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Portuguese Pages 448 [380] Year 2019
Copyright © Paulo Nogueira Batista Jr. Todos os direitos reservados. © Casa da Palavra/LeYa, 2019 Editor executivo: Rodrigo de Almeida Produção editorial: Anna Beatriz Seilhe Preparação: Veridiana Cunha Revisão: Bárbara Anaissi Capa: Leandro Dittz Diagramação: Selênia Serviços Tradução de texto nas páginas 43-53: Juliana Alvim Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Batista Junior, Paulo Nogueira O Brasil não cabe no quintal de ninguém: Bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata / Paulo Nogueira Batista Jr. – São Paulo: LeYa, 2019. 448 p. ISBN 978-85-7734684-4 1. Economia - Ensaios 2. Economia - Brasil - Ensaios 3. Relações internacionais 19-1739 CDD 330
Índices para catálogo sistemático: 1. Economia - Ensaios Todos os direitos reservados à
Editora Casa da Palavra Avenida Eng. Armando de Arruda Pereira, 2.937 Bloco B - Cj 302/303 B - Jabaquara 04309-011 - São Paulo - SP www.leya.com.br
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Nacionalismo – herança, fio condutor CAPÍTULO 1 Reforma da arquitetura financeira mundial: FMI e G20 G20 e FMI depois da crise internacional FMI e controle de capitais Um nacionalista no FMI: a estrutura da instituição e o papel do Brasil A luta pela reforma do FMI O Império contra-ataca Sobrevivi CAPÍTULO 2 BRICS e banco dos BRICS BRICS no FMI e no G20 Novo banco e novo fundo monetário Começo auspicioso do novo banco Primeiro triênio do Novo Banco de Desenvolvimento – promessas, resultados, decepções O Banco dos BRICS e a minha demissão CAPÍTULO 3 Nação, nacionalismo, caráter nacional Nacionalismo e desenvolvimento Nação versus globalização A Marselhesa brasileira Amazônia – de quem é? Nacionalismo em Fernando Pessoa
Uma visita aos Estados Unidos Síndrome de degredado Caráter nacional – franceses e brasileiros Brasil, um país desarmado Dois partidos Brasil, Estados Unidos, China CAPÍTULO 4 Economia política brasileira Macroeconomia do desenvolvimento nacional Independência para o Banco Central? A busca da “agenda perdida” Carga negativa O grande dilema CAPÍTULO 5 Perfis Brizola em 1961 Nenhuma derrota é definitiva Cinco anos em cinquenta Um iconoclasta O maior brasileiro de todos os tempos Um brasileiro Um artista A plataforma cedeu Tempo cruel Lembranças de um outro Brasil CAPÍTULO 6 Humor econômico e outras crônicas Um sobrinho no mercado financeiro Banhas dogmáticas Humor econômico
Exílio Um sonho Independência financeira “Trabalho de Deus” O complexo de vira-lata À sombra da bufunfa O economista bufunfeiro Está extinta a escravidão? Exit paquiderme As montanhas do Rio
APRESENTAÇÃO Nacionalismo – herança, fio condutor
“A experiência é uma lanterna que se carrega ao ombro – só ilumina o caminho percorrido.”
La Rochefoucauld
“Nunca aprendo com a experiência – só com a dos outros.”
Bismarck
O que você, leitor, encontrará nas páginas deste livro é essencialmente um relato, fragmentário, meio descosturado, de uma experiência particular. Pode-se duvidar, reconheço, que isso tenha grande utilidade. Escolhi as duas epígrafes, a de La Rochefoucauld e a de Bismarck, para expressar ambivalência em relação ao valor da experiência. A dúvida vale hoje mais do que nunca. Nada escapa ao efeito corrosivo de um tempo que parece passar em velocidade sempre maior, reforçando a advertência, velha de séculos, do moralista francês. Por outro lado, o primeiroministro prussiano sugere, com ironia, que se deve ganhar tempo, aprendendo com a experiência dos outros. Deixo ao leitor a decisão sobre essa questão eterna e possivelmente insolúvel, mas ofereço antes de prosseguir algumas reflexões, meros palpites talvez. Desde que comecei a trabalhar como economista, a velocidade dos acontecimentos foi muito maior do que eu poderia esperar. Minha primeira passagem pelo governo coincidiu com a crise da dívida externa da década de 1980. Fiz parte da equipe negociadora que tentou alcançar em 1985, sem sucesso, um acordo com o FMI para substituir os programas fracassados do período Delfim Netto. Dois anos depois, entrávamos em moratória unilateral com os credores bancários privados, que detinham na época o grosso da dívida externa brasileira. Como imaginar que eu mesmo seria, na condição de diretor brasileiro no FMI, responsável pela negociação de um empréstimo, não do FMI ao Brasil, mas do Brasil ao FMI! As reviravoltas que o tempo traz… E, no entanto, a experiência adquirida nos anos 1980 certamente me serviu vinte anos depois. O FMI que eu reencontrei em 2007 não era e, ao mesmo tempo, era, sim, a instituição que conhecera em 1985. “Não te banharás duas vezes no mesmo rio”, reza a mais célebre das máximas pré-socráticas, “o rio não é o mesmo, tu não és o mesmo”. Tudo muda, tudo se transforma – verdade inegável, mas parcial, como todas. Mais interessante, a meu juízo, é outra observação, também atribuída a Heráclito: “Entramos e não entramos duas vezes no mesmo rio, pois somos e não somos.” Esses fragmentos renderam volumes. Para meus propósitos limitados, poderia dizer simplesmente que nada escapa intacto à passagem do tempo. E acrescentar que o tempo devolve, como que regurgita, elementos do passado, que reaparecem modificados, metamorfoseados, transtornados. E é isso, afinal, que
confere valor ao estudo da história, às memórias, à experiência. No frigir dos ovos, prefiro Bismarck a La Rochefoucauld – como seria de esperar, considerando a fase da vida em que me encontro. Os jovens não podem avaliar o valor da experiência, pois ainda não a têm. Os mais velhos, por seu turno, tendem a supervalorizá-la, pois é só o que lhes resta, no fim. A estrutura deste livro é semelhante à de um outro que publiquei em 2000 sob o título A economia como ela é… – uma antologia de pesquisas, conferências, estudos e artigos. Mas entre o livro de 2000 e este jaz toda uma experiência de mais de dez anos em organismos internacionais, primeiro no FMI, em Washington, e depois no banco de desenvolvimento criado pelos BRICS, em Xangai. O núcleo deste livro são os capítulos que tratam da minha vivência no exterior. Os capítulos 1 e 2 trazem uma combinação de análise econômica e institucional com relatos dos bastidores do governo brasileiro, do FMI, do G20 e dos BRICS. Joguei a pimenta dos embates que não vêm a público na avaliação de questões impessoais como a economia internacional, a organização da governança global e o papel de países emergentes como o Brasil. Limitei-me, leitor, a apresentar depoimentos sobre os episódios que vivenciei diretamente, sem complementá-los com informações indiretas, relatadas por terceiros. Os textos aqui incluídos foram escritos em sua maioria ao longo dos últimos dez anos, no Brasil e durante a permanência no exterior. Os trabalhos inéditos, redigidos em 2019, especialmente os que abordam FMI e BRICS, correspondem a cerca de 2/3 do livro. O terço restante foi publicado anteriormente, só que muitas vezes em livros ou periódicos de difícil acesso, inclusive no exterior. Para esta publicação foram todos revistos e parcialmente rescritos, sem alterar a sua essência original. Eu mesmo os selecionei, fugindo de repetições e evitando sempre a inclusão de textos mais perecíveis. Não sei se fui bem-sucedido. O resultado é um livro que aborda uma grande variedade de temas, e não só econômicos, em diferentes registros de linguagem. Cada texto é independente e pode ser lido isoladamente. É uma vantagem. Se quiser, o leitor pode abrir o livro em qualquer capítulo e começar ali. Se sentir afinidade comigo, migrará a esmo para outras partes. O percurso será um pouco acidentado, mas há um traço de união – o temperamento do autor. Mais ou menos a mesma voz fala em cada parte do livro, em que pese diferenças de tema, época e tratamento. Exceções ao que acabei de dizer são o capítulo 1 – sobre FMI e governança internacional – e o capítulo 2 – sobre BRICS e banco dos BRICS – que ganham com uma leitura em sequência – até porque a criação de entidades independentes
pelos BRICS não é plenamente compreensível sem levar em conta o caráter incompleto, até frustrante, do esforço de reforma da arquitetura internacional empreendida pelo G20 após a crise financeira de 2008. O banco e o fundo monetário dos BRICS nem existiriam, provavelmente, se o Banco Mundial e o FMI tivessem se mostrado mais rápidos na adaptação ao século XXI e, em especial, à necessidade de abrir mais espaço para os países emergentes. De qualquer maneira, não quero fazer propaganda enganosa. O que apresento aqui não é muito mais do que uma tentativa de reunir fragmentos, de juntar sob um só teto textos muito heterogêneos. “Reunir fragmentos”, disse. Pior: o que fiz foi juntar cacos. Cacos da minha participação em três grandes projetos inacabados e problemáticos: a recuperação da autonomia da política econômica brasileira e do desenvolvimento nacional; a reforma do FMI e da governança financeira mundial; e o projeto dos BRICS, ainda embrionário, de constituir mecanismos independentes de financiamento internacional. O insucesso parcial não surpreende. Afinal, os objetivos eram grandiosos – inalcançáveis em poucos anos e provavelmente no espaço de uma, ou mesmo duas gerações. Mas, enfim, é o que posso apresentar. Apesar de decepções e interrupções, o processo continua ou precisa continuar em todas essas frentes. E este relato pode ajudar, espero, nessa retomada.
Paciência de Jó, paciência chinesa Vamos precisar de paciência. Não a de Jó, a cristã, a do mártir, a paciência de quem aguarda passivamente a intervenção divina. Mas da paciência chinesa, ativa e estratégica. A paciência que, como definiu Kafka, é uma segunda coragem. Vivi pouco mais de dois anos na China. E nos oito anos de Estados Unidos interagi continuamente com diretores e delegados chineses no FMI, no G-20 e nos BRICS. Creio ter aprendido um pouco sobre essa grande nação – na verdade, uma civilização que, na era moderna, apenas finge ser um Estadonação, como observou um cientista político americano.1 A China é quase outro planeta, diria, se o leitor permite o exagero retórico. Os chineses, têm, por exemplo noção completamente diferente do tempo. Civilização milenar, mentalidade correspondente. O olho no longo prazo é traço recorrente da abordagem e atitudes chinesas em todos os temas. Nada do curto prazismo, do imediatismo típicos do Ocidente, que têm sido tão destrutivos e desagregadores. Ocidente do qual o Brasil, ainda que relutante, participa como nação cultural.
Esse traço do chinês é até muito conhecido no resto do mundo. Há uma observação do primeiro-ministro Chou Enlai, muito citada no Ocidente, que reflete essa noção singular do tempo. Em certa ocasião, no início dos anos 1970, um jornalista estrangeiro lançou a pergunta: “Qual é, primeiro-ministro, a sua avaliação da Revolução Francesa?” Chou Enlai respondeu: “É cedo para dizer.” Quando estava na China, li que essa célebre resposta foi um simples malentendido. Com os percalços de interpretação, Chou Enlai entendeu, na verdade, que a pergunta se referia a maio de 1968! Pronto. Criou-se a lenda. Pena que tenha sido um mal-entendido. Seja como for, é indubitável que para os chineses o tempo tem outra dimensão. Para uma civilização de 4.000 anos ou mais, uma década tem sabor de 15 minutos. Isso se reflete, para dar exemplo de algo que vivenciei, na maneira como a China se relaciona com o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado pelos BRICS, um dos tópicos do capítulo 2 deste livro. Não se notava no comportamento deles a busca de resultados ou vantagens rápidas, mas um paciente trabalho para ajudar a construir, em Xangai, uma instituição financeira global, sólida e profissional. Por isso, um dos grandes ativos do NBD é estar sediado justamente na China e contar com o apoio sistemático do país – não só do governo central em Beijing, mas também do governo municipal de Xangai, como relato nos textos sobre o banco no segundo capítulo. A visão chinesa do tempo não é novidade, como disse. Menos conhecida é a sua ligação com outro aspecto da mentalidade chinesa: a visão completamente diferente, oposta mesmo, do papel e significado do indivíduo. Somos, no Ocidente, profundamente apegados ao que se pode chamar de “mito do indivíduo”, à supervalorização da pessoa individual. É uma ilusão que, como tantas, tem raízes no romantismo. Com a cultura de massas, e a massificação generalizada da vida, o véu dessa ilusão se torna cada vez mais tênue. A pessoa, robotizada, continua se considerando um indivíduo, com todas as prerrogativas e direitos do indivíduo, inclusive o de ter e expressar opiniões que nem sequer tem, propriamente… A China, que (até onde sei) nunca passou por nada comparável ao romantismo, não sofre dessa ilusão. O indivíduo tem seu valor, sim, mas circunscrito. O que importa, fundamentalmente, é o seu pertencimento a um grupo maior – à família, não só ao grupo familiar nuclear, mas à família ampliada, ao partido, à cidade, ao país, à civilização chinesa. Para eles, o chinês individual é uma peça numa engrenagem maior, que se estende no tempo e no espaço, pela imensidão da história e da geografia da China. Essa concepção limitada do indivíduo, que o coloca por assim dizer no seu lugar, a aceitação da
sua transitoriedade e pertencimento a algo maior, é o que, em última análise, viabiliza a paciência estratégica, o foco correspondente no longo prazo. E cabe notar, aliás, que o pertencimento começa com a família. Não por acaso, quando se apresenta ou assina, o chinês coloca em primeiro lugar o sobrenome e depois o nome próprio.
Coerência como falta de imaginação Espero, como todo autor, que o leitor tenha paciência com os defeitos e as fraquezas do que estou colocando em circulação. O livro não saiu tão desconjuntado, afinal, quanto se pode depreender do que disse até aqui. Devo o que há de estrutura no livro, em parte, à ajuda e às sugestões valiosas do meu editor, Rodrigo de Almeida, que leu e criticou versões preliminares com olhar sempre agudo. Mas o que contribui, sobretudo, para conferir unidade ao livro é uma virtude ligeiramente suspeita: a coerência que é, segundo Oscar Wilde, a virtude dos que carecem de imaginação. Paciência. Ninguém escapa a seu temperamento. E o temperamento, pelo menos no meu caso, escapou ao efeito corrosivo do tempo. Se não hesito em reivindicar a falta de imaginação como característica pessoal, isso se deve, também, a uma intenção de induzir à aceitação dos relatos que compõem este livro, de ressaltar que são fidedignos. O leitor não encontrará aqui a capacidade de fabulação dos ficcionistas criativos, claro, nem tampouco a inventividade fácil dos subliteratos, dos ideólogos ou dos fabricantes de lendas. Tenho meus preconceitos e cacoetes, admito. Puxo a brasa para a minha sardinha, como todo mundo, mesmo sem querer. Mas procuro me ater aos fatos tal como inscritos na minha memória e nos documentos. Quantas vezes tive que sacrificar pontos interessantes, frases possivelmente bem formuladas ou de impacto, por verificar, depois, que careciam de base factual e documental. Recorri também à memória e aos arquivos de pessoas que trabalharam ou interagiram comigo no FMI e no banco dos BRICS. Seja como for, não quero vender gato por lebre: a memória e a pesquisa são sempre seletivas e, portanto, “viesadas” de uma forma ou de outra. Enfim, não posso me perder em digressões. Queria apenas frisar que somos todos prisioneiros de preferências, impulsos e compulsões. E a isso se chama estilo. Há os camaleônicos – os que conseguem encarnar espíritos variados – e há os que têm marca registrada – que insistem em variações sobre a mesma temática. Eu me incluo, para bem e para mal, no segundo grupo.
Nacionalismo como fio condutor A unidade do livro decorre em grande parte, portanto, da insistência em alguns temas e teses. Mais do que insistência, teimosia ou obstinação. Entre esses temas obsessivamente recorrentes, o principal, sem dúvida, é o Brasil. E uma certa tendência a acreditar que o nosso país tem um valor muito particular, muito especial – ainda que nós, brasileiros, nem sempre estejamos à sua altura. Essa teimosia tem sido fonte de muita decepção, como o leitor sem dúvida imagina. As vitórias do nacionalismo em nosso país sempre foram episódicas. E a nossa atuação, sempre obstruída pela poderosa quinta coluna, pelas forças enraizadas no nosso passado – de colônia de Portugal e de economia baseada, em larga medida, desde o começo e por quase quatro séculos, no trabalho escravo. Hesito um pouco. Poderia agora ser mais brutal e lamentar, como muitas gerações de brasileiros têm feito, a mediocridade e a venalidade das elites domésticas, ou de grande parte delas. O termo “elite” talvez não seja nem o mais apropriado, pois carrega conotação positiva que conviria evitar. Em um célebre ensaio sobre o que ele chamou de “instinto de nacionalidade”, Machado de Assis destacou que o país real é bom e revela os melhores instintos, mas que o país oficial é “caricato e burlesco”. Não quero, entretanto, reprisar essas queixas. Só não aceito a tendência, muito comum entre nós, de insultar e estigmatizar o Brasil. Que culpa tem o país, afinal, de ter elites ou camadas dirigentes que não chegam a seus pés? O importante é não perder de vista a dimensão e o potencial do país. Estamos entre os cinco países, não mais do que cinco, que figuram nas listas dos dez maiores do mundo em termos de PIB, como de população e território. Só os Estados Unidos e os quatro BRICs originais – Brasil, Rússia, Índia e China – figuram nessas três listas. Temos, ademais, uma população que se notabiliza pela criatividade, pela imaginação, pela alegria. E ressalvados os períodos em que domina o obscurantismo, como o atual, somos um celeiro de soft power, aceitos e recebidos com simpatia, mundo afora. O nosso serviço diplomático, para dar apenas um exemplo, é reconhecido em toda parte como um dos melhores do mundo. Quando a nossa política interna se organiza minimamente, a ação internacional do Brasil pode se fazer sentir nos quatro cantos do planeta. Foi o que vivenciei, durante a maior parte do período em que trabalhei em Washington, como conto no primeiro capítulo.
Obra de ficção?
O título do meu livro de 2000 era uma homenagem a Nelson Rodrigues. Foi o mais bem-sucedido dos livros que publiquei, tendo chegado a três edições. Parece-me, entretanto, que houve um ligeiro mal-entendido, que terá contribuído para as vendas. É que o título, mero eco de A vida como ela é… do grande cronista, fez crer que se tratava de obra didática, em que o leitor não especializado encontraria, finalmente, um retrato da economia como ela realmente é… Involuntária propaganda enganosa. Só até determinado ponto, porém. Os meus livros nunca foram didáticos, é certo. Mas procuro escrever de forma acessível e sempre fui um adepto da busca das ideias claras. A escrita hermética, contorcida pode ser um sinal de confusão no pensamento. Sempre tive horror instintivo ao uso mistificador do jargão ou da linguagem matemática, tendência comum em economia e outras disciplinas. Abusar das palavras ou dos símbolos é o atalho para a estagnação do conhecimento. O título deste livro também pode ser enganoso, mas em sentido completamente diferente. A alguns pode parecer que é uma obra de ficção. Nos tempos de Temer e, sobretudo neste início de governo Bolsonaro, o que temos senão uma tentativa de reduzir o país à condição de quintal do Grande Irmão do Norte? No caso do governo Bolsonaro, a tendência é mais descarada, mais acintosa. E, por isso mesmo, já provoca reações crescentes. As indignidades da política externa do atual governo recolocaram a defesa da soberania nacional como questão não só central, mas urgente e inadiável. De todos os cantos do país, começa uma marcha batida, uma longa caminhada que resultará, ao fim, espero, na ejeção dessa lamentável geração de entreguistas que empolgou o poder central desde 2016, a mais recente leva de descendentes de Calabar e Joaquim Silvério dos Reis. Percebo, de repente, que estou adotando um tom impróprio, de palanque improvisado, que não condiz com a palavra escrita. Peço desculpas, leitor, mas prefiro não cortar. A situação emergencial que vivemos permite sacrificar a boa forma.
O árduo caminho da cabeça à página O meu leitor-alvo continua sendo não só o economista e nem principalmente o economista, mas antes o leigo inteligente, com interesses variados e certo lastro cultural. Espero que não seja uma espécie em extinção. E, no entanto, ao contrário do que talvez pareça, escrevo com dificuldade.
Escrever, confesso, é frequentemente penoso. Em geral, escrevo e reescrevo, muitas vezes. Tenho enorme dificuldade de começar. Coloco-me diante do computador e vou buscando as palavras, o tom. O caminho da cabeça à pena é tão mais longo e árduo – notava mesmo um Kafka! – do que da cabeça à língua. Escreve-se para um ausente – um leitor imaginário, possivelmente inexistente. Não temos o feedback corretor. Por isso, para mim foi sempre indispensável combinar a escrita com a interlocução presencial, em conferências, aulas, diálogos, debates. A comunicação verbal alimenta a escrita e vice-versa. Não sou daqueles que consegue, produtivamente, se isolar em uma torre de marfim qualquer, trancar portas e desfiar tratados. Tratados? Nem pensar. Não tenho inclinação nem capacidade para o sistemático e nem fôlego para o texto longo. Espero que os ensaios mais longos deste livro, os três que relatam os meus oito anos em Washington, tenham ficado legíveis. Procurei escrever da forma mais leve possível, mesmo sobre temas complexos, sem simplificar demais, porém, e sem subestimar a inteligência do leitor. Na minha opinião, o texto deve ser curto, de preferência. Quando tive que me estender um pouco mais, procurei compensar com a segmentação do texto, lançando mão sempre que possível de subtítulos provocativos ou instigantes, como faço nesta própria apresentação. O ideal seria escrever aforismos. Infelizmente, porém, são poucos os que praticam com sucesso a forma breve. E, claro, pouquíssimos os que podem reivindicar para si, como fez Nietzsche, em um dos seus (não tão raros) momentos de imodéstia, a capacidade de dizer em poucas páginas o que qualquer outro não dizia em um volume inteiro.
Vade retro, Conselheiro! E Descartes, também! Sou da opinião de que todo escritor, mesmo (e talvez sobretudo) se for também economista, precisa travar luta sem trégua contra o óbvio e o lugar comum. Essa luta nem sempre será vitoriosa, mas cabe fazer o possível e o impossível para não trilhar caminhos batidos e evitar homenagens ao Conselheiro Acácio – aquele personagem do Eça de Queiroz que se dedicava a proclamar o óbvio ululante. Bem sei que a sombra do Conselheiro nos persegue, mas – convenhamos – quem quer ver um escritor desfiar trivialidades? Por isso, temos que estar em permanente vigília contra tal influência. Tanto mais que o Conselheiro – fato pouco conhecido – era economista e, além do mais, autor de um tratado de economia política! Eça era, sem dúvida, um homem de visão. Nos
idos do século XIX, já detectou um traço notável da tribo a que pertenço. Ludwig von Mises, um dos líderes da escola austríaca de economia, chegou a sustentar, com certo exagero polêmico, que a única parte sólida da economia era um conjunto articulado de identidades e tautologias.2 Passaram-se mais ou menos cem anos desde que essa provocação foi lançada, mas ela ainda permanece válida. Vou mais longe. Devemos evitar, também, o celebrado senso comum. O termo já é revelador. “Comum”, encontradiço – é o que mais rapidamente conduz ao tédio – tédio contra o qual, dizia Nietzsche, até os deuses lutam em vão. No Discurso do Método, Descartes toma como ponto de partida a convicção de que o senso comum ou o bom senso, equiparado à racionalidade, é o que há de mais bem distribuído entre os homens. E ainda quer fazer dessa convicção, cuja fragilidade salta aos olhos, um alicerce na busca do conhecimento seguro. Mesmo que se pudesse aceitá-la, caberia de todo modo perguntar se a busca da segurança no conhecimento não é ilusória e, mais importante, desinteressante, uma vez que pode desembocar no enfadonho, no banal, no comum. Espero, leitor, não estar lhe oferecendo nada disso. É um desafio e tanto. Nem sempre consegui ficar à sua altura.
Duas ressalvas, porém Sinto que preciso fazer duas ressalvas. Primeira: a ambivalência e a incerteza podem ser justificadas como valores do ângulo estético. Do ângulo do conhecimento não cabe, claro, valorizá-las indiscriminadamente. Reduzir a margem de incerteza é uma exigência pragmática para muitas finalidades. É possível aumentar as chances de sucesso de ações práticas, reduzindo previamente as margens de incerteza, por cálculos ou medidas de precaução. Em suma, ninguém quer passar por uma ponte ambivalente (hoje em dia, leitor, desculpe, é preciso explicar tudo…). Por outro lado, ponto menos óbvio, a inevitabilidade da incerteza é um princípio há muito reconhecido, até nas ciências da natureza, não mais referidas como “exatas” – et pour cause. Segunda ressalva: de Descartes há que se reter um atributo importante, entre outros: a sua enfática preferência pelas “ideias claras e distintas”. Espero que ela se reflita em todos os cantos deste livro. Já mencionei esse ponto, procurando distinguir clareza de didatismo. Curioso é notar, observo en passant, como muitos acadêmicos franceses, na áreas de humanas, deixaram de ser cartesianos nesse ponto tão importante, dedicando-se a cultuar, desde o século
passado, em muitas disciplinas, inclusive na economia, o palavrório obscuro, o jargão supérfluo, em busca de uma aparência de sofisticação acadêmica, que esconde, não raro, a indigência ou fragilidade das ideias subjacentes. No campo da economia anglo-americana, esse mesmo papel vem sendo desempenhado há mais de meio século por modelos abstratos, pelo uso mistificador da matemática no plano teórico e da econometria no plano empírico. Tanto num caso como no outro, deturpam-se instrumentos científicos que são legítimos e até indispensáveis – jargão especializado no primeiro, formalização matemática e técnicas estatísticas, no segundo – para converter a atividade acadêmica e a busca do progresso científico no seu contrário: a mistificação e a geração de obstáculos ao progresso e à difusão do conhecimento. A abrangência temática do livro ajuda, espero, a espantar o tédio. Sempre existe, por outro lado, o risco de cair no diletantismo, de abordar questões complexas de forma superficial, turística, por assim dizer. Sempre preferi correr esse risco a aceitar as limitações ao conhecimento que derivam, inevitavelmente, da divisão do trabalho acadêmico. Essa divisão tem as suas razões de ser, sem a menor dúvida. Só que, levada à risca, ela impede de fazer pontes entre áreas diferentes do conhecimento e de tratar como conjunto o que existe como conjunto no mundo real. Nada existe fora do todo – falsa tautologia, que não deve ser esquecida. Segmentar é dissecar e, em última análise, matar. Nada vive fora do todo.
Nacionalismo como herança – herança como destino O nacionalismo perpassa praticamente o livro inteiro, mas é tema específico do terceiro capítulo, onde é tratado em diferentes registros. Essa ideologia ou sentimento foi a força motriz de toda a minha atividade profissional. Escrevi “toda”, e acrescentei ênfase. Não há exagero. Foi assim mesmo, desde os primórdios. Mas reconheço que é uma aposta insensata para quem vive e trabalha em um país como o Brasil. Não foi uma escolha, porém, mas sim uma herança. Nem sei se existem escolhas, realmente. Dizia Maurice Barrès, esplêndido porta-voz do nacionalismo francês, a quem dedico uma crônica neste livro, que somos essencialmente o prolongamento dos nossos antepassados. Os mortos vivem em nós, falam por nosso intermédio. Existe em cada um de nós, por assim dizer, um determinismo da terra e dos mortos. E é nela e neles que encontramos o nosso élan vital.
O nacionalismo é herança pelos lados materno e paterno. Sou, por assim dizer, um nacionalista de quatro costados. Minha mãe é neta de João Pinheiro, um dos líderes da República Velha, e sobrinha de Israel Pinheiro, criador da Vale do Rio Doce e construtor de Brasília. Ambos foram governadores de Minas Gerais, palco da Inconfidência Mineira. A família Pinheiro era aliada próxima de Juscelino Kubitschek e João Pinheiro foi uma das suas fontes de inspiração. Meu pai, que morreu em 1994, exatamente com a idade que tenho hoje, aparece volta e meia neste livro. Ele foi diplomata de carreira e um dos grandes líderes do nacionalismo no Itamaraty, tanto no plano prático como no plano doutrinário. Deixou um longo ensaio, escrito pouco antes da sua morte, que é citado até hoje e merece realmente ser lido: “O consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos”.3 Sua presença se faz sentir particularmente nos dois primeiros capítulos quando relato a minha experiência no FMI, no G20 e nos BRICS. Dele recebi muitas oportunidades, ensinamentos e incentivos, mas também um mandato nem sempre fácil de carregar – a defesa do interesse nacional, algo que deveria ser patrimônio comum de todos nós, mas que muitos brasileiros desconsideram por completo. Nesse ambiente, o preço que se paga é o isolamento profissional e político. Mais importante, entretanto, é que ele me deixou duas espadas – a do espírito crítico e a do espírito de combate, espadas de que tenho me valido desde o começo, sem cessar. Demorou até que encontrasse palavras para tratar do nacionalismo. Nietzsche sustentava que só encontramos palavras para aquilo que já superamos. Pode bem ser. Mas não acredito. Escrevo sobre o nacionalismo, mas não o ultrapassei, nem desejo fazê-lo. Não é possível abandonar o nacionalismo sem cair no vazio, num sem-número de ilusões sobre “humanidade”, “comunidade internacional”, “cidadania global” – ficções perigosas para países vulneráveis, que ainda buscam firmar a sua independência. Antigamente, costumava-se dizer, ecoando Samuel Johnson, que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Hoje, com muito mais razão, poderíamos dizer que canalhas e patifes de diferentes naipes se refugiam na condição de “cidadãos do mundo”, reivindicando-a sempre que lhes convém. Citizen of the world, citizen of nowhere, dizia Theresa May, a ex-primeira ministra do Reino Unido. Solavanco? Condição ideal para as elites que escapam, por meio de artifícios variados, da tributação e da regulação nacionais, sem, entretanto, abrir mão de correr para baixo das saias do seu Estado nacional quando se veem ameaçados em seus interesses particulares em qualquer lugar do planeta. O nacionalismo é uma ideologia problemática, até perigosa. Não há como
negar. No primeiro ensaio do capítulo sobre o assunto, discuto brevemente as ambivalências e armadilhas da história do nacionalismo. Mas não vamos fazer disso um cavalo de batalha, como tentam os ideólogos da “cidadania mundial”. Tudo que é humano sofre de ambivalência. Todas as grandes ideologias têm o seu lado escuro, duvidoso, nefasto. O liberalismo e o socialismo não fogem à regra. O socialismo pode desembocar no stalinismo. O liberalismo, no fundamentalismo de mercado, associado não raro a regimes ditatoriais. E o nacionalismo já desembocou no fascismo e no nazismo e, em anos recentes, deu lugar a movimentos bem lamentáveis dos dois lados do Atlântico Norte. E, no entanto, a ideologia é inescapável. Vou mais longe: é um erro, e erro até meio primário, vê-la apenas como estorvo, como algo a ser assepticamente evitado, já que ela tem um outro lado, positivo, propulsor do conhecimento, inclusive científico, e da ação política. Schumpeter, um dos maiores economistas do século XX, dizia essencialmente a mesma coisa ao frisar a importância que tem para o desenvolvimento do pensamento econômico, e da ciência em geral, o que ele denominava “visão” – um ato cognitivo pré-analítico, ideológico quase por definição, que fornece a matéria-prima para o esforço analítico.4 Ideologias, em suma, podem ser instrumentos valiosos. A afirmativa não deve surpreender. O que é a ideologia senão uma das muitas formas que toma a paixão. E, sem paixão, dizia Hegel, nada se fez de grande na história – nem na teoria, nem na prática. Assim, o nacionalismo, determinada forma de nacionalismo, com traços bem brasileiros, é indispensável para o sucesso do país. A elite brasileira, ou parte dela, não consegue provavelmente viver com isso e, se essa visão prevalecer, pode preferir “votar com os pés”, transmudandose para Miami ou Portugal. Não farão grande falta.
Romantismo cético? Nacionalistas são, via de regra, românticos incorrigíveis, inclusive este que vos fala. Vinda de um economista com experiência como pesquisador e professor, além de passagens pelo governo e por órgão internacionais, a afirmação pode soar estranha, talvez espalhafatosa. À primeira vista, romantismo parece não combinar bem com economia e atividade pública. Costuma ser execrado pelos acadêmicos e científicos como “ideologia” e pelos pragmáticos e realistas como “messianismo”. Antônio Carlos Magalhães, o realista par excellence da política brasileira de outros tempos, costumava estigmatizar o ministro da Fazenda Dilson Funaro, à boca pequena, no auge do Plano Cruzado, como “messiânico”. Eu trabalhava na época com Funaro e não me escapava o
peso que essa designação carregava. Na esfera pública, deve-se admitir, o romântico pode ser especialmente perigoso. Um caso extremo de romântico extraviado na política foi Hitler, com os efeitos que se viu. Hitler ecoava, no fundo, o romantismo de todo um povo e sem isso não teria chegado aonde chegou. O romantismo na sua trajetória acidentada de 200 anos, nasceu na Alemanha, nela chegou a seu auge e suas expressões mais instigantes e nela, também, produziu o seu maior desastre. De qualquer maneira, não vamos exagerar na advertência. Em favor dos românticos, diga-se que os grandes problemas não podem ser resolvidos pelos realistas, que tendem ao conformismo, à rotina. Estes são excelentes na administração do dia a dia, mas nunca estão à altura das situações-limites. São os românticos que entram em ação nas emergências. Foi Joana d’Arc e não o ardiloso Carlos VII quem salvou a França. Sem ela, Carlos nem teria sido coroado, morreria o delfim que Joana encontrou. O que eram Churchill e De Gaulle, para lembrar outros exemplos, senão românticos? Não apenas isso, certamente: também eram, em igual medida, frios, calculistas, racionais. Contudo, o que os destacava da maioria dos políticos era o fato de serem visceralmente românticos. De Gaulle, não por acaso, era devoto de Joanna d’Arc, a quem homenageia lindamente em célebre passagem das suas memórias de guerra. Sem a emergência provocada pelo surgimento de um romantismo sinistro na Alemanha, Churchill e de Gaulle jamais teriam sido chamados à liderança de seus países. De Gaulle teria feito brilhante carreira militar e ponto final. Churchill terminaria a vida como político inconfiável e colecionador de fracassos. Os britânicos, sintomaticamente, despacharam o herói de guerra para casa, na primeira eleição depois da vitória na Segunda Guerra. Assim como os franceses prenderam e condenaram Joana d’Arc à morte, quando a emergência havia sido superada, graças a ela em grande medida. Como costuma acontecer aos heróis, ela se tornara um estorvo para a administração da normalidade. Tudo isso é muito discutível, claro. Estou pegando, sem querer, uma ParisTóquio. O que queria registrar aqui é algo mais limitado, mais pessoal. O romantismo de que sou capaz é hesitante, meio capenga. Sou, ao mesmo tempo, e em contradição com o espírito romântico, eminentemente cético. Nunca se viu, que eu saiba, um projeto de romantismo cético que tivesse sido bem-sucedido. A contradição é flagrante demais para não ter efeito paralisante. Um romantismo assim é talvez mais matéria de sonho do que de ação prática. Mesmo assim, parece-me importante que o impulso romântico seja controlado, em boa medida, pela cautela cética. Os referidos perigos do romantismo resultam, em última análise, dos riscos de tentar ultrapassar
prematuramente o horizonte do iluminismo. Não estamos ainda em condições de fazê-lo. Os inúmeros seguidores vulgares de Nietzsche, inclusive vários nacional-socialistas, que se julgavam “além do bem e do mal”, ficaram, como vimos, muito aquém do bem e do mal. Thomas Mann, que foi, até o fim da vida e apesar de tudo, ao mesmo tempo nietzschiano e wagneriano, se debateu com essa e outras questões correlatas ao reavaliar, em 1947, a obra de Nietzsche no ensaio A filosofia de Nietzsche à luz da nossa experiência – vale dizer, à luz de Hitler. Sobre todo o romantismo tardio, sobre Wagner ainda mais nitidamente do que sobre Nietzsche, Hitler lançou uma sombra sepulcral, forçando, quer se queira quer não, uma reconsideração geral da crítica ao iluminismo. Para um nietzschiano como Mann, essa reconsideração pode ser particularmente difícil de empreender em profundidade, pois o iluminismo é, em certas modalidades, uma vertente tardia do cristianismo, uma espécie de secularização do cristianismo. E, no entanto, o século XX não mostrou a que abismos soltar as amarras do cristianismo e da moral cristã pode nos levar?
Raízes românticas do nacionalismo Essas considerações sobre românticos e realistas, romantismo e iluminismo podem parecer, repito, duvidosas, até arbitrárias. Mas as raízes românticas do nacionalismo são inegáveis – na Europa do século XIX e no Brasil dos tempos da independência, por exemplo. No primeiro ensaio do capítulo dedicado ao tema, digo que o nacionalismo não é um humanismo. Pode-se dizer, igualmente, que o nacionalismo é um romantismo. Essencialmente, porque é um particularismo, que se opõe – consciente e expressamente – ao universalismo iluminista. Em uma fórmula: Herder contra Voltaire. Na Alemanha da segunda metade do século XVIII, a insurreição romântica remonta à obra de Johann Gottfried Herder, crítico pioneiro das generalizações dos enciclopedistas. Defendendo os elementos não racionais e as particularidades nacionais contra as pretensões globalizantes do racionalismo francês, o pensador alemão tomava partido da diversidade contra a uniformização a que tendiam os franceses.5 Os românticos, ab initio, se colocam em oposição ao que para eles são falsas luzes, projeções e quimeras da razão arrogante e desgovernada. A célebre gravura de Goya, El sueño de la razón produce monstros, no apagar das luzes do século XVIII, encerra uma ambiguidade, talvez involuntária, que decorre de em espanhol “sueño” significar “sono” e “sonho”. É a razão adormecida, incauta, que abre espaço para monstros? Ou a razão sonhadora que
os produz? Para a reação romântica são os sonhos iluministas que geram monstruosidades, no limite os excessos do jacobinismo e do terror. E romântica foi a reação nacionalista, em diferentes partes da Europa, à Revolução Francesa e, em especial, ao imperialismo da França napoleônica – inclusive na Espanha de Goya e nas suas gravuras posteriores sobre a resistência espanhola. Ao conectar-se a instintos profundos, o romantismo ganhou intensidade e amplitude fenomenal em todo o século XIX, desaguando nos nacionalismos em Estados nacionais pré-existentes, como França e Inglaterra, e servindo de fermento para os nacionalismos que conduziram à criação de novos Estados nacionais, como Itália e Alemanha. E a Fernando Pessoa/Bernardo Soares de reconhecer, no Livro do desassossego: A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
O nacionalismo brasileiro tem que buscar raízes no nacionalismo messiânico português, no Portugal das Grandes Navegações, nas navegações que deram origem ao próprio Brasil. Uma das crônicas do terceiro capítulo deste livro trata, não por acaso, do nacionalismo de Fernando Pessoa.
Agonia do nacionalismo brasileiro, maldição do gradualismo Paro e releio o que escrevi. Percebo que preciso baixar um pouco a bola. É que, no Brasil, o nacionalismo sempre foi uma proposta difícil, como já adverti. Mais do que isso: sempre teve um caráter agônico. Uma das raízes dessa agonia é óbvia, e talvez seja a principal. Não há nacionalismo sem inclusão social e distribuição de renda. Nação sem povo é contradição em termos. Ora, o que sempre tivemos em nosso país é exatamente isso: os símbolos da nação ou da pátria – sem a substância correspondente. Os nacionalistas brasileiros estão continuamente às voltas com uma guerra mortal contra a nossa pesadíssima herança histórica – herança ao mesmo tempo colonial e escravista. Ao longo da nossa história, as rupturas com essa tradição foram parciais, incompletas – a Independência negociada com Portugal, a forma como se deu a abolição da escravatura, a proclamação da República como quartelada, a
Revolução de 1930, o varguismo e o trabalhismo, Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel e a distensão política lenta e segura, Lula e o PT. Todas essas mudanças e evoluções da história brasileira foram relativamente pacíficas e graduais, marcadas por tendência à conciliação que, se nos poupava de sofrimento e de sangue, garantia de alguma forma a continuação do velho dentro do novo. O sangue não corria, mas a história também não. Ficava como que travada, obstruída por detritos variados, marcas indeléveis do espírito colonial e do regime escravocrata. Como resultado, a combinação deletéria que nos acompanha persistentemente é a de uma camada dirigente subalterna para fora e autoritária para dentro com um povo eminentemente pacífico, humilde e excessivamente passivo.
Política econômica nacionalista Esta apresentação – já um pouco longa, em contradição com a declarada preferência pela brevidade – procura explicitar os fios condutores e as ligações, não raro implícitas e pouco claras, entre os diferentes capítulos do livro. Vale mencionar, ainda, que o nacionalismo do capítulo 3, além de lastrear a minha vivência no exterior, relatada nos dois capítulos iniciais, também serve de fio condutor à discussão da economia brasileira no capítulo 4. Este abre com uma tentativa de delinear os aspectos centrais do que poderia ser, nos dias de hoje, uma macroeconomia de inspiração nacionalista, para recapitular nos textos seguintes alguns aspectos polêmicos da economia política brasileira. Economia política, como nos pensadores clássicos até Mill e Marx, e não economia ou economics, designação que prevalece depois de Walras e Marshall. A razão para insistir no nome antigo, aparentemente anacrônico, da nossa disciplina era ressaltada por Celso Furtado que dizia nunca ter sido apresentado a um problema econômico que não fosse, ao mesmo tempo, um problema político. Furtado, um dos originadores do desenvolvimentismo latino-americano, é homenageado em uma das crônicas do capítulo 5. Passando os olhos pelos perfis escolhidos para inclusão neste capítulo, o leitor encontrará um grupo muito heterogêneo, que inclui economistas, políticos e artistas – brasileiros e estrangeiros. Heterogêneo, mas não aleatório. Além de Furtado, o outro economista incluído é John Kenneth Galbraith, brilhante defensor no século XX das tradições da economia política clássica em meio à hegemonia do equilíbrio geral e do marginalismo neoclássicos. Os políticos do capítulo são Getúlio,
Juscelino, Brizola e Lula, principais expoentes da tradição nacionaldesenvolvimentista brasileira, ainda que o último tenha começado de outra forma e com outras intenções para só na Presidência da República revelar com mais clareza a sua proximidade com essa tradição. Entre os artistas, destacam-se Nelson Rodrigues – expoente do nacionalismo na literatura brasileira, que aparece como contraste na crônica sobre Otto Lara Resende – e o já mencionado Maurice Barrès, um dos grandes representantes literários do nacionalismo francês. O capítulo seguinte inclui crônicas escritas no espírito de Galbraith, que considerava o humor uma ferramenta indispensável para o economista, uma vez que grande parte do comportamento econômico, dizia ele, é “infinitamente ridículo”. Um dos meus alvos prediletos nessas crônicas é a tenebrosa turma da bufunfa, o poderoso grupo de financistas e plutocratas que adquiriu tanta proeminência no mundo contemporâneo. Risível, em especial, é o papel dos economistas bufunfeiros, os bem remunerados e fiéis serviçais da tenebrosa. Os que se vendem são legião, pois a oferta é ampla quando a remuneração é polpuda. Muitos desses economistas sempre foram medianos, mas mesmo os mais inteligentes acabam reduzidos à mediocridade, cedo ou tarde. A aplicação contínua da mente à acumulação de dinheiro e à defesa dos interesses dos endinheirados produz perda contínua de massa cinzenta. Depois de algum tempo, o jovem e promissor economista fica totalmente irreconhecível – um mero soldadinho de chumbo, perfeitamente intercambiável com os demais portavozes da bufunfa. Só não o obriguem a debater frente a frente com uma economista livre, pois isso seria uma inominável covardia. Em outras crônicas do capítulo final, tratei de temas mais pessoais, expressando em algumas delas emoções suscitadas pela vida em Washington e pelas dificuldades no FMI. O livro fecha com uma pequena homenagem à criatividade, à arte e aos artistas; e encaixa também uma referência às montanhas da minha cidade natal, o Rio de Janeiro. Este último artigo é dedicado à minha mulher, Lia, que fez, aliás, uma série de observações sobre os textos do livro que tratam da minha vivência em Washington e Xangai, vivências que foram também dela, em certa medida – ela que me acompanhou grande parte desse tempo no exterior e a quem sempre recorria para troca de ideias e aconselhamento.
Brasil corre perigo mortal Caminho agora para encerrar esta apresentação. Nesses dez anos no exterior, passei por momentos difíceis, angustiantes, muitos deles relatados neste livro. Em muitas ocasiões, buscava socorro, não em orações, como os religiosos, mas na arte – daí as homenagens a ela, na verdade agradecimentos, em alguns textos dos capítulos finais. Lembrava-me, por exemplo, do pequeno poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa, cuja estrofe central se desgastou de tanto que foi citada: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena.” Tudo vale: o pranto das mães, dos órfãos, das noivas viúvas – todas as lágrimas que salgaram o Atlântico: “Ó mar salgado”, começa o poema, “quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!/Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/Quantos filhos em vão rezaram!/Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!” Só a alma grande abarca, supera e justifica todas essas perdas e todos esses sofrimentos. No final, o poema como que decola: “Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor./Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/Mas nele é que espelhou o céu.” Porém, a bem da verdade, nenhuma das dificuldades por que passei no exterior se compara ao sofrimento que foi para mim, assim como para os brasileiros que pensam e sentem como eu, o que se passou no país no fim de 2018 e no início de 2019. Que Brasil foi esse que, confrontado com a disjuntiva civilização ou barbárie, preferiu a segunda? Um Brasil, certamente real, mas que nós nos recusávamos a enxergar. Ilusões perdidas! As eleições de 2018, e não só as presidenciais, abriram as porteiras para um Brasil primitivo, ignorante e ressentido. E colocaram no poder um governo que, dando sequência às políticas de Temer, e radicalizando-as, pratica um entreguismo quase sem disfarces, agora amparado pelo voto. A subserviência das políticas econômica e externa do governo brasileiro se torna tão chocante, tão explícita que a reação a ela deveria ser rápida e fulminante. Tudo se passa, leitor, como se o país tivesse sido derrotado em uma guerra, e fosse agora governado por sátrapas, por meros prepostos de interesses estrangeiros. O estranho, contudo, é que não houve guerra, não houve resistência. Lembra a França de 1940, invadida e ocupada pela Alemanha numa campanha que foi quase um passeio. É a pior forma de derrota, a derrota sem resistência, inglória. Churchill, que liderou a resistência bem-sucedida do Reino
Unido, disse a respeito, no mesmo ano de 1940, para inflamar os seus compatriotas: “Nations that go down fighting rise again, but those who surrender tamely are finished.” (Nações que sucumbem lutando, voltam a se erguer, mas aquelas que se rendem mansamente estão liquidadas.) Por certo ângulo, a situação do Brasil em 2019 é pior do que a da França em 1940. Havia na decisão do desconhecido coronel Charles de Gaulle de continuar a resistência, quando todos os escalões mais altos das forças armadas francesas e a quase totalidade do país havia se rendido, um elemento de romantismo, como mencionei antes, mas mesclado a um cálculo realista de que a França Livre, que ele criara e capitaneava, não estava sozinha no mundo. Não quero ser dramático, mas cabe a advertência sinistra: se o Brasil sucumbir à atual onda de entreguismo, não haverá um Churchill do outro lado do Canal da Mancha, nem um Roosevelt, do outro lado do Atlântico Norte, para nos ajudar a recuperar a independência nacional. Portanto, a luta é agora. E não poderá ser delegada a ninguém. As oposições brasileiras têm apoios e simpatias em diversos países; reina a perplexidade em muitos setores com a degeneração do Brasil. Mas é ilusório contar principalmente com apoio externo para superar nossos desafios internos. Os outros têm a sua vida e os seus problemas. Não terão grandes sobras para apoiarnos na solução dos nossos. Exortações têm sempre um sabor artificial, declamatório, retórico no mau sentido. Peço desculpas por isso. Mas como não lançar mão desse recurso já gasto na situação emergencial em que se encontra o Brasil? Não exagero, leitor, se disser que o nosso país corre um risco mortal. E a verdade é que este relato, fragmentário, descosturado, tem um olho no futuro, na esperança de que o Brasil encontrará, sem grande demora, o caminho do desenvolvimento, com justiça social, democracia, independência. Na esperança, fundada na experiência, de que a nossa voz se fará ouvir de novo em todos os cantos do mundo, e mais forte, em defesa de valores humanos que o brasileiro, talvez como ninguém, tem condições de vivenciar e transmitir: a doçura, a versatilidade, a criatividade, a imaginação, a alegria de viver. Este livro é dedicado, por motivos que terão ficado claros ao leitor desta apresentação, a meu pai, Paulo Nogueira Batista, in memoriam, e à minha mãe, Elmira Helena Pinheiro Nogueira Batista. Florianópolis, junho de 2019.
1 Lucian Pye, citado em Henry Kissinger. On China. Nova York: Penguin Books, 2012, p. 11. 2 Josef Steindl. “Reflections on the present state of Economics”. In J.A. Kregel (org.). Recollections of Eminent Economists, vol. I, Londres: MacMillan Press, 1988, p. 97. 3 Publicado em Barbosa Lima Sobrinho et alii. Em defesa do interesse nacional: desinformação e alienação do patrimônio público. São Paulo: Paz & Terra, 1994, p. 99-144. Foi republicado junto com várias outras obras escritas por ele em livro organizado por mim e editado pelo Itamaraty, por iniciativa do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães: Paulo Nogueira Batista Jr. (org.). Paulo Nogueira Batista: pensando o Brasil – ensaios e palestras. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009. 4 Ver, por exemplo, Joseph A. Schumpeter. History of Economic Analysis. Nova York: Oxford University Press, 1954, p. 41-4. 5 Johann Gottfried Herder. Another Philosophy of History and Selected Political Writings, 1ª edição: 1774. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2004. Uma discussão instigante da obra de Herder e do seu contexto histórico pode ser encontrada em vários escritos de Isaiah Berlin, entre eles: The Roots of Romanticism. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 46-67.
CAPÍTULO 1 Reforma da arquitetura financeira mundial: FMI e G20
G20 E FMI DEPOIS DA CRISE INTERNACIONAL1
A crise internacional de 2008-2009, iniciada nos sistemas financeiros dos Estados Unidos e da Europa, teve impacto devastador sobre a maioria dos principais países avançados. Praticamente todas as áreas da economia foram abaladas – os bancos, os níveis de atividade e de emprego, as políticas monetárias, as políticas fiscais, as doutrinas econômicas. Os países emergentes também sofreram com a crise, mas vários se recuperaram rapidamente, entre eles o Brasil. No auge da crise, fiz uma apresentação em um seminário na Câmara dos Deputados sobre seu significado para a reforma da arquitetura financeira internacional e, em especial, para o Brasil. Na época, eu era integrante da Diretoria Executiva do FMI, posto privilegiado de observação do desenrolar da crise e seus impactos na economia mundial. Como integrava também as delegações brasileiras às reuniões do G20 e dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China),2 estava em condições de relatar em primeira mão como a crise levara a mudanças na governança internacional e no papel dos principais países emergentes. O texto a seguir é a transcrição da minha apresentação.
A grave crise internacional de 2008-2009 teve efeitos importantes sobre a governança global, as instituições financeiras internacionais e a posição do Brasil. Ela afetou a arquitetura financeira mundial, em especial o G20, que passou a desempenhar papel muito mais significativo. Como sempre acontece em situações de emergência, o FMI adquiriu uma centralidade que não costuma ter em períodos de calmaria, e a questão da reforma da instituição entrou com força na agenda internacional. Esses são os temas que vou abordar nesta apresentação. Como a crise teve origem em alguns dos principais países desenvolvidos – nos Estados Unidos e na Europa –, ela sacudiu as estruturas mundiais de poder, as estruturas de governança e as ideologias econômicas predominantes. Houve
forte abalo nas convicções, percepções e organizações, como não se via desde a Grande Depressão da década de 1930. Um exemplo marcante das mudanças desencadeadas pela crise internacional é o papel que vem desempenhando, desde o fim de 2008, o Grupo dos 20, formado por 19 países e a União Europeia. O G20 inclui países desenvolvidos e países emergentes ou em desenvolvimento. O Brasil é um deles. Também a China, a Rússia, a Índia, a África do Sul, a Arábia Saudita, a Indonésia, a Turquia, a Coreia do Sul, a Argentina e o México. Do lado dos países desenvolvidos, o G20 inclui todos os integrantes do Grupo dos 7 – Estados Unidos, os grandes países europeus, o Japão e o Canadá –, além da Austrália. Antes da crise, o G20 era um foro meio dormente, que havia sido criado em 1999, por iniciativa do governo Clinton. Em teoria, era um foro de ministros de Finanças e presidentes de Banco Central, mas na prática era essencialmente um grupo de secretários de ministérios e diretores da área internacional dos bancos centrais. Com a crise, houve a decisão de transformar o G20 em instância central. Virou um foro de líderes, de chefes de Estado e de governo, que passaram a se reunir no formato G20. Isso começou no fim do governo Bush, em 2008. Um foro basicamente burocrático/técnico passou a ter caráter político. O Brasil teve certo papel nessa transformação. O governo Lula jogou seu peso na direção de transformar o G20 no foro principal. Porém, o mais significativo foi a percepção dos Estados Unidos de que a magnitude da crise exigia medidas que transcendiam o alcance do G7. Era preciso operar num grupo que incluísse os principais países de economia emergente. A partir do fim de 2008, o G20 passou a funcionar efetivamente como principal mecanismo de coordenação para assuntos econômicos internacionais em substituição ao G7, algo importante para o Brasil. Esse caráter de principal foro de cooperação foi reconhecido formalmente na reunião de líderes do G20, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, em 2009. Foi formalizado como tal no comunicado final da reunião, mas isso já vinha acontecendo na prática, como disse, desde o fim do ano anterior. Pela primeira vez em nossa história, o Brasil está presente naquele que é o principal foro de cooperação econômica internacional. Outro ponto importante: o G20 funciona por consenso. Ou seja, teoricamente, um país sozinho pode opor-se a uma deliberação que os outros 19 queiram tomar. Na prática, é difícil fazer isso isoladamente. Mas, se um país tem alguma capacidade de articulação, ele pode reunir minoria significativa diante de qualquer deliberação que lhe seja frontalmente contrária.
Em resumo, estamos em outro mundo, bem diferente daquele em que o G7 dava as cartas, fixava a agenda internacional e definia os parâmetros para a atuação de organismos como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Esse papel passou a ser exercido pelo G20. A crise de 2008-2009 apressou mudanças que ocorreriam de qualquer maneira. O peso dos países de economia emergente já vinha crescendo. A participação dos países em desenvolvimento e de economia emergente no PIB mundial, calculada com base em paridade de poder de compra, vem aumentando rapidamente. No ano 2000, era da ordem de 40%. Dez anos depois, alcançou a marca de 50%. E a tendência é que continue crescendo. Por ter atingido fortemente os países desenvolvidos, a crise acelerou o processo. Os países em desenvolvimento sofreram também, mas o impacto foi menor e a recuperação começou mais cedo. A China já decolou de novo. A Índia está em rápida expansão. O Brasil também voltou a crescer. Esse quadro abriu a oportunidade de reformar as principais instituições financeiras internacionais. No esforço de alcançar esse objetivo, um fator tem sido crucial para o Brasil: a aliança com a China, a Índia e a Rússia, como vou tentar explicar mais à frente. Isso não significa que não temos e não faremos outras alianças. Temos as nossas alianças sul-americanas, que também funcionam, em alguma medida, no âmbito do Fundo Monetário Internacional e do G20. Com os Estados Unidos, em muitos pontos, temos interesses convergentes. Há campo comum com o Japão, também, em várias questões. Onde temos mais dificuldades é com a Europa. Estou me referindo à área financeira internacional, ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial e ao G20. Nessa área, os nossos principais pontos de conflito costumam ser com os europeus. Os brasileiros geralmente não sabem disso. É que os europeus são bons de marketing. Os brasileiros imaginam que eles são muito progressistas, muito esclarecidos. A realidade é outra. A Europa é um continente ainda muito importante, mas envelheceu. Ela continua agarrada a posições e privilégios que refletem o peso que tinha em outros tempos. Isso é o que se vê no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial. A Europa está em posição eminentemente defensiva. Ela é a principal força de preservação do status quo nas entidades financeiras internacionais sediadas em Washington. O Fundo Monetário Internacional é uma instituição ainda muito desequilibrada em termos de distribuição de votos e poder decisório. Um exemplo: a União Europeia tem quase um terço dos votos no Fundo Monetário,
embora responda por um pouco mais de 20% do PIB mundial. Uma das tarefas que temos pela frente é reduzir a participação europeia, abrindo espaço para os países de economia emergente. Não se pode dizer que todos os desenvolvidos estão super-representados no FMI, quando se toma por parâmetro o tamanho relativo das economias. Não é verdade, por exemplo, que o Japão esteja sobrerrepresentado. Também não é o caso dos Estados Unidos. O poder de voto desses dois países está mais ou menos em linha com o seu peso na economia mundial. Onde há uma super-representação, a meu ver muito clara, é no caso europeu. Precisamos então abrir espaço para os países de economia emergente no Fundo Monetário Internacional. Os Estados Unidos e o Japão compreendem isso, mas os europeus resistem enormemente. A resistência europeia é compreensível. Os europeus são os que têm mais a perder com a reforma. Não é só em termos de poder de voto que eles estão super-representados. Há também um número excessivo de diretores executivos europeus. Eles têm cerca de um terço das 24 cadeiras da Diretoria do FMI. Numa das cadeiras latino-americanas, a Espanha gira com o México e a Venezuela no comando; quando a Espanha comanda, chega a nove o número de cadeiras lideradas por diretores europeus. No FMI, ainda não conseguimos devolver a Espanha para a Europa. E há ainda outro ponto, mais importante: desde o início da história da instituição, por uma regra não escrita, o cargo mais alto, o de diretor-gerente do FMI, é sempre ocupado por um europeu. A aliança BRICs tem sido importante no esforço de buscar a reforma das instituições financeiras internacionais, como já mencionei. Afirma-se com frequência que o agrupamento BRICs é artificial. A sigla, como se sabe, foi criada por um economista de um banco de investimentos, o Goldman Sachs. Pergunta-se: o que o Brasil tem a ver com a Rússia, a Índia, a China? As diferenças históricas, culturais, étnicas, políticas são enormes, não há dúvida. Mas há um ponto crucial em comum. O que diferencia os BRICs dos demais países emergentes, no meu modo de ver, é que os quatro países têm capacidade de atuar de forma independente. Brasil, Rússia, Índia e China são países de grande dimensão territorial, populacional e econômica. E mais: estão atuando de forma coordenada. Por exemplo, no Fundo Monetário, temos uma articulação permanente das quatro cadeiras na Diretoria Executiva – a cadeira comandada pelo Brasil está em contato contínuo com as da Rússia, da China e da Índia. Em muitos temas da pauta do FMI, atuamos em conjunto e definimos posições comuns. Os ministros de Finanças dos BRICs se reúnem periodicamente, à margem
das reuniões do G20 e do FMI. Um dado curioso merece ser mencionado. Já aconteceu duas vezes algo que seria impensável há algum tempo: o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Timothy Geithner, pediu para comparecer à reunião dos BRICs, um reconhecimento de que os Estados Unidos têm que dialogar com os BRICs em conjunto. Esses pedidos refletem, evidentemente, não apenas a importância dos BRICs, mas também a vulnerabilidade dos EUA em razão da sua crise financeira. Dou mais um exemplo da atuação conjunta dos BRICs. Um dos principais temas da reunião dos líderes do G20, em Pittsburgh, em setembro de 2009, foi a mudança na estrutura de votos e quotas do Fundo Monetário Internacional. O Brasil, a Rússia, a Índia, a China e outros países emergentes, contando com certo apoio dos Estados Unidos, estão empenhados em aumentar a sua participação e influência no FMI. A questão entrou na pauta do G20 e do Fundo Monetário Internacional. Processo semelhante está ocorrendo no Banco Mundial. Em Pittsburgh, aconteceu algo inusitado. Os delegados tinham a sua primeira reunião numa quarta-feira. Os líderes do G20 iriam se encontrar na sexta-feira. Na quarta-feira, o que se viu foi um impasse total sobre a questão da reforma do FMI. Os europeus não se moviam um milímetro. Os americanos, que eram os anfitriões e estavam muito interessados em apresentar resultados, procuraram os delegados do Brasil, da Índia e da China e se ofereceram para fazer uma mediação com os europeus para chegar a algum entendimento. Nós aceitamos, mas insistimos na inclusão da Rússia. Estabeleceu-se então a seguinte situação: os delegados dos BRICs ficaram numa sala, os europeus noutra, e os delegados americanos iam de uma sala para a outra! Isso durou umas seis ou sete horas até que se chegou a uma formulação aceitável para os dois lados. Os americanos iam e vinham, traziam novas propostas e versões de textos. Nós discutíamos entre nós e telefonávamos para os ministros de Finanças, fazendo as devidas consultas. O resultado foi um acordo que prevê a transferência de pelo menos cinco pontos percentuais de quotas para os países dinâmicos, emergentes e em desenvolvimento. A redação ficou ambígua. Os europeus deram a sua interpretação, nós demos a nossa, e a luta continua. Mas pelo menos chegamos a um número, a um mínimo que vai servir de parâmetro para a reforma do FMI. O processo de mudança do Fundo já tinha começado, mesmo antes da fase mais grave da crise internacional. No início de 2008, conseguimos uma redistribuição de votos, que deslocou cerca de 2,7 pontos percentuais para países em desenvolvimento. Foi um primeiro passo. O Brasil foi um dos principais beneficiários dessa reforma, concluída em abril do mesmo ano. Com os
entendimentos no âmbito do G20, abre-se a perspectiva de uma nova e mais significativa rodada de revisão das quotas e do poder de voto. Um comentário final sobre o Brasil. Quando a crise se agravou com o colapso de importantes instituições financeiras nos Estados Unidos, em setembro e outubro de 2008, eu não poderia imaginar que o Brasil atravessasse tão bem a turbulência. Surpreendeu-me a nossa capacidade de resistir. Passamos por uma recessão com dois trimestres consecutivos de queda do PIB. Não foi fácil. Mas o fato é que o Brasil enfrentou bem os choques externos, e foi um dos primeiros a sair da crise. É notável, realmente extraordinário. Não poderia imaginar, quando me mudei para Washington, em 2007, que ocorreria a maior crise financeira e econômica desde a Grande Depressão dos anos 1930, e que o Brasil não só não teria problemas de balanço de pagamentos, como emprestaria recursos ao Fundo Monetário Internacional! Quem diria? Estamos negociando os detalhes finais dessa operação, que vai colocar até US$ 10 bilhões de reservas brasileiras em depósitos no Fundo Monetário Internacional por meio da compra de títulos emitidos pela instituição. Somos devedores natos, hereditários, até inadimplentes! Nunca pensei que o Brasil seria credor do Fundo Monetário Internacional. Evidentemente, isso reforça muito a nossa posição. É mais fácil hoje ser representante do Brasil no Fundo do que quando chegávamos lá pedindo empréstimos. E isso não foi há muito tempo. A empolgação em relação ao Brasil no exterior é impressionante. Desde que cheguei a Washington, notei que há uma discrepância acentuada entre a avaliação preponderantemente negativa que o brasileiro tem de si mesmo e do país, o famoso complexo de vira-lata, e a imagem muito positiva que o Brasil tem lá fora. E o fato de o Brasil ter atravessado bem a crise reforçou ainda mais o prestígio brasileiro no exterior. A capa da revista The Economist desta semana traz o Cristo Redentor decolando. O nosso risco é a famosa húbris. A grande vantagem que o Brasil tem em relação a esse risco, o excesso de autoconfiança que gera o desastre, é que ainda existem resquícios importantes do complexo de vira-lata, o que serve para contrabalançar. Até que enfim o complexo de vira-lata vai servir para alguma coisa! Temos que ter cuidado, estamos bem, mas não estamos com essa bola toda. Os avanços no campo internacional podem não ser duradouros. O G20 pode perder ímpeto. É um foro muito informal, o que dá margem à manipulação. A reforma do Fundo também pode perder força à medida que a crise internacional
vá se resolvendo. E o Brasil tem que levar em conta a possibilidade de que o próprio país já esteja virando uma espécie de bolha. Podem-se formar bolhas no mercado acionário e no mercado cambial, provocando excessiva valorização cambial. Temos que ter políticas de promoção da competitividade internacional, políticas industriais e políticas para minorar, controlar a apreciação cambial. É importante continuar com políticas macroeconômicas prudentes, disciplina fiscal e políticas monetárias de controle da inflação. Não podemos permitir que desequilíbrios no balanço de pagamentos em conta corrente voltem a aparecer de maneira significativa, tornando-nos dependentes de capitais externos. Precisamos manter uma estrutura de regulamentação prudencial e de controle sobre os fluxos de capital, além de acumular reservas adicionais em ativos de liquidez internacional. As reservas brasileiras estão crescendo, mas creio que reservas adicionais nos fariam bem. A situação mundial não é segura. A crise está arrefecendo, mas não sabemos o que acontecerá. Novas temporadas de turbulência podem nos atingir; e reservas internacionais altas, balanço de pagamentos equilibrado, políticas fiscais e monetárias prudentes, câmbio razoavelmente competitivo e políticas voltadas para a competitividade são indispensáveis para que o Brasil prospere e tenha um papel cada vez mais significativo no mundo. 1Apresentação na Câmara dos Deputados, em 17 de novembro de 2009, no Seminário Internacional Possíveis Desdobramentos da Crise Financeira Internacional, promovido pela Comissão de Finanças e Tributação em conjunto com a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. Transcrição da gravação, revista pelo autor. 2 A África do Sul só passaria a integrar o grupo mais tarde, em 2011. Para o período 2008-2010, vale assim a sigla BRICs. Com a entrada da África do Sul, passou a ser adotada a sigla BRICS.
FMI E CONTROLE DE CAPITAIS1
Acrise financeira internacional de 2008-2009 levou, como não poderia deixar de acontecer, ao questionamento das políticas econômicas adotadas até então. Isso afetou diversos campos da economia, incluindo, é claro, a regulação e supervisão do sistema financeiro. A preferência anterior pela regulação moderada e a fé nas qualidades autocorretivas dos mercados foram substituídas por uma ênfase renovada no papel dos governos e bancos centrais na prevenção de excessos especulativos e do acúmulo de riscos. Uma parte importante desse questionamento é, ou deveria ser, a regulação dos fluxos internacionais de capital. Antes da crise, a liberalização da conta de capital do balanço de pagamentos era praticamente um artigo de fé em alguns círculos. O caráter benéfico da livre movimentação de capitais era aceito sem grandes reservas por muitos países e organizações internacionais. Controles sobre os movimentos de capital eram estigmatizados. Isso mudou até certo ponto. No entanto, como observou o economista colombiano José Antonio Ocampo, há uma estranha dicotomia no pensamento dominante pós-crise. A necessidade de regulação e supervisão vigorosas é amplamente reconhecida – e como não poderia ser depois do que aconteceu nos sistemas financeiros dos Estados Unidos e da Europa? Curiosamente, esse reconhecimento não se estende na mesma medida à regulação dos fluxos internacionais de capital. Como Ocampo advertiu, as operações financeiras internacionais receberam atenção bem menor, como se não demandassem regulação – ou como se não fossem parte do sistema financeiro.2 Retornarei a esse ponto quando abordar a natureza hesitante da mudança de curso do FMI rumo à aceitação da regulação dos movimentos de capital.
A abordagem padrão Antes da eclosão da crise em 2008, a abordagem padrão recomendada aos países
afetados por grandes influxos de capitais envolvia basicamente dois aspectos: ajuste fiscal e apreciação da taxa de câmbio. Além disso, sugeria-se que as restrições às saídas de capital fossem flexibilizadas. Essa era a mensagem que os países recebiam do FMI, por exemplo. Nada muito além disso. Até mesmo o acúmulo de reservas internacionais era visto com maus olhos. O Brasil, por exemplo, começou a acumular reservas seriamente a partir de 2006. Isso nos beneficiaria durante a crise internacional. No entanto, em consultas anuais ao abrigo do Artigo IV, a equipe do FMI alertava o Brasil para o crescimento supostamente excessivo das reservas. Mesmo no período pré-crise, a insuficiência da abordagem padrão – deixar o câmbio subir e ajustar a política fiscal – estava relativamente clara. As economias emergentes tinham larga experiência com os perigos da sobrevalorização cambial. Uma moeda persistentemente forte comprometia a competitividade internacional da economia e podia levar a déficits de conta corrente perigosamente altos. A inversão súbita dos fluxos de capital – uma ocorrência frequente – forçava economias a se submeterem a dolorosos ajustes. Na América Latina, talvez mais do que na maioria das outras regiões, ciclos de expansão/recessão impulsionados por movimentos internacionais de capital eram um fenômeno recorrente. A política fiscal não estava bem posicionada para responder adequadamente a grandes movimentos de capital volátil. Em tese, os ajustes fiscais possibilitariam políticas monetárias mais frouxas, diminuindo assim a atratividade dos ativos financeiros domésticos para os investidores estrangeiros. Na prática, a política fiscal é lenta, um instrumento pesado demais para ser utilizado contra fluxos de capital velozes e imprevisíveis, estando sempre sujeita a limitações políticas e dependendo em larga medida de decisões parlamentares. É preciso também não perder de vista que a política fiscal tem outros objetivos, e parece não fazer muito sentido atrelá-la aos humores oscilantes dos investidores internacionais. Além disso, como já observado por diversos analistas, há o que poderíamos chamar de “o paradoxo dos fundamentos econômicos sólidos”. Os ajustes fiscais, ao levarem a uma melhora nas contas públicas e nos fundamentos fiscais, podem fortalecer a confiança e atrair fluxos de capital estrangeiro adicionais. Remover as restrições às saídas de capital pode ajudar, em alguma medida, a atenuar as pressões de alta no câmbio, caso os residentes aproveitem a oportunidade para investir fora do país. Mas pode também aumentar a vulnerabilidade externa no futuro ao facilitar a fuga de capitais em momentos de
incerteza e crise.
A eclosão da crise A deficiência da abordagem padrão se tornou óbvia com a eclosão da crise. A onda de liquidez produzida pelas políticas monetárias expansionistas dos bancos centrais emissores de moedas de reserva – adotada primeira e principalmente pela Reserva Federal dos EUA, mas também pelo Banco Central Europeu e pelos bancos centrais do Japão e da Inglaterra – contribuiu para criar problemas formidáveis para os mercados emergentes. As economias emergentes sofreram menos com a crise internacional e se recuperaram mais rapidamente – um fator que reforçou sua atratividade para os investidores internacionais. Os diferenciais de taxas de juro e de crescimento econômico entre os mercados emergentes e as economias avançadas geraram grandes fluxos de capital das últimas para os primeiros. Para além desses fatores cíclicos, parece ter ocorrido uma reavaliação dos riscos internacionais em favor dos mercados emergentes, isto é, uma realocação de portfólios que pode levar a um aumento mais duradouro da oferta de capitais. Isso tem seu lado positivo, é claro, mas muitos países emergentes terão de lidar com um embarras de richesses. Já se falou da “maldição dos recursos naturais”. Poderia se falar, igualmente, da “maldição da superabundância de fluxos de capitais”. Uma das piores coisas que pode acontecer a um país é cair nas graças dos mercados internacionais de capital. A crise nas economias avançadas, especialmente na zona do euro, mostrou, mais uma vez, que as entradas de capital podem ser uma faca de dois gumes. Mudanças na disponibilidade de empréstimos e investimentos externos podem acontecer rapidamente, e de maneira imprevisível. Se o país receptor das entradas de capital estiver despreparado, essas reviravoltas repentinas podem causar grandes danos à economia e ao sistema financeiro, a exemplo do que se viu nos casos da Grécia, da Irlanda e de Portugal. Ainda é muito difundida a avaliação de que os fluxos de capital são benéficos para os países que os recebem. Essa visão não é de todo errônea; pode-se construir um argumento plausível em sua defesa. Mas o mínimo que se pode dizer é que ela não se coaduna com a experiência recente e remota. Muitas economias foram desestabilizadas – em alguns casos, literalmente destruídas – pela liberalização imprudente das contas de capital, pelos aumentos súbitos na entrada de capitais e
por sua posterior reversão. Fora da zona do euro, alguns países emergentes do Leste Europeu também foram fortemente atingidos; a Romênia e a Letônia, por exemplo. A Islândia foi outro caso chocante. Um aspecto nem sempre devidamente considerado nas discussões da crise na zona do euro é o papel desempenhado pelo ciclo de expansão/recessão associado ao livre movimento de capitais. As entradas abundantes de capital possibilitaram políticas fiscais pró-cíclicas, rápido crescimento do crédito e elevados déficits de conta corrente na periferia da zona do euro, assim como na Islândia e em economias emergentes no Leste Europeu. A inversão aguda dos fluxos depois da crise de 2008 forçou essas economias a se submeterem a penosos processos de ajuste. Com o passar do tempo, provavelmente nos daremos conta de que políticas de gestão das contas de capital podem ser necessárias não apenas em mercados emergentes, mas também para economias avançadas.
A necessidade de regular os movimentos de capital Os responsáveis pela política econômica em países emergentes estão cientes dos riscos associados aos movimentos de capital. As experiências dolorosas do passado estão vivas na sua memória, o que os faz relutar a expor a economia aos perigos do endividamento externo e dos fluxos instáveis de capital. Ainda existe, por certo, a tentação de aproveitar os tempos de bonança, na esperança de que “desta vez será diferente”. Mesmo assim, muitos países vêm adotando em períodos de abundância medidas para coibir as entradas de capital ou para salvaguardar a economia dos riscos que elas trazem. A tarefa, como sabemos, está longe de ser simples. O acúmulo de reservas internacionais é uma alternativa. Para muitas economias emergentes, esse tem sido um mecanismo extremamente importante de autoproteção contra choques externos. No entanto, acumular reservas tem suas desvantagens. Em primeiro lugar, os custos podem ser substanciais, especialmente quando existem elevados diferenciais de taxas de juro. Quando são baixas as taxas de juro nos países emissores de moedas de reserva, como aconteceu após a crise de 2008, a remuneração das reservas diminui. As taxas de juro nos países em desenvolvimento tendem a ser maiores. Se as intervenções esterilizadas não conseguem evitar a apreciação da moeda nacional, o custo de carregar reservas tende a ser pesado. Esse foi o caso do Brasil, onde as taxas de juro são persistentemente muito elevadas.
Além disso, o acúmulo de reservas internacionais é mais um exemplo do paradoxo dos fundamentos econômicos sólidos: reservas elevadas aumentam a percepção de que o país é seguro, e isso atrai novas entradas de capital. A conclusão parece inescapável: as políticas macroeconômicas – fiscal, monetária, cambial, de acúmulo de reservas – não bastam. Há reconhecimento crescente de que seria sensato por parte dos países abençoados ou amaldiçoados com superabundância de capitais internacionais recorrer a medidas macroprudenciais e controles de capital. Para evitar o estigma atrelado ao termo “controles de capital”, o FMI passou a utilizar a expressão “medidas de fluxo de capital” (capital flow measures), que engloba tanto medidas macroprudenciais quanto controles de capital.
Discussões no FMI e no G20 sobre a regulação dos movimentos de capital Em 2010, o FMI reconheceu tardiamente que os controles de capital e as medidas macroprudenciais são “parte da caixa de ferramentas” da política econômica. Foi um passo bem-vindo. A cadeira brasileira na Diretoria Executiva do FMI vinha solicitando repetidamente que fosse reconsiderada a relutância da instituição em aceitar que a simples combinação de ajuste fiscal com flexibilidade cambial não resolvia os problemas de países inundados por entradas de capital. O reconhecimento do FMI ainda é um tanto quanto hesitante. Por exemplo, a regulação dos movimentos de capital é vista como um último recurso, a ser usado depois que já se tentou de tudo. Ela é apresentada como possível complemento, e não como substituto para “políticas macroeconômicas sólidas”. Controles de capital são considerados instrumentos temporários, uma vez que podem ser contornados ou evitados, perdendo efetividade com o passar do tempo. Ao mesmo tempo, e contradizendo o argumento anterior, exagera-se a importância de possíveis externalidades ou spillovers dos controles de capitais. Nenhuma dessas qualificações parece convincente. Por exemplo, as medidas macroprudenciais e os controles de capital, quando adotados numa fase relativamente precoce, preferivelmente em combinação com outras medidas como o aumento das reservas internacionais, podem evitar o acúmulo de problemas cuja resolução se torna cada vez mais difícil. Instrumentos que podem ser acionados rapidamente, tais como medidas e controles prudenciais, são
cruciais para evitar o aguçamento de vulnerabilidades. Até mesmo no staff do FMI não há consenso sobre essas questões. Como observou, o economista-chefe do Fundo, Olivier Blanchard, ao resumir uma conferência sobre fluxos de capital no Rio de Janeiro, “deveríamos nos afastar de sequenciamentos rígidos de políticas rígidas e caminhar em direção a uma abordagem mais fluida de utilização ‘de muitas ou da maioria das ferramentas a maior parte do tempo’ em vez de ‘agora esta, depois aquela’”. Blanchard também observou que evidências apresentadas na conferência do Rio sugeriam que os spillovers entre países receptores de fluxos de capital não são muito significativos.3 No que tange à efetividade, as experiências do Brasil e de outros países parecem demonstrar que as medidas prudenciais e os controles de capital podem, no mínimo, moderar a apreciação cambial, alongar o perfil dos passivos externos e melhorar a composição das entradas de capital. O staff do FMI tende a apoiar essa conclusão em estudos sobre experiências nacionais. Apesar da falta de consenso e de conhecimento robusto sobre diversas questões, o FMI acabou oficializando uma “visão institucional” sobre fluxos de capital em 2012. Isso ajuda os países emergentes de alguma forma? Diria que não muito. Pode até acabar sendo contraproducente. Sob o pretexto de permitir os controles de capital em algumas circunstâncias específicas, é possível que o Fundo esteja buscando expandir sua jurisdição para incluir a conta de capital do balanço de pagamentos. Sob o Estatuto ou Convênio Constitutivo do FMI, os Articles of Agreement, os países-membros não têm nenhuma obrigação de liberalizar a conta de capital. Do ponto de vista jurídico, eles gozam de total liberdade para regular os movimentos de capitais. Isso não se aplica a países que abriram mão dessa liberdade, parcial ou totalmente, por serem membros da OCDE, da zona do euro ou por terem assinado acordos bilaterais de investimento ou de livre comércio com os Estados Unidos. Excetuados esses casos, os países-membros são completamente livres, sob o Artigo VI do Convênio Constitutivo, para adotar controles de capital. Esse artigo postula que os “membros podem exercer os controles que forem necessários para regular os movimentos internacionais de capital”. Sob certas circunstâncias, o Fundo pode até requerer que os países adotem controles para evitar o uso dos recursos da instituição para financiar a fuga de capitais. Foi exatamente isso que aconteceu no caso da Islândia, um país fortemente atingido pelo impacto da crise internacional sobre seu inflado setor financeiro. A Islândia solicitou assistência financeira ao Fundo, e os controles sobre as saídas de capital se tornaram parte importante do programa do FMI para
o país. Alguns países desenvolvidos têm apelado ao Fundo para que estabeleça códigos de conduta ou diretrizes para a gestão dos fluxos de capital. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi especialmente franco sobre esse assunto ao lançar o programa para o mandato francês no G20 e no G8, em janeiro de 2011. Ele pediu a implantação, pelo G20, de um código de conduta e criticou a “multiplicação de medidas unilaterais” afetando o movimento de capitais.4 O presidente Sarkozy retomou o assunto, usando termos ainda mais fortes, na abertura de um fórum do G20 na China, em março do mesmo ano: Um código de boa conduta, diretrizes fortes e uma estrutura comum que regulem a possibilidade de implementar os controles de capital quando necessários devem definir as condições sob as quais as restrições aos movimentos de capitais são legítimas, efetivas e apropriadas em uma dada situação. Se concordarmos com essas regras, senhoras e senhores, será uma grande evolução na doutrina do FMI em benefício dos países emergentes, que sofrem com a excessiva volatilidade dos movimentos de capitais. É razoável, hoje, dado o crescente impacto dos movimentos de capitais, que o FMI possa emitir recomendações para um país apenas no que diz respeito a seu balanço de pagamentos em conta corrente e não à conta de capital? Gostaria que alguém me explicasse por que uma recomendação é legítima e a outra, ilegítima. Expandir a supervisão do FMI para incluir esses aspectos me parece crucial. No longo prazo, a França – e estou dizendo isso agora – é favorável a uma modificação no Convênio Constitutivo do FMI para ampliar sua autoridade de supervisão. Sim, se decidirmos por mais coordenação, mais regras e mais supervisão, então precisamos decidir qual organização é responsável por impor tais regras e conduzir essa supervisão. Para a França, está claro. É o FMI.5
A cadeira brasileira na Diretoria do Fundo e a nossa representação no G20 têm sido bastante críticas dessas tentativas de estabelecer um “código de conduta” para a gestão dos movimentos de capital. O debate perdeu parte de sua força ao longo de 2011. O tempo vem mostrando que o foco do FMI e de alguns países desenvolvidos em diretrizes ou mesmo em um “código de conduta” para os países receptores de capitais é questionável. Nessa discussão, entre outros problemas, pouca atenção foi dada aos fatores “impulsionadores”, os push factors, às políticas monetárias e financeiras nos principais países desenvolvidos que deram origem a fluxos de capital volumosos e, por vezes, prejudiciais. Enquanto o FMI e o G20 desperdiçavam tempo precioso no debate sobre um “código de conduta” para os emergentes, a crise reemergiu nos países desenvolvidos, especialmente na zona do euro, em consequência de níveis de endividamento insustentáveis, sistemas bancários frágeis e, ironicamente, dos efeitos do colapso de um ciclo de expansão de crédito impulsionado por influxos de capital externo. Em todo esse período, a cadeira brasileira na Diretoria do FMI argumentou
que seria inadequado e politicamente insustentável tentar usar o poder de voto desequilibrado do Fundo, que dá peso excessivo aos desenvolvidos, para impor as agendas desses países a países em desenvolvimento que não estão dispostos a aceitar quaisquer restrições à liberdade de gerir suas contas de capital. Há uma ironia adicional aqui. Alguns dos países que estão no epicentro da pior crise desde a Grande Depressão da década de 1930, e ainda não resolveram seus próprios problemas, parecem ansiosos em promover a adoção de códigos de conduta para o resto do mundo, incluindo países emergentes que se defrontam com a superabundância de liquidez gerada pelas políticas monetárias daqueles mesmos países. É tentador dizer: ponham suas próprias casas em ordem antes de doutrinar novamente os outros países. É muito cedo para esquecer que a onda doutrinadora anterior dos países desenvolvidos – desregular, liberalizar, confiar nos mercados etc. – terminou em lágrimas para eles e para os países em desenvolvimento que seguiram esse credo.
Keynes e White Assegurar movimentos livres de capitais não era parte das atribuições originais do FMI. O Artigo VI do Convênio Constitutivo sempre existiu, desde o começo. Tentativas equivocadas de alterar ou suprimir esse artigo no fim dos anos 1990 não tiveram resultado. Na época, a cadeira brasileira no FMI estava entre as que se opunham à tentativa de estabelecer a liberalização das contas de capital como obrigação. Aqueles que conhecem a história do FMI sabem que os principais fundadores da instituição, John Maynard Keynes e Harry Dexter White, tinham aprendido com a aguda instabilidade causada pelo laissez-faire com relação aos movimentos internacionais de capital no período entre as duas Guerras Mundiais. Keynes explicou, à época da criação do Fundo, que os paísesmembros teriam “o direito explícito de controlar todos os movimentos de capital”.6 Cada país pôde escolher entre manter todas as transações livres ou adotar controles. Se um país escolhesse a segunda alternativa, Keynes acreditava que deveria ficar a critério de cada um “descobrir seus próprios métodos”.7 Keynes e White estavam certos. Desde a crise internacional em 2008, o pêndulo novamente oscilou do laissez-faire em direção ao reconhecimento de que a forte regulação e a supervisão das atividades financeiras são indispensáveis para o funcionamento estável e eficiente de uma economia de mercado. Os movimentos de capitais não fogem à regra.
1 Tradução, revista pelo autor, de texto publicado originalmente sob o título “The IMF, capital account regulation, and emerging market economies”, em Boston University, Regulating Global Capital Flows for Long-run Development, Pardee Center Task Force Report, Boston, 2012. 2 José Antonio Ocampo. Reforming the International Monetary System. United Nations University, World Institute for Development Economics Research, 2011. 3 Olivier Blanchard. What I Learnt in Rio: Discussing Ways to Manage Capital Flows, resumo da conferência sobre Gestão da Entrada de Capitais nos Mercados Emergentes, organizada pelo Ministério da Fazenda do Brasil e pelo Fundo Monetário Internacional, Rio de Janeiro, maio de 2011. 4 Nicolas Sarkozy. Lancement de la Présidence Française du G20 e du G8. Palais de l’Élysée, janeiro de 2011. 5 Id. Address by the president of the French Republic. Abertura do Seminário do G20 sobre a Reforma do Sistema Monetário Internacional, Nanjing, China, março de 2011. 6 John Maynard Keynes. The Collected Writings of John Maynard Keynes, Volume XXVI, Activities, 19411946. Shaping the Post-War World: Bretton Woods and Reparations. Londres: MacMillan & Cambridge University Press, 1980, p. 17. 7 Id. The Collected Writings of John Maynard Keynes, Volume XXV, Activities, 1940-1944. Shaping the Post-War World: The Clearing Union. Londres: MacMillan & Cambridge University Press, 1980, p. 325.
UM NACIONALISTA NO FMI: A ESTRUTURA DA INSTITUIÇÃO E O PAPEL DO BRASIL1
Entre 2007 e 2015, fui diretor executivo pelo Brasil e diversos outros países no Fundo Monetário Internacional, em Washington, D.C. O texto que se segue e os dois subsequentes são baseados na minha experiência nesse período, principalmente no FMI, mas também como delegado brasileiro nas reuniões do G20 e dos BRICS. O primeiro texto trata, sobretudo, da estrutura e funções da instituição, do papel do Brasil e da minha fase inicial na Diretoria Executiva.
1. Indicação controversa Quando fui indicado para o cargo de diretor executivo no FMI, em fevereiro de 2007, houve alguma agitação na imprensa brasileira. Nos principais jornais, a reação foi preponderantemente negativa. “Mais uma decisão equivocada do governo Lula”, dizia-se. “Como é possível indicar para o cargo um crítico do FMI?”, perguntava-se com certa indignação. Era verdade, eu estava realmente entre os críticos da instituição e havia publicado diversos trabalhos acadêmicos e artigos na imprensa, desde a década de 1980, em que fazia reparos à sua governança e atuação. Além disso, fizera parte da delegação brasileira que teve negociações tensas e sem resultado com o FMI em 1985, no início do governo Sarney.2 E, mais importante, fora um dos artífices da moratória unilateral de 1987 que, embora não tenha atingido as dívidas do Brasil com organismos multilaterais como o FMI ou o Banco Mundial, não era nada bem-vista em Washington, por suposto. O pior de tudo, acredito, é que nunca renegara essa decisão polêmica. Não sou contra a autocrítica, claro, mas tenho por outro lado sempre presente a advertência irônica de Nietzsche de que não devemos abandonar nossos atos à própria sorte. Respondi na época às críticas essencialmente da seguinte maneira: estava indo para Washington não para trabalhar pelo FMI, tal qual se apresentava, mas
para tentar contribuir para mudá-lo. Frisei, em particular, que aceitara representar o Brasil e outros oito países na Diretoria Executiva da instituição, mas que trabalharia no e não para o FMI. Entretanto, essa linha de argumentação, que segui em artigos e entrevistas, não estava inteiramente correta. A verdade é que, embora tivesse estudado a instituição e até tido contato direto com ela entre 1985 e 1987, como representante do governo brasileiro, eu não a conhecia tão bem quanto imaginava. Uma coisa aprendi nos mais de oito anos em que ficaria no FMI: é muito difícil, talvez impossível, realmente conhecer uma instituição desse tipo, entender como ela funciona, sem passar por lá, sem ter a vivência da instituição. Notei que muitos pesquisadores e estudiosos, mesmo renomados, se equivocavam repetidamente quando escreviam e opinavam sobre o FMI, especialmente quando se aventuravam no terreno das recomendações. Havia exceções notáveis, entre elas, por exemplo, José Antonio Ocampo, o jornalista especializado em assuntos do FMI, Paul Blustein e, no Brasil, Fernando Cardim de Carvalho. Mas, de uma maneira geral, as contribuições externas para a análise e a reforma do FMI deixavam a desejar. No começo, foram muito importantes as informações e orientações que recebi dos meus dois antecessores no cargo: Eduardo Loyo, a quem substituí, e Murilo Portugal, que fora diretor executivo por quase sete anos, imediatamente antes de Loyo. O primeiro fez uma passagem de serviço cuidadosa e profissional, e continuou me ajudando com a maior boa vontade depois do retorno ao Brasil. Murilo Portugal ocupava, quando cheguei a Washington, o cargo de vice-diretor-gerente na Administração do FMI; para conversar com ele bastava descer um andar. Murilo era ligado aos tucanos, ocupara posições importantes na Fazenda no período Malan, chegara a ser vice-ministro de Antonio Palocci e seria depois presidente da Febraban. Com essa trajetória, desnecessário dizer que era muito conservador; ele temia provavelmente que um economista nacionalista, e mais à esquerda, pudesse derrapar e comprometer as tradições da cadeira brasileira na Diretoria do FMI. Fez então o possível para me orientar e catequizar; não absorvi a catequese, mas não posso negar que aprendi muito com ele, tirando partido da sua longa experiência na instituição. Graças a Murilo e Loyo, logo compreendi que o papel do diretor executivo do FMI era mais complexo do que a esmagadora maioria dos outsiders imaginam. O seu papel é duplo, na verdade. Por um lado, representa um ou mais países na instituição. Por outro, tem responsabilidade fiduciária por ela, isto é, obrigação de zelar pela instituição e seus interesses. Em outras palavras, e contrariamente ao que eu dissera ao rebater as críticas à minha indicação, eu iria
trabalhar, sim, para o FMI e não apenas no FMI representando o Brasil e outros países. A função de diretor executivo no FMI (e o mesmo vale para o Banco Mundial) é, assim, essencialmente diferente da de embaixador na ONU ou na Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo. O nosso embaixador na ONU é funcionário do governo brasileiro; o diretor executivo é funcionário do FMI. Na ONU ou na OMC, o embaixador lança o voto do país; no FMI, o diretor vota como pessoa. Ao longo dos mais de oito anos em que ocupei o cargo, sempre procurei corrigir – sem muito sucesso – a tendência da mídia brasileira a me apresentar como “representante brasileiro no FMI”, designação incompleta, pois não levava em conta o fato de eu representar outros oito (mais tarde, dez) países e, mais importante, ignorava toda uma dimensão essencial do trabalho da Diretoria, que é cuidar dos interesses da instituição. Onde reside o interesse da instituição em cada situação particular nem sempre é fácil de identificar, o que frequentemente dá margem a divergências e debates. Em todo o caso, a obrigação existe e é parte essencial do trabalho dos diretores. Esses dois lados do trabalho do diretor executivo nem sempre são fáceis de conciliar, podendo haver conflito, em determinadas situações, entre representar um país e zelar pela instituição. Pude verificar que os diretores de países desenvolvidos, com raras exceções, não hesitavam em sacrificar o interesse da instituição quando este contradizia de forma flagrante o interesse nacional do país ou países que representava. Outros, os mexicanos e outros latinoamericanos por exemplo, procuravam exercer um papel de mediação entre o FMI e os países da sua cadeira. O meu mais importante antecessor, Alexandre Kafka, figura lendária no FMI, que ocupou o cargo de diretor por 32 anos, procurava fazer esse papel de mediação, como pude verificar no período em que estive no governo brasileiro de 1985 a 1987, primeiro como secretário de assuntos econômicos do ministro do Planejamento, João Sayad, e depois como assessor para assuntos de dívida externa do ministro da Fazenda, Dilson Funaro. Funaro, outra figura lendária, não tinha a menor paciência com o FMI e acabava tratando Kafka com certa rispidez, como representante da instituição e não do Brasil na instituição. Tudo isso, como eu disse, é difícil de perceber de fora. A razão é que as instituições multilaterais como o FMI costumam ser de grande complexidade e transparência limitada. A sua atuação é, em geral, muito variada e costuma estar submetida não só a regulamentos intrincados, mas também a regras não escritas e práticas não codificadas ou codificadas de forma pouco clara. A transparência é muito relativa. Todas as instituições multilaterais prestam homenagem a esse
princípio – é obrigatório nos dias que correm. Mas há muita hipocrisia nisso, hipocrisia que, como dizia La Rochefoucauld, nada mais é do que a homenagem do vício à virtude. O vício se impunha, na prática, com certa frequência – seja pela não divulgação pura e simples de certos fatos ou decisões, seja pela sua divulgação de modo obscuro, pouco acessível, ou em linguagem desnecessariamente técnica e específica, em “fundese”, como se diz na instituição. Essa dissonância entre discurso e prática me irritava, em especial quando escondia questões de interesse dos países emergentes e em desenvolvimento. Não foram poucas as vezes em que provoquei e ridicularizei um pouco meus colegas de Diretoria e da Administração, relatando uma das histórias prediletas de Abraham Lincoln, célebre por suas anedotas. Um rapaz, em busca de emprego público, tinha que responder a um questionário, contava Lincoln. Tudo corria bem até que o candidato se deparou com uma pergunta delicada: Causa da morte do pai? É que seu pai fora enforcado como ladrão de cavalos. O candidato pensou, pensou, até que veio a luz: “Meu pai participava de uma cerimônia pública quando a plataforma cedeu”.3 Pois bem, “a plataforma cedeu” era um artifício adotado recorrentemente pelo FMI. Nessas condições, como esperar que um outsider tenha plena compreensão do funcionamento de instituições como o FMI? Entre os poucos pesquisadores externos que têm sucesso em superar essas barreiras estão aqueles que, como o já mencionado Paul Blustein, no caso do FMI, ou Christopher Humphrey, no caso do Banco Mundial e outros bancos multilaterais de desenvolvimento, fazem extensas e minuciosas entrevistas com pessoas que integram ou integraram a Administração, as Diretorias e o staff dessas instituições.4 Recebi o convite do então ministro da Fazenda, Guido Mantega, com alguma hesitação. Estava bem em São Paulo e não tinha grande interesse em residir no exterior. Já havia recusado convite anterior de Mantega para assumir o cargo de diretor executivo no BID, também em Washington. Mas o FMI era uma instituição mais importante e que guardava mais relação com a minha área de conhecimento e experiência. Mesmo assim, fiquei em dúvida. O FMI atravessava na época uma fase não muito boa. Vivia uma espécie de crise de identidade. Só um país de mais peso – a Turquia – tinha um programa de financiamento e ajustamento com a instituição; os demais devedores, não muito numerosos, eram países menores ou de menor nível de desenvolvimento. O FMI era um corpo de bombeiros num mundo em que não havia quase incêndios, como se dizia na época. Alguns consideravam o Fundo uma instituição decadente, que precisaria se reinventar. Depois de muito refletir, resolvi aceitar o convite, imaginando ficar apenas um ou dois anos. Nos primeiros meses em
Washington, não foram poucas as dificuldades de adaptação e aprendizado, relatadas em outro texto neste livro.5 O ex-ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser Pereira, antecipara essas dificuldades em artigo que publicou na Folha de S.Paulo, em meio à controvérsia sobre a minha indicação, intitulado “Um nacionalista no FMI”. De fato, como todo nacionalista, eu era cético, em alguma medida, sobre a relevância e a utilidade da esfera multilateral – e muito desconfiado das intromissões das entidades sediadas em Washington, que considerava uma fachada “global” utilizada, com frequência, para avançar os interesses dos Estados Unidos e demais países desenvolvidos que as controlam. O quadro mudaria radicalmente com a crise em 2008. Menos de um ano depois da minha chegada a Washington, apareceria uma gravíssima crise financeira, a pior desde a Grande Depressão dos anos 1930, que teve início no mercado de hipotecas de alto risco e se espalharia como fogo em palha para o resto do sistema financeiro dos Estados Unidos e da Europa, provocando grandes deslocamentos econômicos e uma série de repercussões internacionais. Não era propriamente uma “crise global”, como insistiam em dizer os americanos e europeus, interessados em arregimentar apoio de outros países para enfrentar seus problemas, mas essencialmente uma crise financeira do Atlântico Norte, como notava um dos meus colegas de Diretoria, o indiano Rakesh Mohan. De qualquer maneira, a crise recolocou o FMI no centro da cena. O corpo de bombeiros voltou à ativa. Muitos países recorreram ao apoio financeiro do Fundo, inclusive europeus, classificados como desenvolvidos, algo que não se via desde a década de 1970. A presença em Washington, dentro do FMI, se tornou muito mais rica e interessante do que eu antecipara ao aceitar o convite. Acabaria ficando mais de oito anos na função, até junho de 2015, quando me mudaria para Xangai para assumir o cargo de vice-presidente brasileiro no novo banco de desenvolvimento criado pelos BRICS. Não pretendo neste texto e nos dois que se seguem cobrir todas as áreas de atuação do FMI, nem mesmo toda a atuação da cadeira brasileira na Diretoria Executiva de 2007 a 2015, que foi vasta e variada. O propósito é selecionar alguns aspectos, controvérsias e episódios marcantes, que possam ser reveladores de como funciona o FMI, de como atuam os principais países, do papel do Brasil nesse período e, de forma mais ampla, de como se organiza e reorganiza a governança global em tempos de crise aguda. Não vou seguir sequência rigidamente cronológica, o que poderia ser maçante, mas tratar o assunto por tópicos. Procurarei também evitar repetir outros textos deste livro que abordam questões relacionadas ao FMI, ao G20, aos BRICS e à crise
internacional.
