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Portuguese Pages [513] Year 2010
JEAN Al.LOUCH
ÜAMORLACAN
TRADUÇÃO Procopio Abreu
EDITOR
José Nazar
Copyright © Epd, 2009 TÍTULO ÜRJGINAL L'amour Laca11
Direitos de edição em 1/ngua portuguesa adquiridos pela EDITORA CAMPO MAT!MICO Proibida a reprodução total ou parcial EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
FA - Editomçiio Eletrô11ica
TRADUÇÃO
Procopio Abreu
REVISÃO
Sa11dra Regi11a Felgueiras
EDITOR RESPONSÁVEL JoslNazar
CONSELHO EDITORIAL
Bru110 Palauo Nazar JoséNazar joslMdrio Simil Corekiro Maria Emília Lobato L11ci11do Pedro Palauo Nazar Teresa Palauo Nazar Ruth Ferreira Bastos
Rio de Janeiro, 2010 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A438s Allouch, Jean O amor Lacan / Jean Allouch; tradução Procópio Abreu. - Rio de Janeiro; Companhia de Freud, 201O: Tradução de: L"amour Lacan au remps du borromén Inclui bibliografia ISBN 978-85-7724-082-I 1. amor. 2. relação humana. 3. psicanálise - congresso . I rímlo COO: 150.195 CDU: 159.964.2
07-3219.
editora ENDEREÇO PARA CoRRESPONDtNCIA Rua Barão de Sert6rio, 48 - casa Tel.: (21) 2273-9357 • (21) 2293-5863 Rio Comprido - Rio de Janeiro, RJ e-mail: [email protected]
Por favor, não me responda, a primavera não nos agradece porque a amamos. MARCEL PROUST
Então, fiquemos felizes por minha voz ser baixa... JACQUES Ll.CAN
SUMÁRIO PRÓLOGO ....•...•......•••••••..........•.............. 11 "Lacan mesmo" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 O amor sem aprisionamento ............................. 15 Fazer amor? .......................................... 19 O amor com e o amor sem teoria .......................... 21 Não há interpretação ................................... 24 Fora da fantasia ....................................... 26 Tampouco há materna .................................. 28 Promessas não cumpridas ................................ 31 Conquistas ........................................... 36 · Paixões do Ser ......................................... 42 Predileção ............................................ 49 CAPÍTULO 1 - RUMO A UM AMOR SIMBÓLICO••••...............•.• 55 O amor de transferência reconhecido como amor verdadeiro ..... 58 Escoramentos e perigos de um amor quase simbólico ........... 70 Da escravidão amorosa .................................. 78 CAPÍTULO II - RUMO A UM AMOR EXTÁTICO ..•................... 83 Da miragem amorosa ................................... 83 Da fidelidade no amor .................................. 86 Do amor morto ....................................... 89 CAPÍTULO III - Ü ARCABOUÇO DO AMOR ........................ 99 Recusa crítica do par narcisismo-anaclitismo ................. 99 A instituição da falta na relação com o objeto ................ 102 Do amor como dom ................................... 106 Esquema do véu ...................................... 111 CAPÍTULO IV - O AMOR í CÔMICO .•......................... 115 Do cômico como registro do amor ........................ 116 Do amor como horizonte: necessidade, demanda, desejo ....... 125 Da homenagem ao ser e de dois amores .................... 130
CAPÍTULO
V - Ü AMOR NÃO É UMA SUBLIMAÇÃO
CAPÍTULO
VI - ÜNDE UM
..........•.••...
135
Uma regressão? ....................................... 138 Uma escolha bem singular .............................. 141 Uma outra versão do dom? .............................. 143 FALECIMENTO REVELA COMO O AMOR
PODE FRACASSAR .................................•.......
147
VII - Ü AMOR ENFIM DE TRANSFE!lÍ.NCIA ........•••.•.. 159 Uma via? ........................................... 159 Do qualquer um ...................................... 163
CAPÍTULO
VIII - O CASO ALcrnfADES . . ...•................... 177 Rumo a uma antinomia ................................ 189
CAPÍTULO
CAPÍTULO
IX - EROS E
PSIQUE ... . .......................•..
197
X - METAFÍSICA DO AMOR .........•............... 207 Do amor libidinal ..................................... 208 Um duplo passo ao lado ................................ 214
CAPÍTULO
CAPÍTULO
XI - HEGEL, LACAN:
DUAS IRRESISTfvEIS RECEITAS PARA
OBTER O AMOR
Do constrangimento amoroso ........................... 219 Amor e saber: o segundo encontro ........................ 229 Segredinho .......................................... 230
CAPÍTULO
XII - Ü
AMOR lACAN APÓS O OBJETO
a . . . . . . . . . . . . . . . 237
XIII - Ü AMOR ENGANADOR ...•...........•....... 247 Dialética do olho e do olhar ............................. 250 Escoramentos ........................................ 256 A foraclusão amorosa .................................. 261
CAPÍTULO
XIV - RUMO A UM OUTRO AMOR .................... 271 A alternativa: um outro amor, ou então uma virada da enganação amorosa? ................................. 271 Pontuações .......................................... 277
CAPÍTULO
CAPÍTULO XV - O (a)MURO ................................ 285 CAPÍTULO XVI- Ü AMOR ESCREVE, NÁO RASURA ................. 301 Da carta de amor ..................................... 303 Homem, mulher ..................................... 309 Amor e caligrafia ..................................... 317 CAPÍTULO XVII- FAZER UM ............................... 327 Uma encenação primitiva ............................... 327 Amor e gozo ......................................... 333 Quando amar conta ................................... 336 CAPÍTULO XVIII- Ü AMOR NOS TEMPOS DA NÃO-RELAÇÁO SEXUAL ... 343 Para um amor acostumado com o para-ser .................. 346 Metamorfose do amor ................................. 359 Um novo amor? ...................................... 364 CAPÍTULO XIX- O ALMOR ................................ 373 Deus mulher ........................................... 373 O reconhecimento amoroso ............................... 382 CAPÍTULO XX- A ESTIMA AMOROSA .......................... 391 Precariedade modal do amor ............................... 391 A estima amorosa ....................................... 401 CAPÍTULO XXI- EVICÇÔES ................................ 409 CAPÍTULO XXII- Ü AMOR NOS TEMPOS DO BORROMEANO .......... 417 Do dois do amor ........................................ 417 Do amor cristão ........................................ 427 Amor, gozo, subjetivação . ................................. 444 CAPÍTULO XXIII- PROPOSIÇÁO DE 11 DE JUNHO DE 1974 ......... 453 A escolha de Aristóteles ................................ 457 Do amódio .......................................... 462 Paternidade, eternidade ................................ 472
CAPÍTULO XXIV - DANTE VERSUS LACAN ..•...........••••••.. 477 Os nomes e as coisas ................................... 477 A mourre e o amor .................................... 492 CONCLUSÃO - Ü AMOR LACAN: QUEBRA-CABEÇAS ........••••••••• 499 Escoramento do amor Lacan . .. .. . . .. . .. . .. . . . . . . . .. . . . . 501 Configuração do amor Lacan . .. . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . 51O Amor Lacan e puro amor . . .. .. . . . .. .. .. . . . . . . . . . . .. . . . . 517 BIBLIOGRAFIA ..••............•••.•........•........•... 525 AGRADECIMENTOS .......•..•.•.....•••.......••••.•••••. 529
PRÓLOGO
Se começo pelo amor, é que o amor é, pam todos - por mais que o neguem -, a grande coisa da vida' BAUDELAIRE
O
amor é coisa séria demais para ser deixada nas mãos unidas dos apai xonados. Por isso, na Antiguidade grega, existiam várias práticas e outros tantos atores a quem as pessoas recorriam para assegurar seu sucesso. Hoje, por vezes apelamos não para um intermediário influente, nem para um bruxo capaz de tornar mais segura a execução de um rito mágico pro piciatório, nem sequer para um deus, mas para um psicanalista, quando fica evidente demais que, em se tratando de amor... a coisa não funciona. Um sintoma, um ato falho, um lapso acaba de fazer soar o alarme, ou então ainda um mesmo e desastroso roteiro parece incansavelmente se repetir de fracasso amoroso em fracasso amoroso. Assim se ·inicia uma nova e singular ligação, cujo desfecho ninguém conhece. Em parte, esse desfecho depende do psicanalista. Convém que, moderno Sócrates, ele também seja sábio no amor? Seja ela qual for, a experiência amorosa é aquela de seu próprio limite. Não tanto que o amor tenha um fim, uma vez que a ligação se rompe ou que a morte lhe dá um fim. Acontece, e vamos lançar na conta da contin gência. É num outro sentido, necessário, que vamos entender esse traço da experiência amorosa: por mais atual, por mais intensa, por mais talvez até apaixonada que seja, ela permanece autolimitada. Vale dizer que esse traço atinge igualmente o amor mais eterno. O amor eterno é uma figura 1 Baudelaire, "Choix de maximes consolantes sur l'amour", in CEuvres completes, Paris, Galli mard, coll. "Bibliorheque de la Pléiade", 1975, p. 546.
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0 AMOR LACAN
do amor; houve outras, que Lacan visitou e afastou para, discretamente, trazer à luz a experiência amorosa tal como a psicanálise lhe oferecia: é da ordem ou da desordem amorosa configurar um limite e nele se manter. Seu avanço o traça, o torna efetivo. O que seria um amor que não desprezasse o que é o amor? A questão não é tão trivial quanto parece. Mas, então, o que ali determina, o que, por vezes, absorve uma vida no reduto da experiência amorosa, mesmo que essa vida seja regrada pelo sentimento oceânico? E como saber isso, se não for por essa própria experi ência? Como é sabido, o amor não se manteve fora do campo do exercício psicanalítico. Dele recebeu um novo nome: transferência. Já era notar, mesmó que numa certa escuridão mantida, que ela ali jogava uma partida inédita,.que, portanto, podia dali receber uma luz, também inédita. Tam bém era, em relação ao amor e notadamente do lado do psicanalista, criar um embaraço. Desse embaraço Lacan quis fazer virtude analítica. Não lhe restou outra solução senão seguir a experiência, tanto transferencial quanto amorosa. Com efeito, nenhuma diferença, tanto que se usará um neologismo - transmor - para melhor dizer a estrita identidade deles. O transmor não é a análise, como atesta nela ter-se introduzido sem ter sido convidado. Ines perada, ainda menos imaginada, sua irrupção na análise terá sido tornada possível pelo dispositivo analítico. O que, então, nesse dispositivo, permitiu essa intrusão? O fato é que uma vez ali instalado, ali quase à vontade, o amor se achava em curiosa postura. Ei-lo coabitando, gostando ou não, com o que, igualmente, é experiência, a experiência analítica. Nada igual jamais lhe acontecera. Como um animal darwiniano vindo do continente até as ilhas Galápagos, a experiência amorosa foi levada a se transformar, embora permanecesse ela mesma, a fim de se inserir na experiência analítica. Assim, teremos distinguido um de seus traços até ali se não absolutamente mascarado, pelo menos negligenciado: sua autolimitação. Chamaremos "amor Lacan" essa figura do amor na qual se manifestou o caráter limitado da experiência amorosa. Assim, amar vale como uma figura inédita do amor. Ela merece um nome. Se não há nenhum para além desse amor (a análise não é um), há, em compensação, um novo amor, aquele que saberia jogar plenamente o jogo de seu próprio limite. Uma palavra, bem simples, poderia abordar esse jogo: amar é deixar o outro ser único.
PRÓLOGO
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Efetivamente único e mesmo assim amado. Esse amor não unifica, não fabrica "um", a despeito de desagradar a alma de Aristófanes; ele também não permite "estar a dois". Então, o que acontece com o amado? Ele é ama do, mas nem por isso com um amor que atacaria sua não menos preciosa solidão. Amado, ele poderá sentir-se não amado. Não amado, ele poderá sentir-se amado. O que se deixa abreviar assim: ele terá obtido o amor que não se obtém.
"LACAN MESMO" É não a Lacan mas a uma palavra de Philippe Sollers que devo o surgimento dessa maneira de amar. Na primavera de 2002, a revista L'infini publicava uma entrevista com Sollers, intitulada "Lacan mesmo2", cuja leitura me impressionou de uma maneira que eu não saberia melhor dizer a não ser contando o pensamento que me atravessou desde suas primeiras linhas e ao longo de toda a sequência: já lá se vão agora quarenta anos que Lacan me ocupa por um inverossímil número de horas, trinta anos que escrevo a seu respeito, e eis que esse Philippe Sollers, levianamente, sem todo esse trabalho, publica hoje um texto sobre Lacan que posso perfeitamente assinar também. Eu estava siderado, blefado com certeza. Nossos julgamentos se cruzam. Assim, quando Sollers declara que convém tomar Lacan "em suis hesitações, seus arrependimentos, seus silêncios, seus berros... ", aquilo, precisamente, a que vamos nos dedicar nesta obra; ou quando conta que Lacan lhe escreveu: "Em suma, não estamos tão sós afinaP", um traço destinado a caracterizar o amor Lacan, ainda que, considerando seu destinatário, também seja possível ouvir "Não estamos tão 'sol', em suma não tão 'Sollers'"; ou ainda quando ele nota que "O nome de Bataille era um problema considerável na região
2 Philippe Sollers, "Lacan même", entrevista com Sophie Barrau, L'infini, nº 78, Paris, Galli mard, primavera de 2002, p. 10-23 (retomada com um posfácio de Jacques-Alain Miller em Philippe Sollers, Lt1ct111 même, Paris, Navarin, 2005). Cf., igualmente, "Nature d'Éros", L'infini, nº 80, outono de 2002. 3 P. Sollers, "Lacan même", are. citado, p. 12. Trata-se da dedicatória dos Escritos endereçada a Sollers.
