O Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1668): novas interpretações
 9788577323203

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O BRASIL NA MONARQUIA HISPÂNICA (1580-1668) Novas interpretações

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretora Maria Arminda do Nascimento Arruda Vice-Diretor Paulo Martins EDITORA HUMANITAS Presidente Ieda Maria Alves Vice-Presidente Mário Antônio Eufrásio

Comissão Editorial da História Diversa André Figueiredo Rodrigues (UNESP) – presidente Ana Maria de Almeida Camargo (USP) Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (UNESP) Carla Maria Junho Anastasia (UFMG / UNIMONTES) Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira (USP) Francisco Eduardo Alves de Almeida (EGN) Juciene Ricarte Apolinário (UFCG) Luciano Raposo de Almeida Figueiredo (UFF) Maria Cristina Mineiro Scatamacchia (USP)

Apoio financeiro: Universidade de Pernambuco.

HUMANITAS Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográfico, sem permissão expressa do editor (Lei nº. 9.610, de 19/02/98).

Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária 05508-080 – São Paulo – SP – Brasil Telefax: 3091-2920 e-mail: [email protected] http:///editorahumanitas.commercesuite.com.br

Foi feito o depósito legal Impresso no Brasil / Printed in Brazil Dezembro 2016

DOI: 10.11606/9788577323203

Ana Paula Torres Megiani José Manuel Santos Pérez Kalina Vanderlei Silva

(Organizadores)

O BRASIL NA MONARQUIA HISPÂNICA (1580-1668) Novas interpretações

História Diversa, v. 2

HUMANITAS São Paulo, 2016

Copyright 2016 dos Autores História Diversa, v. 2

Catalogação na Publicação (CIP) Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH-USP

B823

O Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1668)[recurso eletrônico] : novas interpretações / organizadores, Ana Paula Torres Megiani, José Manuel Santos Pérez, Kalina Vanderlei Silva. -- São Paulo : Humanitas, 2016. 953Kb; PDF. (História Diversa ; v. 2) ISBN 978-85-7732-320-3 DOI: 10.11606/9788577323203 1. História do Brasil. 2. Período colonial (1500-1822). 3. Monarquia (Portugal, Espanha). 4. Historiografia. I. Megiani, Ana Paula Torres. II. Pérez, José Manuel Santos. III. Silva, Kalina Vanderlei. IV. Série. CDD 981.03

SERVIÇO DE EDITORAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO [email protected] Coordenação Editorial Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840 Preparação e Revisão Catarine Aurora Nogueira Pereira Capa Carlos Colentuano Projeto Gráfico e Diagramação Selma Consoli – MTb n. 28.839 Projeto Gráfico Ricardo Duarte Marques

Sumário

7

Introdução

23

Visita, residência, venalidade: as “práticas castelhanas” no Brasil de Filipe III José Manuel Santos Pérez

39

Redes comerciais cristãs novas no Brasil durante o reinado de Filipe III Ana Hutz

59

A Provedoria-mor: fiscalidade e poder no Brasil colonial Pedro Puntoni

91

De senhores de engenho a cortesãos: conexões entre a América açucareira portuguesa e a Monarquia Católica no século XVII Kalina Vanderlei Silva

113

Os brutos também leem: livros e leitores na São Paulo do período filipino (1580-1640) José Carlos Vilardaga

145 O Brasil e Felipe IV: uma aproximação Rodrigo Ricupero

157

O Retorno do Rei: Restauração Portuguesa e memória filipina no Maranhão e Grão-Pará (1640-1652) Alírio Cardoso

181 O Brasil no contexto da Guerra de Restauração Portuguesa (1640-1668) Ana Paula Torres Megiani

Introdução

A América portuguesa, como o resto dos territórios lusos de ultramar, entrou na órbita da Monarquia dos Habsburgo depois da aclamação de Felipe II de Espanha como I de Portugal, nas Cortes de Tomar de 1581-1582. Este fato abriu um período, de 1580 a 1640, no qual as duas coroas, hispana e lusa, estiveram unidas no corpo físico de um só rei, constituindo o que genericamente tem sido conhecido como “União Ibérica”. Não é um tema menor.1 O império de Felipe II, já muito extenso depois das incorporações americanas, convertia-se numa estrutura de dimensões “globais”, nos termos de hoje, “universal” como diziam os homens da época. O conjunto passaria a ser conhecido como “Monarquia Católica”, ou seu sinônimo, “Monarquia Universal”, a grande defensora da fé católica frente aos seus dois maiores inimigos: o Islã e os rebeldes protestantes. O período marcou de maneira fundamental o entendimento – ou a falta dele – entre as duas potências ibéricas. A ideia de um Portugal submetido a uma tirania espanhola, divulgada inúmeras vezes no período da Restauração, ficou até hoje gravada a ferro na consciência nacional portuguesa. São muito numerosos os livros, artigos e ensaios escritos sobre essa questão basilar para a constituição da identidade nacional portuguesa, e também fundamental para entendermos as difíceis

1

Dada a imprecisão terminológica existente, preferimos o uso de “União de Coroas”, “União Dinástica” ou “Período Filipino” antes que “União Ibérica”, por ser esta uma expressão praticamente ausente na documentação da época do estudo.

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

relações entre as duas “irmãs” ibéricas, “siamesas unidas pelas costas” e condenadas a nunca se compreenderem, como muitas vezes se diz.2 Porém, se a parte portuguesa da América, a “Terra de Santa Cruz, que vulgarmente chamamos Brasil” como diria Gândavo em 1576, fazia parte desse conjunto, e se esse fato teve quaisquer consequências, são questões que têm tido um interesse bem menor por parte dos historiadores, em relação a outros períodos. Nem a historiografia portuguesa, nem a brasileira, e menos ainda a espanhola, se interessaram de maneira efetiva pelo período. Tal desinteresse, entre outras razões, pode ser explicado porque a historiografia, filha de seu tempo, tem sido especialmente afetada pela relação peculiar que emergiu entre Espanha e Portugal a partir de 1640, e mais tarde pela distância que a memória brasileira marcou em relação aos problemas do passado de sua própria metrópole desde 1822. Desse modo, as historiografias brasileira e portuguesa ignoraram, por razões diversas, o sentido do período filipino. De fato, a época da União Dinástica foi tratada tradicionalmente pela historiografia portuguesa de tipo nacionalista como um período velado, escuro, com um resultado catastrófico para a situação de Portugal no cenário mundial. A negligência dos reis da Casa de Áustria com as possessões portuguesas, a sua preocupação extrema com as guerras na Europa e a prata americana teriam determinado a cadeia de perdas das primeiras quatro décadas do século XVII, especialmente entre os anos 1621 a 1641. Nesse curto

2

Entre os clássicos livros nacionalistas portugueses estão MARTINS, J. F. Ferreira. O domínio de Castela e o Império Oriental. Porto: Livraria Civilização, 1940; e vários textos de VELLOSO, J. M. de Queiroz. O Interregno. In: PERES, Damião (Dir.). História de Portugal. Edição Monumental Comemorativa do 8o Centenário da Fundação da Nacionalidade. Barcelos: Portucalense Editora, 1933. v. 5: Terceira Época – 1557/1640; ______. A perda da independência: fatores internos e externos que para ela contribuíram. In: CONGRESSO MUNDO PORTUGUÊS. Publicações... [S.l.]: [s.n.], 1940. t. I, v. VI; ______. O reinado do Cardeal D. Henrique: a perda da independência. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1946; e ______. O Interregno dos governadores e o breve reinado de D. António. Lisboa: Sociedade Industrial Tipográfica João Pinto, 1956. 8

introdução

período de duas décadas, os portugueses viram o império marítimo do Estado da Índia, organizado em entrepostos comerciais na Ásia como Ormuz, Goa e Malaca, construído com enormes esforços em homens e dinheiro durante o século XVI, cair indefeso ante os ataques de ingleses e holandeses. Ademais, perdia-se Pernambuco e as capitanias do norte do Brasil, a mais importante região de produção açucareira do império, sendo recuperada, já no período restauracionista pelos esforçados colonos luso-pernambucanos. Como não culpar a desastrosa política dos Habsburgo pela enorme perda? Para os brasileiros, o período teve um significado diferente. Empenhados em mostrar as diferenças com Portugal, visando construir uma identidade própria, consideraram esse tempo do passado não como uma ingerência de um país estrangeiro nos assuntos da “casa”, se não como a época que marcou o início de dois processos coevos que, no norte e no sul, serviriam como fenômenos embrionários em torno dos quais se construiria a identidade brasileira, já que ambos contribuíram de maneira importante para definir algumas das grandes questões do Brasil contemporâneo. Esses dois fatos foram, primeiro: a invasão holandesa das capitanias do norte, seguida da consequente resistência dos moradores e sua posterior vitória “a custa de nosso sangue e fazendas”;3 e segundo: o fenômeno “bandeirante” no sul. Portanto, a historiografia brasileira não atribuía importância à União Dinástica propriamente dita, e sim ao desenvolvimento interno produzido durante esse período, e que contribuiu para a formação da identidade nacional. É curioso notar que não foram feitas relações de causa-efeito, ou de outro teor, com a realidade política da União das Coroas Ibéricas. Conforme essas interpretações, não houve uma relação entre o que estava acontecendo no cenário mundial e os sucessivos avanços dos colonos para o interior do território americano. A leitura desse passado atribui, no máximo, a lacuna a uma certa falta de interesse pelo território por parte dos conquistadores europeus, interesse este que teria se manifestado antes e depois da União das Coroas. 3

MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 9

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

No caso espanhol, o período era visto como a constatação da decadência do império hispânico durante o século XVII. Os limites cronológicos do período, 1580 e 1640, seriam os marcos da realidade imperial, o verso e o reverso, o momento mais brilhante e o mais sombrio do poder dos Habsburgo espanhóis. 1580 seria o momento culminante, a realização plena do poder castelhano-espanhol que surgiu de forma quase irresistível desde finais do século XV. A anexação de Portugal seria a afirmação desse poder. Muito pelo contrário, o ano de 1640, representava o desmoronamento do formidável edifício de 1580, com a separação de Portugal, o intento de secessão da Catalunha, as revoltas regionais, as derrotas navais e militares e a desastrosa situação econômica. Se o Brasil esteve, ou não, dentro desses processos é uma questão pela qual os historiadores espanhóis não demonstraram interesse. A partir dessas constatações prévias, entendemos que os temas da União das Coroas e da Guerra da Restauração necessitam também ser repensados para além dos desejos nacionalistas das historiografias portuguesa e brasileira. No pós-Revolução dos Cravos (1974), identificamos a abertura dos horizontes de entendimento das conexões mais amplas nos âmbitos europeu e mundial, bem como a reorientação da análise sobre os conflitos nelas envolvidos e segundo as lógicas do Antigo Regime. Entre os trabalhos que abriram um leque de novas percepções, devemos recordar os estudos de alto rigor documental de Joaquim Veríssimo Serrão,4 João Francisco Marques e o livro do historiador brasileiro Eduardo D’Oliveira França, que aportou uma leitura da perspectiva cultural ao processo de independência portuguesa, aliada aos processos político e econômico também contemplados na obra.5 Dessa

4

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640). Lisboa: Verbo, 1979. v. 4; ______. O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Colibri, 1994.

5

MARQUES, João Francisco. A parenética portuguesa e a Restauração: 1640-1668, A revolta e a mentalidade. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989; ______. A parenética portuguesa e a dominação filipina. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986; FRANÇA, Eduardo 10

introdução

maneira, foram sendo reequacionados os olhares sobre a incorporação de Portugal pela Monarquia Hispânica e as dinâmicas da ruptura desse vínculo. Nas últimas décadas, somaram-se os trabalhos fundamentais de Luis Reis Torgal, António de Oliveira, António Manuel Hespanha,6 e ainda os estudos de Mafalda Soares da Cunha, Diogo Ramada Curto e Fernando Dores Costa, entre muitos outros.7 No tocante à historiografia espanhola, como dissemos, o silêncio sobre a União com Portugal (1580-1640) foi quase absoluto ao longo de praticamente todo o século XX, e o mesmo ocorre com a Guerra de Restauração até o início da década de 1980. Foram autores estrangeiros como John Elliott e John Lynch que dedicaram maior número de páginas, refletindo acerca do papel do reino lusitano e suas conquistas na composição dos quadros do poder e soberania dos reinados Habsburgo.8 As guerras de Nápoles e da Catalunha até recentemente despertaram sempre mais interesse na historiografia que a rebelião de Portugal. Porém, nos últimos anos, cresce cada vez mais o número de historiadores interessados nos temas e problemas da presença e da ruptura portuguesa na Monarquia D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997 (texto original de 1951). 6

TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. 2 v.; HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político – Portugal séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994; OLIVEIRA, António. Poder e oposição política em Portugal no Período Filipino (1580-1640). Lisboa; Rio de Janeiro: Difel; Bertrand do Brasil, 1991.

7

CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança 1560-1640: Práticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa: Estampa, 2000; CURTO, Diogo Ramada. O discurso político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Centro de Estudos de História da Cultura Portuguesa, Projecto Universidade Aberta, 1988; ______. Cultura política no tempo dos Filipes (1580-1640). Lisboa: Edições 70, 2011; COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração. 1641-1668. Lisboa: Livros Horizonte, 2004.

8

ELLIOTT, John H. La España Imperial (1469-1716). 6. ed. Trad. J. Marfany. Barcelona: Vicens Vives, 1998 (original em inglês de 1965); LYNCH, John. España bajo los Austrias (1516-1700). 7. ed. Trad. Josep María Bernadas. Barcelona: Ediciones Peninsula, 1993. 2 v. (original em inglês de 1965). 11

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Hispânica, com destaque para os inúmeros estudos fundamentais de Fernando J. Bouza Álvarez; mas além deles o livro de Félix Labrador Arroyo e os trabalhos de Rafael Valladares.9 Destacam-se também os textos dos historiadores franceses Serge Gruzinski, que considera o tempo da Monarquia Hispânica como a primeira mundialização, e Jean-Frédéric Schaub, que dedicou vários trabalhos a Portugal no período do Conde-Duque Olivares, além de escrever uma das sínteses sobre o período.10 No Brasil, o período filipino e os temas da aclamação de João de Bragança como D. João IV de Portugal em 1640 e da Guerra de Independência de Portugal têm sido pouco destacados, já que os fatos que deles decorrem acabaram sendo ofuscados pela importância dada à presença holandesa em Pernambuco, à qual, como afirmamos acima, foram dedicados incontáveis estudos desde Francisco A. Varnhagen em 1871.11 Dentre os mais conhecidos internacionalmente, estão os trabalhos de José Antônio Gonçalves de Mello e Evaldo Cabral de Mello.12 De certo modo, a ideia de uma efetiva restauração acabou sendo postergada para

9

BOUZA ÁLVAREZ, Fernando J. Portugal no tempo dos Filipes: política, cultura, representações (1580-1668). Trad. Ângela Barreto Xavier e Pedro Cardim. Lisboa: Cosmos, 2000, além de inúmeros artigos; LABRADOR ARROYO, Félix. La Casa Real en Portugal (1580-1621). Madrid: Polifemo, 2009; VALLADARES, Rafael. Portugal y la Monarquía Hispánica (1580-1668). Madrid: Arco Libros, 2000; ______. A Independência de Portugal: Guerra e Restauração 1640-1680. Trad. Pedro Cardim. Lisboa: A esfera dos libros, 2006.

10

GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde: Histoire d’une mondialisation. Paris: La Martinière, 2004; SCHAUB, Jean-Frédéric. Portugal na Monarquia Hispânica (1580-1640). Trad. Isabel Cardeal Lisboa: Livros Horizonte, 2001; ______. Le Portugal au temps du Comte-Duc D’Olivares (1621-1640). Madrid: Casa de Velázquez, 2001.

11

Edição mais recente: VARNHAGEN, Francisco A. História das lutas com os holandeses no Brasil: desde 1624 até 1654. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2002.

12

MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste. 1641-1669. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998; ______. Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste 1630-1654. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. 12

introdução

o final da guerra de expulsão dos holandeses de Pernambuco em 1654, considerada por muitos, até hoje, a “verdadeira” restauração do Brasil. E apesar da permanente insistência nos estudos sobre o Brasil holandês, foram escassos, mas de grande importância, os trabalhos de Jaime Cortesão, Veríssimo Serrão, Charles Ralph Boxer, Alice Piffer Canabrava e Stuart Schwartz na abertura de caminhos sobre a América portuguesa na Monarquia Católica.13 Já o próprio Stuart Schwartz, no artigo “Luso-Spanish relations in Habsburg Brazil, 1580-1640” de 1968,14 apontava para as grandes carências que esse período tinha nos estudos do Brasil colônia e oferecia importantíssimas sugestões para futuras pesquisas. Assim como em Portugal e Espanha, as novas contribuições da historiografia brasileira, e estrangeira, sobre Brasil na Monarquia Hispânica têm se dedicado aos estudos do processo de recuperação do Brasil pela coroa portuguesa, entendida no contexto mais geral dos conflitos e das negociações, de 1640 até 1670, aproximadamente. Entre os autores que mais se dedicam ao tema – destacamos os estudos de Guida Marques,15 Francisco Cosentino,16 Bruno Guilherme Feitler17 e Rodrigo Bentes

13

CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1958; BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Edusp, 1973; CANABRAVA, Alice P. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). 2. ed. São Paulo: Edusp; Itatiaia, 1984.

14

SCHWARTZ, Stuart. Luso-Spanish relations in Hapsburg Brazil, 1580-1640. The Americas, v. 25, p. 33-48, 1968.

15

MARQUES, Guida. O Estado do Brasil na União Ibérica. Dinâmicas políticas no Brasil no tempo de Filipe II de Portugal. Penélope, n. 27, p. 185-189, 2002.

16

COSENTINO, Francisco. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII): ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume, 2009.

17

FEITLER, Bruno Guilherme. Usos políticos del Santo Oficio portugués en el Atlántico (Brasil y África Occidental): el período filipino. Hispania Sacra, n. 119, p. 269-291, 2007; ______. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil, Nordeste 1640-1750. São Paulo: Phoebus; Alameda, 2008; ______. Continuidades e rupturas da Igreja na América Portuguesa no tempo dos Áustrias. A importância da questão indígena e do exemplo 13

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Monteiro, que se voltaram para os problemas da administração filipina na América portuguesa, a questão religiosa e a ruptura como processo múltiplo a partir de 1640.18 Vale ainda recordar as contribuições de Roseli S. Stella e de Rafael Ruiz.19 Além destes, o trabalho importante realizado por um historiador brasileiro e que amplia os limites do debate e de reflexão foi o de Luiz Felipe de Alencastro que, dedicado a desentranhar as relações entre Brasil e África, na dimensão do Atlântico Sul, descortina a construção das rotas e redes do tráfico negreiro, surgidas na primeira metade do século XVII.20 Muito recentemente três estudos aportaram ainda novas perspectivas sobre o período, os de José Carlos Vilardaga, Rodrigo F. Bonciani e Wolfgang Lenk.21 E a história do comércio do açúcar, espanhol. In: CARDIM, Pedro; COSTA, Pedro Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da. (Org.) Portugal na Monarquia Hispânica. Dinâmicas de integração e de conflito. Lisboa: Cham, 2013, p. 203-230. 18

MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: A monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec, 2002. Cf. os trabalhos recentes de ALMEIDA, Gustavo Kelly de. Herói em processo: escrita e diplomacia sobre D. Duarte de Bragança (1641-1649). Niterói, 2011. 163 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense; e FERREIRA, Letícia dos Santos. Amor, sacrifício e lealdade: o donativo para o casamento de Catarina de Bragança e para a paz de Holanda. (Bahia, 1661-1725). Niterói, 2010. 187 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense.

19

STELLA, Roseli S. O domínio espanhol no Brasil durante a monarquia dos Felipes (1580-1640). São Paulo: UNIBERO, 2000; RUIZ, Rafael. São Paulo na Monarquia Hispânica. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2004.

20

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

21

VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). São Paulo, 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; ______. “Manhas” e redes: Francisco de Souza e a governança em São Paulo de Piratininga em tempos de União Ibérica. Anais de História de Além-Mar, Lisboa: Cham, v. XI, p. 103-144, 2011. BONCIANI, Rodrigo F. O dominium 14

introdução

base dos clássicos de Schwartz e Frédéric Mauro, tem tido importantes avanços nos livros de Leonor Freire Costa e Christopher Ebert.22 Nos últimos anos, uma nova vaga de pesquisadores, dentre a qual nos encontramos, tem olhado de maneira diferente para o período, seja do ponto de vista das elites, das relações políticas e/ou de poder, da importância do Brasil para o império dos Habsburgo, ou da política fiscal do período.23 sobre os indígenas e africanos e a especificidade da soberania régia no Atlântico: da colonização das ilhas à política ultramarina de Felipe III (1493-1615). São Paulo, 2010. 323 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; ______. A disputa por gentios e escravos no Atlântico Sul (1600-1615). In: MEDINA, Diego Lévano; MONTOYA ESTRADA, Kelly (Org.). Corporaciones religiosas y evangelización en Iberoamérica. Siglos XVI-XVIII. Lima: Centro Cultural de San Marcos, 2010, p. 23-60; LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: a Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654). São Paulo: Alameda, 2013; ______. Empire-building and the Sugar Business in the South Atlantic (1621-1654). In: BÖTTCHER, Nikolaus; HAUSBERGER, Bernd; IBARRA, Antonio. (Org.). Redes y negocios globales en el mundo ibérico, siglos XVI-XVIII. Madrid: Iberoamericana, 2011, p. 87-106. (Bibliotheca Ibero-Americana). 22

COSTA, Leonor Freire. O transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-1663). Lisboa: CNCDP, 2002; EBERT, Christopher. Between Empires: Brazilian Sugar in the Early Atlantic Economy, 1550-1630. Leiden; Boston: Brill, 2008.

23

SANTOS PÉREZ, José Manuel. A estratégia dos Habsburgo para a América portuguesa. Novas propostas para um velho assunto. In: ALMEIDA, Suely C. C de; SILVA, G. C. de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA, G. F. C. de (Org.). Políticas e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE, 2012, p. 247-253; ______. Filipe III e a ameaça neerlandesa no Brasil: medos globais, estratégia real e respostas locais. In: WIESEBRON, Marianne L. (Ed.). Brazilië in de Nederlandse archieven / O Brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654). Leiden: Leiden University Press, 2013, p. 41-71. (Serie Mauritiana, v. 5); ______. The strategy of Phillip III in the South Atlantic. In: ANTUNES, Catia (Ed.). The Pursuit of Empire: the Dutch and Portuguese colony of Brazil, 1621-1668. Leiden: 2013 (no prelo); MEGIANI, Ana Paula T. Contar coisas de todas as partes do mundo: as Relaciones de Sucesos e a circulação de notícias escritas no período filipino. In: ALMEIDA, Suely C. C de; SILVA, G. C. 15

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Finalmente, sobre o impacto da Restauração na vida dos colonos e da produção de um elemento de justificação popular nas revoltas que ocorreram no Brasil durante a segunda metade do século XVII, o

de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA, G. F. C. de (Org.). Cultura e sociabilidades no mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE, 2012, p. 469-483. v. 2; ______. Política e letras no tempo dos Filipes: o Império português e as conexões de Manuel Severim de Faria e Luis Mendes de Vasconcelos. In: BICALHO, Maria Fernanda B.; FERLINI, Vera Lucia A. (Org.). Modos de Governar: Ideias e práticas políticas no Império Português. Séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 239-256; ______. O Rei Ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004; SILVA, Kalina Vanderlei. O Herói Virtuoso, Prudente e Dissimulado: O Cortesão como Ideal Masculino nas Cortes Ibéricas dos séculos XVI e XVII. História, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 231-250, 2013; ______. Fidalgos, capitães e senhores de engenho: o Humanismo, o Barroco e o diálogo cultural entre Castela e a sociedade açucareira (Pernambuco, séculos XVI e XVII). Varia História, Belo Horizonte, v. 28, n. 47, p. 235-257, 2012; ______. A América açucareira portuguesa no governo de Felipe IV de Espanha. In: ALMEIDA, Suely C. C. de; SILVA, G. C. de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA, G. F. C. de (Org.). Políticas e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE, 2012, p. 255-270; ______. Processos de habilitação de ‘naturais de Pernambuco’ na Ordem de Calatrava: conexões entre a América Açucareira Portuguesa e a Corte Filipina (1580-1640). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, XXVII, 2013, Natal. Anais... Natal: [s.n.], 2013, p. 1-15. v. 1; PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil, poder e política na Bahia colonial – 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013; ______. No tempo dos flamengos: memória e imaginação. In: VIEIRA, Hugo Coelho; GALVÃO, Nara Neves Pires; SILVA, Leonardo Dantas. (Org.). Brasil Holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012, p. 31-46; ______. A Mísera Sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999; RICUPERO, R. O Tempo Dourado do Brasil no final do século XVI. In: GARRIDO, Álvaro; COSTA, Leonor Freire; DUARTE, Luís Miguel. (Org.). Economia, Instituições e Império: estudos em homenagem a Joaquim Romero de Magalhães. Coimbra: Almedina, 2012, p. 337-348; ______. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 – c. 1630. São Paulo: Alameda, 2008; CARDOSO, Alírio. A conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 31, n. 61, p. 317-338, 2011. 16

introdução

estudo de Luciano R. A. Figueiredo nos permite conceber as maneiras como circularam as ideias de rebelião e de resistência local, enquanto se reconstituíam os vínculos entre as partes da América portuguesa e sua metrópole original.24 Este balanço historiográfico objetiva apresentar o que se tem produzido de mais relevante nos estudos sobre as relações entre Portugal, Espanha e América portuguesa no período filipino, mas, sobretudo, como modo de apresentar o quanto complexa foi se tornando a pesquisa acerca dessas relações, ampliadas de maneira considerável nas últimas décadas, com a possibilidade de já estar defasada quando este livro estiver definitivamente impresso. No Brasil, vivemos atualmente uma fase de superação do descobrimento historiográfico do período da União das Coroas Ibéricas, com o aprofundamento das investigações nos arquivos portugueses e espanhóis, agora muito mais acessíveis aos historiadores brasileiros do que há algumas décadas. Além disso, a Restauração de 1640 e a Guerra de Independência se têm convertido em tópicos obrigatórios para quem se dedica a escrever a história da América portuguesa nos finais do século XVI e durante o século XVII. Contudo, muito ainda precisa ser tratado, escrito e investigado sobre essa época e suas problemáticas. Chegados a esse ponto, precisamos nos perguntar o que é que ainda pode ser feito na pesquisa sobre esse período do Brasil colônia. Talvez a grande questão seja a escassez de fontes. Se a história da América portuguesa é focada fundamentalmente no século XVIII, não é simplesmente devido ao fascínio pelo ouro, ou pelas reformas do período, ou pelas maravilhas da arquitetura “barroca”. Se olharmos para os documentos do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – o grande repositório documental tradicionalmente usado pelos historiadores modernistas, e que agora está sendo amplamente explorado pelos historiadores jovens em razão da digitalização de parte do seu acervo realizada

24

FIGUEIREDO, Luciano R. A. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império colonial português, sécs. XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 197-254. 17

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

pelo Projeto Resgate – as fontes sobre o final do século XVI e a primeira metade do XVII são, em comparação com as do século XVIII, muito escassas. E se tirássemos do período anterior a 1650 as questões relativas às guerras com os holandeses, o panorama seria ainda mais rarefeito. Por isso, para avançarmos com a análise do período filipino da América portuguesa, uma das primeiras ações deve ser abrirmos o leque de acervos a serem utilizados. De um lado, em Portugal, o Arquivo da Torre do Tombo e a Biblioteca da Ajuda possuem importantes fontes sobre esse período. Vários dos últimos trabalhos publicados pelos historiadores especialistas, alguns deles presentes neste livro, têm visitado esses arquivos. Naturalmente, os acervos espanhóis devem ser também mais explorados: o Archivo General de Simancas foi a grande descoberta para os historiadores brasileiros das últimas duas décadas. Ainda guarda muito material a ser explorado, mas talvez já não seja a panaceia que parecia ser dez anos atrás. O Archivo General de Indias, em Sevilha, continua sendo o grande arquivo sobre a história da América hispânica, e é um importante acervo também para assuntos da América portuguesa, seja pelos contatos com Buenos Aires, seja pela quantidade de informações econômicas, administrativas, militares e outras que atesoura nas suas imensas e incontáveis prateleiras. O outro grande centro documental na Espanha é a Biblioteca Nacional de Madrid. Nas coleções de manuscritos, há importantes informações para o período da União de Coroas esperando pelos historiadores. Nos últimos anos, foram publicados guias basilares para o uso de fontes sobre o Brasil na Espanha que, sem dúvida, serão de utilidade para os futuros pesquisadores.25 São muitos os temas a serem tratados no futuro. Um exemplo são os assuntos fiscais, fundamentais para entendermos o papel do Brasil 25

GARCÍA LÓPEZ, María Belén. Fuentes para la historia colonial de Brasil en los archivos españoles. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Guide du chercheur américaniste, 2009. Disponível em: ; LÓPEZ GÓMEZ, Pedro; GARCÍA MIRAZ, Mª del Mar. Fuentes archivísticas para la historia del Brasil en España (Siglos XV-XVII). Revista de Indias, v. LX, n. 218, p. 135-179, 2000; GONZÁLEZ MARTÍNEZ, Elda E. Guía de fuentes manuscritas para la historia de Brasil conservadas en España. Madrid: Fundación MAPFRE TAVERA, 2002. 18

introdução

no conjunto do império dos Habsburgo. Além das questões relativas ao poder, bem como sua configuração no império português e no âmbito do conjunto maior das possessões dos Habsburgo. Por sua vez, o estudo das elites coloniais em conexão com o contexto da Monarquia Católica também tem se mostrado promissor. Atualmente, a historiografia brasileira colonialista tem dado uma grande ênfase a essas elites, mas em trabalhos que, em geral, têm se mantido firmemente atrelados ao século XVIII. Poucos são aqueles historiadores que se aventuram no século XVII, e menos ainda aqueles que procuram pensar esses grupos sociais no período filipino. Entre aqueles que o fazem, vale a pena destacar Regina Célia Gonçalves que, ao esmiuçar a participação da elite açucareira no processo de conquista e consolidação colonial na Paraíba, trouxe à tona os conflitos da elite mazomba com os representantes do governo filipino.26 Outra perspectiva que merece atenção é aquela que se debruça sobre a remuneração dos serviços prestados pelos senhores de engenho durante as guerras holandesas. E se a maioria dos trabalhos sobre o tema atenta para o período pós-Restauração e as solicitações atendidas pelos Bragança,27 não podemos esquecer dois importantes estudos, hoje clássicos, que abordam essas remunerações no período da União Dinástica: S. Schwartz mais uma vez, com sua “jornada dos vassalos” e Cleonir Xavier com seu detalhado levantamento

26

GONÇALVES, Regina C. O Capitão-Mor e o Senhor de Engenho: os conflitos entre um burocrata do rei e um ‘nobre da terra’ na Capitania Real da Paraíba (Século XVII). In: CONGRESSO INTERNACIONAL ESPAÇO ATLÂNTICO DE ANTIGO REGIME: PODERES E SOCIEDADES, 2005. Actas... Lisboa: Instituto Camões, 2008, p. 1-14. v. 1; ______. Guerras e Açúcares: política e economia na capitania da Parayba – 1585-1630. São Paulo: Edusc, 2007.

27

Bom exemplo é o recente trabalho de Thiago Krause sobre os hábitos militares concedidos como remuneração da guerra holandesa a Pernambuco e Bahia. KRAUSE, Thiago Nascimento. Em busca da honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das ordens militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683). São Paulo: Annablume, 2012. 19

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

da cobrança de impostos no Pernambuco filipino e da aplicação desses recursos na defesa.28 Nesse sentido, parece essencial uma reconstrução em termos comparados das relações de poder, nomeação e provisão de cargos, venalidade e relações entre os distintos atores. Os projetos em andamento, coordenados pelos organizadores do presente volume, estão tentando cobrir essas lacunas na historiografia.29 E foi com base em tais projetos e preocupações que o presente livro foi se construindo. Originado de discussões e inquietações frequentes, os textos foram tomando forma principalmente a partir de dois encontros, ambos intitulados o Brasil na Monarquia Hispânica, realizados em 2012, respectivamente em Salamanca e em São Paulo. As reflexões frutificaram e levaram a novos trabalhos, como o evento temático realizado no XXVIII Simpósio Nacional de História em 2013, em Natal (RN), e semeando as possibilidades para novos artigos e projetos. Os autores participantes do volume são professores de diferentes instituições envolvidas neste esforço, pesquisadores experientes e que

28

SCHWARTZ, Stuart B. The Voyage of the Vassals: Royal Power, Noble Obligations, and Merchant Capital before the Portuguese Restoration of Independence, 1624-1640. The American Historical Review, v. 96, n. 3, p. 735-762, 1991; COSTA, Cleonir Xavier de Albuquerque da Graça e. Receita e Despesa do Estado do Brasil no Período Filipino: aspectos fiscais da administração colonial. Recife, 1985. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco.

29

“Redes políticas, comerciantes y militares en Brasil durante la Monarquía Hispánica y sus postrimerías (1580-1680)”, projeto financiado pelo Ministerio de Economía y Competitividad da Espanha, coordenado por José Manuel Santos Pérez e Kalina Vanderlei Silva. “Brasil en la Monarquía Hispánica: cultura política, negocios y misiones durante la Unión de Coronas Ibéricas y la Guerra de Restauración (1580-1668) / O Brasil na Monarquia Hispânica: cultura política, negócios e missionação durante a União das Coroas Ibéricas e a Guerra de Restauração (1580-1668)”, programa de cooperação USAL/USP, coordenado por Ana Paula Megiani e José Manuel Santos Pérez. “Pernambuco no Processo de Mundialização da Idade Moderna: As Conexões da América Açucareira com o Império Espanhol nos Séculos XVI e XVII”, projeto coordenado por Kalina Vanderlei Silva e financiado pela FACEPE, 2013-2015. 20

introdução

contribuíram para a formulação das diversas frentes de trabalho que o grupo pretende prosseguir investigando.30 Por tudo isso, a obra agora em suas mãos é tanto um convite a um período que precisa ser revisitado, tradicionalmente conhecido como Brasil Filipino, quanto um mapa para os possíveis caminhos abertos à navegação no mesmo. Boa leitura! Os organizadores.

30

Além de professores da Universidade de Salamanca e Universidade de São Paulo, que deram origem ao grupo por meio do convênio firmado em 2011, participam do volume professores da Universidade de Pernambuco, Universidade Federal do Maranhão, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade Federal de São Paulo. 21

Visita, residência, venalidade: as “práticas castelhanas” no Brasil de Filipe III*

José Manuel Santos Pérez1

Durante os últimos anos, trabalhamos sobre a questão do Brasil na Monarquia Hispânica, fundamentalmente durante o período de Filipe III, II de Portugal. A pergunta de “como era considerada a América portuguesa dentro dos territórios ultramarinos dos Habsburgo?”, que guia a maior parte dos nossos projetos, começa, aos poucos, a ser respondida. O período de Filipe III foi escolhido porque é menos conhecido que o seguinte, de Filipe IV, e porque os 23 anos do reinado foram muito importantes para o desenvolvimento do território português na América. Em outros textos e publicações foram já identificadas as questões que consideramos mais relevantes para o período de Filipe III:2

*

1 2

Pesquisa financiada pelo projeto “Redes politícas, comerciantes y militares en Brasil durante la Monarquía Hispánica y sus postrimerías (1580-1680)” (HAR2012-35978) do Ministerio de Economía y Competitividad. Professor de História do Brasil na Universidade de Salamanca. SANTOS PÉREZ, J. M. A estratégia dos Habsburgo para a América portuguesa. Novas propostas para um velho assunto. In: ALMEIDA, Suely C. C de; SILVA, G. C. de Melo; SILVA, Kalina V.; SOUZA, G. F. C. de (Org.). Políticas e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE,

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

1)

A preocupação pela defesa do território;

2) A organização (falida) contra a ameaça holandesa, tanto militar quanto econômica; 3)

A ideia de Brasil como outro Peru e, em relação com esta questão, uma mudança na política para com os indígenas e os jesuítas;

4) E, finalmente, o desenvolvimento de uma reforma fiscal, com uma maior centralização e controle por parte da coroa, junto com um maior desenvolvimento institucional. Achamos que um ponto importante para o melhor conhecimento do período é aplicar um enfoque de tipo global e comparativo, sem fugir, é claro, de análises micro. O jeu d’échelles é essencial para a análise que nos ocupa.3 Dentro da questão comparativa, é fundamental o contraste com o que está acontecendo na mesma época em outros territórios da Monarquia Hispânica, e fazer uma interpretação da situação no Brasil com o filtro das políticas postas em prática pela coroa para os outros territórios ultramarinos dos Habsburgo. A eficácia da comparação já foi provada em trabalhos anteriores que se ocuparam da política indígena e a relação com as ordens religiosas, especialmente com os jesuítas.4

2012, p. 247-253; ______. Filipe III e a ameaça neerlandesa no Brasil: medos globais, estratégia real e respostas locais. In: WIESEBRON, Marianne L. (Ed.). Brazilië in de Nederlandse archieven / O Brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654). Leiden: Leiden University Press, 2013, p. 41-71. (Serie Mauritiana, v. 5); ______. Brazil and the Politics of the Spanish Hapsburgs in the South Atlantic (1580-1640). In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (Ed.). The South Atlantic, Past and Present. Portuguese Literary & Cultural Studies 27. Massachusetts: University of Massachusetts. (no prelo). 3

REVEL, Jacques (Ed.). Jeu d’échelles: La micro-analyse à l’expérience. Paris: EHESS, 1996.

4

RUIZ, Rafael. La política legislativa con relación a los indígenas en la región sur del Brasil durante la Unión de las Coronas (1580-1640). Revista de Indias, v. 62, n. 224, p. 17-40, 2002; ______. São Paulo na Monarquia Hispânica. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 24

visita, residência, venalidade

Como hipótese geral para esse período de Filipe III, propomos que o que se produz é uma aproximação com a estratégia que já estava sendo implementada na América espanhola.5 É lógico pensar, e assim parece do relato de alguns contemporâneos, que a América espanhola era considerada o modelo melhor sucedido de exploração dos territórios americanos a inícios do século XVII. Isso tinha a ver, naturalmente, com a aparição das grandes minas de metais preciosos, mas também com uma maneira de entender a estratégia e a organização do esforço conquistador e colonizador. Algumas ideias que pareciam que funcionavam deviam ser igualmente praticadas na América portuguesa, e isso era uma concepção que estava não apenas na mente das autoridades europeias, como ainda nas de alguns dos habitantes dos territórios americanos. Com certeza, as instituições intermediárias portuguesas eram, às vezes, consultadas, mas outras não, e isso levou a interessantes conflitos e debates sobre as melhores formas de atuação. Algumas das estratégias que, na época, estavam sendo praticadas na América hispânica eram: 2004; ______. The Spanish-Dutch War and the Policy of the Spanish Crown Toward the Town of São Paulo. Itinerario, v. 26, n. 1, p. 107-125, 2002; BONCIANI, Rodrigo. O dominium sobre os indígenas e africanos e a especificidade da soberania régia no Atlântico: da colonização das ilhas à política ultramarina de Felipe III (1493-1615). São Paulo, 2010. 323 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 5

VILARDAGA, J. C. São Paulo na órbita do império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). São Paulo, 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; MARQUES, Guida. L’Invention du Brésil entre deux monarchies: Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union ibérique. Paris, 2009. Tese (Doutorado) – École de Hautes Études de Sciences Sociales; CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca, 2012. 436 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca; COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil (século XVI e XVII): ofício, regimentos, governação e trajetórias. Niterói, 2005. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense. 25

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)



controle sobre as ordens religiosas, que apenas deviam cuidar das almas e não das questões políticas;



proibição da escravidão indígena, mas com uma organização do trabalho forçado;



maior presença da coroa no território, com uma maior expansão dos agentes da coroa;



e uma política fiscal que ajudasse a pagar os grandes custos do esforço imperial: a principal fonte de ingressos seria assim o “tributo” indígena, seguido da alcabala e o quinto da prata e os metais preciosos.

Várias destas estratégias começaram a ser aplicadas de igual modo no território português na América. Por exemplo, sabemos que a política das autoridades face aos indígenas no Brasil foi uma das grandes questões da política imperial ao final do reinado de Filipe II e durante a primeira década de Filipe III, e que teve um momento significativo com a promulgação dos alvarás de 1609 e 1611 que, basicamente, acabavam com o poder que os jesuítas tinham, de forma quase monopolística, na organização das populações nativas. É nesse momento também que entram as ordens religiosas concorrentes dos jesuítas, como beneditinos e franciscanos. Vários autores têm analisado esta questão, notadamente Rafael Ruiz e Rodrigo Bonciani, e não vou insistir mais nela, mas foi uma das mais destacadas do período.6 Agora é importante salientar outros aspectos que, nessa análise comparativa, devem render frutos no futuro. Dentro da ideia da burocracia, em geral, e da colônia, em particular, existem vários aspectos que parecem trasladar-se dos usos e costumes da América hispânica para a América portuguesa. Destacamos entre estes a aparição da “visita” e a “residência”. Para o controle dos burocratas reais nas Índias de Castela, existiam duas figuras fundamentais: a “residência” (isto é, o julgamento que um oficial fazia do seu antecessor no cargo) e a “visita” (o envio de um

6

RUIZ, Rafael. La política legislativa con relación a los indígenas en la región sur del Brasil durante la Unión de las Coronas (1580-1640), op. cit.; BONCIANI, Rodrigo, op. cit. 26

visita, residência, venalidade

oficial que tinha plenos poderes no território para investigar os possíveis casos de corrupção). Tanto uma como outra figura foram introduzidas na América portuguesa. É interessante, para isso, a figura de Sebastião de Carvalho, já conhecida, mas que não tem sido vista dentro deste enfoque comparatista: em 1606, ele viajou com poderes especiais para Salvador e Recife, com a missão principal de investigar os descaminhos do contrato do pau-brasil. Carvalho chegou com a mesma capacidade para decidir e julgar que tinham na América espanhola os “visitadores”, que eram encarregados de missões do mesmo tipo. Por exemplo, a visita de Juan de Mañozca e Juan Galdós de Valencia a Quito, em 1624, analisada por John Leddy Phelan no clássico The Kingdom of Quito in the Seventeenth Century.7 Que Carvalho era uma figura especial, e que seus poderes eram os do “visitador”, pode ser constatado numa carta de Filipe III ao Conselho da Índia de 1606. Nela, o desembargador recebe uma nova ordem para a inspeção no Brasil: além de pesquisar sobre os contratos do pau-brasil, devia também ver o estado em que se encontravam as fortalezas e se o estado delas era bom e defensável. Porém, como esse não era assunto da especialidade do juiz, a coroa pedia que, nessa ocasião, a investigação não tivesse forma de visita, mas somente de informação.8 No mesmo documento, Carvalho é encarregado da missão de realizar a residência do Ouvidor Geral e do Provedor-mor dos defuntos, junto com o Chanceler da Relação, que estava já em preparativos para começar a funcionar. Ademais, tinha a responsabilidade de fazer a residência de Francisco de Sousa do seu período anterior como governador do Brasil, que, nesse momento, tentava convencer às autoridades da existência de minas de ouro no sul do Brasil. Na América hispânica, a residência era uma investigação que se fazia sobre o período de governo de um cargo da administração.

7

PHELAN, J. L. The Kingdom of Quito in the Seventeenth Century: Bureaucratic politics in the Spanish Empire. Madison: The University of Wisconsin Press, 1967.

8

Biblioteca da Ajuda, (BA), Cod. 51-VII-15, f. 112. 27

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Normalmente era feita pelo sucessor, mas, às vezes, podia haver outras pessoas encarregadas da missão. A figura da residência cumpre um papel muito importante nesse período. A instituição foi introduzida em 1603 para todos os ofícios governativos em todos os territórios portugueses da península e ultramar.9 Portanto, Francisco de Sousa devia ser o primeiro governador que devia passar neste “exame” ao final do seu período de governo. O qual não deixa de ser interessante porque, dentre os privilégios que Francisco de Sousa havia conseguido no momento de ser nomeado governador das Capitanias de Baixo, um era o de ser exonerado da residência devida como governador do estado do Brasil entre 1592 e 1602. Consideramos que essa figura do “visitador” real e a generalização da residência fazem entrar a América portuguesa dentro do modelo de império que os Habsburgo tinham na América espanhola. Os reis da Casa de Áustria confiavam muito nessas duas instituições da visita e residência para ter um controle efetivo nos domínios de ultramar. A velha historiografia hispânica que estudava os órgãos administrativos considerava essas figuras como os melhores exemplos da eficácia do império burocrata renascentista dos Habsburgo. O historiador Leddy Phelan, nos anos 1960, além de uma enorme quantidade de trabalhos nos anos 1970 e 1980, demonstrou que, apesar dos mecanismos de inspeção, a venda de cargos e a corrupção generalizada e permitida pela coroa eram a essência do império habsbúrguico de ultramar. Elas configuravam uma estrutura na qual as redes familiares dominavam os cargos burocráticos para o seu próprio proveito e manipulavam a seu favor as visitas e as residências.10 Se isso foi assim, ou começava a ser assim na América portuguesa, é algo que ainda não sabemos e devemos avançar na pesquisa para um melhor conhecimento. Outra grande questão é a venalidade de cargos. São conhecidos os argumentos dos homens da pós-Restauração portuguesa, segundo

9

VILARDAGA, J. C., op. cit., p. 182.

10

SANTOS PÉREZ, J. M. Élites, poder local y régimen colonial: El Cabildo y los regidores de Santiago de Guatemala, 1700-1787. Cádiz: Servicio de publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1999. 28

visita, residência, venalidade

os quais o período dos Filipes teria sido um autêntico leilão de cargos.11 Também os pregadores de Portugal, durante o reinado de Filipe II, mostravam-se alarmados de que “com tendas abertas e publicamente se vendiam os cargos, os bispados, as comendas, os títulos, e toda a maneira de cargos, ofícios e dignidades”.12 A ideia seria que o período dos Filipes foi de um aumento muito significativo da venalidade em comparação com o período prévio e com o período dos Bragança. Essas afirmações, características da animada versão do período restauracionista, têm sido contestadas por alguns autores recentes, que já demonstraram que a venalidade teve um importante desenvolvimento desde meados do século XVI, antes do período filipino.13 Porém, a venalidade na América portuguesa continua sendo uma questão obscura, pouco estudada, se compararmos com os estudos que foram realizados para a América espanhola, e pior ainda se pensarmos no período da União das Coroas. Pelo contrário, a questão da venalidade na Monarquia Hispânica tem tido uma renovação historiográfica nos últimos anos, com os trabalhos de Andújar Del Castillo, fundamentalmente para o período dos Bourbons.14 Temos já uma tipologia e alguns esclarecimentos conceituais.

11

STUMPF, Roberta G. Formas de venalidade de ofícios na monarquia portuguesa do século XVIII. In: ______.; CHATURVEDULA, N. (Org.). Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII). Lisboa: Cham, 2012, p. 279-298; ______. Venalidad de oficios en la Monarquía portuguesa: un balance preliminar, e OLIVAL, Fernanda. Economía de la merced y venalidad en Portugal (siglos XVII-XVIII). In: ANDÚJAR DEL CASTILLO, F.; FELICES DE LA FUENTE, M. del Mar (Ed.). El poder del dinero: Ventas de cargos y honores en el Antiguo Régimen. Madrid: Biblioteca Nueva, 2011, p. 331-344, 345-357 (respectivamente).

12

Citado em STUMPF, Roberta G. Venalidad de oficios en la Monarquía portuguesa: un balance preliminar, op. cit., p. 335.

13

SILVA, F. R. da. Venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos em Portugal nos séculos XVI e XVII. Alguns aspectos. Revista de História, v. 8, p. 203-213, 1988.