2. Uma estrutura tripartite Para entender bem os tópicos que abordarei, é necessário ter alguma compreensão da estrutura geral do Fundo, tal como se apresenta depois de sete décadas de evolução desde Bretton Woods. Peço a paciência do leitor para o que vou expor nesta seção e nas seguintes: uma descrição de como funciona a instituição, vista por dentro. Essa descrição, ainda que breve e incompleta, pode ser tediosa, mas a alternativa de apresentar as características institucionais em meio ao relato de decisões, controvérsias e episódios de que participei, introduziria descontinuidades provavelmente prejudiciais à leitura. Optei por entremear a discussão institucional com episódios marcantes que facilitam a compreensão do funcionamento do FMI, da Diretoria Executiva e da cadeira brasileira, amenizando ao mesmo tempo a aridez do tema. A estrutura do FMI tem uma parte que é residente em Washington, D.C., e outra que funciona nas capitais dos membros. Integrado quase sempre por ministros de Finanças ou presidentes de Banco Central, o Conselho de Governadores é, em tese, a autoridade máxima da instituição e muitas decisões importantes estão na sua alçada. Porém, a influência desse Conselho é, na realidade, relativamente reduzida, por motivos que retomarei adiante. A parte da estrutura mais importante para a instituição, de longe, é a que reside na capital dos Estados Unidos. Ela tem três componentes: a Diretoria Executiva, a Administração e o staff (corpo técnico). Do ponto de vista jurídico, isto é, dos Articles of Agreement (Convênio Constitutivo) da instituição, a Diretoria Executiva é a instância mais importante, à qual responde a Administração. Esta, por sua vez, comanda o staff. Na prática, a Administração – composta por um diretor-gerente e quatro vice-diretores-gerentes – tem mais poder e influência. E o staff, embora subordinado à Administração, tem grande peso dentro da instituição e, em determinadas circunstâncias, pode influir mais do que a própria Administração. O diretor-gerente do FMI, cargo que foi ocupado pelo espanhol Rodrigo de Rato e pelos franceses Dominique Strauss-Kahn, conhecido como DSK, e Christine Lagarde no período em que lá estive, é equivalente ao de presidente no Banco Mundial e outros organismos financeiros internacionais. Por uma regra não escrita, que vigora desde a criação do Fundo, esse cargo está reservado a um europeu e, em contrapartida, o de presidente do Banco Mundial, a um
americano. O cargo de número dois da instituição, o primeiro vice-diretorgerente, está reservado, por outra regra não escrita, a um americano. O FMI tem atualmente um staff de cerca de 2.700 funcionários, integrado em sua maioria por economistas formados em universidades europeias e, sobretudo, americanas.6 O nível médio é bom, superior no meu entender ao do Banco Mundial e bem superior ao do BID, as duas outras entidades financeiras multilaterais sediadas em Washington. Há economistas de alta qualificação no staff. Entre os que conheci, destacava-se Olivier Blanchard, trazido por Dominique Strauss-Kahn, e que chefiou por muitos anos o departamento de pesquisa. Blanchard, economista brilhante e também paciente (combinação rara), teve papel importante em arejar o pensamento econômico do FMI, aproveitando a oportunidade trazida pela crise de 2008.7 Um fator que explica a força da Administração é justamente o fato de comandar um staff grande, em média competente e, às vezes, excepcionalmente capaz. O staff atende a Diretoria, ajuda o trabalho dos diretores (especialmente daqueles, diga-se, que representam os principais acionistas), mas deve lealdade em primeira instância ao diretorgerente e ao restante da Administração. O terceiro componente da estrutura residente do FMI é a Diretoria Executiva. Ela começou com 12 diretores em 1946 e conta atualmente com 24, o que reflete a ampliação do número de países-membros, primeiro em função da descolonização na Ásia, na África e no Caribe nas décadas de 1950 a 1970 e, nos anos 1990, da dissolução do bloco soviético. Todas ou quase todas as decisões importantes são necessariamente submetidas à Diretoria, o que a transforma em um contrapeso importante ao poder da Administração e do staff. Ela se reúne ao menos três vezes por semana e, não raro, todo dia, em sessões formais, informais e em comitês da Diretoria. Há uma tensão quase permanente entre a Diretoria e a Administração, com a segunda tentando de várias formas esvaziar o poder da primeira. Os diretores dos países desenvolvidos, em especial o americano e os europeus, são, às vezes, coniventes com essas tentativas, uma vez que cidadãos dos seus países de origem comandam a Administração. O grande número de diretores também facilita as manobras para controlar, contornar ou enfraquecer a Diretoria. Porém, a estrutura legal do FMI, notadamente o Convênio Constitutivo, impõe limites relativamente estreitos a essas tentativas. E – aspecto importante – o fato de a Diretoria ser residente em Washington cria condições para que ela possa, realmente, se inserir no trabalho da instituição, acompanhar os detalhes e, inclusive, supervisionar a atuação da Administração e do staff. A questão Diretoria residente versus Diretoria não residente, cabe notar, foi objeto de intensa controvérsia entre Keynes e White nas discussões preparatórias
da criação do FMI e do Banco Mundial, com Keynes defendendo arduamente Diretorias não residentes, como relatarei brevemente em outro capítulo deste livro, dedicado ao banco de desenvolvimento que os BRICS criariam. No caso do banco dos BRICS, a opção seria, ao menos na fase inicial, pelo modelo defendido por Keynes.8
Como são tomadas as decisões no FMI Na Diretoria e no Conselho de Governadores do FMI (e o mesmo se aplica ao Banco Mundial), as decisões são tomadas com base em uma distribuição desigual de votos (weighted voting – votação ponderada), que confere aos países desenvolvidos o controle da instituição. A maior parte das decisões requer maioria simples. Os Estados Unidos, os principais países da Europa, Canadá, Austrália, Japão e outras nações desenvolvidas continuam detendo, apesar das reformas concluídas em 2008 e 2010, mais de 50% dos votos.9 Vários desses países, notadamente a grande maioria dos europeus, estão super-representados em termos de poder de voto, quando se toma por parâmetro o tamanho relativo das economias. Algumas decisões requerem supermaiorias, chegando algumas delas a exigir 85% dos votos. Por exemplo: alterações do Convênio Constitutivo ou aumentos das quotas requerem supermaioria de 85%, com votação não só na Diretoria, mas também no Conselho de Governadores. Esse percentual foi definido para garantir aos Estados Unidos, que detiveram sempre mais do que 15% dos votos, o poder de vetar decisões cruciais. Os Estados Unidos são o único país a usufruir desse privilégio. Chego aqui a mais um exemplo de como o desconhecimento da instituição por parte de observadores externos leva a conclusões enganosas e recomendações aparentemente democráticas, mas provavelmente contraproducentes, ou pelo menos discutíveis. À primeira vista, é absurdo que um só país tenha poder de veto em um organismo internacional. Observadores externos apoiam, não raro, eliminar o poder de veto dos Estados Unidos. De fato, esse poder pode trazer dificuldades sérias para a instituição. Por exemplo, a reforma de quotas e governança de 2010 levaria nada menos que cinco anos para entrar em vigor, em face das dificuldades do governo Obama em conseguir a sua ratificação no Congresso. Mas há um lado menos óbvio na questão do poder de veto. Os europeus, liderados pelo diretor-gerente Dominique Strauss-Kahn, propuseram mais de uma vez que se emendasse o Convênio Constitutivo para reduzir o patamar da
supermaioria de 85% para 75% ou 70%, em nome da democratização do FMI. Proposta esperta, pois retiraria o poder de veto dos americanos sem afetar o dos europeus. É que, na realidade, os europeus agem de forma muito bem coordenada no FMI e constituem efetivamente um bloco, o único que existe na instituição. Juntos eles somam cerca de 30% dos votos totais e têm, na prática, poder de veto também. Com a redução do patamar para 75% ou mesmo 70%, os europeus poderiam continuar com esse privilégio, suprimindo o dos Estados Unidos. Nesse ponto, nós, emergentes, estávamos com os Estados Unidos. Os diretores dos BRICS e de alguns outros países emergentes – liderados nessa questão pelo diretor russo, Aleksei Mozhin, que era dos mais antigos na instituição – eram contrários a reduzir o patamar para menos de 85%.10 A razão é que, mesmo com a distribuição desigual dos votos, não era impossível para os diretores dos BRICS coordenar-se entre si e com outros diretores de países emergentes ou em desenvolvimento para alcançar os 15% necessários para vetar (ou ameaçar vetar) decisões problemáticas para nós. Com as reformas de 2008 e 2010, que trouxeram certo crescimento do poder de voto dos países emergentes, isso se tornou ainda mais verdadeiro. Não antecipávamos que o Executivo americano, no governo Obama, fosse perder tanto espaço na sua relação com o Congresso, atrasando em vários anos a efetivação de uma reforma importante para nós. De qualquer maneira, os americanos muito dificilmente teriam concordado com a decisão de eliminar o próprio poder de veto – sempre poderiam vetar, ou simplesmente indicar que vetariam, como efetivamente fizeram, qualquer proposta que conduzisse à sua supressão. E a falta de apoio dos emergentes à proposta europeia acabou inviabilizando-a já na partida. O que isso significa, entretanto, para o funcionamento da instituição? Basicamente, que emendas ao Convênio Constitutivo e reformas de quotas e do poder de voto são sempre muito difíceis de levar adiante – dado que podem ser bloqueadas pelo veto de um país ou de grupos coesos ou razoavelmente coesos de países. Isso tem duas consequências práticas. Primeira: a redistribuição do poder decisório entre os países, para refletir a ascensão econômica das nações emergentes e em desenvolvimento, especialmente as asiáticas, acontece de forma muito lenta. O Brasil, como veremos, teria muito sucesso em ampliar o seu poder de voto nas reformas de 2008 e 2010, mas fomos um caso relativamente isolado. Como muitos países emergentes e em desenvolvimento não obtiveram resultados expressivos e vários chegaram a perder poder de voto, não ocorreu uma mudança de fundo nessa distribuição. Segunda consequência – esta positiva: a dificuldade de emendar o
Convênio Constitutivo da instituição nos confere certa proteção em alguns temas. Do ponto de vista de países como o Brasil, isso pode ser um trunfo importante. Por exemplo, o Artigo VI do Convênio, que remonta a Keynes e White, assegura aos países-membros a possibilidade de regular os movimentos de capitais. Tentativas de modificar ou eliminar esse artigo na década de 1990 foram bloqueadas por países emergentes e em desenvolvimento que atuaram para impedir que se alcançasse a supermaioria de 85% requerida.11 Quando os desenvolvidos não conseguem promover as mudanças que desejam no Convênio Constitutivo, tentam (e às vezes conseguem) valer-se da sua maioria na Diretoria e do seu controle sobre a Administração para contornar o Convênio e forçar alterações infraconstitucionais de legalidade duvidosa ou discutível.
Super-representação europeia A super-representação da Europa no FMI é um problema tão ou mais grave do que o excessivo poder dos Estados Unidos. Ela tem três dimensões: 1) A regra informal que reserva o cargo mais alto da Administração a um europeu; todos os 11 diretores-gerentes do FMI foram europeus até agora (cinco franceses, dois suecos, um belga, um holandês, um alemão e um espanhol). 2) O elevado poder de voto agregado dos europeus, da ordem de 30% do total e muito superior a seu peso na economia internacional. O declínio gradual do peso das economias europeias na economia mundial desde o século passado não tem se refletido, na mesma medida, em ajustamento das quotas relativas e poder de voto dos europeus. 3) O número excessivo de cadeiras na Diretoria comandadas por europeus, 8, às vezes 9, das 24. Houve algum rearranjo nas cadeiras europeias com a reforma de 2010, mas essas mudanças foram mais cosméticas do que reais, como explicarei quando tratar dessa reforma mais à frente. Nos meus mais de oito anos no FMI, os europeus foram quase sempre a principal fonte de resistência à reforma da instituição. Devo ressalvar que alguns diretores de pequenos países europeus – ainda que lutassem, compreensivelmente, para preservar a sua super-representação – costumavam se destacar pela qualidade da atuação na defesa da instituição e das prerrogativas da Diretoria contra as intrusões da Administração, entre eles o belga Willy Kiekens, o austríaco Hans Prader e os suíços Thomas Moser e René Weber. Mas a atuação
dos grandes europeus – os alemães, os franceses, os ingleses, os italianos e os espanhóis – era geralmente nefasta, de defesa coordenada e intransigente do status quo institucional, com poucas contribuições ao trabalho da Diretoria e tentativas recorrentes de submeter a ação do Fundo a suas agendas nacionais. As manobras dos europeus não deixavam de ter aspectos cômicos. Sempre orgulhosos e preconceituosos, custariam muito a aceitar certas implicações da crise do euro, entre elas a necessidade de que alguns países da área monetária se submetessem à tutela e às condicionalidades do FMI – condicionalidades que europeus e outros estavam acostumados a recomendar e aplicar a países latinoamericanos, caribenhos, africanos ou asiáticos – mas só a esses. No início da crise, os europeus, estranhamente, começaram a falar publicamente em criar um “Fundo Monetário Europeu”. Nessa época, eu costumava provocá-los em reuniões da Diretoria, indagando: “Por que criar um Fundo Monetário Europeu, se ele já existe – exatamente este aqui, em Washington?”
Fatores que mitigam a distribuição desigual dos votos Como já se pode depreender do que escrevi antes, não é total o controle do FMI pelos Estados Unidos e pela Europa, mesmo coadjuvados por outros países desenvolvidos como Canadá, Austrália e Japão. A crise de 2008 abalou o prestígio dos americanos e europeus e enfraqueceu esse controle, pelo menos temporariamente. Mas, mesmo antes de a crise eclodir, havia fatores que mitigavam a distribuição desigual de votos na Diretoria. Um deles é a tradição de decidir por consenso – não no sentido exato de unanimidade, mas de amplo apoio e com poucas objeções fortes da parte de diretores.12 Essa tradição não é seguida sempre à risca, longe disso, mas é um traço da paisagem, com duas implicações. Primeira: votos contrários a uma decisão, ou mesmo simplesmente a abstenção, acontecem na Diretoria do FMI, mas não são muito comuns; e a abstenção tem sempre um certo sabor de oposição – ponto que se revelaria crucial nas crises que enfrentei por conta do programa da Grécia. Segunda implicação: a busca do consenso permite à minoria (de votos ponderados) negociar alterações nas decisões como preço da adesão ao consenso, desde que os diretores minoritários se preparem e tenham capacidade de argumentar, o que nem sempre, cumpre dizer, é o caso dos diretores de países emergentes e em desenvolvimento. Os diretores africanos, da maioria dos países do Oriente Médio e do Sudeste Asiático e, também, da maioria dos latino-americanos – mas não os brasileiros (até a minha época, pelo menos) – têm comportamento
relativamente passivo e de adesão às teses da Administração e dos diretores de países desenvolvidos. Seja como for, a busca do consenso é sempre feita à sombra da estrutura desigual de votação. Quando insistíamos muito em determinados pontos que desagradavam à Administração ou aos diretores dos países desenvolvidos, não tardávamos a ser avisados de que já existia uma maioria com pontos de vista contrário ao nosso. “Já temos maioria” era o sinal para indicar que o jogo estava próximo do fim. Aí cabia a nós, diretores da minoria, avaliar caso a caso até onde insistir, without overplaying our hand (sem abusar da sorte ou arriscar demais), isto é, avaliando com realismo se as modificações parciais aceitas em certas decisões eram suficientes para evitar a abstenção ou o voto contrário. Isso conduz, de imediato, a outro fator que mitiga a distribuição desigual de votos: a voz de cada diretor dentro da Diretoria – tanto nas reuniões formais e informais, como nas articulações preparatórias com a Administração, o staff e os colegas de Diretoria. Por isso, é fundamental ter assento permanente na Diretoria – algo que, por exemplo, todos os BRICS têm, com exceção da África do Sul. E, claro, utilizá-lo bem, indicando pessoas capazes e dispostas a trabalhar com afinco, inovar quando necessário e questionar o status quo. A Rússia, a Índia e a Suíça, por exemplo, usam esse instrumento com grande eficácia, indicando em geral diretores especialmente competentes e atuantes. Daí que a presença de um grande número de diretores europeus acaba desequilibrando o debate. Era tedioso ouvi-los (com exceção, para boa parte dos temas, dos já mencionados representantes de alguns pequenos países europeus) repetir em uníssono, basicamente com as mesmas palavras, a mesma mensagem nas reuniões da Diretoria. Quantas vezes tive ímpeto de propor, como regra informal, que após a intervenção do primeiro europeu se fizesse o registro automático de que os demais compartilhavam opinião idêntica. Mas a estocada teria sido injusta com os meus colegas suíço, belga e austríaco.13 Os diretores dos demais países desenvolvidos não se destacavam. Os japoneses que conheci eram, não raro, inteligentes e experientes, mas costumavam ficar apagados na Diretoria e tendiam geralmente a acompanhar as posições da cadeira dos Estados Unidos. A passividade do Japão contrastava de modo marcante com o seu peso econômico. Eu costumava comentar com pessoas mais próximas que os japoneses se comportavam, no FMI e no G20, como se a Segunda Guerra tivesse terminado ontem. Normalmente, eles só se dispunham a falar com mais desenvoltura nos bastidores, em reuniões bilaterais ou pequenas, e aí traziam contribuições significativas, às vezes a favor dos emergentes. Os canadenses e australianos não tinham praticamente nenhuma
independência em relação aos Estados Unidos e à Administração do FMI e faziam pouca ou nenhuma diferença na instituição. Os países emergentes ou em desenvolvimento comandam 12 das 24 cadeiras da Diretoria14 o que poderia fazer grande diferença no funcionamento da instituição, mesmo considerando que elas detêm um pouco menos que 40% do poder de voto. O problema, como assinalei, é que muitos diretores desse grupo são passivos, relativamente despreparados e propensos a seguir os americanos e europeus em muitas questões. Os consensos do Norte exercem forte poder gravitacional sobre muitos deles. As duas cadeiras africanas subsaarianas, principalmente a que reúne as ex-colônias francesas, são relativamente inoperantes, com diretores que tendem à omissão ou à colaboração com os acionistas majoritários.15 A cadeira africana anglófona, da qual faz parte a África do Sul, é nitidamente melhor, mas não se compara às cadeiras dos demais BRICS em termos de independência e capacidade de atuação.16 Os latino-americanos também não ofuscam, com exceção dos brasileiros, desde os tempos de Alexandre Kafka, e de um diretor excepcional da Argentina, Hector Torres, que acabaria exercendo a função de vice-diretor ou diretor alterno na nossa cadeira – ainda que a Argentina nunca tenha feito parte da constituency17 do Brasil. Regra geral, a maioria dos latino-americanos está sempre ansiosa para agradar a Administração e os diretores dos países desenvolvidos, e acaba não tendo grande papel na instituição. O mesmo comentário se aplica, grosso modo, aos diretores do Oriente Médio – mas não aos do Irã – e aos do Sudeste Asiático, inclusive à Indonésia que, embora seja um país de grande porte econômico, demográfico e geográfico, tem papel modesto no FMI e no G20. Na Diretoria houve até momentos em que o diretor da Indonésia dava sinais de estranha dependência em relação ao diretor da Holanda, mostrando, décadas depois da independência, respeito exagerado à antiga Metrópole… Não há nada mais fácil, leitor, para um diretor executivo, no FMI ou no Banco Mundial, do que se acomodar e virar sócio de um clube confortável em Washington. A carga de responsabilidades é pesada; o diretor está lá para representar seu país ou um grupo de países e para cuidar da instituição como um todo. Mas a verdade é que em uma diretoria de 24 membros (ou 25, no caso do Banco Mundial), ele pode tranquilamente se omitir, acompanhar os consensos patrocinados pela Administração e pelos principais acionistas, e fazer, no fundo, mera figuração.18 Não terá problemas e será até elogiado pelo seu “espírito internacional”. Eu mesmo não segui esse caminho. Lutei muito – talvez demais – pela
reforma do FMI e para representar os países da cadeira brasileira. A nossa cadeira se fortaleceu, como vou relatar. Mas, principalmente por causa da resistência dos europeus, a reforma da instituição andou menos do que se poderia esperar e – o que é mais grave – bem menos do que os países desenvolvidos, inclusive os grandes países europeus, haviam se comprometido a apoiar no âmbito do G20, no auge da crise, de 2008 até 2010. Os embates no FMI e no G20 (onde atuava como delegado brasileiro) foram tantos que acabei enfrentando muitos problemas e sofrendo até perseguições. Volto a isso, mas já antecipo que, a bem da verdade, esses problemas ocorreram não apenas por conta da má vontade, truculência ou má-fé de certos adversários (inimigos, em alguns casos), mas também pelo meu estilo pessoal, considerado abrasivo por alguns, e meu gosto provavelmente exagerado pela polêmica. Isso nem sempre desagradava, devo dizer. Outros diretores de países emergentes ou em desenvolvimento tinham simpatia, respeito e até afeto por mim. Dominique Strauss-Kahn, que foi um diretor-gerente brilhante, rebatia os meus argumentos com inteligência, levava frequentemente a melhor e acabava se divertindo (ainda que nem sempre). Já a sua sucessora, Christine Lagarde, menos preparada, não suportava bem a polêmica, recebia as minhas críticas com desagrado e acumulava rancor e ressentimentos. Mas deixo isso de lado, por enquanto, e prossigo na discussão da estrutura geral do FMI.
O papel das capitais dos países-membros Na estrutura legal do FMI, tal como definida primordialmente no Convênio Constitutivo, o Conselho de Governadores (Board of Governors) é a autoridade suprema, responsável por uma série de decisões importantes, como já indiquei. Cada país-membro tem o direito de indicar um governador e um governador alterno (vice-governador). A grande maioria indica o ministro de Finanças, ou o seu equivalente, e o presidente do Banco Central para esses cargos. O FMI tornou-se, desde a década de 1990, depois do colapso do bloco soviético e da própria União Soviética, uma instituição quase universal. Atualmente, são 189 países-membros, incluindo quase todos do planeta, com as principais exceções sendo Cuba, Taiwan e Coreia do Norte. O grande número de governadores torna reuniões presenciais do Conselho impraticáveis para efeito de tomada de decisão.19 O problema sempre existiu e levou a que as decisões fossem tomadas, quase sempre, por voting without a meeting (votação sem reunião), isto é, com os votos sendo coletados a distância. Os governadores (ou
seus alternos) votam orientados por seus diretores e, frequentemente, com atuação direta da Administração sobre as capitais. A influência do Conselho já fica reduzida, automaticamente, por essa forma de decidir. Ademais, sendo os governadores e alternos quase sempre pessoas de alta importância nos seus governos, resta-lhes pouco tempo para dedicar-se às questões, não raro muito específicas, e até esotéricas, do FMI. Como assegurar, assim, que o coletivo dos governadores pudesse, de alguma forma, ter presença efetiva na instituição? A solução encontrada, na década de 1970, foi criar um comitê ministerial, denominado Comitê Interino (Interim Committee) e, mais tarde, Comitê Monetário e Financeiro Internacional (International Monetary and Financial Committee – IMFC), com composição que basicamente espelha a da Diretoria Executiva – 24 cadeiras com a mesma distribuição de países.20 O IMFC passou a se reunir duas vezes por ano, nas reuniões de primavera e outono do FMI e do Banco Mundial.21 Ponto importante, porém: o IMFC tem apenas um papel de “aconselhamento” (advisory role), pois, pela estrutura legal do Fundo, só o Conselho de Governadores e a Diretoria Executiva podem tomar decisões. Não há votações no IMFC e as deliberações, cujos resultados são expressos em comunicados semestrais, resultam de “consensos”, no sentido anteriormente explicado. O IMFC segue, portanto, o padrão de funcionamento de fóruns informais, como o G7, o G20 ou os BRICS. Isso cria uma oportunidade para os emergentes e em desenvolvimento, que detêm 11 ou 12 das 24 cadeiras do IMFC. As deliberações são por consenso e, se os representantes dos países estão bem preparados, tornase possível aconselhar e orientar a instituição em linha com nossos interesses. Mas não é fácil. Como os países desenvolvidos tradicionalmente asseguravam o controle sobre o IMFC? Repetia-se, aqui, o que se via na Diretoria. Os desenvolvidos, em média mais preparados, tendiam a prevalecer nas discussões. Impunham certo respeito reverencial, principalmente os delegados dos Estados Unidos e dos principais países europeus. A exemplo do que ocorria na Diretoria, o grande número de cadeiras europeias dificultava avanços, especialmente em temas relacionados a governança e quotas. Os emergentes e em desenvolvimento, em grande parte, se omitiam ou tendiam a acompanhar a liderança dos americanos e europeus. Se isso não funcionava e nós conseguíamos, apesar de tudo, que o IMFC oferecesse conselhos “inconvenientes”, a Administração e a Diretoria, dominadas pelos desenvolvidos, faziam o possível e o impossível para ignorálos. Mas, de novo, o controle não era completo e nós, emergentes, principalmente os BRICS, atuando de forma razoavelmente coordenada,
conseguíamos vencer algumas batalhas no IMFC e influir, também por essa via, no trabalho da instituição. O nosso papel, em resumo, era vencer batalhas nas reuniões semestrais, tirando partido da inexistência de votos ponderados (weighted voting) no IMFC e, depois, lutar para que os resultados tivessem alguma influência prática na Diretoria. Tradicionalmente, alguns países desenvolvidos importantes mostravam-se descontentes com esse arranjo. Desde a década de 1970, os europeus, liderados pela França, buscavam apoio para a criação de um Conselho Ministerial (Ministerial Council), com formação que espelhasse a da Diretoria, e que decidiria com base no sistema de votos ponderados. Esse Conselho, previsto no Convênio Constitutivo por emenda aprovada em 1978, mas que nunca fora criado, absorveria na sua alçada uma série de poderes da Diretoria Executiva. Dominique Strauss-Kahn decidiu retomar essa proposta. O assunto foi debatido intensamente na Diretoria. As cadeiras dos países emergentes eram, em sua maioria, frontalmente contrárias. A diretora americana parecia não simpatizar com a ideia, mas também não se opunha de forma categórica. Os diretores europeus eram quase todos favoráveis. Porém, a criação do Conselho depende de uma supermaioria de 85% no Conselho de Governadores. E foi por isso que conseguimos barrar a proposta, ao indicar claramente nas discussões da Diretoria que não existia a supermaioria requerida – uma demonstração prática de por que não era conveniente para nós, como assinalei antes, rebaixar o piso da supermaioria de 85% para os 75% ou 70% propugnados pelos europeus. Mas foi uma discussão perigosa para nós, diretores dos BRICS e outros países emergentes. A Administração trabalhava, também, na nossa retaguarda, tentando convencer os nossos ministros ou, mais frequentemente, os seus assessores – alguns deles sempre ansiosos em desempenhar papel mais importante na estrutura do Fundo – de que seria importante aumentar, por meio do Conselho Ministerial, o engajamento e o poder decisório das autoridades nas capitais.22 Havia sempre o risco de que, por um descuido nosso, a proposta pudesse ser endossada no G20 ou no IMFC. E isso quase aconteceu, em uma reunião G7 + BRICs, à margem de encontro ministerial do G20, em Gyeongju, na Coreia do Sul, à qual voltarei quando tratar da reforma de quotas e governança de 2010.
Do G7 ao G20 No período pré-crise de 2008, a estrutura não residente de governança do FMI tinha um reforço crucial, do ponto de vista das nações desenvolvidas: a
dominância do G7, que exercia, entre outros papéis, o de principal foro para cooperação econômica e financeira internacional. O G7 – integrado pelos Estados Unidos, os quatro grandes países europeus (Alemanha, França, Reino Unido e Itália), Canadá e Japão – reunia-se periodicamente, deliberava sobre as principais questões internacionais e proporcionava, sempre que necessário, orientações para a ação do FMI e do Banco Mundial. O IMFC não ousava desafiar o que vinha do G7. Havia, portanto, uma hierarquia informal do G7 para o IMFC e o FMI como um todo. A profunda crise nos sistemas financeiros americano e europeu, a partir de 2008, modificou tudo isso. Com significativa participação do Brasil, que exercia a presidência de turno do grupo em 2008, o G20 foi convertido em foro de líderes e substituiu o G7 como principal foro para cooperação econômica e financeira internacional.23 Ocorre que a composição do G20, que, como vimos, também deliberava por consenso, era mais favorável a nós do que a do IMFC, principalmente por sofrer menos da super-representação europeia. Os europeus faziam o possível para corrigir esse problema, tentando por manobras variadas aumentar a sua representação no G20. Mas não foram muito bem-sucedidos,24 em parte por objeções dos emergentes, mas sobretudo pela oposição dos Estados Unidos, tanto no final do governo Bush como no governo Obama. Como foro de líderes (presidentes ou primeiros-ministros), o G20 logo adquiriu importância relativamente ao IMFC, foro de nível ministerial, e passou a deliberar também sobre as grandes questões do FMI. O Brasil, que atuava em todos os níveis, passou a privilegiar o G20. Para mim, tornou-se fundamental garantir presença como delegado brasileiro, não só no IMFC, algo que era meio automático, mas sobretudo no G20 e, depois, nos BRICS. Só uma pequena minoria dos diretores executivos, e nenhum na mesma medida que eu, tinha esse papel múltiplo, o que acabava me proporcionando certa vantagem em relação a meus colegas. Isso só era possível porque tinha acesso não só ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, que depositava confiança em mim, mas também ao presidente da República – algo raro entre os diretores do FMI. Essa assimetria, conto en passant, provocava ressentimentos, sobretudo entre os europeus que resistiam ferozmente à reforma do FMI, levando até a situações cômicas. Nas reuniões do comitê administrativo da Diretoria do FMI, havia tentativas recorrentes e até mesquinhas de cortar o meu orçamento de viagem – mas consegui escapar dessas tentativas, com apoio dos outros diretores de países em desenvolvimento e até de alguns desenvolvidos.25
Mesquinharias à parte, o que os europeus realmente fizeram, principalmente no período Lagarde, foi manobrar para que as deliberações do IMFC, mais favoráveis aos europeus, prevalecessem sobre as do G20, quando conveniente para eles, o que frequentemente era o caso no que se referia à reforma de quotas e governança do FMI. Praticava-se o “forum shopping”, como ressaltavam repetidamente os brasileiros nas reuniões do G20, no IMFC e na Diretoria do FMI. Os europeus argumentavam, Lagarde à frente, que o G20, diferentemente do IMFC, não fazia parte da estrutura do FMI – argumento que nunca fora usado, diga-se, quando o FMI seguia disciplinadamente as orientações do G7.26 Os grandes países europeus, membros plenos do G20, tinham um pouco mais de dificuldade de fazer esse “forum shopping”, mas se escondiam para esse fim atrás dos europeus menores, que não eram membros do G20 e resistiam naturalmente a aceitar as suas deliberações.
Grau de autonomia dos diretores executivos Os governadores do FMI e membros do IMFC, quase sempre ministros de Finanças ou presidentes de Banco Central, embora tenham dificuldades naturais de atuar coletivamente e de influir à distância sobre o trabalho do FMI, sempre têm ascendência sobre seus diretores executivos. Afinal, a indicação para o cargo advém, em geral, do governador. No meu caso, por exemplo, o convite partiu do ministro Mantega, ainda que tenha sido referendado pelo presidente Lula. É verdade que os diretores têm mandato fixo, o que lhes confere em tese alguma autonomia em relação às capitais. Mas essa autonomia é sempre relativa; os mandatos são curtos, de apenas dois anos, e pode acontecer de o diretor ser, na prática, forçado ou induzido a deixar o cargo no meio do mandato, por pressão da capital, como acabaria acontecendo comigo, em 2015. Assim, os diretores sempre procuram manter-se sintonizados com as suas autoridades nacionais. O grau de autonomia de cada diretor é sempre função de circunstâncias particulares. Os países desenvolvidos exercem um controle mais rigoroso sobre seus diretores. No caso dos emergentes, a relação é, em geral, mais “frouxa”, em grande parte por causa de estruturas menos organizadas nas capitais. Quando fui indicado para o FMI, procurei o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, que havia sido diretor executivo pelo Brasil no Banco Mundial e no BID e, enquanto ministro da Fazenda, governador do Brasil no FMI e no Banco Mundial, para ouvi-lo sobre o trabalho nos organismos multilaterais em Washington. Não me esqueci de um comentário irônico que ouvi dele a respeito da relação do diretor
com a capital: “O problema de pedir instruções é que, às vezes, elas vêm!” Antes da minha chegada a Washington, a tradição da cadeira brasileira já era agir de forma relativamente autônoma, sem pedir com frequência instruções à capital e evitando, em especial, buscar as opiniões das assessorias do Ministério da Fazenda ou escalões técnicos do Banco Central. Manteria essa tradição. O grau de autonomia também depende da personalidade do diretor e do seu peso político no país de origem. Os diretores de países desenvolvidos, em alguns casos, competentes e até muito competentes, eram em geral funcionários de escalão médio a alto nos ministérios de Finanças ou bancos centrais. No caso dos países em desenvolvimento, era maior a propensão a selecionar diretores de peso intelectual ou político. Este era o caso, historicamente, do Brasil, da Rússia e da Índia, por exemplo, ainda que fossem raros aqueles de perfil mais acadêmico, como eu. Esses detalhes têm mais importância prática do que pode parecer à primeira vista. Os diretores dos países desenvolvidos e de alguns outros – a China, por exemplo – se reportavam, por tradição, ao segundo ou terceiro escalão dos ministérios e bancos centrais. Embora esses funcionários das capitais não tivessem papel formal na governança do Fundo nem necessariamente grande importância nos seus governos, presumia-se que eles estivessem atuando sob instruções do governador ou do governador alterno (o que nem sempre era inteira ou mesmo parcialmente verdadeiro). Funcionários brasileiros tomavam conhecimento desse padrão de relacionamento em outros países e se animavam, não raro, a tentar reproduzi-lo. Desde o início, eu adotei como regra não aceitar como instrução algo que não viesse diretamente do ministro da Fazenda, governador do Brasil no Fundo, ou que eu não pudesse confirmar com ele. Isso me foi de grande valia, mas não deixava de causar insatisfação aos secretários de assuntos internacionais da Fazenda que, por vaidade ou disputa de espaço, procuravam se imiscuir nos assuntos que eram de competência do diretor executivo. Tive dificuldades desse tipo com três dos quatro secretários de assuntos internacionais que passaram pelo cargo entre 2007 e 2015, principalmente com o primeiro deles, que acabaria derrubado do cargo por conflito comigo, como contarei mais adiante. Quando o diretor executivo atua de maneira a incomodar a Administração do FMI, não são nada incomuns tentativas de contorná-lo. Isso é feito de duas formas. A mais perigosa para o diretor executivo é quando o diretor-gerente ou outro integrante da Administração tem acesso direto ao governador e resolve fazer queixas ou reparos ao seu comportamento, tentando verificar se ele está realmente em sintonia com a sua capital. Christine Lagarde era especialmente
propensa a esse tipo de intervenção, mas raramente teve sucesso no meu caso. Um dos assessores de Guido Mantega me contou que, em certa ocasião, presenciou um desses telefonemas queixosos da diretora-gerente. Mantega ouviu tudo com paciência e diplomacia e, ao desligar, comentou: “Era a Lagarde, de novo, reclamando do Paulo – sinal de que ele está fazendo um bom trabalho.” O outro caminho é explorar a vaidade – e o menor conhecimento dos assuntos do FMI – de “autoridades”27 do segundo ou terceiro escalão dos ministérios, pedindo ou induzindo a sua intervenção em assuntos controvertidos em sentido contrário ao defendido pelo diretor. Isso às vezes ameaçava dar certo no caso do Brasil, e causava algum estresse para mim. Mas acabava conseguindo prevalecer nessas situações, lembrando, dentro do Fundo, que a autoridade formal era do diretor, e me valendo, em Brasília, do acesso que tinha ao ministro Mantega. Embora nem sempre concordasse comigo, na maior parte das vezes o ministro aceitava as minhas sugestões. Do meu lado, eu procurava, é claro, sempre implementar e detalhar as suas iniciativas e propostas que eram, felizmente, quase sempre úteis ou importantes. O ministro da Fazenda tem sempre, volto a dizer, um portfólio pesado de atribuições. Mas Mantega tinha gosto pelos assuntos do FMI e da economia internacional e, com a crise de 2008, esses temas ganharam preeminência natural. Várias das atividades que desenvolvi remontavam, assim, a diálogos regulares que mantinha com o ministro. Com o presidente Lula mantinha também contato frequente, embora ele evitasse descer a detalhes e interferir diretamente em questões do FMI.28 Nesse particular, a presidente Dilma, a quem tinha pouco acesso, era totalmente diferente – e isso teve consequências positivas e negativas, como veremos.
3. Principais funções do FMI São três as principais funções ou atividades-fim do FMI, em ordem crescente de importância: 1) assistência técnica e treinamento; 2) surveillance (monitoramento); e 3) empréstimos. As atividades de assistência técnica e treinamento de funcionários governamentais ocorrem nas áreas de expertise do Fundo: macroeconomia, finanças públicas, políticas monetária e cambial, organização institucional etc. Embora recebam pouca atenção externa, e mesmo interna, essas atividades são valorizadas, de modo geral, por países menores ou menos desenvolvidos, como pude testemunhar nas interações com países da nossa cadeira. As autoridades
desses países dão mais valor à assistência técnica e aos programas de treinamento proporcionados pelo FMI do que às atividades de surveillance bilateral, mais conhecidas e de mais repercussão. A surveillance do FMI tem duas dimensões: a bilateral e a multilateral. A primeira, às vezes confundida pela opinião pública em alguns países com os programas de empréstimo, resulta da obrigação que têm os países-membros de realizar consultas anuais ao abrigo do chamado Artigo IV do Convênio Constitutivo. Embora essa obrigação tenha gerado tensões, às vezes rumorosas, com certos países-membros, ela pode tomar um caráter relativamente rotineiro. Na prática, isso tem significado receber a visita de missões do staff uma vez por ano; a missão depois prepara um relatório sobre a economia do país que é então discutido em reunião formal da Diretoria.29 Uma questão espinhosa é a publicação do relatório, que depende de autorização do país-membro. Não existe a obrigação de publicar, mas, ao longo do tempo, tem havido pressão moral e política, em nome da transparência, para que os países permitam a divulgação, e a grande maioria concorda. O Brasil relutava, desde os tempos de Alexandre Kafka, a autorizar a publicação dos relatórios. Eu mesmo era contrário à ideia. A questão de fundo é que a publicação confere às atividades de surveillance bilateral algum poder efetivo de pressão sobre o país, que é tanto maior quanto maior for a atenção da mídia nacional aos relatórios do staff. O ministro Mantega, depois de alguns anos, acabou se rendendo a peer pressure (pressão dos pares) no G20, onde era lembrado, repetidamente, de que o Brasil era um dos poucos membros, com a Arábia Saudita, a não permitir a publicação dos relatórios do Artigo IV. Alguns governos mais propensos à confrontação impediram por completo a realização da surveillance bilateral do Artigo IV. Por exemplo, a Argentina (no período dos Kirchners), a Venezuela (desde os tempos de Hugo Chávez) e, na cadeira brasileira, o Equador (durante grande parte do governo Rafael Correa). Não foi assim com outros governos “bolivarianos”, Bolívia e Nicarágua, que mantiveram sem interrupções as consultas do Artigo IV.30 No caso do Equador, conseguimos, depois de algum tempo, convencer o governo a retomar as consultas, inicialmente sem visitas do staff ao país. O outro ramo da surveillance do FMI é a chamada surveillance multilateral, atividade do staff que resulta na produção de relatórios semestrais sobre economia mundial, estabilidade financeira e finanças públicas, que são discutidos na Diretoria e, posteriormente, publicados.31 Esses relatórios são, em geral, úteis e trazem muita informação e análise sobre temas macroeconômicos.
Deve-se destacar o papel do departamento de pesquisa, que costuma ser chefiado por economistas de renome e que alimenta, com diversos tipos de trabalho de economia aplicada, não só as atividades de surveillance, mas também as de empréstimo e de assistência técnica e treinamento. Há, por certo, viés doutrinário e político nesses documentos de surveillance bilateral e multilateral. O FMI é um dos templos da ortodoxia econômica mundial. Mas aqui cabe uma distinção, que costumava fazer o economista cubano-americano Carlos Diaz-Alejandro, e que verifiquei ser realmente relevante na minha passagem pelo FMI. Uma coisa, dizia ele, é a ortodoxia teórica das universidades americanas, geralmente mais propensas ao purismo e a prioris doutrinários; outra é a ortodoxia prática do FMI, mitigada pelo confronto da instituição com as realidades políticas e sociais e as restrições práticas à aplicação das doutrinas econômicas a situações concretas. Isso sempre foi verdade, em alguma medida, mas se acentuou com a crise de 2008 que, diferentemente de crises anteriores, teve sua origem e palco principal em vários dos principais países desenvolvidos, os Estados Unidos à frente. Essa crise foi um constrangimento para o FMI, pois ficou evidente que as suas atividades de surveillance, tanto bilaterais quanto multilaterais, haviam falhado, não raro grosseiramente, em perceber a crise monumental que se avizinhava.32 Basta consultar, por exemplo, os relatórios do Artigo IV do período, digamos, de 2005 a 2007, de alguns países europeus fortemente atingidos pela crise – Islândia, Grécia, Irlanda, Portugal ou Espanha – que estão disponíveis na página do FMI. Mais graves foram as omissões nos relatórios do mesmo período sobre os Estados Unidos e os principais países europeus, em cujos sistemas financeiros se haviam formado problemas de extrema gravidade e grande potencial destrutivo. Os relatórios multilaterais dos anos anteriores à crise padeciam dos mesmos problemas. Havia uma ênfase, que se revelaria equivocada, nos desequilíbrios de balanço de pagamentos em conta corrente entre as principais economias (os chamados international imbalances) e uma cegueira para a dimensão especificamente financeira das questões macroeconômicas. De maneira geral, os integrantes do staff tinham, também, respeito ou mesmo temor reverencial pelos principais acionistas da instituição e, se percebessem algo do que se aproximava, dificilmente se aventurariam ou seriam autorizados a expressar preocupações em documentos oficiais. O que salvava um pouco o FMI era o fato de que ele estava muito longe de ser o único a não ter antecipado a natureza e a dimensão da crise. Poucos o fizeram. Entre as exceções estiveram os economistas Nouriel Roubini, que era injustamente considerado catastrofista e irresponsável, e Raghuram Rajan, que
seria depois presidente do Banco Central da Índia e participaria da articulação entre os BRICS. Porém, não cabe, de forma alguma, desprezar o trabalho de surveillance e pesquisa do FMI, inclusive porque esse trabalho cresceu muito em importância com a crise de 2008. A crise encontrou o Fundo sob comando de um diretorgerente, Dominique Strauss-Kahn, excepcionalmente inteligente e propenso à inovação. Como mencionei, DSK trouxe Olivier Blanchard para chefiar o departamento de pesquisa, inaugurando uma fase especialmente rica do trabalho de surveillance e pesquisa do FMI. Com cautela, mas persistência, Blanchard se animava a questionar vários pilares da ortodoxia, entre eles os efeitos da austeridade fiscal, certas características dos regimes de metas para a inflação e a ojeriza aos controles de capital.33 Isso ajudava o trabalho de certas cadeiras na Diretoria e no IMFC, como a brasileira, que também procuravam questionar a ortodoxia econômica. Não foi fácil, havia oposição, em especial da Alemanha, muito apegada à ortodoxia. Mas houve nítida melhora da qualidade e originalidade do trabalho. Após a saída tumultuada de DSK, e a sua substituição por Christine Lagarde, que sequer é economista e, mais importante do que isso, se mostrou mais propensa ao conservadorismo e ao pensamento convencional, essa tendência positiva refluiu no FMI. Blanchard acabaria deixando o Fundo, em 2015. Mais importante que os fatores pessoais, foi o refluir da crise nos Estados Unidos e Europa, de 2012 em diante, o que levou a certa restauração da fé na ortodoxia. Mas essa restauração foi apenas parcial, e os trabalhos do FMI continuam até hoje marcados, positivamente, pelas lições da crise. Observo, de passagem, que a instituição se tornou muito menos ortodoxa do que o que passa por sabedoria econômica em países como o Brasil.
FMI como emprestador e interventor A atividade realmente central do FMI, aquela que lhe confere a importância que tem, é a de emprestar a países com problemas de balanço de pagamentos, efetivos ou potenciais. Foi para exercer essa função que a instituição foi criada. Só quando ela é exercida é que o Fundo tem poder real de intervir nas políticas econômicas nacionais. E o FMI só atua, efetivamente, como instituição central do sistema internacional, quando é grande o número de países que recorrem a seus empréstimos. Até 2007, houve um longo período de tranquilidade, conhecido entre economistas do mainstream como The Great Moderation – designação enganosa, e até ridícula, que ignorava os imensos desequilíbrios que se acumulavam despercebidos nas instituições financeiras privadas nos Estados Unidos e na Europa. Nesse período de paz, ou trégua, o FMI ficou basicamente escanteado, sofrendo de certa crise existencial. Foi o que encontrei quando cheguei a Washington, em abril de 2007. O maior risco era o tédio – tédio contra o qual, como dizia Nietzsche, até os deuses lutam em vão. Esse risco se mostraria totalmente ilusório. Com a crise, aumentou dramaticamente o número de países que precisaram recorrer à instituição. No auge da atividade de empréstimos, chegou a mais de 50 o número de países que recorriam ao Fundo, inclusive desenvolvidos e países emergentes de peso, como Ucrânia, Polônia, Paquistão, México e Colômbia. O FMI passou a movimentar, novamente, grandes somas de recursos, e a luta pelo poder dentro e em torno da instituição se intensificou, tornando o nosso trabalho mais difícil e arriscado, mas também mais interessante e desafiador. É indispensável entender como funciona o FMI nessa área crucial. Nas atividades de surveillance bilateral e multilateral, ainda que a publicação dos relatórios possa ter algum efeito constrangedor, as críticas e recomendações do Fundo podem ser – e geralmente são – ignoradas pelas autoridades nacionais, pelo menos no caso dos países maiores, tanto desenvolvidos como emergentes.34 Mas recorrer a empréstimo do Fundo sujeita o país às chamadas condicionalidades, isto é, à negociação e implementação de um programa macroeconômico abrangente, consagrado nas famosas cartas de intenção, com verificação trimestral ou semestral de metas econômicas específicas, denominadas performance criteria (critérios de desempenho). O não cumprimento dessas metas pode levar à suspensão ou ao adiamento de
desembolsos e, no limite, à interrupção do programa.35 A suspensão de desembolsos do FMI e, em especial, uma interrupção do programa afetam a credibilidade do país nos mercados financeiros e podem provocar, também, a interrupção de outros desembolsos de fontes oficiais ou privadas, que estejam atados à execução do programa com o FMI (por exemplo, desembolsos do Banco Mundial e de outros bancos multilaterais de desenvolvimento, além de desembolsos de instituições financeiras oficiais de outros países).36 Isso multiplica o poder de influência do Fundo sobre os países que caem nos seus braços. As suas exigências podem ser úteis e até indispensáveis, mas nem sempre o são, o que dá margem a conflitos e insatisfação em diferentes países e, internamente, em discussões na Diretoria. Como há um certo estigma em submeter-se ao FMI e abrir mão de autonomia na condução da política econômica, os governos costumam hesitar em recorrer à instituição e só o fazem, geralmente, quando há poucas alternativas. Há exceções a essa regra, com países buscando apoio do FMI em caráter preventivo ou quando as dificuldades estão em fase inicial, mas o padrão mais comum é recorrer à instituição quando a crise já está instalada.37 O FMI converteu-se, assim, em muitos casos, num emprestador internacional de última instância, que exerce o papel que os bancos centrais ou os ministérios de Finanças costumam exercer em nível nacional. Todos esses programas são submetidos à aprovação da Diretoria e sua implementação também volta para a consideração dos diretores. Essas discussões na Diretoria são, ao mesmo tempo, técnicas e políticas. A dimensão política é inevitável. Como dizia Celso Furtado, não há problema macroeconômico que não seja também um problema político. Mas as discussões, como veremos, eram políticas em sentido mais mesquinho, pois a Administração e grande parte da Diretoria não se vexavam em subordinar sua atuação às agendas nacionais dos principais acionistas da instituição. Os adversários e inimigos dos Estados Unidos e da Europa, assim como os países mais independentes, eram tratados duramente e, em geral, nem buscavam ou nem chegavam a iniciar discussões formais para apoio financeiro. Já os amigos e satélites eram tratados com condescendência, o que acabava comprometendo a credibilidade do FMI e arriscando, em certa medida, até sua solidez financeira. No período em que estive lá, houve alguns programas especialmente difíceis de implementar, notadamente o da Grécia, que abordarei mais à frente.
O financiamento do FMI Como o FMI financia suas atividades de emprestador? Esse é um lado menos conhecido do funcionamento da instituição. Para entendê-lo, é preciso reconhecer, primeiramente, que o Fundo é um reserve pooling arrangement (um arranjo de compartilhamento de reservas), a exemplo do que são a Iniciativa de Chiang Mai, criada por países do Leste Asiático, sob liderança do Japão, da China e da Coreia do Sul, e o Arranjo Contingente de Reservas (ACR), estabelecido posteriormente pelos BRICS.38 O FMI é, de longe, o mais importante desses arranjos e tem peculiaridades importantes. Primeiro, é muito maior do que quase todos os demais arranjos de compartilhamento de reservas existentes. Só o Mecanismo Europeu de Estabilidade (European Stability Mechanism – ESM), criado pelos membros da zona do euro após a crise, pode ser comparado ao Fundo em termos de volume de recursos à disposição. Segundo, o FMI é um actual (real ou efetivo) reserve pooling arrangement, isto é, um arranjo em que os países participantes efetivamente depositam suas contribuições, denominadas quotas, e não um arranjo virtual como são Chiang Mai e o ACR.39 Terceiro, o FMI é uma instituição de grande porte que, para além de prover apoio a países-membros com dificuldades de balanço de pagamentos, exerce atividades variadas de surveillance, pesquisa econômica aplicada, assistência técnica e treinamento. Chiang Mai tem um escritório relativamente pequeno, sediado em Singapura, que acompanha as economias dos 13 países-membros e se apoia, em parte, nos relatórios do FMI. O ACR dos BRICS ainda não estabeleceu sua unidade de surveillance, prevista no Tratado que o constituiu.40 Como funciona, em teoria, um arranjo de compartilhamento de reservas? Na essência, é um acordo ou arranjo internacional, mediante o qual países se associam para estabelecer o compromisso de socorrer dentro de certos limites, em caso de dificuldades cambiais, qualquer dos países participantes, obedecidas determinadas regras preestabelecidas. Quando o pool é suficientemente amplo em termos de recursos e participantes, pode-se estabelecer que qualquer país envolvido em uma operação de socorro a outro país-membro tenha, ele mesmo, o direito de invocar problemas próprios de balanço de pagamentos para sair da operação e receber antecipada e imediatamente os recursos emprestados, com sua saída sendo coberta pelos demais credores. Se essa hipótese de saída for crível e bem formulada, pode-se continuar tratando recursos desembolsados
como parte das reservas internacionais dos países emprestadores. Um arranjo de compartilhamento de reservas constitui, assim, um mecanismo de criação de reservas internacionais. Esses arranjos funcionam bem se contam com um número razoável de países fortes e quando os membros estão sujeitos a riscos assimétricos. Ao FMI se aplicam essas considerações gerais, mas com ressalvas importantes. Como o Fundo pretendia, desde o início, ter caráter global ou quase global, o arranjo de compartilhamento de reservas que está no seu cerne reflete, necessariamente, as características do que é conhecido, talvez impropriamente, como “sistema monetário internacional”. Trata-se de um sistema pouco sistemático que foi se formando ao longo do tempo, aos trancos e barrancos. Funciona com base em algumas moedas nacionais, principalmente o dólar, e uma moeda regional – o euro. Não existe moeda internacional; o único arremedo de moeda internacional, o Direito Especial de Saque (DES), criado no âmbito do FMI em 1969, funciona basicamente como unidade de conta para a própria instituição. Os americanos nunca permitiram que o DES se desenvolvesse como moeda, o que ameaçaria potencialmente o papel do dólar. Esse sistema assistemático confere alguns privilégios aos emissores de moedas de liquidez internacional, especialmente do dólar – privilégios exorbitantes, na célebre expressão de Charles de Gaulle. Um deles, nem sempre lembrado, é a possiblidade de participar de arranjos de compartilhamento de reservas sem dificuldade, pela simples emissão (ou compromisso de emitir) moeda nacional ou regional. Os demais participantes de arranjos de compartilhamento participam com reservas adquiridas a certo custo fiscal ou de balanço de pagamentos. No caso do FMI, os participantes entram com quotas. O arranjo é engenhoso e repleto de detalhes importantes que remontam, diga-se de passagem, mais a White do que a Keynes. Para não sobrecarregar os países mais vulneráveis, o que incluía, no início, os europeus devastados pela Segunda Guerra, estabeleceu-se que as quotas poderiam ser integralizadas, em grande parte, nas moedas nacionais dos países-membros, estabelecendo certa simetria entre os emissores de moeda de liquidez internacional e o resto do mundo. Só os países com forte posição de balanço de pagamentos estariam comprometidos a transformar suas quotas em moeda de liquidez internacional, conforme as necessidades do FMI como emprestador. Para tal, o país teria que integrar o que viria a ser conhecido como Plano de Transações Financeiras (Financial Transactions Plan – FTP). O Brasil, por exemplo, até onde sei, nunca fora parte do FTP ou de mecanismos equivalentes anteriores, e só aderiu a ele em 2009,
primeiro passo no caminho que faria do país, inesperadamente, um dos credores da instituição. O ônus de participar do FTP é relativamente pequeno, pois ao ter suas quotas eventualmente mobilizadas pelo FMI, um país não perde reservas, apenas registra uma mudança na sua composição, com eventual perda modesta em termos de remuneração média das reservas.41 Forma-se uma rede de segurança, que permite a um país credor obter de volta, sem empecilhos, liquidez internacional em caso de dificuldades próprias. Essa é, por assim dizer, a mágica de arranjos de compartilhamento de reservas amplos, com grande número de participantes. E quanto maior o número de membros e mais espalhados geograficamente, maior tende a ser o número de países com balanços de pagamentos fortes e menor a chance de que os membros estejam sujeitos a riscos simétricos. As quotas servem, na verdade, a três propósitos. O primeiro é, como explicado, o de constituir o capital próprio do Fundo e financiar suas atividades de emprestador. O segundo é servir de referência ao cálculo do acesso de cada país-membro aos empréstimos do FMI. O “acesso normal” de um país aos recursos do Fundo, determinado por regras mutáveis, é um múltiplo da quota. Mas são comuns os casos de “acesso excepcional” em que os tetos normais são ultrapassados por larga margem. Há regras, aprovadas pela Diretoria, para fornecer acesso excepcional, mas ocorrem também situações estranhas em que as regras não são propriamente respeitadas ou são modificadas de forma improvisada. Esse seria o caso da Grécia, por exemplo, em circunstâncias que, como explicarei, levaram a considerável abalo na credibilidade do FMI. O terceiro propósito das quotas é servir de principal determinante do poder de voto dos países-membros.42 Pelas explicações dadas anteriormente, não é difícil perceber que a demanda por quotas é superior à oferta. Uma quota maior favorece o acesso a recursos do FMI e aumenta o poder de voto do país. É verdade que o aumento da quota implica aumento da obrigação potencial de financiar o Fundo, se o país for membro do FTP, mas isso envolve, como mencionado, apenas mudança potencial na composição das reservas e tem, na pior das hipóteses, um custo modesto de oportunidade. Os países que dominam a instituição não encontram, entretanto, muita motivação para aumentar as quotas – a menos que, ponto crucial, as quotas relativas (quota shares) sejam preservadas. A cada rodada de aumento das quotas, os países emergentes e subrepresentados vislumbram a oportunidade de modificar o seu status na instituição. Uma discussão sempre difícil é a determinação da forma de calcular as quotas relativas e, portanto, o poder de voto de cada país. Para os países dominantes, a solução tem sido postergar o aumento dos
recursos em tempos de “paz” e, em tempos de “guerra”, recorrer em larga medida a arranjos paralelos em que os países são chamados a emprestar reservas ao Fundo, sem adquirir quotas. Voltariam a recorrer a esse expediente, em escala sem precedentes, para enfrentar os efeitos da crise de 2008. Isso era o ideal para eles; fortalecia-se a instituição sem obrigá-los, de imediato, a abrir mão de um centímetro de poder de voto. O Brasil e outros emergentes com reservas elevadas foram chamados a participar como credores, e acederam. Repare, leitor, que tecnicamente o que se faz é constituir arranjos de compartilhamento de reservas paralelos, adicionados ao sistema de quotas. A participação dos países pode-se dar de duas formas: a) bilateralmente, com o país abrindo linhas de crédito ou adquirindo títulos emitidos pelo FMI; ou b) em esquemas plurilaterais, como o New Arrangements to Borrow – NAB (Novos Arranjos para Emprestar), que existia desde 1998 e foi consideravelmente ampliado e reformulado depois da crise de 2008. Em ambas as formas, os participantes comprometem-se a emprestar até um certo limite e os recursos eventualmente desembolsados têm liquidez garantida, continuando a fazer parte das reservas do país emprestador.
Dilma Rousseff preferia quotas Voltarei a tratar da formação dessas linhas de crédito, marcadas por controvérsias e tensões, mas menciono, desde logo, que a decisão do presidente Lula de participar dos empréstimos ao Fundo foi tomada contra a minha opinião, como conto em outro texto deste livro.43 Em retrospecto, reconheço que o presidente estava certo, e eu errado, pelos motivos (essencialmente políticos) que expliquei neste outro texto.44 Mas, no período da presidente Dilma, o tema voltou à baila, com a Administração da instituição e os europeus insistindo em outra rodada de tomada de empréstimos. Com a crise do euro, de 2011 em diante, e certa recuperação dos Estados Unidos, o centro de gravidade da crise do Atlântico Norte migrara para a Europa. Tendo superado as hesitações e os preconceitos iniciais em relação a que países da área do euro recorressem ao FMI, os europeus mostravam-se agora ansiosos em reforçar os recursos à disposição da instituição. Naquela altura, eu já estava mais acostumado psicologicamente à condição de credor do Fundo e, confesso, ao prestígio que essa condição automaticamente proporcionava ao diretor brasileiro. O ministro Mantega, que continuara no cargo no governo Dilma, também estava muito propenso a participar e até a exercer uma certa liderança no tema no G20 e no IMFC – em parte por motivos de prestígio nacional, em parte por preocupações quanto aos spillovers (os efeitos de contágio) da crise do euro, em especial seu impacto sobre as economias emergentes, como a brasileira. Nesse meio tempo, havia ocorrido grande renovação na Administração e na Diretoria e eu, como integrante da “velha guarda”, que participara da primeira rodada de empréstimos ao FMI em 2009, acabei contribuindo consideravelmente para a formulação dessa segunda rodada. Logo verifiquei que estava errando de novo, agora no sentido contrário. Embora o ministro Mantega e eu estivéssemos participando de boa-fé e de forma construtiva na formulação da segunda rodada, os europeus, de forma um tanto cínica, continuaram a sabotar a reforma de quotas do FMI. Interessante, entretanto, foi a atitude da presidente Dilma. Ela é economista, como se sabe, e propensa a entrar a fundo nas questões. Por conta própria, até onde sei, ela chegou à conclusão correta. Eu tinha pouco contato direto com ela, mas soube que, nas reuniões em Brasília, ela bradava, com a sua habitual impaciência: “Eu não quero emprestar, de novo, ao FMI! Eu quero quotas!” Ela não fechava as
portas a entrar em uma segunda rodada, mas mostrava hesitações legítimas. Lula, em contraste, raramente entrava nessas questões. Não sabia, e nem queria saber, das emaranhadas discussões do FMI e não se detinha em questões como emprestar versus comprar quotas. Para esse tipo de questão, ouvia seus auxiliares, especialmente o ministro Mantega, e tomava as grandes decisões com base em suas percepções e intuições políticas.45 Tornou-se moda desancar a ex-presidente Dilma e até questionar sua inteligência. Posso dizer que, nas minhas áreas de competência, a participação dela foi muito mais positiva do que negativa. Sem saber muito bem como pensava a presidente da República, e diante das trapaças dos europeus e da diretora-gerente Christine Lagarde, eu me convertera, ainda que tardiamente, à opinião de que os BRICS, e mesmo o Brasil individualmente, não deveriam participar da segunda rodada, tendo em vista os sintomas de estagnação e até retrocesso da reforma de quotas. Além disso, não havia àquela altura argumento convincente de que os recursos à disposição do FMI fossem insuficientes. Os Estados Unidos, diga-se, tinham opinião semelhante, e haviam sido desde o início contrários à nova rodada. O ministro Mantega, contudo, continuava a simpatizar com a ideia. E os demais BRICS, com algumas ressalvas,46 também estavam abertos à proposta. Em Cannes, à margem da reunião de cúpula do G20, em novembro de 2011, ocorreu um episódio curioso. Conversávamos a presidente Dilma, Mantega e eu. De repente, naquele estilo abrasivo que a caracterizava, ela disse, dirigindo-se ao ministro: “Pare de oferecer dinheiro, Guido!” A referência era à segunda rodada de empréstimos ao FMI. Voltando-se para mim e me pegando vigorosamente pelo braço, reforçou: “Já ofereceram dinheiro para você alguma vez? Já?” Mantega, meio maldosamente, comentou: “Mas como, se ele foi o responsável pela moratória da dívida externa?” Dilma não se deu por achada: “Mas fez a moratória porque não deram dinheiro. Ou não foi?” Confirmei, não porque era a presidente, e uma presidente, como se sabe, intolerante com divergências, mas porque ela estava totalmente certa. Em termos técnicos, o que ocorrera nos anos que antecederam a moratória de 1987 é que cessara o fluxo de dinheiro novo dos bancos comerciais estrangeiros, mesmo em bases involuntárias, para financiar uma parte que fosse da pesada conta de juros da dívida. Em consequência, o Brasil vinha sendo forçado a gerar superávits comerciais exagerados, à custa de recessão, pressão inflacionária e desequilíbrios fiscais. A moratória fora, em última análise, um resultado dessas circunstâncias.47 Mas não quero perder o fio da meada. A participação brasileira nos
empréstimos ao FMI teve outros capítulos, aos quais voltarei oportunamente. Por ora, o fundamental é reter que a instituição tem dois tipos de funding ou fontes de financiamento, com implicações muito diferentes: as quotas – ou capital próprio – e os empréstimos – os borrowing arrangements (bilaterais ou plurilaterais). As quotas alcançam atualmente, depois da entrada em vigor da reforma de 2010, quase US$ 700 bilhões; os borrowing arrangements, mais de US$ 700 bilhões, o que confere ao FMI um poder de fogo extraordinário, provavelmente bem superior ao que seria preciso utilizar mesmo em períodos de crise internacional. Isso dá aos países defensores do status quo o argumento de que um novo aumento de quotas é dispensável. Aos países sub-representados, resta arguir que os borrowing arrangements devem ser convertidos em quotas, algo que, aliás, estava previsto nas negociações realizadas no período da crise internacional, como explicarei mais adiante.
4. O Brasil no FMI Nossa cadeira no FMI raramente era designada como Brazilian chair. A referência era a Mr. Loyo’s chair ou Mr. Nogueira Batista’s chair – e as outras 23 cadeiras da Diretoria também eram quase sempre referidas pelo nome do diretor, e não pelo nome do país de origem do diretor. Prefiro usar a designação imprópria para facilitar a exposição e, também, para não dar ao leitor impressão de personalismo. Mas é importante entender por que a designação considerada mais correta menciona o nome do diretor e não o do país. A principal razão é que esse era um meio, entre diversos outros, de que se valiam os guardiões da estrutura legal do FMI para lembrar a todos que os diretores eram officials of the Fund (funcionários do Fundo), não apenas country representatives (representantes de país ou países). Já mencionei essa dualidade do papel do diretor executivo. A questão é complexa do ponto de vista jurídico, e há extensa literatura especializada a respeito. Não quero entrar em detalhes, mas vale mencionar que existe até mesmo uma interpretação, não aceita por todos os especialistas, de que o papel de official of the Fund, isto é, a responsabilidade fiduciária, deve prevalecer sobre o de representação. Da minha parte, havia certa resistência, sobretudo no início, em aceitar esse lado do papel do diretor. A razão é que eu tinha, não sem motivos, certa antipatia pela instituição, reflexo da relação historicamente tumultuada do Brasil com o Fundo e da minha condição de nacionalista visceral, de quatro costados, por parte de pai e mãe, como mencionei na apresentação deste livro. Entendia
perfeitamente o que dissera DSK quando aceitou o convite do então presidente da França, Nicolas Sarkozy, para assumir o cargo de diretor-gerente do FMI: “Je reste français, je reste socialiste.” Poderia tranquilamente parafraseá-lo e dizer: “Continuo brasileiro, continuo nacionalista.” Mas isso tudo era, por assim dizer, meia verdade. Com o passar do tempo, fui percebendo que a responsabilidade fiduciária pela instituição era realmente parte essencial da nossa função, como haviam me advertido meus antecessores no cargo. Era, por exemplo, argumento poderoso contra diretores europeus e americanos, especialmente os primeiros, que em certas ocasiões se comportavam, desbragadamente, como representantes de seus países de origem, em flagrante contradição com sua responsabilidade fiduciária. Embora disfarçada pelas habituais hipocrisias e por truques de linguagem, essa contradição me parecia, às vezes, muito clara, e eu podia me valer desse argumento para inibir e constranger manobras de adversários na Diretoria. Funcionava, além disso, como certa proteção contra interferências indevidas de Brasília – embora esse problema raramente aparecesse, em razão da minha afinidade com o ministro Mantega, que foi governador do Brasil em quase todo o período em que estive na Diretoria do FMI. A situação mudaria radicalmente com a substituição de Mantega por Levy, em janeiro de 2015, como conto depois. A designação “cadeira brasileira” é imprecisa por outra e mais óbvia razão. A cadeira brasileira, assim como 16 outras da Diretoria, é uma multicountry chair (uma cadeira com múltiplos países). A nossa tinha nove países quando cheguei a Washington; o número aumentaria para 11 com a entrada da Nicarágua, de Cabo Verde e de Timor-Leste e a saída da Colômbia em 2012. Para que todos os países-membros tenham representação na Diretoria, sem ampliá-la para dimensões inviáveis, formam-se constituencies, para usar o linguajar do Fundo, regidas por acordos entre os países que definem o funcionamento da cadeira e, em especial, a distribuição de cargos de diretor, diretor alterno e assessores. Esse também é o caso, por exemplo, da cadeira da Índia e, como já indiquei, das duas da África Subsaariana. Os latino-americanos estão espalhados por três cadeiras: a nossa; uma cadeira sul-americana que inclui Argentina, Peru, Chile e alguns países sul-americanos; e uma cadeira quaselatino-americana, integrada por México, Venezuela, alguns outros latinoamericanos e, também, Espanha. As sete single country chairs (cadeiras de um só país) são as dos Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Japão, China e Arábia Saudita. Os países que detêm single country chairs tendem a valorizar muito essa
condição e consideram-na uma questão de prestígio nacional. Mas logo descobri que isso era tolice. Admitindo-se que o diretor executivo e sua equipe estejam dispostos a trabalhar intensamente – hipótese nem sempre verdadeira, reconheço – representar vários países era um grande trunfo. Não tanto pela questão de poder de voto – os países pequenos, e mesmo os médios, acrescentavam poucos votos às cadeiras – mas pela variedade de experiências que uma constituency proporcionava ao diretor. O diretor de uma constituency tomava contato com uma série de dimensões do trabalho do Fundo a que nunca teria acesso se representasse um só país. Aprendia com as autoridades dos países que representava e também com os integrantes do staff que cuidavam desses países ou dos temas de política institucional relacionados a eles. Podia, assim, adquirir influência no trabalho do FMI em várias áreas. No processo de reforma da governança do FMI depois da crise de 2008, houve um esforço, do qual participei, de convencer os europeus com single country chairs a formar constituencies com outros países para permitir a redução do tamanho da Diretoria ou a diminuição do número de cadeiras comandadas por europeus. Quando falava com ingleses, franceses ou alemães a esse respeito, no G20 e no FMI, a reação era de desagrado e até certa irritação, como se eu estivesse tentando manipulá-los. Não conseguia convencê-los de que era a minha opinião sincera.48 Nesse ponto, estava, de novo, de acordo com os americanos, que há muito preferiam uma Diretoria menor e com menos europeus. Mesmo que não fosse possível reduzir o número de cadeiras, tendo em vista a quantidade de países-membros do FMI, era certamente desejável diminuir o número de diretores e alternos europeus. Por causa das artimanhas dos europeus, pouco conseguiríamos nessa área, como veremos. A cadeira brasileira incluía, quando cheguei, os seguintes oito países, além do Brasil: a Colômbia, país de tamanho médio, e diversos menores: Equador, Guiana e Suriname, na América do Sul; Panamá, na América Central; e República Dominicana, Haiti e Trinidad e Tobago, no Caribe. A constituency era regida por um acordo que havia sido negociado por Murilo Portugal. Havia uma vulnerabilidade do Brasil, nunca divulgada, que só seria resolvida no meu período como diretor executivo. As quotas têm uma outra implicação prática, além das que já expliquei, pouco conhecida fora do FMI: são elas que servem de referência para definir a composição da Diretoria. É com base nas quotas relativas e no poder de voto que delas decorre, que os países podem pleitear cadeiras exclusivas ou a liderança de cadeiras multicountry, além de aspectos menos significativos, mas, ainda assim, importantes para os países e o funcionamento das constituencies, como a indicação de diretores alternos, de
assessores de diferentes níveis e até, em algumas cadeiras, de assistentes administrativos. A quota brasileira, que era pequena, podia dar margem a dúvidas sobre se teríamos condições de manter o comando permanente de uma cadeira na Diretoria. É que no longo período de 32 anos, de 1966 até 1998, em que Alexandre Kafka foi o diretor executivo, a quota relativa e o poder de voto do Brasil sofreram erosão gradual. Com a entrada de novos países no FMI, o nosso peso relativo foi diminuindo mais do que deveria, considerando o tamanho do país e da sua economia. Kafka se tornara o decano da Diretoria e tinha, por sua inteligência e experiência, grande influência na instituição; não dava importância ao tamanho relativo da quota e ao poder de voto do Brasil. Murilo e Loyo tentariam, sem sucesso, corrigir essa vulnerabilidade, que só seria removida com as reformas de 2008 e 2010. Porém, nesse meio tempo, abriu-se um problema. Os nossos acordos de constituency no FMI e no Banco Mundial venciam em 2004.49 Colocou-se então o problema de que o tamanho da quota brasileira no FMI, que caíra para apenas 1,4%, não nos dava a segurança de reter, sem rotação com outros países da cadeira, a posição de diretor executivo. Como o Brasil atribuía, com razão, mais importância a isso do que à nossa posição relativa na Diretoria do Banco Mundial, Murilo acabou aceitando rotação assimétrica na posição de diretor no Banco Mundial em troca da preservação do comando brasileiro contínuo na nossa cadeira no FMI.50 Assim, o quadro que encontrei quando cheguei a Washington era de uma cadeira comandada pelo Brasil, que indicava um brasileiro para a eleição pelos demais países da constituency. Por norma do FMI, a cada dois anos, ocorriam eleições para diretores, ou antes, se um diretor, por alguma razão, renunciava ao cargo ou não conseguia completar o mandato. Para pertencer a uma constituency, bastava que um país, mais precisamente o seu governador no FMI, ou na sua ausência o governador alterno devidamente autorizado, votasse no nome indicado pelo país que comandava a cadeira. Na cadeira comandada pelo Brasil, por acerto interno dos países expresso no acordo de constituency, a Colômbia tinha o direito de indicar o diretor alterno. Os demais países indicavam senior advisors (assessores sêniores) ou advisors (assessores), por períodos determinados, conforme a importância de cada um em termos de quotas relativas. O Brasil tinha também, ponto crucial, uma vaga de assessor sênior. Tudo isso estava previsto no acordo de constituency negociado por Murilo Portugal. Do ponto de vista jurídico, esses acordos eram acertos informais que não poderiam, em nenhuma hipótese, sobrepor-se a ou violar a estrutura legal do FMI. Mesmo assim, eram quase sempre respeitados religiosamente. A
distribuição dos países em cadeiras era notavelmente estável, e raramente ocorriam migrações de uma constituency para a outra. Essa tradição de estabilidade seria rompida pela cadeira brasileira, com a já referida entrada de três países e a saída da Colômbia. Houve, também, na mesma época, mudanças nas cadeiras europeias, por força da reforma de governança e quotas de 2010, que se revelariam, contudo, menos significativas do que pareciam à primeira vista. Os europeus, como eu aprenderia, eram especialistas em window-dressing, operações de fachada e mudanças cosméticas que preservavam, ou até aumentavam um pouco, sua influência na Diretoria.
Deficiência estrutural da cadeira brasileira: o que fiz para superá-la A cadeira brasileira tinha uma deficiência estrutural de funcionamento que consegui corrigir só em parte. A questão era, em resumo, a seguinte. As posições de diretor alterno e as de assessores – essenciais para o bom funcionamento das cadeiras, tendo em vista o tamanho e a complexidade da pauta de assuntos perante a Diretoria – eram preenchidas pelos países sem que o diretor brasileiro tivesse qualquer ingerência sobre as escolhas, embora todas as nomeações (e demissões) fossem sua prerrogativa exclusiva, pelas normas do FMI. Problema semelhante existia em outras cadeiras multicountry, especialmente nas de países emergentes ou em desenvolvimento. Desde os tempos de Kafka, a cadeira sofria pela baixa qualidade ou insuficiente dedicação da maioria dos membros não brasileiros da equipe, ainda que houvesse exceções notáveis.51 Os brasileiros eram competentes e dedicados, não só os diretores Kafka, Portugal e Loyo, mas também o assessor sênior, cargo que foi ocupado por pessoas de alta qualificação oriundas do Banco Central: Alexandre Tombini – que viria a ser presidente do Banco Central do Brasil no governo Dilma Rousseff e, depois de mim, diretor executivo pelo Brasil no FMI – e um economista pouco conhecido, mas de grande experiência e capacidade de trabalho, Helio Mori, que foi assessor sênior com Kafka, Portugal e Loyo. O diretor e o assessor sênior brasileiros costumavam carregar a cadeira nas costas, ocasionalmente com a ajuda do diretor alterno colombiano, quando este era competente, e de alguns poucos assessores de outros países.52 Apesar dessas limitações, a cadeira brasileira sempre foi forte e respeitada na Diretoria, graças principalmente às qualidades e dedicação dos brasileiros. O comportamento do alterno colombiano e da maioria dos assessores
oriundos dos outros países costumava ser, como me relataram e pude depois perceber, o de agir basicamente como “representantes” de seus países no FMI, embora não tivessem autoridade legal para tal, pois era o diretor, e só ele, que era eleito para representar os países. Mais um exemplo, entretanto, de como a disposição jurídica é uma, e a realidade política, outra. Na prática, era compreensível que o alterno colombiano e os assessores dos demais países da constituency fossem vistos dentro do FMI como representantes de seus países. A nacionalidade sempre pesa. O problema era mais outro: os não brasileiros, em sua maioria, pouco ou nada faziam com alguma eficiência, senão tratar dos assuntos dos seus países – e, em alguns casos mais graves, nem isso era bemfeito. O diretor e o assessor sênior brasileiros viviam, portanto, sobrecarregados, tanto mais que não podiam (ou não queriam) pedir ajuda de Brasília ou outras capitais para desempenhar suas responsabilidades. Helio Mori era especialmente avesso a isso. No fundo, todos seguiam a orientação irônica de Pedro Malan, a que já me referi: o problema de pedir instruções a Brasília era que, às vezes, elas vinham… Pouco após a minha chegada a Washington, ocorreu um incidente que prenunciava problemas maiores que não demorariam a se manifestar na relação com Brasília. O secretário de assuntos internacionais da Fazenda, Luiz Melin, estava encarregado, entre outras tarefas, de acompanhar os assuntos do FMI para auxiliar o ministro Mantega, governador do país na instituição. Como o ministro tem sempre muitas obrigações, os secretários podem adquirir certo peso nos temas do FMI ou do Banco Mundial. Tratava-se de um economista de esquerda, ligado ou filiado ao PT, e com “excelentes posições políticas”, como se costuma dizer. Porém, como observou certa vez Maria da Conceição Tavares, “a ideologia é uma plataforma precária”. A observação dela se aplica não só à pesquisa científica, mas também a atividades políticas e no âmbito do setor público, nacional ou multilateral. “Excelentes posições” são de pouca valia, como o leitor pode bem imaginar, se não são acompanhadas de preparo técnico, capacidade profissional e seriedade no exercício do cargo. O primeiro problema com Melin decorreu de uma tentativa dele de demitir o já mencionado Helio Mori. Brasileiro de origem japonesa, Mori era essencial para o funcionamento da nossa cadeira. Ele tinha não só a memória do trabalho e das tradições da cadeira desde os tempos de Kafka, como era um tremendo “carregador de piano”, dedicado, sério e, além disso, inteligente e criativo. Um ativo indispensável, mas pouco valorizado, pois não tinha aquelas características que brasileiros e outros latinos tanto valorizam e sobrevalorizam: não falava bem, era mal-humorado e muito discreto, até tímido – sem deixar de ser
combativo nas reuniões de Diretoria, quando requerido. Era provavelmente muito conservador em termos políticos e me olhava meio desconfiado quando cheguei a Washington. Mas nunca soube ao certo, nem quis saber, quais eram as suas posições e preferências políticas. Nos mais de dez anos em que trabalhei em organismos internacionais, no FMI e depois no banco que os BRICS criariam, eu adotei, instintivamente, a postura de pouco conversar sobre questões políticas e ideológicas com meus subordinados, inclusive e especialmente com os brasileiros, e sobretudo no início da interação profissional. Eram fundamentais para mim a competência técnica e a capacidade de trabalho. Quando ocorria de um brasileiro, em Washington ou depois em Xangai, tentar me agradar com posições supostamente progressistas, eu logo dava um jeito de encaixar em alguma conversa uma citação a Deng Xiaoping, que liderou a abertura e modernização da China depois do período maoísta e costumava dizer que não lhe importava a cor do gato, desde que caçasse ratos. Havia, por certo, algum risco em valer-se de assessores mais conservadores, mas era um risco que eu estava mais do que disposto a correr em nome da eficiência do trabalho. Nunca tive problemas por causa disso, a não ser na reta final da minha permanência em Xangai, mas aí já em um contexto político brasileiro totalmente alterado pelo golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilma. Volto a 2007. Recebo, certo dia, telefonema do secretário, anunciando que já definira um substituto para Helio Mori: um diplomata de carreira que, segundo ele, muito me ajudaria. Não quis nem saber quem era o tal diplomata. Deixei claro que a nomeação do assessor sênior era minha prerrogativa e que não pretendia substituir Helio Mori. “Mas eu já combinei com o Celso Amorim”, retrucou o secretário, estranhamente, pois ele estava subordinado ao ministro Mantega, e não ao ministro das Relações Exteriores. “Problema seu”, respondi, “não combinou comigo”. “Vou falar com o ministro”, ainda ameaçou Melin, mas o assunto morreu aí mesmo. Mori continuaria na cadeira realizando excelente trabalho até seu afastamento muitos anos depois, por doença grave que levaria a sua morte prematura. Bem mais difícil foi a turbulência provocada pelo comportamento e posterior demissão de um assessor sênior da República Dominicana, Ruddy Santana – ilustrativa da deficiência estrutural de funcionamento da cadeira brasileira a que me referi anteriormente. O meu antecessor, Eduardo Loyo, economista muito capaz, mas tipo bonachão, não queria se amolar com o que lhe parecia secundário. O dominicano se acostumou a trabalhar solto, sem dar satisfações ao diretor brasileiro e se comportando, até mesmo, de forma irregular no uso dos recursos da cadeira em viagens e outras atividades, como me avisou o
próprio Loyo quando fez a passagem de serviço. Vaidoso e agressivo, valia-se de relações da sua família com o presidente da República Dominicana, Leonel Fernández – aliás, um dos mais brilhantes líderes políticos que conheci – para comportar-se de maneira arrojada, maltratando integrantes do staff do FMI e ignorando ou evitando, às vezes, até mesmo as orientações do presidente do Banco Central da República Dominicana, governador do país na instituição. Era uma dor de cabeça, grave sobretudo porque o país tinha, naquela altura, um programa com o Fundo, de execução um pouco tumultuada. O assessor dominicano dificultava tudo com seu comportamento estabanado. Além disso, a falta de autoridade do diretor brasileiro sobre ele era um mau exemplo para os demais integrantes da equipe, exceto Helio Mori, que não precisava de exemplo nenhum. Comecei a me informar sobre a situação da República Dominicana, conversando não só com o próprio assessor dominicano, mas com o staff do FMI e com o presidente do banco central do país, Héctor Valdez, a vice-presidente do banco, Clarissa de la Rocha, e outros integrantes do órgão. Depois de muitas situações desagradáveis, a gota-d’água foi quando o assessor dominicano me interpelou, inclusive por escrito, dizendo que era inadmissível que eu tratasse diretamente com as autoridades dominicanas, sem passar por ele. Resolvi demiti-lo sumariamente, sem consultar ninguém. Expliquei depois o ocorrido cuidadosamente às autoridades do Banco Central dominicano, que receberam com satisfação, como eu previa, mas sem grande certeza, a notícia do afastamento da figura problemática. Os membros do staff do FMI que lidavam com a República Dominicana também respiraram aliviados. Soube que o presidente Leonel Fernández ficara descontente com a demissão, em razão dos mencionados laços familiares, mas acabou se conformando, graças à atuação do experiente presidente do Banco Central. Fiz questão de logo fazer visitas à República Dominicana e estive em duas ocasiões com o presidente Fernández, sem levantar, claro, a questão da demissão do assessor. Durante os meus mais de oito anos no FMI, as minhas relações com a República Dominicana sempre foram muito boas; era um dos países que eu pretendia trazer para o banco de desenvolvimento criado pelos BRICS, e os dominicanos receberam bem as primeiras sondagens. Depois desse incidente, estabeleceu-se a tradição de só enviar funcionários do Banco Central para ocupar a posição de assessor que cabia à República Dominicana na cadeira, o que melhorou a qualidade do trabalho. O primeiro substituto, Julio Estrella, era uma pessoa alegre e dedicada e, para consternação de todos, morreria subitamente anos depois, de ataque cardíaco, no exercício do cargo. Menciono isso porque nas perseguições que sofreria no FMI, e que relatarei depois, fui vítima da
calúnia de que o meu nível de exigência era tal que acabava levando meus funcionários à morte ou, como no caso de Mori, a doenças incapacitantes. Isso me deixava indignado, pois minhas relações com Estrella eram tranquilas, e Mori, apesar de divergências ocasionais e naturais, só me dava alegria, com a qualidade e variedade de suas contribuições. A demissão do dominicano funcionou, acredito, como uma sacudida geral na equipe da cadeira, que se deu conta de que o jogo começara a mudar. Eduardo Loyo era mais preparado do que eu para diversos temas da agenda do FMI, tinha conquistado prestígio na instituição, e não era nada fácil substituí-lo. Mas a disciplina interna da cadeira deixava a desejar. Aos poucos, fui motivando e pressionando a equipe para trabalhar mais e com mais seriedade e fui, em parte, bem-sucedido. Procurava, também, sensibilizar as autoridades dos países sobre a importância de enviar pessoas preparadas para a nossa cadeira, sem romper com a tradição, longamente estabelecida, de aceitar sem questionamento as indicações que vinham dos nossos países. Mas não teria o menor sucesso com a Colômbia e a minha alterna colombiana, María Inés Agudelo, que era arrogante, não pretendia trabalhar e nem se interessava pela substância das nossas atribuições. Era um problema tê-la como vice. Decidiria afastá-la, alguns anos mais tarde, depois de muitas atribulações, e enfrentaria dificuldades ainda maiores do que as que resultaram da demissão do dominicano. Embora a colombiana fosse incompetente e despreparada para o cargo e estivesse em Washington basicamente a passeio, não deixava de tumultuar nosso trabalho, por vaidade ou outros motivos. Depois de muito hesitar, acabei decidindo correr o risco de demiti-la. Infelizmente, a turbulência decorrente dessa decisão foi das mais graves que enfrentaria no FMI. A repercussão seria enorme, causando grande desgaste para mim. Tratarei dessa crise posteriormente, pois ela só ganhou a dimensão e os desdobramentos que teve por causa dos conflitos relacionados à reforma do FMI, tema que precisa ser abordado antes. No momento, o importante é reter que o progresso que se poderia fazer na superação da deficiência estrutural da cadeira brasileira era necessariamente limitado. Todos os países da cadeira eram emergentes ou em desenvolvimento, vários deles pequenos, com limitações naturais quanto à qualidade e quantidade dos seus quadros técnicos. Os resultados que eu conseguiria alcançar motivando e pressionando a equipe multinacional tinham limites relativamente estreitos. E ponto importante: para o diretor brasileiro, mesmo disposto a correr certos riscos, não era politicamente possível seguir repetidamente o caminho adotado com o assessor dominicano e, depois, com a alterna colombiana. O que eu fiz já era considerado excessivo. Principalmente a decisão incomum, provavelmente
sem precedentes na história da Diretoria do FMI, de demitir a diretora alterna de outro país – e um país de certa importância como a Colômbia. Eu entendia que estávamos ali para inovar, e não para seguir cegamente precedentes e práticas estabelecidas, mas não podia abusar da sorte nem superestimar o meu poder. Acabei contornando e resolvendo parcialmente o problema estrutural da nossa cadeira graças em grande medida ao apoio do governo, apoio que tive durante quase toda a minha passagem pelo FMI. Funcionários do governo brasileiro vieram trabalhar, em tempo integral, como secondees na nossa cadeira, cedidos temporariamente com ônus para os órgãos de origem. Com o auxílio do Banco Central, pude selecionar e trazer para a cadeira, um e, em alguns momentos, dois economistas do banco para trabalhar conosco em Washington. Esses economistas, de modo geral, deram contribuição importante para a cadeira brasileira, entre eles notadamente Pedro Fachada, que seria depois assessor sênior e diretor alterno, Luiz Mansur e Fábio Najjarian Batista. Este último depois me acompanharia na mudança para Xangai, realizando também trabalho notável no banco que os BRICS criariam. Aprendi, no FMI, a valorizar os funcionários de carreira do Banco Central do Brasil e, também, dos bancos centrais de outros países, dentro e fora da nossa cadeira. São geralmente bem preparados e, pela formação e experiência, se adaptam melhor do que profissionais de outras origens ao trabalho do FMI. Outro aspecto fundamental foi o apoio do Itamaraty. Uma inovação no meu período como diretor foi a participação primeiro de um, depois dois diplomatas de carreira como secondees na cadeira brasileira. Há uma dimensão diplomática na atuação do diretor do FMI que torna potencialmente muito útil a presença desses profissionais. Entre os diplomatas que por lá passaram destacaram-se Eduardo Saboia e Felipe Santarosa. Evidentemente, há incompetência e preguiça em todos os cantos e alguns dos secondees do Banco Central e do Itamaraty não deram certo na cadeira; mas sobre esses eu tinha mais controle na admissão e demissão, e devolvê-los ao órgão de origem não criava traumas e tensões diplomáticas com outros países. Tudo isso só foi possível porque eu era, por uma combinação de circunstâncias especiais, um diretor executivo sui generis. Desfrutava da confiança do ministro Mantega, que havia me convidado para o cargo e seria, por muito tempo, até dezembro de 2014, ministro da Fazenda do governo brasileiro; tínhamos afinidade de pensamento econômico e essencialmente as mesmas opiniões sobre o posicionamento internacional do país. Contava, além disso, com acesso ao presidente da República, no período Lula, a quem visitava algumas vezes por ano em Brasília – e isso era sabido por todos dentro do
governo. Com sua substituição por Dilma Rousseff perdi, infelizmente, esse acesso – talvez um blessing in disguise (uma bênção disfarçada), tendo em vista o temperamento da presidente –, mas tinha, de qualquer modo, afinidade natural de pontos de vista com ela nas questões econômicas internacionais das áreas em que atuava (FMI, G20 e BRICS), tanto que muitos dentro do governo imaginavam, equivocadamente, que eu exercia influência direta sobre ela. Aliás, sem jamais mentir e ostentar acesso que não tinha, eu me valia às vezes desse equívoco para vencer certas barreiras dentro do governo brasileiro. As minhas relações com Henrique Meirelles, presidente do Banco Central no governo Lula, eram frias e protocolares, mas eu mantinha boa relação com o presidente do Banco Central no governo Dilma, Alexandre Tombini, ainda que marcada por divergências no que diz respeito ao Arranjo Contingente de Reservas (ACR) que os BRICS criariam.53 No comando do Itamaraty, tive a sorte de encontrar embaixadores que se consideravam discípulos do meu pai, diplomata lendário em sua época, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, e que era um dos líderes políticos e intelectuais da ala nacional-desenvolvimentista da casa. Esse era o caso do chanceler Celso Amorim, do seu secretário-geral (designação adotada no Itamaraty para o cargo de vice-ministro) Samuel Pinheiro Guimarães e do chanceler Antonio Patriota, que sucederia a Amorim no governo Dilma. Com todos eles mantinha ótimas relações e podia contar com sua ajuda no reforço da cadeira no FMI. Eram também interlocutores naturais para lidar com alguns dos problemas que enfrentava no Fundo, assim como para concretizar alguns objetivos que eu fixava, em acordo com e seguindo as orientações do ministro da Fazenda. Isso continuou a valer, ainda que em menor medida, com os chanceleres que sucederam a Patriota no governo Dilma. A minha força como diretor no FMI era resultado, assim, de uma confluência muito especial de fatores favoráveis. Não foi apenas o apoio do governo brasileiro que permitiu reforçar a cadeira e superar, em grande medida, suas deficiências de funcionamento. Também contribuíram para tal a saída da Colômbia e a reforma de quotas e voz de 2008. A saída da Colômbia abriu espaço, graças ao apoio do ministro Mantega e depois de um diálogo por vezes difícil com os países da constituency, para que eu preenchesse a vaga de alterno com um nacional argentino, o já mencionado Hector Torres, que havia sido (e seria depois, novamente) diretor da cadeira integrada pela Argentina. A reforma de 2008, por sua vez, emendou o Convênio Constitutivo para permitir a nomeação de um segundo diretor alterno para cadeiras com grande número de países. Inicialmente, só as cadeiras com 19 ou mais países teriam direito a um segundo alterno. Posteriormente, o patamar
foi reduzido para sete países, beneficiando nossa cadeira.54 Preenchi a vaga com outro funcionário de carreira do Banco Central do Brasil, o experiente e competente Ivan de Oliveira Lima. No seu auge, em 2013 e 2014, a cadeira brasileira contava com dois alternos, escolhidos livremente por mim, três secondees brasileiros – dois do Itamaraty e um do Banco Central –, além de alguns assessores atuantes e eficientes de outros países da cadeira.