0 AMOR LACAN
Lacan", acrescentando: "É muito mal visto ser Bataille para as matriarcas da região, não é, muito muito mal visto. Péssima reputação. [...] uma vida que não é desejável, liberdade demais". Se devêssemos procurar o Lacan que teria inovado em matéria de amor, é nesse próprio ponto que Sollers qualifica com um "liberdade demais", nesse ponto que notadamente emergiu com o livro de Sibylle Lacan sobre seu pai4 • Em que Lacan, no que se refere ao amor, teria manifestado sua liberdade excessiva? Essa entrevista abre uma porta à resposta. Sophie Barrau pergunta a Sollers: Afinal o que buscava Lacan... na sua opinião... o que ele buscava? (Ele reflete) O amor que ele não obteve.
Que ele não obteve... ? Ele não foi amado. .. . Que ele não obteve quando? Nunca.
O senhor querfalar da vida dele, da infância dele? Sim. De tudo. De sua constituição. Ele não foi amado. Há com o que ficar furioso. E acho que isso o atormentava muito. E acho que ele gostaria de ter tido um reconhecimento muito mais amplo, a submissão da universidade, a realização de um sonho megalomaníaco, uma vontade generalizada de poder, ser sagrado. Acho que ele teve esse sonho de todo-poder.
Para ter o amor que, na sua opinião, ele nunca teria obtido? Sempre tive a impressão de que ele nunca se curara de um dodói de amor. De um enorme dodói. A coisa não funcionava.
É possível entender essa conversa de duas maneiras. A primeira: La can buscava o amor, e não o obteve. A segunda: Lacan buscava uma certa espécie de amor, o amor que não se obtém. Não era essa própria busca que fazia de Lacan um psicanalista? A coisa vale só para ele, ou para todo psi canalista? Trata-se aí da "excessiva liberdade" que Lacan se teria outorgado 4 Sibylle Lacan, Un pere. Puzzle, Paris, Gallimard, 1994.
PRÓLOGO
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em relação ao amor? Esse amor que se obtém como se não fosse obtido não é o eco, a contrapartida dessa solidão, "não tão sós", que Lacan citava junto a Sollers? Não se trata aí, precisamente, da solidão do psicanalista? Aquela que encontramos abordada por Donald Winnicott que, num artigo intitulado ''A capacidade de ser só 5 ", evoca o que seria uma feliz solidão em presença de alguém?
O AMOR SEM APRISIONAMENTO Contam que Renoir dizia que "um quadro é a coisa que mais ouve bestei ras" . Não é igualmente a experiência do pequeno deus Eros? O que com tanta facilidade vira besteira tem um nome, "comentário", tão justamente questionado por Michel Foucault bem no início de Nascimento da clínica. Mostraremos que as palavras que Jacques Lacan pôde, não sem reticências, dedicar ao amor decorrem de uma posição mantida permanentemente: um comentário que queira ser de ordem teórica não convém ao amor. Aliás, não se sabe muito o que lhe conviria. Lacan tampouco sabe muito, já que tenta várias pistas e maneiras. Ao longo dos anos, ele às vezes lança enunciados como quem não quer nada ... Em 30 de março de 1974, declarou na Itália que "o amor só se escreve graças a uma abundância, a uma proliferação de desvios, chicanas, elucubrações, delírios, loucuras - por que· não dizer a palavra, não é? - que ocupam na vida de cada um um lugar enorme6 ". Essa declaração diz respeito a ele, tanto quanto a qualquer um. Uma vez excluída a iniciativa teórica, tudo se passa como se, tratando se do amor, seu discurso quase se apagasse, deixando o lugar ao poeta mas também, menos esperado, ao pintor. Seja, pois, o poeta. Não se dirá nada, por enquanto, nem do mergulho lacaniano no fin'amor nem da abordagem 5 ln Donald D. Winnicott, De la pédintrie à ln psychnnnlyse, traduzido do inglês por Jeannine Kalmanovitch, Paris, Payot, 1969, p. 325-333 (o artigo retoma uma conferência dada na Sociedade Britânica de Psicanálise em 1957). 6 "Aliá Scuola Freudiana", in "Pas tout Lacan". Trata-se da coletânea de quase todos os textos e intervenções de Lacan, acessível no site da Escola Lacaniana de Psicanálise: http://W\V\V. ecole-lacanienne.net/ (doravante: PTL), igualmente na obra bilíngue: Lncnn in ltnlin 19531978. Nn Itália Lncnn, Milão, La Salamandra, 1978.
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O AMOR LACAN
final de Dante. Em 1946, Lacan cita o Alceste de Moliere7 • Muitos anos antes, através de sua tese, havia mostrado aos surrealistas textos poéticos daquela que ele chamou ''Aimée" para que eles opinassem sobre seu valor literário. No mesmo período, publicou um poema de sua lavra8 • Em segui da, houve um breve poema de Antoine Tudal, citado em 195 3 e que, mais tarde, fez com que tropeçasse sério. Em 1957, eis o bretoniano "O amor é um seixo rindo ao sol", igualmente Booz adormecido de Victor Hugo. Em 1960, ele "toma emprestada a voz" de um poema de Germain Nouveau9 • Tampouco falta o famoso grito surrealista: ''As palavras fazem amor", e cita duas estrofes do poema de Aragon "Contracanto" em 1964. Quanto ao poema de Rimbaud ''A uma razão", ele não devia ter um papel pequeno na dissolução da Escola Freudiana de Paris. Esses poemas não são aqui trazidos a título de materiais e apoios para elaborar uma teoria do amor. Disso estaremos seguros se notarmos que Lacan inventa certos mitos, um dos quais ambiciona simplesmente tomar o lugar do de Aristófanes em O banquete de Platão - trabalho inútil, imaginamos. Em 1961, ele forja o da mão que avança na direção do fogo, surpresa, espantada, maravilhada por ver surgir do fogo uma outra mão. Presente em Hiatus irrationalis, o fogo reaparece aqui. Lacan não inventa a expressão do amor pela chama (esse chavão já está na Bíblia, e uma de suas mais notáveis realizações cabe a João da Cruz com Oh Llama de amor viva, esse primeiro verso que dá seu título a um dos mais famosos poemas do doutor místico 1 0 ) , mas leva essa metáfora ao estatuto de mito. Platão já 7 "Ah! nada é comparável a meu amor extremo, / E, no ardor que ele tem de se mostrar a todos, / Chega até a formar desejos contra você. / Sim, eu queria que nenhum a achasse amável, / Que você fosse reduzida a uma espécie miserável, / Que o céu, ao nascer, não lhe tivesse dado nada . . . " . 8 D o qual s e pode ler, e m L'1111ebév11e, u m a notável análise: ver An nick Allaigre-Duny, "À propos du sonnet de Lacan Hiatus irmtio nalis" , L'U11ebév11e, n º 1 7, primavera de 200 1 . 9 " I rmão, ó doce mendigo que canta em meio ao vento / Ama-te como o ar do céu ama o vento / Irmão, empurrando os bois nos montes de terra / Ama-te como no campo a gleba ama a terra / Irmão que faz o vinho do sangue das uvas douradas, / Ama-te como uma cepa ama seu cacho dourado / [ . . . ] / Mas, em Deus, Irmão, sabe amar como tu mesmo teu irmão / E, seja ele como for, que seja como tu mesmo" (Jacques Lacan, Le triomphe de la religion. Précédé de Discours aux catholiques, Paris, Le Seuil, 200 5 , p. 6 1 ; igualmente em PTL) . 10 Jean de la Croix, La vive flamme de l'a111011r, Paris, Cerf, 2002.
PRÓLOGO
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mostrava que só é possível falar do amor muthous legein, em outras palavras, contando histórias. Platão inventa dois mitos em seu Banquete, o do bicho de duas costas, posto na boca de Aristófanes e o de Poros e Pênia, contado por Diotima 1 1 • Após ler linha após linha O banquete, Lacan vai demorar-se ainda um momento num outro mito, desta vez latino, a história de Eros e Psique contada em O asno de ouro de Apuleio. Em 1964, a fim de escorar a analogia então construída entre relação pictórica e relação amorosa, ele inventa um mito, chamado "da lamela". Mais tarde ainda, eis o mito do 12 passeio, com seu periquito apaixonado por Picasso • A pintura também desempenha um grande papel, amplamente insuspeito, naquilo que seríamos quase levados a chamar a meditação lacaniana sobre o amor. Psique sorprende Amore, de Iacopo Zucchi, longa mente analisado, dará lugar a uma das mais decisivas observações sobre o amor. A utilização por Leonardo da Vinci das manchas nas paredes servirá de lição para descrever o amado como aparecimento compósito. A pintura japonesa também será objeto de uma instrutiva análise, prolongada pela da caligrafia. Poesias, mitos, pinturas escoram a colocação no mercado de fór mulas bem cunhadas e logo convertidas em slogans. A colocação delas em lista bastará para que mais nenhuma seja doravante suscetível de valer como A fórmula lacaniana do amor. "O amor é dar o que � ão se tem" aparece em 195 7 (se não for antes); encontramos essa fórmula, depois de ter sido completada por "a alguém que não quer saber disso", ainda vinte anos mais tarde, em 1975. "O amor é um sentimento cômico" constitui com o "dar o que não se tem" dois traços que Lacan apresenta, em 23 de novembro de 1960, como seus primeiros passos nesse assunto do amor (o que é inexato). Em 1972, uma espantosa encenação leva mais adiante uma nova fórmula: "O gozo do Outro [...] não é o signo do amor". Em 20 de março de 1 973, é introduzido o "amódio" (a palavra sozinha serve de fórmula). Em 1974, o amor é dito "dois semidizeres que não se reco-
1 1 Devo a Danielle Arnoux essas observações sobre o recurso ao m i to em Platão. 12 Jacques Lacan , Mais, ainda, versão semicrítica assinada VRMNAG RI S O FABYPM B , sessão de 2 1 de novembro de 1 972 . Doravante: Mais, ainda.
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0 AMOR LACAN
brem", enquanto, nesse mesmo ano, vem também a afirmação segundo a qual "os sentimentos sempre são recíprocos". Outras expressões criaram igualmente fórmula e fortuna: o amor como presente quando há mudança de discurso, o amor como sendo "nada mais que uma significação", o que deve bem ter algum laço com, mais outra fórmula, o amor como metáfora, devida ao comentário do Banquete. É possível que, estrategicamente, dife rentemente de outros enunciados, essas fórmulas tenham sido produzidas a fim de afastar uma abordagem simplesmente explicativa demais do amor. Nesse sentido, o fato de terem criado slogan assinalaria bem mais o êxito que o fracasso delas. Poesias, mitos, pinturas, fórmulas vêm marcar que, em Lacan como em Sócrates, o amor é daimôn, metaxu, um intermediário entre saber e ignorância. Construir uma teoria do amor corresponde a colocar-se numa postura chamada a malograr o amor. Lacan não subscreve ao projeto, con fessado por Freud, de encarar o amor de um ponto de vista científico. Essa recusa em nada é original, nem tampouco aceita. Ativa em Sócra tes, não é menos notória no jin'amor, sobre o qual escreve Jacques Roubaud: "O amor é colocado pelos trovadores no começo de tudo. Daí vem que ele é, por natureza, uma explicação inexplicável 1 3 " . Jacques Le Brun também afasta a possibilidade de uma tomada que pretenderia ser de ordem teórica sobre o puro amor 1 4 • Escrevendo seu discurso amoroso, Roland Banhes limita-se a fragmentos, julgando até necessário oferecê-los em "uma ordem absolutamente insign ificante 15 " . Mais recentemente, Annie Le Brun iniciava sua introdução à Antologia amorosa do surrealismo dizendo, a respeito do que ela chama, não sem um justo equívoco, "a roda do amor", que "nada faz tão nitidamente ver a inutilidade de todo comentário 1 6 " .
u Jacques Roubaud, 'Tamour, l a poésie", in De l'amo11r, obra coletiva sob a direção d a École de la cause freudienne, Paris, Flammarion, coll . "Champs", 1 999, p. 92. 1 4 Jacques Le Brun, Le p11r amour de Platon à Lacan, Paris, Le Seuil, 2002. 1 5 Roland Banhes, Fragmellts d'1111 disco11rs amo11re11x, Paris, Le Seuil, 1 977, p. 1 1 . Mais re centemente: Le disco11rs amo11re11x, séminaire à l'Éco!e pratique des hautes études. 1974-1976, Paris, Le Seuil, coll. "Traces écrites" , 2007. 1 6 Si vous aimez l'amou1: .. , Anthologie amoureuse du surréalisme, reunida por Vincent Gilles, Paris, Syllepse, 2002, p. 5 .