14

ANDÚJAR DEL CASTILLO, F. El sonido del dinero: Monarquía, ejército y venalidad en la España del siglo XVIII. Madrid: Marcial Pons, 2004; ______. Venalidad de oficios y honores. Metodología de investigación. In: STUMPF, 29

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Recentemente, encontramos na Biblioteca da Ajuda de Lisboa um importante documento para o conhecimento dessa questão durante o período da União das Coroas. Trata-se da “Relaçao dos officiosdapresentaçao de S. Magde da Justiçae fazenda e o que valem de renda e de compra em vida ao respto e reputaçao em que hoie estão ea o modo e forma q dellesusaohoie os qe os servem”.15 Não existem estudos sobre essa questão para esse período. Mesmo se alguns autores já citaram este documento, fazem-no como prova do afã reformador existente na primeira etapa de Filipe III, e não tanto como um exemplo do que está acontecendo com a venalidade.16 O contexto em que se insere este documento é a grande onda de petições de informação por parte das autoridades espanholas, que percorre os primeiros cinco ou dez anos do século XVII para conhecerem a situação do Estado do Brasil, fundamentalmente financeira, mas também em aspectos como ofícios, contratos, fortalezas e outros. Em várias cartas das autoridades ao Vice-rei e ao Conselho da Índia, no ano de 1606, estão pedindo esclarecimentos sobre a questão do “ordenado”, o salário atribuído aos oficiais que, às vezes, trata-se de uma quantidade fixa; porém, em outras ocasiões, é uma porcentagem do “orçamento” (ou seja, a quantidade que o contratista pagava à coroa pelo arrendamento da arrecadação dos impostos nas capitanias). “El rey” está pedindo que, em alguns casos, acabe esse tipo de prática, e pede também a supressão de alguns cargos, talvez por considerar que existem demasiados abusos.

R. G.; CHATURVEDULA, N. (Org.) Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII), op. cit., p. 175-198. 15

Biblioteca da Ajuda, Cod. 51-VI-54.

16

MARQUES, Guida. De um governo ultramarino: a institucionalização da América Portuguesa no tempo da união das coroas (1580-1640). In: CARDIM, Pedro; COSTA, Freire; CUNHA, Mafalda Soares da (Org.). Portugal na Monarquia Hispânica: dinâmicas de integração e conflito. Lisboa: Cham, 2013, p. 235. 30

visita, residência, venalidade

Finalmente, em 1606, o governador Diogo Botelho e o provedor Ferraz que, aliás, vai ter o seu cargo suprimido, realizam um exaustivo estudo da situação dos ofícios de data de 2 de outubro de 1606.17 O relatório chega ao Conselho da Índia no dia 24 de abril de 1607. O documento consiste em seis folhas, com duas cópias, dividido por capitanias, com a informação do “ordenado”, os “percalços” e o valor de compra de todos os cargos das capitanias portuguesas (Ver tabela 1). O preço de compra varia se é “em vida”, isto é “vitalício”, ou não, e está relacionado diretamente com as quantidades que os diferentes ofícios podem render através dos “percalços”, os benefícios extraordinários fora do “ordenado”. O ofício pelo qual mais se paga é o de Escrivão da Fazenda da Bahia (um conto e 10.000 réis). Vários ofícios dessa capitania, a que possui mais cargos vendidos, estão à venda por um conto. Os preços variam de 30.000 réis, o menor valor pago, até um conto e 10.000 réis, comentado anteriormente. Os ofícios maiores (capitão, ouvidor geral) não têm preço de compra, e parecem estar fora do “mercado”. São os postos com mais capacidade para conseguir os “percalços” os que parecem ter um preço maior, porém isto não é sempre assim. Há cargos, como o de “Alcaide-mor”, que o próprio documento diz que se compra mais “pela honra” que por razões econômicas. Portanto, parece que os cargos são considerados como empresas cujo benefício deve ser maximizado. De novo, a comparação com a América espanhola é interessante. A lista lembra muito o que se fazia na América espanhola com os cargos, fundamentalmente os que tinham população indígena na jurisdição. No caso da América portuguesa, são os portos, claramente com maiores operações econômicas, os que rendem maiores benefícios, mas, nos dois casos, parece claro que a pessoa que compra entende que deve maximizar o lucro, entendendo o cargo como uma empresa... Mas como já falamos, nem sempre é assim, já que alguns cargos só têm interesse na honra. 17

CARTA de S. M. ao Conselho da Índia. 30 de dezembro de 1606. Biblioteca da Ajuda, (BA), Cod. 51-VII-15. 31

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Confirmaria este documento o que já apontou a historiografia nacionalista sobre o período filipino e a grande venalidade nessa época? Achamos que não é bem assim. O que esse documento demonstraria seria que as vendas estavam sendo feitas pelos particulares entre si. Quando Filipe II legalizou a venda de cargos na América espanhola (as regidurías e os cargos de escrivão), no ano de 1591, o que estava fazendo não era incentivar a realização das compras e vendas, mas passar a controlar, e ganhar um rendimento, num negócio em que a coroa não estava levando nada, já que eram os particulares quem faziam a compra-venda. Parece que este documento que apresentamos tem a ver também com este mesmo processo, com a ideia de um maior controle por parte da coroa. A coroa estaria recebendo notícias precisas para conseguir uma maior arrecadação e uma informação que não tinha, ou que era muito obscura, sobre quem e de que maneira estavam ocupando os cargos. A coroa devia ter ainda um interesse em aumentar a proporção da América portuguesa nos ingressos totais do império. Nos últimos anos, vários estudos mostram a pouca importância do território do Brasil no total do império a inícios do século XVII, em comparação com o Estado da Índia ou com a América hispânica. No total, o Brasil representava apenas 4,7% do total da receita arrecadada pela administração portuguesa do império espanhol em 1607.18 Em geral, esses estudos mostram que, no início do século XVII, o Estado do Brasil era rentável e que gerava superávits no orçamento graças à arrecadação do dízimo, com a indústria açucareira em crescimento, e graças ao contrato do pau-brasil, o mais importante dos contratos da coroa na região nessa época. Porém, essa situação seria excepcional, talvez só para o ano de 1607, como aponta Carrara, pois as autoridades imperiais hispânicas, no início do reinado de Filipe III, demonstram uma preocupação com a arrecadação na América portuguesa, que achavam que poderia ser maior, e essa é uma das razões dos abundantes relatórios que 18

CARRARA, Angelo A. Costos y beneficios de una colonia: introducción a La fiscalidad colonial del Estado de Brasil, 1607-1808. Investigaciones de Historia Económica, v. 6, n. 16, p. 21, feb. 2010. 32

visita, residência, venalidade

são enviados do Brasil para informar sobre impostos, receitas, despesas, contratos, e todos os assuntos relativos à questão fiscal. Essa preocupação seria ainda maior no momento da conquista do Maranhão, que teve de ser financiada em parte com recursos de particulares, principalmente moradores luso-pernambucanos. Sabemos que o problema econômico não era menor, e que a preocupação sobre a arrecadação ser menor do que podia ser potencialmente, percorre todo o período. O documento que apresentamos mostraria, portanto, que as diversas formas de arrecadação que já tinha a América espanhola deviam também ser praticadas na América portuguesa, incluindo a venda de cargos. Controlando quem ocupava os ofícios, e tendo garantida uma fonte de renda através das vendas de cargos, a burocracia da América portuguesa se aproximaria assim ao modelo castelhano na América, que também era fiscalizado pelas figuras do visitador e da residência. Sabemos que a venda de cargos foi uma das razões da forte entrada dos “criollos hispano-americanos” no governo colonial na América. Se isso não foi assim na América portuguesa, segundo mostram os estudos de Nuno Monteiro, talvez a venalidade tenha parado, ou foi menor, a partir da Restauração, como indicavam os cronistas de inícios da monarquia bragantina? Parece mais conveniente pensar que o fato de não estarem à venda os cargos considerados grandes ou maiores, podia ser uma razão, mas isso não impede pensar que alguns dos menores tinham um grande rendimento... Em conclusão, devemos aprofundar nesses enfoques, global e comparativo, que, como vemos, estão já dando frutos para um melhor entendimento do que foi considerado por alguns historiadores como o “período crucial” da história do Brasil colonial.

33

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Tabela 1 ESTADO DO BRASIL. OFÍCIOS E VALOR DE COMPRA (1606). Biblioteca da Ajuda (Cod. 51-VI-54), fols. 160-165. Ofício

Ordenado

Percalços

Valor de compra

Não

1.000 cruzados

3.000 cruzados (em vida)

Meirinho do ouvidor

300.000 rs.

3.000 cruzados

Inquiridor e contador do ouvidor

40.000 rs.

1000 cruzados.

Quatro tabeliães do judicial

250.000 rs.

Um conto (cada um).

Inquiridor e contador do juizio e Escrivão da almotaçaria

200.000 rs.

2.000 cruzados

80.000 rs.

200.000 reis

300.000 rs.

2.500 cruzados.

Bahia (Justiça): Escrivão do ouvidor geral

Meirinho da Bahia

Não

Escrivão das execuções do cível e da justiça Escrivão da câmara da Bahia Juiz dos Órfãos da Bahia

8.000 rs.

12.000 rs.

200.000 reis

Não

50.000 rs.

400 cruzados

300.000 rs.

Um conto.

Escrivão dos órfãos da Bahia

Bahia (Fazenda): Provedor da fazenda

30.000 rs.

Escrivão da alfândega, provedoria e de defuntos (vão juntos).

50.000 rs.

Um conto

500.000 rs.

4.000 cruzados

Escrivão da fazenda

80.000 rs.

80.000 rs.

Um conto e 10.000 reis

Contador mor do estado

100.000 rs.

100.000 rs.

2.000 cruzados

Escrivão dos feitos da fazenda

80.000 rs.

40.000 rs.

1.000 cruzados

Escrivão dos contos

40.000 rs.

20.000 rs.

300.000 reis

Tesoureiro Geral

80.000 rs.

80.000 rs.

Um conto

Almoxarife dos armazens

30.000 rs.

40.000 rs.

1.000 cruzados

Escrivão do thesouro

40.000 rs.

40.000 rs.

1.000 cruzados

Escrivão do Almoxarifado

40.000 rs.

20.000 rs.

200.000 reis.

Não

300 cruzados.

1.000 reis

24.000 rs.

120.000 reis

Meirinho do mar Patrão da Ribeira

24.000 rs.

Procurador dos feitos da fazenda

15.000 rs.

Porteiro da Alfândega Tesoureiro dos defuntos e ausentes Meirinho do provedor mor dos defuntos

12.000 rs.

50.000 reis 120.000 rs.

Não

25.000 rs.

34

1.200 cruzados 1.000 cruzados

100.000 (6 %)

80.000 reis

visita, residência, venalidade

Juiz dos Índios forros

40.000 rs.

Procurador dos índios forros

30.000 rs.

Três Escrivãos do termo (Sergipe, Taboapina, Paripé)

200.000 reis 200.000 reis 50.000 rs. (cada um)

200.000 reis (cada um).

Escrivão de Tabuapara

10.000 rs.

30.000 reis

Escrivão de [I]Taparica

30.000 rs.

100.000 reis

Capitania do Rio de Janeiro (de S. M.) Capitão

100.000 rs.

s.d.

s.d.

Capitão do forte da Lagem

80.000 rs.

s.d.

s.d.

Capitão do forte que está enfrente

30.000 rs.

s.d.

s.d.

Ouvidor

20.000 rs.

Meirinho

Não

Alcaide mor

20.000 rs.

Dois tabeliães do judicial e notas Escrivão da câmara

20.000 rs.

Escrivão da Almotaçaria

30.000 rs.

Juiz dos órfãos Escrivão dos órfãos Provedor dos defuntos

Não

50.000 rs.

150.000 reis

s.d.

1.000 cruzados

100.000 rs.

400.000 reis cada um. 100.000 reis 100.000 reis

30.000 rs.

200.000 reis

80.000 rs.

250.000 reis

50.000 rs. (3 %)

300.000 reis (se for vitalicio. Normal: três anos).

Escrivão dos defuntos

30.000 rs.

150.000 reis (se for vitalicio. Normal: três anos)

Tesoureiro dos defuntos

80.000 rs. (6 %)

Provedor da fazenda

300.000 rs. (2 %)

Escrivão da fazenda

18.000 rs.

25.000 rs.

300.000 reis

Almoxarife do Rio de Janeiro

50.000 rs.

30.000 rs.

200.000 reis

s.d.

20.000 rs.

120.000 reis

80.000 rs.

260.000 reis

Escrivão do almoxarifado Meirinho do mar e porteiro da alfândega

400.000 reis (se for vitalicio. Normal: três anos) 400.000 reis

Sergipe de São Cristovão (de S. M.) Capitão

100.000 rs.

s. d.

s. d.

Ouvidor

20.000 rs.

s.d.

s. d.

s. d.

20.000 rs. (cada um)

100.000 reis (cada um)

Dois tabeliães

35

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Provedor da fazenda e juiz da alfândega

s.d.

s. d.

s. d.

Escrivão da fazenda, alfândega e almoxarifado

s. d.

s. d.

100.000 reis

Capitão

100.000 rs.

s.d.

s.d.

Ouvidor

20.000 rs.

s.d.

Capitania da Paraíba (de S. M.)

Dois tabeliães

s.d. 300.000 reis (each)

50.000 rs.

Escrivão da câmara

s. d.

20.000 rs.

100.000 reis.

Juiz dos órfãos

s.d.

30.000 rs.

200.000 reis

Escrivão dos órfãos

s.d.

60.000 rs.

200.000 reis

Provedor dos defuntos e ausentes

30.000 rs. (3 %)

s.d.

200.000 reis

Escrivão dos defuntos e ausentes

s.d.

20.000 rs.

100.000 reis

Tesoureiro dos defuntos e ausentes

50.000 rs. (6 %)

s.d.

250.000 reis

Provedor da fazenda e juiz d’alfândega

48.000 rs (2 %)

s.d.

Sem dados

Escrivão da fazenda e almoxarife de alfândega

48.000 rs

s.d.

S. d.

Almoxarife

48.000 rs.

s.d.

S. d.

Capitão

100.000 rs.

s.d.

s.d.

Almoxarife

50.000 rs.

s.d.

s.d.

s.d.

200.000 reis.

Capitania do Rio Grande

Escrivão do almoxarifado e fazenda

40.000 rs.

Capitania de Pernambuco (de Duarte Coelho de Albuquerque) Provedor do selo

s.d.

142.000 rs.

s. d.

Almoxarife

s.d.

40.000 rs. (?)

s.d.

Escrivão da fazenda

s.d.

244.400 rs.

s.d.

Escrivão da Alfândega e almoxarifado

s.d.

550.000 rs.

s.d.

Juiz do peso do pau brasil

s.d.

140.000 rs.

s.d.

Porteiro da alfândega

s.d.

118.000 rs.

s.d.

Escrivão das execuções e da vara

s.d.

50.000 rs.

s.d.

Meirinho da Alfândega

s.d.

70.000 rs.

s.d.

36

visita, residência, venalidade

Capitania de Itamaracá (de Isabel de Lima) Donatário

160.000 rs. (10 %)

Provedor da fazenda

32.000 rs.

s.d.

Almoxarife

48.000 rs.

Não

400.000 reis Sem valia.

Escrivão da fazenda

32.000 rs.

s.d.

250.000 reis

Porteiro da alfândega

3.660 rs.

s.d.

s.d.

Capitania dos Ilhéus (de Francisco de Sá) Donatário

20.000 rs.

s.d.

s.d.

Provedor da fazenda

6.000 rs.(3 %)

s.d.

s.d. (sem valia)

Almoxarife

6.000 rs. (3 %)

s.d.

s.d. (sem valia)

Escrivão da fazenda

6.000 rs. (3 %)

Meirinho do mar

s.d. (sem valia)

1.400 rs.

s.d.

s.d. (sem valia)

10.000 (10 %)

s.d.

s.d.

Capitania de Porto Seguro (do Duque de Aveiro) Donatário Provedor da fazenda

3.000 rs. (3 %)

s.d.

s.d.(sem valia)

Almoxarife

3.000 rs. (3 %)

s.d.

s.d. (sem valia)

Escrivão da fazenda

3.000 rs. (3 %)

s.d.

s.d. (sem valia)

1.400 rs.

s.d.

s.d. (sem valia)

Meirinho do mar

Capitania do Espírito Santo (de Francisco de Aguiar) Donatário

102.000 rs. (10 %)

Provedor e juiz da Alfândega

30.600 rs. (3 %)

20.000 rs.

500.000 reis (em vida)

Escrivão da fazenda, alfândega e Almoxarifado

20.400 rs. (2 %)

20.000 rs.

400.000 reis

30.600 (3 %)

s.d.

100.000 reis

21.400 rs. (10 %)

s.d.

s.d.

5.000 rs.

10.000 rs.

s. d. (sem valia)

7.000 rs.

15.000 rs.

s. d. (sem valia)

20.000 rs.

s.d.

s.d. (sem valia)

s.d.

s. d. (sem valia)

Almoxarife

Capitania de São Vicente (de Lope de Sousa) Donatário Provedor da Fazenda e juiz da alfândega Escrivão da fazenda e almoxarifado Almoxarife Porteiro

2.000 rs.

37

Redes comerciais cristãs novas no Brasil durante o reinado de Filipe III

Ana Hutz1

“[...] Esta Junta no tiene noticia de la cantidad de dinero con que la gente de la nanacionservio a Vuestra Magestad por el perdon general, ny lo que se ha cobrado, ni en que se ha despendido [...]”2

O presente artigo tem por objetivo expor brevemente algumas reflexões sobre a relação entre dois temas bastante distintos, embora conexos: os cristãos novos portugueses e o reinado de Filipe III, bem como os efeitos

1

Doutoranda em História Econômica pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Agradeço ao departamento e a CAPES/CNPq pelo auxílio financeiro concedido.

2

Trecho de carta datada de 1607 da Junta de Fazenda de Portugal ao rei Filipe III, solicitando esclarecimentos sobre o dinheiro pago pelos cristãos novos. Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias provinciales, libro 1466, fol. 147 (foi mantida a grafia do documento).

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

dessa relação e sua repercussão no Brasil. A premissa a que nos propomos parte do entendimento de que o reinado de Filipe III é singular para a compreensão do processo histórico que permeou a denominada União Ibérica, e particularmente especial para a história dos cristãos novos. É comum atribuir-se ao valido de Filipe IV, o conde-duque de Olivares, a tentativa parcialmente bem-sucedida de priorizar os cristãos novos portugueses, sob o entendimento de que esses eram fundamentais para a saúde financeira da Coroa espanhola. Há estudos, entretanto, demonstrando que essa preocupação era anterior a Filipe IV, tendo sido o duque de Lerma, favorito de Filipe III, o responsável por buscar parte da solução dos problemas financeiros da Coroa no auxílio dos cristãos novos, o que serviria de referência para o conde-duque nos anos subsequentes.3 No que diz respeito aos cristãos novos, trata-se de um aspecto marcante de sua atuação econômica: a organização em redes de comércio. Redes de comércio são, usualmente, caracterizadas como a maneira de se comercializar em escala global entre os séculos XV e XVII. De modo geral, as redes ibéricas eram compostas por diferentes membros de uma mesma família que, dispersos ao longo do globo, atuavam como agentes comerciais, representantes ou mesmo feitores do comerciante principal, frequentemente estabelecido nos grandes centros, tais como Lisboa ou Sevilha. Embora o foco principal de análise explorado neste artigo esteja relacionado às redes comerciais estabelecidas pelos cristãos novos portugueses em fins do século XVI e início do XVII, esse modelo de atuação também pode ser observado em outras localidades importantes da Europa, formado por diferentes grupos de atuação. Cite-se, por exemplo, as empresas italianas do século XIV, que tinham sucursais espalhadas por todo o continente e que eram encabeçadas por parentes próximos dos sócios principais.4

3

CARRASCO VÁZQUEZ, Jesús. El relevante papel económico de los conversos portugueses en la privanza del Duque de Lerma (1600-1606). Évora, 2005. Comunicação apresentada no XXV Encontro da APHE.

4

LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média. Trad. Orlando Cardoso. Lisboa: Gradiva, 1982. 40

redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

A atuação mercantil dos cristãos novos portugueses é comumente citada como um excelente exemplo de rede comercial. O sucesso dessa atuação seria perceptível, inclusive, em razão de muitos cristãos novos terem se utilizado das redes comerciais como eficiente mecanismo de proteção da perseguição inquisitorial promovida por Portugal e Espanha junto a suas famílias e bens. Noutro aspecto, vale observar ainda que a temática das redes comerciais é tão profícua, quanto polêmica, não se esgotando com facilidade e há controvérsias que aqui só deixamos indicadas. Existem estudos de caso que demonstram a necessidade das redes de comércio se manterem no âmbito da família ao ponto de se criar parentesco onde antes não havia e estudos que mostram que, muitas vezes, os laços das redes são dados de maneira puramente profissional, como se pode perceber quando se observa a presença de cristãos velhos em redes tipicamente de cristãos novos.5 Esse segundo grupo de interpretação salienta as estratégias de diversificação dos agentes, as quais serviriam para minorar os riscos sobre o capital do mercador, além de possibilitar o aumento do grau de competitividade entre os agentes, reduzindo seus custos.

A especificidade de Filipe III Quando se considera os estereótipos do fim do século XVI e início do XVII, bem como a interpretação de alguns historiadores,6 Filipe III

5

Um bom exemplo para o primeiro tipo de estudo é o trabalho de COSTA, Maria Manuel Ferraz Torrão de Oliveira. Tráfico de escravos entre a costa da Guiné e a América espanhola: articulação dos impérios ultramarinos ibéricos num espaço atlântico (1466-1595). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1999, p. 30-35. Para o segundo tipo de interpretação ver STRUM, Daniel. Entre os embargos e a Inquisição: cristãos-novos e “framenguos” na rota do açúcar. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 26, jul. 2011, São Paulo. Anais... [S.l.]: [s.n.], 2011.

6

Por exemplo John H. Elliott e F. C. Spooner. 41

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

pode ser considerado como a antítese de seu pai, Filipe II. Enquanto esse último tem sido qualificado ora como um rei extremamente duro, malévolo, capaz de sacrificar seu próprio filho (D. Carlos), ora como um rei efetivamente comprometido com seu governo, a ponto de não ter deixado seus secretários e ministros tornarem-se demasiadamente atuantes; Filipe III, diferentemente do pai, é comumente associado à figura de um rei débil que não governava de fato, mas que, em realidade, era governado por um valido oportunista e corrupto. Contudo, o que se observa em estudos mais aprofundados sobre o assunto7 é que essas avaliações excessivamente estereotipadas e simplistas não seriam suficientes para a adequada compreensão acerca da complexidade histórica do período analisado, tampouco para que se compreenda que o governo de Filipe III, embora apresente importantes continuidades quando se compara ao governo de Filipe II, tem igualmente marcadas diferenças e especificidades. Esses dois aspectos são fundamentais quando se trata de entender e situar alguns temas específicos, como é o caso do tema dos cristãos novos portugueses. Quando Filipe II assumiu o trono em 1556, a situação que encontrou foi bem diversa da situação enfrentada por seu pai, Carlos V. O mundo europeu vivia as tensões da Reforma e da Contrarreforma. Espanha – Castela em particular – era um importante ator no violento processo de repressão às chamadas heresias religiosas da época.8 Do ponto de vista social, a limpeza de sangue passa a ser um elemento a mais de distinção entre os vários segmentos da sociedade.9 7

FEROS, Antonio. El Duque de Lerma: realeza y privanza en la España de Felipe III. Madrid: Marcial Pons, 2002.

8

R. B. Wernham caracteriza o período que compreende 1559 e 1610 como um período extremamente brutal e intolerante, sobretudo no que diz respeito à religião. Cf. WERNHAM, R. B. Introduction. e SPOONER, F. C. The Economy of Europe 1559-1609. Ambos artigos em: WERNHAM, R. B. (Ed.). The New Cambridge Modern History – v. III: “The Counter-Reformation and Price Revolution 1559-1610”. London: Cambridge University Press, 1968, p. 1-13 e p. 14-43, respectivamente.

9

Toma-se como ponto de partida para a adoção dos estatutos de limpeza de sangue o Estatuto da Catedral de Toledo de 1547. Até então a assimilação de 42

redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

Com a União das Coroas em 1580, surge um novo problema associado à questão sociorreligiosa em Castela: a penetração do elemento cristão novo português, geralmente via comércio. Se de um lado a consequente ampliação do comércio pôde, em alguns casos, ser extremamente bem-vinda, de outro lado sofria a resistência do próprio imaginário espanhol que se filiava à ideia de que os cristãos novos portugueses eram seguidores da lei de Moisés.10 A penetração dos comerciantes portugueses tendia a agradar, sobretudo, à própria Coroa, já que suas dificuldades financeiras lhe ensinaram a ver com bons olhos a capacidade geradora de riqueza que essa ampliação comercial trazia. Se a cada um desses aspectos tomados individualmente – religioso e social ou econômico e financeiro – parecia corresponder um comportamento perfeitamente harmonizado com os interesses de seus representantes – já que do ponto de vista religioso, procurava-se defender a fé católica e, do ponto de vista da administração da Coroa, procurava-se defender a sanidade financeira do Estado –; por outro lado, a ação conjunta dessas esferas de atuação promovia constantes contradições, cujas tensões ultrapassavam muito o espaço castelhano ou mesmo ibérico. Tal contradição manteve-se e foi acirrada durante o reinado de Filipe III, a partir de 1598. Herdeiro de uma Monarquia, que em termos de extensão e poderio militar representava a maior potência do mundo:11 seu território se estendia pela península ibérica, pela Itália espanhola, por parte do norte da África, pelos Países Baixos, parte da França e pelo Novo judeus convertidos, isto é, cristãos novos, criara pouca discriminação por parte dos cristãos velhos para aqueles que estavam efetivamente convertidos. Descendentes de judeus estavam presentes nas cortes dos Reis Católicos e de Carlos V e outros tantos tinham cargos eclesiásticos de peso. 10

Em realidade, havia mesmo uma sinonímia entre português e judeu. Como se todo português fosse cristão novo e como se todo cristão novo fosse judeu. Cf. MONTEIRO, Yara Nogueira. A presença portuguesa no Peru em fins do século XVI e princípios do XVII. São Paulo, 1980. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

11

ELLIOTT, John H. España y su mundo (1500-1700). Madrid: Taurus, 2007, p. 151. 43

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Mundo, inclusive o Brasil, e herdeiro de uma enorme estrutura burocrática que objetivava dar suporte à administração de todo esse território, Filipe III herda também um Estado com grandes fontes de recursos, mas que acabara de passar por uma bancarrota financeira. Some-se a isso o fato de que seu vasto território era constantemente ameaçado, e protegê-lo representava uma tarefa para a qual eram necessários vultosos recursos. Não surpreende que uma nova bancarrota se fizesse sentir já em 1607. A ascensão de Filipe III provocou, logo de início, uma série de incertezas em sua Corte, pelas prováveis mudanças que ela poderia acarretar nos atores envolvidos no Poder. Esse temor se confirmou, pois tão logo falece Filipe II, seu filho demonstrou, inicialmente através de gestos simbólicos, em seguida, pela nomeação concreta de um novo conselheiro de Estado,12 que haveria um novo favorito real: o duque de Lerma. Vale assinalar, na linha de nossas considerações iniciais sobre Filipe II e Filipe III, que o tratamento historiográfico em torno do reinado de Filipe III e do favoritismo do duque de Lerma tem sido marcadamente interpretado como um momento de enfraquecimento do poder real, de corrupção sem limites por parte dos ministros reais, de consequente crise financeira e de perda de territórios.13 Embora a questão do enriquecimento pessoal dos ministros de Filipe III pareça ser um fato inconteste, seria extremamente exagerado e simplista afirmar que ela constituiria razão suficiente para justificar as inúmeras crises de seu governo ou, então, para ser considerada como a grande característica de seu reinado. O historiador Antonio Feros, por exemplo, que se dedicou a analisar com profundidade a privanza do duque de Lerma, conclui que o enfraquecimento do poder real era somente aparente e que, de outro modo, a nomeação de um favorito estava totalmente de acordo com a cultura e prática da época e correspondia às expectativas de seus súditos.14 Para compreendermos qual o alcance e o significado da relação estabelecida entre o duque de Lerma e os cristãos novos, é necessário 12

FEROS, Antonio, op. cit., p. 110-111.

13

Ver SPOONER, F. C., op. cit., p. 14-43.

14

FEROS, Antonio, op. cit., p. 473. 44

redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

relembrarmos a situação financeira da Monarquia espanhola em princípios do reinado de Filipe III. Estima-se que havia um déficit de, ao menos, 1,6 milhões de ducados em 1598, e que todas as rendas da Coroa estavam hipotecadas.15 Enquanto a Fazenda espanhola experimentava toda a sorte de problemas, os cristãos novos portugueses, inicialmente ávidos pela possibilidade de comércio que a União das Coroas lhes poderia em teoria proporcionar, continuavam receosos diante das dificuldades em manter negócios num período em que, a qualquer momento, poderiam ver seus bens confiscados pela ação da Inquisição. Diante dessa situação, alguns comerciantes lisboetas tentaram, por algumas vezes, a obtenção de um Perdão Geral que os protegesse do Santo Ofício. Uma dessas tentativas obteve relativo sucesso, embora efêmero, como de costume. Trata-se do Perdão Geral de 1605, concedido depois de uma negociação iniciada em 1598. Representar ao conjunto dos cristãos novos não era, evidentemente, uma tarefa fácil. Os procuradores foram trocados por diversas vezes: Martín Álvarez de Castro foi o primeiro (negociou entre 1598 e 1600); seguido por Rodrigo de Andrade e Jorge Rodrigues Solís (negociaram entre 1600 e 1603); Gerónimo Castaño (negociou entre 1603 e 1604) e Afonso Gomes (negociou no ano de 1604). Do lado de Filipe III, durante a maior parte do tempo, a negociação se deu com Pedro Franqueza, homem de absoluta confiança do duque de Lerma.16 Após o fim das negociações do Perdão Geral, ficou ainda mais claro o problema da falta de representatividade dos cristãos novos, decorrente da ausência de homogeneidade em posições políticas e no próprio comportamento do mesmo. Essa variedade de posições, aliás, é uma questão recorrente nas preocupações de quem estuda os cristãos novos. Nesse caso em especial, houve desde aqueles que disseram não ter o dever de pagar por serem tão somente bisnetos de cristãos novos, como aqueles 15

CARRASCO VÁZQUEZ, Jesús, op. cit.

16

PULIDO SERRANO, Juan I. Las negociaciones con los cristianos nuevos en tiempos de Felipe III a la luz de algunos documentos inéditos (1598-1607). Sefarad, v. 66, n. 2, p. 347, jul.-dic. 2006. 45

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

que protestaram no próprio Santo Ofício para não ter que pagar pelo Perdão Geral.17 Cerca de cinquenta cristãos novos, homens de negócio, chegaram a se organizar para solicitar ao rei essa isenção, já que não se consideravam representados pelos procuradores que foram à Castela.18 Da parte dos cristãos velhos, o descontentamento foi ainda mais forte. Muitos receavam perder a preferência por cargos antes destinados somente àqueles que cumprissem os estatutos de limpeza de sangue, fato este que demonstrava haver o grande desconhecimento sobre o real significado do Perdão Geral e o que ele realmente era capaz de conceder.19 Não surpreende o fato de que quando o Perdão fosse consumado, cristãos velhos se lançassem às ruas para se queixar da soltura dos cristãos novos dos cárceres da Inquisição.20 Nada obstante a não representatividade da totalidade dos cristãos novos, e mesmo diante da recusa da população cristã velha quanto à obtenção do Perdão Geral, este acabou sendo concedido por Filipe III, apesar de seus efeitos terem durado pouco tempo. Essa concessão, entretanto, foi fruto de uma árdua tarefa dos atores envolvidos, como bem o demonstra o tempo demandado para as negociações (1598-1605). Já mencionamos aqueles que se opuseram ao Perdão Geral depois de sua concessão. Ocorre que, durante a negociação, a maior oposição foi formada pela Igreja portuguesa e pelos governadores do reino português. Os argumentos de recusa foram os mesmos por um longo período: os cristãos novos teriam continuado a judaizar desde o último perdão; os cristãos novos queriam que o perdão se estendesse aos que ainda estavam presos (confirmando a ideia de que eram todos judaizantes); ou ainda, a alegação de que aqueles que fugiram de Portugal seguiram praticando abertamente o judaísmo. Alardeavam ainda o sentimento de que: mais

17

AGS,

18

PULIDO SERRANO, Juan I., op. cit., p. 367.

Secretarias provinciales, libro 1466, fol. 223 et seq.

19

LÓPEZ-SALAZAR CODES, Ana Isabel. Inquisición portuguesa y monarquía hispánica en tiempos del perdón general de 1605. Lisboa: CIDEHUS, 2010.

20

AGS,

Secretarias provinciales, libro 1491, fol. 122 v et seq. 46

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do que a morte, os cristãos novos temiam a perda dos bens, de modo que a perseguição era um incentivo a não judaizar.21 Apesar desses argumentos, os motivos de Filipe III para conceder o Perdão falaram mais alto. Afinal, em troca dele, os cristãos novos pagariam 1.700.000 ducados à Coroa, o que representava uma soma bastante razoável para a época. Se essa foi uma questão na qual Filipe III claramente demonstra uma atitude particular em relação aos cristãos novos, há ainda outro problema que merece a nossa atenção. Recentemente, alguns historiadores – e aqui destacamos a contribuição de Leonor Freire Costa – têm se debruçado em analisar quais as razões pelas quais durante o reinado de Filipe III ocorre uma profunda renovação nas estruturas mercantis das redes de comércio que envolviam a Monarquia espanhola em uma escala global. Para a referida autora, uma das singularidades do período de Filipe III tem sua origem na crise que a economia brasileira vivia na época. A crise do açúcar seria provocada, na visão de Leonor Freire Costa, não por um problema relacionado à questão da oferta, como normalmente se afirma, mas devido a uma desvalorização de preços que encarecia o preço dos produtos essenciais e contraía a demanda dos gêneros supérfluos, tais como o açúcar.22 Essa crise seria responsável por renovar o grupo mercantil do açúcar. Pouco a pouco, os cristãos novos portugueses passaram a penetrar no comércio asiático. A partir de 1610, não se encontra mais registros nos contratos de viagem para o Brasil daqueles mesmos comerciantes que antes figuravam em ambos os mercados.23 Vale observar, ainda, que esse é também o período em que se verifica um aumento considerável do comércio dos cristãos novos por21

LÓPEZ-SALAZAR CODES, Ana Isabel, op. cit., p. 21-22.

22

COSTA, Leonor Freire. El imperio portugués: estamentos y grupos mercantiles. In: MARTÍNEZ MILLÁN, José; VISCEGLIA, María Antonietta (Dir.). La monarquía de Felipe III: Los reinos. Madrid: Fundación Mapfre, 2007-2008, p. 865. v. IV.

23

Ibidem, p. 865. 47

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

tugueses para as Índias de Castela. Isso só foi possível com a permissão da Coroa para que os cristãos novos “navegassem escravos africanos” para lá. Essa permissão relaciona-se com a necessidade de mão de obra, mas, sobretudo, com o rendimento que esse tráfico trazia não só para os comerciantes, bem como para a Coroa que concedia os asientos. James Boyajian afirma que boa parte do capital desses comerciantes foi adquirido mediante a operação de engenhos de açúcar na Bahia e em Pernambuco.24 Se muitos negociantes deixaram de comercializar açúcar brasileiro e passaram a ingressar na Carreira das Índias, Boyajian salienta ainda que outras importantes famílias, antes responsáveis pelos negócios na Ásia, passaram a se retirar desses contratos e a investir suas fortunas em títulos “seguros” do governo, isto é, tornaram-se banqueiros de Filipe III. Essa espécie de “dança das cadeiras” na estrutura mercantil da época mereceria ser melhor explorada por um estudo que analisasse o conjunto desses capitais. A par dessa breve reflexão sobre o complexo pano de fundo político e econômico em que se desenvolve a história dos cristãos novos portugueses, inclusive daqueles que viveram no Brasil, concluiu-se que, mais do que um pano de fundo, o panorama descrito influenciou as políticas sobre os cristãos novos e foi, ao mesmo tempo, influenciado pela atuação dos mesmos.

O Brasil cristão novo Para compreender a presença cristã nova na América portuguesa, ou seja, no Brasil em formação, é necessário relembrar que, sobretudo após a conversão forçada dos judeus na Espanha, grande parte deles se estabeleceu no reino vizinho, Portugal. Poucos anos depois foi a vez de Portugal promulgar um decreto de conversão forçada, mas dessa vez dificultando bastante a saída dessa população. Mesmo assim, muitos

24

BOYAJIAN, James. Portuguese bankers at the court of Spain 1626-1640. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1983. 48

redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

já procuraram sair de Portugal durante a própria conversão, enquanto outros o fizeram no período que se seguiu a ela. Os judeus e os cristãos novos, ou seja, os judeus já convertidos, que conseguiram sair de Portugal, emigraram para diversas localidades durante os séculos XV e XVI. Entre elas, podemos citar a Itália, França, os Países Baixos e diversas cidades do Império Turco. Muitos emigrariam para as Américas. Tão logo assistimos ao efetivo início da colonização na América portuguesa, o elemento cristão novo já é noticiado pela documentação da época. Há uma questão que permeia toda história do povo judeu (e que aqui também se faz presente) que diz respeito justamente ao fato de que os judeus, e por consequência, os cristãos novos, seriam, em sua totalidade, a população mais rica em qualquer país onde viviam.25 Essa discussão pode ser transplantada para os estudos sobre o Brasil, pois vários trabalhos discutem o grande capital trazido por cristãos novos que desembarcavam nessas terras. A partir do que investigamos até o momento, podemos perceber que os cristãos novos figuram entre a elite de algumas capitanias, como Pernambuco e Bahia, mas que, quando comparados à totalidade de cristãos novos que aqui se estabeleceram, eles não foram numericamente representativos, como não o foram em Portugal. Com relação à elite de um modo geral, que naquele momento significava basicamente os donos de engenhos, verificamos a presença de cristãos novos portugueses de importância em Portugal, como os Fernandes d’Elvas, os Évora e os Veiga.26 Um dos cinco primeiros engenhos do Brasil era de propriedade do cristão novo Diogo Fernandes.27 É com a ajuda da “arraia miúda” dos cristãos novos, entretanto, que o território será, pouco a pouco, povoado. Os cristãos novos, vindo de

25

Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de José Gonçalves Salvador. Em especial, vale citar: Os magnatas do tráfico negreiro (séculos XVI e XVII). São Paulo: Pioneira; Edusp, 1981.

26

COSTA, Leonor Freire, op. cit., p. 866.

27

PORTO, Costa. Os cinco primeiros engenhos pernambucanos. Revista do Museu do Açúcar, Recife, n. 2, 1969. 49

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

maneira legal ou ilegal para o Brasil, ou ainda, vindo como degredados,28 iriam exercer uma série de atividades ligadas tanto ao açúcar como ao pequeno e médio comércio. O que facilitava a situação para os cristãos novos era, sem dúvida, o fato de que, ao desembarcarem, já tinham, muitas vezes, parentes instalados, de modo que a mobilidade social entre esse grupo tendia a ser relativamente elevada. A razão pela qual os cristãos novos vinham para o Brasil é igualmente um assunto relevante. Além dos negócios que se poderiam abrir na Colônia, a própria distância de Portugal e Espanha era um fator que trazia algum conforto no que diz respeito à perseguição inquisitorial. Isso não significa dizer que todo cristão novo que vinha para o Brasil o fizesse com o objetivo de judaizar. É importante lembrar que a Inquisição perseguia cristãos novos acusados de judaísmo, não necessariamente judaizantes de fato. Significa, portanto, que na colônia eles estavam, em teoria, mais protegidos das garras inquisitoriais. Se as práticas judaizantes foram mais intensas no Brasil do que em Portugal, acreditamos que só um estudo sistemático – ainda por fazer – dos processos nos dois lugares poderia comprovar ou refutar essa conclusão. Em outras palavras, parece-nos que a vinda para o Brasil teria se dado por um conjunto de fatores e é bastante provável que o interesse comercial, que também inclui proteger os bens de um eventual confisco da Inquisição, fosse o mais significativo. No que toca à integração dos cristãos novos na população da colônia, é bastante profícuo que recorramos à pioneira análise da historiadora Anita Novinsky. Os cristãos novos eram socialmente equiparados ao negro pelos Estatutos de Pureza de Sangue. Sua situação, de fato, foi muito diferente da do negro, pois o cristão novo, embora tivesse a mesma “impureza de sangue” e, logo, nunca pudesse aceder a determinados cargos e funções, jamais fora submetido às agruras de uma condição escrava. De outro modo, o escravo liberto teria, em tese, igual estatuto que o cristão novo. Contudo, a realidade seria bem outra: ao ter a cor de 28

SILVA, Janaína Guimarães da Fonseca e. Modos de pensar, maneiras de viver: Cristãos-novos em Pernambuco no século XVI. Recife, 2007. 255 f. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. 50

redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

pele negra, diferente, portanto, dos cristãos velhos, esse homem teria que se contentar com uma liberdade limitada e excludente, sem nunca alcançar privilégios que somente um cristão velho poderia alcançar. Com os cristãos novos, a situação era outra, e alguns entre eles puderam, efetivamente, alcançar alguns desses privilégios, vindo a figurar na classe dominante da sociedade colonial, a despeito do Estatuto.29 Uma análise comparativa com o elemento negro na sociedade mereceria ser melhor aprofundada. O objetivo aqui é somente assinalar que o Estatuto de Pureza de Sangue tinha, de fato, exceções, e elas eram perfeitamente aplicadas aos cristãos novos quando convinha. Para corroborar essa ideia, vale lembrar a grande obra de Evaldo Cabral de Mello, O nome e o sangue, que trata justamente da tentativa – bem-sucedida – de se escamotear as origens cristãs novas de importantes famílias da oligarquia pernambucana.30 Com relação aos cristãos novos que se estabeleceram em Pernambuco, convém assinalar que o período aqui descrito é anterior à ocupação holandesa no Brasil. Esse alerta é importante, pois, durante o período holandês, “verdadeiros” judeus imigrarão de Amsterdã para Pernambuco e a situação ganhará uma complexidade que ultrapassa os limites desse artigo.31 Os primeiros cristãos novos chegaram a Pernambuco por volta de 1542. Os cálculos feitos por José Antônio Gonsalves de Mello, com base nos livros da Visitação do Santo Ofício de fins do século XVI e em crônicas da época, estimam cerca de 910 cristãos novos para uma população de 7.000 pessoas em Pernambuco em 1593. Ou seja, ao final do século XVI cerca de 14% da população que vivia em Pernambuco era

29

NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 59.

30

MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

31

Uma excelente abordagem sobre o assunto nos é apresentada por VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 51

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

composta por cristãos novos.32 Trata-se de um número significativo, mas que, evidentemente, não é suficiente para que se afirme a existência de uma maioria cristã nova em Pernambuco.

A família Milão O caso da família Milão nos parece importante nessa representação dos cristãos novos portugueses que viviam no Brasil e que, como já se salientou anteriormente, mantinham relações de negócio em escala mundial. Para situar essa família, é necessário voltar as atenções para um dos mais conhecidos mercadores cristãos novos que passou pelo Brasil no final do século XVI: João Nunes Correia. A história de João Nunes Correia foi narrada diversas vezes e tem sido frequentemente retomada e reinterpretada.33 Nascido no bispado de Lamego, Portugal (não se sabe ao certo se em 1543 ou 1547), João Nunes vivia em Olinda desde 1582 e trabalhava diretamente para o irmão Henrique Nunes Correia, que vivia em Lisboa e era um importante negociante e dono do capital com o qual João Nunes teria iniciado seus negócios.34 Em Olinda também havia outros parentes de João Nunes:

32

MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1996, p. 21-23.

33

São diversos os trabalhos sobre o comerciante. Pode-se citar desde o estudo de Sonia Siqueira (O comerciante João Nunes. In: SIMPÓSIO NACIONAL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA, 5, 1971, Campinas, São Paulo. Anais... [s.n.t.]) e o próprio trabalho supracitado de José Antônio Gonsalves de Mello, até os recentes trabalhos de Angelo Adriano Faria de Assis (João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inquisição no nordeste quinhentista. São Paulo: Alameda, 2011) e de Silvia Carvalho Ricardo (As redes mercantis no final do século XVI e a figura do mercador João Nunes Correia. São Paulo, 2006. 153 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo).

34

MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit., p. 65. 52

redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

seu irmão Diogo Nunes Correia e seu primo, Henrique. É possível que tenham vindo ao Brasil fugidos da Inquisição de Lisboa. No entanto, o fato de seu irmão ter permanecido por lá e dele próprio ser representante dos negócios do irmão no Brasil sugere que a principal razão tenha sido aumentar o alcance dos próprios negócios.35 Os negócios da família no Brasil eram vultosos. Diogo Nunes, por exemplo, administrava dois engenhos na Paraíba, cuja propriedade dividia com o irmão Henrique. João e Diogo Nunes Correia foram ainda alguns dos financiadores da expulsão dos franceses da Paraíba.36 João Nunes tinha ainda boas relações com o governador da Bahia – D. Francisco de Souza – com quem tratava de negócios diretamente. João Nunes foi denunciado à Inquisição durante a Primeira Visitação do Santo Ofício (1591-1595), preso na Bahia em 22 de fevereiro de 1592 e enviado à Lisboa em setembro do mesmo ano. Mesmo preso, João Nunes continuou poderoso e em diversos momentos conseguiu levar adiante seus negócios. Já em Lisboa, os inquisidores consideraram que sua prisão fora precipitada e que não havia provas o bastante naquele momento para prendê-lo e mandaram-no soltar mediante um acordo (o que também ocorreu com outros presos). Quando solto, conseguiu ainda uma licença para ir a Madrid tratar de negócios de interesse do rei espanhol. Perto de outros presos que ficaram anos encarcerados, a curta passagem de João Nunes Correia no Santo Ofício tem chamado a atenção de estudiosos. Sua história não acaba por aí e inspirou outros historiadores, que se dedicaram a contá-la. Para a análise aqui proposta, vale a pena explorar alguns aspectos da vida deste comerciante, em sua conexão com outros do mundo dos conversos. Para que João Nunes fosse solto, foi necessário que se fizesse um acordo e uma fiança como garantia de liberdade do preso. Nas palavras de José Antônio Gonsalves de Mello:

35

RICARDO, Silvia Carvalho, op. cit., p. 125.