Crescente influência do Brasil Uma coisa que confirmei na minha passagem pelo FMI: é impressionante o que se consegue fazer com equipes pequenas, desde que integradas por pessoas de qualidade, motivadas e com um propósito comum! Não convém, leitor, necessariamente acreditar quando algum burocrata em posição de chefia, no plano nacional ou internacional, reclama do número insuficiente de funcionários. A cadeira brasileira teve, no máximo, 15 funcionários, incluindo todos – diretor, alternos, assessores, secondees e assistentes administrativos. Mesmo assim, marcávamos presença e tínhamos crescente influência, não digo em todos os temas, pois a pauta do FMI era gigantesca, mas em grande parte daqueles discutidos ou decididos pela Diretoria – inclusive, destacadamente, na defesa do interesse dos nossos países na instituição.55 Éramos temidos, respeitados ou queridos, conforme o caso, pela Administração, os demais diretores e pelo staff. Aqui entra um aspecto institucional importante, também desconhecido fora do Fundo: a variabilidade da duração dos mandatos dos diretores executivos é mais uma circunstância que pode favorecer o diretor brasileiro. Cada cadeira tem seu próprio arranjo, mas a maioria dos diretores tem mandatos de dois, no máximo três anos, período insuficiente para compreender em profundidade o funcionamento da instituição. Na cadeira brasileira, não há qualquer limite à duração do mandato. Se tiver apoio do governo brasileiro e interesse em continuar, como foi meu caso, o diretor pode se reeleger sucessivamente para mandatos de dois anos.56 Assim, com o passar dos anos, acumulei considerável vantagem sobre a grande maioria dos meus colegas de Diretoria. Poucos tinham a experiência que eu adquirira. Quando deixei o cargo, em junho de 2015, eu era o vice-decano da Diretoria, o segundo mais antigo. “Vice dean or dean of all vices”, ironizava meu amigo e colega indiano de Diretoria, Rakesh Mohan, valendo-se do duplo sentido da palavra vice em inglês (vice e vício) para fazer alusão às polêmicas que eu costumava patrocinar. Eu mesmo parodiava o casuísmo costumeiro do FMI, observando que, se algum dia eu viesse a ser o
mais antigo dos diretores, a instituição mudaria a regra para designar o decano: “Afinal, perguntariam, ‘por que deve o Decano necessariamente ser o mais antigo dos Diretores?’”, dizia, arrancando gargalhadas dos aliados e sorrisos amarelos dos adversários. Ironias à parte, existe na conformação da Diretoria do FMI um problema real, que talvez deva ser corrigido, no interesse da qualidade dos trabalhos – o mandato curto demais dos diretores. Murilo Portugal havia publicado em 2005 extenso trabalho sobre a governança do FMI que propunha, entre outras coisas, alongar o mandato dos diretores para seis anos.57 Isso favoreceria o acúmulo de conhecimentos pelos diretores e aumentaria sua independência em relação aos governos – argumentos semelhantes aos que se usam para conceder a autonomia formal ou independência aos bancos centrais, instituindo mandatos fixos e longos para os presidentes e demais diretores. No FMI, essa proposta não tem prosperado. As capitais preferem, compreensivelmente, manter os diretores executivos sob rédea curta.58 E a Administração prefere lidar com uma Diretoria fraca, em que predomine a rotatividade dos diretores. Nas circunstâncias então prevalecentes, o diretor brasileiro levava certa vantagem e a nossa cadeira se fortalecia, ano após ano, tanto em termos absolutos, como relativamente à maioria das demais cadeiras. Sobravam, cada vez mais, tempo, energia e capacidade para defender até países que não faziam parte da nossa cadeira contra injustiças patrocinadas pela Administração ou por interesses dos principais acionistas. Fomos conquistando, aos poucos, a fama de defensores dos pequenos, pobres e oprimidos. A cadeira brasileira se destacava, por exemplo, até na defesa de pequenos países desenvolvidos, relativamente abandonados pelos diretores que deveriam representá-los, tais como Islândia, Chipre e, sobretudo, Grécia. O diretor sueco não se destacava na defesa da Islândia, o italiano não se expunha na defesa da Grécia, nem o holandês na defesa de Chipre. O Brasil tornara-se credor do FMI, mas o diretor brasileiro continuava com coração de devedor, e não esquecia o que o próprio Brasil havia passado nas mãos do FMI e outros credores externos, em outros tempos. Bem sei, leitor, que é discutível se cabia dispender tanto tempo e energia para interferir em temas que não diziam respeito diretamente ao Brasil e aos demais países da nossa cadeira. Mas era o espírito do tempo, por assim dizer. O Brasil, depois de tanto tempo de cabeça baixa, estava em plena ascensão. Nossa popularidade no exterior batia recordes, como se veria na Copa de 2014 e, ainda, na Olimpíada de 2016. Era imenso o prestígio do presidente Lula naqueles anos e Dilma Rousseff, que não tinha o mesmo poder de irradiação, herdou esse capital político internacional. Algum leitor que porventura não simpatize com
Lula ou o PT pode receber essas palavras com desprazer e suspeita. Mas quero frisar que, digo isso com toda a isenção, não por ouvir dizer ou ler na mídia internacional, mas como algo que observei e vivenciei diretamente no contato com autoridades de inúmeros países no FMI, no G20, nos BRICS e em outros foros ao longo desses anos todos. Esse prestígio respingava sobre todos os brasileiros que atuavam no exterior. DSK, por exemplo, era admirador declarado do presidente Lula, o que facilitou minha vida automaticamente no período em que ele presidiu o Fundo. Mas não quero me adiantar no relato. Há um ponto que gostaria agora de retomar, com mais especificidade, e que é provavelmente impossível de perceber sem passar pelo FMI, sem a vivência da instituição: o grande benefício potencial de comandar uma cadeira multicountry. A presença de um grupo variado de países, mesmo pequenos, abre horizontes para o diretor e sua equipe. A presença do Haiti, por exemplo, nos inseria nas discussões relativas a países de baixa renda – os LICs (low income countries), que recebem tratamento diferenciado no FMI. A presença do Panamá, do Equador e, mais tarde, de Timor-Leste nos dava acesso direto à experiência macroeconômica e financeira de economias plenamente dolarizadas. Respondendo a pedidos do ministro de Finanças de Trinidad e Tobago, Winston Dookeran; do presidente da Guiana, Bharrat Jagdeo, e do seu ministro de Finanças, Ashni Singh; e também do presidente do Banco Central de Suriname, Gillmore Hoefdraad, lançamos dentro do FMI a Small States Initiative (Iniciativa dos Estados Pequenos), liderando a coordenação das cadeiras da Diretoria de que faziam parte países pequenos.59 Com a entrada em 2012 de Cabo Verde e Timor-Leste na cadeira, fincamos bandeira na África e na Ásia. Passamos a ser incluídos em todas as atividades do Fundo relativas à África e à Ásia, para desgosto da diretora-gerente Lagarde e de alguns integrantes do staff, que preferiam lidar com cadeiras mais passivas e acomodadas. A presença de Timor-Leste favoreceu a nossa atuação na questão dos países frágeis. Timor, nas pessoas do primeiro-ministro Xanana Gusmão e da ministra de Finanças, Emília Pires, exercia liderança internacional no movimento G7+. Criado em 2010, o grupo reúne países da África, Ásia e outras regiões que se encontram em situação especialmente frágil em razão de conflitos. Outro país da nossa cadeira, o Haiti, também integrava o G7. Resolvemos trazer também essa iniciativa para o FMI, liderando a coordenação de cadeiras que incluíam países do G7+. Não havia, dentro do FMI, grande sensibilidade no trato com esses países. Não era nada fácil sensibilizar a Administração, o staff e outros diretores para os problemas dos países pequenos ou frágeis. Aconteceu até mesmo do diretor
alemão reclamar da formação de um “bloco” das cadeiras dos países pequenos na Diretoria (logo o alemão que era integrante e um dos líderes do único bloco realmente existente no FMI – o europeu) para, em momento seguinte, pedir a entrada no nosso grupo, causando hilaridade. A diretora-gerente, Christine Lagarde, era algo arrogante no trato com esses países menores e vulneráveis. Certa vez, organizei uma visita de um grupo de autoridades de países frágeis a ela, à margem de uma das reuniões semestrais do FMI, em Washington. O grupo de visitantes do G7+ era liderado nessa ocasião por Xanana Gusmão, figura internacionalmente reconhecida, que fora o líder timorense na guerra de independência contra a Indonésia. Por arrogância ou ignorância, sem se dar conta talvez de que estava diante do Nelson Mandela do Sudeste Asiático, Lagarde declarou no início da reunião de que dispunha de apenas 15 minutos… As marcas do passado colonial não são fáceis de apagar. Seja como for, tudo isso aumentava enormemente o raio de atuação da cadeira brasileira. Em certo momento, descobri para minha surpresa que nós estávamos emitindo, para discussão nas reuniões da Diretoria, mais statements ou documentos escritos do que qualquer das outras 23 cadeiras, inclusive a dos Estados Unidos! Isso era uma anomalia, por dois motivos. O primeiro é que os Estados Unidos, muito mais que o Brasil e os demais países da nossa cadeira, têm um escopo de atuação global, correspondente ao status de principal potência mundial. Segundo, o Tesouro e outros departamentos do governo americano enviavam, não raro, mais ou menos prontos os statements que a cadeira americana apresentava. Nós, ao contrário, fazíamos quase tudo in house – seja por falta de recursos nas capitais, seja porque seguíamos em relação a Brasília a já mencionada abordagem do ex-ministro Malan. A cadeira brasileira, lembro-me com orgulho, se transformara em uma máquina poderosa e azeitada, que se manifestava, geralmente com qualidade, discernimento e independência sobre todas as principais questões do FMI e até sobre várias questões secundárias ou terciárias. Tínhamos uma assistente administrativa colombiana, Elsa Gomes, inteligente e irônica, que costumava me advertir com o provérbio: “Quien mucho abarca, poco aprieta”. Havia, sem dúvida, o risco de perda de foco e qualidade. Acredito que conseguíamos superálo, mas, claro, à custa de muito sacrifício pessoal de todos. Nem todos conseguiam acompanhar esse ritmo intenso e ficavam pelo caminho, às vezes, insatisfações e ressentimentos na equipe. Isso seria usado contra mim quando abriram procedimentos administrativos e investigações espúrias para tentar me desestabilizar e derrubar do cargo, como relatarei mais adiante. A nossa cadeira estava, certamente, entre, digamos, as três ou quatro
melhores e mais atuantes da Diretoria. Não diria a melhor, e não por falsa modéstia. O diretor brasileiro, de temperamento arrebatado, propenso à polêmica e à controvérsia, excessivamente combativo, terminava por atrapalhar, em certa medida, o trabalho da cadeira – devo reconhecer. O presidente do Banco Central do Haiti, Charles Castells, de quem me tornara relativamente próximo ao longo dos anos e que, como a maioria dos demais governadores dos nossos países, acompanhava de perto o trabalho da nossa cadeira, comentou certa vez, sem referir-se diretamente a mim, que era importante pick your battles, escolher suas batalhas. Entendi a mensagem, mas continuei exagerando. Ninguém escapa a seu temperamento. A forma de atuar do diretor brasileiro, impetuosa, às vezes até emotiva, embora causasse estranheza no FMI, tinha sua razão de ser. Não eram intervenções gratuitas, mas fundamentadas em conhecimento dos temas em discussão. Além disso, eu sempre me pautara, em alguma medida, pela observação de Hegel de que nada de importante se faz sem paixão. Sem isso era difícil que eu me interessasse pelas questões do FMI e trabalhasse de maneira intensa e produtiva. Por outro lado, reconheço, intervenções apaixonadas, muito enfáticas e polêmicas, nem sempre eram as mais eficazes. Mas, enfim, é difícil julgar. Deixo o leitor com essa ambiguidade e prossigo. O pano de fundo da atuação e influência da cadeira brasileira naqueles anos era a ascensão do Brasil. Apesar de manter contato regular e substantivo com o ministro Mantega, não posso dizer que a atuação da cadeira fosse combinada em detalhes, nem sequer em linhas gerais, com o governo e, muito menos, com o presidente Lula. Mas ela brotava, naturalmente, da ascensão e do prestígio crescente do Brasil no período Lula e, em menor medida, no período Dilma Rousseff. O Brasil se comportava, nessa época, como o grande país que é. E eu, no meu canto no FMI, e depois no G20 e nos BRICS, me orgulhava de fazer parte disso, de ser uma peça dessa engrenagem. Bastava-me o sentimento de ser um soldado brasileiro ou, variando e aumentando um pouco a metáfora, o comandante de um pequeno destacamento multinacional que lutava aguerridamente em uma das trincheiras da guerra pela ascensão do Brasil e de outras nações emergentes no mundo. 1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Hector Torres, Pedro Fachada, Felipe Santarosa e Sergio Xavier Ferreira, sem responsabilizá-los pelas opiniões expressas ou pelos erros e omissões remanescentes. 2 A chefe de missão do FMI, responsável pela tentativa de negociar um novo acordo com o governo Sarney, ainda era a chilena Ana Maria Jul, que, embora fosse funcionária de escalão médio do FMI, ficara célebre no Brasil pelo seu papel nas tumultuadas negociações com o ministro Delfim Netto durante o governo
Figueiredo nos anos iniciais da década de 1980. 3 Sobre Abraham Lincoln, ver neste livro p. 401 e 402. 4 Outras fontes potencialmente importantes são os escritórios ou grupos de avaliação independente dessas instituições. Os trabalhos do Independent Evaluation Office (IEO) do FMI costumam ser interessantes e podem ser encontrados na página da instituição na internet. Também vale a pena consultar os trabalhos do ex-historiador oficial da instituição, James Boughton, especialmente os que publicou a título pessoal. Embora com menos independência, o departamento de pesquisa do FMI também produz working papers ou outras publicações que ajudam, às vezes, a entender como funciona a instituição. 5 Ver p. 418-9. 6 A esmagadora maioria do corpo técnico está em Washington; apenas uma pequena parcela trabalha em escritórios de representação em alguns países, geralmente de maior porte ou que estão executando programas de financiamento e ajustamento com o FMI. Nesse ponto, o Fundo é muito diferente do Banco Mundial, que possui pesada estrutura fora de Washington e grande número de funcionários espalhados pelo mundo. 7 Para alguns aspectos desse debate macroeconômico ver neste livro p. 43-53. 8 Ver neste livro p. 258-9. 9 Com as reformas de 2008 e 2010, a participação dos países desenvolvidos no poder de voto diminuiu de 60% para 55% do total. 10 O processo de coordenação entre os BRICs, inclusive na Diretoria do FMI, começou em 2008, por iniciativa da Rússia. Ver neste livro p. 235-7. 11 Ver neste livro p. 50-3. 12 Na prática, isso significa a disposição dos diretores minoritários de juntar-se a ou acompanhar o consenso (join or go along with the consensus), ainda que possam ter expressado reservas ou discordâncias por escrito e em intervenções verbais. 13 No caso dos suíços, havia um fator estrutural que os diferenciava dos demais europeus: a relativa independência do país, que não pertence à União Europeia. No caso dos diretores belga e austríaco, o que pesava eram as qualidades pessoais, inclusive a longa experiência de FMI e a disposição de atuar com certa autonomia no interesse da instituição. 14 Em uma delas, a cadeira do México e da Venezuela, o comando é compartilhado em regime de rotação com a Espanha, o que reduz para 11, em certos períodos, o número de cadeiras lideradas por países emergentes ou em desenvolvimento. 15 No meu período na Diretoria, Peter Gakuno e Moeketsi Majoro foram exceções notáveis no comando da cadeira africana anglófona, principalmente o primeiro. 16 Pelo acordo que rege a cadeira africana anglófona, há uma rotação simétrica no posto de diretor entre os 23 países-membros; em consequência, um sul-africano ocupa o posto de diretor a cada 46 anos. Para aumentar a sua presença na Diretoria, a África do Sul tem lutado pela criação de uma terceira cadeira africana. Isso foi alcançado no Banco Mundial, onde se criou uma 25a cadeira, integrada por África do Sul, Angola e Nigéria. Pessoalmente, não simpatizava muito com a ideia, apesar da presença da África do Sul nos BRICS a partir de 2011. Não via muita vantagem em ampliar uma Diretoria já grande demais para criar o que arriscaria ser mais uma cadeira relativamente passiva, com tendência a seguir os acionistas majoritários. A minha relutância desagradou os sul-africanos que batiam muito nessa tecla. 17 Constituency é o termo usado no FMI, e também no Banco Mundial, para designar grupos de países que votam em um só diretor executivo e integram assim uma cadeira da Diretoria. 18 A frase-padrão, repetida mecanicamente por diretores ou membros da sua equipe, é: “We agree with the thrust of the staff appraisal.” (“Estamos de acordo com a essência da avaliação do staff.”) Os relatórios do staff submetidos à apreciação da Diretoria contêm, quase sempre, uma seção intitulada staff appraisal, que resume as principais conclusões. Muitas cadeiras, até de países desenvolvidos, se limitavam, por comodismo ou cautela, a parafrasear, às vezes simplesmente repetir, trechos do staff appraisal. Na cadeira
brasileira, isso era terminantemente proibido. Nos nossos pareceres escritos e intervenções verbais, a minha orientação era evitar frases feitas e concordâncias automáticas. Procurávamos estudar os assuntos e fazer contribuições relevantes ao debate, expressando com frequência críticas ao trabalho do staff e às propostas da Administração. Não agradávamos, mas suscitávamos respeito. 19 As reuniões plenárias do Conselho de Governadores ocorrem uma vez por ano, em outubro, mas têm pouca importância. É principalmente uma oportunidade para os governadores de países pequenos (ou seus alternos) discursarem sobre temas da agenda do FMI e da economia internacional. 20 A diferença é que, às vezes, por acertos internos das constituencies, o comando da cadeira no IMFC diverge do comando na Diretoria. 21 Criou-se um comitê semelhante no Banco Mundial, denominado Comitê de Desenvolvimento (Development Committee). 22 Como os ministros de Finanças e presidentes de Bancos Centrais vivem assoberbados por questões quase sempre mais importantes, a atuação no Conselho Ministerial ficaria, preponderantemente, em mãos de funcionários de terceiro ou quarto escalão, como os secretários de assuntos internacionais dos ministérios de Finanças ou diretores da área internacional dos bancos centrais. Eram esses funcionários os que se mostravam, às vezes, mais sensíveis à argumentação da Administração e dos europeus. A nós, diretores, cabia cobrir esse flanco, o que fizemos com sucesso. 23 Ver neste livro p. 36-7. 24 A Holanda e a Espanha tentaram, com apoio dos europeus do G20, se incorporar ao grupo. A Holanda, diga-se de passagem, era o mais conservador dos pequenos europeus. A Espanha conseguiria o status de convidado permanente, mas não chegou a ser aceita como membro pleno. O governo brasileiro, por afinidades socialistas, tendia a apoiar a entrada da Espanha. Marco Aurélio Garcia, prestigiado assessor internacional do presidente Lula, simpatizava com as pretensões espanholas, então governada pelo Partido Socialista. Mas era, no meu entender, um erro de avaliação. A Espanha, no FMI e no G20, não se distinguia em nada da posição conservadora e imobilista dos outros grandes europeus. Cheguei a levar o assunto diretamente ao presidente Lula, que me explicou que o presidente George W. Bush era contrário à entrada de mais europeus. Na primeira reunião de líderes do G20, em Washington, em novembro de 2008, George W. Bush que, como anfitrião, presidia o encontro, ostensivamente evitou conceder a palavra ao presidente do governo espanhol, segundo me relatou Lula. 25 Gastava-se tempo enorme com a discussão de novas regras e procedimentos que pudessem resultar em restrição às viagens de trabalho da cadeira brasileira e de algumas outras. Certa vez, em reunião do comitê administrativo da Diretoria, o diretor suíço, René Weber, comentou ironicamente que lhe parecia um verdadeiro absurdo dedicar horas e horas ao que era, no fundo, uma tentativa de “ground Mr. Nogueira Batista” (de me aterrar ou deixar de castigo). Sendo eu funcionário do FMI, o governo brasileiro não teria condições de arcar com o custo das minhas viagens relacionadas ao G20 e aos BRICS. A minha pretensão, afinal vitoriosa, de custear essas despesas de viagens (minhas e, às vezes, de alguns assessores) com o orçamento da cadeira brasileira se baseava juridicamente na possibilidade que têm os diretores executivos de prestar assistência técnica (inclusive remunerada, o que não era o meu caso) aos países que representam na instituição. 26 Lagarde estava, na realidade, em condições pessoais algo precárias para liderar esse tipo de manobra, pois ela fora ministra de Finanças da França durante a fase inicial da crise, quando diversos compromissos relativos à reforma do FMI foram assumidos no âmbito do G20 – ponto que cheguei a ressaltar em reuniões da Diretoria. Conseguia causar algum constrangimento, mas isso não impedia que a diretora-gerente persistisse nas suas manobras. 27 “Autoridades” é um termo ambíguo, muito usado no FMI, que esconde o fato de que os diretores, a Administração e o staff interagem com ou consultam não necessariamente os ministros de Finanças ou presidentes de banco central, a quem nem sempre têm grande acesso, mas funcionários de escalão intermediário nas capitais, que não possuem papel formal no processo decisório da instituição. 28 Uma exceção importante foi a decisão de emprestar recursos ao FMI, que foi tomada pelo presidente.
Ver neste livro p. 406-7. 29 Vigora, também, a prática de receber visitas intermediárias do staff, as chamadas mid-cycle staff visits, entre uma e outra consulta anual do Artigo IV. 30 A Nicarágua, durante o governo de Daniel Ortega, chegou a executar de forma bem-sucedida um programa de financiamento e ajustamento com o FMI. 31 Os principais são o World Economic Outlook, o Global Financial Stability Report e o Fiscal Monitor. Podem ser interessantes, também, os relatórios econômicos sobre as diferentes regiões do mundo. Todos esses documentos estão disponíveis na página do FMI na internet. 31 Sobre isso, ver Independent Evaluation Office (IEO), IMF Performance in the Run-Up to the Financial and Economic Crisis: IMF Surveillance in 2004-07, agosto de 2011. Disponível em: . 33 Ver neste livro p. 48-9. 34 No caso de países pequenos ou menos desenvolvidos, os relatórios do Artigo IV constituem, não raro, a principal, às vezes a única, fonte de informações abrangentes e relativamente confiáveis sobre a economia do país, e a sua publicação tem repercussão considerável. 35 Essa descrição se aplica às linhas tradicionais de empréstimo do FMI. A verificação de metas pode ser menos frequente, no caso de empréstimos precaucionais (que não envolvem desembolso imediato de recursos). No caso de linhas criadas durante a crise, as condicionalidades são bem mais leves ou até inexistentes, como discutido mais à frente. 36 Com frequência, os pacotes financeiros de apoio a países com problemas graves de balanço de pagamentos estão centrados no FMI, mas contam com apoio paralelo e vinculado de outras fontes multilaterais ou nacionais de financiamento. Isso envolve, em diversos casos, não só recursos oficiais, mas também de origem privada, como ocorreu nos pacotes financeiros montados durante a crise internacional da dívida externa da década de 1980, especialmente para países da América Latina. Ver a respeito, por exemplo, Paulo Nogueira Batista Jr. “Países devedores e bancos comerciais em face da crise financeira internacional”. Estudos Econômicos. Instituto de Pesquisas Econômicas, Universidade de São Paulo. v. 14, n. 3, setembro-dezembro de 1984. A presença do FMI funciona como uma garantia ou segurança para os demais financiadores, permitindo alavancar recursos financeiros de outras fontes. 37 Isso leva a que os programas patrocinados pelo FMI contenham frequentemente medidas duras de ajustamento, mais ou menos inevitáveis nas fases avançadas de uma crise. Como o Fundo sempre frisa em defesa própria, nessas situações ocorre uma transferência de responsabilidade ou culpa para a instituição, agravando sua impopularidade em muitos países. 38 Sobre o ACR ver neste livro p. 238-47. Ver, também, Jonnas Vasconcelos. BRICS: agenda regulatória. 2018. Tese de doutorado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p.148-167. Disponível em: . 38 Nesses arranjos virtuais, as reservas compartilhadas permanecem com os bancos centrais nacionais, que são quase sempre os depositários das reservas internacionais dos países, e só são mobilizadas quando há necessidade efetiva de desembolso. 40 Embora sejam entidades independentes, Chiang Mai e o ACR têm vínculo específico com o FMI, conhecido como IMF-link, estabelecido voluntariamente por seus fundadores. Por não se sentirem suficientemente seguros para emprestar grandes quantias a países em dificuldades, sem garantia de que estes venham a corrigir seus desequilíbrios, os credores potenciais em Chiang Mai e no ACR tiveram a preocupação de definir que a provisão de recursos, para além de certos limites de acesso, tenha como prérequisito um acordo de ajustamento com o FMI. Em outras palavras, esses novos arranjos de compartilhamento de reservas pegam carona na capacidade que tem o FMI de monitorar as economias nacionais e, quando for o caso, impor condicionalidades. Sobre o IMF-link no ACR Ver neste livro p. 2434. Ver, também, Jonnas Vasconcelos, op. cit., p. 161-163. 41 Os participantes do FTP se dispõem a fornecer dólares ou outras moedas de liquidez internacional até o limite da sua quota no FMI, obtendo em troca ativos líquidos emitidos pelo FMI. Pode haver um custo de oportunidade, na medida em que a remuneração oferecida pelo FMI for inferior à que se obtém em
aplicações seguras e líquidas no mercado. Porém, a diminuição na remuneração média das reservas, quando ocorre, não é normalmente significativa. 42 O outro determinante do poder de voto são os chamados votos básicos, distribuídos em montante igual a todos os países-membros para favorecer os menores e menos desenvolvidos. 43 Ver neste livro p. 406-7. 44 O presidente Lula levava as questões com bom humor. Em alusão à minha aversão nacionalista à instituição a que pertencia, ele costumava exclamar quando me encontrava: “Fora daqui, o FMI!” 45 Certa vez, visitei o ex-presidente Lula no Instituto Lula, em São Paulo, e contei a ele a minha surpresa com a capacidade que tinha a presidente Dilma de dominar os temas nas áreas em que eu atuava, chegando a corrigir seus auxiliares em questões muito específicas. Lula escutou, com certo ar cético, e discordou: “Está errado isso; presidente da República não deve entrar em detalhes e substituir-se aos assessores.” 46 Ver neste livro p. 238-9. 47 A questão, evidentemente, é muito mais complexa e controvertida. Procurei destrinchá-la em livro que publiquei na época: Da crise internacional à moratória brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Na entrevista coletiva que concedeu após o fim da cúpula, Dilma Rousseff explicou que o Brasil estava considerando se participaria ou não da segunda rodada, mas só o faria em circunstâncias bem determinadas, e não pelos “belos olhos do Paulo Nogueira Batista”, causando sensação entre os jornalistas brasileiros e estrangeiros que me conheciam. Ao fazer a referência na entrevista, ela confirmava que estava a par do esforço que eu fizera na montagem da segunda rodada, e não o endossava completamente – como ficara claro, aliás, ainda que de modo implícito, no breve diálogo que relatei. 48 Só acreditaram, talvez, quando fiz esforço bem-sucedido para ampliar o número de países na cadeira brasileira, trazendo Nicarágua, Cabo Verde e Timor-Leste. Mas aí passaram a me acusar, à boca pequena, de ter “roubado” países de outras cadeiras, perturbando o status quo da Diretoria. 49 Como a composição das nossas constituencies no FMI e no Banco Mundial são muito semelhantes, os dois acordos costumam ser negociados simultaneamente. 50 Pelo acordo negociado, o Brasil girava com Colômbia e Filipinas na indicação do cargo de diretor executivo no Banco Mundial, com o Brasil ocupando o cargo por oito dos 12 anos do acordo e os outros dois países dividindo os outros quatro anos. Com o crescimento do Brasil dentro do FMI, isso se tornou desnecessário e, em 2016, quando eu já não estava mais no FMI e venceram os acordos de constituency de 2004, o Brasil passou a não mais aceitar a rotação no Banco Mundial. 51 No meu período, sobressaíram-se Ketleen Florestal, do Haiti, Kevin Finch, de Trinidad e Tobago, e Manuel Coronel, da Nicarágua. 52 Os assessores enviados por Trinidad e Tobago, sempre funcionários do Banco Central daquele país, geralmente se destacavam e ajudavam consideravelmente no trabalho da cadeira. Um deles, Jwala Rambarran, que trabalhou com Murilo Portugal como assessor sênior, seria depois presidente do Banco Central de Trinidad e Tobago, e governador alterno do país no FMI durante grande parte do meu período como diretor, muito contribuindo para o nosso trabalho. A cadeira funcionava como celeiro de presidentes do Banco Central, eu costumava dizer em reuniões da constituency, pois em certo momento dois dos presidentes de banco central em exercício, Tombini e Rambarran, haviam ocupado na nossa cadeira o cargo de assessor sênior. 53 Para um breve relato dessas divergências Ver neste livro p. 245. 54 Para as duas cadeiras africanas subsaarianas, o segundo alterno era um cargo adicional, como previsto na reforma de 2008. Para as outras cadeiras com sete países ou mais, permitiu-se que uma posição de assessor sênior fosse convertida em segundo alterno. 55 Eu procurava, além disso, ajudar alguns dos outros países da cadeira nas relações bilaterais com o Brasil – por exemplo, Haiti, Suriname, Panamá e Timor-Leste –, o que reforçava os meus laços com esses países. Também por isso teriam pouca repercussão nos nossos países as tentativas que fariam dentro do FMI para me desestabilizar.
56 Eu seria eleito e reeleito pelo Brasil e demais países da constituency cinco vezes, a primeira para completar o mandato interrompido de Loyo e depois, a cada dois anos, mais quatro vezes, a última em outubro de 2014. 57 Murilo Portugal. “Improving IMF governance and increasing the influence of developing countries in IMF decision-making”. In: Ariel Buira (editor). Reforming the Governance of the IMF and the World Bank, G24 Research Program. Londres: Anhem Press, 2005, p. 79 e 80. 58 Até a reforma de 2010, os diretores dos países com as cinco maiores quotas – Estados Unidos, Japão, Alemanha, França e Reino Unido – sequer tinham mandato e eram, assim, demissíveis ad nutum. Com a entrada em vigor da reforma, todos os 24 diretores passaram a ser eleitos para mandatos de dois anos. 59 A iniciativa, que já existia no Banco Mundial, buscava que o Fundo desse atenção especial aos problemas específicos dos países em desenvolvimento muito pequenos, com até 1,5 milhão de habitantes. Na nossa cadeira, os estados pequenos, por essa linha de corte, são Trinidad e Tobago, Guiana, Suriname, Cabo Verde e Timor-Leste.
A LUTA PELA REFORMA DO FMI1
No período entre 2008 e 2010, surgiram condições propícias para reformar o FMI, a despeito das resistências de países e setores mais apegados ao status quo. O Brasil se destacaria nesse processo, atuando tanto no âmbito do FMI como no G20 e nos BRICS. Este texto relata os principais aspectos das negociações e os resultados alcançados nesses três anos, antes que as mudanças nas condições internacionais interrompessem o processo de atualização e revisão da governança e das práticas da instituição.
1. A reforma de quotas de 2008 – problemas em Brasília e no G20 Quando cheguei a Washington, em abril de 2007, estava em andamento uma reforma de quotas e voz no FMI. A crise que se abateria sobre os sistemas financeiros americanos e europeus emitia os primeiros sinais, mas não se percebia a dimensão da turbulência que se avizinhava. Estávamos operando, portanto, num cenário de tipo convencional em que os desenvolvidos não tinham, na verdade, grande razão para conceder espaço numa instituição considerada fundamental para eles. O impasse dentro do FMI era o que descrevi anteriormente e que persistiria, de alguma forma, às vezes atenuado, ao longo dos meus oito anos na Diretoria – de um lado, a aspiração dos emergentes e em desenvolvimento por maior representação e poder de voto no FMI e, de outro, a resistência à mudança da parte dos super-representados, a Europa à frente. Nossos esforços acabavam neutralizados, em grande parte, pela oposição obstinada de europeus e outros. Os americanos, no final do governo Bush, ficavam basicamente neutros, embora dessem sinais discretos de pender um pouco para o nosso lado. Era, pode-se dizer, uma neutralidade benevolente. Em última análise, os Estados Unidos
compreendiam que a legitimidade e a relevância do FMI dependiam de uma reforma da sua governança, de alguma adaptação à realidade econômica do século XXI – um mundo em que muitos países emergentes e em desenvolvimento cresciam rapidamente, em especial os da Ásia, e as nações desenvolvidas, em especial as europeias, tendiam a perder peso relativo. Esse movimento se aceleraria com a crise financeira do Atlântico Norte a partir de 2008, mas já se desenhava desde o início do século. A disposição dos Estados Unidos de apoiar a reforma do FMI – cabe acrescentar – refletia, também, a percepção egoísta de que o sacrifício em termos de posições relativas seria feito fundamentalmente pelos europeus que estavam, como assinalei antes, flagrantemente super-representados. De qualquer forma, os americanos não fariam o trabalho por nós – cabia às nações emergentes, especificamente às que se consideravam sub-representadas, liderar a pressão sobre os europeus. Os americanos não iriam se indispor com seus tradicionais aliados, se o resto do mundo não mostrasse vontade real de ampliar a participação no FMI. Logo verifiquei que não havia, mesmo dentro da cadeira brasileira no Fundo, grande confiança na possibilidade de o Brasil, em particular, obter ganhos na reforma de quotas e voz então em curso. Helio Mori, nosso especialista em quotas, era cético: fazia simulações e mais simulações que mostravam grande dificuldade de fazer o Brasil avançar. A mesma observação valia, aparentemente, para os países de mercado emergente e em desenvolvimento considerados em seu conjunto – os EMDCs no jargão do FMI, isto é, o conjunto dos emerging market and developing countries.2 Uma dificuldade, não a principal, mas longe de irrelevante, é que alguns países emergentes ou de mercado emergente estavam nitidamente super-representados, quando se tomava a participação no PIB mundial como principal critério. A Arábia Saudita era o exemplo mais notório, mas havia diversos outros.3 Como recém-chegado, não conhecia o assunto, altamente esotérico, em todas suas sutilezas e detalhes. Mas pude perceber que as simulações de cenários para a revisão das quotas feitas pelo staff do FMI, e mesmo dentro da cadeira brasileira, padeciam de uma limitação essencial: a de aceitar premissas e parâmetros relativamente estreitos para definir os limites do possível. Disse a Mori nas nossas discussões internas, e ao staff do FMI encarregado do tema, que “o Brasil não aceitaria migalhas” e insisti, sem muito sucesso inicial, que fossem rodados cenários com outros parâmetros e critérios capazes de resultar em aumento da quota relativa do Brasil e dos EMDCs como um todo. Não estava ali para endossar a continuação da distribuição desigual e defasada das quotas e
votos. Nas diversas reuniões da Diretoria sobre a reforma, apresentei esses argumentos repetidamente e em detalhe, causando a primeira de muitas ondas de descontentamento entre os europeus.
Manobra perigosa Mal podia imaginar que estava em curso uma operação para contornar o diretor brasileiro e, com apoio aparente de Brasília, aprovar uma pseudorreforma, uma falsa reforma que perpetuaria o status quo no FMI. O canal para essa manobra era o G20. Criado em 1999 por iniciativa dos Estados Unidos, no governo Clinton, era um foro de nível – teoricamente – ministerial, que reunia ministros de Finanças e presidentes de Banco Central. Estávamos àquela altura a mais de um ano de distância da transformação do G20 em foro de líderes e, posteriormente, em principal mecanismo para cooperação econômica e financeira internacional em substituição ao G7. Com a longa (e enganosa) estabilidade e tranquilidade na economia mundial, a já mencionada Great Moderation, foros como o G20 estavam relativamente dormentes. Os ministros de Finanças e presidentes de Banco Central pouco participavam e davam limitada atenção a suas deliberações. O G20 convertera-se, essencialmente, em um foro onde funcionários de segundo, terceiro ou até quarto escalão dos governos e bancos centrais se encontravam para trocar ideias e, às vezes, tratar de temas como a reforma do FMI ou do Banco Mundial. O Brasil, por exemplo, se fazia representar pelo secretário de assuntos internacionais da Fazenda, funcionário de terceiro escalão do ministério, e pelo diretor de assuntos internacionais do Banco Central. No linguajar do G20 e do FMI, esses representantes brasileiros e suas contrapartes de outros países eram apresentados, ou se apresentavam, como Deputy Minister of Finance (vice-ministro de Finanças) e Deputy Central Bank Governor (vice-presidente do Banco Central), o que dava, em diversos casos, uma impressão exagerada da sua efetiva importância. Dependendo do assunto, não era incomum que os países se fizessem representar no G20 também por seus diretores executivos no FMI ou no Banco Mundial. No caso do Brasil, o principal operador no G20 naquela época era o já mencionado secretário Melin, que estudara economia no Reino Unido e, entre outros aspectos um pouco cômicos, falava inglês fluente, mas com um forçado e ligeiramente ridículo sotaque britânico. Era um funcionário bem irresponsável, que conseguia enganar por algum tempo, blefando desbragadamente. Saberia, depois, que ele tentava maximizar seu papel no governo brasileiro perante os colegas de G20, citando repetidamente o presidente Lula, como se tivesse acesso
direto a ele. Uma casualidade abriu grande espaço para as manobras do secretário brasileiro. Havia, no G20, que não tinha (e até hoje não tem) secretariado próprio, a tradição de conduzir os trabalhos por meio de uma “Troika”, presidida pelo país que exercia naquele ano a presidência de turno do G20 e integrada pelo país que exercera a presidência no ano anterior e pelo que exerceria a presidência no ano seguinte. Em 2007, a presidência era da África do Sul; a Austrália tinha sido presidente em 2006 e o Brasil seria presidente do G20 em 2008. Esse arranjo conferia ao secretário Melin a condição de integrante da Troika. Pude perceber mais tarde que o secretário brasileiro caíra na tentação tão comum entre latino-americanos e outros, de tentar se validar individualmente como “membro responsável da comunidade internacional”. Essa expressão, aparentemente simpática, escondia outra coisa totalmente distinta – a disposição de integrantes das elites de países menos desenvolvidos, o Brasil entre eles, de prestar serviço aos poderes estabelecidos em nível internacional e se cacifar para, se possível, receber apoio para cargos e benesses de vários tipos. Nos meus mais de dez anos fora do Brasil, pude confirmar, aliás, o quanto esse comportamento é comum – e, acrescento, os brasileiros não estão (ou não estavam) necessariamente entre os piores. Mexicanos, chilenos e colombianos, por exemplo, mostravam-se, não raro, mais ansiosos e afoitos para desempenhar esse tipo de papel(ão). Nesse período, os deputies do G20 se arvoravam a tomar parte, até decisiva, na reforma de quotas e voz do FMI. A África do Sul, sub-representada na Diretoria do FMI, tinha inclinação natural a tirar o tema da órbita dos diretores. A Austrália, como aprenderia ao longo dos anos, era basicamente linha auxiliar dos Estados Unidos e do Reino Unido, e quase nunca estava do lado dos EMDCs. O secretário brasileiro entrou de gaiato nesse navio. Tudo estava sendo feito sem o meu conhecimento, embora dissesse respeito a área de atribuição do diretor executivo no FMI. A aspiração do secretário brasileiro, depois descobri, era ser visto como honest broker (intermediário honesto) entre desenvolvidos e emergentes. Comportava-se, porém, como gullible broker (intermediário crédulo) na melhor das hipóteses – isto é, excluindo aquelas mais tenebrosas de oportunismo pessoal –, ao emprestar o nome do Brasil para endossar propostas que emasculavam a reforma de quotas e voz, deixando a participação dos EMDCs como um todo e do Brasil individualmente basicamente intocadas. Era o complexo de vira-lata, com falso sotaque britânico.
O risco para mim era de desmoralização e perda de autoridade em assunto central para o diretor executivo. As posições do Brasil no G20, que eu desconhecia, não guardavam qualquer parentesco com as que eu defendia na Diretoria do FMI. Felizmente, eu mantivera o ministro Mantega informado sobre o assunto, em linhas gerais, coisa que o seu assessor, algo amador, aparentemente não fizera – e isso seria de grande valia no choque que se aproximava. Estou me alongando um pouco no relato desse episódio porque ele é paradigmático dos desafios que representantes de países em desenvolvimento são obrigados a enfrentar na capital do Império. Ingenuamente, eu informava o próprio secretário sobre a evolução do tema em Washington e procurava interagir com ele, relevando sua tentativa atabalhoada de demitir e substituir Helio Mori. Tinha poucos meses no cargo e me deixava iludir pelo discurso “progressista” do secretário. Fui iludido, também, pela orientação que recebi do meu amigo, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que, como mencionei, ocupava o cargo de secretário-geral ou vice-ministro no Itamaraty. Samuel repetia que “o nosso homem” na Fazenda era Luiz Melin – e não o diplomata Marcos Galvão, que exercia a função de chefe de gabinete do ministro Mantega.4 Eu respeitava muito o secretário-geral do Itamaraty e, também, embora tivesse menos contato direto, o chanceler Celso Amorim. Mas a “dica” do meu amigo estava totalmente errada e, por conta dela e da minha inexperiência, quase tomei uma bola nas costas. Começara a desconfiar um pouco, é verdade, depois da tentativa de substituir Mori. Ficara, inclusive, a sensação de que Melin funcionava como uma linha auxiliar do Itamaraty, dentro do Ministério da Fazenda – à revelia, claro, do ministro Mantega – pela forma estranha como ele se referira a “combinações” com o ministro Amorim. Mas prevaleceram a minha ingenuidade e a confiança no velho amigo Samuel Pinheiro Guimarães. Demorei a me dar conta do que estava acontecendo e permiti que se abrisse um tremendo flanco. Enquanto eu atuava, inocentemente e desinformado em Washington, avançava a passos largos no G20 a articulação da Troika. O que me ajudou, entretanto, é o fato de ser difícil evitar vazamentos em um foro tão grande como o G20 – 20 membros ou 40, se contarmos que cada integrante participava por meio do Ministério de Finanças (ou seu equivalente) e do Banco Central.5 O primeiro vice-diretor-gerente, número 2 da Administração do FMI, o americano John Lipsky, passou a dizer à boca pequena que eu não representava a real posição do Brasil em matéria de reforma do FMI, informação importante que me trouxeram alguns aliados e simpatizantes. Hector Torres, experiente
diretor alterno na cadeira da Argentina, com quem muito aprendia, também me transmitiu algumas informações sobre a estranha atuação do secretário brasileiro. Paradoxalmente, a informação decisiva, que me deu a dimensão do que estava ocorrendo, veio de um europeu – o diretor executivo finlandês, Tuomas Saarenheimo. Embora os países europeus pequenos não fossem membros do G20, a União Europeia era. Por meio das instâncias do bloco, países como a Finlândia eram informados sobre o andar da carruagem. Meu colega finlandês de Diretoria veio me visitar, contou tudo o que estava acontecendo no G20, em especial a atuação do brasileiro, e – ponto crucial – me passou documentos internos da Troika e do G20, inclusive assinados pelo próprio Melin, que revelavam toda a extensão do desastre – em uma palavra: a anulação quase total da reforma de quotas e voz, com colaboração voluntária e ativa do Brasil, ou mais precisamente de uma autoridade fazendária que falava em nome do governo brasileiro.6 Fiquei em estado de choque. Lembrei-me de Nelson Rodrigues: “Subdesenvolvimento não se improvisa – é obra de séculos.” Descobrira, espantado, que havia um acordo praticamente pronto, ou pelo menos em estado avançado de formulação, que nada ou quase nada trazia para o Brasil e os EMDCs no seu conjunto. O desempenho da Troika estava abaixo da crítica, o brasileiro e o sul-africano haviam feito trabalho quase completo de entrega em domicílio, com o australiano ajudando e acompanhando tudo aquilo com satisfação, naturalmente.
Embate na retaguarda Só me restava uma alternativa: voltar sem demora a Brasília e verificar, in loco, se o secretário de assuntos internacionais tinha – pior cenário – cobertura do ministro da Fazenda para sua atuação. Não podia ter certeza de nada. Àquela altura ainda não conhecia tão bem o ministro Mantega e era difícil acreditar que o secretário iria tão longe sem ter apoio, pelo menos parcial, do próprio chefe. Mas não podia deixar barato e parti, sem hesitações, para a confrontação. Aqueles que me conhecem sabem que sou melhor nesses embates do que nas articulações que exigem mais paciência, habilidade e diplomacia. O secretário receberia um contravapor que não estava nos seus planos de grande articulador internacional. Pedi audiência ao ministro Mantega e relatei, da melhor maneira que pude, lutando com o estresse que a situação inevitavelmente provocava, o que estava acontecendo no G20 e no FMI. Para meu alívio, Mantega se declarou desinformado das atividades do seu secretário e disse, com todas as letras, “essa não é a posição do Brasil”. Convocou, imediatamente, o secretário que, ao adentrar o recinto, mostrou-se surpreso com a minha presença. Confrontado com meu relato por Mantega, tentou negar, mas ficou sem ação quando mostrei os documentos do G20 que traziam sua assinatura. Foi uma débâcle. Eu, sempre emotivo, acabei exagerando e fui desnecessariamente ríspido com o assessor do ministro. Mantega conteve meus excessos, mas determinou claramente que Melin voltasse atrás e renegasse todas aquelas posições na próxima reunião do G20. Vitória acachapante, com um senão – a confrontação fora custosa: meu estilo abrasivo, que tinha dificuldade de controlar em situações de estresse, sobretudo nos anos iniciais da minha passagem pelo FMI, deixava uma marca negativa e confirmava os rumores de radicalismo e intransigência que circulavam a meu respeito. Os embates dentro do Ministério da Fazenda acabariam vazando para a imprensa brasileira, dando ocasião a mais uma rodada de ataques contra mim em alguns dos principais jornais. Lembrei-me de uma frase atribuída ora a Churchill, ora a Oscar Wilde: “People have been spreading the wildest rumors against me – and the worst part is that about half of them are true!” (“Estão espalhando os rumores mais selvagens a meu respeito – e o pior é que cerca de metade deles são verdadeiros!”) Consolava-me pensar que, se isso acontecia com homens extraordinários como Churchill ou Wilde, um simples
economista não tinha, na verdade, do que reclamar. Lembre-se, leitor, que eu era na ocasião ainda muito verde no cenário em que estava operando. Morava sozinho em Washington e não tinha amigos próximos, nem pessoas de confiança com quem pudesse conversar abertamente. Isso viria com o tempo. Relatei a carga emotiva que a situação representava para mim em artigo que publiquei na época em um jornal brasileiro, contando um sonho que tive com meu pai, que morrera em 1994.7 Não podia, evidentemente, falar com a franqueza de que estou me valendo neste livro e só podia aludir ao problema que estava enfrentando. Mesmo assim, foi arriscado publicar um artigo tão emotivo (ainda hoje, mais de dez anos depois, me emocionei ao reler a passagem sobre meu pai), pois podia ser interpretado como sinal de fraqueza por meus adversários, não só no Brasil, mas até mesmo no FMI.8 Tudo considerado, permanece difícil avaliar se foi certa ou errada, apropriada ou exagerada, a minha reação algo violenta. Mesmo em retrospecto, é difícil julgar. Como a negociação dentro do G20 já estava muito avançada, talvez só uma intervenção muito vigorosa, capaz de convencer o ministro da Fazenda e intimidar o secretário, poderia salvar a situação. A atuação desastrada do secretário nos levara, por assim dizer, à beira de um precipício.
Reunião do G20 em Washington A próxima reunião do G20, marcada para Washington, no prédio do Tesouro dos Estados Unidos, acabaria sendo, segundo alguns participantes mais antigos, uma das mais interessantes e até dramáticas reuniões nos oito anos de história do G20 – e isso, feliz ou infelizmente, às minhas custas. Nesse encontro, a Troika e os países desenvolvidos, especialmente os europeus, pretendiam bater o martelo no acordo que se desenhava ou, no mínimo, cristalizar seus principais aspectos. Imagine, leitor, a situação do secretário brasileiro, um dos grandes articuladores desse acordo, e agora instruído enfaticamente pelo ministro da Fazenda a renegar tudo. He had painted himself into a corner, como diz a expressão em inglês, não havia mais saída elegante ou honrosa para ele. Porém, a solução que o funcionário encontrou para seu dilema foi simplesmente inacreditável, confirmando as piores suspeitas sobre sua incapacidade e amadorismo. Começa a fatídica reunião do G20 no Tesouro. FMI era o tema principal. Sentado na cadeira brasileira, o secretário brasileiro, a seu lado – sempre silente – o diretor de assuntos internacionais do Banco Central. Eu atrás deles, com alguns outros funcionários brasileiros, nada sabia da armadilha montada para
mim. O Brasil, como membro da Troika, foi um dos primeiros a falar e o secretário fez um discurso grandiloquente em que informava a todos que, lamentavelmente, sua atuação fora desautorizada pelo governo brasileiro.9 Em conclusão, anunciou que passava a representação do Brasil ao diretor executivo brasileiro no FMI, levantou-se e saiu da sala! Tudo isso sem me avisar nada previamente. Não sei até que ponto seus aliados mais próximos haviam sido prevenidos, mas a maioria dos membros do G20 provavelmente também não sabia de nada. A atmosfera na sala era de surpresa e choque. O que fazer? Com a cadeira brasileira vazia, nada disse e tomei o lugar. O secretário fizera uma manobra, na minha opinião, típica de oportunista sem senso de oportunidade – retirou-se, tentando preservar seu capital de homem aberto ao diálogo com a “comunidade internacional”, jogando o ônus em cima do ministro da Fazenda do Brasil e do novo diretor brasileiro no FMI. Melin acabaria destituído do cargo.10 Mas naquele momento the heat was on me, a pressão estava toda sobre mim. De novo, eu estava apenas começando no processo, não conhecia as nuances e nem a maioria dos presentes. Era como jogar uma criança em águas agitadas, sem antes ensiná-la a nadar – o risco de afogamento era grande. Fiquei naturalmente aflito e apreensivo, mas tive que engolir seco e enfrentar o desafio. Fui instado a explicar o que estava acontecendo e fiz o melhor que pude, improvisando (não contava falar na reunião) uma intervenção diplomática, mas firme, que reiterava as posições que vinha defendendo na Diretoria do FMI. Expliquei por que o esboço de acordo que estava na mesa do G20 não atendia os objetivos brasileiros. Tentei, sem grande sucesso naquele momento, apelar para o interesse estratégico dos anfitriões do encontro – os Estados Unidos –, argumentando que cabia a eles ajudar a resgatar a relevância e a legitimidade de uma instituição que havia sido, afinal, criada sob liderança americana. Apanhei feito boi ladrão. Sucessivas intervenções de europeus, do presidente sul-africano, do australiano, entre outros, manifestavam profundo desagrado, às vezes de forma dura, com o que, para eles, era uma reviravolta do Brasil. O único que entrou a meu favor na discussão foi o já mencionado Hector Torres, um dos representantes da Argentina na reunião. O leitor precisa, neste momento, lembrar que em 2007 os BRICS não existiam, contrariamente a algumas versões que circulam no Brasil a esse respeito. Não tive ajuda nenhuma da China e da Índia. E mesmo a Rússia, representada por seu diretor no FMI, o veterano Aleksei Mozhin, que conhecia o tema das quotas como poucos, ficou silente na reunião. Mozhin se tornaria ao longo dos anos um dos meus principais aliados no FMI e no G20. Era um dos mais inteligentes e experientes diretores do FMI – mas era
também muito cauteloso, e não gostava de entrar em bola dividida. Consegui, no meio do tiroteio, passar uma mensagem a Hector Torres, instando-o a pedir ao russo que saísse do seu mutismo. O máximo que alcancei foi uma intervenção discreta, basicamente ineficaz, do meu futuro aliado. Devo reconhecer, porém, que russos, chineses e indianos não tinham naquele instante – adotando uma ótica pragmática, ainda que talvez estreita demais – grandes motivos para entrar na refrega: o Brasil, por meu intermédio, estava sendo obrigado a fazer todo o trabalho difícil, evitando o que seria uma derrota para esses países e outros EMDCs. E era, de certo modo, justo que assim fosse – afinal, o Brasil, por meio do secretário Melin, havia contribuído decisivamente para colocar os emergentes em uma espécie de corner. A África do Sul, que se juntaria em 2011 aos BRICS, fazia naquele momento um papel lamentável. O representante sul-africano e chairman da reunião era Lesetja Kganyago, sujeito expansivo e até simpático, mas que se mostrava, às vezes, agressivo e prepotente. Ele seria, anos depois, presidente do Banco Central da África do Sul. Lesetja estava inconformado com o que acontecera com seu aliado brasileiro e sentia a grave ameaça ao acordo que ele ardorosamente copatrocinara. Resolveu se juntar a europeus e outros para me pressionar e hostilizar. Quando eu tomava a palavra para me defender dos numerosos ataques e críticas, ele me interrompia grosseira e repetidamente – a um ponto em que eu senti necessidade de dizer em alto e bom som: “Não me interrompa, estou falando em nome do Brasil!” A partir daí, ficou claro que era inútil continuar me pressionando e tentando me intimidar. Como assinalei anteriormente, o G20 resolve por consenso. A oposição determinada de um membro, e no caso um integrante da Troika, tornava inviável continuar discutindo com base no acordo ou projeto de acordo anterior. Se o leitor me permite mais um comentário sentimental, até meio místico, diria que o que me salvou naquela reunião difícil foi a “consultoria” a que se referiu meu pai, em sonho que tive pouco antes, relatado em artigo que já mencionei.11 Meu pai era, por assim dizer, como El Cid, ganhava batalhas mesmo depois de morto… A reunião terminou com frustração generalizada dos desenvolvidos e de alguns emergentes colaboracionistas e, claro, grande desgaste pessoal para mim. Reunião encerrada, ainda na sala do Tesouro, a diretora executiva dos Estados Unidos, Meg Lundsager, veio me dizer de forma um pouco arrogante: “Você vai ter de visitar os seus 23 colegas de Diretoria, um por um, para explicar o que aconteceu aqui hoje.” Deixei o Tesouro contente com o resultado, mas preocupado ao mesmo tempo com as repercussões do incidente. Hector Torres, de quem esses embates
me aproximaram mais, resumiu o ocorrido algum tempo depois: “You crashed single handedly a G20 meeting inside the US Treasury!” (Você travou sozinho uma reunião do G20 dentro do Tesouro dos Estados Unidos!) Era um comentário generoso; na verdade, eu contara com a ajuda valiosa da Argentina – graças ao próprio Hector. Mas tinha certeza de que havia entrado automaticamente (se lá já não estava por conta de episódios muito mais antigos) em todas as listas negras de americanos e, nesse caso, sobretudo de europeus. Afinal, o representante brasileiro assumira, sem querer, forçado pelas circunstâncias, um protagonismo até então raro em foros desse tipo, mesmo da parte dos representantes dos emergentes mais importantes. Ninguém sabia, mas era um sinal dos tempos que se avizinhavam. As notícias da reunião do Tesouro causaram sensação no FMI, onde rapidamente chegaram. Havia, provavelmente, dúvidas até sobre se eu sobreviveria ao incidente. O diretor do Canadá, Jonathan Fried, que seria depois embaixador do país em Tóquio, sujeito bem-humorado e inclinado a piadas, me pegou pelo braço e disse, fingindo me examinar: “Quero ver as feridas e cicatrizes!” Humildemente, tentei seguir o conselho um pouco arrogante da diretora americana e comecei a visitar os meus colegas diretores, um por um. Mas eram muitos e logo cansei de repetir a mesma história (a humildade não era tanta…). Aproveitei então uma reunião da Diretoria para fazer uma intervenção conciliatória, que foi acompanhada atentamente por meus colegas e pela Administração – todos queriam ouvir o novato que barrara uma tentativa muito bem arquitetada de esvaziar a reforma do FMI – mas errei o tom e senti, de repente, necessidade de atalhar – “mas isso não é um discurso de despedida!” – suscitando risos dos meus colegas. Os europeus, em geral, não acharam a menor graça – claro, esfumara-se uma tentativa promissora de preservar intactos os seus privilégios.
Eleição de Dominique Strauss-Kahn e conclusão da reforma de 2008 A reforma de quotas e voz voltara praticamente à estaca zero. Reestabeleceu-se o impasse do qual só sairíamos por causa de um evento que surpreenderia a todos: a súbita renúncia do diretor-gerente do FMI, o espanhol Rodrigo de Rato, que deixaria o cargo no fim de outubro de 2007. Não vou me deter em especulações sobre as razões da sua saída precoce. O importante aqui é registrar que ela abriria a oportunidade, que prontamente aproveitamos, para avançar com a
reforma de quotas e voz e, em especial, para melhorar a posição relativa do Brasil. A saída de Rodrigo de Rato suscitou outro problema de governança, sempre latente, que seria debatido antes de retomar a discussão da reforma: a aplicação, mais uma vez, da regra antiquada, não escrita, que garantia a um europeu a posição número 1 na Administração. A eleição era por maioria simples dos votos dos diretores, mas em questões de alta visibilidade como essa todos nós atuávamos em sintonia e seguindo instruções dos nossos países, no meu caso principalmente o Brasil, país dominante na cadeira. Não tínhamos, os emergentes, a menor chance de quebrar o controle europeu sobre essa posição se não houvesse a decisão dos Estados Unidos de dissociar-se do seu acerto tradicional com eles. Poderiam fazê-lo, mas se o fizessem não teriam garantia de obter a contrapartida tradicional: o apoio dos europeus para a designação de um americano na eleição do próximo presidente do Banco Mundial. Os europeus logo se movimentaram para encontrar um sucessor para Rodrigo de Rato. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, rápida e surpreendentemente apareceu com o nome de Dominique Strauss-Kahn, do Partido Socialista, que fora ministro nos governos de Mitterrand e Jospin e era um dos seus adversários políticos potencialmente mais importantes. Uma interpretação plausível, que circulava na mídia francesa e internacional, é que Sarkozy estava buscando se livrar de um concorrente, enviando-o para um FMI que, como expliquei antes, era então visto como esvaziado e sem maior importância. O tiro sairia pela culatra; menos de um ano depois, com a eclosão da crise financeira nos EUA e na Europa, o FMI voltaria ao centro da cena internacional. DSK se tornaria mundialmente conhecido e um candidato provavelmente imbatível na eleição presidencial francesa de 2012 em que Sarkozy buscaria a reeleição. A indicação de DSK pelos europeus suscitou discussões movimentadas na Diretoria. Alguns diretores de países em desenvolvimento questionavam a regra não escrita e a hipocrisia dos procedimentos oficiais que proclamavam eleição transparente e baseada no mérito dos candidatos. Era, como sempre, uma eleição com resultado pré-determinado. Em uma dessas discussões, fui um pouco mais agressivo e mencionei o quanto era de se lastimar que o comando do FMI fosse decidido, em última análise, por táticas político-eleitorais do presidente francês. Para quê? O diretor francês, Pierre Duquesne, perdeu as estribeiras e, indignado, exigiu que eu retirasse o meu comentário. Não o fiz, claro, e logo outros europeus ecoaram a indignação do francês, criando-se um razoável tumulto. Mais uma vez, o argentino Hector Torres veio em meu socorro, suavizando minha posição, mas entrando essencialmente a meu favor. Mal podia imaginar
que eu me tornaria, ao longo dos anos, um dos maiores admiradores de DSK, que se revelaria um diretor-gerente de grande liderança e aberto a inovações. Na eleição, aconteceu algo não muito comum na história do FMI. A Rússia que por razões um pouco obscuras (com os russos tudo é sempre mais ou menos obscuro, como aprenderia ao longo dos anos), tinha naquela época restrições contra DSK, apareceu com a candidatura de um ex-primeiro-ministro e expresidente do Banco Central da República Tcheca, Josef Tošovský, que era muito respeitado, na esperança de dividir os votos europeus e somá-los aos dos emergentes para ameaçar a candidatura de DSK. O diretor russo fazia lobby intenso pelo tcheco junto aos outros diretores, chegando a fazer referências altamente negativas a DSK como economista e político, adicionando toques estranhamente antissemitas (DSK tem origens judaicas por parte paterna e materna). DSK, por sua vez, veio da Europa duas vezes para se apresentar perante a Diretoria e visitar individualmente todos os diretores. A sua eleição estava praticamente garantida, mas ele planejava ganhar com ampla vantagem, se possível esmagadora (como aconteceria), e certamente queria os votos de todos os principais países, inclusive do Brasil. DSK começava impressionando bem – mesmo com eleição garantida se dava ao trabalho de conversar com e ouvir todos os diretores. Foi aí que, combinando tudo com o ministro Mantega, fiz com ele uma negociação de nível talvez duvidoso, tipo “mercado persa”, confesso, em que prometi o meu voto desde que ele se comprometesse, na reforma em curso, a garantir o aumento da quota relativa do Brasil de 1,4% para 1,8% do total, o que pelos nossos cálculos internos era pretensão factível. Isso tudo foi cercado de explicações e apresentado da forma mais elegante possível, mas era no fundo um simples toma lá, dá cá. A questão da distribuição de quotas era primordialmente política, e só secundariamente decidida por fórmulas e cálculos. Sempre fora assim, na verdade, desde Bretton Woods. Era perfeitamente possível encontrar fórmulas e regras consistentes com esse aumento da nossa quota relativa. Para o Brasil, isso era importante, entre outras razões, por causa da nossa vulnerabilidade, já explicada, no comando da cadeira. Além disso, se acompanhada do aumento das quotas relativas e do poder de voto de outros emergentes, nosso aumento modificaria em alguma medida o equilíbrio decisório no FMI, facilitando, por exemplo, alcançar o patamar de 15% requerido para vetar decisões importantes desfavoráveis aos emergentes e em desenvolvimento. A negociação de “mercado persa” daria certo. Descobriria que DSK cumpria fielmente os acordos – algo que não se pode de forma alguma dizer da
sua sucessora, aliás. De início, tive alguma dificuldade, pois alguns mais afoitos em Brasília, nomeadamente o chanceler Celso Amorim e o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, saíram prometendo voto no francês – Marco Aurélio por simpatias políticas com os socialistas franceses, Celso por excesso de ativismo em área que não era dele. Mantega teve que contê-los, a meu pedido. Depois de alguns meses de discussões acirradas, a Diretoria aprovaria a reforma de quotas e votos em março de 2008 por margem estreita, com votos favoráveis de 19 das 24 cadeiras. Três cadeiras votaram contra (Rússia, Arábia Saudita e Irã) e duas se abstiveram (Argentina e Egito). O Conselho de Governadores confirmaria a aprovação da reforma, em abril, ao alcançar o critério de dupla maioria previsto para esse tipo de decisão no Convênio Constitutivo – pelo menos 85% dos votos ponderados e 3/5 dos países-membros. A reforma de 2008 não era uma revolução, não havia condições para isso, mas um passo na direção da mudança desejada. O Brasil acabou sendo um dos principais ganhadores, graças em grande medida ao acerto com DSK. A nossa quota relativa subiu de 1,4% para 1,8% do total, como combinado, e o poder de voto, de 1,4% para 1,7%. O Brasil foi o quarto maior ganhador com a reforma (depois da China, da Coreia do Sul e da Índia). Os maiores perdedores foram o Reino Unido e a França. O poder de voto da cadeira comandada pelo Brasil aumentou de 2,4% para 2,8%. O poder de voto dos EMDCs como um todo aumentou em 2,7 pontos percentuais, passando de 39,4% para 42,1% do total. Com essas mudanças, o Brasil passou de 18o para 14o entre os então 185 países-membros do FMI em termos de participação no poder de voto. A cadeira encabeçada pelo Brasil subiu de 21a para 18a entre as cadeiras da Diretoria. Começávamos a corrigir o declínio relativo do Brasil que remontava, como já mencionei, ao período Kafka. Outra mudança relevante trazida pela reforma de 2008 foi a substituição de um cipoal de fórmulas, arcaicas e incompreensíveis, por uma única fórmula para o cálculo das quotas relativas, na qual o PIB assumiu o papel de variável dominante, apesar das objeções dos europeus. A fórmula ainda padecia de problemas importantes, mas foi um avanço. Conseguimos, também, triplicar os votos básicos, o que ajudava o poder de voto dos países pequenos, inclusive da nossa cadeira. Estabeleceu-se, além disso, que as cadeiras com 19 membros ou mais teriam direito a um segundo alterno, favorecendo as duas cadeiras subsaarianas, sobrecarregadas com a representação de um grande número de países.12
A reforma não chegava, nem de longe, a resolver os problemas de representatividade e legitimidade do FMI. Mas foi, repito, um passo significativo. Eu era da opinião, que mantive ao longo da minha permanência em Washington, que a reforma do FMI precisava andar, ainda que em etapas. Isso, a meu ver, era certamente preferível a um cenário tipo Rodada Doha da OMC – reforma excelente, mas sem condições de ser implementada, que ficaria ao relento por muitos anos e acabaria arquivada para todos os efeitos práticos.
2. A crise financeira do Atlântico Norte – americanos e europeus à beira do precipício Enquanto concluíamos, a duras penas, a reforma de 2008, um acontecimento muito mais importante, que resultaria em alteração radical do ambiente econômico e político internacional e, portanto, do contexto em que operava o FMI, estava prestes a se desencadear – a gravíssima crise que atingiu os sistemas financeiros dos Estados Unidos e da Europa, culminando no colapso do Lehman Brothers, em setembro de 2008. Os bancos e outras instituições financeiras americanas e europeias vinham acumulando, ao longo dos anos anteriores, desequilíbrios ocultos de grande magnitude, disfarçados por complexas engenharias financeiras que pareciam prometer o impossível – a combinação extraordinária de alta rentabilidade com baixo risco e liquidez assegurada. No período de calmaria que antecedeu a crise, essa promessa – típica dos episódios especulativos – levou a comportamentos temerários, baseados em elevadíssima alavancagem e instigados por resultados excepcionais. A complexidade e sofisticação dos produtos financeiros oferecidos dificultavam a percepção do que estava realmente ocorrendo – uma gigantesca bolha financeira. Era, na verdade, mais um episódio especulativo, não essencialmente diferente, em última análise, daqueles descritos e analisados, por exemplo, em livros clássicos de Charles Mackay e Charles P. Kindleberger ou, com mais graça e vivacidade, por John Kenneth Galbraith.13 Reguladores e supervisores do sistema financeiro, nos Estados Unidos e em diversos países europeus, não se deram conta dos problemas que se avolumavam, deixando-se embalar por teorias que frisavam a eficiência dos mercados e sua suposta capacidade de autorregulação. Mas os sistemas de gestão de risco das instituições financeiras privadas falharam fragorosamente. Outro fracasso retumbante foi o das agências de classificação de risco – Moody’s, S&P e Fitch – que endossaram instituições e ativos financeiros altamente
problemáticos. O fracasso das três principais agências foi tamanho que é verdadeiramente incrível que elas tenham saído da crise com poder de atuação e controle do mercado basicamente intactos – um exemplo, entre outros, de como o establishment financeiro internacional conseguiria sobreviver ileso a uma crise monumental de sua fabricação e responsabilidade. Curioso, ainda, foi perceber a posteriori que a complexidade da engenharia financeira impedia, ou dificultava muito, a atuação dos altos escalões das instituições financeiras – os dirigentes, os conselheiros e os principais acionistas, pessoas de mais idade e menos sintonizadas com as inovações financeiras dos executivos mais jovens, que estavam na linha de frente do mercado. Esses veteranos não entendiam plenamente os novos produtos financeiros e os imensos riscos a eles associados. À complexidade técnica dos ativos e práticas financeiras somava-se, claro, a conveniência de não procurar saber. Os altos escalões, acomodados, iludidos pela calmaria sistêmica de vários anos, registravam e embolsavam elevadíssimos salários, bônus, lucros e dividendos, faturavam o prestígio correspondente, sem se dar ao incômodo de realmente questionar como tudo aquilo era possível. Quando instituições financeiras começaram a balançar e registrar os primeiros prejuízos, desde meados de 2007, ainda era difícil perceber a real e assustadora dimensão do problema. O primeiro grande marco, que tornou visível para todos que os Estados Unidos estavam diante de uma grave ameaça financeira, foi a quebra em março de 2008 do Bear Stearns, importante banco global de investimentos, com sede em Nova York, que acabou socorrido pelas autoridades americanas, com a Reserva Federal financiando sua absorção pelo JPMorgan Chase. As autoridades monetárias e fiscais americanas e europeias, em especial os bancos centrais enquanto emprestadores de última instância, passaram a se defrontar com o dilema clássico: risco sistêmico (systemic risk) versus risco moral (moral hazard). Por um lado, socorrer instituições em crise, garantir seus depositantes, investidores e credores, para além do estabelecido nas garantias legais vigentes, afastaria, pelo menos temporariamente, o efeito dominó e a propagação de corridas contra outras instituições financeiras. Por outro, o socorro pronto e rápido a instituições privadas temerárias premiaria comportamentos irresponsáveis e incentivaria, temia-se, novas rodadas de acumulação de riscos. No episódio Bear Stearns prevaleceu a ponta risco sistêmico do dilema, mas isso não se repetiria, com consequências dramáticas, no caso do banco de investimentos Lehman Brothers. No caso do Lehman, que estourou alguns meses depois, a decisão fatídica foi deixar quebrar. Fiquei estarrecido. Eu não fazia ideia da extensão dos
problemas acumulados no interior dos sistemas financeiros do Atlântico Norte, nem compreendia a engenharia financeira que servira de veículo para o episódio especulativo, mas na condição de economista brasileiro que tinha experiência em acompanhar crises bancárias no Brasil – inclusive, destacadamente, a crise bancária da década de 1990 que atingiu bancos privados da importância do Nacional, Bamerindus e Econômico –, a intuição me dizia que era um absurdo deixar um banco renomado quebrar em meio à instabilidade já instalada. No dia seguinte à quebra do Lehman, houve uma reunião informal da Diretoria para discutir, com ajuda dos especialistas do staff em questões financeiras, as implicações do que estava ocorrendo. Fiquei em minoria. Prevaleceram intervenções laudatórias da decisão das autoridades dos Estados Unidos. O diretor italiano, Arrigo Sadun, por exemplo, sujeito pretensioso e não muito esclarecido, proclamou, solenemente, que os americanos, precavendo-se contra o risco moral, haviam traçado uma linha na areia (“had drawn a line in the sand”) – chavão algo ridículo, muito repetido, mas que no fundo traía o que realmente aconteceria – era, sim, uma linha na areia que seria facilmente apagada, aos pontapés, pelo drama que a não intervenção no caso Lehman logo desencadearia. A hegemonia do risco moral duraria poucos dias. A quebra do Lehman gerou rápida propagação de problemas financeiros. A maior seguradora dos Estados Unidos, American Insurance Group (AIG), sofreu impacto devastador e teria quebrado, em poucos dias, não fosse a reversão do posicionamento das autoridades americanas que abandonaram atabalhoadamente o discurso do risco moral e se renderam à necessidade de socorrer a AIG e, de alguma forma, socializar os prejuízos decorrentes da crise. Diga-se em favor das autoridades dos Estados Unidos que o caso do Lehman era, até certo ponto, enganoso. O banco não estava entre os maiores e não era necessariamente tão fácil identificálo como “too big to fail” (grande demais para falir). Mas ele era, sim, como se compreenderia ex post, “too interconnected to fail” (interconectado demais para falir). Entrelaçado de mil e uma maneiras, em geral não muito transparentes, com muitas instituições financeiras nos Estados Unidos e em outros países, o Lehman Brothers não poderia falir sem produzir intensa repercussão. Uma aguda crise de confiança levaria ao colapso do crédito interbancário com velocidade estonteante. Não muito tempo depois, o secretário do Tesouro do governo Bush, Hank Paulson, veio almoçar com a Diretoria do FMI – uma deferência pouco usual, que não se repetiria nos meus mais de oito anos em Washington. O governo americano estava, por assim dizer, matando cachorro a gritos. O Fundo teria, inevitavelmente, papel-chave em lidar com os destroços da crise em curso e
Paulson resolvera então fazer conosco um esforço de relações públicas. A Administração e a Diretoria, desacostumadas a visita tão ilustre, não cabiam em si de contentamento. O clima era basicamente de bajulação recíproca. A certa altura, entediado e um pouco irritado pela complacência que dominava o almoço, pedi a palavra e fiz uma pergunta simples. Queria saber se o secretário de Tesouro não considerava, em retrospecto, que fora um erro deixar o Lehman quebrar. Paulson tirou da algibeira, por incrível que pareça, o argumento do risco moral. Para indignação de vários comensais, pedi de novo a palavra e perguntei: “Mas se é assim por que socorreram a AIG poucos dias depois?” Não obtive em resposta senão frases meio desconexas e olhares de censura de vários lados. Pano rápido – logo providenciaram mais algumas observações bajulatórias para tirar o secretário do fogo. Nunca vira os americanos tão desorientados. Não havia como fugir das consequências de uma crise financeira longamente gestada e de seus impactos macroeconômicos, agravados por erros de gestão como a não intervenção no caso Lehman. A situação era desesperadora, levando o mesmo Paulson na mesma época ao gesto dramático de ajoelhar-se aos pés de Nancy Pelosi, a presidente democrata da Câmara dos Representantes, implorando a rápida aprovação de um gigantesco pacote de apoio às instituições financeiras ameaçadas em sua sobrevivência. A própria eleição de um afro-americano, Barack Obama, em novembro de 2008, no auge da turbulência, não teria sido possível em um país conservador e racista como os Estados Unidos, sem a crise financeira e as evidências de barbeiragem do governo Bush na sua administração. Peripécias à parte, o fundamental é relembrar que a crise, além de ameaçar a sobrevivência de grande parte do sistema financeiro, provocara um colapso da demanda privada de consumo e investimento. Evaporaram-se as certezas econômicas e a sabedoria convencional do período pré-crise. Hyman Minsky, o teórico da instabilidade financeira como fenômeno endógeno e recorrente das economias capitalistas, foi redescoberto de repente, passando a ser citado até por economistas do mercado financeiro, normalmente um pouco ignorantes e muito apegados ao mainstream. John Maynard Keynes ressurgiu com força – não só o Keynes mais original e mais interessante, do capítulo 12 da Teoria Geral (o chapter 12 Keynesianism), mas até o keynesianismo dos modelos ISLM inaugurados por Hicks e Hansen. Nos tempos da Great Moderation, a regressão intelectual no campo da macroeconomia havia sido razoável, e até lições elementares quanto à importância do “deficit spending” em tempos de depressão andavam ligeiramente esquecidas, como destacaram vários economistas na
época, entre eles Paul Krugman.14 O desafio era imenso. Tratava-se da maior crise econômica desde a Grande Depressão da década de 1930. Sem uma ação rápida e decidida dos Estados, principalmente das autoridades fiscais e monetárias nos Estados Unidos e na Europa, o verdadeiro risco, mais do que uma grande recessão, inevitável àquela altura, era algo ainda pior: uma repetição da Grande Depressão, que fora desencadeada, recorde-se, pelo colapso em série de grandes instituições financeiras privadas nos Estados Unidos e na Europa. Repetia-se a ameaça, afetando de novo os sistemas financeiros dos dois lados do Atlântico Norte. Desta vez, porém, a resposta dos governos seria totalmente distinta da que se viu em 1929-1933. De fins de 2008 em diante, a reação da política econômica desdobrou-se em três pilares, mais ou menos simultaneamente: a) o fiscal; b) o monetário; e c) o socorro às instituições financeiras. No campo fiscal, estabeleceu-se que seria importante não só permitir uma ampliação “passiva” dos déficits públicos em consequência da recessão que se iniciava, mas trabalhar ativamente para compensar a queda do gasto privado com medidas fiscais contracíclicas, de diminuição de tributos e, especialmente, aumento do gasto público. O resultado foram déficits de dimensão assustadora, superiores em alguns casos a 10% do PIB nos anos iniciais da crise.15 Esses déficits ocorreram a despeito do efeito atenuante sobre as contas públicas das políticas monetárias ultraexpansionistas adotadas pelos principais bancos centrais, liderados pela Reserva Federal dos Estados Unidos, e a consequente queda das taxas de juro e do custo da dívida pública. A política monetária, o segundo pilar da resposta da política econômica, consistiu não apenas em trazer as taxas básicas de juro, aquelas controladas diretamente pelos bancos centrais em suas operações de mercado aberto, para zero ou próximo de zero em termos nominais, mas também em adotar “forward guidance” (orientação prospectiva) em que o banco central se comprometia em manter as taxas de juro próximas de zero por período indeterminado. Ainda mais importante, foi a decisão, principalmente da Reserva Federal, de promover o chamado quantitative easing, expressão algo esdrúxula usada para designar a expansão deliberada e sem precedentes do balanço da autoridade monetária, mediante a aquisição de quantidades massivas de títulos públicos e privados para forçar a diminuição das taxas de juro de prazo mais longo.16 Em alguns momentos, na área do euro, em alguns outros países europeus e no Japão, as taxas de juro de curto prazo chegaram a ser negativas em termos nominais, o que equivalia a tributar as reservas bancárias e outros ativos líquidos. O terceiro pilar foi a já mencionada decisão de usar recursos e garantias
públicas para socorrer as instituições financeiras. Isso resultou em tremenda socialização de prejuízos que deixaria, menciono en passant, um rescaldo de revolta e ressentimento nas populações americana e europeia, constituindo uma causa importante da onda populista que atingiria muitos países desenvolvidos no pós-crise. Em termos macroeconômicos, o resultado foi um grande aumento da dívida pública nos países desenvolvidos, refletindo o impacto fiscal das operações de socorro, da recessão e das medidas contracíclicas.17 A solução teórica para o dilema do emprestador de última instância anteriormente referido é conhecida. Para mitigar o risco moral, a intervenção estabilizadora da autoridade pública deve preservar a instituição financeira, quando possível, sem salvar seus administradores e acionistas principais, submetendo-os, ao contrário, aos rigores da lei e, quando cabível, a punições exemplares. Há duas dificuldades importantes, porém. A primeira é onde traçar a linha entre: a) os depositantes, investidores e credores que devem ser bailed-out (socorridos ou protegidos), no interesse da estabilidade do sistema financeiro; e b) aqueles que devem ser bailed-in (obrigados a contribuir com perdas para a solução do problema), no interesse da disciplina e da responsabilização dos que devem ser responsabilizados. A distinção entre os dois grupos de credores ou investidores, como muita coisa em economia, parece clara em princípio, mas é obscura na prática. A segunda dificuldade – esta provavelmente ainda mais difícil de enfrentar – é do campo da economia política. Os proprietários e principais dirigentes dos bancos e outras instituições financeiras são um poderoso grupo de poder. Em linguagem marxista, são a fração hegemônica das classes dominantes ou, de forma mais pitoresca, o núcleo duro do que eu, em meus artigos na imprensa brasileira, chamo de “turma da bufunfa”.18 O presidente Obama, sempre ansioso em ser aceito pelo establishment, não tinha apetite para confrontá-los; tampouco sua equipe econômica, que era de corte convencional. Resultado: a turma da bufunfa escaparia essencialmente ilesa ou com pouco sofrimento.19 Uns sobreviveriam intactos, mantendo posições e prestígio. Os gestores das instituições mais problemáticas acabaram, em diversos casos, tendo suas carreiras interrompidas, mas eram amparados, na saída, pelos célebres golden parachutes (paraquedas dourados), os generosos pacotes financeiros oferecidos aos altos executivos dos bancos quando do seu afastamento. Só acabaram enjaulados ou submetidos a punições mais severas os outliers, os casos mais extremos de vigarice financeira, como o notório Madoff, cujo nome (mad) já sinalizava o pior, mas que conseguiu, por muito tempo, enganar investidores e parceiros de negócios ou negociatas.
3. A reforma dos instrumentos de empréstimo do FMI – retomando Keynes Mas deixo isso tudo de lado para focar, mais uma vez, nos efeitos da crise sobre o FMI. Um deles já abordei anteriormente: dentro do FMI, pessoas de visão, notadamente DSK e Olivier Blanchard, aproveitaram a oportunidade para arejar o debate macroeconômico, enfrentando, porém, as objeções da ala mais tradicionalista do staff e da Diretoria, liderada pelos alemães. A cadeira brasileira era a que mais se aproximava das posições defendidas por DSK e Blanchard. A discussão foi intensa, mas nunca seria claramente resolvida. Os argumentos da ala revisionista eram fortes, mas fortes também eram as objeções dos defensores da sabedoria convencional. Havia em muitos setores da instituição a convicção arraigada de que seria perigoso permitir a consolidação de argumentos considerados heréticos. Com o refluir da crise alguns anos depois, e a substituição de DSK por Lagarde, a ala mais conservadora recuperaria grande parte do espaço perdido, como indiquei anteriormente. Outra consequência, ainda não abordada neste texto, foi a oportunidade que se criou para reformar os instrumentos de financiamento do FMI. Estabeleceuse, também nesse tema, a mesma oposição básica entre, de um lado, os que queriam aproveitar a oportunidade proporcionada pela crise para revisitar e tornar mais atrativas e menos pesadas as modalidades de empréstimo da instituição e, de outro, aqueles que se aferravam às práticas tradicionais, marcadas por exigências detalhadas e condicionalidades impostas aos devedores. A cadeira brasileira estava novamente no primeiro grupo e exercia, nesse tópico, até certa liderança em termos de formulação de propostas. Uma circunstância prática reforçava a mão dos que queriam mudanças: apesar da gravidade da crise financeira do Atlântico Norte e seus efeitos desestabilizadores sobre as economias de diversos países, estes demoravam muito a aceitar a necessidade de recorrer ao FMI. Era um fenômeno já visto em diversas crises anteriores, inclusive na América Latina: o estigma associado ao Fundo, que era forte em muitos países, transformava a instituição em um emprestador, literalmente, de última instância, a quem só se recorria quando não havia mais alternativa considerada viável. A esperança dos revisionistas era de que aliviar as condicionalidades e tornar as linhas de empréstimo mais flexíveis poderia remover, pelo menos em parte, o estigma associado ao Fundo e facilitar sua participação na resolução dos efeitos da crise sobre diversos países vulneráveis.
A cadeira brasileira já vinha se dedicando ao tema mesmo antes do agravamento da crise. O ministro Mantega, no início de 2008, me pedira que trabalhássemos na formulação de alternativas. Naquela altura, a crise ainda não atingira os países em desenvolvimento com toda a força, mas sua percepção, correta, é que isso era apenas uma questão de tempo. A preocupação primordial dele era, na realidade, com a Argentina, aliada do Brasil e um dos nossos principais parceiros comerciais. Mantega imaginava que o Fundo talvez pudesse ajudar, desde que revisse sua forma de atuar. A expectativa do ministro era infundada, nesse caso. A resistência à mudança no FMI era grande. E a Argentina era um dos países em que o estigma relacionado ao FMI era dos mais acentuados – por motivos históricos, remotos e recentes. Por sua vez, a avaliação da instituição em relação à Argentina no período Néstor e, depois, Cristina Kirchner se tornara cada vez mais negativa – em parte por motivos questionáveis (a tradicional tendência do FMI a pender para o lado dos credores em detrimento do devedor), em parte por motivos válidos (a tendência do governo argentino a seguir, cada vez mais, políticas econômicas inconsistentes e até mesmo a recorrer à manipulação de dados, notadamente de inflação). Mas Mantega tinha razão, repito, em imaginar que muitos países emergentes e em desenvolvimento precisariam do FMI. O que ninguém sabia, àquela altura, é que países europeus, considerados desenvolvidos, também seriam fortemente atingidos e acabariam nos braços do Fundo. Embora fosse difícil aplicar a ideia ao caso da Argentina, como queria Mantega, a revisão dos instrumentos do FMI era, sim, relevante. Mesmo antes que ele levantasse o tema, já estava em curso, um trabalho propositivo dentro da cadeira brasileira, realizado basicamente pelo experiente Helio Mori. Depois de diversas discussões internas, desde o início de 2008, chegamos a uma proposta de criação de uma linha de financiamento – que denominamos Rapid Liquidity Line (RLL) – e que apresentamos ao ministro Mantega e, em seguida, à consideração da Diretoria, da Administração e do staff. A ideia básica, em poucas palavras, era introduzir nova linha no arsenal do FMI, sob a qual se forneceria apoio de balanço de pagamentos com grande rapidez – por meio de desembolsos ou em caráter preventivo – a países que tivessem políticas econômicas sólidas. O acesso seria ilimitado, isto é, não haveria teto ao montante de recursos de que disporia o país, e não seriam impostas as tradicionais condicionalidades, os já referidos critérios de desempenho trimestrais. O staff do FMI se limitaria a fazer uma simples checagem, semestral, para confirmar que o país continuava a seguir políticas sólidas. Era uma inovação que poderia ser considerada irrealista, talvez utópica,
mas que tinha raízes na história do FMI, como descobriríamos depois. O próprio Keynes imaginava que o Fundo operaria essencialmente dessa forma, proporcionando apoio rápido e incondicional.20 Como em muitos outros temas, a visão de Keynes não prevalecera, e o Fundo foi se consolidando ao longo das décadas como uma instituição que se imiscuía em detalhes e tutelava a condução da política econômica, obedecendo a um minucioso manual de procedimentos e atuando, por isso, com certa lentidão e rigidez. Keynes estava adotando, nos anos 1940, o ponto de vista do devedor – condição em que se encontrava o seu país, em razão da Segunda Guerra Mundial. Ele estava “lutando pela GrãBretanha”, como frisou um dos seus biógrafos, Robert Skidelsky.21 Assim, era possível voltar a Keynes, como passei a fazer, para encontrar argumentos poderosos em favor do ponto de vista da flexibilização do FMI como emprestador. O Brasil não era mais devedor do Fundo e estava a caminho de tornar-se em breve um dos seus credores, como mencionei, mas tinha muita experiência como devedor da instituição, tendo sido, no passado muito recente, um dos seus principais clientes.22 Além disso, os outros oito países da cadeira eram todos eles países em desenvolvimento, alguns deles em pleno programa com o FMI (República Dominicana e Haiti), outros com possível interesse de recorrer à instituição, dependendo dos desdobramentos da crise internacional. Não era o caso do Brasil, volto a dizer. O ministro Mantega preocupava-se, inclusive – e com razão – que o empenho da cadeira brasileira na reforma dos instrumentos de financiamento do FMI não fosse interpretado como sinal de interesse do Brasil em voltar à condição de devedor. Esse boato surgiria, de fato, dentro da instituição ao longo de 2008, mas foi fácil desmenti-lo. A posição de balanço de pagamentos e reservas internacionais do Brasil se fortalecera muito nos anos anteriores à crise e continuava forte apesar da turbulência no Atlântico Norte. A entrada do Brasil no FTP, já mencionada, no começo de 2009, neutralizou totalmente esses rumores. A proposta da cadeira brasileira e algumas outras propostas, que iam com mais cautela na mesma direção geral, não prosperavam facilmente dentro de uma instituição conservadora e agarrada às suas tradições. Mesmo DSK, que era propenso à inovação, acabou ajudando pouco nesse tema e se rendia com certa facilidade às objeções da ala tradicionalista do staff e da Diretoria. Depois de meses de discussão interna – e apesar do agravamento dramático da situação financeira nos Estados Unidos e na Europa desencadeado pelo colapso do Lehman em setembro de 2008 – o máximo que se conseguiu foi uma vitória muito parcial: a criação, em outubro daquele ano, de uma linha, denominada Facilidade de Liquidez de Curto Prazo (Short-Term Liquidity Facility – SLF),
que nasceu, infelizmente, cheia de travas que impediriam sua utilização pelos países. Passamos então mais alguns meses lutando para persuadir os setores mais conservadores do Fundo de que era preciso ir além da natimorta SLF. Perdemos tempo precioso. Enquanto lutávamos com as barreiras internas do FMI, a Reserva Federal agiu rapidamente e ofereceu linhas de swap em dólares para os principais bancos centrais do mundo desenvolvido, facilitando a atuação de todos eles na provisão de dólares, sem restrições, no atribulado mercado interbancário internacional. Em seguida, deu um passo adicional, inédito, e ofereceu linhas de swap a alguns poucos bancos centrais selecionados de países emergentes, entre eles o do Brasil.23 A liderança estava em mãos dos Estados Unidos que, sem consultar ninguém, simplesmente estabeleciam unilateralmente quem merecia e quem não merecia apoio. Enquanto isso o FMI, onde nós, os emergentes, tínhamos bem ou mal alguma influência, patinava e perdia espaço – em parte, ainda que não apenas, por objeções da diretora executiva americana, Meg Lundsager… No fim de março de 2009, conseguimos finalmente aprovar na Diretoria uma reforma ampla nos instrumentos de financiamento, em duas partes: a) a flexibilização das linhas tradicionais do FMI (a mais importante das quais é o Stand-By Arrangement – SBA); e b) a criação de uma linha inteiramente nova: a Linha de Crédito Flexível (Flexible Credit Line – FCL). Era uma das maiores reformas, talvez a maior reforma nos empréstimos e na sistemática de monitoramento da instituição desde a sua criação em Bretton Woods. Sem desmerecer o que estávamos fazendo, é preciso reconhecer que isso dizia muito também do tradicionalismo e do papel das forças da inércia dentro da instituição. E sem a crise financeira internacional então em curso, teria sido impossível chegar aonde chegamos. A primeira parte da reforma, embora menos espetacular, acabaria sendo mais importante na prática, pois o SBA e outras linhas tradicionais continuariam a ser as mais utilizadas nos anos seguintes. O novo formato do SBA aprovado pela Diretoria permitiu consolidar mudanças significativas, algumas das quais já vinham sendo testadas na prática. Ficou mais fácil, por exemplo, obter acesso preventivo (isto é, sem desembolso) ao SBA em valores elevados. Anteriormente, prevalecia o entendimento de que os SBAs preventivos deveriam ser aprovados em quantias modestas. Desapareceu, também, a presunção de que os empréstimos concedidos via SBA deveriam ser distribuídos uniformemente ao longo da duração do acordo e monitorados a cada trimestre. Dependendo das necessidades do país e da solidez da sua política econômica, definiu-se que os
SBAs poderiam ser front-loaded (isto é, o acesso à maior parte do empréstimo poderia ser imediato ou ocorrer nas fases iniciais do programa) e estabeleceu-se, também, que o monitoramento do programa poderia ser feito com menos frequência, em bases semestrais. Um pouco de cinismo, aliado à fácil sabedoria ex post factum, sugere que a disposição de algumas cadeiras europeias de aprovar essas mudanças refletia provavelmente a percepção, que se avolumava gradualmente, de que europeus, inclusive de olhos azuis, precisariam recorrer ao FMI. Seja como for, ainda que em parte e, talvez, por motivos algo escusos, estávamos fazendo progresso, mesmo que limitado, mesmo que demorado. A grande inovação, entretanto, estava na segunda parte da reforma de março de 2009: a criação da FCL. Ela era, no essencial, idêntica à proposta da RLL, apresentada pela cadeira brasileira em meados de 2008. Na FCL, foram removidas todas as limitações da sua antecessora, a natimorta SLF. Ficamos, na época, naturalmente orgulhosos com um resultado que era, em grande medida, mérito da cadeira brasileira, ainda que isso fosse raramente reconhecido dentro e fora do FMI. A FCL representava, realmente, uma inovação extraordinária no funcionamento do Fundo – e, por isso mesmo, fora aprovada com muitas objeções e até certa indignação de setores mais conservadores da instituição. Era fácil compreender por quê. Na FCL, não haveria cartas de intenção, critérios de desempenho, metas a cumprir ou monitoramento. Ela ficaria disponível para países que tivessem políticas econômicas sólidas e atendessem a critérios de habilitação preestabelecidos. A cadeira brasileira investiu tempo considerável para assegurar, linha a linha, ponto por ponto, que a FCL fosse aprovada dentro do espírito que presidira a proposta da RLL e que remontava, como já indiquei, às propostas originais de Keynes sobre a forma de emprestar do FMI. Ficou estabelecido que os países habilitados teriam acesso rápido, praticamente automático aos recursos do Fundo. Não haveria limite rígido de acesso; o valor do empréstimo seria determinado caso a caso (a SLF tinha um limite de 500% da quota). Os prazos de amortização (3¼ a 5 anos) seriam iguais aos das linhas tradicionais (SBAs e outras) e mais longos que os da SLF (que tinha prazo máximo de 9 meses). Além disso, uma vez aprovada, a linha de crédito poderia ser utilizada a qualquer momento ou, alternativamente, não ser desembolsada, ficando como instrumento preventivo, mediante pagamento de uma comissão. O custo da linha era, também, muito inferior ao da SLF e igual ao das linhas tradicionais. Como se resolvia a questão de saber se um determinado país estava, ou não, habilitado a receber apoio via FCL? A decisão da Diretoria que criou a linha
definiu a habilitação de forma flexível, como pretendia a cadeira brasileira, estabelecendo critérios genéricos, sem quantificações. Esses critérios nada mais eram do que os elementos básicos do que poderia ser aceito, sem muita controvérsia, como uma política econômica adequada: contas externas e fiscais sustentáveis, políticas monetárias e cambiais adequadas, inflação baixa e controlada, supervisão eficaz do sistema financeiro, estatísticas econômicas adequadas, entre outros. Haveria, ainda assim, o risco de que esses critérios fossem aplicados de forma excludente? Conhecendo o Fundo, acreditávamos que sim, e fizemos o possível para mitigar esse risco. Por insistência da cadeira brasileira, introduziuse na FCL um dispositivo estabelecendo expressamente que um país não precisava atender necessariamente a todos os critérios de habilitação para ter acesso à linha. A razão para esse dispositivo era clara: queríamos que a linha pudesse realmente ser utilizada e o acesso a ela não fosse barrado por exigências e perfeccionismos impossíveis de alcançar na vida real.
David contra Golias Essa luta prosseguiria após a aprovação da FCL na Diretoria, em março de 2009. Decisões como essa são seguidas, na rotina do FMI, pela elaboração de documentos de orientação do staff – conhecidas como operational guidance notes –, detalhando a forma de implementar a decisão. Esses documentos podem ser discutidos na Diretoria, mas não são submetidos à sua aprovação. Aí moravam novos perigos. Era preciso ficar atento para verificar se esses documentos supostamente burocráticos não deturpavam a decisão alcançada a duras penas na Diretoria. Ao longo do tempo, isso ocorreu algumas vezes. O diabo, como sempre, está nos detalhes: setores conservadores buscavam recuperar o terreno perdido, reestabelecendo controles e normas que eram, a rigor, incompatíveis com a FCL. A cadeira brasileira se impunha, nesse caso e em muitos outros, por seu domínio do assunto. Setores do staff e da Administração até arriscavam manobras mais ou menos escusas, mas logo recebiam contravapor da cadeira brasileira. Em todo o caso, era uma luta desigual, tipo David contra Golias. A pequena, mas aguerrida, equipe da cadeira brasileira enfrentava um staff muito mais numeroso, integrado por pessoas preparadas e que tinham, primordialmente, incentivos para agradar a Administração, onde predominavam europeus e americanos, e os diretores dos principais acionistas, também americanos e europeus. Nós só conseguíamos prevalecer pelo preparo técnico e capacidade de polemizar na Diretoria. A FCL constituía um terreno propício para a atuação da cadeira brasileira. Mas era uma trabalheira infindável, que demandava grande sacrifício pessoal da minha parte e da parte da equipe. Nesse caso, como em outros, para dar exemplo e favorecer a mobilização dos nossos quadros, eu fazia questão de buscar que o meu sacrifício pessoal fosse maior – o que geralmente era verdade. Com o passar dos anos, entretanto, eu acumulava cada vez mais experiência e conhecimento dos detalhes e podia, com menos dispêndio de tempo e energia, compreender o essencial dos documentos do staff e descobrir onde estavam os pontos problemáticos e como melhorá-los em benefício da instituição e de nossos países. Assim, os integrantes da Administração e do staff pensavam duas vezes antes de tentar manobras duvidosas em assuntos de interesse da cadeira brasileira. Fiquei satisfeito, é claro, com a criação da FCL, mas não me iludia. A resistência fora tanta dentro do FMI que não podia haver dúvidas de que a
aplicação correta e justa da nova linha estava longe de garantida, havendo sempre o risco de que as velhas práticas do FMI predominassem ou reaparecessem sob nova roupagem. Ao longo dos anos seguintes, a cadeira faria grande esforço para que as mudanças nas linhas tradicionais e a FCL fossem aplicadas de forma fiel ao decidido pela Diretoria. Fomos bem-sucedidos no primeiro ponto, mas não muito no segundo. Uma razão é que os países europeus que precisaram, depois de muita hesitação, recorrer ao FMI – Islândia, quatro países da área do euro (Grécia, Irlanda, Portugal e Chipre), além de diversos países de mercado emergente no Leste Europeu (Romênia, Letônia, Estônia, Ucrânia, entre outros) – estavam todos em estado de tal vulnerabilidade e, em alguns casos, de verdadeira desordem macroeconômica, que era totalmente impossível considerá-los aptos a utilizar a FCL. Foram todos encaminhados às linhas tradicionais, com as mudanças aprovadas em março de 2009 pela Diretoria, e em alguns casos extremos – notadamente a Grécia – com casuísmos meio escandalosos, de que tratarei mais tarde. A FCL, contra nossa intenção original, acabaria sendo aplicada de forma muito pouco transparente em benefício de um pequeno número de Estados clientes dos Estados Unidos ou da Europa. Apenas três teriam acesso à nova linha – o México, a Colômbia (ainda na cadeira brasileira na época) e a Polônia. Eram países com políticas econômicas razoavelmente arrumadas, mas que (contrariamente, por exemplo, ao Brasil e a países emergentes do Leste da Ásia) não haviam acumulado um volume elevado de reservas internacionais nos anos que antecederam à crise e apresentavam, portanto, alguma vulnerabilidade às turbulências externas.24 Outro aspecto importante é que em nenhum dos três países pesava muito a questão do estigma do FMI, o que tornava pequeno o custo político de recorrer à instituição, tanto mais que poderiam explicar a seu público interno, sem faltar à verdade, que não estavam se submetendo às condicionalidades e interferências tradicionais. A FCL acabaria sendo utilizada por eles com sucesso e de forma apenas preventiva, isto é, sem desembolsos. Empréstimos de grande magnitude foram concedidos aos três países, inicialmente na faixa de 900% a 1.000% das suas quotas. A FCL viraria uma linha secundária de reservas, a custo relativamente baixo, que seria renovada para esses três países sucessivas vezes pela Diretoria. Os críticos dessa linha, por exemplo a cadeira da Rússia, passaram a se referir a ela debochadamente, e não sem razão, como TCL – Three Country Line. Com o refluir da crise financeira do Atlântico Norte, e sobretudo quando arrefeceu a crise do euro a partir de 2012 ou 2013, as tendências conservadoras
dentro do FMI voltaram a predominar, como mencionei. A FCL, por exemplo, passou a ser aplicada de forma rígida, seguindo um suposto perfeccionismo em termos de habilitação, que não fazia parte do desenho original, concebido pela cadeira brasileira A falta de transparência tornou-se problema sério. A Administração do FMI se valia disso para preservar o controle sobre a linha. A alegação, legítima e defensável, é que era essencial preservar a reputação dos países que sondassem a instituição sobre o acesso à FCL, para protegê-los de repercussões negativas na mídia e nos mercados financeiros, em caso de insucesso na sondagem. Assim, argumentava-se de forma persuasiva que não era possível, nesse estágio inicial, levar a questão à Diretoria de 24 membros, mesmo em reuniões classificadas como sigilosas ou confidenciais. O risco de vazamento era então utilizado para manter a Diretoria à margem da triagem dos candidatos. As conversas iniciais entre um eventual país candidato e o FMI aconteciam exclusivamente com a Administração e o staff, com participação eventual (mas nem sempre) do diretor e/ou de alternos e assessores que representavam o país na instituição. A cadeira brasileira, em especial, temida pela sua independência e capacidade de questionar com substância as inclinações da Administração e do staff, era mantida cuidadosamente à margem desses entendimentos – exceto quando estava envolvido um país da própria cadeira. A Colômbia, representada na nossa cadeira por uma diretora alterna problemática, já mencionada, preferiu não passar pelo diretor brasileiro ao solicitar a FCL, mesmo em se tratando de acesso a uma linha que resultara dos nossos esforços. E, de fato, nem precisava passar por mim, pois seguia políticas econômicas sólidas e desfrutava, além disso, do apoio que os Estados Unidos se dispunham a dar a seus estadosclientes. Mas o Panamá, com quem eu tinha boa relação, resolveu em certo momento sondar a possibilidade de acessar a linha, mantendo-me a par de tudo e pedindo a minha ajuda. Atuei de forma discreta para não prejudicar as chances do Panamá, mas logo percebi que havia certa má vontade com o país. Do ponto de vista macroeconômico, o Panamá reunia, no meu entender, todas as condições para se habilitar à FCL: era uma economia bem administrada, com desempenho excepcional que vinha sustentando ao longo de vários anos taxas de crescimento “asiáticas”, isto é, um ritmo de expansão só encontrado nas economias emergentes do Sul e do Leste da Ásia. Havia, entretanto, uma dificuldade. O Panamá era uma economia plenamente dolarizada, que enfrentava, por isso mesmo, as inevitáveis dificuldades de montar um esquema de emprestador de última instância para o
sistema financeiro panamenho, que é de porte considerável. As autoridades do país queriam, inclusive, se valer da FCL para ajudá-las a suprir essa lacuna, nem que fosse de forma transitória. Era uma aspiração legítima, compatível no meu modo de ver com os requisitos estabelecidos pela linha. Não foi o entendimento da Administração e do staff, por motivos que me pareciam algo obscuros, talvez inconfessáveis. Fiquei com a impressão de que a razão real da relutância em relação ao Panamá era a demora do país em se adaptar aos requisitos que a OCDE, controlada pelos Estados Unidos e demais países desenvolvidos, queria impor aos chamados paraísos fiscais e financeiros em matéria de intercâmbio de informações tributárias e regras contra lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo, entre outras exigências. Esse objetivo poderia ser até válido, mas nada tinha a ver com a FCL, que estava sendo usada, indevidamente, como instrumento para impor uma agenda dos principais acionistas do FMI ao país. O Panamá, para evitar constrangimentos, acabaria desistindo da sua candidatura à FCL. O caso do Panamá chegara a meu conhecimento, repito, porque era um país da minha cadeira, que depositava confiança no diretor. Não podia saber quantos casos semelhantes estavam acontecendo nos bastidores do FMI, sem o meu conhecimento. O certo, apenas, é que a FCL ficaria limitada a três países, tendo pouco efeito prático sobre a atuação da instituição.25 A grande maioria dos países que recorreram ao FMI durante e depois da crise foi enquadrada nas linhas tradicionais.26
4. Ação do G20 durante a crise internacional: ampliação dos recursos do FMI Do fim de 2008 em diante, no período pós-Lehman, o G20 passou a ter, como mencionado anteriormente, um papel crucial no enfrentamento da crise financeira do Atlântico Norte e seus desdobramentos internacionais. Convertido em foro de líderes, isto é, de presidentes ou primeiros-ministros, o G20 serviu de plataforma e mecanismo de coordenação para os principais países desenvolvidos e emergentes. A liderança era dos Estados Unidos, tanto nos meses finais do governo Bush como no governo Obama, e em menor medida da Europa. Os emergentes tinham papel importante, principalmente os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) que já estavam atuando de modo coordenado desde o início de 2008, mas a hegemonia era dos desenvolvidos.
O que queriam os países desenvolvidos do G20 naquele momento? Primordialmente, uma ação solidária e coordenada para afastar o risco de uma depressão econômica. O G20 constituiu-se, assim, no quarto pilar da resposta à crise, adicionando uma dimensão internacional às iniciativas anticrise tomadas no âmbito nacional, isto é, aos já referidos pilares fiscal, monetário e de socorro às instituições financeiras. Buscava-se indicar, no mais alto nível dos governos, que estava em curso uma ação conjunta de grande magnitude, com a adoção simultânea pelos desenvolvidos e emergentes do G20 de políticas contracíclicas para compensar o colapso da demanda privada de consumo e investimento. Havia apoio quase geral e irrestrito a esse propósito. Apenas a Alemanha, mais presa ao conservadorismo fiscal e monetário, se mostraria hesitante em aderir a esse consenso de corte keynesiano. O FMI era uma parte importante da estratégia contracíclica. A sua função seria impedir que países gravemente atingidos por repercussões de balanço de pagamentos ou financeiras da crise nos Estados Unidos e nos principais países europeus fossem forçados a adotar políticas recessivas para fazer face a seus problemas, o que só contribuiria para aprofundar a retração da economia mundial. A provisão de recursos por parte do Fundo permitiria que o ajustamento nos países mais vulneráveis fosse espaçado ao longo do tempo. E, de fato, como vimos, no auge da sua atividade como emprestador, o FMI chegaria a socorrer mais de 50 países, não somente emergentes e em desenvolvimento, como se esperava inicialmente, mas alguns desenvolvidos, entre eles quatro membros da área do euro, Grécia, Portugal, Irlanda e Chipre. Havia, entretanto, uma dificuldade: os recursos à disposição do FMI no início da crise eram claramente insuficientes. O aumento das quotas totais proporcionado pela reforma de 2008 fora muito pequeno, de apenas 9,6%, e ainda não havia entrado em vigor. Considerando quotas e empréstimos, o volume de recursos do Fundo alcançava apenas US$ 250 bilhões. Na cúpula de Londres, em abril de 2009, os líderes do G20 decidiram então anunciar que os recursos da instituição seriam triplicados, passando para US$ 750 bilhões. Decidiram, também, apoiar uma nova alocação de direitos especiais de saque do FMI, de US$ 250 bilhões, e empréstimos adicionais de pelo menos US$ 100 bilhões por parte do Banco Mundial e outros bancos multilaterais de desenvolvimento.27 Com o anúncio desses grandes números para o FMI e outras instituições financeiras multilaterais, assim como da ação coordenada contra a recessão nos países-membros do G20, buscava-se influir sobre as expectativas dos agentes econômicos, ajudando a conter a queda dos níveis de atividade econômica e emprego.
