar de Simonton ter estudado em Princeton, então reduto do pensamento presbiteriano conservador do Norte25, ele apresenta, como já foi dito, uma certa ambigüidade de pensamento e de ação refletindo a situação de tensão vigente nos círculos presbiterianos até bem depois de ter ele deixado o Seminário24. Por exemplo, em Princeton o pensamento conservador defendia a chamada teologia da Igreja Espiritual, isto é, que a Igreja nada tem a ver com os negócios humanos, que são objeto da política (‘Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’). Simonton aderiu à teologia da Igreja Espiritual, o que se infere pelo seguinte registro em seu Diário: “Um jovem, que tem assistido aos cultos, parece ávido da verdade e da importância de uma religião espiritual”27. Anteriormente ele já registrara o seguinte: “O mundo apela para o que é sensual. . . Para viver é necessário ele­ var-se a outra atmosfera, absorvendo todo o poder de um mundo des­ conhecido da vista, e de Jesus, o Salvador invisível”28. Simonton está preocupado com um outro mundo, distante das preocupa­ ções humanas. O “sensual” para ele é o oposto do mundo platônico para o qual a Igreja devia transportar-se. A teologia da Igreja Espiritual constituía-se num esforço para contornar o agudo problema da escravidão, no sentido de afastá-lo da Igreja para o da política. Hodge, o já citado teólogo de Princeton, afirmava não ter encontrado, nas Escrituras, nenhuma condenação da escravidão assim como nenhuma evi­ dência de que Cristo ou os apóstolos tivessem clamado contra ela. Esperava, no entanto, que o progressivo desenvolvimento do negro trouxesse de modo natural o fim da servidão29. Vê-se que havia uma preocupação por parte da mentalidade conservadora de sair do impasse sem grandes arranhões.Parece, por aí, que a teologia da Igreja Espiritual era bastante adequada para um prudente distanciamento da Igreja dos graves problemas da sociedade abran­ gente. 24 Ibidem, pp. 79/80. Não deixa de ser significativo o fato de que Simonton deve ter sido aluno de Charles Hodge pelo que ele diz em seu Diário, dia 11/4/1860. 25

Reily, A.D., 1977, p. 18.

26

Mclntire, Robert L., 1969, p. 4/2.

27

Simonton, Ashbel G., 1962, pp. 79/80. O grifo é meu.

28

Ibidem, p. 77, registro de 14/2/6/1861. Os grifos são meus.

29

Olmstead, Clifton E , 1961, p. 95.

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Simonton não assume inteiramente, porém, o ensino de Hodge na eqüidistância em relação à escravidão. Surpreende-nos vê-lo colocar-se em posição contrária, pelo registro que ele fez no seu Diário, em 28/9/1859: “Tive uma discussão com S., que muito lamento. Foi uma discussão sobre escravos. Ele é desarrazoadamente pró-escravatura, e eu, opondo-me à idéia, só consegui prejudicar a minha posição, perdendo influência sobre ele’’30. Em 19/7/1861, comentando os primeiros eventos da Guerra Civil em seu país registra Simonton, de passagem: “Outra esperança que não parece grande demais para ser alimentada é a do 'início do fim ’ da escravidão"31 Quando de sua estada nos Estados Unidos, entre 1862 e 1863, em plena Guerra Civil, registrou Simonton em seu Diário, em 3/1/1863: “Não antecipo paz nem sossego enquanto continuar o presente regime de escravidão. Ê um sistema que clama por justiça. Cedo ou tarde o julgamento virá. Não duvidei nunca, desde o princípio, de que a controvérsia de Deus conosco, como nação, diz respeito à escravatura. Deve haver algum modo de se promover a abolição”32. Simonton escrevia isto dois dias após o Presidente Lincoln ter proclamado a libertação dos escravos nos estados rebeldes. Desse modo, vê-se que Simonton, adepto de uma escola teológica que parecia adequada para justificar, ou pelo menos eludir o problema da escravidão, firma-se na linha oposta, isto é, da “Nova Escola”. No entanto, toda a carreira ministerial de Simonton está ligada institucionalmente à “Velha Escola”. Em 1855 foi recebido como membro da Igreja Presbiteriana Inglesa de Harrisburg, Pensilvânia, ligada à “Nova Escola”. Mas quando esta Igreja foi destruída pela fogo, Simonton e outros membros dela fundaram, em 1858, a Igreja Presbiteriana de Harrisburg, jurisdicionada ao Presbitério de Carlisle, ligado à “Velha Escola”. Simonton, em abril de 1859, recebeu ordens sacras desse mesmo Presbitério. Quando em 1865, ele ajudou a fundar o primeiro presbitério no Brasil, o Presbitério do Rio de Janeiro, base da relativa autonomia da Igreja Presbiteriana no País, foi ele filiado ao Sínodo de Baltimore, também da “Velha Escola”33. Como bem diz Robert L. Mclntire, as tendências teológicas de Simonton só podem ser inferidas no seu Diário, uma vez que jamais ele se declara desta ou daquela Escola. Assim, em 21/2/1855, antes de entrar para o seminário, ele registrou: 30 Simonton, Diário, 1962, p. SS. 31 Ibidem, p. 79. 32 Ibidem, p. 92. 33 Mclntire, Robert L., 19S9, pp. 4/3.

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“John chama-me de velho antiquado, que defendo doutrinas velhas e gastas que estão na iminência de serem ultrapassadas. Há muita verdade nesses ataques. Eu não sustento que mudança é progresso, revolução, reforma”34. A preferência de Simonton pela teologia da Igreja Espiritual e sua carreira ligada institucionalmente à “Velha Escola”, parecem confirmar a tendência conservadora registrada precocemente em seu Diário. Seu antiescravismo mais coerente com a “Nova Escola” pode ser levado à conta de seus sentimentos humanos, mas não a de uma rigorosa coerência teológica. Daí, aquela ambigüi­ dade de pensamento que parece situar Simonton como que suspenso entre o céu e a terra. O que parece explicar essa ambigüidade de Simonton é a sua conversão à maneira metodista. Simonton formou-se, repetimos, num clima de grandes controvérsias teológicas, especialmente entre os presbiterianos. Como diz Ro­ bert L. Mclntire, “é freqüente os períodos de controvérsias teológicas condu­ zirem a despertamentos espirituais”35. Essas controvérsias teológicas, A Guerra Civil e os “avivamentos”, opina ainda Robert Mclntire, influíram na história das missões no Brasil através de Ashbel Green Simonton. Parece-me, portan­ to, que ele trazia a marca do conservadorismo dos puritanos calvinistas e mais a influência religiosa dos avivamentos. A onda do “avivamento” da década de 50 chegou a Harrisburg, onde Simonton se encontrava, em 1855, e atingiu as igrejas Metodista, Luterana e Presbiteriana, da qual ele era membro. Havia reuniões todas as noites, e a religião passou a ser assunto predominante na cidade. Simonton, que estudava direito na ocasião, aceitou o apelo da última noite de reuniões e registrou no seu Diário, em 10/3/1855: “Já vivi o suficiente para refletir que os assuntos da eternidade são muito mais importantes do que os temporais, que a eternidade ê mais longa que o tem po. . . a alma imortal tem que ser satisfeita. Honras e riquezas são suprema loucura"36. Esse registro da decisão de Simonton confirma sua adesão à Igreja Espi­ ritual. Insisto neste ponto porque essa doutrina, colorida pelo individualismo e demais ênfases metodistas e pietistas, irá condicionar o pensamento protes­ tante no Brasil ao lado do conservantismo puritano. É bastante significativo o fato de que “O Peregrino” de Bunyan tenha sido, à semelhança do que ocorrera com Kalley, um dos primeiros textos que Simonton usou no Brasil para o ensino religioso. Em 28/4 /1 8 6 0 ele registra em seu DIÁRIO: “Sábado passado, dia 22, dirigi uma Escola Dominical em casa. Foi ■ o meu primeiro trabalho em português. Os filhos de Ewbank estiveram 34 G tado por Mclntire, ibidem, pp. 4/3. John era irmão de Simonton. 35 Ibidem, pp. 4/4. 36 a ta d o por Mclntire, Robert L., 1959, p. 415.

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todos presentes, além de Amália e Mariquinhas Knaack. A Bíblia, um catecismo de história sagrada e “O Peregrino" de Bunyan foram os compêndios usados”37. Simonton mostra uma grande preocupação com a religião interior, com a vida íntima, pessoal, e por esse prisma, critica o “deísmo” dos estrangeiros protestantes no Brasil, principalmente ingleses e americanos com os quais ele teve maior contato, assim como o “sensualismo” da religião dos naturais da terra. Se o “deísmo” representava um racionalismo em que o distanciamento e a indiferença do sobrenatural valorizavam o terreno, o “sensualismo”, embora não se esquecesse do sobrenatural, trazia-o familiarmente para o mundo dos homens. De qualquer modo o espiritual, o sobrenatural, em cuja supremacia Simonton acreditava, acaba sendo obscurecido pelos negócios humanos. Há três registros no seu DIÁRIO que mostram essas tendências: “ . . . quando olho para dentro, a fim de avaliar o progresso que tenho feito a caminho do céu, no cultivo das graças espirituais, na mortifi­ cação do pecado e no desenvolvimento da aptidão para o trabalho, tenho profundas razões para dúvidas e acabrunhamentos”38. “O que me afeta mais é que todos os estrangeiros que vivem aqui, protestantes nominais, rejeitam o Evangelho e descrêem dele. Deus existe e sua lei moral deve ser obedecida como for possível, mas a divindade de Cristo, o sacrifício e a salvação continuam a ser negados universalmente. Não há esperanças para o Brasil, com os estrangeiros que ora se misturam aos seus habitantes. Uma crença superficial, irrefletida, desarrazoada, os afeta a todos”39. “O mundo apela para o que é sensual”*0. ‘‘Um outro jovem, que tem assistido aos cultos, parece ávido e persuadido da verdade e da impor­ tância de uma religião espiritual’’*'. Bem mais tarde, após passar pela crítica experiência da perda de sua mulher, aparentemente vítima de complicações puerperais, registra Simonton: “O céu ê o lar dos crentes. Tudo o que é mais caro se encontra lá: pai, mãe, irmã e esposa. Jesus está lá”*2. Parece, portanto, que o pensamento de Simonton era firmemente espiri­ tualista no sentido mais rigoroso do termo, da duplicação perfeita do mundo, em que um é mau e provisório e o outro é bom e permanente. Era esse o leme 37 Diário, 1962, p. 68. 38 Simonton, Diário, 11/4/1860, p. 67. 39 Ibidem, 14/2/1861, p. 77. 40 Ibidem. 41 Ibidem, 25/11/1861, p. 79. Pelo contexto parece estar referindo-se Simonton a um jovem brasileiro. 42 Simonton, ibidem, 31/7/1864, p. 107.

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da verdadeira religião para Simonton, o que ele desenvolve com brilho sem dúvida, nos seus sermões. A crença nos dois mundos pressupõe uma fé interior e uma ética que estabelece as normas para se viver no provisório com os olhos no permanente. Essa ética, ao afirmar o permanente nega o provisório, não pode se constituir só de regras exteriores, mas deve ser o resultado de uma disposição interior e pessoal. Não depende dos recursos humanos, mas decorre da graça divina. No seu sermão “Entrai pela Porta Estreita”43, que pelo título se sente a influência da “Jornada do Peregrino”44 e do clima do famoso quadro “Os Dois Caminhos” que surgiu não se sabe bem quando, Simonton vai delineando sua teologia que, aqui e ali, já se esboçara no seu DIÁRIO. As citações abaixo mostram como ele encaminha suas idéias no citado sermão: • “Para ser cristão é não só necessário ser batizado, mas é preciso estar arrependido e contrito de coração” (p. 15). • “A verdadeira religião exige um culto não fingido e falso, mas nascido de um espírito atribulado e sincero” (p. 16). • “A verdadeira religião é uma religião que aperta” (p. 18). • “A vida do cristão é uma carreira. O cristão nunca pode encostar suas armas para descansar” (p. 23). • “Não se pode gozar a amizade de Cristo e do Mundo” (p. 24). Para Simonton, uma verdadeira religião tem que atender aos anseios humanos diante das realidades existenciais. No sermão “A MORTE E O FUTURO ESTADO DOS JUSTOS”45 ele afirma: “Só pode ter jus de chamar-se religião verdadeira, divina e católica, aquela que é adequada a estas circunstâncias invariáveis do ente ao qual ela se dirige, que supre as necessidades que ele sente, ministralhe o alívio de que carece, satisfaz as suas aspirações, dá-lhe a segu­ rança de uma vida feliz no porvir, tão duradoura como a imortalidade” (p. 197). A valorização da vida futura permite superar os sofrimentos do presente e dá consolo diante da morte. Para Simonton, esta é a função da verdadeira religião. Não vou abrir um espaço especial para o companheiro e sucessor de Simonton, que foi A. L. Blackord. No prefácio que ele escreveu para o livro de sermões revela-se a sua identificação com o pensamento do pioneiro. Os historiadores concordam que Blackford não foi um homem de pensamento vigoroso, mas sim um grande trabalhador. 43

Simontom A.G., 1869.

44 The Pilgrim’s Progress from this world to that which is to come, título original da obra de John Banyan. 45 Simonton, A.G., 1869.

7 - Celeste porvir

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No entanto, se Simonton deixou sermões e poesias, que aparecem às vezes no fecho dos sermões, Blackford deixou um hino que não destoa da linha geral de Kalley e Simonton, da teologia dos dois mundos, mas que acrescenta um forte acento pietista46: “A o Céu eu vou, ao Céu, ao Céu eu vou; Eu me firmo em ti, Jesus! Já salvo sou, pois me salvou Tua morte sobre a cruzJ (coro) Teu puro sangue carmezim Da culpa vil livrou-me aqui, Ventura gozarei ali; Viverei com meu Jesus!’’ (2.a estrofe)

a) 3 — José Manuel da Conceição José Manuel da Conceição, o primeiro pastor protestante brasileiro, após abandonar a Igreja Católica e passar para a Presbiteriana, dedicou-se mais à polêmica. Não foi pastor de nenhuma igreja mas consagrou-se a “corrigir” o que anteriormente havia ensinado aos seus antigos paroquianos. Seu com­ pêndio de teologia era a Bíblia e seus princípios os da Reforma. Sua perso­ nalidade nunca foi bem compreendida, mesmo pelos missionários que com ele conviveram, mas é certo que Conceição, ao lado dos conhecimentos da história da Reforma que certamente adquiriu na biblioteca de Langaard, e que constituem a linha divisória entre o protestantismo e o catolicismo, parece ter assimilado bem o pensamento dos missionários. Conceição escreveu artigos, sermões e hinos. Artigos e sermões estão nos jornais protestantes da época, “Imprensa Evangélica” e “Púlpito Evan­ gélico” . Dos hinos que escreveu um está nos Salmos e Hinos (n. 448). Vicente Themudo Lessa, na sua biografia de Conceição47, transcreve três hinos dele, sendo um o já mencionado. Este hino, além da linguagem característica do pietismo e do individualismo, traz a marca indelével da teologia dos dois mundos: Se o Soberano Monarca Dos homens na multidão M e discerne, se me marca Na palma de sua mão: Que m’importa a mim, ó mundo! Se sempre me desconheces! Tu, com teu olhar profundo, Tu, Jesus, Tu me conheces. 46 Salmos e Hinos, edição de 1899, n.° 471, (Escrito em 1888). 47

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Lessa, V.T., 1935.

Este outro: Oh! que terra! que morada Gloriosa além nos céus! Lá sorrindo-se enlevada MinKalma verá a DeusZ48 O combate pela vida moral pessoal está bem exemplificado no hino inti­ tulado “O Cristão como cidadão”: “Quero mesmo aprender a me vencer, A tudo dar de mão forte atrativo, A ver se dos sentidos sobrevivo A o combate proposto até morrer”.49 O sermão “Por que ignoramos a Eternidade”50, ao lado de conceitos polêmicos contra a Igreja Católica, fornece os traços da teologia de Conceição. A religião individual e interior, a recompensa no além pelo que o homem fizer nesta vida, a ênfase no valor da vida futura localizada e reduplicativa, em melhores condições, da vida presente, indicam identificação com a teologia dos missionários. A parte final do sermão, patética, mostra grande ênfase na Pátria Celeste. O homem é estrangeiro no mundo e anseia pela sua verdadeira pátria, onde vai encontrar seus parentes e amigos que já morreram: “Consola-te, 6 minha alma, Deus tem preparado o teu sossego, e conservado a tua Pátria onde acharás por fim o que tinhas perdido aqui. Não estarás sozinho, os caros já te esperam. Eles se acercam de ti com as palmas da vitória, que deves ganhar aqui. Levanta-te minha alma! Termina este combate. Eleva-te pela santa palavra de Jesus e por sua santa vontade. Por meio dele somente te poderás tomar cidadão de uma vida mais bela, e participante de um futuro bem-aventurado!”5' Conceição, neste sermão, no seu ardor religioso, aproxima-se perigosa­ mente dos limites que a ortodoxia protestante poderia permitir. O céu de Conceição é quase material, é a revelação de um filme fotográfico em que a vida cotidiana é meramente o negativo. Suas palavras lembram o célebre sermão de Vieira, pregado em Lisboa, em 1644, sobre “As Glórias de Santa Teresa”: o amor de Jesus por Madalena é terreno, mas por Santa Teresa é celestial. O que estaria por trás destas idéias de Conceição? Sua tradição cató­ lica que, por sua vez, trairia um certo odor de islamismo? Ê temerário fazer 48 Lessa, V .L, 1935, p. 91. 49 Ibidem, p. 92. 50 In Lessa, V.T., 1935, Apêndice. 51

Lessa, V.T., 1935, Apêndice, p. 88.

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afirmativas, mas o certo é que o pensamento de Conceição parece ter acom­ panhado a crença protestante no Brasil, ao menos ao nível do subliminar. Os biógrafos de Conceição, principalmente Boanerges Ribeiro52, entendem que o pensamento e ação desse homem de comportamento estranho, que causou perplexidade aos seus amigos missionários, não estava preocupado em protestantizar mas em reformar a religião na direção de uma nova compreen­ são do cristianismo a partir do conhecimento da Bíblia. Daí, escrever ele na sua “Sentença de Excomunhão e Resposta”, publicada em maio de 1867: "Quando a Bíblia correr pelas mãos de todos os povos, então se hão de realizar as promessas do Salvador, que a religião dele prevale­ cerá em toda a Terra. Manijestar-se-á então a universalidade da sua Igreja"53. Enfim, o pensamento de Conceição, por não ter passado pelo academismo da tradição protestante e por ter vindo diretamente do catolicismo, é muito simples e, se visto com atenção, parece indicar a crença do protestante comum brasileiro que tem, como pano de fundo, a própria cultura religiosa brasileira. Voltarei a este tema mais adiante.

a) 4 — A teologia dos metodistas e batistas Este trabalho, como já foi estabelecido desde o início, preocupa-se com as denominações protestantes que mais profundamente conseguiram penetrar na sociedade brasileira. Gira mais ele, portanto, em tomo dos congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas, embora o seu centro esteja nos presbi­ terianos que, historicamente, ocuparam o maior espaço no período de implan­ tação do protestantismo no Brasil, isto é, a segunda metade do século XIX. Além disso, pela minha formação, é a denominação com a qual tenho maior familiaridade. Por isso, já tentei fazer um levantamento do pensamento teoló­ gico dos congregacionais e presbiterianos naquele período, ramos da mesma família reformada. Resta ver agora, alguma coisa dos metodistas e batistas. Embora esteja eu reservando a análise do que é, ao meu ver, a principal fonte de explicitação da fé protestante no Brasil, o seu livro comum de cân­ ticos religiosos nas primeiras décadas (SALMOS E HINOS) para outras partes deste capítulo, terei de antecipar alguma coisa ao tratar do pensamento dos metodistas e batistas. É que nos SALMOS E HINOS encontram-se contri­ buições significativas de missionários dessas denominações, o que expressa uma indiferenciação teológica nuclear. Nos SALMOS E HINOS aparecem quatorze hinos de autores batistas, sendo dez de Salomão L. Ginsburg, um judeu-cristão, missionário no Brasil,

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52

Ribeiro, Boanerges, 1950.

53

Lessa, V.T., 1935, p. 33.

c quatro de W. E. Entzminger54. Alguns desses cânticos, especialmente os deste último autor, foram incluídos tardiamente nos SALMOS E HINOS, isto é, no terceiro volume da coleção que estou usando, editado em Londres, em 1916. Os dois primeiros foram editados em Edimburgo, em 1899. É pro­ vável, no entanto, que aqueles cânticos já circulassem nas congregações a ponto de justificar sua inclusão posterior. Se isto não ocorreu, prova-se pelo menos que eles não destoavam da linha doutrinária dos presbiterianos, prin­ cipais usuários da coleção, e, muito menos dos congregacionais, proprietárioseditores até hoje dos SALMOS E HINOS. De fato, o exame desses cânticos mostra desde logo a uniformidade de pensamento que há entre eles e os de Kalley, de Blackford, Conceição e de outros da mesma tradição denominacional e teológica e, para isso, alguns exemplos são suficientes. Este de Salomão L. Ginsburg sobre conversão pessoal e recusa do mundo: Todo, ó Cristo, a ti entrego, Corpo e alma eis-me aqui! Todo o mundo eu renego, Digna-te aceitar-me a mim!55 Este sobre o milênio: Cristo em breve do céu virá, Ele prometeu e não tardará! Que alegria e glória será, Quando Jesus regressarZ54 De W. E. Entzminger basta mencionar um: Em breve a vida vou findar, aqui não mais eu cantarei Mas eu então irei morar lá, na presença do meu R e i57 Os HINOS. só dois volume,

metodistas contribuíram com nove cânticos para os SALMOS E Justus H. Nelson escreveu sete e J. J. Ransom dois. Destes nove podem ser considerados tardios. Os demais aparecem no segundo editado em 1899.