36

MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit. e RICARDO, Silvia Carvalho, op. cit. 53

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Essa escritura de fiança é importante, dado os nomes das pessoas que dela participaram. A escritura foi lavrada na casa de Rodrigo de Andrade nas proximidades da Igreja de São Mamede, na encosta do Castelo São Jorge (e não é a atual), na presença de Jerônimo Henriques, morador fora da cidade de Lisboa, em Alcântara, hipotecando aquele, com a assistência de sua mulher Ana de Milão, duas casas na rua das Mudas e mais todas as terras que tinha no termo da vila de Pombal e este a casa de sua residência com o pomar e mais dependências naquele arrebalde. Serviriam de abonadores aos dois fiadores e fiéis carcereiros Vasco Martins da Veiga, Henrique Dias Milão, Vasco Martins de Castro e Manuel Fernandes Anjo. [...] Quem eram essas pessoas que atenderam ao apelo do irmão de João Nunes? Rodrigo de Andrade, cristão novo, era descendente de um dos irmãos Rodrigues de Évora, riquíssimos homens de negócio de então e ele próprio grande proprietário em Leiria. Ana de Milão, sua mulher, era cunhada de Henrique Dias Milão (um dos abonadores), ambos cristãos novos, ela presa pela Inquisição e libertada em 1605. Tanto ela quando o marido vieram a falecer em Antuérpia, mas ela permaneceu fiel ao catolicismo até a morte em 1613, com cerca de 72 anos de idade. O cunhado veio a ser queimado aos 81 anos de idade, no auto-de-fé em Lisboa em 1609 e quatro de seus filhos e um genro viveram e comerciaram em Pernambuco [...].37

De fato, as pessoas que correm ao auxílio de João Nunes eram não só poderosos negociantes, como também importantes figuras no mundo cristão novo. Como já foi mencionado, Rodrigo de Andrade foi, ao lado de Jorge Rodrigues Solis, um dos procuradores dos cristãos novos que, em 1600, saíram de Lisboa e foram a Madrid, chamados pelo mais antigo representante dos conversos, Martín Álvarez de Castro, a ajudar a melhorar as negociações com a Coroa, referentes a um Perdão Geral a ser concedido aos cristãos novos portugueses. Segundo a documentação da época, os dois novos procuradores eram considerados “los hombres

37

MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit., p. 60-61. 54

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de la nación e más honrados”.38 Jorge Rodrigues Solis já era um dos mais influentes homens de negócio do ultramar e, durante as negociações do Perdão Geral, lhe foi exigido que tomasse um asiento para a construção de naus às Índias. Ficou decidido que, a partir de 1602, durante nove anos, ele seria o responsável por construir sete navios por ano, enviá-los às Índias e de lá trazer pimentas e outras mercadorias orientais.39 Jorge Rodrigues Solis era sogro de um outro importante homem de negócios cristão novo, Antonio Fernandes d’Elvas, fidalgo da Casa Real portuguesa, dono de asientos de escravos para as Índias de Castela e contratador de escravos de Guiné-Cabo Verde e de Angola. Antonio Fernandes d’Elvas tinha ainda importantes negócios no Brasil, cujas dimensões ainda estão por serem estudadas. Os dois procuradores não foram muito felizes em seu intento e ainda demoraria algum tempo para que o Perdão Geral fosse concedido. Jorge Rodrigues Solis saiu de Madrid com muito trabalho para fazer com os asientos e Rodrigo de Andrade, por sua vez, parece ter sofrido uma forte retaliação por parte da Inquisição portuguesa, pois sua esposa, Ana de Milão, foi encarcerada por heresia e judaísmo. Rodrigo de Andrade buscaria auxílio junto ao rei Filipe III, para que intercedesse perante o Papa em busca da soltura de sua esposa. Sabe-se que a intervenção de Rodrigo de Andrade para soltar Ana de Milão gerou problemas e discussões sobre a jurisdição do Santo Ofício, do Papa e do rei no que tange ao problema dos conversos. Entretanto, há documentação que atesta que a própria Ana de Milão havia buscado sua defesa, talvez por um caminho diferente do caminho de seu marido, isto é, sem se utilizar do Perdão Geral.

– Câmara de Castilla, leg. 2796. no. 9, fol. 137r. apud PULIDO SERRANO, op. cit., p. 345-376.

38

AGS

39

PULIDO SERRANO, op. cit., p. 358. Em documentação do AGS, vimos que Jorge Rodrigues Solis precisou postergar o início desse contrato em um ano. Cf. AGS, Secretarias provinciales – Portugal, libro 1466. 55

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Para o Bispo Vice Rey a 10 de mayo de 1607. Em conformidade do que me lembrais por carta vossa de 11 do mes passado tenho mandado escrever a dom Joseh de Mello, que de minha parte falle ao sancto Padre, e lhe faça particular instancia para que se não deffira ao requerimento que Rodrigo de Andrade tem sobre se retirar do Juizoordinario da Inquisição dessa cidade de Lisboa o processo que se fez contra Ana de Milão sua molher por a culpa de eresia e judaismo porque foy presa, antes a mande remeter ao dittoJuizo para nelle ser julgado, não querendo a ditta Ana de Milão usar do Perdão geral: e tendo por certo que sua (Santidade) o averaassy por bem, e a resposta que vier ver mandareyavissar para o saberes. Escrita em Valladolid.40

O já mencionado cunhado de Ana de Milão, Henrique Dias Milão (1528-1609), foi o patriarca dessa importante família de comerciantes, que veio a ter negócios em Olinda durante o fim do século XVI e início do século XVII. Henrique Dias Milão teve nove filhos com sua mulher (a irmã de Ana de Milão) Guiomar Gomes: Manuel Cardoso Milão; Gomes Rodrigues Milão; Fernão Lopes Milão; Antônio Dias Milão, Paulo de Milão, Ana de Milão (possivelmente em homenagem à sua cunhada), Beatriz Henriques Milão, Leonor Henriques e Isabel de Santiago.41 Desses nove filhos, quatro viriam a residir em Pernambuco. Manuel Cardoso Milão comandava os negócios de exportação de açúcar de seu pai diretamente de Pernambuco, tendo sido o primeiro dos filhos a chegar ao Brasil, em data incerta. Sua casa era frequentada por importantes cristãos novos da sociedade pernambucana, entre eles o mítico David Senor Coronel (1570-1650). Outros irmãos, Antônio Dias Milão e Paulo de Milão, também viveram aqui a serviço do pai. A irmã de Manuel, Ana de Milão, vivia em Olinda, embora provavelmente não

40

AGS,

41

VALADARES, Paulo. A Besta Esfolada. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2012.

Secretarias provinciales – Portugal, libro 1491, fol. 166 verso.

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a serviço do pai, mas sim acompanhando seu marido, Manuel Nunes de Matos.42 A presença dessa família no Brasil é conhecida porque grande parte dela, incluindo alguns criados e agregados, foi processada pela Inquisição na mesma época em que Ana de Milão (a primeira). Esse processo levou o patriarca da família, Henrique Dias Milão, com 81 anos, à fogueira (o que, a despeito do imaginário sobre a Inquisição, era bastante incomum). Além disso, levou ao menos dois de seus filhos a buscar refúgio em outros países; levou também à fuga do filho de Ana de Milão com Rodrigo de Andrade, Francisco de Andrade, e após a soltura de Ana de Milão, ela mesma e seu marido foram viver em Amsterdã.43 Assim, a rede comercial intercontinental que envolvia os Dias Milão e Rodrigo de Andrade foi profundamente abalada e teve seu centro principal desviado dos reinos ibéricos.

Considerações finais Nesse artigo, procuramos relacionar a temática das redes comerciais de cristãos novos portugueses com o reinado de Filipe III (especialmente, sua decadência financeira). Dessa relação, emergem uma série de mudanças na política relacionada aos cristãos novos e as tensões geradas por essas mudanças. Nesse contexto, buscamos demonstrar que uma das singularidades do reinado de Filipe III está justamente relacionada à questão dos cristãos novos. Entre elas, salientamos a concessão do Perdão Geral de 1605 e a modificação na estrutura mercantil de todo o império. No que tange à temática do Brasil, destacamos que, embora a inserção do elemento cristão novo na colônia tivesse se dado em todos os segmentos da população livre, alguns elementos formaram redes de comércio fundamentais para a manutenção dos negócios da época em escala global. Entre essas redes, podemos salientar a poderosa rede da 42

MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit., p. 16-17.

43

Ibidem, p. 60-61. 57

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

família Milão, ligada ao bastante conhecido comerciante João Nunes Correia. Se, do ponto de vista econômico, essa família era poderosa e tinha negócios no mundo todo, é importante mencionar que isso não bastou para impedir a família de ser perseguida e sua rede de comércio significativamente abalada pela Inquisição de Lisboa, no início do século XVII. Algumas perguntas, no entanto, seguem presentes para investigação e reflexão futuras. Entre elas: teria sido a perseguição em cascata à família Milão uma retaliação pela participação de Rodrigo de Andrade na negociação do Perdão Geral? Quais as consequências do frequente desmantelamento de redes comerciais para o próprio desenvolvimento econômico de Portugal e da Espanha? Como podemos interpretá-las? Quais são as conexões entre o sentido econômico das perseguições e o sentido religioso das mesmas?

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A Provedoria-mor: fiscalidade e poder no Brasil colonial1

Pedro Puntoni2

Com a criação, em 1534, de um sistema das capitanias hereditárias, inicia-se a colonização das Américas por Portugal. As doações foram estabelecidas por meio de cartas de doação e forais. Este arranjo político, esta construção jurídica inovadora, estabelecia os marcos de um projeto de colonização – pensado como uma oportunidade para efetiva ocupação, povoamento e valorização daquele vasto território. O domínio régio, legitimado por bulas e tratados, só estaria consolidado com a presença efetiva dos súditos e a promoção dos meios para a conversão (e conquista) dos povos autóctones. Segundo estes dois diplomas, repetidos na prática para cada gesto de doação, ficava estabelecido que (1) seus titulares seriam feitos capitães ou governadores (o capitão-governador poderia nomear um lugar-tenente para tomar conta de sua donataria, que receberia o título de capitão-mor); (2) as doações seriam feitas em

1

Este texto foi publicado como o capítulo 3 de meu livro O Estado do Brasil: poder e política na Bahia Colonial, 1548-1700. São Paulo: Editora Alameda, 2013, p. 111-145.

2

Professor de História da Universidade de São Paulo, pesquisador do CNPq e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

termos hereditários, seriam indivisíveis e estariam dispensadas da Lei Mental (1434); (3) as terras estariam isentas das jurisdições de correição e alçada, conferindo ao capitão-governador senhorio sobre as justiças da terra, com competência para nomear ouvidor, meirinho, escrivães, tabeliães e vetar os juízes ordinários; (4) os donatários receberiam poderes para fundarem vilas e povoados; (5) os donatários seriam responsáveis para defesa da terra; e, por fim, (6) os donatários poderiam (e deveriam) conceder terras em conformidade com o regime das sesmarias. As terras, repartidas seguindo o que estabeleciam as Ordenações, seriam doadas a “quaisquer pessoas de qualquer qualidade e condição que sejam, contanto que sejam cristãos”. Mais ainda, seus titulares as receberiam “livremente, sem foro nem direito algum”, devendo pagar à Ordem do Mestrado de Nosso Senhor Jesus Cristo somente o dízimo.3 Imposto de natureza eclesiástica, o dízimo era na América direito da Monarquia.4 Como as terras no ultramar estavam sob o padroado régio, cabia ao rei a cobrança do dízimo, como recompensa e mecanismo dos esforços para a expansão da fé. Assim, como lembrava Costa Porto, pagava-se menos sobre o solo do que sobre a produção – “os frutos que da dita terra houverem” – ônus menor sobre o morador na qualidade de proprietário, do que de cristão, como tal obrigado a concorrer para o programa da “propagação da fé”.5

A conquista da terra, a implantação destes mecanismos institucionais implicavam que outros tributos e direitos seriam então criados. 3

FORAL da capitania da Bahia, 26 ago. 1534. In: CHORÃO, Maria José Mexia Bigotte (Ed.). Doações e forais das capitanias do Brasil: 1534-1536. Lisboa: IAN/ TT, 1999, p. 53-57.

4

Em razão do que estabelecia a Bula Praeclara cahrissimi, de 4 de janeiro de 1551. Na ocasião, culminando um longo processo de crescente sujeição ao poder régio, o Papa Júlio III concedeu a D. João III, e seus sucessores in perpetuum, a união dos mestrados das três ordens militares à Coroa de Portugal.

5

PORTO, José da Costa. O sistema sesmarial no Brasil. Brasília: Editora UNB, 1979, p. 96. 60

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Em linhas gerais, o sistema fiscal estabelecido era totalmente controlado pelo donatário e previa uma partilha da arrecadação com a coroa. Cabia à Fazenda do Rei: 1) o dízimo eclesiástico (10% dos produtos da terra); 2) o dízimo (chamado, mais comumente, de dízima) dos produtos exportados e importados (10% de direitos alfandegários); 3) o quinto dos metais e pedras preciosas (20% sobre a riqueza do subsolo); 4) o estanco do pau-brasil (monopólio desta mercadoria); e 5) o dízimo dos pescados (10% do que era pescado). O donatário receberia: 1) uma pensão anual de 500.000 réis; 2) a vintena da dízima do pescado; 3) redízima (dos tributos recolhidos – dízima e quinto – isto é, 1%); 4) vintena sobre a exportação do pau-brasil (20% do valor exportado); 5) arrendamento das terras reservadas; 6) direitos banais (moendas d’água, sal e engenhos de açúcar); 7) rendimentos das alcaidarias-mor; direitos de passagem; 8) isenção do pagamento de certo número de escravos.6 Os forais estabeleciam que o capitão e os moradores poderiam livremente comerciar com outros portos do reino e conquistas, respeitando, contudo, a cobrança devida às alfândegas (seguindo os direitos reais).7 A dízima (10% das mercadorias) era recolhida seja no embarque no reino ou no desembarque no Brasil. Do mesmo modo, as mercadorias vendidas para fora do reino deveriam pagar a dízima no Brasil, antes de serem embarcadas. No caso de se destinarem ao mercado metropolitano, estavam (neste momento) isentas deste imposto. Os forais estabeleciam, também, que as “pessoas estrangeiras” deveriam sempre (independente do destino das mercadorias ou de pagamentos anteriores em alfândegas

6

FORAL da capitania da Bahia, 26 ago. 1534. In: CHORÃO, Maria José Mexia Bigotte (Ed.), op. cit., p. 53-57. Para uma tentativa de quantificação destes direitos dos donatários, veja o trabalho de GALLO, Alberto. Aventuras y desventuras del gobierno señorial en Brasil. In: CARMAGNANI, Marcello; HERNÁNDEZ CHÁVEZ, Alicia; ROMANO, Ruggiero (Coord.). Para una historia de América. México: El Colegio de México; FCE, 1999, p. 236 et seq. v. II: Los nudos.

7

ALMEIDA, Cândido Mendes. (Ed.). Codigo Philippino, ou Ordenações e leis do Reino de Portugal (1603). Rio de Janeiro: Instituto Philomathico, 1870, livro III, título XXVI, p. 13. 61

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

portuguesas) pagar a décima parte no desembarque ou no embarque. Sobre estes ganhos, cabia ao capitão (como falamos) a décima parte. Nestes anos iniciais, como se vê, era de responsabilidade do capitão (ou de seu loco-tenente) controlar, fiscalizar e contabilizar todo o sistema fiscal, inclusive a parte da Coroa. Esta, na verdade, podia contar com a presença de um oficial particular, o feitor e almoxarife. No caso de Pernambuco, temos notícia da nomeação (ainda em 1534!) de Vasco Fernandes para “arrecadar, feitorizar e aproveitar” a parte que cabia ao rei. Este oficial, uma vez reconhecido e empossado por Duarte Coelho receberia uma “comissão” de 3% de tudo que arrecadasse para a Fazenda do rei.8 Havia, por outro lado, plena liberdade de comércio entre as capitanias – isento que estava de quaisquer gravames. Tal situação seria alterada com a criação do Governo Geral, em 1548, e com a introdução da provedoria-mor na América. O novo ofício de “governador geral da dita capitania e das outras capitanias e terras da costa do dito Brasil” estorvaria a jurisdição dos capitães donatários. Afinal, o sistema das capitanias criara espaços em parte isentos da interferência da Coroa, isto é, de seus corregedores e de “outras algumas justiças”. Este modelo pouco funcionou – com algumas exceções, é claro – mas foi sobreposto por poder que, apesar de não anular o espaço de autoridade dos donatários, substitui-los-ia em algumas funções, notadamente fiscais e fazendárias.9 Ao mesmo tempo que foi passado regimento do primeiro governador, Tomé de Souza, foram instituídas as funções e poderes de um ouvidor geral, Pero Borges, de um provedor-mor, Antonio Cardoso de Barros, e de um alcaide-mor, Diogo Moniz Barreto. Assim, além do que estabelecia o regimento de Tomé de Souza, outros dois diplomas criaram e fixaram, conexo ao sistema do Governo Geral, um regime fiscal e fazendário peculiar. O Regimento do Provedor-mor Antonio Cardoso de Barros (Lisboa, 17 dez. 1548) e o Regimento dos Provedores da Fazenda

8

DH,

9

COUTO, Jorge. A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p. 231-232.

v. 35, p. 35-37; CHANCELARIA-mor, D. João III. ANTT, livro 7, fls. 164.

62

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

(Lisboa, 17 dez. 1548) articulam-se com as normas existentes nos quadros das capitanias e propõem mecanismos muito precisos de gestão de um sistema de arrecadação e controle dos direitos da Fazenda real. Os dois regimentos, feitos no mesmo dia, apresentam de forma entrelaçada as suas disposições.10 Nesses princípios e nessas distâncias, a Fazenda se via naturalmente esbulhada. D. João III, diante do desenvolvimento da produção do açúcar (ainda que pouco significativo em comparação com as rendas do Oriente), considerava a possibilidade de seus rendimentos crescerem na América (“daqui em diante espero que com a ajuda de Nosso Senhor irão em muito crescimento”). Neste sentido, e como (nas suas palavras) as suas “rendas e direitos das ditas terras, até aqui, não foram arrecadas como cumpriam, por não haverem quem provesse nelas”, resolveu por nomear um provedor-mor de sua Fazenda. A escolha recaiu sobre o cavaleiro fidalgo Antonio Cardoso de Barros, então donatário da capitania na costa norte do Brasil, no que seria o Ceará-Piauí. É da opinião de Varnhagen que para indenizar seus pequenos (e malsucedidos) esforços para ocupar estas terras, que a Coroa lhe fez mercê deste novo ofício.11 De partida, interessante é notar que tal ofício não corresponde diretamente a nenhum existente no Reino. Em Portugal, os provedores conhecem principalmente dos testamentos, das albergarias, capelas e confrarias. Segundo Melo Freire, com a introdução do Direito Canônico em Portugal, isto é, das Decretais, surgiram os privilégios de causas pias, isenções dos clérigos, distinção entre bens eclesiásticos e seculares e outras coisas de igual teor, em número tão elevado, que para as resolver os nossos reis viram-se na necessidade de criar, em diversas épocas, magistrados

10

REGIMENTO do provedor-mor do Brasil, Antônio Cardoso de Barros, Almerim, 17 dez. 1548 e REGIMENTO dos provedores da Fazenda do Brasil, Almerim, 17 dez. 1548. In: MENDONÇA, M. C. de (Ed.). Raízes da formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB; CFC, 1972, p. 91-98; 99-116. t. 1.

11

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 197-198. t. I. 63

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

especiais, que defendessem e cuidassem de seus direitos e bens, que julgassem em matéria de testamentos e causas pias, que decidissem dos pupilos, órfãos, viúvas, capelas e confrarias, que julgassem em assuntos náuticos e mercantis e de questões de guerra em terra e mar.12

Assim, no Reino, os provedores deveriam cuidar sobretudo das “fazendas dos ausentes”, tal como definido nas “Leis Extravagantes” (1569)13 ou nas Ordenações Filipinas (1603).14 Com o tempo, mostra-nos António Manuel Hespanha, os provedores, entre funções ligadas à administração dos interesses dos ausentes e da fazenda, assim como de capelas e morgados, assumiram o controle da arrecadação das sisas, impostos recolhidos no nível local, e das terças, que era a parte dos rendimentos das câmaras que cabia ao governo central, sendo normalmente utilizado no reforço das defesas das vilas e cidades.15 Com a expansão ultramarina, assistimos a uma redefinição do papel deste provedor, quando posto nas margens da economia mercantil do Império. Da “fazenda dos ausentes”, o provedor passa cada vez mais a cuidar da fazenda real. Na ausência deste e, sobretudo, atento aos rendimentos resultantes da atividade comercial e produtiva, quando conexa ao comércio ultramarino. O caso da Ilha da Madeira é particularmente interessante. A implantação de um aparelho administrativo responsável pela percepção das rendas no contexto de uma colonização baseada na produção agrícola

12

FREIRE, Pascoal José de Melo. Instituições de Direito Civil Português. Boletim do Ministério da Justiça, n. 161-162, livro I, p. 114, 1966.

13

LIÃO, Duarte Nunes do. Leis Extravagantes Collegidas e relatadas pelo licenciado Duarte Nunez do mandado do muito alto & poderoso rei Dom Sebastiam, nosso senhor. Lisboa: António Gonçalvez, 1569, p. 38-43, título XV “Do provedor das capelas” e título XVI “Dos provedores das comarcas”.

14

ALMEIDA, Cândido Mendes. (Ed.), op. cit., livro I, título 62, p. 116 et seq.

15

Ibidem; HESPANHA, António Manoel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político – Portugal séculos XVI-XVIII. Lisboa: Pedro Ferreira Artes Gráficas, 1986, p. 206 et seq. 64

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

revela um caminho que será depois, em parte, seguido pelo Brasil. Como nos demostra o estudo de Susana Münch Miranda, em um primeiro momento, a crescente integração da produção da Ilha nos circuitos comerciais europeus, levou à necessidade do “estabelecimento de estruturas aduaneiras orientadas especificamente para a interpretação dos reditos fiscais provenientes do comércio marítimo”.16 Em 1477, são criadas as alfândegas de Funchal e Machico, subordinadas ao contador – oficial responsável pelo exercício dos direitos fiscais do donatário (no caso o Duque D. Manuel, feito rei em 1495 e, três anos depois, integrando os direitos senhoriais à Coroa).17 Em 1508, o cargo de contador será ampliado com o acrescentamento do ofício de provedor. O novo ofício, intitulado de Provedoria da Fazenda, reunia essas competências. Ampliadas, talvez, pelo papel cada vez mais importante da alfândega, da contabilidade e controle do seu movimento e dos seus livros e, sobretudo, do arrendamento dos direitos – cada vez menos percebidos diretamente. Hespanha havia considerado que tal aproximação entre a contadoria e a provedoria era fenômeno corrente no reino, sempre no nível das comarcas.18 Contudo, o que observamos no Ultramar parece ser algo diverso. O estudo da institucionalização do aparelho fiscal conexo ao comércio no Reino pode revelar mais da natureza destes mecanismos do que a comparação com os espaços senhoriais e interiores do continente. Em 1516, o Regimento dos Vedores da Fazenda indicava o caminho de centralização a autonomização da estrutura fiscal da Monarquia, pelo menos na dimensão que efetivamente interessava: o comércio ultramarino. No caso do Brasil, o Regimento de Antonio Cardoso de Barros inovava ao criar um sistema centralizado e articulado de controle dos direitos 16

MIRANDA, Susana Münch. A Fazenda Real na Ilha da Madeira: segunda metade do século XVI. Funchal: Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração – Cham (FCSH-UNL), 1994, p. 36.

17

Ver também VERÍSSIMO, Nelson. Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 2000, p. 279-294.

18

HESPANHA, António Manoel, As vésperas do Leviathan, op. cit. 65

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

reais e da economia no espaço colonial. Se “a experiência é madre das coisas”, não só as técnicas de fabrico do açúcar seriam para cá trazidas (e aperfeiçoadas): também os mecanismos de controle dos direitos régios, questão impositiva para a manutenção do aparelho de dominação que se criava gravitando em torno do Governador Geral na Bahia. Era esperado que Antonio Cardoso, assim que chegasse à Bahia, se informasse da presença de outros oficiais da Fazenda real em cada capitania do Brasil para realizar um perfeito diagnóstico da situação das rendas e direitos existentes, o que era cobrado e de que forma. Deveria estabelecer na Bahia uma alfândega, perto do mar, estabelecendo uma “casa” para que se faça o “negócio de minha fazenda e contos”, onde possa haver livros (contabilidade). O provedor-mor é feito, pelo Regimento, juiz dos assuntos referentes à Fazenda, tendo jurisdição local até 10$000 réis e respondendo pelas apelações e agravos de outras capitanias no que superasse esse valor. Assim que o Governador fosse visitar as capitanias do Brasil, o provedor-mor deveria acompanhá-lo para bem ordenar o trabalho dos provedores, almoxarifes e demais oficiais da Fazenda que houvessem. Na falta desses, por seu conselho, deveria o Governador nomear os necessários, criando assim, em cada capitania uma representação da provedoria. Da mesma forma, em cada capitania, deveria existir uma alfândega e uma casa de contos, para que o provedor-mor pudesse ordenar todos os direitos régios em “ramos apartados” e, então, os arrendados conseguirem melhores resultados. Para normalizar as provedorias nas capitanias, na mesma ocasião, foi escrito o Regimento para os Provedores e Oficiais. Como dizíamos, em cada capitania deveria agora existir uma Casa dos Contos, em cujos livros seriam transcritos os direitos dos donatários e (re)escritos os direitos da Coroa. Certamente, não foi como efetivamente se estabeleceram as jurisdições fazendárias, ainda incertas e sobrepostas – com provedores de algumas capitanias assumindo o fisco de outras, nas mais desprovidas de oficiais dedicados.19 De toda forma, 19

MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação – fiscalismo, economia e sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). São Paulo, 2005. Tese (Doutorado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 64 et seq. 66

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

a provedoria deve ser entendida não como parte das estruturas políticas da capitania, mas como ramificação do sistema centralizado que tinha a cabeça em Salvador e, em última instância, deveria estar sintonizado com ou ainda responder aos comandos do Governo Geral. Com o crescimento da produção do açúcar em Pernambuco e a expectativa de implantação de mais engenhos na Bahia, com o estímulo previsto pela presença do Governo Geral, a Coroa procurou estabelecer um sistema bem ordenado para poder fazer fluir à Fazenda os ganhos fiscais esperados. Ao mesmo tempo, era importante oferecer ao sistema econômico um espaço de arbitragem dos conflitos e de integração da classe produtora (leia-se senhores de engenho e lavradores). Neste momento inicial, para além do estanco do pau-brasil, duas são as principais fontes de renda esperadas: (1) os dízimos dos frutos da terra e (2) as dízimas das mercadorias. O dízimo era o principal imposto da terra. Imaginado desde o início da colonização, fora estabelecido na América ex ante da montagem do sistema produtivo… A responsabilidade pela sua cobrança era do donatário em cada capitania. Na teoria, com o estabelecimento do Governo Geral, passava-se a responsabilidade para um provedor de cada capitania, supervisionado pelo provedor-mor; nomeado pelo Governador do Brasil. Na correta opinião de Ângelo Carrara, em trabalho recente e essencial para o estudo da fiscalidade colonial, o dízimo foi “a principal fonte de rendas do Estado do Brasil até pelo menos 1700, quando a mineração começou a alterar profundamente as estruturas fiscais da colônia”.20 A cobrança, contudo, foi logo arrendada a particulares e resolvia-se num esquema de ganhos compartilhados com a elite da açucarocracia.21 O me20

CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVII. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2009, p. 39. v. 1.

21

“O arrendamento dos dízimos era um negócio ao qual participavam muitas pessoas porque o contrato, uma vez arrematado, era retalhado e vendido. Vendido uma primeira vez ‘por atacado’ pelo próprio contratador aos chamados ‘ramistas’. Revendidos depois pelos ramistas, e enfim novamente vendido ‘ao varejo’ nas paróquias, em porções minúsculas. Estas porções eram mesmo minúsculas: a vigésima ou a trigésima parte dos dízimos de 67

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

canismo de arrecadação dos dízimos já estava estabelecido no Regimento do Governador Geral. De acordo com este, lavrador algum, nem pessoa outra que fizer açúcares nas ditas terras, não tirará por si, nem por outrem, fora da casa de purgar o dito açúcar, sem primeiro ser alealdado e pago o dízimo dele, sob pena de o perder.22

O Regimento dos Provedores, no capítulo 52, estabelece que, “para que o açúcar que nas ditas terras do Brasil se houver de fazer, seja da bondade e perfeição que deve ser”, haja em cada capitania um alealdador a) escolhido pelo provedor-mor; b) na falta deste, pelo provedor da capitania com o capitão e a câmara. Este alealdador, para cada arroba que “alealdar e se carregar para fora” ganharia um real à custa do produtor. Era recomendado, naturalmente, que não se alealdasse açúcar “senão sendo da bondade e perfeição que deve”.23 Até 1628, os contratos para a arrecadação do dízimo foram feitos de forma centralizada, para todo o Estado do Brasil. Sendo assim, cabia ao arrematados recolher o imposto em todas as capitanias. Um alvará de 3 de junho de 1630 modificava o sistema e determinava que o dízimo fosse arrecadado em cada capita-

uma paróquia, o que significa menos de 1% dos dízimos de uma capitania. Em suma, em cada capitania eram centenas as pessoas que compravam os dízimos”. GALLO, Alberto. Racionalidade fiscal e ordem colonial. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL ECONOMIA E COLONIZAÇÃO NA DIMENSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS, 30 set. 2008, São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2013. 22

Veja o capítulo 32. Assim, era obrigação do “lavrador ou pessoa outra que tiver açúcar na dita casa do purgar o tiver feito e acabado” comunicar à Provedoria que seu açúcar fora “já alealdado, de que mostrará certidão de alealdador, e lhe requererá que vá receber o dízimo”. Se o almoxarife, ou quem for, demorar mais de três dias da requisição, pagará vinte cruzados (8$000) de multa, metade para o fabricante e outra “para uma obra pia que o provedor ordenar”. Se reincidisse no atraso, outros vinte cruzados. Uma vez separado o dízimo, deveria ser levado para onde fosse encaixotado… MENDONÇA, M. C. de (Ed.), op. cit., p. 108. t. 1.

23

Ibidem, p. 117-116. t. 1. 68

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

nia – sob a supervisão da provedoria-mor.24 O papel do alealdador, com o desenvolvimento do sistema econômico, passou, cada vez mais, a ser exercido por outros indivíduos em sintonia com o arrendatário da cobrança dos dízimos. Segundo o dicionário de Bluteau, o termo, corrente nos séculos anteriores, não mais se usava no começo do século XVIII.25 Antonil [Andreoni], no seu Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas, explica que o caixeiro, trabalhador especializado e presente em cada engenho, era quem deveria pesar o açúcar e reparti-lo com fidelidade entre os lavradores e o senhor do engenho. Em acordo com o contratante, era ele também que deveria tirar “o dízimo que se deve a Deus”.26 Como notou Koster, no início do século XIX, os impostos pesam “sempre sobre as classes baixas e não alcançam quem os poderia suportar desafogadamente”. O contrato do dízimo associava os interesses da elite da açucarocracia com o dos arrendatários, uma vez que a cobrança (na ponta da produção, no “chão da fábrica”, era sempre em espécie) que ficava por conta dos senhores de engenho (isentos, por sua vez) resultava em participação nos ganhos. Como notava o senhor de engenho Koster, no caso do dízimo, todas as taxas são negociadas ao melhor preço. Divididas em distritos extensos são contratadas a preço razoável mas os proprietários adquirem estas taxas em menores porções, que ainda são retalhadas para outras pessoas e, como há sempre ganho em 24

ALVARÁ de 3 jun. 1628, op. cit., p. 39. v. 1.

DH,

15, 293; veja também CARRARA, Ângelo Alves.

25

“Lealdarse” era um termo do foral da alfândega, cujo regimento feito por D. João III, estabelecia que “todo homem que mandasse trazer alguma mercadoria para a sua casa, o fosse dizer primeiro ao provedor e oficiais, e estes lhe dessem juramento, se aquilo que pedia se havia de gastar aquele ano em sua casa, e sendo o que pedia conforme a razão, lho concedessem e se escrevesse em certos livros. Este negócio chamam ir lealdar” BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, p. 60. v. 4.

26

ANTONIL, André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas, etc. Lisboa: Officina real Deslandesiana, 1711, p. 21-22. Livro I, VIII: Do caixeiro do engenho. 69

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

cada transferência, o povo deve ser, necessariamente, explorado para que esses homens possam satisfazer seus superiores e enriquecer também. O sistema é por si mau e a partilha do espólio o torna ainda mais vexatório.27

Quase três séculos entre a implantação deste sistema e as queixas do engenheiro. Mas esse lamento já se via nos primeiros anos da colonização. Duarte Coelho, em carta ao rei de 1546, explicava que na cobrança dos dízimos os “senhores de engenho queriam esfolar o povo”, afinal “a negra cobiça do mundo é tanta, que turva o juízo aos homens”.28 É possível imaginar que a arrecadação dos dízimos era atividade de fato lucrativa. Temos, contudo, muito poucos registros que nos permitam corretamente avaliar o funcionamento desta cobrança. Há, no códice do Livro primeiro do governo do Brasil, guardado no Itamaraty, um “[Papel em] que se mostra o quanto rende assim os dízimos dele [Estado do Brasil] como os direitos que as suas alfândegas se lhe [ao rei] pagam”,29 cuja datação incerta pode ser estimada para 1627. Neste documento, é feita uma avaliação da produção (que era exportada) da economia colonial nas capitanias do Brasil – açúcar, sobretudo – e dos impostos arrecadados. O quadro, ao lado, sumariza estas informações. Como se percebe, o açúcar corresponde a 92% da produção colonial que era exportada. O dízimo, neste ano, foi contratado por 44:000$00 réis, o que corresponde a apenas 3,1% do valor total do que era exportado. Já o valor efetivamente arrecadado – segundo o documento – foi de 83:750$000 réis, ou seja, 5,9% do valor total. O contrato tinha resultado em um ganho de quase o valor pago. Entretanto, a maior parte da arrecadação era obtida na Alfândega 27

KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2002 (1816), p. 106-107. v. 1.

28

CARTA de Duarte Coelho ao rei, 15 abr. 1546, MELLO, José Antonio Gonsalves de; ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de (Ed.). Cartas de Duarte Coelho a El Rei. Recife: Massangana, 1997, p. 103.

29

“[Papel em] que se mostra o quanto rende assim os dízimos dello [Estado do Brasil] como os direitos que as suas alfândegas se lhe [ao rei] pagam”… (c. 1627), SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch. Livro primeiro do governo do Brasil, 1607-1633. Lisboa: CNDP, 2001, fol. 27-31v. 70

Açúcar: estimativa da produção e da carga fiscal no Estado do Brasil, c. 1627

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

que, de maneira geral, não configurava rendas consignadas diretamente ao Estado do Brasil. Tal como veremos, os custos mais diretos da máquina burocrática eram cobertos pelos dízimos e, em período posterior à expulsão dos holandeses, também pelas câmaras municipais – sobretudo a da Bahia e suas anexas – que arcaram com grande parte das despesas para o sustento das tropas. Os recursos arrecadados pela alfândega têm destinos outros – por vezes vinculados ao pagamento de algum direito ou tença localmente –, mas ainda falta uma pesquisa mais sistemática que esclareça este aspecto. Vale lembrar que outros tantos seriam cobrados no reino, cobrados sobre a circulação destas mercadorias, cujos preços ainda seriam majorados no mercado europeu. No dizer de Brandônio, os rendimentos dos dízimos eram suficientes para sustentar as estruturas políticas e militares do governo da América. No começo do século XVII, o que se recebia dos frutos do açúcar permitia que o rei não gastasse nem despendesse “na sustentação do Estado um só real de sua casa, porquanto o rendimento dos dízimos, que se colhem na própria terra, basta para sua sustentação”.30 Passados poucos anos, o autor de um papel em “que se mostra o quanto rende assim os dízimos dele [estado do Brasil] como os direitos que as suas alfândegas se lhe [ao rei] pagam”… (posterior a 1624), incluso no códice do Itamaraty, conhecido como Livro primeiro do governo do Brasil (1607-1633), esclarece que, com os rendimentos do dízimo (que montavam, então, a 110 mil cruzados = 44.000$000), [...] sustenta Vossa Majestade o clero, governadores, padres da Companhia, provedor-mor e mais ministros da justiça e fazenda, e sustentava o presídio que havia na dita capitania antes de ser tomada dos holandeses, e ainda paga nelas tenças e capitães entretenidos por serviços que fizeram neste reino.31

30

BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). Recife: Editora UFPE, 1966, p. 74.

31

SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch, Livro primeiro do governo do Brasil, 1607-1633, op. cit., fol. 27. 72

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Podemos ver isso com detalhes no governo de Gaspar de Sousa. Quando foi nomeado, o governador geral recebeu um regimento (31 de agosto de 1612) no qual Filipe III mandara que, “para o bom governo do dito Estado”, fosse ordenado um livro no qual assentassem todas as capitanias dele, declarando as que são da Coroa e as que são de donatários, como as fortalezas e fortes que cada um tem e assim a artilharia que nelas há, com a declaração necessária do número das peças, peso e nome de cada uma, as armas, munições, que nelas ou nos meus armazéns houvesse, gente que tem de ordenança, oficiais e ministros, com declaração de ordenados, soldos e despesas ordinárias que se fazem em cada uma das ditas capitanias, e assim do que cada uma delas rende para a minha fazenda, pondo-se ao dito Livro título de Livro do Estado.

Este livro extraordinário foi efetivamente preparado no ano de 1612 com o título de Livro que dá razão do Estado do Brasil.32 Na época, eram sete as capitanias que importavam, cada qual com seus engenhos de açúcar, rendendo dízimos e suportando gastos com os ofícios remunerados. O quadro da página seguinte mostra como a maior parte da produção concentrava-se em Pernambuco (99 engenhos) e na Bahia (50 engenhos), assim como a arrecadação: 42,65% do dízimo anual do Estado do Brasil provinha da Bahia e 40,34% de Pernambuco. Os dados, sumarizados na tabela, ainda mostram como havia uma política financeira que permitia a sustentação de um aparato militar e burocrático em todas as sete capitanias, mesmo no caso de serem deficitárias. Porto Seguro e Rio Grande eram grandemente deficitárias. A primeira, gastando com ofícios mais de cinco vezes o que conseguia arrecadar, com um único engenho moendo. A segunda, gastando uma enorme soma (3:561$960 réis) e nada arrecadando. A maior parte des32

MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil [1612]. Edição crítica, com introdução e notas de Hélio Vianna. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955. O regimento de Gaspar de Sousa está publicado em MENDONÇA, Marcos Carneiro de, op. cit., p. 413-436. t. 1. 73

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

te valor estava comprometida com os gastos militares: 92 postos que consumiam, anualmente, 3:183$600 réis. A Bahia, sede do Governo Geral, quase que empatava gastos e receitas. Mas, somando com as capitanias do Centro do Brasil, suas anexas, temos um déficit de 722$33 réis por ano. As capitanias do Norte, Pernambuco e suas anexas (com exceção do Rio Grande), por outro lado, garantiam bons resultados para a Fazenda Real. No final, havia um ganho fiscal de 7:611$940 réis por ano. No total, 76% do que era arrecadado com os dízimos serviam para cobrir a folha de pagamento do clero, do governo, da fazenda e dos militares. No quadro abaixo, podemos ter uma visão disto. Note que não estão incluídos os 3:879$000 réis que eram gastos anualmente com direitos dos donatários (redízima) e outras tenças e pagamentos a particulares. O saldo, em 1612, foi positivo para a Coroa: 3:010$610 réis. Quadro financeiro do Estado do Brasil em 1612 capitania

qtde. de engenhos

arrecadação anual dos dízimos

qtde. de ofícios remunerados

gastos anuais com os ofícios

razão gastos / arrecadação

Porto Seguro

1

80$000

16

442$520

Ilhéus

5

260$000

8

124$050

48%

Bahia

50

18:356$000

305

19:107$840

104%

1

580$000

5

323$920

56%

Pernambuco

99

17:360$000

137

10:311$500

59%

Itamaracá

10

2:400$000

9

432$840

18%

Paraíba

12

4:000$000

39

1:841$760

46%

98

3:561$960

 

43:036$000

617

32:533$390

76%

Sergipe d’El Rei

Rio Grande TOTAL

1 179

553%

NOTA: Os valores estão em réis. FONTE: MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil [1612]. Edição crítica, com introdução e notas de Hélio Vianna. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955. Foram corrigidos alguns erros nas totalizações, a partir das indicações de Hélio Vianna na colação que fez nos códices do IHGB e da Biblioteca do Porto. A região de São Francisco, apesar de não ser capitania, foi contabilizada por Moreno. Incluimos seus dados nos da capitania da Bahia.

A Coroa, desde o início da colonização, criou subsídios e isenções para estimular a implantação da economia açucareira. O principal deles 74

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

foi, sem dúvida alguma, a associação do instituto da doação das terras em sesmarias com a doação patrimonial das capitanias hereditárias. Desde 1534, as terras das capitanias do Brasil, de acordo com os sucessivos forais, deveriam ser (em grande parte, com exceção das que poderiam restar com o donatário) doadas livremente, isentas de foro, aos particulares interessados na colonização, isto é, na produção. A única condicionante, como definia a lei de 1375, era a obrigação de colocar a terra a produzir. Como mostrou Costa Porto, em Portugal medieval, o instituto da sesmaria fixava que “a cultura do solo é obrigatória tendo em vista o interesse coletivo – o abastecimento”.33 Assim manteve-se, no reino, as sesmarias. Nas Ordenações Filipinas, de 1603, fica claro que as sesmarias são propriamente as dadas de terras, casais ou pardieiros, que foram, ou são de alguns senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são. As quais terras e os bens assim danificados e destruídos podem e devem ser dados de sesmarias pelos sesmeiros que para isso forem ordenados.

Em nota à edição que preparou das Ordenações em 1870, o jurista Cândido Mendes de Almeida comenta: “Como se vê, as dadas das terras virgens do Brasil não se poderia chamar de sesmarias, mas como se achavam desaproveitadas, assim foram também denominadas”. A provisão de 5 dezembro de 1653 declarava que as datas de sesmaria não se reputavam bens da Coroa, embora estivessem lançadas nos livros dos Próprios.34 Desde a chegada do Governo Geral, a Coroa procurou estimular a implantação de engenhos de açúcar. Um dos mecanismos utilizados foram as isenções fiscais – sobretudo do dízimo, uma vez que as terras 33

PORTO, José da Costa, op. cit., 1979, p. 34.

34

ALMEIDA, Cândido Mendes de (Ed.), op. cit., livro IV, título 43, p. 822-826. Sobre as sesmarias no ultramar, veja o capítulo 6 do excelente livro de SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil: antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenómeno atlântico. Lisboa: CNCDP, 2001, p. 281-325. Veja também RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, 1530-1630. São Paulo: Alameda, 2009, p. 184 et seq. 75

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

doadas em sesmarias estavam livres de foros. O alvará de 21 de julho de 1551 estabelecia que toda a pessoa que a sua custa e despesa se for a esta cidade e povoações para nelas viver e as povoar e aproveitar esta ano de [15]51 e no que virá de [15]52 e assim os que lá mandarem no dito tempo e fazer de novo engenho de açúcares ou reformar os que tinham nesta capitania da Bahia e da de Espírito Santo sejam escusos de pagarem o dízimo de suas novidades por tempo de 5 anos.35

Estes mecanismos de isenção fiscal eram exclusivos para a elite da açucarocracia (leia-se, para os senhores de engenho) que detinha o papel de liderança na implantação do sistema econômico tal como projetado no regimento de Tomé de Souza – isto é, com o partilhamento das atividades agrícolas e manufatureiras (entre lavradores, dedicados apenas ao plantio da cana, e senhores de engenho) –, de modo a garantir uma expansão mais rápida da produção com menos ônus para o capital. Uma provisão de 16 de março de 1570, no tempo do governador Mem de Sá, alargou a isenção para dez anos, beneficiando “as pessoas que no Brasil fizerem de novo engenhos de açúcares ou refizerem os que lá estavam feitos”. A norma esclarecia que, para evitar “conluios e enganos em prejuízo de meus direitos”, el-Rei ordenava que assim que “for de todo acabado e estiver moente e corrente”, os engenhos fossem assentados em “um livro que para isso haverá em cada capitania numerado e assinado” pelo provedor.36 Desta maneira, certidões poderiam ser passadas atestando que o açúcar que chegasse na alfândega provinha de um engenho ainda em exercício da isenção.

35

INSTITUTO DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL. Documentos para a História do Açúcar. Rio de Janeiro: Serviço Especial de Documentação Histórica, 1954, p. 111-112. v. 3.

36

PROVISÃO de 16 mar. 1570, Translado autêntico do Livro Dourado da Relação da Bahia, BPE, cod. CXV / 2-3, fls. 352v-353v. Veja também FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Terra, Trabalho e Poder. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 193. 76

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Na distância das Américas, com a conivência dos agentes da Coroa, as fraudes, contudo, prosperavam. Diante da falta de pagamentos e dos ardis e conluios resultantes do aproveitamento das inúmeras isenções existentes, a Coroa procura melhor organizar a cobrança do imposto sobre a produção. Em outubro de 1570, o rei fez uma lei para punir os autores de “contratos simulados, conluios e encobrimento de fazendas que se fazem em fraude do Fisco e minha Câmara Real”. Em janeiro de 1573, pedia que tal provisão fosse enviada aos ouvidores.37 Em 17 de setembro de 1577, é publicado o Regimento dos Dízimos do Brasil que busca ampliar os poderes dos provedores nesta cobrança e melhor ordenar a burocracia fiscal. Quando Gaspar de Sousa foi nomeado governador, em 1612, o rei lhe passou uma carta em que informava que no “contrato que hora ultimamente se fez dos dízimos daquele estado, houve nele conluio e dano de minha fazenda”, tendo o provedor-mor hesitado em assiná-lo. Tendo anulado o contrato, o rei pedia uma investigação para saber com nesta matéria se procedeu e se ouve dar ou receberem algumas peitas ou outro respeito, assim no arrendamento como no mais procedimento, e se teve o contratador algumas inteligências com alguma ministros da Relação por razão do qual se lhe deram os despachos tão favoráveis e extraordinários.

O rei pedia que, tão logo chegasse, Gaspar de Sousa tirasse informação de “tudo isto” e, ouvidas algumas testemunhas, mandasse um relatório para o Conselho das Índias.38 Passados dois anos, um alvará impunha um maior controle na concessão destas isenções por dez anos. Em 1613, a rápida difusão de uma mudança nas moendas da cana do açúcar havia contribuído para o aumento da produtividade dos engenhos. A moenda “de palitos”, com

37

TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da Relação da Bahia, op. cit., fol. 77v.

38

CARTA do rei para Gaspar de Sousa, 9 out. 1612. In: SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch (Ed.) Cartas para Álvaro de Sousa e Gaspar de Sousa (1540-1627). Lisboa: CNCDP, 2001, p. 155. 77

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

três cilindros verticais, vinha a substituir aquelas de “prensagem” ou de dois eixos horizontais.39 Como o rei era agora informado de que alguns meses a esta parte os moradores do dito estado inventaram novo modo de moer açúcares, a que chamaram engenho, com tão pouca fábrica e despesa, [...] e se nestes tais engenhos se houvesse de estender a liberdade de vinte e dez por cento ficaria minha fazenda de todo sem direitos; e pois as liberdades que concederam foi por respeito da muita fábrica e despesa que faziam os moradores desta parte com os engenhos que têm, e ora fazendo com tão pouca que não é de consideração, nem gasto, vos mando que não consintais que em nenhuma das capitanias e mais partes deste estado se registrem os trapiches por engenhos, nem deles se passe certidão alguma para se haverem de guardar nas alfândegas deste Reino como se guardam nas outras, nem tenham nome de engenhos porquanto nestes se não entendem os regimentos e provisões que sobre as ditas liberdades são [foram]

39

Nos Diálogos das Grandezas do Brasil (de Ambrósio Fernandes Brandão, publicado em Leiden no ano de 1618), acompanhamos uma conversa entre Alviano e Brandônio sobre esta novidade. Comentava este último: “Mas agora novamente se há introduzido uma nova invenção de moenda, a que chamam palitos, para a qual convém menos fábrica, e também se ajudam deles de água e de bois; e tem-se esta invenção por tão boa que tenho para mim que se extinguirão e acabarão todos os engenhos antigos, e somente se serviam desta nova traça”. Ao que respondeu Alviano: “Toda cousa que se faz com menos trabalho e despensa se deve estimar muito, e pois nesse modo dos palitos se alcança isto, não duvido que todos pretendam usar deles...”. Cf. BRANDÃO, Ambrósio Fernandes, op. cit., p. 85. A grande inovação não estava somente no melhor aproveitamento da energia moente e, portanto, do caldo da cana. A historiadora Vera Ferlini mostra, em seu estudo, que o novo sistema possibilitou a economia de dois trabalhadores no processo, em razão da maneira mais racional do repasse da cana (a cana devia sempre passar duas vezes pelos cilindros, para o melhor aproveitamento do sumo). Cf. FERLINI, Vera Lúcia Amaral, op. cit., p. 101-107, 113. A tecnologia do fabrico do açúcar foi estudada por Ruy Gama, em seu livro Engenho e Tecnologia (São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983) e pela própria Vera Ferlini no capítulo 3 de seu livro ora citado. 78

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

passadas; e o oficial que o contrário fizer perderá o seu ofício, e lhe será a mão cortada por haver cometido falsidade…40

Outras fraudes eram praticadas. No seu Inquérito à vida administrativa e econômica de Angola e do Brasil, escrito no final do século XVI, o licenciado Domingos de Abreu e Brito denunciava o uso geral em todas as capitanias do Brasil de artifícios. Senhores cuja isenção havia caducado, logo arrumavam alguma maneira de fazer passar seu açúcar sem o pagamento do dízimo – o que se faziam com o uso e costume dos donos de engenhos de venderem os tais açúcares em segredo, fazendo concerto com os tais mercadores que lhe compram os ditos açúcares e lhos dão foros [livres] de direitos.41

Em dezembro de 1613, o governador Gaspar de Sousa denunciava o mesmo tipo de fraude, que se aproveitava justamente das liberdades que haviam sido concedidas aos engenhos. A Coroa passara uma provisão, em maio de 1614, para que os trapiches (engenhos menores movidos à força animal) não fossem registrados como engenhos, isto é, passíveis da isenção.42 Para atalhar todos estes enganos, o governador havia proibido que outros açúcares que não os dos próprios senhorios do engenho fossem

40

ALVARÁ de 26 maio 1614, Lisboa, In: SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch (Ed.), Cartas para Álvaro de Sousa e Gaspar de Sousa (1540-1627), op. cit., p. 242-243. Provisão idêntica foi passada ao provedor-mor: “provisão que os trapiches de fazer açúcar se não registre por engenhos em razão de gozarem de liberdade de direitos concedidos aos engenhos de açúcares”, datada de Lisboa, 24 maio 1614. TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da Relação da Bahia, op. cit., fols. 354-355.