Qual era o ponto de vista dos emergentes nesse momento crítico? Sabíamos, claro, que a crise era sobretudo dos Estados Unidos e da Europa, mas temíamos que ela se espalhasse e afetasse as demais regiões do mundo. Os principais emergentes, inclusive os BRICs, sentiam o impacto da tempestade no Atlântico Norte, mas estavam aguentando bem o tranco. Nenhum deles enfrentava crise grave. As suas economias, depois de recessões não muito profundas, retomariam o rumo do crescimento. Mas estava claro, desde 2008, que era do nosso interesse apoiar uma ação internacional coordenada. Tendo conquistado, pela primeira vez, um assento à mesa principal, no G20, os emergentes estavam dispostos a mostrar solidariedade com os desenvolvidos em seu momento de suprema aflição. Aos cálculos de interesse próprio dos emergentes em evitar a propagação da crise, misturaram-se, talvez, algumas pitadas de vaidade e ingenuidade. Não estávamos ainda acostumados a participar do clube principal, e isso pesava de alguma forma. Seja como for, havia razões objetivas de sobra para que participássemos do esforço de contenção da crise. O que se esperava especificamente dos emergentes? Basicamente duas coisas. Primeiro, consideradas as condições específicas de cada economia nacional, a adoção de políticas econômicas expansivas que pudessem contribuir para evitar o aprofundamento e a propagação da recessão iniciada nos Estados Unidos e na Europa. Segundo, a participação no esforço de mobilização de empréstimos para o FMI. Países como China, Brasil, Rússia e Índia, com posições sólidas de balanço de pagamentos e reservas elevadas, foram instados a contribuir com empréstimos à instituição. Isso significava, evidentemente, consagrar a centralidade de uma instituição em que não estávamos suficientemente representados. A reforma de 2008, como vimos, não havia sido suficiente para resolver esse problema. O objetivo dos países desenvolvidos era reforçar o FMI sem lançar mão de um aumento de quotas. Apelava-se para o sentido de urgência. Não havia como aguardar a demorada negociação de uma nova rodada de revisão das quotas, dada a situação emergencial criada pela crise nos Estados Unidos e na Europa. Era um padrão que se repetia, como já assinalei. Em tempos de tranquilidade, adiava-se sempre que possível o aumento e a revisão das quotas com o argumento de que não havia necessidade. Em tempos de crise, não havia tempo hábil de recorrer a quotas, e a alternativa passava a ser o recurso a empréstimos. A solução que nós, emergentes, encontramos foi caracterizar esses empréstimos ao FMI como uma ponte para a próxima revisão de quotas. Chegaríamos ao entendimento de que os empréstimos, de natureza temporária, seriam convertidos posteriormente, pelo menos em parte, em ampliação das
quotas, abrindo espaço para a revisão da distribuição do poder de voto. Apesar da recente conclusão de uma reforma de quotas e voz, definiu-se que uma nova reforma do FMI seria negociada até janeiro de 2011. O compromisso foi que essa reforma resultaria em quotas relativas que refletissem o peso dos paísesmembros na economia mundial. O acordo político alcançado no âmbito do G20 era, de certa forma, inconveniente para nós. Entregávamos a nossa parte de imediato – os recursos para o FMI – em troca de uma promessa de reforma da instituição no futuro. Tínhamos consciência do risco de que a promessa pudesse ficar no papel. Tentaríamos minimizá-lo especificando, de forma relativamente detalhada, a natureza das reformas pretendidas. Essas especificações, às quais volto mais adiante, ficaram consignadas em comunicados do G20, inclusive dos seus líderes nas cúpulas. Mas as nossas desconfianças persistiam, até porque observávamos nas negociações dos textos do G20 a grande dificuldade de vencer as objeções dos europeus, que lutavam, frase por frase, palavra por palavra, para atenuar ou esvaziar os compromissos assumidos em relação ao FMI. Em todo o caso, ficava o constrangimento para eles: teriam coragem de descumprir objetivos aceitos por escrito por seus presidentes ou primeiros-ministros? O tempo mostraria, porém, que os desenvolvidos, em particular os europeus, eram exímios praticantes da arte da traição. Em 2009, as dúvidas e desconfianças não prevaleceram. O importante era agir contra a crise. O caminho mais rápido seria assinar acordos bilaterais com países-membros. O Japão saiu na frente oferecendo um empréstimo de nada menos que US$ 100 bilhões ao FMI, assinado em fevereiro. Diversos outros países desenvolvidos, entre eles Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá, também ofereceram contribuições bilaterais. O segundo maior empréstimo veio da China, no valor de US$ 50 bilhões. Brasil e Índia entraram com US$ 10 bilhões cada.28
Brasil como credor do FMI A participação brasileira consistiu na abertura de uma linha de crédito temporária de até US$ 10 bilhões, na forma de um acordo de compra de notas (Note Purchase Aggreement – NPA), com duração de dois anos, ao abrigo do qual se fariam desembolsos mediante a compra de títulos emitidos pelo FMI.29 Os títulos ou notas emitidos dentro desses acordos foram desenhados para permitir que continuassem a fazer parte das reservas internacionais do país credor, assegurando-se a sua imediata conversibilidade em moeda de liquidez internacional, a exemplo do que já ocorria no FTP. Além disso, os NPAs, assim como outras modalidades de empréstimo bilateral, foram definidos pela Diretoria como linhas temporárias, suplementares às quotas, de modo a não solapar a natureza do FMI como instituição baseada em quotas. A função dessas linhas, como indiquei, era servir de ponte para a nova revisão das quotas acordada pelo G20. Para o Brasil, a participação nessa operação foi um marco. Brasil, credor do FMI! Quando cheguei a Washington, dois anos antes, nunca poderia imaginar que viéssemos a emprestar dinheiro ao Fundo. Custei a me acostumar com a ideia. O brasileiro, leitor, é um pobre e humilde ser, sujeito a recaídas recorrentes no complexo de vira-lata, como dizia Nelson Rodrigues. Não tinha e nunca tivera os modos, hábitos e cacoetes típicos de um credor. Durante quase toda sua história, desde a independência, o Brasil fora um país devedor, não raro inadimplente, às vezes escandalosamente inadimplente. A ninguém escapava, portanto, o inusitado da situação. O significativo não era apenas que o Brasil emprestasse recursos ao FMI, mas especialmente que isso se desse em meio à mais séria crise econômica internacional desde a década de 1930. Normalmente, o que se poderia esperar em circunstâncias como essa? Ora, que o Brasil recorresse ao Fundo. Quando os Estados Unidos espirram, a América Latina pega pneumonia, rezava o chavão. Rompeu-se o padrão habitual: em vez de o Brasil ir ao Fundo, o Fundo foi ao Brasil. Evidentemente, isso não teria sido possível se não fosse sólida a nossa posição econômica e, em especial, se o país não tivesse acumulado, no período que antecedeu a crise de 2008, reservas internacionais superiores a US$ 200 bilhões.
Expansão e reformulação do NAB – BRICs alcançam
poder de veto Em 2009-2010, utilizando o caminho mais rápido para aumentar seus recursos, o FMI assinou acordos bilaterais de empréstimo com 22 países no valor total de mais de US$ 250 bilhões. Desde o começo, entretanto, o propósito da Administração do FMI e dos seus acionistas majoritários era que esses acordos bilaterais fossem subsequentemente incorporados ao NAB (New Arrangements to Borrow), esquema plurilateral de financiamento do FMI que se desejava ampliar e reformular. A meta, anunciada no início de 2009, era aumentar os recursos de US$ 50 bilhões para até US$ 500 bilhões, criando uma “segunda linha de defesa”, suplementar às quotas. Alguns países, os Estados Unidos por exemplo, pretendiam entrar diretamente no novo esquema. Aos países que assinassem acordos bilaterais, se proporia sua conversão em participações no esquema plurilateral. Desejava-se, também, flexibilizar o uso do NAB, facilitando o acesso do FMI a seus recursos. Os emergentes, especialmente os BRICs, tinham reservas quanto a essas propostas. Um NAB, turbinado e flexibilizado, encerrava certos perigos para nós. A sua expansão, sem salvaguardas apropriadas, poderia limitar o alcance da reforma de quotas e levar a atrasos na negociação. Estava-se criando uma situação anômala: o mecanismo complementar, mais flexível, seria pelo menos duas vezes maior do que as quotas do FMI. Munidos de uma grande massa de recursos de uso fácil, a Administração do FMI e os desenvolvidos não teriam, temíamos, pressa nem incentivo para concluir a revisão das quotas. Os BRICs indicaram inicialmente sua preferência em continuar com os acordos bilaterais, mas sofremos grande pressão para aceitar a centralização em um único acordo plurilateral. O pior é que os países desenvolvidos queriam, por inacreditável que pareça, que assumíssemos o compromisso de entrar no novo NAB às cegas, sem saber exatamente como se daria a reformulação. Como não éramos participantes do antigo NAB, criava-se uma situação potencialmente vexatória. Os antigos participantes, a grande maioria deles países ou bancos centrais de países desenvolvidos, poderiam se reunir e definir as novas regras de funcionamento, ficando os novos participantes comprometidos de antemão em aderir ao esquema. O que se queria, em outras palavras, é que aceitássemos uma espécie de contrato de adesão. Em abril de 2009, na reunião de primavera do IMFC, em Washington, os desenvolvidos tentaram passar o trator. O Egito havia assumido a presidência do IMFC em 2008 – fato aparentemente auspicioso, pois pela primeira vez o foro
era presidido por um país emergente. Infelizmente, isso não ajudava nada. O Egito de Hosni Mubarak estava estreitamente alinhado aos Estados Unidos e à Europa, e o ministro egípcio, Youssef Boutros-Ghali, funcionava no IMFC como mera linha auxiliar da Administração do FMI e dos desenvolvidos. Calculou-se que com os préstimos de Boutros-Ghali se conseguiria arrematar o compromisso de todos com o novo NAB. Não contavam, entretanto, com o Brasil, que não estava disposto a ser levado de roldão. Uma circunstância inesperada fez com que o ministro Mantega, que estava em Washington, não pudesse comparecer à reunião, e eu fui escalado para substituí-lo. À volta da mesa, os outros membros do IMFC estavam representados por ministros de Finanças ou presidentes de banco central, o que me deixava em posição complicada. Sob a coordenação do egípcio, formou-se rapidamente uma maioria a favor de um compromisso imediato de todos os credores efetivos e potenciais do FMI com o novo NAB. Argumentei então, em linha com o que combinara com Mantega, que não se deveria pedir compromisso dos eventuais novos membros sem que lhes fosse dada a oportunidade de participar da reconfiguração do mecanismo. Propus uma redação para o comunicado da reunião que condicionaria a entrada no NAB à nossa participação na definição da sua governança. Era o óbvio, mas mesmo assim a minha insistência no ponto causou desagrado aos americanos e europeus. Não estavam acostumados a que representantes de países em desenvolvimento reclamassem o direito de opinar. Fui acusado de estar bloqueando o consenso, em momento de grave crise global, que demandava decisões rápidas e urgentes. Alguns ministros pediam a palavra para reclamar do que lhes parecia excesso de exigência da parte do Brasil. Fiquei razoavelmente isolado, mas o IMFC decidia por consenso, como já indiquei. Abria-se assim a possibilidade de que um só membro, especialmente se contasse com certo apoio de alguns outros, inviabilizasse o que se pretendia consagrar. Depois de sucessivas intervenções, consegui suscitar alguns ruídos favoráveis do presidente do Banco Central da China, Zhou Xiaochuan, e de um ou outro representante dos BRICs. Na época, o grupo estava dando seus primeiros passos, mas já aparecia um traço que marcaria sua atuação nos anos seguintes – o Brasil era o motor do grupo, o país que demonstrava, em geral, mais capacidade de formular, atuar e definir estratégias; a China, que assumiria certa liderança a partir de 2015 ou 2016, ainda se mostrava relativamente retraída. Deu-se então uma situação desagradável, não muito comum em reuniões plenárias desse tipo. O egípcio, vendo que o assunto estava fugindo do seu
controle, resolveu escalar, criando grande constrangimento. Passou a desqualificar as minhas intervenções, questionando meu mandato e minha autoridade. Chegou ao ponto de cobrar a presença do ministro brasileiro, perguntando enfaticamente: “Onde está o ministro Guido Mantega?” Sob pressão, resolvi dizer que Mantega estava em Washington e poderia ser consultado. O secretário adjunto para assuntos multilaterais da Fazenda, Álvaro Vereda, que me acompanhava na reunião, foi até o ministro para explicar o impasse e buscar orientação. A reunião prosseguiu com outros temas, menos importantes, enquanto o assessor saía, apressado, para consultar Mantega. Havia certo risco na concessão que fizera ao egípcio; o assessor poderia pegar o ministro em mau momento ou não explicar de forma convincente o impasse. Não podia ter certeza de que minha posição seria confirmada. Mas tudo terminaria bem. Vereda retornou com uma nova formulação sobre o NAB, escrita por Mantega, que era essencialmente a mesma proposta já apresentada por mim, com outras palavras. Li então a formulação do ministro para o plenário, suscitando uma exclamação coletiva de impaciência e frustração da parte dos desenvolvidos. Mas estava terminado o embate. Não haveria adesão incondicional ao NAB. Isso acabaria sendo mais importante para nós do que eu mesmo podia imaginar àquela altura. As negociações para ampliação e revisão do NAB prosseguiriam ao longo dos meses seguintes, com ativa participação do Brasil e outros emergentes, resultando em mudanças que tornaram a entrada no mecanismo atrativa. Detalhes técnicos à parte, havia dois temas essenciais para nós: a tomada de decisões no novo NAB e sua relação com a nova reforma das quotas. A etapa decisiva da negociação seria concluída seis meses depois, em novembro de 2009, com resultados favoráveis no primeiro dos dois temas. O segundo seria abordado de maneira mais superficial e teve a solução basicamente transferida para as negociações relativas à reforma de quotas em andamento. No NAB, os recursos ficam à disposição do FMI, mas só são transferidos quando há necessidade efetiva. Trata-se, portanto, de um arranjo virtual de compartilhamento de reservas para retomar a linguagem usada anteriormente. A decisão fundamental nesse arranjo paralelo diz respeito à sua “ativação”, isto é, a autorização para que o FMI acesse os recursos. No esquema antigo, a ativação se dava empréstimo por empréstimo, isto é, cada vez que o Fundo aprovava um programa de financiamento para um país-membro. A supermaioria requerida para essa ativação era 80% do valor total do NAB, isto é, países responsáveis por pelo menos 80% das contribuições precisavam aprovar o desembolso de
recursos. Pretendia-se que o novo NAB fosse mais flexível, com decisões gerais de ativação valendo por seis meses, período durante o qual o Fundo poderia financiar desembolsos em qualquer programa aprovado.30 A pretensão era justificável, dadas as urgências da crise internacional. Porém, a supermaioria de 80%, inferior ao patamar habitual do FMI, colocava os BRICs em desvantagem. As contribuições anunciadas inicialmente pelos quatro países somavam US$ 80 bilhões (50 da China mais 10 de cada um dos outros três), ou seja, um pouco mais de 15% do valor total que se pretendia alcançar para o novo NAB. Além disso, uma mobilização bem-sucedida junto aos países-membros do FMI estava levando a um valor próximo a US$ 600 bilhões, bem acima da meta inicial. Naquele momento, a questão que se colocava para nós, BRICs, que estávamos atuando cada vez mais em coordenação, era saber se queríamos ou não ter poder de veto no novo NAB, algo que não tínhamos no FMI. Chegamos à conclusão de que, sim, era importante ter esse poder, tendo em vista a dimensão que estava tomando o NAB, muito superior às quotas do FMI. Para alcançar esse objetivo era importante conseguir duas coisas: a) aumentar de 80% para 85% a supermaioria requerida para a ativação; e b) aumentar a contribuição somada dos BRICs para um nível que garantisse pelo menos 15% do total dos recursos. Sem o aumento da supermaioria, a contribuição somada dos BRICs teria que aumentar de US$ 80 bilhões para cerca de US$ 120 bilhões, algo que se afigurava excessivo para os nossos países. A China, que já comparecera com o segundo maior valor depois do Japão, não se sentia em condições de oferecer mais. Combinei então, com os russos e indianos, de levarmos às nossas capitais a proposta de aumentar para US$ 14 bilhões as contribuições, no que fomos bemsucedidos. O valor total dos BRICs subiria, assim, para US$ 92 bilhões, o que nos daria poder de veto, desde que conseguíssemos aumentar a supermaioria de ativação para 85% e que o valor total do novo NAB não ultrapassasse muito os US$ 600 bilhões. Teríamos sucesso nos dois quesitos. Na reunião de novembro, em Washington, com participação de quase 40 países, a supermaioria requerida para ativar o NAB e para algumas outras decisões seria fixada em 85%.31 Ficaria estabelecido, também, que o novo NAB não poderia ultrapassar US$ 600 bilhões, ponto fundamental para os BRICs, pois sem um teto não teríamos como estabelecer com segurança a contribuição requerida para alcançar o patamar de 15%.
Não foi fácil chegar a isso. A resistência a mudanças era grande; não havia muita disposição de ceder espaço para os emergentes, principalmente (de novo) da parte dos europeus. A questão do nível da supermaioria deu lugar a momentos de estresse. Em Istambul, à margem da reunião anual do FMI, em outubro de 2009, as negociações do NAB se deram sob a presidência do Japão. Os membros do G7 reuniram-se à parte para coordenar posições e definir se poderiam, ou não, aceitar as pretensões dos BRICs. Como me confidenciou o presidente japonês do NAB, Daisuke Kotegawa, que era o diretor executivo do Japão e se tornara um amigo próximo, o G7 estava dividido àquela altura, com os europeus ainda renitentes. O representante da França, contou Kotegawa às gargalhadas, chegou a dar um murro na mesa ao dizer que se opunha a que os BRICs tivessem poder de veto. O Japão, observo de passagem, era um membro sui generis do G7. Único não branco do grupo, os japoneses pareciam, às vezes, não se solidarizar totalmente com os outros seis. Sempre discretos, sem marcar posição publicamente, os japoneses se divertiam um pouco com as atribulações dos americanos e europeus, inclusive com a dificuldade deles em aceitar a ascensão dos BRICs e outros emergentes. Os europeus acabaram cedendo. O novo NAB alcançou valor próximo a US$ 600 bilhões. Os Estados Unidos entraram com US$ 111 bilhões; o Japão, com US$ 106 bilhões; os países da União Europeia e seus bancos centrais, com US$ 192 bilhões; os BRICs, com US$ 92 bilhões.32 Só os Estados Unidos e o Japão, individualmente, e os BRICs e os europeus, atuando em conjunto, ficaram com poder de veto no NAB. A obtenção dessa prerrogativa pelos BRICs era um resultado sem precedentes na história do FMI, que refletia a ascensão dos emergentes e os abalos provocados pela crise financeira do Atlântico Norte. O próximo passo seria garantir resultado semelhante para os BRICs na reforma de quotas e poder de voto, que já estava em negociação e tinha conclusão prevista para janeiro de 2011. A preocupação dos BRICs de que o novo NAB poderia atrapalhar a reforma de quotas não foi inteiramente resolvida nessas negociações. Conseguiríamos apenas que o prazo inicial de duração do novo NAB fosse relativamente curto, até novembro de 2011, e que ficasse consignado que o seu tamanho seria revisto nessa ocasião à luz do resultado da reforma de quotas.33 Persistia, portanto, algum risco de que o NAB, ampliado e de uso fácil, pudesse facilitar o adiamento da revisão das quotas e do poder de voto.
5. A reforma de quotas de 2010 – fatores a nosso favor Em condições normais, nunca teria sido possível iniciar uma nova rodada de reforma do FMI tão pouco tempo depois da conclusão da anterior. A reforma de quotas e voz de 2008 fora aprovada, como vimos, em abril daquele ano. Sem a crise internacional e o acordo político entre desenvolvidos e emergentes no G20, a força dos super-representados no FMI teria certamente impedido que começasse tão cedo uma nova negociação. Mesmo assim, os diretores executivos europeus e o da Arábia Saudita, país que também tinha a perder com a reforma, ainda fizeram o possível para adiar e obstruir o processo. Por maior que fosse a renitência desses diretores, não havia, contudo, como bloquear o início das discussões da reforma, tendo em vista a meta de concluí-la até janeiro de 2011, anunciada pelos líderes do G20 na cúpula de Londres, em abril de 2009. Tínhamos a nosso favor, não só a crise econômica e as deliberações do G20, mas também alguns outros fatores. Primeiro, a circunstância de termos DSK como diretor-gerente do FMI que, embora europeu, não se deixava dominar inteiramente pelas preocupações dos seus conterrâneos. Ele tinha a mente aberta e percebia a importância de atualizar a governança da instituição que estava sob seu comando. O segundo fator era a disposição do governo Obama de jogar suas fichas em favor da reforma do FMI e colocar pressão sobre os tradicionais aliados europeus. Essa disposição se sentia nitidamente, na Diretoria do FMI e mais ainda no G20, em especial no período até a derrota dos democratas nas eleições de meio de mandato para o Congresso, em novembro de 2010, que levaria à perda da maioria na Câmara dos Representantes e ao enfraquecimento do governo Obama. Um terceiro fator que nos fortalecia era a crescente coordenação entre os BRICs, que atuavam conjuntamente em prol da reforma tanto na Diretoria do FMI como no G20. Essa coordenação começara em 2008 e já se tornara um fato político reconhecido nos meios financeiros internacionais.34 O papel dos Estados Unidos e a coordenação entre os BRICs ganharam destaque na cúpula do G20, realizada em Pittsburgh, em setembro de 2009, como descrevi em outro texto deste livro.35 Depois de horas e horas de negociação desgastante, com os europeus em bloco resistindo como sempre de forma determinada, chegamos a alguns compromissos que entraram na declaração dos líderes do G20 e ajudariam os emergentes nas negociações subsequentes. Reconheceu-se, por exemplo, que a distribuição das quotas deveria refletir os pesos relativos dos membros do FMI na economia mundial,
que haviam mudado substancialmente com o forte crescimento dos países em desenvolvimento mais dinâmicos. Para alcançar esse objetivo, assumiu-se o compromisso de “transferir para os países dinâmicos de mercado emergente e em desenvolvimento quotas de pelo menos 5% de países super-representados para sub-representados, usando a fórmula de quotas vigente do FMI como base a partir da qual trabalhar”.36 Essa formulação abstrusa e ambígua refletia a dificuldade de mover os europeus que, como eu disse, brigavam frase por frase e palavra por palavra. O que havia de positivo para nós eram a meta de pelo menos 5% de transferência de quotas e a referência à mudança de “pesos relativos” na economia mundial, o que apontava para dar mais proeminência ao PIB no cálculo das quotas. Isso nos favorecia e era caixão para os europeus. Havia, contudo, algumas proteções e válvulas de escape para eles: a meta numérica “pelo menos 5%” estava localizada na frase da declaração dos líderes, estranhamente, entre duas noções distintas: “para países de mercado emergente e em desenvolvimento dinâmicos”, de um lado, e “super-representados para sub-representados”, de outro.37 A primeira noção nos contemplava; a segunda contemplava os europeus, que conseguiram também introduzir referência à fórmula vigente de quotas que os favorecia – referência mitigada, porém, por um acréscimo nosso: “como base a partir da qual trabalhar”. Enfim, meandros kafkianos de uma negociação internacional. O que nós, emergentes, queríamos em termos de governança do FMI se resumia basicamente a três pontos: a) o abandono da regra informal arcaica que reservava o cargo de diretor-gerente a um europeu; b) o reequilíbrio das cadeiras na Diretoria Executiva, com aumento da presença de países em desenvolvimento e diminuição do número de europeus; e c) um realinhamento de quotas e votos, o que dependia em parte de uma nova fórmula de quotas. No primeiro ponto, não tínhamos apoio dos Estados Unidos, que preferiam manter o arranjo vigente em que indicam o presidente do Banco Mundial e os europeus, o diretor-gerente do Fundo. Tentamos, sem sucesso, introduzir nos comunicados e documentos uma referência explícita ao abandono da regra informal. O máximo que conseguimos foi um compromisso genérico com uma seleção dos dirigentes dos organismos internacionais “aberta, transparente e baseada no mérito”. Isso nada valia, como veríamos em 2011, quando DSK foi substituído após sua prisão em Nova York. Os europeus rapidamente apresentaram o nome de Christine Lagarde e não aguardaram nem o fim do prazo de inscrição de candidatos para declarar, em bloco, seu apoio ao nome da francesa.
Para o segundo ponto, contávamos, sim, com o apoio dos americanos. Os Estados Unidos tinham, há muito tempo, a opinião de que a Diretoria Executiva do FMI era grande demais e excessivo o número de diretores europeus. No meu entender, os americanos estavam certos nos dois pontos. Era muito difícil, porém, reduzir o tamanho da Diretoria, tendo em vista o crescimento do número de países-membros ao longo do tempo. Não haveria apoio dos emergentes para essa redução. Mais factível era consolidar os europeus em um número menor de cadeiras e aumentar a representação dos emergentes na Diretoria. Os europeus, entretanto, se opunham ferozmente a essa proposta. O terceiro ponto era o mais importante para nós. Grande parte das discussões na Diretoria ao longo de 2009 e 2010 versaram sobre o realinhamento de quotas e a revisão da fórmula aprovada em 2008. Essas discussões foram, com frequência, pesadas e desagradáveis. O bloco europeu fazia, como dizíamos na época, um stonewalling sistemático, obstruía sem cessar, recusando-se a cooperar e resistindo até mesmo a aceitar os compromissos consignados no G20 e no IMFC. Não queriam mudar a fórmula de quotas e nem discutir seriamente um realinhamento. Nós, os emergentes, em especial os diretores dos BRICs, nos coordenávamos e discutíamos em detalhe todos os aspectos técnicos e nuances do realinhamento e da fórmula. Prevalecíamos nas discussões da Diretoria, mas o progresso era lento. A energia que dispendíamos para promover as mudanças, os europeus dispendiam para bloqueá-las. Alguns de nós, em especial o diretor russo e eu, atuávamos em duas outras frentes, no IMFC e, mais importante, nas reuniões do G20 como delegados de nossos países. Para mim, havia uma outra questão crucial: a posição relativa do Brasil que estava defasada há muito tempo, como já assinalei. O que eu conseguira na reforma de 2008 tinha sido significativo, mas não era suficiente. Nossa quota e poder de voto continuavam muito abaixo da participação brasileira na economia mundial. Mais uma vez, a chave para essa questão seria o diálogo com DSK. Na busca de soluções para a reforma, o diretor-gerente conversava separadamente com diretores ou grupos de diretores, buscando entender as motivações e aproximar posições. Expliquei a ele que o Brasil continuava sub-representado quando considerada a nossa participação na economia global.38 Mostrei a ele que só cinco países – os Estados Unidos, o Brasil, a Rússia, a Índia e a China – figuravam na lista dos dez maiores tanto em termos de PIB (calculado por paridade de poder de compra) como de território e população.39 DSK logo se daria conta de que a reforma de quotas e governança teria que ter como um dos seus objetivos centrais colocar as dez maiores economias do mundo – os Estados Unidos, o Japão, os quatro grandes europeus e os quatro BRICs – como os dez
maiores quotistas do FMI. Para tal, o Brasil precisaria dar um novo salto no ranking do FMI e passar de 14o para 10o, ultrapassando Canadá, Arábia Saudita, Holanda e Bélgica.
China não queria ofender o Canadá Devo dizer que o diálogo com DSK pesava mais, nesse particular, do que a coordenação entre os diretores dos BRICs, embora estivéssemos atuando há dois anos em conjunto na questão da reforma do FMI e em outros temas. Levei a meus colegas russo, indiano e chinês, em uma das nossas reuniões de coordenação, a pretensão brasileira de subir para 10o no ranking. Para minha surpresa, o diretor chinês, Jianxiong He, declarou que apoiar a pretensão brasileira criaria dificuldades para a China, particularmente por ofender o Canadá. Nada disse na hora, mas fiquei remoendo o assunto. Tinha viagem marcada a Brasília e aproveitei a ocasião para levar a questão às autoridades brasileiras. Luís Balduíno, chefe da divisão financeira do Itamaraty, me disse, irritado: “Não querem ofender o Canadá, mas vão ofender o Brasil.” E o ministro Celso Amorim me recomendou: “Diga a eles que os nossos negociadores do clima ficarão sabendo disso.” É que nas negociações sobre clima, então em andamento, a China contava muito com o apoio do Brasil. Voltei a Washington munido desses argumentos e, na próxima reunião de coordenação dos diretores dos BRICs, pedi novamente apoio para a pretensão brasileira. O chinês repetiu que não queria ofender o Canadá. Conhecendo os chineses, a insistência no comentário deixava claro para mim que ele discutira o assunto com Beijing. Lancei então os petardos: “Não querem ofender o Canadá, mas estão ofendendo o Brasil.” E acrescentei: “Os nossos negociadores do clima vão ser informados.” Foi um choque. Esse tipo de confrontação não era nada comum em nossas reuniões de coordenação, marcadas pela cordialidade e cooperação. O diretor russo, Aleksei Mozhin, alarmado, reclamou: “O Paulo está agora fazendo ameaças!” Eu retruquei: “Estou apenas dizendo o que vai acontecer.” Ficou claro para eles que eu tinha consultado Brasília. A mensagem chegou a Beijing, como eu esperava. Pouco tempo depois, em reunião do IMFC, em Singapura, o vice-presidente do Banco Central da China, Yi Gang, que assumiria mais tarde a presidência do banco, veio conversar à parte comigo. “O presidente Lula quer muito que o Brasil seja número 10 no FMI, não é?”, indicando que estava a par das discussões entre os BRICs em Washington. Fiz cara de paisagem, pois a verdade é que Lula não entrava nesses detalhes e
não fazia a menor ideia do assunto, mas expliquei a Yi Gang em que se baseava a pretensão brasileira e ele assentiu a meus argumentos. Esse episódio terminou mais ou menos bem, mas era revelador do comportamento da China no FMI e mostrava os limites de uma articulação centrada exclusivamente nos BRICs. Os chineses, diante do peso crescente da sua economia, mostravam propensão a se distanciar dos outros BRICs e atuar em faixa própria, como se veria em outros momentos, em especial no uso do poder de veto no NAB e nas acusações de assédio moral que eu sofreria. De qualquer maneira, para que a reforma de quotas fosse bem-sucedida não bastaria melhorar a posição relativa do Brasil. O balanço de forças dentro da instituição só mudaria se os países emergentes e em desenvolvimento, no seu conjunto, obtivessem aumento significativo das quotas e do poder de voto, em linha com o que sugeriam as deliberações do G20. Era importante, também, reduzir a presença de europeus na Diretoria e aumentar a dos emergentes. Porém, ao longo de 2009 e 2010, foi ficando claro para os americanos e para nós que a Europa, definitivamente, não queria se mover. Os europeus davam todos os sinais de que não pretendiam ceder espaço – ou que só o fariam a conta-gotas. E, para completar o quadro, ainda queriam aproveitar a reforma para reintroduzir a proposta do Conselho Ministerial, rejeitada por nós em discussões anteriores.
Estados Unidos jogam a “bomba atômica” Foi aí que os americanos surpreenderam a todos, ao lançar mão de algo que era conhecido, dentro do FMI, como “bomba atômica” e que consistia em exercer o direito de veto e negar apoio à manutenção de 24 cadeiras na Diretoria Executiva. Desde 1992, depois que a quantidade de países-membros do Fundo aumentara muito com a dissolução do bloco soviético, o Conselho de Governadores votava, a cada dois anos, para manter o número de cadeiras da Diretoria em 24. Só que o Convênio Constitutivo do FMI previa apenas 20 cadeiras, a não ser que se decidisse por maioria de 85% dos votos modificar esse número. Tendo 17% dos votos, os EUA podiam vetar a manutenção das 24 cadeiras. E foi o que fizeram nas eleições de diretores executivos previstas para fins de 2010. A decisão unilateral dos Estados Unidos jogou a instituição em uma crise aberta, talvez sem precedentes, pois impedia a reconstituição da Diretoria. A Europa tomou tremendo susto, como se notava pelo comportamento nervoso dos diretores europeus. Não estava nos cálculos deles que os americanos pudessem
chegar a esse ponto. Mas a decisão dos Estados Unidos também deixou desnorteada a maioria dos diretores de países emergentes e em desenvolvimento. A forma de atuar dos americanos contribuía para gerar confusão. Não deram qualquer aviso prévio, provavelmente para evitar vazamentos e como tática de choque. E não se davam ao trabalho de procurar os outros países para explicar o que estavam fazendo. Era um exemplo de algo que experimentei mais de uma vez ao longo dos meus oito anos em Washington – não é fácil trabalhar com os americanos, mesmo quando se está em acordo com eles! Independentemente do estilo agressivo e algo arrogante dos americanos, era natural o nervosismo do nosso lado. A decisão dos EUA criava algum risco para países em desenvolvimento, inclusive o Brasil. Se não houvesse acordo e o número de cadeiras caísse de 24 para 20, seriam atingidas as quatro menores em termos de poder de voto. A 24a no ranking era a dos países africanos francófonos, a 23a era a cadeira sul-americana integrada por Argentina, Peru, Chile e outros, a 22a era comandada pela Índia, a 21a pelo Brasil. Se a reforma de quotas e voz de 2008 já estivesse em vigor, a cadeira brasileira seria a 18a em termos de votos, o que nos teria tirado da zona de risco. Porém, naquela altura, a reforma de 2008 ainda não havia sido ratificada por um número suficiente de países. Apesar disso, eu considerava a decisão dos EUA positiva para nós e cheguei a publicar um artigo no Financial Times, no calor da hora, apoiando os americanos e ressaltando o impasse criado pelo imobilismo dos europeus.40 Os americanos me diziam que eu era o único que havia entendido o que eles estavam fazendo. Aparentemente, não lhes ocorria que, se só um estava entendendo, faltava um pouco de explicação da parte deles. Na minha avaliação, que expressei no artigo publicado, o risco de desaparecimento das quatro menores cadeiras era pequeno. O FMI seria inconcebível com apenas uma cadeira da África Subsaariana. Também seria inconcebível o desaparecimento da cadeira que incluía a Argentina, o Peru, o Chile e outros países da América do Sul. Ainda mais impensável seria um FMI sem a Índia e o Brasil no comando de cadeiras na Diretoria. Mas não era nada inconcebível, ao contrário, um FMI com menos cadeiras europeias e com uma redução dos votos das cadeiras europeias remanescentes. Era isso, escrevi, que faria a instituição ficar mais equilibrada e representativa. O importante é que a iniciativa americana colocava em movimento uma negociação que parecia praticamente estagnada. O canhão fora apontado para a Europa. Nos meses seguintes, eles seriam obrigados a se mover.
Negociações na Coreia do Sul – Estados Unidos, Europa e BRICs As negociações continuaram em Washington, na Diretoria, e – mais importante naquele momento – no G20, que estava sob a presidência da Coreia do Sul. A reunião decisiva foi a ministerial do G20, em Gyeongju, na Coreia, em outubro de 2010. Os americanos, e nisso nós, emergentes, coincidíamos inteiramente com eles, estavam determinados a alcançar um resultado que pudesse ser levado à cúpula dos líderes dos G20, marcada para novembro em Seul. Representados por seus ministros de Finanças ou presidentes de banco central, os países do G7 se reuniram à parte em Gyeongju, com DSK presidindo a reunião. A discussão foi longa e muito tensa, sendo interrompida diversas vezes para consultas e para dar tempo ao staff do FMI de rodar diferentes cenários para o realinhamento das quotas. Timothy Geithner, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, colocava os europeus sob forte pressão. Soube depois que Christine Lagarde, então ministra de Finanças da França, chegou às lágrimas, exasperada pelo que considerava uma ruptura da tradicional aliança entre americanos e europeus. DSK era a nossa ponte com o G7. Eu recebia dele as informações sobre os caminhos que tomavam os entendimentos e ele, ao mesmo tempo, buscava sentir como reagiríamos ao que estava se configurando no G7. Em paralelo, os representantes dos BRICs se reuniam para tomar pé da situação, pois DSK indicara que, ao término das discussões entre americanos e europeus, a reunião seria ampliada para incluir os BRICs. Com a ajuda do diretor chinês no FMI, Jianxiong He, expliquei aos outros representantes dos BRICs, entre eles os ministros de Finanças da Rússia, Alexei Kudrin, e da Índia, Pranab Mukherjee, o que estava sendo discutido no G7 e como isso se comparava com as posições que os BRICs vinham defendendo para as reformas. Ao término da tumultuada reunião do G7, os BRICs foram então convidados para discutir os elementos de um possível acordo. O formato da reunião indicava, mais uma vez, o reconhecimento que os BRICs haviam alcançado como mecanismo de coordenação. Por outro lado, não era ideal para nós que americanos e europeus tivessem se posto de acordo antes de nos chamar para o diálogo. Mas, enfim, era o que tínhamos naquele momento. Os BRICs estavam todos representados por seus ministros ou presidentes de Banco Central, com exceção do Brasil, que se fazia representar pelo secretário de assuntos
internacionais da Fazenda, Marcos Galvão, e por mim, pois Mantega não pudera vir a Gyeongju. Do outro lado da mesa, estavam os representantes do G7, quase todos de nível ministerial – sinal da importância que se atribuía à questão do FMI naquele momento. A Coreia do Sul, como anfitriã, também participava. A sala era pequena e desconfortável e os assessores dos países desenvolvidos se amontavam atrás de seus ministros, alguns em pé. Na cabeceira da mesa, DSK coordenava a discussão, demonstrando habilidade e liderança. Como se colocava a questão para nós, BRICs, naquele momento? O desenho de acordo que nos estava sendo proposto continha pontos positivos, mas não atendia inteiramente a nossas aspirações. Foram apresentados números que mostravam, sim, uma transferência significativa de quotas, algo como 6%, para EMDCs dinâmicos e países sub-representados, em linha com o que havia sido anunciado como meta em Pittsburgh. Outro ponto importante: os quatro BRICs obteriam aumento em suas quotas relativas, principalmente a China e o Brasil. O aumento do Brasil resultava do esforço de colocar-nos entre os dez maiores, que DSK buscava persistentemente. Integrantes do staff que trabalhavam nos cálculos me confidenciavam que DSK sempre dizia a eles para não apresentar simulações em que o Brasil não fosse número 10. O diretor-gerente do Fundo tinha, acredito, duas motivações. A primeira era trazer o Brasil para o acordo que estava sendo montado. Não lhe escapava que éramos, nessa questão e em outras, o motor dos BRICs; ele percebia, também, que tínhamos certa influência sobre outros países emergentes e em desenvolvimento. A segunda motivação, talvez mais importante, era sua percepção de que colocar todos os BRICs, inclusive o Brasil que estava muito defasado, entre os dez maiores quotistas seria um elemento crucial para a divulgação do acordo. O Canadá acabou sendo convencido, em Gyeongju, a ceder a 10a posição, ficando abaixo do Brasil por ínfima fração.41 Havia aspectos problemáticos, porém. A transferência de 6% se dava em grande medida à custa de outros países em desenvolvimento, que eram considerados super-representados ou não suficientemente “dinâmicos”. Isso se justificava no caso da Arábia Saudita e outros exportadores de petróleo, por exemplo, mas havia muitos outros países emergentes ou em desenvolvimento que perdiam quota relativa ou não registravam ganho significativo. No grupo dos beneficiados estavam alguns desenvolvidos, notadamente a Espanha, que era, de fato, um dos poucos europeus que podia ser considerado sub-representado. A transferência líquida de quotas para os EMDCs em conjunto não chegava a 3%. Outro problema é que não se mexia na fórmula de quotas, que apresentava, como mencionado, distorções importantes e favorecia a super-representação
europeia. Quando recebemos, já durante a reunião, os números e um documento com as grandes linhas do acordo alcançado no G7, duas outras coisas me chamaram imediatamente a atenção. Primeira: a forma como se definira a diminuição das cadeiras europeias, tema tão caro aos americanos, era ambígua e poderia dar margem a subterfúgios. Quando levantei dúvidas a esse respeito, os principais assessores de Geithner, Lael Brainard e Mark Sobel, em pé atrás dele, gesticularam para mim, agitados, indicando que era impossível reabrir a questão. A outra coisa que me preocupou foi a inclusão inesperada no texto do G7 da criação do Conselho Ministerial, anátema para nós. Os europeus estavam visivelmente tentando introduzir o tema de contrabando. No meio da reunião, levantei-me e fui até a cabeceira da mesa reclamar com DSK de que não havíamos sido prevenidos do ressurgimento do Conselho. Ele sabia muito bem da nossa aversão à proposta. DSK me disse, em voz baixa: “É só o Brasil discordar com firmeza que o Conselho cai.” E, de fato, conseguimos derrubar o Conselho, mas ficou a formulação inadequada para a diminuição das cadeiras europeias. A questão fundamental para nós, como já mencionei, era a transferência de quotas para os BRICs e os EMDCs como um todo. Temíamos que seria difícil obter a concordância dos demais países emergentes e em desenvolvimento, dentro e fora do G20, se o acordo fosse visto como benéfico sobretudo para os BRICs. Pedimos a suspensão da reunião para permitir uma discussão entre nós e, aos brasileiros, uma consulta ao ministro Mantega. O problema continuava a ser, evidentemente, a resistência europeia à reforma. Com o agravamento da crise na área do euro, que alcançaria o auge no ano seguinte, aumentara ainda mais a determinação da Europa em manter privilégios e influência no FMI. Os Estados Unidos tinham jogado a “bomba atômica” e faziam pressão, mas não haviam conseguido dobrar os europeus inteiramente. Do meu ponto de vista, mais uma vez, o importante era colocar a reforma em movimento, e dar mais alguns passos à frente, evitando reproduzir o destino da Rodada Doha da OMC. Claro que muito pesava para mim o fato de o Brasil estar entre os principais beneficiários do acordo que se esboçava. Mantega concordou com essa avaliação. Com base nas informações que recebia de DSK ao longo das discussões do G7, fui percebendo que a saída seria incluir no acordo G7/BRICs alguns “forward-looking elements”, isto é, compromissos de resolver no futuro, até datas determinadas, os pontos que ficariam sem solução nesta etapa da reforma. Com a ajuda de Eduardo Saboia, diplomata que trabalhava na nossa cadeira em
Washington e que me acompanhava na reunião em Gyeongju, coloquei no papel três pontos, que levamos aos demais BRICs no intervalo da reunião com o G7: 1) o compromisso de rever a fórmula de quotas até janeiro de 2013; 2) a antecipação da próxima revisão das quotas para janeiro de 2014; e 3) o compromisso de que o NAB seria reduzido quando da entrada em vigor do aumento de quotas que estávamos em vias de aprovar, preservando as participações relativas dos membros. Os demais representantes dos BRICs concordaram com as sugestões apresentadas pelo Brasil e retomamos então a reunião com o G7. O ministro da Índia, o mais velho entre os ministros presentes, fez a leitura dos pontos que os BRICs gostariam de ver incluídos no acordo. A nossa aceitação do acordo ficou condicionada à inclusão dos três pontos.42 Não houve discordâncias do outro lado e o acordo foi concluído nessa base. Alguns representantes dos BRICs, entre eles eu, foram escalados para explicar o acordo a outros países emergentes do G20. Houve alguma relutância, vencida pela presença dos forward-looking elements e pelo fato de que a maioria dos demais emergentes do G20 ganhava em termos de quotas relativas (as exceções eram a Arábia Saudita, a África do Sul e a Argentina). O acordo alcançado por nós com o G7 ficaria consagrado no comunicado da reunião de Gyeongju e foi confirmado, em novembro, na cúpula dos líderes do G20 de Seul. A Diretoria do FMI aprovaria o acordo também em novembro, remetendo para consideração dos governadores uma versão ampliada e detalhada do que fora negociado na Coreia.43 A votação no Conselho de Governadores seria concluída pouco depois, em dezembro.
Brasil na primeira divisão – limites da reforma de 2010 A reforma de 2010 foi, sem dúvida, um avanço excepcional para o Brasil. Depois da China, o Brasil era o segundo maior beneficiário em termos de aumento da quota e do poder de voto. Quando cheguei a Washington, em 2007, o Brasil tinha uma quota de 1,4% do total e era o 18o maior quotista. Com a reforma de 2008, a nossa quota subiu para 1,8% e o Brasil, para 14o do ranking. A reforma de 2010 aumentava a quota brasileira para 2,3% e nos levava à 10a posição. O aumento acumulado em termos de poder de voto com as reformas de 2008 e 2010 foi o maior obtido pelo Brasil em toda a história do FMI. Com todos os BRICs ganhando em quotas, o poder de voto somado dos
quatro países aumentava para 14,2%, próximo do patamar de 15% que conferia poder de veto sobre decisões importantes.44 A China passava de 6a para 3a posição no ranking; a Índia, de 11a para 8a; a Rússia, de 10a para 9a. Ainda em Gyeongju, DSK anunciou como um dos principais resultados da reforma a inclusão no rol dos dez maiores quotistas do FMI dos “dez países sistemicamente mais importantes na economia global”.45 Destacou também a transferência de 6% de quotas para EMDCs dinâmicos e países subrepresentados e outras mudanças na governança para concluir que o acordo alcançado pelo G20 era “histórico” e “punha um fim à discussão sobre legitimidade do FMI”.46 Era um exagero manifesto. Os países desenvolvidos continuariam com 55% do poder de voto. Os europeus haviam cedido pouco espaço: o poder de voto agregado dos 27 países da União Europeia diminuiria apenas 1,5 ponto percentual, caindo para 29,4%, ainda muito acima do seu peso econômico relativo.47 Em grande parte por isso, a transferência de votos para os emergentes e em desenvolvimento era modesta, apenas 2,6 pontos percentuais (que se somavam à transferência de 2,7 pontos obtida na reforma de 2008). A distribuição de quotas e votos continuava a não refletir as mudanças que vinham ocorrendo e continuariam a ocorrer na economia mundial. Daí a importância dos forward-looking elements introduzidos pelos BRICs, como parte integrante do acordo, pois representavam o compromisso com a continuação do processo de transferência de quotas e votos no FMI. Marcar para janeiro de 2014 a conclusão da próxima revisão geral de quotas significava antecipá-la em dois anos relativamente ao calendário normal do FMI. Estabeleceu-se que essa nova reforma de quotas se faria após uma revisão abrangente da fórmula de quotas, a ser concluída até janeiro de 2013, para que ela refletisse melhor os pesos econômicos relativos.48 Foi importante, também, estabelecer que o aumento de 100% das quotas totais definido na reforma de 2010 seria acompanhado de uma redução correspondente das contribuições ao NAB, pois isso diminuiria o risco de que futuros realinhamentos de quotas viessem a ser protelados ou limitados com o argumento de que o FMI dispunha de recursos em abundância. Mesmo assim, os números mostravam claramente que o NAB pós-entrada em vigor do aumento das quotas continuaria com um volume de recursos muito expressivo – da ordem de US$ 250 bilhões – o que levava os BRICs a querer que fosse preservado o poder de veto que havíamos alcançado nesse mecanismo. Acordou-se, então, que as participações relativas no NAB seriam mantidas depois da sua redução.49 Por sugestão da Turquia, incluiu-
se também o compromisso de completar os procedimentos para a entrada em vigor das quotas até o Encontro Anual do FMI e do Banco Mundial de outubro de 2012. Estávamos cuidando de todos os detalhes e dando o nosso melhor para que a reforma de 2010 representasse um avanço real. O problema é que os europeus também davam o seu melhor para tentar limitar e esvaziar a reforma. Nada conseguimos, como antecipei, em matéria de mudança na regra informal que reservava o cargo de diretor-gerente a um europeu. Mesmo no ponto em que contávamos com apoio dos Estados Unidos – a diminuição do número de cadeiras europeias na Diretoria em favor de um aumento das cadeiras comandadas por EMDCs –, o que se conseguiu foi ilusório. A chave para esvaziar essa questão foi a inserção pelos europeus de uma válvula de escape na redação do compromisso referente à Diretoria, que ficou assim: “Maior representação para os EMDCs na Diretoria Executiva por meio de duas cadeiras a menos de países europeus avançados.”50 A válvula de escape era a palavra “avançados” (desenvolvidos). Com base nisso, os europeus se mobilizariam para aumentar a presença na Diretoria, em regime de rotação, dos EMDCs europeus, isto é, países do Leste Europeu classificados como de economia emergente, sacrificando em certa medida a presença dos pequenos países europeus avançados, inclusive alguns daqueles que, como mencionei anteriormente, se destacavam pela qualidade dos seus diretores. Em suma, a emenda foi pior do que o soneto. Os EMDCs da Europa rezavam pela cartilha dos principais países do continente e tinham pouco ou nada em comum com os demais emergentes. Em retrospecto, ficou claro que os europeus tinham levado a melhor na confrontação com os americanos em torno da composição da Diretoria – tanto mais que conseguiram incluir na reforma um compromisso, consignado em Resolução do Conselho de Governadores, de manutenção em 24 do número de cadeiras na Diretoria. Em outras palavras, foi desativada a “bomba atômica” dos americanos. As lágrimas de Lagarde não haviam sido em vão. 1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Hector Torres, Pedro Fachada e Felipe Santarosa sem responsabilizá-los pelas opiniões expressas ou pelos erros e omissões remanescentes. 2 Havia resistência, compreensível, a usar a designação emerging countries para países de civilização milenar como a China e a Índia. A Rússia, também de civilização antiga e na condição de ex-superpotência, era outro país que resistia a aceitar essa designação. A solução foi usar o termo emerging market countries para englobar os países em desenvolvimento economicamente mais avançados. 3 Entre eles, a Venezuela, a Líbia, o Iraque e outros países exportadores de petróleo. 4 A minha tendência era interagir com Galvão, único membro da equipe de Mantega que eu conhecera
anteriormente, por ter trabalhado com ele em projeto de pesquisa sobre o tema da globalização alguns anos antes. Sabia que ele era politicamente conservador, pois havia ocupado posições de confiança nos governos tucanos e até no governo Collor, mas respeitava a sua competência profissional. Galvão seria secretáriogeral do Itamaraty no governo Temer. 5 No caso brasileiro, a condução do assunto FMI era liderada pelo representante da Fazenda, reflexo do fato de que o governador do Brasil no Fundo era o ministro da Fazenda e não, como em outros países, o presidente do Banco Central. 6 Em retrospecto, entendo melhor do que na época as motivações de Saarenheimo. A posição da Finlândia e de outros países europeus era o espelho da posição da África do Sul. Esta última tinha assento no G20, mas estava sub-representada na Diretoria. O representante sul-africano no G20 chegava a hostilizar os diretores executivos que participavam das reuniões do G20, como pude testemunhar em reunião de que participei no Rio de Janeiro, antes de assumir o cargo em Washington. Já a Finlândia, assim como outros europeus menores, tinha representação na Diretoria, ainda que em regime de rotação, mas não no G20 – a não ser, indiretamente, via União Europeia. Assim, era natural que o finlandês não aceitasse de bom grado a tentativa de deslocar o centro de gravidade da discussão da reforma do FMI da Diretoria para o G20. Também pesavam, acredito, fatores pessoais. Saarenheimo era preparado e inventivo e via com maus olhos o conservadorismo estreito do acerto que estava sendo montado no G20 por deputies das capitais, que não tinham, necessariamente, grande conhecimento dos vários aspectos e detalhes da reforma do FMI. 7 Republicado neste livro, p. 420-2. 8 Descobriria, depois, para minha surpresa, que meus artigos na imprensa brasileira eram acompanhados no FMI e que – quando traziam críticas à atuação da Europa no FMI ou no G20 – repercutiam às vezes, por incrível que pareça, até em capitais europeias, suscitando algumas reclamações. 9 O discurso do secretário teve, também, aspectos cômicos, que não me escaparam apesar do clima de tensão. O infeliz resolveu lançar mão de uma paráfrase de célebre discurso de Churchill sobre o acordo de Munique em 1938, usando a respeito de si mesmo as palavras da Bíblia que Churchill lançara contra Chamberlain: “Thou art weighed in the balance and found wanting” (Foste pesado na balança e achado em falta). Eu, que conhecia bem os discursos de Churchill, escutava tudo aquilo estarrecido, mas sem deixar de notar o lado flagrantemente ridículo da situação. 10 Pouco tempo depois, ele foi substituído por Marcos Galvão e passou à posição de chefe de gabinete do ministro da Fazenda, sem exercer, porém, grande influência nessa nova posição. 11 Ver neste livro p. 421-2. 12 Todos esses aspectos são explicados em detalhe no documento Reform of quota and voice in the International Monetary Fund – Report of the Executive Board to the Board of Governors, 28 de março de 2008. Disponível em: . 13 Charles Mackay. Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds. Nova York: Harmony Books, 1980 (1ª ed.: 1841). Charles P. Kindleberger. Manias, Panics and Crashes: a History of Financial Crises. Nova York: Basic Books, Inc., 1978. John Kenneth Galbraith. A Short History of Financial Euphoria. Nova York: Whitle Direct Books, 1990. 14 Paul Krugman. The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008. Nova York/Londres: W.W. Norton & Company, 2009. Ver, também, do mesmo autor, “Mr Keynes and the moderns”. In: Vox, Research-based policy analyses and commentary from leading economists, 21 June 2011. Disponível em: < https://voxeu.org/article/mr-keynes-and-moderns>. 15 Nos Estados Unidos, o déficit do governo geral foi 13,3% do PIB em 2009 e 12,6% do PIB em 2010. No Reino Unido, 10,4% e 9,3% do PIB nos mesmos anos. Na Espanha, 11% e 9,4% do PIB. OECD Economic Outlook, novembro de 2018, anexo, tabela 31. Disponível em: . 16 Sobre a resposta da Reserva Federal à crise ver, por exemplo, Ben S. Bernanke. The Federal Reserve and the Financial Crisis. Princeton: Princeton University Press, 2013. Bernanke foi o chairman da Reserva Federal no período da crise.
17 Para os países da OCDE como um todo, a dívida bruta do governo geral como percentagem do PIB subiu de 73% em 2007 para 101% em 2011 e 112% em 2014, mantendo-se próxima deste nível nos anos seguintes. OECD Economic Outlook, op. cit., anexo, tabela 36. 18 Ver, por exemplo, neste livro, p. 423-4, 430-4 e 438-40. 19 Um relato crítico da relação entre o governo Obama e Wall Street pode ser encontrado em livro escrito pelo ex-economista chefe do FMI Simon Johnson e o historiador James Kwak – 13 Bankers: The Wall Street Takeover and the Next Financial Meltdown. Nova York/Toronto: Pantheon Books, 2010. 20 D.E. Moggridge. Maynard Keynes: An Economist’s Biography. Londres/Nova York: Routledge, 1992, p. 729. 21 Fighting for Britain é o subtítulo do terceiro volume da biografia sobre Keynes de Robert Skidelsky. John Maynard Keynes. Fighting for Britain, 1937-1946, v. 3. Londres: Macmillan, 2000. 22 O último empréstimo do FMI ao Brasil fora aprovado em 2002, no fim do governo Fernando Henrique Cardoso, e havia sido pago antecipadamente em fins de 2005, no primeiro mandato do presidente Lula. 23 Foram contemplados, também, os bancos centrais do México, da Coreia do Sul e de Singapura. 24 Essa vulnerabilidade resultava pelo menos em parte da excessiva fidelidade desses países às políticas econômicas aceitas como válidas antes da crise de 2008 em Washington, incluindo-se aí a pouca importância que o FMI atribuía a manter déficits moderados no balanço de pagamentos em conta corrente e a acumular reservas internacionais volumosas, em caráter preventivo. Ver neste livro p. 44-5. 25 Para responder às críticas da cadeira brasileira e de outras ao que considerávamos a aplicação inflexível e seletiva da FCL, a Administração e o staff propuseram posteriormente a criação de uma linha intermediária, denominada Precautionary and Liquidity Line - PLL, mais maleável e com menos exigências do que as linhas tradicionais, mas não tão maleável e inovadora quanto a FCL. Essa linha intermediária também foi pouco usada; apenas dois países (Macedônia e Marrocos) recorreram a ela. 26 Só chegaria até mim um outro caso, de um país pequeno, as Ilhas Maurício, pertencente à cadeira francófona subsaariana. Autoridades desse país me procuraram para pedir apoio na sua intenção de acessar a FCL, queixando-se inclusive da passividade e inércia do diretor que os representava, Laurean Rutayisire – realmente muito pouco eficaz e que só se destacava na Diretoria por intervenções obscuras e prolixas. Mas a oposição da Administração e do staff era, aparentemente, muito grande e, antes que eu pudesse tentar ajudar, o caso das Ilhas Maurício sumiria na voragem. 27 Group of 20, London Summit - Leaders’ Statement, 2 de abril de 2009, parágrafos 17 e 19. A alocação de direitos especiais de saque chegaria a US$ 283 bilhões. Group of 20, Pittsburgh Summit - Leaders’ Statement, 25 de setembro de 2009, parágrafo 19. 28 Eduardo Brau & Louellen Stedman. “IMF efforts to increase the support available to members”. IEO Background Paper, Independent Evaluation Office, BP/14/10, 8 de outubro de 2014, p. 6-8. 29 A íntegra do acordo pode ser encontrada na página do FMI na internet. Note Purchase Agreement between the Federative Republic of Brazil and the International Monetary Fund, data de publicação: 10 de janeiro de 2010. Disponível em 30 A autorização diz respeito apenas aos programas do General Resource Account do FMI, excluindo, portanto, os programas subsidiados para países de baixa renda, que são financiados de forma separada. 31 Os 85% passaram a valer também para a admissão de novos membros no NAB e aumentos das participações individuais, entre outras decisões. 32 International Monetary Fund. Proposed Decision to Modify the New Arrangements to Borrow (NAB). IMF Policy Paper, 25 de março de 2010, tabela 2, p. 5. Disponível em: . 33 Ibid., p. 1. 34 A ponto do secretário do Tesouro dos Estados Unidos pedir, em duas ocasiões, para comparecer às reuniões dos ministros de finanças dos BRICs. Ver neste livro p. 40. 35 Ver neste livro p. 40-1. 36 “We recognize that the IMF should remain a quota-based organization and that the distribution of
quotas should reflect the relative weights of its members in the world economy, which have changed substantially in view of the strong growth in dynamic emerging market and developing countries. To this end, we are committed to a shift in quota share to dynamic emerging market and developing countries of at least five percent from over-represented to under-represented countries using the current IMF quota formula as the basis to work from.” Group of 20, Pittsburgh Summit - Leaders’ Statement, 25 de setembro de 2009, parágrafo 21. 37 Os europeus interpretavam sobre e sub-representação com base na fórmula de quotas. Por essa definição: um país estava sobrerrepresentado (sub-representado) se a sua quota fosse superior (inferior) à quota calculada pela fórmula aprovada na reforma de 2008. A fórmula favorecia os europeus principalmente por duas razões: a) atribuía um peso expressivo à abertura da economia (30%), que era alta no caso de países relativamente pequenos e fortemente integrados entre si como são os europeus; e b) atribuía peso preponderante no cálculo da variável PIB (60%) ao PIB a preços de mercado, o que favorecia os países desenvolvidos. Nós entendíamos que se devia dar maior peso ao PIB por paridade de poder de compra, critério de mensuração que reflete o peso econômico real dos países e é menos afetado por flutuações cambiais. 38 O peso do Brasil na economia mundial estava entre 2,7% e 2,9%, dependendo do critério de mensuração do PIB. Com a reforma de 2008, como vimos, a quota brasileira aumentara para 1,8% e o poder de voto para 1,7% do total. 39 Com os PIBs comparados a taxas de câmbio de mercado, apenas três países permaneciam nessa lista dos dez maiores por território, população e dimensão da economia: Estados Unidos, China e Brasil. 40 “Europe must make way for a modern IMF”, Financial Times, 23 de setembro de 2010. 41 A quota relativa do Brasil ficaria em 2,32%; a do Canadá, em 2,31%. 42 O texto lido pelo ministro indiano dizia: “We are disappointed with the scenarios that have been presented to us. The shift from advanced countries to EMDCs is very small and much less than what we had called for. However, in a spirit of compromise and to move the process forward, we could go along with [the proposed agreement] (…) provided that: 1) The New Arrangements to Borrow are correspondingly rolled back, when the quota increases are effective, preserving the relative shares of the members of NAB. 2) The present flawed quota formula which does not reflect the real economic weights of different economies is comprehensively reviewed by January 2013, so that it better reflects the relative economic weight of the IMF members. 3) The emerging market and developing countries, including the poorest, still do not have adequate voice and representation in the IMF and hence the next review of IMF quotas should be completed by January 2014.” Documento citado em Paulo Nogueira Batista Jr., “Principles for IMF quota formula reform”, trabalho apresentado em seminário realizado na Brookings Institution, Delivering on IMF Quota and Governance Reform, Washington, D.C., 12 de janeiro de 2012. Disponível em: . As três condições apresentadas pelos BRICs seriam incorporadas praticamente ipsis litteris ao comunicado da reunião ministerial de Gyeongju e depois à declaração dos líderes do G20 em Seul. 43 IMF Quota and Governance Reform - Elements of an Agreement, 31 de outubro de 2010. Disponível em: . 44 Com a entrada posterior da África do Sul, o poder de voto agregado dos BRICS subiria para 14,8%. 45 “IMF Survey: G20 Ministers Agree ‘Historic’ Reforms in IMF Governance”, 23 de outubro de 2010. Disponível em: . 46 Ibid. 47 A participação da União Europeia no PIB mundial, calculado por paridade de poder de compra, era da ordem de 22% em 2009, com tendência a diminuir. 48 G20 Communiqué, Meeting of Finance Ministers and Central Bank Governors, Gyeongju, 23 de outubro de 2010, parágrafo 5.
49 Ibid. 50 Ibid.
O IMPÉRIO CONTRA-ATACA1
Os sucessivos embates relacionados ao NAB e, sobretudo, à reforma do FMI provocaram desgaste crescente nas relações entre diretores executivos do Fundo. A instituição se tornara, como vimos, muito mais importante depois da eclosão da crise em 2008 e a disputa pelo poder dentro dela se intensificara. Os diretores europeus – não todos, mas boa parte deles, sobretudo os que representavam países maiores – mostravam impaciência e até hostilidade cada vez maior em relação a mim. A minha presença se tornara incômoda. Os europeus não estavam acostumados a que seus privilégios fossem contestados e criticados de maneira tão aberta e sistemática, às vezes agressiva, na Diretoria e no G20. Represálias viriam. Este terceiro texto sobre a minha passagem pelo FMI relata os repetidos esforços que fizeram alguns adversários para me desestabilizar, os problemas com a Colômbia, a crise da Grécia e suas consequências para o Fundo, as manobras dos europeus para bloquear e esvaziar as reformas e a minha fase final em Washington, marcada por desentendimentos com o ministro da Fazenda, Joaquim Levy.
1. Tentativas de me desestabilizar: a crise com a Colômbia O comitê de ética da Diretoria foi o instrumento utilizado para tentar me desestabilizar. Naquele período, o comitê era presidido pelo diretor alemão, Klaus Stein, sujeito cinzento e desagradável, sempre hostil a qualquer pessoa ou proposta que pudesse ser vista como inovadora ou simplesmente diferente do costumeiro. O italiano, Arrigo Sadun, era outro integrante do comitê avesso a mudanças, ainda mais raivoso que o alemão, e que também se destacaria nas tramoias contra mim. Tentaram, primeiro, alegar que em artigos de jornal e
entrevistas eu violava o código de ética dos diretores executivos, que nos proibia de falar em nome do Fundo e divulgar informações confidenciais. O comitê mandou traduzir várias dezenas de artigos que haviam sido publicados por mim no Brasil para analisá-los em busca de irregularidades. O desfecho dessa investigação foi cômico. O comitê anunciou, triunfante, que eu havia violado o código em um ou dois artigos por revelar os votos de algumas cadeiras na Diretoria, contrariando norma de confidencialidade. Havia, entretanto, um pequeno equívoco da parte deles. Nos artigos em questão, eu citava entrevistas dadas por DSK, em que ele revelava as informações consideradas confidenciais. O comitê, desapontado, teve que pedir reunião com o diretor-gerente para adverti-lo (com todo cuidado e respeito, naturalmente) sobre a quebra de confidencialidade. Em outra ocasião, o comitê de ética me acusou de falar indevidamente em nome do FMI em algumas palestras e entrevistas à imprensa. Não era verdade. Eu fazia questão de sempre dizer que não falava em nome da instituição. Expliquei ao comitê que, infelizmente, os jornalistas nem sempre se preocupavam em publicar a ressalva. Prometi, em todo caso, redobrar esforços para evitar esse tipo de mal-entendido. Passei a incluir no rodapé dos artigos de jornal a advertência de que expressava meus pontos de vista a título pessoal. Apesar de seus esforços, o comitê de ética não conseguiu ir muito longe na questão dos artigos e entrevistas. Incomodavam muito, me faziam perder tempo, mas não acharam nada que pudessem utilizar. Uma oportunidade muito melhor para eles se apresentaria, porém, quando eu tomei a decisão, arriscada, de demitir a minha diretora alterna colombiana, María Inés Agudelo, no início de 2010. A destituição da alterna colombiana originou uma crise que se arrastaria por mais de um ano. Ao tomar a decisão, eu sabia perfeitamente que estava dando um passo perigoso, mas não podia imaginar o tamanho da tempestade que enfrentaria. Não havia, provavelmente, precedente para uma decisão como essa no FMI, como já mencionei. A decisão não foi tomada impensadamente ou de impulso. A colombiana criava problemas infindáveis dentro da cadeira, que eu vinha aturando há quase três anos. O despreparo dela para a função era evidente. Ela não dominava os temas econômico-financeiros e tinha dificuldade com a língua inglesa. Sequer conseguia redigir documentos curtos sem estropiar a lógica, os fatos e o idioma. A sua contribuição substantiva era próxima de zero. Negativa, na verdade, pois ela dedicava grande parte do tempo a intrigas e fofocas. Tive diversas conversas com ela, tentando persuadi-la a melhorar a dedicação e o desempenho. Cheguei a colocar minhas preocupações por escrito,
mais de uma vez. Mas não adiantava. Uma alternativa que tentei foi deixá-la de lado, evitando que ela cuidasse de assuntos delicados ou representasse a cadeira em reuniões importantes, mas isso também não funcionou. Ela era, formalmente, a minha substituta eventual e, embora não quisesse trabalhar e se preparar, insistia em fazer figuração e ocupar a cadeira em reuniões da Diretoria, comprometendo por diversas vezes o nosso trabalho. Vaidosa e arrogante, ficava descontente com o papel que lhe era reservado e fazia reclamações constantes a Bogotá, valendo-se do acesso que tinha às autoridades. A relação com a Colômbia foi se deteriorando, embora o governo não manifestasse discordâncias quanto à minha atuação nos temas da agenda do FMI. O ambiente só piorava com o passar do tempo. No fim de 2009, enviei, em duas ocasiões, correspondência ao governo colombiano relatando os problemas com a diretora alterna. Não recebi resposta. Resolvi então viajar à Colômbia, aproveitando convite que recebera do embaixador brasileiro, Valdemar Carneiro Leão, para proferir palestra em Bogotá. Pedi ao embaixador que me ajudasse a marcar visitas ao ministro de Finanças, Óscar Zuluaga, e ao presidente do Banco Central, José Darío Uribe. Para surpresa do embaixador, o governo colombiano recusou a minha visita. O ambiente, segundo Carneiro Leão, era de profunda contrariedade, para não dizer hostilidade. Foi a gota-d’água. Afastei a diretora alterna, ao mesmo tempo em que enviei nova carta ao governo colombiano, explicando a decisão e documentando a insuficiência do seu trabalho. Pedi a indicação de um substituto, manifestando a minha certeza de que havia muitos quadros qualificados na Colômbia, capazes de exercer o cargo de diretor alterno de forma eficiente com proveito para os países da nossa constituency. A minha intenção era fazer tudo de maneira discreta, sem qualquer publicidade. Mas não foi possível. O governo colombiano reagiu mal. Entre outras providências, mandou carta ao FMI, avisando que eu não mais falava pela Colômbia na instituição. Agudelo fez verdadeiro escândalo, percorrendo os gabinetes do FMI aos prantos, como me avisaram meus aliados. O assunto chegou rapidamente à imprensa na Colômbia e no Brasil. Os jornais colombianos me atacavam impiedosamente, ao passo que os do Brasil – pelo menos alguns deles – mostravam comovente solidariedade com a Colômbia. O espaço que se dedicava ao assunto nos jornais era verdadeiramente absurdo. Como eu dizia a colegas no FMI, a minha popularidade na mídia colombiana só era superada pela de Hugo Chávez e das FARCs. O assunto chegou aos mais altos níveis de governo. Pouco tempo depois da demissão, DSK me telefona, preocupado: “Acabei de receber um telefonema do
Uribe.” Pensei que ele estivesse se referindo ao presidente do Banco Central, José Uribe, que era o governador da Colômbia no FMI. “Nada disso”, esclareceu DSK, “quem telefonou foi Álvaro Uribe, o presidente da Colômbia, pedindo que eu reverta a demissão da sua ex-alterna!”. O presidente Uribe, um político de direita, era conhecido por seu temperamento difícil e atitudes extremadas. DSK explicou ao presidente colombiano que o assunto era da alçada do diretor executivo e que ele nada poderia fazer senão transmitir a mim o que ouvira. Soube depois que Uribe também levara o assunto a Lula. A desproporção entre o fato e as reações colombianas dava ao episódio um aspecto ao mesmo tempo burlesco e misterioso. Era um assunto administrativo, de importância muito relativa, tanto mais que a Colômbia podia exercer a qualquer momento o direito de indicar um novo diretor alterno, como previsto no nosso acordo de constituency. No meio da confusão, fui informado por diferentes canais que a virulência das reações se explicava não apenas por motivos políticos ou profissionais, mas também por questões muito particulares, de ordem puramente pessoal, que não caberia mencionar aqui. Seja como for, o tumulto continuou por meses a fio. O governo brasileiro ficou preocupado com a reação colombiana, mas continuou me apoiando. Mantega, que inicialmente não havia dado importância ao assunto, pediu depois que eu reconsiderasse a decisão, mas não insistiu quando deixei claro que não poderia de forma alguma voltar atrás. Celso Amorim também me telefonou para transmitir e endossar proposta do ministro das Relações Exteriores da Colômbia, que pedia a readmissão de Agudelo com a promessa de que o governo colombiano a substituiria mais adiante. Expliquei a ele que a decisão estava tomada e era irreversível. Não disse isso ao nosso chanceler, mas a promessa colombiana não era nada confiável e, de todo modo, eu não teria como recontratar a demitida sem perda de face e autoridade. O presidente Lula, apesar das reclamações de Uribe, nunca interferiu. Do Palácio do Planalto, só me telefonou Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência, contando que Uribe estava tentando falar com Lula sobre o caso e me pedindo informações a respeito. Muito tempo depois, quando visitei Lula em Brasília, ele interrompeu bruscamente um outro assunto de que falávamos para reclamar, com bom humor, que eu havia criado um problema para ele com a Colômbia. Eu aproveitei para explicar, brevemente, o que havia acontecido, acrescentando que esse tipo de assunto nem deveria chegar ao Presidente da República. “Mas chega, realmente chega”, disse ele, sorrindo, mas com uma expressão que deixava claro que tinha sido uma dor de cabeça. Para mim, foi muito mais do que isso, evidentemente. A cada semana,
recebia notícias, boatos e pressões. Na nossa cadeira no Banco Mundial, a diretora colombiana ameaçava demitir, em represália, o diretor alterno brasileiro. O barulho na imprensa colombiana e brasileira continuava sem parar. A Colômbia, comentava-se, queria a minha saída do FMI e buscava tornar insustentável minha permanência no cargo. Autoridades colombianas entraram em contato com outros países do nosso grupo para reclamar veementemente da demissão da diretora alterna. Mas não conseguiriam mobilizar apoio dos outros. A Colômbia era distante dos demais e não exercia liderança. A movimentação colombiana chegou a meu conhecimento e eu resolvi, então, informar cuidadosamente os outros sete governos da nossa constituency sobre as razões que haviam me levado a tomar a controvertida decisão. O Brasil, evidentemente, já estava a par de todos os detalhes, e o ministro Mantega, embora contrariado pelo tamanho da confusão, ficou do meu lado, rechaçando diplomaticamente as reclamações que recebia do ministro Zuluaga. A nossa constituency, assim como a maioria das demais, se reúne regularmente a cada seis meses, à margem das reuniões de primavera e outono do FMI e do Banco Mundial, sob a presidência do diretor executivo. A nossa reunião de abril de 2010 foi, de longe, a mais difícil de todas que presidi ao longo de oito anos. A Colômbia compareceu em peso, representada não só pelo presidente do Banco Central e o ministro de Finanças, que eram respectivamente o governador e o governador alterno do país no FMI, mas também pelo ministro do Planejamento e até mesmo – detalhe cômico – pelo vice-ministro da Defesa. O leitor pode bem imaginar como ficou difícil a situação para mim. O ambiente nas semanas anteriores à reunião estava tão tenso que cheguei a ponto de deixar os seguranças do FMI de sobreaviso para o caso de acontecer uma degringolada, com insultos e agressões físicas. Não chegaria a tanto, mas foi uma reunião horrível. Os colombianos se sentaram em frente a mim e lançaram suas queixas de forma agressiva, acusando-me de romper as regras da constituency e até mesmo de ter maltratado e humilhado a ex-alterna. Ao meu lado, o ministro Mantega pediu que eu respondesse. Fui obrigado a recapitular todas as razões da demissão, notadamente o desempenho sofrível de Agudelo. Frisei que todas as providências haviam sido tomadas com cortesia e respeito. Lembrei que a nomeação e demissão do diretor alterno é atribuição exclusiva do diretor executivo, garantida pelos estatutos do FMI. Pelo nosso acordo de constituency, a Colômbia tinha o direito, continuei, de indicar o diretor alterno, mas não o de insistir que a posição fosse ocupada por determinada pessoa. Fui mais longe: lembrei que estava aguardando desde o início do ano que a Colômbia indicasse um substituto, mas que não podia esperar para sempre. Disse
aos colombianos que, pelas regras do Fundo, o diretor executivo tinha não só o direito, mas a obrigação de nomear um diretor alterno. Nenhum dos demais países ecoou as preocupações da Colômbia, nem o Panamá de quem, ao que parece, os colombianos esperavam algum apoio. A minha equipe e eu trabalhávamos muito em prol dos países da constituency e isso sempre foi reconhecido nos momentos difíceis que atravessei. A Colômbia ficou a ver navios. Depois de algum tempo, o governo colombiano, mesmo insatisfeito, resolveu indicar um substituto, aliás competente, que eu prontamente nomeei.2 Em tese, a crise estava superada; a Colômbia votou em mim nas eleições de fins de 2010 para a Diretoria, permanecendo assim na nossa cadeira. Mas ficara um rescaldo de ressentimento e, apesar dos meus esforços, a relação com a Colômbia nunca se normalizaria. O país acabaria trocando de constituency nas eleições de fins de 2012, mesmo momento em que Nicarágua, Cabo Verde e Timor-Leste entraram para a nossa cadeira.
Acusações de assédio moral A crise decorrente da demissão da colombiana continuou, entretanto, pois adquirira moto-próprio. No comitê de ética, os europeus não demoraram a aproveitar para abrir nova ofensiva. Logo depois da sua demissão, Agudelo foi instada a apresentar queixa de assédio moral contra mim, rapidamente acolhida pelo comitê depois de uma suposta investigação preliminar. Instaurou-se um procedimento administrativo com a contratação de uma firma de advocacia para apurar os fatos. Estranhei a contratação, mas estava, mesmo assim, inicialmente tranquilo, pois sabia que a acusação de assédio não tinha base. Prestei depoimentos aos advogados e autorizei que a minha correspondência de e-mail com a ex-alterna fosse investigada. Permiti, também, sem hesitar, que outras pessoas da minha equipe fossem entrevistadas. Foi uma imprudência. Logo ficou claro que a firma de advocacia era de estilo agressivo e do tipo que se contrata com conclusões encomendadas. Não conseguiram, entretanto, encontrar evidências de assédio a Agudelo. O comitê resolveu, então, ampliar o escopo da investigação. Passei a ser investigado por assédio moral a outras pessoas do meu escritório, notadamente as assistentes administrativas da cadeira. Não posso me deter aqui para contar os detalhes, às vezes grotescos, dessa investigação. A alegação geral era de que eu fazia pressão excessiva sobre meus funcionários. Como já mencionei, fui
acusado, entre outras coisas, de ter provocado a doença incapacitante de Helio Mori que, ao saber disso, ficou indignado e escreveu do Brasil uma carta ao comitê de ética, desmentindo tudo e informando que sua doença era hereditária, tendo sido inclusive a causa da morte do seu pai. Essa era uma calúnia grave, mas havia também acusações menores, também falsas, como a de que eu costumava pedir que as assistentes buscassem roupa na lavanderia e – cúmulo do ridículo – exigir que elas pedissem licença para ir ao banheiro! Essas acusações eram endossadas pelos investigadores e atribuídas a testemunhas anônimas. Fico até constrangido, com sentimento de vergonha alheia, ao me lembrar dessas mediocridades. O pior é que os métodos usados nas entrevistas pela firma de advocacia se revelaram abusivos. Uma das assistentes, pessoa frágil e insegura, foi tão pressionada que sofreu crise nervosa e teve que ser hospitalizada. Acabei contratando um advogado; gastaria cerca de US$ 30 mil para me defender das acusações. Tudo isso se arrastou até maio de 2011, tomando tempo enorme dos diretores que eram membros do comitê de ética e, mais tarde, dos demais quando o assunto foi encaminhado à Diretoria. Eu era o principal prejudicado, claro, e ficava indignado de ter que gastar tanto tempo e dinheiro com uma investigação desonesta. Mas, enfim, era o preço que se pagava por desafiar o status quo no FMI. Havia alguma verdade nas acusações? Diria que sim, mas em sentido muito limitado. Eu era, realmente, um chefe superexigente, perfeccionista, que demandava empenho e competência. Fazia pressão sobre a equipe e era, às vezes, impaciente e até ríspido com os menos dedicados e eficientes. Mas não gritava com ninguém, não fazia exigências descabidas, nem humilhava os funcionários. No meu entender, não havia nada que pudesse ser considerado, legitimamente, como assédio moral. Os meus defeitos e exageros como chefe, em nenhuma hipótese, justificariam uma investigação detalhada e agressiva como aquela. Para preparar este texto, percorri os meus arquivos da época e fiquei impressionado, leitor, com a profusão de documentos de acusação e de defesa, com a quantidade de pessoas envolvidas, com o número de reuniões, enfim, com o gasto realmente absurdo de dinheiro e tempo no processo movido contra mim. Tudo isso depunha contra a instituição e, sobretudo, contra sua Diretoria. Juridicamente, porém, a posição do diretor executivo é forte. Não havia como me demitir, se eu fosse julgado culpado. Pelo arcabouço legal do FMI, desenhado para assegurar a autonomia dos diretores, o máximo que se poderia fazer, ao final do processo, era transmitir os resultados da investigação e de uma
eventual condenação aos países que eu representava na instituição. O que se pretendia, visivelmente, era minar a minha posição, na esperança de que o Brasil e os outros países resolvessem me remover do cargo, por ocasião da próxima eleição para a Diretoria, e de preferência antes. Mais uma vez, repito, foi fundamental o apoio do ministro Mantega, com quem eu conversava regularmente, e que nunca teve dúvida, acredito, sobre o caráter farsesco do processo. Antevendo que havia determinação de me condenar de qualquer maneira, também mantive os outros países da constituency informados sobre o andamento do processo. Fora a Colômbia, que naturalmente acompanhava com grande satisfação as minhas atribulações, os demais países sinalizavam apoio. Fiz o possível para mostrar ao comitê de ética que eram infundadas as acusações, em diversos documentos escritos e depoimentos verbais. O tema não era da alçada do diretor-gerente, mas busquei mesmo assim que DSK, que tinha outra estatura e não apreciava as mesquinharias dos seus conterrâneos europeus, convencesse os membros do comitê a não prosseguir com o assunto. Ele tentou, pelo que me disse, mas sem efeito prático. Não me pareceu que ele tivesse se empenhado muito e estivesse disposto a gastar munição com o assunto. O fato é que não consegui que o assunto fosse arquivado ou resolvido de alguma forma pelo comitê, que em condições normais poderia ter seguido, por exemplo, o caminho de uma advertência ou recomendação. Mas as condições não eram nada normais. Os europeus dentro e fora do comitê pressionavam para que a Diretoria como um todo tivesse a oportunidade de apreciar as acusações. Não aceitavam que se tentasse encerrar o caso com uma simples advertência. Queriam porque queriam me condenar ou punir. Decididamente, eu não era nada apreciado em certos meios.
Condenado, mas salvo pelo gongo O leitor precisa ter em mente que essa guerra, ou guerrilha, contra mim dentro do FMI corria, ao longo de 2010, em paralelo às difíceis negociações da reforma do FMI, relatadas nas seções anteriores. Para mim era o pior momento possível para enfrentar problemas na retaguarda. Mas, justamente por isso, os europeus queriam bombardear ao máximo o diretor brasileiro, que se tornara um dos pontas de lança do esforço de reequilibrar a instituição e diminuir a superrepresentação da Europa. Pesavam, também, ressentimentos pessoais, frutos dos repetidos embates na Diretoria em que vários colegas europeus ficavam em posição constrangedora, com dificuldade de defender os privilégios dos seus
países contra a bateria de argumentos lançados por mim e outros diretores de países emergentes. Quando o comitê de ética resolveu, depois de demoradas deliberações, remeter o assunto à Diretoria, a minha condenação era favas contadas. Os meus adversários tinham ampla maioria de votos ponderados, reflexo do próprio desequilíbrio de poder decisório que lutávamos para corrigir, ou pelo menos mitigar, na reforma então em curso. Mas havia alguns agravantes, que faziam a balança pender ainda mais contra mim. Do meu lado, estavam apenas quatro diretores: o russo, Aleksei Mozhin, o indiano, Arvind Virmani, o iraniano, Jafar Mojarrad, e Moeketsi Majoro, de Lesoto, que estava no comando da cadeira africana anglófona que incluía a África do Sul.3 O leitor deve notar que havia algumas ausências significativas nessa lista de apoiadores, a começar pelos outros diretores latino-americanos. Na época, as duas outras cadeiras da nossa região na Diretoria eram lideradas pelo México e pela Argentina. O diretor mexicano, Carlos Pérez-Verdia, era basicamente um yes man, que seguia quase sempre os diretores dos países desenvolvidos, especialmente dos Estados Unidos, e as propostas da Administração. Dos mexicanos, aliás, raramente se podia esperar algum lampejo. O diretor argentino, Alfredo Mac Laughlin, embora indicado por Néstor Kirchner, com quem constava que tinha alguma proximidade, vinha da área bancária privada e não mostrava simpatia por mim. Era outro yes man, que cultivava o estranho hábito de fazer críticas a seu país até mesmo em reuniões formais da Diretoria, tentando se cacifar pessoalmente à custa do governo que deveria representar. A falta de apoio da parte do mexicano e do argentino não me surpreendia. Inesperado, entretanto, foi o comportamento do diretor chinês, Jianxiong He, o mesmo que, nessa época, vacilava em apoiar o Brasil na reforma por não querer ofender o Canadá, como relatei. He era competente e atuava com certa desenvoltura na Diretoria; participava também ativamente da coordenação entre os diretores dos BRICS e, com o tempo, surgira até uma amizade entre ele e eu. He era membro do comitê de ética e eu contava, tranquilamente, com seu apoio. Infelizmente, ele não demorou muito a mostrar grande dificuldade de acolher meus argumentos e reconhecer o que era óbvio para os outros diretores dos BRICS – a motivação eminentemente política do processo em curso. Recebi, inclusive, a informação, aparentemente fidedigna, de que o diretor chinês havia consultado Beijing sobre o assunto e fora instruído a não se opor à maioria, o que, no caso, significava ficar contra mim. A informação parecia plausível, pois os diretores chineses eram mantidos sob rédea curta pela capital, que tinham o hábito de consultar com frequência. Como o processo havia se tornado causa
célebre no FMI, não me espantava que He tivesse resolvido pedir instruções ao governo. Se ele pudesse agir por conta própria, talvez tivesse ficado do meu lado. Seja como for, o posicionamento da China em casos concretos mostrava, uma vez mais, os limites da coordenação entre os BRICS. Obviamente, os europeus vibravam de satisfação: haviam conseguido colocar em campos opostos, em uma questão candente, o diretor da China e os outros diretores dos BRICS. A Diretoria se reuniria várias vezes para discutir o caso. Eu me preparava bem para essas reuniões, com ajuda da advogada que contratara, e lançava mão de toda minha verve, para desmoralizar a investigação e a firma de advocacia que a conduzira, denunciar erros e irregularidades de procedimento, e mostrar aos colegas a injustiça que estava sendo feita, além da ridícula perda de tempo e dinheiro. Os meus adversários atacavam de forma vigorosa também, manifestando às vezes indignação com a dureza das minhas respostas às acusações. Em retrospecto, ocorre-me dizer que a minha veemência talvez tenha sido um pouco contraproducente, pois podia até ser vista como confirmação das acusações de temperamento agressivo. Mas, enfim, era a indignação de quem se considerava injustiçado. Nesse ambiente conflagrado, os europeus tentaram mais uma manobra: procuraram meus aliados para propor solução de compromisso, supostamente intermediária. O regimento interno previa outra opção, para casos considerados menos graves, que era tratar a condenação de um diretor como assunto puramente interno, sem chegar a ponto de enviá-la formalmente ao país ou países por ele representados. O diretor da França, Ambroise Fayolle, procurou o diretor da Rússia, Aleksei Mozhin, para transmitir e explicar a proposta. A ideia deles era limitar a condenação à esfera interna, mas com uma condição: que a minoria que me apoiava votasse favoravelmente à decisão. Quando Mozhin me consultou, rejeitei a proposta de pronto. Não queria, de forma alguma, ser condenado por unanimidade. Contei ao russo que os meus países já estavam amplamente informados do que estava acontecendo em Washington e que, excetuada a Colômbia, claro, eu não acreditava que iriam se impressionar com a condenação. Não podia ter certeza, mas a minha impressão (talvez esperança) é que os outros países da cadeira ficariam essencialmente do meu lado. O governo brasileiro provavelmente não se impressionaria, mas mesmo sobre isso não podia ter certeza, apesar do apoio do ministro Mantega. A minha suspeita, disse ao russo, é que os europeus estavam planejando vazar a condenação para a mídia, e assim meus países saberiam de qualquer maneira. Evidentemente, o impacto de um vazamento seria maior se a condenação fosse por unanimidade
dos outros 23 diretores. Pouco antes da reunião final, que seria presidida por DSK, fui até o gabinete dele para manifestar preocupação com a possiblidade de vazamento. Disse a ele que não tomaria a iniciativa de trazer o assunto a público, pois isso quebraria regras de confidencialidade da instituição. Mas avisei que, se ocorresse vazamento, não hesitaria em relatar à imprensa tudo que se passara, as injustiças que sofrera e todos os absurdos e lances ridículos do deplorável processo contra um diretor cujo principal defeito era contestar o status quo no FMI. Disse a ele, sorrindo, que eu seria Dreyfus e Zola ao mesmo tempo – lembrança escolhida a dedo de um episódio escandaloso da história do seu país.4 DSK sabia que eu tinha acesso à imprensa internacional que cobria o Fundo e poderia, sim, fazer algum estrago. Convém lembrar que, àquela altura – estávamos em maio de 2011 –, DSK preparava o terreno para se lançar candidato, com grandes chances de vitória, aliás, à Presidência da França, nas eleições que se realizariam em abril de 2012. A última coisa que ele queria naquele momento era barulho na mídia sobre a instituição presidida por ele – tanto mais que a investigação contra mim poderia reavivar lembranças inconvenientes. Um detalhe interessante é que a investigação fora conduzida pela mesma firma e pelos mesmos advogados que haviam sido contratados, três anos antes, para investigar uma denúncia contra DSK. Ele fora acusado, em 2008, de abusar do seu poder como diretor-gerente para induzir ou pressionar uma economista do staff do FMI a manter um affair com ele. A diferença, registro en passant, é que no caso de DSK a firma havia sido contratada, visivelmente, com a tarefa de inocentar o acusado.5 A reunião final da Diretoria seria mais uma longa e desagradável troca de críticas, farpas e reclamações entre meus acusadores e eu. O que eu buscava, nessa reta final, era aumentar o número de votos a meu favor. Porém, uma regra de procedimento da Diretoria, conhecida como regra de silêncio, complicava ainda mais a minha vida. O silêncio de um diretor era computado automaticamente como concordância com a proposta de decisão que estivesse sobre a mesa, apresentada pela Administração ou, nesse caso, pelo comitê de ética da Diretoria. Assim, para concordar com a minha condenação, bastava ficar em silêncio; para ficar do meu lado, entretanto, o diretor precisava obrigatoriamente pedir a palavra e manifestar expressa discordância com a proposta do comitê. Alguns dos diretores de países emergentes ou em desenvolvimento, mesmo concordando com meus argumentos e simpatizando comigo, tinham grande dificuldade de dar um passo desses e se opor abertamente à corrente dominante. No final, apesar dos meus esforços de argumentação, não conseguiria senão os quatro votos já referidos, os dos
diretores dos BRICS, exceto China, e o do Irã. Durante a reunião ficou patente que as fragilidades da acusação geravam certo constrangimento. Sensibilizados por meus argumentos e um pouco envergonhados com as mesquinharias e a falta de base das acusações, alguns poucos diretores do campo adversário, entre eles o já mencionado diretor mexicano, Pérez-Verdia, e o australiano, Christopher Legg, ainda tentaram convencer os outros a optar pela condenação mais branda, sem comunicação a meus países. Mas a maioria não concordava, de jeito nenhum, em diminuir a penalidade sem que os meus apoiadores concordassem, por sua vez, em aderir à condenação – hipótese que, como vimos, havia sido excluída, a meu pedido, nas tratativas pré-reunião. A minha sorte estava selada. Seria condenado por criar “ambiente hostil de trabalho”, especialmente para as assistentes administrativas. Em um intervalo da reunião final, DSK veio até mim e recomendou que eu fizesse uma intervenção final conciliatória, sem reconhecer culpa, mas indicando de alguma forma que acatava a decisão da maioria. Era importante, disse ele, que eu tivesse ambiente para continuar trabalhando na Diretoria de forma eficaz. Aceitei a ponderação e pedi a palavra, no finalzinho da reunião, para dizer que, embora considerasse a decisão injusta, respeitava e levaria em conta a opinião da maioria dos meus colegas. Mas a novela não terminaria aí. Os fatos que se seguiram foram simplesmente inacreditáveis, lembrando muito mais as reviravoltas de uma ficção fantasiosa e rocambolesca do que as rotinas de sisudos organismos internacionais. Se estivesse escrevendo um romance, seria talvez criticado por faltar com a verossimilhança. O embate seguinte girou em torno da forma como seria encaminhada a decisão da Diretoria aos nove países da minha cadeira. Eu estava inseguro, como mencionei, quanto à maneira como a notícia seria recebida nos países, e não queria que a carta fosse assinada por DSK, que conquistara grande prestígio como diretor-gerente do FMI e era visto urbi et orbi como o provável futuro presidente da França. Argumentei com ele que a decisão era da Diretoria, não do diretor-gerente. Se ele assinasse a carta, daria a impressão de que participara da decisão e endossava a condenação. DSK prometeu consultar o departamento jurídico, mas voltou com a resposta de que, por ter presidido a reunião final, ele ficava na obrigação de assinar. Nesse meio tempo, com a ajuda de assessores, eu levantara alguns exemplos de decisões tomadas em reuniões presididas pelo diretor-gerente que haviam sido encaminhadas, entretanto, com a assinatura do secretário da Diretoria. Insisti que, contrariamente ao que dissera o departamento
jurídico, não havia necessidade de que ele assinasse, bastaria a assinatura do secretário ou do decano da Diretoria. DSK acabou se impacientando comigo e se recusou terminantemente a reconsiderar. Fiquei contrariado, mas tive que me conformar. Aí entra em ação o Sobrenatural de Almeida, aquele personagem que Nelson Rodrigues invocava para explicar o imponderável. A reunião final da Diretoria tinha sido numa quinta-feira. Com o pequeno atraso provocado por meus questionamentos sobre quem deveria assinar, as cartas seguiram na sextafeira. Preocupado com o risco de vazamento, DSK determinara que a correspondência para os meus nove países fosse enviada por correio especial, com destinação expressa e exclusiva aos governadores, e não por e-mail ou fax. Pois bem, no sábado, durante o jantar, recebo telefonema de uma jornalista da Bloomberg, me informando, espantada, que DSK havia sido preso em Nova York! Sob acusação de ter tentado violentar uma camareira de hotel, ele havia sido retirado de dentro de um avião pela polícia e conduzido à cadeia. Fiquei estarrecido e preocupado com ele, que era um excelente diretor-gerente, a quem aprendera a respeitar e até admirar. A minha frustração com o que me parecera o pouco empenho dele no caso do processo contra mim não me fazia perder de vista suas qualidades. Praticamente falando, porém, a prisão de DSK era para mim a salvação da lavoura. O FMI sofreu um abalo monumental, com repercussão no mundo inteiro. Fui completamente esquecido pelos meus adversários europeus, alarmados com a crise desencadeada pela prisão do diretor-gerente. E, ironicamente, as cartas com a notícia da minha condenação chegaram a seu destino alguns dias depois da notícia da prisão do signatário. Alguns governadores me telefonaram para saber o que estava acontecendo, estranhando a carta de DSK. Mantega, sempre inclinado a tiradas, me disse ao telefone: “Que valor tem isso? Uma carta assinada por um presidiário!” Estranho epílogo de uma novela que fora deplorável do começo ao fim.
2. A crise da Grécia abala o FMI – e quase me derruba Desde 2010, o FMI se viu às voltas com os desdobramentos da crise do euro, especialmente na Grécia. Superadas as hesitações iniciais e o sentimento de que levar um país da área do euro ao Fundo seria uma humilhação insuportável, as autoridades europeias foram para o extremo oposto e resolveram obrigar os mais vulneráveis a submeter-se à instituição. Como vimos, quatro países da área recorreriam ao FMI – Grécia, Portugal, Irlanda e Chipre. A Grécia seria de longe
o cliente mais problemático. O epicentro da crise internacional se deslocara para a Europa a partir de 2010. A área do euro apresentava problemas estruturais que haviam ficado em segundo plano nos tempos de bonança. Certas vulnerabilidades fundamentais do euro derivavam da própria construção original, influenciada pela preferência da Alemanha e outras nações por versões rígidas dos dogmas econômicos liberais: regras fiscais simplistas, um banco central europeu independente e dedicado primordialmente ao controle da inflação, livre movimentação de capitais e insuficiente regulação dos sistemas financeiros. Ademais, a unificação monetária fora levada adiante de forma prematura, sem unificação fiscal e política. Com a crise iniciada no sistema financeiro dos Estados Unidos, todas essas fragilidades vieram à tona com força brutal. As políticas macroeconômicas europeias também deixavam a desejar. O conservadorismo fiscal e monetário da Alemanha prevalecia quase sempre na área do euro e levava a que os remédios anticíclicos fossem aplicados com menos vigor e convicção do que nos Estados Unidos, retardando a recuperação da atividade econômica. A Grécia era um caso extremo, uma vez que adotara, na fase anterior à crise, políticas econômicas muito arriscadas, permitidas por algum tempo pelos excessos especulativos de mercados financeiros desregulamentados. A dinâmica que leva a situações como a que o país enfrentava é conhecida. Durante certo período, as instituições financeiras dão corda para os deficitários e até para os perdulários, desde que aparentem alguma respeitabilidade. Os déficits e dívidas vão se acumulando, financiados e refinanciados com facilidade enquanto dura a onda de otimismo. Aos poucos, porém, surgem dúvidas e inquietações, inicialmente tímidas, depois cada vez mais loquazes, quanto à sustentabilidade das posições fiscais ou externas dos países devedores. De repente, um choque qualquer – um evento econômico exógeno, novas informações negativas ou algum acontecimento político – leva a uma reavaliação da situação e o financiamento sofre uma parada abrupta. No caso da Grécia, o choque foi a revelação, no fim de 2009, de que o governo vinha praticando gigantesca manipulação das estatísticas fiscais. O leitor se lembra, certamente, das manobras contábeis praticadas no Brasil nos tempos do ministro Delfim Netto, célebre por sua propensão a dobrar os fatos às suas conveniências. Pois bem, perto do que acontecera na Grécia o ex-ministro brasileiro ganhava ares de coroinha! A condição de integrante da prestigiada zona do euro havia proporcionado à
Grécia uma enganosa aura de confiabilidade. A revelação de que existiam imensos déficits fiscais, ocultados em grande parte por artifícios contábeis, caiu como uma bomba. O prestigiado banco de investimentos Goldman Sachs – aquele mesmo que, segundo seu presidente, fazia “o trabalho de Deus”6 – participou ativamente da farsa grega, organizando operações financeiras “inovadoras” que disfarçavam a dimensão dos desequilíbrios. Nem as autoridades europeias, nem o FMI perceberam o que estava acontecendo. A súbita interrupção do financiamento privado à Grécia criou uma situação emergencial. Para evitar uma moratória, que teria provavelmente efeitos desestabilizadores sobre o resto da área monetária, os europeus resolveram mobilizar grande volume de recursos oficiais, fornecido pelos governos e o Banco Central Europeu. Ao mesmo tempo, o FMI concedeu à Grécia o maior empréstimo da história da instituição. A injeção de doses maciças de financiamento de fontes públicas, apresentada como socorro à Grécia, representava na realidade socorro aos credores privados do país, que eram principalmente instituições financeiras europeias. O dinheiro europeu e do FMI permitiria que esses credores se livrassem, sem perdas, de grande parte dos seus títulos gregos depreciados. Mais uma vez, o que se via era uma gigantesca socialização de prejuízos. Para a Grécia, o “socorro” se traduzia na imposição de um programa draconiano de ajustamento fiscal e reformas, monitorado em conjunto pelo FMI e pelas autoridades europeias. A cadeira brasileira foi, desde o início, fortemente crítica dos sacrifícios impostos ao país, o que se adicionaria às desavenças resultantes de reforma do FMI para criar mais uma fonte de atrito com os europeus. Em tese, o programa era para o bem da Grécia, que realmente tinha abusado do direito de gastar e se endividar nos anos anteriores. Na verdade, era um abraço de tamanduá. A combinação de cortes drásticos de gastos e aumento da carga tributária, em uma economia já combalida pela crise financeira, levaria a um colapso da atividade econômica e dos níveis de emprego. O ajustamento tornou-se rapidamente autofágico. A austeridade imposta pelos europeus e o FMI derrubou a economia, deprimindo a arrecadação fiscal. Isso minou a desejada diminuição do déficit fiscal e da razão dívida pública/PIB. A economia foi jogada em uma depressão que duraria muitos anos, resultando em aumento alarmante do desemprego. Ao mesmo tempo, os credores oficiais exigiram da Grécia uma vasta e detalhada lista de “reformas estruturais” em áreas como política tributária, administração pública, execução orçamentária, licitações, saúde, previdência social, sistema financeiro, mercado de trabalho, ambiente de negócios, inovação
e desenvolvimento, política de energia, comunicações eletrônicas, transporte e logística, comércio varejista, profissões reguladas, estatísticas, entre outras. Era difícil encontrar uma área da administração pública e da economia grega que não tenha ficado sujeita a recomendações e monitoramento externos. Para todos os efeitos, a Grécia foi colocada em regime de protetorado econômico. O que se tentava, em suma, era gerir o país de fora para dentro – algo que muito raramente funciona na prática. Os gregos precisavam, sem dúvida, melhorar suas instituições e administração pública. Mas como cumprir uma lista tão extensa de reformas, impostas por estrangeiros que nem sempre conhecem as circunstâncias e especificidades do país? E como fazê-lo, ademais, em meio a uma depressão econômica e taxas elevadas de desemprego? Pertencer à área do euro, algo que parecia tão vantajoso em períodos de fartura, cobrava agora seu preço. Na ausência de uma moeda nacional, inexistia a possibilidade de compensar os efeitos recessivos do ajuste fiscal com flexibilização monetária e desvalorização cambial. Sobrava, teoricamente, o caminho da “desvalorização interna”, isto é, uma deflação de preços e salários que pudesse levar a Grécia a ganhar competitividade. Só que para recuperar competitividade por esse caminho o país teria que suportar uma depressão econômica ainda maior do que aquela que já experimentava. Inconcebível dos pontos de vista social e político, o aprofundamento da depressão inviabilizaria por completo, de quebra, qualquer esperança de equacionar as contas públicas. Diante do massacre a que estavam sendo submetidos, os gregos flertavam com a ideia de sair da área do euro e restabelecer uma moeda nacional. Essa talvez tivesse sido a melhor solução de longo prazo para a Grécia, mas era um caminho inegavelmente arriscado e doloroso. Teria exigido uma ampla renegociação e conversão de contratos na economia, operação complexa e potencialmente desestabilizadora. A desvalorização externa da nova moeda nacional ajudaria a recuperar a competitividade e a atividade econômica, mas causaria turbulências no curto prazo. O resto da área do euro não escaparia ileso – até porque um dos resultados seria a insolvência do país, que ficaria incapacitado de cumprir as volumosas dívidas em euros contraídas com os parceiros europeus. Seja como for, a Grécia nunca se aventuraria por esse caminho. Considerados de sangue quente e turbulentos, os gregos até que foram muito pacientes. Só nas eleições de janeiro de 2015, depois de longos anos de sofrimento, é que resolveriam tirar do poder os partidos tradicionais, aqueles que levaram o país à crise e a administraram precariamente sob a tutela das autoridades europeias e do FMI. A vitória da SYRIZA, coligação de esquerda
liderada por Aléxis Tsípras, criou inicialmente expectativas de que pudesse haver uma reviravolta, algum tipo de ruptura que levasse até mesmo à saída da área do euro. Mas não aconteceria. Poucos meses depois da eleição grega, em junho de 2015, por circunstâncias inteiramente fortuitas, encontrei-me com o primeiro-ministro Tsípras, na Rússia, à margem do Fórum Econômico de São Petersburgo. Ao tomar conhecimento de que o futuro comando do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, que começaria a operar em Xangai no mês seguinte, também estava em São Petersburgo, o primeiro-ministro pediu uma reunião conosco para manifestar o seu interesse em associar-se ao novo banco. Disse-nos que estivera com a presidente Dilma e, depois, com o presidente Putin e que ambos concordavam com a aspiração da Grécia. No meio da reunião, Tsípras se deu conta de que eu era o diretor executivo brasileiro que se destacava na defesa da Grécia na Diretoria do FMI. Abriu largo sorriso e disse: “Acabo de ler o seu último statement sobre os problemas do programa da Grécia. Estamos em acordo total.” Perguntou-me se eu estaria disponível para uma conversa com ele; marcamos então reunião para o dia seguinte. Tsípras me recebeu a sós numa sala de reunião do hotel em que ele estava hospedado e conversamos por 30 ou 40 minutos. Naquela altura, o governo grego recém-eleito buscava obter pela via da negociação uma mudança substantiva do programa de ajustamento, que permitisse aliviar o ônus para a Grécia e iniciar uma recuperação da economia. Defrontava-se, porém, com a inflexibilidade dos europeus, liderados pela Alemanha. O FMI até que tentava, às vezes, desempenhar papel moderador. O staff, pelo menos, percebia que o programa precisava ser reequilibrado e insinuava que a Grécia não sairia da crise sem substancial alívio da dívida oficial com os europeus. Era o que a cadeira brasileira dizia abertamente. O que Tsípras queria saber era se a Grécia poderia contar com apoio dentro do FMI no embate que travava com os outros membros da área do euro. Disse ao primeiro-ministro que, no meu entender, o quadro geral não era favorável a eles na instituição. Eu era voz solitária na Diretoria. E a diretora-gerente Christine Lagarde estava, como de costume, alinhada com o ponto de vista dominante na Europa. O que os alemães e outros europeus queriam, no frigir dos ovos, era enquadrar o novo governo grego. Se a Grécia desejava continuar no euro, diziam, precisaria obedecer às regras do jogo e continuar o programa de ajustamento em curso, aquele mesmo que tinha sido rejeitado nas urnas pela população grega. Transmiti ao primeiro-ministro a minha percepção de que ele não deveria contar muito com o Fundo para abrir caminho para um novo padrão
de negociação. Sem fazer perguntas indiscretas ou levantar temas delicados, disse a ele também que era importante ter um plano de contingência para o caso de não se chegar a uma revisão satisfatória do programa. Era uma alusão à alternativa de restabelecer uma moeda nacional grega. Saí da conversa com a sensação de que esse plano de contingência não existia e que Tsípras hesitava em considerar seriamente a hipótese de abandonar a área do euro. Na ausência dessa disposição, entretanto, o mais provável é que a Grécia continuasse submetida a um ajustamento pesado, sem horizonte real de recuperação. Para o FMI como instituição, o programa da Grécia vinha representando ao longo dos anos um fardo muito maior do que inicialmente se imaginara. Nunca teria sido levado adiante daquela maneira, por tanto tempo, não fosse a superrepresentação da Europa na instituição. Em muitas ocasiões, o Fundo foi simplesmente atropelado pelas autoridades europeias, que encontravam na diretora-gerente uma aliada que podiam manejar sem grande dificuldade. Enfrentando emergência atrás de emergência, os europeus chegavam muito perto de simplesmente dar instruções ao FMI, tratando-o como mero instrumento da política definida em Bruxelas. Não hesitavam em colocar em risco a integridade financeira e a reputação da instituição, que acabariam saindo machucadas desse processo. Os diretores executivos europeus, com poucas exceções, faziam papel lastimável, comportando-se como representantes de interesses nacionais ou regionais. Na prática, ficaram reduzidos à condição de meros transmissores de recados das capitais europeias. Era como se não tivessem qualquer responsabilidade fiduciária com a instituição. Como justificar tal comportamento da parte da diretora-gerente e da maioria dos diretores executivos europeus se o programa com a Grécia era o maior da história do FMI, em termos de valor e relativamente à quota do país na instituição? Como continuar apoiando um programa econômico impraticável, que exigia demais do país e muito pouco – inicialmente nada – dos seus credores externos? A cadeira brasileira não se omitiu em nenhum momento. Já na reunião da Diretoria do FMI que aprovou o primeiro programa grego, em maio de 2010, apresentamos documento escrito em que dizíamos: “O programa proposto pode ser visto não como uma operação de salvamento da Grécia, que terá de passar por ajustamento doloroso, mas como um socorro aos detentores privados de títulos da Grécia, principalmente instituições financeiras europeias.” Foi o que aconteceu: a dívida do país com credores privados foi transformada, na sua maior parte, em dívida com credores oficiais, isto é, governos europeus, Banco Central Europeu e FMI. A incapacidade de pagar o setor privado converteu-se
em incapacidade de pagar o setor público. Colocamos em dúvida, também, as premissas e projeções do staff do FMI, que consideramos “panglossianas”. O próprio staff tinha, na verdade, sérias dúvidas sobre a “sustentabilidade” da dívida grega e não se animava a afirmar que a Grécia seria capaz de pagá-la com alta probabilidade. Ora, esse era um dos requisitos estabelecidos pelo FMI para proporcionar “acesso excepcional” a um país-membro. O problema era sério: o staff não conseguia assegurar esse requisito no caso de um país que estava solicitando um montante equivalente a mais de 32 vezes a sua quota! Solução encontrada: a política para acesso excepcional foi modificada de forma nada transparente, quase clandestina, pela inclusão de um parágrafo, no meio do relatório sobre a Grécia. Permitiu-se, desse modo, que houvesse acesso excepcional, mesmo com dúvidas sobre a capacidade de pagamento, desde que o país pudesse ser apresentado como um risco sistêmico, isto é, se as suas dificuldades representassem ameaça à saúde da economia global. Era um casuísmo escandaloso, combinado com o princípio da “plataforma cedeu”, a que já me referi. Essas manobras se tornariam públicas depois, causando danos à credibilidade da instituição.7 A subordinação do FMI às prioridades europeias, em particular a maneira como foi aprovado o programa grego, cobraria o seu preço: seria lembrada no Congresso americano para argumentar contra a ratificação da reforma de quotas e governança, como veremos. Ao longo da execução do programa, eu me absteria em duas ocasiões em votações relativas à Grécia na Diretoria – sem ser acompanhado por nenhum dos meus colegas. Isso pode parecer pouco, mas num ambiente em que é relativamente rara, a abstenção de um diretor ganha sabor de oposição – especialmente em questão crucial como a do programa da Grécia. Em outra ocasião, cheguei a deixar a cadeira vazia para sinalizar o meu desconforto com a forma como estava sendo conduzida uma das revisões do programa grego.8 Nos meus mais de oito anos de FMI, nunca vi outro diretor deixar a cadeira vazia. Foi um gesto considerado pouco construtivo e pouco civilizado dentro de uma instituição acostumada a operar com base em supostos consensos. A minha preocupação não era apenas com a violência e excessiva ambição do ajuste imposto à Grécia, mas também com os riscos de crédito e reputação em que estava incorrendo o Fundo ao emprestar somas volumosas a um país com duvidosa capacidade de pagamento. Os diretores do Fundo não podiam perder de vista sua responsabilidade pela integridade da instituição, como faziam com certo descaro a maioria dos europeus.