PRÓLOGO
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FAZ ER AMOR? No entanto, e para antes de mais nada limitarem-se à modernidade, outras posições foram rigorosamente mantidas e, entre elas, aquela, exemplar, de Jean-Luc Marion. Seu Fenômeno erótico 17 objeta, em ato, ao "não há teoria do amor" e permite também, como que por um efeito de contraponto, notar como, em Lacan, a recusa de teorizar o amor não se funda num posicionamento do amor "no começo de tudo". Trata-se de uma fenome nologia da consciência amorosa, da constituição do sujeito pelo amor, o que exige nada menos que pôr um termo na "afasia erótica" constitutiva da metafísica, suspender o esquecimento no qual foi mantido o amor (philein) em filosofia. Sempre segundo Marion, esse esquecimento foi mais que nunca efetivo com Descartes, que colocou todo o acento na busca de um saber que pretende ser certo. Marion repete um gesto que foi o de Heidegger para com o Ser, mas subordinando a questão do Ser àquela do amor. Ele recusa a ideia segundo a qual para amar seria preciso primeiro ser, ser alguém, e sua erotologia mantém essa aposta. Sua maneira se afasta daquilo que ele até ali oferecia a seus leitores, ou seja, pelo menos que eu saiba, as mais pertinentes leituras de Descartes escritas em francês nestes últimos anos. Dessa vez, é obra de um caminhante, que não esquece, ao assim fazer, seu saber. Sua marcha resoluta diz o amor de .modo bem diferente de Lacan. De um a outro, há antinomia não só sobre o caráter desejável de uma teorização do amor, mas também sobre a abordagem do amor, pensado de maneira unitária em Marion, fragmentada em Lacan. Essa unidade é a de um desenvolvimento. Os conceitos sobrevêm, um após o outro, com frequência inesperados. O que acontece com esse avanço? Ele acaba por apagar a impressão primeira do caráter arbitrário de cada um dos passos. A introdução do amor pareceu forçada? Uma vez percorrido o caminho, essa impressão fraqueja, e o leitor começa a admitir que "a fala 'me amam?', eu não a digo tanto como uma questão que eu poderia escolher entre mil outras". O fenômeno erótico, longe de ser um comentário sobre o amor, performa o amor ou ainda, como diz Marion brincando, 17 Jean-Luc Marion, Le phénomene érotique, Paris, Grasset, 2003 .
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0 AMOR LACAN
"faz amor" . Não se trata tanto de um livro quanto de um ato. Encarado como fenômeno, o amor é indissociavelmente ato e teoria. Ele não é ato nem teoria em Lacan. Formular em que, vista de Lacan, essa performance permanece problemática exige um breve desvio por uma das mais sensíveis disparidades entre Freud e Lacan. Enquanto Freud se dá, no início do processo de subjetivação (sem chamá-lo assim), algo como um narcisismo do qual vão se diferenciar as instâncias psíquicas, Lacan, por ter sido posto em movimento pelo que ele nomeou "campo paranoico das psicoses", situa no começo não o narcisismo, mas a alteridade (ele assim redefine o autoerotismo como "falta de si"). Daí, é possível se perguntar se a maneira como começa a redução erótica não deve ser situada do lado de Freud. Ou seja, a função dada à vaidade no início da redução erótica. Marion escreve: " [ ...] para ser aquele que sou, preciso, ao inverso, abrir uma possibilidade de me tornar outro que não sou, de me distinguir no futuro, de não persistir em meu estado atual de ser, mas de me alterar num outro estado de ser [ ...] 1 8 " . Lido com os óculos de Lacan, o "alterar me" cria problema. Não supõe ele um sujeito decerto já complexo visto que desejoso de correr o risco de uma saída de sua vaidade, mas que, como indica a espécie de complacência por si mesmo que o habita e que é designada pela palavra "vaidade", estaria próximo daquilo que Freud de imediato se dá? Não é igualmente o que implica a necessidade afirmada de fazer seu luto da autonomia? Evocando a necessária exposição desse sujeito ao alhures, Marion escreve: "Meu caráter doravante determinante - amado ou odiado - nunca mais pertencerá só a mim" . Não se trata aí de dar muito a esse "só a mim"? Assim, O fenômeno erótico mostra como, na modernidade, um amor teorizado deve ser desdobrado a partir de uma hecceidade colocada a priori. O que Lacan não pode admitir. " Para fazer amor", ele irá dizer em 3 de dezembro de 1 969 na Universidade de Vin cennes, "é melhor esperar sentado" . Como seu sujeito nunca foi aquela espécie de mônada chamada a se realizar conforme a via conceitualmente regrada de uma redução erótica, Lacan não estava exposto àquele "todo erótico" mostrado por essa redução.
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J . -L . Marion, Le phénomene érotique, op. cit., p. 38.
PRÓLOGO
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0 AMOR C O M E O AMOR SEM TEORIA A teorização do amor é tal que permite discriminar duas feituras (ou duas classes) de amor. Houve, historicamente identificáveis, o amor com e o amor sem teoria. Lacan menciona várias vezes a distinção medieval amor físico/amor extático, o primeiro não significando "corporal", mas "natural", e servindo "para designar a doutrina daqueles que fundam todos os amores reais ou possíveis na necessária propensão que têm os seres da natureza a buscar seu próprio bem 1 9 " . Pierre Rousselot, em quem Lacan se baseia, nota que, ao contrário do amor físico, o amor extático não deu lugar a "fórmulas intelectuais nítidas". É, escreve ele ainda, "uma 'mentalidade' mais que uma 'teorià ", observando igualmente que, exposta "sob forma oratória e poéti ca, ela não deixava muito de agradar", ao passo que, na "análise filosófica, ela aparecia fugidia e inconsistente". Logo, duas feituras amorosas, Lacan optando em favor do amor extático desprovido de teoria. Em 3 1 de maio de 1956, ele declara, por exemplo, que na época em que ele fala "o acento original da relação amorosa [id est-. o amor extático] está perdido". Há mais nítido ainda. A teorização do amor cortês deu lugar a uma nova figura do amor, e a análise dessa metamorfose permite apreciar até onde pode ir a incidência do "não há teoria do amor". Não é só que esteja excluído um discurso teórico que tomaria o amor como objeto, é também, e por isso, uma certa figura do amor que é afastada. Vamos aqui recorrer a uma tese de Jean Festugiere, segundo a qual o amor fenício veio enxertar-se no amor cortês precisamente como uma teoria (uma filosofia) do amor cortês. Festugiere parte da constatação da existência de uma religião do amor no Renascimento, manifestada especialmente pelos poetas do século XVI (a poesia lionesa, a Plêiade, Margarida de Navarra). Essa poesia amorosa provém notadamente do amor cortês tal como foi teorizado por Ficino. Festugiere escreve que, se os poetas do Renascimento "respeitam suas Damas, não é apenas para obedecer ao costume que elas instituíram [o código cortês] , mas porque 19 Pierre Rousselot, Pour /'l,istoire du probleme de l'amour au Moyen Âge, Paris, Vrin, 198 1, p. 8 ( 1• ed., igualmente na editora Vrin, em 1933). As citações são retomadas das páginas 56 a 58 dessa obra. Lacan a elas se refere, sem no entanto mencioná-las, desde 1948 ("A agres sividade em psicanálise").
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sabem [sublinho] que a beleza efêmera delas é apenas o reflexo da Beleza eterna20 " . Esse saber não é exterior à ligação amorosa do poeta com a Dama, ele desempenha, ao contrário, seu papel nessa ligação, e isto até forjar a figura de um "puro amor" (Festugiere) tão distante do amor cortês que deveremos ver aí uma outra e nova figura do amor. Por isso, é possível ser tão decidido, embora certas práticas amorosas permaneçam semelhantes e comuns certos traços? Devemos, sim, também pelo fato de que esse saber do amor compõe um outro objeto de amor. A nova figura é a de um amor divino, "verdadeiro amor" opondo-se como tal a um "amor vulgar", e cujo objeto não será mais a Dama, mesmo que seja atingido por seu intermédio. Essa metamorfose se deve apenas a um deslizamento metonímico, mas esse pouco é decisivo. " O amor é dito ser digno de admiração, porque cada um ama a coisa, com cuja beleza ele se maravilha", escreve Ficino21 • O objeto de amor oferece, por sua beleza, a possibilidade ao amante de amá-lo não mais ele mesmo mas sua beleza e, a termo, a beleza como tal. A amada não sendo a fonte de sua própria beleza, o amante acabará por amar a beleza em sua fonte, ela mesma bela, que é o divino. Ficino: "Quando dizemos amor, entendam o desejo de beleza". Essa definição do amor divino reata com Platão, segun do o qual o amor é desejo de novamente contemplar a beleza divina22 • "A admirável utilidade da Beleza" permitiria ao amante deslizar, segundo a via preestabelecida da "escala maravilhosa23 " , do amor da Dama apenas para o amor verdadeiramente nobre, o da imutável e divina beleza. Seria esta a metamorfose do fin'amor. Mas, objetaremos, o fin'amor também tinha sua escala. Houve variantes, que no entanto não impedem René Nelli de distinguir quatro principais etapas do cursus cortês: primeira mente ofeign edor, o amante tímido e hesitante, depois o prejador, em que o amante toma coragem para suplicar, seguido do entendedor, estado em que sua Dama consente em ouvi-lo, e que pode desembocar no drutz, em que o amante é escutado e satisfeito (os debates não estão encerrados quanto a 20
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Jean Festugiere, La philosophie de l 'amo11r de Marsile Fiei 11, Paris, Vrin, 194 1, p. 3. Citado ibid., p. 30. Citado por Festugiere, La philosophie de l,1mo111· de Marsile Fiei11, op. cit., p. 25. Cj René Nelli, Écrivains a11tico11Jor111istes d11 Moye11 Âge occita11. La femme et l 'a111011r, Paris, Phébus, 1977, p. 2 1-22.
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saber como ouvir essa derradeira satisfação). A objeção pode não ser atendida pois, enquanto a escala (neo)platônica conduz o amante ao único objeto imaginável do verdadeiro amor, a escala cortesã, esta, mantém o amante fixado em sua Dama. Um belíssimo poema de Raimon de Miraval24 ( I 13512 16) enuncia essa focalização num objeto a um só tempo dado e preciso, fora da qual o fin'amor não seria mais ele mesmo. Eis seus últimos versos: Quar etz de pretz ai sim En la plus alta cima E de valor ai prim Que part las valens prima
[ ... ]
Vas vos mon cor a-ym
Pois você está no ápice do Preço, Sobre o mais alto cimo, E em termo de Valor, na primeira fila, Aquele que entre as nobres damas prevalece [ . . . ] [. . .] É por você, minha dama, que meu coração tem
am or
Que rent tant non s'a-yma
Pois não se pode amar nada tanto quanto você;
Um Ficino, uma Margarida de Navarra não poderiam pronunciar tais palavras. O poeta cortês diz à sua dama: "Não desejo outra coisa a não ser você", servindo até de argumento para que ela lhe ofereça enfim, ainda que por piedade por ele, o jazer, a prova da cama. Por outro lado, com o amor neoplatônico, a amada mundana não pode de modo alg1.,1m estar "na primeira fila", o amante sendo de certo modo solicitado a ir amar em outro lugar, ali onde o amor encontrará um objeto verdadeiramente digno dele, seu objeto. Assim, é possível confrontar o poema de Raimon de Miraval com este outro, situado no décimo nono conto do L'heptameron25 : O que dirá ela O que fará ela Quando me vir com seus olhos Religiosos? Ai! a pobrezinha 24 Ibid. , p. 1 62- 1 69 . 2 � Marguerite de Navarre, L'heptaméron, é d . d e Nicole Cazauran, Paris, Galli mard, coll. " Folio dassique", 2000, p. 236 sq.
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Toda sozinha Sem falar por muito tempo estará Descabelada Desconsolada: O estranho caso pensará Seu pensar (por aventura) Em monastério e clausura No fim a conduzirá. O que dirá ela, etc.
Há alternativa: ou seja, e é o fin'amor, a mulher se vê como que di vinizada, idealizada ao ponto de ser apenas, então, a figura a um só tempo abstrata e convencional, sem singularidade; ou seja, e é o amor neoplatônico, a mulher é o lugar de um provisório mal-entendido e, neste caso, uma vez suspenso o mal-entendido, ei-la solicitada a tomar o mesmo caminho que seu amante, caso contrário ela voltaria à estaca zero. Pois o que acontece com uma barra de escala uma vez transposta? Assim, teorizar o amor cortês equivale a construir uma nova figura do amor e, notadamente, a lhe oferecer um novo objeto. É também a economia do gozo que fica fortemente abalada. O amor divino descentraliza o gozo da relação com a Dama. Nem por isso o gozo é erradicado. Ele é recuperado in fine, transcendido, sublimado, na relação do amante com o divino. Fica claro que o interesse manifestado por Lacan pelo amor cortês era da mesma têmpera que sua preferência dada ao amor extático: nos dois casos a eleição é a de um amor não teorizado.