41

BRITO, Domingos de Abreu e. Um Inquérito à vida administrativa e econômica de Angola e do Brasil, em fins do século XVI: segundo o manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Lisboa. Ed. Alfredo de Albuquerque Felner. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1931, p. 60-61.

42

PROVISÃO que os trapiches de fazer açúcar se não registre por engenhos em razão de gozarem de liberdade dos dividendos concedidos aos Engenhos de Açúcar, Lisboa, 24 maio 1614. In: TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da Relação da Bahia, op. cit., fols. 354-355. 79

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

despachados por eles, a fim de se aproveitarem das liberdades concedidas na alfândega. Gaspar de Sousa, pelo que podemos inferir, havia criado um procedimento no qual os interessados em despachar desta forma seus açúcares deveriam apresentar as suas procurações ao governador para que este autorizasse as que lhe parecesse. O rei, contudo, na carta de 7 de agosto de 1614, contesta tal decisão e diz que nem com o “cumpra-se” do governador cabia permitir tal isenção.43 Passados menos de cinco anos, um alvará ordenava que as justificações que devem fazer os senhores de engenho para “gozar da liberdade”, isto é, não pagar o dízimo, deveriam obrigatoriamente ser feitas ao provedor-mor e não diante de “ministros a quem não pertencem” (estes assuntos).44 Com efeito, o governador, D. Luis de Sousa, havia ordenado que todos os lavradores e senhores de engenhos que “carregam açúcares de liberdade para o Reino” que viessem, ao fim do ano, declarar sua produção ao escrivão da Fazenda dos açúcares. Na ocasião, deveriam apresentar uma certidão do contratador dos dízimos do açúcar, para se conferir com a dita conta. Como não havia notícia deste acerto, o que atrasava a navegação e o comércio, o rei ordenava que se oito dias ela não aparecesse, os navios já carregados podiam partir sem o despacho da liberdade.45 Segundo Mauro, em maio de 1644, discutiu-se um projeto do antigo capitão-mor da Paraíba, João Rabello de Lima, que resultou na criação, em cada porto, de um registro de engenhos, onde estariam inscritos aqueles que possuíam isenções. Outras medidas foram tomadas e reforçadas em 1655. Os moradores que possuíam hábitos das ordens militares, e no caso do Brasil a de Cristo foi a mais comum, também reclamavam o privilégio de não pagar os

43

CARTA do rei para Gaspar de Sousa, 7 ago. 1614. In: SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch (Ed.), Cartas para Álvaro de Sousa e Gaspar de Sousa (1540-1627), op. cit., p. 244.

44

ALVARÁ sobre as justificações que se hão de fazer nos engenhos para efeito de haver de gozar de liberdade, Lisboa, 12 jan. 1619. In: TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da Relação da Bahia, BPE, cod. CXV / 2-3, fls. 355v-356v.

45

CARTA ao governador, d. Luis de Sousa, 7 jan. 1619. In: SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch, Livro primeiro do governo do Brasil, 1607-1633, op. cit., fol. 247. 80

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

dízimos. O que será seguidamente contestado pela Coroa, preocupada com os rendimentos da Fazenda.46 Como as ordens religiosas se viam igualmente na ausência deste pagamento, muitas brechas poderiam comprometer os ganhos fiscais, necessários para custear a máquina da burocracia colonial. No tempo dos Bragança, o açúcar já estabelecido como o principal produto e riqueza do império, as isenções ainda tinham lugar. Mais acentuadas pela necessidade de reconstruir a economia na saída da longa guerra contra os holandeses. Os gastos militares haviam crescido de forma extraordinária nestes anos e o custo da defesa do Brasil exigia uma nova atenção para a fiscalidade. Com efeito, um ano antes do golpe de 1o de dezembro, Filipe IV havia promulgado um novo regimento para provedor-mor do Brasil sobre as despesas das gentes de guerra.47 Com a Restauração, o aperto fiscal dos Habsburgo não seria substituído por anos melhores. Contudo, como mostrou Vera Ferlini, os senhores de engenho ganhavam algum alívio. Segundo a historiadora, a Coroa portuguesa voltou a reafirmar isenções de dízimo por dez anos, estimulando a retomada da produção, mas se acautelando do vício da proteção. Determinava ser o benefício apenas concedido uma vez a cada engenho, evitando-se a presunção que havia de, acabados os primeiros dez anos de liberdade, deixassem-nos cair, para reedificá-los e tornar a gozar a mesma liberdade. Era criado novo registro para investigar a necessidade de reformas nos engenhos, sendo os senhores obrigados a fazer os consertos necessários. A partir desta época a concessão da suspensão do pagamento do dízimo se fez com maior vigor.48

46

MAURO, Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico, 1570-1670. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 300-301. v. I.

47

REGIMENTO novo do Provedor mor sobre as despesas da Gente de Guerra & outras cousas, Lisboa, 9 maio 1639. In: TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da Relação da Bahia, BPE, cod. CXV / 2-3, fls. 325v-339.

48

FERLINI, Vera Lúcia Amaral, op. cit., p. 195; SOBRE a forma de liberdade que hão de gozar os senhores de engenho no Brasil, Lisboa, 17 dez. 1755, AHU, 81

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

A evolução dos valores arrecadados com os dízimos foi estudada por Frédéric Mauro que publicou, em seu Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670), um quadro-síntese de grande valor.49 Com algumas outras informações, é possível desenhar o gráfico a seguir. Mais recentemente, a partir de uma pesquisa exaustiva e de grande valor, Ângelo Carrara apresentou um quadro relativamente diverso – que indica um movimento decrescente no valor real, não no nominal, dos contratos do dízimo a partir da expulsão dos holandeses. Isto depois de uma folga excepcional nos anos de 1655 e 1656, em razão da retomada de Pernambuco ao sistema fiscal.50 Valores dos contratos dos dízimos na Bahia – em cruzados e em marcos de ouro (deflacionados), 1608-1698

FONTE: CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVII. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2009, p. 125-145 (anexo 1); CSS, 2. v., 1953, p. 117; DH 54, 30 e 183.

registro das provisões, cod. 92, 271v-272v. 49

MAURO, Frédéric, op. cit., p. 335-339. v. I.

50

CARRARA, Ângelo Alves, op. cit., p. 83-85. 82

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Se os dízimos eram então consumidos internamente, no sustento da máquina política e eclesiástica responsável pelo governo dos povos, outras receitas traziam ganhos importantes à Fazenda no reino. Entre estas, a mais importante, sem dúvida, era a dízima das mercadorias. Parte dos direitos reais, como definidos no título XXIV, livro segundo das Ordenações afonsinas, as rendas e direitos que se costumam pagar nos portos de mar pertencem ao rei como direitos majestáticos essenciais, na opinião dos intérpretes do direito romano. Com o desenvolvimento do comércio ultramarino e o papel central que o capital comercial desempenha na expansão da economia portuguesa, as rendas sobre a circulação das mercadorias tornam-se vitais para a sustentação do poder da Monarquia. Em um primeiro momento, e falamos aqui do século XV, foi sobre o comércio interno que a Monarquia pode assentar boa parte dos seus ganhos fiscais. Magalhães Godinho, em estudo seminal, mostrava como a generalização das sisas (então um imposto irregularmente lançado à escala da comunidade concelhia) a partir da revolução de 1383-1385 transformou-as em uma fonte assente de receita para o Estado. Mais ainda, das sisas ninguém está isento; face a este imposto existe igualdade entre todos os que estão no reino [...] trata-se de um imposto de origem concelhia que passa a ser o primeiro imposto geral, definidor do Estado.

Como as sisas são um imposto que incide sobre a compra e venda de toda sorte de bens, Godinho lembra que “é como dizer que este redito público assenta na comercialização do próprio reino, na intensidade das trocas do mercado interno, logo, na irradiação da economia urbana e de mercado”. Sinal da sua importância, em 1402, a sisa representava ¾ da receita total da monarquia. Contudo, ainda seguindo a argumentação de Godinho, a “extraordinária contração das receitas do Estado”, observada ao longo do século XV, teria sido o principal fator a compelir o Estado a transformar-se ele próprio em agente econômico extremamente ativo (como forçava as casas senhoriais a lançarem-se nos empreendimentos comercial-marítimos), buscando na navegação oceânica e respectivos tráficos, bem como em certas atividades

83

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

industriais novas as rendas que a terra já não lhe dá em montante que satisfaça as necessidades crescentes e que a contração econômica lhe nega no mercado interno.51

Em 1518, o autor estima que 68,2% dos recursos do Estado venham do tráfico marítimo (alfândegas, estancos, consulado).52 Cem anos depois, em 1621, esta razão se mantinha com as rendas do ultramar representando cerca de 64% das rendas globais.53 Justamente os anos iniciais do século XVI são o da “ordenação sistemática e completa” dos mecanismos de administração financeira e econômica em novos moldes: a emergência de um Estado burocrático e mercantilista.54 Na América, a criação da Provedoria em 1548 deve ser entendida neste quadro mais amplo, articulado com a proposição de um sistema político para o governo dos povos e o desenvolvimento da conquista. A provedoria, braço fiscal e econômico do Governo Geral, dava condições para organizar a cobrança dos direitos reais e centralizar as despesas com o aparelho militar e administrativo alargado que se instalava na cidade de Salvador, coração do Brasil. Para além dos rendimentos dos dízimos, diretamente dependentes dos frutos da terra (leia-se, do açúcar) e consignados na sustentação do governo, os ganhos fiscais da monarquia se ampliavam com a cobrança da dízima nas Alfândegas – agora também estabelecidas na América. À provedoria cabia ampliar o controle sobre a exportação e importação de mercadorias, fiscalizando a obrigatoriedade de que toda circulação fosse feita através dos portos onde houvesse casa 51

GODINHO, Vitorino Magalhães. Finanças públicas e estrutura do Estado. In: ______. Ensaios: sobre história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, [s.d.], p. 44-45. v. 2.

52

Ibidem, p. 44, 49.

53

HESPANHA, A. M. A fazenda. In: MATTOSO, José (Ed.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, p. 223. v. 4.

54

Um estudo mais detalhado poderia acompanhar este movimento no início do século XVI: (1497-1520) Reforma dos forais; (1502) Regimento dos oficiais das cidades, vilas e lugares destes reinos (1504); (1505) início do tombamento de todas as capelas, hospitais e albergarias; (1509) Regimento das Casas das Índias e Mina; (1512) Artigos das Sisas; (1521) Ordenações manuelinas; (1520) Ordenações da Índia. 84

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

de alfândega, ou seja, neste momento e por muitos anos vindouros, em Olinda e Salvador. No mesmo espírito do que definido nos forais das capitanias, o rei reservava o direito de cobrar (em espécie) 10% das mercadorias que entrassem no Brasil e o mesmo das que saíssem. As isenções eram relativas aos que já haviam pago a dízima no reino e, no caso das exportações, para os moradores da terra. Definia-se, explicitamente, uma sobretaxa destinada a proteger o mercado português e, nos termos de uma política mercantilista, onerando a atividade de comerciantes estrangeiros. Cornelis Jansz de Haarlem, que por mais de trinta anos trabalhou com os portugueses – sendo condestável (oficial responsável pelo cuidado com os cartuchos e a preparação da artilharia) em Pernambuco na véspera da conquista holandesa (1630) – é autor de um dos fragmentos reunidos no relatório de Jean de Laet. Neste papel, entregue aos diretores da Companhia das Índias Ocidentais quando retornou à Holanda, Cornelis apresenta uma descrição detalhada da fiscalidade no Brasil. Segundo ele, todos os gêneros de mercadorias – sem exceção alguma – importados de Portugal não pagavam nenhum imposto em Olinda, desde que trouxessem uma declaração dos cobradores dos portos donde tinham saído de que o imposto devido ao rei tinha sido pago: tratando-se de Portugal, 10% do valor que eles tinham custado segundo as faturas da compra.

O condestável explica, ainda, que se alguém tivesse esquecido ou não encontrasse esta declaração, poderia dar caução que apresentaria o documento em seis meses ou pagar o valor devido. Quando em Portugal, os açúcares pagam mais 23% na alfândega, como direitos de entrada: 20% para o Rei e 3% para o consulado.55 Este último, um tributo, introduzido por Filipe II no ano de 1592 (Alvará de 30 de julho de 1592), para que se preparasse uma armada grossa de doze galeões, necessária para se 55

HAARLEM, Cornelis Jansz de. Os direitos que os portugueses costumam pagar em Pernambuco (c. 1630). In: LAET, João de. Roteiro de um Brasil desconhecido: descrição das costas do Brasil. São Paulo: Kapa Editorial, 2007, p. 16. O volume, com transcrição, tradução, introdução e anotação de B. N. Teensma, é publicação integral do manuscrito “Descrição das costas do Brasil”, pertencente à biblioteca John Carter Brown (codex DU. 1). 85

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

guardar a costa de Portugal e dar segurança às frotas das conquistas.56 Todos os produtos, vindos de outros países, pagavam os mesmos 23% ao entraram em Portugal e pagariam outros 10% se fossem reexportados para o Brasil, por exemplo. Podemos ter uma visão mais clara do peso da fiscalidade na economia do açúcar ao dimensionar a composição do custo da mercadoria “desde que se levanta em qualquer engenho da Bahia até se por na Alfândega de Lisboa, e pela porta dela afora”. O jesuíta Antonil, no seu Cultura e Opulência, publicado em 1711, apresenta um rol no qual detalha todos os custos de uma caixa padrão (35 arrobas) de açúcar. Como podemos ver no quadro resumo a seguir, uma caixa de 35 arrobas, que fosse vendida por 1.600 réis no engenho, implicava ainda em um conjunto de custos que resultava em ter ela colocada na Alfândega em Lisboa a um valor de 2.416 réis: uma majoração de 51%. Se o que se pagava ao senhor de engenho representava 66,2% deste valor final, os custos com o acondicionamento e transporte local (encaixotamento e deslocamento do engenho até o trapiche e deste para dentro da nau) chegavam a 5% e com o transporte atlântico a 14,2%. Os direitos da terra eram irrisórios: 0,4%, referentes ao subsídio da terra (taxa de 300 réis por caixa, arrecadada pela Câmara para auxiliar no sustento da tropa) e o direito do Forte do Mar (pequena taxa de 80 réis por caixa para financiar a construção de uma fortificação na praia, em Salvador).

56

Veja a nota de Andrée Mansuy sobre o consulado na sua edição de ANTONIL, André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas etc. [1711]. Introdução e notas de Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: Edusp, 2007, p. 175. François Pyrard, nascido em Laval, ficou na Bahia por dois meses (de 13/08/1610 até 7/10/1610), no curso de sua navegação pelo mundo. Descrevendo a cidade e a sua vida naquele ano de 1610, notava – com algum espanto – que não se cobrava nenhum direito sobre as mercadorias vendidas a retalho na terra, assim como não se pagavam nenhum foro ou direito pelo uso das terras. As mercadorias, na entrada e na saída, pagam apenas 3% – “e todos os bens, sejam açúcares e outros frutos que crescem no país, pagam somente o dízimo, que o rei da Espanha [sic] obteve do Papa”. LAVAL, François Pyrad de. Voyage de François Pyrard de Laval, contenant sa navigation aux Indes Orientales, Maldives, Moluques, & au Bresil... Paris: Chez Louis Billaine, MDCLXXIX [1679], parte segunda, p. 202. 86

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Custo de uma caixa de açúcar branco macho de 35 arrobas, 1711 1. Valor do açúcar Por 35 arrobas de açúcar a 1$600

réis

% item

% total

56.000

 

66,2%

1.200

28,4%

1,4%

2. Transporte local Pelo caixão no engenho, ao menos Por se levantar o dito caixão

50

1,2%

0,1%

320

7,6%

0,4%

2.000

47,3%

2,4%

320

7,6%

0,4%

Por guindaste no trapiche

80

1,9%

0,1%

Por entrada no mesmo trapiche

80

1,9%

0,1%

Por 86 pregos para o dito caixão Por carreto à beira-mar Por carreto do porto do mar até o trapiche

Por aluguel do mês no dito trapiche Por se botar fora do trapiche

20

0,5%

0,0%

160

3,8%

0,2%

4.230

100,0%

5,0%

11.520

95,9%

13,6%

3. Transporte transatlântico Por frete do navio a 20$ Por descarga em Lisboa, para a alfândega

200

1,7%

0,2%

Por guindaste na ponte da alfândega

40

0,3%

0,0%

Por se recolher da ponte para o armazém

60

0,5%

0,1%

Por se guardar na alfândega

50

0,4%

0,1%

Por cascavel de arquear, por cada arco

80

0,7%

0,1%

Por obras, taras e marcas

60

0,5%

0,1%

12.010

100,0%

14,2%

300

78,9%

0,4%

80

21,1%

0,1%

380

100,0%

0,4%

5.600

46,9%

6,6%

840

7,0%

1,0%

4. Direitos da terra1* Por direitos do subsídio da terra Por direito para o forte do mar 5. Direitos do Reino Por avaliação e direitos grandes, a 800 réis, e a 20 por 100 Por consulado a 3 por 100

87

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Por combói a 140 réis por arroba Por maioria

O que tudo importa

4.900

41,0%

5,8%

600

5,0%

0,7%

11.940

100,0%

14,1%

84.560

100,0%

“Subsídio da terra: imposto municipal para a manutenção da tropa da praça. Constava de 300 réis por cada caixa de açúcar com 35 arrobas de peso, e de 80 réis por cada fecho com 12 arrobas” e “O Forte do Mar era um dos fortes que defendiam a cidade da Bahia, à entrada do Recôncavo. Começado em 1623 por ordem do governador Diogo de Mendonça Furtado, com planta do arquiteto Francisco de Frias Mesquita, não foi acabado senão em 1728. Ao longo do tempo, o financiamento das obras, muitas vezes interrompidas, foi assegurado graças a vários impostos”. Notas de Andrée Mansuy sobre o consulado na sua edição de ANTONIL, André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas etc [1711]. Introdução e notas de Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: Edusp, 2007, p. 174. *

FONTE: ANTONIL, André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas, etc. Lisboa: Officina real Deslandesiana, 1711, parte 1, livro III, cap. IX.

O maior gravame era devido aos direitos alfandegários. Antonil assim anota: “por avaliação e direitos grandes, a 800 réis, e a 20 por 100 = 5.600 réis”. Está referindo-se ao fato de que, tomando por base o preço do açúcar pago ao senhor (1.600 réis) cobra-se 20% sobre metade (800 réis). Em termos práticos, isto significava 10% do valor da caixa de 35 arrobas. Valor significativo era também o que se cobrava pelo combóy (comboio). Esta taxa de 140 réis por arroba fora instituída em 1650 para reforçar a segurança das armadas. O comboio era a forma como se denominava os navios de escolta para as naus mercantes. Imposto criado na conjuntura da guerra da Restauração, representava, na visão de Antonil, 5,6% do valor final do açúcar. Um gravame à altura das décimas cobradas, na época, pelo Reino.57 Segundo Andrée Mansuy, a arrecadação inicial deste imposto permitiu manter 26 naus de guerra. Depois da paz com 57

MAGALHÃES, Joaquim Romero. Dinheiro para a guerra: as décimas da Restauração. Hispania, v. 64, n. 216, p. 157-182, 2004. 88

a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

os holandeses em 1661, “foi reduzido a quatro naus, e logo a duas, sem que os direitos cobrados para assegurar as despesas fossem diminuídos ou suprimidos. Isto foi motivo de queixas dos senhores de engenho e dos negociantes do Brasil”.58 Além disso, havia o consulado (no valor de 3%), que tinha, no fundo, o mesmo propósito. Criado pelo alvará de 30 de julho de 1592, o imposto garantia a formação de uma frota de doze navios para a segurança do comércio marítimo. Era cobrado sobre qualquer mercadoria que fosse importada para o Brasil ou dele exportada.59 No total, os direitos cobrados pelo Reino correspondiam a 14,1% do valor total da caixa de açúcar, tal como colocada no mercado no Reino. Isso, antes da participação dos lucros dos comerciantes. Quando revendido internamente, o açúcar poderia correr a preços majorados, mas agora desembaraçado de impostos. Se fosse reexportado, pagar-se-ia outros tantos 10% para a Alfândega. O monopólio português implicava que todas as mercadorias deveriam ser transportadas em navios sob esta bandeira, os únicos com permissão para traficar no Brasil – com exceção dos ingleses, que tinham privilégios garantidos pelos diversos tratados que culminam com o de 1661, referente ao casamento de Catarina, irmã de Afonso VI, com Carlos II. Na verdade, o Tratado de 10 de julho de 1654 já havia confirmado o limite de 23% dos direitos a serem pagos pelos comerciantes ingleses, o que, praticamente, os igualava aos nacionais. De acordo com Boxer, este tratado “estabeleceu inequivocamente as relações de força que iriam durar por todo o século seguinte e que podem ser descritas com um autêntico 58

Veja a nota 101 de Andrée Mansuy sobre o combóy na sua edição de ANTONIL, André João, op. cit., p. 175.

59

“O tributo do consulado. Entrando no governo do reino de Portugal el-rei D. Filipe, o prudente, e vendo o muito que tinha despendido do patrimônio Real com sua proteção, introduziu neste reino no ano de 1592, o tributo novo chamado do Consulado, que são três por cento nas Alfândegas, para com ele fazer todo os anos uma armada grossa de doze galeões, que pudesse guardar a costa e trazer seguras as frotas das conquistas das Ilhas até Lisboa”, BLUTEAU, Raphael, op. cit., p. 487. v. 2. Veja a nota 100 de Andrée Mansuy sobre o consulado na sua edição de ANTONIL, André João, op. cit., p. 175. 89

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

diktat”.60 A fiscalização dos mercadores, fossem eles nacionais ou ingleses, era feita por algumas chalupas e pelos oficiais encarregados. William Dampier, corsário e navegador, esteve na Bahia em março de 1699, no tempo do governo de João de Lencastro. Comandava o navio Roebuck, prestando serviço para o Almirantado inglês, e descreve minuciosamente a cidade de Salvador e vida no Brasil. Segundo seu relato, a Alfândega, onde devem ser registradas todas as mercadorias que entram e saem da Bahia, dispõe de cinco chalupas para fiscalizar e impedir as fraudes: “fazem a ronda pelo porto, uma depois da outra, e visitam os navios que suspeitam guardar mercadorias que não pagaram os direitos”.61 Os impostos resultantes do controle do comércio eram o modo mais eficiente de conseguir resultados (eram formas de exercício do exclusivo metropolitano) e, diferentemente do dízimo, não implicavam em um acerto com as elites produtoras do Brasil. Muito pelo contrário. Na verdade, se o dízimo acabava por financiar a reprodução das estruturas políticas e de mando (inclusive militar) no Brasil, a cobrança nas alfândegas e os direitos como o comboio e o consulado são mecanismos que permitem a extração quase direta de ganhos fiscais pela Monarquia. Consumidos, em parte, pelo aparelho de controle do próprio exclusivo metropolitano, já aparecem nestes difíceis anos da Restauração, como um possível alívio nas contas apertadas da Fazenda – apurada com os gastos da guerra na fronteira e com os custos (não só políticos) das alianças com os ingleses e holandeses. Nesta segunda metade dos Seiscentos, o doce açúcar, produzido com amargo sofrimento pelos escravos, parecia ser a salvação do Brasil e, portanto, do Império.

60

BOXER, Charles R. The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825. Londres: Hutchinson, 1969, p. 335. Outro historiador seria mais enfático: “Pelo tratado de 1654, Portugal tornara-se um virtual vassalo comercial da Inglaterra”, MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973 (1933), p. 30.

61

DAMPIER, William. Nouveau Voyage author du monde. Rouen: Chez Eustache Herault, MDCCXV [1715], p. 47-48. v. 4. (Tradução minha). 90

De senhores de engenho a cortesãos: conexões entre a América açucareira portuguesa e a Monarquia Católica no século XVII

Kalina Vanderlei Silva1

A Monarquia Católica é um objeto de investigação apaixonante. Recobre um espaço que reúne vários continentes; aproxima ou conecta várias formas de governo, de exploração e de organização social; confronta, de maneira às vezes bastante brutal, tradições religiosas totalmente distintas. Foi, ainda, o teatro de interações planetárias entre o cristianismo, o Islão e o que os ibéricos chamavam de idolatrias, uma categoria que abarca arbitrariamente os cultos americanos, os cultos africanos, ou ainda as grandes religiões da Ásia.2

Nessa afirmação de Serge Gruzinski, reside o cerne de uma perspectiva interpretativa que inspirou muitas das questões propostas neste 1

Professora de História da Universidade de Pernambuco. Esta pesquisa foi desenvolvida junto ao Departamento de História Medieval, Moderna e Contemporânea da Universidade de Salamanca, inserida no Grupo de Investigación BRASILHIS, coordenado pelo Prof. Dr. José Manuel Santos Pérez. Pesquisa financiada pela FACEPE.

2

GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories. Topoi, Rio de Janeiro, p. 179-180, mar. 2001.

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

trabalho e que parte, em primeiro lugar, do entendimento da Monarquia Católica como um espaço privilegiado de conexões culturais e políticas. Tal perspectiva – defendida também por historiadores como Bartolomé Yun Casalilla e José Javier Ruiz Ibañez, que vêm se debruçando sobre as redes sociais estabelecidas entre os diferentes recantos do Império dos Habsburgo de Espanha – tem guiado nossa leitura de uma série ampla de documentos seiscentistas, relativos a uma determinada periferia desses vastos territórios da Monarquia Católica: a América açucareira portuguesa.3 Esse espaço abrangia a área canavieira das capitanias do norte do Estado do Brasil no século XVII; uma região classicamente observada pela historiografia a partir de seus engenhos e canaviais, apesar de que, recentemente, vem recebendo cada vez mais atenção pela complexidade de suas estruturas urbanas.4 Estruturas essas, inclusive, que vivenciaram uma intensa expansão e dinamização baixo os Habsburgo de Espanha.

3

Cf. YUN CASALILLA, Bartolomé. Entre el imperio colonial y la monarquía compuesta. Élites y territorios en la Monarquía Hispánica (ss. XVI y XVII). In: ______. (Dir.). Las Redes del Imperio: Élites sociales en la articulación de la Monarquía Hispánica, 1492-1711. Madrid: Marcial Pons, 2009, p. 12; e RUIZ IBÁÑEZ, José Javier. Servir segundo a dignidade: exílios políticos e administração real na Monarquia Hispânica, 1580-1610. In: MONTEIRO, Rodrigo B.; FEITLER, Bruno; CALAINHO, Daniela B.; FLORES, Jorge M. (Org.). Raízes do privilégio: mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 105-132.

4

Entre os melhores exemplos da historiografia clássica para a caracterização básica da América açucareira portuguesa está SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. E para a nova historiografia que vem se debruçando sobre os núcleos urbanos no mundo do açúcar ver: SOUZA, George F. C. de. Tratos & mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c. 1654-c. 1759). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012; CAETANO, Antonio Filipe Pereira (Org.). “Alagoas Colonial”: construindo economias, tecendo redes de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012; SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, 2010; OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES, Mozart Vergetti de; GONÇALVES, Regina Célia (Org.). Ensaios sobre a América portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2009; ALMEIDA, Suely 92

de senhores de engenho a cortesãos

Apesar disso, esse período, no que concerne ao mundo do açúcar, ainda contabiliza mais lacunas que respostas, a despeito também da vastidão de vestígios documentais então produzidos e do fato de que, por entre esses registros, estão muitas pistas que levam às construções sociais, culturais e políticas do Estado do Brasil baixo os Áustrias.5 E foi seguindo tais pistas que começamos a desenhar um novo retrato das conexões entre a Corte dos Habsburgo e essa sua periferia. Um retrato que, do ponto de vista documental, toma por base as trajetórias de vida de personagens que circularam entre os dois lados do Atlântico e que, quando relacionadas às estruturas sociais e culturais vigentes, descortinam mais e mais esse enredo. Personagens como Bernadino Pessoa de Almeida, filho de senhor de engenho de Pernambuco e médico da Câmara de Olinda, formado pela Universidade de Salamanca; ou como Jorge Lopes Brandão, senhor de engenho da Paraíba, transplantado para a Espanha para combater os franceses em Navarra.6 Além dos vários fidalgos luso-espanhóis que passaram temporadas no mundo do açúcar durante o domínio filipino: do Governador Geral Diogo Botelho ao nobre

Creusa Cordeiro de. O sexo devoto: normatização e resistência feminina no Império Português. Recife: Editora Universitária UFPE, 2005. 5

Para uma revisão da historiografia sobre o chamado “período filipino”, cf. SANTOS PÉREZ, José Manuel. A estratégia dos Habsburgo para a América portuguesa. Novas propostas para um velho assunto. In: ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de; SILVA, Gian Carlo de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA, George Felix Cabral de (Org.). Políticas e estratégias administrativas no mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE, 2012, p. 247-254.

6

Para mais detalhes sobre Bernadino Pessoa de Almeida, cf. MARCOS DE DIOS, Angel. Estudiantes de Brasil en La Universidad de Salamanca durante los siglos XVI y XVII. Revista de História, São Paulo, n. 105, p. 215-230, 1976 e para Jorge Lopes Brandão, cf. SOBRE lo que escribe Don Luis de Rojas cerca de las mercedes que se devem hacer a las personas que asisten en la guerra de Phernambuco dineros que se deven lhe dar, y perdon que se devem dar. Archivo General de Simancas (AGS), Secretarías provinciales, libro 1478, fols. 37-39. 93

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

espanhol D. Luis de Rojas y Borja;7 sem falar nos muitos soldados, súditos menores do rei da Espanha, que, enviados para lutar contra os holandeses, acabaram por lá se fixar e criar raízes: como Antonio Álvarez de La Penha, soldado castelhano que passou a residir em Pernambuco depois da guerra, afidalgando-se e enviando seu neto, muitos anos depois, para estudar medicina na Universidade de Salamanca; ou Francisco Rodrigues Salvaterra, “castelhano de nação” que foi embarcado para o Brasil em 1640 para combater os holandeses em Pernambuco, retornando ao reino para lutar pelos portugueses em Badajós, só para voltar mais uma vez à América onde se encontrava, em 1660, servindo no Ceará.8 Caso exemplar, esse de Salvaterra, que chegara à América no posto de soldado e fora se afidalgando ao longo do tempo, a ponto de, décadas após sua vinda, passar a assinar as petições com o Dom característico dos fidalgos. Ou, por fim, Juan Lopes Sierra: autor de um panegírico fúnebre escrito, em espanhol, em honra ao Governador Geral Afonso Furtado de Mendonza, em Salvador da década de 1670. Sierra, que afirmava ter então 72 anos de idade, muito provavelmente chegara à Bahia na esteira das tropas da reconquista, na década de 1620.9 7

Para o Governador Geral, cf. DUTRA, Francis A. A New Look into Diogo Botelho’s stay in Pernambuco, 1602-1603. Luso-Brazilian Review, v. 4, n. 1, p. 27-34, 1967; e para D. Luis de Rojas y Borja, cf. SOBRE lo que escribe Don Luis de Rojas cerca de las mercedes que se devem hacer a las personas que asisten en la guerra de Phernambuco dineros que se deven he dar, y perdon que se devem dar. Archivo General de Simancas, Secretarías provinciales, libro 1478, fol. 37; MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

8

Para os de La Penha, cf. SILVA, Kalina Vanderlei. Fidalgos, capitães e senhores de engenho: o Humanismo, o Barroco e o diálogo cultural entre Castela e a sociedade açucareira (Pernambuco, séculos XVI e XVII). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 28, n. 47, p. 235-257, jan./jun. 2012; e para Salvaterra, cf. INFORMAÇÕES [do conselho ultramarino] sobre serviços prestados por D. Francisco Rodrigues Salvaterra, castelhano de nação, no período de 1649 a 1660, na capitania de Pernambuco. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Lisboa, ACL, CU 015, c 7, D. 622.

9

Cf. PÉCORA, Alcir; SCHWARTZ, Stuart B. (Org.). As excelências do governador: o panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). 94

de senhores de engenho a cortesãos

Todos esses homens são vívidas ilustrações da intensa circulação de gente entre a América açucareira portuguesa e outros territórios da Monarquia Católica, e sugestivos, inclusive, de uma certa facilidade no trânsito não apenas entre Portugal e Espanha, mas também entre os dois reinos e o Estado do Brasil.10 Essa circulação, além disso, instigara a criação de redes de notícias, encarnadas na troca de correspondência entre cortesãos, intelectuais, clérigos, senhores de engenho e administradores dos dois lados do Atlântico, como aquela mantida pelo chantre de Évora, Manuel Severim de Faria, com seus muitos informantes mundo à fora, inclusive Frei Vicente de Salvador, na Bahia.11 Por outro lado, a presença dos súditos espanhóis nas vilas do açúcar já era um fenômeno anterior ao período filipino. Súditos que estavam, por exemplo, entre os mais atuantes dentre os missionários jesuítas embarcados com o primeiro Governador Geral para a Bahia em 1549: caso de José de Anchieta e João Azpilcueta Navarro. No entanto, aparentemente foi mesmo baixo o reinado de Felipe II de Espanha que tal presença se fez mais marcante, principalmente com as tropas de Diogo São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 38-40. Esses autores elaboram várias especulações, bem fundamentadas no contexto do período, acerca das possíveis origens desse personagem, não deixando de considerar que Juan Lopes Sierra poderia ser simplesmente um pseudônimo para algum autor baiano. 10

A historiografia que trabalha com a circulação humana dentro das fronteiras da Monarquia Católica inclui os basilares trabalhos de Gruzinski e Casalilla. Cf. GRUZINSKI, Serge. Las cuatro partes del mundo: Historia de una mundialización. México: Fondo de Cultura Económica, 2010; YUN CASALILLA, Bartolomé, op. cit., p. 11-35. Mas é importante ressaltar que existe também uma historiografia brasileira que aborda a circulação interna na América portuguesa: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira; AMANTINO, Márcia. Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011; IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012.

11

Para a rede de notícias mantida por Faria, cf. MEGIANI, Ana Paula Torres. Das palavras e das coisas curiosas: correspondência e escrita na coleção de notícias de Manuel Severim de Faria. Topoi, v. 8, n. 15, p. 24-48, jul./dez. 2007. 95

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Flores Valdez na conquista da Paraíba, e a subsequente nomeação de espanhóis para o governo dessa capitania.12 Uma situação que mostra o quanto as regras estabelecidas em Tomar, acerca da separação das administrações coloniais portuguesas e espanholas, foram letra morta desde o início; pelo menos no que concernia aos territórios coloniais portugueses. Ademais, as guerras holandesas no Brasil fomentaram um verdadeiro boom de circulação humana entre o centro da Monarquia Católica e essa sua periferia específica. E se esse trânsito entre Espanha e as capitanias do norte do Estado do Brasil não continuaria após a Restauração Portuguesa, deixaria ao menos muitas pegadas encarnadas naqueles homens que se assentaram em um ou outro espaço: os veteranos de Castela que haviam jurado lealdade a D. João IV, ou os senhores do açúcar que haviam se tornado fidalgos na Espanha. Mesmo em Portugal, os traços dessa forte conexão cultural iriam se esvaindo com os Bragança, mas ainda seriam visíveis na segunda metade do século XVII: caso do bilinguismo luso-espanhol, uma constante em Portugal desde o século XV, e que desapareceria com a última geração de nobres portugueses educados antes de 1640.13 E aparentemente o mesmo aconteceu com as redes culturais até então existentes entre a América açucareira e a Corte dos Habsburgo: mesmo no século XVIII, a América açucareira portuguesa ainda importaria livros de autores espanhóis, como a Diana de Jorge de Montemayor, o Manual de Confessores y Penitentes de Martín de Azpilcueta e os textos de Baltasar Gracián.14

12

Para os espanhóis na conquista da Paraíba, cf. GONÇALVES, Regina Célia. O Capitão-Mor e o Senhor de Engenho: os conflitos entre um burocrata do rei e um ‘nobre da terra’ na Capitania Real da Paraíba (Século XVII). In: CONGRESSO INTERNACIONAL ESPAÇO ATLÂNTICO DE ANTIGO REGIME: PODERES E SOCIEDADES, 2005. Actas... Lisboa: Instituto Camões, 2008, p. 1-14. v. 1.

13

Para esse bilinguismo, cf. ROMO, Eduardo Javier Alonso. Português e castelhano no Brasil quinhentista à volta dos jesuítas. Revista de Índias, v. LXV, n. 234, p. 491-492, 2005.

14

Para os livros importados em Pernambuco no XVIII, cf. VERRI, Gilda Maria Whitaker. Tinta sobre papel: livros e leituras em Pernambuco no século 96

de senhores de engenho a cortesãos

Todos esses vestígios, que sobreviveram em uma miríade de diferentes acervos e em um largo rastro de papel, permitem que possamos reconstruir a inserção dessa América açucareira portuguesa nas redes políticas criadas entre a corte e os territórios periféricos da Monarquia Católica no século XVII. E a cada personagem seguido, a cada trajetória de vida reconstruída, chegamos mais perto de um desenho mais nítido desse cenário. Considerando tudo isso, portanto, é que nos debruçamos aqui sobre a trajetória de um personagem específico, ilustrativo dessas conexões: D. Bartolomé de Mendoza, cortesão de Felipe IV, cavaleiro do hábito da Ordem de Calatrava e natural de Pernambuco. Os indícios até agora encontrados sobre esse personagem e sua família são todos espanhóis e estão associados à prestigiosa Ordem de Calatrava, mas os vinculam também ao grupo social que comandava o mundo do açúcar português; aquele composto por senhores de engenho e lavradores de cana de açúcar: a elite açucareira.15 Por causa dessa dupla conexão, a natureza de sua identidade é uma questão importante a ser explorada, e o nível de inserção dessa família de senhores de engenho no universo cultural cortesão pode ajudar a esclarecer aspectos da complexidade das conexões políticas e culturais entre essas duas regiões. E se os vestígios deixam na incerteza o fato de D. Bartolomé ter chegado a residir em Pernambuco, por outro lado, tornam bem estabelecido o fato de que seus pais e avós foram, de fato, moradores naquela capitania, apesar de que sua família já residia, no momento em que seu processo de habilitação corria junto ao Consejo de Ordenes, na corte espanhola, e já contava inclusive com cavaleiros ordeXVIII, 1759-1807. Recife: Editora Universitária UFPE, 2006. 2 v. E também o INVENTÁRIO dos bens do Bispo de Pernambuco, D. Thomas da Encarnação Costa eLima. AHU, ACL, CU, 015, CX 151. D. 10957. 1794, Maio, 4, Recife. E para os livros recebidos pelos jesuítas nos Quinhentos, ROMO, op. cit., p. 502. 15

Para a definição de elite açucareira, cf. SILVA, Kalina Vanderlei. Festa e memória da elite açucareira no século XVII: a Ação de Graças pela Restauração da Capitania de Pernambuco contra os holandeses. In: OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES, Mozart Vergetti de; GONÇALVES, Regina Célia (Org.). Ensaios sobre a América portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2009, p. 67-80. 97

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nados: caso do pai de D. Bartolomé, D. Manuel de Mendoza, ele próprio um cavaleiro de Calatrava, mas que havia servido em Pernambuco em prestigiadas posições, tal como os cargos da afidalgante mesa regedora da Santa Casa de Misericórdia.16 D. Manuel serve, assim, de ponte direta entre a capitania açucareira e a corte da Monarquia Católica. Embora nada indique que ele ou seus filhos, uma vez na corte, tenham continuado a sustentar suas conexões americanas – e em vista do estado de guerra que haviam deixado para trás, essa suposição é de fato complicada – eles ainda seriam representados pela burocracia espanhola a partir de suas identidades americanas. Seus vínculos com Calatrava, entretanto, sugerem que os Mendoza já deviam, na década de 1640, atuar mais como cortesãos do que como senhores de engenho; também sendo possível que sustentassem vínculos com os fidalgos portugueses então expatriados na Espanha – um grupo de certa influência em Madri17 –, em uma situação já vivenciada por personagens que compartilhavam suas origens coloniais.18 16

Para as relações entre elite açucareira e Santa Casa de Misericórdia, cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora da UNB, 1981.

17

Para os fidalgos portugueses em Madri pós-Restauração, cf. BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Entre dos reinos, una patria rebelde. Fidalgos portugueses en la Monarquía Hispánica después de 1640. Estudis: Revista de historia moderna, Universidad de Valencia, n. 20, p. 83-104, 1994. Em artigo recente, Camenietzki, Saraiva e Silva fazem eco a Fernando Bouza Álvarez afirmando que metade da nobreza portuguesa permanecia fiel aos Habsburgo ainda por ocasião da batalha de Montijo. CAMENIETZKI, Carlos Ziller; SARAIVA, Daniel Magalhães Porto; SILVA, Pedro Paulo de Figueiredo. O papel da batalha: a disputa pela vitória de Montijo na publicística do século XVII. Topoi, v. 13, n. 24, p. 11-12, jan./jun. 2012. Nesse trabalho, Bouza Álvarez, por sua vez, chegou a estabelecer uma classificação dos tipos de vassalos portugueses leais a Felipe IV: homens de negócio, oficiais letrados, soldados, autoridades eclesiásticas e nobres. Ele explora especialmente o grupo dos fidalgos, que haviam vivenciado um apogeu com os Felipes, mas que caiu, após a Restauração portuguesa, na contraditória situação de ser um grupo cuja existência se justificava pela propriedade de terra, mas que então se encontrava sem terra.

18

Caso, por exemplo, de Duarte de Albuquerque Coelho e Matias de Albuquerque, cortesãos que se apresentavam a partir de suas origens colo98

de senhores de engenho a cortesãos

Os processos de habilitação dos Mendoza na Ordem de Calatrava Os principais – para não dizer os únicos – indícios documentais até agora encontrados acerca dos Mendoza são os relativos à sua presença na Ordem de Calatrava; sejam seus próprios processos de habilitação, sejam aqueles dos quais foram testemunhas.19 Mas se esses vestígios são poucos, por outro lado, estão repletos de possibilidades, uma vez que, ao mesmo tempo em que trazem informações biográficas sobre a família, também desnudam sua inserção na cultura cortesã dos Habsburgo. E isso graças ao detalhamento inerente a esse gênero documental: o processo de habilitação para as ordens militares. Principais facilitadoras do enobrecimento na sociedade ibérica moderna, as ordens militares exerciam um forte atrativo para todos aqueles que buscavam a ascensão às fileiras da nobreza. Justamente por isso, todavia, e para garantir que continuassem prestigiosas, elas sustentavam algumas das regras mais rígidas dentre as instituições nobilitantes daquele universo social, sujeitando seus aspirantes a rigorosas investiniais, sem que tivesse sequer nascido na América. Cf. DUTRA, Francis. Notas sobre a vida e morte de Jorge de Albuquerque Coelho e a tutela de seus filhos. Stvdia, Lisboa, n. 37, p. 265-267, dez. 1973. 19

Encontramos dois processos relativos a D. Bartolomé de Mendoza nos arquivos do Consejo de Ordenes, no Archivo Historico Nacional de España, e um relativo a seu irmão, D. Jerônimo de Mendoza no mesmo arquivo: MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-EXPEDIENTILLOS, N.10316; MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballeros_Calatrava, exp. 1618, fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España, Consejo de Ordenes; MENDOZA de Mendoza, Jerónimo de. Archivo Histórico Nacional, OM-CABALLEROS_CALATRAVA, Exp.1620 – 2 Recto – Imagen Núm: 3 / 110; e 7/110 Disponível em: . Acesso em: 3 out. 2014. Além disso, encontramos referência a D. Bartolomé enquanto testemunha no processo de um certo D. Diego Gutiérrez Barona, datado de 1654. Cf. DÁVILA JALÓN, Valentín. Extractos de varios expedientes de nobleza y limpieza de sangre, incoados por caballeros burgaleses en solicitud de ingreso en las Órdenes Militares españolas [09]: Siglos XVI a XVIII. Bol. Com. Prov. Monum. Inst. Fernán González ciudad Burgos, año 27, n. 104, 1948. 99

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gações que terminavam por produzir processos extensos e detalhados, como os da família Mendoza.20 O que não significa, entretanto, que esses procedimentos estavam isentos de fraudes: em realidade, os Seiscentos veriam as práticas de venda de hábitos e de compra de testemunhas se tornarem comuns.21 Entre o momento de sua fundação, no século XIII, e quando os Mendoza foram habilitados, no século XVII, as ordens militares ibéricas vivenciaram grandes mudanças, perdendo muito de sua significação militar e quase toda sua significação religiosa. Em sua origem, durante o chamado processo de reconquista ibérica, elas tomavam a forma de milícias compostas pela nobreza cavalheiresca e devotadas a regras de ordens religiosas, tais como os beneditinos; configurando-se, assim, ao estilo de ordens cruzadísticas como os Templários e Hospitalários, mas diferenciando-se dessas por permitir o matrimônio de seus cavaleiros.22 No século XVII, por seu turno, já eram basicamente baluartes sociais da fidalguia, apesar dos esforços da Coroa para que retomassem suas obrigações militares. Então, a situação política da Monarquia Católica, a complexificação das estruturas sociais dentro de seu território e a necessidade de garantir a fidelidade de grupos sociais bem mais diversificados do que a nobreza cortesã haviam transformado a concessão de hábitos de ordens militares 20

Quem compara os hábitos das ordens militares com instituições tais como o Santo Ofício e conclui por sua elevação na hierarquia nobiliárquica é OLIVAL, Fernanda. Para um Estudo da Nobilitação no Antigo Regime: Os Cristãos-Novos na Ordem de Cristo (1581-1621). In: ______. As ordens militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 233-244.

21

Cf. Idem. Mercado de hábitos e serviços em Portugal (séculos XVII-XVIII). Análise social, v. 38, n. 168, p. 743-769, 2003.

22

Para as origens medievais das ordens ibéricas, e sua significação enquanto milícias religiosas, cf. CUNHA, Maria Cristina. A Ordem de Avis e a Monarquia Portuguesa até ao final do reinado de D. Dinis. Revista da Faculdade de Letras, Porto, v. 12, p. 113-124, 1995. Também FERNÁNDEZ IZQUIERDO, Francisco. La orden militar de Calatrava en el siglo XVI: infraestructura institucional – sociología y prosopografía de sus caballeros. Madrid: CSIC, 1992, p. 13-14. 100

de senhores de engenho a cortesãos

em uma prática de remuneração. Por causa disto, e a despeito das rigorosas regras estabelecidas para o ingresso nessas ordens, desde Carlos V, o rei passara a se reservar o direito de, nelas, nomear cavaleiros; um direito garantido por sua posição enquanto mestre das mesmas, e que terminava por se sobrepor às próprias provanças que deveriam assegurar a limpeza de sangue na cavalaria. Isso transformou a concessão de hábitos por serviços prestados em um fenômeno constante baixo os Habsburgo de Espanha no século XVII, e uma prática, inclusive, que alcançaria muitos fidalgos provinciais, então convertidos em cortesãos.23 Cabia, nesse contexto, ao Consejo de Ordenes cuidar dos assuntos dessas instituições, o que incluía a miríade de solicitações de hábitos e as provanças necessárias para a concessão dos mesmos. E vultoso era o volume de processos levados ao Consejo todo ano, a tal ponto tinha essa prática se tornado importante na “economia das mercês” no mundo espanhol. De fato, essa sua função, de remuneração aos servidores leais da Coroa, transformara-se de tal forma no principal caminho para o enobrecimento no mundo ibérico que, no século XVII, cerca de dez mil pedidos de hábitos de ordens militares espanholas foram submetidos ao Consejo de Ordenes.24 Porém, apesar de toda a longa tramitação ser responsabilidade do Conselho, a decisão final deveria caber mesmo ao rei.25 Por outro lado, não era apenas essa função de moeda de troca que tornava o processo de concessão de hábitos tão importante para a Coroa, mas o próprio significado que possuíam perante o imaginário fidalgo,

23

Para a concessão desses hábitos como prática vinculada à economia das mercês, cf. KRAUSE, Thiago. Em Busca da Honra: os pedidos de hábitos da Ordem de Cristo na Bahia e em Pernambuco, 1644-76. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA ANPUH-RJ, 13, 2008, Niterói. Anais... Niterói: [s.n.], 2008, p. 2. Além disso, para os fidalgos coloniais que conseguiram essa mercê, ver YUN CASALILLA, op. cit. e DUTRA, Francis A. Ser mulato em Portugal nos primórdios da modernidade portuguesa. Tempo, Niterói, v. 16, n. 30, p. 108, 2011.