Dentro do FMI, meus argumentos, que sempre procurava apresentar de forma detalhada e incisiva, ficavam basicamente sem resposta. Provocavam ressentimento e por uma razão simples: quando uma maioria deseja proceder de forma indefensável, ela quer que todos, sem exceção, se associem ao erro. Críticas, alertas e objeções apresentadas no momento da decisão, mesmo que por uma voz isolada, lançam uma luz desagradável sobre aqueles que se dobram às circunstâncias. Os problemas foram se tornando tão graves que, depois de algum tempo, resolvi trazê-los a conhecimento público – sem violar, diga-se, qualquer regra da instituição. Passei a divulgar para a mídia internacional as minhas inquietações e reservas, tomando sempre o cuidado de não revelar informações confidenciais. Todas as minhas declarações eram, devo frisar, sempre on the record, nunca me furtava a assumir a responsabilidade pelas opiniões que divulgava. Havia algum risco, de certo, em proceder dessa maneira. Nenhum outro diretor o fazia. Mas, normalmente, não surgiam problemas. Os jornalistas que cobriam o FMI eram experientes e sempre reproduziam corretamente minhas declarações. Houve, porém, uma ocasião em que deu tudo errado, e eu quase fui derrubado do cargo.
Por um triz Em julho de 2013, tivemos nova reunião da Diretoria sobre a Grécia, umas das vezes em que resolvi me abster na decisão de liberar uma parcela do empréstimo do FMI ao país. Ocorre que, naquele momento, a agência Reuters estava representada em Washington por uma jornalista novata que se atrapalhou toda ao resumir as minhas declarações. A agência colocou no ar reportagem dela noticiando que a América Latina, representada por mim, havia declarado oposição ao programa da Grécia. Quando consegui a retificação, a notícia já repercutia amplamente. Por uma infelicidade, estávamos num momento de grande falta de assunto no mundo inteiro. Resultado: a notícia ganhou destaque imprevisto, exacerbado evidentemente pelos erros de reportagem. A minha modesta abstenção chegou rapidamente à primeira página de jornais como o Financial Times. A mídia brasileira, impressionada com a repercussão, também passou a noticiar, com destaque, a suposta oposição que o diretor brasileiro fazia à Grécia no FMI. Ironicamente, o maior defensor da Grécia na instituição era apresentado como contrário a que o país continuasse recebendo apoio externo. Ao chegar à imprensa brasileira, essas distorções entraram no radar da presidente Dilma. Sem se inteirar do assunto, ela reagiu de forma abrupta e precipitada. Cobrou do ministro Mantega, em termos enfáticos, que a minha decisão fosse imediatamente retificada. “O Brasil apoia a Grécia!”, exclamava. “Afinal, você manda ou não nesse diretor?” Foi um deus nos acuda. Mantega passou a me procurar insistentemente para transmitir a indignação da presidente. Ocorre que eu estava ocupado durante toda uma manhã em uma reunião da Diretoria sobre a economia da Alemanha. Celular no silencioso, não notava a enorme quantidade de mensagens do gabinete do Ministro. Aflito com a veemência da presidente da República, Mantega acabou se precipitando, por sua vez, e telefonou para Lagarde, que não participava da reunião da Diretoria, para informar que discordava da minha abstenção! A diretora-gerente, que me detestava cordialmente, deve ter recebido a ligação com um sorriso de orelha a orelha. Pior: Mantega soltou nota à imprensa para desautorizar o diretor brasileiro no FMI. Tudo isso sem falar comigo. Um desastre completo. A minha primeira providência foi entrar em contato com a secretaria da Diretoria e o departamento jurídico do staff para dizer que, apesar do telefonema do ministro brasileiro à diretora-gerente, eu confirmava a abstenção. O staff esclareceu que a confirmação não era necessária, pois pelas normas do FMI,
encerrada uma reunião, os votos dos diretores estavam fixados e não podiam ser revistos. O mais importante, claro, era resolver de alguma forma a crise com o governo brasileiro. Não era possível fingir que nada havia acontecido e deixar por isso mesmo. Na semana seguinte, viajei a Brasília para uma reunião com o ministro da Fazenda. Já tinha comigo, praticamente pronta, uma carta de demissão a que daria forma final depois do encontro com Mantega. Comecei dizendo a ele: “Sem querer, você inviabilizou a minha permanência em Washington.” Não era o que Mantega queria. Como já tive ocasião de dizer, estávamos, ele e eu, essencialmente de acordo em todos os temas relevantes da agenda do FMI. O problema tinha sido a reação tempestuosa da presidente Dilma. “Você não imagina como é difícil trabalhar com ela”, frisou Mantega. Ele ouviu as minhas explicações sobre a abstenção e disse, em resposta, que não discordava do voto em si, mas da minha decisão de divulgá-lo. O importante para ele era desfazer a impressão de que o Brasil não apoiava a Grécia. Resolvemos, então, que seria divulgada nova nota oficial para esclarecer em definitivo a questão, dirimir dúvidas sobre a posição do governo brasileiro e reiterar o apoio do ministro da Fazenda ao diretor brasileiro no FMI. A nota era um remendo, mas atendia a esses objetivos. Nela, o ministro da Fazenda deixou claro que eu atuava em sintonia com o governo brasileiro e contava com seu respaldo político para exercer e continuar exercendo o cargo. O incidente foi apresentado como um problema de comunicação. Não era mesmo muito mais do que isso. Os diretores executivos do FMI têm de tomar diversas decisões por semana e nem sempre é possível a consulta aos governos, reconhecia a nota. Registrou-se, também, que o ministro da Fazenda e o diretor brasileiro no FMI avaliavam que os programas de resgate à Grécia e outros países da periferia da área do euro precisavam ser revistos e aperfeiçoados de modo a dar melhores condições de recuperação a esses países.9 Foi preparada versão em inglês que circulei amplamente dentro do FMI e para a imprensa internacional. O incidente, embora desgastante, foi superado a partir daí sem maiores dificuldades. Ainda não fora dessa vez que os meus adversários na instituição conseguiriam me ver pelas costas. A cadeira brasileira continuaria se destacando na discussão do programa da Grécia e argumentando em favor da sua revisão. O tempo daria razão aos críticos do programa. Mesmo dentro do FMI, ganhou terreno aos poucos o reconhecimento de que o tratamento dado à Grécia não era defensável. A realidade acaba se impondo. Depois de alguns anos, já ninguém podia ignorar que o programa grego havia sido, na verdade, uma das
páginas mais infelizes da história da instituição. Em 2016, o Escritório de Avaliação Independente publicou um relatório sobre a atuação do FMI nas crises da Grécia, da Irlanda e de Portugal.10 No que diz respeito à Grécia, o relatório tirou as seguintes conclusões, entre outras: a) a decisão de não incluir uma reestruturação da dívida logo no início do programa levou a um ajuste fiscal excessivo e a uma grande recessão; b) essa decisão sacrificou a Grécia, mas beneficiou os credores externos privados, que puderam cortar a sua exposure ao país graças à provisão de recursos oficiais; c) em aspectos cruciais, o FMI aceitou se subordinar às prioridades e decisões dos governos da área do euro; d) ao conceder empréstimos de grande magnitude à Grécia, o FMI atuou de forma pouco transparente e não seguiu seus próprios procedimentos; e) a Diretoria Executiva do FMI foi mantida à margem de muitas discussões e nem sempre foi consultada ou sequer informada de maneira apropriada. Todas essas conclusões, sem exceção, foram tiradas pela cadeira brasileira no calor da hora. E foram expressas por nós de forma enfática, repetidas vezes, verbalmente e por escrito. Veja bem, leitor: no calor da hora – e não com a confortável sabedoria ex post de quem escreve cinco ou seis anos depois. Por assim proceder, tivemos que enfrentar hostilidade ou represálias de outras cadeiras da Diretoria, da Administração e do staff. Apesar dos pesares e incompreensões, inevitáveis nas circunstâncias, nossa atuação na crise da Grécia não merece reparos.
3. A arte da traição A despeito das suas limitações, as negociações de 2010 foram o ponto alto dos esforços de reforma do FMI. De 2011 em diante, os ventos começaram a soprar contra nós, dentro e fora da instituição. A chegada de Christine Lagarde, em julho de 2011, trouxe retrocessos em vários temas, como já mencionei, mas em especial para as reformas de governança da instituição. Ela se mostrou, desde o início, pouco inclinada a continuá-las e mesmo a cumprir os acordos feitos no período DSK, no âmbito do FMI e do G20. Dava a impressão de que havia sido indicada para o posto com a missão de dar uma freada nas reformas que erodiam ou ameaçavam erodir o peso da Europa na instituição. Ainda que não tivesse grande liderança, a nova diretora-gerente dispunha de experiência e audácia suficientes para organizar manobras de contenção das reformas. Mostrou-se, em vários momentos, pouco confiável e até desleal com os emergentes. Não podíamos contar com ela para quase nada.
Mais importante do que esses fatores pessoais foi o que aconteceu no plano político nos Estados Unidos. O governo Obama, como vimos, mostrava disposição de enfrentar a resistência europeia à reforma do FMI. Nas negociações de 2010, em Washington e na Coreia do Sul, essa disposição atingiu seu auge. Enquanto isso, entretanto, o clima político mudava drasticamente nos Estados Unidos, com a ascensão do Partido Republicano e, dentro dele, das alas de extrema direita, o chamado Tea Party, um movimento populista e retrógrado, que prefigurava o que se veria depois com a ascensão de Donald Trump. A mudança no clima político culminaria na fragorosa derrota dos democratas nas eleições congressuais de novembro de 2010, resultando para o governo em perda da maioria na Câmara dos Representantes. O presidente Obama demoraria a se recuperar desse revés, que teria como consequência, entre muitas outras, a perda de ímpeto reformista dos Estados Unidos no FMI. A derrota eleitoral dos democratas levou a que o governo enfrentasse enorme dificuldade de convencer a Câmara, controlada agora por republicanos hostis, a ratificar a reforma de 2010. Ora, em razão da supermaioria de 85% requerida, a reforma não poderia entrar em vigor sem a ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos. Estabeleceu-se, assim, um impasse de longa duração. As novas quotas só viriam a vigorar em janeiro de 2016, com atraso de mais de três anos em relação ao cronograma estabelecido pelo G20 nas negociações da Coreia do Sul. A demora do Congresso americano foi uma dádiva para os europeus, que se aproveitariam disso deslavadamente ao longo dos anos. Pressionada pela crise do euro, a Europa queria mais do que nunca preservar sua super-representação no FMI, ainda que isso significasse descumprir compromissos assumidos no G20 por seus presidentes ou primeiros-ministros. O comportamento podia parecer vexaminoso, mas os europeus não mostravam grande constrangimento. Confirmava-se, uma vez mais, a advertência de Nelson Rodrigues de que a falta de escrúpulos é um traço constitutivo dos grandes povos. Com certo cinismo, os europeus mandaram para o espaço o acordo político expresso nos comunicados do G20. Pouco adiantava lembrá-los, como eu fazia repetidamente, que esse acordo havia sido chancelado por seus líderes políticos. Ou recordar à diretoragerente que ela havia participado, direta e pessoalmente, da negociação no G20, na condição de ministra de Finanças da França. Lagarde e os diretores europeus davam uma de joão sem braço, fingiam que não era com eles e continuavam a obstruir e adiar as providências prometidas. Os alvos da procrastinação eram os elementos prospectivos (forwardlooking elements) introduzidos pelos BRICs no acordo de 2010. O atraso do
primeiro passo – a ratificação e a entrada em vigor das novas quotas – era usado como argumento para empurrar a um futuro indefinido os passos seguintes: a revisão da fórmula de quotas, com conclusão programada para até janeiro de 2013, e a nova rodada de realinhamento de quotas e poder de voto, cuja negociação deveria ser finalizada até janeiro de 2014. Dos três elementos prospectivos anteriormente referidos, só um seria implementado: a transformação de grande parte do NAB em quotas, com preservação das participações relativas no estoque remanescente. Não havia, a rigor, justificativa para adiar nada. Mas os europeus insistiam que, sem a implementação das quotas de 2010, não havia condições para rever a fórmula e negociar nova reforma de quotas. Sem ter feito o dever de casa, os americanos ficavam sem poder atuar. Os emergentes haviam perdido essa alavanca. Em vez de contar com apoio dos Estados Unidos, ficávamos tentando, sem muito sucesso, pressioná-los a buscar a ratificação no Congresso. Em resposta, os americanos nos diziam que estavam fazendo o possível, mas que a maioria republicana se negava a colaborar. Não se podia duvidar disso: era público e notório que a oposição se recusava a cooperar com o governo Obama. Buscava, ao contrário, solapá-lo em todas as ocasiões possíveis. A reforma do FMI era uma entre muitas questões pendentes de aprovação congressual. Ironicamente, um dos argumentos levantados pelos republicanos e por economistas ligados a eles, como John Taylor,11 era a pouca confiabilidade do FMI, demonstrada pela forma como se deixara manipular pelos europeus na crise da Grécia… No G20, os representantes brasileiros subiram o tom, denunciando a quebra de confiança decorrente da interrupção da reforma do FMI. Mas o próprio grupo perdia expressão à medida que amainava a crise econômica dos avançados. Estados Unidos e Europa já não precisavam tanto do G20 e suas reuniões foram ficando menos importantes. Para nós, representantes dos BRICS, essas reuniões transformaram-se cada vez mais em ocasiões para que nos encontrássemos à parte e cuidássemos de aprofundar nossa coordenação. Como as equipes que nos representavam no G20 eram basicamente as mesmas que atuavam nos BRICS, era muito conveniente marcar nossas reuniões à margem dos encontros ministeriais ou de cúpula do G20. No período 2012-2014, essas reuniões paralelas acabaram se tornando mais importantes para os BRICS do que as próprias reuniões de um G20 já meio enfraquecido e esvaziado. Na Diretoria do FMI, os BRICS também subiram o tom. Atuando em conjunto com alguns outros emergentes, notadamente o Irã e a Argentina, abrimos fogo sobre a relutância dos europeus em honrar seus compromissos. As
cadeiras da Rússia, da Índia e do Brasil se destacavam nessas discussões. Lançávamos uma bateria de argumentos em prol da reforma, apontando para as debilidades e inconsistências da fórmula de quotas e, também, para a dissonância entre as tendências da economia mundial e a distribuição do poder de voto no FMI – dissonância que não seria resolvida, lembrávamos, com a entrada em vigor das quotas acordadas em 2010. Com o passar do tempo e a demora no Congresso dos Estados Unidos, aumentamos também a pressão sobre os americanos. Os diretores dos BRICS e seus aliados chegaram a formular em detalhe uma proposta para permitir a entrada em vigor das novas quotas mesmo sem a ratificação dos Estados Unidos. A nossa ideia era desvincular a entrada em vigor das quotas acordadas em 2010 dos elementos da reforma que exigiam aprovação do Congresso americano. O problema é que isso levaria o poder de voto deles a ficar temporariamente abaixo do limite de 15% que lhes garantia o direito de veto em decisões cruciais. As quotas de outros países subiriam, conforme acordado, mas o aumento dos Estados Unidos ficaria na dependência do Congresso. A versão mais completa dessa proposta, elaborada em 2015 pela cadeira brasileira, incluía o compromisso formal do Conselho de Governadores e da Diretoria Executiva de não votar qualquer decisão que exigisse supermaioria de 85% até que os Estados Unidos pudessem ratificar a reforma e efetuar o aumento da sua quota.12 A proposta de desvinculação foi bem construída, mas sua aprovação dependia do apoio dos Estados Unidos, que não se dispunha a seguir em frente na base proposta por nós. Havia um aspecto significativo que poderia, em tese, facilitar sua aceitação: a aprovação da desvinculação dependia juridicamente apenas do Executivo americano, não do Congresso. Como o Executivo dizia, reiteradamente, que o Congresso era a única barreira, por que não aceitar a desvinculação? A resposta dos representantes dos Estados Unidos era um silêncio mais ou menos constrangido. A nossa proposta não seria aceita afinal, mas ela era sólida do ponto de vista legal e colocava os americanos na berlinda, contribuindo em alguma medida, acreditávamos, para induzir o Executivo a redobrar seus esforços no Congresso. Estávamos exercendo o “jus esperniandi” e nossa inventividade, mas poderíamos ir até mais longe. Tínhamos, na verdade, nossa própria “bomba atômica”: o poder de vetar a ativação do NAB – conquistado pelos BRICs, como vimos, nas negociações de 2009 e 2010. Recorde-se que, a cada seis meses, o FMI precisava buscar junto aos integrantes do NAB autorização para acessar seus recursos. Como a reforma de 2010 ainda não estava em vigor, o acesso contínuo ao NAB revestia-se de grande importância. Para obter a ativação
semestral, o Fundo precisava da concordância dos BRICS, pois os cinco em conjunto somavam mais do que os 15% necessários para negar o pedido. Se fincássemos o pé, o FMI ficaria sem munição, pois as quotas eram insuficientes àquela altura. No entanto, como toda “bomba atômica”, o poder de veto no NAB era mais um instrumento de dissuasão do que de destruição. Bloquear o NAB e deixar o FMI à míngua afetaria países que dependiam de empréstimos da instituição e teria impacto desestabilizador sobre a economia mundial, que ainda se recuperava da crise de 2008. Não éramos incendiários, e não pretendíamos ir tão longe. Mas, a cada seis meses, fazíamos Lagarde rebolar um pouco, com perdão da expressão. O Brasil e os outros BRICS eram representados nas reuniões semestrais do NAB por seus diretores executivos. Atuávamos em coordenação, mas sob liderança, nesse tema, do Brasil, um pouco mais inclinado do que os outros a ameaçar com o direito de veto. Apresentei várias possiblidades aos outros diretores dos BRICS, entre elas a de indicar que só concordaríamos com uma ativação parcial do NAB que, bem calibrada, poderia deixar o FMI suficientemente abastecido, ao mesmo tempo em que nos permitiria enviar um sinal amarelo aos acionistas majoritários e à Administração. O elo fraco, entretanto, era a China, que se mostrava relutante em escalar. Em mais de uma ocasião, Lagarde viajaria até Beijing para assegurar apoio chinês à reativação do NAB. Depois de algumas idas e vindas, os chineses acabavam roendo a corda. De qualquer maneira, os ruídos que emitíamos a cada rodada de reativação do NAB lembravam a todos que os BRICS continuavam insatisfeitos e não desistiriam facilmente da implementação da reforma de 2010. O nosso comportamento cauteloso fazia parte de um padrão. Os BRICS seguiam uma linha consistentemente reformista, mas sem alarde e radicalismo. Em outras questões que apareceram na mesma época, como a já referida segunda rodada de empréstimos bilaterais ao FMI, também nos mostramos moderados e cooperativos, talvez até demais. Digo demais porque, enquanto corria a negociação da segunda rodada, foi se tornando cada vez mais evidente que os europeus não pretendiam permitir que levássemos adiante os elementos prospectivos do acordo de 2010. Tínhamos, portanto, todos os motivos para não participar. Como relatei anteriormente, a presidente Dilma abrigava sérias e fundadas dúvidas quanto à conveniência de oferecer novos recursos ao Fundo. Mas os outros BRICS estavam propensos a voltar a emprestar – mesmo com o atraso na reforma. Com exceção do Brasil, os demais acabariam entrando com novos recursos na segunda rodada em 2012 – apesar dos meus esforços em
persuadi-los de que não era apropriado continuar emprestando, em face da demora do Congresso americano e das manobras protelatórias da diretoragerente do FMI e dos demais europeus. O Brasil só viria a participar da segunda rodada muito depois, em 2016, já no governo Temer, quando o Banco Central abriu nova linha de US$ 10 bilhões para o FMI. A estagnação da reforma teria outra consequência, potencialmente mais importante e duradoura: a decisão estratégica dos BRICS de trilhar um caminho próprio no campo das organizações multilaterais. De 2012 em diante, começamos a trabalhar seriamente na criação de instituições independentes, que serão objeto do próximo capítulo deste livro. Entre 2012 e 2014, os BRICS negociaram com cuidado os convênios constitutivos de um fundo monetário e de um banco de desenvolvimento, que seriam assinados na cúpula de Fortaleza, em julho de 2014. Simultaneamente, a China liderou a criação de um banco asiático de investimento em infraestrutura, também visto como desafio ao Banco Asiático de Desenvolvimento e ao Banco Mundial. Novamente, entretanto, os BRICS resistiram à tentação de iniciar uma batalha retórica com o Ocidente e as instituições de Bretton Woods. Desde o início, as novas entidades foram apresentadas como complementares e não concorrentes do FMI e do Banco Mundial. Repetíamos sempre que pretendíamos aprender e cooperar com as entidades estabelecidas. A ninguém escapava, porém, que os BRICS nunca teriam se dado ao trabalho e ao dispêndio de criar instituições multilaterais se estivessem satisfeitos com as existentes. Não precisávamos dizer nada; ficava tudo implícito. A resistência à mudança em Washington estava levando aos poucos à fragmentação do sistema multilateral de financiamento.
4. Sai Mantega, entra Levy: minha fase final no FMI Enquanto avançavam essas negociações entre os BRICS, ocorria uma reviravolta política da maior importância no Brasil, justamente o país que, durante a maior parte do tempo, funcionara como motor do grupo. Essa reviravolta teria impacto sobre os BRICS e afetaria, também, a minha posição em Washington. O primeiro sintoma dessa reviravolta se deu, paradoxalmente, logo após a reeleição da presidente Dilma, em outubro de 2014. Em decisão que surpreenderia a todos, a presidente reeleita resolveu substituir Guido Mantega por Joaquim Levy no Ministério da Fazenda. A saída de Mantega era até natural, pois ele já ocupava o cargo há mais de oito anos e dizia, inclusive em conversas comigo, que pretendia voltar a São Paulo. O surpreendente e inusitado foi a
escolha de Levy, economista muito conservador, formado na Universidade de Chicago, que nada tinha a ver com as inclinações da presidente Dilma e as propostas econômicas da sua campanha. Ela fora eleita com discurso e promessas de esquerda, mas começava o segundo mandato governando pela direita em matéria econômica. Levy logo daria sinais de que não nutria grande simpatia pelo diretor do FMI. Pouco depois de assumir o cargo, sem que houvesse surgido qualquer desavença entre nós, ele deu sua primeira estocada. Pediu a seu secretário executivo, Tarcísio Godoy, para me telefonar comunicando que já não era necessária minha participação como delegado brasileiro nas reuniões do G20 e dos BRICS. As reuniões do G20 já não pesavam muito, como relatei, mas as dos BRICS tinham importância, pois versavam naquele período pós-Fortaleza sobre as medidas de preparação para a entrada em funcionamento do novo banco de desenvolvimento e do fundo monetário dos BRICS, temas aos quais me havia dedicado sistematicamente desde 2012. Fiquei descontente e, sempre persistente, tentei reverter a decisão do ministro da Fazenda. Viajei a Brasília e levei o assunto a Aloizio Mercadante, ministro da Casa Civil, de grande influência no governo. Mercadante, que acompanhava os temas estratégicos na área internacional e sabia o que estava em jogo nos BRICS, ouviu o meu relato e, de pronto, empunhou o telefone e ligou para o ministro da Fazenda. Sem rodeios e sem medir muito as palavras, disse a Levy que “o Paulo era indispensável nos BRICS” e determinou que ele voltasse atrás. Saí da reunião satisfeito e inquieto ao mesmo tempo. Mercadante teria mesmo condições de corrigir Levy dessa forma, sem preparar o terreno? Logo ficaria claro que não. Levy foi se queixar à presidente, que lhe daria apoio nesse ponto. Mercadante me explicaria no dia seguinte que, como G20 e BRICS estavam na competência da Fazenda, era melhor deixar que Levy decidisse quem integraria as delegações brasileiras a partir daí. Fiquei frustrado, mas nada podia fazer. A exclusão do delegado brasileiro com mais cancha em termos de BRICS e G20 era um pequeno sinal de algo maior, de um processo de enfraquecimento do governo e da progressiva erosão do poder da presidente da República que culminaria no seu impeachment pouco mais de um ano depois. O encontro com Mercadante trouxe outra novidade. Ao desligar o telefone, satisfeito em ter enquadrado Levy, Mercadante volta-se para mim e dispara: “A presidente quer saber se você não gostaria de assumir o cargo de vice-presidente do Banco dos BRICS em Xangai.” Foi um convite realmente inesperado; nada fizera para pleitear o cargo e não passava pela minha cabeça, depois de quase oito anos em Washington, me mudar para o outro lado do mundo. Àquela altura,
inclusive por motivos familiares, queria voltar para o Brasil. Quase recusei de pronto. Felizmente, tive a calma de agradecer o convite e pedir tempo para avaliar. Em retrospecto, percebo que essa era uma solução inteligente nas circunstâncias. A minha transferência para Xangai resolvia um conflito com o ministro da Fazenda, que tinha grande apreço pelo FMI e não queria ver um economista como eu à frente da nossa cadeira, ao mesmo tempo em que colocava em posição estratégica no processo BRICS alguém que se dedicara à coordenação entre os cinco países desde 2008. Porém, naquele momento, não foi tão fácil para mim perceber que o convite era provavelmente a melhor solução do ponto de vista político e do interesse estratégico do Brasil. Demoraria alguns meses a aceitar o convite. Continuei entretendo a hipótese de ficar em Washington, mesmo em conflito com o ministro da Fazenda, completando mandato que tinha até novembro de 2016, pois acabara de me reeleger por mais dois anos. Teria sido um caminho difícil, por certo, mas possível nas circunstâncias. Eu não era demissível ad nutum pelo ministro Levy e este, embora poderoso naquele início de gestão, não contava com a confiança total da presidente da República e teria certamente alguma dificuldade de forçar a minha saída.
Aparece uma segunda Grécia: Levy alinhado aos Estados Unidos Estabeleceu-se então um cabo de guerra. Eu não estava disposto a contemporizar e muito menos a tentar me aproximar do ministro da Fazenda – até porque, ao me excluir logo de saída das reuniões do G20 e dos BRICS, ele já indicara que não estava nada bem-disposto a meu respeito. Depois do incidente com Mercadante, só podia supor que o seu ânimo tivesse piorado ainda mais. Desde 2014, estava em curso outra questão candente no FMI que daria lugar a mais um embate com Levy: a crise da Ucrânia e o papel reservado ao Fundo no apoio ao governo do país. A Ucrânia se constituíra, há muitos anos, em campo de disputa entre a Rússia e o Ocidente. O problema se tornara agudo, recorde-se, quando chegou ao poder em Kiev, no início de 2014, um governo alinhado aos Estados Unidos e à Europa que se distanciou imediatamente da Rússia. Sentindo-se ameaçado e temendo que a Ucrânia pudesse chegar a ponto de ingressar na União Europeia e até mesmo na Otan, Putin surpreendeu seus
adversários com a decisão de anexar a estratégica península da Crimeia. Aproveitou-se da fragilidade militar da Ucrânia e apostou, corretamente, que teria o apoio da população majoritariamente russa da Crimeia. Calculou, também corretamente, que o Ocidente não teria condições ou vontade de intervir militarmente. A Ucrânia, diga-se de passagem, era beneficiária de tratados com os Estados Unidos e o Reino Unido, que asseguravam sua integridade territorial. Na hora crucial, porém, esses tratados viraram letra morta – mais uma demonstração prática de como é temerário delegar a segurança nacional a terceiros.13 Os americanos e europeus ficaram em pé de guerra, é verdade, mas só em sentido metafórico. Embora dura, a resposta deles à ação de Putin restringiu-se ao campo econômico-financeiro. Mais de 40 países, incluindo todo os desenvolvidos, aplicaram sanções de diferentes tipos à Rússia. O país se viu submetido a um verdadeiro cerco financeiro externo, com suspensão de todos os projetos de financiamento em organismos controlados pelos Estados Unidos e a Europa, inclusive o Banco Mundial e o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento. Ao mesmo tempo, esses bancos multilaterais de desenvolvimento, assim como fontes oficiais bilaterais, foram mobilizados para proporcionar apoio financeiro à Ucrânia, cuja economia enfrentava séria crise, agravada pela instabilidade política e o enfrentamento com a Rússia. Nesse pacote de apoio à Ucrânia, como seria de esperar, entrava também o FMI, sempre convocado a apoiar as agendas nacionais dos seus principais acionistas, especialmente em emergências como essa. O papel do Fundo na Ucrânia seria crucial. Repetia-se, em linhas gerais, o que acontecera no caso da Grécia: o FMI era chamado a fornecer rapidamente grandes empréstimos a um país com economia e contas desorganizadas e – mais grave – sem perspectiva real de que viesse a organizá-las. A desordem na Ucrânia era impressionante, mas prioridades eram prioridades. Americanos e europeus não queriam nem saber de hesitações no FMI: a Administração, o staff e a Diretoria deveriam simplesmente fall into line, alinhar-se sem demora à necessidade de aprovar vultosas somas para a Ucrânia, fazendo vista grossa às deficiências e à falta de perspectivas do país no campo econômico-financeiro. Era mais um episódio que arranharia a credibilidade e a integridade financeira do FMI. Repetiu-se o que acontecia em emergências anteriores do mesmo tipo: o staff montava a toque de caixa um programa econômico, com as habituais cartas de intenção, condicionalidades e metas trimestrais, e as autoridades do país em crise assinavam embaixo, mesmo sem acreditar muito
que poderiam cumprir o estabelecido. Tal como no caso da Grécia, era notável a dissonância entre os relatórios do staff, que apontavam claramente os problemas econômicos do país e os riscos do programa, e a recomendação à Diretoria de que aprovasse, ainda assim, volumosos empréstimos com desembolsos relativamente rápidos. O staff se protegia de críticas posteriores, mostrando que percebia os problemas e riscos do esquema montado às pressas, mas jogava a batata quente no colo da Diretoria, instada a chancelar um programa visivelmente inviável. Nas várias discussões na Diretoria sobre a Ucrânia, ao longo de 2014, ainda no período em que Mantega era ministro, a cadeira brasileira se destacou novamente nas críticas às fragilidades e inconsistências do programa. Reconhecíamos, claro, que a Ucrânia tinha o direito de pleitear empréstimos e precisava, com urgência, de apoio financeiro externo. Mas observávamos, sem meias palavras, que a análise e os dados apresentados pelo staff não davam a mínima segurança de que o programa pudesse ser bem-sucedido. Assim como no caso da Grécia, embora em menor medida, havia também dívidas externas insustentáveis com credores e investidores privados, neste caso principalmente dos Estados Unidos. Um dos desafios para o programa era, outra vez, garantir que os credores privados participassem com algum sacrifício da solução da crise financeira do país. A habitual resistência do setor privado abria o risco de que houvesse nova socialização de prejuízos. Como a Ucrânia não integrava a União Europeia e, muito menos, a área do euro, os mecanismos europeus de financiamento emergencial não podiam ser acessados. Portanto, a transformação da dívida privada impagável em dívida pública impagável significaria, na prática, ônus para o FMI e, em menor medida, para outras instituições financeiras multilaterais chamadas a colocar dinheiro em país de alto risco. A cadeira brasileira levantou todas essas questões repetidas vezes em intervenções orais e nos documentos escritos que apresentamos para as reuniões sobre Ucrânia ao longo de 2014. Os relatórios do staff eram a nossa principal base de dados e informações, complementados por informações fidedignas que levantávamos em outras fontes. Éramos, outra vez, voz quase isolada. Fora a cadeira da Rússia, que atuava nesse caso, claro, com motivação eminentemente política, todos as outras se omitiam ou silenciavam. Como se podia prever, foi impossível cumprir o estabelecido e o programa teve que ser totalmente reformulado. No início de 2015, a Ucrânia voltou para a consideração da Diretoria. Mesmo reformulado em vários aspectos, o programa ainda mostrava fragilidades, omissões e inconsistências. A persistência do conflito com a Rússia continuava contribuindo para impedir a estabilização da
situação econômico-financeira. De novo, o staff não se furtava a apontar os problemas, ansioso para se eximir de responsabilidade. O quadro era, na essência, muito semelhante ao do ano anterior. No entanto, o contexto em que operava o diretor brasileiro havia mudado completamente. Sabia, perfeitamente, que o meu ponto de vista já não encontraria eco no Ministério da Fazenda. Por outro lado, não podia mudar subitamente de posição sem perder face e credibilidade, não só dentro como também fora do FMI. É que, a exemplo do que vinha fazendo na questão da Grécia, eu decidira divulgar, desde 2014, as minhas objeções ao programa da Ucrânia e ao que me parecia o mau uso do FMI para levar adiante objetivos políticos dos principais acionistas. O que fazer? Mais do que nunca, valia nessa situação a máxima de Malan. Não passava pela minha cabeça pedir instruções. Resolvi trilhar o seguinte caminho: enquanto continuávamos questionando, sem trégua, a Administração e o staff nas reuniões preparatórias sobre Ucrânia, elaborei com ajuda da minha equipe um relatório reservado, de caráter informativo, sobre a situação do país e as inúmeras deficiências do programa que estava sendo proposto à Diretoria em substituição ao fracassado programa de 2014. Determinei à equipe que o relatório fosse deliberadamente longo e técnico. Enviei então esse relatório ao ministro Levy e aos outros dez governadores da nossa cadeira. E esperei. Não houve resposta de Brasília, como eu previa. Sequer acusaram recebimento. O texto era denso demais para ser processado com facilidade. As semanas foram passando e a cadeira, sem ser incomodada, continuava o trabalho de levantar, com embasamento técnico, dúvidas sobre o que o staff apresentava a cada reunião. Foi se aproximando a data da reunião decisiva da Diretoria e a questão que se colocava para mim era como votar. Se mantivesse o padrão habitual, coerente com meu posicionamento ao longo das discussões sobre Ucrânia desde 2014, o mínimo que deveria fazer era me abster. Mas isso chegaria, fatalmente, a Brasília, ainda que dessa vez eu não divulgasse meu voto. Algum “amigo” ou “admirador” no FMI faria, certamente, o trabalho de vazar a informação. Aconselhado por um dos meus alternos, Hector Torres, resolvi tentar caminho um pouco diferente. Iríamos para a última reunião da Diretoria, em março de 2015, com voto em aberto. Apresentaríamos por escrito uma consolidação das nossas dúvidas e objeções, ressalvando, porém, que estávamos, mesmo assim, dispostos a acompanhar a maioria – desde que fosse modificado um aspecto central do que estava sendo proposto: o tratamento excessivamente condescendente dos credores privados externos da Ucrânia – basicamente investidores americanos que arriscaram dinheiro no país, confiando que seriam,
em última análise, bailed out, socorridos com recursos públicos se tudo desse errado. A mudança proposta pela cadeira brasileira poderia beneficiar a Ucrânia, aumentando um pouco as chances de sucesso do programa. Na véspera da reunião, ocorreu um incidente lamentável, revelador do rumo que as coisas estavam tomando em Brasília. À noite, começa a tocar o celular; era do gabinete do ministro da Fazenda. Coisa boa não seria. Não atendi e deixei para devolver a ligação só no dia seguinte. Como supunha, o ministro me procurava por causa da Ucrânia. Para a minha surpresa, entretanto, ele veio com a seguinte conversa: “O que está acontecendo com a Ucrânia no FMI?” “Recebi ontem reclamações a seu respeito do secretário do Tesouro dos Estados Unidos.” Levy queria saber por que não havia sido consultado sobre o assunto. A minha resposta, leitor, já estava engatilhada: “Mas como assim, ministro? Mandei há algumas semanas extenso relatório sobre o programa da Ucrânia, explicando, em pormenores, suas diversas dificuldades. São essas as preocupações que tenho manifestado em reuniões da Diretoria. Nada mais, nada menos.” Levy disse que não havia visto o documento e ficou de procurá-lo. Enquanto o ministro procurava nosso relatório, começou naquela manhã mesmo a reunião decisiva da Diretoria. Consegui entrar na reunião de mãos livres, por assim dizer, embora pressionado, claro, pelo diálogo um tanto surpreendente com o ministro da Fazenda. Veja, leitor, o que esse diálogo sinalizava. Levy era tão alinhado a Washington que o secretário do Tesouro se sentia à vontade para reclamar do diretor brasileiro e pedir a intervenção do ministro. Curioso foi que Levy não se envergonhava de me revelar que estava passando recado da sua contraparte americana. Talvez até se envaidecesse de dizer que recebera um telefonema de tão importante personagem… O estranho diálogo com Levy não modificou meus planos. Entrei na reunião da Diretoria determinado a tentar uma mudança no programa que contemplasse um pouco mais de equilíbrio entre a Ucrânia e seus credores privados. A reunião estava sendo presidida pelo número 2 da Administração, o americano David Lipton. Expus o meu ponto de vista sobre o programa, fiz as ressalvas que precisava fazer, mas indiquei, como planejara, que estava pronto a me somar aos que apoiavam o programa se a Administração e a maioria dos diretores se dispusessem a modificar em alguma medida os termos da participação dos credores. A minha proposta caiu no vazio. Logo ficou claro que não havia disposição de alterar esse aspecto do acordo. Os Estados Unidos queriam, certamente, ajudar a Ucrânia, mas pretendiam, ao mesmo tempo, preservar ao máximo os interesses de Wall Street, protegendo fundos de
investimento detentores de títulos ucranianos de perdas superiores às que já houvessem sido descontadas no mercado. Esse era, com certeza, o pano de fundo da inflexibilidade com que me deparei. Resultado: acabei me abstendo. A única outra abstenção veio do diretor russo, Aleksei Mozhin. Resolvi ser discreto, não dei declarações à imprensa e não divulguei meu voto dessa vez. Como eu previa, entretanto, a minha abstenção vazou imediatamente. Levy não se manifestou, mas deve ter ficado contrariado. Como explicar ao secretário do Tesouro a sua incapacidade de controlar o diretor brasileiro no FMI? O incidente deve ter feito o ministro da Fazenda redobrar esforços para me remover do cargo. Ao longo dos meses seguintes, continuei em dúvida se deveria aceitar ou não a mudança para Xangai. Depois do episódio da Ucrânia, Brasília entrara em silêncio de rádio, mas não me iludia: com Levy fungando no meu cangote, já não eram as mesmas as condições de trabalho em Washington. Independente disso, havia da minha parte, depois de oito anos, cansaço com a dificuldade de avançar no FMI. O imobilismo da instituição provocava certo tédio. Uma mudança de rumos seria provavelmente oportuna. Quanto ao banco dos BRICS, havia inevitavelmente algumas dúvidas. Os BRICS teriam condições de criar uma instituição sólida, competitiva e realmente inovadora? Uma mudança para o outro lado do planeta, àquela altura da minha vida, não seria exigência excessiva, que sacrificaria demais a vida pessoal e familiar? Mas os fatores de atração acabaram sendo maiores. Como indiquei, os antecedentes me qualificavam quase que naturalmente para o cargo. Eu era, naquela altura, o único brasileiro, ainda em posição oficial, que participara do processo BRICS ab initio, em 2008. Outro fator de atração eram as condições financeiras oferecidas aos integrantes da Administração do novo banco, alinhadas à remuneração dos cargos correspondentes em organismos internacionais e superiores à dos diretores executivos. Consegui, até mesmo, incluir no meu contrato alguma proteção contra demissão arbitrária, especificando que uma destituição só seria possível em caso de quebra de contrato da minha parte. Ainda que bem pensada, essa cláusula não me protegeria quando integrantes do governo Temer resolveram, a qualquer custo, me tirar do cargo em 2017, como relato no capítulo seguinte deste livro. ***
Mais de oito anos haviam passado desde a minha chegada a Washington. No início, eu recorria demais a citações literárias ou filosóficas, que destoavam do ambiente. Ainda estava me situando e fui compreendendo aos poucos que era meio inútil, até um pouco ridículo, apelar para sentimentos elevados e objetivos grandiosos em ambientes como o do FMI ou do G20, dominados em grande parte por tendências burocráticas e rotineiras. Era mais eficaz lançar mão do humor, da ironia e até do sarcasmo, sem exagerar, obviamente. Com o passar do tempo, fui pendendo mais para esse lado. E dava vazão à minha impaciência com a demora em alcançar mudanças, repetindo uma frase niilista de Trotsky, que ouvira do diretor alterno russo, Andrei Lushin: “O processo é tudo; resultados, nada.” Seja como for, não abandonei inteiramente o recurso a citações, mesmo grandiloquentes, e nunca me entreguei de corpo e alma ao ceticismo niilista. Gostava muito de citar uma passagem do célebre discurso de Robert Kennedy, conhecido como o discurso da “tiny ripple of hope”, que eu sabia praticamente de cor e usava para chamar meus colegas aos brios. Em 1966, na África do Sul, poucos anos antes de ser assassinado, Bob Kennedy dissera as seguintes palavras memoráveis sobre o papel que cabe a cada um de nós no campo da ação política e social. Ele reconheceu que, sim, a desesperança nos domina com frequência e pensamos, então, que está fora do nosso alcance fazer uma diferença e mudar as coisas. E, no entanto, disse ele: Each time a man stands up for an ideal, or acts to improve the lot of others, or strikes out against injustice, he sends forth a tiny ripple of hope and crossing each other from a million different centers of energy and daring, those ripples build a current which can sweep down the mightiest walls of oppression and resistance.14
Numa das vezes em que citei essa passagem, a reunião da Diretoria estava sendo presidida por DSK, que disse quando concluí minha intervenção: “Obrigado, sr. Kennedy”, arrancando gargalhadas gerais. Aí passou a palavra ao próximo inscrito que, ironicamente, era o diretor da Alemanha, Klaus Stein, aquele que tanto me importunara como presidente do comitê de ética. Ignorando minha peroração grandiloquente, o alemão lançou-se prontamente em mais uma de suas intervenções cinzentas, pró-status quo. Sentado a meu lado, o diretor holandês, Age Bakker, sussurrou: “There goes your tiny ripple of hope…”15 1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Felipe Santarosa sem responsabilizá-lo pelas opiniões expressas ou pelos erros e omissões remanescentes. 2 Infelizmente, esse substituto, Juan Carlos Jaramillo, que tinha sido integrante do staff do FMI e conhecia
bem a instituição, ficaria poucos meses no cargo. Houve uma reviravolta em Bogotá e o governo resolveu enviar nova alterna, María Angélica Arbeláez, menos preparada e que pouco contribuiria para o trabalho da cadeira no período em que a Colômbia ainda permaneceu conosco. 3 A África do Sul foi convidada para entrar nos BRICS em dezembro de 2010, o que resultou na substituição do acrônimo BRICs por BRICS, incluindo-se a letra S de South Africa. Moeketsi, como diretor pela África do Sul, passou a participar regularmente das nossas reuniões de coordenação no FMI desde o início de 2011. Ao longo deste livro, como já indiquei, uso a sigla BRICs para o período 2008-2010 e a sigla BRICS a partir de 2011, refletindo a entrada da África do Sul. 4 Um oficial de origem judaica, Alfred Dreyfus, foi condenado por espionagem de forma escandalosamente injusta, levando o escritor Émile Zola a se insurgir em sua defesa com o famoso panfleto “J’accuse!”, publicado em 1898 sob a forma de carta aberta ao presidente da República. O caso Dreyfus produziu uma crise política que se estenderia por vários anos. 5 Isso tinha ficado claro para mim pela forma como a firma de advocacia apresentara a questão aos diretores na época. DSK acabaria inocentado pela Diretoria da acusação principal de abuso de poder – acusação que me parecia realmente descabida –, o que permitiu a sua continuação no cargo. Mas o prejuízo foi enorme, pois o caso chegou rapidamente à imprensa, com grande repercussão na época. 6 Ver neste livro p. 425-6. 7 Para um relato minucioso do papel do FMI no caso da Grécia, que cobre inclusive a atuação da cadeira brasileira, ver Paul Blustein. Laid low: Inside the Crisis that Overwhelmed Europe and the IMF. Waterloo, Canada: Center for International Governance Innovation, 2016. Ver, também, do mesmo autor, Laid low: The IMF, the Euro Zone and the First Rescue of Greece, Center for International Governance Innovation, CIGI Papers, n. 61, abril de 2015. 8 Estava nessa ocasião fora de Washington, em viagem de trabalho, e o que resolvi fazer foi um walk out, algo um pouco mais forte do que deixar a cadeira vazia. Preparei um texto de crítica à condução do programa grego, apontando inclusive irregularidades nos procedimentos adotados pela Administração. Esse texto foi lido por um dos meus assessores diplomáticos, Felipe Santarosa, no início da reunião da Diretoria, que era presidida naquele dia pela diretora-gerente Christine Lagarde. Em seguida à leitura, seguindo instruções minhas, Santarosa e dois outros assessores da cadeira brasileira retiraram-se da sala, ficando a nossa cadeira vazia. 9 “Mantega apoia Nogueira Batista após episódio da Grécia: Ministério da Fazenda divulga uma nota dando apoio ao diretor brasileiro no FMI”, Exame, 7 de agosto de 2013. 10 Independent Evaluation Office (IEO), The IMF and the Crises in Greece, Ireland, and Portugal, Evaluation Report, julho de 2016. 11 John B. Taylor. “Obama and the IMF are unhappy with Congress? Good. The IMF needs to get its house in order before Washington green-lights more money”. Wall Street Journal, 13 de fevereiro de 2014. 12 Paulo Nogueira Batista Jr. & Hector R. Torres. “How to reform the IMF now”. Project Syndicate, 15 de abril de 2015. 13 Ver neste livro p. 318-20. 14 “Cada vez que um homem se levanta por um ideal, ou age para melhorar a sorte de outros, ou se insurge contra uma injustiça, ele provoca uma pequena onda de esperança e essas ondas, cruzando-se umas às outras de um milhão de diferentes centros de energia e audácia, formam uma corrente capaz de derrubar as mais poderosas muralhas de opressão e resistência.” 15 “Lá se vai a sua pequena onda de esperança…”
SOBREVIVI1
Quando o governo brasileiro, em nota oficial, divulgou minha designação para vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS, a informação já havia vazado para tudo quanto é lado. A repercussão da nota foi bem modesta. É sempre assim, leitor. O jornalista sempre quer publicar, de preferência, o que o governo não quer divulgar. O que é off the record ganha manchetes. O que é oficialmente divulgado permanece rigorosamente inédito. Mas, enfim, estou de mudança para Xangai no início de julho, em menos de um mês, portanto. Nelson Rodrigues dizia que brasileiro não pode viajar. O brasileiro, a caminho do Galeão, já na avenida Brasil, adquire automaticamente um descarado sotaque espiritual. Se o grande cronista tinha razão, a minha nacionalidade deveria estar em avançado estado de decomposição. Em março de 2007, quando estava preparando as malas para Washington, publiquei um artigo em que antecipava as dificuldades que teria no FMI e discorria sobre o adestramento das elites dos países em desenvolvimento na capital do Império – esta cidade de onde ora vos escrevo outra vez, mais de oito anos depois. Sobrevivi. Não diria intacto, claro. Tive que enfrentar umas barras e tenho as minhas cicatrizes. Mas lutei. Lutei para que o Brasil, aquele Brasil idealizado, que só existe no coração de alguns brasileiros, pudesse se orgulhar um pouco de mim. Exagero? Só quem passou alguns anos em Washington ou qualquer outra cidade importante no mundo desenvolvido pode ter noção completa das dificuldades com que se defronta um subdesenvolvido quando transplantado para o centro do sistema internacional de poder. A verdade, leitor, é a seguinte: americanos e europeus ainda estão acostumados a mandar, acreditam que têm o direito de mandar, que não há outra solução. E ponto final. O subdesenvolvido quando chega por aqui se defronta, portanto, com a
seguinte disjuntiva: ou adere, sem qualquer restrição e objeção, acompanhando mansamente as diretrizes do Ocidente, ou será considerado um elemento hostil, um estranho no ninho. E acaba, se bobear, internado no hospício mais próximo. Alguém perguntará: Mas não há meio-termo? Não, infelizmente não. Conformismo total é o que se espera de um periférico que aporta por aqui. E subdesenvolvido que não conhece o seu lugar é caçado a pauladas, feito ratazana prenhe, diria Nelson Rodrigues (outra vez esse homem fatal!). Ah, mas o subdesenvolvido que se acomoda, este pode ter uma boa vida por aqui. Depois de um período de experiência, é acolhido como membro leal de um clube confortável, com saunas, piscinas e toalhas felpudas – membro de segunda classe, é verdade, sem direito a decidir, mas membro mesmo assim. Quero acrescentar um elemento importante a essa pequena fábula. O brasileiro não é dos piores. A subserviência internacional encontra muitos representantes mais entusiasmados e mais convictos. O brasileiro tem seus escrúpulos, seus arroubos, seus surtos de independência. O Brasil, afinal, é um grande país – ainda que nós, brasileiros, não estejamos sempre à sua altura. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 12 de junho de 2015.
CAPÍTULO 2 BRICS e banco dos BRICS
BRICS NO FMI E NO G201
Há controvérsias sobre o real significado e a importância prática dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Os críticos e céticos sustentam que o agrupamento é artificial, mais emblema ou marca do que realidade política. Apontam para as enormes diferenças – históricas, culturais, políticas e econômicas – entre os integrantes. Duvidam de que os cinco países possam, de fato, atuar de forma coordenada. É inegável que as dificuldades de coordenação dos BRICS são consideráveis. Mas também é inegável que os BRICS vêm marcando presença no campo internacional. Vivenciei esse processo de coordenação com seus avanços e suas dificuldades, desde 2008, no âmbito da diretoria do FMI e das reuniões do G20 e dos BRICS. Quando cheguei a Washington em 2007 para assumir o cargo de diretor executivo no FMI, os BRICS não existiam como aliança e realidade política. Na época, tratava-se realmente de uma mera sigla – inventada, como se sabe, por um economista do banco de investimentos Goldman Sachs, Jim O’Neill. Na Diretoria do FMI e no G20, a atuação conjunta dos quatro países (a África do Sul só se juntou ao grupo em 2011) começou em 2008, por iniciativa da Rússia. A primeira cúpula dos líderes do grupo realizou-se em Ecaterimburgo, na Rússia, em 2009. Os BRICS têm altos e baixos, momentos de maior proximidade e de maior distância, mas uma coisa é certa: essa foi para o Brasil a principal aliança desde 2008, pelo menos no que se refere a G20 e FMI. Ressalto: os BRICS muito mais do que outros países latino-americanos, mesmo os de maior porte. Por motivos que variam de país para país, os latino-americanos não têm tido papel tão relevante como aliados do Brasil no terreno financeiro internacional.
A articulação entre os BRICS
O diretor executivo da Rússia no FMI, Aleksei Mozhin, que está na instituição desde o início da década de 1990, disse em seminário na Brookings Institution, em Washington, que o surgimento dos BRICS foi a maior mudança na governança do Fundo desde sua chegada à Diretoria. Posso confirmar que, de 2008 em diante, nossa atuação conjunta tem sido uma alavanca importante em vários temas estratégicos. A afinidade de pontos de vista é particularmente nítida entre as cadeiras brasileira, russa e indiana. Os cinco diretores executivos dos BRICS no FMI passaram a se reunir com muita frequência para coordenar posições sobre temas na pauta da Diretoria ou iniciativas nossas. Cada passo do grupo demanda muita preparação e articulação. No caso de alguns países, notadamente a China, o processo de tomada de decisão é lento e complexo e inclui consultas a várias instâncias em Beijing. O esforço de articulação é trabalhoso, às vezes penoso, mas produz frutos. No que diz respeito a reformas de quotas e da governança do FMI, por exemplo, os BRICS atuam frequentemente de forma coordenada, inclusive preparando documentos conjuntos para reuniões da Diretoria. A principal dificuldade interna de coordenação dos BRICS é o peso desproporcional da China quando comparado ao dos demais países. Os chineses têm porte e recursos para, em alguns casos, enxergarem vantagens em negociar separadamente com os americanos e os europeus. Entendimentos entre Brasil, Rússia e Índia funcionam às vezes como contrapeso à inclinação da China de atuar em faixa própria. As dificuldades de coordenação entre os BRICS são naturais e inevitáveis. Refletem as diferenças de interesses, de dimensão econômica e de caráter político ou cultural. Apesar dessa diversidade, permanece o fato de que os cinco países têm demonstrado disposição consistente de atuar de maneira coordenada em muitos temas da agenda internacional. Não se deve tampouco exagerar o significado das dificuldades de coordenação. Afinal, mesmo agrupamentos mais homogêneos e mais antigos, como o bloco europeu, se debatem com agudas divergências. No FMI, a aliança entre os BRICS logo foi reconhecida como parte da paisagem. Como mecanismo de articulação, os BRICS se tornaram muito mais relevantes do que o G11, o tradicional agrupamento das 11 cadeiras da Diretoria Executiva comandadas por países em desenvolvimento.2 Apenas as cadeiras europeias têm coordenação mais estreita. A Administração do FMI e os diretores executivos dos países avançados fazem o que podem para detectar e explorar diferenças de posições entre os BRICS.
A coordenação entre as capitais é dificultada pela distância geográfica. Mesmo assim, os ministros de Finanças e presidentes de Banco Central dos BRICS passaram a se reunir com frequência – duas ou três vezes por ano, em média. Os chefes de Estado e governo se encontram nas cúpulas anuais dos BRICS. Também se reúnem à margem das cúpulas do G20, prática que começou, na cúpula do G20, em Cannes, em novembro de 2011, por iniciativa do Brasil. Desde então, os líderes dos cinco países passaram a se encontrar regularmente duas vezes por ano.
Traços comuns O que os BRICS têm em comum? Para além de todas as diferenças, fundamentalmente o seguinte: são países de grande dimensão econômica, geográfica e populacional. Brasil, Rússia, Índia e China fazem parte dos dez maiores países do mundo em termos de PIB, área e população. Por isso mesmo, todos eles têm capacidade de atuar com autonomia em relação às potências ocidentais – os Estados Unidos e a Europa. Isso vale, sobretudo, para os quatro integrantes originais do grupo, mas, creio, que crescentemente também para a África do Sul. Este é o aspecto crucial: a capacidade de decidir de forma independente. A grande maioria dos demais países emergentes e em desenvolvimento – mesmo os que têm certo porte – não possui essa capacidade, pelo menos não na mesma medida. Em muitos casos, o que ainda se vê é uma relação de estreita dependência e alinhamento mais ou menos automático aos Estados Unidos ou aos principais países da Europa. Essa atuação independente também reflete, evidentemente, a posição econômico-financeira dos BRICS. Nenhum deles depende de capitais externos europeus ou americanos ou da assistência financeira do FMI e de outros organismos ainda controlados pelas potências tradicionais. Isso reflete inter alia a sua solidez de balanço de pagamentos e de reservas internacionais. Nos anos recentes, os BRICS tornaram-se inclusive credores do FMI, participando com grandes somas dos empréstimos levantados pela instituição para fazer face à crise iniciada nos países avançados em 2008.
Reforma do FMI e Fundo de Reservas dos BRICS
Um dos acontecimentos mais significativos da cúpula do G20 em Los Cabos, no México, em junho de 2012, foi a reunião prévia dos líderes dos BRICS. Antecedida de muita discussão entre os cinco países, a reunião tratou principalmente de dois temas – um deles totalmente novo. O primeiro tema foi a decisão de confirmar o anúncio de novas contribuições ao financiamento do FMI. A China anunciou US$ 43 bilhões adicionais; o Brasil, a Rússia e a Índia, US$ 10 bilhões cada; África do Sul, US$ 2 bilhões. Na rodada anterior de levantamento de empréstimos para o FMI em 2009, os BRICs entraram com o equivalente a US$ 92 bilhões – a China, com US$ 50 bilhões; Brasil, Rússia e Índia, com US$ 14 bilhões cada. O total de US$ 75 bilhões anunciado em Los Cabos ficou condicionado ao entendimento de que o FMI só lançará mão desses novos recursos depois que os fundos existentes na instituição tenham sido substancialmente utilizados. Esse ponto é importante para promover uma adequada distribuição do ônus entre os diferentes credores do FMI, como mencionou o comunicado emitido pelos BRICS após a reunião. O comunicado registrava, também, que as contribuições foram anunciadas com base no entendimento de que as reformas do FMI serão plenamente implementadas, conforme acordo a que se chegou no G20, em 2010. Isso inclui, como se sabe, uma revisão abrangente do poder de voto e das quotas. Essa observação reflete a insatisfação dos BRICS com o ritmo de implementação das reformas do FMI, que expressaram em mais de uma ocasião. Há muita inércia institucional e apego ao status quo no Fundo. Em razão disso, aumentou a disposição dos BRICS de considerar iniciativas na área monetária internacional fora do âmbito do FMI. A novidade em Los Cabos foi exatamente o lançamento de um fundo ou pool de reservas dos BRICS. A iniciativa foi pacientemente costurada em entendimentos prévios entre os países. Na reunião dos líderes dos BRICS tomouse a decisão de iniciar a discussão de um fundo de reservas comum. Os líderes pediram a seus ministros de Finanças e presidentes de banco central que trabalhassem conjuntamente nesse tema e trouxessem os resultados para a próxima Cúpula dos Líderes dos BRICS, na África do Sul, em março de 2013. Posteriormente, foi criado um grupo de trabalho com representantes dos cinco países, sob coordenação brasileira. Essa decisão deu sequência a uma iniciativa que havia sido aprovada pelos líderes dos BRICS em sua cúpula anual, em Nova Délhi em março de 2012, quando pediram a seus ministros de Finanças que examinassem a viabilidade de criar um banco multilateral de desenvolvimento.
Um fundo de reservas dos BRICS tem natureza preventiva e representa a criação de um mecanismo de solidariedade financeira entre os cinco países, a ser acionado em momentos de dificuldade. As reservas somadas dos cinco países alcançam mais de US$ 4 trilhões – base mais do que suficiente para respaldar a iniciativa. Um fundo comum de reservas pode ser acionado por qualquer país-membro que eventualmente precise de apoio, de acordo com as regras e os procedimentos estabelecidos. Desde o início, se imaginou que o fundo poderia ser “virtual”, isto é, as reservas continuariam nos bancos centrais de cada um dos BRICS, sendo desembolsadas apenas se algum dos cinco países necessitasse de acesso aos recursos. Ainda que não venha a ser utilizado com frequência, dado que a posição dos países dos BRICS é sólida, a existência do fundo proporciona reforço adicional de confiança. A disposição de criar um fundo de reservas comum revelou o estreitamento dos laços entre os BRICS e sua disposição de enfrentar em conjunto os desafios do quadro internacional. *** O ministro Antonio Patriota3 acertou, no meu entender, quando comparou a coordenação entre os BRICS à nossa aproximação com os EUA no início do século XX, época do Barão de Rio Branco.4 Um grande legado do Barão, disse Patriota, é a capacidade de apreensão das mudanças. Na época em que o dinamismo econômico e o eixo de poder mudavam da Europa para os Estados Unidos, ele teve a capacidade de estabelecer uma boa relação com os EUA. Transferindo para hoje, o movimento equivalente é a coordenação com os BRICS. 1 Versão ampliada e revista de texto que serviu de base a apresentação em mesa-redonda organizada pela Fundação Alexandre Gusmão e pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, em 31 de julho de 2012. Publicado originalmente em José Vicente de Sá Pimentel (org.). O Brasil, os BRICS e a agenda internacional. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013. 2 O G11 inclui as cadeiras comandadas por China, Índia, Arábia Saudita, Egito, Irã, Brasil, as duas outras cadeiras latino-americanas, as duas da África Subsaariana e a do Sudeste Asiático. 3 Diplomata brasileiro que foi ministro das Relações Exteriores entre 2011 e 2013. 4 Em entrevista à Folha de S.Paulo, publicada em 10 de fevereiro de 2012.
NOVO BANCO E NOVO FUNDO MONETÁRIO1
A escassez de recursos para financiar o desenvolvimento e os surtos recorrentes de instabilidade nos mercados internacionais, com efeitos mais intensos nas economias emergentes, conferem importância crucial à criação de mecanismos de autodefesa e financiamento. As instituições multilaterais sediadas em Washington – o FMI e o Banco Mundial – mostram grande dificuldade de evoluir e se adaptar à nova realidade internacional, marcada pelo peso crescente das economias emergentes. O G20 está semiparalisado desde 2011. Diante disso, os emergentes vêm tomando, há algum tempo, suas próprias providências em âmbito nacional e reforçando alianças entre si. Os BRICS – Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul – têm se destacado nesse campo. Desde 2012, esses países vêm negociando cuidadosamente, passo a passo, o estabelecimento de mecanismos independentes de estabilização e financiamento de longo prazo. Refiro-me ao Arranjo Contingente de Reservas (ACR) e ao Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). O primeiro será um fundo de estabilização entre os cinco países; o segundo, um banco para financiamento de projetos de investimento nos BRICS e outros países em desenvolvimento. O Brasil atribuiu, desde o governo Lula, grande importância à atuação no âmbito dos BRICS. No governo Dilma, a atuação conjunta com os demais BRICS tornou-se uma das principais vertentes da política externa brasileira. Isso culminou na cúpula dos BRICS em Fortaleza, em julho de 2014, quando foram assinados os acordos que estabeleceram o ACR e o NBD. Esses dois mecanismos são complementares às instituições multilaterais de Washington e podem inclusive cooperar com elas. Mas foram concebidos para serem autoadministrados e atuar de forma independente. Enquanto diretor executivo do Brasil no FMI, participei dessas negociações desde o início, em 2012. Este texto é um breve depoimento sobre o que foi alcançado e alguns dos desafios a serem enfrentados na implementação do fundo
e do banco dos BRICS.
Alternativa potencial às instituições de Bretton Woods As instituições de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial existem há 70 anos. Em todo esse período, nada surgiu no campo multilateral ou plurilateral que possa ser caracterizado como alternativa a essas instituições, dominadas pelas potências tradicionais – os EUA e a União Europeia. O ACR e o NBD, ainda embrionários, constituem a primeira alternativa potencial. A Iniciativa de Chiang Mai – na qual o ACR se inspira, em parte – não desempenha esse papel, uma vez que a presença do Japão e da Coreia do Sul – aliados próximos dos EUA – funciona na prática como uma trava para seu desenvolvimento independente. O Mecanismo de Estabilidade Europeu (European Stability Mechanism – ESM) tampouco representa uma alternativa ao FMI, uma vez que coopera estreitamente com o Fundo e chega a dominá-lo, no âmbito da chamada Troika,2 na formulação, financiamento e acompanhamento dos programas de ajuste e reforma para países da área do euro. A superrepresentação da Europa no FMI facilita a adaptação da instituição à estratégia traçada em Berlim, Bruxelas e Frankfurt.
Arranjo Contingente de Reservas O valor inicial do ACR é US$ 100 bilhões. A China entra com US$ 41 bilhões; Brasil, Rússia e Índia, com US$ 18 bilhões cada; e a África do Sul, com US$ 5 bilhões. Trata-se de um pool virtual de reservas, em que os cinco participantes se comprometem a proporcionar apoio mútuo em caso de pressões de balanço de pagamentos. O termo “contingente” reflete o fato de que, no modelo adotado, os recursos comprometidos pelos cinco países continuarão nas suas reservas internacionais, só sendo acionados se algum deles precisar de apoio de balanço de pagamentos. Os limites de acesso de cada país aos recursos do ACR são determinados por suas contribuições individuais vezes um multiplicador. A China tem um multiplicador de 0,5; o Brasil, a Índia e a Rússia, de 1; e a África do Sul, de 2. O apoio aos países pode ser concedido por meio de um instrumento de liquidez imediata ou de um instrumento precaucionário, este último para o caso de pressões potenciais de balanço de pagamentos.
O ACR tem um sistema de governança em dois níveis. As decisões mais importantes serão tomadas pelo Conselho de Governadores (Governing Council), com os assuntos de nível executivo e operacional ficando a cargo de um Comitê Permanente (Standing Committee). O consenso é a regra para quase todas as decisões. Somente as decisões do Comitê Permanente relacionadas a pedidos de apoio e de renovação de apoio serão tomadas por maioria simples de votos ponderados pelo tamanho relativo das contribuições individuais. Cada país pode obter a qualquer tempo até 30% do seu limite de acesso, desde que observe os procedimentos e salvaguardas do Tratado. Um acesso acima desse percentual está condicionado à existência de um acordo com o FMI. As condições para aprovação de um pedido de apoio incluem: a) não ter dívidas em atraso com os outros BRICS ou suas instituições financeiras públicas nem com as instituições financeiras multilaterais; b) cumprir as obrigações com o FMI referentes ao Artigo IV (supervisão) e ao Artigo VIII (provisão de informações) do Convênio Constitutivo do Fundo; e c) assegurar que as obrigações assumidas pelo país que requisita apoio sejam não subordinadas, sendo classificadas, quanto ao direito de pagamento, ao menos pari passu com todas as outras obrigações externas.
Novo Banco de Desenvolvimento O NBD tem como mandato financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável não só nos BRICS como também em outros países em desenvolvimento. Há uma grande carência de recursos para financiar o desenvolvimento da infraestrutura no mundo. O Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento não têm capital suficiente e continuam dominados pelas potências tradicionais. Os EUA e outros países desenvolvidos relutam em aumentar o capital e a capacidade de emprestar do Banco Mundial, tendo como prioridade preservar o controle da instituição. É para ajudar a cobrir essa lacuna que os BRICS resolveram criar o seu próprio banco de desenvolvimento. O banco tem capital integralizado de US$ 10 bilhões, subscrito de US$ 50 bilhões e autorizado de US$ 100 bilhões. O capital é distribuído em parcelas iguais entre os cinco membros fundadores, que têm assim o mesmo poder de voto. O acordo assinado em Fortaleza estabeleceu Xangai como sede do banco. Estabeleceu também Johanesburgo como sede do primeiro escritório regional. O segundo escritório regional será no Brasil.3 O banco está aberto à participação de outros países-membros da ONU. Os
países desenvolvidos podem ser sócios, porém não tomadores de empréstimos (non borrowing members). Já os países em desenvolvimento podem ser sócios tomadores (borrowing members). Os BRICS preservarão sempre pelo menos 55% do poder de voto total. Os países desenvolvidos terão no máximo 20% do poder de voto. Fora os BRICS, nenhum país deterá mais do que 7% dos votos. Mesmo que não se tornem sócios do banco, países em desenvolvimento poderão excepcionalmente tomar empréstimos ou realizar outras operações em condições que serão especificadas pelo Conselho de Governadores.
Percalços do processo de negociação em 2012-2014 O processo de negociação do ACR e do NBD entre 2012 e 2014 enfrentou alguns percalços do lado brasileiro. Vale a pena recapitulá-los brevemente, uma vez que podem reaparecer na fase de implementação das duas iniciativas. No caso da negociação do ACR, cuja coordenação esteve desde o início sob responsabilidade brasileira, o principal problema foi a relutância do Banco Central do Brasil, que temia comprometer reservas brasileiras em operações potencialmente arriscadas e atuou para retardar e esvaziar a iniciativa. Contudo, a relutância refluiu um pouco ao longo do tempo, em face da determinação da presidente Dilma Rousseff de levá-la adiante e também da consolidação do ACR como arranjo acompanhado de uma série de salvaguardas, inclusive vinculação com o FMI, como mencionado anteriormente. Apesar dos percalços, o tratado que constituiu o ACR é abrangente e detalhado, incluindo detalhes de natureza operacional. A Diretoria Executiva do Brasil no FMI, com apoio do Ministério da Fazenda, assumiu a tarefa de preparar as diferentes minutas do tratado, ajudar na defesa das posições brasileiras, orientar e secretariar a negociação e fazer as simulações para definir os parâmetros do arranjo. Para esse trabalho, nos valemos da nossa experiência no próprio FMI, dos acordos bilaterais de swap existentes e da experiência da Iniciativa de Chiang Mai. No caso do NBD, o problema foi de outra natureza: a insuficiência da equipe negociadora brasileira que se resumiu essencialmente a alguns poucos integrantes da assessoria internacional da Fazenda, com pouca experiência na área. O Brasil acabou não sendo adequadamente contemplado em definições básicas e na distribuição de cargos-chave do NBD. A China ficou com a sede; a Índia, com a primeira presidência do banco; a Rússia, com a primeira presidência do Conselho de Governadores e o Brasil, com a primeira presidência
da Diretoria ou Conselho de Administração. Corre-se o risco de que o NBD venha a ser um banco essencialmente asiático, dominado pela China e pela Índia, com os demais BRICS desempenhando papel caudatário. O Brasil não chegou sequer a pleitear a sede do NBD, ficando sem fichas na negociação de alguns temas básicos. A Índia insistiu até o fim em sediar o banco e acabou levando a primeira presidência. Não devemos cometer o mesmo erro na definição da sede do ACR. Cabe entrar na disputa com cidade competitiva e atraente – quem sabe o Rio de Janeiro? – e travar essa disputa desde o início da discussão. A China deseja sediar o ACR também em Xangai. Se prevalecer essa proposta, Xangai se transformaria na nova Washington – sede do banco e do fundo monetário dos BRICS. O Brasil e os outros BRICS apareceriam como mera linha auxiliar em duas iniciativas comandadas pela China.4
Significado dessas iniciativas A assinatura em Fortaleza dos acordos que criaram um banco e um fundo monetário dos BRICS alçou a cooperação entre os cinco países a um novo patamar. O grande desafio agora é a implementação das duas instituições. Essa fase de implementação vai definir o sucesso ou insucesso do ACR e do NBD, sua maior ou menor importância prática e, em última análise, o êxito do próprio processo BRICS. Há que cuidar para que as duas instituições se estabeleçam de maneira sólida e não venham a ser deformadas ou enfraquecidas ao longo do processo de sua concretização. Qual o significado dessas iniciativas? Se tivesse que resumir em uma frase, diria que demos passo significativo na direção de um mundo mais multipolar. Há traços comuns entre os cinco BRICS, para além de todas as diferenças econômicas, políticas e históricas: são países de economia emergente, de grande porte econômico, territorial e populacional, que têm condições de atuar com autonomia. Esse não é caso da grande maioria dos demais países de economia emergente ou em desenvolvimento. Os BRICS não estão conformados com a atual governança internacional, que tem origem na estrutura de poder que emergiu depois da Segunda Guerra Mundial e consagra representação e papel exagerados para as potências tradicionais. O mundo está mudando rapidamente. É crescente o peso dos países de economia emergente e em desenvolvimento. Mas as organizações internacionais continuam a refletir uma realidade política e econômica do século
XX. Cabe aos BRICS, entretanto, na prática do dia a dia do seu trabalho no FMI, no Banco Mundial, no G20 e nas novas instituições que criaram, mostrar aos demais países, particularmente aos outros países em desenvolvimento, por que e para que querem mais influência e poder decisório. Que diferença faz para os países menores, mais frágeis ou de menor renda, que o poder decisório seja transferido das potências tradicionais para os BRICS? Se a diferença não ficar clara, nossa atuação conjunta será vista pelos demais como mera disputa de poder. 1 Publicado originalmente em Pedro de Souza (org.). Brasil, sociedade em movimento. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz & Terra/Centro Internacional Celso Furtado, 2015. 2 A Troika inclui o ESM, o FMI e o Banco Central Europeu. 3 Ficou definido que esse segundo escritório regional terá sede em São Paulo. No momento da finalização deste livro, a sua criação estava prevista para o fim de 2019. 4 Acatando sugestão minha, o Brasil apresentou posteriormente a candidatura do Rio de Janeiro. No momento da publicação deste livro, a questão continuava em aberto.
COMEÇO AUSPICIOSO DO NOVO BANCO1
A criação de um banco de desenvolvimento pelos BRICS despertou grande interesse no Brasil, inclusive nos meios acadêmicos. Foi vista, com razão, como passo inédito na atuação do país no campo das organizações financeiras multilaterais. Até então apenas caudatário das iniciativas de outros países, o Brasil se associava a outros quatro grandes países emergentes para conceber, de forma independente, um banco de desenvolvimento com a pretensão de ter alcance global e lançar práticas inovadoras no campo do financiamento do desenvolvimento. O banco ficaria conhecido como “Banco dos BRICS”, mas o nome oficial – Novo Banco de Desenvolvimento – já refletia o objetivo de criar um banco inovador, planejado para ir além dos BRICS. Foi deliberada a não inclusão da sigla BRICS no nome do banco, assim como a designação “novo”. O Convênio Constitutivo estabeleceu que cada um dos cinco países fundadores indicaria um vice-presidente, exceto aquele representado pelo presidente. Por acordo alcançado durante a cúpula dos BRICS, em Fortaleza, em julho de 2014, ficou decidido que a Índia indicaria o primeiro presidente do NBD. No início de 2015, fui convidado pela presidente Dilma Rousseff para ser o primeiro vice-presidente brasileiro do NBD. O banco começou a operar em julho de 2015, quando o presidente e os vice-presidentes da instituição se mudaram para Xangai. Um ano depois, a revista Estudos Avançados do Instituto de Estudos Avançados da USP entrou em contato comigo pedindo que respondesse, por escrito, algumas perguntas sobre o novo banco. As perguntas foram formuladas pelo professor Rubens Rogério Sawaya, da PUC-SP, e respondidas em agosto de 2016. Estudos Avançados – Como surgiu a ideia da constituição do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e qual foi o país que comandou o processo de criação? A ideia partiu da Índia. Foi lançada na cúpula dos BRICS no início de 2012, em Nova Délhi. Naquela ocasião, os líderes dos cinco países pediram a seus
ministros de Finanças que examinassem a viabilidade de criar um banco de desenvolvimento para financiar infraestrutura e desenvolvimento sustentável. As negociações transcorreram por pouco mais de dois anos até a assinatura do Convênio Constitutivo na cúpula dos BRICS em Fortaleza, em julho de 2014. Não se pode dizer que um país tenha comandado o processo de negociação. Os cinco participaram com igual presença e dedicação. Até o início de 2013, a Rússia ainda era mais relutante do que os outros, mas depois se engajou plenamente. Estudos Avançados – Qual é o papel geopolítico do NBD ao ser constituído apenas por países emergentes? É um banco político? Como se insere na lógica geopolítica e de relação hegemônica global atual? É a primeira vez que um banco de desenvolvimento que pretende ter alcance global é estabelecido apenas por países de economia emergente, sem a participação de países desenvolvidos na fase inicial. Trata-se, portanto, de um grande desafio para nós. A iniciativa de criar o NBD tem um aspecto geopolítico, sem dúvida. Reflete a insatisfação dos BRICS com as instituições multilaterais existentes, que demoram a se adaptar ao século XXI e a dar suficiente poder decisório aos países em desenvolvimento. Mas o NBD não é um banco político. O banco se pautará por critérios técnicos para aprovar projetos. O nosso Convênio Constitutivo deixa esse ponto claro. Queremos evitar a excessiva politização das decisões que se observa nas instituições multilaterais existentes. Estudos Avançados – O NBD pretende se tornar um banco global? Sim, o NBD está aberto a todos os países-membros da ONU. Começamos a fazer contatos com outros países. A ideia é ter membros de todas as regiões do mundo – África, América Latina e Caribe, Ásia, Europa etc. Buscaremos trazer países desenvolvidos, de renda média e de menor nível de desenvolvimento. Mas só os países emergentes e em desenvolvimento poderão ser membros tomadores de empréstimos. Não faremos empréstimos a países desenvolvidos. Estudos Avançados – Em que medida o NBD substitui ou complementa o Banco Mundial e outras instituições multilaterais da mesma espécie? O NBD não substitui o Banco Mundial e outras instituições já estabelecidas. O nosso banco está apenas começando e só no médio e no longo
prazos alcançará um volume expressivo de operações. O papel do NBD é complementar os esforços das instituições existentes no financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. Estamos, inclusive, concluindo acordos de cooperação com outros bancos de desenvolvimento; alguns acordos já foram assinados. Mas, como diz o nome do nosso banco, a ideia é estabelecer uma entidade nova, levando em conta os erros e acertos das instituições existentes. É fundamental para nós aprender com a experiência dos bancos mais antigos. Sempre enfatizamos esse aspecto da cooperação/colaboração com as entidades mais antigas, um objetivo que estamos de fato começando a colocar em prática. Mas também é verdade que se as instituições multilaterais existentes, notadamente as sediadas em Washington, estivessem funcionando a contento, os BRICS jamais teriam se dado ao trabalho de estabelecer o NBD, assim como um fundo monetário próprio, batizado de Arranjo Contingente de Reservas (ACR). O tratado que criou o ACR também foi assinado na cúpula de Fortaleza. Essas iniciativas dos BRICS podem ser descritas como um “projeto antihegemônico”, como observou Luiz Gonzaga Belluzzo. Elas fazem parte de um processo mais amplo: a “multipolarização” da arquitetura econômica e financeira mundial – uma diversificação do quadro institucional e das iniciativas, com perda de peso relativo dos centros tradicionais de poder (FMI, Banco Mundial, OMC etc.). É um processo incipiente, mas já está em curso. Reflete em parte, como mencionei, a frustração dos países emergentes com a incapacidade do FMI e do Banco Mundial de se reformar em ritmo condizente com as transformações da economia mundial. Fui diretor executivo do FMI pelo Brasil e outros países por oito anos em Washington e conheço bem a resistência à mudança, a inércia institucional que caracteriza a governança das entidades de Bretton Woods. Houve algum progresso desde 2008, mas é ainda muito insuficiente. Estudos Avançados – Quais as diferenças do NBD em relação aos bancos multilaterais existentes? Vou comparar o NBD com o outro banco multilateral de desenvolvimento que tem escopo global, o maior e mais importante deles – o Banco Mundial. Por exemplo, o Banco Mundial tem uma gama muito ampla e diversificada de atividades – é um banco de tipo universal. Faz de tudo: financia, presta assistência técnica, estabelece condicionalidades, procura orientar as estratégias e políticas econômicas e setoriais dos países, estuda a economia mundial e as economias nacionais, dá consultoria, pretende ser uma fonte de conhecimento
(um knowledge bank), organiza eventos, publica estudos e documentos, e assim por diante. O NBD pretende atuar de forma focada, não só nos anos iniciais, mas se depender de mim também depois, quando formos maiores. Seremos um banco de projetos na área de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. E pretendemos concentrar esforços na área de infraestrutura sustentável, em setores como energia renovável (solar e eólica, por exemplo), eficiência energética, tratamento de esgotos, gestão sustentável de água, entre outros. Outra diferença: o Banco Mundial tem uma estrutura pesada, procedimentos burocratizados e acaba demorando a aprovar projetos. O NBD pretende atuar com rapidez, sem sacrificar qualidade. O nosso objetivo é levar, em média, menos de seis meses entre a identificação dos projetos e a aprovação na Diretoria. Já conseguimos isso na maioria dos projetos iniciais. No seu primeiro ano, o banco aprovou projetos e emitiu seu primeiro bônus no mercado. Estudos Avançados – Qual a visão de desenvolvimento do NBD e como essa visão se materializa em suas operações? Seria pretensioso dizer que temos uma visão de desenvolvimento já elaborada. Creio que iremos desenvolver essa visão à medida que construirmos o banco, com base na experiência prática. Temos alguns pilares para nossa atuação, estabelecidos no próprio Convênio Constitutivo do NBD. Por exemplo, o NBD é um dos poucos, talvez o único banco multilateral de desenvolvimento que tem a questão ambiental inscrita com destaque no próprio acordo ou Convênio Constitutivo. É um banco verde, desde sua concepção. Para nós, a questão ambiental não é apenas uma restrição ou condicionante a ser observada no planejamento e execução de projetos, mas uma oportunidade e um foco central da instituição. Outro aspecto importante: o NBD é um banco de países em desenvolvimento para países em desenvolvimento. Isso certamente condicionará a nossa visão. Pelo Convênio Constitutivo, a participação dos países de economia emergente e em desenvolvimento será sempre de pelo menos 80% do capital e do poder de voto. Os países avançados ou desenvolvidos poderão ingressar no banco, mas terão sua participação limitada a 20%. Estudos Avançados – Há algum papel especial da China ou preponderante nessa visão de desenvolvimento? Não. A sede do banco é na China, que tem a maior economia do grupo. A
China – tanto o governo central quanto o governo de Xangai – vem dando grande apoio ao NBD. Mas os cinco países fundadores têm o mesmo peso no capital e nas decisões. Cada um dos cinco tem 20% do capital e do poder de voto. Ninguém tem poder de veto sobre decisão alguma. Todas as decisões no NBD são tomadas por maioria simples ou maioria qualificada – não se requer unanimidade para nenhuma decisão, pois isso equivaleria a dar poder de veto a cada um dos membros. A experiência da União Europeia, diga-se de passagem, mostra de forma clara o efeito paralisante da exigência de unanimidade para a tomada de decisões. No FMI e no Banco Mundial, os europeus (atuando em bloco) e os Estados Unidos têm poder de veto sobre decisões cruciais. Estudos Avançados – Em que medida as políticas ou geopolíticas do banco influenciarão as políticas e estratégias nacionais de cada país tomador? Não é esse o propósito. Primeiro, o NBD não tem “geopolíticas”, apenas políticas operacionais e de outros tipos, como qualquer banco de desenvolvimento. É um banco que se limitará a financiar projetos e mobilizar recursos para as áreas de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. Não temos a pretensão de influir sobre as políticas e estratégias nacionais dos países tomadores. Respeitaremos a soberania dos países e analisaremos os projetos dentro do marco das políticas e legislações nacionais. O banco não vai estabelecer condicionalidades nem vincular a aprovação de projetos e desembolsos a mudanças nas políticas e estratégias dos países. Estudos Avançados – Como está estruturada a governança do novo banco e como esse formato impacta ou implica relações de poder e controle sobre sua estratégia entre os cinco membros fundadores? Os países se fazem representar no Conselho de Governadores e na Diretoria. A autoridade política máxima é o Conselho de Governadores, integrado pelos ministros de Finanças dos cinco países. A Diretoria do Banco, que é não residente, é integrada, em geral, por secretários de assuntos internacionais dos ministérios de Finanças ou funcionários de nível equivalente. A Diretoria aprova todas as políticas e os projetos do NBD. A Administração do Banco, residente em Xangai, é composta pelo presidente e por quatro vice-presidentes. Os integrantes da Administração devem lealdade exclusiva ao banco e não representam países. O presidente tem mandato
de cinco anos; os vices, mandatos de seis anos. Em Fortaleza, estabeleceu-se uma rotação, com a Índia designando o primeiro presidente. O Brasil indicará o segundo. Estudos Avançados – Qual a diferença entre o NBD e o banco de fomento asiático sob o comando da China, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Asian Infrastructure Investment Bank – AIIB)? A primeira diferença é justamente esta: o AIIB é controlado pela China, que tem a maior participação no capital e poder de veto sobre decisões importantes. No NBD, há equilíbrio entre os cinco sócios fundadores. Outra diferença é que o AIIB tem foco na Ásia, embora possa atuar também em outras regiões. O NBD foi desenhado para ter escopo global. Além disso, o AIIB escolheu atrair um grande número de membros, inclusive importantes países desenvolvidos como a Alemanha, a França e o Reino Unido, mesmo antes de concluir a negociação do seu Convênio Constitutivo. O NBD decidiu começar só com os cinco sócios fundadores e deixar a ampliação do número de membros para depois que estivessem consolidados o arcabouço de políticas e a estratégia do banco. Só recentemente, um ano depois do início do NBD, é que começamos a contatar potenciais novos membros. Isso nos deu mais liberdade para inovar na definição das políticas e da estratégia geral. A presença de países desenvolvidos na fase inicial é uma faca de dois gumes. Ajuda, por um lado, a dar prestígio à instituição. Por outro, tende a dificultar a definição de políticas e orientações diferentes daquelas seguidas pelos principais bancos multilaterais já existentes, como o Banco Mundial e outros, que são controlados pelos países desenvolvidos. Estudos Avançados – Qual será a moeda central utilizada? Qual será o peso da moeda chinesa na estrutura dos empréstimos e funding do banco? Há uma estratégia de minimizar o papel do dólar como moeda central? A unidade de conta é o dólar dos Estados Unidos. O Convênio Constitutivo define o capital autorizado (US$ 100 bilhões), o capital subscrito (US$ 50 bilhões) e o capital integralizado ou pago (US$ 10 bilhões) em dólares. Não há uma estratégia deliberada de minimizar o dólar, mas o NBD pretende captar e emprestar não só em dólar, mas também nas moedas dos países-membros. Por exemplo, o nosso primeiro bônus foi emitido em yuan, na China. Trata-se, aliás,
de um bônus verde que será destinado exclusivamente a energia renovável e outros projetos de cunho ambiental. Estudos Avançados – Como o NBD pretende trabalhar com os bancos de desenvolvimento locais, como o BNDES? Os bancos nacionais de desenvolvimento dos BRICS são parceiros importantes. O nosso primeiro acordo de cooperação foi assinado com o BNDES, em 2015. A primeira operação do NBD com o Brasil é com o BNDES, uma linha de crédito de US$ 300 milhões vinculada a projetos na área de energia renovável, eólica e solar, notadamente. O NBD pretende aprender com a experiência dos bancos nacionais de desenvolvimento e valer-se do seu conhecimento dos mercados nacionais. Estamos recebendo também funcionários do BNDES e de outros bancos nacionais de desenvolvimento. Estudos Avançados – Quais os tipos de projetos em que o NBD pretende atuar no curto prazo? E no longo prazo, que espaço em termos de projetos pretende ocupar? Os cinco primeiros projetos aprovados, um em cada país-membro, foram todos na área de energia renovável. Eles aumentarão a capacidade de geração de energia renovável em cada um dos países, contribuindo para a redução na emissão de gases de efeito estufa. O total aprovado foi de US$ 911 milhões; a maior operação foi o mencionado empréstimo ao BNDES. Na China, por exemplo, foi aprovado um empréstimo equivalente a US$ 81 milhões, denominado em yuan, que financiará a geração de 100 MW de energia solar, com a implantação de painéis no topo de galpões e edifícios em uma das zonas industriais de Xangai. Embora neste momento as operações tenham se concentrado em empréstimos com garantia soberana ou por meio de bancos nacionais de desenvolvimento e outros intermediários financeiros, à medida que desenvolvermos nossa capacidade institucional e técnica, o NBD deve explorar diversas modalidades de operação. O Convênio Constitutivo do banco prevê a possibilidade de empréstimos para o setor privado, bem como o uso de garantias e o investimento por meio de participação direta. O NBD deverá também conceder financiamento a Estados e municípios que apresentem projetos na área de infraestrutura sustentável.
1 Entrevista publicada originalmente na revista Estudos Avançados, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, v.30, n. 88, setembro/dezembro 2016.