NÃO HÁ INTERP RETAÇÃO O teor dessa escolha pode ser precisado. Em Lacan, o amor bem cedo é uma paixão, formando, com o ódio e a ignorância, o ternário das paixões do ser 26 • Logo, não encontraremos nele teoria do ódio ou da ignorância, 26 A colocação em relevo de "paixão do ser", como quem não quer nada, traz consequência: por aí é excl uída a disti nção de u m amor d i to "normal" e de um "amor-paixão" , ou "pato-
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tampouco teoria do amor, nem, em geral, teoria das paixões. Essas teorias simplesmente não têm razão de ser. Uma das razões dessa abstenção é de vida à simplicidade do amor, e convém, a esse respeito, retomar a questão mais adiante. Quanto às paixões, uma das primeiras e mais decisivas leituras de Lacan foi A ética de Espinosa. Logo, em quem Espinosa se inspirou para sua apresentação das paixões? Em Descartes, bem entendido, que, desde aquela época, na Europa, provocou tantas reações quanto Freud em seu tempo. Mas também em León Hebreu (Judá Abravanel, nascido entre 1460 e 1470), que foi para os judeus o que Ficino (nascido em 1433, tradutor do Banquete, autor de De amore) foi para os cristãos: um notável continuador de Platino. Não vamos nos deixar prender pelos doze séculos que separam Platino desses dois epígonos27 • A continuidade é mais forte do que parece; por exemplo, os banquetes que festejam Sócrates, que por vezes reproduzem da maneira mais meticulosa a composição dos convivas do Banquete de Platão, esses banquetes ainda encenados por Porfírio, desaparecem durante esses doze séculos, depois são retomados, em Florença, por Ficino e seu mentor Laurêncio de Médicis. É verdade que não houve razão, tanto as variações são importantes de um a outro desses autores, para extrair dados demais dessa genealogia que, desde Platino, através de Hebreu e Espinosa, iria até Lacan; ela no entanto tem a vantagem de assinalar que a questão da teorização do amor merece ser retomada a partir de Platino. Pierre Hadot escreveu um belíssimo livro sobre Plotino28 que, longe de mascarar uma das dificuldades maiores encontradas por Platino, ao contrário a valoriza. Referia-se ao caráter eminentemente simples de sua lógico", condenado por seu caráter excessivo. Em Lacan, não há amor paixão pela simples razão de que o amor é uma paixão. 27 Lacan não deve ter lido Léon Hebreu, de quem ninguém, de seu tempo, falava na França (Dialogues d'amour, trad. de Pontus de Tyard [ 155 1] , éd. de Tristan Dagron e Saverio An saldi, Paris, Vrin, 2006). É muito mais espantoso ele nunca ter mencionado e menos ainda discutido Ficino em sua leitura do Banquete, a obra maior de Ficino, seu comentário desse mesmo Banquete sendo-lhe uma concorrência direta e prestigiosa. E ainda mais espantoso já que Les Belles Lemes publicam esse comentário em 1956, poucos anos, portanto, antes do seminário A tmnsferência . . . 2 8 Pierre Hadot, Plotin 011 la simplicité du regard, Paris, Gallimard, 1997. A obra retoma, com mais que sensíveis mudanças, uma primei ra edição publicada por Plon em 1963.
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experiência ontológica. A união amorosa com o Bem é a experiência femi nina (ressalta Hadot, distinguindo-a assim do amor platônico homófilo), "na alma, da irrupção de uma presença que não deixa mais lugar para outra coisa a não ser si mesma29 " . Ora, Plotino sabia muito bem que a transmissão de sua experiência "místicà' exigia um certo percurso, que ela só podia só ser analítica. Logo, ele considerava que havia ali uma antinomia. Pois essa "presença que não deixa mais lugar para outra coisa a não ser si mesma" expulsa até a consciência que se poderia ter disso. A experiência vivida por Plotino subverteu radicalmente a distinção entre o sujeito e o objeto. Descrever, analisar a experiência ontológica, ou apenas indicá-la já era tê-la perdido. Nenhum percurso analítico pode jamais alcançá-la. A simplicidade do amor é isso mesmo que o deixa fora de captura por qualquer iniciativa teórica. Assim, a dicotomia que pôde ser identificada entre amor físico e amor extático, depois entre amor cortês e amor divino, encontra-se aqui presente, mas de maneira interna à experiência plotiniana. Não é de algo dessa ordem que são testemunhas os psicanalistas ao afirmarem que a interpretação permanece sem contato com a transfe rência amorosa? Ainda mais sem contato já que, acrescentam, longe de a interpretação apagar a transferência, é a transferência que dá seu impacto à interpretação. Não estão eles à volta, ao dizerem isso, com uma nova ma nifestação da antinomia plotiniana dita acima? Parece bem que sim. Não há, não pode haver interpretação do amor; e, portanto, a fortiori, não há teoria do amor.
FORA DA FANTASIA Já que Lacan a fez sua, o que entender por essa determinação? Admitiremos que certos objetos que a análise distingue prestam-se à teoria, outros não. Por exemplo, há em Lacan uma escrita (várias até) e uma lógica da fantasia, ou ainda do sintoma e de muitos outros objetos. Nada igual para o amor: nem conceito, nem escrita, nem lógica. No entanto, confrontar o amor e a 29 Ibid. , p. 87.
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fantasia, do ponto de vista de uma possível ou inconveniente teorização, é preferível a qualquer outra confrontação. Pois, enquanto que com o sintoma não há dificuldade (ninguém jamais pensou a transferência amorosa como um sintoma), em compensação apresentou-se a questão de saber se o amor tinha a ver com a fantasia. E, ainda que a palavra não estivesse presente, ninguém esperou a psicanálise para a isso se dedicar. Ninguém esperou, no indefinido, já que permanece não estabelecido que o Discurso sobre as paixões do amor seja de Pascal. No parágrafo 1 1 desse escrito que alguns datam de 1 653 (um ano antes da "noite mística" de Pascal, em 23 de novembro de 1654), está dito: O homem não ama ficar consigo; entretanto, ele ama: logo, precisa buscar em outro lugar o que amar. Só pode encontrar isso na beleza; mas, como ele mesmo é a mais bela criatura que Deus jamais formou, ele precisa encontrar em si mesmo o modelo dessa beleza que ele busca fora. Depois, um pouco mais adiante (§ 13), "cada um tem o original de sua beleza, cuja cópia ele busca na aristocracia". Por vezes ouvimos, esponta neamente retomada, essa teoria quando uma declaração de amor se enuncia assim: "Você é exatamente meu tipo de mulher, de homem" . Podemos duvidar que qualquer pessoa responda por amor a tal frase. Pois é possível amar uma representação? Exemplar a esse respeito surge a lição do filme Todos dizem Eu te amo. Nessa comédia musical, o personagem masculino, já envelhecido, representado por Woody Allen, seduz uma mulher graças a um artifício. Vendo-o infeliz no amor, a filha decide tirá-lo da depressão usando uma terapêutica conhecida desde os gregos: fazer com que ele se apaixone novamente. Ela vem a ser amiga de uma psicanalista gênero fofoqueira, que portanto lhe narra as fantasias eróticas de uma de suas pacientes. Assim, ela conta os mínimos detalhes ao pai que, incentivado pela filha, vai poder lançar-se na conquista da analisanda munido de um trunfo julgado decisivo. Sabendo, por exemplo, que ela é muito sensível a isso, ele logo encontra a oportunidade de se aproximar dela e lhe soprar no pescoço, o que a deixa extasiada: como aquele homem que ela mal acaba de encontrar conhece o segredo de seu tão delicioso gozo? Petrificada, maravilhada, ela logo fica
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apaixonada por um amante tão sábio. A esperteza funcionou! E a terapia deu certo! Só que eis que esse amor aborta. Por quê? Porque, revelando-se o fio grosso demais à medida que o amante mostra-se cada vez mais a par de seus pequenos gozos corporais, ela acaba reconhecendo suas fantasias como fantasias e se dá conta, com isso, de que não é muito divertido. Só lhes resta então voltarem, ela a seu marido, ele à sua depressão. O amor, como um Plotino percebeu com certeza melhor que muitos outros, nada tem a ver com a fantasia. Em 20 de novembro de 1973, Lacan vai se afastar do Discurso sobre as paixões do amor vendo nele um forçamento. Que ele se proíbe. Outros dados mais, em Lacan, virão escorar a proposição "não há teoria do amor". Vai estar notadamente em questão uma foraclusão do pensamento pelo amor. Não se pode mais radicalmente aprovar o "não há teoria do amor" que, naquele momento do seminário, não é mais simples mente assunto de inconveniência, mas de impossibilidade.
TAMPO U CO HÁ MATEMA Entretanto, uma objeção à recusa lacaniana de teorizar o amor deve ser suspensa, e tanto mais séria porquanto é interna ao trilhamento de Lacan. Se, com efeito, a transferência é amor e se há um materna da transferência, não se vê por que razão esse materna não seria igualmente um materna do amor. Eis o materna:
S ----- Sq s (S 1 , S 2 , . . . S 11 )
Ele foi escrito como um desenvolvimento da definição: o significante representa o sujeito junto a outro significante (S / S 1 ➔ S2 ) . Ele prolonga essa definição a partir disto: na análise, alguém se endereça a um outro, que supostamente sabe. Ora, notável passo ao lado, vai estar em questão um sujeito, e não um outro que supostamente sabe30 • O fato de temermos que o
30 Para um estudo dessa ruptura [décrochage] , poderemos nos reportar às páginas 5 1 1 e 5 1 8 de minha obra Marguerite, ou l'aimée de Lacan, 2' éd. revista e aumentada, Paris, Epel, 1 994.
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outro se engane ou que possa ser enganado já é suficiente para indicar que há aí um problema, que esse outro não sabe supostamente tanto assim. A esse problema Descartes, ao qual Lacan se refere, já deu sua solução. Como? Ao não comprometer mais Deus em nossos cálculos (ao contrário de Kepler). Deus poderia ter desejado um mundo diferente daquele que descrevem nos sas pequenas letras; sua vontade permanece transcendente. Ora, o próprio fato desse querer exige que Deus seja um sujeito. Deus, em Descartes, é sujeito suposto saber (eis a teoria da criação das verdades eternas, tão bem desdobrada por Jean-Luc Marion). Exit o Outro suposto saber, exit a religião. Mas embora sem cair na intersubjetividade, e vai ser toda a dificuldade do materna da transferência: flertar com ela, mas só isso. De onde um sujeito se endereça a esse sujeito suposto saber? Uma vez que se trata de um sujeito e de nada além, só pode ser a partir de um signi ficante. Eis, pois, colocado o dito "significante da transferência", S (acima da barra), e, s minúsculo em itálico, o sujeito suposto, colocado, como é exig ível, em subposição (sob a barra). Notado como a sequência dos S 1 , S 2 , . . . S 11 , o saber insabido composto pelo grupo dos significantes inconscientes vem então se inscrever em "atinência'' ao sujeito suposto, sob a barra. Tudo isso é falante, talvez falante demais. Pois convém não perder de vista que essa configuração como tal bem como todos os termos em jogo estão viciados. Ou seja, primeiramente, o S, o significante da transferência. Ele só por antecipação é designado como sendo um significante. Just�mente, ele não representa o sujeito (o único sujeito em questão numa análise) junto a outro significante. Se o fizesse, não haveria mais materna da transferência, nada mais a colocar sob esse significante senão um S . Logo, trata-se de um significante à espera de sua simbolização. Só pode chamar-se um signo. Pois não há outra escolha: é ou bem de um significante ou bem de um signo que se trata; e, uma vez que o significante da transferência permanece não simbolizado, ele só pode ser aceito como um signo. Aplica-se a definição do signo: o S representa o "significante da transferência" para Jacques Lacan. E é por isso que ele chama "qualquer" o outro significante, o Sq. "Qualquer" não enquanto tal mas por estar excluído poder escrever de outro modo como, em cada transferência, ele é não qualquer, mas singular. Assim, por No Brasil,
Pamnoia: Marguerite 011 a
''Ai mée"
de Lacan,
Companhia de Freud, Rio, 1 997.