24

ÁLVAREZ-COCA GONZÁLEZ, María Jesús. La concesión de hábitos de caballeros de las Órdenes Militares: procedimiento y reflejo documental (s. XVI-XIX). Cuadernos de Historia Moderna, n. 14, p. 287, 1993.

25

Ibidem. 101

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e que era a razão primeira de serem tão concorridos: naquele universo cultural, as ordens militares haviam se transformado no último reduto dos valores cavalheirescos, desde que a nobreza perdera sua função militar primeira, atrelada à cavalaria medieval.26 Consequentemente, suas exigências ainda eram bastante rígidas nos Seiscentos, a primeira das quais era a necessidade do candidato ser nobre e, desde o século XV, provar claramente sua limpeza de sangue, com os conversos já excluídos das fileiras de Calatrava desde 1483.27 Fora nesse momento que, baixo Fernando o Católico, essa ordem aprovara uma série de medidas rigorosas para comprovar a valia de seus candidatos; medidas que seriam consolidadas com Carlos V. Eram las pruebas, que definiam ações investigativas das origens dos pretendentes, tais como aquelas que especificavam que: una persona de la orden, habiendo jurado su equidad en el proceso, y sin recibir dádiva o promesa del candidato, con un memorial conteniendo las preguntas que se formularían a los testigos, habría de acudir a los lugares de donde el aspirante decía proceder, para averiguar la veracidad de su genealogía y se cumplían las cualidades impustes por los estatutos de la orden en lo relativo a su nobles, limpieza de sangre y legitimidad.28

Associada a essa medida estavam os questionários que deveriam deixar às claras as origens do aspirante, permitindo a exclusão não apenas daqueles com descendência judia, moura ou gentil, mas também os oficiais mecânicos e os filhos ilegítimos.29 Apesar disso, a rigidez de tais pruebas não impedia que o próprio rei concedesse hábitos por serviços 26

Para Fernández Izquierdo, essa significação das ordens militares ficou mais e mais forte a partir do governo de Felipe II. FERNÁNDEZ IZQUIERDO, Francisco. ¿Qué era ser caballero de una Orden Militar en los siglos XVI y XVII? Torre de los Lujanes, Madrid: R.S.E.M., Amigos del Pais, v. 49, n. 1, p. 141-163, 2003.

27

Ibidem, p. 144-145.

28

Ibidem, p. 147-148.

29

Fernanda Olival descreve essas características dos questionários das ordens militares, especificamente portuguesas, no século XVII: OLIVAL, 102

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prestados, muitas vezes burlando as provanças. E aparentemente foi esse privilégio que tornou possível que fidalgos de origem colonial, e logo fora das linhagens nobres tradicionais espanholas, conseguissem acesso aos concorridos hábitos. Esse era o contexto que cercava a família Mendoza em seus esforços por ingressar na Ordem de Calatrava, uma das três ordens militares espanholas que estavam baixo o senhorio régio no século XVII.30 Fundada em Castela no século XII, juntamente com as de Santiago del Espada e Alcântara – então chamada de San Julian del Pereyeo – e na esteira e estilo da Ordem dos Templários, Calatrava foi a primeira dessas três milícias a adotar as regras monásticas.31 Com o passar do tempo, as três se aproximariam a ponto de seus cavaleiros chegarem a carregar as mesmas insígnias: a cruz vermelha no peito. Na realidade, chegaram a ser tão próximas que Calatrava terminou, no século XIII, por se impor sobre Alcântara.32 Seja como for, no processo de consolidação do poderio régio, logo seriam todas incorporadas ao patrimônio do rei.33 Foi nesse cenário que, em 1645, D. Bartolomé deu início a seu processo de habilitação para Calatrava, apresentando-se como fidalgo natural de Pernambuco e fornecendo informações sobre sua família para estabelecer sua limpeza de sangue. A partir deste modo que sua linhagem foi sendo reconstruída, começando com seus pais e avós, que ocupavam

op. cit.. E Fernández Izquierdo analisa as mesmas para as ordens espanholas: FERNÁNDEZ IZQUIERDO, La orden militar de Calatrava en el siglo XVI, op. cit. 30

Para os dados sobre os irmãos e irmãs Mendoza em Calatrava, ver o processo de D. Jerônimo de Mendoza. MENDOZA de Mendoza, Jerónimo de. Archivo Histórico Nacional, OM-CABALLEROS_CALATRAVA, Exp. 1620 – 2 Recto – Imagen Núm: 3/110; e 7/110. Disponível em: . Acesso em: 3 out. 2014.

31

POSTIGO CASTELLANOS, Elena. “Las tres ilustres ordenes y religiosas cavallería” Instituídas por los Reyes de Castilla y León: Santiago, Calatrava y Alcántara. Studia histórica, Historia Moderna, n. 24, p. 57, 2002.

32

Postigo Castellanos afirma que Calatrava se impôs também sobre Avis. Ibidem, p. 58-59.

33

Ibidem, p. 69-70. 103

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posições afidalgantes na corte e na colônia: seu pai, o Capitão D. Manuel de Mendoza, cavaleiro de Calatrava e fidalgo da Casa Real; sua mãe, D.a Maria de Mendoza. Os avôs paternos, Capitão Antônio de Mendoza e D.a Ana de Saraiva, e os maternos, o Mestre de Campo Domingos de Saraiva e D.a Francisca de Mendoza; “todos los sobredichos padres y abuelos y el mismo pretendiente naturales de Pernambuco en el Brasil”. Não esquecendo que seu pai e seus dois avôs haviam servido também como provedores e secretários da Santa Casa de Misericórdia de Pernambuco, uma confraria na qual “ay distinción de los Nobles Hijos dalgo a los mecanicos”.34 Mencionando-se ainda que eram, tanto seus pais, quanto seus avós paternos e maternos, “primoshermanos”: ilustrações do intenso processo de endogamia que Evaldo Cabral de Mello já afirmou ser característico da elite açucareira no século XVII.35 Os redatores da habilitação escreveram ainda sobre as irmãs de D. Bartolomé: D.a Serafina, D.a Elena, D.a Violante e D.a Manuela de Mendoza, todas irmãs do hábito de Calatrava, “profesas en el convento Real de Calatrava desta Corte”.36 Além de mencionarem outros parentes, sempre aqueles cujo status contribuía para dar à linhagem dos Mendoza um caráter fidalgo. Parentes como três de seus tios: Gaspar Mendoza, Domingos de Mendoza, fidalgo da Casa Real, e Antonio de Mendoza, provedor da Santa Casa da Paraíba, além de juiz e provedor na mesma capitania; também um seu primo, D. Jacinto de Mendoza, cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo da Casa Real, e, é claro, Pedro de Mendoza, primo de um de seus avôs, que fora inquisidor em Lisboa e que, segundo os autos, “en Pernambuco celebró auto de fé habrá cosa de cincoenta años”. E D. Bartolomé Saraiva de Herrera, outro tio, dito ter sido da “inquisición que governó muchos años la jurisdición eclesiástica en

34

MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballeros_Calatrava, exp. 1618, fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España, Consejo de Ordenes.

35

MELLO, Evaldo Cabral. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, p. 22.

36

MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballeros_Calatrava, exp. 1618, fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España, Consejo de Ordenes. 104

de senhores de engenho a cortesãos

Pernambuco”.37 Esses e outros parentes são todos mencionados no intuito de ressaltar fidalguia ou serviços prestados à Coroa: todos sus parientes assídos [sic] siempre de la parte de los Nobles Hijos dalgo lo qual es pu [sic] y notório el dicho Don Manuel de Mendoça y su padre Antonio de Mendoza y su Abuelo el mestre de Campo Domingo de Saraiva y el dicho Gaspar de Mendoça han servido siempre los oficios nobles de la Republica.38

Os autos registravam ainda D. Manuel de Mendoza como testemunha do filho, e não apenas como residente na corte espanhola, mas como possuidor de “casas próprias” nessa cidade.39 Assim, em seu conjunto, o processo de D. Bartolomé elaborava toda uma construção discursiva que procurava formular, para esse aspirante ao hábito, uma linhagem o mais nobre possível, sem que se questionasse, em nenhum momento, a própria validade da situação desses hijos dalgo em Pernambuco. Além disso, no mesmo período em que sua habilitação tramitava junto ao Consejo de Ordenes, este analisava também a situação de um seu parente próximo: seu irmão, D. Jerônimo de Mendoza, igualmente registrado como natural de Pernambuco. D. Jerônimo já havia recebido, em 1642, um certificado do rei que lhe concedia o hábito da Ordem de Santiago, “con calidad expresa que aya de servirme la campaña deste año en el Vatallón de la Cavallería de las dhas ordenes”: uma exigência ilustrativa do quanto a concessão desse hábito em particular estava em total consonância com a política régia de ordenação como mercê por serviços militares prestados. Pouco depois, todavia, o hábito de D. Jerônimo seria transferido, em 1645, para Calatrava com a justificativa da “devoción que tiene a S. Benito”.40 De fato, como seu pai e seus irmãos e irmãs já 37

Ibidem.

38

Ibidem.

39

MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-EXPEDIENTILLOS, N. 10316. Disponível em: . Acesso em: 3 out. 2014.

40

MENDOZA de Mendoza, Jerónimo de. Archivo Histórico Nacional, OM-CABALLEROS_CALATRAVA, Exp. 1620 – 2 Recto – Imagen Núm: 3/110; e 7/110. Disponível em: . Acesso em: 3 out. 2014. 105

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estavam ordenados em Calatrava, sem falar no processo tramitante de seu irmão, fazia sentido que sua devoção lá residisse. No caso de D. Jerônimo, seu processo em Calatrava afirmava, ao tratar de sua transferência, que seu hábito em Santiago fora uma concessão real por serviços prestados na cavalaria espanhola, mas não faz referência ao local de atuação de seu batalhão, apenas que deveria servir nas campanhas daquele ano de 1642. Se a origem das ordens militares estivera conectada à cavalaria tanto enquanto instituição social da nobreza ibérica, quanto enquanto corpo militar, no século XVII, essa função militar estava em franca decadência, o que levava a Coroa a tentar reavivá-la através de concessões como essa feita a D. Jerônimo, em um momento de acirrados conflitos territoriais e crescente carência de recursos. No caso de D. Bartolomé, por outro lado, os autos não trazem nenhuma indicação semelhante acerca das razões da concessão do hábito. As únicas insinuações são aquelas que sugerem que las pruebas para comprovar sua valia haviam sido todas seguidas à risca: En La Villa de Madrid a diez días del mes de Mayo de mil y seiscientos y quarenta y cinco años Don Fernando de Porras y el Lizen[do] Frey Joan de Haro y Quesada Cavallero y religioso profesos del orden de Calatrava nombrados por V. A para hacer la informaciones de las calidades de nobles y limpieza y demás requisitos de don Bartolomé de Mendoza natural de la villa de Pernambuco en el Brasil, para el dicho habito de calatrava que pretende y cumpliendo con la real provisión y decreto en que se nos manda se hagan dichas informaciones en esta corte, hicimos las diligencias siguientes y lo firmamos.41

Apesar disso, as mesmas provanças não incluíram o envio de representantes ao Brasil para inquirir sobre a valia do candidato, como exigiam as regras. Pelo contrário, uma justificativa foi posta, entre os documentos do processo, explicando a ausência dessa diligência: 41

MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-EXPEDIENTILLOS, N. 10316. Disponível em: . Acesso em: 3 out. 2014. 106

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Señor. Don Bartholomé de Mendoza diçe que V. Mg[de] le yço merced del habito de la Horden de Calatraba y porque es natural de Pernambuco en Brasil que ha tantos años esta ocupado de olandeses no se puede ir allá a hacer las pruebas de el dicho habito y por ser así VMg se sirbió de dispensar con Su Padre Don Manuel de Mendoza y con cuatro hermanos que tiene con habito de Calatraba [ ] mente con el Capitán Don Jeronimo de Mendoza su hermano para que se ycressen [sic] en esta Corte por patria común supplica a VMgd atento a lo referido le haga merced mandar que las pruebas del dicho habito y todas las dependencias se hagan en esta Corte adonde hay bastantes testigos de el Brasil para decir en ellas en que recibirá merced.42

Os redatores justificavam, dessa forma, a ausência de uma investigação mais profunda das origens do candidato no Brasil alegando dificuldades de comunicação com aquele território ocupado pelos inimigos, e negando, nesse processo, a Restauração Portuguesa e o fato de já não estar mais, todo aquele território, sob controle de Madri. Por causa dessa situação, solicitavam permissão para substituir as investigações no ultramar por outras que poderiam ser facilmente realizadas na corte, visto que, segundo eles, muitos naturais do Brasil lá residiam; embasando seu pedido sobre a respeitabilidade da família: ressaltando que não apenas D. Manuel, pai do candidato, já era um cavaleiro de Calatrava, mas também outros quatro de seus filhos, dentre os quais destacavam, D. Jerônimo, apresentado como Capitão, provavelmente pelo reconhecimento que serviços militares já lhe haviam angariado. Assim foi que as inquirições sobre a família Mendoza foram realizadas apenas na Corte, onde os encarregados de tais diligências, D. Fernando de Porras e o religioso e licenciado Frei João de Quesada, de fato encontraram testemunhas originárias de Pernambuco.

42

MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-EXPEDIENTILLOS, N. 10316. Disponível em: . Acesso em: 3 out. 2014. 107

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O primeiro desses informantes foi D. Pedro Álvares de Acosta, cavaleiro da Ordem de Cristo e também natural de Pernambuco, mas então residente na corte espanhola, cuja primeira resposta ao inquérito – em resposta do questionário tradicional em tais processos – nos apresenta a idade de D. Bartolomé: “veinte dos años poco más o menos”. Após ter testemunhado que ele conhecia os pais de D. Bartolomé em Pernambuco, os quais haviam sido vecinos naquela vila – provavelmente Olinda –, e que os mesmos eram de fato casados, o que fazia do pretendente um filho legítimo, disse também ter conhecido os avós paternos, todos naturais de Pernambuco, e primos irmãos que se haviam casado com dispensa especial. Afirmando ainda, acerca da família, que eram todos bem reputados:43 save que son y fueron cavalleros hijos dalgo notorios de sangre segun fuero de españa sin rajas ni mesclas de villanos y esto lo save porque demas de aver estado y estar siempre havidos y tenidos por tales Cavalleros hijos dalgo = el dh[o] Capp[an] Don Manuel de Mendoza Padre de el pret.[e] es cav[o] del orden de Calatrava y Fidalgo de la Casa de Su Mag[d] ya sido cofrade de la cofradía de la Misericordia en la dh[a] Villa de Pernambuco probedor y secretario della la qual es de estatuto y en dha Cofradia ay distinsion de los nobles hijos dalgo a los pecheros y los dos ofisios no se dan sino es a los que son nobles con que se diferensian de los que no lo son.44

Essa reiteração da nobreza dos Mendoza em Pernambuco parece tomar como ponto pacífico a existência de fidalgos nesse território colonial, o que, por seu turno, nada tinha de consenso. Na verdade, as práticas afidalgantes desses senhores e sua representação enquanto nobreza parecem ser os elementos considerados, no processo dos Mendoza, por suas testemunhas. Por sua vez, todas as respostas de Acosta se encaixavam perfeitamente nas exigências de idade, linhagem e honorabilidade, dos estatutos de limpeza de sangue das ordens militares. 43

MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballeros_Calatrava, exp. 1618, fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España, Consejo de Ordenes.

44

Ibidem. 108

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Realmente, continuando seu testemunho, D. Pedro Álvares de Acosta seguiu reafirmando a reputabilidade de D. Bartolomé a partir da menção de um rol de seus parentes conhecidos, citando seus vários títulos e cargos ocupados. Ademais, em resposta às perguntas seis e sete do questionário de habilitação, atestou ser a família toda composta por cristão-velhos, e usou como comprovação dessa limpeza o próprio ingresso das irmãs de D. Bartolomé no Convento de Monjas de Calatrava, na corte espanhola, além da existência de um seu parente inquisidor,45 não esquecendo ainda de defender que a família estava limpa também de qualquer vínculo com os ofícios mecânicos, vivendo na corte apenas de suas rendas.46 Informação que, infelizmente, não temos como comprovar. As outras testemunhas entrevistadas por D. Fernando de Porras e por Frei Quesada em tudo concordaram com as respostas de D. Pedro Acosta; todos eles, em conjunto, atestando a veracidade daquela informação inicialmente posta no processo, acerca da facilidade de se encontrar, na corte espanhola, respeitáveis naturais de Pernambuco. Foram eles: Pedro Mendes Sotto; Don Prudensio de Salvaterra; e D. Fernando Pereira Corte Real, cavaleiro de Alcântara, capitão de couraças, fidalgo da Casa Real, apresentado também como governador – apesar de não ficar estabelecido de onde – e natural de Lisboa, mas que havia vivido em Pernambuco mais de trinta anos.47 Por sua vez, todas essas diligências eram extremamente caras e deveriam ser custeadas pelo próprio pretendente. E de fato os autos registram que D. Bartolomé foi responsável pelo depósito de, pelo menos, cinquenta ducados em benefício das custas do processo, a serem pagos aos cavaleiros e religiosos que haviam feito as referidas diligências.48 Uma quantia considerável que nos deixa a inquietação acerca da origem dos recursos familiares, e da possibilidade da manutenção de seus laços com o mundo colonial e os engenhos na então conflituosa capitania de Pernambuco. 45

Ibidem.

46

Ibidem.

47

Ibidem.

48

Ibidem. 109

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Seja como for, D. Bartolomé foi ordenado, e parece ter sido atuante junto à ordem já que as notícias posteriores a 1645 indicam que ele testemunhou em outros processos de habilitação, por exemplo: no de D. Diego Gutiérrez Barona, natural da vila de Castrojeriz, datado de 1654, no qual Mendoza é descrito como caballero informante da limpeza de sangue de Barona.49 Ou seja, uma década após seu ingresso em Calatrava, esse cavaleiro natural de Pernambuco se tornara ele próprio um informante do Consejo de Ordenes para a habilitação de outros, assumindo assim um papel importantíssimo, pois eram esses informantes que forneciam as “provas” acerca do caráter, linhagem e serviços prestados pelos suplicantes. Provas usadas pelos conselheiros na tomada de decisão acerca da recomendação ou não da concessão dos títulos.50

Considerações finais Então, à medida que, através da leitura crítica dos processos dos Mendoza, fomos coletando indícios variados acerca da situação dessa família na corte da Monarquia Católica, e tentando fornecer respostas para as questões levantadas por eles, algumas reflexões gerais foram sendo construídas. Em primeiro lugar, se por um lado os processos deixam claro a fixação da família na corte e suas origens coloniais, por outro, eles informam muito pouco acerca da continuidade desses laços com o mundo do açúcar. Na verdade, sob certo ponto de vista, tais laços parecem mesmo terem sido cortados, se considerarmos a própria situação de Pernambuco, logo, fora dos limites do alcance espanhol. Isso não parece ter impedido, todavia, que a representação dos Mendoza na corte estivesse ainda associada ao mundo do açúcar. Sua identidade continuava a ser, de fato, a de fidalgos provinciais, tão visível em sua apresentação enquanto naturais de Pernambuco. Vale lembrar aqui que, até 1668, os Habsburgo ainda reivindicariam seus direitos sobre o

49

DÁVILA JALÓN, op. cit.

50

ÁLVAREZ-COCA GONZÁLEZ, op. cit., p. 290. 110

de senhores de engenho a cortesãos

trono português e seus territórios, e até essa data continuariam a conceder títulos de nobreza portugueses, como o de Marquês de Basto, conferido ao desterrado donatário de Pernambuco, Duarte de Albuquerque Coelho.51 Nesse sentido, nada mais de acordo que os Mendoza, enquanto fidalgos coloniais portugueses, continuassem a ser prezados no círculo cortesão. Entretanto, se poucas são as pistas acerca da manutenção dos vínculos com o mundo colonial, ou sobre a origem da riqueza da família, que sua relevância cortesã estava vinculada a seus serviços militares transparece principalmente no processo de D. Jerônimo de Mendoza, visivelmente agraciado graças a seus serviços militares. Isso nos leva a uma situação que se repetiria mais tarde com outro senhor de engenho residente na Espanha, Jorge Lopes Brandão: Brandão, como D. Jerônimo, receberia mercês e concessões das mãos do rei Habsburgo graças à sua forte atuação nos muitos conflitos travados em território espanhol. Ambos inserindo-se, assim, em uma categoria, a dos práticos de guerra, extremamente presada na Península Ibérica seiscentista, e tema constante de diversos comandantes portugueses e espanhóis que haviam servido no Brasil, e que em diferentes ocasiões haviam aconselhado suas respectivas coroas a aproveitarem os servidos desses mazombos do outro lado do Atlântico.52 Por fim, muito ainda há a ser explorado sobre esse cenário: das irmãs Mendoza, ordenadas em um prestigioso convento espanhol, até as próprias origens coloniais da família. E é exatamente essa riqueza 51

Cf. SILVA, Kalina Vanderlei. O herói virtuoso, prudente e dissimulado: o cortesão como ideal masculino nas cortes ibéricas dos séculos XVI e XVII. História, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 243, jan./jun. 2013.

52

Em outro trabalho, tivemos a oportunidade de analisar Jorge Lopes Brandão e sua associação com as guerras espanholas: Idem. Um senhor de engenho a serviço do rei da Espanha: a América portuguesa e a Monarquia universal no século XVII. (No prelo). E ainda sobre os conselhos de comandantes como D. Luis de Rojas y Borja e Matias de Albuquerque para o uso ibérico dos práticos de guerra coloniais: Idem. Francisco de Brito Freyre e a reforma militar de Pernambuco no século XVII. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil – Estudos de história militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Editora Oikos, 2012. 111

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

em termos de indícios que transforma D. Bartolomé e seus parentes em importantes elos na compreensão das conexões entre a elite açucareira da América portuguesa e a corte dos Habsburgo, levantando ainda interessantes inquietações sobre as possibilidades em torno da transformação de uma família de senhores de engenho da periferia dos territórios da Monarquia Católica em fidalgos cortesãos em Madri.

112

Os brutos também leem: livros e leitores na São Paulo do período filipino (1580-1640)

José Carlos Vilardaga1

Este texto busca apresentar uma breve história social da presença dos livros e dos leitores na São Paulo do período filipino (1580-1640). É quase uma obviedade afirmar que ao abordar tal tema trafegamos na raridade. Em verdade, são poucos os livros e leitores conhecidos e é dificílimo entrever as práticas de leitura. Para piorar tal quadro, muitas vezes as fontes apresentam os títulos dos já poucos livros nomeados de maneira estropiada ou incompleta. E como analisar um tema que oferece tantos obstáculos? Optou-se por seguir os rastros e pistas deixados fragmentariamente em documentos diversos, em especial nos inventários e testamentos que referenciam a presença de alguns exemplares. Claro que ancorar esta tarefa de pesquisa nos inventários impõe certa cautela: imaginar possíveis erros do escrivão, cogitar que livros possam ter sido omitidos, transitar na contínua incerteza sobre a efetiva leitura dos volumes arrolados, e ter clareza de que não só destes livros nomeados se

1

Prof. Dr. de História da América Colonial na Universidade Federal de São Paulo.

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

compõe o repertório literário do sujeito.2 De todo modo, busca-se aqui esboçar um perfil destes possuidores, apontar direções interpretativas e clarear as situações obscuras que permeiam a trajetória dos livros no aludido contexto. Enfim, desvendar o que havia para ser lido. Ao pretender mapear os donos dos raros livros e identificar alguns de seus leitores – se bem que o fato de alguém possuir livros nunca foi garantia de sua efetiva leitura3 –, almeja-se encontrar alguma coerência nessas diminutas bibliotecas. Ademais, a tarefa mais instigante talvez seja imaginar se estas leituras fizeram parte de um universo livresco comum ao período e inspiraram vivências e experiências na realidade colonial de uma pequena vila de fronteira. Concorda-se, aqui, com as assertivas que tratam o leitor como um mistério, e de que são praticamente insondáveis os mecanismos de apropriação subjetiva da leitura; contudo, uma abordagem contextual e aproximativa não pode ser descartada.4 Antes de continuar, vale ressaltar que livros existiram, com certeza, nas bibliotecas das casas religiosas da vila: no Mosteiro de São Bento e, especialmente, no Colégio de São Paulo da Companhia de Jesus que, em função mesmo de sua atividade educacional – única na vila durante largo período –, utilizaria os livros como instrumento pedagógico.5 Seus conteúdos são, ainda hoje, uma incógnita, e deixa-se de lado, neste tra2

HAMPE MARTINEZ, T. La difusión de libros e ideas en el Perú colonial. Análisis de bibliotecas particulares (siglo XVI). Bulletin Hispanique, v. 89, n. 1-4, p. 55-84, 1987.

3

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

4

“Apesar de uma volumosa literatura sobre sua psicologia, fenomenologia, textologia e sociologia, a leitura continua a ser misteriosa” Ibidem, p. 127.

5

O padre Simão de Vasconcelos se referia ao papel educativo, em especial no ensino da gramática, do Colégio dos Jesuítas em São Paulo na Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brazil e do que obraram seus filhos nesta parte do novo mundo (1663). O pioneiro trabalho de Alcântara Machado apresenta, através de inventários, alguns “mestres” de aulas particulares, como Antônio Pereira da Costa e Diogo Mendes Rodrigues. MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 114

os brutos também leem

balho, uma abordagem sobre o tema. Rubens Borba de Moraes analisou brevemente o assunto, ressaltando como as bibliotecas dos jesuítas, extensas pela própria natureza culta da ordem, eram abertas aos eventuais consulentes. Ele recorda, pesaroso, o “golpe terrível” que os presumíveis leitores sofreram com a expulsão da ordem dos territórios coloniais portugueses no século XVIII.6 Ressalte-se, contudo, que de São Paulo os jesuítas foram expulsos uma primeira vez em 1640, e que os bens da ordem, aí obviamente incluídos os livros, tiveram destino incerto.7 De qualquer forma, o que nos interessa aqui é a posse individual e privada de livros. Para começar, de quantos livros estamos a falar exatamente? Alcântara Machado, em 1929, levantou 55 livros em 15 inventários entre 1578 e 1700, num universo de pouco mais de seiscentos inventários. Ernani da Silva Bruno, na mesma documentação, encontrou referência a livros em 17 inventários, sendo o primeiro deles em 1612.8 Estes números foram encampados por outros estudiosos que se remeteram, ou se referiram, aos livros de São Paulo, como Rubens Borba de Moraes e mais recentemente Luiz Carlos Villalta.9 Nossa pesquisa não altera 6

MORAES, Rubens Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil Colonial. São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura, 1973.

7

Os jesuítas foram expulsos da vila em 1640 em função de conflitos estabelecidos em torno do uso da mão de obra indígena e sua escravização – eufemisticamente chamada, em São Paulo, de administração. A Ordem só voltaria à vila, mediante acordo, em 1653. O colégio possuía, em 1640, cerca de 150 alunos divididos entre aulas de português e latinidade, cf. FRANZEN, Beatriz Vasconcelos. Jesuítas portugueses e espanhóis no sul do Brasil e Paraguai coloniais. São Leopoldo: Unisinos, 2005.

8

BRUNO, Ernani da Silva. O equipamento da casa bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1977.

9

Villalta lembra que, conforme pesquisa de Luiz Mott, a maior biblioteca conhecida entre os séculos XVI e XVII é a do italiano Rafael Olivi, de Ilhéus, que tinha 27 livros. Ele lembra ainda que os livros de São Paulo representam “pouco mais do dobro do acervo de Rafael Olivi”. VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: NOVAIS, Fernando A.; SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano 115

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

significativamente estas quantificações, mas agrega alguns volumes, encontrados em documentos não analisados pelos autores citados. Na verdade, quanto aos números, a pesquisa conclui substancialmente o mesmo: eram poucos. Mas, o que importa afirmar é que, neste largo espectro temporal analisado pelos especialistas, as seis décadas do período filipino compreendem a grande maioria deles, com 39 volumes. Ao considerarmos que somente Matias Rodrigues da Silva, em 1710 (fora, portanto, do escopo deste trabalho), possuía 18 livros, vê-se como o período filipino apresenta não só maior quantidade, como os volumes eram melhores distribuídos, ao percorrer 11 inventários e dois processos.10 Mas o que podemos depreender dessa constatação? No período filipino efetivamente se lia mais? Para além de se afirmar a importância que os livros, e a palavra escrita, guardaram para a estrutura e organização do império dos Filipes – legitimando carreiras, trajetórias, normas e sociabilidades –, deve-se indicar também a relevância de fenômenos de cunho local para compreender essa concentração.11 Dentre estes, o primeiro a ser abordado é o das bandeiras. Não há sinônimo mais atrelado à realidade colonial paulista dos seiscentos que o e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 331-385. v. 1. MORAES, Rubens Borba de, op. cit. 10

Aqui elencamos livros extraídos de inventários, de uma referência em processo inquisitorial, publicado em PEREIRA, Ana Margarida Santos. A inquisição no Brasil: aspectos da sua actuação nas capitanias do Sul, de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006; e do processo movido contra Manoel Pinheiro Azurara, em Assunção, por ocasião de sua prisão em 1606. Arquivo Nacional de Assunção (ANA), Seccion Civil y Criminal, 1549, 4.

11

Sobre o papel dos letrados no contexto social do império espanhol dos Felipes, e dos ibéricos em geral: ELLIOTT, John. España y su mundo (1500-1700). Madrid: Taurus, 2007; VILLAR, Pierre. O Tempo de Quixote. In: DESENVOLVIMENTO econômico e análise histórica. Lisboa: Presença, 1982, p. 255-268; BOUZA ÁLVAREZ, Fernando J. Del Escribano a la Biblioteca. Madrid: Síntesis, 1997; e Corre Manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001; ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula Torres (Org.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séc XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009. 116

os brutos também leem

chamado bandeirantismo. Expedições multifuncionais que percorreram os territórios coloniais luso-castelhanos em demanda por índios, minérios e oportunidades comerciais, envolveram praticamente toda a população da Capitania de São Vicente entre finais do século XVI e o século XVII. Não se pode, obviamente, falar numa categoria de homens intitulada bandeirante, já que foi uma atividade largamente tocada por moradores de diversos ofícios, níveis de riqueza e origens, em situações múltiplas e variáveis ao longo das décadas abarcadas por esse processo. Faceta importante da experiência bandeirante foi o uso da violência, especialmente quando participava de uma de suas atividades hegemônicas, qual seja, o descimento de indígenas.12 Para tanto, as bandeiras foram cada vez mais longe e percorreram alguns caminhos inusitados e temerários. Nesse sentido, a imagem do “bandeirante” representou sempre a face mais visível da rusticidade, precariedade, marginalidade e brutalidade da realidade colonial. Foram termos que bem definiram uma parte da realidade da vila de São Paulo, pelo menos nos seus dois primeiros séculos.13 E nada mais contrário a este mundo aparentemente gerido pela mais básica sobrevivência, pelo pé descalço em demanda do sertão mais hostil, que alguns livros. Por isso mesmo, a presença de alguns volumes nessa “bruta” realidade sempre carregou certo ar excêntrico. Esparsos, e em pequena quantidade, representaram um conteúdo narrativo exótico da história da São Paulo colonial.14

12

Deve-se ressaltar que os sertanistas de São Paulo não se valeram somente de meios violentos para o descimento de indígenas. Cf. MONTEIRO, John. Os Guarani e a história do Brasil Meridional. Séculos XVI-XVII. In: CUNHA, M. Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1982, p. 475-498.

13

Muitas destas características eram, verdadeiramente, comuns à realidade colonial: NOVAIS, Fernando A. Condições de privacidade na colônia. In: ______.; SOUZA, Laura Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 13-40. v. 1.

14

Essa presença de livros vista como “exótica”, é evidente em MACHADO, A., op. cit.; TAUNAY, Afonso de E. São Paulo nos primeiros anos (1554-1601), São Paulo 117

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Entretanto, nos últimos anos, uma parcela da historiografia tem se esforçado no sentido de relativizar essa imagem aparentemente unívoca de uma São Paulo marginal, isolada, predominantemente violenta e povoada por rudes colonos. Assim, vem surgindo uma vila mais inserida na lógica de circulação mercantil – mesmo que cumprindo funções secundárias –; articulada por uma rede de caminhos e trânsitos e povoada por colonos de diversas origens numa típica vivência colonial. Portanto, a presença dos livros, nas mãos destes homens, também deveria acompanhar uma história mais conectada, integrada e branda em seu cotidiano.15 Paradoxalmente, comecemos a apresentação do cenário dos livros na São Paulo dos “bandeirantes” não através de uma presença, mas de uma ausência: Os Lusíadas. Um livro que, na sua materialidade, não esteve presente, mas se fez sentir no repertório de um morador da vila de São Paulo que, diante de determinada situação, apropriou-se da literatura como chave de compreensão da realidade, traduzindo sua experiência em estrofes camonianas. Às vésperas da morte, Pedro de Araújo, bandeirante abatido por moléstia ou arma em pleno sertão, rememorou trechos de Camões que fez questão de anotar numa folha avulsa, que mais tarde serviria para registrar seus bens e últimas vontades. Se bem que, numa probabilidade menor, possa ter sido o escrivão, num arroubo poético, que enxergou no destino daquele sertanista algo próximo dos versos do grande poeta quinhentista português. Enfim, é difícil precisar a razão de um inventário sacramentado em 1617 receber, ao seu final, as insignes estrofes em cópia manuscrita. Dentre os versos transcritos, a estrofe VII, do Canto V: no século XVI. São Paulo: Paz e Terra, 2003; e BRUNO, Ernani da S. Histórias e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984. v. 1. 15

Por exemplo: MONTEIRO, John M. Negros da terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do século XVII (1648-1682). Bauru, SP: Edusc, 2010; RUIZ, Rafael; THEODORO, Janice. São Paulo de vila a cidade. In: PORTA, Paula (Org.). História da cidade de São Paulo: A cidade colonial (1554-1822). São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 69-113. 118

os brutos também leem

Passamos o limite aonde chega O Sol, que para o Norte os carros guia, Onde jazem os povos a quem nega O filho de Climene a cor do dia. Aqui gentes estranhas lava e rega, Do negro Sanagá a corrente fria, Onde o Cabo Arsinário o nome perde, Chamando-se dos nossos Cabo Verde.

A folha, tão bem aproveitada em meio à generalizada carência de papel naquelas remotas terras, fazia parte de um inventário e testamento, lavrados no sertão do Paraupava, de um sujeito que o mandara fazer por “andar a risco e aventuras”.16 O bandeirante Pedro de Araújo era de Refóios do Lima, no norte de Portugal, onde deixara alguns bens na guarda de sua mãe. Aventurara-se já pela Bahia, onde teria contraído dívidas “de resto de umas cartas de jogar”. Casou-se, em São Paulo, com a viúva Ana de Alvarenga, irmã de Antonio Pedroso de Alvarenga, capitão da bandeira que assistia seus últimos momentos. A bandeira era, como tantas outras, familiar. O próprio Araújo carregava consigo naquela aventura sertanista um filho de Sebastião de Freitas, ex-cunhado de sua esposa. Afiliado aos “principais” da vila de São Paulo, Pedro de Araújo tinha terras em Cabuçu (próximo a atual Guarulhos) e um plantel de quinze “índios forros”, entre carijós, temiminós e tapuias. Participara já de outras bandeiras ao sertão de Patos e era parente do provedor da fazenda real em São Paulo, Sebastião Fernandez Correa, que assumiu a tutela de seu filho depois de sua morte. Araújo era letrado, e disto não resta dúvida, já que deixara entre seus pertences anotações de próprio punho de suas dívidas. Muito provável, portanto, que ele mesmo tenha anotado as estrofes nos papéis que, depois da sua morte, seriam utilizados para inventariar seus bens no sertão. Possível prova definitiva é que, entre 16

A referência à carência de papel em São Paulo é apresentada por TAUNAY, Afonso, op. cit. O testamento de Araújo: INVENTÁRIOS e Testamentos (I&T), São Paulo: Divisão do Arquivo do Estado de São Paulo (DAESP), v. V. Segundo Manoel Rodrigues Ferreira, em seu As bandeiras do Paraupava (São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 1977), tal sítio se localizava na região do Araguaia. 119

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seus bens leiloados naquelas longínquas paragens, estava um tinteiro, avaliado pelo escrivão em cem réis, e sem compradores declarados entre os poucos sensibilizados integrantes da tropa. O que nos causa espécie neste episódio é a ideia de uma tradução literária da realidade feita pela pena de um teoricamente rude bandeirante. De fato, naquele sertão, entre abril de 1616, data de seu testamento, e o longínquo dezembro de 1617, Araújo ultrapassara definitivamente “os limites onde chegava o Sol”, em meio a “gentes estranhas”. Realidade e ficção se reuniam na experiência de Araújo. Irving Leonard, em trabalho clássico, abordou como os romances de cavalaria – como Amadis – não só eram presentes na América, apesar das proibições, como inspiraram ações dos conquistadores.17 Os versos de Os Lusíadas, e a tradução em versos da epopeia portuguesa em terras e mares distantes bem podem, em escala menor, ter inspirado este erudito do sertão. Assim, se o livro não consta dos inventários paulistas – fato sobremaneira lamentado por alguns – está presente na memória de nosso letrado sertanista.18 Como afirma Alberto Manguel: “Ao recordar o texto, ao trazer à mente um livro que um dia teve nas mãos, esse leitor pode tornar-se o livro, no qual ele e os outros podem ler.”19 Com esta mesma verve literária, ainda não se encontrou outro caso semelhante nos documentos paulistas. Mas, no quesito leitura piedosa, as bandeiras nos oferecem outro exemplo. Há pelo menos um possuidor de livros entre os bandeirantes inventariados em pleno sertão. Trata-se 17

LEONARD, Irving A. Los Libros del Conquistador. México: Fondo de Cultura Econômica, 1979. O controle dos livros que entravam na América espanhola foi constante. Desde o reinado de Isabel que “Amadis”, por exemplo, foi proibida de entrar na América, pois poderia influenciar os indígenas. Em 1550, cédulas reais de Carlos V exigiram uma licença para todos os livros que fossem embarcados para a América.

18

Referências ao lamento pela ausência de Camões: MACHADO, Alcântara, op. cit.; BELMONTE. No tempo dos bandeirantes. São Paulo: Edições Melhoramentos, [s.d.].

19

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 75. 120

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de Manoel Preto, o moço. Ele era membro de uma família com larga tradição sertanista. Seu pai foi dono de terras e de muitos índios na região de Nossa Senhora da Expectação do Ó, em São Paulo, e frequentava o Guairá desde a primeira década do século XVI, de onde descera índios temiminós. Mais tarde, o pai foi o líder dos ataques às reduções jesuíticas do espaço guairenho a partir de 1628, e morreu por flechadas no atual território catarinense em 1630. O moço, seguindo os passos bandeirantes do pai, teve seu inventário feito no sertão em 1637, junto com seu irmão, João Preto, ambos falecidos na mesma ocasião. Os juramentos para o inventário foram feitos sobre “umas Horas”, na ausência de uma Bíblia, imagina-se. Estes livros de “Horas”, que poderiam ser manuscritos ou impressos, eram muito comuns desde a Idade Média e funcionavam como um material de devoção portátil, substituindo a Bíblia em inúmeras situações. Para diversas famílias europeias ainda no século XVI era, muitas vezes, o único livro existente e costumeiramente utilizado para o ensino das primeiras letras.20 O seu conteúdo era composto de ofícios de missa, hinos religiosos, calendário santo e orações diversas. No entanto, se o livro sagrado faltava aos membros daquela bandeira, nos bens arrolados de Manoel estava um “livro velho de Heitor Pinto”, muito provavelmente já surrado de uso, assim como outro “livro velho” não nomeado.21 A obra, escrita pelo frei jeronimiano Heitor Pinto (1528-1584), chamava-se Imagens da Vida Cristã e era dividida em duas partes – mas não sabemos qual delas estava entre os bens de Preto –, e foi obra popularíssima, tendo somente no século XVI vinte edições. Encontra-se, em São Paulo, a obra em pelos menos mais dois inventários. O texto, em estilo bastante livre, era composto em forma de diálogo, na qual os debatedores conversavam sobre aspectos da beleza e grandeza de Deus e sua criação. Cada diálogo se encerrava ao pôr do sol. Pode-se imaginar um entardecer bandeirante repleto de lições morais! O problema é que dentre os ensinamentos de Frei Heitor estava um que cerceava a

20

Ibidem.

21

I&T,

1638, v. XI. 121

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liberdade de leitura. Dizia ele que “o principal estudo há de ser por livros católicos, porque deixar os divinos pelos profanos é erro grave, em que muitos embicam e outros caem”.22 Entre os outros bens de Preto, um “naipe”, isto é, um baralho. Os livros poderiam compor, eventualmente, junto com a viola e o jogo de cartas, formas de sociabilidade e lazer no cotidiano do sertão. Laura de Mello e Souza, em excelente trabalho sobre o cotidiano das expedições aos interiores da América portuguesa, mostra como, em meio à precariedade, aos perigos e instabilidades do sertão, os membros buscavam construir formas de sociabilidade e domesticidade que abrandassem os estranhamentos.23 Ainda nos referindo à família dos Pretos, Sebastião – tio do moço Manoel e sertanista dos mais afamados – deixou ao morrer, em 1623, também vítima de flechada, uma viola e alguns livros, aparentemente todos de cunho religioso. É um daqueles casos, infelizmente, que o nome abreviado, e comum, dificulta a tentativa de recuperar os títulos.24 Lá está um “Salve Rainha”, oração muitas vezes cantada; um “livro de São João” e um intitulado Conquista de Jerusalém, que bem poderia ser, num exercício de projeção literária, a Jerusalém Conquistada de Lope de Vega. Contudo, parece remeter muito mais a uma típica biblioteca de cunho milenarista, na qual se vê um vale de lágrimas marcado pela iminente redenção do fim dos tempos. Mas se as bandeiras dão um dos tons desta vila de São Paulo no contexto filipino, outro é a demanda mineral e a busca pelo ouro. De fato, um dos sentidos maiores das primeiras grandes bandeiras orga-

22

MENDES, António Rosa. A vida cultural. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – no alvorecer da modernidade (1480-1620). Lisboa: Estampa, 1993, p. 405. v. 3. Frei Heitor se aliara, durante a crise dinástica portuguesa da década de 1580, ao lado das pretensões de D. António, o Prior do Crato, o que lhe rendeu um exílio no final de sua vida.

23

SOUZA, Laura Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: NOVAIS, Fernando A.; ______. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 41-82. v. 1.

24

I&T,

1623, v. XI. 122

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nizadas no planalto foi exatamente a busca por metais e a averiguação das notícias e boatos que circulavam sobre esta suposta riqueza. As tais minas de São Paulo arrastaram polêmicas no século XVII e chegaram a atrair o governador geral do Brasil, Dom Francisco de Souza, à vila. O governador permaneceu em São Paulo entre 1599 e 1604, numa primeira vez, e entre 1610 e 1611, numa segunda ocasião. Nesta última, inclusive, ali faleceu, pobremente, segundo Frei Vicente de Salvador. Souza, apesar de certa imagem de “Quixote mineral” que se construiu sobre ele postumamente, vinha cumprir fielmente seu regimento e suas ordens, emanadas de Felipe II, para demandar tais riquezas. Já apoiara Gabriel Soares de Souza em suas expedições pelo São Francisco e depois, guiado pelas notícias de ouro encontrado na região da Capitania de São Vicente, ali se instalou. Não é necessário muito esforço para imaginar o impacto que a presença dele teve para a pequena vila paulista. As Atas da Câmara transparecem o rebuliço geral causado pela expectativa da chegada do governador, obrigando os camaristas a normatizarem uma série de questões, como direito a pesca, ofícios e um lugar para pouso, comes e bebes. Na verdade, com o governador chegava não só a dignidade da função, como também uma grande possibilidade de acesso a cargos, mercês e negócios.25 Por fim, ainda vinha com o governador uma grande comitiva. Esta, de acordo com as palavras de Francisco de Assis Carvalho Franco, era a “mais douta, mais operosa e mais luzida que já vira a colônia nascente”.26 Segundo Afonso Taunay, a chegada de Francisco de Souza a São Paulo foi um verdadeiro “choque de civilização”.27 A vinda desta comitiva revela outra dimensão fundamental, que é o incremento populacional da vila. Ela deve ter causado verdadeira revolução na dinâmica do povoado, pois interferiu na distribuição de datas e sesmarias,

25

VILARDAGA, José Carlos. “Manhas” e redes: Francisco de Souza e a governança em São Paulo de Piratininga em tempos de União Ibérica. Anais de História de Além-Mar, Lisboa: Cham, v. XI, p. 103-144, 2010.

26

FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil – séculos XVI, XVII, XVIII. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, p. 394.

27

TAUNAY, Afonso, op. cit., p. 410. 123

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modificou o leque de ofertas de casamentos e alianças, e alterou os padrões de consumo. Em 1589, São Paulo contava com um pouco mais de 170 moradores, passando, em 1600, para 308, portanto um acréscimo de 80% numa década. Importante ressaltar que o padrão se repetiu na segunda vinda do governador. Em 1605, quando não estava mais em São Paulo, a vila totalizava 374 moradores, mas entre 1606 e 1610, quando voltou, o aumento foi de 160 moradores, compondo um total de 534 nomes. Cerca de 40% de elevação.28 Assim, “a comitiva encheu a pequena vila, o que não era difícil, e transformou profundamente os costumes de seus habitantes”.29 Diríamos que não só os costumes, mas também a paisagem física e cultural. Dentre os membros da comitiva do governador, uma parte importante deles era composta por mineiros, peritos minerais e engenheiros ou práticos no tema. A maioria deveria ser letrada. Neste grupo, antevê-se o que muito grosseiramente pode representar uma “elite” intelectual na pequena vila. Remete-se, inicialmente, a Martins Rodrigues Tenório. Castelhano, dono de uma vistosa criação de gado, atividade fundamental de São Paulo e fundidor de ferro na região de Santo Amaro, onde se instalou uma “fábrica de ferro” em 1607. Tenório acabou desaparecido numa bandeira no Paraupava, na qual era o capitão. Nosso fundidor, e bandeirante, deixou listado em seu inventário, feito em 1613, quatro livros: O Retábulo da Vida de Cristo, Mysterios da Paixão, uma Instrução de Confessores e, para além da leitura religiosa, um livro intitulado a Cronica do Grão Capitão.30 Tenório, em 1603, no sertão do Paracatú, talvez temendo pela vida, já tinha lavrado um testamento. Nele, não constavam 28

Estes cálculos foram feitos a partir do trabalho de Nuto Sant’Anna, que fez levantamento nominal, através da documentação, da população da vila. SANT’ANNA, Nuto. Metrópole: histórias da Cidade de São Paulo, também chamada São Paulo de Piratininga e São Paulo do Campo em tempos de el-Rei, o Cardeal Dom Henrique, da dinastia de Avis. São Paulo: Departamento de Cultura, 1953. v. III.