Dos sete hinos de Justus H. Nelson, cinco versam sobre o tema do milênio e sobre o motivo pietista. Todos eles são dos mais cantados pelos protestantes, como será mostrado mais adiante. Sobre o milênio há dois muito significativos e de boa qualidade poética em relação à maioria dos que constam do tradicional hinário: 54 Braga, Henriqueta R.F., 1961, p. 195. 55 Salmos e Hinos, 3.° vol. 1916, n.° 534. 56 Salmos e Hinos, 3.° vol., 1916, n.° 537. 57 Ibidem, n.° 572.

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Na terra abençoada estou; Por Beulá peregrino vou; Delícias abundantes são; E só dos céus saudades dão ( l.a estrofe) Coro — Ó bela terra de amor! Do alto monte encantador Olhando vejo além do mar (Que em breve hei de atravessar) a praia áurea, eternal, Querido lar celestial58. Este cântico desenvolve o tema do capítulo XX de “O PEREGRINO”, de Bunyan, que por sua vez, é uma paráfrase dos textos bíblicos de Cânticos de Salomão 2,10-12 e Isaías 62,4-12, que falam de uma restauração total da natureza à semelhança do surgir rápido da primavera na Palestina, que anun­ cia e já começa a mostrar o Reino Messiânico. São as palavras de Bunyan: “Depois das agradáveis práticas que acabo de referir, vi, em meu sonho, que os peregrinos tinham já passado a terra encantada, e estavam à entrada do pcús de Beulá”. Este outro segue a mesma linha de inspiração: Da linda pátria estou bem longe; Cansado estou; Eu tenho de Jesus saudade; Ó! quando é que vou? Passarinhos, belas flores Querem m ’encantar: Ô! terrestres esplendores! De longe enxergo o lar.19

-

O tema de “O PEREGRINO” continua no alerta ao fiel contra as atra­ ções mundanas que, por mais deslumbrantes que sejam, não devem impedi-lo de manter os seus olhos fitos num além melhor. A jornada do peregrino está cheia de tentações e embaraços. Ê da experiência do autor deste trabalho o quanto estes hinos são cantados pelos protestantes, e que candentes emoções favorecem nas congregações, principalmente sertanejas. Mas Justus H. Nelson escreveu também um outro hino, muito cantado, que exprime intenso pietismo: Achei um bom Amigo, Jesus, o Salvador, 58 Salmos e Hinos, 2.° vol, 1899, n.° 401. 59 Ibidem, n.° 403.

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O Escolhido dos milhares para mim; Dos vales é o Lírio; Ê o forte mediador, Que me purifica e guarda para Si; Consolador amado, Meu protetor do mal, Solicitude minha toma a Si; Dos vales é o Lírio, A Estrela da Manhã, O Escolhido dos milhares para mim.60 O outro metodista, J. J. Ransom, escreveu dois hinos pietistas: Eu te quero, eu te quero, Meu Jesus e meu Senhor, Sê meu guarda, vem guiar-me Nesta vida de horror. Livra-me dos meus pecados, Dá-me puro coração, Pois seguindo-te obediente, Provarei a salvação41 Por meus delitos expirou Jesus, a vida e luz; O meu castigo ele esgotou Na ensangüentada cruzf2. O primeiro mostra, à semelhança do último de Justus H. Nelson, aquela linguagem de intimidade com Deus típica do pietismo, e o segundo repisa o tema da cruz e do sacrifício cruento. Este último é bastante cantado pelos protestantes. Quanto aos metodistas, congregacionais e presbiterianos, não é neces­ sário ir mais além. Ressalvadas certas ênfases, especialmente adisciplina e o sistema de governo eclesiástico, que acompanharam astradições denominacionais, pode-se dizer que a teologia era mais ou menos uniforme em torno do núcleo da teologia dos avivamentos americanos, que por sua vez, repro­ duzia a tradição metodista. . Os batistas, incluídos no mesmo núcleo teológico dos demais, merecerão na seção seguinte algumas indicações sobre suas peculiaridades que, embora não os diferenciem teologicamente, dão-lhes um colorido típico de grupo quase separado. 60 Salmos e Hinos, edição de 1899, 2.° vol., n.° 402. 61 Salmos e Hinos, Edição de 1899, 2.° vol., n.° 362. 62 Ibidem, n.° 363.

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a) 5 — Unidade teológica dos protestantes no Brasil Sob o ponto de vista formal, congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas, transplantaram para o Brasil o protestantismo típico norte-ameri­ cano. As denominações vieram e se implantaram com suas características for­ mais próprias, isto é, com suas tradições de governo eclesiástico necessárias à estruturação de seus próprios trabalhos no sentido de implantação e esforço de propagação. Todas elas mantiveram o princípio geral de associação volun­ tária, e nem podia ser diferente. Nos Estados Unidos, a índole dos coloni­ zadores, contrária à pressão religiosa da Igreja Oficial, com seus sistemas paroquial e compulsório, partira para o voluntarismo; no Brasil, os missio­ nários encontraram uma igreja estabelecida e oficial exatamente no mesmo modelo da Igreja da Inglaterra. Por princípio ou pela conjuntura, o caminho teve que ser o mesmo. De certo modo, e guardadas as circunstâncias próprias de uma cultura completamente diferente e da presença de uma Igreja oficial, a “invasão” protestante no Brasil reproduziu o protestantismo de fronteira dos americanos. Quase se pode dizer que a empresa missionária no Brasil foi um alargamento daquela fronteira: sua teologia, sua liturgia e sua estratégia de propagação se ajustaram aqui tão bem quanto se haviam ajustado às zonas pioneiras ameri­ canas. Não se pode deixar de lado, porém, que as condições peculiares do Brasil imprimiram sua marca nesse protestantismo indiferenciado e “sui generis” quando comparado com os outros protestantismos, mesmo o americano e, principalmente, os europeus. Pretendo, em seguida, mostrar o porquê dessa indiferenciação. Nos primeiros tempos não houve, no Brasil, nenhuma ênfase denominacional. A ideologia da empresa missionária nas igrejas européias e ameri­ canas tendia a ser teologicamente monolítica, o que se constituía numa estra­ tégia tanto do ponto de vista interno do cristianismo protestante como dos seus objetivos externos. Internamente, seria estrategicamente contraproducente apresentar a pagãos ou a católico-romanos as complicações teológicas de cada tradição denominacional, estabelecendo concorrência que seguramente contri­ buiria para aumentar a desconfiança dos receptores da mensagem; externa­ mente, isto tendo em vista o alargamento e a implantação do Reino de Deus na terra, era importante que cada denominação se considerasse como um dos instrumentos para a consecução desse objetivo mais amplo. Quando na Inglaterra e no Continente Europeu, se formaram as primeiras sociedades missionárias, elas eram interdenominacionais. Foram organizadas por pessoas de “sentimentos evangélicos” com a cooperação de diversas deno­ minações e com a resolução de “não enviar o presbiterianismo e nem qualquer outra forma de governo eclesiástico, mas só o glorioso evangelho do Deus bendito”63. Posteriormente, as denominações, como ocorreu nos Estados 63 Tal foi A Sociedade Missionária de Londres. — Dillenberger, J. e W dch, C., 1958, p. 164.

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Unidos, talvez ciosas de suas tradições peculiares, passaram a organizar suas próprias sociedades missionárias e, pelo menos, ao se transferirem para a América Latina, conservaram suas formas eclesiais. Assim, os presbiterianos com a sua democracia representativa e autoridade conciliar, os congregacionais e os batistas com a sua democracia direta e autonomia das congregações locais e os metodistas com o seu governo episcopal. Mas a relativa uniformidade teológica dos “avivamentos” e da “era metodista” do protestantismo ameri­ cano foi mantida. Se em outras áreas missionárias a multiplicidade de estranhas religiões tinha de ser vencida, na América Latina o inimigo a ser enfrentado era a presença vasta de um ramo do cristianismo implantado pelo conquistador e colonizador, e solidamente instalado em todos os segmentos da sociedade, e, ainda, intimamente ligado ao poder político. Era o velho e conhecido inimigo da Reforma que importava vencer novamente. Contra um inimigo poderoso nada melhor que uma coligação. Esta foi mais uma razão para a unidade de esforços das missões denominacionais no Brasil do século XIX, e sem uma ideologia comum, essa cooperação se transformaria em séria dificuldade. Daí, a simplificação teológica e litúrgica, cujo atestado maior foi o uso comum de um único livro de hinos sagrados que serviu às denominações do Brasil pelo menos até fins do século XIX64. Já tenho citado extensamente esse hinário ao longo deste trabalho, mas agora é necessário mostrar como essa famosa coletânea de cânticos sacros, comum a quase todo o protestantismo brasileiro e praticamente a matriz de todas as que foram aparecendo posteriormente, foi sendo elaborada. Por volta do fim do século XIX ela já estava pronta. Repre­ senta o mais significativo repositório da fé protestante no Brasil. Ê um com­ pêndio de teologia para ser cantado. A primeira edição dos SALMOS E HINOS saiu em 1861, preparada pelo casal Kalley, contendo traduções e adaptações de poesias estrangeiras e outras escritas aqui mesmo por necessidades ocasionais. Os presbiterianos fizeram uso dessa coletânea desde o início, mas em 1867 publicaram a cole­ tânea intitulada “CÂNTICOS SAGRADOS PARA USO DOS QUE ADORAM A DEUS EM ESPIRITO E EM VERDADE” . A edição desse hinário, que tenho em mãos65, não traz data nem editora, mas parece corresponder à des­ crição que Henriqueta Rosa Fernandes Braga66 faz da edição de 1867. Con­ cluo que um deve corresponder ao outro. Contém 138 cânticos e algumas músicas. Está bem encadernado, mas mostra falta de páginas. O missionário presbiteriano John Boyle (1845-1892), autor de diversos hinos que foram incorporados à edição final dos SALMOS E HINOS, publi­ cou uma coletânea intitulada HINOS EVANGÉLICOS E CÂNTICOS SA­ GRADOS, datado de Bagagem-MG, 1888, edição LAEMMERT, Rio de Ja64 Salmos e Hinos. 65 Exemplar pertencente à biblioteca da Faculdade de Teologia da IgTeja Metodista, Rudge Ramos, São Bernardo do Campo — SP. 66 Braga, Henriqueta Rosa Fernandes, 1961, p. 154.

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neiro. O exemplar que tenho em mãos67 apresenta uma curiosidade: acima do título do hino n.° 475, “O lar do céu”, está escrito a lápis “Sweet by & by or over there”. Parece tratar-se de nota bem antiga. Talvez seja o título original do hino, traduzido ou adaptado, e que corresponde nos SALMOS E HINOS, edição de 1899, ao número 485, muito cantado pelos protestantes. Suas primeira e última estrofes são assim: Ó! pensai d’esse lar lá no céu Bem ao lado do rio de luz, Onde os santos p’ra sempre ali gozam Da presença de nosso Jesus. Cedo, cedo no céu lá estarei, Vejo o fim da jornada chegar: Meu Jesus ali está me esperando, Ê melhor estar ali que aqui estar. Trata-se, como se vê, de cântico apropriado para os momentos finais da vida. As outras estrofes falam da certeza de, no céu, encontrar os amigos que já morreram e contemplar Jesus face à face. De modo que o título “Doce adeus”, que aparece a lápis no volume que compulsei, surge como bem apro­ priado. A primeira estrofe lembra, ainda, a alegoria de “O Peregrino”. Em resumo, SALMOS E HINOS representava no fim do século XIX, uma coletânea de cânticos que englobava os hinários que foram aparecendo desde o início do estabelecimento institucional do protestantismo no Brasil, isto é, 1855. Representava também, e isto é bastante significativo, o reposi­ tório comum de cânticos religiosos da maioria absoluta dos protestantes no Brasil. Congregacionais e presbiterianos continuam a usá-lo até hoje; os ba­ tistas até 1891, os metodistas até 1931; os episcopais até muito recentemente. Mesmo os luteranos, os da Confissão de Augsburgo, pelo menos, incluíam até recentemente em seu hinário diversos cânticos dos SALMOS E HINOS.68 Se é verdade que SALMOS E HINOS pôde atender a denominações de diversas tradições teológicas, é também verdade que ele procede dos mais variados segmentos e tendências do protestantismo mundial, principalmente inglês e americano ou, pelo menos, filtrados por eles. A edição com músicas sacras que estou usando neste trabalho, em três volumes, os dois primeiros de 1899, e o terceiro de 1916, contém, no segundo, os agradecimentos de seu compilador, Rev. João Gomes da Rocha, às diversas instituições estran­ geiras que haviam autorizado a inclusão de hinos e músicas de suas proprie­ dades. Algumas dessas instituições mostram a diversidade de tradições teoló­ gicas que foi canalizada para o protestantismo brasileiro: “Church Missionary Hymn Book”, “Free Church Hymn Book”, “The Methodist Sunday School 67 Exemplar pertencente à biblioteca da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, Rudge Ramos, São Bernardo do Campo. 68 Braga, Henriqueta R.F., 1961, p. 216. Devo muito das informações contidas nesta parte a este excelente trabalho sobre a música sacra no Brasil.

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Hymn Time Book”, “Wesleyan Conference Office”, “Congregational Hymn Tune Book”, “Musical Board of Salvation Army”, “Musical, Salvaüonist”, “Songs of Peace and War”, “Chants de Délivrance et de Combat”, “European Psalmist”, “English Hymnal”, “Alexander’s New Revival Hymns”, “Wesleyan Methodist Sunday School Department”, “Methodist School Hymnal” e assim por diante. A teologia explícita nos sermões e hinos dos congregacionais, presbite­ rianos, metodistas e batistas, nos seus contornos gerais, é a do metodismo americano: o amor de Deus por todos os homens pecadores, o perdão gra­ cioso pela aceitação, através da fé, do sacrifício expiatório de Cristo, a vida regenerada visível na ética mundana e a expectativa da vida eterna no céu. Dois novos elementos são superpostos a essa teologia: a teologia da Igreja Espiritual, justificadora e consetvadora do “status-quo” social e certos traços da teologia do pietismo, com seu emocionalismo característico. Calvinistas por tradição como congregacionais, presbiterianos e batistas, tiveram de abrir mão da predestinação em favor do voluntarismo, como já o haviam feito nos Estados Unidos: a necessidade de conservar os neoconversos no redil diante de uma sociedade ameaçadora obrigou-os a pôr de lado a doutrina calvinista da “perseverança dos santos”, a fim de manter os fiéis em permanente vigi­ lância, válvula esta aberta para a doutrina metodista da santificação. Justi­ fica-se isto pela procedência dos missionários, cujas agências americanas sur­ giram no clima dos avivamentos e da questão da abolição, ficando o pietismo por conta do pano de fundo do metodismo wesleyano. Mas, pergunta-se: num Brasil monoliticamente católico teria sido possível introduzir uma outra forma de pensamento religioso? Se nos Estados Unidos, cujo colorido era protestante, foi necessário o conversionismo instantâneo e emocionalista para que o protes­ tantismo se firmasse, no Brasil isso teria de ocorrer com maior razão. Há, portanto, uma dupla justificação. A unidade teológica produziu, desde o início, franca colaboração entre os protestantes. Os presbiterianos colaboraram e receberam colaboração dos congregacionais, anglicanos do Rio e luteranos de Nova Friburgo. Mais tarde, quando chegaram os dois missionários, J. W. Morris e L. L. Kinsolving, que iriam estabelecer definitivamente a Igreja Episcopal no Brasil, ficaram eles seis meses em Cruzeiro-SP, aprendendo o português com o pastor presbiteriano Benedito Ferraz. Ao se estabelecerem posteriormente em Porto Alegre, onde fundaram igreja em 1891, por um acordo com os presbiterianos receberam deles uma congregação na cidade de Rio Grande-RS69. Colaboração mais intensa e freqüente foi entre presbiterianos e metodis­ tas. J. L. Kennedy70 registra momentos de íntima cooperação com pastores presbiterianos nos primeiros anos do metodismo. Em 1881, em Piracicaba, os 69 Braga, Henriqueta R.F., 1961, pp. 200-201. 70 Kennedy, J.L., 1926.

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metodistas estavam em apuros para atender aos múltiplos encargos com a igreja e o colégio. Diz J. L. Kennedy: “A Igreja Presbiteriana, de coração generoso, acudiu às necessidades dos metodistas nesse momento de anseio. O Rev. F. J. C. Schneider, ministro ilustrado dessa igreja irmã veio a Piracicaba para prestar serviços fraternais aos metodistas. Fez três trabalhos nessa cidade: ajudou os missionários no estudo do português, lecionou no Colégio Piracicaba.no e pregou o Evangelho duas ou três vezes por semana. Um dia nos visitou outro ministro do Evangelho, o Rev. Dr. Chamberlain, que pregou excelente sermão no salão de cultos, a um audi­ tório seleto. . . ’m Em 1884 visitou os metodistas em Piracicaba, outro presbiteriano, o Rev. Eduardo Carlos Pereira, que fez uma série de conferências religiosas “que atraiu grande atenção”73. Por outro lado, o Sínodo Presbiteriano, reunido no Rio de Janeiro, em 1884, registra a presença do pastor metodista Rev. J. W. Tarboux, recebido como representante da “Brazil Mission Conference”73. As atas deste mesmo Sínodo registram também a distribuição de seus membros pelas igrejas do Rio de Janeiro, a fim de celebrar ofícios religiosos, incluindo-se, além das presbiterianas, as congregacionais, metodistas e batistas. A III Sessão do mes­ mo Sínodo registra, também, em sua ata, a presença do pastor batista W. B. Bagby, que foi recebido como membro visitante. A l .a Conferência Anual Missionária, realizada pelos metodistas, no mesmo ano de 1884, em Piracicaba, teve no seu temário a questão “da divisão do território entre as diversas igrejas evangélicas, desejosas de cooperar do melhor modo possível, com as denominações cristãs, manifestando-lhes real simpatia e amor”.74 Simpatia e amor continuou havendo principalmente entre presbiterianos e metodistas. O Sínodo da Igreja Presbiteriana, em sua reunião de 1900, adotou um “modus vivendi” com a Igreja Metodista a respeito de ocupação de território e transferência de membros de uma igreja para outra. Ficou estabelecido que nenhuma cidade com menos de 25.000 habitantes seria ocupa­ da por mais de uma denominação e que seria considerado território ocupado aquele em que “o serviço divino venha sendo observado com regularidade”. A transferência de membros entre as igrejas deveria merecer cautelas75. Sen­ te-se que presbiterianos e metodistas queriam afastar o espírito de concor­ rência e proselitismo entre os próprios protestantes. Para dirimir dúvidas e fisr.alizar o acordo foi nomeada uma Comissão Permanente Interdenomina71

Kennedy, J.L., 1926, p. 26.

72 Ibidem, p. 35. 73

Antes do Sínodo da Igreja Presbiteriana no Brasil, Sessões de setembro de 1884.

74 Kennedy, J.L., 1926, pp. 38-39. 75 Neves, Mário, 1950, p. 141.

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cional de três membros de cada uma das duas igrejas. Esta resolução do Sínodo Presbiteriano foi o resultado das atividades de uma Comissão Interdenominacional Presbiteriana e Metodista que vinha trabalhando há alguns anos. Resta dizer alguma coisa mais sobre os batistas. Como já vimos, embora tenha havido cultos batistas na colônia americana de Santa Bárbara, em 1871, foi só em 1882, na Bahia, que foi fundada a primeira igreja batista com objetivos missionários. Portanto, os batistas, assim como os episcopais, são os mais tardios dos protestantes a se estabelecerem no Brasil, o que não os impediu de crescer bastante. Já havia mais de um ramo batista na Europa e, durante a colonização americana, surgiram outros grupos. Regra geral, os batistas mais tradicionais eram calvinistas, variando para mais ou para menos a ênfase na ortodoxia. Por exemplo, no sul dos Estados Unidos os chamados Batistas Primitivos levavam tão a sério o calvinismo, que protestavam contra um clero educado, escolas dominicais e sociedades missionárias76. O extremo da doutrina da pre­ destinação talvez levasse estes batistas a negarem qualquer iniciativa humana. Mas o certo é que a grande maioria dos batistas sofreu o impacto dos avivamentos e do arminianismo. Já vimos páginas atrás que a teologia dos batistas que vieram para o Brasil era a mesma dos presbiterianos, congregacionais e metodistas. Mas os batistas no Brasil, ao contrário do que ocorreu com os outros protestantes77, foram sempre arredios quanto à proximidade e colaboração com outros grupos. A causa deste distanciamento dos batistas deve remon­ tar-se às suas origens no Brasil, à mentalidade de seus primeiros missionários. Naturalmente e antes de outra coisa, os batistas brasileiros guardam aquelas características distintivas históricas de todos eles. Autonomia completa das congregações locais, composição da igreja só por pessoas regeneradas, negação do batismo infantil, batismo exclusivo por imersão e uma tenaz con­ vicção de liberdade religiosa. Entendem que a vida religiosa é uma relação exclusiva entre o homem e Deus através da experiência religiosa pessoal, no que não diferem muito dos demais grupos protestantes. Mas como essa expe­ riência religiosa é alimentada principalmente pela leitura e interpretação pes­ soal da Bíblia, eles são levados a desvalorizar um clero academicamente prepa­ rado78 e os sacramentos como meios exclusivos de graça, realizando-os só no sentido de ordenanças, assim como os credos e confissões de fé que só servem para tirar a liberdade de interpretação pessoal da Bíblia. O único credo batista é o Novo Testamento interpretado diretamente pelo fiel. É uma vigorosa recusa de qualquer autoridade, seja pessoal ou escrita. A autoridade do pastor 76 Latourette, K.S. 1941, vol. IV, pp. 445/446. 77 Convém registrar que os batistas recusam o nome protestante porque afirmam sua origem histórica anterior à Reforma. 78 “Geralmente o pregador batista é da mesma classe social daqueles a quem prega” — Dillemberger, J. e Welch, C., 1958, p. 143.