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exemplo, propus a seguinte conjectura para o "caso Aimée": "Aimée" seria o significante a partir do qual Lacan se endereça a Marguerite Anzieu en quanto "sabedora [sachante] " . Eu jogava, ostensivamente, com a homofonia "ça chante" [canta] , isto em referência à relação singular de Marguerite com o que Lacan, falando de seus escritos, qualifica de "marqueteria verbal" . "Marqueteria" {um quase anagrama de "Marguerite"), conforme essa con jectura, teria sido o outro significante, junto ao qual ''Aimée" poderia ter representado Lacan enquanto S . O que nunca aconteceu, uma vez que a transferência de Lacan a Marguerite permaneceu indefinida. O s minúsculo em itálico também soa falso. Não é um sujeito propriamente falando, o que, aliás, implicaria que dois sujeitos estão em jogo numa análise (ele mesmo e aquele que coloca o significante da transferência) enquanto que, em sua " Proposição. . . ", Lacan escreve que a transferência "faz sozinha obstáculo à intersubjetividade" . Assim, esse s é a marca de um espantalho de sujeito, à espera de sua própria deliquescência. Quanto ao grupo dos significantes inconscientes, eles tampouco são simbolizados, só o serão quando uma interpretação como acontecimento os ligar {os lerá)*. Em outras palavras, esse materna da transferência não pode ser lido na ignorância não só de sua instabilidade profunda mas de sua pouca consistência. Tudo está escrito ali para ser reconsiderado, cada elemento literal se oferece para ser de outro modo posicionado, isso até esse materna tomado como um todo, que se dirige assim direto para sua desarticulação - é o sentido da flecha do alto e o alcance a ser dado ao desequilíbrio que ela assinala ao ultrapassar amplamente, na direita, o traço horizontal da subposição. Essa desarticulação advirá quando o significante da transferência for produzido como representante de um sujeito junto a outro significante (que não será mais qualquer). Não se pode ficar escandalizado com a ins tabilidade do materna da transferência. Escrito por alguém que sustentava que a transferência tinha um fim, ele só podia comportar em si mesmo seu próprio fim. Trata-se de um pseudomatema. O amor não figura aqui. É rigoroso, se a transferência for o amor? Um sintagma, retomado da primeira versão da "Proposição . . . ", permite res* Jogo homofônico em francês: les fiem [os ligar] e les lira [os lerá] . (NT )
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ponder. Lá está em questão "a função do agaima do sujeito suposto saber" . Seja qual for sua graça ou desgraça, é ao agaima, que ele sabe não deter mas cuja imputação aceita, que o analista deve o fato de ser colocado em posição a um só tempo de sujeito suposto saber e de objeto amado. Logo, se pode haver identidade, como está dito na segunda versão, entre o algoritmo da transferência e o agaima do Ban q uete, ou seja, aquilo que suscita o amor, não é de modo algum necessário inscrever o amor no algoritmo da transfe rência. O que lhe confirma o caráter evanescente. Por um tempo, o sujeito suposto saber "usufrui" do brilho do agaima. Mas o invólucro está vazio, o analista a isso se dedica. Assim é suspensa a única objeção imaginável, em Lacan mesmo, ao "não há teoria do amor" .
PROMESSAS NÃO CUMPRI DAS Enquanto a recusa lacaniana de teorizar o amor (que também é recusa de um amor teorizado) afasta o amor de um certo modo de racionalidade, promessas reiteradas também afastam o império que se poderia adquirir sobre ele, mas de outro modo, projetando-o no futuro. Ora, na falta de uma eternidade de que Lacan não quis saber, o futuro não dura muito tempo. Em consequência, quando o próprio presente vem a faÍhar, seu fim anunciando-se próximo, novas promessas não podem mais estar na ordem do dia. Quando chega esse momento, não há outro futuro senão presente. Desaba, então, toda uma política de seminarista feita de colocações em suspenso, anúncios, chamadas à paciência do público, à sua assiduidade, até mesmo à sua fidelidade. E é revelada a pouca regozijante perspectiva segundo a qual muitas promessas feitas não serão cumpridas. O que, aliás, não se pode censurar num pesquisador, mesmo inscrito numa disciplina entre as mais bem formalizadas que sejam3 1 • Assim, um pesquisador vai morrer tendo entrevisto, às vezes distintamente, certos problemas que nem ele nem nenhum de seus colegas terão sabido resolver enquanto vivos. Ele 31 Exemplar a esse respeito aparece o relato de Apostolos Doxiadis, Onde Petros et ln co11ject11re
de Goldbnch (Paris, Le Seuil, coll . " Points" , 2002) .
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poderá, na oportunidade, ter deixado entender que detinha soluções, e isso só poderá ser lamentado por um espírito chicaneiro, mas não que esses problemas tenham ficado sem resposta. Por que se exigiria mais de Jacques Lacan? Suas promessas não foram todas cumpridas? Nem por isso valem nada. Tal promessa terá sido deixada de lado, tal outra terá visto seu teor modificado, a formulação de tal outra terá sido recusada, tal outra ainda terá sido reiterada, o que confirma assim o interesse, se não a justeza, do problema colocado, tal outra, mesmo não satisfeita, terá provocado uma mudança de percurso, etc. Em suma, essas promessas merecem ser consideradas, ainda mais porque às vezes se acompanham de declarações de conquista obtidas sobre o amor. Melhor admiti-lo desde já: uma questão pelo menos, embora articu lada, será, para acabar, deixada sem resposta definitiva. Como o amor pode ser uma via (analítica) pela qual um sujeito adviria como desejante? Certo, aqui e ali, na oportunidade, Lacan dá algumas indicações. No entanto, nada garante, longe disso, que o que foi dito possa ser considerado A resposta, aquela que ele teria estabelecido pelos séculos dos séculos. Nem sequer que a pertinência dessa questão tenha perdurado ao longo do percurso de Lacan. Nessa falha vem discretamente se alojar o amor Lacan. Ele não a preenche. Bem antes a acusa, manifestando assim localmente que está excluído dar conta por completo da prática analítica. Não há teoria da prática analítica, mesmo que essa teoria desejasse ser uma prática. Ou, mais exatamente, se uma produção puder de fato chegar ao fim, que teorize certos dados oriundos dessa prática (sim, há bem aí resultados, oferecidos à crítica do não-analista), e se outra espécie de esforços puder ser cumprida uma vez que é reconhecida a inconveniência de toda teorização, tais esforços, seja qual for a maneira deles (o registro, a ordem de racionalidade), só terão validade na medida em que souberem manter um certo branco, suscetível de acolher o que a prática puder a cada vez oferecer de inaudito. Assim, Lacan não se limitou a teorizar: aconteceu-lhe propor, ali mesmo onde julgava que sua ação de seminarista só podia ser inoperante e sem pertinência suas escritas. Isso foi feito para o que ele chamou o passe. Sabe-se menos que foi este igualmente o caso para o amor. Logo, aconteceu várias vezes a Lacan declarar que a psicanálise tinha trazido algo decisivo a respeito do amor. Como imaginamos, ele não falava,
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a cada vez, da mesma coisa. Ou seja, portanto, essas declarações de con quista, retomadas de "Não todo Lacan", aqui eleito como primeiro corpus de referência. Em 1950, ele declarava: [...] a sexualidade, entendemos, é uma forma específica de descarga para todas as tensões psicológicas em excesso. Assim, a dialética freudiana que revelou a verdade do amor no presente excrementício da criança ou em suas exibições motoras [...] 32 • Uma coisa é dizer que o dom do excremento à mãe é reconhecido por Freud como um ato de amor, outra coisa é dizer que Freud assim "revelou a verdade do amor". Se as "exibições motoras" permanecem da ordem da "amabilidade" ("Veja como sou bonito! ", "Sorria para minhas cômicas gesticulações! "), em compensação o presente excrementício introduz um objeto antes inesperado na "verdadeira" relação amorosa. Em Bela do senhor, de Albert Cohen, os amantes, a fim de não sujar o pensamento que cada um tem do corpo do outro imaginando-o entregue a certas atividades tão cotidianas quanto pouco apetitosas, tomam enorme cuidado para evitar que cada um ouça os ruídos emitidos pelo outro quando frequenta os sanitários de seu domicílio comum. Não se pode dizer melhor o centramento do amor deles sobre o excremento. Amar, segundo Freud retomado aqui por Lacan, é dar, e dar aquilo que se tem. "Esse precioso objeto que detenho, por amor por você, a teu pedido, eu te cedo". Amar é satisfazer um pedido e a ele responder por outro pedido: " Peço-te que aceites o que te ofereço, porque é bem isso que tu me pedes". Amar é se sacrificar, "se", pois o excremento, nesse dom de amor e por amor, tem o valor de uma parte de si que, como tal, é si. Amar é separar-se daquilo que se é como objeto, aceitar que esse objeto-si desapareça na fossa comum, o amor recebido em troca (Pausânias, em O banquete, faz o elogio do amor troca) oferecendo ao donatário a pro messa de que pode ser amável sem isso, de que portanto não é, ao contrário do que sente, redutível a isso ou à posse disso. 32
J. Lacan, "Incervention au prem ier congres mondial de psychiatrie" ( 1 950) , in PTL.
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Três anos mais tarde, Lacan volta a esse amor anal, e até "analisa33 " . Faz isso na conferência reconhecida inaugural de seu ensino, intitulada "O simbólico, o imaginário e o real", de 8 de julho de 1953 34 • Tendo louvado a audácia de Freud que soube não afastar o amor da transferência, de Freud que teria bem percebido que "a transferência é a própria realização da relação humana sob sua forma mais elevada", ele acaba por definir o amor como "a conjunção total da realidade e do símbolo que fazem uma única e mesma coisa". Mas eis que Françoise Dolto, sentindo passar um perigo, se mani festa: "Realidade e símbolo, o que você entende por realidade? ". Resposta: "Um exemplo: a encarnação do amor é o dom da criança, que, para um ser humano, tem esse valor de algo mais real". Se lermos "dom da criança" como genitivo subjetivo, a criança dá, é donatária. Ela dá... o excremento. A intervenção de Dolto vem recobrir essa leitura. Ela opta pelo genitivo obje tivo: a criança é "simbólica do dom", é um dom (do céu?). Não é de modo algum necessário decidir, já que uma e outra leitura resultam dessa mesma definição do amor que Lacan propunha três anos antes. Amar é dar um algo que é a um só tempo um precioso objeto da realidade e um símbolo. Era jogar pesado apresentar como uma revelação freudiana essa versão anal que localizava no excremento a verdade do amor? Admiti-lo seria negligenciar as repercussões e modulações dessa figura do amor no próprio Lacan: o nada tomará mais tarde o lugar aqui dado ao excremento; o falo será interrogado como depositário dessa mesma bivalência aqui dada ao excremento e será também suscetível de ser oferecido (em homenagem à mulher); o objeto a permitirá precisar aquilo que o analista tem no ventre. Em 9 e 1 O de março de 1960, Lacan pronuncia duas conferências na faculdade universitária Saint-Louis em Bruxelas35• Ao declarar a seus inter locutores católicos que Freud "sabe superiormente" a importância do amor de si mesmo, Lacan fala aqui de uma incidência do saber sobre o amor que não é tão anódina quanto pode parecer à primeira vista. Por ter notado seu ·13 " Lisa" : sentido fisiológico: " Fusão, destruição de elementos orgânicos sob a ação de agentes físicos, químicos ou biológicos" (Robert). Aqui, o agente seria o amor. ·1 4 Ela abriu as atividades da Sociedade Francesa de Psicanálise. Existem várias versões, sensivel mente diferentes, dentre elas uma publicada no B11/letin de l'Associntion .fi'eudienne, 1 982, n º 1 . 35 J . Lacan, Le triomphe de ln religion, op. cit.
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componente narcísico, Freud era sábio em amor. A proposição se inverte: o amor é suscetível de ser sabido "superiormente". De onde o amor é sabido? E como? É sabido à maneira de um Clérambault a elaborar, em sua forja da erotomania, um saber de segundo grau? Se sabe ele num discurso que seria o da ciência, como Freud acreditava poder imaginar? Lacan pode se posicionar de outro modo, principalmente graças a seu estádio do espelho. Com efeito, é a partir desse achado do espelho que ele está em condição de dizer, em Bruxelas, nesse dia: "Eu amo a mim mesmo na medida em que me reconheço essencialmente. Só amo um outro. Um outro com um a minúsculo inicial [...]". Consequência: esse caráter narcísico faz do amor uma "enganação". O saber do amor como narcísico torna-se, com Lacan sábio em amor, saber da enganação do amor. O fato de o amante saber que ama não impede de modo algum que ele desconheça o que ele ama. O quê? Um ele mesmo que não é ele. Logo, o saber da enganação do amor está em outro lugar que no amante. Não nos precipitaremos para dizer que esse outro lugar é aquele "terceiro" tão caro a um lacanismo banalizado. Para falar a verdade, a localização, se não a identificação desse lugar onde se sabe a enganação amorosa, e a determinação da maneira desse saber são uma única e mes ma questão. Para entendê-la, não desprezaremos o caráter confi_dencial da afirmação de Lacan. Num momento de sua conferência, ei-lo a falar de si na terceira pessoa: Mas, enfim, ele [Lacan, portanto] já está na psicanálise há quase o tempo bastante para poder dizer que logo terá passado a metade da vida a escutar. . . vidas, que se contam, que se confessam. Ele escuta. [Depois: passagem ao "eu" (je] vindo tardiamente pois um pouco impudico. ] Escuto. Dessas vidas que, portanto, há quase quatro septênios escuto se confessarem à minha frente, não sou nada para pesar o mérito [sublinho] . E um dos fins do silêncio que constitui a regra de minha escuta é justamente calar o amor. Assim, não trairei seus segredos triviais e sem iguais.
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Lemos bem: o analista cala o amor. E recusa passar por perito36 • Dois anos antes, Lacan havia precisado a colocação em jogo desse nada no lugar do psicanalista: Pois se o amor é dar o que não se tem, é bem verdade que o sujeito pode esperar que ele lhe seja dado, j á que o psicanalista nada mais tem a lhe dar. Mas nem mesmo esse nada ele lhe dá, e é melhor [ ...] 37 •
Entre 1950 e 1960, a afirmação mudou um pouco em relação à "ver dade revelada" do amor no presente excremencial. O amor não é mais dom de um objeto símbolo, mas dom daquilo que não se tem. E o psicanalista reserva a esse dom um acolhimento diferente daquele da mãe. Ali onde esta felicita a criança, mostrando-lhe ludicamente que fica feliz com tão mara vilhoso presente (em outras palavras, ali onde ela faz intervir a balança), o psicanalista por sua vez se abstém.