PRIMEIRO TRIÊNIO DO NOVO BANCO DE DESENVOLVIMENTO – PROMESSAS, RESULTADOS, DECEPÇÕES1
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) é, sem dúvida, a principal realização do processo BRICS. Poucos acreditavam que a cooperação entre os cinco países chegaria a resultar na criação de novos mecanismos de financiamento, como o NBD e o fundo monetário dos BRICS, denominado Arranjo Contingente de Reservas (ACR). A criação pelos BRICS de um novo banco multilateral de desenvolvimento, com planos de se tornar uma instituição de alcance global, teve inicialmente certo impacto internacional e foi recebida com preocupação em Washington. Temia-se que o NBD pudesse, no longo prazo, rivalizar com o Banco Mundial – até então o único banco multilateral de desenvolvimento com mandato para operar em escala mundial. A experiência mostraria que a ameaça é menor do que parecia. Apesar de alguns bons resultados iniciais, o NBD logo passou a enfrentar contratempos, resultantes em parte do quadro político e das relações internacionais dos países fundadores, mas principalmente de deficiências internas do banco. A percepção de que o novo banco estava com desempenho aquém do esperado foi se disseminando aos poucos. E não foi sem razão que, em novembro de 2018, Jim O´Neill, criador do acrônimo BRICs, observou “que o banco dos BRICS tem sido bastante decepcionante até agora – quase anônimo”.2
1. Governança e primeiros passos No início, tudo parecia correr bem e mais rapidamente do que se poderia prever. Em apenas um ano, completou-se a ratificação pelos cinco países dos acordos para estabelecimento do NBD e do ACR, assinados em Fortaleza, em 15 de julho de 2014.3 No Brasil, a ratificação na Câmara e no Senado teve apoio tanto da base do governo como da oposição. Em 3 de julho de 2015, o Convênio
Constitutivo do NBD entrou em vigor. A reunião inaugural do Conselho de Governadores do banco realizou-se em Moscou, no dia 7 de julho.4 A governança do NBD, tal como definida no Convênio Constitutivo, é de modo geral bastante tradicional, comparável à de outros organismos financeiros multilaterais. O Conselho de Governadores é a autoridade máxima do banco, integrado por um governador e um governador alterno designados por cada paísmembro; o governador deve ter obrigatoriamente nível ministerial.5 Os cinco fundadores escolheram se fazer representar no Conselho por seus ministros de Finanças. A Diretoria é responsável pela condução das operações gerais do banco e exerce todos os poderes a ela delegados pelo Conselho de Governadores.6 Os seus integrantes, com algumas exceções, são funcionários de escalão médio dos ministérios de Finanças. A Administração do NBD, composta de um presidente e quatro vice-presidentes, residentes na cidade-sede do banco, Xangai, é quem de fato conduz as atividades do banco em todos os aspectos, seguindo um organograma e uma divisão de responsabilidades aprovados pela Diretoria.7 Por exemplo, o vice-presidente brasileiro, cargo que ocupei até outubro de 2017, é responsável pelas áreas de risco, pesquisa, estratégia, parcerias e novos membros. Uma singularidade da governança do NBD é o fato de a Diretoria ser não residente e trabalhar em tempo parcial a partir das capitais dos países-membros. Esse arranjo não é muito frequente em organismos financeiros internacionais. A Diretoria do Banco Mundial e a do FMI, da qual fiz parte, residem em Washington desde a criação dessas instituições. A maioria dos bancos multilaterais criados posteriormente – o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco Asiático de Desenvolvimento, o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, o Banco Africano de Desenvolvimento, entre outros – seguiram esse mesmo modelo. O NBD e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura – Asian Infrastructure Investment Bank – AIIB, estabelecido pouco depois sob comando da China, optaram por Diretorias não residentes.8 Essa questão, diga-se de passagem, foi objeto de controvérsia entre John Maynard Keynes e Harry Dexter White na época da constituição do FMI e do Banco Mundial. Keynes opunha-se a Diretorias residentes, aduzindo entre outros os argumentos de que representariam gastos desnecessários e tenderiam a ficar isolados dos centros de decisão nos seus países.9 Mas, nesse ponto, como na grande maioria dos outros, prevaleceu a opinião de White, favorável a Diretorias residentes como contraponto político à Administração.10 White não tinha
necessariamente os melhores argumentos, mas representava o poder incontrastável dos Estados Unidos e levou quase sempre a melhor nos inúmeros embates com Keynes. Nos diversos contatos que mantive com presidentes e vice-presidentes de bancos multilaterais de desenvolvimento após a minha mudança para Xangai, observei que era unânime a preferência por Diretorias não residentes. As referências aos diretores residentes eram sempre pouco lisonjeiras. Representavam, segundo meus interlocutores, um custo para a instituição e atrapalhavam o trabalho da Administração. Eu, que passara mais de oito anos como membro de uma Diretoria residente em Washington, não fazia a menor ideia de que éramos tão pouco apreciados entre as Administrações de tantas instituições. Devo dizer que essa unanimidade me pareceu suspeita; algo de positivo os diretores residentes estavam, de certo, fazendo. A verdade é que as Diretorias residentes funcionam, de maneira geral, melhor do que as não residentes como contrapeso e instância de controle das Administrações. Tendo estado dos dois lados desse balcão, dou mais razão a White do que a Keynes nesse ponto. Outra singularidade da governança do NBD é a distribuição equitativa do capital e do poder de voto, com cada um dos sócios fundadores detendo 20% do total. Nenhuma das principais instituições financeiras multilaterais apresenta essa característica. No NBD, nenhum país desempenha o papel dominante que os Estados Unidos têm no FMI e no Banco Mundial ou a China, no AIIB. Nessas organizações, Estados Unidos e China têm poder de veto sobre diversas decisões cruciais. Durante a negociação do Convênio Constitutivo do banco, houve a preocupação de evitar a exigência de consenso ou unanimidade para qualquer decisão, pois isso implicaria conferir poder de veto a cada um dos cinco membros. A intenção era boa. Porém, como explico mais adiante, permitiu-se na prática que vigorasse a exigência de consenso para todas ou quase todas as decisões. Assim, o NBD passou a ter, na prática, cinco “Estados Unidos”, com implicações de que tratarei na sequência. Quando cheguei a Xangai, em julho de 2015, estávamos começando praticamente do zero. Tínhamos o Convênio Constitutivo e um andar praticamente vazio de um prédio no distrito financeiro de Pudong. Os primeiros passos foram dados com dificuldade, mas os resultados iniciais pareceram promissores. Ao longo do primeiro ano de operações, conseguimos aprovar na Diretoria as principais políticas do banco – as políticas de empréstimo, as de tesouraria e administração de riscos, as salvaguardas ambientais e sociais, as políticas de recursos humanos e recrutamento, entre outras. As primeiras
parcelas do capital do NBD foram pagas pelos países fundadores. Rússia e China resolveram, inclusive, antecipar o pagamento da segunda parcela do capital, uma demonstração adicional de apoio ao banco. Outro sucesso no primeiro ano foi a preparação e negociação, seguida de aprovação pela Diretoria, da primeira leva de projetos. Foram aprovados cinco projetos, um para cada um dos países fundadores, todos eles no campo da energia renovável, seguindo orientação recebida dos líderes dos BRICS por ocasião da cúpula de Ufa, na Rússia, em julho de 2015. Cumpriu-se para a maioria desses projetos a meta, fixada pelo presidente do NBD, de realizar em menos de seis meses a avaliação, negociação e aprovação dos empréstimos. Isso foi possível, claro, porque os sócios fundadores nos ajudaram, apresentando na maioria dos casos projetos sólidos, em estágio avançado de preparação. Cumpriu-se, também, o objetivo de começar a caracterizar o NBD como um “banco verde”, voltado para o apoio de projetos sintonizados com sustentabilidade ambiental. A mesma preocupação se refletia na intenção de explorar ativamente o mercado de bônus verdes, isto é, títulos destinados exclusivamente a gerar recursos para projetos que preservam ou recuperam o meio ambiente. Em linha com esse objetivo – e também com o objetivo de operar, em parte, com as moedas nacionais dos países-membros –, a primeira emissão, em julho de 2016, foi um bônus verde de cinco anos, denominado em yuan, no valor de 3 bilhões (equivalente na época a cerca de US$ 450 milhões).11 A operação foi muito bemsucedida: o bônus foi oversubscribed (subscrito em excesso) mais de três vezes, e o cupom ficou em 3,07%, apenas ligeiramente maior do que a taxa de juro paga pelo Banco de Desenvolvimento da China. Esse sucesso refletiu o otimismo inicial com o NBD e, sobretudo, o apoio consistente do governo e dos bancos chineses à emissão. Em suma, atuando de forma consistente com seu mandato, o NBD começou a se configurar como um banco verde, do lado do ativo e do passivo. No início, o banco chegou a ser 100% verde em termos de projetos aprovados e de funding no mercado.12
2. Estratégia geral Em paralelo a essas atividades operacionais, foi preparada a estratégia geral do NBD para o período 2017-2021, além dos planos e procedimentos para a entrada de novos países-membros. Após diversas discussões minuciosas com o Conselho
de Governadores e sobretudo com a Diretoria, a estratégia geral foi aprovada, em princípio, em abril de 2017.13 Os planos para a expansão do número de membros também foram discutidos em detalhe com o Conselho de Governadores e, em especial, a Diretoria. A Administração do NBD fez, em 2016 e 2017, contatos preliminares com cerca de setenta países de todas as regiões do mundo para sondar o possível interesse em entrar para o banco. A receptividade foi boa, mas o processo avançaria pouco, em razão da resistência cerrada da Rússia, ponto ao qual voltarei na sequência. Apesar dessa resistência, o Conselho de Governadores aprovou, também em abril de 2017, um documento que estabeleceu os termos, condições e procedimentos para a admissão de novos países-membros.14 A ideia força que perpassava toda a estratégia do banco era a de que se estava criando uma instituição multilateral “nova”, capaz de honrar o próprio nome. O ponto de partida era o modelo inaugurado com o Banco Mundial em que governos nacionais se cotizam para criar instituições financeiras capazes de alavancar capital e apoiar o desenvolvimento econômico e social. Reconhecia-se que tínhamos muito que aprender com os bancos multilaterais de desenvolvimento mais antigos, não só com o Banco Mundial, como também com os diversos bancos regionais existentes. O NBD assinou inclusive diversos acordos de cooperação e parceria com esses bancos. Porém, não se perdia de vista que era preciso buscar uma nova filosofia e novas práticas. Afinal, por que os BRICS teriam se dado ao trabalho e à despesa de criar um banco de desenvolvimento se estivessem satisfeitos com os existentes? A estratégia adotava, implicitamente, um princípio taoista: “Conceitos só existem como contrastes.” Os planos da nova instituição eram apresentados, em geral, em contraste explícito com a atuação dos bancos mais antigos. Embora a linguagem fosse diplomática, havia a preocupação clara em indicar que o NBD evitaria práticas tradicionais que pareciam superadas ou problemáticas para os países em desenvolvimento. Vale a pena resumir as principais inovações pretendidas, ainda que a grande maioria delas não tenha ainda se concretizado, como veremos mais à frente. O que haveria então de novo no Novo Banco de Desenvolvimento? O Convênio Constitutivo estabelecera como mandato do banco mobilizar recursos para projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável nos BRICS e em outros países emergentes e em desenvolvimento.15 A estratégia geral especificou a infraestrutura sustentável como foco do banco, estabelecendo que cerca de 2/3 dos projetos aprovados no período 2017-2021 seriam nessa área. Infraestrutura sustentável foi definida, de forma ampla, como aquela que
incorpora critérios de sustentabilidade em todas as fases, desde a concepção até a operação – critérios não só econômico-financeiros, mas também sociais e ambientais. No terço remanescente, estaria incluída a infraestrutura tradicional, além de projetos de desenvolvimento sustentável voltados, por exemplo, para controle da poluição, conservação da biodiversidade e adaptação à mudança climática. O conceito de infraestrutura sustentável permitia combinar as duas dimensões do mandato do NBD: infraestrutura e desenvolvimento sustentável.16 Mesmo nos projetos de infraestrutura tradicional, o NBD aplicaria, como fazem ou deveriam fazer todos os bancos multilaterais, requerimentos sociais e ambientais para controlar efeitos negativos sobre grupos sociais ou o meio ambiente. A diferença é que os projetos de infraestrutura sustentável iriam além da mera mitigação de efeitos colaterais. O seu objetivo central seria produzir impactos positivos em termos sociais e ambientais. Para tal, decidiu-se que o banco centraria esforços em setores como energia renovável – solar, eólica, pequenas hidroelétricas – eficiência energética, transporte limpo, mobilidade urbana, saneamento e gestão de recursos hídricos e de rejeitos sólidos. Os bancos multilaterais existentes já estavam operando na área de infraestrutura sustentável, mas a falta de foco da maioria deles, isto é, a tendência a operar em um grande número de áreas, tornava sua atuação menos eficaz. O Banco Mundial, notadamente, buscava cobrir todas as posições, desde portos, estradas, aeroportos até a salvação do tigre siberiano. A estratégia do NBD explicitava a intenção de evitar o “estilo universal” dos bancos multilaterais tradicionais que buscam cobrir uma enorme variedade de atividades e setores, em favor da concentração de energias e recursos no apoio a um grupo de setores mais limitado em escopo, mas amplo o suficiente para permitir que o banco encontrasse projetos viáveis e desse contribuição relevante ao desenvolvimento econômico e social.17 O NBD pretendia também incorporar a velocidade em todas as atividades. A intenção declarada na estratégia era combinar a rapidez e eficiência do setor privado com o rigor técnico, a elevada qualidade e o compromisso com o bem público que caracterizam os bancos multilaterais. Para tal, o banco se comprometia, por exemplo, a evitar “burocracia desnecessária” na aprovação e implementação de projetos. Isso permitiria concretizar a já mencionada meta de levar menos de seis meses, em média, entre a identificação de projetos e sua aprovação na Diretoria.18 Esse prazo é consideravelmente inferior ao que se observa em bancos multilaterais mais antigos, como o Banco Mundial e o BID.19 Outro objetivo importante era emprestar, na medida do possível, nas
moedas nacionais dos países-membros, evitando risco cambial para os tomadores e contribuindo para o desenvolvimento dos mercados de capitais domésticos. A experiência mostrava que a prática mais comum dos bancos multilaterais tradicionais de emprestar em dólares causava dificuldades recorrentes na implementação dos projetos. Projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável são tipicamente de longo prazo e é, em geral, difícil para os tomadores contratar hedge cambial para a duração dos contratos. Além disso, a maioria desses projetos são no setor non-tradeable da economia e não proporcionam o “hedge natural” decorrente da geração de receitas em moeda estrangeira. Para viabilizar empréstimos em moedas nacionais sem assumir riscos cambiais excessivos, o NBD planejava desdolarizar em parte sua captação no mercado e explorar possiblidades de emitir títulos nas moedas nacionais dos países-membros. Esse processo já havia começado com a bem-sucedida emissão de um bônus em moeda chinesa. A estratégia frisava, além disso, que o NBD se diferenciaria do modelo intervencionista e “salvacionista” de alguns dos bancos tradicionais, notadamente o Banco Mundial. De novo, a linguagem adotada era diplomática, mas ficava claro que não se pretendia ensinar e muito menos tutelar os países tomadores, e sim respeitar suas prioridades e estratégias de desenvolvimento. A intenção era que uma relação de igualdade, respeito mútuo e confiança com os países-membros permeasse todos os aspectos das políticas e operações do NBD. O respeito à soberania nacional seria de importância central.20 O NBD não imporia condicionalidades e nem pretendia prescrever políticas ou reformas regulatórias e institucionais aos países tomadores. Ao contrário, tomaria como ponto de partida, sempre que possível, as leis e os procedimentos nacionais na implementação dos seus projetos.21 No que diz respeito a novos países-membros, os planos eram gradualistas, mas ambiciosos. Os primeiros dois anos do banco haviam sido dedicados à montagem da instituição, incluindo a elaboração e aprovação das políticas operacionais básicas, a contratação de funcionários, a entrada das primeiras parcelas de capital e a emissão do primeiro bônus. Essa decisão fora tomada, explicava a estratégia, porque isso facilitaria a elaboração de políticas que se diferenciariam de modo fundamental das políticas dos bancos multilaterais existentes. Estabelecida a estrutura inicial, seria dada a largada para a expansão do número de países-membros a partir de meados de 2017. A ideia era incorporar aos poucos países de diferentes tamanhos, níveis de desenvolvimento e regiões do mundo. Gradualmente, entrariam no NBD países das Américas, da África, do Oriente Médio, da Europa e da Ásia. Ao final do período de cinco
anos coberto pela estratégia, o NBD seria um banco global presente em todos os cantos do planeta.22 O papel aceita tudo, diria um cínico. E, de fato, há uma grande distância entre definir e negociar todos esses objetivos meritórios e executá-los na prática. Porém, o fato de a estratégia ter sido discutida passo a passo com o Conselho de Governadores e praticamente parágrafo a parágrafo com a Diretoria alimentava a percepção de que existia um compromisso real com esses objetivos. Ademais, ela havia sido elaborada com a participação de todos os integrantes da Administração e refletia o que o banco estava procurando fazer, na prática, desde julho de 2015. A percepção, contudo, se revelaria em grande medida infundada. Os objetivos traçados na estratégia não eram irrealistas, nem excessivamente ambiciosos, mas a capacidade de execução do banco ficaria muito aquém do necessário para alcançá-los ou mesmo começar a alcançá-los.
3. Problemas internos Como o passar do tempo foi ficando cada vez mais claro para mim que a Administração do banco não estava à altura do desafio com que se defrontava. Não havia, primeiramente, real aderência com o projeto que o banco deveria encarnar. Eu era o único dos seus cinco integrantes que participara do processo BRICS e que tinha, assim, uma noção precisa do que se buscava alcançar com a criação de um novo banco multilateral de desenvolvimento. O vice-presidente chinês, Xian Zhu, vinha de uma longa carreira no Banco Asiático de Desenvolvimento e no Banco Mundial; conhecia bem as qualidades e limitações desses e de outros bancos multilaterais. Era inteligente e percebia os problemas incipientes do NBD; ficara encarregado da área crucial de projetos e da supervisão dos escritórios regionais que o banco viesse a criar.23 No entanto, apesar de chinês, não era especialmente trabalhador – reflexo talvez de longa permanência na burocracia do Banco Mundial. Já para os demais integrantes da Administração, o NBD era simplesmente mais um emprego. A falta de sentido de missão não era o único problema. O pior é que dois vice-presidentes simplesmente não estavam qualificados para o cargo. O sulafricano, Leslie Maasdorp, responsável por finanças e orçamento, não tinha suficiente preparo técnico, nem capacidade administrativa e não se dedicava às suas responsabilidades. Passava grande parte do tempo em viagens e eventos, abandonando suas atribuições. O seu despreparo para o cargo tornou-se
rapidamente evidente. O caso do vice-presidente russo, Vladimir Kazbekov, era ainda mais grave. Antes de vir para Xangai, ele tinha sido um funcionário de nível intermediário do banco de desenvolvimento da Rússia, encarregado de relações internacionais e organização de eventos. No NBD, ficaram sob sua responsabilidade as áreas de recursos humanos, comunicação, informática e administração. Todas essas áreas sofreram com a sua falta de competência profissional. Por exemplo, a maioria dos setores do banco ficaram estrangulados pela falta de recursos humanos – inclusive a própria área de recursos humanos. O processo de recrutamento foi lento, ineficiente e pouco transparente, e os funcionários selecionados de qualidade muito desigual. A comunicação do NBD também foi, desde o início, outro grave problema. O NBD tem pouca presença pública e é praticamente desconhecido, “anônimo”, como notou Jim O’Neill. Ao vice-presidente russo falta não apenas competência profissional, mas também integridade pessoal. No período de mais de dois anos em que estive no banco, Kazbekov violou o Convênio Constitutivo, o código de conduta e seu próprio contrato várias vezes. Ao comportar-se repetidamente de maneira irresponsável, ele produzia grande estrago dentro da instituição. O principal problema, entretanto, é o presidente do banco, o indiano K.V. Kamath. Trata-se de um profissional experiente e inteligente, já de certa idade, que vem de uma carreira ilustre na área bancária comercial da Índia. Porém, chegou ao NBD em regime de pré-aposentadoria e sua dedicação ao banco é limitada. Chega às 9h e sai às 17h, religiosamente. Quase não sai do banco e reluta em viajar. Tem a agenda leve, com poucos visitantes. Pouco faz para projetar a instituição e realizar contatos externos. A sua capacidade de comunicação é pobre e a sua visível indiferença dificulta a mobilização e motivação dos funcionários do banco. Falta-lhe curiosidade intelectual e ele mostra pouco ou nenhum entusiasmo com o NBD como projeto. Transmite com frequência a impressão de que está contando os dias para o fim do seu mandato. Além disso, é pessoa tímida e de pouca coragem. Assusta-se com facilidade e nunca entra em bola dividida. Com esse perfil, não consegue exercer autoridade e liderança. Só por isso, claro, os vice-presidentes russo e sul-africano podiam atuar da maneira referida. Os funcionários de terceiro e quarto escalão dos ministérios dos paísesmembros não demoraram muito a perceber a fraqueza do presidente do NBD, e vários deles passaram a pressioná-lo sem dó nem piedade. Para aprovar políticas e decisões propostas pela Administração, faziam exigências minuciosas, nem sempre relevantes ou bem pensadas. Não ficava claro se esses funcionários tinham a cobertura de autoridades mais altas para proceder como procediam,
mas o presidente não pagava para ver. Acovardado, empenhava-se para acomodar, de alguma forma, a grande maioria das exigências que chegavam das capitais, mesmo as mais estapafúrdias. Quando da negociação do Convênio Constitutivo, recorde-se, houve a preocupação de evitar que as decisões do NBD viessem a depender de unanimidade ou consenso.24 Ficou estabelecido que a grande maioria das decisões seria tomada por maioria simples; em alguns casos, previu-se o requisito de supermaioria qualificada (de 2/3 do poder de voto total) ou especial (quatro dos membros fundadores e 2/3 do poder de voto total).25 Como cada um dos países fundadores possui 20% do poder de voto, nenhum deles tem poder de veto sobre decisão alguma. Evidentemente, a exigência de unanimidade ou consenso equivaleria a conferir poder de veto a cada um dos cinco sócios. Ocorre que, na prática, a fraqueza do presidente do NBD permitiu que se fosse criando uma tradição de só resolver quando houvesse unanimidade. Muito raramente decisões eram tomadas com a discordância de algum dos cinco. Em consequência, os assuntos trazidos à Diretoria e ao Conselho de Governadores, mesmo os de menor importância, se arrastavam de maneira inacreditável. A velocidade proclamada na estratégia geral do NBD, assim como em diversos pronunciamentos do próprio presidente do banco, virou letra morta. A raiz dessas dificuldades estava na falta de experiência política do presidente Kamath. Logo ficou evidente que ele não sabia lidar com os paísesmembros. No período em que estive no NBD, ele não estabeleceu contato regular com os ministros de Finanças dos países – com a exceção do ministro do seu país natal, a Índia. As suas interações com os países ficavam então limitadas, em geral, a funcionários de escalão médio dos governos. Acabou aprisionado pelas burocracias dos cinco países. O contraste com Jin Liqun, o chinês que preside o AIIB, é constrangedor para o NBD. O AIIB, criado um pouco depois que o NBD, tem um presidente dinâmico e criativo, que rapidamente conduziu a instituição a uma posição de proeminência, lançando uma sombra profunda sobre o banco estabelecido pelos BRICS. Apesar do seu foco regional – um banco asiático que compete em princípio com o Banco Asiático de Desenvolvimento, no qual o Japão e os Estados Unidos têm posição proeminente – o AIIB passou a desempenhar o papel global que o NBD estava desenhado para exercer. Enquanto isso, sob a liderança (ou falta de liderança) do presidente Kamath, o NBD foi se cristalizando em posição secundária. O relativo insucesso do NBD não pode, na minha avaliação, ser atribuído a um maior apoio da China ao AIIB. Não faltou
ao nosso banco apoio do governo central de Beijing ou do governo municipal de Xangai. Ao contrário, muito do que se conseguiu nos anos iniciais se deveu à ajuda sistemática e profissionalmente sólida das autoridades chinesas. A minha posição individual, registre-se também, não era das mais confortáveis. Eu não reunia, a bem da verdade, todas as qualidades requeridas para a função, em especial para a área de risco. Tinha muita experiência e conhecimento de negociações multilaterais e da natureza do trabalho em organismo internacional, depois de oito anos no FMI, no G20 e no processo BRICS, mas não tinha conhecimento prático de bancos de desenvolvimento. Procurava compensar essas limitações esforçando-me para estudar e me colocar a par dos temas sob minha responsabilidade, mas o processo era demorado e árduo. O meu temperamento, reconheço, também não ajudava. Depois de algum tempo e repetidas frustrações, reagia com impaciência e certa aspereza à falta de dedicação e responsabilidade dos meus colegas russo e sul-africano. Com o russo, em particular, que era não só incompetente como agressivo, as desavenças se multiplicaram, em especial quando ele começou a se valer das suas atribuições nas áreas de recursos humanos e comunicação para, por incrível que pareça, retaliar contra seus colegas, obstruindo em especial a atuação da vicepresidência brasileira no desempenho de suas atribuições. O vice-presidente chinês, que tinha competência e experiência pertinente, também perdia frequentemente a paciência com o russo e o sul-africano, cujo despreparo e incompetência também afetavam diretamente o trabalho da área de projetos.26 O ambiente nas reuniões internas da Administração não era dos mais construtivos, para dizer o mínimo. O presidente Kamath assistia basicamente inerte a todos esses conflitos, furtando-se a exercer a liderança que lhe cabia. As limitações do comando do NBD contribuíram para contratações infelizes para o corpo técnico do banco. É o que costuma ocorrer. Como se diz em inglês, the rot begins at the top (o apodrecimento começa no topo). Os cargos de diretor-geral e chefe de divisão, os mais altos do staff, foram ocupados, com algumas exceções, por pessoas de qualificação e competência claramente insuficientes. O funcionamento do banco sofria com isso em praticamente todos os setores. Eu mesmo contribuí, devo confessar, para contratações equivocadas, ao insistir na escolha de um diretor-geral de estratégia, o brasileiro Sergio Suchodolski, que se revelaria despreparado e inoperante. Como atenuantes para o meu erro, menciono apenas que tive sobre ele referência muito positiva de Luciano Coutinho, ex-presidente do BNDES, de quem o candidato à posição havia sido chefe de gabinete. Houve também alguma pressa na escolha, pois me preocupava, depois do impeachment da presidente Dilma, a possibilidade de que
o governo brasileiro resolvesse patrocinar a contratação para essa posição de alguém capaz de criar problemas dentro do banco. A baixa qualidade dos funcionários do governo Temer com quem passei a interagir só fizera aumentar essa preocupação Volto às consequências do impeachment na sequência. Por ora, quero deixar registrada a minha surpresa e decepção diante da inépcia ou despreparo de grande parte dos funcionários russos e indianos que ingressaram no NBD, começando, obviamente, pelo presidente indiano e o vice-presidente russo. É que nos meus mais de oito anos no FMI, aprendera a admirar a qualidade dos diretores e assessores da Rússia e da Índia. As cadeiras russa e indiana na Diretoria Executiva do FMI estavam entre as melhores, mais atuantes e mais preparadas. Não esperava que seria tão diferente em Xangai. O que salvava um pouco a situação era o desempenho algo melhor do vice-presidente chinês e de alguns funcionários chineses, inclusive na minha vice-presidência, que se destacavam pelo afinco e pela seriedade. Além disso, os brasileiros, embora poucos e relativamente jovens, trabalhavam bem e com grande dedicação, excetuado o já referido diretor-geral de estratégia. Para esses funcionários chineses e brasileiros, pelo menos aqueles lotados na vice-presidência brasileira, hora extra não remunerada e trabalho em feriado ou fim de semana eram parte da rotina e ninguém estranhava. As críticas e os comentários anteriores, em especial os que fiz sobre meus colegas de Administração, talvez pareçam excessivamente ad hominem. Não se deve perder de vista, entretanto, que as qualidades pessoais da Administração são cruciais para uma instituição como o NBD, que começava do zero. Uma instituição já estabelecida e consolidada pode suportar por algum tempo um comando medíocre ou inoperante. No caso do nosso banco, onde tudo estava por se fazer, era preciso que a Administração e a equipe técnica fossem não só competentes, mas dedicadas, dispostas inclusive a sacrifícios pessoais. Não era o que se via na maioria dos casos, infelizmente, em especial nos escalões mais altos do banco.
4. Contratempos políticos As dificuldades do NBD não eram apenas internas ao banco. Enfrentávamos, além disso, acontecimentos que afetaram as relações internacionais e o quadro político dos países integrantes dos BRICS e que repercutiam de alguma maneira sobre o banco.
Um deles foi a deterioração das relações entre a China e a Índia. A China lançara em 2013 a iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (One Belt, One Road Initiative – OBOR) envolvendo expressivos investimentos em infraestrutura na Ásia, África, Europa e outras regiões. A escala e ambição dessa iniciativa preocuparam a Índia, especialmente um projeto de corredor econômico ChinaPaquistão, que atravessava território contestado com a Índia. Em 2017, chegou a haver escaramuças na fronteira entre a Índia e a China. Os Estados Unidos – sempre interessados em atrair a Índia para uma aliança quadripartite com Japão e Austrália, objetivando a “contenção” da China – buscavam naturalmente tirar partido dessas discordâncias e incidentes. As relações entre China e Índia melhorariam posteriormente, mas o conflito entre os dois países afetou o processo BRICS em 2017, dificultando o planejamento da cúpula daquele ano, que se realizou na China, em setembro, na cidade de Xiamen. Também não podia deixar de ter algum efeito sobre o banco. Por exemplo, quando o governo chinês procurou o NBD para que assinássemos um memorando de entendimento, com outros bancos multilaterais, indicando a intenção de apoiar e participar da OBOR, a Índia se opôs tenazmente, embora o memorando não fosse legalmente vinculante e tivesse caráter meramente declaratório. Depois de muitas idas e vindas, e suando frio, o presidente Kamath colocou a questão em votação e só a Índia se opôs. Foi a única vez, nos mais de dois anos em que estive no banco, em que alguma decisão foi tomada sem consenso. Mais graves para o NBD foram as consequências do conflito entre Rússia e Ocidente desde a crise na Ucrânia e a anexação da Crimeia em 2014. Sob liderança dos Estados Unidos, mais de 40 países, incluindo todos os desenvolvidos, passaram a aplicar sanções contra a Rússia. O país perdeu acesso a diversas fontes de financiamento internacional. Ficou impossibilitado, por exemplo, de tomar empréstimos no Banco Mundial e no Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD). Até então, a Rússia recorria a financiamentos do Banco Mundial e era o principal cliente do BERD. Como os países desenvolvidos mantêm ampla maioria nesses bancos multilaterais, não foi difícil para eles vetar empréstimos à Rússia. Inesperado, entretanto, foi o que ocorreu, pelo menos em certo período, no AIIB, que é comandado pela China, como mencionei. Todos os principais países europeus haviam ingressado no AIIB, a despeito, diga-se de passagem, das objeções dos Estados Unidos. A exemplo do que ocorre em instituições multilaterais mais antigas, os europeus passaram a atuar em bloco no AIIB e, em certo momento, objetaram a que o banco realizasse operações com a Rússia. O presidente Jin Liqun – assim me informaram os representantes russos no NBD –
estava de alguma maneira aceitando esse veto, embora os europeus não tivessem votos suficientes no AIIB para bloquear operações. A indignação dos russos com a situação era tal que ocorreu um episódio inusitado. Em reunião ministerial dos BRICS, em Xangai, em junho de 2017, com algo como 30 pessoas na sala, o ministro de Finanças da Rússia, Anton Siluanov, dirigindo-se ao ministro chinês, reclamou enfaticamente do que estava ocorrendo no AIIB, acrescentando que essa situação só fazia aumentar a relutância da Rússia em aceitar que começasse a entrada de novos países-membros no NBD. Na verdade, o problema era anterior. Desde o início das operações do banco, a Rússia tentava obstruir os planos de ampliação do número de membros. Os demais sócios fundadores eram favoráveis à ampliação, particularmente o Brasil e a China. A Índia, inicialmente favorável, passou a temer que a China patrocinasse a entrada do Paquistão e perdeu entusiasmo pela ideia, mas não chegava a obstruir e, às vezes, até ajudava. A África do Sul não parecia seguir uma linha consistente e tendia à neutralidade. Dentro do banco, a força propulsora era a vice-presidência brasileira. O assunto estava na minha órbita e dedicamos muito tempo à preparação das condições e critérios para a entrada de novos membros, assim como ao trabalhoso planejamento e realização dos contatos iniciais com as autoridades de um grande número de países em 2016 e 2017. Mas cada passo era um parto. Os representantes russos inventavam a cada momento objeções e manobras burocráticas. Sentindo a tibieza do presidente do banco, os russos foram endurecendo aos poucos as objeções. Transparência, como se sabe, nunca foi o ponto forte dos russos. Na época da negociação, nunca ficara totalmente claro porque tanto resistiam à ideia de criar o banco, assim como o fundo monetário dos BRICS. Até a cúpula dos BRICS em Durban, no início de 2013, os russos pareciam opor-se a essas iniciativas. Só após Durban, a Rússia se engajou plenamente no processo. Depois da criação do NBD, logo sentimos a relutância russa à entrada de novos membros. Mais uma vez, não havia diálogo franco sobre as razões dessa relutância. Com o tempo, foi possível perceber, entretanto, que havia dois motivos para a resistência deles à ampliação do NBD. Primeiro, a Rússia temia a entrada de seus inimigos no banco. Objetava-se, sobretudo, no início mais discretamente, depois com mais clareza, à participação de países desenvolvidos, particularmente daqueles que se destacavam na aplicação de sanções contra a Rússia. Mas as objeções se estendiam, também, ainda que de maneira menos enfática, a países em desenvolvimento. Os russos passavam a impressão de não querer no banco países que pudessem concorrer com eles no acesso a
empréstimos do NBD. Ironicamente, o país que até início de 2013 se mostrava o mais relutante em concordar com a criação de um novo banco pelos BRICS, convertera-se no mais ansioso em utilizá-lo para seus próprios fins. Parte do problema estava, aparentemente, na natureza do processo decisório na Rússia. Os representantes do país na Diretoria do NBD, assim como o vicepresidente russo, viviam no temor de desagradar ao Kremlin. Não tinham acesso aos altos escalões do governo, nem noção precisa de como pensava o presidente Putin. Por via das dúvidas, faziam tudo para bloquear. Em reunião formal da Diretoria, pressionado por argumentos meus e de seus colegas de Diretoria, o diretor russo, Sergei Storchak, deixou escapar que não podia concordar com a discussão de listas de possíveis países-membros, pois “o meu líder [Putin] é imprevisível”. A China, por sua vez, acabava acomodando em alguma medida as objeções da Rússia, em parte, suponho, para compensar o que estava ocorrendo no AIIB, em parte porque no plano estratégico-diplomático os dois países haviam se aproximado muito, como decorrência dos choques com os Estados Unidos, mesmo antes da eleição de Donald Trump. Enquanto estive no banco, conseguimos alguns avanços em matéria de novos membros, apesar dos obstáculos criados incansavelmente pelos russos. Conseguimos, a muito custo, autorização do Conselho de Governadores para iniciar contatos informais com potenciais interessados. Fizemos ao longo de 2016 e 2017 sucessivas rodadas de reuniões com autoridades de países da América Latina, do Caribe, da África, do Oriente Médio, da Europa e da Ásia. Eu me valia, nesse processo, da experiência de mais de oito anos na Diretoria do FMI e dos contatos que fizera nesse período com ministros de Finanças e outros funcionários da área econômica de muitos países. A receptividade ao NBD era variável, mas em meados de 2017 mais de 40 países haviam indicado interesse em prosseguir as discussões, com muitos deles mostrando interesse em começar negociações formais. Conseguimos também – de novo, a muito custo – aprovar no Conselho de Governadores o já referido documento que estabelecia os termos, condições e procedimentos para a entrada de novos membros. Infelizmente, os russos logo inventaram que era preciso aprovar outro documento, que estabeleceria os critérios para a seleção de países-membros – mais um pretexto para prolongadas discussões na Diretoria. A verdade é que a vice-presidência brasileira trabalhava intensamente para alcançar resultados, afinal, relativamente modestos. Depois que fui afastado, em outubro de 2017, o processo de ampliação do banco parece ter parado completamente. O NBD permanece um clube de apenas cinco membros. Enquanto isso, o AIIB, criado pouco tempo depois, conta com mais de 90 países-membros de todas as regiões
do planeta, muitos dos quais países desenvolvidos. As crises econômicas e políticas na África do Sul e no Brasil também contribuíram para enfraquecer o NBD. Na África do Sul, depois de prolongada instabilidade política, denúncias de corrupção acabariam levando à renúncia do presidente Zuma, que tivera papel importante no processo BRICS, inclusive no lançamento das negociações formais para a criação do NBD e do ACR na cúpula de Durban. Eu estava presente e posso testemunhar de que sem o empenho dos sul-africanos, em especial do presidente Zuma, teria sido difícil chegar à decisão de criar os dois mecanismos e começar as negociações. Mais importante, contudo, foi a crise brasileira e o impeachment da presidente Dilma. Não quero passar a impressão, leitor, de que estou “puxando a sardinha” para o lado brasileiro, mas gostaria de atestar, como participante do processo desde o início em 2008, que o Brasil era o motor dos BRICS. Embora a iniciativa original tenha sido da Rússia,27 o Brasil, bem mais do que os outros quatro, se sobressaía pela capacidade de formular, organizar e impulsionar o processo. Porém, com a crise que se abateu sobre o governo Dilma a partir de 2015, a atuação do país sofreu clara erosão. No governo Temer, o quadro piorou. Nunca se confirmaram os rumores de que Temer se afastaria ou até abandonaria os BRICS e o banco por eles criado, mas a participação brasileira se tornou bem menos importante. Dada a minha identificação com os governos Lula e Dilma, fiquei em posição mais precária depois do impeachment. Já não tinha o mesmo acesso e a mesma facilidade de diálogo com Brasília e podia temer que viesse de lá alguma tentativa de me desestabilizar, ainda que eu tivesse mandato e contrato até 2021 e não fosse demissível ad nutum. Isso acabaria acontecendo, como relatarei28, mas ainda foi possível trabalhar relativamente bem com Brasília, mesmo no governo Temer, enquanto o Brasil se fazia representar na Diretoria do NBD por diplomatas de carreira. Os embaixadores Luís Balduino e Carlos Cozendey continuaram inicialmente nas posições de diretor e diretor alterno, respectivamente, para as quais haviam sido nomeados no governo Dilma. Esses embaixadores faziam parte do pequeno grupo de diplomatas que se destacaram no processo BRICS e tinham, portanto, pleno conhecimento do que se pretendia alcançar com a criação do banco.29 Infelizmente, acabaram substituídos por economistas com pouca experiência e conhecimento pertinentes e – o que é pior – cheios de noções preconcebidas e com pouca disposição de aprender. A posição de diretor brasileiro passou a ser exercida por Marcello Estevão, exfuncionário do FMI, que em pouco tempo revelaria inaptidão para o cargo. A sua atuação se caracterizava por amadorismo e improvisação. Não foi só a
representação brasileira que perdeu qualidade. O Brasil, por acordo a que se chegou em Fortaleza, exercia a primeira presidência da Diretoria30 e o Convênio Constitutivo estabelecera que esse mandato seria de quatro anos.31 Com o diretor brasileiro atuando de maneira atabalhoada, sofria não só o Brasil, mas a Diretoria com um todo.32
5. O NBD acumula insucessos Todos esses contratempos com as capitais eram inegavelmente difíceis de enfrentar – mas não intransponíveis e nem inusitados. Afinal, todas as instituições multilaterais sofrem volta e meia com os problemas políticos e econômicos dos seus países-membros. Para enfrentá-los faltava, entretanto, um ingrediente indispensável: uma Administração – e em especial um presidente – dedicada, batalhadora e disposta a correr certos riscos. Não era o que tínhamos, como vimos. Em consequência, o NBD foi acumulando insucesso atrás de insucesso. A finalidade precípua do banco, recorde-se, é apoiar projetos nas áreas de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. Também aqui os resultados deixaram a desejar. Até certo ponto, é possível disfarçar os insucessos nessa área. Em suas comunicações públicas, o NBD costuma destacar a aprovação de projetos pela Diretoria. Informou-se que, nos primeiros três anos, até junho de 2018, foram aprovados 21 projetos, em um valor total de US$ 5,1 bilhões.33 Com nove projetos adicionais aprovados no segundo semestre de 2018, o valor total chegou a cerca de US$ 8 bilhões.34 Apenas quatro projetos foram aprovados no Brasil até fins de 2018, no montante de US$ 621 milhões, ou 8% do total, o que reflete não só a crise econômica e política no país, mas também a queda na qualidade da representação brasileira na Diretoria do banco após a substituição dos diplomatas por economistas amadores.35 Para um banco que está em fase inicial, o número e valor total dos projetos aprovados pode parecer significativo à primeira vista. Mas as aparências enganam. Mesmo nos países com mais projetos aprovados, a presença do banco é mínima. A questão é que a aprovação de um projeto pela Diretoria é apenas um passo, e não necessariamente o mais difícil, no processo de sua concretização. Depois, é preciso negociar e assinar o contrato e, em seguida, efetuar os desembolsos. Ora, os documentos aprovados pela Diretoria do NBD são, geralmente, de caráter genérico e deixam questões espinhosas para solução
posterior. Por isso, a negociação e assinatura dos contratos pode demorar muito, o que de fato aconteceu com boa parte dos projetos. Em alguns casos, a assinatura do contrato nunca chegou a ocorrer, e projetos aprovados na Diretoria transformaram-se em “esqueletos” – sem ser, entretanto, retirados da lista de divulgação. E, mais importante, mesmo quando os contratos são assinados, o que se verifica é uma grande demora em desembolsar. Assim, é ilusória a velocidade do NBD em aprovar projetos na Diretoria, alardeada na estratégia do banco e em pronunciamentos do seu presidente. O dado constrangedor é que, depois de três anos, o desembolso total alcançava o valor ínfimo de US$ 226 milhões.36 Um plano caro e ambicioso de criar um banco de alcance global cristalizou-se até agora em um clube de cinco sócios, que basicamente recebe capital dos membros, paga funcionários e despesas operacionais e estaciona os recursos excedentes em depósitos em bancos de primeira linha ou outros investimentos seguros e pouco rentáveis. Nada a ver, claro, com o que se pretendia ao criar o NBD. O quadro pode se modificar no futuro – e espero que se modifique – mas, infelizmente, essa foi a realidade do banco nos seus primeiros anos de existência. Registre-se, ainda, a pouca transparência do NBD, que fornece informações muito limitadas sobre os projetos que aprova. Não é possível verificar em que medida o banco está respeitando, na prática, os princípios estabelecidos no Convênio Constitutivo, na estratégia geral e nos pronunciamentos da Administração. Até onde sei, não foi definido como operacionalizar e acompanhar a execução da estratégia e o foco em infraestrutura sustentável. Nem se sabe, concretamente, como o NBD atua em cada projeto para garantir o respeito à sustentabilidade ambiental e social. Há pouca informação sobre os projetos na página do NBD na internet e nos documentos oficiais do banco.37 Outro objetivo não realizado, ou realizado apenas de modo parcial, foi o de operar com as moedas dos países-membros. Apenas três projetos dos aprovados até junho de 2018, no valor equivalente a US$ 680 milhões, estão denominados em yuan.38 Nada foi feito nas moedas dos demais países, a despeito dos planos anunciados.39 Também ficou paralisada, desde 2016, a emissão de bônus no mercado. Depois da emissão bem-sucedida, mas pequena, ocorrida em julho de 2016, nada mais aconteceu. Et pour cause: não havia necessidade. Os países fundadores continuavam aportando o capital integralizado conforme previsto no Convênio Constitutivo, com alguns chegando mesmo a antecipar o pagamento de algumas parcelas. Como os desembolsos foram muito modestos, para que voltar ao
mercado de capitais? Evidentemente, a paralisia tinha o seu preço: o banco não criou um nome no mercado e suas equipes não ganharam experiência prática na emissão de títulos. Em parte pela mesma razão, o NBD demorou três anos para obter um rating de crédito para o mercado internacional. O resultado não foi desfavorável (AA+), mas ficou abaixo do triplo A obtido por todos os principais bancos multilaterais de desenvolvimento, inclusive o AIIB.40 *** Os primeiros anos do NBD foram, em resumo, uma decepção. Uma instituição que despertara tanta curiosidade e interesse quando criada e que chegou a apresentar inicialmente alguns resultados promissores enfrentou embaraços de toda ordem e foi pouco a pouco ficando em segundo plano. Sob a atual Administração, o NBD teve – e terá – grande dificuldade de decolar. Deve continuar travado, evoluindo devagar, com um corpo técnico de qualidade desigual. Continuará certamente aquém do ambicioso desenho original, que previa o estabelecimento de um banco global, moderno, inovador, tecnicamente sólido e profissional. Uma reviravolta é perfeitamente possível; afinal, o banco está apenas começando e tem grande potencial. Tudo depende da nova Administração que será inaugurada com a substituição do atual presidente K.V. Kamath, em julho de 2020, e com a substituição dos atuais vice-presidentes, um ano depois. Só isso oferece a perspectiva de relançar e dinamizar a instituição. Para tal, será também necessário substituir boa parte dos diretores-gerais e chefes de divisão do NBD. A sorte do banco está, em grande medida, em mãos brasileiras. Primeiro, porque o governo brasileiro exerce a presidência de turno do processo BRICS no ano de 2019. Segundo, porque o país tem o direito de sediar o segundo escritório regional do NBD, denominado Americas Regional Office, que deve ser inaugurado em 2019 e poderá atuar não só no Brasil, como também em outros países das Américas, caso seja possível em algum momento destravar a ampliação do NBD para novos membros. Terceiro – e mais importante –, cabe ao Brasil, também por acordo a que se chegou em Fortaleza,41 indicar o segundo presidente do banco, com mandato de cinco anos a partir de julho de 2020. Pode-se duvidar, claro, se haverá no Brasil vontade e condições políticas de aproveitar a oportunidade de relançar o NBD. Mas ela existe, e há muitos profissionais no nosso país com experiência e capacidade para enfrentar o desafio. Não vamos abandonar a esperança de que existirá no governo e na sociedade brasileira a compreensão de que essa oportunidade não deve ser
desperdiçada. 1 Texto concluído em janeiro de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Jonnas Vasconcelos sem responsabilizá-lo pelas opiniões expressas ou pelos erros e omissões remanescentes. 2 “BRICS bank has been quite disappointing”. City Press, 2 de novembro de 2018. Disponível em: . 3 O Convênio Constitutivo pode ser encontrado na página do NBD na internet. Agreement on the New Development Bank. Disponível em: . 4 New Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021, p. 9. Disponível em: . 5 Convênio Constitutivo, artigo 11. Agreement on the New Development Bank. Disponível em: . 6 Ibid., artigo 12. 7 New Development Bank. Organization Structure. Disponível em: . O presidente e os vice-presidentes têm mandatos não renováveis de cinco anos, exceto os primeiros vice-presidentes, cujos mandatos são de seis anos. Ver em Convênio Constitutivo, artigo 13, Agreement on the New Development Bank. Disponível em: . 8 O Convênio Constitutivo do NBD, no seu artigo 12, prevê a possibilidade de transformar a Diretoria em residente, desde que o Conselho de Governadores assim decida por maioria qualificada (2/3 do poder de voto total dos membros). 9 Roy Harrod, The Life of John Maynard Keynes. Nova York/Londres: W.W.Norton & Company, 1982 (1ª edição: 1951), p. 632-5. 10 Leonardo Martinez-Diaz. “Executive Boards in international organizations: lessons for strengthening IMF governance”. Independent Evaluation Office of the IMF, IEO Background Paper, BP/08/08. Revisto em maio de 2008, p. 16. 11 New Development Bank. Investor Relations – Borrowings. Disponível em: . 12 Quando mencionei esse aspecto da nossa atuação inicial, numa reunião no Banco Mundial, em Washington, com representantes de todos os principais bancos multilaterais de desenvolvimento, a plateia irrompeu em palmas, algo pouco usual em reuniões desse tipo. Virei para um dos assessores que me acompanhavam e comentei: o que será que estamos fazendo de errado? 13 A aprovação definitiva pelo Conselho de Governadores ocorreu em junho de 2017, depois de alguns ajustes adicionais no texto. O documento pode ser encontrado na página do banco. New Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021. Disponível em: . 14 New Development Bank. Terms, Conditions and Procedures for the Admission of New Members. Disponível em: . As discussões da estratégia e dos planos para a entrada de novos deram-se a partir de minutas e revisões preparadas pela vice-presidência brasileira. As várias rodadas de contatos com potenciais novos membros também foram organizadas por nós. Contei para isso com o apoio de uma pequena equipe em que se destacaram os economistas Zhan Shu e Fábio Najjarian Batista, especialmente este último. Muito importante para a elaboração do documento de estratégia foi a contribuição de um consultor externo: Christopher Humphrey, um dos principais estudiosos dos bancos multilaterais de desenvolvimento. 15 Convênio Constitutivo, artigo 2. Agreement on the New Development Bank. Disponível em: .
16 New Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021, p. 11-13. Disponível em: . 17 Ibid., p. 12. 18 Ibid., p. 3, 10 e 15. 19 Ver, por exemplo, Christopher Humphrey. Infrastructure finance in the developing world: challenges and opportunities for multilateral development banks in 21st century infrastructure finance. Intergovernamental Group of Twenty Four & Global Green Growth Institute, Working Paper Series, junho de 2015, seção 4.1. 20 New Development Bank. NDB’s General Strategy: 2017-2021, p. 3, 11, 15 e 16. Disponível em: . 21 Em cada projeto, o NBD verificaria ex ante a qualidade dos sistemas nacionais do país tomador nas áreas ambiental, social, fiduciária e de licitação. Se os sistemas do país fossem considerados insuficientes, o NBD estabeleceria requisitos adicionais, adaptados às necessidades específicas de cada projeto. Ibid., p. 15-6. 22 Ibid., p. 4, 26 e 34. 23 O primeiro escritório regional foi estabelecido, como previsto no Convênio Constitutivo (artigo 4), na África do Sul, em Johanesburgo. 24 Ver neste livro p. 259-60. 25 Convênio Constitutivo, artigo 6. Agreement on the New Development Bank. Disponível em: . 26 Na verdade, o vice-presidente russo se comportava, sem muito disfarce e de forma bem tosca, como se fosse um diretor residente da Rússia, e não um integrante da Administração. Num momento de exasperação, o vice-presidente chinês chegou a dizer, em reunião da Administração, que ele estava se comportando como “agente russo” dentro do banco. Esse comportamento representava aberta violação do Convênio Constitutivo e dos contratos assinados por nós ao ingressar no NBD. O Convênio Constitutivo estabelece que o presidente, os vice-presidentes e o staff do banco, na execução de suas responsabilidades, devem lealdade inteiramente ao banco e a nenhuma outra autoridade (artigo 13). Os contratos dos presidentes e vice-presidentes continham disposição equivalente, não diferindo nesse particular do modelo usual dos organismos multilaterais. Eu redigira as primeiras minutas dos contratos do presidente e dos vice-presidente e seguira, em larga medida, o formato adotado no FMI e no Banco Mundial. 27 Ver neste livro p. 235-7. 28 Ver neste livro p. 284-7. Ver, também, a nota que redigi à época da minha saída do banco: “Note on the situation of the New Development Bank, established by the BRICS, and the treatment given to the Brazilian vice-president”, 15 de outubro de 2017, p. 4-5. Disponível em: . A análise mais detalhada do processo interno que levou à minha demissão está em um dos capítulos de uma tese de doutorado da USP, que inclusive traz em anexo vários documentos internos pertinentes. Ver Jonnas Vasconcelos. BRICS: agenda regulatória. 2018. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p.183-194 e anexos B, C, D, E, F. Disponível em: . 29 Outros diplomatas que tiveram participação importante no processo BRICS, em diferentes períodos desde 2008, foram Marcos Galvão, Fernando Pimentel, José Gilberto Scandiucci, José Alfredo Graça Lima e Flávio Damico. 30 Ver comunicado dos líderes dos BRICS. Sixth BRICS Summit – Fortaleza Declaration, 15 de julho de 2014, p. 12. Disponível em: . 31 Convênio Constitutivo, artigo 12. Agreement on the New Development Bank. Disponível em: . 32 Para alguns detalhes sobre o background e a atuação desse funcionário, especialmente suas ligações com os Estados Unidos, ver Paulo Nogueira Batista Jr., “Note on the situation of the New Development Bank”.
op. cit., p. 2-4. 33 New Development Bank. Investor Presentation, outubro de 2018, p. 25-27. Disponível em: . Uma descrição sumária de cada um dos projetos pode ser encontrada em Id., List of All Projects. 34 Id., “NDB’s lending commitment in 2018 increased by 167%, bringing aggregate approved volume to USD 8 billion”, nota à imprensa, 29 de dezembro de 2018. 35 A baixa qualidade da representação do Brasil na Diretoria se refletiu também na pequena presença de brasileiros no NBD, especialmente nos escalões mais altos do staff. Cabe notar, contudo, que há outras razões para o pequeno número de brasileiros no banco, notadamente os altos salários pagos no sistema financeiro nacional e a distância de Xangai em relação ao Brasil, o país-membro fisicamente mais distante da sede. 36 New Development Bank, Investor Presentation, outubro de 2018, p. 23. Disponível em: . O valor mencionado no texto é o estoque de empréstimos e adiantamentos (loans and advances) em 30 junho de 2018. É uma boa aproximação do fluxo de desembolsos acumulados nos primeiros três anos, uma vez que quase todos os empréstimos estão denominados em dólares e que não houve pagamento de principal no período (em razão do período de carência previsto nos contratos de empréstimo). A estratégia geral do banco, no cenário mais conservador, previa desembolsos acumulados de US$ 2,1 bilhões até 2018. Id., NDB’s General Strategy: 2017-2021, tabela 3, p. 19. Disponível em: . 37 A informação disponível, não mais do que alguns parágrafos por projeto, pode ser encontrada na já referida lista de projetos na página do NBD. 38 Id., Investor Presentation, op. cit., p. 25-6. No segundo semestre, foram aprovados mais dois projetos denominados em yuan. Id., “NDB’s lending commitment in 2018 increased by 167%, bringing aggregate approved volume to USD 8 billion”, op. cit. 39 O banco tampouco avançou muito em operações com o setor privado ou sem garantia soberana. Nos primeiros três anos, apenas dois projetos foram operações não soberanas, representando 8% do valor dos projetos aprovados; um deles foi um empréstimo à Petrobras. Outros 8% foram linhas de crédito aprovadas para instituições financeiras nacionais (BNDES) ou bancos multilaterais controlados pela Rússia. Operações soberanas ou com garantia soberana representaram 84% do valor total. Id., Investor Presentation, op. cit., p. 16 e 25-8. 40 New Development Bank, Investor Presentation, p. 10. Teria sido difícil igualar o resultado do AIIB que tinha um grande número e variedade de membros, incluindo todos os principais países desenvolvidos, com exceção do Japão e os Estados Unidos. Já o NBD tem apenas cinco membros, o que implica concentração de portfólio e de riscos; a ausência de países desenvolvidos também dificultou a obtenção de um triplo A. 41 Agreed minutes of the BRICS Ministerial meeting, Fortaleza, 15 de julho de 2014. Disponível em: . Nessa reunião, estabeleceu-se que a ordem de rotação dos presidentes do NBD seria Índia/Brasil/Rússia/África do Sul/China.
O BANCO DOS BRICS E A MINHA DEMISSÃO1
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), estabelecido pelos BRICS, é um projeto ambicioso. Pela primeira vez desde Bretton Woods, quando foram criados o Banco Mundial e o FMI, estabeleceu-se uma instituição financeira multilateral que pretende ter alcance global. Todas as instituições multilaterais criadas desde então têm alcance regional ou sub-regional (por exemplo, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco Asiático de Desenvolvimento, o Banco Africano de Desenvolvimento, o Banco Europeu de Investimentos e a Corporação Andina de Fomento). O NBD foi planejado para ser um dos maiores bancos multilaterais do mundo. Em 2022, seu capital integralizado (paid-in capital) deverá chegar a US$ 10 bilhões – se os sócios fundadores cumprirem o que está programado no Convênio Constitutivo. Com a entrada de novos países-membros, o capital integralizado do NBD poderia facilmente alcançar pelo menos US$ 13 bilhões – se forem superadas as objeções da Rússia, que resiste à entrada de novos membros. A Rússia teme a entrada de inimigos no banco e, submetida como está a um cerco financeiro externo, pretende valer-se do NBD como fonte de financiamento e não quer a concorrência de outros países tomadores de empréstimo. Para se ter uma ideia do que significa um capital integralizado de US$ 10 a 13 bilhões, basta lembrar que o Banco Asiático de Desenvolvimento conta com um capital integralizado de US$ 7 bilhões, o BID com US$ 6 bilhões, o Banco Africano de Desenvolvimento com US$ 5 bilhões. O Banco Mundial dispõe de US$ 16 bilhões e terá dificuldade em ampliar seu capital integralizado, em razão da resistência dos sócios majoritários, os americanos e europeus. A grande âncora do NBD é a China. O governo central em Beijing e o governo municipal de Xangai dão apoio sistemático e consistente ao banco. A China tem a visão estratégica de que é importante fazer todo o possível para que
o NBD e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Asian Infrastructure Investment Bank – AIIB) – os primeiros dois bancos multilaterais estabelecidos em solo chinês – sejam um sucesso. Ao mesmo tempo, a China respeita cuidadosamente a governança do NBD, em que os cinco países fundadores têm cada um 20% do capital e do poder de voto. Se o NBD não for bem-sucedido, não terá sido por falta de apoio do país-sede. O Brasil, desde o governo Dilma, ficou distante do NBD. O banco começou a operar em 2015 quando a crise no país absorvia a atenção do ministro da Fazenda, governador do Brasil no banco. Nem Joaquim Levy, nem Nelson Barbosa, nem Henrique Meirelles compareceram às reuniões do Conselho de Governadores. O Brasil é o único dos cinco membros que jamais se fez representar pelo governador em reuniões do NBD. Esse problema não era tão grave enquanto contávamos com profissionais na Diretoria, embaixadores que representavam o país com competência e conhecimento. Desde fins de 2016, entretanto, esses embaixadores foram substituídos por economistas com pouca experiência relevante. O diretor do Brasil passou a ser um economista oriundo do FMI, Marcello Estevão, que não tem experiência de governo nem de negociações multilaterais. A qualidade da representação do Brasil diminuiu. Como o Brasil detém, por acordo, a presidência da Diretoria por quatro anos, o despreparo do diretor brasileiro teve consequências negativas para o banco. A Diretoria, antes presidida por diplomata experiente, o embaixador Luís Balduino, passou a ser presidida por um amador. Em agosto de 2017, por motivos que não ficaram inteiramente claros, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn e o já mencionado diretor do Brasil resolveram desencadear a minha desestabilização. Eu tinha mandato até junho de 2021. Para me afastar, era necessário comprovar que eu infringira meu contrato e o código de conduta. Tratou-se então de buscar formas de me acusar. O presidente do NBD, o indiano K.V. Kamath, que não se destaca pela firmeza ou coragem, foi pressionado por esses funcionários brasileiros a acolher investigações contra mim. Montou-se então um circo. Duas investigações foram abertas: a) uma acusação de assédio moral contra um funcionário brasileiro, Sergio Suchodolski, cuja demissão eu havia recomendado em razão de seu fraco desempenho; e b) uma acusação de quebrar o código de conduta ao publicar alguns artigos no Brasil. O banco deu um mergulho na arbitrariedade. As investigações foram conduzidas de forma leviana e atabalhoada, atropelando procedimentos internos
e desrespeitando repetidamente o vice-presidente brasileiro. As acusações eram frágeis, para dizer o mínimo, e eu as desmontei, uma a uma, por escrito. Para culminar, o presidente do NBD convocou, pelas minhas costas, quando eu estava em viagem de trabalho, uma reunião da Diretoria que tomou decisões graves a meu respeito – sem que me fosse dada a oportunidade de defesa. Fui condenado por quebrar o código de conduta em alguns artigos de jornal, e a Diretoria aprovou uma recomendação de demissão ao Conselho de Governadores. Fui também suspenso – sem que me fossem explicadas as razões. Submeteram-me a uma série de humilhações. Todos os meus voos e reservas de hotel foram cancelados para a viagem em curso. Meus funcionários foram instruídos a não fazer contato comigo. Fui proibido de contatá-los. Fui proibido de entrar no banco e minha sala foi lacrada. Tudo isso sem nenhuma explicação. Em outubro, o Conselho de Governadores aprovou a minha demissão. Fiquei contente de voltar ao Brasil, depois de mais de dez anos no exterior, mas triste, claro, com a maneira como fui tratado. Preocupam-me, mais do que o que ocorreu comigo, os sinais de que um banco que foi criado para inovar e estabelecer padrões diferentes, inclusive éticos, tenha afundado em comportamentos viciados e descido a níveis tão baixos no tratamento dispensado a um vice-presidente. Sinal, talvez, de que o NBD não será bem-sucedido. Espero que não. Dediquei muitos anos da minha vida ao processo BRICS, desde muito antes da minha ida para Xangai, e ainda desejo que a principal realização dos BRICS – a criação de um novo banco de desenvolvimento – tenha todo o sucesso com que sonhamos. 1 Publicado originalmente no Valor Econômico, em 19 de outubro de 2017.
CAPÍTULO 3 Nação, nacionalismo, caráter nacional
NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO1
“A independência é para os povos o que a liberdade é para os indivíduos.” Charles de Gaulle2
O nacionalismo é um tema de grande complexidade, repleto de armadilhas, emoções, sutilezas e ambiguidades. Como imaginar tratá-lo de forma serena e equilibrada, no plano exclusivamente racional ou científico? Elementos de outras ordens estão sempre presentes: sentimentos, afetos, impulsos e, com eles, uma dose inevitável de arbitrariedade. Começo com uma observação aparentemente extravagante: “A ‘humanidade’ não avança, ela nem sequer existe.” A observação é de Nietzsche e aparece em fragmento publicado postumamente, como parte de uma breve polêmica contra o iluminismo oitocentista e seus sucessores.3 O aperfeiçoamento da humanidade, pelas luzes, pela razão, pela superação das superstições medievais era uma ideia força do iluminismo, particularmente da sua versão mais prática, política, que predominou na França do século XVIII. Mas, como falar em progresso da humanidade, se ela sequer existe? Nietzsche lançou esse aforismo desacompanhado de maiores explicações. É normal – profetas não argumentam. A sua observação pode dar margem a diversas interpretações e aplicações. Gostaria de propor uma, socorrendo-me em parte de um dos mais importantes intérpretes atuais de Nietzsche, Wolfgang Müller-Lauter.4 A bem da verdade, devo dizer que, para meus propósitos estreitamente nacionalistas e brasileiros, vou me valer de um filósofo declaradamente antinacionalista e que tinha, em especial, verdadeiro horror do nacionalismo alemão da sua época, o nacionalismo bismarckiano-wagneriano das décadas finais do século XIX. “Humanidade” é uma daquelas abstrações inócuas, um conceito universal vazio, “a última fumaça da realidade evaporada”, para lançar mão de outra expressão de Nietzsche, utilizada por ele em obra publicada ainda em vida.5 Não se pode dizer o mesmo do conceito de nação. Eis aí um conceito, que mobiliza,
emociona, encanta e fascina. É mais bandeira, estandarte, que apenas conceito. E, no entanto, não deixa de ser também um conceito abstrato, uma “ideia”. A nação pode ser entendida como um subconjunto da humanidade; pode-se dizer, por exemplo, “a humanidade está dividida em nações”, proposição que não leva muito longe. Onde reside a diferença? Por que o conceito de nação é polêmico, mobilizador, vivo, ao passo que o de humanidade parece estéril, vazio e tende a provocar certo tédio? Parece evidente que a diferença não reside simplesmente no grau de abstração ou de abrangência. A humanidade não existe porque nada se contrapõe a ela. Já as nações são entidades que interagem em situações de conflito ou cooperação. “Vontades de poder”, para usar a linguagem de Nietzsche, que alternam relações de confronto e aliança. A relação subordinada é a de identidade/aliança/cooperação; a relação dominante é a de contradição/conflito/competição. As nações se contrapõem, se enfrentam não só em tempos de guerra como em tempos de paz. A cooperação surge em função da disputa. “A solidariedade se faz na luta”, dizia Unamuno,6 esse cristão agônico – e nietzschiano malgré lui même.
Nacionalismo, liberalismo e socialismo O nacionalismo não é um humanismo. Levado a ferro e fogo, ele é intrinsecamente antagônico às duas outras grandes ideologias políticas e econômicas dos séculos XIX e XX: o liberalismo e o socialismo. Esses dois grandes adversários históricos, cada um à sua maneira herdeiros da tradição humanista e iluminista, têm pelo menos um traço comum: o internacionalismo e, mais do que isso, o antinacionalismo. O nacionalismo moderno tem raízes na reação romântica ao iluminismo, mais especificamente na revolta do romantismo alemão contra as pretensões universalizantes do iluminismo francês.7 Na origem tanto do liberalismo como do socialismo, nota-se no mínimo indiferença – quando não hostilidade explícita – ao nacionalismo, considerado pelos fundadores de ambas as correntes como um anacronismo. Smith polemizava contra o nacionalismo econômico dos mercantilistas; Marx atacava List.8 O parágrafo anterior pode causar certa surpresa. No século XX, não foram raros os episódios de aliança ou sincretismo entre nacionalismo e socialismo ou entre nacionalismo e liberalismo. Por exemplo, no nazismo alemão, a começar pelo nome completo do partido: National Sozialistische Deutsche Arbeiter Partei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). É claro que a tônica do nazismo era o nacionalismo, na sua vertente mais agressiva, mas havia
também importantes elementos trabalhistas e coletivistas. Outro exemplo: na União Soviética, onde Marx reinava como grande referência intelectual, econômica e política, o nacionalismo teve papel crucial. Stalin tornou-se com o tempo um grande nacionalista russo, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial.9 Logo ele, diga-se de passagem, que nem russo era. Sem a mobilização do sentimento nacional, a sua vitória contra Hitler não teria sido possível. Depois da Segunda Guerra, o que se viu nos movimentos de oposição aos governos de alguns satélites soviéticos na Europa Oriental foi uma aliança entre liberalismo e nacionalismo. Era a aliança natural em nações que, depois de terem sido ocupadas militarmente pela União Soviética na fase final da guerra, foram forçadas a adotar o modelo econômico socialista, de economia centralmente planificada. Já na América Latina, o mais comum foi a aliança entre nacionalistas e socialistas. Dada a influência incontrastável dos EUA na nossa região, principalmente depois de 1945, os marxistas e comunistas latinoamericanos estavam mais do que predispostos a juntar-se a forças nacionalistas e a adotar a retórica antiamericana. Portanto, nos tempos da Guerra Fria, o nacionalismo era de esquerda no Brasil; de direita, na Polônia. O fator explicativo é a natureza do sistema econômico da potência dominante na região: EUA no primeiro caso; Rússia/União Soviética no segundo. A coloração direita/esquerda é acidental, não essencial ao nacionalismo. Fica evidente, portanto, que o nacionalismo é um fenômeno histórico e não um valor universal e atemporal. Não faz sentido inventar uma axiologia em que a Nação, com “n” maiúsculo, seja considerada o valor supremo. Exageros desse tipo podem ser o primeiro passo para a perversão do nacionalismo e sua transformação em xenofobia e motivo para agressões e guerras externas. O nacionalismo também é um fenômeno espacialmente condicionado. A sua natureza varia não só ao longo do tempo, mas de país para país e de região para região do mundo. O nacionalismo das grandes potências, por exemplo, resvala facilmente para o imperialismo. O mesmo pode acontecer nas relações econômicas e políticas entre países em desenvolvimento e seus vizinhos menores e mais vulneráveis. Ao longo da história, o próprio Brasil já foi acusado de nação “subimperialista” por alguns países sul-americanos. Mas, nos países em desenvolvimento, o nacionalismo adquire geralmente um caráter defensivo, de preservação da autonomia econômica, política e cultural em face das investidas de nações mais adiantadas e poderosas.
Alternativas ao nacionalismo?
No período posterior à Segunda Guerra, o nacionalismo ficou estreitamente ligado à aspiração do desenvolvimento econômico. Países como o Brasil tentavam, à sua maneira, refazer a trajetória de outros late comers, em outros períodos históricos – a Alemanha, os EUA, a Rússia e o Japão no século XIX, por exemplo.10 Historicamente, o desenvolvimento esteve sempre associado a um processo de catching up,11 de equiparação ao nível de desenvolvimento de nações mais avançadas econômica, tecnológica e militarmente. É no espaço nacional que se articula o esforço de recuperação desse atraso relativo.12 Nesse sentido, a expressão “desenvolvimento nacional” é quase uma redundância. Quase porque em determinadas circunstâncias, relativamente raras, o desenvolvimento pode resultar de uma ação regional em que nações geográfica e culturalmente próximas se aliam para buscá-lo em um processo de integração profunda de suas economias e instituições. O desenvolvimento das economias periféricas da União Europeia é o caso mais conhecido, talvez único. Existem alternativas ao nacionalismo? Outros caminhos para o desenvolvimento econômico e a melhora das condições de vida na periferia da economia internacional? Em certos meios de esquerda, deposita-se alguma esperança na ação transnacional dos trabalhadores e dos movimentos sociais. Seria a “globalização do trabalho”, contraposta à “globalização do capital”. A viabilidade dessa alternativa é muito limitada, uma vez que existem divergências fundamentais de interesse entre os trabalhadores do centro e da periferia. Os primeiros se opõem à livre circulação internacional do trabalho; constituem parte importante das forças políticas que sustentam as restrições à imigração na União Europeia, nos EUA e em outras nações desenvolvidas. Não querem imigrantes oriundos da América Latina, da Ásia ou da África concorrendo com eles nos seus mercados nacionais de trabalho. Os trabalhadores dos países desenvolvidos inclinam-se também ao protecionismo e apoiam, em geral, restrições à importação de produtos fabricados nas economias em desenvolvimento. É o protecionismo “politicamente correto”, que justifica os limites à importação com alegações de que as empresas exportadoras desses países danificam o meio ambiente ou não respeitam os direitos dos trabalhadores. Já os trabalhadores da periferia gostariam de ter o direito de migrar para países desenvolvidos e buscar melhores condições de remuneração e trabalho nas nações mais avançadas. Se pudessem opinar, defenderiam a liberalização dos mercados de trabalho. Além disso, eles são diretamente prejudicados, em termos de oportunidades de emprego e de nível salarial nos seus países de origem, pelas medidas que restringem o acesso das exportações da periferia aos mercados do
centro. Em suma, a palavra de ordem de Marx e Engels – “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos!” – continua não ressoando. A defesa dos interesses dos trabalhadores ainda depende, fundamentalmente, do que pode ser realizado no âmbito nacional ou, no máximo, regional – quando existir um projeto sólido de integração entre nações geográfica e politicamente próximas. O desenvolvimento também não pode ficar na dependência da cooperação entre nações, da boa vontade dos países mais adiantados e da iniciativa dos Estados no plano internacional. O comportamento dos mais adiantados, que poderiam em tese liderar uma ação conjunta em prol do desenvolvimento, raramente confirma essas esperanças de solidariedade. Os Estados nacionais dos países desenvolvidos seguem as forças locais e seus interesses. Respondem primordialmente a seus eleitorados e a pressões domésticas. A cooperação internacional está mais presente na retórica do que na prática dos Estados. Um aspecto nem sempre lembrado é a relação entre nação e democracia. Com todas as suas imperfeições e limitações, que são muitas, a democracia só existe no plano nacional ou infranacional. Não existe democracia no plano internacional. Os organismos multilaterais são todos não democráticos, em maior ou menor medida. Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e mesmo as Nações Unidas são estruturas oligárquicas, controladas por um número pequeno de países desenvolvidos. No plano internacional, estamos na fase do voto censitário. O poder de voto e de decisão nas organizações multilaterais está estreitamente vinculado ao poder econômico. É válido, evidentemente, continuar o esforço para aumentar a representatividade dessas entidades e a influência dos países em desenvolvimento sobre suas agendas e iniciativas. Mas sem ilusões. Não estão ao nosso alcance mudanças profundas, que permitam transferir para a órbita internacional as decisões cruciais para o processo de desenvolvimento.
Sotaque espiritual O nacionalismo é, na prática, a única alternativa. Nos países menos desenvolvidos, o projeto nacional está sujeito, entretanto, a contestações permanentes. Não raro, a contestação doméstica é mais agressiva e perigosa do que a estrangeira. O nacionalismo sofre então uma espécie de erosão interna. Grande parte das elites nacionais mostra-se inclinada a formas subordinadas de inserção internacional, atuando, de modo consistente, para bloquear a formulação e implementação de um projeto autônomo de desenvolvimento.
Essa atuação de parte das elites locais obedece, obviamente, a motivações econômicas concretas. As nações hegemônicas operam de forma a beneficiar aqueles que se dispõem a cooperar com os seus projetos de poder. Mas não se deve subestimar o papel de influências ideológicas e fatores de ordem subjetiva. O poder se exerce não apenas nos planos econômico, político e militar, mas também – e de forma crucial – no terreno das ideias, das ideologias, das imagens, da cultura. Não há hegemonia que possa prescindir do chamado soft power. Um elemento central dessa estrutura de poder é o treinamento – adestramento talvez seja a palavra mais adequada – das elites da periferia nas universidades dos países centrais, nas suas instituições financeiras e em organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial. É uma antiga tradição imperial. Os romanos transplantavam os filhos dos líderes das tribos germânicas para Roma, onde eram devidamente aculturados. Retornavam à sua terra natal na condição de integrantes leais e assimilados do Império Romano.13 O treinamento ou adestramento das elites periféricas tem uma dupla dimensão. Envolve não só a transmissão de conhecimentos, técnicas e experiência internacional, como também de valores e padrões de comportamento. Forma-se assim uma “tecnocracia apátrida”, na expressão de Charles de Gaulle,14 mais identificada psicológica e emocionalmente com as nações adiantadas do que com seus próprios países de origem. A preservação do atraso e da dependência passa a ser articulada por dentro, sem sotaque físico, porém com um tremendo sotaque espiritual, diria Nelson Rodrigues. Essa dominação indireta, que se faz por meio de prepostos locais, é menos transparente e, assim, mais eficiente do que os métodos coloniais tradicionais. Os economistas têm dado uma contribuição especialmente nociva. Em muitos países periféricos, os cargos mais importantes e as alavancas decisórias nos ministérios de Finanças, do Planejamento e nos bancos centrais acabam nas mãos de uma rede de economistas e outros profissionais que têm “trânsito em Washington”, mas pouca identificação real com as nações que supostamente governam e representam. É o caminho para perpetuar a dependência e o subdesenvolvimento. 1 Versão revista e condensada de texto publicado na revista Novos Estudos CEBRAP, n. 77, março 2007. 2 Alain Peyrefitte. C’était de Gaulle. Paris: Éditions de Fallois & Fayard, 1994, p. 286. 3 Friedrich Nietzsche. Nachgelassene Fragmente, 1887-1889. In: Kritische Studienausgabe, vol. 13, editado por Giorgio Colli & Mazzino Montinari. München: DTV/de Gruyter, 1988, p. 408.
4 Wolfgang Müller-Lauter. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 1997. Ver também Scarlett Marton. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial & Editora Unijuí, 2000, p. 171-201. 5 Friedrich Nietzsche. Götzen-Dämmerung, 1ª edição: 1889, republicado em Friedrich Nietzsche – Werke III, editado por Karl Schlechta. Frankfurt am Main: Ullstein, 1972, p. 404. 6 Miguel de Unamuno. A agonia do Cristianismo. 1ª edição: 1930, São Paulo: Edições Cultura, 1941, p. 43. 7 Johann Gottfried Herder. Another Philosophy of History and Selected Political Writings, 1ª edição: 1774, Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2004; e Isaiah Berlin. The Crooked Timber of Humanity. Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 218-37, 243-54. 8 Em texto pouco conhecido, Marx fez um ataque veemente e violento à principal obra de List: Karl Marx. Draft of an Article on Friedrich List’s Book: Das Nationale System der Politischen Oekonomie, 1845. Disponível em: . 9 Ver, por exemplo, Isaac Deutscher. Stalin. Bungay: Pelican Books, 1966; e John Lukacs. June 1941: Hitler and Stalin. New Haven: Yale University Press, 2006. 10 Ver Thomas C. Smith. Political Change and Industrial Development in Japan: Government Enterprise, 1868-1880. Stanford: Stanford University Press, 1955; Alexander Gershenkron. Economic Backwardness in Historical Perspective. Boston: Harvard University Press, 1962; e Id., Europe in the Russian Mirror: Four Lectures in Economic History. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. 11 Ver Georg Friedrich List. Sistema nacional de economia política, 1ª edição: 1841, São Paulo: Nova Cultural, 1986; e Ha-Joon Chang. Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective. Londres: Anthem Press, 2002. 12 Luiz Carlos Bresser-Pereira. “Estratégia nacional de desenvolvimento”. Revista de Economia Política, vol. 26, n. 2 (102), abril/junho 2006, p. 221-23. 13 Steven Ozment. A Mighty Fortress: a New History of the German People. Londres: Granta Books, 2006, p. 20. 14 Alain Peyrefitte. C’était de Gaulle. Paris: Éditions de Fallois & Fayard, 1994, p. 69.
NAÇÃO VERSUS GLOBALIZAÇÃO1
Quando fui pesquisador visitante no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP), em 1996-1998 e novamente em 20022004, escrevi sobre diversos temas relacionados à economia brasileira e sua inserção internacional, entre eles a “globalização” e suas implicações para os Estados nacionais. Para abordar temas como esse, convém não perder de vista a advertência de Nietzsche de que “existem mais ídolos do que realidades no mundo”. Nos trabalhos que realizei no IEA/USP, procurei ressaltar que há muito exagero quanto ao alcance, novidade e suposta irreversibilidade da chamada globalização desde as décadas finais do século XX. Propagaram-se ficções e mitos sobre a economia internacional, cuja função prática tem sido a de facilitar o avanço dos interesses dos países mais desenvolvidos e suas grandes empresas, enfraquecendo as resistências nacionais e locais sob o argumento de que qualquer oposição à “globalização”, onda inexorável do futuro, é quixotesca e está fadada ao insucesso. No início do século XXI, com o ressurgimento do nacionalismo em muitos países, inclusive vários dos mais avançados, a questão da “globalização” passou a ser vista com outros olhos. Neste novo contexto, o professor Alfredo Bosi, editor da revista Estudos Avançados do IEA/USP, me pediu que voltasse a tratar do tema, respondendo por escrito a uma série de perguntas que a revista me enviou. Estudos Avançados – Qual o papel que o nacionalismo pode exercer nos dias de hoje? O nacionalismo é uma força histórica muito poderosa, que está longe de esgotada. Para os países da periferia do mundo, o nacionalismo é um instrumento de mobilização provavelmente imprescindível para a superação do atraso e do subdesenvolvimento, como parece indicar a experiência histórica, recente e remota. Digo “parece”, porque as chamadas lições da história nunca são muito claras e estão sempre abertas a interpretações divergentes. “Não há
fatos, só interpretações”, dizia Nietzsche. Feita essa ressalva, na América Latina há casos de países que abraçaram com fervor as doutrinas “globalitárias” e não foram nada bem-sucedidos. A Argentina dos anos 1990 é o exemplo mais dramático e mais conhecido. Os países menos desenvolvidos precisam, no meu entender, tomar distância de ideologias antinacionais, cosmopolitas ou “globalizantes” – e vários já começaram a fazê-lo. Como escreveu Euclides da Cunha no final do século XIX, “o cosmopolitismo é o regime colonial do espírito”. Esse regime colonial custa a morrer, mas não vai durar para sempre. Estudos Avançados – Em face da globalização, é possível dizer que o nacionalismo não faz mais sentido, ou pode-se ainda constatar, por trás das multinacionais, a força de nações economicamente privilegiadas? Continuo com a opinião de que há muito exagero nessas discussões sobre a chamada globalização. A internacionalização das economias não é, em geral, tão abrangente, inédita e irreversível quanto sugerem as interpretações mais divulgadas. O próprio termo “globalização” parece um tanto forçado, como procurei mostrar em trabalho publicado nesta revista2 e em alguns capítulos dos meus dois últimos livros.3 Talvez só na área financeira o termo “globalização” possa se aplicar com propriedade, sem induzir a erros e ilusões. O ceticismo quanto ao alcance da internacionalização tem sido expresso por diversos autores.4 Em todo o caso, aceite-se ou não o termo “globalização” como descrição adequada do quadro internacional, o papel do Estado nacional continua crucial, nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. Ninguém pode abrir mão do Estado nacional. Não existem instâncias supranacionais capazes de substituí-lo. E os mercados não funcionam sem Estado. Nota-se certa duplicidade dos países desenvolvidos. Eles são, como se sabe, a fonte e a origem das teorias econômicas liberais. É o que se ensina nas suas universidades, é o que se propaga mundo afora por meio das entidades multilaterais controladas por esses países, notadamente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. E, no entanto, a prática desses países diverge marcadamente da teoria liberal. Em todos os países avançados, o Estado atua de forma importante nas áreas econômica e social, complementando e corrigindo os mercados. A reação liberal, capitaneada por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher no Reino Unido, não conseguiu reverter inteiramente a tendência de aumento do papel do Estado, que remonta ao início do século XX e se intensificou depois da Grande Depressão da década de 1930.
Como costumava dizer James Tobin, quem venceu a Guerra Fria não foram economias puras de mercado, mas economias mistas, com forte participação do Estado.5 A presença do Estado nacional se nota, por exemplo, na atuação das empresas “multinacionais” ou “transnacionais”, outro termo enganoso, no meu entender. A maior parte das empresas que atuam internacionalmente possui uma base nacional, um centro de gravidade nacional claramente identificável. São geralmente empresas nacionais, que têm forte presença no exterior ou atuam em escala mundial. As exceções são as grandes corporações de pequenos países desenvolvidos, como a Suíça, a Suécia ou a Finlândia. Os Estados nacionais dos países desenvolvidos não se enganam quanto a isso e atuam frequentemente em defesa das suas multinacionais. Essas empresas também têm uma dupla face: por um lado, querem ser vistas como “globais” para não suscitar reações nacionalistas nos países onde investem; por outro, não têm constrangimento algum em recorrer ao apoio do seu Estado nacional quando se trata de disputar concorrências e contratos no exterior, abrir mercados e derrubar barreiras à sua atividade. A atuação dos governos dos Estados Unidos e demais países desenvolvidos na Organização Mundial do Comércio (OMC) e em negociações comerciais bilaterais ou plurilaterais está em larga medida pautada pela defesa dos interesses das suas corporações “multinacionais”,6 como ressaltou, por exemplo, Joseph Stiglitz. Estudos Avançados – Existe alguma relação positiva ou negativa entre políticas nacionalistas e democracia? Nacionalismo e democracia nem sempre andam juntos, como se sabe, mas são perfeitamente compatíveis. Diria que são complementares. Um projeto nacional sem base democrática não é sustentável no longo prazo. Nação sem povo é um conceito vazio. O povo precisa se identificar com a nação, sentir-se representado e considerado nas ações do Estado nacional. E essa identificação pressupõe democracia. A existência de um regime democrático aumenta as chances de que as políticas do Estado nacional levem em conta os interesses da maioria. O voto é um contrapeso, ainda que precário, ao poder do dinheiro. Além disso, não se deve perder de vista que a democracia, com todos os seus defeitos e limitações, só é possível no âmbito nacional. Não há democracia no plano internacional. As organizações multilaterais são entidades oligárquicas, em maior ou menor grau, dominadas por um grupo pequeno de países desenvolvidos. Estamos lutando para aumentar a influência de países em
desenvolvimento nos organismos internacionais, mas é um processo difícil e lento. Foi o que voltei a constatar, por experiência direta, quando passei a integrar a Diretoria Executiva do Fundo Monetário Internacional, representando o Brasil e outros países. É tremenda a força da inércia em instituições como o FMI. Estudos Avançados – A integração dos mercados sul-americanos é uma forma superior de nacionalismo entre as nações em desenvolvimento? Essa talvez seja uma das principais diferenças entre o nacionalismo atual e o de décadas anteriores na nossa região. Há uma ênfase maior na integração sulamericana, uma compreensão de que a atuação conjunta dos países é uma alavanca importante nas atuais condições internacionais. O Brasil até poderia desenvolver seu projeto nacional individualmente, pois tem tamanho para isso. Mas em conjunto com os vizinhos, ou com boa parte deles, o nosso poder de fogo é maior. Note-se que estamos falando de América do Sul e não mais de América Latina, como nos tempos de Raúl Prebisch, de Celso Furtado e da Cepal. O processo de incorporação do México e da América Central ao espaço econômico dos Estados Unidos avançou muito – América Latina deixou de ser um conceito politicamente operativo, no meu entender. 1 Versão condensada de entrevista publicada na revista Estudos Avançados, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, v. 22, n. 62, janeiro/abril 2008. 2 Paulo Nogueira Batista Jr. “Mitos da globalização”. Estudos Avançados. Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, v. 12, n. 32, janeiro/abril 1998. 3 Id., A economia como ela é…, 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 37-71; e O Brasil e a economia internacional: recuperação e defesa da autonomia nacional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 3-31. 4 Ver, por exemplo, Dani Rodrik. One Economics, Many Recipes: Globalization, Institutions, and Economic Growth. Princeton: Princeton University Press, 2007, p. 196-8. 5 James Tobin. Full Employment and Growth: Further Keynesian Essays on Policy. Cheltenham: Edward Elgar, 1996, p. 181. 6 Ver, por exemplo, Joseph E. Stiglitz & Andrew Charlton. Fair Trade for All: How Trade Can Promote Development. Nova York: Oxford University Press, 2005; e Joseph E. Stiglitz. Making Globalization Work. Nova York: W.W. Norton, 2006.
A MARSELHESA BRASILEIRA1
O Brasil tem outro hino nacional, leitor, extraoficial, subterrâneo, mas que bem poderia ser oficializado – e aí vai uma sugestão – como hino da democracia brasileira. Refiro-me à canção de Geraldo Vandré – Pra não dizer que não falei das flores. Foi o canto de guerra dos que se insurgiram contra o regime militar em 1968 e nos anos seguintes. Era a trilha sonora da luta contra a ditadura, a nossa Marselhesa, como bem disse Nelson Rodrigues. Sua execução foi proibida durante anos. Mas, agora, passado tanto tempo, arrisco dizer que nem os militares, ou nem todos eles, não a maioria, se ofenderiam com a minha sugestão. Fui reler a letra. Ela é de uma delicadeza tipicamente brasileira. A delicadeza começa no título, na referência irônica às flores, que reaparecem na letra algumas vezes como contraponto suave ao refrão: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. As flores entram como uma espécie de segundo refrão, contraposto ao primeiro e, também, às armas: “Pelos campos há fome em grandes plantações Pelas ruas marchando indecisos cordões Ainda fazem da flor seu mais forte refrão E acreditam nas flores vencendo o canhão”. As flores simbolizam uma hesitação, uma crença provavelmente ilusória nas soluções pacíficas. Mas fica tudo um pouco no ar. As flores não são frontalmente rejeitadas, ainda que, no verso final, terminem “no chão”, superadas por uma “nova lição”. E elas dão o título à canção, embora com a ambivalência de uma dupla negativa. O verso considerado mais ofensivo às forças armadas era o seguinte: “Há soldados armados, amados ou não Quase todos perdidos, de armas na mão Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição De morrer pela pátria e viver sem razão”. Hoje, isso parece tão puro, tão inofensivo. Tanto mais que, na sequência, os adversários do regime também são chamados de “soldados”:
“Nas escolas, nas ruas, campos, construções Somos todos soldados, armados ou não Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais braços dados ou não”. Enfim, uma bela canção. Como escreveu Nelson Rodrigues, enquanto outros imitavam os estudantes franceses, Vandré era de “uma fascinante originalidade. […] Não há um verso que não seja dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas”. Mas Nelson queixava-se, sem nenhuma razão, que nem o Brasil, nem o brasileiro entravam na canção de Vandré. Ora, o Brasil e o brasileiro estão inteirinhos ali. Primeiro na música que, segundo o próprio Nelson, “era embaladora, suavíssima, quase uma berceuse. Nunca se viu uma “Marselhesa” tão pouco “Marselhesa”, tão anti-“Marselhesa”, dizia ele. Nelson quis ver uma incompatibilidade total entre letra e música. Mas a letra, repito, é de uma suave ambiguidade. Há flores de ponta a ponta, ainda que cobertas de ceticismo. E não corre sangue, nem há chamamento às armas. Basta compará-la à Marseillaise, o hino da França, que no seu refrão chama os cidadãos às armas, a “formar batalhões” e a marchar, marchar, fazendo “o sangue impuro” dos inimigos encharcar os campos da pátria. Pra não dizer que não falei das flores é Brasil do começo ao fim. Por isso, ela bem que poderia ser declarada o “Hino da Democracia Brasileira”. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 8 de setembro de 2007.
AMAZÔNIA – DE QUEM É?1
Há alguns anos, quando eu era pesquisador visitante no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), um general do exército foi convidado para proferir palestra sobre a Amazônia. Já não me recordo, infelizmente, do nome do conferencista e nem tenho certeza se ele era mesmo um general ou oficial de outra patente. Mas não importa. O que ficou na minha lembrança foram suas palavras iniciais. Assim começou o palestrante: “A Amazônia não é do Brasil.” Pausa para efeito dramático. E continuou: “A Amazônia é Brasil.” Depois de um começo desses, um conferencista não precisa, a rigor, dizer mais nada. Pode se sentar e aceitar os aplausos merecidos da plateia. A sequência ironicamente sugerida ou insinuada pela afirmação inicial do general é aquela frase repetida por muitos otários, inclusive brasileiros, falsos brasileiros: “A Amazônia é da humanidade.” Ora, como dizia Nietzsche, “a humanidade não existe”. A “humanidade” é frequentemente uma cortina de fumaça para os interesses e as prioridades dos países desenvolvidos, especialmente as velhas potências – os Estados Unidos e as nações da Europa Ocidental. Esses países vêm destruindo o meio ambiente há mais de século. Agora, se puderem, transformarão a Amazônia em “patrimônio da humanidade”, a ser preservada para benefício geral. O Brasil e os outros países da Bacia Amazônica têm que abrir os olhos, portanto. É preciso reconhecer o seguinte – brasileiro não entende nada de Amazônia. Não percebe que “a Amazônia é Brasil” – e não uma colônia ou uma vasta propriedade do país. Um dos aspectos menos conhecidos do nosso complexo de vira-lata é uma certa relutância em relação à selva amazônica, suposta lembrança da nossa condição “semisselvagem, incivilizada”. No exterior, ao contrário, a floresta tropical é muito valorizada e sempre ocupou grande parte do imaginário sobre o nosso país. Os crescentes problemas ambientais só fizeram intensificar essa velha percepção.
No início dos anos 1970, eu era aluno de um colégio em Genebra, na Suíça. A nossa professora de literatura, uma senhora francesa, muito culta, nos fez ler um conto de Albert Camus que se passava na Amazônia brasileira. Durante a discussão do texto, ela virou para mim, o único brasileiro na classe, e perguntou: “Você achou adequada a descrição que Camus fez da floresta amazônica?” A pergunta me irritou um pouco – era o complexo de vira-lata que aflorava. Respondi: “Não sei, nunca estive lá.” A professora não se deu por satisfeita: “Mas, como assim: de que cidade do Brasil você é?” O complexo de vira-lata deu arrancos violentos de víbora de túmulo de faraó. Respondi, ainda mais irritado: “Rio de Janeiro.” E ela: “Pois, então!” Veja, leitor, a que situação um brasileiro pode se ver submetido no exterior. Nem lembro mais se a minha humilhação permitiu que eu explicasse à professora e ao resto da classe que o Rio fica a mais de dois mil quilômetros dos limites da selva amazônica. Acredito que esse tipo de desinformação persiste até hoje. Mas ainda não disse o que queria realmente dizer. É o seguinte: o Brasil precisa, mais do que nunca, defender a Amazônia com unhas e dentes. E tratá-la com carinho e cuidado – como Brasil, como parte fundamental do território nacional a ser desenvolvida de forma sustentável, povoada por brasileiros e cada vez mais integrada ao resto do país. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 31 de maio de 2008.
NACIONALISMO EM FERNANDO PESSOA1
Fernando Pessoa era um nacionalista. Sua principal obra publicada em vida, Mensagem, é ardorosamente patriótica. Certa vez, ele escreveu: “A existência da humanidade, se por ela se entende qualquer coisa mais do que a simples espécie animal chamada homem, é tão hipotética e racionalmente indemonstrável como a existência de Deus.” E em outra ocasião afirmou: “Só existem nações; não existe humanidade.” Nada mais verdadeiro. “Humanidade” é um conceito vazio. Já a nação é algo vivo, que pode emocionar e mobilizar, encantar, fascinar. No Brasil, os adversários do nacionalismo – notadamente os integrantes da poderosa quinta-coluna – tentam sempre caricaturá-lo. No debate econômico, essa caricatura apoia-se frequentemente na dicotomia simplista: economia aberta versus economia fechada. Apresentam o nacionalismo como um movimento econômico, político e cultural que tende ao isolamento, à autarquia e à rejeição pura e simples de tudo o que vem de fora. Não é necessariamente assim. A forma superior do nacionalismo é aquela que se mostra aberta a elementos estrangeiros e consegue absorvê-los e incorporá-los de forma criativa e inovadora. É o que Fernando Pessoa chamava de “nacionalismo cosmopolita”. “O que é preciso ter”, dizia ele, “é uma noção do meio internacional, e não ter a alma (ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a alma na Europa.” O nacionalismo, explicava Pessoa, é um “patriotismo ativo”, que pretende defender a pátria de influências que possam danificar e perverter a sua “índole própria”. Mas as influências estrangeiras úteis e aproveitáveis devem ser “assimiladas, isto é, convertidas na substância da índole nacional”. Nacionalismo não implica agarrar-se cegamente a tradições nacionais e excluir valores e ensinamentos externos. O importante, lembrava Pessoa, é “nacionalizar todos os fenômenos importados”. Para Pessoa, “a vitalidade de uma nação – a verdadeira e real vitalidade – mede-se pela facilidade, prontidão e
eficácia com que se nacionaliza o importado”. Nacionalizar o importado. A formulação de Pessoa lembra a do movimento antropofágico brasileiro, iniciado na década de 1920 por Oswald de Andrade. Esse movimento lançava mão de uma metáfora marcante, a da antropofagia, para indicar que o “colonizador” (isto é, a influência americana e europeia) deveria ser devorado, e sua substância, incorporada à cultura nacional. O Brasil não deveria nem rejeitar a influência estrangeira nem simplesmente imitá-la de maneira servil. O Brasil sempre oscilou entre dois polos: a absorção criativa e a mimese. Tivemos os modernistas, Villa-Lobos, Oscar Niemeyer, Celso Furtado, a Bossa Nova. Mas toda uma parte da elite brasileira (não preciso mencionar nomes) viveu e ainda vive da simples reprodução das últimas modas e tendências internacionais. Os nossos economistas, por exemplo, integram em sua maioria esse segundo grupo. Há uma reação contra isso, mas o ensino e a prática da economia no Brasil ainda são dominados pela aceitação acrítica, passiva de modelos importados, sobretudo dos Estados Unidos. Os economistas converteram-se, assim, em um obstáculo não desprezível à consolidação de um projeto nacional. 1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 14 de agosto de 2008.
UMA VISITA AOS ESTADOS UNIDOS1
Por incrível que pareça, só depois de três anos de residência em Washington tive a oportunidade de fazer uma visita aos Estados Unidos. A verdade, leitor, é que esse grande país não é o que se vê nos mapas. Os Estados Unidos começam, grosso modo, nos subúrbios e arredores de Nova York, Washington ou Miami e se estendem por todo um vasto território até os arredores de São Francisco. Entre esses extremos nas costas Leste e Oeste é que residem propriamente os Estados Unidos, com suas grandezas e misérias. A minha viagem aos Estados Unidos se deu por ocasião da formatura de um sobrinho, pela Universidade de Notre Dame, em South Bend, Indiana. Foi uma experiência considerável. O que se nota, primeiro, é o grande predomínio de brancos – vi poucos negros, latinos ou asiáticos. Segunda coisa notável: a intensidade do nacionalismo mais tradicional. O americano está entre os povos mais nacionalistas do mundo (sem isso, diga-se de passagem, nunca teriam chegado onde chegaram). Discursos patrióticos, hinos cantados em coro pela plateia, a bandeira do país em toda parte – tudo isso compunha um quadro de respeito quase religioso pelos símbolos da nação. A formatura se deu ao longo de dois dias de cerimônias e celebrações. No final, eu já sabia “America, the Beautiful” quase de cor. Um dos oradores fez, de passagem, uma referência a Ronald Reagan – foi recebido com uma ovação pelo imenso auditório. Em outro momento, alguém mencionou “os nossos rapazes no Iraque e no Afeganistão” – mais uma ovação. Outro orador teve a ideia de pedir que os veteranos de guerra se levantassem. Várias gerações de ex-combatentes – centenas de jovens, homens de meia-idade e idosos – ficaram de pé e receberam outra ovação demorada e calorosa. Longe de mim, que sou um nacionalista nato e hereditário, desmerecer o nacionalismo dos outros. O que quero dizer apenas é que nós, brasileiros, que geralmente conhecemos no máximo Nova York ou Miami, não fazemos uma ideia minimamente razoável do que sejam os Estados Unidos.
Só depois de ir até um lugar como South Bend, Indiana, é possível entender como os americanos foram capazes de eleger George W. Bush – não uma, mas duas vezes. Em conversas com pais de formandos americanos, era possível escutar coisas do seguinte tipo: “Obama é socialista demais”… A eleição de Obama foi um acidente. Dificilmente teria ocorrido em condições normais. Não fosse a profunda crise provocada pelo estouro da bolha financeira, intensificada com o colapso do Lehman Brothers que ocorreu pouco antes da votação, dificilmente um afro-americano teria chegado à Presidência. Em outras palavras, os Estados Unidos mudaram bem menos do que sugeria a vitória de Obama em 2008. Por isso mesmo, era tão difícil que o governo Obama viesse a atender às expectativas que inicialmente suscitou em certos setores da sociedade americana e no resto do mundo. O presidente Obama se moveu sempre com grande cautela, procurando não se distanciar do centro de gravidade da política americana. Tentava, sempre que possível, ser bipartidário e aparecer como defensor de valores tradicionais, amplamente aceitos. Com todo respeito, quase diria que era um negro de alma branca, formado em Columbia e Harvard, bem falante, convencional, que procurava se ajustar às tendências fundamentais da sociedade de seu país. Já no seu discurso inaugural, Obama dava sinais de conformismo. Por exemplo: mencionou os Founding Fathers (Washington, Jefferson e outros líderes da independência), a maioria dos quais proprietários de escravos, mas não fez uma referência sequer a Lincoln – o presidente que aboliu a escravidão. Apesar de todos os seus esforços, os Estados Unidos continuaram desconfiados. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 12 de junho de 2010.
SÍNDROME DE DEGREDADO1
Não sei se o brasileiro se dá conta de que uma das características mais salientes do nosso “psicossocial” é o medo – quase diria, pânico – do isolamento. O brasileiro é um ser maravilhosamente gregário. Só se sente confortável na companhia, de preferência numerosa, de aliados, amigos e cupinchas. E nenhum dramaturgo nacional diria, como Ibsen, “sem a solidão, o homem apodrece”. Isso afeta, naturalmente, a nossa política externa. Nossos negociadores internacionais tremem diante do risco de isolamento. Sei que fizemos algum progresso nos últimos anos. O Brasil está mais confiante, mais assertivo. Mas, convenhamos, não se muda em pouco tempo todo um trabalho de séculos. Esse nosso medo pode ser um atavismo. Remonta – quem sabe? – ao tempo em que alguns dos nossos antepassados eram abandonados no litoral esparsamente povoado do futuro Brasil. E lá permaneciam, cercados de tribos indígenas hostis, não raro antropófagas, curtindo saudades de Portugal. Síndrome de degredado, em suma. Seja como for, trata-se de um monstruoso equívoco. Não podemos esquecer nunca que o Brasil sozinho, e por si mesmo, já é uma multidão. Certa vez, numa das discussões preparatórias das Reuniões de Primavera do FMI, o Brasil estava sendo atropelado por outros países em desenvolvimento que queriam nos forçar a endossar determinada tese. Não preciso explicar o assunto em si. O interessante foi o comportamento de alguns integrantes da delegação brasileira. Vieram me dizer, ligeiramente agitados: “Não temos apoio, estamos totalmente isolados.” Era a síndrome de degredado, outra vez. Ora, o Brasil, por definição, nunca fica isolado. Tive que invocar Nelson Rodrigues: “Se o Brasil não existisse, Madureira seria uma importante nação sul-americana. Bonsucesso seria outro grande do continente.” Improvisamos, então, uma coligação com alguns países e conseguimos solução aceitável. Em último caso, entretanto, teríamos que ter a disposição de ficar isolados, não aderindo a nenhum falso consenso.
Isso foi nas discussões entre países em desenvolvimento. Na reunião final, com todos os membros, desenvolvidos e emergentes, o Brasil estava praticamente isolado em determinado ponto da declaração ministerial. Fiquei espiando para ver se a síndrome reapareceria. Insistimos, porém. Chegou um momento em que o Brasil, sozinho, declarou que se dissociaria formalmente desse ponto da declaração. Acabaram encontrando uma formulação que nos contemplava. Estamos melhorando um pouco. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 27 de abril de 2013.
CARÁTER NACIONAL – FRANCESES E BRASILEIROS1
O caráter nacional, como tudo mais, sofre o efeito corrosivo do tempo. O caso da França é exemplar. Recentemente, Paris foi palco de episódio emblemático. Logo após os ataques terroristas de novembro de 2015, os parisienses resolveram dar uma demonstração de inconformismo e destemor. Saíram às ruas aos milhares exibindo cartazes enfáticos: “Não ao terrorismo!”, “Paris vive!”, “Não nos deixaremos intimidar!” etc. De repente, estourou o escapamento de um carro. Foi um pandemônio. A multidão em pânico se dispersou com rapidez estarrecedora. Jovens na flor da idade se precipitaram, atropelando velhos e crianças. Os cartazes heroicos ficaram jogados no meio da rua, pisoteados pelos manifestantes em fuga. Eis a verdade constrangedora: a França, tal como a imaginávamos e reverenciávamos, não existe mais. A França romântica, revolucionária, que abalou o mundo em 1789 e várias vezes ao longo do século XIX desapareceu até o último vestígio. Já há muito tempo, na verdade. O élan do país se quebrou, talvez para sempre, com a vitória de Pirro que foi a Primeira Guerra Mundial. Na Segunda Guerra, a França se notabilizou pela ausência. Convenhamos: em 1940, a invasão do país pela Alemanha foi um passeio vergonhoso. Aí apareceu De Gaulle, aquela figura eminentemente anacrônica, que se inventou como líder, e preservou a França, a sua imagem, o seu prestígio. Mas os tempos heroicos já tinham ficado para trás. Ainda houve, em 1968, a revolução dos estudantes – na verdade, mais uma sucessão de poses e slogans criativos do que uma ameaça real ao poder constituído. Mas nem vale a pena tratar disso agora – foi o último estertor do espírito revolucionário francês. Dei toda essa volta para falar um pouco do Brasil. Também no nosso país o caráter nacional passa por transformação constrangedora e sofre o desgaste inapelável do tempo. Eis o que queria dizer: um dos traços do caráter nacional brasileiro é (ou
era) a cordialidade – e não há quem me convença do contrário. Bem sei que a cordialidade encobria muita barbaridade e amaciava conflitos não resolvidos. Mas a cordialidade do brasileiro saltava aos olhos – não do próprio brasileiro, imerso no ambiente nacional, mas aos olhos de estrangeiros que passavam pelo país ou de um brasileiro como eu, que viveu grande parte da vida no exterior. Bem, agora estou de novo há quase nove anos no exterior. E cada vez que volto ao país encontro um Brasil cada vez menos Brasil. A cordialidade foi para o espaço. No seu lugar, a grosseria, a troca de ofensas, a falta de medida nas palavras e nos atos. Famílias se dividem, amizades antigas vão para o saco, a mídia destila suspeita e ódio. Os ânimos sempre se acirram em época de crise econômica, é natural. Mas o fator fundamental da mudança parece ser a polarização política (que aliás muito contribuiu e contribui para a própria crise econômica). Há muito que não se via tanto extremismo e tanta radicalização. Estamos nos equiparando, nesse particular, ao que há de pior na experiência da Argentina. E aonde é que os argentinos chegaram com isso? 1 Publicado originalmente em O Globo, em 4 de março de 2016.