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decorre unicamente da assembléia que o elege e é exclusivamente profética e exortativa79. A idéia batista da composição da igreja só por pessoas regeneradas está intimamente ligada à teologia da Igreja Espiritual. O exclusivismo visa fechar as portas ao mundo e manter bem nítida a distinção entre igreja e mundo. O Reino de Deus é espiritual e invisível. Qualquer confusão entre autoridade civil e autoridade eclesiástica impede a constituição de uma Igreja Espiritual80. Entendo que, em linhas gerais, estas questões dos batistas em relação a congregacionais e presbiterianos acabam sendo mais enfáticas do que distin­ tivas. Os primeiros são tão congregacionais quanto os batistas e se identificam pelo nome; os presbiterianos, não se sabe se desde o início ou se é fenômeno posterior, e por causa de condições diferentes, como distribuição geográfica e condições da sociedade brasileira, mostram uma sensível tendência congregacionalista, com prejuízo de sua tradição hierárquica-conciliar. A presença dos bispos talvez tenha atenuado a tendência congregacionalista entre os meto­ distas. Mas as características comuns da teologia arminiana e pietista perpassam essas quatro denominações. E me arriscaria a dizer que o reduzido sacramentalismo dos batistas tem a sua correspondência nas demais denominações em comparação. Mas, voltemos à questão da relativa separação dos batistas dos demais protestantes, apesar de tantos pontos em comum. Os missionários batistas f o r a m enviados ao Brasil pela Convenção Batista do Sul, sendo pioneiros W. C. Bagby e Z. C. Taylor, os mesmos que, com suas esposas e um brasi­ leiro, o ex-padre Antonio Teixeira de Albuquerque, fundaram a já mencionada primeira igreja batista no Brasil. Um desses pioneiros, Z. C. Taylor, era adepto do “landmarkismo”, corrente batista radical que considerava “a eclesiologia batista como a única neotestamentária”8'. Realmente o historiador A. R. Crabtree, na introdução à sua obra, segue claramente as idéias de Taylor que, por sua vez, acompanha os “landmarkistas”: “O povo desta fé é mais antigo do que o seu nome histórico, porque é da mesma fé e ordem dos cristãos do Novo Testamento. A s igrejas apostólicas eram verdadeiramente batistas porque constavam somente de crentes batizados, porque eram democráticas, e porque respeitavam a consciência e a responsabilidade pessoal”82. Diz ainda Crabtree: “Um estudo cuidadoso e livre de preconceitos das igrejas apostólicas, convencerá qualquer pessoa de que elas eram essencialmente da mes­ ma fé e ordem das igrejas batistas de nossos dias”83. 79 80 81 82 83

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Crabtree, A.R., 1962, Crabtree, A.R., 1962, Reily, D.A., 1977 ,p. Crabtree, A.R. 1962, Ibidem, p. 30,

p. 29. pp. 29 e 33. 19. p. 29.

Os “landmarkistas” afirmavam que as associações locais (congregações batistas), sendo diretamente descendentes do tempo de Cristo, constituíam, através da história, marcos de uma sucessão apostólica, não através de uma linha de bispos mas de uma ininterrupta corrente de congregações volun­ tárias idênticas às do Novo Testamento, desde os tempos apostólicos até o presente. Para James R. Graves (1870-1893), um dos teólogos do “landmarkismo”, os demais ramos do protestantismo, como herdeiros do catolicismo medieval, haviam conservado muitas corrupções da Igreja Católica. Em 1855, a Convenção Batista do Sul colocou o problema da igreja e do ministério. Rejeitando o batismo infantil (pedobatismo) como não neo-testamentário, rejeitava-se conseqüentemente, um ministro (pastor) que tivesse sido batizado na infância porqúe o seu batismo não seria válido. Só se reco­ nhecia, portanto, o ministério de quem tinha sido corretamente batizado, isto é, por imersão e na idade da razão. Por outro lado, a grande ênfase na auto­ nomia e disciplina da congregação local levou os “landmarkistas” a colocar em questão o direito de membros de uma igreja participarem da mesa (co­ munhão) de outra, mesmo sendo da mesma fé e ordem. Assim, o relaciona­ mento com outros ramos do cristianismo ficou, pelo “landmarkismo”, com­ prometido pela idéia da sucessão apostólica, não como a entendem a Igreja Católica e as da Comunhão Anglicana, mas na compreensão dos batistas. O zelo pela autonomia e clausura da congregação local dificulta, às vezes, as relações até entre os próprios batistas. Concluindo, a Convenção Batista do Sul, sob influência dos “landmarkistas” já havia, em meados do século XIX, decidido pela negativa de comunhão com as denominações pedobatistas por “não trazerem as marcas (‘landmarkers’) da sucessão neotestamentária”. O movimento “landmarkista” recebeu seu nome de um tratado escrito por James M. Pendleton (1811-1891) e publicado por Graves, em 1854, sob o título de AN OLD LAND MARK RESET84. Parece não haver dúvidas de que o “landmarkismo” “marcou” os batistas brasileiros, explicando assim o seu relativo isolamento dos demaisprotestantes brasileiros, apesar da unidade teológica que a todos identifica.

2 . EMOCIONALISMO E DOGMATISMO EPISTEMOLÓGICO

O padrão de pregação no protestantismo brasileiro de missão foi sempre tríplice: avivalista, polêmico e moralista. O padrão avivalista tem por objetivo a conversão do indivíduo, o polêmico convencê-lo da verdade do protestan­ tismo ante o catolicismo e o moralista mostra e inculca os padrões de conduta diferenciadores da nova religião. 84 Sobre este tema ver Smitb, H. Shelton e outros, 1963, vol. II, pp. 108ss.

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Por ora vou tratar do primeiro aspecto. A simples leitura dos sermões não é suficiente para dar idéia da paixão e da veemência profética com que eram pregados. Mas as descrições que até nós chegaram dos grandes prega­ dores avivalistas como Jorge Whitefield (1714-1770), Dwight L. Moody (1837 e 1899) e Charles H. Spurgeon (1834-1892), explicam o estilo oratório que ainda hoje se vê nos púlpitos protestantes. Sermões longos, veementes e emocionalistas. Não é difícil imaginar-se o casamento feliz que houve entre o estilo avivalista dos missionários e a oratória latina dos brasileiros bem na tradição das academias de direito. O sermão avivalista pretendia convencer o indivíduo de seu pecado, desencadear suas emoções e levá-lo a uma decisão existencial e, por isso, quan­ to mais dramático o pregador, melhores os resultados. Regra geral, a teologia da pregação avivalista era simples: “Os indivíduos eram confrontados com o terrível juízo de Deus sobre os pecados da indiferença, infidelidade e imoralidade. Estes eram des­ critos em quadros gráficos que infundiam temor e pânico aos ouvintes, uma vez conseguido isto, o pecador proclamava o perdão de Deus para aqueles que se arrependiam de seus pecados e nasciam de navo por seu espírito”*5. O arrependimento do ouvinte, quando atingido pela mensagem, regra geral era marcante, isto é, transformava-se em sinais externos de emoção como choro, gritos e, às vezes, êxtases. De modo que o convertido podia, até o fim de sua vida, lembrar-se com pormenores do dia de sua conversão. Podia datar a sua “experiência religiosa” e desenvolvê-la como uma emoção profun­ da seguida de uma decisão existencial caracterizada por um “antes” e um “depois”. Nas devidas proporções, reproduziram-se no Brasil as mesmas condi­ ções do protestantismo avivalista de fronteira dos Estados Unidos. Para come­ çar, os próprios missionários, como ocorreu com Ashbel G. Simonton, o pioneiro presbiteriano, deviam ser frutos dos avivamentos. Depois, a mensagem deles era para gente tão fronteiriça quanto os seus patrícios do norte: frontei­ riços sob o ponto de vista da geografia, da sociedade e da religião. Tinham que ser ganhas para a nova religião; portanto, a pregação, reproduzindo o mesmo estilo das fronteiras norte-americanas, devia gerar os mesmos resul­ tados, embora sem a mesma dramaticidade que descrevem, às vezes, os historiadores do norte. Não encontrei, em minhas pesquisas, nenhum relato completo de uma reunião evangelística dos primeiros tempos do protestantismo brasileiro, isto é, registro do sermão pregado e dos hinos cantados. Sabemos que os sermões eram conversionistas e polêmicos; o pregador procurava apelar para a distin­ ção entre a “verdade” e o “erro”, entre a nova mensagem e a religião domi­ nante. O tom do sermão era dogmático e racionalista ao mesmo tempo; dogmático ao fundamentar-se nos dogmas comuns do cristianismo que deviam 85

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Dillemberger, J. e Welch, C. 1958, p. 143.

ser recuperados diante de uma melhor e mais verdadeira fundamentação escriturística, e racionalista ao procurar tecer o sermão numa lógica irrecusável. O objetivo era convencer o ouvinte de uma verdade contra outra. Mas o dogmatismo-epistemológico-polêmico nem sempre era suficiente para mover o ouvinte a uma mudança de atitudes; daí a necessidade de aliar ao sermão, já na maior parte das vezes dramático, cânticos apropriados para auxiliar a ele­ vação do “tonus” emocional da reunião, formando ambiente favorável às decisões individuais (conversão). A insistência com que os grupos protestantes tradicionais ainda cantam certos hinos de penitência e conversão parece indicar que eles fazem parte do patrimônio cultural do protestante brasileiro, construído a partir dos marcos experienciais de conversão da primeira e segunda gerações de protestantes. Na análise que fiz dos hinos que compõem o volume “SALMOS E HINOS”, encontrei mais de 70 cânticos de penitência e conversão entre os 608 do total. Esta análise não é rigorosa; a composição desses hinos é, regra geral, eclética. Tratam de vários temas ao mesmo tempo, de maneira que muitos outros incluem apelo para conversão. Mas, o que parece mais impor­ tante é que eles eram os mais cantados nas congregações e no dia-a-dia do protestante. Apesar de ter de voltar a este assunto mais adiante, vou dar dois exemplos desse tipo de cântico: Ó quão cego andei, e perdido vaguei Longe, longe do meu Salvador; Mas do céu ele desceu, e seu sangue verteu P’ra salvar a um tão pobre pecador*6 Vem, filho perdido! Ô pródigo, vem! Ruina te espera Nas trevas além! Tu, de fome gemendo! ô ! filho perdido, Vem, pródigo, vemZ87 A estratégia das grandes campanhas de avivamento religioso de João Wesley na Inglaterra foi essa de acompanhar os dramáticos sermões com hinos desse teor, o que se repetiu nos movimentos de fronteira nos Estados Unidos; há, portanto, razões para se crer que a mesma estratégia tenha sido usada no Brasil. Percebe-se, portanto, que nos primórdios do protestantismo no Brasil, a crença religiosa era uma composição de dogmastimo, racionalismo e emocionalismo. Esta difícil composição epistemológica e emocional parece que marcaria uma permanente dialética nos desdobramentos históricos do protestantismo no Brasil. 86 Salmos e Hinos, 1899, n.° 234. 87

Ibidem, n.° 132.

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O fenômeno da conversão instantânea não ocupa de modo exclusivo a história da expansão do protestantismo no Brasil. Embora não tenhamos dados seguros para comparação, é certo que outro tipo de conversão tenha também o seu lugar nas histórias de vida de muitos protestantes. Há indicações biográficas de conversões que se deram após muitos anos de apréndizado das doutrinas protestantes. Embora as lideranças eclesiásticas sempre busquem no neófito aquele momento decisivo em que ele, por um ato de vontade, resolveu dar o passo de ingresso na igreja como adepto, não se despreza upi longo aprendizado. A experiência de muitos protestantes mostra mesmo qjue a apren­ dizagem anterior tom a a conversão mais confiável para a liderança. Nas igrejas presbiterianas, por exemplo, o rito de ingresso de um candidato na comunhão da igreja é precedido de um exame de conhecimentos bíblicos e doutrinários. Há mesmo aulas de preparação prévia em classes especiais. Creio que, pelo menos entre os presbiterianos, o aspecto epistemológico é mais importante do que a experiência emocional da conversão. Numa das atas do Conselho da Igreja Presbiteriana do Rio Novo — SP está registrado o seguinte: “Foram examinadas Sebastiana Maria Gertrudes e Rita Camargo, mas não foram recebidas por não terem, ainda, o necessário conheci­ mento”.88 O Rev. Miguel Torres registrou no livro de atas da Igreja Presbiteriana de Borda da Mata — MG: “A 31 de julho de 1886, Pedro C. do Lago e Amador Marques Pe­ reira, tendo sido previamente examinados, professaram publicamente sua fé. . . O ato das profissões teve lugar na fazenda denominada Parcúso, pertencente ao Sr. Pedro C. do Lago”.69 O rigor da exigência desses exames pode ser avaliado pela observação que o Presbitério São Paulo, ao qual estava jurisdicionada a Igreja Presbite­ riana de Rio Novo, apôs ao livro de Atas dessa Igreja pelo fato de se regis­ trarem vários ingressos de novos membros sem que se declarasse terem sido eles regularmente examinados. Não seria demais lembrar aqui a concepção teológica que valoriza a ação do intelecto no processo de conversão, embora não tenha eu encontrado refe­ rência específica sobre sua influência na teologia dos missionários, mas que de algum modo deve ter ocorrido em meio às refregas teológicas que prece­ deram a era missionária. Em 1633, a Academia de SAUMUR, na França, tradicionalmente calvinista, passou a adotar um ponto de vista intermediário entre o calvinismo e o arminianismo. Nem o arbítrio divino nem a livre vontade humana, mas uma conjunção das duas partes: a ação divina sobre 88 Ata de 23/4/1882, fls. 29, livro I. 89 Ata da Igreja Presbiteriana da Borda da Mata — MG, livro 1, fls. 32. Ao pé desta Ata, acrescenta o Rev. Miguel Torres que o registro foi feito ali por engano, já que o fato devia ter sido inscrito no livro da Igreja Presbiteriana de Caldas — MG. Como os pastores cuidavam simultaneamente de várias congregações, tais enganos talvez fossem freqüentes.

21 0

o intelecto e através deste sobre a alma. Ou, dizendo de outro modo, o ato da vontade se dá após o ato cognoscitivo90. Creio que a notória tendência do protestantismo para se apresentar como um saber se deve, pelo menos em parte, a essa corrente teológica que se esforçava para ajustar o calvinismo ortodoxo às novas tendências humanísticas da época e que ganhou notável importância no espírito do protestantismo americano, tomando-se, parece, importante lastro da Nova Escola dos presbiterianos.9’

3 . NEOPLATONISMO E TRANSCENDENTALISMO

Se o protestantismo no Brasil apresentou desde o início características de um saber, traindo assim origens eclesiásticas bastante significativas, não deixou de mostrar logo traços de um de seus oponentes principais que foi o velho liberalismo protestante dos inícios do século XIX. E foi buscar esses traços logo no liberalismo mais radical, o representado por Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Quando Emerson irrompe no cenário teológico ameri­ cano, irrupção prematura, uma vez que ele não tinha mais do que vinte anos, o faz em nome de um cansaço da velha teologia escolástica protestante: “estou cansado e desgostoso com as pregações que estou acostumado a ouvir”, es­ creveu ele numa carta em 1823.92 Os liberais, dos quais um dos representantes mais radicais foi Emerson, buscaram suas bases no conjunto do pensamento idealista e se tomaram conhe­ cidos por transcendentalistas. Como na época, e mesmo hoje, não é necessária muita argúcia para perceber que as doutrinas transcendentalistas provocaram sérios arranhões em alguns princípios básicos da teologia cristã. Mas, como dizem os autores de “American Christianity”, repetindo um lugar comum, “o que se apresenta como liberalismo para uma geração às vezes aparece como conservantismo para a seguinte”,93 o transcendentalismo vai ressurgir de modo tranqüilo nos meios mais ortodoxos do protestantismo do século XIX. Embora o pioneiro do presbiterianismo no Brasil, Ashbel G. Simonton, pareça não perfilhar com o “unitarismo”94, doutrina desdobradora do trans90 O principal teólogo de Saumur foi Moisés Amyraldus (1596-1664), not&vel por seus esforços para atenuar a doutrina da predestinação. Sua obra mais polêmica foi o Tratado da Predestinação, publicado, parece, em 1634. 91

Briggs, Charles A., 1916, vol. II, p. 160.

92

Smith, H. Shelton et alii, 1963, vol. II, p. 119.

93

Idem, p. 119.

94 Em 17/10/1859, Simonton escreveu no seu Diário: “Recebi ontem uma nota da Sra. Cordeiro, pedindo-me para batizar-lhe seu filho. Lembrei-me da minha última visita a ela e da impossibilidade de aceder, visto que rejeita uma das doutrinas fundamentais ^o cristianismo. Visitei-a a caminho da Saúde e conversamos novamente. Repeti as razões da recusa, discutindo com ela a divindade de Cristo. Conversa bem e parece inteligente, mas seus pontos de vista

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cendentalismo e que apresentava amplo espectro no pensamento protestante americano no século XIX, o fato é que nas estantes dos protestantes cultos brasileiros, inclusive pastores, livros sobre Emerson começaram a aparecer.95 O autor deste trabalho viu, em bibliotecas de igrejas, exemplares de livros de e sobre Emerson. Hoje passou da moda, mas nas primeiras décadas do século XIX, o transcendentalismo de Emerson provavelmente se apresentava como a confirmação do pensamento conservador protestante que viera por canal qualquer da empresa missionária. O fato é que o platonismo subjacente ao transcendentalismo está presente na mensagem institucional protestante desde sua implantação no Brasil. As linhas mestras do pensamento de Emerson apareceram em 1826 no seu sermão pregado perante a Associação de Pastores de Middlesex, como prova para seu ingresso no ministério. Essas linhas mestras se baseiam em duas idéias filosóficas: 1) a supremacia do espírito sobre a matéria, e 2) o imediatismo de Deus na alma humana. Esse idealismo de Emerson, sem entrar em complicações mais avançadas tem, pelo menos, duas implicações muito significativas: o distanciamento entre a religião e a ordem social e a negação da religião como um saber ordenado, lógico, em favor de um certo tipo de intuicionismo pessoal. A tradição idealista, desde Platão até o neokantismo, fornece o principal estímulo a essa forma de pensamento95. A questão epistemológica parece ter, posteriormente, encontrado bom apoio na teologia do sentimento de Schleiermacher (m. 1834), em que o subjetivismo em religião se transforma em crítica aos dogmas e, por conseqüência, à toda sistematização objetiva de doutrinas. Para Schleiermacher, religião não é um saber nem um fazer, mas uma experiência do divino. Em suma, era a velha luta entre o racionalismo e o romantismo idealista. Há muitas razões para se admitir que o transcendentalismo, com suas im­ plicações iniciais pelo menos, encontrou algum canal para se instalar no pro­ testantismo brasileiro. As múltiplas referências em sermões e hinos sobre a superioridade da vida no além sobre a presente, do céu sobre a terra e do espírito sobre a matéria indicam que o transcendentalismo deixou aqui a sua marca, constituindo considerável reforço para a doutrina da Igreja Espiritual. Não pode deixar de causar curiosidade, ainda, que o neoplatonismo tenha adquirido, no pensamento protestante brasileiro, aproximações estranhas com o maniqueísmo. Não se trata, por certo, de criação do espírito brasileiro; ele encontrou canais que o filtraram dos portadores da mensagem protestante. Não importa agora buscar essas origens; basta constatar sua presença nos sobre as verdades religiosas são muito superficiais. Para ela, a religião consiste em conseguir chegar ao céu por meio da imitação de Cristo. Acha que esse propósito é de todos os que se dizem cristãos e considera intolerância da minha parte não reconhecer os unitários como discípulos de Cristo”. 95 Não confundir com Harry Emerson Fosdick (1878), fundador da igreja interdenominacional Riverside Church, em New York, autor de muitos livros conhecidos no Brasil. 96 Smith, H. Shelton et allii, 1963, vol. 11, p. 121.

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cânticos sagrados protestantes. Na guerra temporária entre dois poderes, do bem e do mal, da luz e das trevas, da verdade e do erro, o cristão se alista como soldado do bem, da luz e da verdade. No levantamento que fiz nos SAL­ MOS E HINOS, encontrei trinta e cinco cânticos que versam sobre o tema queu classifiquei como “HINOS DE BATALHA”, embora, como já afirmei em outro lugar, o tema apareça em numerosos outros, dado o ecletismo doutri­ nário idos hinos. Transcrevo, como exemplo, algumas estrofes dos hinos mais represen­ tativos desse “tema de batalha”. Este, traduzido por Sara Kalley: Avante! avante! ó crentes! Soldados de Jesus! Erguei seu estandarte, Lutai por sua cruz! Contra hostes inimigas Ante essas multidões, O Comandante excelso Dirige os batalhões?7. Este, traduzido por Manuel de Arruda Camargo, intitulado “Grito de Guerra” (“Sound of the Battle Cry”): Moços, declarai guerra contra o mal, Exaltai a cruz do Salvador; Firmes empunhai armas não carnais, Sempre confiai em seu favor™. Robert H. Moreton fez a adaptação deste hino intitulado “Ó jovens, acudi!” (“Volunteers”), cuja 4.a estrofe diz: De Satanás os filhos, com armas já na mão, Juntos já se acham com seu capitão, ó jovens, apressai-vos, formai-vos sem temor Nas fileiras, em que manda nosso Salvador99. Como último exemplo, a 3.a estrofe deste hino anônimo: Nós vamos descansar além, Depois da dura guerra; Nosso inimigo lá não tem Poder como na Terram . 97

Salmos e Hinos, 1899, n.° 147.