CONQ!JISTAS Em Bruxelas, logo depois de ter dito o que acaba de ser relatado, Lacan prossegue: "Mas há algo que eu queria mostrar. Nesse lugar, desejo que minha vida acabe de se consumir. . . " . A citação deve ser interrompida, uma vez que os católicos viram bem a importância dessa declaração, ao ponto de ter feito dela o título da primeira conferência. Lacan lhes anunciava nesse dia que desejava morrer em sua poltrona de analista. Alguns, incentivados por certas afirmações feitas em Televisão ( I 973), não terão muita dificuldade para ressaltar essa consumição in loco de sua vida como sendo o ato de um santo. Como não me identifico nem com o Vaticano nem com suas perícias, nada sei disso. Será mais heurístico aproximar essa declaração do mito da mão que põe fogo na lenha: 36 Sobre a questão psicanalítica da perícia e para uma abordagem menos abrupta do problema, poderemos nos reportar ao excelente livro de Adam Phillips: Le pouvoirpsy, Paris, Hachette, Littérature, 200 l . 37 Jacques Lacan, Écrits II, Paris, Le Seuil, coll. "Points", 1999, p. 95 .
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Que estranho calor essa mão deveria trazer consigo para que o mito fosse verdadeiro, para que, à sua aproximação, brotasse a chama pela qual o objeto pega fogo, milagre puro [ . . . ] ela é a imagem mais ideal, é um fenômeno sonhado como o do amor. Todos sabem que o fogo do amor só queima em silêncio, todos sabem que a viga úmida pode por muito tempo contê-lo sem que nada disso seja revelado fora, todos sabem, para tudo dizer, o que cabe
no Banquete ao boboca mais gentil articular de maneira quase irrisória, que a natureza do amor é a natureza do úmido [ . . . ) 38 •
Uma lenha que se inflama flamba; ela não se consome "em fogo bran do". " Consumir algo, destruí-lo progressivamente, notadamente pelo fogo" (dicionário Robert). Segundo sentido: "consumir alguém, apossar-se de todo seu ser, atormentá-lo" . Consumir (de cumsumere) e consumir (de consummare) são dois termos diferentes. Cum "com", sus "si", emere "pegar, comprar" . Literalmente, escreve o Dictionnaire historique de la langueftançaise: "tomar inteiramente" e, "pego como mal", "destruir, notadamente pelo fogo" . Con "com", summa, "soma": literalmente "fazer o total de", em língua clássica "cumprir em seu termo, em seu acabamento". As duas palavras deram lugar a um belo pas-de-deux ao longo dos séculos, por vezes misturando-lhes o sentido, ou então um (consumação) expulsando o outro (consumição). A lenha psicanalista não se inflama, seja qual for a intensidade. da chama analisante que a solicite; em compensação, ela se consome, e até se tornar o resto de si mesma. A erótica amorosa da consumição faz de Lacan vizinho de Bataille, ao qual, aliás, devemos, e portanto ele deve, o uso moderno da palavra "consumição39 " , presente por um tempo no século xv (com o sen tido de "dissipar, esgotar"). Em Bataille, a consumição oferece uma saída ao excesso de energia que está presente tanto na natureza (a energia solar, que é abundante) quanto nele, Georges Bataille, como em qualquer um. Logo, convém gastar essa energia em excesso, esbanjá-la de uma boa maneira (que, 38 J . Lacan, Le tramfert dam sa disparité subjective, sa prétendue sit11atio11, ses excursiom techni ques, versão Stécriture (doravante: A tra nsferência . . . ) disponível no site da Escola Lacaniana de Psicanálise, sessão de 28 de j unho de 1 962. 39 O texto de referência é de 1 943 (L'expérience i11térie11re), ao qual convém acrescentar La part 11u111dite, publicado por Minuit, em 1 967, editado por Jean Piei, cunhado de Lacan .
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por exemplo, não sej a a guerra) . Lacan entende "consumição" no sentido de Bataille? Essa questão por si só mereceria um estudo. Em Bruxelas, Lacan sublinhou o caráter excepcional de sua declaração, tendo em vista o silêncio em que ele havia decidido se manter. O que ele guarda de seus vinte e oito anos de prática? É essa interrogação, se posso dizer inocente, e até esse escândalo que, creio, ficará a palpitar atrás de mim, como um dejeto, no lugar que terei ocupado e que se formula mais ou menos assim: entre esses homens, esses vizinhos, bons ou incômodos, que estão lançados nesse assunto aos quais a tradição deu nomes diversos, dentre eles o de existência, é o último chegado na filo sofia - nesse assunto, do qual diremos que o que ele tem de claudicante é bem o que resta mais afigurado, como se explica que esses homens, suporte todos e cada um de um certo saber ou suportado por ele, como se explica que esses homens se abandonem uns aos outros, vítimas da captura dessas miragens pelas quais a vida, jogando fora a oportunidade, deixa fugir sua essência, pelas quais a paixão é jogada, pelas quais o ser, no melhor dos casos, só atinge essa pouca realidade que só se afirma por nunca ter sido decepcionada?
Estaríamos aqui às voltas com o que terá sido a única questão deste homem, Jacques Lacan, que se fez, psicanalista, lenha não flamej ante (o que seu flamej ante dandismo cobria) , amante úmido, amante silencioso? Essa lenha que se consome sem se inflamar metaforiza (mas trata-se bem de uma metáfora?) a j usta resposta analítica ao transmor? O analisando não obtém assim o amor que não se obtém? Nenhuma dúvida que a existência de cada um é claudicante, mas a questão de Lacan é mais precisa, e revela um for midável espanto : embora cada um sej a depositário de um saber e suportado por esse saber, eis com frequência perdida a oportunidade de esse saber se saber. Questão : o amor que não se obtém, o amor Lacan, seria essa figura do amor que deixaria aberta a possibilidade de esse saber se revelar? Como seria possível? Decididamente sim, os católicos terão tido o dom de despertar a verve de Lacan . . . até a confidência. A minima, essa confissão desvela de onde o desej o do doutor Lacan de exercer a psicanálise alçou voo : de um
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p etardo, diríamos, se a expressão estar em cólera [em francês, "em petardo"] assim permitisse. Desejo de ser analista, igualmente desejo do analista, pois os dois, veremos, nele são apenas um único e mesmo desejo. Aos católicos Lacan anunciou outra conquista, a não ser que seja m elhor dizer que ele lhes jogou na cara outra vitória da psicanálise sobre o am or: não mais a revelação de seu caráter narcísico, pois a essa descoberta (não exatamente ela) eles podiam se acomodar e seus teólogos a isso quase tinham se dedicado, mas outro e mais dificilmente católico-solúvel achado, o da ambivalência. É este o mandamento do amor pelo próximo40 e contra o qual Freud tem razão de parar, desconcertado por sua invocação por aquilo que a experi ência mostra: o que a análise articulou como um momento decisivo de sua descoberta é a ambivalência pela qual o ódio segue como sua sombra todo amor por esse próximo que é também de nós o que é o mais estranho.
Lacan vai acabar zombando da ambivalência4 1 , remetendo esse ter mo à "boa educação psicanalítica" e trocando-o pelo termo "amódio". Por enquanto, ele só diz a verdade pela metade; não assinala aos ouvintes que amor e ódio só funcionam juntos com a ignorância, que esses três termos são indissociáveis e formam o que chamarei aqui, condensando ·várias afir mações e a despeito de algumas reservas4 2 , seu ternário búdico das paixões do ser. Lemos, em "A direção da cura e os princípios de seu poder": "O 4 0 Lacan não rejeita o amor pelo próximo, mas o recoma a seu jeito e o subverte: "Consegui apenas fazer entrar na mente de vocês as cadeias dessa topologia, que põe no coração de cada um de nós esse lugar hiante de onde o nada nos interroga sobre nosso sexo e sobre nossa existência? É esse o lugar onde temos de amar o próximo como a nós mesmos, porque nele esse lugar é o mesmo". 41 J. Lacan, " Introdução de Scilicet ao título da revista da Escola Freudiana de Paris", Scilicet, n 1, Paris, Le Seuil, 1968, igualmente in PTL; Mais, nindn, sessão de 13 de março de 1973. 42 Já presente em Roma, em 1953 , onde sua origem búdica é afirmada O. Lacan, Écrits !, Paris, Le Seuil, 1969, p. 192), vamos encontrá-lo em 1958, ou seja, dois anos antes das confe rências na Bélgica. "A roda da vida" comporta, em seu centro, três figuras de animais liga das entre si. Desses três venenos básicos da "vida humana" (Snmsnm) Lacan faz... paixões! Dod-chngs (o galo) é não o amor, mas o desejo, a avidez, o apego; Zhe-sdnng (a serpente), a aversão, o ódio, a agressividade; e g Ti-mug (o porco), a ilusão, a ignorância, a confusão.
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que é assim dado ao Outro para preencher e que é propriamente o que ele não tem, já que a ele também o ser falta, é o que se chama o amor, mas [sublinho] é também o ódio e a ignorância43 ". O "mas" assinala o compa nheirismo do amor com o ódio (eis a ambivalência) e a ignorância. Esse companheirismo é uma objeção suficiente à ideia de que o amor possa so zinho regrar a questão da falta a ser, em outras palavras, do desejo. Algumas linhas mais adiante, eis de novo o ternário das paixões do ser: " É a criança que nutrimos com mais amor que recusa a comida e joga com sua recusa como com um desejo (anorexia mental). Confins onde se entende como em nenhum lugar que o ódio dá o troco do amor, mas onde é a ignorância que não é perdoada". A anorexia é ter sido entupido por excesso de amor. Talvez o ódio responda a esse excesso, mas a anorexia não se limita a esse jogo amor ódio, e Lacan precisa o ponto onde o ódio pode encontrar sua resolução, isto é, no terreno religioso44 , o do perdão das ofensas. O excesso de amor não sabe o que ele ambiciona, o que ele realiza, o que ele força; desconhece a ofensa que ele é. Para sair de seu martírio, o anoréxico deve decidir perdoar uma ignorância para com o amor. Perdoar a quem? A um personagem que, amando-o em excesso, não é, portanto, sábio em amor. Vamos chamá-lo o contra-analista. Talvez seja conhecida a observação clíni ca de Lacan: o anoréxico, longe de não comer, come o nada. Ao excesso de amor encenado pelo contra-analista opõe-se a parcial abstenção quanto ao amor de que dá prova o analista. O amor, no contra-analista, não é úmido mas flamejante, não silencioso mas gritante. O contra-analista não sabe "calar o amor". Calar o amor não é não amar, e Lacan pôde dizer, na opor tunidade, que tinha uma má previsão para um psicanalista que não fosse habitado por algum sentimento em relação ao analisando. O contra-analista surge como o artesão determinado de um amor que é obtido, mediante o qual só o extremo a que por vezes se dedica o anoréxico é suscetível de fazer com que ele saiba que, ao se querer à toda força obter o amor, não se o obtém, pode-se chegar a se tornar a si mesmo odioso.
43 44
J. Lacan, Écrits II, op. cit., p.
1 04- 1 05 . Ver Rudolph Bell, L'ttnorexie sainte. ]elÍne e t mysticisme du Moyen Âge à nos jours, Paris, PuF, 1 994 .
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As duas reivindicações de conquista da análise no terreno do amor, en un ciadas na Universidade Saint-Louis, deixam-se articular. Se o amor como nardsico veicula uma enganação, a abstenção ativa e relativa do psicanalista para com o amor encontra algum motivo, se não sua razão, no saber dessa enganação; assim, ela pode permitir que esse saber surja da anál ise, da mesma forma que a conivência do amor e do ódio (este último sendo abordado de outro modo que a partir do excesso de amor). Lacan não reservava essa abstenção apenas à sua prática de analista. Encontramo-la, não menos em ação, em suas afirmações públicas. Acontecia-lhe até assinalá-la, por exemplo no " Discurso de Roma, resposta às intervenções": Tanto que no Alea jacta est, que soa a todo instante, não são as palavras: " Os dados rolam" , que é preciso ouvir, mas bem antes para novamente dizê-lo com o humor que me liga ao mundo: "Tudo está dito. Chega de falar de amor4 5 " .
É evidente que nem tudo está dito, em 1953, e calá-lo é apenas um semidizer. É que convém, como Lacan vai escrever vinte anos mais tarde em sua "Carta aos italianos", "fazer o amor mais digno que a falação em profusão que ele constitui nestes dias". Outro grito de conquista diz respeito não ao amor de transferência, mas ao amor como transferência. A dissociação da transferência e da repeti ção terá permitido encarar a transferência, e portanto igualmente o amor, como um fenômeno específico e referi-lo ao sujeito suposto saber. Se aqui há conquista, o que afirma Lacan sem dizer demais seu teor, ela dirá respeito à articulação do amor e do sujeito suposto saber.A dissociação da transferência e da repetição parece ir contra a observação. No entanto, o rebatimento da experiência da transferência sobre a repetição inevitavelmente mergulha essa experiência na problemática de uma primeira satisfação em busca da qual se devota o sujeito sem aliás jamais obtê-la, e com razão {nunca se encontra, pura lógica contábil, a primeira vez como primeira vez). Essa problemática é aquela, freudiana, do objeto de amor como objeto substitutivo. Freud, não 45 J acques Lacan , Autres écrits, Paris, Le Seuil, 200 1 , p. 1 64 .