BRASIL, UM PAÍS DESARMADO1
Posso confessar, leitor, que tenho tido enorme dificuldade de escrever? Não quero parecer cabotino, mas a razão principal é a situação do Brasil. Apesar de ter vivido grande parte da minha vida no exterior, tenho uma ligação com o país que é, acredito, mais forte do que a da maioria dos brasileiros. Escrevi “apesar” e já fico um pouco em dúvida. Todo “apesar” esconde um “porquê”, dizia Fernando Pessoa. Seja como for, o fato é que viver em outros países nunca me afastou do nosso. De todos os povos que conheci mais de perto, o brasileiro é o menos patriótico, o menos nacionalista – e essa falta de apego ao país nos tem atrapalhado muito. Desde que me entendo por gente, isso sempre foi assim. O brasileiro só se lembrava de ser brasileiro durante a Copa do Mundo (agora talvez nem isso…). A esse dado psicológico estrutural, acrescentaram-se nos anos recentes muitos fenômenos que configuram verdadeiro adoecimento e desagregação da sociedade brasileira e de suas instituições. Nunca o Brasil me causou tanta preocupação – angústia seria palavra melhor. Nunca vi nosso país tão dividido, fragilizado e vulnerável à ação de interesses estrangeiros. Bem sei que esse adoecimento transcende as fronteiras nacionais. Basta ver o que acontece nos Estados Unidos, na Europa, no Oriente Médio e em outras regiões. Mas isso não serve de consolo. Ao contrário, o brasileiro precisa se dar conta de que a situação internacional é perigosa, talvez como nunca, e que isso pode nos afetar de várias maneiras e colocar em risco a própria segurança nacional. Não vamos nos enganar. O Brasil é um país desarmado. E um país indefeso se expõe a riscos graves, especialmente se tem vasto território e imensas riquezas e recursos naturais. Ninguém vai nos defender. As mais solenes garantias internacionais não são confiáveis, muitas delas não valem o papel em que foram escritas. O caso da Ucrânia merece ser lembrado. Em 1991, quando a Ucrânia se
tornou independente na esteira da desintegração da União Soviética, existia um pequeno problema: no território ucraniano se localizava grande parte do arsenal nuclear soviético. As lideranças do novo país foram levadas a abrir mão desse arsenal em troca de um tratado com os EUA, o Reino Unido e a Rússia que garantia a integridade territorial da Ucrânia. Quando a Rússia tomou a Crimeia em 2014, de que valeu esse tratado? Nada disso é novidade. Rui Barbosa já alertava que uma nação que confia em seus direitos em vez de confiar em seus soldados, prepara a própria derrocada. Mas os nossos soldados o que fazem? Em vez de estarem sendo preparados permanentemente para a missão sagrada de garantir a segurança nacional, estão revistando mochilas de crianças nas favelas do Rio de Janeiro. Merecem registro também palavras recentes do general Sérgio Etchegoyen, ministro da Segurança Institucional, por ocasião dos 20 anos da adesão do Brasil ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). A adesão ocorreu em 1998 sob o governo Fernando Henrique Cardoso. Etchegoyen foi convidado a participar de uma mesa de debates na Fundação FHC. Na presença do expresidente, o general foi claro e incisivo. Disse verdades que nós, brasileiros, teimamos em ignorar. Da perspectiva militar, lembrou o general, o armamento nuclear pode representar a única possibilidade que resta a um país ameaçado por invasão do seu território. Mencionou as guerras do Iraque de 1991 e 2003: “O esforço de concentração do aparato militar da aliança que invadiu o Iraque jamais teria sido possível se aquele país dispusesse de armas nucleares de pequena capacidade.”2 Lição, diga-se de passagem, que não escapou a vários países. Na avaliação de Etchegoyen, a adesão do Brasil ao TNP em 1998 coincidiu com um período de grande desinvestimento do país na área nuclear. O tratado faz referência ao “direito inalienável” dos países de desenvolver a energia nuclear para fins pacíficos. Esse direito ficou na teoria, porém, pois vem sendo “negado, restringido, bloqueado por diversas ações diretas e indiretas e pressões internacionais”, observou. O quadro é realmente lamentável. O que ganhamos com a adesão ao TNP, perguntou o general, além de fotografia na galeria dos bem-comportados? A imprensa não registrou resposta por parte de Fernando Henrique Cardoso. 1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 4 de abril de 2018. 2 Valor Econômico, 7 de março de 2018, p. A6.
DOIS PARTIDOS1
O grande jornalista Barbosa Lima Sobrinho disse, certa vez, que o Brasil sempre teve só dois partidos: o de Tiradentes, o partido da autonomia e da independência; e o de Silvério dos Reis, o partido da subordinação e da entrega. O segundo partido remonta a Calabar, passa por Joaquim Silvério dos Reis – delator da Inconfidência Mineira – e continua até hoje solidamente instalado no governo, no Congresso, no Poder Judiciário e na mídia. Apesar de tudo, o prestígio de Tiradentes é imenso. Por ocasião do dia 21 de abril, o presidente Michel Temer, destacado integrante do partido de Silvério dos Reis, teve o desplante de invocar Tiradentes, comparando-se de certa maneira a ele… Não vale a pena subir pelas paredes, leitor. A hipocrisia tem seus méritos. Como dizia La Rochefoucauld, ela é a homenagem do vício à virtude. No dia em que o vício parar de homenagear a virtude estaremos perdidos para sempre. Mas não quero discorrer sobre o partido de Silvério dos Reis e os seus numerosos integrantes. Seria deprimente, para mim e para o leitor. Vamos pensar um pouco nas nossas raízes e nos nossos mortos? É deles que podem vir o ânimo, o élan e a energia para continuar a luta por um país criativo e independente. Não podemos esquecer que o Brasil produziu uma série de figuras extraordinárias. Lembro, por exemplo, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Roberto Simonsen, Gilberto Freyre, Getúlio Vargas, Juscelino Kubistchek, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna e Celso Furtado. É um grupo heterogêneo, eu sei, que inclui desde um comunista como Niemeyer até um industrial como Simonsen, passando por um keynesiano como Furtado, além de artistas, políticos e sociólogos. O que esses brasileiros têm em comum? O traço que os une, a meu ver, é a convicção compartilhada por todos eles de que o Brasil é um país especial, capaz de desempenhar um papel importante no mundo. Em uma
palavra: autoconfiança. Nas suas Memórias de Guerra, de Gaulle escreveu que durante toda sua vida ele sempre fizera “uma certa ideia da França” como nação predestinada a um papel destacado e excepcional. Se acontecia, ao contrário, da sua trajetória ser marcada pela mediocridade, pela mesquinharia, pelo fracasso, isso parecia a seus olhos, automaticamente, uma anomalia absurda, imputável não à França, mas aos franceses. Todos os brasileiros que mencionei, com variações e peculiaridades, claro, sempre fizeram “uma certa ideia do Brasil”: a de que o nosso país pelas suas dimensões, suas qualidades, suas singularidades, está destinado a ocupar um lugar de destaque no planeta. Megalomania? Os partidários de Silvério dos Reis se opõem ferozmente à ideia de um Brasil grande. São os “realistas”, os defensores dos “limites do possível”, das “utopias viáveis”. Sofrem de nanomania, como observou o ex-chanceler Celso Amorim. A verdade é que os brasileiros nem sempre estão à altura do Brasil. A nanomania alimenta-se da falta de imaginação. Os partidários de Silvério dos Reis, mesmo os mais inteligentes, se notabilizam por um padrão de comportamento imitativo, mimético, pela aceitação acrítica dos valores, das tendências e dos modismos que vêm dos Estados Unidos e da Europa. O oposto disso não é o fechamento e a xenofobia, leitor, mas sim a absorção criativa das influências externas – outro traço comum aos brasileiros que mencionei. Essa absorção criativa foi caracterizada pelos modernistas, por Oswald de Andrade em especial, como a antropofagia brasileira, a capacidade de digerir e recriar as qualidades e os valores do estrangeiro. Metáfora poderosa, que sintetiza bem o espírito de toda uma geração de brasileiros notáveis. Esse espírito não se perdeu. Corre no nosso sangue e nos nossos sonhos. 1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 27 de abril de 2018.
BRASIL, ESTADOS UNIDOS, CHINA1
A paisagem mundial é marcada, neste início de século, pelo conflito cada vez mais intenso entre os Estados Unidos e a China. Esse conflito vai perdurar pelas próximas décadas. A China, que já tem a maior economia do planeta (em paridade de poder de compra), deve continuar crescendo e ganhando peso relativo vis-à-vis dos EUA e da economia mundial como um todo. Os americanos vêm lidando mal com essa ascensão. Trump não criou o conflito, que remonta ao período Obama, pelo menos. O cenário de uma ascensão tranquila da China parece cada vez menos provável, mesmo depois de Trump – em parte por causas das reações nacionalistas dos EUA, em parte porque o sucesso dificilmente deixa de subir à cabeça, e os chineses não estão imunes a essa regra geral. Desde o início do governo Xi Jinping, nota-se, eu não diria arrogância, mas uma crescente altivez dos chineses, o que acentua a reação americana. Como deveria se posicionar o Brasil? Primeiro, o óbvio: o Brasil não deve se alinhar a nenhum dos dois. País que se preza não se alinha automaticamente a ninguém. As nações, como dizia o general De Gaulle, não têm amigos, mas interesses. Para o Brasil, as relações com os EUA e a China são de grande importância econômica e política. Não temos a mais remota razão para tomar partido ou imiscuir-se nas desavenças entre os dois. Espero não estar exagerando na homenagem ao Conselheiro Acácio. Mas é que alguns dos integrantes do governo Bolsonaro (inclusive, infelizmente, o próprio presidente), flertam com a ideia de alinhamento aos EUA. Flertar é understament, claro. Faz parte disso a oferta gratuita e absurda, em seguida abandonada, de sediar uma base americana em solo nacional. Faz parte disso, também, certa hostilidade à China – é verdade que mais antes do que depois da eleição. Escapa à minha compreensão o que exatamente Bolsonaro, então deputado e pré-candidato à Presidência da República, pretendia com a visita que fez a Taiwan, em março de 2018.
O exemplo de Getúlio Vargas talvez seja relevante. Na segunda metade das décadas de 1930 e no início dos anos 1940, quando os EUA se defrontavam com a ameaça de uma Alemanha em ascensão, Vargas não se comprometeu com nenhum dos dois. Acabou entrando do lado americano na Segunda Guerra, mas obteve importantes vantagens em troca, inclusive o apoio dos EUA à implantação de Volta Redonda. Não deveria a postura brasileira ser semelhante agora? Ou seja: não caberia evitar precipitações e verificar, caso a caso, quem oferece melhores condições em termos de parcerias econômicas e políticas? Isso inclui, por exemplo, não assumir compromissos com a OCDE, fugindo da linha iniciada pelo governo Temer. A OCDE, recorde-se, é uma organização controlada pelos EUA e outros países desenvolvidos. Estabelece exigências abrangentes, que limitam severamente as políticas de desenvolvimento e defesa da economia nacional. Em Davos, Bolsonaro afirmou que buscará incorporar “as melhores práticas internacionais, como aquelas que são adotadas e promovidas pela OCDE”. O medíocre presidente do Banco Central do governo Temer, Ilan Goldfajn, que permanece temporariamente no cargo, foi mais longe e especificou que o Brasil está comprometido em aderir ao acordo de liberalização dos fluxos de capital da OCDE. Isso retira das mãos do governo instrumentos potencialmente importantes de defesa da economia nacional contra choques financeiros externos. Tive longa convivência com americanos e chineses no FMI, no G20 e nos BRICS. Os chineses têm qualidades, mas sua agenda é estreita. Eles são de um pragmatismo ligeiramente selvagem, não hesitando em sacrificar os outros BRICS quando isso lhes convém. Mas os americanos mostram-se sempre complicados. Comportam-se, em geral, de maneira prepotente; consideram-se líderes natos e hereditários. Não sabem trabalhar em aliança. Coisa curiosa: com os americanos é difícil cooperar mesmo quando há concordância de posições. Passei por isso mais de uma vez nos oito anos em que tive contato regular com as delegações dos EUA no G20 e a diretoria desse país no FMI. E um aviso aos navegantes: os americanos desprezam visceralmente comportamentos subservientes. Quantas vezes testemunhei a indiferença e, não raro, os maus-tratos dispensados por americanos a seus satélites, especialmente latino-americanos! Não se alinhar a nenhum dos dois não significa necessariamente manter equidistância. Se tivermos que pender para um dos lados, é provavelmente
preferível pender um pouco para o da China com quem o Brasil tem uma cooperação de caráter estratégico e relativamente equilibrada no âmbito dos BRICS. Os Estados Unidos ainda são a principal potência – e continuarão sendo por tempo considerável. No horizonte visível, não há chance real de trazê-los para um diálogo menos marcado por suas tradicionais prepotências. Já a China, apesar das suas dimensões econômicas e demográficas, continua sendo um país em desenvolvimento e, por isso mesmo, compartilha com o Brasil diversas características e interesses essenciais. 1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 25 de janeiro de 2019.
CAPÍTULO 4 Economia política brasileira
MACROECONOMIA DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL1
O capítulo de que faz parte este texto revisita alguns aspectos polêmicos da economia política e da política econômica brasileiras. É o mais incompleto do livro e provavelmente o mais decepcionante, considerando a formação do autor. Ele tem, ainda assim, seu fio condutor, mesmo que apareça pouco. Esse fio condutor é a ênfase no aspecto nacional das questões econômicas. O propósito do presente texto é oferecer uma visão de conjunto dos requisitos de uma política econômica nacionalista, revisitando alguns temas clássicos da macroeconomia contemporânea à luz do interesse nacional. A discussão tem como foco o Brasil e outros países emergentes, mas se aplica, acredito, pelo menos em parte, até mesmo a países avançados que, em contradição ao que normalmente pregam, praticam políticas econômicas de corte nacionalista. Continuo do ponto de vista, que sempre adotei, de que o nacionalismo precisa ser, invariavelmente, ainda que sem dogmatismos e inflexibilidades, o princípio organizador e propulsor das políticas macroeconômicas. Isso deveria ser, mas não é, uma homenagem ao Conselheiro Acácio. É que a macroeconomia tal como ensinada e aplicada em países como o Brasil sofre, por um lado, do célebre complexo de vira-lata das nossas elites, que leva muitos, talvez a maioria dos economistas a estigmatizar o nacionalismo como uma variante do “populismo” ou como ideologia retrógrada incompatível com a moderna “globalização”. Por outro lado, tributários que somos das teorias gestadas nos países desenvolvidos, com hegemonia inconteste dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, acabamos importando as tendências presentes nessas teorias de subestimar o peso das especificidades nacionais e também, paradoxalmente, a dimensão internacional da macroeconomia. Esta última é curiosa, quando se leva em conta a importância supostamente conferida à “globalização”. Até as décadas finais do século passado, talvez justamente por causa da hegemonia dos Estados Unidos – superpotência e economia continental para a qual pesam menos os fatores externos – as teorias macroeconômicas
deixavam frequentemente em segundo plano as relações da economia com o resto do mundo. Só no período recente, ganhou mais destaque a “macroeconomia aberta”. Parece evidente, entretanto, que a macroeconomia deve ser necessariamente sempre “aberta”, ou seja, não deve e, a rigor, nem pode ser analisada com base na premissa simplificadora da “economia fechada”. Insisto: em nenhum caso – nem nas economias continentais, nem no caso extremo dos Estados Unidos. E não apenas no quadro contemporâneo de alto grau de internacionalização das atividades econômicas, especialmente financeiras, mas mesmo em períodos anteriores da história econômica. Em outras palavras, não existem, do ponto de vista econômico, nem ilhas nem continentes. Todos os aspectos da política macroeconômica nacional precisam ser examinados e definidos à luz das relações com o resto do mundo. O que temos aqui é um paradoxo semântico. Quando se diz que todas as dimensões da economia devem ser vistas sob o prisma da questão nacional, afirma-se, ao mesmo tempo, que elas devem ser vistas sob o prisma das relações internacionais. A dualidade nacional/internacional é a dualidade fundamental e recorrente. Logicamente, é sempre possível postular que inexiste o resto do mundo ou que a economia sob análise não se relaciona com ele – premissa de livro-texto antiquado, porém, que falseia a discussão desde o início. Situa-se, por assim dizer, no campo das abstrações destrutivas do conhecimento. A “economia fechada” é, na melhor das hipóteses, um recurso expositivo ou didático, que terá relevância prática se, e somente se, existir algum dia um Estado universal. Abstrações podem ser úteis, são até indispensáveis, mas não devem, por suposto, retirar de cena aspectos essenciais dos problemas que se pretende analisar. Como se vê, repito, nem sempre é possível evitar homenagens ao Conselheiro, por mais que se queira. É trivial, sem dúvida, alertar contra o risco de eliminar por hipótese aspectos centrais da realidade – centrais no sentido de que, se excluídos, tornam a análise enganosa ou estéril. E, no entanto, é o que volta e meia acontece no campo acadêmico – ainda que disfarçado por linguajar obscuro ou matematizações impenetráveis –, assim como no campo da política econômica – ainda que dissimulado pela retórica habilidosa dos governantes ou pela propaganda ruidosa dos grupos de poder. Estou caricaturando um pouco, é verdade, mas a caricatura não está tão longe do que costuma ocorrer, num campo e noutro.
1. Moeda nacional – atributo essencial da soberania
Tomemos, primeiro, a questão da moeda. Um objetivo central do Banco Central é a estabilidade monetária – não absoluta, por certo, mas relativa (inflação baixa). Porém, como ignorar que estamos falando quase sempre da estabilidade de uma moeda nacional? Os projetos de “esperanto monetário”, assim como os de esperanto propriamente dito, nunca saíram muito do papel. O único que avançou um pouco, o direito especial de saque do FMI, brevemente discutido no capítulo 1, não constitui uma moeda no sentido pleno do termo. Por sua vez, a unificação monetária entre dois ou mais países significa, quase sempre, dolarização ou euroização, isto é, adoção unilateral por um país vulnerável ou dependente, de uma moeda forte, geralmente o dólar dos Estados Unidos. Em geral, unificação significa, portanto, desnacionalização ou subordinação monetária. Há poucas exceções a essa regra. Temos casos de países que se associam, de forma mais ou menos simétrica ou igualitária, para criar uma moeda comum. Estabelece-se, assim, uma soberania monetária compartilhada. Todas as moedas transnacionais desse tipo existem em nível regional ou sub-regional, envolvendo países geograficamente próximos e razoavelmente integrados do ponto de vista econômico. Como se sabe, a mais importante das moedas transnacionais existentes é o euro.2 Resultado e símbolo poderoso do projeto maior de unificação do continente europeu, o euro está eivado de problemas, porém, alguns dos quais foram abordados no capítulo 1 deste livro. O euro é um projeto desequilibrado em muitos sentidos, inclusive neste: consagra a hegemonia monetária de uma nação sobre as outras da área. Quase se poderia dizer que o euro é uma “deutschmarkização” da maior parte da Europa. Ironicamente, os alemães encontraram a única forma de, ao mesmo tempo, abandonar a moeda nacional e preservar a soberania monetária, que é conquistar a hegemonia monetária em uma área monetária transnacional. Mas deixo essas exceções de lado. Moeda significa, regra geral, moeda nacional, no sentido simples e direto de que ela é criada por determinado Estado nacional. Mas há também um outro sentido, menos evidente, para tratar essa questão primordialmente do ângulo nacional. É que a estabilidade monetária também é um conceito de base interna. Quando se busca estabilidade é necessário, por definição, ter um parâmetro, uma referência, uma forma de mensurar o valor do que se deseja estabilizar. Em outras palavras: estabilidade em termos de quê? No que tange à moeda, isso significa estabilidade em termos de poder de compra dentro do país, não em termos de outra moeda ou de uma cesta de outras moedas. O que importa é sobretudo o valor interno, mais do que
o valor externo da moeda nacional – taxas de inflação baixas e não câmbio estável. Ou seja, o que a maioria dos bancos centrais procura – e isso vale para todos os grandes – é a estabilização de um índice geral de preços – e não a estabilidade da taxa cambial. O valor externo, ao contrário, deve ser flexível, instável – para preservar a autonomia da política monetária nacional quando, como costuma acontecer, a conta de capitais é aberta ou relativamente aberta. Fogem a essa regra apenas as pequenas economias abertas nas quais pode fazer sentido tomar o valor externo da moeda como alvo da política monetária. Nessas economias, a participação de tradeables no conjunto dos bens e serviços tende a ser alta, e a taxa de câmbio pode funcionar como proxy do nível geral de preços.3 A célebre tríade de Mundell e Fleming, também conhecida como trindade impossível, tem sua utilidade nessa discussão. Esses autores argumentaram que, entre três objetivos, autonomia monetária nacional, estabilidade cambial e liberalização da conta de capitais, é sempre inescapável escolher dois, sacrificando o terceiro. Assim: a) é possível ter independência da política monetária e estabilidade da taxa de câmbio, desde que se feche a conta de capitais; b) é possível abrir a conta de capitais e preservar a independência monetária, desde que se deixe o câmbio flutuar; e c) é possível fixar o câmbio e manter a livre movimentação de capitais, mas só renunciando à autonomia na condução da política monetária. O modelo é conhecido e não precisa ser explicado aqui.4 Evidente que, no mundo real, sempre há gradações na consecução desses objetivos, graus variáveis de autonomia monetária e de abertura da conta de capital, assim como diferentes formas de flutuação cambial. E, claro, outros fatores intervêm para suavizar ou acentuar os tradeoffs. Por exemplo, países emissores de moeda internacional de reserva não estão submetidos, da mesma maneira, à impossibilidade postulada na tríade. Esses países podem, dentro de certos limites, financiar déficits de balanço de pagamentos com emissão primária de moeda, o que suspende a efetividade da restrição externa. Os Estados Unidos, emissor hegemônico de moeda reserva, nunca abdicaram e nem abdicarão da autonomia monetária. Tampouco terão, em condições normais, interesse em introduzir amplas restrições à movimentação de capitais, dado o peso dos seus conglomerados financeiros e não financeiros na economia mundial. Mas mantiveram estabilidade cambial prolongada em períodos anteriores – por exemplo, durante a vigência do regime de câmbio fixo estabelecido em Bretton Woods. Nas décadas de 1950 e 1960, os Estados Unidos conseguiram, em certa medida, conciliar os três objetivos. Na fase inicial do regime de Bretton Woods, a política monetária da Reserva Federal era restritiva
e sugava capitais do resto do mundo, criando escassez de dólares. Na década de 1960, ao contrário, a política monetária americana foi excessivamente expansionista do ponto de vista externo, levando a superabundância de dólares. As autoridades europeias queriam que os americanos adotassem política monetária menos expansionista, mais condizente com seus interesses. Os americanos deram de ombros. Marcou época a tirada prepotente do secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Connally, em 1971, dirigindo-se a suas contrapartes europeias: “The dollar is our currency but your problem.” Não havia para os Estados Unidos efetiva restrição de balanço de pagamentos; os desequilíbrios externos eram financiados com emissão da moeda nacional e tinham como contrapartida a acumulação de ativos contra os Estados Unidos pelos países superavitários. Porém, a tentativa de conciliar os três objetivos não foi perfeita e acabou abandonada com a desvalorização do dólar em 1971 e a posterior flutuação das principais moedas. Certa conciliação dos objetivos foi possível nas décadas de 1950 e 1960 porque era menor a mobilidade internacional de capitais. Quando o mercado de eurodólares começou a crescer nos anos 1960, alimentado pela superabundância de dólares, os Estados Unidos responderam com restrições pontuais à saída de capitais. Dois pontos emergem dessa experiência. Primeiro, a trindade impossível não se aplica da mesma forma e com a mesma intensidade ao emissor hegemônico de moeda reserva. E, segundo, prevalece a preocupação da autoridade monetária hegemônica com a preservação da sua autonomia, sacrificando quando necessário interesses externos e a estabilidade cambial. Convém ter em conta, também, as assimetrias entre tipos de “impossibilidade”. Uma coisa, por exemplo, é tentar manter juros internos abaixo do “equilíbrio externo” e defender um câmbio estável contra pressões baixistas provocadas por déficits na conta de capitais: quando a perda de reservas ultrapassa certo patamar, há corrida contra a moeda nacional e a posição se torna insustentável. Porém, os países e seus bancos centrais têm mais poder de fogo para resistir a pressões altistas sobre o câmbio quando a taxa de juro interna está acima do equilíbrio externo e superávits persistentes na conta de capitais geram acréscimo de reservas e expansão potencial da base monetária. Nessas circunstâncias, é possível, durante um tempo que pode ser longo, manter intacta a política monetária e inalterada a taxa interna de juro, esterilizando com operações de mercado aberto o efeito monetário expansivo derivado da entrada de capitais. Os limites para essa resposta variam de país para país e dependem da capacidade do mercado de absorver dívida pública, cujo crescimento é alimentado pelas operações de esterilização e realimentado pelo custo de
carregamento de reservas adicionais em moeda estrangeira.5 Mesmo com essas ressalvas, a simplificação proposta por Mundell e Fleming lança luz sobre traços essenciais dos dilemas das economias abertas, principalmente das que não são emissoras de moeda reserva. Até o colapso do sistema de Bretton Woods, os países desenvolvidos ficavam na opção a. Desde a década de 1970, começando pelos mais avançados, os países têm migrado cada vez mais para a opção b. Na prática, isso significa abdicar de regimes de câmbio fixo ou de bandas cambiais, em favor de uma flutuação administrada ou controlada do valor externo da moeda nacional. Nas economias de maior porte, inclusive emergentes, não há dominância cambial sobre a formação do nível geral de preços, o que acabou levando ao gradual desaparecimento do famoso “medo de flutuar” (fear of floating). O sucesso no combate à inflação também favoreceu a transição para a flutuação. Além disso, os sistemas financeiros nacionais e as empresas domésticas aprenderam a conviver com a instabilidade do câmbio, criando mecanismos variados de hedge, ao passo que os bancos centrais passaram a intervir para conter surtos de volatilidade, além de aventurarse volta e meia a atuar contra desalinhamentos persistentes do câmbio, o chamado leaning against the wind. A Europa, de novo, é um caso especial. A maioria dos europeus, aqueles que entraram para a área do euro, fizeram duplo movimento: transitaram para a opção c no que diz respeito às relações intraeuro (suprimindo as moedas nacionais, o que equivale à fixação perene das taxas de câmbio), mas mantiveram o euro na opção b em relação ao resto do mundo.6 O pano de fundo dessa mudança de preferências no campo cambial é, como indica o quadro de análise de Mundell e Fleming, o firme propósito de preservar a autonomia da política monetária nacional (ou regional, no caso do euro) em face da crescente integração dos mercados financeiros e de capitais.
2. Valor externo da moeda, regimes cambiais, autodefesa Como se depreende da seção anterior, é do mesmo ângulo – do ângulo da nação – que se deve considerar, também, a definição do regime cambial e da política cambial. A dimensão nacional/internacional aparece nesse caso de forma imediata e inequívoca, eis que estamos tratando da relação entre sistema monetário nacional e sistemas monetários estrangeiros. A menos que seja possível fechar em grande parte a conta de capitais do
balanço de pagamentos, em particular no que se refere ao segmento de curto prazo (empréstimos de curta duração, equity etc.), o regime cambial deve ser flexível, pois esta é a condição para manter autonomia da política monetária. Essa autonomia, recorde-se, é indispensável por uma razão prática e concreta: como as condições macroeconômicas dos países divergem com frequência, seja porque não há sincronia entre os ciclos econômicos, seja porque os países estão sujeitos a choques assimétricos, é preciso adotar políticas monetárias próprias, condizentes com as condições nacionais – aceitar o contrário pode forçar a adoção de políticas pró-cíclicas e levar até ao desastre, como aconteceu com o Japão na segunda metade da década de 1980. Pressionado pelos Estados Unidos, o Japão concordou em coordenar sua política monetária e de câmbio com a da Reserva Federal e as dos principais bancos centrais europeus, aceitando, na prática, subordiná-la a considerações extranacionais. O Banco do Japão foi instado a seguir políticas monetárias que eram excessivamente expansivas do ângulo doméstico, o que alimentou grande inflação de ativos, criando bolhas perigosas em vários mercados. As consequências seriam nefastas para o Japão; o estouro das bolhas no mercado de ativos, no início dos anos 1990, inaugurou prolongado período de estagnação, que o país teve grande dificuldade de superar. A experiência nacional e internacional das últimas décadas confirmou, como notei, que a flutuação é o regime cambial consistente com autonomia na gestão da moeda em países que aceitaram forte integração com o resto do mundo na conta de capitais, como haviam antecipado Fleming e Mundell no começo da década de 1960. É interessante ressaltar que a China trilhou caminho diferente: manteve a conta de capitais razoavelmente fechada, aplicando uma bateria de controles e restrições de diferentes tipos, e pôde, assim, continuar com um regime de câmbio fortemente administrado, controlando a taxa de câmbio, sem abrir mão de independência monetária. O caso do Brasil, desde a década de 1990, foi em certo sentido oposto ao da China e, como sabemos, muito menos bem-sucedido. Aceitou-se liberalização prematura e quase completa da conta de capitais, o que nos forçou, depois de algumas vacilações e crises cambiais, notadamente a de 1998, a migrar para a flutuação do real. Outro problema a destacar é que nossa flutuação foi, regra geral, “limpa” demais, isto é, excessivamente livre. Não se levou na devida conta que a flutuação, particularmente em economias menos desenvolvidas, precisa ser “suja” ou administrada – não só para evitar volatilidade excessiva, mas também, e mais importante, para impedir desalinhamentos persistentes da taxa cambial, isto é, períodos prolongados de subvalorização da taxa cambial (com implicações inflacionárias) e de sobrevalorização (com implicações
estagnacionistas). A economia brasileira tem sido presa fácil para o segundo tipo de desalinhamento nas últimas quatro décadas – isso favoreceu a superação da inflação crônica, mas manteve a economia em ponto morto e produziu desindustrialização prematura. A sobrevalorização cambial tem ocorrido, no caso brasileiro das décadas recentes, em razão de fatores comerciais (descoberta de recursos naturais, aumento das exportações de produtos primários ou alta dos termos de intercâmbio) ou de fatores financeiros (superoferta de liquidez nos mercados externos de capital). O primeiro aspecto, a “doença holandesa” ou a “maldição dos recursos naturais”, sempre lembrado, e com razão, por Bresser-Pereira,7 não é necessariamente o dominante. Em vários momentos, a pressão altista sobre o real decorreu, primordialmente, da superabundância de capitais do exterior. A resposta do Brasil, em especial no período Lula, foi intervir comprando reservas internacionais, o que ajudou a moderar a pressão altista sobre a moeda nacional e, ao mesmo tempo, fortaleceu a segurança externa. No governo Dilma, recorreu-se também a controles seletivos na entrada de capitais, com aplicação do IOF não só no mercado à vista de câmbio, mas também sobre derivativos. Outra possibilidade, que tem sido muito menos usada do que no passado, é lançar mão de instrumentos extracambiais, isto é, tarifas de importação e barreiras não tarifárias, incentivos de vários tipos à exportação (fiscais, creditícios etc.) ou, dependendo da situação, até mesmo impostos sobre exportações ou outros controles de exportação, como lembrado também por Bresser-Pereira.8 Como se sabe, a principal razão da menor utilização desses instrumentos extracambiais é o aumento das restrições derivadas dos acordos no âmbito da Organização Mundial de Comércio. Mesmo assim, cabe explorar, sempre que necessário, o espaço existente para acionar esses instrumentos, admitindo-se que exista capacidade administrativa em nível nacional e disposição de enfrentar possíveis objeções em nível multilateral. A esse respeito, convém fazer uma observação, que se tornou particularmente relevante em 2019, em razão das negociações entre os governos Trump e Bolsonaro. Não interessa ao Brasil abrir mão do tratamento especial e diferenciado de que usufruem os países que se autodeclaram “em desenvolvimento” na OMC. Não é por acaso que os emergentes, entre eles China e Índia, resistem à proposta dos Estados Unidos de que esse tratamento se aplique apenas a países menos desenvolvidos, com exclusão dos emergentes. Abdicar desse regime especial resultaria em restringir ainda mais o grau de liberdade para aplicar instrumentos extracambiais, além de retirar do nosso alcance algumas outras prerrogativas jurídicas ou negociais na OMC.
Pior ainda é fazer o que foi esboçado pelo governo Bolsonaro em resposta a pressões dos Estados Unidos – abandonar o tratamento especial e diferenciado em troca do presente de grego da entrada do país na OCDE, entidade dominada pelos principais países desenvolvidos. São muito abrangentes e numerosas as obrigações e normas, elaboradas pelos Estados Unidos e outros países avançados, e impostas aos países-membros da OCDE. Essas obrigações são compatíveis com o nível de desenvolvimento e os interesses estratégicos desses países mais avançados, no seu atual nível de desenvolvimento, mas conflitam com prioridades e necessidades de países em estágio diferente de desenvolvimento econômico e social. A sua adoção pelo Brasil acabaria de eliminar grande parte da autonomia de que ainda dispomos para conduzir políticas públicas em diferentes áreas. Não é por acaso que nenhum outro país dos BRICS está pleiteando ingresso nessa organização. Admitindo-se, para efeito de raciocínio, que nos interessasse aderir à OCDE por outras razões, reais ou imaginadas, permanece o fato de que a abdicação do tratamento especial e diferenciado na OMC não foi exigida de nenhum dos outros países em desenvolvimento que já são membros da OCDE ou que estão na fila de entrada. A entrada na OCDE bloquearia, ou muito dificultaria, a adoção de medidas para administrar a conta de capitais do balanço de pagamentos. Nada de comparável existe no arcabouço jurídico do FMI, como expliquei no capítulo 1 deste livro. Só isso já é razão para não buscar o ingresso na OCDE. A administração da conta de capitais é indispensável, tanto no que se refere a certos tipos de entradas como a certos tipos de saídas de capital. Por exemplo, convém, em determinadas circunstâncias, introduzir restrições bem pensadas aos influxos de capitais voláteis ou de curto prazo, como foi feito no governo Dilma. Também é conveniente, para dar outro exemplo, manter restrições a saídas de capital de pessoas físicas residentes ou, ainda, estabelecer que fundos de pensão baseados no território nacional fiquem limitados a um determinado teto em termos de investimentos no exterior. Finalmente, uma lição que ficou das últimas décadas de instabilidade e turbulência financeira internacional, tirada por boa parte dos principais países emergentes, é a necessidade de manter um nível permanentemente elevado de reservas internacionais. Esse é um trunfo indispensável para garantir a segurança externa da economia e, vou mais longe, a própria segurança nacional. São as reservas elevadas que dispensam o apoio financeiro externo em tempos adversos. O apoio de outros países, do FMI e das organizações internacionais, como se sabe, nunca vem de graça e nunca sem strings attached. Dependendo
das circunstâncias, esse apoio pode sair muito caro em termos dos interesses nacionais permanentes. Afinal, são muitos os casos de países que, sem reservas próprias em tempos de crise cambial, foram obrigados a fazer concessões de caráter estratégico. O próprio Brasil, por exemplo nos tempos de Fernando Henrique Cardoso e em épocas anteriores, tem histórias a contar a esse respeito. Em uma frase, a combinação recomendável para países como o Brasil, inclui flutuação administrada, leaning against the wind para evitar desalinhamentos cambiais, uso criterioso de diferentes tipos de instrumentos extracambiais para regular os fluxos comerciais, administração da conta de capitais do balanço de pagamentos e reservas internacionais elevadas. Todos esses instrumentos e políticas aplicados de maneira consistente e simultânea formam um regime de autodefesa capaz de favorecer o crescimento da economia, protegê-la contra choques externos de diferentes tipos e preservar a autonomia nacional.
3. Políticas e regimes fiscais para o desenvolvimento O mesmo fio condutor e um arcabouço analítico análogo se aplicam às políticas e aos regimes fiscais. Há vários motivos para preservar certo equilíbrio das contas públicas ou manter o déficit sob controle – um deles, e não o menor, é a necessidade de proteger a independência da política econômica nacional da instabilidade dos mercados financeiros internos e, sobretudo, externos. Esse aspecto merece mais destaque do que geralmente recebe. Mangabeira Unger, que nem é economista, tem sido um dos poucos a ressaltá-lo no debate brasileiro. A questão pode ser explicada em poucas palavras. Como existem limites ao que se pode obter via financiamento monetário, quanto maior o déficit público, maior também a dependência de financiamento novo e, portanto, maior a vulnerabilidade em relação aos humores flutuantes dos financiadores nacionais e estrangeiros. O déficit não coberto por emissão de base monetária gera ampliação da dívida e encargos adicionais de juros, realimentando o déficit e crescimento da dívida. O déficit ideal, por suposto, não é o déficit zero – não há regra simples em política fiscal ou, for that matter, para a política econômica em geral. O déficit permitido ou sustentável é aquele que, considerados outros objetivos da política fiscal e o perfil temporal da dívida, não coloca o setor público à mercê dos ditames do mercado, especialmente dos investidores externos e do endividamento em moeda estrangeira. O ajuste fiscal, antes de servir para gerar a “confiança do mercado”, serve para tornar o país e o setor
público independentes dessa variável imprevisível e pouco confiável. Déficits moderados, combinados com prazo médio elevado das obrigações e reduzidas participações de investidores e moedas estrangeiras na dívida pública, proporcionam ao Estado nacional independência em relação às flutuações e instabilidades do mercado. A ninguém ocorre ignorar a relevância da disciplina fiscal, frise-se. Ela pode ser indispensável para apoiar a política monetária quando a economia está excessivamente aquecida e provoca inflação e/ou desequilíbrios nas contas externas correntes. E, como indicado, a parte do déficit não financiada com expansão primária da moeda tem como contrapartida, por definição, um aumento pro tanto no estoque da dívida pública.9 Mas é essencial adotar objetivos fiscais condizentes com o desenvolvimento, que podem ser consagrados em regras explícitas, até com amparo legal. O governo sempre usa (ou, pelo menos, deveria usar) uma multiplicidade de indicadores para acompanhar a evolução da política fiscal e das contas públicas. Mas o alvo da política fiscal não deve ser o resultado nominal (que é particularmente difícil de controlar e muito sensível a outras políticas que não a fiscal) e nem o resultado primário (que funciona como foco da política fiscal no Brasil e muitos outros países) – ainda que esses conceitos não sejam irrelevantes e precisem ser acompanhados regularmente. Preferível seria pautar a política fiscal por outro indicador, que levasse em conta a distinção clássica – e fundamental – entre gastos correntes e gastos de investimento – incluindo nestes últimos, porém, não só os tradicionais investimentos físicos, mas também os investimentos em capital humano.10 Tal como habitualmente definido, o resultado primário corresponde à diferença entre a soma de todas as receitas não financeiras e a soma de todos os gastos correntes não financeiros do setor público, inclusive aqueles que, como os investimentos de infraestrutura e as despesas de educação, têm efeito decisivo sobre a oferta agregada e o desenvolvimento nacional no longo prazo. Pode-se arguir, até mesmo, que por assegurar, em última análise, a própria sobrevivência da nação, os gastos militares em seu conjunto devem ser tratados como investimentos e excluídos da apuração do resultado relevante para a execução da política fiscal.11
4. Disciplina macroeconômica e desenvolvimento nacional
Os regimes fiscal e monetário devem ser configurados de forma a favorecer a consecução simultânea de dois grandes objetivos nacionais que podem parecer contraditórios, mas não são – a disciplina e o desenvolvimento de longo prazo. Não pretendo tratar, neste texto, das políticas de curto prazo e seus dilemas. Registro apenas que tanto a política fiscal como a monetária devem ser conduzidas em coordenação e sintonizar-se com a situação cíclica da economia. Como se sabe, uma economia superaquecida pede políticas fiscais e/ou monetárias restritivas; uma economia em retração requer alguma expansão fiscal e/ou monetária. A combinação de restrição/expansão fiscal e monetária, a ênfase relativa que se deve dar a um instrumento ou outro, só pode ser determinada à luz do quadro macroeconômico. É justamente isso que recomenda a coordenação entre as autoridades fiscais e monetárias, e não a “independência” das segundas em relação às primeiras.12 A coordenação fiscal e monetária não é bem vista pelas teorias dominantes, mas o papel anticíclico das políticas macroeconômica é aceito pelos economistas, ainda que em graus variáveis. Talvez menos conhecido, menciono de passagem, é o fato de que políticas de austeridade fiscal podem ter impacto mais pronunciadamente recessivo em economias já estagnadas ou em retração, como ficou claro na crise dos países desenvolvidos, em particular na área do euro, nos anos posteriores a 2008. O FMI, por exemplo, foi obrigado a rever para cima as suas estimativas dos multiplicadores fiscais para as economias avançadas, especialmente aquelas que foram submetidas a recessões profundas, como a da Grécia e outras da periferia europeia.13 Registre-se, também en passant, que a observação direta, sem ajustamentos, dos resultados do setor público pode induzir a políticas fiscais pró-cíclicas. Analogamente, a observação exclusiva de índices de preços “cheios”, isto é, sem ajustes para excluir choques inflacionários de caráter temporário, pode desencaminhar a política monetária. Para reduzir esses riscos, é sempre possível orientar as políticas fiscal e monetária por indicadores ajustados – estimando, por exemplo, resultados fiscais “estruturais” e núcleos inflacionários, respectivamente.14 Porém, não há como estimar, de forma inequívoca, resultados estruturais e a tendência da inflação, o que dificulta a adoção de variáveis ajustadas como alvos da política fiscal e da política monetária. Mesmo assim, é indispensável que as autoridades fiscais e monetárias calculem e divulguem regularmente esses indicadores estruturais ou de tendência,15 utilizando-os para informar as suas políticas macroeconômicas. Mas deixo de lado questões cíclicas para focar na dimensão de longo prazo
das políticas macroeconômicas, em especial na necessidade de conciliar disciplina com crescimento de longo prazo. O ponto não é novo. Por um lado, de pouco vale, à moda de Salazar, assegurar a disciplina, mas asfixiar o desenvolvimento. Por outro, acelerar o desenvolvimento sem considerar as restrições macroeconômicas termina invariavelmente em crises inflacionárias e/ou de balanço de pagamentos, como aconteceu tantas vezes no Brasil e em outros países da América Latina. Em nenhum desses cenários extremos, o país garante a consecução dos objetivos nacionais. Contrariamente ao que às vezes se prega no campo liberal, colocar a casa fiscal e monetária “em ordem” não garante, repito, o desenvolvimento econômico. Pode, ao contrário, solapá-lo, como mostra o exemplo de Portugal no período Salazar. Tudo depende da forma como se estabelecem as políticas fiscais e monetárias ao longo do tempo. A disciplina fiscal pode ser mais ou menos amigável ao crescimento econômico. Excesso de contenção fiscal, especialmente quando centrada no investimento público, derruba o nível de atividade e reduz o potencial de desenvolvimento no longo prazo. Uma overdose de restrição monetária pode afetar negativamente a taxa de crescimento, inclusive no longo prazo, ponto nem sempre reconhecido. Uma razão, não necessariamente a única e nem mesmo a principal, é que uma orientação excessivamente restritiva da política monetária pode resultar em sobrevalorização persistente do câmbio, o que solapa a competitividade internacional e as contas externas correntes e deprime o crescimento da economia nacional.
5. Mandato eclético para o Banco Central Daí que é útil conferir um mandato eclético ou dual ao Banco Central, semelhante ao que tem a Reserva Federal nos Estados Unidos. Isso significa inscrever não só a estabilização monetária, mas o crescimento econômico como obrigações no estatuto da autoridade monetária. O regime de metas para a inflação, a rigor, não permite essa duplicidade de objetivos. É verdade que o formato adotado no Brasil, com intervalos amplos em torno do cerne da meta central, confere flexibilidade à política monetária, permitindo inclusive buscar algum crescimento como meta implícita. No entanto, mesmo nessa variante flexível, o regime de metas para a inflação, como já indica seu nome, coloca peso excessivo em um aspecto da atuação do Banco Central, deixando na sombra a questão do crescimento.
Os economistas acostumaram-se nas décadas recentes a proclamar a adesão ao ponto de vista friedmaniano de que a moeda não tem efeitos de longo prazo sobre o crescimento. A proposição pode ser atraente – e é válida sob determinadas hipóteses. Como base nela, diversos países se animaram, em décadas recentes, a fixar a estabilidade monetária como objetivo exclusivo, ou primordial, dos bancos centrais. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso do Banco Central Europeu, criado numa época em que essas teorias comandavam aceitação generalizada.16 Eventuais sacrifícios em termos de produção e empregos seriam, supunha-se, meramente temporários. Porém, como indicado, a proposição só se sustenta com suposições bem determinadas. Exclui-se, por exemplo, o óbvio – o longo prazo é uma sucessão de curtos prazos. (Infelizmente, leitor, o Conselheiro volta a marcar presença.) Essa obviedade pode ser desdobrada em observações um pouco menos triviais. A taxa de crescimento potencial é influenciada decisivamente pelas taxas de crescimento vivenciadas ano a ano – isto por várias razões, hoje amplamente reconhecidas. Entre elas, pode-se mencionar, por exemplo, que os desempregados de longo prazo perdem capacidade produtiva e vão se tornando “inempregáveis”. Ou que a capacidade produtiva física instalada e não utilizada também não é, a rigor, fixa: a falta de uso leva à sua progressiva destruição e obsolescência. Ou que o progresso técnico requer, no mais das vezes, investimentos novos e que, assim, períodos prolongados de baixa utilização da capacidade e reduzidas taxas de investimento agregado costumam estar associados a lento progresso técnico com efeitos negativos sobre o produto potencial. Ou, ainda, que o crescimento lento ou a estagnação prolongada vão inviabilizando empresas que se tornam irrecuperáveis, perdendo-se capacidade empresarial no processo. Histerese, em suma. Em uma frase: a repetição de taxas decepcionantes de crescimento rebaixa inevitavelmente o potencial de crescimento no longo prazo. Inversamente, por razões simetricamente análogas, uma economia relativamente aquecida termina por gerar dinamismo de longo prazo – desde que, repita-se, o aquecimento não se torne excessivo a ponto de gerar inflação alta e/ou desequilíbrios externos não financiáveis em bases voluntárias. Em parte por essas razões, a maioria dos bancos centrais, na prática, já segue o modelo eclético da Reserva Federal, ainda que prefiram disfarçá-lo com alegações, sempre ligeiramente suspeitas, de que a taxa de crescimento do produto ou a taxa cambial só são consideradas na medida em que influem sobre a taxa de inflação – esta, sim, a preocupação primordial ou única da autoridade monetária.
Raciocínio semelhante vale para a inflação alta. Também aqui não há neutralidade da política monetária. Se ela gera inflação persistente, acima de determinados níveis, dois dígitos anuais ou mais, o resultado provável é a diminuição do crescimento potencial. A forma de evitar ou postergar esse efeito adverso, muito presente na história monetária brasileira, é generalizar a correção monetária, começando pela correção da taxa cambial, dos impostos e dos títulos públicos de prazo mais longo. A longa experiência brasileira com a indexação generalizada a índices de preços domésticos mostra duas coisas, pelo menos. Primeiro: se houver aplicação consistente da correção monetária e razoável confiança nos índices de preços e nos contratos indexados, a indexação permite longo convívio com inflação alta sem impedir taxas elevadas de crescimento econômico. Segundo: o sistema indexado convive mal, entretanto, com choques de preços relativos que podem, no limite, conduzir a uma aceleração destrutiva da inflação, como se viu nas décadas de 1970 e 1980.
6. Nacionalismo, distribuição de renda e democracia Um mandato eclético para a autoridade monetária e um regime fiscal que concilia disciplina e promoção do crescimento são partes de um programa mais abrangente em que as políticas macroeconômicas no seu conjunto ficam subordinadas ao desenvolvimento nacional como objetivo central permanente. Essa exigência vale para todas as nações que se prezem, mas especialmente para países como o Brasil que precisam escapar da armadilha da estagnação ou do crescimento lento. A economia do país experimenta há quatro décadas uma semiestagnação, isto é, taxas de crescimento per capita muito reduzidas, mostrando-se incapaz de gerar os empregos na quantidade e qualidade necessárias. Desde a década de 1980, temos conseguido apenas surtos de crescimento que duram no máximo alguns anos para desembocar, em seguida, no estancamento da atividade econômica. O Brasil não só não vem conseguindo convergir para o nível de desenvolvimento dos avançados como vem perdendo peso relativo na economia mundial. O crescimento sustentado ao longo do tempo é vital. Mas desenvolvimento nacional, para merecer esse nome precisa, sempre, ser inclusivo, isto é, envolver progresso social e uma distribuição razoavelmente equitativa dos frutos do crescimento econômico. As políticas públicas em diferentes áreas, do lado do gasto, da tributação e do crédito, em todos os setores de atuação da máquina governamental, devem buscar sistematicamente eliminar a fome e a pobreza,
generalizar o acesso à educação e saúde, melhorar a distribuição da renda e da riqueza. O mercado, por si só, gera dinamismo econômico, ou pode gerá-lo em condições propícias, mas não assegura uma distribuição aceitável dos resultados do processo econômico. E o assim chamado terceiro setor pode complementar de forma limitada, mas nunca substituir a atuação distributiva do Estado nacional e dos entes subnacionais. Há quem deposite mais esperanças no terceiro setor, na solidariedade espontânea, nas entidades filantrópicas, e até no papel das forças espontâneas de mercado. Não faltam os que apontam, nem sempre sem razão, a intervenção estatal como geradora de privilégios e concentração de renda. Não tenho como entrar nessa discussão agora. Uma coisa, porém, parece difícil de recusar: com a crônica concentração de renda e riqueza que se observa no Brasil, não há como sustentar um projeto nacional autêntico, enraizado. Como assegurar solidariedade real e duradoura do povo com a nação? E a nação sem povo, o que é? Uma abstração para consumo de intelectuais? Uma simbologia vazia? Algo mais do que isso? O povo brasileiro, com a paciência que o caracteriza, mantém os vínculos com a pátria e gostaria de se sentir parte da nação. Mas se o quadro de pobreza e desigualdade não muda, a paciência do brasileiro comum vai se esgarçando, possivelmente de forma irreversível. Assim, políticas distributivas bem pensadas e executadas de forma enérgica e persistente constituem ingrediente indispensável de uma política econômica e social nacionalista. Ao dizê-lo entramos ipso facto no terreno da política e dos sistemas políticos. A orientação social das políticas públicas e a distribuição de renda como metas centrais dificilmente se sustentam por outorga, concedidas de cima para baixo. Podem até começar dessa forma, mas não sobrevivem assim. O Estado de bem-estar social remonta, curiosamente, a Bismarck, governante conservador que implantou pioneiramente, no final do século XIX, políticas de proteção social – entre as quais, seguro-saúde, aposentadoria, seguro para acidentes de trabalho e invalidez – como meio de assegurar base social para o Estado em uma Alemanha recém-unificada, ainda em fase de consolidação. Mas Bismarck não teria interesse ou condições de seguir esse caminho se não estivesse pressionado pela social-democracia alemã, partido operário mais importante da Europa na época. E como imaginar que as políticas de proteção pudessem ser mantidas e desenvolvidas, como políticas permanentes, na Alemanha como em outros países avançados, sem as lutas e a ação política dos trabalhadores e outros segmentos da sociedade? A história do século XX é testemunha disso. O regime político compatível com o Estado de bem-estar social é a
democracia moderna, representativa. Sem eleições livres e gerais, e todos os atributos que caracterizam o Estado de direito moderno, a voz das maiorias não se faz sentir na definição da política econômica e social. Por isso, ser nacionalista é ser democrata. E, mais do que isso, lutar pelo aperfeiçoamento da democracia em todos os seus aspectos para que não aconteça o que se vê até em países com tradições democráticas mais arraigadas: a sua degeneração em plutocracia. Lamento, leitor, se estou enveredando um pouco para uma simples e possivelmente enfadonha declaração de princípios e boas intenções. Só tenho uma desculpa, espero que aceitável: o nacionalismo está sempre sujeito à tentação autoritária. E quando sucumbe a ela, tem vida curta ou vira mero instrumento de propósitos escusos.
7. O nacionalismo em face das questões ambientais e da órbita multilateral Antes de concluir, preciso introduzir brevemente outra dimensão do problema, em larga medida ausente do nacional-desenvolvimentismo clássico – a questão ambiental. Até as décadas finais do século passado, a questão ainda podia ser ignorada ou deixada em segundo plano. Não era central nas obras iniciais de Prebisch, Furtado e outros economistas da primeira geração do nacionaldesenvolvimentismo latino-americano.17 A minha geração de economistas não a encontrou nos currículos universitários. No século XXI, contudo, constitui questão macro inescapável, preocupação prioritária ou condicionante inevitável dos planos de todos os governos. A questão ecológica ou ambiental transcende, a um só tempo, duas realidades: o mercado e a nação. Ela envolve, por um lado, externalidades impossíveis de enfrentar sem a intervenção do Estado, direta, tributária ou regulatória; o capital privado deixado à sua própria dinâmica produz destruição ambiental e consome sem repor recursos não renováveis. Por outro lado, a solução não pode ser alcançada exclusivamente no âmbito do Estado nacional, sem cooperação internacional. Isso é aceito de forma bastante geral, nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento – tanto que acordos internacionais e intergovernamentais constituem peça-chave das ações em defesa do planeta. Para os propósitos da discussão que ora vou concluindo, o ponto essencial é
que para essas questões o nacionalismo do século XXI é necessariamente internacionalista. Não pode, portanto, ser hostil ao multilateralismo – como é o nacionalismo atrasado, regressivo de Donald Trump e de alguns de seus seguidores ou imitadores, inclusive aqui no Brasil. Como abrir mão da cooperação internacional que se realiza, em geral, por meio de organizações multilaterais, tratados internacionais e iniciativas de cooperação global ou regional? Isso está inscrito, insisto, na própria natureza dos problemas ambientais, que incluem spillovers de uma nação para outra e envolvem fenômenos, como o aquecimento da Terra, que só podem ser enfrentados por ampla coligação de forças nacionais. Isso dito, os textos deste livro que tratam de ações e entidades multilaterais ou plurilaterais, como G20, FMI e BRICS, mostram as armadilhas e as deficiências do que temos no campo internacional. A ação nacional na esfera internacional precisa, então, pautar-se pela compreensão de que o espírito de cooperação e entendimento deve ser presidido pela defesa dos interesses do país em todas suas dimensões. O nacionalismo de que precisamos é um nacionalismo ao mesmo tempo aberto e defensivo, cooperativo e cauteloso – uma mistura singular de esperança e ceticismo.
INDEPENDÊNCIA PARA O BANCO CENTRAL?
O texto a seguir é a transcrição de uma exposição na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados. O governo do presidente Lula, por intermédio do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, havia anunciado a intenção de encaminhar ao Congresso projeto de lei de responsabilidade monetária que redesenharia as funções e atribuições do Banco Central, assegurando-lhe independência ou autonomia. Para debater o tema, a Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara resolveu então realizar o seminário “Banco Central – Autonomia versus Independência”, em 10 de junho de 2003. A minha exposição, transcrita a seguir, foi parte do primeiro painel, presidido pelo deputado Delfim Netto, que teve a participação do ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros. Transcrevo também parte do debate com parlamentares e outros integrantes da plateia. As críticas que apresentei à proposta de independência para o Banco Central causaram algum desconforto, levando o deputado Delfim Netto a referir-se a meus argumentos como “terroristas demais” e o ex-ministro Mendonça de Barros a tachar-me de “muito amargo”. O deputado Enéas – que se notabilizara como candidato à Presidência da República com o bordão “Meu nome é Enéas!” – resolveu me defender, e disse, arrancando gargalhadas da plateia, que eu não era amargo, mas, ao contrário, doce, e que amargo era ele, como se veria na sua intervenção. O governo Lula acabaria abandonando a ideia de patrocinar a independência ou autonomia formal do Banco Central. Apresentador (Deputado Delfim Netto) – Meu caro Presidente, deputado Léo Alcântara, senhores membros da mesa, minhas senhoras, meus senhores, é para mim motivo de grande alegria e orgulho participar deste seminário com tão ilustres debatedores. Há hoje nesta Comissão dois profissionais de altíssima qualidade que têm dado contribuição importante à análise da economia brasileira.
Concedo a palavra ao Sr. Paulo Nogueira Batista. Paulo Nogueira Batista Júnior – Agradeço ao deputado Delfim Netto, à Comissão de Desenvolvimento Econômico, em especial ao seu Presidente, deputado Léo Alcântara, pelo convite para participar deste seminário. No meu modo de ver, a questão da independência ou autonomia do Banco Central deve ser tratada à luz de certas tendências econômicas e políticas no mundo e no Brasil, em particular. Na evolução da economia mundial desde a década de 1970, cabe levar em conta um fato importante para o debate a respeito do Banco Central do Brasil: trata-se da hipertrofia da dimensão financeira do processo econômico. O crescimento dos fluxos e dos mercados financeiros foi realmente espantoso, especialmente dos capitais voláteis e de curto prazo. A isso corresponde, no plano político, o crescimento do poder do capital financeiro. É claro que o poder do capital financeiro sempre foi substancial. Mas nos últimos 30, 40 anos, esse poder se agigantou, no mundo inteiro. Nos vários países, formaram-se ou consolidaram-se lobbies poderosíssimos. Poder-se-ia dizer que hoje, como nunca, o capital financeiro é a fração hegemônica do capital. O fenômeno ocorre em escala mundial. O centro desse poder pode ser chamado de eixo Wall Street-Washington ou, para usar as palavras do economista liberal indiano radicado nos Estados Unidos, Jagdish Bhagwati, de Wall Street-Treasury complex. A influência e o alcance desse eixo de poder político variam muito de país para país. Nos países em desenvolvimento a realidade é uma; nos países desenvolvidos, outra. Nos países centrais, nos principais países, há o contraponto de instituições públicas mais sólidas, os Estados estão mais estruturados e as tradições democráticas, mais arraigadas. Mesmo nos países em desenvolvimento, a experiência dos vários Estados nacionais na sua relação com o eixo Wall Street-Washington é muito variável. Temos perto de nós um caso extremo de dependência financeira, que gerou custo extremamente alto, a Argentina. Ela se entregou de corpo e alma a esse eixo de poder ao longo da década de 1990. Mas temos também casos de países em desenvolvimento ou de economia emergente que, nesse mesmo ambiente internacional, souberam manter relação mais prudente com os mercados financeiros internacionais e apresentaram desempenho macroeconômico muito melhor em termos de crescimento e de estabilidade, como a China, a Índia e a Rússia pós-Iéltsin. Entre os países que acabei de mencionar há diferenças, mas também traços comuns. China e Índia, por exemplo, mantiveram moedas inconversíveis,
controles de capital, equilíbrio ou pequenos déficits na conta corrente do balanço de pagamentos, em alguns períodos até superávits em conta corrente, e reservas internacionais altas. A influência, nesses países, dos consensos econômicofinanceiros que percorrem o mundo em busca de consumidores incautos foi muito menor. O desempenho deles, não por acaso, muito melhor. O Brasil está localizado entre esses dois extremos. Infelizmente, estamos mais próximos do extremo argentino do que da experiência dos países bemsucedidos. Em países como a Argentina e, em menor medida, o Brasil, a política econômica foi aprisionada por esse eixo externo de poder político-financeiro e suas ramificações domésticas. As dificuldades do governo Lula em reorientar a política econômica e honrar seus compromissos eleitorais talvez sejam indícios da dimensão do problema que se criou nas últimas décadas. A discussão sobre a independência do Banco Central não pode estar dissociada desse problema mais amplo. Esclareço, porém, desde logo, que ao falar em aprisionamento, não quero passar a impressão de que estamos vivendo situação irreversível e de que estaríamos condenados a uma espécie de prisão perpétua. Mesmo a Argentina está, a duríssimas penas, escapando desse esquema. Como esse eixo de poder político-financeiro internacional domina e se perpetua? A resposta é conhecida em vários aspectos. É claro que o dinheiro é sempre um argumento muito importante. Proporciona, por exemplo, influência e controle sobre os meios de comunicação de massa. Mas há um outro aspecto que gostaria de mencionar: o controle sobre as ideias econômicas, sobre o ensino de economia. O padrão predominante é o das principais universidades americanas, que vem sendo exportado para o resto do mundo. Boa parte dos departamentos de economia das universidades brasileiras transformou-se em consumidor passivo desse padrão de ensino e de pesquisa. De modo geral, há uma tendência à padronização do discurso econômico. Não em todo o mundo, não de forma indiferenciada, mas a tendência existe. O resultado é um estilo de ensino e pesquisa muito abstrato, matematizado, com pouco conteúdo histórico, traços de intolerância e dogmatismo, carga ideológica muito pesada e um viés contra o Estado e a dimensão nacional dos problemas. Por incrível que pareça, na área de economia, ao contrário do que acontece em muitas outras áreas de trabalho, criatividade virou um vício, um problema, tal a padronização que se impõe ao pensamento. O sujeito, antes de ser criativo, tem que pensar com muito cuidado, porque pode sofrer consequências graves. [Risos] Os sistemas universitários americano e europeu cumprem há muito tempo uma função bem determinada. Já que os países da periferia não podem ser
governados diretamente por estrangeiros, porque seria muito acintoso, convém treinar as elites periféricas. Vou usar uma palavra até mais forte: trata-se de adestrar as elites da periferia, de condicioná-las a pensar e agir de determinadas maneiras. Cria-se, assim – vou tomar emprestada uma expressão de Charles de Gaulle, porque é sempre bom poder recorrer a uma autoridade inconteste, quando se vai dizer algo forte –, cria-se uma tecnocracia financeira apátrida, que ocupa boa parte dos postos de comando nos ministérios de Finanças e nos bancos centrais dos países em desenvolvimento. Muitas vezes a passagem pelo ministério ou pelo banco central é apenas um degrau, um passo para postos importantes no sistema financeiro local e internacional. Evidentemente, desde que o funcionário siga certos padrões e dance conforme a música. Nesse caso, ele pode ter um futuro brilhante no eixo Wall Street-Washington e suas ramificações domésticas. Pois bem, Sr. Presidente, nesse ambiente, se tenho razão em descrevê-lo assim, se não estou exagerando, e creio que não estou, a autonomia ou a independência do Banco Central é um perigo para o Brasil. Isso iria consolidar e aprofundar a perda de controle sobre a definição dos rumos da política econômica nacional. Não estamos aqui lidando com um problema recente; o problema é antigo. Gosto de citar o senador Severo Gomes, um grande frasista, que, na década de 1980, quando a esquerda do PMDB queria propor a estatização do sistema financeiro, disse que já se daria por satisfeito se conseguíssemos estatizar o Banco Central. [Risos] A questão é a seguinte: independência em relação a quem? Em relação ao poder político, eleito democraticamente, ou em relação às forças financeiras, que têm uma relação simbiótica com os bancos centrais, como no caso do Brasil? Na minha opinião, ao longo dos anos, ocorreu um fenômeno que é relativamente conhecido: a captura do regulador pelo regulado; do Banco Central pelo sistema financeiro, que ele deveria regular. Isso acontece em vários países, mais frequentemente em países que têm uma estrutura precária, onde o Estado é frágil. Aí os interesses privados conseguem fatiar, feudalizar o aparato estatal e exercer sobre ele um controle bastante prejudicial do ponto de vista do interesse público mais amplo. Creio que dar mandatos fixos e longos à Diretoria do Banco Central agravaria esses problemas. Estaríamos, caso os srs. deputados e senadores concordem com essa proposta, removendo o contrapeso algo frágil que existe hoje: a possibilidade que tem o Poder Executivo eleito de demitir e substituir o
comando da instituição. Não podemos esquecer que o Brasil é um país em desenvolvimento, com uma institucionalidade débil, uma tradição democrática em construção. O risco de errar na escolha de um presidente, de um diretor do Banco Central é muito grande. Recentemente, almocei em São Paulo com um grande banqueiro brasileiro, que me disse ter sérias dúvidas sobre a autonomia do Banco Central, sobre a conveniência de dar mandatos fixos à sua Diretoria. Quando lhe falei que essa sua opinião me surpreendia, ele respondeu que não era tão ortodoxo quanto eu pensava e que, ao lembrar quem já tinha sido presidente e diretor do Banco Central do Brasil, ele ficava com medo. [Risos] São palavras de um grande banqueiro; não sou eu quem está dizendo isso. Falta transparência na atuação do Banco Central. Os mecanismos de prestação de contas são muito frágeis, e não apenas por culpa do Banco Central, mas também do Congresso, no meu entender. O Poder Legislativo exerce, sim, a função de fiscalizar, mas nem sempre de forma satisfatória. As sabatinas do Senado Federal para aprovar os nomes designados para a Diretoria do Banco Central costumam ser rotineiras, de caráter homologatório. Parece-me fundamental deixar bem claro que, quando chega aqui alguém e diz que esse órgão será autônomo, mas não independente, porque vai receber as metas do poder político eleito e terá autonomia apenas para, no espaço do mundo da técnica, controlar a inflação e cumprir as metas fixadas, está-se criando um certo ilusionismo. A função de perseguir determinadas metas de inflação, é fundamental, importantíssima, mas não é a única. Os bancos centrais têm outras funções, e o Banco Central do Brasil, em especial, reúne grande número de responsabilidades. Não é apenas um órgão que executa metas de inflação determinadas pelo Conselho Monetário Nacional. Ele é o órgão que regula, supervisiona as instituições financeiras. Funciona, em última instância, como emprestador para o sistema financeiro. É o órgão que administra a política cambial, regula o mercado cambial e define o grau de conversibilidade da moeda nacional; é o depositário das reservas internacionais do país; é uma das principais fontes de informações estatísticas, econômicas e financeiras – e informação é poder. Enfim, é um verdadeiro transatlântico; tem enorme importância. É impossível uma política econômica ser conduzida de forma correta sem estar sintonizada com a atuação do Banco Central. Mais importante do que a autonomia é a coordenação entre o Banco Central e a política de Governo exercida pelos ministérios, que é a posição tradicionalmente defendida pelos economistas keynesianos.
A afirmação de que existe um consenso no mundo sobre independência do Banco Central é falsa. Há controvérsias importantes, no plano teórico e no plano empírico. De qualquer maneira, já sabemos que consensos entre economistas são muito problemáticos, quando não destrutivos. Então, toda vez que ouço dizer que há um consenso entre os economistas, tremo da cabeça aos sapatos, mesmo sendo economista. Os senhores são políticos, e devem se acautelar toda vez que ouvem uma autoridade, um banqueiro central ou um economista dizer que, nesse ou naquele ponto, há consenso. Geralmente, não há. Não há consenso, volto a dizer, sobre a conveniência de se dar autonomia, independência aos bancos centrais, sobretudo em países em desenvolvimento. É uma ideia falsa a de que o Banco Central é um órgão puramente técnico. Essa questão veio à tona recentemente por obra de declarações do vicepresidente da República, José Alencar. Ele disse que as decisões no Banco Central têm que ser políticas, e choveram comentários de economistas dizendo que o vice-presidente estava errado, que as decisões tinham que ser técnicas, que se trata de um órgão técnico. O Banco Central é, ao mesmo tempo, um órgão técnico e um órgão político. Todos os bancos centrais do mundo, ainda que não queiram reconhecê-lo expressamente, ao tomar decisões, levam em consideração não apenas informações técnicas, análises econômico-financeiras, mas também o ambiente político e social. A repercussão das decisões de um banco central em qualquer economia é de tal ordem, especialmente em casos como o brasileiro, onde seu peso é muito grande, que isso se torna uma imposição da realidade. Portanto, temos que pensar o Banco Central como uma instituição que opera com critérios técnicos, com equipes técnicas, com análises econômicas, mas em determinado ambiente político ao qual ele tem que estar subordinado, atuando em coordenação com o poder político eleito. É duvidoso, inclusive do ponto de vista da democracia, que um órgão dessa importância deva ter autonomia e mandatos fixos para sua direção. Dependendo das escolhas que se faça, isso pode gerar problemas de grandes dimensões para o país. A minha conclusão, basicamente, é a seguinte: temos que fazer um esforço cada vez maior para aperfeiçoar nossas instituições democráticas e evitar a apropriação privada do aparato público, um problema antigo no Brasil. Creio que, nesse ambiente em que vivemos, internacional e nacional, com as dificuldades que temos, a autonomia ou independência do Banco Central dificultaria ainda mais essa tarefa, que ainda temos pela frente, de estatizar o Banco Central do Brasil. Obrigado.
Apresentador (Deputado Delfim Netto) – Agora vamos passar a palavra para quem desejar arguir os expositores. Vamos alternar. Eu pedirei que um deputado faça sua arguição e, depois, permitirei que a próxima arguição seja feita pelo público. Concedo a palavra inicialmente ao ilustre deputado Jamil Murad. Deputado Jamil Murad – Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, que teve um poder imenso e, em nome do controle da inflação, impôs a quebradeira às empresas, destruiu a economia, criou desemprego e sofrimento no governo de Fernando Henrique Cardoso, de repente, volta para os braços de George Soros. Quer dizer, ele tinha saído mesmo ou era um olho de George Soros, um executor da política de George Soros? O capital financeiro teve lucros imensos. Então, parece que ele veio para cá, fez a política de Soros durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e volta para os braços do seu patrão, o que me parece não deixou de ser durante o período em que ocupava a Presidência do Banco Central. Eu gostaria de saber, já que falo com renomados economistas, qual é sua opinião. Que sensação, como colega de profissão de Armínio Fraga, um economista tem ao ver que ele ludibriou a nação, trabalhando para o megaespeculador, ajudando a desgraçar o país? […] Paulo Nogueira Batista Júnior – Não vou fazer referência a ninguém em particular; o fato citado é recorrente. Trata-se de padrão que se criou no Brasil há muito tempo. Não sou contra, absolutamente, que pessoas com experiência de mercado financeiro desempenhem função pública, inclusive no Banco Central. Seria um despropósito. Apenas considero que o peso que isso adquiriu no caso brasileiro acabou conduzindo a uma relação problemática entre o Banco Central e o sistema financeiro. Quando falei nisso, não estava insinuando de forma alguma que havia corrupção. Trata-se de algo um pouco mais sutil, e mais perigoso talvez, do que a corrupção pura e simples. São laços que se criam ao longo de carreiras, redes de influência que se estabelecem, de alcance até internacional, que vão controlando, nos vários países, as alavancas do poder e os principais instrumentos da política econômica. Influências que não são democráticas, evidentemente, e que escapam, inclusive, ao âmbito nacional. É possível enxugar o Banco Central, para tornar a eventual autonomia mais palatável? É possível. Mas será que é factível em prazo curto? Todas essas funções que o Banco Central desempenha há décadas são complexas. Transferilas para outros órgãos públicos pode não ser conveniente, eficiente, sobretudo
num prazo curto. Temos que pensar não duas vezes, mas dez e até 20 vezes, antes de dar autonomia ao Banco Central com esse conjunto de funções ou de poderes que ele tem hoje no Brasil. Noto que o órgão nunca foi formalmente independente ou autônomo, a não ser nos seus anos iniciais. Ele foi criado no governo Castello Branco. Quando chegou o governo Costa e Silva, nosso deputado Delfim Netto assumiu a condição de ministro da Fazenda, e rapidamente verificou que herdava um presidente do Banco Central que não estava em sintonia com a política que queria fazer. Estamos aqui sob a presidência do ministro que desfez a autonomia do Banco Central. Desde então, não temos tido mais autonomia naquela instituição. Apresentador (Deputado Delfim Netto) – […] O Paulo me provocou, e sou obrigado a responder. Aquela estrutura construída pelo Roberto Campos, como tudo o que ele construiu, tinha um pouco de poesia e um pouco de realidade. No caso do Banco Central, era muito mais poesia do que realidade. Então, ele me mandou um presidente do Banco Central. Vi que a economia estava afundada. Tínhamos vivido uma recessão do arco da velha e feito um corte de oferta monetária de 30% para reduzir a expectativa inflacionária. Aí, o jovem, recémchegado de São Paulo, disse: “Isso aqui não funciona.” E realmente mudei aquilo. A política estava visivelmente errada. Não me arrependo, em nada, por ter feito aquilo. Cada ministro da Fazenda só vai se arrepender de não fazer isso depois que sair. O que aconteceu foi o seguinte: a política estava tão errada que a mudamos. O país cresceu e a inflação caiu. Essa é que é a verdade. Esse problema da independência, de um ridículo mortal, essa autonomia tem que ser restrita mesmo a um pequeno pedaço operacional da instituição, mesmo porque, primeiramente, em todos os lugares onde se instituiu esse sistema não se deixou o Banco Central com a tarefa de fiscalizar e muito menos de definir a política cambial. Isso é uma coisa absolutamente espantosa, mas não quero me meter nisso agora. Deputado Ronaldo Dimas – Parece que o doutor Paulo não acredita naquela aura de patriotismo de pessoas que, ao ocupar a presidência do Banco Central, deixam funções milionárias, bilionárias às vezes, para ganhar seus 10 ou 20 mil reais mensais à frente do Banco Central e servir à pátria. Isso é um pouco longe daquilo que o cidadão comum pensa a respeito de uma pessoa que está à frente de um organismo, de órgão tão importante. […] O senhor acha que, realmente, não existe essa aura ou não existe o civismo necessário nas pessoas que
estiveram ocupando, e possam vir a ocupar, esses cargos para defender o interesse maior do país? […] Uma última pergunta. […] Acho que precisamos, na verdade, de instrumento regulador não dentro do país ou da Europa, mas nos moldes da Organização Mundial do Comércio. O fluxo de capitais, hoje, é muito intenso e não há um instrumento mundial que tenha algum tipo de influência sobre eles. Então, é muito fantasioso isso ou é possível no futuro, até em médio e longo prazos, que venha a ser criado um instrumento que regule esses capitais e apliquem até mesmo multas? Mandou para lá, deixou lá, foi só um capital especulativo, roubou dinheiro do país e voltou para a origem. […] Essa é uma situação possível de ser controlada em âmbito mundial? Paulo Nogueira Batista Júnior – Não se deve depender do frágil patriotismo das pessoas para que os órgãos públicos funcionem de acordo com o interesse nacional. Deve haver uma estrutura mais adequada. Veja, por exemplo, como se montam as diretorias do Banco Central no Brasil. Isso, evidentemente, não é feito em praça pública, nem pode ser, mas as escolhas que os governos fazem estão sujeitas a vetos do poder financeiro. Em consequência, o comando de uma instituição tão importante fica excessivamente sintonizada com interesses privados financeiros. Essa é a minha preocupação, e não questionar o patriotismo, as boas intenções ou a ética pessoal de “a”, “b” ou “c”. Trata-se de um problema que assumiu um caráter duradouro no Brasil e precisa ser resolvido. Gostaria que houvesse em um futuro distante, talvez não na minha vida, um Banco Central do Brasil mais sintonizado com o país e com um comando mais eclético, formado não apenas por pessoas advindas do mercado financeiro e destinadas a esse mercado ou por funcionários de carreira do Banco Central. Considero da maior relevância o tema da regulação do movimento de capitais que V.Exa. acaba de levantar. Tenho batido nessa tecla há anos. Não acredito que controles de capital possam ser implementados em escala global, que haja alguma viabilidade de se convencer os países desenvolvidos a atuarem nesse sentido, até porque eles tiram mais benefícios do que prejuízos da livre movimentação internacional do capital. Mas podemos, sim, aplicá-los em âmbito nacional, cuidadosamente, com o devido planejamento, passo a passo, estabelecendo critérios, regras para regular a entrada e saída de capitais. Aí, volto à autonomia do Banco Central. O Banco Central tem um papel fundamental nessa questão porque ele é responsável pelas regras do mercado cambial, pela regulação do movimento de
entrada e saída de capitais. Um órgão autônomo, com mandatos fixos para sua direção, comandado por pessoas da confiança do mercado financeiro fará isso de forma adequada? Sabemos que o mercado financeiro, as instituições financeiras querem o máximo de liberdade para entrar e sair com seus recursos. Em debate no Conselho de Economia da Fiesp, do qual faço parte – isso já faz algum tempo –, mencionei a importância desse tema que V.Exa. levantou e a necessidade de se estabelecer, por exemplo, prazos mínimos de captação de empréstimos externos, quando as circunstâncias permitirem. Um economista brasileiro de banco estrangeiro – uma das piores pragas, diga-se de passagem, são os economistas brasileiros que trabalham em bancos estrangeiros – perguntou: “E onde fica a liberdade do empresário?” Respondi: “Desde quando a liberdade da instituição financeira, do empresário, se sobrepõe à segurança do país?” A segurança do país precisa ser protegida por um banco central que seja autônomo em relação aos interesses das instituições financeiras. […] Deputado Paulo Afonso – Tenho lido muito a respeito desse tema. Coletei artigos, opiniões das mais diversas origens, para aprofundar o conhecimento sobre esse assunto que muito me interessa. Mas causa-me muita apreensão, senhor presidente, ilustres palestrantes, que todos os artigos e opiniões que vi a respeito da autonomia e mesmo da independência apontem, alguns mais discretamente, com mais pudor, outros nem tanto, para a necessidade – e isso é que me deixa bastante preocupado e arrepiado – de afastar a influência política da questão Banco Central. Precisamos, segundo essas pessoas, proteger o Banco Central dos políticos ou, o que é mais grave, dos eleitos, porque essas pessoas em quem o povo vota, que o povo escolhe, seja o presidente da República, sejam os deputados, sejam os senadores, seriam perigosamente inadequadas para gerir, no sentido macro, o Banco Central. Não encontrei nenhuma argumentação que necessariamente não mencionasse essa circunstância. Portanto, neste momento, externo minha preocupação quanto a isso. Nós que estamos consolidando a democracia temos nos eleitos, nas suas propostas e ideias a legitimidade do exercício de suas funções. […] Paulo Nogueira Batista Júnior – Deputado Paulo Afonso, esse traço do debate que V.Exa. menciona, de desconfiança em relação aos políticos e de preocupação em manter o Banco Central isolado da influência perniciosa dos
políticos, mesmo quando eleitos, tem tradição secular no pensamento econômico ortodoxo. Segundo esse ponto de vista, o sistema político é imediatista, tem propensão a gastos excessivos e à geração de inflação. Assim, na organização institucional da economia, seria preciso encontrar uma forma de preservar a gestão monetária dessa influência supostamente nefasta. Isso foi tentado de várias maneiras ao longo dos séculos, durante certo período por meio das regras rígidas do padrão ouro. Com o desenvolvimento e a sofisticação da economia, ficou impossível sustentar essas regras, sobretudo depois da Grande Depressão dos anos 1930. Depois do colapso do padrão ouro, os economistas ficaram à cata de outras formas de isolar o Banco Central da influência política. Os monetaristas, durante muito tempo, defenderam uma regra de expansão monetária predeterminada, a que o Banco Central apenas obedeceria, de forma mecânica. Essa abordagem não funcionou. Fracassou nos anos 1970 e início dos 1980. Depois tentou-se, para as economias periféricas ou de menor porte, a regra do câmbio mais ou menos rígido, chegando, no limite, ao currency board (conselho da moeda), como no caso argentino. Isso também não tem funcionado a contento, especialmente em economias maiores, mais sofisticadas. Com o insucesso da abordagem monetarista e da ancoragem cambial, a ênfase se deslocou para a defesa da autonomia ou independência do Banco Central. Já se percebe que não é possível fixar regras simples e rígidas para a atuação dos bancos centrais e que eles devem ter certa discricionariedade. Mas o que se pretende é criar – na expressão utilizada pelo presidente Henrique Meirelles, na abertura deste seminário – um espaço técnico asséptico, onde os economistas, à luz de teorias supostamente confiáveis, decidiriam isolados dos políticos. Creio ser isso uma grande ilusão. As teorias econômicas não têm essa confiabilidade. O grau de incerteza associado à teoria e à sua aplicação é enorme, como se pode perceber pela própria incapacidade que têm os economistas de antecipar o futuro. Nós somos excelentes profetas, mas do passado, só do passado. Então, temos que encarar essa questão politicamente. O que está em curso, na realidade, é a tentativa de fazer uma espécie de blindagem de órgãos vitais do Estado, para isolá-los da influência do eleitor, que pode não ser muito construtiva. O eleitor pode estar descontente, querendo mudar alguma coisa, votando contra – ignorância, provavelmente, do eleitor, que quer mudar e não percebe a sabedoria de certas políticas, de certas práticas. É contra isso que se quer fazer a blindagem de instituições como as agências reguladoras e o Banco Central. É como criar um sistema no qual o eleitor vota, mas não decide.
Deputado, repare o seguinte: quando surgiu o tema da independência ou da autonomia formal do Banco Central no Brasil? Depois que o então ministro Delfim Netto destruiu a independência do Banco Central, no fim dos anos 1960, o assunto praticamente desapareceu no país. Ressurgiu, se não me falha a memória, sintomaticamente, apenas duas vezes: em 1994, porque à época um certo metalúrgico, liderava as pesquisas de intenção de voto para presidente; e, em 2002, quando esse mesmo metalúrgico ganhou as eleições. Durante os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, nada se fez para dar autonomia formal ao Banco Central. E agora estamos aí, com o metalúrgico instalado na Presidência da República e sendo pressionado por forças externas e internas a dar essa autonomia, o que, no fundo, significa abrir mão de poder. Essa é a questão que está sendo discutida neste momento. Luiz Carlos Mendonça de Barros – Tenho uma visão completamente oposta à do Paulo. Ele hoje está se revelando uma pessoa muito amarga. Sendo esse um problema dele, não podemos deixar que isso traspasse a instituição pública. No dia em que eu começar a reclamar de algumas amarguras que tive no passado, não me chamem, porque vou atrapalhar mais do que ajudar. Deputado, vejo de outra forma. Vamos pegar como exemplo a Lei de Responsabilidade Fiscal. O que ela tem de mais importante? Ela isola os períodos dos mandatos dos eleitos. Isto é, um governador ou presidente da República eleito tem liberdade para operar na economia, na parte fiscal, nos seus quatro anos de mandato, mas não pode sacar sobre o futuro de outro possível eleito. A questão é complexa, mas acho que nós, no Brasil, evoluímos de maneira muito adequada nesse sentido. Os governadores, normalmente, no último ano, fazem alguns saques, e os eleitos que os substituem são obrigados a passar dois anos pagando as contas relativas ao ano anterior àquele em que assumiram. Nos quatro anos de mandato, normalmente governam por dois anos e sacam nos dois anos seguintes. Não há ganhador nesse processo. Temos exemplos suficientes disso na nossa história. Em que o Parlamento evoluiu? Ao fixar limites para esses saques em relação ao futuro. Hoje, temos limites muito claros. É evidente que uma geração de governadores perdeu com isso, mas hoje restabelecemos na plenitude os quatro anos de mandato. Quanto à inflação, temos o mesmo processo. A inflação é uma forma fiscal de arrancar recursos da sociedade, e uma forma cuja defasagem é até maior que a do orçamento fiscal de um Estado ou país.
A independência do Banco Central, na minha modesta opinião, não tem esse caráter de grande trama de interesses financeiros, nacionais ou estrangeiros, das pessoas que são contra a democracia. O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, é um democrata. Duvido que alguém possa dizer que ele conspira tirar do povo o direito de governar. Não acredito nisso. Não tenho indícios disso. Se, por um lado, é necessário restringir a ação de um governo no tempo futuro, por outro, há que se estabelecer limites para essa restrição. Essa é a ideia que preside o grupo de que participo, que tem clara visão das vantagens da autonomia do Banco Central. Além do que, disse e repito, a autonomia, na forma como pretendemos, vai aumentar a transparência da ação da instituição, contrariamente ao que o Paulo pensa. Essa é a avaliação histórica de quem vive mais intensamente esse processo. A caixa-preta, da qual tantas vezes se reclama, existe. Está operando inclusive no governo do presidente Lula. Tanto é verdade que alguns iluminados estão discutindo a meta de inflação, e a sociedade se encontra absolutamente marginalizada de uma decisão que vai comprometer seu futuro. Na minha visão, não existe esse problema de eliminar ou reduzir a presença dos eleitos na discussão da política monetária. Simplesmente estamos partilhando essa influência entre o Executivo e o Congresso e, além disso, tornando muito mais transparente a ação da autoridade monetária. Em relação ao outro ponto que o Paulo mencionou, sobre como se faz essa redução de poder do Banco Central, respondo: isso já aconteceu. Fui diretor de mercado de capitais no Banco Central, órgão que tinha a função da CVM hoje. Naquela época, a emissão de dívida pública estava no Banco Central. Não existia Secretaria do Tesouro Nacional. Ela foi criada e retirada. Não é difícil, basta simplesmente pegar as pessoas que estão exercendo certas atividades no Banco Central e colocá-las no Ministério da Fazenda. Sinceramente, não vejo nenhuma grande armação de interesses internacionais. Não percebo, na motivação do projeto do Banco Central autônomo, nenhum tipo de restrição à atuação do político ou a intenção de diminuir sua influência. Pelo contrário, essa proposta aumenta, por meio do Legislativo, essa influência. Além disso, na minha opinião, dá à área monetária uma transparência infinitamente maior do que a atual, em termos de decisão. Apresentador (Deputado Delfim Netto) – Antes de prosseguir, digo ao Paulo, cuja posição foi extrema, que é muito pouco provável que os europeus tenham constituído a Comunidade Econômica Europeia primeiro fazendo o
Tratado de Maastricht, que é na verdade a nossa Lei de Responsabilidade Fiscal, depois instituindo o Banco Central, como o caso em que estamos vivendo. De forma que não há nenhuma restrição ao processo democrático nessas instituições. Digo ainda que há equívoco em dizer que se tira do político o poder. Quem fixa as metas é o Congresso. Quem fixa os objetivos é a LDO, portanto, o Congresso. De forma que isso tudo, no fim, fica na mão do Congresso. Ele, ao cabo, vai ter uma responsabilidade maior, porque dirá se quer uma inflação de 12% ou de 7%. E não creio que nenhum sujeito que venha a ser eleito vá dizer que deseja inflação de 50%. Então, o argumento do Paulo, apesar de muito bem elaborado, é terrorista demais. [Risos] Concedo a palavra ao senhor Alberto Alves Rodrigues. Alberto Alves Rodrigues – Quais seriam as influências da adoção da proposta de autonomia ou independência do Banco Central sobre as políticas sociais ou sobre o mercado de trabalho, já que a política monetária, basicamente a taxa de juros, é mais instantânea que a política fiscal, dado o processo de discussão da LDO? Paulo Nogueira Batista Júnior – A influência sobre o mercado de trabalho dependeria muito da execução da política monetária nesse novo Banco Central. O meu receio é que um Banco Central mais protegido, com mandatos fixos, com estabilidade no emprego para sua direção, possa ser rígido demais e acabar desempregando boa parte dos outros brasileiros. Estabilidade no emprego e direito a demitir os outros. Já temos uma instituição que resiste, de maneira exagerada, a meu ver, às evidências de que precisamos de uma gradual redução da taxa de juros, levando em conta o estado real da economia – não quero ser enfático demais para não ser chamado de extremista e terrorista. Quero ainda dizer que não usei a palavra conspiração, e não foi por acaso. Não é uma conspiração, pois está acontecendo à vista de todos! É um processo de dominação política e controle, por certos lobbies, das alavancas da política econômica em muitos países em desenvolvimento. Então, não é o caso de falar em conspiração. Se a preocupação é com a falta de transparência do Banco Central, não vejo por que vinculá-la à concessão de mandatos fixos à sua Diretoria. Nada impede que os parlamentares estabeleçam regras e leis que aumentem a obrigação do banco de prestar contas à sociedade e ao Congresso. Não é preciso mandatos
fixos para que isso ocorra. Falou-se aqui que, com o Banco Central autônomo, quem fixaria as metas seria o Congresso. Isso não sabemos ainda, não está definido. Apresentador (Deputado Delfim Netto) – É uma possibilidade. Paulo Nogueira Batista Júnior – É uma possibilidade, mas o que se comenta mais frequentemente é que a meta seria fixada pelo Executivo. Determinar que ela seja fixada pelo Congresso talvez seja uma alteração interessante. Nessa hipótese, mais uma vez, não seria preciso dar mandatos fixos à Diretoria do Banco Central. Uma coisa não depende da outra. Assim, fico um pouco preocupado ao ver que corremos o risco de agravar alguns problemas que já vivemos ao ter no comando do Banco Central um conjunto de pessoas que passariam a estar protegidas por estabilidade no emprego, e que não levam suficientemente em conta o lado real da economia, em especial o mercado de trabalho. A última ata do Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central), aquela que explicou a manutenção da taxa de juros em 26,5%, tem cinquenta e tantos parágrafos. Apenas dois tratam do mercado de trabalho, como observou o senador Eduardo Suplicy. É um sintoma da hierarquia de prioridades dessa tecnocracia financeira que dirige os bancos centrais em países como o Brasil. Deputado Enéas – Senhores conferencistas e ilustre plateia, primeiro, apesar de não me terem outorgado o direito de defender o professor Paulo Nogueira, que estou conhecendo hoje, ouvi menção específica a seu caráter amargo – meu colega, deputado Delfim Netto, disse que S. Sa. estava falando em catástrofe – e quero dizer a todos que ele não é amargo. Ao contrário, chega a ser doce. Amargo sou eu, e vamos ver por quê. [Risos] […] O problema é este modelo perverso, cruel, concentrador de renda, que faz do Brasil uma colônia cujo papel precípuo é mandar recursos para a metrópole. A metrópole não são os Estados Unidos, mas as potências hegemônicas. […] Se atentarmos para o fato de que nossas riquezas são mandadas para o exterior a preço de banana; se lembrarmos que somos o maior produtor mundial de nióbio – com 98% da produção –, sem o qual não se constroem aviões supersônicos, e que ele vai embora; se pensarmos que a tonelada do ferro ou do alumínio lá fora vale menos do que uma noite num hotel cinco estrelas em Nova York; se imaginarmos que o quartzo é vendido in natura a menos de meio dólar
o quilograma e que voltam os chips a US$ 3.000 o quilograma, pelos céus! O que falta para reconhecermos que somos colônia? O que se quer é agigantar o fosso, isso, sim. É fazer que o mínimo poder que ainda tem S.Exa. o presidente seja dele retirado. […] Não sou doce, sou amargo. Vejo uma realidade dura, terrível da nação. Há 14 anos digo as mesmas coisas. Não há solução à vista, não tenham a ilusão. […] Doutor Paulo, a pergunta é simples, específica ao senhor – tenho a minha resposta e quero ouvir a sua. O senhor acredita, com sinceridade, na possibilidade de, em algum tempo no futuro próximo, o sistema financeiro internacional romper-se como uma grande bolha especulativa que sangra os recursos das potências que pretendem estar em ascensão? O senhor acredita que, de uma forma ou de outra, teremos novo acordo de Bretton Woods, rompido em 1971 pelo presidente Richard Nixon? O senhor acredita que haverá condição – eu quero a sua opinião – para que países como o nosso, a Argentina, todos os irmãos da América Latina e da África, possam levantar-se e ter um lugar ao sol, ou, na sua opinião, a caminhada para o abismo é definitiva? Paulo Nogueira Batista Júnior – Deputado, eu não acredito que vá haver um novo acordo de Bretton Woods ou uma reforma abrangente da arquitetura financeira internacional, a menos que ocorra uma implosão de tal ordem na economia e nas finanças internacionais que viesse a prejudicar os interesses dos países desenvolvidos. Enquanto isso não ocorrer, as crises que às vezes sacodem violentamente as nações da periferia – nós passamos por isso, como vários outros países – não serão suficientes para mobilizar os principais países para essa reforma. Essa discussão, na verdade, não saiu da retórica. Nada de muito importante foi feito. Mas convém ao Brasil construir alianças pontuais – não digo uma aliança global dos países em desenvolvimento, porque seria pedir demais – mas alianças como as que estão sendo esboçadas pelo governo Lula com outros países da América do Sul, como a Argentina, agora sob outro governo, com a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul. Sem romper relações com os países desenvolvidos, porque isso seria absurdo, o Brasil pode muito bem trilhar um caminho diferente, de maior autonomia. Não para o Banco Central, mas para o país. Esta é a autonomia que devemos buscar, uma autonomia perfeitamente factível do ponto de vista econômico-financeiro. Trata-se, por exemplo, de preservar com cuidado os ganhos espetaculares, que obtivemos em termos de ajustamento externo nos últimos 12 meses. Reduziu-se dramaticamente a nossa
dependência em relação a capitais externos em função da queda do déficit em conta corrente. Não vamos permitir que isso seja desfeito por uma revalorização exagerada do real. É perfeitamente possível conceber um sistema de controles seletivos, cuidadosos, da entrada e da saída de capitais na economia brasileira. O Brasil pode aumentar suas reservas internacionais. Elas são baixas demais. Não sei por que não se aproveitou essa conjuntura um pouco mais favorável dos últimos meses para começar a aumentar essas reservas. Enfim, o Brasil pode fazer muito para sair do atoleiro em que se encontra. Eu não adotei um tom amargo, mas até teria motivos para adotar, porque o Brasil está há mais de vinte anos sem crescer de forma sustentada. Esse caminho da integração dependente em relação aos mercados financeiros internacionais não trouxe resultados para o país. Ao contrário, trouxe prejuízos. Quanto ao Banco Central, eu queria dizer o seguinte: a instituição precisa honrar o seu nome: Banco Central do Brasil. 1 Texto concluído em junho de 2019. Agradeço os comentários e sugestões de Luiz Gonzaga Belluzzo; as conclusões, erros e omissões são de minha responsabilidade. 2 Existem, também, moedas transnacionais relevantes na África ocidental (o franco CFA) e no Caribe (o dólar da União Monetária do Caribe Oriental). 3 Nas economias relativamente pequenas com alto coeficiente de abertura (medido pela relação entre os fluxos de comércio internacional e o PIB), a taxa de câmbio exerce grande influência na determinação do nível geral de preços. Sendo elevado o coeficiente de repasse de câmbio para preços, estabilizar a taxa de câmbio pode ser uma forma eficiente de estabilizar o nível geral de preços da economia. 4 A “trindade impossível” remonta a trabalhos independentes de Mundell e Fleming, publicados mais ou menos ao mesmo tempo no início da década de 1960. Para uma discussão histórica da origem do modelo e as referências às obras originais dos dois autores, ver James Boughton. “On the origins of the FlemingMundell model”. IMF Staff Papers, v. 50, n. 1, 2003. 5 Esse custo está na razão direta do diferencial entre as taxas de juro internas e externas. Se o diferencial é elevado, o custo de carregamento das reservas adicionais pode representar carga significativa para as finanças do setor público consolidado. 6 Excetuados, evidentemente, os poucos casos de países que não fazem parte da União Europeia, mas adotaram o euro unilateralmente (o que ocorreu em quatro microestados europeus – Andorra, Mônaco, San Marino e Vaticano), e os países africanos cujas moedas, antes ancoradas no franco francês, passaram a se ancorar no euro. 7 Ver, por exemplo, Luiz Carlos Bresser-Pereira, José Luis Oureiro & Nelson Marconi. Macroeconomia desenvolvimentista: teoria e política econômica do novo desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016, p. 67-90. 8 Ibid, p. 183-201. 9 A rigor, deve-se considerar a dívida líquida do setor público, aquela que excede o estoque de ativos públicos. Se o déficit é coberto com venda de ativos, o estoque da dívida líquida aumenta na proporção da diminuição dos ativos do setor público, ao passo que a dívida bruta permanece inalterada. 10 Na contabilidade fiscal tradicional, são geralmente considerados gastos de capital apenas os que dizem respeito a ativos físicos de duração superior a um ano. Ver, por exemplo, Davina F. Jacobs. Capital
Expenditure and the Budget. International Monetary Fund, Fiscal Affairs Department, Public Financial Management Technical Guidance Note. n. 8, abril de 2009. 11 Todos os gastos excluídos do conceito utilizado como alvo da política fiscal continuam, claro, a afetar os resultados nominais e primários. Mas a sua exclusão do cálculo da variável-alvo no acompanhamento da política fiscal lhes confere implicitamente prioridade automática, protegendo-os inclusive de cortes orçamentários e contingenciamentos na execução fiscal. É o que ocorre, analogamente, quando o foco da política fiscal é a meta de superávit primário, como ocorre no Brasil e em diversos outros países, o que equivale a conferir implicitamente prioridade automática às despesas de juros da dívida pública. 12 A questão da independência ou autonomia do Banco Central é o tema do texto seguinte deste capítulo. 13 Ver, por exemplo, Olivier Blanchard & Daniel Leigh. Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers. International Monetary Fund, Working Paper, WP/13/1, janeiro de 2013. 14 Para as contas públicas, pode-se estimar resultados ajustados para excluir efeitos cíclicos sobre gastos e receitas públicas ou, ainda, resultados “estruturais” que excluem também receitas e gastos não recorrentes. As medidas de núcleo inflacionário podem ser calculadas por diferentes critérios, mas buscam sempre captar a tendência da inflação, excluindo do índice de preços as variações consideradas episódicas e temporárias. 15 No caso do Brasil, o Banco Central, mas não o Tesouro, já segue essa orientação. O regime de metas para a inflação é baseado no IPCA cheio, mas diferentes estimativas dos núcleos inflacionários são elaboradas e divulgadas pelo Banco Central e são consideradas na condução da política monetária. O Tesouro não divulga estimativas dos resultados fiscais ciclicamente ajustados. Séries desse tipo para o setor público brasileiro – apresentadas, porém, sem detalhamento – podem ser encontradas em publicações do FMI, especialmente nos relatórios das consultas anuais do Artigo IV e no Fiscal Monitor, publicado semestralmente. 16 A relativa rigidez do mandato do Banco Central Europeu teve consequências práticas por ocasião da crise recessiva iniciada em 2008. Dos principais bancos centrais, o europeu foi o que mais demorou a reagir e o que menos fez para contra-arrestar a tendência recessiva. Em contraste, os Bancos Centrais do Japão, da Inglaterra e, sobretudo, a Reserva Federal, reagiram com mais prontidão e vigor. 17 Um trabalho pioneiro sobre o tema, escrito da ótica nacionalista, foi publicado por meu pai no início da década de 1990 e republicado em livro editado pela Fundação Alexandre Gusmão do Itamaraty: Paulo Nogueira Batista. “O desafio brasileiro: a retomada do desenvolvimento em bases ecologicamente sustentáveis”. In: Paulo Nogueira Batista Jr. (org.). Paulo Nogueira Batista: pensando o Brasil – ensaios e palestras. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009, p. 163-76.