98

Salmos e Hinos, 1899, n.° 366. *

99

Salmos e Hinos, 1899, n.° 377.

100

Idem, n.° 412.

213

RESUMO E ALGUMAS CONCLUSÕES

Fiz uma tentativa de encontrar os traços predominantes do protestantismo americano que foi filtrado para o Brasil pela empresa missionária. A teologia desse protestantismo foi forjada nas longas lutas que começaram na Europa da Reforma, em que a religião cristã buscava seus caminhos de ajuste diante das mudanças de profundidade que então se processavam. Á teologia, o pensa­ mento religioso, então gozando de grande prestígio, foi aos poucos se cons­ truindo a partir das demandas de ordem sócio-política, cujas respostas a essas demandas levavam, muitas vezes, um caráter de legitimação, aliás, talvez, a função primordial da religião como diz Peter Berger: “ . . . a religião tem sido, através da história, o instrumèrtto mais difundido e efetivo de legitimação”.'01 Por sua vez, os segmentos mais importantes da sociedade encontravam, afinal, momentos de paz quando a teologia lhes dava respostas a partir dos oráculos divinos, função provavelmente tão importante quanto a da legitimação ainda no conceito de Peter Berger: " . . . manter ou reconstruir a instituição de modo que sirva como estrutura viável de plausibilidade para definições da realidade. . . ” ,()2 Mesmo os grandes inimigos da teologia, como o iluminismo e algumas novas teorias científicas, acabaram aliados importantes da teologia protestante quando forneceram instrumental para que a teologia pudesse ir ao encontro de novos anseios de ordem social, como a valorização do homem, o progresso e assim por diante. Nos Estados Unidos, matriz do nosso protestantismo, diante de uma sociedade que nascia sob o impacto dos problemas da velha sociedade euro­ péia, a teologia protestante teve que lutar muito para encontrar seus caminhos. Pode-se dizer que os caminhos que a sociedade encontrou para se constituir foram os caminhos da teologia que, já na Europa, principalmente na Holanda e Inglaterra, se colocara na vanguarda das aspirações político-sociais. Mas a recíproca também é verdadeira: a teologia não deixou de buscar fórmulas de legitimação das aspirações da nova sociedade. Por isso, uma sociedade com­ plexa e freqüentemente tumultuada não podia deixar de produzir idéias do mesmo tipo. Realmente, a teologia protestante norte-americana de fins do século XIX era complexa e tumultuada. A empresa missionária americana exibiu no Brasil as pontas de linha de toda aquela luta. Os missionários, tanto pregadores como educadores, embora academicamente preparados nos seminários e universidades, foram como já foi dito, produtos dos movimentos de avivamento. Assim sendo, a teologia 101

Berger, Peter, 197, p. 48.

102 Ibidem, p. 188.

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que eles trouxeram para o culto no Brasil não foi a acadêmica, mas a teologia das suas formas de crença, no seu conjunto a teologia dos avivamentos à qual as diversas tradições haviam se esforçado para encontrar meios de ajusta­ mento. De modo que a teologia dos púlpitos e do culto em geral não foi a dos seminários e academias. Essa mesma defasagem ocorreu no Brasil quando os presbiterianos começaram a formar os seus pastores em seminários. As compli­ cações da teologia não eram levadas para o púlpito. O púlpito desempenhou no Brasil um triplo papel: o de polemizar contra a Igreja Católica, o de infun­ dir moral e o da explanação bíblica. Este último papel talvez tenha sido respon­ sável pela única via pela qual o protestantismo pode mostrar sua presença na cultura brasileira. O conhecimento das línguas bíblicas, a prática da exegese e da hermenêutica sobre os textos sagrados produziu filólogos e gramáticos conhecidos. Por outro lado, a polêmica e o moralismo isolaram os protestantes da cultura, assim como este último, o moralismo, parece ter fechado as portas dos eruditos protestantes para a literatura. Se, como dizem H. Shelton Smith e os demais autores de “American Christianity”103, “a teologia americana, em 1865, tinha muita mobília na des­ pensa que nunca era usada na sala de visitas”, o mesmo ocorreu no Brasil. Se alguma mobília eles descarregaram nos seminários, dela pouco chegou aos púpitos. As pontas de linha da teologia que chegaram ao culto protestante no Brasil tinham, repito, como trilho mestre a ideologia dos avivamentos, mas traziam o colorido das múltiplas tendências dos diversos estratos missionários. Encontrando aqui um meio social diferente sofreu por sua vez um processo de filtragem que acabou produzindo um protestantismo “sui generis”. Tentarei analisar e entender esta questão logo a seguir.

103 Vol. U , p. 309.

215

A P Ê N D IC E

A PEDAGOGIA DA DIFERENÇA

A polêmica entre protestantes e católicos marca a história religiosa no Brasil durante a segunda metade do século XIX e boa parte do início do século XX. As condições de penetração do protestantismo no Brasil fizeram com que ele se alimentasse principalmente da polêmica. Por isso, o protestan­ tismo só se torna, parece, ativo e dinâmico nos momentos de confronto com a religião dominante; em outras circunstâncias da vida social, regra geral, se mostra indiferente e letárgico. Como amostra da característica vigorosa dos direcionamentos polêmicos do protestantismo contra a religião dominante, reproduzo aqui um folheto que parece ter sido publicado pelos presbiterianos no Rio de Janeiro, em 1889. DIFERENÇA ENTRE CATÓLICO E PROTESTANTE104 Católico. A propósito, vizinho, dizem que sois protestante? Protestante. É verdade. C. Mas dizei-me, que diferença há entre a vossa religião e a nossa? P . Com muito gosto; somente vos peço que me respondais a algumas perguntas. C. A quantas quiserdes. P . Primeiramente, dizei-me: quem vos explica a Bíblia? C . Ninguém; porque não a leio. P . Eu o sei; mas, segundo a vossa religião, quem vos deverá explicá-la? C. O catolicismo nos diz que a Igreja é o intérprete infalível da Santa Escritura. P . Mas quem é a Igreja? 104 O exemplar que tenho em mãos pertence ao arquivo do Rev. Vicente Themudo Lessa, Vol. n.° 39. Traz a lápis, na primeira página, a indicação “a. 1889”. Há evidências de que tenha sido publicado pela “Livraria Evangélica”, Travessa da Barreira, 15, Rio de Janeiro. Pela editora, deve tratar-se de produção dos presbiterianos.

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C . A Igreja é o papa, os bispos, os curas. P . De sorte que para interpretar a Bíblia deveis recorrer a homens? C . E vós a quem recorreis? P . Ao Espírito Santo. C. Isso agora é outra coisa. P . Sem dúvida; pois o vosso intérprete é o homem e o meu intérprete é Deus. C. Mas Deus não vos vem explicar no vosso aposento. . . P . Não; mas eu lhe peço; e, segundo a sua promessa, ele pode e deve mesmo enviar-me seu Espírito Santo. C. Isso não é seguro! P . Dizei-me: quando vosso filho vos pede pão, lhe dais uma pedra? Ç. Não. P . E sois melhor do que Deus? C . Não. P . Então estais vendo que se eu peço a Deus o seu Espírito de verdade, ele (que é melhor do que vós) não me mandará um espírito de erro. É ele mesmo quem diz isso. C. Bom. . . E depois? P . Depois (vou fazer-vos outra pergunta): quem é o chefe da vossa Igreja? C . O papa. P . Quem é o papa? , C . O papa, o papa. . . é o papa. P . Sim; porém que qualidade de ente é ele? é um anjo? é. . . C . Não senhor; nem mesmo é um santo; o papa é homem e nada mais. P . Pois então em quanto vós tendes por chefe da vossa Igreja o papa, eu tenho por chefe da minha Igreja Jesus Cristo. O vosso papa é um homem; o meu Jesus Cristo, é um Deus! C. Mas nós também temos Jesus Cristo por chefe da Igreja. P . E quem vos transmite as suas ordens? C. O papa, seu vigário. P . E como sabeis que são exatamente as ordens de Jesus Cristo? C . Porque o papa assim o diz. P . De maneira que para garantia do papa tendes o próprio papa; o papa que vos governa, que é o vosso chefe, é que dá a si mesmo o diploma de vigário! C. Ele não se nomeia a si; são os cardeais que o nomeiam. P . Esses cardeais são anjos? são .. . C. Não são mais que o papa.

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P. Logo são homens. Ora, homem por homem, amo tanto uns como outros, e a minha conclusão é sempre justa: os vossos chefes são homens, o meu chefe é Deus. C. Percebo a vossa astúcia; dissemos há pouco que a Santa Escritura era explicada ao católico pela Igreja composta de homens, e ao protestante pelo Espírito Santo que é Deus, agora me dizeis que o meu chefe é homem, pois é o papa, e que o vosso chefe é Deus, pois é Jesus Cristo, tudo para me persuadir que. . . P . Justamente a vossa religião é de homens, e a minha religião é de Deus? C. Mas vejamos o fim. O protestante também é um Deus? P. Não, caro amigo, tanto os protestantes como os católicos são homens que mais se assemelham a Satanás do que a Deus. C. Que dizeis?! P . Digo que o homem é de natureza mau, e tão mau que perante Deus está condenado e perdido. C. Assim ides muito longe; para todos os pecadores há misericórdia: não se diz mesmo que é preciso perdoar até setenta vezes sete? Logo, seremos perdoados. P . Mas para ser perdoado é preciso ao menos sentir e confessar suas faltas. C. De certo; e o católico se confessa. P . A quem? C. Ao cura. E o senhor a quem se confessa? P. Todo mundo sabe que o protestante se confessa a Deus. C. É muito mais agradável. P . Dizei por conseguinte que é muito mais razoável. C . Por que? P . Dizei-me: quando éreis criança, provavelmente mais duma vez ofendestes a vosso pai? C. É verdade. P . E então, íeis pedir perdão a vosso primo? C. Compreendo: Deus é o meu pai, e o padre é o meu primo. P . Exatamente. Porém isto não é tudo; não basta pedir perdão para apagar uma falta; o devedor que se desculpa não fica livre da prisão se não tiver um amigo que lhe pague a dívida; o matador que chora não fica livre do cadafalso se não tiver um rei que lhe mande o perdão. C. É exato. P . Segundo a fé protestante, é Jesus quem paga a nossa dívida, é Jesus quem nos concede o perdão, pois foi Jesus quem morreu por nós para ser nosso Salvador. C . E o nosso também.

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P . Não! C . Como não? P . Não vos admiraste quando há pouco vos disse, que o homem era mau? C. Sem dúvida. P. Logo julgais que ele é bom. C. Ao menos um pouco. P . Então julgais que o homem é capaz de merecer um pouco o céu, ou ao menos, por suas qualidades, apagar as suas faltas e contribuir por si mesmo para sua própria salvação! C. Isto me parece justo. P . Logo, em parte, o homem é seu próprio salvador? Ora nós somos homens e não deuses. C. Sim; mas eu conto também com Jesus Cristo para me salvar; por exemplo, no sacrifício da missa. P . Quem diz essa missa? C. O padre. P . De modo que o padre é necessário para esse sacrifício de Jesus Cristo. C. É claro. P . Então o padre é em parte vosso salvador. Bem vedes, portanto, que tenho razão de dizer que enquanto o meu Salvador é unicamente Jesus Cristo Deus, o vosso salvador (sejais vós ou seja o padre) é um simples homem! C. Não sei como vos arranjais que chegais sempre a mesma conclusão! P. Ainda não chegastes ao fim. C. Continuemos pois. P . Quando o padre acaba a sua missa, quando pronuncia sobre vós a sua absolvição, ficais perfeitamente salvo? C. Não; depois da absolvição devo cumprir algumas penitências e fazer algumas boas obras. P . Isso quer dizer que vos santificais por vossas próprias obras; enquanto que eu penso que não possa ser santo na minha vida senão pelo socorro do Espírito Santo. Portanto, santificando-vos por vossas próprias forças, sois ainda santificado por um homem; e quanto a mim, reconhecendo minha incapacidade de fazer o bem e esperando tudo do Espírito Santo, sou santifi­ cado por Deus. Por conseqüência a vossa religião é de homem, e a minha religião é de Deus. C. Está acabado? P. Ainda um pouco. Dizei-me: quem intercede por vós no céu? C. Maria. P . E mais quem? C. Meu padroeiro. 220

P. C. P. C. P.

E depois? O santo da minha paróquia. Quem mais? Todos os santos do paraíso. O que são esses santos!

C. Sei-o eu. . . são homens. P . Certamente que são homens; e eu não recorro senão a intercessão onipotente de Jesus Cristo Deus, conforme a seguinte declaração da Bíblia: — “Não há senão um só intercessor entre Deus e os homens, a saber, Jesus Cristo” ( l.a a Timóteo 5). P . Agora concluamos: Para interpretar a Bíblia tendes a Igreja composta de homens; eu tenho o Espírito de Deus. Por chefe tendes o papa que é homem; eu tenho o filho de Deus. O vosso confessor é um homem; o meu confessor é Deus. Para vos salvar tendes uma missa cantada por um padre que é homem; eu tenho a sacrifício cumprido na cruz por Jesus Cristo Deus. Para vos santificardes confiais nas vossas penitências e boas obras, isto é, nas forças do homem; eu confio unicamente no socorro do Espírito de Deus. Por intercessor tendes no céu criaturas outrora homens; eu tenho Jesus Cristo, sempre Deus. Por conseguinte, estais vendo que a vossa religião é de homens, o que a minha religião é de Deus. C . Então, por este cálculo toda a vossa salvação vem de Deus? P . Certamente, e eis exatamente a razão por que esta salvação é perfeita! É Deus mesmo quem me explica a Bíblia, que a minha fraca inteligência não poderia compreender. É Deus que me serve de chefe, e eu nunca devo temer que o meu rei seja destronado. É a Deus que me confesso, e estou certo que ele não será nem muito severo, nem fora de propósito clemente; perante ele não posso ser tentado a esconder a verdade, e não tenho necessidade de alegar longas razões para me desculpar. É Deus que oferece o sacrifício base da minha salvação, e então tenho a certeza de que ele ficará satisfeito: o sacrifício de um Deus! quem poderia dar mais? E eu sinto que ele dá a paz à minha consciência e alegria ao meu coração. É Deus mesmo quem intercede por mim no céu; como temerei eu que uma tal oração não seja eficaz? E é justamente por que esta salvação vem toda de Deus que eu me sinto em segurança! C. E se eu pretender ser salvo sem a intervenção do padre, farei bem ou mal? P . Não fareis senão bem. C . Mas vós tendes muitos ministros ou pastores. P . Sem dúvida; mas não para me salvar. Entre o ofício do ministro e o do padre a diferença é grande: o padre chama o pecador a si; o ministro dirige o pecador a Deus. O padre declara-se necessário para cumprir a vossa salvação; o ministro não é senão um amigo 221

mais instruído que me mostra o caminho e me deixa andar ou antes, me coloca debaixo do ensino do Espírito Santo. O padre monopoliza as graças divinas para depois ceder-vos uma parte a preço de dinheiro: o ministro me mostra o tesouro das graças e me convida para fartar-me ali. Se o padre não vos absolve, se não diz sua missa para vosso proveito, se antes da morte não vos traz os sacramentos, passareis do seu purgatório para o inferno, ou ao menos ficareis mais tempo no seu purgatório; enquanto que sem absolvição, sem missa, sem extrema unção de meu ministro eu posso, com fé no coração, ir diretamente para o paraíso. Na vossa religião o padre exagera sua importân­ cia até fazer-se indispensável, e acaba colocando-se na porta do céu para não vos deixar passar com a vossa carga de pecados se não depois de lhe terdes pago o bilhete de entrada. Eis justamente o que me torna esse padre suspeito; quanto mais ele engrandece o seu papel, engrossa a sua voz, incha as bochechas, mais desconfio. C . Para vos dizer a verdade, nisso concordo convosco, e espero salvar-me sem ele; portanto o que importa é ser homem honrado e não ter de que se acusar. P . Caro amigo, tal não é o catolicismo de vosso cura; mas em suma é ainda o espírito do catolicismo; por que isso importa dizer que podemos merecer o céu por nossas boas obras. C . Sem dúvida. P . Mas esse resumo da vossa religião é ainda oposto à nossa. Segundo vós, a salvação vem das obras do homem; segundo nós, vem sempre da graça de Deus. C . A graça de Deus! a graça de Deus! Trazeis sempre a mesma coisa! há pouco, para me salvar não queríeis nem padre nem santos; agora nem mesmo precisais de mim. . . P . Eu vos aceito. Vejamos que bem podeis fazer. Mas notai que repelindo a graça, não deveis invocar senão a justiça, numa justiça completa, estrita, absoluta. Deus recompensará as vossas menores ações, mesmo um copo de água fria dada ao desgraçado. Recordemos: que bem tendes feito na vossa vida? C . Em primeiro lugar, toda a minha vida tenho trabalhado. P . Para quem? C . Para mim, sem dúvida. P . E é por terdes trabalhado para vós que exigis a recompensa? C. Porém tenho trabalhado também para meus filhos. P . Assim como vosso pai trabalha para vós; logo não tendes cumprido que as vossas obrigações. C . Mas eu não devia nada a meus filhos. P . Sendo assim, são eles que vos devem recompensar e não Deus. C . De mais a mais, sempre fui homem honrado, nunca matei nem roubei. 222

P . Mas, respeitando a vida e a propriedade de vossos irmãos, não tendes feito senão aquilo mesmo que deles exigíeis; até ali Deus nada vos deve. C . Posso ainda dizer que nunca tive os vis defeitos de tanta gente; nunca fui beberão nem libertino. P . Para poupar vossa saúde e dinheiro, que são a vossa recompensa. C. Enfim, sempre me comportei como um homem honrado! P . Para conservar vossa reputação; e por tudo isso, Deus nada vos deve. Para ser pago de alguém, é preciso ter feito alguma coisa para ele; ora, o que tendes feito por Deus? C . Ma s . . . P. Sempre mas! Visto que pretendeis merecer o céu por vossas obras, deveis ser tratado com justiça; Deus não vos pode dar senão à proporção do que lhe tendes dado. Ora, torno a perguntar-vos, o que tendes feito para ele?. . . Não respondeis? Quem não responde de certo que está embaraçado. Não importa, eu mesmo quero tirar-vos do embaraço. Suponho que tendes consagrado ao vosso Criador, toda a vossa vida: com isso não fizestes mais do que dar-lhe o que lhe pertencia, pois esta vida vem dele, e não é propriedade nossa. Quero ir mais longe: admiti que esta vida seja propriedade vossa, e que, tendo o direito de empregá-la para vós, a tendes entretanto consumido toda inteira para vosso Deus; o que mereceis por isso? C. Mereço o céu por toda a eternidade. P . Como! quarenta ou cinqüenta anos de vida valem milhões de milhões de anos! Como! algumas esmolas sobre a terra merecem as inegáveis alegrias do céu. Não tendes pensado sobre isso! Para que sejais tratado com equidade é preciso que se vos dê o justo preço das vossas obras ou da perseverança de vossa devoção. Empregastes vinte ou trinta anos de felicidade. C. Zombais de mim?! P . Não meu amigo; eu julgo que desta maneira Deus vos recompensa com justiça. Ousareis dizer que Deus vos deve tantos séculos quantos minutos lhe tendes dado? Ainda sendo assim, haveis de concordar que essa felicidade deve acabar. Os vossos minutos tiveram fim; a recompensa o terá também. Exagerai as vossas obras quanto quiserdes; é preciso reconhecer um termo ao seu preço, e este termo será o da vossa felicidade nos céus. Pagar-se-vos-á até o último óbolo; mas depois de terdes sido pago deveis retirar-vos. C. Nós o veremos quando lá estivermos; e enquanto espero vou desfrutando. P . Um instante! Um instante! exigistes uma estrita justiça, uma exata recompensa de vossa vida: e nós não temos feito a conta senão do bem. C . Como? P . Sem dúvida; o mal também deve ser recompensado, e a sua recom­ pensa é o castigo. C . Ides falar-me das penas eternas?

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P . Vou falar-vos da simples justiça; da justiça segundo as vossas próprias idéias. Visto que aceitais a recompensa de vossas virtudes, recebei também a recompensa de vossos vícios. Ou nunca fizestes o mal? Eu não quero exagerar a punição, quero diminuí-la tanto quanto quiserdes; mas depois de todas estas concessões haveis de concordar que tanto as vossas faltas como os vossos merecimentos devem ser premiados; ora, a recompensa de uma falta é um castigo. C. Mas eu não tenho feito tanto mal! P . Assim como não tendes feito tanto bem; e a conseqüência de tudo isto é que não tereis nem grande recompensa nem grande castigo. Quando Deus vos tiver pago tudo, ficareis reduzido a nada. C . Nada? P . Sem dúvida. Deve-se-vos alguma coisa dos vossos merecimentos. Não estão eles acabados. Vejamos; o que quereis por uma boa ação. C. Longos anos de felicidade. P . E por uma só falta tereis longos anos de sofrimento. C. Porém eu tenho feito mais bem do que mal; e ficando assim apagado o mal, o excedente do bem é só o que resta para ser recompensado. P . Caro amigo, tudo o que tendes dito, assim como tudo aquilo em que tenho concordado convosco, está cheio de erros e de absurdos! Não importa; quero seguir-vos até o fim. Supondo ainda (contra toda a verdade) que Deus, tomando conta das vossas boas e más ações, fica sendo vosso devedor; é preciso que fiqueis convencido de que a sua dívida para convosco não é grande, e que por conseguinte a vossa felicidade no céu há de acabar. Pedi, se quiserdes, em lugar de quarenta anos, quarenta séculos; ficareis no fim reduzido a nada, para sempre nada! C. Não! eu não quero o nada! Quero, como vós, uma vida sem fim! Deus é bom demais para me condenar! P . Deus é muito bom! E é justamente por ser muito bom que ele vos oferece desde já a salvação sem condições, sem boas obras e apesar mesmo das vossas más obras. Numa palavra: este Deus perdoa e vos salva: mas ao menos reconhecei que ele vos dá o perdão sem que o tenhais merecido! C. Não! não! e eu vos declaro que antes quero ajuntar às minhas boas obras, os merecimentos dos santos, as missas do meu cura e as orações de meu padroeiro, do que ir mendigar a vossa graça de Deus. P . Podeis fazer o que quiserdes; mas então reconhecei que o vosso catolicismo, pondo vossa salvação dependente das cerimônias do padre e das virtudes do fiel, descansa no homem; enquanto que a minha fé protestante, pondo todas as minhas esperanças no perdão de Jesus, na influência do Espírito Santo e na graça do Pai, firma-se unicamente em Deus. Logo, em todos os sentidos são verdadeiras as seguintes palavras: A vossa religião é de homens; a minha religião é de Deus!