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sem reticências e dificuldades, quis fazer do par amor ódio uma pulsão. O que não convém a Lacan, que faz da pulsão o que seremos levados a chamar um "outro do amor" (houve vários, ao longo dos seminários). Rebater o amor sobre a repetição deixa em suspenso o amor como paixão do ser (a ser entendida também como paixão de ser... de ser isto ou aquilo, que agradaria) ou, para dizer com as palavras do fim de Mais, ainda, "a verdadeira amor46 " como abordagem do ser.
PAIXÕES DO SER Em "O aturdito" ( 14 de julho de 1972), as observações sobre o amor vêm após a definição do heterossexual como "aq uilo [sublinho] que ama as mu lheres, seja qual for seu sexo próprio" e são talvez trazidas pela incidência do amor nesta definição - do amor e não do desejo, nem tampouco do gozo: Vivemos o reinado do discurso científico e vou fazê-lo sentir. Sentir dali onde se confirma minha crítica, mais acima, do universal do fato de "o homem ser mortal". Sua tradução no discurso científico é o seguro de vida. A morte, no dizer científico, é assunto de cálculo das probabilidades. É, nesse discurso, o que ela tem de verdadeiro. Entretanto, em nosso tempo, existem pessoas que recusam fazer um segu ro de vida. É que querem da morte outra verdade que outros discursos já asseguram. O do mestre, por exemplo, que, segundo Hegel, seria fundado na morte tomada como risco; o do universitário, que jogaria com memória "eterna" do saber. Essas verdades, como esses discursos, são contestadas, por serem contes táveis eminentemente. Outro discurso se revelou, o de Freud, para o qual [sublinho] a morte é o amor.
'16 "A abordagem do ser pelo amor, não é aí que surge o que faz do ser aquilo que só se sustenta por se malograr?" (seminário de 26 de junho de 1973).
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Temos aí uma classificação de quatro relações possíveis com a morte: ao discurso da ciência correspondem uma morte provável e uma vida "asse gurada"; o discurso do mestre (Hegel) joga a morte como risco; o discurso universitário ignora a morte graças à eternização do saber; para o discurso analítico, a morte é o amor. ''A morte é o amor": não há, em todo caso a priori, nenhuma razão para aceitar como verdadeira a proposição recíproca: " O amor é a morte" . Podemos duvidar que o Freud da segunda teoria das pulsões (pulsão de vida/pulsão de morte) tivesse oferecido sua caução ao enunciado que lhe é passado por Lacan. Mas, justamente, a problemática em causa se desdobra sobre fundo de clivagem: de um lado, a questão do gozo, do outro a questão ontológica. O discurso emprestado a Freud está marcado por um insólito "para o qual" (esperaríamos antes "segundo o qual", ou "para quem"). É para o discurso psicanalítico que a morte é o amor. Um "para" que portanto não quer tanto dizer "segundo" quanto afirmaria algo como uma intenção e até um serviço: a morte é o amor, ela serve assim ao discurso psicanalítico, ela assim contribui para sua instauração. Essa classificação vai em seguida dar seu quadro a um novo grito de conquista sobre o amor. Os analistas são tomados à parte, eles que rejeitam o fardo do inconsciente e a decadência que ele lhes anuncia: "Que seja sentido pela lavagem das mãos pela qual afastam deles a dita transferência, ao recusar o surpreendente acesso que ela oferece sobre o amor". Que acesso? . Não é pre cisado. Em que tomar o partido de identificar a morte ao amor, o partido desse discurso que suporta sozinho a hipótese do inconsciente, ofereceria um acesso surpreendente "sobre,, o amor.� Outros gritos de conquista, eles também ligando amor e transferência, vão um pouco suspender o enigma. Em 7 de outubro de 1973, quase um ano depois de " O aturdito", Lacan escreve [ ... ] que só há comunicação na análise por uma via que transcende o sentido, aquela que procede da suposição de um sujeito ao saber inconsciente, ou seja, à cifração. O que articulei: do sujeito suposto saber. É por isso que a transferência é amor, um sentimento q ue aí assume umtt forma tão nova que nele introduz a subversão, não que seja menos ilusória, mas que se dá um parceiro que tem a sorte de responder, o que não é o caso
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nas outras formas. Recoloco em jogo a boa felicidade, exceto que, essa sorte, desta vez ela vem de mim e devo fornecê-la. Insisto: é amor que se endereça ao saber. Não desejo [ . . . ] 47 •
Há novidade no sentimento amoroso uma vez que ele se constitui como transferência. Desdobrada em cinco pontos, a tese seria a seguinte: 1) há diferentes formas do sentimento amoroso; 2) sua forma é nova quando ocorre como transferência; 3) por ser nova, nem por isso é menos ilusória que as outras formas possíveis; 4) sua novidade, sua originalidade, sua singularidade se devem ao parceiro que ela se dá; 5) há aí uma sorte, que depende desse parceiro, de sua resposta. Menos de um mês depois (2 de novembro de 1973), Lacan retomará essa afirmação numa intervenção no dito congresso, aparentemente sem humor, "da Grande Motte*": Pode haver pela análise comunicação por uma via que transcenda o sentido, que proceda da suposição de um sujeito ao saber inconsciente, isto é, à cifra ção? É dali que surge o que articulei como fundamento de um novo amor: o sujeito suposto a esse saber, saber inconsciente. [ . . . ] Eu disse que era amor que se endereçava ao saber; eu não disse desejo, porque, no que se refere ao
Wisst rieb, embora seja Freud quem tenha feito a bobagem, podemos voltar.
A ausência de desejo de saber é aqui afirmada. Para entender-lhe a originalidade e a atualidade, vamos nos reportar a certas indicações retoma das de uma obra assinada por Giorgio Agamben e Valeria Piazza, mesmo arriscando julgar intempestivas certas afirmações feitas. Assim, lemos que, contra a opinião de Koepps, Binswanger e Jaspers, Heidegger estava "per feitamente consciente da importância fundadora do amor48 ". Mas no que 47 Jacques Lacan, "Introdução à edição alemã dos Escritos". Os alunos, em Paris, só vão tomar conhecimento dois anos mais tarde em Scilicet, nº 5. * La Grande Motte: balneário do sul da França. Grande motte também quer dizer "grande monte de terra". (NT ) 48 Giorgio Agamben, Valeria Piazza, L'ombre de l'amo111: Le concept d'amour chez Heidegger, Paris, Rivages/Payot, 2003, p. 12.
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nos baseamos para concluir assim? Em dois enunciados: primeiramente, uma nota de Ser e tempo, em que Heidegger faz sem comentário duas cita ções de fato notáveis de Pascal e Santo Agostinho 49 , ambas considerando 50 0 am or como fundador (da mesma forma que em Marion ) . Em seguida, um a con versa de Heidegger com Scheler, que Heidegger relata em 1 928, do is anos após sua separação de Hannah Arendt, a grande paixão de sua vida (dies nun einmal die Passion seines Lebens geweses sei) . Que uma paixão amorosa surja assim entre um professor e uma de suas alunas vale indício de que o saber intervém no amor. Eis o que dizia Heidegger, após suas conversas com Scheler: Scheler foi o primeiro a mostrar, em particular no ensaio Liebe und Erkenn
tnis, que os comportamentos intencionais são de diferentes naturezas, e que, por exemplo, o amor e o ódio fundam o conhecimento (Liebe und Hass das Erkennen fundieren) . Scheler retoma aqui motivos presentes em Pascal e Santo Agostinho 5 1 •
Nada proíbe ler nessa afirmação um distanciamento: "Scheler nada inventou, e tudo isso não é muito assunto meu" . Daí a supor Heidegger "perfeitamente consciente da importância fundadora do amor" há um fosso que evitaremos transpor 5 2 • Por outro lado, a indicação aqui fornecida 49 Pascal: "Vem daí que, falando das coisas humanas, diz-se que é preciso conhecê-las antes de amá-las; a expressão passou a ser provérbio. Os santos, ao contrário, falando das coisas divinas, dizem que é preciso amá-las para conhecê-las, e que só se entra na verdade pela ca ridade, e disso fizeram uma das suas mais úteis sentenças". Santo Agostinho: "Non i11trat11r i11 veritatem, 11isi per charitatem" . 5° Cuja originalidade não está portanto ali. Onde, pois, situá-la? No fato de que Marion res ponde, em ato, à crítica que Karl Lõwith endereçava àqueles que notavam que não havia amor em Heidegger. Lõwith dizia justamente (Agamben o relata na página 1 0 de seu texto) que essa crítica permanece vá enquanto não for substituída a analítica do Dasei11 por uma analítica centrada no amor. Exatamente o que fez Marion. 51 G. Agamben, V. Piazza, L'o mbre de l'nmo111; op. cit., p. 1 1 - 1 2. 52 Outra conclusão problemática (p. 40): "O ódio e o amor são assim [sublinho] as duas Gm11dweisen, as duas guisas ou maneiras fundamentais nas quais o Dasein experimenta o Da". Intempestiva, em quê? Agamben ressalta duas observações do Curso sobre Nietzsche, em 1 936: 1 ) As paixões são as "maneiras fundamentais" ( Gmndweisen) como o homem experimenta seu Da; 2) O amor e o ódio são paixões, e não afetos. Silogisticamente, a coo-
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é preciosa para entender a originalidade do passo efetuado por Lacan ao ir buscar no budismo seu ternário das paixões do ser. Enquanto em Agosti nho, Pascal e hoje Marion o amor está no fundamento do conhecimento, enquanto com Scheler o amor não é mais o único a exercer essa função, mas se vê enfeitado de seu comparsa, o ódio, Lacan rompe com essa proble mática acrescentando um terceiro termo, a saber, a ignorância. Ele escreve: "Com efeito, a ignorância não deve ser entendida aqui enquanto ausência de saber, mas, em igualdade com o amor e o ódio, como uma paixão do ser; pois pode ser, a exemplo deles, uma via onde o ser se forma 53 " . Seu ternário impede fazer apenas do amor (e do ódio) um caminho do conhecimento. Nenhum caminho leva do conhecimento ao ser, e especialmente não o do amor. No lugar do conhecimento vem um branco: ➔ conhecimento ➔ Ser SANTO AGOSTINHO, Amor Pascal Amor, ódio ➔ conhecimento ➔ Ser SCHELER Ser Amor, ódio, ignorância ➔ LACAN A negativação do conhecimento (por assim dizer) rompe sua pretensa conivência com o Ser. Que haja, no ser falante, uma paixão pela ignorância, companheira do amor e do ódio, assinala por si só que a questão ontológica (a do "quem sou? ", que é, em e segundo a análise, a própria questão do narcisismo) não pode ser resolvida pelo saber, por aquilo que seria um mais de saber ou um saber mais bem ajustado. O assunto não é saber, mas ser e, paixão pela ignorância obriga, saber... suposto. Em outras palavras, é uma mesma veia que Lacan segue quando acrescenta a ignorância à dualidade scheleriana do amor e do ódio e quando dá esse passo ao lado em relação ao saber quando diz que não se trata, para a questão ontológica, de um saber que valeria por seu conteúdo, talvez até que se saberia ele mesmo, mas de uma suposição de saber, da suposição de um sujeito a esse saber
clusáo tirada por Agamben se impõe. Pode-se, por isso, desprezar que Heidegger não tenha precisamente concluído assim? H ] . Lacan, Écrits, Paris, Éd. du Seuil, 1966, p. 358. Doravante: Écrits, 1966.
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su p ost o. Logo, seria este o obj eto suscetível de suscitar o amor, a estranha in te rs ubj etividade amorosa. E seria esta a novidade que a psicanálise teria in tro duzid o em relação ao amor. Nem por isso é dizer que essa novidade não p erm anece depositária de opacidade. Quatro anos mais tarde, em 30 de março de 1 97 4, em Roma 54 , Lacan lan ça um novo grito de conquista sobre o amor: O que ressaltei na função da transferência é isso, é isso a verdade, a razão do amor transferencial, é que o analista é suposto saber. [ . . . ] e, sem a análise, não se saberia o que o amor deve a essa suposição. Graças à andlise sabemos - é um p equeno passo, hem? (sublinho) .
Mesma observação que preceden temente. O que se sabe? Não é dito! De mais a mais, Lacan, logo antes , mencionou ele mesmo a falta de elucidação a esse respeito: Oferecer-se como objeto de amor: pois é bem disso que se trata na análise, não é? Perceber que, em nome disto, que você liga, que você cola à questão do saber, isso desencadeia o amor. Nunca isso foi realmente elucidado.
E a sequência do texto não acabará com o mistério. Que verdade sobre o amor vem a transferência, pois, trazer? O ouvinte italiano de Lacan terá apenas aprendido que o saber está metido no assunto. Mais atento, terá notado que se trata não tanto do saber quanto do suj eito suposto saber. Ainda mais atento, terá entendido que esse suj eito suposto saber deve bem ter algum laço, no exercício analítico, com o fato de que o analista colaria ao saber. O que é, pois, "colar ao saber" ? Não é precisado. Em 1 977, um derradeiro grito de conquista desloca um pouco a questão e coloca uma nova embora deixe no mistério sua espessura: " O que nossa prática revela, nos revela, é que o saber, saber inconsciente, tem uma relação com o amor 5 5 " . Que relação ? Outra problemática é aqui evocada, l4 J. Lacan, "Alia scuola freudiana" , in PTL, igualmente in Lacan in ltalia 1953-1978, op. cit. ll /d. , " Propos sur l'hystérie", in PTL, igualmente en Quarto, n º 2 , suplemento belga na Lettre mensuelle de l'École de la cause jiwdienne, 1 98 1 .