29

LUÍS, Washington. Na Capitania de São Vicente. São Paulo: Livraria Martins; Brasília: MEC, 1976, p. 225.

30

I&T,

1612, v. II. 124

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livros de leitura, mas referências de um de contas, de sua autoria, em que registrava toda sua contabilidade. O livro foi anexado ao inventário mais de dez anos depois, e nele, seu autor, em castelhano, justificava sua existência: “por quietud de mi memória para por elo saber na verdad lo que debo”.31 Em seu testamento, fazia referência a um “bastardo”, filho que tivera com uma índia em São Paulo. Encomendou a seu genro, Clemente Alvarez, que fosse curador do garoto e o ensinasse primeiro a ler e escrever, e depois seu ofício. Martins Rodrigues solicitava que se fizesse cumprir as Ordenações de Vossa Majestade, que impunha ao tutor dos órfãos a obrigação, dentre outras coisas, de ensinar os meninos “a ler, a escrever e contar”, e às meninas “a coser, a lavar, a fazer rendas e todos misteres femininos”.32 Anos depois, quando a morte de Martins de fato ocorreu, o garoto acabou sob a tutela do outro genro, o flamengo Cornélio de Arzão, que o iniciou na carpintaria. Mas do que tratam os livros de nosso ferreiro castelhano? Por trás do título profundamente piedoso do “Retábulo”, está a obra Retablo de la vida de Christo, hecho en metro por un devoto frayle de la Cartuxa. O autor era o frei sevilhano Juan de Padilla (1468-1520), que elaborou um poema cristológico profundamente visual. Uma “pintura verbal” que narrava a vida de Cristo, da Virgem Maria e de São João Baptista. Cumpria o efeito de um sermão e foi o tipo de obra que caiu no gosto espanhol do século XVI. Este mesmo livro teria inspirado o fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola. Fazia parte de um rol de livros exemplares e de exaltação da virtude. O Retablo foi editado à primeira vez em 1505, pelo mestre tipógrafo alemão Jacobo Cromberger, e recebeu pelo menos vinte edições no século XVI. Juan de Padilla lembrava como três coisas incitavam, e serviam como tentação, aos corações dos homens: as grandes riquezas, as beldades e o canto suave de doces canções. O frei ainda publicaria, em 1521, outro livro chamado Doze trabalhos dos doze apóstolos, no qual 31

No seu livro de contas, Tenório justificava, em castelhano, a existência das anotações: “por quietud de mi memória para por elo saber na verdad lo que debo” (I&T, 1612, v. II).

32

VILLALTA, Luiz Carlos, op. cit., p. 351. 125

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louvava a Espanha, as armas de Castela e principalmente a Reconquista.33 Esse campo das grandezas e glórias espanholas era familiar a Tenório, que tinha ainda uma obra que se remetia a uma Espanha já nostálgica dos heroicos feitos passados. A crise espanhola, cada vez mais evidente desde o final do século XVI, deveria fazer com que a vida do Gran Capitan Gonzalo de Mendoza e suas campanhas da Itália ainda em tempos de Fernando de Aragão calassem fundo na alma deste castelhano em terras de Piratininga.34 A Cronica del Gran Capitan Gonçalo Hernandez de Cordova y Aguillar era um livro que compilava textos de Hernando Pérez de Pulgar, e foi editado com este título em 1582 pelo impressor de Sevilha Andrea Pescioni. Outra edição foi feita em 1584, pela casa do mercador de livros de Alcalá de Henares, Hernan Ramirez. Desta mesma editora, há o sugestivo título de Francisco Ortiz Arias, Mysterios de la sacrosanta passion de Christo, de 1578. Entretanto, nesse terreno só podemos especular. Fica-se aqui no reino da aproximação, já que obras com esse título não eram raras. Por fim, Tenório tinha um livro intitulado Instrucção de Confessores. Este tipo de obra configurava um verdadeiro modismo no pós Concílio de Trento (1545-1563), afinal a normatização deste sacramento foi uma das pedras angulares da Contrarreforma. Nesse sentido, esses manuais classificavam os pecados e funcionavam como verdadeiros sumários do cristianismo. Tinham um aspecto bem funcional e, especialmente nas regiões de conquista e colonização, eram obras auxiliares no trabalho de catequese, se bem que não parece que seja este o caso de Martins Tenório. Não à toa, o próprio padre jesuíta José de Anchieta escreveu um Confessionário, também em língua tupi, para auxílio missionário.35

33

RODRÍGUEZ FERRER, Rocío. Entre el poema y el sermón: el Retablo de la vida de Cristo, de Juan de Padilla, el Cartujano. Revista Taller de Letras, n. 45, p. 53-66, 2009.

34

A respeito da crise espanhola leia-se: VILAR, Pierre, op. cit. e ELLIOTT, J., op. cit.

35

DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII. Trad. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 126

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O genro de Tenório, e perito em minério, Clemente Alvarez, dizia ser, enquanto esteve preso em função de um processo que se seguiu ao inventário do sogro, desprovido das letras. Não sabia ler nem escrever, segundo ele próprio.36 Curiosa informação, pois o próprio deixaria, em seu inventário, dois livros, dentre eles mais um Confessionário. O outro livro – Contemptus Mundi – era, muito provavelmente, uma recompilação de orações e exercícios devocionais, feita pelo frei dominicano Luiz de Granada, editado pela primeira vez em Lisboa em 1573. Seria uma “tradução” de Granada da obra Imitação de Cristo, conhecida vulgarmente como Contentis Mundi, ou o desprezo do mundo, e atribuída a Tomás de Kempis. Neste trabalho, Kempis dizia que “busquei a felicidade em toda a parte, mas não a encontrei em nenhum lugar, exceto em um cantinho, que abrigava um pequeno livro”.37 O livro é quase onipresente na América e foi um verdadeiro sucesso na Península Ibérica. Levantamento feito por José Torre Revello sobre a entrada de livros impressos na América durante o período da dominação colonial espanhola mostra o Contentis Mundi presente em diversos carregamentos e embarques. Fernando Bouza Álvarez o encontra na biblioteca de D. Duarte de Bragança e afirma ser esta uma das leituras de Joana de Áustria, regente de Espanha.38 O frei Jerônimo de Mendieta narra como encontrou uma tradução deste livro, em língua indígena, feita por índios do Colégio de Santiago de Tlateloco, na Nova Espanha. Livro muito difundido, ele era obra referencial da Devotio Moderna, que apregoava uma religiosidade mais contemplativa, marcada por exercícios de devoção, abnegação, introspecção e piedade popular. O livro chegou a

36

I&T,

37

1641, v. XIV.

Apud FISCHER, Steven Roger. História da Leitura. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2005, p. 185.

38

TORRE REVELLO, José. Lecturas indianas (siglos XVI-XVIII). Thesaurus, t. XVII, n. 1, p. 1-29, 1962. BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. En la corte y en la aldea de D. Duarte de Braganza. Libros y pinturas del Marqués de Frechilla y Malagón. Península: Revista de Estudos Ibéricos, Porto: Instituto de Estudos Ibéricos, n. 0, p. 261-288, 2003. 127

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

ser proibido pela Inquisição, mas foi depois retirado da lista.39 Se Kempis já buscara no livro a suprema felicidade, Granada também tinha uma visão livresca do mundo, já que considerava o livro uma metáfora da vida cristã. A criação e a existência deveriam ser lidas como se lê um livro. Este mesmo título aparece uma segunda vez entre peritos minerais. Manoel Pinheiro Azurara, conhecido de Clemente Alvarez, com quem deixara inclusive algumas amostras de prata certa ocasião, era português e vivera cerca de 30 anos em Nova Granada, onde tinha família. Chegou a São Paulo através de Francisco de Souza, que o mandou para a vila ainda em 1597 para investigar os boatos a respeito dos minérios. Entre 1602 e 1604, andou por Valladolid, Madrid e Lisboa buscando mercês e regulamentações para exploração mineral de São Paulo. Voltou como mineiro-mor do Brasil em 1604. Em 1606, evadiu-se para o Paraguai pelo “caminho proibido de San pablo” (dizia ele para chegar a Nova Granada), onde comerciou tecidos e erva-mate. Foi acusado, na ocasião, de levar pelo caminho dezenas de escravos negros e algum ouro contrabandeado de São Paulo. Preso, teve seus bens inventariados.40 Dentre os arrolados, há muito tecido, facas e objetos miúdos para provável resgate com os índios, e muita erva-mate adquirida na passagem pelo Guairá. Uma de suas testemunhas de defesa o chama abertamente de “tratante”. Entre seus outros bens, estava uma carta de marear, um astrolábio e uma balestilha. Óculos, caixas de diversos tamanhos, relógio de sol e utensílios variáveis talvez revelem um perito mineral, meio mercador, meio mascate. Este “navegante do sertão” carregava consigo alguns livros: um Livro de Regimento (provavelmente o Regimento mineral expedido em Madri em 1603), com claro sentido utilitário, já que, enquanto mineiro-mor, ele fora o responsável por implantar o dito regimento em São Paulo; um livro de memória, um de sermões, um “diurno” (livro de orações com as

39

BORGES, Célia Maia. As obras de frei Luís de Granada e a espiritualidade de seu tempo: a leitura dos escritos granadinos nos séculos XVI e XVII na Península Ibérica. Estudios Humanísticos. Historia, n. 8, p. 135-149, 2009.

40

Arquivo Nacional de Assunção (ANA), Seccion civil y criminal, 1549, 4. 128

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Horas) e um Contentis Mundi. Por fim, possuía um livro nomeado somente como Parayso. Sabe-se que Diego de la Vega editou seu livro de sermões, Parayso de la gloria de los santos, em Toledo no ano de 1602, em Lisboa no de 1603 e em 1604 em Barcelona, coincidindo com o tempo que nosso amigo perambulou pelas cortes da Península Ibérica. Vale se questionar ainda se Azurara era um homem somente piedoso, ou um piedoso comerciante que vendia, dentre outras coisas, livros pelos interiores da América. Livros, neste caso, claramente contrabandeados pelo caminho proibido. Caso Azurara fosse também um mascate, vendia o que se pode imaginar como mercadoria de venda fácil, como o best-seller Contentis. Ainda no campo dos afeitos aos trabalhos com minérios, temos Pedro Fernandes, que fez seu testamento em 1648, data que escapa estritamente à cronologia deste trabalho, mas teve sua vida plenamente abarcada nela. Suas últimas vontades foram registradas antes de descer “rio abaixo” no Tietê, de onde partia do porto de Pirapetingy, próximo da atual cidade de Salto.41 Entre homens, mulheres e crianças indígenas, quando da sua morte em 1648, possuía quase 100, dentre elas uma do “Piquiri” que havia trazido pessoalmente. Casado com Anna Tenório, neta materna de Martins Rodrigues Tenório e filha de Clemente Alvarez, esta legou ao marido, provavelmente via dote, os apetrechos do engenho de ferro e instrumentos variados de marcenaria, como verrumas, escopos, trados e garlopas. Era um homem de posses, inclusive de alguma ilustração, já que seu testamento, escrito por ele próprio, denota algum estilo. Só possuía, em inventário, um único exemplar: um singelo “livro de sermões”, sem avaliação. Mas, em troca de duas redes que entregou a Lucas da Costa, morador de Itanhaém, para vender no Rio de Janeiro, recebeu “uma Arte e uma Cartilha”. Dentre estes manuais de alfabetização nomeados no inventário de maneira bastante natural, pode-se crer que está a popular Arte latina, do padre jesuíta Manuel Álvares (1523-1586). A obra, editada pela primeira vez em 1572, chegou a ter 530 edições ao longo do tempo. Era tão conhecida e comum que era chamada de “livro 41

I&T,

v. XII. 129

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

único”, e servia como guia oficial de ensino do latim em todas as escolas jesuíticas espalhadas pelo mundo.42 Porém o chamariz de rol de bens de Fernandes é que, listado entre machados, foices e cunhas, aparece um “torno de emprensar livros”, avaliado em 320 réis (um pouco menos valioso que três cunhas, avaliadas em 360). A que poderia ter servido tal instrumento a Pedro Fernandes? Teria ele mesmo utilizado ou lhe ficou de herança, encostado em alguma choupana do sítio? O fato é que bem poderia ter animado a produção de algumas cartilhas para alfabetização, panfletos e cartas impressas, como as que no ano de 1639 andaram causando alvoroço na vila de São Paulo por apregoar a volta do rei Sebastião.43 O pequeno negócio feito em Itanhaém, e a presença do torno, podem sugerir um esboço de gráfico. De todo modo, lembremos que o Colégio dos Jesuítas servira como principal meio de alfabetização e ensino na vila de São Paulo, e o uso de cartilhas deveria ser o recurso principal desta educação. Mas se os mineiros e envolvidos com as práticas minerais e siderúrgicas parecem ter demonstrado alguma inclinação à leitura, ou à posse de livros, num outro diminuto grupo, estes também se fizeram presentes. Trata-se dos boticários e “cientistas” da pequena vila. Além dos cuidados com os corpos, revelaram igualmente um cuidado maior com o espírito. O boticário, e sertanista, Mateus Leme possuía uma biblioteca que podemos considerar como verdadeiramente renascentista. Natural

42

VERDELHO, Telmo. Historiografia linguística e reforma do ensino. A propósito de três centenários: Manuel Álvares, Bento Pereira e Marquês de Pombal. Brigantia, Bragança, v. II, n. 4, p. 347-356, out-dez. 1982.

43

A sessão da Câmara de 16 de abril de 1639 trazia um requerimento alarmante do procurador Sebastião Gil a respeito de algumas cartas que circulavam pela vila. Nelas, lia-se que o rei D. Sebastião, desaparecido em Alcácer-Quibir em 1578, estava voltando, e que o papa ameaçara de excomunhão todo aquele que lhe impusesse qualquer resistência. Dizia ainda o procurador que, nas ruas de São Paulo, as tais cartas causaram algum alvoroço e muitos saíram aos “gritos dizendo viva el rei dom Sebastião” ATAS da Câmara da Vila de São Paulo, 16 abr. 1639. 130

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de São Vicente, falecido em 1633, deixou um largo inventário de bens.44 Ele foi casado em São Paulo com Antonia de Chaves, já falecida na altura que fez seu testamento, por volta de 1620, quando partiu para o sertão alegando que ia “buscando meu remédio”. Fez questão de relembrar a todos de sua mortalidade e alegava deixar um rol de bens, atrelado ao testamento. Em sua casa de roça, legou uma enormidade de ferramentas agrícolas, ferro bruto, materiais de marcenaria, de botica, de extração de dentes, de agulhas e lancetas, de produzir anzóis, além de muitos tecidos e caixas de diversos tamanhos e madeiras. Deixou ainda quatros óculos, peça esta, aliás, indispensável aos leitores míopes e estrábicos. Dentre os bens que interessam aqui está sua pequena, mas significativa, e coerente biblioteca composta de três livros. O Livro dos Segredos da Natureza, avaliado em 160 réis, foi herdado pela viúva Antônia Gaga, sua segunda esposa, com o valor de 320 réis. Inflacionou 100% ao longo do inventário. Era provavelmente o livro intitulado Discursos sobre os Segredos da Natureza, do humanista e filósofo italiano Giulio Cesare Vanini (1585-1619), e editado em 1616. O autor foi queimado vivo em Toulouse, acusado pelos tribunais inquisitoriais de ateísmo, em 1619. Um livre pensador, da linhagem de Giordano Bruno, que transitou entre a medicina, filosofia e o naturalismo e que pagou um alto preço por isso. De todo modo, foi uma obra condenada pela ortodoxia católica e que pode ter animado alguma leitura herética deste renascentista do sertão. Além desta obra, Leme possuía um Tratado Prático de Arithmética, avaliado em cem réis, e um livro chamado somente de Repertório, também em cem réis. Estes dois últimos, igualmente inflacionados, ficaram com o genro, e ourives, Cláudio Furquim. Mais caso da ânsia livresca dos peritos em minérios. O livro de Aritmética é provavelmente a obra de Gaspar Nicolas, Tratado da Pratica de Arismétyca, publicado a primeira vez pelo editor Germão Galharde, em 1519. Entre 1590 e 1592, a obra foi novamente

44

I&T,

1633, v. IX. 131

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

editada com o título de Tratado de Aristmética com muita diligência emendado. A obra chamava a aritmética de “senhora das outras ciências” e alertava como ela “abre as portas do entendimento”. Foi também muito popular e teve pelo menos 11 edições entre 1519 e 1716. Era uma “arte de contar” e um excelente manual prático de aritmética, simples e claro. Tinha como característica o apelo ao lúdico, com curiosidades e utilidades numéricas. Num destes exercícios, por exemplo, ensinava matemática com a ajuda dos santos: Digo que um homem entrou numa Igreja e não sabemos quanto dinheiro levava. Disse ao primeiro santo que lhe dobrasse o dinheiro que levava e lhe daria 12 reais e o santo lho dobrou. Deu-lhe 12 reais e ficou-lhe ainda dinheiro. E foi-se ao outro santo que lhe dobrasse o dinheiro com que ficou e que lhe daria 12 reais. O santo lho dobrou e o homem deu-lhe 12 reais e ficou-lhe ainda dinheiro. E foi-se ao outro santo que lhe dobrasse o dinheiro com que ficou e que lhe daria 12 reais. O santo lho dobrou e o homem deu-lhe 12 reais e não lhe ficou nada. Ora eu pergunto: quanto dinheiro levava este homem?45

O terceiro livro deveria ser o Repertório dos Tempos. Era um manual de astrologia portuguesa, feito por André de Avelar (1546-1621). Na verdade era uma tradução do espanhol, cuja fonte original, Repertorio de los tiempos, era de Andrés de Ly, de 1495, e publicado em Saragoça pelo editor Pablo Hures. A obra de Ly inspirou-se nos trabalhos do astrônomo Abraham Zacuto e foi editada em Lisboa, uma primeira vez, em 1518, por iniciativa do tipógrafo alemão Valentim Fernandes. Fora traduzido de Ly

45

Apud HENRIQUES, H. C.; ALMEIDA, C. O lúdico nas Aritméticas do século XVI. In: MOREIRA, D.; MATOS, J. M. (Ed.). História do ensino da matemática em Portugal. Lisboa: Secção de Matemática da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, 2005, p. 141-148. 132

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com acréscimos de Valentim, uma prática bastante difundida na Europa dos séculos XVI e XVII.46 Assim, a obra de Avelar era uma adaptação da “tradução” da tradução, e foi publicada em 1585. Ela tinha natureza astrológica, “com os estilos dos signos e com as condições do que faz cada signo”. Objetivava ajudar na navegação, apresentava tabelas de declinação do sol e tinha em seu conteúdo instruções sobre a agricultura e colheita em cada signo. Era um “registro dos signos em linguagem português”. O livro de Avelar foi aprovado pela Inquisição em 1610, mas novamente recusado e perseguido em 1632. No seu calendário, guardava trechos como este: Eu sou o Janeiro que o torresmo abano quem tome ao fogo o vinho gostando. Eu sou o Fevereiro, que engrosso a terra, quebro a geada para crescer a erva. Eu sou o Março, que as vinhas podando alegrias faço o tempo andando. Eu sou o Abril, do doce dormir, folgo com Boninas e Aves ouvir. Eu sou o Maio que para folgar me vou com falcões e cães a caçar. Eu sou o Junho que colho o grão porque o meu fruto a todos é são. Eu sou o Julho que debulho as ervas para encher de trigo as cidades e aldeias. Eu sou o Agosto que amanho as cubas, pipas e quartos para o sumo das uvas. Eu sou o Setembro que de uvas maduras, faço bons vinhos enchendo as cubas. Eu sou o Outubro que com bois lavrando, faço que a terra o trigo vai dando. Eu sou o Novembro, que a lua minguante, corto a madeira que é coisa importante. Eu sou o Dezembro que matando o porco triunfo a prazer, alegrando o meu corpo.47 46

BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In: ______.; HSIA, R. Po-Chia. A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 2009, p. 13-46.

47

Apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. Repertório do tempo. Revista USP, São Paulo, n. 81, p. 18-39, mar.-maio 2009. 133

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Um ano antes do livro de Avelar, o sevilhano Jerônimo de Chaves publicou o seu Repertorio de los tiempos, obra também popular em terras espanholas de aquém e além-mar.48 Algumas semelhanças sugerem que as duas tiveram as mesmas fontes. E ambas foram condenadas pela Inquisição. A imaginar que a obra presente em Piratininga fosse a portuguesa. Mateus Leme era um homem dedicado à compreensão da natureza e dos seus fenômenos. Possuía uma biblioteca de cunho renascentista, na qual se buscava a descrição do mundo, a contagem precisa e regulada do tempo, e a medição das distâncias, aprisionadas na aritmética. Procurava desvendar, conforme o título de uma delas, os “segredos mais recônditos da Natureza”. Em seu pequeníssimo acervo livresco, por outro lado, havia fortes pretextos para uma perseguição inquisitorial, o que, na realidade de São Paulo daqueles anos, não era uma possibilidade tão remota, já que o licenciado da Inquisição andara pela vila entre 1627 e 1628. Mas, se Leme parecia se aproximar perigosamente de um saber excessivamente laico, outro homem envolvido com boticas e lancetas, João da Costa, revela uma trajetória muito diferente. Quando sua esposa, Inês Camacho, faleceu em 1623, no inventário do casal encontrava-se uma Ordenação de Sua Magestade (provavelmente a Filipina), avaliada em quatro mil réis.49 João da Costa fora mamposteiro-mor dos cativos em São Paulo em 1608, e esteve ao lado do governador geral Francisco de Souza, portanto as “Ordenações” eram parte de seu ofício e ferramenta de trabalho. Contudo, em seu próprio inventário, dezesseis anos depois

48

COSTA, Adalgisa Botelho da. O Repertório dos tempos de André do Avelar e a astrologia em Portugal no século XVI. In: MARTINS, R. A. et al. (Ed.). Filosofia e história da ciência no cone sul: 3º Encontro. Campinas: AFHIC, 2004, p. 1-7.

49

I&T,

1639, v. XII. As ordenações eram livros valiosos. Em 1587, numa sessão da Câmara de São Paulo, João Maciel clamava pelas ordenações – as manuelinas – para saber o que fazer como almotacel. Descobriu-se que não havia nenhuma; e pior, não havia dinheiro suficiente para adquirir uma. Na verdade, tratava-se de comprar uma nova, pois a sessão no ano seguinte, em 1588, denunciava que Gonçalo Pires tinha retirado o livro da Câmara e “o dera não o podendo dar” (TAUNAY, Afonso, op. cit.). 134

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(1639), percebe-se um processo profundo de transformação interior. Já conhecido e alcunhado de “ermitão”, Costa abandonara a vida profana e refugiara-se na ermida de Santo Antônio, que varria e cuidava diariamente. Entregara todos seus bens aos filhos, mantendo em sua posse somente seu estojo com lancetas, ferros de dentes, botica, facas e frascos, toalhas e bacias. Tinha ainda um moleque da Guiné e pelo menos dois gentios. No testamento, afirmava ter construído o corredor e o quintal da Igreja, e cuidava de varrê-la diariamente. O “cirurgião” Costa continuava a cuidar dos corpos através de seus instrumentos de boticário, mas alimentava uma extremada preocupação com sua alma, agora entregue aos cuidados da ermida. Adquirira, presumisse nesse meio tempo, uma pequena biblioteca formada por um “livro de São José”, um “livro de concertos” que poderia animar as missas da igreja de Santo Antônio e um livro da “Vida Christã”, mais um Heitor Pinto. As Ordenações desapareceram. Costa foi do profano ao sagrado. Foi neste universo de mineiros, práticos e boticários que prevaleceu a maioria esmagadora dos livros presentes nos inventários e testamentos. Muitos destes homens foram ligados ao governador Francisco de Souza, o que pode denotar uma espécie de “elite” de possuidores de livros, pelo menos em seu sentido mais relativo: Como es bien sabido, cualquier biblioteca revela en gran medida el espíritu de su dueño, pero esta característica adquiere un significado aun más grande en el contexto de comienzos de la Edad Moderna, cuando la rareza de los libros y sus elevados precios representaban inconvenientes mayores para la formación de una biblioteca. En el período colonial de América la posesión de bibliotecas privadas fue ciertamente un privilegio de clase. El coleccionismo de libros era uma actividad accesible sólo para miembros del clero, nobles, profesionales (burócratas, maestros, abogados, médicos), algunos mercaderes y aun jefes indígenas. A pesar de esto, sería equivocado considerar la divulgación de libros e ideas procedentes de Europa como un fenómeno puramente elitista, porque las creaciones literarias y doctrinas fundamentales de los más celebrados autores circularon también entre la gente de clase baja y los iletrados. Españoles y criollos pobres, mestizos 135

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

e incluso indios fueron instruidos mediante proverbios, cuentos populares, baladas, canciones y tertulias, reuniones donde algún pasaje novelesco o un comentario moral eran leídos en alta voz.50

Desta citação, passamos a outro interessante aspecto: a leitura em voz alta. Como conta Manguel, “leituras públicas informais em reuniões não programadas eram ocorrências bastante comuns no século XVII”.51 Um destes episódios, de compartilhamento de leituras, é um no qual participa Sebastião de Freitas, natural do Algarve, Portugal. Sua história pode ajudar a revelar um pouco mais das dinâmicas que cercavam estas práticas de leitura. Freitas estava em São Paulo desde o final do século XVI, e chegara junto com Francisco de Souza. Mais um que deveria compor a “douta e luzida comitiva”. Antes disso, percorrera o sertão do São Francisco com Gabriel Soares de Souza, autor do Tratado descritivo do Brasil (1587). Freitas foi vereador e capitão da vila de São Paulo e chegou a ser armado cavaleiro em plena vila por D. Francisco em 1601, por serviços prestados.52 Foi ainda sertanista ativo e participou da grande bandeira ao Guairá de 1628. Em 1633, já viúvo, vivia como estancieiro próximo a Assunção. O fato é que este ilustre morador de São Paulo acabou sendo denunciado pela Inquisição, juntamente com outros moradores, e investigado pelo licenciado Pires da Veiga (visitador de Angola, Congo e

50

MARTÍNEZ, Teodoro H. La historiografía del libro en América hispana: un estado de la cuestión. In: GARCÍA AGUILAR, María Idalia; RUEDA RAMÍREZ, Pedro J. (Comp.). Leer en tiempos de la Colonia: imprenta, bibliotecas y lectores en la Nueva España. México: UNAM; Centro Universitario de Investigaciones Bibliotecológicas, 2010, p. 55-72.

51

MANGUEL, Alberto, op. cit., p. 141.

52

Francisco de Souza possuía o direito de armar cavaleiros através da jurisdição mineral que lhe foi concedida da herança das mercês de Gabriel Soares de Souza que, em troca das eventuais descobertas minerais, ganhou uma série de concessões reais. Francisco de Souza armou cavaleiro em São Paulo Sebastião de Freitas e Antonio Raposo. REGISTRO Geral da Câmara da Vila de São Paulo. (RGCSP), 16 mar. 1601 e 18 jun. 1601. 136

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Estado do Brasil) em sua visitação às capitanias do Sul, em 1627.53 E o que levou Freitas a ser investigado? Segundo a denúncia, e sua própria confissão, ele teria feito comentários impróprios em relação à virgindade de Maria, quando liam uma obra em grupo. Estavam entre vários moradores na casa de um deles (João da Costa?) e um “se pos a ler um livro de outavas da vida de S. Joseph”. Quando liam o canto da anunciação da Virgem Maria, Freitas afirmou ser impossível tal coisa, pois algo assim deveria ser “obra de varão”. Nas palavras do inquisidor, o investigado disse que Maria “não poderia conceber sem homem ela fazer tal coisa”, e dissera isso “por palavras mui desonestas e sujas”. Diante da gravidade da acusação, foi questionado se era cristão-novo, o que negou. No dia seguinte, arrependido, pediu ao reitor do Colégio dos Jesuítas que este fosse ter com o visitador para dizer que ele, Freitas, era sim cristão-novo. Sua denúncia não foi levada adiante, mas a partida do réu da vila de São Paulo em direção ao mundo paraguaio pode ter se dado exatamente por ocasião do susto que passou junto ao Santo Ofício. O mais interessante deste caso é como ele revela uma prática de leitura conjunta, em voz alta, e entre conhecidos. Nesta, os ouvintes interagiam com o texto, transformando as leituras em verdadeiras “tertúlias”. Escrita e oralidade, nestes princípios da modernidade, estavam profundamente imbricadas e se combinavam na construção dos sentidos dos textos. A obra em questão, apresentada simplesmente como livro “da vida de S. Joseph”, foi precisada pelo inquisidor, que a faz questão de nomear como sendo o livro de Joseph de Valdevieso (1565-1638), poeta e autor dramático do barroco espanhol, além de ser protegido de Felipe III. Autor muito popular na chamada “Era de Ouro” espanhola, seu livro com mais sucesso foi exatamente Vida, excelencias e muerte del gloriosíssimo patriarca san José, editado em Toledo, em 1604. O livro foi considerado o “poema épico más leído de su tiempo” e teve cerca de 40 edições ao longo do século XVII.54 53

PEREIRA, Ana Margarida Santos, op. cit.

54

MADROÑAL, Abraham. La primera edición de la Vida de San José del maestro Valdivielso. Revista de Filologia Española, t. LXXXII, n. 3-4, p. 273, 2002. 137

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Contudo, ao lado da prática de leitura compartilhada, em voz alta, existia a leitura privada, individualizada. Esta é de difícil aferição e a documentação praticamente não nos fornece pistas, mas talvez possamos fazer uma aproximação do tema junto a alguém que aparentemente valorizava um tipo de privacidade e conforto doméstico. O morador João Barroso pode ser um destes casos.55 Possuidor da maior biblioteca privada de São Paulo nesse período, os livros aparecem no inventário de Catarina de Siqueira, sua esposa, aberto por ocasião de sua morte em 1638. A biblioteca, eclética, é composta de 10 livros. Como era comum à realidade feminina naquele contexto, Catarina os possuía, mas não usufruía deles através da leitura direta, já que nem assinar ela sabia. O marido, Barroso, era um sujeito próspero, mas isso não o impediu de também partir em bandeira em 1637. Comerciante de tecidos, que abundam no inventário, e dono de uma plantação de algodão, João Barroso frequentava o Rio de Janeiro – de onde provavelmente viera antes de instalar-se em São Paulo – e acabara de comprar uma terra em Santos quando da morte de sua esposa. De qualquer forma, em sua casa na vila, de dois “lanços grandes com seu quintal”, vivia a família em relativo conforto. Baús, “cadeiras de estado” em couro, vasilhas, espelhos, toalhas de mesa, um bufete que provavelmente servia de mesa e até um latão para urinar configurava uma vida doméstica bastante razoável e confortável. A estranhar, somente, a presença de 43 pratos de “louça do reino”, com suas tigelas e pires, e suas 50 peroleiras onde guardava não sabemos bem o quê. De todo modo, dentre os bens domésticos da família, lá estavam os 10 livros. Dois deles eram aparentemente novos, já que nomeados em separado: o primeiro, valioso em seus mil réis, era a segunda parte do livro de “Vilhegas”. Por essa informação, sabemos que não poderia ser Francisco Gómez de Quevedo y Villegas (1580-1645), bastante popular em sua época. Teríamos, contudo, pelo menos mais duas opções: Esteban Manuel de Villegas (1589-1669), autor de Las Eroticas, o Amatorius, de 1618, cujo livro granjeou ao autor a inimizade de Lope de Vega e 55

I&T,

1638, v. X. 138

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Cervantes. O fato é que a obra de Esteban, uma miscelânea de poemas, tinha duas partes. Uma primeira, de heptassílabos, voltada a enaltecer os prazeres mundanos, e uma segunda parte, composta por um elogio à Filosofia e recheada de temas históricos num estilo pesado. O outro provável autor seria Alonso de Villegas (1533-1603), licenciado, teólogo, professor na Universidade de Toledo e autor de Flos Sanctorum, outro título bastante comum nas bibliotecas das colônias espanholas e portuguesas na América. Este Villegas publicou, em seis partes, entre os anos de 1578 e 1603, uma espécie de atualização da Legenda Áurea do século XIII. A narrativa hagiográfica, e de forte sentido exemplar de Villegas, foi muitíssimo apreciada e teve amplíssima circulação. Além da obra de Vilhegas, uma de Fernão Mendes Pinto, provavelmente a famosa Peregrinação, avaliada em 640 réis, narra de maneira jocosa, e surpreendente, as peripécias teoricamente verídicas vividas pelo aventureiro, soldado e marinheiro Fernão Mendes Pinto (conhecido pelos detratores como Fernão, Mentes? Minto!) em águas e terras orientais. Esta obra deve ter garantido, ao menos, boas risadas e devaneios de imaginação por terras orientais distantes, mesmo que Barroso, em verdade, vivesse, ele mesmo, suas peripécias em terras ocidentais distantes. Somando a estas duas, temos ainda oito livros “em letra redonda” – um modelo caligráfico que poderia ser tanto manuscrito quanto impresso –, e já mais gastos pelo uso cotidiano. Valiam, no atacado, todas as oito, o que valia sozinha a obra de Villegas: um conto de réis. Detalhe: quatro deles têm seus nomes tornados ilegíveis pelas traças e pelo tempo. Uma pena. Dentre os outros, legíveis, lá estão as duas partes do recorrente Heitor Pinto e sua Imagem da Vida Cristã; um também onipresente Confessionário e, por fim, um exemplar das saborosas Novelas exemplares de honestíssimo entretenimento, de Miguel de Cervantes, ou somente Novellas, como prefere o escrivão. É no mínimo instigante imaginar o provável leitor João Barroso, percorrendo as linhas produzidas sobre a América pelo afamado escritor espanhol, na novela El Celoso Extremeño. Nela, o protagonista, um pequeno hidalgo empobrecido, tenta a sorte em Sevilha, a cidade da perdição, mas depois ruma para o Peru, de onde volta carregado de ouro: 139

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Acogió al remedio a que otros muchos perdidos de aquella ciudad se acogen que es el pasarse a las Indias, refugio y amparo de los desesperados de España, iglesia de los alzados, salvoconducto de los homicidas, pala y cubierta de los jugadores (a quien llaman cierto los peritos en el arte), añagaza general de mujeres libres, engaño común de muchos y remedio particular de pocos.

João Barroso possuía uma biblioteca ainda modesta, mas bastante diversificada e provavelmente uma das maiores dentre seus contemporâneos na pequena vila. Ela era composta por obras piedosas, filosofia, uma narrativa da expansão portuguesa e um belo exemplar da literatura da “Era de Ouro” espanhola. Não se sabe se foram efetivamente lidos, mas as possibilidades de leitura do próspero Barroso, no estreito cenário de livros da vila de São Paulo, eram amplas. Além destes livros aqui apresentados, existem algumas obras esparsas em outros inventários. Manuel Pinto Suniga, cujo inventário foi feito em 1627, tinha uma Aplicação da Bula da Santa Cruzada, pela qual foi responsável.56 Um livro funcional, de uso prático atrelado ao ofício do portador. Antonio de Almeida, morto em 1636, e segundo consta, pela própria esposa, Maria Nunes, tinha em seu inventário, feito na cadeia de São Paulo, um Horas de Rezar, mesmo livro que possuía o sertanista Sebastião Paes de Barros, falecido na década de 1670.57 Por fim, um único livro, de título abreviado, causa ainda certo espanto. O flamengo Manuel Vandale, morto em São Paulo, em 1627, deixou em seu testamento um livro nomeado pelo escrivão como La Divina.58 Na impossibilidade de saber se era, de fato, a obra fundamental de Dante Alighieri, percebe-se que a trajetória de Vandale tinha muito de épica. Enquanto o governador D. Francisco de Souza se preparava para voltar ao Brasil, como governador da Repartição Sul, em 1609, Vandale, que se dizia morador da Bahia de muitos anos, pediu em Madri o direito 56

I&T,

1627, v. VII.

57

I&T,

1636, v. X.

58

I&T,

1627, v. VII. 140

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de ir com o governador, como “morador y poblador de las minas del Brasil y lengua de los mineros estrangeros”. Foi proibido de ir ao ser identificado como cunhado de um mercador flamengo rico da Bahia, na verdade Evert Hulscher, importante negociante e produtor de açúcar, dono de engenho em Itaparica, de navios e cabeça de uma ampla rede comercial formada pelos irmãos: um em Olinda, outros em Lisboa, Antuérpia e Hamburgo. Manuel foi acusado, num papel anônimo endereçado ao Conselho de Portugal, em Madri, desses que “são providenciais e enviados por Deus”, de que suas intenções eram ruins. As acusações davam conta de que ele queria se embrenhar no sertão e passar de engenho em engenho promovendo levantes de escravos contra seus amos. Por fim, sugeria-se que ele fosse “apertado” para confessar.59 Vandale, sem se dar por vencido, ainda foi a Lisboa, solicitar para ir ao Brasil buscar sua mulher, mas lá também suas pretensões lhe foram negadas.60 Seja como for, o postulante embarcou assim mesmo, já que o governador geral Diogo de Meneses comunicou em carta ao rei, que remetia a Lisboa, preso, o tal Vandale, conforme sugeria provisão real.61 Mas este persistente flamengo estava longe de esmorecer, pois estudos de Paul Mers identificaram um tal Manuel Van Dale, vivendo em Santos em 1612, como representante dos Schetz nos pleitos movidos por essa família contra os herdeiros de Jerônimo Leitão em torno do Engenho dos Erasmos.62 Outros rastros de Vandale estão em Eddy Stols, que o cita como um flamengo denunciado à Inquisição, mas sem precisar as circunstâncias; e também em Oliveira França, que o identifica como alguém que teria auxiliado os flamengos no assalto à Bahia em 1624, o que parece bastante provável e explicaria

59

Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias Provinciais, Libro 1463.

60

Biblioteca D’Ajuda, cód. 51-VII-15.

61

CARTA de Diogo de Meneses de 22 abr. 1609. In: CORTESÃO, J. (Comp.). Pauliceae Lusitana Monumenta Historica (1494-1600). Lisboa: Real Gabinete Português, 1956, p. 3-12. v. I.

62

MEURS, Paul. São Jorge dos Erasmos, the remains of an early multinational. Arquitextos, ano 6, mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. 141

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

como ele teria ido parar em São Paulo – provavelmente fugido –, local onde morreu, deixando um rico e polpudo inventário.63 Dentre os bens legados por Vandale, estava o misterioso livro. Seu inventário é emblemático pois é o único caso de uma mulher letrada nesse tempo. Sua esposa, irmã de Evert Hulscher, é chamada no documento de Magdalena (Manadela) Holsquor, participa ativamente do espólio e assina petições. Outro caso de mulher letrada em São Paulo, perceptível a partir dos testamentos e inventários, é Leonor de Siqueira, falecida em 1699. É necessário considerar que trabalhar com estes documentos, em São Paulo, oferece uma condição especial. É, sem dúvida, um locus privilegiado, já que, desde as primeiras décadas do século XX, muitos destes inventários, testamentos, Atas da Câmara e documentos diversos vêm sendo publicados pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nesse sentido, a documentação paulista revela um microcosmo, bem documentado, do amplo império colonial ibérico, neste caso específico, do império hispânico durante o período da União das Coroas Ibéricas. Claro deve estar que a vila não foi um dos centros mais pujantes da economia, e da vida colonial, nestes primeiros séculos. Portanto, a validade da generalização do caso paulista, à realidade colonial como um todo, deve ser relativizada. Assim, se não se pode negar uma pobreza relativa dos paulistas nestes tempos, que demarcava uma vida cotidiana muitas vezes precária, por outro lado, não se deve cair novamente na velha pecha da “marginalidade”. De todo modo, é importante rejeitar, de forma peremptória, qualquer assertiva sobre isolamento. A coerência destas diminutas, esparsas e fragmentárias bibliotecas só revela a força e a presença de alguns dos grandes processos históricos condicionantes deste período. Na realidade paulista, encontra-se o espírito do Renascimento, a reação dogmática do Contrarreformismo, as maravilhas do mundo reveladas pela expansão 63

STOLS, Eddy. A pintura flamenga e as riquezas açucareiras na América colonial. In: VIEIRA, Alberto (Ed.). O açúcar e o quotidiano: Actas do III Seminário Internacional sobre a História do Açúcar. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 2004, p. 363-384. FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Um problema: a traição dos cristãos-novos em 1624. Revista de História, São Paulo, n. 83, p. 21-71, 1970. 142

os brutos também leem

portuguesa e, o que parece mais peculiar, a presença de uma literatura da “Era de Ouro” espanhola, denotativa do grau de influência cultural de Espanha neste contexto. São Paulo participa, assim, do amplo quadro de circulação de pessoas, bens, ideias e livros, situação propiciada pela monarquia universal católica e suas malhas globais.64 Estes livros, objetos que aparecem em pequenas quantidades, fazem parte do rol de bens de diversos e múltiplos moradores do planalto, e se revelam em diversas situações. Estão presentes na sua dimensão sagrada – em sua esmagadora maioria –, mas também na profana. Em alguns casos, até profana demais. Eles, os livros, acompanham as bandeiras, organizam orações privadas e públicas, servem a leituras coletivas, são comercializados, viabilizam funções, ensinam e deleitam. Foram poucos, mas inegavelmente importantes. É um daqueles casos sobre o qual, do pouco, se fez muito. Tornaram-se, como afirma Maria Beatriz Nizza da Silva, um “fato social”, atrelando-se às dinâmicas várias da vida cotidiana da vila paulista.65 Os livros não religiosos, minoritários, pertenceram, em sua maioria, a um grupo de moradores vinculados ao trabalho mineral.66 Fizeram parte de uma “elite” letrada numa São Paulo articulada aos rumos do império pela pesquisa mineral, tocada pelas bandeiras, e pela presença do governador geral do Brasil em terras de Piratininga. Mas, pode-se dizer que lia-se em São Paulo, o que se lia no Império, em menor escala, obviamente. Lia-se num contexto diverso, com usos distintos e relacionados a experiências sociais típicas de uma pequena vila colonial portuguesa, dos interiores da América, em plena Monarquia Hispânica.

64

GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural” no novo milênio. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, p. 321-342, 2003.

65

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Livro e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). Revista de História, São Paulo, v. 94, p. 441-457, 1973.

66

Cf, estudo de Teodoro Hampe Martínez, 70% dos livros presente na América eram religiosos. HAMPE MARTÍNEZ, T. Bibliotecas privadas en el mundo colonial: La difusión de libros e ideas en el virreinato del Perú (siglos XVI-XVII). Madrid: Iberoamericana, 1996. 143

O Brasil e Felipe IV: uma aproximação

Rodrigo Ricupero1

Qual o peso do Brasil na monarquia de Felipe IV? Em 1622, um católico inglês a serviço da Espanha, D. Antonio Xerley, escrevia um curioso documento que pode nos dar uma primeira resposta. Tal documento endereçado ao Conde-Duque de Olivares, e conhecido como Peso político de todo el mundo,2 descreve em mais de cem páginas as várias partes do mundo, suas relações com a monarquia espanhola, aproveitando para dar conselhos e fazer sugestões ao poderoso ministro, de quem busca o favor. Contudo, o espaço dedicado por Xerley ao Brasil, apenas duas passagens, algumas poucas linhas, sinalizaria a ínfima importância do Brasil no conjunto imperial sob domínio Habsburgo. O próprio testamento de Felipe III, de 1621, sequer menciona o Brasil ao enumerar em uma longa lista seus reinos, senhorios e estados, descrevendo dessa forma as possessões da Coroa portuguesa: “mis reynos de Portugal y el Algarves y outros estados en Africa y en la Yndia Oriental 1

Professor Dr. de História do Brasil Colonial no Departamento de História da Universidade de São Paulo.

2

XERLEY, D. Antonio. Peso político de todo el mundo del Conde D. Antonio Xerley (1622). Madrid: Departamento de História Social; Instituto Balmes de Sociologia, 1961.

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

islas y tierras y señorios en qualquier parte y forma perteneçientes a la Corona Real de Portugal”.3 O monarca espanhol apenas seguia a mesma lógica dos monarcas portugueses anteriores à União Ibérica, que como D. Manuel se intitulavam “Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar, em África Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia”. Tal situação valeria um comentário mordaz de Frei Vicente do Salvador, natural da capitania da Bahia e autor da primeira história do Brasil (1627): Disto [a dificuldade da ocupação e aproveitamento do território] dão alguns a culpa aos Reis de Portugal, outros aos Povoadores: aos Reis pello pouco cazo que ham feito deste tam grande estado, que nem o titulo quizerão delle, pois intulando-sse senhores de Guiné por hua caravelinha, que lá vai, e vem, como disse o Rey de Congo, do Brazil não se quizerão intitular.4

Interessante também foi a forma como no começo do século XVII o sargento-mor do Estado do Brasil, Diogo de Campos Moreno, em uma espécie de relatório da situação das capitanias então existentes, definia o Brasil: “[a] parte oriental do Peru, povoada na costa do mar Etiópico, e repartida em partes a que chamam capitanias”,5 atestando dessa forma uma posição secundária do território. Essa percepção de uma certa marginalidade do território dentro da lógica imperial pode ser percebida inclusive nos textos conhecidos 3

TESTAMENTO de Felipe III. Madrid: Editora Nacional, 1982, p. 39. É verdade, diga-se, que os domínios castelhanos na América não merecem maior destaque, sendo simplesmente nomeados como “Indias y terra firme del mar oceano”.

4

SALVADOR, Frei Vicente do. A História do Brazil. Edição crítica de Maria Lêda Oliveira. Rio de Janeiro: Versal, 2008. v. 1, f. 4 verso (a publicação segue a divisão do original).

5

MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil (1612). Edição crítica, com introdução e notas de Hélio Vianna. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955, p. 107. 146

o brasil e felipe iv: uma aproximação

dos moradores das partes do Brasil na virada do século XVI para o XVII. Particularmente em dois pontos: na falta de ajuda da Coroa para o desenvolvimento da conquista e na falta de remuneração dos serviços feitos na América. Em relação à primeira questão, Frei Vicente do Salvador era categórico “nem depoiz da morte Del-Rey D. Ioão terceiro, que o mandou povrar, e soube estima-llo, houve outro, que delle curasse, senão pera colher suas rendas, e direitos”.6 Frei Vicente compartilha assim da opinião de Gabriel Soares de Sousa, que, em 1587, em um amplo memorial entregue em Madrid para D. Cristóvão de Moura, no qual pretendia demonstrar as grandezas do Estado do Brasil, afirmava: […] de que si los reyes pasados tanto descuidaron, Al Rey Nuestro Señor, y á su buen servicio conviene mostrarle por esta relacion los grandes merecimientos de este su Estado, las qualidades, y estrañezas de el paraque ponga en él los ojos, y afianze con su poder, con lo qual se engrandecería y extedenrá con la felicidad que se engrandecieron todos los Estados que reynaron debajo de su proteccion, porque está muy desamparado despues que El Rey D. Juan El 3º pasó de esta a La eterna ...7

Sobre o segundo ponto, a remuneração dos serviços, tema fundamental para a época, disseminava-se nas partes do Brasil um significativo discurso, que alicerçava as constantes reclamações dos vassalos envolvidos na colonização do Brasil frente à Coroa e cuja formulação básica era a de que os serviços feitos no Brasil nunca eram pagos e que podem ser encontrados em quase todas as obras escritas no período. Por exemplo, na citada obra de Gabriel Soares de Sousa, na qual, após narrar a participação dos moradores da Bahia em diversos episódios da conquista do territó6

SALVADOR, Frei Vicente do, op. cit., 4 verso.