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C . É o vosso modo de ver; mas não é o meu. P . Conheço que desejais terminar a discussão; mas escutai somente uma pequena história: — “Jesus nos conta que dois homens subiram ao templo de Jerusalém para orar. Um disse: Graças te dou, meu Deus, porque não sou como os mais homens, que são uns ladrões, uns injustos, uns adúlteros. Jejuo duas vezes na semana e pago o dízimo de tudo o que tenho. O outro pelo contrário não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia nos peitos, dizendo: Meu Deus sê propício a mim pecador.” Qual dos dois pensais vós que voltou justificado para casa? C. Não sei. P. Pois lede o capítulo XVIII do Evangelho segundo S. Lucas, e sabê-lo-eis. *

* *

Neste folheto aparecem duas facetas da articulação formal do discurso polêmico protestante, muito comum no Brasil; de um lado, a apresentação dos princípios da Reforma em confronto com os usos vigentes do catolicismo e de outro, uma lógica cerrada, quase matemática, que persegue tenazmente a persuasão do oponente. Como o dogma está muito recuado, amparado em princípios metafísicos, o todo da argumentação forma um bloco racional e frio. O discurso do interlocutor protestante procura convencer seu oponente de que sua religião é de Deus e a deste é de homens, mas não consegue a adesão desejada porque falta o emocional que desencadeia o ato de conversão. Mas o discurso dogmático-epistemológico-polêmico é um momento do processo, podendo vir antes ou depois da conversão. O mais comum, no entanto, é vir o processo de aprendizagem em que os dogmas são ajustados coerentemente a fim de que o converso adquira uma visão global do mundo que possa responder a todas as questões da vida.

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C A PÍTU LO II

CRENÇAS E SUAS FORMAS DE ASSIMILAÇÃO

“M ais belo que um rosai, o lar celeste tem a bênção p‘ra o m ortal, o gozo eterno além; A li só há prazer, vos manda o R ei dizer”. Elisa R . Smart*

O protestantismo no Brasil, em suas formas institucionais e de crença, reflete basicamente um momento do protestantismo norte-americano. Institucionalmente, pelo menos no fim do século XIX, quando completava suas primeiras quatro décadas no Brasil, ainda apresentava os contornos da religião das frentes pioneiras dos Estados Unidos. Procurei mostrar esse fato como sendo verdadeiro, pelo menos para os presbiterianos, pioneiros na evangelização rural e na expansão através das frentes pioneiras do café. A forma de culto, conse­ qüentemente, foi desde o início, a mais simples possível: qualquer lugar, como uma sala tosca de chão batido ou o terreiro à sombra de uma árvore, era fisi­ camente a presença do sagrado. O pastor, quando presente, distinguindo-se simplesmente pelo paletó, gravata e suas perneiras de montar. Aparência meio citadina, meio sertaneja. Mas, de qualquer maneira, bem distante de qualquer visualização litúrgica. Itinerante, o pastor-cavaleiro constituía uma das raras ocasiões festivas quando aportava às isoladas e pequenas comunidades presbi­ terianas espalhadas pelo sertão. Nas suas prolongadas ausências, sua falta era suprida por leigos que, por suas próprias condições, ainda tomavam os cultos mais simples. Não autorizados a pregar, a doutrinar, portanto, limitavam-se à leitura bíblica sem comentários, às orações e aos cânticos. Quando presente o pastor, havia longas prédicas doutrinárias, em que a teologia buscava um ponto de equilíbrio entre o calvinismo e o arminianismo, lembrando bastante os ensinos da Academia de SAUMUR e, naturalmente, os atos litúrgicos privativos do pastor como a celebração dos sacramentos e casamentos. * Salmos e Hinos, n.° 544.

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Os presbiterianos, relutantes nos Estados Unidos quanto ao sistema meto­ dista de expansão nas frentes pioneiras e, com freqüência, quanto à teologia pregada por eles, tiveram, por causa das condições geográficas, aqui encon­ tradas, de aderir aos mesmos métodos. A única diferença é que, pelo menos nos primeiros tempos, raramente admitiram a ordenação de pastores sem preparo acadêmico. Nisto não acompanharam os metodistas cujos pastores, nos Estados Unidos, eram quase sempre leigos. Foi por isso que, já em 1867, os presbiterianos haviam instalado no Rio de Janeiro o primeiro seminário protestante de toda a América Latina. Pelo que se lê nas crônicas dos primórdios do protestantismo no Brasil, as condições de ordem intelectual e pessoal para admissão às ordens eclesiásticas entre os presbiterianos eram rigorosas. Com toda a carência de pessoal habilitado, dada a relativamente rápida expansão dos presbiterianos nas primeiras décadas, a seleção de candi­ datos ao pastorado era cuidadosa e o seu preparo intelectual prolongava-se por cerca de cinco anos ou mais. Já afirmei que a teologia que os pastores pregavam buscava um equilíbrio entre o calvinismo e o arminianismo. Embora o sistema eclesiástico e certas doutrinas como a da soberania e a glória de Deus fossem mantidas na pregação, havia uma notável quebra do núcleo do calvinismo, isto é, da célebre doutrina da predestinação. Não havia como pregá-la quando o objetivo era atrair cató­ licos para o redil protestante e para isso era impossível fugir à prédica conversionista do arminianismo avivalista. A oratória dramática dos avivalistas ganhou bons adeptos no Brasil. Mas, regra geral, a prédica tanto conversionista como polêmica, em que o pregador procurava ressaltar a “verdade” protestante con­ tra o “erro” católico, era pedagógica. O bom pregador era aquele que, além de saber arrebatar os ouvintes por uma retórica dramática, podia construir um arcabouço lógico capaz de conseguir a adesão intelectual do seu auditório. É neste sentido que a teologia de Saumur parece ter dado boa contribuição ao produzir no Brasil um protestantismo construído mais sobre o saber do que sobre o sentimento. Não estou disposto a descartar o sentimento no ato da conversão. Ela é um ato de emoção e vontade ao mesmo tempo, regra geral produzida pelos pregadores dramáticos com a ajuda de cânticos avivalistas apropriados ou mesmo simplesmente pelos cânticos sem a pregação. Estes dois elementos produziram resultados juntos ou em separado. Mas o que caracteriza o protes­ tantismo no Brasil como sendo essencialmente um saber é que antes ou depois da conversão, os indivíduos são levados à uma adesão intelectual. Varia o lugar mas não o fato. A experiência dos protestantes é que a “datação da conversão” nem sempre é fundamental para o ingresso na igreja, mas o conhecimento, a adesão intelectual a uma verdade, é decisiva. Noutra parte deste trabalho já mostrei como postulantes ao rol eclesiástico eram recusados, pelo menos tem­ porariamente, por não revelarem conhecimentos suficientes. Os presbiterianos pelo menos, desde o início, submetem seus adeptos a um “exame” prévio ao ritual de ingresso. Ora, exame pressupõe pesquisa de conhecimento.

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Mas, os presbiterianos, desde o início ainda, continuaram apresentando uma outra forma de ruptura entre a teologia e a prática. Quando se organizou institucionalmente no Brasil, a Igreja Presbiteriana adotou, à semelhança da Igreja-mãe americana, como padrão doutrinário, a Confissão de Fé de Westminster e seus Catecismos1. Essa Confissão, produzida pela Assembléia de Westminster, entre 1643 e 1649, a última das confissões produzidas no período da Reforma, constituiu, para os calvinistas posteriores “um pequeno sistema de teologia. Esse sistema é conhecido pelo nome de calvinismo, por ser o que João Calvino ensinou, e foi aceito pelas Igrejas Reformadas, que diferiam das luteranas”2. Vê-se aí que a Confissão de Westminster, assim como a maioria das Confissões Protestantes, é aceita como um “Sistema de Teologia” . Talvez isso se aplique muito bem à Confissão em questão porque ela é a mais extensa e elaborada das Confissões do período da Reforma. Sua sistematização se completa pelos dois catecismos que a acompanham: o MAIOR e o BREVE, elaborados segundo o tradicional sistema de perguntas e respostas. Pelo menos nos primeiros cinqüenta anos, talvez até o surgimento dos primeiros materiais didáticos da Escola Dominical, que parece ter ocorrido na década de 30, o Breve Catecismo funcionou como material de instrução reli­ giosa. Embora ao ensino do Catecismo, super-sistematização da Confissão de Fé, não correspondesse à pregação arminiana dos pastores, o tempo do Cate­ cismo caracterizou, parece, o período mais genuinamente presbiteriano dos presbiterianos brasileiros. Quando, bem mais tarde, o material de doutrinação passou a ser produzido pela Confederação Evangélica do Brasil, órgão protes­ tante ecumênico, a teologia calvinista dós presbiterianos foi substituída pela teologia mais ou menos uniforme de todas as denominações brasileiras consi­ deradas neste trabalho, isto é, a dos avivamentos americanos, arminiana e pietista. Então ocorreu o seguinte: a doutrinação, tanto do púlpito como da Escola Dominical, continuou a ser uniformemente arminiana, avivamentalista e pietista, ficando o sistema calvinista circunscrito ao seu último reduto: a cátedra dos seminários. Tentando, enfim, construir um quadro compreensivo da situação, poderse-ia dizer o seguinte: o culto presbiteriano, que estou tomando como modelo, no seu todo, isto é, cânticos e pregação, era arminiano-metodista; a teologia da doutrinação catequética e a da cátedra era calvinista. Isto antes da evolução descrita. No culto restou um resíduo do calvinismo ortodoxo: a oração. Na oração o presbiteriano ressalta a soberania e a glória de Deus. É corrente, entre presbiterianos pelo menos, a expressão dessa ambigüidade teológica: “o presbiteriano quando ora é presbiteriano, mas quando prega é metodista” . A Confissão de Fé de Westminster, produto um tanto tardio da Reforma, é uma das mais típicas expressões do escolasticismo protestante. Aliás, o esco1 Ato de Constituição do Sínodo, em 6 de setembro de 1888 — Mclntire, Robert L., 1969, pp. 8/12. 2 Confissão de Fé e Catecismo Maior da Igreja Presbiteriana (Introdução), Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, 1965.

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lasticismo protestante, reavivado no século XIX, como vimos no final do capítulo II, I Parte, estendeu-se até fins desse século. No protestantismo brasileiro, fim de linha de quase todos os movimentos de idéias ocorridas na Europa e principalmente nos Estados Unidos, o escolasticismo, com o seu espírito de sistema, permaneceu nas cátedras de seminários até muito recentemente3. É provável que o escolasticismo esteja, aos poucos, sendo abandonado no ensino teológico, mas ele permanece irredutível como pano de fundo da ortodoxia dos presbiterianos, como baluarte final, última instância, no julgamento de questões de fidelidade. A prova é que, no rito de ordenação de presbíteros docentes e regentes os candidatos são obrigados a declarar publicamente que aceitam “a confissão de Fé e os Catecismos de Westminster como fiel exposição do sistema doutrinário ensinados nas Santas Escrituras”4. Embora a Confissão de Fé seja o último reduto do escolasticismo, o gosto pela exposição lógica e coerente, a partir de princípios gerais e indiscutíveis, ainda marca o protestantismo. Concluindo, o escolasticismo parece ter, de fato, feito sua tenda no protestantismo do Brasil. Pelo menos isso é verdade para os de tradição presbiteriana. A pregação, quando não expositiva-doutrinária ou polêmica, era ética e moralista. Embora posteriormente, como pretendo demonstrar, ela tenha sofrido elaboração mais complicada a fim de atender a novos aspectos da vida, de iní­ cio foi certamente baseada, em sua fase mais significativa, nos Dez Manda­ mentos. É natural que a pregação polêmica usasse como argumento contra a Igreja Católica o Primeiro e o Segundo Mandamentos5. Mas a vida religiosa e moral enfatizava a observância do domingo e a moral sexual6. A Confissão de Fé, sendo a última instância da ortodoxia e da disciplina, encerra em si o princípio de autoridade. É a partir dela que se julga a fidelidade dos adeptos à Igreja. A negação implícita ou explícita da Confissão eqüivale à excomunhão da Igreja uma vez que ela encerra a razão de ser da Igreja como instituição. Não importa que a teologia explícita e vivida seja de outra natureza; a razão de ser e a autoridade eclesiástica constituem-se no sistema teológico oficial que pode ser invocado pela ortodoxia. De modo que a ambigüidade continua, uma vez que os adeptos não são julgados pelos padrões da fé que vivem, mas por um sistema teológico fechado, e às vezes desconhecido para a maioria deles. 3 Por exemplo, o compêndio de Teologia Sistemática de A.H. Strong (Systematic Theology) foi, por décadas, usado em seminários brasileiros de tradição calvinista. No Seminário Teológico Presbiteriano Independente (S. Paulo), o falecido Prof. Alfredo Borges Teixeira fez dele uso em seus cursos. O mesmo professor, ao produzir o seu próprio compêndio (Dogmática Evangé­ lica) ainda conservou o estilo e o sabor escolásticos. 4 Manual de Ofícios Religiosos da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, 1961. 5 “Não terás outros deuses diante de mim” e “Não farás para ti imagem de escultura”, respectivamente. 6 “Lembra-te de santificar o dia de sábado (descanso)” e “Não adulterarás” (4.° e 5.°, respectivamente).

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1. A FÉ EXPLICITA

De certo modo, e para uma melhor compreensão do sistema de pensa­ mento protestante no Brasil, pode-se dizer que entre o sistema teológico repre­ sentado pela Confissão de Fé (no sentido de um conjunto simbólico qualquer de fé) e a explicitação e objetivação das crenças por parte do receptor da mensagem, há a mediação do pregador. No caso dos presbiterianos, o estilo e o conteúdo da mensagem foi o dos avivamentos americanos que apresentava canais de ajustamento a um dos segmentos, pelo menos, da sociedade brasileira no momento histórico das missões. Se a Confissão de Fé dos presbiterianos garantia a autoridade de instituição eclesial e a sua ligação com as igrejas-mães americanas, a pregação avivalista arminiana-metodista viabilizava-se pelas con­ dições sociais locais, embora se distanciasse da teologia oficial. A pregação da universalidade do amor de Deus e de sua graça, do pecado universal, e da expiação também potencialmente universal, do livre arbítrio humano para aceitar ou não essa salvação no plano individual, e a possibilidade infinita do perfeccionismo humano foi o núcleo central da mensagem missioná­ ria. Se é fato que essa mensagem encontrava solo propício no segmento majori­ tário da sociedade brasileira, é necessário fazer-se uma distinção. Esse tipo de mensagem ajustara-se como luva numa sociedade em ebulição e formação como a americana no período anterior e posterior à independência. Embora tudo estivesse por fazer e se fazendo, o clima de idéias e aspirações era o do protes­ tantismo europeu ainda muito próximo da Reforma. O espírito desse protestan­ tismo individualista e valorizador do homem oferecia amplos canais para as aspirações de ascensão social do “SELF-MADE MAN”. Tratava-se de uma religião ativa e impulsionadora da dinâmica social. Temos alguma razão para crer que esse protestantismo, tal qual está sendo esboçado, teria escassas possi­ bilidades de sucesso, mesmo no único segmento que lhe estava franqueado na sociedade brasileira. Encontrando uma sociedade já solidamente estratificada com raízes na cultura ibérica e com uma religião oficial historicamente instalada com o conquistador e colonizador como um dos componentes fundamentais da própria cultura, mesmo levando em conta o relativo abandono religioso da camada de “homens livres e pobres” do mundo rural brasileiro, é pouco pro­ vável que o protestantismo encontrasse ressonância sensível. Mas encontrou. Só que produziu efeito oposto ao do que ocorreu na sociedade americana em que as idéias foram surgindo e sendo ajustadas às demandas sociais à medida que a sociedade evoluía. No começo da segunda metade do século XIX, logo após o último dos grandes avivamentos religiosos, o protestantismo americano já apresentava sinais de justificável cansaço, como já foi mostrado. O cansaço traz anseios de estabilização e consolidação. No final do Capítulo II (I Parte) foram indicadas as correntes de pensa­ mento do protestantismo americano que expressavam esse cansaço. O reforço da autoridade, seja civil ou eclesiástica, acompanhando o escolasticismo, tinha

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como objetivo, a estabilização e institucionalização das seitas e igrejas (a insti­ tuição e o sistema ideológico correspondente), o que, em última istância, era uma garantia contra as flutuações sociais; o pietismo de colorido moraviano produzia o mesmo efeito no plano individual, isto é, protegia o indivíduo das controvérsias doutrinárias perturbadoras de sua vida religiosa; finalmente, o apocalipsismo projetava definitivamente as preocupações de qualquer natureza para o mundo a-histórico do além (aqui se misturam os planos individuais e sociais da vida futura). A compreensão do protestantismo no Brasil reside na percepção da intersecção histórica do espírito dinâmico do protestantismo americano surgido no bojo dos sucessivos avivamentos que sofreu, e de seu próprio “quietismo” gestado pelo cansaço de seus próprios embates. Só o elemento dinâmico “reavivalista” do protestantismo americano teria dificuldade para se instalar na sociedade brasileira, já socialmente estratificada e culturalmente informada pelo catolicismo ibérico; os canais de mudança social eram escassos, assim como o campo para a compreensão de novas idéias era pouco fértil. Desse modo, para­ doxalmente, foram os elementos “quietistas” do protestantismo americano que acabaram dando o “ponto” exato na mensagem da “nova religião” para que fosse aceita pela camada social que a recebeu. As igrejas protestantes se institucionalizaram no Brasil e, por isso, oficiali­ zaram seus sistemas de fé como base de disciplina e autoridade; esse foi o papel das Confissões e outros símbolos, como credos, princípios normativos de fé etc. Eles são ensinados nos seminários e eventualmente, nas Escolas Dominicais, instituição poderosa de canalização e reforço do sistema de crenças implícitas. De certo modo, os sistemas teológicos aqui entendidos caracterizaram, no período do protestantismo7, a individualidade das diversas denominações histó­ ricas que foram chegando. Os sistemas oficiais se constituíram no reduto final da ortodoxia, baluarte da identidade denominacional. Mas entre o sistema simbólico e a mensagem religiosa ia uma certa distância, principalmente com respeito às tradições calvinistas. A pregação era aquela dos avivamentos, colorida e reforçada pelo pietismo e pelo apoca­ lipsismo. A intermediação do pregador e de sua mensagem residia no fato de que, por si sós, seriam inócuos diante das circunstâncias existenciais da camada social receptiva. Talvez não tivesse a mensagem muito sentido ao falar em conversão e santificação da vida moral para grupos humanos situados quase à margem da vida social mais ampla. Certos tipos de comportamento e falhas morais, talvez nem fossem conhecidos ou, de qualquer modo, só podiam ser incorporados ou corrigidos em âmbito tão restrito que se tomariam até excên­ tricos. A conversão e a conseqüente mudança de comportamento só têm sentido quando abrem novos canais para aspirações existenciais e, quem sabe, sociais. 7 Já mostrei que, por volta da terceira década do século XX, com o advento do ecumenismo protestante no Brasil, a Escola Dominical se transformou em instrumento de unificação do pensamento protestante popular. A Confederação Evangélica do Brasil passou a publicar material didático aceito pela maioria das denominações.