A BUSCA DA “AGENDA PERDIDA”1
Paga um preço o cronista que aborda os assuntos de maneira serena e equilibrada. O leitor gosta de sangue e violência. Eis aí um problema sério. A minha predisposição de atender e alimentar esses instintos homicidas tem me custado não poucos inimigos. Paciência. Vamos lá outra vez. No meu entender, o baixo dinamismo da economia brasileira reflete a hegemonia de uma orientação de política econômica essencialmente hostil ao desenvolvimento do país. O governo Lula nada fez até agora para alterar esse quadro. Pior: decidiu aprofundar, em diversas áreas importantes, o compromisso com o modelo herdado do seu antecessor. A reforma da Previdência Pública, por exemplo, foi mais dura do que as propostas encampadas pelo governo FHC. A Fazenda e o Banco Central vêm sendo mais radicais em matéria fiscal e monetária do que a equipe de Pedro Malan, o que contribuiu decisivamente para a contração da demanda agregada de consumo e de investimento em 2003. O ex-ministro da Fazenda e seus assessores devem estar incomodados com a concorrência sôfrega e desleal dos cristãos novos do governo Lula. Para muitos tucanos e assemelhados, a explicação da apostasia petista deve ser buscada na “teoria da credibilidade” (versão de galinheiro, evidentemente). Em poucas palavras, a “teoria” é a seguinte: como o PT e os seus economistas passaram anos a fio dizendo e prometendo barbaridades em matéria de economia (o que não deixa de ter uma dose de verdade, diga-se de passagem), o governo Lula estaria agora obrigado a ser mais realista do que o rei. Os excessos da Fazenda e do Banco Central em 2003 e 2004 seriam uma espécie de pedágio – caríssimo – que o atual governo estaria pagando para construir uma “reputação de seriedade” e “conquistar a confiança” dos mercados financeiros doméstico e internacional. Essa explicação, mesmo na versão de galinheiro, tem alguma validade. Contudo, ela mascara mais do que revela. A busca incessante da confiança dos
mercados é, ela mesma, produto da vulnerabilidade financeira e da dependência externa típicas do modelo econômico herdado do governo FHC e aplicado com fervor renovado pelo governo Lula. Em outras palavras, o modelo possui mecanismos de autopreservação, pois cria dependências que tornam arriscados os “desvios de conduta” na área econômico-financeira. Acontece que as políticas que os mercados financeiros e seus porta-vozes econômicos estigmatizam como “desvios de conduta” são justamente aquelas que poderiam conduzir a uma retomada do desenvolvimento e à geração de empregos… Mas a resistência à mudança econômica não é uma barreira intransponível. O observador atento não deixará de perceber que há exageros e simplificações em muitas das análises que atribuem grande peso à busca da credibilidade e da confiança. Vou mais longe: credibilidade é uma das palavras mais prostituídas do vocabulário econômico. O que o mercado (leia-se o capital financeiro) considera “crível”, “fundamental”, “tecnicamente sólido” é quase tão volátil como os próprios fluxos financeiros. Prevalecem interesses, ondas, modismos, impressões, slogans. A relação disso tudo com ciência, análise e objetividade é sempre problemática, para dizer o mínimo. Também existe muito exagero nas avaliações que atribuem um poder avassalador e ares de fatalidade ao que acontece na área econômica. Nem todos os países estão tão dominados pelos preconceitos dos mercados financeiros e pela ortodoxia econômica de galinheiro quanto o Brasil. Basta olhar um pouco à nossa volta. Fatalidade é outra palavra muito prostituída. O aspecto mais espantoso da política econômica do governo Lula está no seguinte fato, mais ou menos acidental, e que poderia, portanto, ter sido evitado: o controle da Fazenda e do Banco Central por um grupo razoavelmente homogêneo e coeso de economistas e financistas, dispostos a ir além dos seus antecessores em temas cruciais. Por motivos políticos, a sua visão não pode ser inteiramente explicitada, mas passou a constituir, na prática, o credo econômico do governo Lula. Quanto ao ministro Palocci, principal representante do petismo na área econômica, só há duas hipóteses: ou ele disfarça muito bem, ou a sua catequização já está bastante avançada. Os economistas e financistas que se apossaram da Fazenda e do Banco Central podem ter lá as suas diferenças táticas ou de ênfase, mas estão unidos nas questões essenciais, em especial na convicção, que parece firme e inabalável, quase religiosa, de que o modelo econômico lançado no governo Collor e continuado no período FHC estava fundamentalmente correto, ajustado à melhor doutrina econômica ensinada nas universidades americanas, praticada pelo FMI
e pelo Banco Mundial e aceita pelos mercados financeiros. O problema, segundo essa visão, é que o modelo não foi aplicado de maneira completa, com o rigor e a convicção necessários. Trata-se, assim, de buscar a “agenda perdida”, segundo a ridícula expressão de alguns membros desse grupo. Por esses caminhos, e para espanto geral, o governo Lula foi levado a dobrar a aposta! Ora, qualquer pessoa que pare um pouco para pensar (mesmo um economista ortodoxo de galinheiro) logo se dará conta de que o que temos aqui é uma combinação politicamente inviável, possivelmente explosiva. Não se deve esquecer que o atual governo foi eleito depois de uma campanha marcada por promessas de mudança e vigorosas críticas à política econômica “neoliberal” do período FHC. Tão clamoroso era o fracasso dessa política econômica que nem mesmo o candidato oficial, José Serra, se dispôs a defendê-la. Pois bem, o governo Lula não se contentou em dar continuidade a esse modelo longamente testado por governos anteriores e fragorosamente rejeitado na campanha e nas urnas. Resolveu entregar o controle da política econômica a uma turma que está determinada a seguir a cartilha com mais determinação e mais intransigência. Como dizia Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. 1 Publicado originalmente na Agência Carta Maior, em 9 de março de 2004.
CARGA NEGATIVA1
Estou horrorizado com o Brasil, leitor. Não me refiro propriamente à situação política e econômica, que é sem dúvida muito difícil. O que me estarrece é a imensa carga de negatividade que pesa sobre o país. Não me recordo de ter vivenciado clima tão nocivo e uma energia tão destrutiva. O país parece estar sofrendo um colapso emocional só comparável ao que aconteceu com a seleção brasileira no jogo contra a Alemanha na Copa de 2014. Talvez esteja exagerando. Mas vou dar um exemplo que pode parecer pequeno, mas não é. Está em cartaz nos cinemas um grande filme brasileiro: Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. É um filme feito com cuidado, delicadeza, sensibilidade. A construção de cada personagem foi elaborada com maestria, de forma tocante, convincente. O filme emociona, sem ser apelativo. Enfim, é uma obra de arte. Pois bem, um grande jornal de São Paulo resolveu publicar uma página inteira sobre Que horas ela volta?. Não quero ser agressivo com ninguém, nem contribuir para o ambiente medonho que vivemos. Só direi o seguinte: antigamente, os grandes jornais tinham críticos de cinema que sabiam do que estavam falando, tinham conhecimento, sensibilidade. Hoje… Nem sei o que dizer. Um dos articulistas do grande jornal de São Paulo entendeu o filme como um panfleto da era Lula e escreveu que alguns dos personagens principais “não passam de peças de propaganda governista”… Espantoso. A violenta disputa política em curso no país está contaminando tudo, absolutamente tudo. É o que acontece, de forma nítida, com o noticiário econômico. Não há dúvida de que a situação é muito precária e vai continuar precária por algum tempo. Mas há aspectos positivos que recebem pouca ou nenhuma atenção. Um exemplo: o forte ajustamento das contas externas em 2015. Durante muitos anos, o Brasil acumulou grave problema de sobrevalorização da moeda nacional. A moeda forte prejudicou muito a indústria do país e foi gerando um
desequilíbrio crescente e perigoso nas contas externas do país. Agora, a depreciação do real, combinada com a retração da demanda interna, está produzindo uma correção rápida do desequilíbrio externo, diminuindo nossa vulnerabilidade. E a depreciação cambial vai ajudar a tirar a economia da recessão, estimulando exportações e setores que competem com importações. É verdade que parte dessa melhora das contas se deve à recessão, sendo, portanto, “cíclica” e não “estrutural”. É verdade, também, que a depreciação foi muito intensa num período curto, gerando problemas para os que têm dívidas em moeda estrangeira. Mas o Banco Central tem reservas internacionais muito elevadas e outros instrumentos para deter com sucesso movimentos exagerados – sobretudo se tiver a ajuda de uma estabilização da situação política e de progressos em matéria de ajustamento das contas públicas. Sobre as contas públicas, aliás, o que se afirma e escreve envolve frequentemente exageros monumentais. “Caos”, “descalabro”, “tragédia fiscal” são algumas das expressões repetidas incessantemente em artigos, reportagens e entrevistas. O Brasil tem, sim, um problema fiscal, agravado pela crise política. Mas há quem compare o Brasil à Grécia! Quem o faz, não tem a mais remota ideia do que foi a calamitosa irresponsabilidade dos governos gregos no período que antecedeu a crise internacional de 2008. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 2 de outubro de 2015.
O GRANDE DILEMA1
Com que problemas macroeconômicos se defronta o Brasil? Com dois, fundamentalmente: o desemprego e as finanças públicas. Os dois problemas são graves, mas o pior é que a solução do segundo agrava o primeiro. O corte de gastos ou o aumento dos impostos deprime ainda mais a atividade e o emprego. Este é o grande dilema. O que fazer? Um bom começo é não se iludir. Há algum tempo, era popular entre economistas ortodoxos a aposta no oximoro “contração fiscal expansionista”. Um governo com força política, especialmente em início de mandato, deveria tomar medidas drásticas de diminuição de despesas e aumento de receitas. Esse choque fiscal restauraria a confiança, levando à expansão compensatória do consumo e do investimento privados, que neutralizaria o efeito contracionista do ajuste das contas. Se tudo corresse bem, o choque fiscal terminaria sendo expansionista. Não existiria, portanto, o referido “grande dilema”. Foi o caminho que se tentou em 2015, depois da reeleição de Dilma Rousseff. Não funcionou, como se sabe. E não só no Brasil. A experiência internacional desacreditou a “contração expansionista”. O efeito confiança existe, sim, e não deve ser desprezado. O problema é que ele é muito incerto quanto à magnitude e pode demorar a se materializar. Já os efeitos contracionistas do choque fiscal sobre a demanda se fazem sentir imediatamente e com força. Estudos realizados nos anos recentes no FMI mostraram, inclusive, que os multiplicadores associados à contração fiscal costumam ser mais elevados em economias estagnadas ou em recessão. Economistas heterodoxos também têm suas ilusões, entre elas a de que o crescimento econômico resolve a questão fiscal. A recuperação da economia exigiria, argumenta-se, estímulo fiscal (expansão do gasto ou diminuição de tributos). Mas a expansão fiscal se autoviabilizaria por meio de seus efeitos favoráveis sobre a atividade e o emprego e, indiretamente, sobre as receitas e despesas públicas. Para esses economistas, também não existiria o “grande
dilema”. O argumento é irrealista. Só se sustenta com suposições extravagantes sobre o tamanho dos multiplicadores keynesianos e da elasticidade da receita em relação ao produto. Não leva em conta, além disso, o impacto adverso da expansão fiscal, em condições de fragilidade fiscal, sobre a confiança e as taxas de juro de médio e longo prazos. Há alguma verdade dos dois lados. Têm razão os heterodoxos quando dizem que sem crescimento econômico é difícil, talvez impossível, equacionar a questão fiscal. E têm razão os ortodoxos quando insistem que é essencial preservar a confiança na política fiscal. Chegamos assim a um preceito aristotélico que eu, quando mais jovem, considerava um tédio total: “A virtude está no meio.” O que tudo isso significa em termos práticos? Primeiro, a política fiscal não deve ser hostil ao crescimento; deve ao contrário favorecê-lo na medida do possível. Não cabe adotar, portanto, uma política fiscal contracionista. Mas deve haver compromisso inequívoco com disciplina fiscal e equilíbrio das contas no médio e longo prazos. Medidas para garantir esse equilíbrio devem ser tomadas sem demora, inclusive na área previdenciária. Para assegurar a credibilidade de uma política fiscal desse tipo a solução clássica é introduzir regras fiscais críveis, que ancorem as expectativas em relação aos resultados fiscais. As regras existentes (teto do gasto, regra de ouro e meta para o resultado primário) não cumprem esse objetivo e precisariam ser abandonadas ou reformuladas. E como ficaria a questão do emprego? De onde viria o impulso para reativar a produção? Em condições de fragilidade fiscal, o impulso teria que vir de: a) uma mudança na composição da política fiscal; e b) dos determinantes não fiscais do consumo e do investimento agregados e das exportações líquidas. Tornar a política fiscal mais amigável ao crescimento não é fácil na prática, mas significa favorecer gastos com multiplicadores elevados sobre atividade e emprego (infraestrutura, construção, transferências para setores de baixa renda) e mudar a composição da tributação para aumentar a renda disponível de setores de baixa renda (com maior propensão marginal a consumir) e diminuir a renda disponível dos setores de renda mais alta. Com a alavanca fiscal travada, seria preciso recorrer às políticas monetária, cambial e de crédito. Dada a estrutura da dívida pública, a combinação juros moderados/câmbio depreciado, além de ajudar a retomada da economia, favorece o equilíbrio das contas públicas.
Releio o que escrevi. Bela estratégia. Lembrei, porém, do Garrincha: “Já combinou com os russos?” 1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 27 de junho de 2018.
CAPÍTULO 5 Perfis
BRIZOLA EM 19611
“Os verdadeiros indivíduos são raros nesses tempos de domesticação universal.” Maurice Barrès
A morte de Leonel Brizola é um marco. Afinal, não é toda hora que temos um grande morto para enterrar e reverenciar. Verdade seja dita: a política brasileira é um deserto só comparável ao do Saara. Poucos se salvam. O que prevalece é o despreparo, o oportunismo, o carreirismo. Ao longo da vida tenho conhecido políticos de diferentes partidos e diferentes orientações. Salvo um ou outro caso, posso lhes dizer, com toda a franqueza: falar em interesse nacional com essa gente é fazer papel de Quixote. Por isso mesmo, assisti com interesse arregalado a todas as reprises de entrevistas e depoimentos de Brizola de que tenho notícia. Vale a pena. É uma satisfação escutá-lo. Não é qualquer um que nos fala. O que salta aos olhos, imediatamente, é a sua imensa e esmagadora superioridade em relação aos políticos comuns. É lamentável que Brizola tenha sido tão boicotado e tão vetado em vida, que a sua voz não tenha tido o alcance merecido. Não foi por acaso, evidentemente. Os motivos desse boicote são conhecidos. Brizola tinha estilo e grandeza. Fazia um uso devastador da palavra. Sabia emocionar. “Basta-me um microfone para derrotar os adversários”, dizia. Era uma ameaça permanente à coligação de mediocridades que domina a política e a economia neste país. “Um romântico extraviado na política”, escreveu Carlos Heitor Cony. Romantismo? Talvez. Mas a palavra que, a meu ver, sintetiza suas qualidades é outra: fibra. Fibra é o que Brizola demonstrou ter em diversas ocasiões. Em 1961, por exemplo. Foi um grande momento da história brasileira. Com a renúncia de Jânio Quadros, armou-se um golpe. A junta formada pelos ministros militares, com apoio de forças civis, havia resolvido simplesmente rasgar a Constituição
do país e impedir a posse do vice-presidente João Goulart. O golpe só não vingou por obra, coragem e tenacidade de um brasileiro: o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola. Brizola tomou conta da Rádio Guaíba, e pôs “a alma para fora”, como lembrou em depoimento recente à TV Cultura. O seu pronunciamento, transmitido da sede do governo, o Palácio Piratini, em 28 de agosto, começou assim: Peço a vossa atenção para as comunicações que vou fazer. Muita atenção. Atenção, povo de Porto Alegre! Atenção, Rio Grande do Sul! Atenção, Brasil! Atenção, meus patrícios, democratas e independentes, atenção para estas minhas palavras! […] O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela, que há de ser heroica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores, dos prepotentes. […] Nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem balas. […]
O que Brizola pretendia, de imediato, era conclamar os gaúchos a sair às ruas para resistir ao golpe: Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida sem honra, sem dignidade e sem glória.
O resultado foi fulminante. Dezenas de milhares de pessoas se aglomeraram na praça em frente ao Palácio Piratini. Começara a resistência que frustraria os planos golpistas. A solidariedade ao governador espalhou-se pela cidade, pelo estado e depois pelo Brasil. Houve até o seguinte fato inusitado: dirigentes do Grêmio e do Internacional assinaram um manifesto conjunto de apoio a Brizola! O Brasil tem sido governado, nas últimas décadas, por uma geração de pigmeus, desfibrada e pobre de espírito. É sintomático, por exemplo, que uma figura como Fernando Henrique Cardoso, um político tão pouco identificado com o Brasil, que nutre um desprezo mal disfarçado pelo país, tenha ocupado, por oito anos, a Presidência da República. Com que náusea um grande político como Brizola deve ter testemunhado esse longo reinado de mediocridade e
entreguismo. O nacionalista francês Maurice Barrès definia o nacionalismo como o reconhecimento do peso do passado, das grandes vozes da terra e dos mortos. A voz de Leonel Brizola é uma das que sempre merecerá o nosso reconhecimento. 1 Publicado originalmente na Agência Carta Maior, em 29 de junho de 2004.
NENHUMA DERROTA É DEFINITIVA1
“Osertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu Euclides da Cunha. Nascido em Pombal, no sertão paraibano, Celso Furtado confirmou esplendidamente a célebre frase de Euclides. Em texto de 1972, “Aventuras de um economista brasileiro”, ele recorre à sua dura experiência de criança e adolescente, no interior do Nordeste, para explicar a formação em seu espírito de certos elementos invariantes, de algumas ideias força das quais dificilmente poderia libertar-se sem correr o risco de desestruturar a sua personalidade. “A primeira dessas ideias”, escreveu ele, “é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais do que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva.” Nenhuma derrota é definitiva. Essa ideia força adquire um significado especial na atual fase da vida brasileira. Celso Furtado tem recebido homenagens enfáticas de todos os cantos. É aquela máxima machadiana: “Está morto; podemos homenageá-lo à vontade.” Não são tantos os que realmente se identificam com ele, a sua prática e o seu pensamento. Para estes, os últimos tempos não têm sido fáceis, como não devem ter sido para o próprio Furtado. A sua última iniciativa política foi o envio de uma mensagem de solidariedade a Carlos Lessa, que seria demitido da presidência do BNDES logo depois. Belo presente de despedida do presidente Lula a Celso Furtado. O presidente da República foi criticado por não ter comparecido a seu enterro. A crítica é injusta. A ausência de Lula é perfeitamente coerente com a linha que vem adotando na área econômico-financeira – uma linha que é de deixar horrorizada qualquer pessoa que se identifique com Furtado e sua visão do Brasil e do mundo. Furtado era discreto e não queria criar dificuldades para o governo. Mas basta conhecê-lo um pouco para saber que o grande economista deve ter morrido amargurado com a falta de coragem, iniciativa e criatividade do governo Lula no campo econômico.
Como se sabe, Celso Furtado era um economista sui generis. Nada a ver com as hostes apátridas e mentalmente colonizadas que dominam a nossa profissão no Brasil. Por isso foi impróprio o destaque que deu a Folha de S.Paulo na primeira página, no dia seguinte à sua morte, à afirmação de um articulista de que Furtado havia sido o mais “globalizado” dos brasileiros. O que o caracterizava era uma dedicação apaixonada aos problemas dos países subdesenvolvidos, em especial do Brasil. “Um brasileiro com B maiúsculo”, disse Carlos Lessa. Hegel escreveu certa vez: “Nada de grande se faz neste mundo sem paixão.” Pois Furtado era um apaixonado pelo Brasil. O que explica a repercussão da sua obra no exterior é sua interpretação criativa e original da trajetória histórica do nosso país e de outros países subdesenvolvidos. Um contraste marcante com a produção intelectual da maioria dos economistas brasileiros, mesmo de muitos dos mais destacados e celebrados, que se notabilizam por reproduzir e divulgar teorias e recomendações econômicas importadas. Por isso mesmo, não despertam curiosidade e interesse fora do país. Criatividade. Esse é um tema recorrente na obra de Furtado. Em conferência pronunciada na USP em 2000, ele sintetizou bem a natureza das nossas dificuldades nesse terreno: corremos o risco de acabarmos “reduzidos ao papel de passivos consumidores de bens culturais concebidos por outros povos”. A questão, para ele, era “preservar o gênio inventivo de nossa cultura em face da necessidade de assimilar técnicas que, se aumentam nossa capacidade operacional, são vetores de mensagens que mutilam nossa identidade cultural”. Em outras palavras: “Como apropriar-se do hardware da informática sem intoxicar-se de seu software, os sistemas e símbolos que com frequência ressecam nossas raízes culturais?” No cerne de suas preocupações estava a necessidade de “voltar à ideia de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico da economia”. O maior obstáculo a esse objetivo continua a ser a concentração da renda nacional, que só será revertida “mediante uma grande mobilização social”, afirmou. Nos últimos anos de sua vida, Furtado se dirigia frequentemente aos jovens brasileiros, alertando-os para os desafios que têm pela frente. A conferência na USP terminou com o seguinte apelo, que cito a título de conclusão: Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios, pois se trata de, por um lado, preservar a herança histórica da unidade nacional, e, por outro, continuar a construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. […] Numa palavra, podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa sociedade
mais justa e preservar a sua independência política. Assim, o sonho de construir um país capaz de influir no destino da humanidade não se terá desvanecido.
1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 25 de novembro de 2004.
CINCO ANOS EM CINQUENTA1
“Não se promove a grandeza de uma nação com escrúpulos cretinos.” Nelson Rodrigues
O lema de Juscelino Kubitschek, que traduzia muito bem o espírito do seu governo e, mais do que isso, o espírito do Brasil da época, ficou na nossa história: 50 anos em 5! Hoje, o Brasil é outro. Parece que envelheceu prematuramente. Exibe todos os receios, as cautelas, os achaques, as queixas da idade avançada. Multiplicamse os sintomas de perda de vitalidade e de autoconfiança. Por exemplo: quem dá as cartas no país, entra governo, sai governo, é a tribo tenebrosa dos economistas, especialmente aqueles que conseguem alojar-se no comando do Banco Central. Impera, consequentemente, o medo de crescer. Toda vez que a economia ameaça levantar a cabeça, o Banco Central se assusta e pisa forte no freio monetário. No tempo de JK, os economistas não tinham o prestígio e o poder que viriam a adquirir depois. O Brasil nem tinha Banco Central! JK escutava os seus economistas, mas não se deixava dominar por preocupações senis com equilíbrio e estabilidade. Ele tinha a noção intuitiva de que desenvolvimento econômico não se faz sem desequilíbrios e instabilidade. Em outras palavras, ele sabia que o lema positivista, inscrito pelos republicanos na bandeira nacional, é intrinsecamente contraditório: não há progresso sem desordem. Juscelino deixou a Presidência da República em 1961. Desde então, nunca mais conseguimos conciliar desenvolvimento com democracia. Foi desgraça atrás de desgraça. Atravessamos uma grave crise política e econômica nos anos 1960. Tivemos 20 anos de ditadura militar. No início da década de 1980, a economia entrou em uma longa fase de semiestagnação da qual ainda não conseguimos sair. A safra de presidentes civis foi pobre. Quase se poderia dizer: depois de JK, foram 5 anos em 50! A fama e a
lenda de Juscelino repousam, em parte, no contraste com o que veio depois dele. Para a maioria dos brasileiros, seu governo é uma referência marcante. Só um grupo minoritário, mas bastante influente, de economistas e banqueiros ecoa as críticas que a oposição udenista e economistas liberais, como Eugênio Gudin, faziam ao governo JK. Para esse grupo, que se orientava por teorias econômicas importadas dos EUA e da Europa, Juscelino era um irresponsável, um presidente sem compromisso com a austeridade fiscal e o controle da inflação. Nelson Rodrigues foi um dos que vocalizaram, já na época, a resposta a esse tipo de crítica. “Lançam a inflação na cara de Juscelino”, escrevia ele em 1961. Mas o Brasil estava de tanga, estava de folha de parreira, ou pior: com um barbante em cima do umbigo. Todo o Nordeste lambia rapadura. E vamos e venhamos: para um povo que lambe rapadura, que sentido têm os artigos do professor Gudin? Sempre existiram os Gudins e o povo sempre lambeu rapadura. Ao passo que o Brasil só conheceu um Juscelino.
Nada mais verdadeiro, nada mais profético. Os Gudins continuam por aí, aos montes, ensinando suas lições importadas de estabilidade e responsabilidade. E nunca mais apareceu um Juscelino. 1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 2 de fevereiro de 2006.
UM ICONOCLASTA1
“Galbraith será lembrado e lido quando a maioria de nós, Prêmios Nobel, estiver enterrada em notas de rodapé nas estantes empoeiradas das bibliotecas.” Paul Samuelson, em 1991
Com a morte de John Kenneth Galbraith, desapareceu um dos expoentes de uma espécie em extinção: o economista independente, crítico e irreverente. Galbraith possuía uma combinação extraordinária de qualidades: capacidade analítica, visão abrangente, originalidade, estilo primoroso e senso de humor. Dotado de ampla cultura e conhecimento profundo de várias áreas da economia, ele foi um dos mais importantes economistas keynesianos da segunda metade do século XX. Poucos contribuíram tanto para desmoralizar o que ele chamava de sabedoria convencional – a dos economistas e a de outras tribos. Em parte por isso, sua influência nunca foi grande nos meios acadêmicos. Ele era visto por muitos como uma “personalidade da mídia”, e não como “economista sério”. Galbraith não tinha, claro, a pretensão de ser o que os economistas normalmente entendem por “economista sério”. A ironia e o sarcasmo estavam entre suas principais armas. Sem deixar de ser elegante, ele sabia como ninguém desconcertar os adversários. A função dos economistas não é entreter ou divertir, mas o humor permite tomar certa distância dos temas abordados, sendo, portanto, de “considerável utilidade científica”, dizia ele com uma ponta de ironia. “Ao considerar o comportamento econômico”, acrescentou, “o humor é especialmente importante, uma vez que, desnecessário dizê-lo, grande parte desse comportamento é infinitamente ridículo”. Um dos seus alvos prediletos: os ridículos do comportamento financeiro e dos episódios especulativos. A seguinte passagem é bem característica do seu estilo mordaz:
Pode-se admitir, para fins práticos, que a memória financeira dure no máximo uns 20 anos. Esse é normalmente o tempo que leva para apagar a recordação de um desastre e para que alguma variante das demências anteriores se apresente e capture a mente financeira. É também o tempo geralmente requerido para que uma nova geração entre em cena, impressionada, como suas predecessoras, com o próprio gênio inovador.
Regra geral, observava Galbraith, as operações financeiras não se prestam à inovação: “O mundo das finanças celebra a invenção da roda reiterada e repetidamente, não raro numa versão ligeiramente mais instável.” A obra de Galbraith, que é vasta e variada, afasta-se totalmente do estilo dominante nos estudos de economia, marcados por crescente matematização. Ele era um institucionalista, que adotava a perspectiva histórica e uma abordagem multidisciplinar. Para ele, a economia não deveria ser discutida em abstrato, isolada das questões ideológicas, políticas e sociais. “Não pode haver dúvida”, escreveu Galbraith, “de que a dedicação prolongada a exercícios matemáticos em economia pode ser danosa. Ela leva à atrofia do julgamento e da intuição, que são indispensáveis para soluções reais, e, às vezes, leva também ao hábito mental de simplesmente desconsiderar os aspectos matematicamente inconvenientes”. Muitos países foram vítimas de experiências desastrosas de política econômica, conduzidas por economistas com esse tipo de treinamento ou deformação. O Brasil não é exceção, longe disso. A atual política monetária e cambial é um exemplo gritante. O que salva esses economistas, como observou Galbraith, é que os padrões pelos quais as autoridades governamentais são julgadas tornaram-se muito complacentes. Depois de provocarem infortúnios graves, economistas saem do governo com reputações reforçadas. E passam a ocupar, no setor privado, cargos prestigiados e mais bem remunerados. 1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 4 de maio de 2006.
O MAIOR BRASILEIRO DE TODOS OS TEMPOS1
“Escolho este meio de estar sempre convosco.” Getúlio Vargas, na carta-testamento
O jornal Folha de S.Paulo publicou os resultados de uma enquete com 200 pessoas de diferentes áreas (políticos, empresários, economistas, religiosos, intelectuais, jornalistas, esportistas e militares). A pergunta era: “Quem foi o brasileiro mais importante de todos os tempos?” Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek encabeçaram a lista dos escolhidos, com 16 e 15 votos, respectivamente. Talvez seja mais um sintoma da mudança de estado de espírito do brasileiro, que, desencantado com a agenda liberal-internacionalista implantada na década de 1990, agora olha com outros olhos o legado nacionaldesenvolvimentista. Há dez ou quinze anos, o ambiente era totalmente diferente. No seu discurso de despedida do Senado, em dezembro de 1994, o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso teve a imensa pretensão de anunciar o fim da Era Vargas. As suas palavras na ocasião foram um aviso do que nos esperava nos oito anos seguintes: “O caminho para o futuro desejado ainda passa, a meu ver, por um acerto de contas com o passado. Eu acredito firmemente que o autoritarismo é uma página virada na história do Brasil. Resta, contudo, um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas.” E, no entanto, Getúlio Vargas continua conosco, como ele previu na sua carta-testamento, enquanto políticos como Fernando Henrique foram relegados à proverbial lata de lixo da história (na referida enquete, diga-se de passagem, FHC não recebeu um voto sequer). Nos anos 1990, o PSDB foi o principal herdeiro da UDN (União Democrática Nacional), isto é, da corrente liberal, conservadora e pró-Estados
Unidos que sempre se opôs (nem sempre democraticamente) a Getúlio e Juscelino. Esse partido, que ostentava ironicamente o adjetivo “democrático” no nome, oscilava entre o golpismo e a participação inepta em eleições presidenciais. A UDN só venceu eleições para presidente da República quando escolheu como candidato o demagogo tresloucado chamado Jânio Quadros. Eleito pelo voto direto em outubro de 1950, Getúlio teve como principal adversário um candidato udenista, o brigadeiro Eduardo Gomes. Gomes já havia sido derrotado pelo general Dutra nas eleições de 1945, ocasião em que seu lema de campanha fora, inacreditavelmente: “Vote no brigadeiro, ele é bonito e é solteiro.” A minha família contava com partidários ferozes do brigadeiro. Houve quem pressionasse os empregados domésticos a votar nele, e os empregados prometiam seguir a orientação. Quando começaram a ser anunciados os primeiros resultados da eleição, com Getúlio vencendo por larga margem, alguém da família foi até a cozinha e percebeu que os empregados, reunidos na área de serviço, acompanhavam tudo pelo rádio e celebravam, eufóricos. Uma marcha de Carnaval daquele ano prenunciara a volta do político gaúcho à Presidência da República: “Bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar.” Grande Getúlio! Na história política brasileira, marcada pelo pragmatismo e pela tendência à conciliação, o seu suicídio em 1954 destoa dramaticamente. Getúlio avisou que não se submeteria ao golpe de Estado que estava sendo deflagrado por setores das Forças Armadas e da UDN. Matou-se com um tiro no coração, em seu quarto, no Palácio do Catete. Deixou-nos a carta-testamento, belo documento, do qual tirei a frase usada como epígrafe. A carta de Getúlio termina assim: Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. […] Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. 1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 5 de abril de 2007.
UM BRASILEIRO1
Em dezembro de 2000, Gustavo Kuerten, o Guga, chegou à posição de número 1 do ranking mundial de tênis depois de vitórias espetaculares sobre Agassi e Sampras e da conquista da Masters Cup. O Brasil atravessa grave crise de confiança, de autoconfiança e a descrença é generalizada, na economia, na política e no próprio país. Precisamos, mais do que nunca, lembrar dos grandes brasileiros. Dos nossos esportistas e artistas, por exemplo. Eu também poderia escrever sobre Marília Pera, que acabamos de perder. Guardo uma lembrança viva da sua atuação em peças como Master Class e Mademoiselle Chanel em que ela representou de maneira brilhante outras duas grandes artistas: a grega Maria Callas e a francesa Coco Chanel. Mas prefiro falar do Guga, que conheço pessoalmente. É que ele é casado com a minha filha mais velha, Mariana. Na verdade, Mariana é minha enteada. Mas a considero como filha. Dois dos meus netos são filhos dela e do Guga. Os familiares e amigos do Guga sabem que há uma correspondência total entre o Guga, figura pública, e o Guga da vida diária. Todas as qualidades que o público em geral reconhece nele – a delicadeza, a generosidade, a integridade, o humor, a descontração, o respeito e o cuidado com os outros, entre outras –, tudo isso está claramente presente no Guga com quem passei a conviver nos anos recentes. Não é de estranhar. Dizia Lincoln: “Pode-se enganar todos por algum tempo, alguns o tempo todo, mas não se consegue enganar todos o tempo todo.” É muito difícil, provavelmente impossível, projetar uma imagem pública, e sustentá-la ao longo do tempo, sem que ela corresponda ao que a pessoa realmente é. Guga publicou recentemente um livro sobre sua trajetória, que inclui capítulo fascinante sobre a conquista de 15 anos atrás e as partidas que o levaram a isso. O livro se chama: Guga – um brasileiro. Repare, leitor, no subtítulo.
Poucos brasileiros são tão conhecidos no exterior. Ainda na semana passada, participei de um painel em Tóquio. O moderador japonês do debate, que conheço há muitos anos, resolveu me apresentar como “sogro de Gustavo Kuerten, o Guga, três vezes vencedor de Roland Garros”. Foi um sucesso. Pois bem, essa celebridade internacional faz questão de se autodesignar “um brasileiro”. Por muito menos, simplesmente por ter viajado ou vivido algum tempo no exterior, muitos brasileiros preferem se declarar “cidadãos do mundo” e renegar, ou deixar em segundo plano, sua nacionalidade… Diversas partes do livro transcendem o tênis. Vale pensar, por exemplo, no que ele diz sobre como lidar com derrotas: Existe pouca coisa pior para um jogador do que duvidar de sua capacidade. Só os obstinados são campeões. Derrotas podem ser compreensíveis, às vezes inevitáveis, mas jamais aceitáveis. […] É bobagem essa história de que é na derrota que se aprende a ganhar. Perder uma partida tem, sim, seus ensinamentos e lidar com a frustração é uma lição necessária para todo tenista. Mas no dia em que um jogador se conforma com resultados desfavoráveis, já era, pode pendurar as chuteiras.
O Brasil não pode pendurar as chuteiras. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 11 de dezembro de 2015.
UM ARTISTA1
Ocorreu-me escrever certa vez, ecoando Nietzsche: “Todo artista verdadeiro está além do bem e do mal.” O que quis dizer é que um artista não pode ser julgado, enquanto artista, por seu comportamento pessoal ou suas posições políticas. Estava me referindo a Maurice Barrès, sobre quem volto a escrever um pouco. Barrès é praticamente desconhecido no Brasil, mas foi uma das grandes figuras da literatura francesa nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial. Vale a pena conhecer sua obra. Além de romancista e ensaísta, foi parlamentar, ativista político e um dos criadores do pensamento nacionalista francês. A noção de enraizamento desempenha papel crucial na sua versão do nacionalismo. Para ele, cada um de nós é um prolongamento de nossos antepassados, que vivem e falam por nosso intermédio. Em outras palavras, somos o produto de uma coletividade que ressoa dentro de nós. A nossa força reside, segundo Barrès, em nos submetermos sem hesitações “às grandes vozes da terra e dos mortos”. Desconectados desse solo e desse passado, ficamos sem base e sem referências. E perdemos a nossa fonte primordial de energia vital. Tudo isso faz muito sentido para mim. Eu, que por circunstâncias familiares e depois profissionais vivi tanto tempo no exterior, só sobrevivi e só não me desfigurei porque nunca me considerei “cidadão do mundo” (tenho horror dessa expressão e nem sei o que pode realmente significar). Por mais longe que esteja, estou sempre conectado de alguma forma ao Brasil. Volto a Barrès. Infelizmente, ele se colocou do lado errado em uma das maiores injustiças da história francesa: a condenação do capitão Alfred Dreyfus, de origem judaica, acusado de entregar segredos militares à Alemanha. Barrès era um dos porta-vozes, não raro vociferante, dos antidreyfusards e defensor intransigente do exército francês e, por extensão, das barbaridades que fizeram contra um inocente. Chegou a escrever que a raça de Dreyfus o predispunha à traição…
E, no entanto – e aí queria chegar –, foi um artista maravilhoso. As suas palavras tinham toda uma música própria e as cadências barresianas ficaram famosas. Para dar uma ideia ao leitor ou leitora, traduzo sua descrição de um passeio de gôndola em Veneza, conhecido como O incêndio de Veneza: Veneza, rente ao mar, se estendia e fazia uma barra mais importante à medida que o sol se extinguia. Colorações fantásticas se sucediam que teriam forçado a alma mais indigente a se emocionar. Ora tons sombrios e esses verdes profundos próprios das ruelas misteriosas de Veneza; ora esses amarelos, esses alaranjados, esses azuis com que jogam os decoradores japoneses. Enquanto no Ocidente o céu se liquefazia num mar ardente, sobre nossas cabeças nuvens inebriantes de magnificência renovavam perpetuamente suas formas, e a luz do crepúsculo as penetrava, as saturava de seus incontáveis fogos. As suas cores delicadas e dilaceradas de lirismo se refletiam na laguna, de sorte que nós deslizávamos sobre os céus. Eles nos cobriam, eles nos carregavam, eles nos envolviam de um esplendor total e, por assim dizer, palpável. Vencidos por essas grandes magias, havíamos perdido toda noção de realidade quando manchas escuras apareceram, cresceram sobre a água, depois nos tomaram na sua sombra. Eram os monumentos dos doges.
A quem assim escreve tudo se pode perdoar. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 16 de setembro de 2016.
A PLATAFORMA CEDEU1
Em certa época do ano é difícil dizer coisa com coisa. Os cérebros entram em recessão sincronizada. O lugar-comum reina inconteste. As piores trivialidades ganham ares de sabedoria. Proliferam as invocações apócrifas de grandes nomes. Fernando Pessoa, por exemplo, sofre. O momento atual é especialmente ingrato e até os expedientes mais corriqueiros não ajudam nada. Recuso-me, por exemplo, a tentar uma retrospectiva de 2016 – ano que, como disse alguém, nem deveria ter começado. Perspectivas para 2017? Nem pensar. Vejamos. Ocorre-me falar um pouco sobre Abraham Lincoln. Foi o maior dos presidentes dos Estados Unidos. Era um estadista, sem dúvida. Venceu uma das mais sangrentas guerras civis da história, mantendo a união do seu país. Lincoln tinha, além disso, o dom da palavra. Mais do que isso: foi um grande escritor. Diferentemente dos políticos de hoje, escrevia de próprio punho seus discursos e correspondência. E investia muito tempo e cuidado, mesmo nos momentos difíceis, em prepará-los e revisá-los. Alguns dos seus pronunciamentos entraram para a história. No Memorial de Lincoln, em Washington, D.C., dois deles estão inscritos em pedra: o discurso de Gettysburg e o segundo discurso de posse. Recomendo ao leitor que os leia ou releia. São primorosos, do começo ao fim. E têm, ademais, a virtude da brevidade. Mas o meu favorito, menos conhecido, é o pequeno discurso de despedida, em Springfield, Illinois, em 1861, quando Lincoln iniciava a viagem para a posse em Washington – especialmente a passagem em que, com sentido de predestinação, dizia: “Estou agora de partida, sem saber quando, ou se jamais voltarei, e com uma tarefa diante de mim maior do que aquela que pesava sobre Washington.” Disse isso tranquilo, com naturalidade – e ninguém estranhou a enormidade do que acabara de ser dito. O momento era grave, uma guerra civil parecia prestes a estourar; só que Lincoln era um político provinciano, e mesmo eleito presidente, ainda subestimado por muitos. A audácia de dizer que a sua tarefa era
maior do que a de George Washington, o grande herói do país, o líder da Guerra de Independência! Mas por um instante, imagino, foi como se todos os presentes se dessem conta de que aquela partida era quase uma sagração, e aquelas palavras mais do que qualquer coisa que Lincoln pudesse proclamar em sua posse formal. Lincoln era também um homem simples e de grande senso de humor. Célebre por suas histórias e anedotas, levava seus ministros à loucura, quando, até em momentos de emergência, interrompia graves discussões para relatar episódios e contar casos, às vezes apenas remotamente ligados aos pontos em questão. O filme de Spielberg sobre Lincoln retratou bem esse seu lado. Uma das suas histórias é especialmente instrutiva. Um rapaz disputava um emprego público e para tal precisava responder um questionário. Estava indo muito bem até que esbarrou numa questão delicada: causa da morte do pai? É que seu pai tinha sido enforcado como ladrão de cavalos. O candidato pensou, pensou, até que veio a luz: “Meu pai participava de uma cerimônia pública, quando a plataforma cedeu.” 1 Publicado originalmente em O Globo, em 6 de janeiro de 2017.
TEMPO CRUEL1
Otto Lara Resende, figura pública e escritor célebre em sua época, é hoje quase ignorado. As novas gerações não têm a mais vaga ideia de quem possa ter sido – um exemplo notável de como o tempo pode ser cruel com celebridades de certo feitio. Curiosamente, Otto sobrevive não pelos seus escritos, mas como personagem folclórico de um dos seus amigos: Nelson Rodrigues – este, sim, até hoje lembrado, lido e citado. Com 13, 14 anos, eu já gostava de ler jornal. Lia inclusive os artigos do Nelson e do Otto em O Globo. Os do Otto não me tocavam. Faltavam-lhes vivacidade e vibração. As crônicas do Nelson eram mais turbulentas e interessantes. Ele desancava sem dó os ídolos da esquerda, entre eles Godard, aquele cineasta francês. Eu nunca ia ao cinema e não tinha noção da Nouvelle Vague, mas achava Godard o fim. O Otto era casado com uma prima-irmã da minha mãe e, por isso, cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Devo dizer, leitor: ele era impressionante. Foi o rei do bate-papo e um inigualável frasista e contador de casos. As performances dele eram sensacionais e famosíssimas em toda a cidade do Rio de Janeiro. Certa vez, conta o Nelson, o Otto compareceu a um velório. Cumprimentou a viúva e os familiares do morto comme il faut, mas, de repente, não se conteve e soltou uma piada. Até o defunto riu. O Nelson costumava dizer que o Estado brasileiro deveria pagar um taquígrafo para ir atrás do Otto, anotando o que ele dizia, as pérolas, as críticas certeiras, as frases cintilantes, os paradoxos surpreendentes, tudo que ele mesmo nunca chegava a botar no papel. Eu, ainda menino, também notava, perplexo, o contraste entre o Otto verbal e sonoro, ao vivo e a cores, e o Otto escrito e publicado, bolorento e insípido. Era como se ele, genial frasista, insistisse em vestir casaca e envergar polainas antes de se sentar para escrever. Décadas depois, fui apresentado ao Armando Nogueira, que conheceu bem tanto o Nelson como o Otto. Falamos sobretudo do Nelson, mas a certa altura da conversa comentei a dissonância entre a pessoa física e a pessoa literária do Otto. O Armando concordou e contou que o próprio Nelson dizia que, para
escrever bem, o Otto teria que, primeiro, ser “currado por três crioulões no Aterro do Flamengo”. O Otto era provavelmente um pouco almofadinha, levava uma vida privilegiada, gostava de um conforto, de aninhar-se em empregos e posições de destaque. Não podia arriscar, portanto. Tinha que contemporizar, silenciar, fazer concessões. Já o Nelson não fugia de polêmicas. Ao contrário, gostava de cultivá-las, não tinha medo de ser desagradável, de fustigar as idiotices triunfantes. Nietzsche dizia que o grande homem tem que ser contra o seu tempo. Para alcançar a imortalidade, ele não pode ser um participante pacífico e acomodado da sua época e dos preconceitos da sua época. E, realmente, sem a coragem – que talvez seja a virtude primordial –, o brilho, a criatividade, a inteligência caem no vazio, não têm sobrevida. Não por acaso, foi Nelson e não Otto que ficou para sempre. Nelson, contestado e até odiado em seu tempo, entrou para a História. Otto sobrevive, na melhor das hipóteses, como personagem do amigo, na ilustre companhia do Sobrenatural de Almeida, do Palhares (aquele que não respeitava nem as cunhadas), da Cabra Vadia e da Grã-Fina das Narinas de Cadáver. O Armando Nogueira me relatou, na mesma ocasião, um episódio emblemático. Um dia, o Nelson e o Otto estavam caminhando pela Avenida Atlântica. O Otto disse: “Nelson, você está atacando demais as esquerdas!” (Na época, leitor, as esquerdas estavam na moda e intimidavam todo mundo.) O Nelson ouviu a advertência do amigo e indagou: “Você acha realmente que eu ataco demais as esquerdas?” O Otto resolveu ser mais enfático: “Qualquer dia você leva um tiro!” O Nelson espantou-se: “Corro mesmo o risco de levar tiro?” O amigo confirmou, sem pestanejar. O Nelson ficou pensativo um instante e então perguntou: “Se eu morrer, você escreve a meu respeito?” O Otto prometeu que sim, claro. E o Nelson: “Mas exagera, viu, exagera!” 1 Publicado originalmente em Zero Hora, em 21 de janeiro de 2017.
LEMBRANÇAS DE UM OUTRO BRASIL1
Quero fazer a minha pequena homenagem ao ex-presidente Lula. Muitos se manifestaram sobre ele em textos e depoimentos emocionados e emocionantes por ocasião da sua prisão. O que poderia eu acrescentar a tudo que já foi dito? Talvez relatar brevemente episódios que testemunhei e que revelam algumas das muitas qualidades de Lula. Um desses episódios ocorreu em 2009, quando Lula resolveu emprestar dinheiro ao FMI, algo sem precedentes para um país como o nosso. Na época, eu era diretor executivo pelo Brasil e outros países no FMI. Desde 2006, o Brasil vinha acumulando reservas internacionais em ritmo acelerado e estava em posição forte. Graças a isso, o país conseguiu atravessar com relativa tranquilidade a aguda crise que irrompeu em 2008 nos sistemas financeiros dos EUA e da Europa. Os países desenvolvidos, apavorados com a instabilidade financeira, queriam reforçar rapidamente o poder de fogo do FMI, criando substanciais linhas de crédito para a instituição. Pediram aos países emergentes mais fortes, inclusive o Brasil, que ajudassem na mobilização de recursos. O problema é que aportar recursos dessa forma não daria poder de voto adicional ao Brasil no FMI. A reforma da instituição caminhava devagar. Havia sido aprovada a reforma de quotas e governança de 2008, que melhorara um pouco a posição relativa do Brasil e de outros países em desenvolvimento em termos de poder de voto. Mas a segunda etapa da reforma, que prometia avanços mais expressivos, estava ainda em negociação. Manifestei ao governo brasileiro a minha avaliação de que seria melhor obter avanços em termos de reforma da governança do FMI antes de fazer qualquer empréstimo. O presidente Lula não aceitou as minhas ponderações e autorizou a abertura de uma linha de crédito de até US$ 10 bilhões ao FMI. Não demorou muito para que ficasse claro para mim que ele estava certo e eu, errado. O tino político do presidente valeu mais do que os cálculos do economista. O impacto da decisão foi enorme, tanto fora como especialmente
dentro do país. O Brasil, país devedor contumaz, e às vezes relapso, estava agora na condição de credor da mais importante instituição financeira multilateral. Foi um verdadeiro tiro de canhão no nosso proverbial complexo de vira-lata. Além disso, a operação se revestia de características especiais. O FMI é um risco de crédito sólido, a remuneração não era muito inferior à rentabilidade média das nossas reservas internacionais e qualquer desembolso feito ao abrigo da linha de crédito tinha liquidez total assegurada pelo FMI e poderia, portanto, continuar sendo contabilizado como parte das reservas brasileiras. Mudava a composição, não o nível das reservas. Esse episódio com o FMI se insere em um movimento mais amplo de fortalecimento da posição internacional do Brasil, iniciado por Lula já no seu primeiro mandato. Desde o início, ele revelou um talento especial para a articulação internacional. Em poucos anos, ele se tornou conhecido e respeitado no mundo inteiro por governos das mais variadas tendências. Para a surpresa geral, estabeleceu por exemplo uma relação cordial com o presidente dos EUA, George W. Bush. Isso permitiu que Lula desempenhasse um papel-chave na transformação do G20 – que inclui os principais países emergentes – no principal foro para cooperação econômica internacional em substituição ao G7, composto exclusivamente pelos principais países desenvolvidos. Desde a primeira reunião de líderes do G20, em Washington, no fim de 2008, Lula foi uma presença marcante, verdadeiro orgulho para os brasileiros que, como eu, acompanhavam de perto sua atuação. Quando me lembro dessa época, leitor, fico com a sensação de estar tratando de outro país, não deste em que hoje vivemos. Com Lula, o Brasil andava sempre de cabeça erguida. Sem arrogância, sem bravatas, mas sem a subserviência que caracteriza o comportamento de grande parte da elite brasileira. Outro traço notável de Lula: o poder nunca lhe subiu à cabeça e nunca o afastou das suas raízes. Passei dez anos no exterior, primeiro em Washington e depois em Xangai, mas sempre que vinha ao Brasil procurava fazer uma visita a ele. Numa dessas visitas, aconteceu algo curioso. Ao final do nosso encontro, ele me perguntou se eu não gostaria de participar da próxima reunião na sua agenda que era com as lideranças de catadores de lixo. Aceitei e acabei presenciando um diálogo muito interessante. Vieram lideranças do Brasil inteiro, homens e mulheres, pessoas articuladas e inteligentes, representantes de um movimento social organizado. Lula conhecia todo mundo e mostrou impressionante domínio dos detalhes do trabalho dos
catadores, da história do movimento e das suas reivindicações. Mas o que mais me ficou na lembrança foi a natureza da relação entre Lula e as lideranças de um movimento popular. A relação era de respeito, mas não de veneração e muito menos adulação. As lideranças questionavam, sem constrangimento, algumas das afirmações de Lula, que aceitava as contestações com toda naturalidade. Era o diálogo franco e substantivo de um líder político natural, autenticamente democrático, com integrantes da sua base social. Saí dali energizado, confiante de que o Brasil estava entrando em nova etapa da sua história. 1 Publicado originalmente na revista Carta Capital, em 18 de abril de 2018.
CAPÍTULO 6 Humor econômico e outras crônicas
UM SOBRINHO NO MERCADO FINANCEIRO1
Era o que me faltava: um sobrinho no mercado financeiro! O rapaz é inteligente e preparado: passou em primeiro lugar em concurso para trainee de um banco de investimentos. Agora, não tenho tranquilidade de espírito nem em reuniões de família. No mercado financeiro, o processo de catequização pode ser rápido e fulminante. Depois de pouco tempo, o sujeito começa a se dar conta, por exemplo, da lógica irretocável da política monetária do Banco Central. Em almoço familiar recente, o referido sobrinho disparou, irônico e bem-humorado: “Tenho concordado com todos os seus artigos, menos com a crítica à taxa de juro, que não está acima do equilíbrio.” Deixei escapar um suspiro. Lembrei-me de que, logo no início do governo Lula, em 2003, fiz uma visita ao ministro Antonio Palocci, que, a certa altura da conversa, soltou o seguinte: “Não sei se você trabalha com o conceito de taxa de juro equilíbrio, mas o Banco Central tem estudos que mostram que, no nosso caso, o juro básico de equilíbrio é da ordem de 10% em termos reais.” Ali, comecei a compreender que tudo estava perdido. Devo dizer que, na minha ignorância, nunca encontrei teorias ou pesquisas econômicas que pudessem justificar uma taxa básica de “equilíbrio” de 10% em termos reais – muito menos juros básicos superiores a 14%, como os atuais. Ninguém explica, convincentemente, por que o Brasil é obrigado a praticar juros reais sete vezes maiores do que a média observada nos principais mercados emergentes. A réplica do sobrinho não foi muito diferente da que ouvi do ministro da Fazenda – apenas mais violenta, considerando o parentesco. Um dos grandes problemas, segundo eles, é que o Brasil recorreu a uma moratória unilateral, em 1987, deixando um rastro de desconfiança que influi sobre os prêmios de risco e os juros. Para recorrer à gíria futebolística, isso equivale a “bater na
medalhinha”. Não sei se o leitor por acaso sabe, mas eu fui um dos responsáveis pela suspensão de pagamentos aos bancos estrangeiros naquela ocasião. Mesmo assim, procurei ser paciente, tanto com o ministro como com o sobrinho. Lembrei que a Rússia decretou moratória unilateral, bem mais recentemente, em 1998, com amplas repercussões internacionais – e em seguida reestruturou a dívida em bases essencialmente unilaterais (passo que o Brasil nunca chegou a dar). A Argentina fez o mesmo ainda mais recentemente: suspendeu pagamentos em fins de 2001 e reestruturou a maior parte da dívida afetada de forma basicamente unilateral em operação concluída em 2005 (a outra parte da dívida continua em moratória). Ora, tanto a Rússia como a Argentina praticam juros moderados, sempre muito inferiores aos do Brasil. Nos meses recentes, esses dois países têm registrado até mesmo taxas básicas de juro negativas em termos reais. O ministro da Fazenda não insistiu, mas o sobrinho, com o ardor da juventude, ainda sustentou que o problema não era só a moratória de 1987, mas um conjunto de fatores adversos: inflação mais alta do que a média internacional, déficits expressivos nas contas governamentais e uma dívida pública perigosamente elevada – todos argumentos de ampla circulação no mercado. Nesse ambiente, o Banco Central não teria alternativa senão praticar juros mais altos do que os internacionais. Nenhum desses argumentos convence. A inflação brasileira não é muito mais alta do que a que se observa no resto do mundo. O déficit público, apesar do Banco Central e das suas taxas de juro, também não é dos mais elevados. Na verdade, o déficit fiscal no Brasil vem sendo inferior aos déficits de todos ou quase todos os principais países desenvolvidos. A dívida pública brasileira cresceu rapidamente no período FHC, mas não se pode dizer que ela esteja muito acima dos níveis médios registrados nos países desenvolvidos e nos demais emergentes. Não quero sobrecarregar a paciência do leitor com estatísticas que comprovariam as afirmações do parágrafo anterior. Gostaria apenas de dizer o seguinte, para terminar: só há uma variável macroeconômica brasileira que discrepa, há muito tempo e de maneira nítida e inequívoca, da experiência internacional: a taxa de juro. A taxa de juro fixada pelo Banco Central e, mais ainda, as taxas cobradas pelos bancos. Deus nos proteja da lógica impecável do Banco Central e do sistema financeiro! No almoço familiar referido, não terminei de forma tão dramática. Virei para os demais sobrinhos, que acompanhavam a discussão em silêncio, e
disse: “Na geração de vocês, ele é quem vai pagar a conta do restaurante. Vocês terão de escutar uns argumentos esquisitos sobre juros, mas almoço grátis sempre vale a pena.” 1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 8 de setembro de 2005.
BANHAS DOGMÁTICAS1
Posso tratar, leitor, de um tema de nível relativamente baixo? Queria falar um pouco do segundo escalão da área econômica do governo federal. Vale a pena? Quem desconhece o funcionamento interno dos governos tende a subestimar a importância dos integrantes do segundo ou terceiro escalão. As agendas do presidente da República e de seus ministros estão sempre muito sobrecarregadas por eventos variados, e não raro inúteis, como cerimônias, inaugurações, discursos, solenidades e audiências. Enquanto isso, em surdina, o segundo escalão toca o governo, pensa (às vezes), examina os problemas e vai tomando decisões ou orientando as decisões presidenciais e ministeriais. Na área econômica do governo Lula, esse fenômeno é particularmente saliente. É o que costuma ocorrer quando o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central não são do ramo. O ministro Antonio Palocci é um político, médico sanitarista por formação; Henrique Meirelles é um executivo da área bancária, com escassa formação econômica. Resultado: o segundo escalão dá as cartas, em grande medida. A dupla Palocci-Meirelles aparece, dá entrevistas e explica políticas que eles nem sempre determinam ou mesmo compreendem. Um exemplo desse fenômeno é Afonso Bevilaqua, integrante da diretoria do Banco Central. Como o grande público não conhece seus feitos, suas realizações, suas ideias (não, “ideias” já é exagero), passo a apresentá-lo rapidamente. Ocupa o cargo de diretor de política econômica do Banco Central e é um dos membros do famigerado Copom (Comitê de Política Monetária). Formado nos EUA, procura seguir fielmente os preceitos da economia ortodoxa (ortodoxia de galinheiro, por suposto). É relativamente jovem, com pouca experiência fora da área acadêmica. Segundo se comenta e notícia há algum tempo, o referido diretor tem grande peso nas reuniões do Copom, chegando a dominá-las inteiramente em várias ocasiões. Ele é que estaria por trás da extraordinária rigidez da política monetária. As taxas estratosféricas de juro e a enorme valorização cambial vêm
sendo debitadas, em grande medida, à sua obstinação. Uma curiosidade: trata-se de um gordo. Dizia Nelson Rodrigues que as banhas predispõem aos afetos, à conciliação, aos aconchegos. Nesse caso, não. O gordo em questão se notabiliza, ao contrário, pela inflexibilidade e pelo dogmatismo. Ora, o Banco Central é provavelmente o último lugar em que se deve colocar um dogmático. A autoridade monetária trabalha em um ambiente marcado por incertezas e riscos. Não consegue interpretar e prever o funcionamento da economia com precisão. Os efeitos das decisões de política monetária, cambial e financeira são sempre difíceis de antecipar. Nessas condições, caro leitor, fundamentalistas costumam produzir desastres. De posse das alavancas decisórias na área monetária, um grupo de tecnocratas, ou mesmo um economista individual, pode fazer um estrago monumental. A combinação mais perigosa é essa mesma: inexperiência e dogmatismo. Aliás, o segundo resulta, às vezes, da primeira. Encontrei-me, nesta semana, com o célebre economista argentino Roberto Frenkel. Ele conhece bem o Brasil, mas perguntou-me, espantado: “Explica uma coisa: como é que o governo brasileiro conseguiu a proeza de derrubar o PIB com a economia mundial em fase de forte expansão, com todos os ventos internacionais a favor?” A minha resposta não merece ser registrada, pois, como diria Oscar Wilde, tomou a forma deprimente de informações úteis e precisas. Mas acabei falando um pouco da contribuição individual de Bevilaqua. Frenkel, que o conheceu como obscuro coadjuvante de alguns professores da PUC-RJ, ficou simplesmente estarrecido. Nem queria acreditar. 1
Publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 9 de dezembro de 2005.
HUMOR ECONÔMICO1
Mark Twain dizia: reúna os fatos e, depois, os distorça à vontade. Ótimo. Mas, leitor, convenhamos, ele era um ficcionista, e não um simples economista. Como se sabe, imaginação nunca foi o nosso forte. Portanto, nas minhas crônicas só entram fatos reais. Parece difícil de acreditar? Talvez seja. O problema é que as pessoas nem sempre estão atentas ao lado cômico ou dramático do cotidiano. Do nosso cotidiano pessoal e do cotidiano econômico e político. Em outras palavras: é perfeitamente possível tirar leite de pedra sem fantasiar os fatos. Bem sei que, como lembrava Nietzsche, “não há fatos, só interpretações”. Mas não vamos complicar o óbvio. Um exemplo: há tempos, escrevi na Folha de S.Paulo sobre um sobrinho que ingressou brilhantemente nas fileiras de um prestigiado banco de investimentos em São Paulo.2 O rapaz se converteu com rapidez fulminante à sabedoria econômica convencional. Foi medonho. Antes, o referido sobrinho era um crítico exaltado e insistente (até enfadonho) das “elites oligárquicas”. Hoje, defende vigorosamente a política de juros do Banco Central. Em resumo, acabou o meu sossego. Agora, não tenho mais tranquilidade nem nos almoços de família. Uma amiga chegou a perguntar: “É ficção? Ou o tal sobrinho existe mesmo?” Existe, realmente existe. Os leitores que me deram a satisfação de comparecer ao lançamento do meu último livro, em São Paulo, puderam apalpálo, farejá-lo e até pedir-lhe dinheiro emprestado. Outro exemplo: escrevi no Jornal do Brasil sobre um aspecto estritamente folclórico da política monetária.3 Vale uma breve reprise. A política de juros do Banco Central tem sido dominada por um economista doutrinário, que aplica a ferro e fogo o modelo de metas para a inflação. Por obra sua, em grande medida, os juros nacionais não encontram paralelo no mundo estatisticamente mapeado. Se os brasileiros não entendem essa política, os estrangeiros menos ainda. Gabriel Palma, um economista da Universidade de Cambridge, chegou a
qualificar a política monetária brasileira de “histérica” e “suicida”. Os demais membros do famigerado Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central) não conseguem resistir à ferocidade dogmática desse economista. Agora, o aspecto folclórico: trata-se paradoxalmente de um gordo, um gordo de notável circunferência. Ora, como comentava Nelson Rodrigues, as banhas predispõem aos afetos, aos aconchegos, às conciliações. Nesse caso, não. Ao contrário, o gordo em questão é rigorosamente inflexível, sempre disposto a tudo sacrificar no altar do combate à inflação. Alguns leitores me escreveram indignados. Acusaram-me de estar acertando contas pessoais. Nada disso. Nem conheço o tal economista. Em verdade, vos digo: nunca o vi mais gordo. O economista, principalmente o economista brasileiro, não pode abrir mão do humor e até do deboche. Vociferar contra as irracionalidades do poder econômico e político nunca será eficaz. E pode ser o caminho mais rápido para o hospício. Se quisermos conservar o que nos resta de sanidade mental, temos que estar sempre alertas para o lado infinitamente ridículo do poder econômico e do comportamento dos seus fiéis servidores. 1 Publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 6 de janeiro de 2006. 2 Neste livro, p. 411-3. 3 Neste livro, p. 414-5.
EXÍLIO1
No exterior, longe da pátria querida, todo brasileiro é um pobre e desamparado ser. Depois de poucos dias, o sentimento é de exílio total – ainda que o exílio seja confortável, ainda que o exílio seja dourado. Evidentemente, há os brasileiros desnaturados, os falsos brasileiros, que se deslumbram com qualquer viagem. Mas não é deles que estou falando, e sim do brasileiro autêntico e puro. Do brasileiro subdesenvolvido até a medula. Sejamos francos: nenhum brasileiro é “cidadão do mundo” – embora muitos queiram se fazer passar por tal. Nós somos, e sempre fomos, suburbanos natos e hereditários. No brasileiro, a sofisticação é sempre um artificialismo meio barato, meio importado. Brasileiro cosmopolita é uma contradição em termos. Quando me mudei para Washington para assumir o cargo de diretor executivo no FMI pelo Brasil e outros países, logo me senti um exilado. Cheguei na primavera, com sol, dia após dia. Ainda bem, pois, como dizia Fernando Pessoa: “Deem-me o céu azul e o sol visível. Névoa, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.” Entre parênteses: é tão bom poder lembrar de Fernando Pessoa, ele que dizia também: “Minha pátria é a língua portuguesa.” Psicologicamente, o meu exílio está mais para cinzento do que dourado. O tempo pesa, leitor. Dois dias duram dez. Paciência. Escrever este texto é como voltar um pouco para casa. Digito esta frase simples e – não sei bem por que – sou tomado de repente por uma onda de emoção. Ridículo, não? Talvez sejam os velhos fantasmas da infância. Meu pai era diplomata, e nós, crianças, éramos arrancados, a cada dois anos, de um país para o outro, sem dó nem piedade. Um dia nos chegava a notícia, de chofre: “Papai foi removido.” E pronto: nosso pequeno mundo vinha abaixo. Sobrava apenas o núcleo familiar, um ninho portátil de neuroses, como qualquer família. Por incrível que pareça, até os 20 e poucos anos de idade, nunca havia morado dois anos consecutivos em uma mesma cidade. Essa instabilidade
geográfica deixou suas marcas – cicatrizes talvez seja a palavra mais adequada. Desenvolvi, aos poucos, um verdadeiro ressentimento contra viagens e uma fobia de mudanças. Há poucos anos, em São Paulo, fui obrigado a mudar de apartamento. Encontrei outro, exatamente no mesmo quarteirão. Mesmo assim, foi um deus nos acuda! Imagine, leitor, como me senti com a mudança de hemisfério, de país, de língua, de trabalho – tudo ao mesmo tempo. Vi-me em plena Roma moderna, trabalhando no FMI – of all places! Aliás, houve quem notasse certa incongruência em me mandar para cá. Quando a notícia veio a público, produziu-se uma pequena tempestade nos jornais brasileiros. “O homem errado no lugar errado”, decretou, por exemplo, O Estado de São Paulo em editorial, com chamada de primeira página e tudo. Quando acompanhei o ministro Guido Mantega em visita ao diretor-gerente do FMI, Rodrigo de Rato, Mantega, que é um gozador, disse a ele, sorrindo: “O que estão dizendo na imprensa brasileira sobre o Paulo Nogueira não é verdade. Ele é muito pior!” Rato riu amarelo e retrucou: “Não se preocupe, vamos soterrá-lo com documentos.” Foi exatamente o que aconteceu. Fui escrevendo, escrevendo e, de repente, percebo que não era bem esse o tema que pretendia abordar. Eu queria era falar um pouco sobre nacionalismo. E, no entanto, pensando melhor, foi o que acabei fazendo. 1
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 10 de maio de 2007.
UM SONHO1
Quero declarar de saída: não sou um sonhador. Nem metafórica, nem literalmente. Sou cético por temperamento, e raramente me lembro de sonhos. Mas fiquei impressionado com um sonho recente. Antes de relatá-lo, peço ao leitor licença para algumas considerações. Escrevi “leitor” por mera convenção. Quero me dirigir às mulheres, em especial. Isso porque elas têm o espírito um pouco mais aberto para o lado, digamos, obscuro, misterioso da vida e da morte. Vivemos vidas essencialmente desencantadas. O mundo perdeu muito da sua mágica e do seu mistério. Não há o que fazer, nem lamentar. É o lado negativo do avanço da razão e da ciência, um processo milenar que, no Ocidente, remonta à decadência da cultura trágica dos gregos e à ascensão do espírito socrático. “E pur si muove…”, poderíamos dizer, numa aplicação paradoxal da frase legendária, mais sussurrada do que afirmada, de Galileu à Inquisição, depois de ter sido forçado a renegar o heliocentrismo. Hoje, é contra os herdeiros de Galileu, triunfantes, que o sussurro pode ser dirigido. Tudo isso está ficando um pouco hermético, reconheço. Eis o que eu queria perguntar: existe ou não vida após a morte? Os sonhos em que mortos nos falam, às vezes de forma tão convincente, tocante e até premonitória, seriam apenas expressão de desejos e saudades? Presságios que se confirmam seriam meras coincidências? Para os jovens, é fácil descartar essas perguntas. Para eles o que interessa é que exista vida antes da morte. A sua morte individual está, em princípio, muito distante, e as pessoas mais próximas estão normalmente ainda vivas. Com o passar do tempo, essas questões começam a pesar mais. Já morreram muitos dos meus amigos, companheiros de trabalho, familiares. Mas só um deles ainda parece se comunicar comigo volta e meia – meu pai. Ele foi um dos maiores diplomatas brasileiros da sua geração, uma figura
lendária do Itamaraty, ainda hoje muito lembrada nos meios diplomáticos e políticos, no Brasil e no exterior. Era antes de tudo um nacionalista fervoroso, que lutava incansavelmente pelo Brasil. Essa sua missão foi a minha herança. Procuro levá-la adiante, dentro das minhas limitações. Nem sei se o meu temperamento se adapta tão bem a ela. Mas é o que tenho feito desde o início da minha vida profissional, como economista, pesquisador, professor universitário, nos dois anos em que trabalhei no governo na década de 1980, e depois de novo como professor, escritor, polemista. Coerência não me falta. Não é um autoelogio, pois como dizia Oscar Wilde, “coerência é a qualidade dos que não têm imaginação”. Para quem não tem imaginação, o FMI talvez seja o lugar apropriado. Aqui em Washington, continuo na mesma luta, só que agora muito mais próximo do tipo de atuação que teve meu pai. A função aqui é, em grande parte, diplomática. Nas últimas semanas, passei por alguns momentos de grande tensão. No meio dessa crise, fiz uma viagem relâmpago a Brasília para enfrentar problemas na minha retaguarda e voltei imediatamente para controlar os estragos aqui em Washington. Praticamente não dormi no voo noturno na volta. Passei em casa e resolvi descansar por uma hora. Adormeci e sonhei um sonho que me comoveu, fortaleceu e alimentou. Estava numa casa desconhecida, quando meu pai passa por mim, devagar, sem me olhar. Eu tinha consciência de que ele estava morto, mas pedi: “Pai, fala comigo! Você tem algo para me dizer?” Ele virou e respondeu: “Eu não falo mais.” E eu, comovido: “Que pena, você falava tão bem.” Ele deu um sorriso irônico, bem típico dele, e completou: “Agora, eu só dou consultoria.” Em seguida, desapareceu. Essa “consultoria” tem me sustentado. 1
Publicado originalmente em O Globo, em 6 de outubro de 2007.
INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA1
“Há poesia em tudo”, escreveu Fernando Pessoa. Até na turma da bufunfa? Não. Na turma da bufunfa, não. Nada mais antipoético, nada mais antiestético do que essa nociva confraria. O leitor conhece a minha aversão aos bufunfeiros, especialmente à fração hegemônica da turma – a bufunfa financeira. Motivos não me faltam. A crise financeira nos Estados Unidos e na Europa em 2007-2008 é o exemplo recente mais impressionante do estrago que a ganância e especulação desenfreada podem fazer. Um dos grandes problemas da economia contemporânea talvez seja o crescimento desmesurado dos sistemas financeiros. A concentração de poder e recursos nessa área produz imensas distorções e frequentemente subordina os governos, os bancos centrais e as políticas públicas aos interesses da finança internacional. Desde a década de 1980, em toda parte, as palavras de ordem eram desregulamentação e liberalização. O resultado foi uma crise financeira monumental nos Estados Unidos e em grande parte da Europa. O leitor conhece a turma da bufunfa pessoalmente? Se não conhece, não perdeu nada. Arrisco dizer que nunca tanto poder e dinheiro esteve concentrado nas mãos de gente tão idiota. Estou exagerando? Talvez. Não quero ser agressivo demais. Mas não esqueça, leitor, que um certo tipo de idiotice é perfeitamente compatível com a capacidade de acumular dinheiro. Essa capacidade depende de outros atributos que não a inteligência – esperteza, falta de escrúpulos, agilidade, hiperatividade etc. Volto a Fernando Pessoa. O grande escritor português se considerava um nacionalista. “Por isso”, observou, “me foram sempre origem de repugnância e asco todas as formas de internacionalismo, que são três: a Igreja de Roma, a finança internacional e o comunismo”. Isso foi escrito em 1929. Desde então, duas das três formas de internacionalismo por ele mencionadas – a Igreja Católica e o comunismo –
entraram em franca decadência. Em compensação, a finança internacional tomou proporções gigantescas. Mostra-se capaz de desestabilizar economias inteiras – até as de grande porte. Pessoa teria certamente uma síncope se fosse obrigado a conviver com os bufunfeiros de hoje, ele que escreveu em outra ocasião: “É realmente duro ter de estar todos os dias at home para a Asneira e ter de a entreter com chá de banalidade e bolos de transigência.” Asneira, com a maiúsculo mesmo, é a palavra apropriada para caracterizar muitas ideias que prevaleceram sem grande contestação no mundo das finanças até a eclosão da crise internacional. Entre elas, a ideia de que os mercados financeiros são eficientes. Ou a de que as autoridades podem confiar, em grande medida, na capacidade de autorregulação das instituições financeiras privadas. Essas ilusões foram para o espaço. Hoje, já é basicamente aceita a interpretação de que o modelo de regulação light adotado nos EUA e em outros países desenvolvidos permitiu os excessos especulativos que levaram à crise financeira. Uma palavra final sobre o Brasil. Para quem ainda tinha dúvidas, as turbulências externas devem servir como comprovação final de que não se deve jamais deixar a sorte da economia nacional nas mãos da finança internacional. Os países bem-sucedidos são os que regulam cuidadosamente o sistema financeiro, mantêm ajustadas as contas externas e fiscais e preservam a sua independência em relação a capitais estrangeiros. 1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 24 de julho de 2008.
“TRABALHO DE DEUS”1
O presidente do Goldman Sachs, o sr. Lloyd Blankfein, concedeu entrevista ao jornal The Sunday Times, que estampou no alto da primeira página a seguinte declaração: “Os bancos fazem o trabalho de Deus.” Bem sei, leitor, que Deus escreve certo por linhas tortas, mas – convenhamos – mesmo a nossa crença na Divina Providência têm seus limites e suas hesitações. Segundo o sr. Blankfein, os bancos “desempenham um papel social”, ajudando as empresas a crescer, investir e gerar empregos. O correto seria dizer que os bancos deveriam desempenhar esse papel. Se o fazem ou não, é uma questão altamente controvertida – para dizer o mínimo. Mais próximo da verdade esteve Lord Turner, presidente da Financial Services Authority do Reino Unido, quando declarou que grande parte do sistema bancário moderno é “socialmente inútil”. A julgar pelo estrago provocado pela crise financeira de 2008-2009, Lord Turner poderia ter ido mais longe: grande parte do sistema bancário moderno é socialmente pernicioso. Correndo o risco de homenagear o Conselheiro Acácio, faço a ressalva: uma economia moderna precisa de um setor bancário sólido. O problema é que nas últimas décadas ocorreu uma hipertrofia do sistema financeiro. O setor cresceu extraordinariamente e se tornou mais complexo e opaco. Acumularam-se riscos e vulnerabilidades muito graves. Os Estados e os bancos centrais falharam de maneira dramática na supervisão e regulamentação do sistema, principalmente nos EUA e na Europa. As instituições privadas passaram a funcionar em larga medida à margem de controles oficiais. Políticas monetárias expansivas nos EUA e em outros países emissores de moedas de liquidez internacional alimentaram a especulação financeira e levaram à formação de uma série de bolhas nos mercados de ativos. A última delas estourou em 2007 e levou a economia mundial à pior crise dos últimos 70 anos. Para socorrer o sistema financeiro e evitar uma nova Grande Depressão, os Estados dos países desenvolvidos gastaram verdadeiras fortunas. O que vimos
nos EUA e na Europa talvez tenha sido a maior socialização de prejuízos da história econômica mundial. Apesar disso tudo, os governos e Congressos desses países ainda não foram capazes de apresentar e implementar planos suficientemente rigorosos para reformar e disciplinar o sistema financeiro. Nos EUA e também na Europa, a opinião pública está subindo pelas paredes como lagartixa profissional. Se o sr. Blankfein, que teve a sua face sorridente estampada na primeira página do jornal, resolver sair à rua, será provavelmente caçado a pauladas feito ratazana prenhe, como diria Nelson Rodrigues. Trabalho de Deus! A declaração do presidente do Goldman Sachs é sintomática. Os bancos que sobreviveram ao holocausto financeiro estão, em alguns casos, muito mais fortes e passaram a exercer domínio ainda maior sobre segmentos importantes do mercado. Formaram-se verdadeiros mamutes financeiros que faturam alto nos momentos favoráveis, embolsando lucros e distribuindo bônus nababescos aos seus executivos. Grandes demais para quebrar, podem operar com a convicção de que serão socorridos pelo Estado, isto é, pelos contribuintes, se suas especulações não forem bem-sucedidas. 1 Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 12 de novembro de 2009.
O COMPLEXO DE VIRA-LATA1
Um dos meus poucos méritos como cronista é o de ter desenterrado metáforas e expressões que me parecem vitais. A minha fonte preferida é Nelson Rodrigues, como o leitor talvez saiba. Posso dizer, sem falsa modéstia: sou um dos principais, talvez o principal responsável pelo ressurgimento de algumas das suas imagens mais arrasadoras. Em certa época, a coisa foi longe demais. As pessoas só me liam na esperança de topar com suas frases geniais. Os leitores chegavam a escrever reclamando: faz muito tempo que você não fala do Nelson Rodrigues! O autor tão citado obliterou completamente este modesto cronista. Paciência. Ao longo dos anos, continuei repetindo obsessivamente as suas tiradas certeiras sobre o Brasil e os brasileiros. Nada disso era gratuito ou arbitrário. Há duas formas de citar: a sincera e a insincera. A insincera é a que se faz por ostentação: recorre-se a um grande nome para demonstrar cultura – não raro, a fonte oculta é algum dicionário de citações. A citação sincera é aquela que decorre de uma vibração interior, sentida quando do primeiro contato direto e autêntico com uma metáfora ou expressão. A citação de memória é, a meu ver, a mais autêntica de todas, pois ela reflete uma apropriação mais profunda – sob efeito do tempo e de fatores subjetivos a imagem vai sendo modificada e parcialmente recriada. Cuidado, porém. Uma vez alguém me citou uma bela frase de uma escritora gaúcha: “O tempo não cura nada, apenas tira o incurável do centro das atenções.” Uma frase dessas vale vários volumes. Saí em busca dos textos da autora. Não entendi nada. Os seus artigos e livros pareciam de uma trivialidade total. Nenhuma luz, nenhuma originalidade – era basicamente autoajuda com retoques de cultura barata. Suspeitei plágio. Dei uma busca na internet e depois de muito procurar – a frase sempre aparecia ligada à escritora gaúcha – encontrei um site que identificava um filósofo chamado Ludwig Marcuse como autor.
Traduzi a frase para o alemão e verifiquei que, de fato, ela provinha da sua obra. Lamentável. Mas, enfim, estou divagando. Eis o que queria dizer: uma das metáforas mais certeiras do Nelson Rodrigues é “o complexo de vira-lata”, traço típico da psicologia do brasileiro. De tão citada, ela acabou perdendo um pouco do seu viço original. Nem por isso perdeu a verdade que tem (ou tinha). Há poucas semanas, a mais importante revista alemã, Der Spiegel, publicou reportagem de várias páginas a respeito do presidente brasileiro, sob o título “Lula Superstar”. A certa altura, o repórter escreve: “Nos bastidores, Lula superstar gosta de contar como ele levou os diplomatas brasileiros a superar o ‘complexo de vira-lata’; assim ele se refere ao complexo de inferioridade que muitos dos seus compatriotas sentiam até há pouco em relação a americanos e europeus.” Veja, leitor, que na Alemanha a imagem do Nelson Rodrigues já é atribuída a Lula. Outro aspecto notável: segundo Der Spiegel, o referido complexo foi superado, ainda que apenas recentemente. Não iria tão longe. O complexo de vira-lata tem raízes históricas, culturas, raciais muito mais fundas do que se pode imaginar. O presidente mencionou os diplomatas. Não sei se o Itamaraty se destaca nesse particular, mas realmente alguns dos nossos diplomatas ainda parecem cultivar a perspectiva do vira-lata. Recentemente, um deles, chanceler no governo FHC, sugeriu que o Brasil abandone uma política externa supostamente antiamericana e se filie sem hesitações ao “Ocidente dos valores e princípios”. Ora, o Brasil não faz parte de Ocidente nenhum. É um país que mistura quase tudo. É Europa, mas também é África, Ásia, Oriente Médio. Tudo isso mesclado. O verdadeiro melting pot não são os EUA, mas o Brasil. O ex-chanceler, que se não me engano reside no Rio de Janeiro, precisa sair um pouco da Zona Sul e fazer uma visita urgente ao Brasil. Não precisa nem sair do bairro – a Zona Sul não é e nunca foi parte do “Ocidente de valores e princípios”. E ainda bem. 1 Publicado originalmente em O Globo, em 10 de julho de 2010.
À SOMBRA DA BUFUNFA1
O utro dia, estava deitado no sofá da sala, tranquilo, lendo, enquanto a minha mulher andava para lá e para cá, arrumando a casa e cuidando dos netos, quando ela de repente exclamou: “Em outra encarnação, quero ser homem – e economista.” Não sei, leitor, porque temos reputação tão ruim. Há muito reflito sobre essa questão sem encontrar resposta satisfatória. Insinuar que levamos vida mansa é de uma injustiça flagrante, diria mesmo escandalosa. O economista prima, em verdade, pelo ativismo e consegue vender as mais variadas ideias e informações – inclusive as que não tem. Projeções econômicas e financeiras, por exemplo. Dizem nossos inúmeros e ferozes detratores que somos extraordinários profetas – mas do passado, só do passado. E, no entanto, não há quem não nos consulte sobre o futuro, especialmente nessa época do ano. Percorra o noticiário, leitor, e verá que aparece sempre algum comentarista econômico pontificando sobre o que esperar, ou não esperar, no ano que começa. Outro sintoma da nossa importância é que poucas profissões são alvo de tanta piada – talvez só “a mais antiga das profissões” nos supere nesse quesito. Qual a melhor maneira de perder dinheiro? A mais rápida, com jogo; a mais agradável, com mulheres; a mais infalível, com economistas. É o que propagam. E, no entanto, não há empresa de gabarito que não tenha sua bem fornida assessoria econômica. E o que seria dos governos sem suas equipes econômicas? Como fariam para montar e justificar suas medidas, iniciativas e providências? Uma característica notável da nossa profissão é a capacidade de conferir alguma verossimilhança às ideologias mais extravagantes e descabeladas – sinal inequívoco de imaginação criativa. “A ideologia é uma plataforma precária”, já dizia Maria da Conceição Tavares. Isso vale para as ideologias de direita e de esquerda – as primeiras, claro, muito mais bem remuneradas. E aí aparece novamente o economista com sua clarividência e sentido de oportunidade.
A aliança com o dinheiro garante o futuro dos nossos profissionais. Todas as intuições e palpites brilhantes da turma da bufunfa encontram no economista a sua fundamentação mais elaborada e mais científica. O que na boca de um bufunfeiro, mesmo dos mais graúdos, parece apenas uma ideologia arbitrária, adquire na elaboração do economista ares e autoridade de ciência. Diante do alarido dos críticos, só nos resta repetir dom Quixote: “Ladram, Sancho, sinal de que cavalgamos.” 1
Publicado originalmente em O Globo, em 4 de janeiro de 2014.
O ECONOMISTA BUFUNFEIRO1
Volto a tratar da turma da bufunfa. Trata-se da minha principal, talvez única, contribuição à literatura econômica. Ainda não ganhou, entretanto, reconhecimento universal. Ofereço uma definição sintética: a turma da bufunfa é um agrupamento, razoavelmente estruturado, que se dedica a fomentar, proteger e cultuar o vil metal. O seu núcleo duro é composto de banqueiros, financistas e rentistas. Na periferia figuram economistas, jornalistas e outros profissionais. Os economistas são os sacerdotes do culto, encarregados de suprir a fundamentação metafísica para as atividades da turma. O fenômeno é antigo. John Kenneth Galbraith explicava que a teoria econômica moderna, ensinada como ciência, tinha também o que ele chamou de “função instrumental”, isto é, a de confirmar e reforçar os pressupostos dos círculos dominantes da sociedade. Muito antes dele, os marxistas denunciavam o caráter ideológico e “de classe” da economia política. Nas décadas recentes, porém, o fenômeno adquiriu dimensão estarrecedora. A turma da bufunfa inchou de maneira medonha. As instituições financeiras tornaram-se o centro do poder e da apropriação de riqueza. Em outras palavras, estabeleceu-se a hegemonia avassaladora do capital financeiro, inclusive sobre o debate econômico. Antes de prosseguir, faço uma pequena pausa. Gosto de descrever física e espiritualmente os meus personagens. Os bufunfeiros, leitor, se parecem muito uns com os outros. São, eu diria, intercambiáveis. Primeiro traço geral: são gordos, no mínimo balofos, e não raro obesos. Mas são gordos de um tipo muito singular. É que normalmente as banhas predispõem aos aconchegos, ao carinho, à conciliação e ao bom humor. No caso em tela, as banhas não têm esses efeitos salutares. Os bufunfeiros são quase sempre sisudos, cinzentos, intolerantes. Não se lhes ouve uma piada ou mesmo um simples gracejo. O maior elogio que se pode fazer a um economista bufunfeiro é dizer que ele é “sério” e “bem treinado”. Para merecer esses qualificativos o economista se
esmera em repetir fórmulas áridas e teses respeitáveis. Frases prontas substituem a necessidade de pensar. O mesmo encadeamento de palavras, sempre o mesmo, em tom sentencioso produz na opinião pública um efeito quase hipnótico. Paro e releio o que escrevi. Está ficando um pouco vago e abstrato. Hesito. Devo dar nome aos bois? Ou deixá-los tranquilos no pasto? Na última vez em que nomeei bois, a boiada estourou para cima de mim. Cortaram a minha coluna no Globo. Na Carta Capital, sinto-me mais protegido. E toda exposição teórica, convenhamos, precisa de exemplificação. Vejamos. Um bom exemplo seria o atual presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn. Para começar, o seu visual obedece ao figurino, e a boca mole balbucia, monotonamente, os chavões que o mercado espera. Recentemente, tive a curiosidade de tentar descobrir o que pensa o chefe do nosso BC. Terá publicado algo de interessante? Nada encontrei de substancial. O seu discurso e seus textos intercalam homenagens ao Conselheiro Acácio com a repetição mecânica da vulgata ortodoxa. Antigamente, leitor, valia a pena ler economistas conservadores, como Eugênio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões, Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos. Sempre se aprendia algo. Havia capacidade analítica, ironia, cultura, polêmica inteligente e, pasmem, até espírito público. Os economistas bufunfeiros atuais não oferecem nada disso. Um deles, outro dia, seguia distraído, quando de repente tropeçou numa ideia. Recompôs-se rapidamente, olhou para o lado temendo testemunhas e retomou o seu caminho, imperturbável. Conto, para encerrar, um pequeno episódio. Há alguns anos, fui almoçar no Itaú, a convite do então presidente do banco, Olavo Setúbal. Estava presente um economista, chefe do departamento econômico. A certa altura, baixou a falta de assunto. Perguntei então o que ele sabia de dois economistas nomeados havia pouco para a diretoria do Banco Central. Ele explicou, sem qualquer ironia, que um deles era economista sério, treinado nos Estados Unidos, e que o outro também, só que tinha “umas ideias” de vez em quando… Para a turma da bufunfa, ideias são fonte de inquietação, sintomas de rebeldia. 12 Publicado originalmente na Carta Capital, em 11 de janeiro de 2018.
ESTÁ EXTINTA A ESCRAVIDÃO?1
Na minha família, como em milhões de outras, os chats de WhatsApp viraram palco de conflitos políticos acirrados. Estou em minoria, e as minhas provocações são recebidas com profundo desprazer. Outro dia, soube de um fato desabonador: criaram novo chat familiar do qual fui sumariamente excluído! Explicaram-me que o chat é principalmente para trocar fotos de “crianças lindas e amadas”… Ora, na situação em que se encontra o Brasil, simplesmente trocar fotos de “crianças lindas e amadas” é uma atividade comprometedora, quase irresponsável. É preciso ter muita “saúde” para isolar-se da crise e viver, tranquilo e impune, numa torrezinha de marfim qualquer. Paro e releio o parágrafo que escrevi. Não quero, leitor, tentar escrever uma página de Tchekhov em que a classe média brasileira – logo quem! – seria instada a se comportar, de repente, como os personagens angustiados das peças do grande artista russo. Crises existenciais e de consciência nunca foram o nosso forte. Prefiro outra faceta de Tchekhov: suas observações sobre a superação da servidão na Rússia. Lembro-me, em especial, de uma carta que ele enviou a outro escritor russo com a seguinte exortação: Escreva um conto sobre um jovem, filho de servos, antigo vendedor de armazém, corista de igreja, ginasiano e depois universitário, que foi educado para respeitar a hierarquia e para acatar as ideias alheias, que agradecia por cada pedaço de pão, que foi muitas vezes açoitado, […] que era hipócrita diante de Deus e dos homens, sem nenhuma necessidade, simplesmente por ter consciência de sua própria insignificância; escreva como esse jovem espreme, gota a gota, o escravo que tem dentro de si, e como ele, ao acordar numa bela manhã, sente que em suas veias já não corre mais o sangue do escravo, e sim o de um verdadeiro homem.
Superar a servidão ou a escravidão é processo longo, doloroso. A escravidão no Brasil foi legalmente abolida em 1888, mas seus traços e traumas perduram até hoje.
No Carnaval carioca deste ano, a Paraíso da Tuiuti apresentou lindo sambaenredo, uma obra de arte, letra e música, com o seguinte título: “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” Ninguém estranhou o ponto de interrogação – mesmo 130 anos depois da Lei Áurea… Não deixe de escutar esse samba-enredo, leitor – é um exemplo magnífico da criatividade do povo brasileiro. Tanto a música como a letra jorram beleza. É um tipo de beleza que transcende o momento em que foi criada. Mas o que a valoriza ainda mais é a sua conexão com o momento dramático que vivem o Brasil e o povo brasileiro. O refrão, cantado logo no início, dá um tom de liberdade orgulhosa: “Não sou escravo de nenhum senhor/Meu Paraíso é o meu bastião/A Tuiuti é o quilombo da favela/A sentinela da libertação”. No contexto do samba-enredo, o refrão é um misto de realidade e aspiração – talvez com mais peso da segunda do que da primeira. Segue-se então um belo panorama da história da escravidão africana no Brasil: “Fui mandiga, cambinda, haussá/Fui um Rei Egbá preso na corrente/ Sofri nos braços de um capataz/Morri nos canaviais/Onde se plantava gente/Ê, Calunga, ê! Ê, Calunga!/Preto velho me contou, preto velho me contou/Onde mora a senhora liberdade/ Não tem ferro nem feitor”. Quando chega o momento de relembrar a Lei Áurea, a música e o canto ascendem de maneira emocionante: “E assim quando a lei foi assinada/Uma lua atordoada/Assistiu fogos no céu/Áurea feito o ouro da bandeira/Fui rezar na cachoeira/Contra a bondade cruel”. No desfile na Sapucaí, o tripé que trazia a reprodução da Lei Áurea foi seguido de várias alas representando a continuação da escravidão no Brasil sob outras formas: o trabalho precário, a escravidão disfarçada no meio rural, os vendedores ambulantes etc. Na versão que prefiro, o samba-enredo começa devagar, a capela, como um lamento: “Meu Deus, meu Deus, se eu chorar não leve a mal/Pela luz do candeeiro/Liberte o cativeiro social”. E termina com o grito de guerra de um dos puxadores do samba, logo após o fim do canto e da música: “A luta continua, meu povo!” P.S.: A ala dos “manifestoches” retratou com pesado sarcasmo aqueles que bateram panelas e foram às ruas em 2016 e agora enfiam a cabeça na areia e trocam fotos de “crianças lindas e amadas”… 1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 17 de fevereiro de 2018.
EXIT PAQUIDERME1
Quero dar mais alguns tecos num dos meus alvos prediletos – o rotineiro e paquidérmico presidente do Banco Central do governo Temer, Ilan Goldfajn. Há um “gancho”, como dizem os jornalistas, talvez o último: ele acaba de deixar o cargo. A sua gestão, que ora termina, vem sendo celebrada em prosa e verso pelo mercado e pela mídia tradicional. Como sempre, quem presta serviços à turma da bufunfa é tratado a pão de ló. São os mitos que se cultivam e que ajudam a eternizar o subdesenvolvimento. Tenho, devo admitir, certa marcação com Goldfajn. Mas isso não me impede de reconhecer suas qualidades. O problema, leitor, é que não as encontro! Outro dia, por acaso, peguei pelo meio uma entrevista dele na televisão. A entrevistadora fazia o possível para ajudá-lo. Quase desempenhava o papel de entrevistadora e entrevistada ao mesmo tempo. Não só fazia perguntas previsíveis, como insinuava as respostas, buscando torná-las um pouco mais rápidas e menos monótonas. Lutava persistentemente com a lerdeza do entrevistado, sem perturbá-lo, porém, com perguntas inconvenientes. Não adiantou. Jogando em casa, com torcida e juiz a favor, Goldfajn não saiu do zero a zero. Muito pior, claro, foi a sua lerdeza na gestão da política monetária. Um dos seus erros clamorosos foi a demora em diminuir a taxa básica de juros, contribuindo para que a economia continuasse deprimida e com elevado desemprego. A recuperação econômica em 2017 e 2018 acabou sendo pífia. A inflação não alcançou o centro da meta e, em alguns períodos, nem o limite inferior do intervalo estabelecido pelo Conselho Monetário. A recuperação a passo de cágado, diga-se de passagem, acabou de inviabilizar as candidaturas da direita tradicional nas eleições de 2018. Não digo a do ex-ministro Meirelles, que era um defunto difícil de ressuscitar, mas todas as outras – mesmo aquelas que podiam, com alguma plausibilidade, se dissociar do governo Temer. O governo Bolsonaro deveria, portanto, dar uma medalha a Goldfajn.
É mais fácil, reconheço, perceber o erro ex post. As decisões de política monetária são sempre tomadas em ambiente de incerteza. Nesse caso, porém, o quadro era bem claro ex ante. Multiplicavam-se, desde pelo menos o início de 2018, indicações de tibieza da recuperação. As expectativas de inflação estavam bem ancoradas e situavam-se, não raro, abaixo da meta. A inflação corrente fechou um pouco aquém do piso da meta em 2017 e, apesar de choques adversos (desvalorização do câmbio e greve dos caminhoneiros), bem abaixo do centro da meta em 2018. Ao longo de todo esse período, as medidas de núcleo da inflação, que excluem itens de maior volatilidade e são indicadores de tendência, foram sempre inferiores ao piso da meta. Havia, em suma, diversas evidências contemporâneas de que a taxa básica de juro estava alta demais. Outro fator que explica a pífia recuperação foi a lentidão da redução dos spreads bancários (a diferença entre as taxas que os bancos cobram e as que pagam a seus depositantes). No Brasil, esses spreads estão entre os mais altos do mundo; são realmente pornográficos. O assunto é da alçada do Banco Central. O que fez o nosso paquiderme para enfrentar a questão? Com a contração nos anos recentes do crédito oferecido pelos bancos públicos – Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES –, uma forma de dar algum alento à recuperação teria sido a expansão do crédito dos bancos privados. Não aconteceu, pelo menos não de forma a ocupar o espaço deixado pelas instituições públicas. A contenção destas últimas só veio reforçar o poder do oligopólio formado pelos grandes bancos privados – o Itaú (de onde vem e para onde possivelmente voltará Goldfajn), o Bradesco e o Santander. O baixo grau de competição é, há tempos, uma das mazelas de vários segmentos do sistema financeiro brasileiro. O que fez o nosso paquiderme para enfrentar a questão? Para coroar a gestão de Goldfajn, o Banco Central apresentou, em janeiro, uma proposta curiosa para consulta pública. Sugeriu que parentes de primeiro grau de autoridades e políticos sejam retirados da lista de monitoramento obrigatório das instituições financeiras. Propôs também remover a exigência de que as transações financeiras acima de R$ 10 mil sejam notificadas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), deixando aos bancos a identificação de casos suspeitos. Até mesmo o ministro da Justiça, Sergio Moro, que não prima pela ética, estranhou as sugestões e levantou publicamente dúvidas sobre sua pertinência. Recorde-se que o Coaf foi o órgão que se tornou célebre por sua atuação no caso Bolsonaro-Queiroz. O paquiderme, afinal, merece ou não uma medalha?
1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 8 de março de 2019.
AS MONTANHAS DO RIO1
Para Lia
Quando um escritor, mesmo de modestos artigos quinzenais, se põe diante de uma tela em branco para começar a digitar, deve ter em mente que muitos leitores de jornal, revista ou celular procuram, por um lado, informação, mas, por outro e sobretudo, a confirmação dos seus piores preconceitos. O leitor quer, de preferência, munição – munição para abater seus adversários políticos e intelectuais. Ninguém convence ninguém. E contra argumentos não há fatos. Existem ainda boas almas, de certo. Há ainda mentes abertas, sem dúvida. Mas tanto estas quanto aquelas estão em minoria, constrangedora minoria. Assim, um articulista progressista que começar um artigo dizendo, digamos, “a reforma da Previdência é indispensável”, arrisca perder metade dos leitores já no primeiro parágrafo. Ou um articulista tucano que subir ao palco da opinião pública para confessar que “o ex-presidente Lula é um prisioneiro político”, perderá grande parte dos seus seguidores na internet. Paro, leitor, com ligeiro sentimento de perplexidade. Como continuar? Vejamos. Não quero aqui fazer apologia da objetividade e da sinceridade, nem pensar. Sempre fui da opinião de que a realidade não é mais do que uma das nossas ficções – a mais enganosa e traiçoeira delas. A realidade política brasileira, por exemplo, é indistinguível da ficção e, infelizmente, da ficção mais precária e ordinária. O que é fake parece fato, mas o fato, não raro, parece fake. O pior é que nem um, nem outro é realmente interessante. Permita-me, leitor, tentar sair um pouco desse rame-rame. Ocorre-me falar um pouco da relação entre o real e o imaginário. O papel do ficcionista, diferentemente do que se pensa, não é transcender a realidade ou fugir dela. O segredo da ficção é ater-se à realidade. Não sabia, mas parece que essa era também a opinião de Gabriel García Márquez. Estou, portanto, em boa companhia. É que a realidade tem uma estrutura oculta, inacessível à nossa compreensão completa. Essa estrutura é de uma complexidade e riqueza muito superiores a qualquer coisa ao alcance da simples imaginação. O papel do artista é reproduzir a realidade, dramatizando-a talvez, enriquecendo-a aqui e ali, mas sem falseá-la jamais. Por esse motivo, o grande arquiteto catalão, Antoni Gaudí, dizia que “ser original é voltar às origens”. E, não por acaso, um dos traços
marcantes da sua arquitetura genial, repleta de curvas, contorções, cores e movimento, é a fidelidade à natureza. Não há linha reta na natureza, dizia ele também. Oscar Niemeyer rezava por cartilha semelhante. E, por isso, coube a Le Corbusier exclamar: “Oscar, você tem as montanhas do Rio dentro dos olhos!” Muitos afirmam que a arquitetura de Niemeyer deriva de Le Corbusier; este, porém, viu de onde vinha a originalidade do seu discípulo carioca. Não é possível, a rigor, soltar a imaginação, desprendê-la de suas raízes reais, não está a nosso alcance criar ab nihilo. Quando a imaginação se desgarra, a sua falsidade salta aos olhos, sem demora. Assim, por exemplo, e para ficar no dia a dia, se queremos contar uma história, digamos um episódio de infância, é fundamental tentar lembrar dos detalhes e não acrescentar nada. Onde entra a criatividade? Não na invenção de falsos acontecimentos, de peripécias mais ou menos implausíveis, mas no encadeamento do relato, na escolha criteriosa das palavras, na maneira de formar as frases, sempre calculando os efeitos que se deseja produzir. O que se busca, ao fim, é a espontaneidade. Mas, paradoxalmente, o que funciona é a espontaneidade elaborada, artificial. A melhor ficção, então, é aquela que começa e continua na memória, que recupera e relata sem adocicar, sem fantasiar, sem introduzir lances imaginários. E a obediência a essa regra de ouro é justamente o que mais falta na subliteratura. O que mais aparece é o subliterato imaginativo, inventivo e falsamente original. A imaginação desancorada, mesmo nas suas variantes mais caprichadas, nunca vai muito longe. É preciso ter as montanhas do Rio dentro dos olhos. 1 Publicado originalmente na Carta Capital, em 17 de maio de 2019.
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Table of Contents Folha de rosto Créditos Sumário Apresentação Capítulo 1: Reforma da arquitetura financeira mundial: FMI e G20 G20 e FMI depois da crise internacional FMI e controle de capitais Um nacionalista no FMI: a estrutura da instituição e o papel do Brasil A luta pela reforma do FMI O Império contra-ataca Sobrevivi Capítulo 2: BRICS e banco dos BRICS BRICS no FMI e no G20 Novo banco e novo fundo monetário Começo auspicioso do novo banco Primeiro triênio do Novo Banco de Desenvolvimento – promessas, resultados, decepções O Banco dos BRICS e a minha demissão Capítulo 3: Nação, nacionalismo, caráter nacional Nacionalismo e desenvolvimento Nação versus globalização A Marselhesa brasileira Amazônia – de quem é? Nacionalismo em Fernando Pessoa Uma visita aos Estados Unidos Síndrome de degredado Caráter nacional – franceses e brasileiros Brasil, um país desarmado Dois partidos Brasil, Estados Unidos, China Capítulo 4: Economia política brasileira Macroeconomia do desenvolvimento nacional Independência para o Banco Central? A busca da “agenda perdida” Carga negativa
O grande dilema Capítulo 5: Perfis Brizola em 1961 Nenhuma derrota é definitiva Cinco anos em cinquenta Um iconoclasta O maior brasileiro de todos os tempos Um brasileiro Um artista A plataforma cedeu Tempo cruel Lembranças de um outro Brasil Capítulo 6: Humor econômico e outras crônicas Um sobrinho no mercado financeiro Banhas dogmáticas Humor econômico Exílio Um sonho Independência financeira “Trabalho de Deus” O complexo de vira-lata À sombra da bufunfa O economista bufunfeiro Está extinta a escravidão? Exit paquiderme As montanhas do Rio