7

Na edição espanhola, SOUSA, Gabriel Soares de. Derrotero general de la Costa del Brasil. Madrid: Ediciones Cultura Hispánica, 1958, p. 5. Para a edição brasileira. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987, p. 39. 147

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

rio, o autor queixava-se que estes permaneciam “até hoje [sem] ser dada nenhuma satisfação a seus filhos”, ainda que tendo feito estes serviços e muitos outros à própria custa, sem receberem soldo ou mantimentos, ao contrário do que se costuma fazer na Índia, concluía afirmando: “e a troco desses serviços e despesas dos moradores desta cidade não se fez até hoje nenhuma honra nem mercê a nenhum deles, do que vivem mui escandalizados e descontentes”.8 É falsa, contudo, a ideia de que os serviços feitos no Brasil nunca recebiam pagamento, embora nem sempre as remunerações fossem as que os vassalos reivindicassem, ou ainda que sua efetivação nem sempre fosse fácil. O mais provável é que a posição secundária ocupada até meados do século XVII pelas partes do Brasil dentro do Império português – situação que começaria a mudar a partir do início da guerra com os holandeses em Pernambuco – frente ao Oriente ou mesmo ao Marrocos, áreas que inclusive atraíam a quase totalidade dos nobres de maior estirpe, fez que os serviços realizados nestas últimas recebessem um destaque muito maior que os prestados nas demais e, consequentemente, maiores recompensas. O fato central é que para a Coroa portuguesa, antes e durante o domínio Habsburgo, o Brasil era uma área secundária, fato que era percebido inclusive pelos vassalos diretamente envolvidos no processo de conquista e ocupação do território.9

8

SOUSA, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, op. cit., p. 132.

9

O prólogo da História da província de Santa Cruz, primeiro livro publicado sobre o Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo, já destacava o descaso com o Brasil, afinal sua história, passados mais de 70 anos do descobrimento, “esteve sepultada em tanto silêncio, pelo pouco caso que os portuguezes fizerão sempre da mesma província”. GANDAVO, Pero de Magalhães. História da província de Santa Cruz e Tratado da Terra do Brasil (O primeiro de 1576 e o segundo anterior, permaneceu inédito). São Paulo: Obelisco, 1964, p. 23. 148

o brasil e felipe iv: uma aproximação

O Brasil antes de 1621 Afinal o que eram exatamente as possessões herdadas por Felipe IV em 1621, que tinham merecido figurar no testamento paterno apenas como as demais terras em “qualquer parte” sujeitas à Coroa portuguesa? As terras do novo mundo descobertas por Pedro Álvares Cabral na segunda viagem portuguesa para a Índia em 1500 só começaram a ser efetivamente ocupadas a partir da década de 1530, quando a Coroa, movida pela crescente presença francesa na área, optou pela delegação para alguns vassalos destacados da tarefa de ocupar e defender a costa do Brasil.10 A magnitude da tarefa de ocupação e exploração do território, acrescida da enorme resistência indígena, impediu o desenvolvimento do processo de colonização. Na década seguinte, a intensificação da resistência indígena levou à destruição de fazendas, engenhos de açúcar e de alguns núcleos urbanos, com a morte de muitos portugueses e a fuga dos sobreviventes. Ataques de grupos indígenas por toda costa colocaram a presença portuguesa em cheque, obrigando a Coroa a intervir. Em 1548, a Coroa retoma para si parte da tarefa de colonização, cria o Governo Geral e manda uma grande expedição para a Bahia de todos os Santos, que no ano seguinte fundaria a cidade do Salvador. A intervenção direta da Coroa mudaria a correlação de forças no litoral, mas o domínio das áreas litorâneas próximas aos centros urbanos ainda era efêmero. Só a partir da década de 1560 é que os portugueses conseguiram o domínio efetivo destas terras, dando início à expansão da economia açucareira. Em 1581, quando Felipe II é aclamado rei de Portugal, a presença portuguesa na costa do Brasil se limitava a uma longa faixa litorânea intermitente entre a capitania de Itamaracá ao norte (hoje norte do Estado de Pernambuco) e o sul da capitania de São Vicente (hoje sul do Estado de São Paulo), com enormes vazios e pouco mais do que 10 núcleos

10

RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 – c.1630. São Paulo: Alameda, 2008, em especial o terceiro capítulo “Conquista e fixação”. 149

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

urbanos. Mais expressivo era apenas o domínio sobre a região da Bahia de Todos os Santos, o litoral da capitania de Pernambuco e a região do Rio de Janeiro. A ocupação do interior do território era praticamente nula, salvo a vila de São Paulo, fato que permitiria, em uma comparação implícita com as conquistas espanholas na América, o comentário de Frei Vicente do Salvador: Da Largura, que a terra do Brazil tem pera o sertão não tracto, porque athe agora não houve quem a andasse por negligençia dos Portuguezes, que sendo grande conquistadores de terras não se aproveitão dellas, mas contentãosse de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos.11

O processo de expansão e conquista iniciado a partir de 1560 iria prosseguir até a segunda década do século XVII derrotando a resistência dos grupos indígenas no litoral e expulsando os franceses da região. Dada a dinâmica da luta na costa do Brasil, cada avanço frente aos povos indígenas empurrava a fronteira militar para o interior do continente, sem permitir uma vitória definitiva. As terras sob domínio português foram se ampliando em torno dos núcleos originais e novas áreas conquistadas. Sergipe, a região entre as duas capitanias mais importantes – Bahia e Pernambuco –, é conquistada na década de 1580, consolidando o núcleo central da colônia. Mais expressivo, contudo, seria o movimento, iniciado também nesse momento, que estenderia o domínio português de Pernambuco até a foz do Amazonas em 1616. A costa foi sendo paulatinamente conquistada: Paraíba na década de 1580, Rio Grande do Norte nos últimos anos do século XVI, Ceará no início do XVII, Maranhão (com a expulsão dos franceses e a conquista de São Luís) e, na sequência, o Pará (dominando a foz do Amazonas), ambas na segunda década. A herança de Felipe IV, dessa forma, seria maior do que a do avô Felipe II. A faixa litorânea agora compreendia as terras desde a capitania de São Vicente no Sul até a capitania do Pará no Norte, as áreas efetiva11

SALVADOR, Frei Vicente do, op. cit., f. 6 verso. 150

o brasil e felipe iv: uma aproximação

mente ocupadas eram significativamente maiores e o número de núcleos urbanos dobrara no período, apesar dessa ampliação da colonização do litoral, a ocupação do interior pouco avançara. Todavia, a grande diferença entre os tempos de Felipe II e Felipe IV era o significativo aumento no número dos engenhos de açúcar. A conquista efetiva da faixa litorânea iniciada na década de 1560 permitiu o grande surto da economia açucareira no Brasil, pois as guerras travadas pelos portugueses, ao mesmo tempo em que derrotavam a resistência indígena, possibilitavam a ocupação e a exploração de áreas mais amplas e o cativeiro de milhares de índios, mão de obra fundamental para as fazendas e engenhos. Os resultados das guerras empreendidas podem ser mensurados pelo número de engenhos erguidos no período. Considerando apenas as áreas mais significativas da economia açucareira – Bahia, Pernambuco e regiões vizinhas – e, portanto, melhor documentadas, teríamos a seguinte evolução: na década de 1570 os engenhos eram aproximadamente 55, no final do século já eram o dobro. Pouco tempo depois, no começo da segunda década do XVII, já seriam 150 e, em 1623, apenas para a região em torno de Pernambuco atingiam a marca de 137 unidades.12 Foi um período de grande desenvolvimento para a colônia e prosperidade para os senhores de engenho. A demanda europeia pelo açúcar, um dos grandes produtos comerciais da época, garantia mercados e preços crescentes para a produção. A baixa tributação, a facilidade inicial de obter terras e escravos indígenas completavam o cenário favorável, que seria em parte turvado pela posterior necessidade de substituir os indígenas dizimados pelos escravos africanos mais caros.13 12

Sobre a evolução da economia açucareira, veja-se, entre outros: MAURO, Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico 1570-1670. Trad. Manuela Barreto. Lisboa: Estampa, 1988. 2 v.; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 e FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste colonial. São Paulo: Brasiliense, 1988.

13

Processo iniciado já no final do século XVI. 151

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

A prosperidade das camadas senhorias no período chamou a atenção dos recém-chegados e foi destacada nos escritos dos moradores, interessados em destacar os resultados da conquista. Gabriel Soares de Sousa, no citado memorial, após descrever a pujança da economia açucareira em Pernambuco, com seus 40 ou 50 navios anuais carregados de produtos da terra, sentenciava: É tão poderosa esta capitania, que há nela mais de cem homens que têm de mil até cinco mil cruzados de renda, e alguns de oito, dez mil cruzados. Desta terra saíram muitos homens ricos para estes reinos, que foram a ela pobres.14

O jesuíta Fernão Cardim, secretário do Visitador da Ordem na década de 1580, dá cores aos números, quando descreve impressionado o bem estar dos senhores de engenho, ainda que condenando os excessos: Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas e nisto tem grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas... os homens são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados... São muito dados a festas... [em certo casamento] se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos. Aquele dia correram touros, jogaram canas... são dados a banquetes... bebem cada ano 50 mil cruzados de vinho de Portugal... Enfim em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa.15

14

Optamos nesta passagem em não seguir a citada tradução espanhola do século XVII. SOUSA, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, op. cit., p. 58.

15

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil (final do século XVI). Lisboa: CNCDP, 1997, extratos da página 256. As cartas e relações dos jesuítas são repletas de descrições das mais favoráveis condições com que os padres são recebidos em suas visitas pelos engenhos no período. 152

o brasil e felipe iv: uma aproximação

Os Diálogos das Grandezas do Brasil, obra inédita e anônima de 1618, atribuída ao senhor de engenho Ambrósio Fernandes Brandão, corroboram a visão de Cardim sobre a situação dos senhores de engenho, indicando como a vida faustosa destes marcava os observadores. O velho morador do Brasil, Brandônio, um dos personagens do diálogo, afirmava para o recém-chegado Alviano, o outro personagem, que o gasto dos senhores de engenho é “grandíssimo, com os muitos cavalos ajaezados, librés e vestidos custosíssimos que tiram de ordinário para si e seus filhos, porque a cada quatro dias fazem festas de touros, canas e argolinhas”, e arrematava, talvez para não deixar dúvidas ao surpreso Alviano, que “eu já vi afirmar a homens mui experimentados na Corte de Madri, que se não traja melhor nela do que se trajam no Brasil os senhores de engenho, suas mulheres ...”.16 A situação não passava despercebida também para os estrangeiros que visitavam a região. O francês Pyrard de Laval, retornando do Oriente numa embarcação portuguesa, teve a oportunidade de passar uma temporada no Brasil e nos deixou uma impressão favorável do desenvolvimento da colônia: “A riqueza dessa terra é principalmente em açúcares ... porque não julgo que haja outro lugar em todo mundo, onde se crie açúcar em tanta abundância como ali”, acrescentando ainda, com certo exagero, “nunca vi terra onde o dinheiro seja tão comum, como e nesta do Brasil, e vem do Rio da Prata ... não se vê ali moeda miúda, mas somente peças de oito, quatro e dois reales ...”.17 A importância da economia açucareira em franca expansão e a fama, exagerada ou não, das riquezas atraíram para a região aventureiros e mercadores portugueses e estrangeiros, além de despertar a cobiça 16

DIÁLOGOS das Grandezas do Brasil (1618). Recife: Imprensa Universitária, 1962 (Primeira edição integral, preparada por José Antonio Gonsalves de Mello, segundo o apógrafo de Leiden).

17

PYRARD DE LAVAL, Francisco de. Viagem de Francisco Pyrard de Laval. (Texto do início do século XVII, em tradução portuguesa moderna de Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara). Porto: Livraria Civilização, 1944, p. 228 e 230. v. 2. 153

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

dos inimigos da Coroa espanhola, em especial dos piratas ingleses que começaram a se aventurar pelo Atlântico Sul no final do século XVI.18 A liberdade de comércio vigente na colônia em quase todo século XVI, as intensas relações mercantis entre Portugal e outras áreas europeias, em especial os Países Baixos19, a incapacidade da marinha portuguesa em escoar a totalidade da produção contribuíram para a penetração de comerciantes estrangeiros nos negócios do açúcar, bem como a participação de embarcações estrangeiras no transporte entre o Brasil e a Europa. A escassez de fontes apropriadas dificulta uma compreensão mais precisa destas relações, mas se estima que mercadores e embarcações holandesas tenham ocupado um papel relevante na economia açucareira. Contudo, no contexto da rebelião dos Países Baixos contra o domínio Habsburgo, a Coroa espanhola procurou tolher as relações mercantis dos rebeldes com o conjunto dos reinos sob seu domínio, para tanto, uma série de leis e regulamentos foram promulgados a partir de 1585, que, de acordo com a conjuntura do conflito, ora eram mais restritivos, ora mais permissivos. No caso do comércio colonial, a restrição à participação dos holandeses favoreceu a presença de navios e comerciantes de outras áreas, em especial alemães20, ainda que, para alguns autores, os holandeses tenham recuperado parte dos seus interesses no comércio açucareiro durante a trégua dos doze anos (1609-1621). Porém, a tendência geral foi no sentido de uma restrição crescente ao comércio, levando, assim, à constituição do que se convencionou chamar de “exclusivo comercial”, 18

Destaque-se, entre outros, os ataques de Drake, Cavendish e Lancaster.

19

No caso dos Países Baixos, tais relações seriam reforçadas pela migração de judeus e cristãos que fugiam da ameaça da Inquisição.

20

O chamado “Livro das saídas dos navios e urcas” de Pernambuco indica para o período entre 1595 e 1605 uma forte participação de embarcações originárias de Hamburgo. Este documento foi publicado na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v. LVIII, p. 21, 1993, com um estudo introdutório de José Antonio Gonsalves de Mello. 154

o brasil e felipe iv: uma aproximação

impondo, portanto, a obrigação que o comércio do Brasil com a Europa se realizasse apenas através dos portos portugueses.21 A chegada ao trono do novo monarca coincide com uma virada na conjuntura internacional e também na da colônia. O início pouco antes da Guerra dos Trinta Anos, o fim da trégua dos doze anos com os holandeses, a recessão econômica na Europa, conformando o que a historiografia posteriormente definiria como a Crise Geral do século XVII. Na área colonial, o período seria marcado pelo fim da expansão territorial e da expansão da economia açucareira, bem como pelo início de uma fase da guerra contra os holandeses. Além disso, foi nesse momento que se estruturaram no Brasil os mecanismos do Antigo Sistema Colonial, em especial com o estabelecimento do exclusivo comercial, e também com o aumento da importância do tráfico africano de escravos e com o acirramento da carga fiscal. Situação que levaria ao fim a grande prosperidade do final do XVI e do início do XVII.

21

NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1995, especialmente o capítulo II. 155

O Retorno do Rei: Restauração Portuguesa e memória filipina no Maranhão e Grão-Pará (1640-1652)1

Alírio Cardoso2

Pois se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse perpétua, porque hão-de querer e porfiar os homens em que o seja? Se Deus limitou esta sujeição ao termo de sessenta anos, porque se não hão-de conformar os homens com seus soberanos decretos?3

1

Este artigo é uma parte modificada do sétimo capítulo de minha tese de doutorado. Para mais detalhes, ver: CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca, 2012. 435 f. Tese (Doutorado em História da América) – Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Salamanca. O autor agradece aos professores José Manuel Santos Pérez (Universidad de Salamanca) e Pedro Cardim (Universidade Nova de Lisboa).

2

Professor Dr. na Universidade Federal do Maranhão, com especialidade em História Militar e História Indígena.

3

VIEIRA, António. História do Futuro. Introdução, actualização do texto e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional; Fundação Calouste Gulbenkian, 1982 [1718], p. 117.

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Notícias da “Rebelião” A pergunta que retrospectivamente fazia Vieira no seu História do Futuro parece cobrar um sentido especial nas zonas de fronteira, áreas que flertavam constantemente com a possibilidade efetiva de uma união comercial hispano-lusa. Tal como ocorreu na Capitania de São Vicente, ao Sul, também no extremo Norte da América portuguesa, seus moradores nunca esconderam algumas altas expectativas em torno da continuidade de uma aliança monárquica que muitos identificavam como uma oportunidade de negócios e de abertura de novas frentes de ocupação.4 É bom lembrar que o próprio Estado do Maranhão nasceu, em 1621, como entidade política no seio da Monarquia Hispânica.5 Se não considerarmos o período da França Equinocial (1612-1615), carente de uma melhor definição jurídica no que diz respeito à configuração territorial, é possível dizer que até então a região não havia conhecido outra fórmula de existência institucional senão aquela dos Filipes. Sabe-se que, inclusive, algumas autoridades luso-maranhenses passaram a escrever informes diretamente em espanhol, de modo a conduzir melhor o diálogo com a Corte, a exemplo dos memoriais produzidos por Bento Maciel Parente na década de 1630.6 Aliás, esta parece 4

O primeiro a fazer uma comparação entre os dois casos a partir da perspectiva do alargamento da fronteira Oeste foi, mais uma vez, o velho Jaime Cortesão. Cf. CORTESÃO, Jaime. São Paulo e Belém do Pará. In: _____. Introdução à História das Bandeiras. Lisboa: Portugália Editora, 1964, p. 70-80. v. I.

5

Sobre o tema, ver: CARDOSO, Alírio. A conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626). Revista Brasileira de História, v. 31, n. 61, p. 317-338, 2011.

6

Por exemplo: MEMORIAL// Para conservar y aumentar la Conquista y tierras del Marañon, y los Indios que en ellas conquistó el capitán Benito Maciel Pariente// son necesarias las cosas siguientes// año 1630. [cópia]. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, II-35, 28; MEMORIAL, para conservar y augmentar la conquista y tierras del Marañon, y los indios que en ellas conquistó el Capitan Maior Bento Maciel Parente, son necesarias y convenientes las cosas siguientes. Revista do Instituto do Ceará, t. XXI, anno XXI, p. 182-188, 1907; José Honório Rodrigues confirma a informação: 158

o retorno do rei

ser uma tendência mais alargada que a união dinástica não fez mais que acelerar.7 Em outras crônicas e memoriais luso-maranhenses, considera-se claramente a história das conquistas ultramarinas portuguesas e castelhanas como um continuum temporal, partes integradas de uma mesma narrativa. Este foi o caso, por exemplo, dos textos escritos pelo capitão Simão Estácio da Silveira entre as décadas de 1610 e 1620.8 Em geral, estes moradores alimentavam muitas expectativas sobre a inserção do Maranhão nos circuitos comerciais atlânticos, principalmente com relação às rotas peruana e caribenha, cuja base retórica seria a condição de “covassalagem” entre portugueses e espanhóis, luso-maranhenses e hispano-peruanos. O processo de expansão para Oeste do território também foi uma política iniciada no período Habsburgo, primeiro com as expedições contra holandeses e ingleses no rio Amazonas; depois, com a oferta de sesmarias e os descimentos de índios através do sertão luso-maranhense. Até mesmo as promessas reais de hábitos de Ordens Militares, como recompensa aos conquistadores e aos combatentes na guerra contra os holandeses, que no caso do Estado do Maranhão começa na década de 1620 nas campanhas do rio Xingu, têm suas primeiras concessões no período da Monarquia Hispânica. Por tudo isso, o estudo de caso sobre a recepção política à Restauração Portuguesa ganha importância. Não obstante, a reação dos moradores do extremo Norte da América portuguesa deverá ser devidamente comparada com os diferentes territórios ultramarinos.

PARENTE, Bento Maciel apud RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil, 1ª parte: historiografia colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 82-84. 7

BUESCU, Ana Isabel. Aspectos do bilinguismo português-castelhano na época moderna. Hispania, v. LXIV/1, n. 216, p. 13-38, jan.-abr. 2004.

8

Entre outras, ver: SILVEIRA, Simão Estácio da. Intentos da Jornada do Parâ, Lisboa, 21 set. 1618. Biblioteca Nacional de España, mss 2349, flº 174v-175; ______. Relação Sumaria das Cousas do Maranhão. Escripta pello capitão Symao Estácio da Sylveira. Dirigida aos pobres deste Reyno de Portugal [1624]. In: SEPARATA dos Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976, p. 104-127. v. 94. 159

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

No Estado do Brasil, como se sabe, não houve nenhum problema incontornável no processo de reconhecimento do novo rei. Apesar disso, as reações foram mais diversas do que sugeriu a antiga historiografia nacionalista portuguesa, presa a categorias analíticas que compreendiam o movimento nos moldes de uma verdadeira “revolução”.9 Na Bahia, a notícia chegou no dia 15 de fevereiro de 1641. Na ocasião, o vice-rei D. Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão, foi bastante cauteloso ao informar primeiro os portugueses mais influentes, para depois desarmar os soldados castelhanos e italianos residentes na cidade de Salvador. A partir da capital, tratou-se de difundir a notícia a outras capitanias do Sul, principalmente Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente.10 Pouco antes, em janeiro, o Conde-Duque já havia feito o possível para garantir o Brasil na esfera de influência filipina, mas a adesão jesuíta aos projetos brigantinos ajudou a minar rapidamente as pretensões de Madri.11 Na ocasião, o vice-rei recebeu pressões diversas a favor de Filipe IV, inclusive

9

Para uma análise sobre as possibilidades interpretativas do Primeiro de Dezembro, atenta também à forma como a historiografia nacionalista reinventou de maneira retrospectiva o movimento, ver: SCHAUB, Jean-Frédéric. La crise hispanique de 1640. Le modèle des “révolutions périphériques” en question (note critique). Annales Histoire, Sciences Sociales, v. 49, n. 1, p. 219-239, jan.-fév. 1994; BOUZA ÁLVAREZ, Fernando Jesús. Gramática de la crisis. Una nota sobre la historiografía del 1640 hispánico entre 1940 y 1990. Cuadernos de Historia Moderna, n. 11, p. 223-246, 1991.

10

Entretanto, como se sabe, mais tarde o próprio Marquês de Montalvão seria deposto do cargo. LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial: exército, fiscalidade e administração colonial da Bahia (1624-1654). Campinas, 2009. 296 f. Tese (Doutorado em História Econômica) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, p. 154-156.

11

VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal, 1640-1680: Guerra, conflicto y poderes en la Monarquía Hispánica. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1998, p. 32. Ver também: VALLADARES, Rafael. Brasil: de la Unión de Coronas a la crisis de Sacramento (1580-1680). In: SANTOS PÉREZ, José Manuel (Ed.). Acuarela de Brasil, 500 años después: Seis ensayos sobre la realidad histórica y económica brasileña. Salamanca: Aquilafuente; Ediciones Universidad de Salamanca, 2000, p. 23-36. 160

o retorno do rei

dentro da própria família, mas acabou por aderir à rebelião de maneira mais diligente do que era francamente esperado em Lisboa.12 Em São Paulo, a alteração mais conhecida foi mesmo a chamada Aclamação de Amador Bueno, a quase mítica história deste personagem de pai sevilhano e mãe portuguesa supostamente aclamado como “rei de São Paulo” pelas elites locais. Sem dúvida, uma forma pouco ortodoxa de escapar da confusão político-dinástica ocasionada pela separação entre Portugal e Castela.13 Não por acaso, existe pouca credibilidade sobre esta história, bem mais relacionada às aspirações nativistas dos autores brasileiros do século XIX.14 Embaraços maiores eram esperados na Capitania do Rio de Janeiro, onde seu capitão, Salvador Correia de Sá e Benevides, tinha conhecidas ligações familiares, econômicas e políticas com os espanhóis, sobretudo na área do rio da Prata. Apesar das insinuações perigosas que afirmavam sua possível lealdade a Filipe IV, a Aclamação no Rio ocorreu sem grandes incidentes.15 12

COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV. Lisboa: Temas e Debates, 2008, p. 139.

13

Aliás, na interpretação clássica de Jaime Cortesão, São Paulo seria a única exceção à regra segundo a qual: “A Restauração foi recebida no Brasil com aplauso geral e entusiástico” CORTESÃO, Jaime. O Ultramar Português depois da Restauração. Lisboa: Portugália Editora, 1971, p. 106-108. Para um estudo mais sistemático sobre o tema, ver: VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). São Paulo, 2010. 400 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

14

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A alegada proclamação de Amador Bueno em 1641. In: ______. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 367-368; MONTEIRO, Rodrigo Bentes. A Rochela do Brasil: São Paulo e a aclamação de Amador Bueno como espelho da realeza portuguesa. Revista de História, São Paulo, n. 141, p. 21-44, 1999.

15

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A família de Salvador Correia de Sá e Benevides. In: ______. O trato dos viventes..., op. cit., p. 365-366; VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal..., op. cit., p. 84-85. Sobre Salvador Correia de Sá, vale a pena voltar ao clássico de Boxer: BOXER, Charles R. Salvador de Sá and the struggle for Brazil and Angola, 1602-1686. Londres: Athlone Press, 1952. 161

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Em Angola e na Guiné, regiões fundamentais para o fornecimento de escravos, a notícia chegou com atraso, mas não impediu que D. João fosse aclamado entre março e abril de 1641. A partir da África, esperava-se que a informação chegasse mais rapidamente ao Estado da Índia. Em março foram enviados navios ao Oriente com as novas do reino. Goa celebrou o reconhecimento do novo rei em 9 de setembro de 1641. Em Macau, apesar de uma Aclamação em 1642, D. João foi obrigado a administrar as especulações que apontavam para um possível acordo entre os poderes locais e Filipe IV, o que ameaçaria toda a soberania lusa na Ásia. De modo geral, as relações existentes entre Macau e as Filipinas garantiriam uma passagem de governo repleta de incertezas. No Oriente, tal como ocorreu com o próprio Maranhão, o início do novo regime também foi contemporâneo das invasões holandesas, o que complicava sobremaneira o cenário.16 Nas ilhas, sobretudo em Açores, o reconhecimento de D. João IV tomou rumos mais belicistas em função da presença de tropas castelhanas naquelas águas. Tal como se sabe, os galeões espanhóis também utilizavam esta rota como passagem obrigatória no retorno da carrera. Na ilha Terceira, as tropas espanholas resistiram cerca de um ano até cederem ao domínio militar brigantino.17 As primeiras notícias seguras sobre a independência de Portugal chegaram ao Estado do Maranhão com bastante atraso, nos últimos dias do mês de maio. Os moradores tiveram pouco tempo para absorver a novidade. A informação chega poucos meses antes do início da invasão neerlandesa a São Luís, evento que a partir de então passaria a monopolizar a atenção das autoridades e dos cronistas. Não por acaso, na História de Portugal Restaurado, do conde de Ericeira, os fragmentos reservados ao Maranhão não tratam praticamente da Aclamação em si, ou da recepção à notícia, reservando bem mais espaço para a análise das consequências da invasão holandesa.18 16

VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Asia (1580-1680): Declive imperial y adaptación. Leuven: Leuven University Press, 2001, p. 65-91.

17

VALLADARES, Rafael, La rebelión de Portugal…, op. cit., p. 33-36.

18

MENEZES, Dom Luis de, Conde da Ericeyra. Historia de Portugal Restaurado. Lisboa: Officina de João Galrão, 1679, Livro quinto, p. 301-303, Livro sexto, 162

o retorno do rei

Coube a Pedro Maciel Parente, sobrinho do governador do Estado, Bento Maciel, a honra de informar aos moradores do Maranhão que Portugal tinha novo rei. Pedro acabava de chegar do reino para assumir a Capitania do Grão-Pará e, supostamente, estaria inteirado de certos detalhes sobre o ocorrido em Lisboa. Se acreditarmos nas palavras do cronista Berredo, sem “outra alguma dificuldade” os moradores da cidade de São Luís reconheceram a legitimidade de D. João, e o nome do antigo duque de Bragança teria sido jurado na Câmara em presença do governador e de autoridades militares e religiosas. Segundo o mesmo cronista, foi uma cerimônia rápida, reservada apenas às grandes figuras da terra, embora os cronistas portugueses posteriores insistissem em caracterizar como popular.19 A cidade de Belém, na Capitania do Grão-Pará, teria recebido a mesma informação no dia 13 de junho de 1641. O próprio governador, Bento Maciel Parente, enviou uma carta ao então capitão-mor, Francisco Cordovil Camacho, este último cavaleiro do hábito de Cristo e que, como muitos, devia seu ascenso às políticas do regime anterior. Na carta, Bento Maciel faz questão de informar que a obediência ao novo rei havia sido obtida sem perda de sangue, a exceção de D. Miguel de Vasconcelos, e que a aclamação já se encontrava estendida por todo o reino. Assim, segundo Bento Maciel, o duque de Bragança já era reconhecido como soberano inclusive nas ilhas atlânticas, e o próprio juramento da Câmara de São Luís teria imitado exatamente o estilo da aclamação produzida em Cabo Verde.20 p. 370-372, Livro setimo, p. 443-448. t. I. 19

BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão. São Luís: Alumar, 1988, p. 192, § 756.

20

Berredo transcreve a carta que o governador enviou ao capitão-mor Francisco Cordovil Camacho: “Foi Nosso Senhor servido dar-nos rei português, o qual é D. João IV, duque que até agora foi de Bragança; está jurado, e obedecido geralmente em todo reino de Portugal, e suas ilhas, sem custar sangue, nem morte mais que a de Miguel de Vasconselos: foi uma resolução milagrosa; guarde-no-lo Deus muitos anos. Veio com este aviso, e ordens meu sobrino Pedro Maciel despachado para servir o governo dessa capitania: aqui o aclamamos por rei na Câmara, onde fui com os oficiais reais, e mais pessoas nobres, e prelados das ordens; e fizemos o negócio com juramento, pelo 163

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Testemunha ocular, Manuel Guedes Aranha era alferes nesta época e estava no comando de uma Companhia no dia em que a notícia chegou à cidade de Belém. Segundo conta o alferes, a novidade da “feliz restituição” foi recebida sem tumultos, passando rapidamente ao cerimonial de reconhecimento do novo monarca. Manuel Guedes garante ainda que a aclamação teve um caráter popular, prova disso seria a reação dos soldados da infantaria que saíram pelas ruas da cidade a gritar entusiasticamente o nome de D. João.21 As autoridades locais não descuidaram de outras formalidades condizentes com a ocasião. É possível, como indica João Francisco Marques, que sermões fossem pronunciados no colégio jesuíta de Nossa Senhora da Luz da cidade de São Luís, tal como ocorreu em muitas outras partes. O ritual era uma demonstração da conformidade entre as esferas política e religiosa, fundamental no discurso de afirmação social da Restauração.22 No dia 6 de julho foram enviados dois navios ao reino, que tinham como capitães Francisco de Oliveira e Duarte Leão, para dar constância a Lisboa da obediência luso-maranhense ao novo Monarca.

estilo que se fez em Cabo verde, de que vai cópia para Vossas Mercês lá seguirem o mesmo: temos feito muitas festas; Vossas Mercês assim lá o devem fazer, porque foi obra milagrosa, como Vossas Mercês saberão de meu sobrino quando lá for, e o termo e papéis, que se hão de fazer para irem a Sua Majestade, hão de ser pelo estilo, de que vai a cópia autêntica, mudando a substância da terra, e nomes das pessoas”. Ibidem, p. 192-193, § 758-759. 21

REQUERIMENTO do capitão Manuel Guedes Aranha para o rei [D. João IV], a solicitar sua nomeação para o cargo de sargento-mor da capitania do Pará, pelos serviços prestados ao longo da sua vida. 25 jan. 1655. Arquivo Histórico Ultramarino, Pará (avulsos), cx. 2, doc. 89; CONSULTA do Conselho Ultramarino para o rei D. João IV, sobre a pretensão dos capitães Manuel Guedes Aranha, Gaspar Gonçalves Cardoso, Simão Faria e Jerónimo de Abreu e Vale ao cargo de sargento-mor da capitania do Pará, vago por falecimento de Pedro Correia. Lisboa, 26 abr.1655. Arquivo Histórico Ultramarino, Pará (avulsos), cx. 2, doc. 92.

22

Na sua impressionante cartografia dos sermões da Restauração, Marques indica dois pronunciados no colégio dos jesuítas de São Luís. MARQUES, João Francisco. A parenética portuguesa e a Restauração, 1640-1668: A revolta e a mentalidade. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica; Universidade do Porto, 1989, p. 86. v. 1. 164

o retorno do rei

De modo geral, a versão que resumimos anteriormente é muito mais baseada nos cronistas setecentistas, sobretudo Berredo. Com efeito, a história da Aclamação brigantina no Maranhão possui lacunas nem sempre esclarecidas pelas fontes coevas disponíveis. Não sabemos, por exemplo, o que ocorreu com os espanhóis que estavam no Maranhão nesta época. Também não há muitos detalhes a respeito da reação imediata dos oficiais do Senado da Câmara das cidades de São Luís e Belém. Infelizmente, os livros da Câmara que sobreviveram ao ataque holandês são posteriores a 1646, de modo que não consta neles o juramento da Aclamação de D. João. Assim, ainda faltam muitas perguntas por responder acerca do impacto do 1º de dezembro nessas terras.23 A Restauração Portuguesa no Maranhão deverá ser analisada a partir dos vários interesses e projetos que já estavam em disputa no tempo dos Filipes. Nesse sentido, os diversos grupos que formavam esta sociedade, que incluíam portugueses brancos, mestiços pobres, índios aliados, índios principais, missionários e, inclusive, “estrangeiros” (não portugueses e não espanhóis), responderam de formas diferentes às demandas da mudança de regime. Em muitos casos, houve perdas e ganhos com o novo cenário.

Perdas e Ganhos Não há dúvidas de que alguns colheram benefícios imediatos com a ascensão de D. João IV. A boa acolhida ao novo governo não deixou de ser lembrada nos processos de habilitação para as Ordens Militares, o que demonstra mais uma vez a grande preocupação que existia a respeito da adesão das conquistas ultramarinas. Em 1650, Aires de Sousa Chichorro, capitão-mor do Grão-Pará, recebeu a promessa real do

23

Sobre a Câmara de São Luís e seu papel na conquista do Maranhão, ver: CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Para aumento da conquista e bom governo dos moradores: O papel da Câmara de São Luís na conquista, defesa e organização do território do Maranhão (1615-1668). Niterói, 2011. 300 f. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. 165

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

hábito de Cristo pelos serviços prestados no combate aos holandeses e ingleses no Maranhão, mas também em função de seu comportamento considerado exemplar, em 1641, “mostrando com a nova da Aclamação que chegou aquelas partesgrande contentamento e zelo”.24 Quatro anos depois, outro conhecido oficial luso-maranhense recebeu uma honra parecida. Era Manuel Guedes Aranha, a quem o rei mandou lançar o hábito de Santiago entre outras coisas por ser “das pessoas que daquelas partes com maior zelo e contentamento celebraram a nova da aclamação”.25 Sabe-se que o tópos da fidelidade ao novo monarca estaria presente, durante muito tempo, também no imaginário nativista pernambucano. Com efeito, as crônicas do século XVIII reforçariam a versão segundo a qual a Restauração Pernambucana (aos holandeses) havia sido um desdobramento dos acontecimentos da Restauração Bragantina. Assim, os insurgentes foram, supostamente, incentivados a lutar contra o batavo invasor por lealdade a D. João IV, e com o intuito de devolver os territórios tomados ao seu monarca natural.26 O elogio à Aclamação passou a ser mais uma das fórmulas retóricas utilizadas na petição de cargos e mercês. Em 1644, na apresentação de nomes para ocupar o lugar de sargento-mor do Maranhão, Jerónimo de Sousa Santiago alegou merecer o cargo por ter tido o valor de navegar pelos rios da Guiné, em fevereiro de 1641, arriscando a própria vida para avisar a Cacheu de que Portugal tinha novo rei.27 Anos depois, ocorreu o mesmo a Luís de Magalhães, que foi governador do Estado do Maranhão

24

AYREZ de Souza Chichorro. Lisboa, 7 dez. 1650. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens (consultas). Registro Geral de Mercês (Portarias do Reino), livro II, flº 318.

25

M.el GUEDES Aranha. Alcântara, 6 jul. 1654. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens (consultas). Registro Geral de Mercês (Portarias do Reino, Consultas), livro III, flº 56v-57.

26

MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernambucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 119-121.

27

CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João IV, sobre a nomeação de pessoas para o cargo de sargento-mor do Estado do Maranhão. Lisboa, 28 abr. 1646. Arquivo Histórico Ultramarino, Maranhão (avulsos), cx. 2, doc. 193. 166

o retorno do rei

entre 1649 e 1652. Quando ainda era candidato à sucessão de Francisco Coelho de Carvalho, o capitão Magalhães foi considerado pelo Conselho Ultramarino como a melhor escolha por ter, segundo dizem: “conseguido o merecimento de haver aclamado a Vossa Majestade com zelo de bom e verdadeiro português”.28 Entretanto, os meses subsequentes à Aclamação de D. João IV não transcorreram livres de dúvidas, mal-entendidos e confusões próprias de uma troca tão repentina de poder. Para complicar mais a situação, estavam aqueles que obtiveram certas vantagens políticas no regime anterior. No caso do Maranhão, estava claro que uma das famílias mais prejudicadas poderia ser a Albuquerque Coelho, concretamente a rama pernambucana que passou ao governo maranhense e que tinha o seu próprio nome estreitamente relacionado com a nova conquista. De fato, os ganhos que esta família acumulou durante o período filipino colocariam seus representantes rapidamente no ponto de mira dos brigantinos mais exaltados. Um bom exemplo foi o mesmíssimo Matias de Albuquerque, acusado em 1641 de participar na conspiração do marquês de Vila Real contra D. João IV, depois inocentado no mesmo processo.29 Por outro lado, foi exatamente a forte presença desta família na luta contra os holandeses que garantiu a renovação das mercês durante o governo dos primeiros Bragança, coisa evidente em qualquer consulta de habilitações para Ordens Militares entre as décadas de 1640 e 1650. Para os emergentes comerciantes luso-maranhenses que frequentavam muitas vezes a mesma rota de regresso dos galeões espanhóis, a Restauração também trouxe alguns inconvenientes. Em outras partes da Monarquia foram, exatamente, os negociantes os indivíduos que mais 28

CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João IV, sobre a nomeação de pessoas para o governo do Estado do Maranhão, após a morte do governador do dito Estado, Francisco Coelho de Carvalho. Lisboa, 9 jun. 1648. Arquivo Histórico Ultramarino, Maranhão (avulsos), cx 3, doc. 255.

29

MENEZES, Dom Luis de, Conde da Ericeyra, op. cit., Libro Quinto, p. 272. Sobre a conspiração de 1641, ver: WAGNER, Mafalda de Noronha. A casa de Vila Real e a conspiração de 1641 contra D. João IV. Lisboa: Edições Colibri, 2007. 167

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

problemas acumularam com a repentina rebelião lusa. Estes homens de negócio passam a sofrer com a desconfiança das duas partes, considerados muitas vezes como agentes infiltrados, perigosos por serem indivíduos que naturalmente circulavam entre os dois reinos.30 Um bom exemplo foi o que ocorreu com dois comerciantes que voltavam do Maranhão em direção ao reino, ainda em 1641. Jorge Franco Barbudo e Pedro Lopes Cabral tiveram a embarcação em que viajavam confiscada por um dos galeões da frota espanhola, na viagem de retorno. Questionados por um capitão espanhol sobre a “rebelião”, os dois portugueses afirmaram não terem notícia alguma sobre o tema argumentando que o Estado do Maranhão recebia poucas informações da Europa. Ainda que jurassem fidelidade a Filipe IV, o navio dos dois portugueses foi embargado em Cádis e sobre ele foi realizado um inventário de bens, iniciando então um longo processo. O caso foi tratado pela recém-formada “Junta de Inteligencias del Reino de Portugal”.31 Esta Junta foi criada no mesmo contexto da fundação de outros órgãos que, a partir de 1639, deveriam substituir o Consejo de Portugal. Em 1641, a chamada Junta de Inteligências passa a dedicar-se, em Madri, às ajudas financeiras aos portugueses residentes na Espanha.32 30

VALLADARES, Rafael. El Brasil y las Indias españolas durante la sublevación de Portugal (1640-1668). Cuadernos de Historia Moderna, n. 14, p. 161, 1993; CARDIM, Pedro. O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança. Hispania, v. LXIV/1, n. 216, p. 139, jan.-abr. 2004.

31

JUNTA de Inteligencias del Reyno de Portugal, 1641-1642. Madrid, abr. [1642?]. Archivo General de Simancas, Estado (Portugal), leg. 7041.

32

BOUZA ÁLVAREZ, Fernando Jesús. Portugal no tempo dos Filipes: política, cultura, representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000, p. 188-189; LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. La pervivencia del Consejo de Portugal durante la Restauración: 1640-1668. Norba – Revista de Historia, n. 8-9, p. 61-86, 1987-1988. Na mesma época, era estimado o número de cerca de 2000 negociantes de origem portuguesa apenas na cidade de Sevilha, um grupo que havia prosperado, sobretudo, no governo do Conde-Duque. Ver: LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. A Colónia portuguesa de Sevilha. Uma ameaça entre a Restauração Portuguesa e a conjuntura de Medina Sidónia? Penélope – Fazer e Desfazer a História, n. 9-10, p. 127-134, 1993; BOUZA ÁLVAREZ, Fernando Jesús. Entre dos Reinos, una patria rebelde: fidalgos por168

o retorno do rei

Os espanhóis residentes no Maranhão tiveram igualmente seus contratempos. Foi o caso dos religiosos que viviam nestas terras, resultado de um intercâmbio missionário que estava apenas começando nos últimos anos do período Habsburgo. Tudo teve início com a famosa jornada de Pedro Teixeira (1637-1639). Na viagem de regresso de Quito, o capitão Teixeira levou ao Grão-Pará dois jesuítas espanhóis, Cristóbal de Acuña e André Artieda, e mais quatro mercedários da mesma nação, frei Pedro de La Rua Cirne, frei Juan de la Merced, frei Diego da “Conceição” e Frei Afonso de Armijo. Estes mercedários prosperaram em pouco tempo, com as doações feitas pelos moradores do Estado, e chegaram a construir dois conventos, um na Capitania do Maranhão e outro no Grão-Pará. Com grande eficiência, os religiosos espanhóis teceram uma rede de alianças com os habitantes da região, especializando-se no ensino aos filhos das autoridades, mas também aos moradores pobres. Logo após a Restauração, tem início um curioso processo para expulsá-los do Estado do Maranhão. A pugna não foi iniciada pelos moradores, que já eram aliados dos frades, mas pelos padres da Nossa Senhora da Trindade do reino de Portugal, religiosos que nunca pisaram em terras maranhenses. Entre 1645 e 1646, os padres tridentinos levantaram sérias dúvidas a respeito da lealdade dos religiosos castelhanos, chegando mesmo a solicitar a D. João IV a expulsão da Ordem mercedária e o confisco de todos os seus bens, incluindo os conventos.33 Ao final da querela, os mercedários acabaram obtendo nova permissão real para seguir com o serviço apostólico na região, sob a condição de que não receberiam novos frades espanhóis.34 tugueses en la Monarquía Hispánica después de 1640. Estudis – Revista de Historia Moderna, n. 20, p. 83-103, 1994. 33

Ao que parece, a rede de alianças construída pelos mercedários espanhóis, que incluía também outras Ordens religiosas da região, foi suficiente para garantir a permanência dos frades, ao mesmo tempo em que as dúvidas a respeito da lealdade ao novo monarca perdiam, pouco a pouco, sua força retórica. Conto esta história com mais detalhes em: CARDOZO, Alírio. Sacras intrigas: conflitos entre ordens religiosas no Maranhão e Grão-Pará (século XVII). Revista Estudos Amazônicos, v. III, n. 1, p. 11-38, 2008.

34

Ver: CONSULTA do Conselho Ultramarino para o rei D. João IV, sobre os requerimentos dos religiosos de Nossa Senhora das Mercês de Castela, 169

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Outra questão importante que deveria ser administrada pelo novo rei era o desenvolvimento da guerra aos holandeses.35 No que concerne ao conflito, o governo de D. João IV tomou decisões que não agradaram a todos os vassalos do ultramar. Neste sentido, a trégua com os Países Baixos, em 1641, causou mais de um embaraço importante.36 Na opinião de Martim Soares Moreno e de André Vidal de Negreiros, líderes militares envolvidos numa insurreição que não contava oficialmente com o apoio do novo soberano, mais preocupado com as suas tropas na fronteira luso-espanhola, as ordens de desmobilização do exército em Pernambuco só favoreceriam aos batavos. Uma prova disso seria exatamente a tomada do Maranhão, logo após a assinatura da trégua, em 1641. Como se sabe, as autoridades lusas que apoiavam a insurreição pernambucana integravam uma facção política que começava a ser conhecida no reino como os “valentões de Portugal”, formada por indivíduos contrários a qualquer concessão aos holandeses.37

provenientes da província de Quito, em que pedem licença para residir no convento da Santíssima Trindade, na cidade de Belém do Pará, durante a sua viagem pelo rio das Amazonas, apesar da oposição dos religiosos tridentinos, que alegam que os primeiros tinham sentenças apostólicas contrárias ao pretendido. Lisboa, 24 jul. 1646. Arquivo Histórico Ultramarino, Pará (avulsos), cx. 1, doc. 61; CONSULTA do Conselho Ultramarino para o rei D. João IV, sobre o requerimento do comissário geral da Ordem de Nossa Senhora das Mercês do Convento do Pará, padre fr. Pedro da Rua Cirne, que solicitava ajudas de custo e concessão de passagem para os religiosos da daquela Ordem que pretendiam seguir para a capitania do Pará. Lisboa, 3 set. 1646. Arquivo Histórico Ultramarino, Pará (avulsos), cx. 1, doc. 62. 35

Para um estudo sobre o impacto da guerra no mundo luso-brasileiro, ver: SANTOS PÉREZ, José Manuel; SOUZA, George F. Cabral de (Org.). El Desafío Holandés al dominio Ibérico en Brasil en el siglo XVII. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2006.

36

CESAR, Thiago Groh de Mello. A política externa de D. João IV e o Padre Antonio Vieira: as negociações com os Países Baixos (1641-1648). Niterói, 2011. 152 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, p. 73.

37

MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste. 1641-1669. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 35-36. 170

o retorno do rei

Sabe-se também que, após a expulsão dos neerlandeses da ilha de São Luís, em 1644, muitos militares luso-maranhenses prestaram auxílio à insurreição pernambucana, iniciada com as alterações de junho de 1645. Numa carta enviada ao governador António Teles da Silva, assinada por Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros, ficava patente o desagrado dos soldados com aquilo que poderia ser interpretado como um sinal de debilidade do novo monarca: “Senhor, desengana-se Vossa Senhoria que o poder e indústria do Mundo todo não há de persuadir estes homens a que se fiem dos Holandeses”. Em outro trecho, os perigos desta decisão sobre o ânimo da tropa ficavam mais evidentes ainda: “e estamos com suspeitas de que estes homens depois que viram estas ordens de Vossa Senhoria tem mandado pedir socorro a algum Príncipe Católico”.38 Retomava-se, assim, a memória dos primeiros tempos da “Guerra do Brasil”, que contava com o apoio de Filipe IV na mobilização de tropas castelhanas e napolitanas em Pernambuco. Evidentemente, este não era um legado fácil de administrar nos primeiros anos do governo de D. João IV. Apesar disso, o próprio Maranhão seria beneficiado com o envio de armas e bastimentos nas décadas de 1640 e 1650, o que demonstra a ambiguidade com que o Bragança considerou a função estratégica das rebeliões luso-americanas.39 Neste debate, ganhava cada vez mais importância a opinião de um religioso que dez anos mais tarde seria um dos moradores mais famosos do Estado do Maranhão: o padre António Vieira. Bem antes de 1653, início da atividade missionária do padre Vieira na região, este 38

CARTA dos Mestres de Campo Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros expondo a Antonio Telles da Silva as disposições em que estão os soldados e moradores de Pernambuco de proseguir na guerra com a Holanda. Pernambuco, 28 maio 1646. Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, códice 7163. Publicado em: STUDART, Barão de. Documentos para a História do Brasil, especialmente para a do Ceará. Revista do Instituto do Ceará, doc. 248, p. 286, 1920.

39

É verossímil pensar, como interpretou Evaldo Cabral, que D. João estivesse jogando com os dois cenários, de modo que a própria Insurreição Pernambucana forçaria os Países Baixos a uma negociação mais favorável a Portugal. MELLO, Evaldo Cabral de, O Negócio do Brasil, op. cit., p. 43 e 65. 171

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

religioso já tinha planos sobre a inserção do Maranhão e Grão-Pará no novo governo brigantino.