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Mas ocorreu que a mensagem intermediária veio colorida pelo pietismo e pelo apocaliptismo do pré-milenismo. Se o escolasticismo dos sistemas teológicos garantiu a institucionalização das denominações num meio estranho e difícil para a identificação delas diante da religião oficial, foram o pietismo e o apoca­ liptismo que viabilizaram a aceitação da mensagem. A camada dos “homens livres e pobres” da população brasileira com todas as características já descritas no capítulo “Religião, Mundo Rural e Frentes Pioneiras”, era certamente aberta para o apocaliptismo. Se os canais para a participação e ascensão sociais eram escassamente acessíveis, nada mais adequado do que uma crença que acenava com um porvir compensador para uma existência incolor, vazia e sem nenhuma esperança. Por outro lado, o isolamento relativo dos grupos, o distanciamento, no tempo e no espaço, dos líderes religiosos (isso ocorreu mesmo entre os protestantes em que os pastores itinerantes ficavam meses sem contato com suas congregações), em muito favo­ receu o cultivo do convívio individual com a Bíblia, o que desenvolveu um apego sentimental do protestante ao Livro Sagrado; a Bíblia acabou, por falta de agente interpretador na maior parte do tempo, assumindo função oracular ao dar respostas imediatas para as várias situações existenciais. Em suma, o protestante assumiu uma postura caracteristicamente pietista, principalmente com relação à Bíblia. Isto o distanciou, como ocorrera na Europa, do escolas­ ticismo dos sistemas teológicos. Assim, parece ser possível entender a ambi­ güidade existente entre o ensino institucional protestante no Brasil e o modo de vivência religiosa de seus adeptos. Por isso, as denominações, como insti­ tuições, são identificáveis, mas as formas pessoais de crença e vivência religiosa, por si sós, não favorecem essa identificação. A razão dessa ambigüidade parece residir, de um lado, na intermediação e, de outro, nas condições sociais do receptor da mensagem religiosa. Como parece ser verdade que o que identifica uma religião não é o siste­ ma ideológico de instituição vinculada a contextos históricos-sociais já fora do alcance dos adeptos, mas a vivência da crença no cotidiano, vou tentar identi­ ficar a crença do protestante comum brasileiro a partir do principal documento repositório delas, que é o seu livro de cânticos sagrados já anteriormente iden­ tificado. Vimos, também, a origem diversificada dos cânticos inseridos nessa obra e que mostra o seu vasto sincretismo teológico. As denominações protestantes históricas, objeto deste trabalho, herdaram a tradição das igrejas livres da Inglaterra e Escócia e não têm, a não ser para ritos específicos como sacramentos, casamentos, ordenações e ocasiões espe­ ciais, ordem litúrgica formalizada e obrigatória. Algumas, como a presbiteriana, têm o “Diretório e Culto” que ordena as diversas partes do culto como orien­ tação para os celebrantes. Mas não as formaliza. O culto fica ao arbítrio do oficiante. Essa informalidade deve ter sido muito maior nas primieras décadas, em que ao ministério itinerante se juntava a itinerância relativa dos lugares de culto. Isto quer dizer que não temos nenhum material que indique as formas de expressão de fé por parte do povo. As orações serviriam, mas não ficaram registradas por serem espontâneas. Os sermões, além de partirem da instituição, não ficaram escritos nas suas formas mais legítimas que, certamente, ocorreram

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na informalidade e espontaneidade dos encontros espaçados dos pastores com os seus fiéis nos longínquos rincões sertanejos. Não nos resta, portanto, outro documento que expresse a resposta e a organização da crença por parte do protestante comum a não ser o seu livro de cânticos sagrados. Eles eram cantados no culto, onde a presença dos pastores e líderes podia talvez selecioná-los a partir do sistema teológico institucional. Mas mesmo assim é provável que eles procurassem atender, na escolha de cânticos, as predileções dos adeptos. No entanto, a regra geral era que os pró­ prios fiéis selecionassem os cânticos preferidos, vez que ficavam longos meses sem a presença dos pastores. Além disso, o protestante não cantava os seus hinos só nos momentos formais do culto, mas no cotidiano de seus afazeres e lazer. Isso ocorria como expressão de fé e, é certo, em substituição aos cânticos profanos que lhes ficavam interditos. Os cânticos profanos eram expressões mundanas e deviam ser abandonados. É minha intenção, portanto, afirmar que o sistema de crença do protestante comum brasileiro pode ser detectado através da seleção que ele mesmo fez dentre as centenas de hinos sagrados que a instituição lhe pôs nas mãos. Na detecção dessa seleção entrarão a experiência do próprio autor deste trabalho, depoimentos pessoais, alguns escassos registros e a contagem objetiva, por temas, dos cânticos contidos no próprio hinário. Vou começar por este último processo, uma vez que a seleção dos cânticos a serem inseridos no livro já revela os pendores da própria instituição. Antes de entrarmos nessa análise, seria bom aprofundar mais um pouco essa questão do cântico sagrado na religião e que encontra no protestantismo talvez a sua maior expressividade. David Martin8, um moderno estudioso da religião inglesa, afirma: " . . . não há dúvidas de que o hino prociona a mais ressonante evo­ cação do sentimento religioso na Bretanha: maior mesmo do que a liturgia. A própria Bíblia dificilmente se rivaliza com os hinos, mesmo entre os mais biblicistas dos crentes”9. O que David Martin diz da Bretanha pode-se dizer de todos os protestan­ tes quanto ao lugar do cântico no culto. Mas o mais interessante no estudo desse autor é a sua teoria sobre a relação entre os tipos de cânticos religiosos e os níveis culturais dos freqüentadores dos cultos. Ele divide os cânticos em hinos, “carols” (cânticos alegres especialmente os de Natal) e coros. Os dois primeiros, geralmente ligados a Hándel, Mendelssohn, Bach e outros clássicos, são preferidos pelos adeptos da música mais erudita, geralmente pessoas de nível intelectual e “status” mais elevados. Os apreciadores de “coros” procedem freqüentemente dos estratos intelectuais e sociais inferiores. Os coros só podem ser apreciados, continua David Martin, quando relacionados com os movimentos de avivamento a partir de Ira Sankey 8

Martin, David, 1967.

9 Ibidem, p. 88.

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(1840-1908), grande compositor de cânticos, e Dwight L. Moody (1837-1899), um dos principais avivalistas ingleses. Esses coros foram inspirados em melo­ dias populares, com ritmos dançantes que lembram os de “music-hall”, ligados a letras fortemente caracterizadas pelo incentivo à coragem face às desditas da vida10. Esse tipo de cântico sagrado desenvolveu-se durante os avivamentos ingleses dos séculos XVIII e XIX, assim como nos correspondentes norteamericanos do mesmo período. Representa um movimento histórico do protes­ tantismo mundial que acompanhou a expansão do mundo anglo-saxão, é de se crer que as grandes igrejas protestantes desse mesmo mundo continuaram mantendo suas tradições musicais clássicas ou a elas gradativamente retorna­ ram. É muito atrativa a hipótese de que o protestantismo brasileiro seja talvez o último reduto de um momento histórico do protestantismo mundial ao conservar vivos os cânticos dos avivalismos e do movimento missionário.

2 . A FÉ EXPLICITA NOS CÂNTICOS

Já vimos, no capítulo anterior a sincrética procedência dos cânticos que compõem o tradicional hinário protestante brasileiro, isto é, o SALMOS E HINOS. Salvo uma ou outra fonte ali indicada que sugere ligação com pro­ duções tradicionais da Reforma, o restante aponta claramente para aquele momento histórico indicado. O exame do SALMOS E HINOS mostra que na sua composição final, salvo a coleção do SALMOS metrificados, em número de 25, e algumas outras composições que apontam para o protestantismo clássico, o restante que compõe a maioria absoluta da coleção mostra sensivel­ mente sua origem avivalista e missionária dos grandes avivamentos protestan­ tes. Creio poder classificar essa maioria absoluta como “chorus”, na terminologia de David Martin. Ora, se esses “chorus”, na sua origem estavam ligados aos grandes movimentos de despertamento religioso, tanto ingleses como americanos, vão ser no Brasil muito apropriados para atingir a camada social mais ou menos similar a dos trabalhadores das cidades industriais da Inglaterra e a das frentes pioneiras norte-americanas. É de se crer que do mesmo modo como a clássica e elitista teologia do calvinismo dificilmente encontraria brechas na camada da sociedade brasileira que recebeu a mensagem protestante, a música mais complicada e erudita dos “hymus” e “carols”, na terminologia de David Martin, também não encontraria caminhos fáceis. Em suma, a teologia e a música dos avivamentos religiosos ingleses e america­ nos foram transferidos para o Brasil e aqui seriam assimilados através do crivo próprio do ambiente sócio-cultural que, como resposta, gerou uma forma própria, até certo ponto “sui-generis”, de protestantismo. Em suma, o trans­ plante do protestantismo americano para o Brasil foi duplamente comprome­ to

Ibidem,

pp. 86/88.

235

tido; por um lado, pela teologia dos missionários que tinham bebido na fonte comum do “melting-pot” religioso norte-americano, com a sua teologia dos avivamentos, igreja espiritual, escolasticismo, pietismo e apocalipsismo e, por outro lado, pelas condições do novo ambiente, com seu sistema piramidalhierárquico, pobreza e isolamento social, que favoreceu o escapismo, assim como o condicionamento religioso dos próprios adeptos. A edição do SALMOS E HINOS com músicas sacras de que estou me servindo contém 608 cânticos distribuídos em 3 volumes. Os dois primeiros foram editados em Edimburgo, 1899, e o terceiro em Londres, 1916. Tendo em vista o período histórico objeto deste estudo, deixei de lado este último volume que já pertence ao século XX. Por simples razões metodológicas, uma vez que os cânticos que ele contém, quase na sua totalidade, pertencem ao século XIX e, provavelmente, já circulavam nas congregações através de outros canais. Dos 500 cânticos, contidos nos dois primeiros volumes, examinei mais de 400 que, ao meu ver, são classificáveis pelo critério já apontado, na linha dos “coros” ligados aos avivamentos e à efervescência missionária. Os demais, inclusos os 25 salmos metrificados, parecem remontar às tradições anteriores da Igreja Cristã, especialmente da Reforma. Tentei distribuir os cânticos desses dois volumes pelos diversos temas teológicos do cristianismo protestante. O empreendimento não é simples porque a ordenação deles não obedeceu a qualquer critério observável, como temas, lugar no culto, ou calendário litúrgico11. Por sua vez, o sincretismo doutrinário dos cânticos que, na maioria absoluta deles, incluem a um só tempo muitos temas, dificulta ainda mais as tentativas de classificação. Assim, tratei de distribuir os temas pela ÊNFASE, não procurando uma classificação rigorosa e exaustiva, mas simplesmente sentir o espírito da crença que neles se encontra. Assim, quando temas como cruz, morte, sangue, sofrimento, céu etc., surgem nos textos, o cântico é inserido em temas inclusivos como EXPIAÇÃO SANGRENTA, VIDA FUTURA / CÉU, e assim por diante. Antes de qualquer outra consideração, constatei que todos os cânticos examinados, direta ou indiretamente, referem-se a Cristo ou Deus-Filho. Os demais componentes da Trindade são quase que completamente esquecidos e, se recordarmos que o protestantismo estudado neste trabalho é herdeiro direto do calvinismo, sente-se, desde logo, um notável distanciamento. Creio que não haveria nenhum exagero em dizer que se trata de um protestantismo essencialmente CRISTOLÓGICO. O que estou querendo dizer é que é mais ou menos sensível um certo desequilíbrio na fé essencialmente trinitária do cristia­ nismo. Nos limites desse amplo horizonte cristológico, se inserem os outros temas em maior ou menor amplitude. Na grande maioria dos hinos cristológicos está implícita a teologia do “amor de Deus”, central nos movimentos de avivamento, outro notório afastamento do calvinismo original. 11 Coisa que o missionário John Boyle já tentara fazer, ao menos quanto aos temas e momentos de culto, em seu já citado Hinos evangélicos e Cânticos sagrados, 1888.

236

Cerca de 70 cânticos se referem à penitência (confissão de pecados) e ao convite ao pecador para a conversão. Mais de 130 referem-se ao sacrifício expiatório na cruz (morte do Deus-Filho), acentuando o teor dramático da pregação dos avivamentos e muito coloridos e adocicados pelo espírito pietista da exacerbação do sofrimento físico e moral de Cristo, seus ferimentos, sangue e pelo quase-erotismo no tratamento de temas como amizade e amor íntimos com Jesus (amante, esposo, esposa, gozo etc.). Os temas de vida futura (céu, vida no além, negação do mundo) são enfatizados em cerca de 100 cânticos. Outra coisa que surpreende é que o tema crucial do cristianismo que é a “ressurreição”, ainda mais em se tratando de uma religiosidade essencialmente cristológica, ocupa um espaço relativamente pequeno: cerca de 10 cânticos. Nota-se, por fim, um extremo individualismo; a maioria absoluta dos cânticos é disposta na primeira pessoa do singular. Não se sente o coletivo, o sentido de povo como predominante. QUADRO 1 Temas

Descrição sumária do tema

N.° aproxi­ mado

1. GERAIS DA FÉ CRISTÃ Salmos

Deus-Pai, criador do universo, protetor dos perigos, provedor das necessidades. Louvo­ res e ações de graças

25*

Deus-Pai

Louvores

16

Espírito-Santo

Súplicas por companhia ou ensino

Trindade

Louvores

5 16

Sub-Total

62

2. CRISTOLÕGICOS (todos os temas) Cruz Jesus-amante Jesus-amigo Jesus (conversão a) Jesus (confissão de pecado) Jesus (amor de Deus)

Expiação, paixão, redenção (colorido pie­ tista) Amor, esposo, noivo (colorido pietista) Intimidade com Jesus (colorido pietista) Convite ao pecador para se converter a Jesus (arminianismo wesleyano) O homem se reconhece pecador (peni­ tência) Teologia dos avivamentos: Deus ama e quer salvar todos os homens.

92 26 14 32 38 13

237

N.° aproxi­ mado

Temas

Descrição sumária do tema

Jesus protetor

Função de Deus-Pai: Cristologia confusa, talvez devida ao cristocentrismo da teologia dos avivamentos.

12

Jesus-guerreiro

Vida futura no além, céu, negação do mun­ do. Apocalipsismo. Batalha moral contra o mal

104 34

Jesus-ressurreição

Tema pouco trabalhado.

Jesus no Céu

Sub-Total

10 375 62 375

Total Geral

437

* Número exato.

Pode-se dizer, então, que o protestantismo no Brasil é uma “religião de Jesus”12, cristológica portanto. O estudo dos cânticos, que demonstra essa centralidade da fé protestante, pode possibilitar-nos a tentativa de construção de algumas tipologias do protestantismo no Brasil, embora isso não seja muito fácil dado o extenso sincretismo ideológico e doutrinário dos cânticos. Já afirmei isto antes. Mas creio ser válida a tentativa, pois ela poderá ir lançando algumas pontes para a compreensão desse segmento religioso. Podemos tentar um resumo do quadro anterior assim: QUADRO 2 Tipos de protestantismo

N.° de cânticos

Protestantismo pietista ..................................................................

216

Protestantismo peregrino .............................................................

19

Protestantismo guerreiro

.............................................................

36

Protestantismo milenarista ...........................................................

104

Total ...............................................................................

375

12 No Livro de Atas da Igreja Presbiteriana de Rio Novo — SP, em 15/11/1880, está registrado: “foi suspenso dos privilégios da Igreja Angelo Dias da Silva por ter falado a católicos romanos mal da religião de Jesus” (Livro n.° 1, fls. 19v).

238

2 .1 — O protestantismo pietista Noutra parte deste trabalho tratei do pietismo como um traço da vivência protestante característica da reação contra o escolasticismo teológico e o excesso de institucionalização da religião. Tentei mostrar que o pietismo moraviano penetrou no protestantismo missionário e lhe deu um colorido especial. Pretendo mostrar que esse mesmo pietismo chegou ao Brasil como ponta de linha da ebulição religiosa dos avivamentos dos séculos XVIII e, principalmente, XIX. As características do pietismo são o individualismo no cultivo da vida religiosa, a leitura solitária da Bíblia e sua interpretação literal ou espirituali­ zada e, especialmente, a experiência pessoal com Jesus. O pietismo moraviano, ou o “hermhutismo” de Zinzendorf, caracterizou-se essencialmente pela peda­ gogia da cruz. A consciência dolorosa do próprio pecado (culpa) procede de um sentimento vivido do sofrimento substitutivo de Jesus, seu sangue seus ferimentos, sua morte. A justiça divina se dissolve em amor e perdão na contemplação da cruz. Esta contemplação da cruz é espiritual, não se objetiva na cruz do Crucificado, caso contrário se confundiria com o misticismo católico. Daí o lirismo com que se reveste na poesia do cântico sagrado; justifica-se assim o elevado número de cânticos em que o sofrimento vicário é descrito em detalhes e exaltado com grande emoção. O adocicamento e o quase erotismo na descrição das experiências com Jesus aproximam bastante o pietismo protes­ tante do misticismo católico. Este hino de Augusto S.P. Caldeira (1867-?), intitulado “Suspiros da Alma”, muito cantado pelos protestantes, indica um elevado misticismo13: Minha alma, tão ansiosa, Suspira pela vida, meu Jesus, Oh! faz descer, radiosa, Sobre esta alma dorida. Tua luz (1.°). A consciência de pecado e o sofrimento vicáriosão exaltados neste cântico de J.J. Ransom (1853-1934) intitulado “Fidelidade”, também bastante cantado: Por meus delitos expirou Jesus, a vida e luz; O meu castigo ele esgotou Na ensangüentada cruz.u O conversionismo, mola propulsora da expansão protestante na linha dos avivamentos, funda-se na penitência, na “experiência pessoal com Jesus” e na segurança do perdão que a acompanha. A conversão, como experiência emotiva e ato individual que conduzem o indivíduo a uma sensação de paz e 13 Salmos e Hinos, n.° 364. 14 Salmos e Hinos, n.° 363.

239

de reconciliação com Deus e com o mundo, tem íntima correlação com o conversionismo, este visto como o aspecto dinâmico e prático do subjetivismo pietista. O conversionismo, aqui colocado como uma vertente do pietismo, nada tem a ver com questões como “verdade” e “erro” ; estas se colocam noutro plano da opção religiosa. O enclausuramento do crente com a sua Bíblia e a busca e cultivo inces­ santes da experiência e da comunhão com Jesus, levam-no à negação do mundo e ao desprezo dos prazeres da vida. Essa atitude se caracteriza positiva­ mente pela afirmação de um valor maior, o cultivo de sua devoção, e negativa­ mente, pela consciência de que os prazeres mundanos são antagônicos aos prazeres e gozos espirituais. São numerosos os cânticos que exaltam essa “vida superior”, mas um exemplo basta: este cântico traduzido e adaptado por H. Maxwell Wright (1849-1931), intitulado “Quem é por Jesus?” (“Who is on the Lord’s side?”15: Quem está ao lado do bom Salvador, Pronto a dedicar-se hoje ao seu Senhor? Tudo abandonando pra Jesus seguir, Encarando tudo quanto possa vir? (IP) Não ambicionando honras ou poder, Nos erguemos firmes para combater, Quem o amor de Cristo, na cruz, chega a ver, Há de, constrangido, do seu lado ser! (2.°) O fechamento do protestante para o mundo, o seu cultivo individual da vida religiosa, seu apego solitário à Bíblia e a mística contemplação do Crucifi­ cado, fazem do pietismo protestante, e quase que do protestantismo em geral, um monasticismo secular. Há pouca distância do misticismo monástico católico. Se a Reforma pôs em circulação a Bíblia, foi sem dúvida o pietismo que introduziu no protestantismo essa característica fundamental dele que é o apego individual à Bíblia como fonte de devoção. Mas se o estudo da Escritura, sua interpretação literal e espiritualizada, foi uma reação contra a institucionalização da religião e o correspondente escolasticismo, permitindo que uma aragem de profunda religiosidade estivesse sempre perpassando a fé protestante, consti­ tuiu-se também num poderoso obstáculo ao desenvolvimento da reflexão teológica. A teologia cheira a racionalismo, racionalismo à sistematização e esta a escolasticismo; este poderia ser o raciocínio implícito do pietismo. A espiritualização é. característica do esforço para fugir ao material, ao temporal. Na leitura da Bíblia ela permite, não somente essa fuga, mas a superação, sem a intermediação de especialistas funcionários da instituição, das numerosas dificuldades do texto que podem por em xeque a própria fé, o que ocorre freqüentemente na leitura do Antigo Testamento. 15

240

Idem, n.° 260.

John Boyle, missionário presbiteriano em Bagagem-MG, hinólogo muito lúcido, no prefácio do seu livro de hinos defende a necessidade do uso dos Salmos metrificados porque “a respeito de Deus, seus atributos e sua glória os Salmos são melhores do que os hinos” (aliás, na linha do calvinismo tradicional). Mas, sabendo dos escolhos que certos salmos apresentam para a fé, Boyle aconselha16: “Naqueles Salmos que Davi fala de seus inimigos, fala como tipo dos cristãos, e os seus inimigos eram tipos dos nossos inimigos espirituais, e devemos cantar tais hinos com os mesmos sentimentos que temos ao cantar ‘Eia às armas camaradas’ e outros hinos semelhantes”.u Em suma, o pietismo é muito propício para o desenvolvimento do sistema individual de crenças. O sistema de crenças assim gerado pode ser comparti­ lhado por pequenos grupos e, regra geral, está presente na instituição religiosa oficial contra a qual ele não se opõe. O pietismo tende a selecionar entre os ensinos e as práticas institucionais aquilo que lhe interessa e que vem ao encontro de sua devoção individual. A sua ojeriza ao pensamento sistemático pode surgir defensivamente quando o seu sistema próprio de crenças é ameaça­ do. O que predomina, em última instância, é o sentimento e a experiência individual de fé. Regra geral, o protestante comum não abre mão desse direito que afirma ter. O seu último reduto em questões de fé e moral é a Bíblia, interpretada individualmente pelo método literal e espiritual. À questão que se poderia levantar sobre a convivência entre o pietismo e a instituição como sendo praticamente impossível, poder-se-ia responder: realmente o sistema institucional de crenças da instituição representado pelos símbolos de fé está muito distante da crença explícita do protestante comum, mas ocorre que essa crença explícita e seus mecanismos de alimentação constituem o “espírito” do protestantismo, “espírito” no qual se nutrem a mente e o sentimento coletivos. Daí, dificilmente virem à tona atritos entre o pietismo e a instituição. Há um silencioso acordo de convivência. A tensão subjacente que há entre o espírito pietista e a instituição manifes­ ta-se setorialmente entre ele e as escolas de teologia. Há uma permanente e mútua desconfiança porque a reflexão que se pode desenvolver nas escolas de teologia constitui-se em dupla ameaça ao espírito pietista: de um lado a sistematização do pensamento em fórmulas de fé que tendem a superpor-se ao individualismo e, de outro, o movimento de idéias que pode abrir caminhos para mudanças. É freqüente, então, que toda a instituição se alie ao espírito pietista e mantenha sob controle suas escolas de teologia. O acordo silencioso entre a instituição e o pietismo desloca sua mútua tensão para os seminários. Os conflitos que ali vêm a tona e são solucionados 16 John Boyle, 1888, Prefácio, p. VII. 17 Idem, hino n.° 299.

9 -C e le s te porvir

241

institucionalmente, tendem a manter inócuas a pesquisa e a criatividade na área do pensamento religioso. O espírito pietista ao desenvolver uma antiteologia fecha as portas da reflexão, não permite que as inquietações sociais agitem a instituição. Desse modo, a instituição, assim como a vivência religiosa do cotidiano, podem pairar acima das contradições sociais. Para terminar: se no protestantismo americano o espírito pietista consti­ tuiu-se numa tendência subjacente que não chegou a perturbar a profunda involucração da teologia no social, no Brasil é um lago extenso e pacífico em que as contradições se chegaram a produzir pequenas marolas, elas logo desapa­ receram na quietude bucólica desse lago esquecido da geografia social.

2 .2

— O protestantismo peregrino

O protestante comum vive no provisório. Sua ética de negação do mundo o conduz à constante expectação do porvir, do mundo a-histórico do além, muito melhor do que o presente. Se essa expectação o leva a cantar, como veremos, as glórias e os prazeres de sua futura e verdadeira pátria, leva-o, em contrapartida a recusar os valores da presente. O mundo presente é um tempo de peregrinação. Ele não tem morada (lembrar a quase extrema mobilidade do sertanejo brasileiro), não tem repouso (não tem garantia do futuro) e está rodeado de inimigos (os valores do mundo presente). Sente-se estrangeiro na terra, de modo que o seu viver é um penoso caminhar para a pátria celestial. Repete-se a velha alegoria puritana de João Bunyan. No fim do século XIX, e em boa parte dos inícios do século XX, o senti­ mento de peregrinação do protestante ainda estava muito vivido. Ê possível que as mudanças sociais muito acentuadas que ocorreram no período da industria­ lização e urbanização que alteraram sensivelmente a distribuição geográfica e as condições sociais dos protestantes, tenham esmaecido a expectação do mundo do além e, conseqüentemente, o sentimento de peregrinação. Mas os mais antigos protestantes ainda cantam com prazer os velhos cânticos de peregrinação. Os cânticos cujo tema central e explícito é a peregrinação são poucos nos SALMOS E HINOS, embora a idéia do efêmero e do provisório perpasse numerosos outros. Mas o que é importante é que os hinos de peregrinação constituíram uma forte predileção no protestantismo tradicional, de modo que o favoritismo superou a quantidade. O peregrinar penoso está exemplificado neste hino traduzido e adaptado por Sara Kalley, “O Celeste Porvir” (“Sweet By and By”): Pacientes podemos penar, Se sofrermos por nosso Jesus (2.°)'a, 18 Salmos e Hinos, n.° 140.

242

Neste outro traduzido por João Gomes da Rocha19: Marchando triste aqui na solidão, Paz e descanso a mim teus braços dão (2.°). Mas o mundo em que o peregrino caminha oferece, por outro lado, prazeres enganosos que podem desviá-lo da sua meta, como neste hino de Justus H. Nelson, “O Exilado” (“Old Folks at Home”): Da linda pátria estou bem longe; Cansado estou. Eu tenho de Jesus saudade; Oh! quando é que vou! Passarinhos, belas flores Querem me encantar. Oh! terrestres esplendores! De longe enxergo o lar!20 A esperança do peregrino é expressa neste hino, traduzido por João Go­ mes da Rocha, “Vou à Pátria” (“I am a Pilgrim”): Vou à Pátria — eu peregrino — A viver eternamente com Jesus21 A sensação de ser estrangeiro neste mundo, cidadão de uma outra pátria para a qual espera voltar em breve, expressa-se neste hino traduzido por Elisa Smart, “A Mensagem Real” (“The King’s Business”): Sou forasteiro aqui, em terra estranha estou, Celeste pátria, sim, é para onde vou: .Embaixador, por Deus, de reinos dalém Céus, Venho em serviço do meu Rei.22 Neste hino surge a idéia muito sugestiva do peregrino embaixador, apres­ sado em apresentar a mensagem de que é portador e regressar à pátria. Um mundo escuro, hostil e misterioso, em que o peregrino desenvolve a sua jornada ansioso pela luz que dissipa as trevas da ignorância e da dúvida, é descrito neste hino traduzido por Benjamim Rufino Duarte, “Brilho Celeste” (“Heavenly Sunlight”): Peregrinando por sobre os montes, Dentro dos vales, sempre na luz! Cristo promete nunca deixar-me “Eis-me convosco”, disse Jesus.23 19 20 21 22 23

Salmos e Hinos, n.° 219. Ibidem, n.° 403. Ibidem, n.° 469. Salmos e Hinos, n.° 544. Salmos e Hinos, n.° 582.

243

Sobre estes dois últimos hinos cabe uma observação. O exame limitou-se aos dois primeiros volumes do SALMOS E HINOS, editados em 1899, que incluíam os hinos já em circulação nas congregações desde o início. O terceiro volume, editado em 1916, embora inclua hinos que então circulavam por diver­ sas vias, apresenta, regra geral, contribuições tardias, isto é, já do século XX. Assim, “A Mensagem Real” e “Brilho Celeste” foram traduzidos em 1907 e 1906, respectivamente. Não circulavam, portanto, no século XIX nas congre­ gações brasileiras. Como são tradicionalmente cantados com prazer pelos protestantes, é de se crer que refletiram, desde logo, o espírito da crença protestante; por isso, abri uma exceção ao incluí-los neste estudo por acreditar que são sugestivos para os objetivos propostos.

2 .3 — O protestantismo guerreiro A hinódia guerreira no protestantismo brasileiro é relativamente tardia. Os hinos mais significativos, por serem os mais cantados, datam na sua maioria dos últimos anos do século XIX. Somente dois deles são mais recuados (1895 e 1877) e foram introduzidos por traduções de Sarah P. Kalley. Sem maiores investigações, podemos lançar a hipótese de que tais cânticos representam um princípio de euforia das denominações protestantes no Brasil, num momento em que elas começam a sentir os resultados de seu próprio progresso, especial­ mente os presbiterianos, o dealbar de novos tempos com a proclamação da República e, quem sabe como pano de fundo de tudo isso, novas correntes teológicas e o ápice o expansionismo do colonialismo anglo-saxão. É bem possível que a ideologia guerreira no protestantismo tenha se objetivado no Exército de Salvação (“Salvation Army”), fundado em 1878 na Inglaterra, em plena efervescência das “Missões Cristãs”. Como novos jesuítas, numa organi­ zação paramilitar, os membros do Exército de Salvação alistam-se para com­ bater o mal, como numa guerra. Seus cânticos, em ritmos populares à seme­ lhança dos avivamentos, refletem o espírito de guerra. Como já vimos noutra parte deste trabalho, os livros de hinos de origem salvacionista constam da lista de contribuintes para o SALMOS E HINOS, conforme os agradecimentos do Editor que aparecem no segundo volume da edição de 1899. Constitui, portanto, o Exército de Salvação e sua contribuição hinódica para o protestantismo em geral, uma atrativa hipótese sobre a versão protes­ tante do cristianismo guerreiro. Poder-se-ia arriscar ainda a hipótese mais atrevida de sua analogia com a ideologia jesuítica. Eduardo Hoomaert, em seu estudo sobre o Catolicismo Guerreiro no Brasil24, entende que a versão guerreira do catolicismo começa numa segunda etapa de sua introdução colonial. Parece-me que o mesmo se deu com o protestantismo. Os hinos guerreiros começam a surgir num momento em que a presença protestante no Brasil parecia triunfar. São hinos de chamamento 24 Hoomaert, Eduardo, 1974, p. 315.

244

para o combate, como que num esforço final de conquista, mas cantando desde logo o triunfo certo e seguro. Diz ainda Hoomaert que a versão santorial guerreira consistiu num intento do dominador. O povo continuou com a sua versão tradicional em que os santos se constituíam, antes de outra coisa, em “milagreiros” porque a versão guerreira não lhe interessava. “A guerra hão muda a condição dele”25. Para o protestante a situação era outra. Ele, pelo menos, na versão trazida preponde­ rantemente pelos missionários, como veremos mais adiante, não tinha nenhuma esperança de que alguma mudança para melhor se operasse neste mundo. Portanto, não tinha sentido nenhuma ação guerreira de conquista. Não havia inimigos visíveis a combater, nem chefes guerreiros materialmente presentes a seguir. A ideologia guerreira é transportada para o espiritual: o inimigo a ser combatido é o mal e o chefe guerreiro é Jesus. O triunfo final sobre o mal será assinalado pela vinda pessoal de Jesus que, vitorioso, inaugurará o Milênio. A convicção é de que a vinda do Milênio será abreviada na medida em que o mal for sendo suplantado pelo bem. Na expectação do Reino de Deus, intensa no século XIX em ambas as versões, isto é, pré-milenista e pós-milenista, vai prevalecer no Brasil a versão pré-milenista, isto é, a expectação da invasão do sobrenatural na história. O protestantismo guerreiro não se constitui numa guerra santa contra os infiéis, como no catolicismo guerreiro, mas numa guerra contra poderes metafísicos nos espaços espirituais. Como ocorreu com o protestantismo peregrino, os cânticos de guerra são também relativamente poucos no período considerado neste trabalho. Não posso deixar de assinalar, no entanto, que eles aumentaram consideravelmente, nos primeiros anos do século XX, como atesta o terceiro volume do SALMOS E HINOS. Mas o que torna válida a idéia do protestantismo guerreiro é o favo­ ritismo dos cânticos pelos protestantes, e não a suã presença quantitativa no hinário. Apresento, em seguida, vários exemplos da ideologia guerreira do protestantismo expressa em vários cânticos. O protestante é chamado para alistar-se como soldado (Avante! Avante! — trad. de Sarah Kalley, 1875): Avante! avante! ó crentes! Soldados de Jesus! Erguei seu estandarte, Lutai por sua cruz! Ccmtra hostes inimigas, Ante essas multidões O Comandante excelso Dirige os batalhões26. 25

Hoornaert, Eduardo, 1974, p. 41.

26 Salmos e Hinos, n.° 147.

245

Este outro, de H.M. Wright, “Erguei-vos Cristãos” (“Stand like the brave”), 1890, estimula o cristão à batalha: Erguei-vos cristãos! O clarim já soou! Ã guerra vos chama o que vos libertou, Os lombos cingidos, nas armas pegai, À sombra da cruz corajosos lutaiF A guerra é contra o mal (“Grito de Guerra”, “Sound the Battle Cry!”), traduzido por Manoel A. Camargo, 1894: Moços, declarai guerra contra o mal, Exaltai a cruz do Salvqdor; Firmes empunhai armas não carnais, Sempre confiai em seu favor2S. O soldado deve guardar o reduto do Bem — “Guarda o forte” — (“Ho, my comrades!”), traduzido por Sara Kalley, 1875: "Guarda o forte! em breve eu venho!” Clama o Salvador! Responderemos: " Venceremos Pelo teu favor/”29 O soldado deve seguir a bandeira erguida pelo poder celestial do Bem, como no hino “O Estandarte” (‘Armageddon’), de H.M. Wright, 1898): Eis o estandarte, tremulando à luz! Eis a sua divisa: C’roa sobre cruz! Para a santa guerra Ele vos conduz Quem quer alistar-se sob o Rei Jesus?zo Em torno da coroa e da cruz, estandarte e divisa do Rei, reúnem-se os soldados para combater as forças do mal e guardar o forte do bem. É uma batalha permanente enquanto não se der a irrupção do sobrenatural na história para inaugurar um novo tempo. Mas a batalha se dá no plano espiritual; o protestantismo guerreiro é uma espiritualização da guerra. O protestantismo guerreiro assumiu formas polêmicas contra o catolicismo. Embora o protestante comum não expresse enfaticamente o seu espírito polê­ mico nos atos de culto, como nos seus cânticos, intelectualmente o anticatolicismo foi, desde logo, forte apoio para a sua auto-identificação. A polêmica foi uma expressão institucional do protestantismo brasileiro, responsável por uma mentalidade polêmica, por um espírito polêmico. Mas se a hinologia guerreira ocupa um espaço significativo na crença e no culto, â expressão hinológica do 27 Salmos e Hinos, n.° 253. 28

Ibidem, n.° 134 (Coro).

29 Ibidem, n.° 134 (Coro). 30 Salmos e Hinos, n.° 244, 1899.

246

espírito polêmico foi pouco enunciada, embora indiretamente ele esteja presente em quase toda a hinologia pela afirmação de princípios de fé opostos aos do catolicismo. Encontrei somente dois hinos de expressão polêmica direta, mas muito cantados pelos protestantes ligados à tradição dos SALMOS E HINOS. O primeiro deles foi escrito por Sarah P. Kalley, em 1864, apropriado para o princípio do culto: Não vemos altar, nem hóstias aqui, Desconto nenhum trazemos a Ti; Por nossos pecados, já morreu Jesus! O grande Pontífice, Oferenda e Luz.31 O segundo, escrito por José Augusto dos Santos e Silva, em 1908, inspi­ rado em Júlia Ward Howe, 1861, “Alma Sequiosa” (‘Battle Hymn’), embora tardio quanto ao período do SALMOS E HINOS, é uma forte expressão do espírito polêmico. Hino muito cantado, expressa principalmente o protestantis­ mo guerreiro, mas o autor inclui, na 3.a estrofe, o espírito polêmico: Da vaidade fiéis servos, Ou romanos ou ateus, Muitas vezes nos assaltam Para nos tomarem seus; Mas se alguém procura ver-nos Sem o gozo do bom Deus, Vencendo vem Jesus!32

2 .4 — O protestantismo milenarista Os estudos feitos por Antônio Cândido33 e Maria ISaura Pereira de Queiroz34 sobre o segmento da população brasileira que, no meu entender, ofereceu espaço para a “nova religião”, mostram que esse segmento oferecia todas as condições para visões milenaristas. De fato, a história da colonização brasileira manifesta um clima messiânico e, possivelmente, uma mentalidade messiânica. O clima e mentalidade messiânicos seriam produtos de uma longa história começada em Portugal com o “sebastianismo”, colorida e reforçada no fértil solo indígena do mito da “terra sem males” . As longas migrações de milhares de indígenas, anotadas desde o século XVI, em busca de imortalidade e descanso eternos,35 podem ter alimentado ou oferecido solo propício para 31 Idem, n.° 66. 1899. 32 Idem, 1916, n.° 579. A 5.® edição dos Salmos e hinos com músicas sacras revista e aumentada, publicada em 1975, mudou os dois primeiros versos assim: “Inimigos aleivosos, ou rebeldes ou ateus, .. 33 Antônio Cândido, 1975. 34 Queiroz, Maria Isaura P., 1977. 35 Clastres, Hèlene, 1978; Queiroz, Maria Isaura P., 1977; Bastide, Roger, 1971, 2.° vol., 494.

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diversos movimentos sebastianistas no século XIX, quase todos eles com desenlaces trágicos. O sebastianismo, crença no regresso vitorioso do rei D. Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir (1578), difundiu-se muito em Portugal nos séculos XVI e XVII. Ao tomar-se rei foi chamado O DESEJADO e ao morrer foi aguardado como o ENCOBERTO; toda uma feição do messia­ nismo hebraico. O sebastianismo desenha o anseio popular pelo aparecimento e um personagem redentor, messiânico. Esse estado de espírito português transferiu-se naturalmente para o Brasil. A partir de 1640, o principal disseminador do sebastianismo foi o padre Antonio Vieira, fato que muito provavel­ mente tenha ajudado a impregnar de sebastianismo as crenças religiosas no Brasil. Logo a crença sebastianista deu lugar à expectação de um salvador no sentido mais geral, aproximando-se sensivelmente do Messias de Israel. O “Encobertismo”, como é também conhecido o sebastianismo, teve muita gua­ rida entre os judeus e é possível que os cristãos-novos tenham dado sua contri­ buição para a disseminação da crença no Brasil. No século XIX ocorreram no Brasil diversos movimentos sociais de inspi­ ração sebastianista, como o de Pedra Bonita, em Pernambuco, em 1817, O Reino Encantado, também iniciado em Pernambuco por volta de 1836, Canu­ dos, na Bahia, cerca de 1873, quando surge a figura de Antonio Conselheiro pregando com fervor o Paraíso Terrestre (Nova Jerusalém) objetivado no Império de Belo Monte (Canudos) a Cidade Santa (Juazeiro, Ceará), fundada em 1872 pelo Padre Cícero, o mais extenso movimento messiânico brasileiro, pois que hoje ainda permanece. Já no século XX (entre 1912 e 1916) registrase o movimento milenarista do Contestado, Santa Catarina, mais ou menos com as mesmas características dos anteriores. Os estudiosos desses movimentos concordam, regra geral, que eles surgem em populações rurais subalternas em situações anômicas ou de mudança social, em que os modos de vida tradicionais são ameaçados. Quando a esses fatores soma-se a falta de assistência religiosa, como ocorreu durante quase todo o desenvolvimento da sociedade brasileira “rústica”, as condições para a emer­ gência de messianismos são bastante favoráveis. Creio ser válida a hipótese de que a junção das crenças indígenas sobre a “Terra sem Males” com as crenças sebastianistas formou na “civilização rústi­ ca” brasileira uma mentalidade messiânica. Embora não se deixe de lado o fato de que o material religioso de inspiração milenarista tenha sido produzido na Europa e nos Estados Unidos, o que indica que por lá circunstâncias propí­ cias para essa crença deviam estar ocorrendo, é fato que a introdução da hinologia protestante de inspiração milenarista dá-se inconfundivelmente no mesmo período dos principais movimentos sociais brasileiros já relacionados, isto é, a partir de 1880 como se verá mais adiante. Em outros lugares deste trabalho foi dito que o pré-milenismo foi, nas fontes do protestantismo brasileiro, uma reação contra o liberalismo assim como um sinal de cansaço das lutas teológicas. Ê necessário recordar aqui os traços principais do liberalismo teológico. O liberalismo teológico cria nas

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virtudes humanas, na possibilidade de a consciência individual transformar-se em consciência social. Enfatizava o papel do homem cristão na sociedade como fundamental para a formação de uma sociedade justa e feliz. O Reino de Deus era tido como um ideal genuíno para o mundo contemporâneo. O liberalismo teológico foi expresso em muitas novelas, algumas delas lidas pelos protestantes brasileiros, por estarem presentes nas bibliotecas das igrejas urbanas na primeira metade do século XX. No entanto, por serem lidas fora do contexto e por não encontrarem respaldo no ensino institucional, per­ maneceram no plano da ética individual sem chegar a formar os contornos de um projeto social. As novelas por excelência do liberalismo teológico, encar­ nado no Evangelho Social, foram “Em seus Passos que Faria Jesus”, de Carlos M. Sheldon (1896), e “A Cabana do Pai Tomás”, de Elizabet Beecher Stowe (1851-1852). Foi nas questões escatológicas que o liberalismo causou maior impacto. Para o liberal Deus não interfere nas leis da natureza; ao contrário, opera através delas e conduz o mundo no sentido do seu próprio aperfeiçoamento. O problema da vida após a morte não ganha, no liberalismo, relevo acentuado. A atenção do liberal concentra-se no cumprimento da vida aqui e agora “inter­ pretando-se cada vez mais a vida futura como imortalidade do espírito melhor do que ressurreição do corpo”36. A reação contra o liberalismo consistia em afirmar que o Reino de Deus não é o produto final de uma cristianização progressiva da ordem social. Este conceito de Reino era mais o reflexo da posição evolutiva do que da esperança do Novo Testamento. O Reino virá por iniciativa divina e não por qualquer esforço humano. O que compete ao homem não é “edificar” o Reino, mas estar pronto para a sua vinda sobrenatural mediante o arrependimento e a fé. Para uma sociedade impotente e sem esperança era necessário pregar o arre­ pendimento, a fé e a esperança num mundo compensador para o atual, corrom­ pido e feio. Em suma, o Reino não é um desenvolvimento histórico contínuo; simboliza o fim da era presente, é o “para lá da história” . Na teologia esta forma de crença chama-se pré-milenista, isto é, que o Messias virá instaurar o Milênio; a concepção liberal, embora não esteja tão preocupada com a escatologia, concebe a vinda do Messias após o Reino Milenial: é um pós-milenismo, portanto. Está fora de dúvida de que na teologia dos missionários americanos em geral, excetuando-se talvez os educadores que seguramente representavam a ala liberal do protestantismo americano, o pré-milenismo ocupava espaço especial. Já vimos isto na apreciação dos sermões dos pioneiros em outro lugar deste trabalho. Por outro lado, é de se crer que as duas teorias, nas áreas institu­ cionais, eram confrontadas. É por isso que Alfredo Borges Teixeira, um bri­ lhante discípulo dos missionários presbiterianos do fim do século XIX, assim atesta a sua conversão definitiva ao pré-milenismo: 36 Dillemberger, J. e Welcb, C., 1958, p. 209.