Planos de António Vieira Do ponto de vista político, não há motivos para pensar que Vieira tivesse qualquer projeto universal para o império, embora acreditasse na existência de um. Apesar dos seus escritos providencialistas, ainda que tardios, e de seu esforço por descerrar o porvir da cristandade lusa, tal projeto não dependia em nada dele, senão Daquele.40 Não há dúvidas de que Vieira acreditava em projetos universais e no estreito vínculo entre religião e devir político. Isto explica porque, nas vésperas da Restauração, Vieira manifestava certo entusiasmo com o universalismo da Monarquia Hispânica.41 Parece irônico que o universalismo vieiriano tenha atingido um momento de inflexão, com escrita da famosa carta “esperanças de Portugal”, em pleno coração da floresta amazônica, uma parte do império tão diferente das Cortes europeias já familiares ao jesuíta.42 Entretanto,

40

Sobre o tema, vale a pena ver: HANSEN, João Adolfo. Vieira: tempo, alegoria e história. Brotéria, v. 145, p. 541-556, 1997.

41

CARDIM, Pedro; SABATINI, Gaetano. António Vieira e o universalismo dos séculos XVI e XVII. In: ______.; ______. (Ed.). António Vieira, Roma e o universalismo das monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: Centro de História de Além-Mar; Universidade Nova de Lisboa; Universidade dos Açores; Università Degli Studi Roma Tre; Red Columnaria, 2011, p. 13-27.

42

Como se sabe, a famosa carta foi o eixo a partir do qual a Inquisição de Coimbra reiniciou o processo contra Vieira. Ver: ESPERANÇAS de Portugal// Quinto Imperio do Mundo// Primeira e segunda vida de El Rey D. João o quarto escriptas Por Gonçalo Annes Bandarra, e comentadas pello Padre Antonio Vieyra da Companhia de Jesus remetidas pello dito padre ao bispo de Japam o padre Antonio Fernandes. Camutá do Rio das Amazonas vinte e nove de abril de 1659 annos//O Padre Antonio Vieyra da Companhia de Jesuz. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa de Palmela, livro 98, flº 98-140v. 172

o retorno do rei

é possível dizer que o alcance do providencialismo vieiriano incluía também o Maranhão. Algo não muito comentado pela historiografia, e pela fortuna crítica de António Viera, o interesse do famoso jesuíta pelas terras do Maranhão é bem anterior à sua chegada a São Luís, em 1653. Vieira, de fato, faz diversas referências à região nos documentos produzidos durante a movimentada década de 1640, com as conturbadas e improfícuas negociações com os holandeses. Seus escritos anteriores a 1653 não tratam, ainda, especificamente do problema da liberdade do índio, mas sobre o papel que jogaria o Maranhão na nova conjuntura. Vieira participou ativamente do esforço diplomático português no pós-Restauração, momento em que D. João IV enviou seus representantes a várias partes da Europa, desesperado por apoio militar e reconhecimento político.43 Nessa época, a situação do Brasil Holandês estava longe de uma solução vantajosa para Portugal. A própria trégua assinada em 12 de junho de 1641, entre Portugal e as Províncias Unidas, intermediada pelo embaixador Tristão de Mendonça Furtado, não garantia claramente uma futura devolução dos territórios do Brasil, tema que aos poucos tornar-se-ia tabu para os neerlandeses.44 Os detalhes de uma futura paz seriam negociados apenas em Vestfália, mas as opções do novo soberano de resolver a crise sem grandes despesas eram cada vez menores. A partir de 1645, a crise tornou-se mais interessante ainda. Duas novidades deveriam ser levadas em consideração em qualquer tentativa de negociação com os holandeses: em primeiro lugar, o Maranhão não era mais território batavo; em segundo lugar, teve início a Insurreição Pernambucana contra os Países Baixos, que também contaria com o apoio de militares luso-maranhenses. Ainda assim, o ciclo de negociações diplomáticas na Europa não cessou, e as propostas sobre o que

43

CARDIM, Pedro. Entre Paris e Amsterdão: António Vieira, legado de D. João IV no Norte da Europa (1646-1648). Oceanos, n. 30-31, p. 134-154, set. 1997; CESAR, Thiago Groh de Mello, op. cit.

44

MELLO, Evaldo Cabral de, O Negócio do Brasil, op. cit., p. 31-33; VAINFAS, Ronaldo. Guerra declarada e paz fingida na Restauração Portuguesa. Tempo, v. 14, n. 27, p. 82-100, 2009; CESAR, Thiago Groh de Mello, op. cit., p. 65-70. 173

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

fazer com o Brasil Holandês continuavam a chegar aos ouvidos de um indeciso D. João IV. Algumas destas propostas incluíam sugestivas referências ao extremo Norte da América portuguesa. Numa das cartas escritas em Haia ao marquês de Niza, D. Vasco Luís da Gama, Vieira comenta que o Maranhão poderia ser bastante útil no prolongamento da guerra contra Castela. De acordo com o jesuíta, com o apoio da França, Portugal poderia ameaçar Espanha no seu bem mais precioso, o comércio da prata através do Peru e da Nova Espanha. Segundo esta hipótese, o Maranhão seria a região mais adequada para o envio de socorro militar, em função da facilidade de navegação para as Índias de Castela. Não por acaso, em Sevilha, desde o início da rebelião lusa, existia o temor de que portugueses pudessem organizar ataques à frota da prata na saída de Cartagena de Índias.45 Por outro lado, estava claro que, em consonância com outros agentes diplomáticos brigantinos, o próprio Vieira não confiava no apoio francês e lembrava convenientemente das tentativas passadas de ocupação das capitanias do Rio de Janeiro e do Maranhão.46 Vieira tinha consciência de que o Maranhão pertencia a outra zona da navegação oceânica, diferente daquela do Brasil. Para o jesuíta, estas condições naturais deveriam ser, com o tempo, devidamente exploradas. Em caso de não existir a possibilidade de intercâmbio com as Índias espanholas, enquanto durasse a Guerra de Restauração, Vieira sabia que outras rotas deveriam ser incentivadas. Em outra proposta sobre a utilização do capital cristão-novo, o jesuíta defende que a navegação atlântica portuguesa deve adaptar-se às diferenças entre as macrorregiões americanas. Na linha Norte-Sul, navegariam embarcações de grande porte, ligando Índia, Brasil e Angola; e na linha Leste-Oeste, navegariam caravelas que pudessem interligar as regiões de São Tomé, Cabo Verde, Açores,

45

SCHWARTZ, Stuart B. Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou Portugal. Tempo, v. 12, n. 24, p. 212, 2008.

46

AO MARQUÊS de Nisa. Haia, 20 jan. 1648. In: VIEIRA, António. Cartas do Padre António Vieira. Coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1970, p. 129-130. t. I. 174

o retorno do rei

Madeira e Maranhão.47 O jesuíta também deveria estar bem informado sobre o perfil das embarcações que navegavam para o Maranhão, e sua necessidade constante de fazer a transição entre o mar e os braços de rio. Esta informação, aliás, já constava das cartas e memoriais de outro companheiro jesuíta, o padre Luís Figueira.48 O eixo Andes-Maranhão também não foi descartado por António Vieira como possibilidade futura. No parecer em que defendeu a compra do Brasil, Angola e Guiné aos holandeses existem referências à possibilidade de exploração deste caminho, segundo os novos interesses em jogo. A história do parecer de 1647 é bem conhecida. Para Vieira, a melhor forma de resolver o impasse com os holandeses seria a compra, por cerca de três milhões de cruzados, de todas as praças ocupadas pelos batavos no Atlântico português. Esta negociação deveria incluir um gordo suborno aos conselheiros das Províncias Unidas, “comprar as vontades e juízos”, antes de comprar as terras, foi o argumento usado pelo famoso padre. Segundo ele, uma das consequências desta negociação seria “o crescimento do Maranhão” que passaria a ser, num contexto de paz, uma escala obrigatória “onde os castelhanos ou outras nações amigas ou neutrais, possam ir comprar negros e navegá-los”, pagando os impostos devidos ao rei de Portugal.49 Assim, o Maranhão seria finalmente convertido em porto de livre navegação entre as Índias ocidentais e a Europa, legalizando atividades que já eram desenvolvidas ali desde o final do século XVI, isto sim, na forma de contrabando e pirataria.

47

RAZÕES apontadas a El-Rei D. João IV a favor dos Cristãos-Novos, para se lhes haver de perdoar a confiscação de seus bens, que entrassem no comércio deste Reino. In: VIEIRA, Padre António. Obras escolhidas. Lisboa: Sá da Costa, 1951, p. 70. v. IV.

48

Ver CARDOSO, Alírio; CHAMBOULEYRON, Rafael. Fronteiras da Cristandade: Relatos jesuíticos no Maranhão e Grão-Pará (século XVII). In: PRIORE, Mary Del; GOMES, Flávio (Org.). Os Senhores dos Rios: Amazônia, Margens e História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 33-60.

49

PARECER sobre se Restaurar Pernambuco e se Comprar aos Holandeses, Ano 1647. Lisboa, 14 mar. 1647. VIEIRA, Padre António, Obras escolhidas, op. cit., p. 11. v. III. 175

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Com relação ao Portugal rebelde, o cenário para o ano de 1648 não era promissor. Havia poucas alternativas postas na mesa, pioradas com a evidente fragilidade lusa no Congresso de Münster, ocasião em que ficou patente a ambiguidade do apoio francês.50 Foi exatamente neste contexto que o Norte da América lusa passou a integrar algumas propostas menos ortodoxas. No final de 1648, o jesuíta escreve seu famoso parecer em que defendeu a necessidade de renunciar ao Brasil holandês para renunciar à guerra. Chamado de Papel Forte, a proposição impressa neste documento é hoje bem conhecida: fazer cessar a Insurreição Pernambucana, que aliás nunca contou com o apoio explícito do soberano, e transferir os luso-pernambucanos com seus escravos e fazendas para outras praças do Brasil, principalmente Bahia e Rio de Janeiro. Na defesa de uma tão controvertida proposta, Vieira lembra que os próprios castelhanos, por absoluta necessidade, tinham feito exatamente o mesmo com seus territórios nos Países Baixos. Na verdade, a proposta nem era tão nova. Sabe-se que, logo após o 1º de dezembro, o Conde-Duque teria oferecido às Províncias Unidas o reconhecimento do Brasil holandês, do Ceará ao rio São Francisco, como estratégia para isolar D. João IV, privando-o desta última cartada num possível acordo com os holandeses.51 Para Vieira, existiriam poucos inconvenientes na entrega do Brasil aos holandeses. Os assuntos da fé não eram entraves, pois em Pernambuco, segundo o jesuíta, “não há conversão de gentios”. Os portugueses não entregariam ricas terras aos batavos, pois aquilo que os holandeses tomaram florescente, com engenhos e escravos, agora estaria quase em ruínas por dívidas e pelo declínio do comércio açucareiro. No final das contas, os batavos nem mesmo contariam com escravos de Angola, recuperada pelos portugueses em 1648.52 50

CARDIM, Pedro. Os “Rebeldes de Portugal” no Congresso de Münster (1644-1648). Penélope – Fazer e Desfazer a História, n. 19-20, p. 101-128, 1998.

51

MELLO, Evaldo Cabral de, O Negócio do Brasil, op. cit., p. 29.

52

PAPEL a Favor da Entrega de Pernambuco aos Holandeses, 1648. VIEIRA, Padre António, Obras escolhidas, op. cit., p. 29-113. v. III. Sobre a recuperação de Angola e o Rio de Janeiro na união dinástica, ver: SANTOS PÉREZ, José Manuel. Brasil durante la Unión Ibérica. Algunas notas sobre el intercambio 176

o retorno do rei

É verdade que no Papel Forte pouco se fala especificamente do Maranhão, o alcance verdadeiramente global que ganha o documento não o permite. Contudo, tal como se apresentava a proposta, estava claro que a América portuguesa seria integrada, ao final, por Maranhão, Grão-Pará, costa do cabo de Santo Agostinho, uma parte de Sergipe, mais Bahia, Rio de Janeiro, São Vicente e as demais Capitanias do Sul. Nesta suposta configuração, fazenda, população e cabedal redistribuídos a partir de Pernambuco deveriam ser reinvestidos na defesa marítima e na fortificação da costa. Neste quadro hipotético, o extremo Norte da América lusa seria beneficiado, pois, segundo Vieira: O Maranhão em que (segundo se diz) há tantos tesouros encobertos, e cujas drogas novas vão já cheirando aos estrangeiros, não têm mais que setenta soldados; os moradores em todo o distrito serão quatrocentos.53

Para o jesuíta, com esta nova configuração espacial, Portugal poderia investir melhor na capacidade de intercâmbio e circulação marítima de algumas de suas regiões, francamente São Paulo e o rio Amazonas. A teoria era: separar para unir melhor.54 Evidentemente, esta “história do futuro” nunca se concretizou, e a solução mais improvável na perspectiva de Vieira, o prolongamento da Insurreição Pernambucana, acabou dando boa conta dos holandeses cultural entre las dos orillas del Atlántico. In: MONTEJO NAVAS, Adolfo et al. Brasil e Espanha: diálogos culturais [España y Brasil: diálogos culturales]. São Paulo: Fundação Cultural Hispano-Brasileira, 2006, p. 49-80; SANTOS PÉREZ, José Manuel. La historia de la Unión Ibérica y su importancia en las relaciones España-Brasil: viejos asuntos, nuevas (y buenas) noticias. Revista de Cultura Brasileña, n. 3, p. 125-142, mar. 2005; SANTOS PÉREZ, José Manuel. São Sebastião do Rio de Janeiro durante la Unión Ibérica, 1580-1640. Los años cruciales. In: BRUNETTO, Carlos Javier Castro (Ed.). Río de Janeiro, Estética de una ciudad. Santa Cruz de Tenerife: Oristán y Gociano editores, 2008, p. 51-66. 53

PAPEL a Favor da Entrega de Pernambuco aos Holandeses, 1648. VIEIRA, Padre António, Obras escolhidas, op. cit., p. 87. v. III.

54

Ibidem, p. 105-106. 177

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

no Brasil. Entretanto, o Papel Forte ainda que claramente debilitado no seu argumento fundamental, em função dos acontecimentos em Pernambuco, deu margem à criação, em 6 de fevereiro de 1649, dia do aniversário do jesuíta, da Companhia Geral de Comércio do Brasil, que abria espaço finalmente ao capital cristão-novo. Esta foi considerada uma vitória pessoal de Vieira frente aos seus principais inimigos, incluindo a Inquisição portuguesa, esta última considerada uma instituição perigosamente próxima de interesses filipistas.55

Conclusão: Monarquia Hispânica e expansão para Oeste Não são poucos os testemunhos do período que sugerem que, no que concerne a certas práticas, não houve nenhuma grande mudança nos primeiros anos do novo governo. Ao contrário, em muitos aspectos D. João IV parece ter seguido exatamente o mesmo roteiro deixado pelo regime anterior. O novo rei não hesitou em seguir, por exemplo, a mesma política fiscal dos últimos dois Filipes, agravada pela situação de guerra.56 Ao mesmo tempo, como sugere Schwartz, o suposto entusiasmo popular com relação à Restauração nunca passou no teste dos impopulares recrutamentos militares brigantinos.57 No caso do Maranhão, é possível dizer que as políticas brigantinas mais significativas já estavam em curso no período filipino. Em concreto, quatro políticas que já ganhavam destaque pouco antes da rebelião de Portugal foram mantidas ou ocasionalmente ampliadas no reinado de D. João IV: 1. A expansão civil-militar para zonas do sertão Ocidental; 2. A doação de sesmarias a particulares como fórmula para defesa e cres55

CESAR, Thiago Groh de Mello, op. cit., p. 118-119; VALLADARES, Rafael, La rebelión de Portugal…, op. cit., p. 75.

56

CARDIM, Pedro. O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança. Hispania, v. LXIV/1, n. 216, p. 150, jan.-abr. 2004.

57

SCHWARTZ, Stuart B., Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou Portugal, op. cit., p. 201-223. 178

o retorno do rei

cimento econômico;58 3. O reforço da estratégia de reconhecimento das autoridades indígenas; 4. A construção de mecanismos de controle sobre o trabalho nativo, com inserção da autoridade missionária. Em geral, do ponto de vista administrativo o novo governo inovou pouco, ao menos nos primeiros anos. A criação do Conselho de Guerra, por exemplo, era praticamente inevitável no contexto do conflito hispano-luso. E o próprio Conselho Ultramarino era, como é bem sabido, herdeiro direto do velho Conselho da Índia (1604-1614), de vida curta durante o período filipino.59 No Maranhão, é bem verdade, surgiu uma efêmera inovação. Em 1652, as duas capitanias reais, Maranhão e Grão-Pará, foram divididas em dois governos autônomos. A mudança produziu pouco efeito prático e tinha alguns opositores de peso. Pouco tempo depois, em 1654, as duas capitanias voltariam à velha fórmula de um só Estado cuja cabeça continuava a ser a cidade-ilha de São Luís.60 Esta tentativa de divisão jurisdicional nem mesmo pode ser considerada uma fórmula legitimamente brigantina. Durante quase todo o reinado de Filipe III, as duas capitanias também estavam divididas, modelo de administração que durou na prática até a chegada do novo governador, Francisco Coelho de Carvalho, em 1626. Além disso, não se pode esquecer que, virtualmente, as duas capitanias já formavam dois governos separados durante o período do Maranhão holandês.

58

Sobre as estratégias econômicas posteriores a 1640, ver: CHAMBOULEYRON, Rafael. Povoamento, ocupação e agricultura na Amazônia colonial (1640-1706). Belém: Editora Açaí, 2010.

59

BARROS, Edval de Souza. Negócios de tanta importância: O Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa; Cham, 2008, p. 28. Ver também: MARQUES, Guida. L’Invention du Brésil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union ibérique (1580-1640). Paris, 2009. 523 f. Tese (Doutorado em História e Civilizações) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, p. 257-267.

60

SAMPAIO, Patrícia Melo. Administração Colonial e legislação indigenista na Amazônia Portuguesa. In: PRIORE, Mary Del; GOMES, Flávio, op. cit., p. 123-139. 179

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Qual foi, então, o impacto da Restauração? Esta não é uma pergunta fácil de responder à luz da documentação disponível. No caso do Maranhão, será necessário analisar de que forma os seus moradores comparavam a nova situação política com a memória recente dos dois últimos soberanos. Afinal de contas, Filipe III era o rei da conquista aos franceses, em 1615, responsável pela primeira distribuição de recompensas aos moradores; Filipe IV, por outro lado, foi o soberano da expansão para Oeste, em seu nome foram organizadas as primeiras grandes expedições ao rio Amazonas, inclusive a famosa jornada de Pedro Teixeira. Não se pode esquecer que foi também na época do Conde-Duque que ocorreu o combate efetivo aos holandeses, fortificados nas regiões do rio Xingu e no Cabo do Norte no início da década de 1620. Este era o legado de êxitos filipinos que os bragancistas do reino teriam de administrar no Maranhão. A Restauração Portuguesa no Maranhão, como em outras partes, não é uma história local, senão oceânica. Não se compreende estes acontecimentos sem uma reflexão global e integrada. Portanto, a correspondência com os processos ocorridos em Lisboa, Madri, França, Holanda, mas também Quito, Lima, Cabo Verde e Guiné, é fundamental para o entendimento do impacto da mudança de regime sobre o Atlântico equatorial. Nesse mesmo sentido, Rafael Valladares já havia reivindicado a necessidade de entender a ruptura ibérica na sua incontornável dimensão atlântica, e menos na tradicional representação como crise europeia.61 Por fim, sobre a expansão do território, a Restauração Portuguesa alterou a ênfase e o tom, mas não mudou significativamente a essência. No final das contas, a política de ampliação do território amazônico não foi obra de D. João IV, mas sim o resultado de uma iniciativa já em curso, que os moradores do Grão-Pará e do Maranhão relacionavam francamente, e sem constrangimentos, ao regime anterior. Este sentimento de nostalgia, igualmente encontrado na documentação sobre a guerra contra os Países Baixos, reivindica um outro olhar sobre a noção clássica que descreveu a rebelião de Portugal como um evento previsível e amplamente aguardado. 61

VALLADARES, Rafael. Historia Atlántica y ruptura ibérica, 1620-1680. Un ensayo bibliográfico. In: PARKER, Geoffrey (Ed.). La crisis de la Monarquía de Felipe IV. Barcelona; Valladolid: Editorial Crítica; Universidad de Valladolid, 2006, p. 327-350. 180

O Brasil no contexto da Guerra de Restauração Portuguesa (1640-1668)

Ana Paula Torres Megiani1

O objetivo deste artigo é abordar aspectos do contexto da recepção da Aclamação de D. João de Bragança na América portuguesa, ocorrida a partir de fevereiro de 1641. Não se trata de um tema inédito, já anteriormente abordado por outros historiadores.2 Trata-se, contudo, de uma reflexão que pretende somar-se a estas já conhecidas. A ruptura dos laços políticos acordados em Tomar, 1581, que mantiveram atados os territórios portugueses à Monarquia Hispânica durante os sessenta anos da União das Coroas, talvez ainda seja um dos processos de mais difícil análise pela historiografia dos seiscentos. Noções de forte apelo no senso comum, como vínculo de identidade, apego nacionalista ou sentimento de usurpação, já não podem mais ser levadas em conta quando se procura entender os motivos que conduziram, em pouco tempo, a que todas as conquistas portuguesas no ultramar se declarassem fiéis à Aclamação de 1

Professora Dra. de História Ibérica no Departamento de História da Universidade de São Paulo.

2

Ver Introdução deste livro e especialmente: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: A monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec, 2002.

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

D. João IV, exceto Ceuta, ainda que nelas estivesse em ação uma intensa conflitualidade. A guerra que se desenrola em território peninsular até 1668, e concluída com a Paz dos Pirineus3, não se experimenta da mesma maneira nos domínios ultramarinos, pois nesses espaços são vivenciados outros conflitos bélicos, inclusive com motivos bastante distintos daqueles travados entre as coroas de Portugal e Espanha. O avanço neerlandês sobre as rotas de navegação do Atlântico e do Índico era considerado uma ameaça muito mais perigosa por aqueles que lutavam nos espaços coloniais que o desejo, ou risco, de permanência da coroa na cabeça de Felipe IV de Habsburgo.4 O entendimento dessa conflitualidade presente nos territórios portugueses da América exige que retomemos alguns elementos que remontam ao processo de ocupação e exploração do território. Do ponto de vista administrativo, a América portuguesa se estrutura em meados do século XVI. Criado em 1549 por D. João III, o Governo Geral do Estado do Brasil foi instituído, como se sabe, pelo regimento de Tomé de Souza – primeiro Governador Geral –, cargo exercido por um governador nomeado diretamente pelo monarca. Em 1621, durante o reinado de Felipe III de Espanha, segundo de Portugal, foi criado o Estado do Grão-Pará e Maranhão, com o objetivo de cuidar particularmente da região norte do território que possuía características muito distintas das outras partes e exigia outras estratégias de gestão e comando. Entre 1580 e 1640, foram mantidos no cargo de Governador Geral os portugueses natos, tal como estabelecia o Acordo de Tomar de 1581. Os nomeados, contudo, deveriam manter vínculos de fidelidade com Madrid, fato que contribuiu para o aparecimento de fragilidades no tocante à autoridade do governador. Por 3

Ver os livros de COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração. 1641-1668. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. e VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal: Guerra e Restauração 1640-1680. Trad. Pedro Cardim. Lisboa: A esfera dos livros, 2006.

4

Para as guerras em território africano ver ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 182

o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

isso, a administração do Brasil durante a União das Coroas continua a desafiar os historiadores, já que revela o crescimento das redes e conexões de poder no interior do próprio território americano, eliminando completamente os limites antes estabelecidos, mas jamais respeitados, do célebre Tratado de Tordesilhas de 1496.5 Durante as décadas da União das Coroas Ibéricas, alargaram-se consideravelmente, em direção ao oeste, os territórios das seguintes capitanias, superando as primeiras dimensões da divisão interna dos estados portugueses na América. No Estado do Grão-Pará e Maranhão – capital São Luís de Maranhão, três capitanias: Pará, Maranhão e Ceará. No Estado do Brasil – capital Salvador da Bahia, capitanias: Rio Grande do Norte, Paraíba, Itamaracá, Pernambuco, Sergipe del Rei, Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Rio de Janeiro, São Vicente (incluindo Santo Amaro e Itanhaém).6 Todas elas tiveram seus espaços territoriais ampliados no período da Monarquia Hispânica graças às conexões internas fortalecidas entre colonos lusos e espanhóis, bem como aumento das redes de contrabando de mercadorias, caça e exploração de nativos habitantes do sertão profundo. A existência de conflitos e tensões no território americano marcou todo o período da ocupação e colonização (séculos XVI-XIX), nunca tendo deixado de ser dura a realidade da vida cotidiana da gente nativa, dos escravos ameríndios e africanos, ou dos que ali se estabeleceram como colonos. Durante os anos do período filipino, a conflitualidade interna adquire outros matizes, não porque os espanhóis fossem os novos senhores, mas sobretudo porque são ampliadas as relações de produção e exploração agrícola, com grande ênfase na cultura da cana-de-açúcar, que exige o aumento do número de trabalhadores.7 Por isso houve a

5

Sobre a gestão e as elites deste período ver RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530-c. 1630. São Paulo: Alameda, 2008.

6

BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Edusp, 1973, p. 307.

7

Para o tema do desenvolvimento da produção do açúcar no período cf. SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade 183

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

intensificação, por um lado, do tráfico de africanos e, por outro, da caça aos nativos, aos “negros da terra”.8 Os habitantes das capitanias do sul (Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente) intensificaram, a esta altura, suas relações com os peruleiros, portugueses que se especializaram em fazer negócios entre as duas partes da América ibérica. Segundo Rafael Ruiz González, as leis mais importantes do período foram as de 1609 e de 1611, definidas a partir do projeto da Coroa de transformar a vila de São Paulo em outro Peru: “Era un proyecto acariciado desde hacía mucho tiempo atrás, pues las noticias sobre la plata y el oro en la región de la cuenca del Plata y del Paraná llegaron a Europa poco antes de 1530”.9 Os portos de Santa Catarina, Santos e Buenos Aires foram, dessa maneira, conectados por redes de “contrabandos” de prata e de produtos comprados no interior da América do Sul. Um grande número de colonos castelhanos estabeleceu seus negócios com os habitantes das capitanias do sul, sobretudo com os mal vistos paulistas. O trajeto realizado desde o Alto Peru até Santa Catarina seria muito melhor que o escarpado caminho real por Salta, Tucumán, Juju até Buenos Aires. Além disso, o porto de Santa Catarina estava em melhores condições que a difícil saída por Mar del Plata, permitindo a entrada de um número maior de barcos [, sendo muito mais econômico também do que a] “Carrera de Índias”, porque “la navegación desta mar desde el dicho puerto de Sancta Catalina a España asimismo breve y de menos tormentas”. O caminho tinha duas ramificações: uma até Santa Catarina e outra até São Paulo, um caminho que já existia mas estava oficialmente colonial (1550-1835). Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 8

Para o tema referimos, basicamente, MONTEIRO, John M. Negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

9

RUIZ GONZÁLEZ, Rafael. La política legislativa con relación a los indígenas en la región sur del Brasil durante la unión de las coronas (1580-1640). Revista de Indias, v. 62, n. 224, p. 17-40, 2002. 184

o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

fechado. [...] Na prática, durante os primeiros vinte anos do século XVII [...] o comércio entre a região do Prata, passando pelo Brasil até chegar a Angola esteve aberto durante todo o tempo.10

Tais relações mercantis por meio das conexões estabelecidas pela população da repartição sul, e todo poder construído no interior do continente, podem ser indicadas como elementos de grande relevância que marcaram os reinados de Felipe III e Felipe IV de Espanha (Felipe II e III de Portugal), enquanto nas capitanias do norte as populações das vilas e governos se ocupavam de proteger o território, principalmente dos ataques holandeses. Entre os anos de 1624-1625, a Bahia e todas as suas adjacências conviveram com a guerra externa, conflito que exigiu o envio de grandes contingentes de soldados para combater a ocupação.11 Depois da invasão holandesa em Salvador da Bahia, tornou-se fator fundamental garantir a defensa da costa de modo a evitar novos ataques. Entretanto, a preservação só seria bem sucedida, como se sabe, até o ano de 1631, quando o novo ataque alcança Pernambuco. Em dezembro de 1640, quando ocorre a Aclamação de D. João IV, o território do Brasil era um conjunto de realidades muito díspares, o que parecia impedir que houvesse uma imediata adesão à causa dos Bragança. Na prática, não foi o que aconteceu. Já em janeiro de 1641 partiu de Lisboa para Salvador, em missão sigilosa, a notícia da Aclamação do Duque de Bragança como rei de Portugal e suas conquistas. Fora recebida de forma oficial em 15 de fevereiro, cabendo ao governador geral e vice-rei, D. Jorge de Mascarenhas – Marquês de Montalvão –, a tarefa de enviar mensageiros a todas as capitanias com as novas de Lisboa. Salvador Correia de Sá e Benevides, governador das Capitanias do Sul, deveria ser o segundo homem a ser informado dos fatos, com o intuito de que apoiaria imediatamente a 10

Ibidem, tradução nossa.

11

Acerca da circulação de notícias desta guerra ver nosso artigo: MEGIANI, Ana Paula Torres. Das palavras e das coisas curiosas: correspondência e escrita na coleção de notícias de Manuel Severim de Faria. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 24-48, 2007. 185

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

posição do governador geral e trazendo consigo toda a adesão da parte sul do Brasil.12 O jesuíta Manuel Fernandes foi o portador da carta, tendo chegado ao Rio de Janeiro em 10 de março.13 A notícia da Aclamação do novo rei parece ter sido recebida com obediência por Montalvão e Correia de Sá, não tendo sido identificada qualquer resistência nas fontes disponíveis. Entretanto, no Rio de Janeiro foi necessária a confirmação por parte dos membros da Câmara municipal antes do governador anunciar seu apoio definitivo. Uma relação publicada em Lisboa sobre o evento descreve o acontecimento na cidade do Rio de Janeiro, dando ênfase ao modo como se praticou a eleição e uma procissão em direção à igreja da Sé ocorrida em seguida: E seguindose os votos de todos igualmente foraõ do mesmo sem que em nenhum ouuesse neutrae,lidadde [sic] que o Gouernador mandou fizesse Auto, que logo fez o Escriuão da Camara, & assinado elle primeiro fizerão o mesmo os mais, & acabado, aclamaraõ todos em gêral á imitaçaõ do Gouernador, que deu principio, viua El Rey Dom Ioaõ o IV. de Portugal. E mãdando logo trazer o Pendaõ Real da Camara sairão do Collegio em Procissão, & vnidos foraõ à Sê Matriz, donde feito hum Altar Cruzeiro della sobre hum Missal, fez o Gouernador, & a seu exemplo todos os mais solene juramento [sic], preito & menagem de ter, manter e reconhecer, & obedecer ao Senhor Rey Don Ioaõ IV. Duque que hauia sido de Braganã, por verdadeiro Rey, & Senhor de Portugal, repetindo muitas vezes o viua que o Pouo pluralizaua com notauel aplauzo [...]14

12

Sobre Salvador Correia de Sá e Benevides ver ainda: NORTON, Luis. A dinastia dos Sás no Brasil: a fundação do Rio de Janeiro e a restauração de Angola. Ed. comemorativa do 4o centenário da fundação da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1965.

13

BOXER, C. R., op. cit., p. 158.

14

Ver RELAÇAM da aclamação que se fez na Capitania do Rio de Janeiro do Estádo do Brasil, & nas mais do Sul, ao Senhor Rey Dom João o IV. por verdadeiro Rey, & Senhor do seu Reyno de Portugal, com a felicissima 186

o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

Foi, contudo, na vila de São Paulo que se localizou a única reação contrária à Aclamação de D. João de Bragança como rei de Portugal e suas conquistas em território americano.15 Segundo a versão que ficaria consagrada pela historiografia dos séculos XVIII, XIX, e XX, essa reação havia sido comandada por um poderoso potentado local, Amador Bueno da Ribeira, que teria sido aclamado pelos moradores da vila como uma espécie de rei local, uma passagem que ficou conhecida como Aclamação de Amador Bueno. Para Rodrigo Monteiro e Luiz de Alencastro, a Aclamação de Amador Bueno deve ser entendida mais como expressão de conflitos antigos entre os habitantes de São Paulo e os jesuítas, sempre contrários ao apresamento e à escravização dos indígenas praticados pelos moradores da vila, do que uma questão de fidelidade dos habitantes de São Paulo ao rei de Espanha Felipe IV.16 Devido a esses conflitos, os padres da Companhia de Jesus chegaram a ser expulsos da vila em junho de 1640, depois da promulgação do Breve do Papa Urbano VIII contra a escravização dos ameríndios.17 Em meados de 1641, os residentes espanhóis de São Paulo, ao receberem a notícia da Restauração Portuguesa que chegava da Bahia e do Rio de Janeiro, resistem. Amador Bueno, segundo relatos pouco precisos das fontes da Câmara, foi chamado pelos espanhóis próximos para ser o rei de São Paulo, e prestar lealdade ao monarca Felipe IV de Espanha. Todavia, uma disputa entre portugueses e espanhóis acaba frustrando a rebelião e Amador Bueno se declara leal a D. João IV com medo de ser castigado por crime de traição e lesa majestade.18

restituiçaõ, q[ue] delle se fez a sua Magestade que Deos guarde, &c. – Em Lisboa : por Iorge Rodrigues : a custa de Domingos Alures livreiro, 1641. Exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: . Acesso em: fev. 2014. 15

BOXER, C. R., op. cit., p. 158 et seq.

16

MONTEIRO, R. B., op. cit.; ALENCASTRO, L. F., op.cit.

17

BOXER, C. R., op. cit., p. 143 et seq.

18

Para o tema de São Paulo na União Ibérica ver a tese de VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila na América Portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). São Paulo, 187

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Não existem outras comprovações de que de fato as coisas tenham ocorrido assim. O episódio foi tema de muitas reformulações posteriores, sobretudo no final do século XVII e início do XVIII, quando os paulistas se tornam incômodos para a Coroa portuguesa devido à descoberta de ouro em Minas Gerais por eles mesmos.19 Tratados às vezes como traidores, outras como vassalos fiéis ao rei de Portugal, e frequentemente considerados violentos caçadores de índios, inimigos de padres, de sangue mestiço, utilizados em toda a segunda metade do século XVII como os soldados mais agressivos da coroa portuguesa contra todos os tipos de ameaças ao seu território americano, na Aclamação de Amador Bueno, os colonos paulistas recebem um tratamento de apologia heroica, exaltadora de sua bravura. O relato do frei Gaspar da Madre de Deus, Memória para a História da Capitania de São Vicente, do século XVIII, por exemplo, afirma que Amador Bueno foi aclamado pelos espanhóis sem seu conhecimento, e que não queria ser rei, mas que as pessoas o gritavam com grande entusiasmo.20 Relacionado diretamente com o problema da vinculação dos habitantes da vila de São Paulo estava Salvador Correia de Sá, o governador do Rio de Janeiro. Suas relações familiares e de negócios no território espanhol da América eram muito bem conhecidas, inclusive na corte, o que lhe causaria graves dificuldades no início do longo processo de reconhecimento da independência portuguesa.21 Filho e neto de governadores do Rio de Janeiro, pertencia à família Sá, grandes senhores da corte de Avis e vinculados à colonização do Brasil desde meados do século XVI, tendo como antepassados Mem de Sá e Estácio de Sá. Seu 2010. 398 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 19

ROMEIRO, Adriana. Leituras de um vassalo rebelde: o Portugal Restaurado e o imaginário político do levante emboaba. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula Torres (Org.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. (Séc. XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 453-467.

20

Apud MONTEIRO, R. B., op. cit., p. 36.

21

NORTON, L., op. cit. 188

o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

pai, Martim de Sá, capitão geral de São Vicente e governador do Rio de Janeiro, era casado com uma senhora anglo-espanhola, sua mãe – Dona María de Mendoza y Benavides, filha do governador de Cádiz.22 Salvador de Sá esteve algumas vezes na Corte, em companhia de seu avô e de seu pai. Participou da armada que defendeu a Bahia contra os holandeses em 1625, experiência que lhe daria grandes oportunidades de destaque diante do reconhecimento por parte de Felipe IV. No ano de 1631 ou 1632, durante uma de suas expedições a Asunción, incumbido de conduzir uma prima para casar-se com o governador do Paraguai, Céspedes de Xería23, Salvador de Sá acaba também por se casar com uma criolla herdeira de grande riqueza e prestígio na sociedade hispânica colonial: Dona Catalina de Ugarte y Velasco. Segundo Charles Boxer, Dona Catalina era descendente da nata dos conquistadores espanhóis na América e viúva mais rica da província de Tucumán, o que aumentaria muito a fortuna de Salvador de Sá, também ele proprietário de inúmeras terras no Rio de Janeiro.24 Era fiel à política de defesa da coroa espanhola, tendo sido chamado a socorrer a armada portuguesa comandada por D. Fernando de Mascarenhas, o Conde de la Torre, aportada em Pernambuco em 1640, que tentava atacar a cidade Maurícia, e recuperá-la para o domínio luso-espanhol. O número de combatentes portugueses foi aumentado e abastecido graças à colaboração de Salvador de Sá, que mandou homens e alimentos desde as capitanias do sul. Mesmo sendo um grande potentado do sul, o governador do Rio de Janeiro era favorável à liberdade dos índios e à presença dos jesuítas, o que lhe garantia grande popularidade na região, convulsionada pelos conflitos entre padres e paulistas por esse motivo. Em 1641, desloca-se

22

BOXER, C. R., op. cit., p. 22.

23

CAVENAGHI, Airton José. Nossa herança imperceptível: uma análise historiográfica da obra Collectanea de mappas de cartographia paulista antiga, organizada por Afonso de E. Taunay, em 1922. In: SIMPÓSIO IBEROAMERICANO DE HISTÓRIA DA CARTOGRAFIA, 3., abr. 2010, São Paulo.

24

BOXER, C. R., op. cit., p. 109 et seq. 189

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

pessoalmente a São Paulo para resolver os conflitos em torno da suposta Aclamação de Amador Bueno. Chegando a Santos encontra muita resistência, com os paulistas temendo que se formasse uma revolta indígena, acusam-no de ser colaborador dos espanhóis, devido a seu matrimônio anteriormente referido. Em 1642, consegue o apoio da Câmara de São Vicente contra São Paulo. Apesar disso, D. João IV limita os poderes de Salvador de Sá temendo por sua ambiguidade, Salvador pede ao novo Vice-rei para permanecer no cargo de governador, o que ocorre em 1643. Foi recebido pelo rei D. João IV em Évora em outubro de 1643, passando a orbitar a corte e o Conselho Ultramarino de Portugal com a esperança de alcançar nova nomeação. Depois de várias tentativas, em 1647, pede ao monarca o direito de fundar uma nova capitania entre São Vicente e o Rio da Prata, ampliando dessa maneira o Brasil. A proposta não foi aceita pela coroa, mas o monarca termina nomeando Salvador de Sá novamente como Governador das Capitanias do Sul, que chega de volta ao Rio de Janeiro em janeiro de 1648.25 O destino de Salvador de Sá o levou a ocupar outros cargos e papéis determinantes no processo de autonomização de Portugal em relação à Espanha e, principalmente, na luta contra invasores de terras lusas na África, como se sabe. Neste contexto, o que nos interessa demonstrar é a situação de ambiguidade que vivera no momento da Restauração, e que certamente não experimentou sozinho. Outros casos de vassalos fiéis aos Filipes, e que passaram a servir D. João IV à força, podem ser encontrados no período. Um desses personagens, por exemplo, foi D. Jorge de Mascarenhas (1597-1652), Conde de Castelo Novo e Marquês de Montalvão, que fora recém nomeado, em 1640 por Felipe IV, como primeiro Vice-rei do Brasil, cargo que não existia antes dele na administração do território, mas ainda ocupado em caráter simbolicamente honorífico, ou seja, sem poderes especificamente designados. No fundo, Montalvão continuava atuando como Governador Geral quando ocorre a Restauração. Recibido em Salvador da Bahia pelo Padre Antônio Vieira, que lhe dedica um sermão de boas-vindas, Montalvão encontra a região de Pernambuco tomada 25

BOXER, C. R., op. cit., p. 234 e 266. 190

o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

pelos holandeses, ali estabelecidos desde 1631, e as forças luso-espanholas residentes bastante desestruturadas. Sobre esse estado de ânimos predica Vieira: “Como levantaria arcos triunfais a cabeça de uma província vencida, assolada, queimada e de tantas maneiras consumida? Prudente se mostrou em suas alegrias esta cidade por não desmentir seu estado”. E ainda completa Vieira: “Ocorreu a Vssa. Exc. com o Brasil o que a Cristo com Lázaro; chamaram-no para curar a um enfermo, e quando chegou foi necessário ressuscitar a um morto”.26 No entanto, sua permanência no cargo foi breve, interrompida pela notícia da Restauração. Pertencente a uma família que ascendera na corte filipina, D. Jorge de Mascarenhas era casado com D. Francisca Villena, pai de oito filhos, entre eles D. Jerônimo Mascarenhas27, bispo e confessor da rainha esposa de Felipe IV. Tal proximidade e distinção concedida a seus familiares provoca, inicialmente, desconfiança por parte da corte brigantina, que convoca D. Jorge para regressar a Lisboa no intuito de substituí-lo por um novo governador. Surpreendentemente, mesmo tendo aderido muito rapidamente à notícia da ruptura com Madrid, Montalvão foi substituído. Seu outro filho, D. Fernando de Mascarenhas, portador da notícia da Aclamação de D. João IV nas vilas e cidades do Brasil, também foi preso ao desembarcar em Lisboa. Após regressar, e tendo passado por diversas situações de desconfiança por parte da corte brigantina, o Marquês de Montalvão morre prisioneiro no Castelo de São Jorge em Lisboa em 1652.28

26

SERMÃO da Visitação, predicado em honra ao Marquês de Montalvão, apud AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. São Paulo: Alameda, 2008, p. 65. v. 1.

27

Sobre Jerônimo Mascarenhas ver: MEGIANI, Ana Paula Torres. Memória e conhecimento do mundo: coleções de objetos, impressos e manuscritos nas livrarias de Portugal e Espanha, séculos XV-XVII. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 155-171, 2009. Disponível em: . Acesso em: fev. 2014.

28

Sobre seu filho Jerônimo Mascarenhas, Fernando Bouza Álvarez comenta: “Este filho de Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão e antigo Vice-rei do Brasil, constitui um bom exemplo do que a obediência a Felipe IV poderia 191

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Por outro lado, a conflitualidade externa afeta igualmente o ambiente da Restauração Portuguesa na América a partir de 1641, porque a presença de franceses, ingleses e holandeses aumenta a cada década de forma ostensiva, exigindo da Coroa altos investimentos em um sistema defensivo, tanto terrestre quanto marítimo, que ocorre em toda a costa desde o Rio de Janeiro até o Maranhão. Os mesmos paulistas apresadores de índios são usados pelas forças militares luso-espanholas para que ajudassem a aumentar os contingentes de soldados, no esforço de impedir a penetração de invasores, o que nem sempre foi um plano bem sucedido.29 Toda a guerra e as negociações diplomáticas que envolveram a devolução de Pernambuco a Portugal foram exaustivamente estudadas por Evaldo Cabral de Mello, embora estejam surgindo novas pesquisas de jovens historiadores sobre o assunto. Segundo este autor: se na América a repercussão do movimento restaurador não foi similar [a Portugal e Espanha], foi porque os interesses envolvidos não exerciam influência no conselho municipal. Dominado por grupos de cristãos-novos, ex-judeus portugueses que tinham negócios muito lucrativos com a Companhia das Índias Ocidentais, a WIC, do ponto de vista da Coroa [portuguesa], o levante luso-brasileiro poderia ser descrito como um sucesso e um fracasso em termos que diplomaticamente era um verdadeiro desastre.30

Dessa maneira, são enviados embaixadores portugueses para realizar as negociações de compra o venda do “nordeste” do Brasil. Em 1648, em uma das propostas apresentadas pelos emissários da Coroa

proporcionar a um hidalgo português que por culpa dessa obediência ficara sem pátria e sem propriedades, mas que, apesar disso, poderia continuar a tirar algum proveito da graça régia [...]” BOUZA ÁLVAREZ, Fernando Jesús. Portugal no tempo dos Filipes: política, cultura, representações (1580-1668). Trad. Pedro Cardim. Lisboa: Cosmos, 2000, p. 282. 29

Cf. GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: Política e economia na Capitania da Parayba, 1585-1630. Bauru: Edusc, 2007.

30

MELLO, Evaldo C. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 2. ed. Rio de Janeiro: TopBooks, 1998, p. 61. (Tradução nossa). 192

o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

portuguesa à Holanda, Francisco de Sousa Coutinho e o Padre Antônio Vieira, a Coroa entregaria à WIC, durante dez anos, o equivalente a 10 mil caixas de açúcar branco, ou 600 mil cruzados em seis anos, sendo a metade em Amsterdã em moeda holandesa e a outra metade em Recife.31 Para o Padre Antônio Vieira, era necessário estabelecer um acordo de Paz. Mas, na corte de D. João IV, havia grandes interessados na guerra, sobretudo um grupo de oposição às ideias defendidas por Vieira. Contudo, declarar guerra à República holandesa equivalia a fazer o jogo da Espanha. A Coroa portuguesa não tinha condições de custear as guarnições de fronteira. Portugal não podia defender o Alentejo e queria defender o Brasil.32 A questão só se resolve com a Guerra em Pernambuco até 1654 e com os tratados de Paz de 1669. Na segunda metade do século XVII, o fim da guerra contra os holandeses em Pernambuco fecha um grande período de conflitos bélicos externos, e inaugura, efetivamente, a guerra contra os gentios no interior das capitanias do norte – a Guerra dos Bárbaros, estudada por Pedro Puntoni.33 Nela, seriam mescladas as práticas antes utilizadas na guerra contra os invasores estrangeiros, agora dedicadas a eliminar os grupos silvícolas do sertão; os principais combatentes são, novamente, os paulistas. Por outro lado, o imaginário da Restauração e produção escrita que dela resultou seriam ainda elementos de fundamentação política em outro episódio conflitivo de destaque nos inícios do século XVIII, a Guerra dos Emboabas (1708-1709), da qual participaram portugueses do reino e colonos, como se sabe. A exemplo do que ocorreu em São Paulo com a suposta aclamação de Amador Bueno, em Minas seria alçado ao cargo de governador Manoel Nunes Viana, comandante do grupo de rebelados. Segundo Adriana Romeiro34, Nunes Viana, apesar de ser um 31

Ibidem, p. 111-112.

32

Ibidem, p. 138.

33

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; Edusp, 2002.

34

ROMEIRO, Adriana, op. cit., p. 457. 193

o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

homem de origem pobre, teria prosperado na atividade pecuária e os negócios a ela vinculados, além de ser o principal potentado da região, de modo a comandar e desafiar funcionários e determinações régias que buscavam reprimir e controlar os colonos envolvidos na extração do ouro. Para Romeiro, Nunes Viana possuía, entre outras, como principal referência a leitura da obra História de Portugal Restaurado do Terceiro Conde da Ericeira (D. Luis de Menezes), publicada em 1697.35 Neste novo contexto, afirma Romeiro, “ao partido emboaba não foi difícil formular as linhas mestras da fundamentação política do levante nos termos de uma restauração cujo modelo principal era, sem dúvida, a Restauração de 1640”.36 Uma questão que merece ser mais aprofundada... certamente em outra oportunidade. Apesar da distância temporal dos acontecimentos, o fato é que, no início do século XVIII, a Restauração podia ser considerada um sucesso político-militar, passado o duro período da guerra peninsular, da perseguição aos funcionários e cortesãos adeptos da Coroa espanhola, bem como das dificuldades de reconhecimento da independência de Portugal e expulsão de invasores. Utilizando a oposição liberdade versus tirania, esses colonos foram buscar, na ruptura com Espanha, a fundamentação política de suas rebeliões, e seriam, paradoxalmente, reprimidos com grande violência.37

35

MENEZES, Dom Luis de, Conde da Ericeyra. Historia de Portugal Restaurado. Lisboa: Officina de João Galrão, 1679-1698. 2 t.

36

ROMEIRO, Adriana, op. cit., p. 459.

37

Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. A. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 197-254. 194

Série História Diversa

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