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"Educados no pós-milenismo sempre sentíamos a força deste argu­ menta27 ao mesmo tempo que notávamos o ardor religioso e gozo espiritual que caracterizam os irmãos pré-rmlenistas por efeito de esta­ rem sempre à espera de J e su s.. . Em nosso espírito, todavia, perma­ neceu sempre o fato irredutível de que os irmãos pré-milenistas podiam esperar sempre a vinda de Jesus e nós não podíamos. Obedecem eles à recomendação do Senhor nesse sentido e nós não o podíamos fazer por força da nossa teoria! Afinal, maior atenção dada ao assunto e a leitura de melhores livros nos levaram à conclusão de que, nos domínios obscuros da Escatologia, o pré-milenismo é a teoria mais luminosai” .38 Alfredo Borges Teixeira escreveu isto em 1921, ano da primeira edição de seu livro “M aranata”. Recebeu ordens sacras da Igreja Presbiteriana em 1900; sua formação teológica foi feita, portanto, durante os mais intensos reflexos do confronto entre o pós-milenismo e o pré-milenismo. Exercendo o ensino teológico durante a maior parte de sua vida no Seminário da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, não deixou de exercer influência mesmo fora dos âmbitos de sua denominação. Em 1958, na sua obra “Dogmática Evangélica”39 introduziu ligeira alteração no seu pré-milenismo, que não chegou a alterá-lo em sua essência. Pode-se concluir que o pré-milenismo incorporou-se ao pensamento institucional protestante brasileiro. £ possível aduzir, de passagem, que o movimento fundamentalista que começou a ser pregado no Brasil na década de 40 veio reforçar consideravelmente o pré-milenismo com sua enfática preocupação com o fim do mundo e a conseqüente relativização dos bens terrenos em virtude da iminência da segunda vinda de Cristo. A visão da história no sentido de sua aproximação cada vez maior de um fim apocalíptico, é feita a partir dos textos apocalípticos da Bíblia dispostos na ordem em que os eventos da história a elesdevem corresponder. Isso é feito a partir de uma leitura literal dostextos,sendo rechaçada qualquer forma de relativização. Essa espécie de racionalização da Bíblia e da história, além de ser geralmente simpática ao protestantismo, fornece vigoroso apoio às crenças relativas à expectação milenarista40. O clima propício do messianismo no Brasil, por causa de sua população dispersa no meio rural, relativamente anômica e desfavorecida, absorveu facilmente a mensagem pré-milenista da maioria dos missionários e expressou-a enfaticamente através dos cânticos que, em número abundante, foram sendo colocados nas mãos dos convertidos. 37 O autor citado está se referindo ao seguinte texto do Evangelho: “Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do Homem há de vir” — Mateus 25,12. 38 Teixeira, Alfredo Borges, 1971, pp. 18-19. 39 Teixeira, Alfredo Borges, 1958, pp. 302-303. 40 Sobre o fundamentalismo em geral é recomendável Barr, James, 1977.

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A amostragem que preparei desses cânticos fomece-nos os contornos de um apocaliptismo, isto é, que o Reino de Deus se estabelecerá pela segunda vinda de Jesus em glória. Sua derrota na primeira vinda será compensada pela segunda vinda triunfal. Sua vinda, bem ligada com os aspectos guerreiros do protestantismo, será como um guerreiro vitorioso. Pelo menos no Brasil, o Reino de Deus parece ser a reprodução de uma Idade do Ouro: as saudades da pátria e o embaixador ansioso por regressar à própria terra indicam a anterioridade de uma vida melhor à qual se deseja voltar. A pátria não é algo novo a ser construído, mas um bem que foi perdido. Se para o liberalismo teológico há um progresso na direção do novo, para o pré-milenismo espera-se uma recuperação do que foi perdido. A seguir encontram-se os mais expressivos e prediletos hinos do prémilenismo protestante brasileiro. Note-se que nenhum deles é anterior à década de oitenta do século XIX; a intensificação da preferência pelo tema do milênio parece indicar que o clima social e religioso era propício a essa forma de crença, desde que não se esqueça o fato já mencionado de que o período corresponde a importantes movimentos milenaristas no Brasil. Embora os títulos e as correspondentes ênfases constantes do quadro já possam dar idéia do que estou afirmando, à semelhança do que já vem sendo feito ao longo deste trabalho, dou alguns exemplos transcrevendo trechos dos cânticos indica­ dos, escolhendo alguns dos temas do QUADRO 1. a. O Reino Messiânico John Boyle, A Pátria Celestial (1888): Pátria minha, por ti suspiro! Quando no teu bom descanso entrarei? (1 °) Não há pranto na minha Pátria Nela jamais haverá- separação.. . (4.°)tx Elizabeth Milles, tradução de Luiz Vieira Ferreira, 1881, “Lugar de Delícias (“We speak of the Realms”): Conservemos em nossa lembrança A s riquezas do lindo país, E guardemos conosco a esperança De uma vida melhor, mais feliz; (3.0)*2 b . O fim do Sofrimento no Reino Messiânico Sanford Fillmore Bennett, tradução de John Boyle, 1888, “O Doce Porvir” (“Gathered Home”): 41 Salmos e Hinos, 1899, n.° 468. 42 Salmos e Hinos, 1899, n.° 473.

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Cantaremos no belo pais, Melodias de Santo ardor; Nossa terra celeste e feliz Não há pranto, gemido nem dor. (2.°)a c. A Esperança do Reino Messiânico Jonathan Bush Atchinson, tradução de Manoel de Arruda Camargo, 1895, “Glória Indizível” (“The Beautiful City”) Tenho lido da bela cidade Situada no Reino de Deus, A murada de um jaspe luzente, Jurtcada de áureos troféus; N o meio da praça está o Rio da Vida que nasce da cruz, Mas metade da Glória Celeste Jamais se contou ao mortal (1.°) Tenho lido dos belos palácios Que Jesus foi no céu preparar, Que os crentes fiéis, para sempre felizes irão habitar; Tristeza, nem dor, nem velhice Atinge a mansão divinal, Mas metade do gozo futuro Jamais se contou ao mortal (2.°)u . d . Encontro Festivo de Parentes e Amigos no Reino Messiânico Philip Paul Bliss, adaptação de Manoel Antonio de Menezes, 1885, “Oh! Vem me encontrar à Fonte” (“At the Fountain”): Oh! Vem me encontrar à Fonte, Da Jerusalém do Céu! A esta cristalina fonte, Que Jesus aos crentes deu! Lá vou encontrar amigos, Que me amavam como irmão; Lá teremos belos hinos; Vem de todo o coração. (I.0)45 A hinologia pré-milenista é extensa e tem sido a fonte das mais intensas emoções do culto protestante. Encontram-se nela aquelas características básicas de toda mentalidade milenarista: igualitarismo, santidade e perfeição. Estão

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43 44

Salmos e

Hinos,

Salmos e

Hinos,

n.° 474. 1899, n.° 477.

45

Salmos e

Hinos,

1899, n.° 384.

presentes também os componentes dos mitos da Idade do Ouro, a ausência de sofrimento e de velhice. No entanto, o transcendentalismo platônico que condi­ ciona o pré-milenismo, espiritualiza-o, projeta-o para além da história. A oposição terra/céu sempre presente na expressão hinológica mostra outra oposição fundamental: vida/morte, no sentido de uma inversão básica em que vida significa morte (negação da vida presente) e morte significa vida (afirma­ ção da vida futura). Acresça-se que a expressão dessa fé é individualista, sempre na primeira pessoa do singular, não se encontrando nela o sentido do coletivo. Assim, embora as primeiras comunidades protestantes constituíssem grupos milenaristas, não houve entre eles nenhum movimento social desse tipo por causa do individualismo, do sobrenaturalismo e, possivelmente, pela falta de liderança carismática. Havia uma mentalidade milenarista assim como uma expectação milenarista. O milenarismo protestante, concluindo, não é análogo ao milenarismo dos surtos ocorridos em áreas católicas. Estes foram dinâmicos no sentido do esforço de construção de novos modelos sociais; de certo modo, alegres e festivos, dada a experiência presente do novo. O milenarismo protestante é triste, um misto de esperança e de nostalgia por um estado perdido. Uma alegria tristonha.

Consideração final A minha pretensão é que os vários protestantismos aqui analisados sejam vistos como tipos puros de protestantismos no Brasil. Eles se espalham pelas várias denominações e, no seu conjunto, podem servir para a percepção do espírito desse protestantismo e, quem sabe, para compreensão do seu lugar na sociedade brasileira.

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REFLEXÕES FINAIS

"A análise das motivações revela a presença de um tecido hetero­ gêneo e, às vezes, ambíguo” Duglas Teixeira Monteiro, Os Errantes do Novo Século.

A compreensão dos fenômenos históricos e sociais depende, na maioria das vezes, do percurso de longos e sinuosos caminhos. No intento de responder às questões levantadas no início deste trabalho, procurei encontrar os caminhos e percorrê-los. Não foi fácil dados os trilhos, atalhos e encruzilhadas que freqüentemente pareciam conduzir a lugar nenhum. Tive que ir selecionando e puxando as pontas do tecido emaranhado das idéias religiosas que, a partir do século XVI, vão se encaminhando para formar um protestantismo cansado e diluído como o brasileiro. Vimos que no século XIX, nos Estados Unidos, o protestantismo já apresentava uma heterogeneidade surpreendente. Ao lado das tradições purita­ nas vindas do início da colonização, abrangendo agora quase todas as denominações históricas, grandes avivamentos religiosos agitavam as igrejas e introduziam formas eclesiásticas novas, assim como idéias teológicas adequadas à efervescência social e política que vinha caracterizando a ocupação do território e promovendo os ajustamentos necessários a uma sociedade que procurava os seus caminhos. As idéias do liberalismo refletiam-se na teologia do voluntarismo conversionista, do perfeccionismo pessoal e do denominacionalismo. O evolucionismo tinha sua expressão teológica na grande confiança na capacidade humana para promover sua própria salvação, assim como para construir uma sociedade perfeita tendo como objetivo o reino de Deus na terra. Mas a euforia do liberalismo e do progressismo foi aos poucos sendo minada pelo cansaço especialmente quando os problemas relativos à escravidão começaram a agitar a sociedade e a repercutir nas igrejas. O esforço para defender as instituições eclesiásticas foi gerando mecanismos de autopreservação expressos teologicamente no reforço da autoridade, no escolasticismo dogmático e no transcendentalismo. O transcendentalismo encontrou as melhores formas

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de escapismo das contingências sócio-políticas na “teologia da Igreja Espiritual” e no pré-milenismo. A análise do emaranhado de idéias teológicas que formavam o clima religioso ao tempo da expansão missionária mostrou que aquelas formas de pensar eram até certo ponto minoritárias no campo religioso norte-americano. Mas ocorreu que foram elas carreadas para o Brasil através da maioria dos missionários que aqui se entregaram à prática conversionista na implantação do protestantismo. Nos Estados Unidos as idéias teológicas, se não tinham sido o produto total de uma nova sociedade, traziam pelo menos as marcas de uma adequação e ajustamento feitos ao longo da sua história. Isto não ocorreu no Brasil. A mensagem missionária protestante encontrou aqui uma sociedade profundamente estratificada e informada por uma cultura religiosa muito diferente. O protes­ tantismo foi visto desde logo, pelo menos pela camada social atingida pela sua mensagem, com uma “nova religião” . A mensagem protestante canalizada pelos missionários para a camada de “homens livres e pobres” da população rural constituiu-se num saber (conhecer a Bíblia e os símbolos da fé), numa crença (preceitos éticos e expectação milenarista) e num comportamento piedoso na vida religiosa (cultivo pessoal da fé). As condições próprias do receptor da mensagem, dentro da sociedade mais ampla, selecionou e filtrou a mensagem religiosa a partir do seu lugar social e da mentalidade messiânica subjacente, formando comunida­ des micromilenaristas de tipo pré-milenarista, mais ou menos nômades e de “espera”. A formação de comunidades micromilenaristas, isto é, de pequenos grupos, deveu-se ao fato de que o protestantismo, além de ter de inserir-se em interstícios do campo religioso católico, apresentou-se como uma religião ética e cognoscitivamente rigorosa, tomando bastante difícil a admissão de adeptos dados os conhecimentos religiosos exigidos e as renúncias oriundas de sua ética. A análise, até o quanto possível penetrante das condições ideológicas, teológicas e sociais do protestantismo na sociedade brasileira pode permitir, agora, a formação de algumas respostas às indagações levantadas. A primeira idéia a que se pode chegar é a da índole fundamentalmente conservadora da “nova religião”. Realmente, o protestantismo no Brasil, apesar de aqui chegar como portador do liberalismo e da modernidade, mostrou-se incapaz de acompa­ nhar as transformações da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, fechou suas portas às aragens inovadoras que, de tempos em tempos, têm chegado vindo do lado de suas próprias origens. O conservadorismo está condicionado e expresso na herança da escolástica protestante; ao que se sabe, até hoje, num sentido amplo, o protestantismo histórico de missão no Brasil permanece fiel aos símbolos de fé recebidos das igrejas-mães no século XIX, quando estas já devem ter feito, para si mesmas, possíveis e diversos ajustamentos. Como os condicionantes quase 256

nunca estão isolados, a explicação desse escolasticismo, reduto do conservado­ rismo, pode ser entendido a partir do pietismo, naturalmente infenso à reflexão teológica, e do apocaliptismo de tipo pré-milenarista, inibidor da construção de qualquer utopia social. Neste ponto é viável admitir que, dadas as caracte­ rísticas da sociedade brasileira, o pós-milenarismo de alguns missionários, ou mesmo a política missionária, tenham sofrido uma transmutação pré-milenista como medida de prudência diante das dificuldades que teriam de enfrentar e contornar a fim de evitar choque direto com o “status quo”. Realmente, uma proposta modificadora do “aqui e agora” esbarraria com dificuldades que fatalmente comprometeriam toda a empresa missionária. Isto de passagem. Assim, o individualismo do pietismo e a indiferença pelo social por parte dos fiéis, assim como o escolasticismo por parte das instituições eclesiais, constituem o firme solo do conservadorismo. A mentalidade conservadora e individualista do protestantismo, condicio­ nada e alimentada pelo tripé escolasticismo-pietismo-apocaliptismo, afastou-o dos movimentos sociais que, ao longo de um século, mudaram a fisionomia do Brasil. Daí, sua quase nula presença na política, na cultura e na participação efetiva nos movimentos de mudança social. A crise atual do protestantismo histórico de missão no Brasil, expressa na sua paralisação e, possivelmente, na sua diminuição numérica, pode ser enten­ dida a partir da inadequação de sua rigidez teológica, de seu pietismo individua­ lista e de seu milenarismo, diante das mudanças sociais que esvaziaram as suas propostas iniciais. Com efeito, seus credos e suas coníissõe de fé, datados de séculos atrás e produzidos em contextos significativamente diferentes, se já não tinham muito sentido, ao serem transportados para o Brasil no século XIX, acabaram sendo marcos históricos aos quais as instituições religiosas se amarraram enquanto a sociedade caminhava. Se se aceita que a reflexão teoló­ gica é a roupagem com que a instituição eclesiástica reveste seu pensar sobre o social, o pietismo constitui-se em um permanente entrave para o ajustamento protestante à sociedade mais ampla. Ainda, a mentalidade milenarista caracteristicamente produto do mundo rural, geralmente com traços alienadores de segmentos da população em relação ao sistema social, compreensivamente tem de esvaziar-se com a crescente urbanização e progressiva inserção das camadas receptoras do protestantismo no sistema de produção. Daí, a inade­ quação da proposta protestante a partir de um dado momento da vida brasileira. Uma última razão: o protestantismo teve um êxito inicial, em boa parte devido à sua proposta religiosa que tendia a ocupar alguns espaços deixados pela religião oficial e cultural, devidos à fraqueza momentânea desta. Sem dúvida, o ímpeto polêmico foi uma grande força. Mas com a arregimentação de suas próprias forças por parte da Igreja Católica, que começa ainda no século XIX e se estende pelas primeiras décadas da República, no sentido de substituir o catolicismo ibérico, acomodado e, em muitos pontos sensivelmente liberal, por um outro tridentino e agressivo, as adesões ao protestantismo já não continuaram tão fáceis. Por outro lado, as próprias inadequações entre a

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proposta protestante e a realidade social deram a sua contribuição para o arrefecimento do ímpeto conversionista. Restaria um último reduto protestante: a educação. Mas a secularização de suas escolas e a expansão da educação oficial que acompanhou a política laicizante republicana que atingiu todo o sistema educacional religioso, inclusive o católico, acabou por esvaziar também este último reduto da estratégia missionária protestante. Pode ser que a crise atual do protestantismo de missão no Brasil tenha causas mais amplas. Mas é de se crer que as causas apresentadas neste trabalho lancem alguma luz sobre ela. £ o que espero dele.

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ÍNDICE

9

INTRODUÇÃO Parte I A HISTÓRIA

17 18 21 29 29 30 32 35 35 37 39 43 44 46 48 52 54 57 60 62 64 67

Cap. I — PRESENÇA PROTESTANTE NO BRASIL: UM ESBOÇO HISTÓRICO NECESSÁRIO 1. Brasil colônia 2. Brasil império Cap. II — AS RAIZES 1. A Reforma na Inglaterra a) A evolução da teologia calvinista b) O calvinismo na Inglaterra c) O puritanismo c) 1 A teologia do pacto e o puritanismo c) 2 O “spectrum” dopuritanismo d) O fim da Reforma na Inglaterra 2. O protestantismo missionário americano a) A formação do protestantismo americano b) O desenvolvimento do protestantismo americano c) Enfraquecimento e despertamento d) A teologia dos avivamentos 3. Civilização protestante e “Destino Manifesto” 4. A empresa missionária 5. Atividades missionárias leigas 6. Resistência às mudanças Considerações finais Apêndice I — O PIETISMO

73

Apêndice II — O PRO TESTANTISM O AM ERIC AN O E A IGREJA CATÓLICA Parte II A ESTRATÉGIA

113

Cap. I — O CATOLICISMO BRASILEIRO NA VISÃO DO PROTESTANTISMO TRADICIONAL Introdução a) O ponto de partida b ) Ashbel G. Simonton c) José Manuel da Conceição d) Eduardo Carlos Pereira e) Álvaro Reis e a polêmica com o Pe. Júlio Maria Conclusão Cap. II — A ESTRATÉGIA MISSIONÁRIA Introdução Educação e estratégia missionária , Resumo Apêndice I — A ESCOLA DO R E V . M IGUEL TO RRES

115

Apêndice II — O COLÉGIO PIRAC IC ABANO

117

Apêndice III — A ESCOLA A M E R IC A N A DE CURITIBA

119 119 123 123 127 134

Cap. III — RELIGIÃO, MUNDO RURAL E FRENTES PIONEIRAS Introdução

79 79 80 81 83 85 89 91 93 94 95 111

158

1. O homem pobre e seu campo religioso a) Projeção de um “spectrum” abrangente b) O homem pobre e seu mundo c) O homem pobre e sua religião 2. O anúncio de uma nova religião 3. Teodicéias em confronto a) Prós e contras; uma balança viciada b) Gente esquisita mas simpática 4. Na trilha do café

162

Resumo

163

Apêndice I — ESCOLA D O M INICAL NO SÍTIO

165 169

Apêndice II — CENA RELIG IO SA SERTAN EJA

171 174

Apêndice IV — M ISSIONÁRIOS, PRO TESTANTES E PADRES

140 146 149 156

266

,,

Apêndice III — O PAD RE JOSÊ D E M OGI-M IRIM Apêndice V — O EVAN G ELH O DOS SERTÕES

Parte III A NOVA RELIGIÃO 179 182 184 185 187 194 196

200 207 211 214 217 227 231 235 239 242 244 247 253 255 259

Cap. I — A MENSAGEM INSTITUCIONAL 1. A teologia do protestantismo missionário no Brasil e suas formas de assimilação a) A mensagem institucional a) 1 Robert L. Kalley (109-1888) a) 2 Ashbel G. Simonton (1833-1867) a) 3 José Manuel da Conceição a) 4 A teologia dos metodistas e batistas a) 5 Unidade teológica dos protestantes no Brasil 2. Emocionalismo e dogmatismo epistemológico 3. Neoplatonismo e transcendentalismo Resumo e algumas conclusões Apêndice — A PEDAGOGIA DA DIFERENÇA Cap. II — CRENÇAS E SUAS FORMAS DE ASSIMILAÇÃO 1. A fé explícita 2. A fé explícita nos cânticos 2.1 O protestantismo pietista 2.2 O protestantismo peregrino 2.3 O protestantismo guerreiro 2.4 O protestantismo milenarista Consideração final REFLEXÕES FINAIS Bibliografia

267

Esta obra tem com o preocupação básica m ostrar a configuração de um dos im p o rtan tes segm entos da religião no Brasil: o p ro ­ testantism o, o m ais sentido depois do catolicism o, m as o m enos conhecido nos seus fundam entos, apesar de já estar no país há quase século e m eio. Tal desconhecim ento deve-se à literatu ra, sobre o protestantism o, existente entre nós: m ais apologética que científica. A A u to r procura lan çar luzes sobre o protestan tism o brasileiro, até certo ponto desfigurado, distante das raízes de um a história iniciada em outro lugar e em outro tem po. Consciente de que à presença visível do p ro testan tism o no Brasil, seus te m ­ plos, escolas e m eios de com unicação não corresponde um a p re ­ sença espiritual na cultura, levanta em torno desse p ro b lem a a l­ gum as questões, às quais procura responder ao longo do trabalho. A proposta do livro enfoca três ângulos: 1. °) a inserção do p ro ­ testantism o na sociedade brasileira deu-se num m o m e n to histórico-social propício (outro talvez jam ais ocorresse): 2. °) a acei­ tação do p ro testan tism o ocorreu na cam ada "livre e p o b re " da população rurai; 3. °) a expansão do p ro te s ta n tism o fo i facilitada p ela rota do café. Este trabalho busca c ap tar algo extrem a m en te abstrato: o "es­ p ír ito " do p ro testan tism o brasileiro. A N TÔ N IO G. M E N D O N Ç A — nasceu em Arealva — SP, em 1922. Pastor da Igreja Presbiteriana Indeoendente do Brasil, é licenciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, e bacha-el em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Independente, em São Paulo. Doutorou-se em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo. É professor de Re igião no Brasil" no Curso de Pós-Graduação em Ciências da Reli­ gião do Instituto Metodista de Ensino Superior, Rúdge Ramos, São Bernardo do Cam­ po — SP.