0 AMOR LACAN
que refere o amor ao encontro de dois saberes inconscientes. Ela só pode ser de outro modo abordada em seu lugar no estudo passo a passo que vamos fazer das afirmações sobre o amor nos seminários. É possível, por enquanto, ligar de certo modo a questão dessa relação àquela da posição que o analista é levado a ter por e no transmor? Vamos tentar com a ajuda da afirmação que introduz o ternário das paixões do ser. Tendo admitido que o encanto pessoal do analista "permanece um fator aleatório" nos sentimentos que o analista relaciona com a transferência, que há, portanto, ali algum mistério, Lacan prossegue: Basta recorrer aos dados tradicionais, que os budistas não serão os únicos a nos fornecer, para reconhecer nessa forma da transferência o erro próprio da existência, e sob três chefes que eles enumeram assim: o amor, o ódio e a ignorância56 •
Seria a tensão, tornada clássica, entre transferência e análise, se não fossem dois traços importantes: 1) essa tensão, aqui, faz-se carne com essas três paixões; 2) ela encara essas três paixões como se colocassem uma questão ontológica. O analista está às voltas com elas, embora até a interpretação lhe ofereça poucos recursos; ele pode e deve, segundo Lacan, calar o amor - o ódio igualmente, acrescentaremos, um duplo silêncio que supostamente permite a suspensão da ignorância. Como o analista pode posicionar-se como um melhor amado que, por exemplo e para chegar a um extremo, o contra-analista? Dispomos de várias indicações a esse respeito, uma delas, notadamente, que diz respeito a seu corpo. Durante a análise, o analista, dizem, se exclui como corpo; não é tão simples as sim, ainda que esse gesto participe de seu "calar o amor". Com efeito, as entrevistas ditas preliminares são próximas de um "confronto" e até de um "encontro de corpos", que não vai mais estar em questão depois 57, sim, exceto... no fim: 16 '
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J. Lacan, Écrits !, op. cit., p. !d. , . . .
011
19 1- 192. pior, transcrição Afi, sessão de 21 de junho de 1972.
P RÓ LOG O
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É na medida em que aquele que dá o suporte à transferência, que, ele, sabe de onde ele está partindo (não que lá esteja, ele sabe bem demais que não está ali, que ele não é o sujeito suposto saber) mas que é alcan çado pelo des-ser sofrido pelo sujeito suposto saber, que no fim é ele, o analista, que dd corpo [sublinho] ao que esse sujeito se torna sob a forma do objeto pequeno a.
Ler esse "dá corpo" como uma metáfora seria um erro. A separação que está em questão, fechamento da análise, é real. Entre o enfrentamento corporal das entrevistas preliminares e seu corpo tornado objeto a, o que será o modo de presença corporal do analista? Uma aparição (não faltam 58 referências literárias para apresentar o amado como uma aparição ) .
PREDILEÇÃO Esse percurso das promessas e declarações de conquista que pôde enunciar Lacan quanto ao amor deixa consigo diversas impressões . A mais imedia tamente sensível diz respeito à fragilidade de tais afirmações. A segunda é a surpresa de ter encontrado, no caminho, algumas confidências que compro metem a própria pessoa de Jacques Lacan. Prolongando essa segunda, a ter ceira se apresenta como uma intuição. Entrevejo aí, discretamente em ação, um certo pendor, uma certa preferência, a eleição de um certo amor. A fragilidade, antes de mais nada, que não é por certo um pecado em quem inventou o objeto a. Ela pode ser escorada. 1) A verdade do amor no presente excremencial não será confirmada: o amor encarado com dom daquilo que não se tem subverterá a pretensa "verdade" de um amor anal. 2) A afirmação do caráter narcísico do amor é portadora de um notável equívoco, já que "narcisismo" não tem o mesmo sentido em Freud e Lacan. 3) A ambivalência, como dissemos, será formalmente recusada. O amódio [hainamoration] por certo retomará por sua conta 58 Algumas delas estão repertoriadas em meu artigo " Do melhor amado", Paris, L'U11ebé1111e, nº 2 1, inverno 2003-2004 (retomado em Contre l'éternité. Ogawa, Mal/armé, Lacan, Paris, Epel, 2009, chap. 1v) .
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0 AMOR LACA N
o companheirismo do amor e do ódio, mas, como já o indica aquilo que, nesse neologismo, pede o "enamoramento" [énamoration] *, o amor ali permanecerá bem amplamente privilegiado, o ódio sendo objeto de menos atenções que o amor. 4) O amor como transferência parece, este, assegurado. Mas permanece problemático aquilo que essa identificação no entanto pede, ou seja: determinar a maneira como o sujeito suposto saber intervém nesse transmor, sua partida, seu {longo) curso, seu fim. 5) Mesma observação quanto à relação, apresentada como uma revelação, do amor com o inconsciente. Entretanto, essas frágeis reivindicações de conquistas sobre o amor dão lugar ao que se reconheceu ser da ordem da confissão. Essas confissões, por mais pessoais que tenham sido, não estavam fora do campo do trilhamento de Jacques Lacan. Daí resulta uma certa orientação lacaniana. Fazer-se lenha úmida que se consome e levar essa consumição até valer como a insígnia e a obra de toda uma vida, admitir-se como não sendo nada, retirar-se deixando para trás, sob a forma de um dejeto, a questão a um só tempo palpitante e escandalosa que animou toda uma vida, escolher calar o amor numa prática ela também eleita, esses traços encontram eco num ensino aparentemente deixado ao abrigo de toda consideração pessoal. Assim acontece com o privilégio dado ao amor extático às custas do amor físico. Ou ainda essa indicação sobre o que deve ser a resposta do psicanalista ao transmor, cuja convergência se percebe com a confissão desse nada que Lacan diz pessoal mente ser a seus anfitriões católicos: [ ... ] esse campo do ser que o amor só pode delimitar é aí algo do qual o analista só pode pensar que qualquer objeto pode preenchê-lo, que somos levados a vacilar sobre os limites em que se coloca esta questão: " O que és?" com qualquer objeto que entrou uma vez no campo de nosso desejo, que não há objeto que tenha mais ou menos preço que outro, e é aqui o luto em torno do qual está centrado o desejo do analista59 •
* Há, em francês, homofonia entre os dois neologismos. (NT ) 59 J. Lacan, A transferência. . . , sessão de 28 de junho de 196 1.
P RÓ L O G O
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O pessoal faz eco ao ensino; o ensino veicula uma distribuição pes soal do jogo. O que Lacan foi dizer na Itália uma primeira vez em 15 de dezembro de 1967 oferece um novo testemunho: Foi ao que eu quis conduzir, de uma erística da qual cada desvio foi objeto de um cuidado delicado, de uma consumação de meus dias dos quais a pilha de minhas afirmações é o monumento deserto, um círculo de sujeitos cuja escolha me parecia a do amor de ser como ele: feito do acaso.
Depois, uma outra vez, em 1974: Oferecer-se como objeto de amor: pois é bem disso que se trata na análise, não é?
A predileção dada a uma certa figura do amor dá conta de um fato que salta aos olhos à leitura de seus seminários. Com efeito, não se pode entender, exceto admitindo uma determinação intensa em dar lugar nítido, por que Lacan, durante vinte e sete anos, procurou afastar de seu trilha mento um número bem considerável de maneiras de amar. Cada uma foi convocada, situada, estudada, com, para acabar e a cada vez, esse resultado de que ela não podia corresponder à experiência psicanalítica ·do amor (a dele, em todo caso). Essa varredura (no sentido do analista de sistemas, mas também da empregada doméstica) foi considerável, e a lixeira ficou bem cheia. Enquanto Freud remetia suas próprias considerações sobre o amor a Platão, é o amor no sentido platônico que também vai ser posto de lado. Exit o amor como fazer um, o amor bicho de duas costas (de dormir*), exit o amor sexual, exit o amor como troca, exit também o amor platônico tal como Lacan o construiu ao inventar, leitor do Banquete, sua "metáfora do amor". Lacan não terá mais querido saber do amor cortês, nem desse amor guerreiro que fez na história tão constante carreira. Exit o amor eterno, exit o amor divino, exit - mas é mesmo necessário dizer? - o amor romântico, no
• Homofonia: bête à deux dos [de duas costas] e à dodo [de dormir]. (NT )
0 A M OR LACA N
qual Lacan nunca faz questão de se demorar. Exit o amor louco surrealista, exit o amor como "ser a dois". Exit o amor ilimitado e, última varrida, exit o amor dantesco. Essa arrumação para quê? Para que, num tempo julgado não comportar nenhuma válida, o amor possa receber sua regra do jogo60 , Explícito em Lacan, esse voto se prolonga neste outro: que assim "refloresça" o amor, esse amor Lacan que, bem entendido, Lacan não podia dizer tal. Logo, o que cabe à psicanálise? É o imaginário do belo que ela tem de enfrentar, e é em abrir a via para um reflorescimento do amor enquanto (a)muro, como eu disse um dia, escrevendo-o o objeto pequeno a entre parênteses mais a palavra "muro" - já que o (a)muro [ (a)mur] é o que o limita6 1 •
É um senhor que passou dos setenta anos que assim se exprime publicamente. Passaram-se mais de trinta anos hoje, que não diminuem muito a espécie de medo e tremor que me habita no momento de escrever as últimas linhas deste prólogo, nem o sentimento, não menos presente, de abrir a caixa de Pandora. No entanto, uma questão se impõe, quaisquer que possam ter sido no passado e quaisquer que sejam no instante ainda meus esforços para afastá-la. Vou calá-la? Devo prolongar o gesto de Lacan, sua discrição, seu silêncio em relação ao amor? Mas já circula, ainda que num círculo restrito, minha nomeação "o amor Lacan". Por isso não resta mais senão ir atrás das consequências. Esse pendor, essa preferência dada por Lacan a um certo amor não têm a ver com o misticismo? O amor Lacan, do qual um dos traços marcantes é dado pela fórmula "obter o amor que não se obtém", seria uma nova e inédita versão do amor tal como mostram, em termos por vezes menos velados, certos místicos? Se Jacques Lacan psicana lista tinha silenciosa e ludicamente dado acolhida às transferências de que era e se fazia objeto, ali ocupando um certo lugar que resta definir, mas ao qual só o misticismo ofereceria seu lugar, mil questões novas se colocariam, 60 Se acontecesse, se acontecesse de o amor se tornar um jogo cujas... cujas regras saberíamos [ ... ]" 0 - Lacan, Les non-dupes errent, transcrição Afi, sessão de 12 de março de 1974. Dora vante: Les non-dupes...). 6 1 Ibid. , sessão de 18 de dezembro de 1973.
P R Ó LOGO
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inconvenientes ou absurdas, que só serão bem parcialmente abordadas 62 pela presente obra, felizmente precedida pela de Jacques Le Brun e de alguns outros. Outros trabalhos, talvez, seguirão, que disporão de novos meios e materiais, notadamente da correspondência de Jacques Lacan, por enquanto não publicada. Montaigne: "Escrevo para poucas pessoas e para p ouco tempo".
62
J.
Le Brun, Le pur amour de Platon à Lacan, op. cit. ; Pierre Daviot, Jacques Lacan et /e se n timent religieux (Ramonville-Saince-Agne, Éres, 2006) ; Raymond Aron, fouir entre ciel et terre. Les mystiques da ns l'ceuvre de J. Lacan (Paris, l.:Harmattan, 2003) ; Sean Wilder, Un sujet sam moi (Paris, Epel, 2008).
CAP ÍTU LO 1
RU M O A U M A M O R S I M B Ó L I C O
M
ais de vinte anos após o falecimento de Jacques Lacan, nada parece mais justo ao leitor de seus seminários que a virada que ele enfim im primiu à verdade ao renomeá-la "varidade". De bom grado lhe dão razão: ele de fato, tal como reivindicava, trouxe algo de novo a cada uma das ses sões de seu seminário. Mas, sobretudo, só se poderá melhor saudar a pouco comum pe,formance tomando a medida da enrascada na qual ela mergulha 0 leitor. Pois, quase sempre, a novidade não é composta de empilhamentos de enunciados relativos a objetos sempre diferentes, um pouco como o ape ritivo, com suas degustações, é seguido da entrada, depois pelo prato dito "de resistência" (a quê?), depois pelo queijo, depois a sobremesa. Não, essa medíocre metáfora, mas que modula aquela, nutridora, de Lacan dizendo a seu público que ele lhe trazia feno, só convém muito parcialmente. Certas vezes, a novidade surge, sim, como sem precedente, e esses momentos dão ao percurso de Lacan seus pontos decisivos, daqui por diante relativamente bem identificados. Quase sempre, no entanto, ela tem o alcance de uma variação, como que musical, sobre um dado tema. Não é dizer que essas variações devam ser consideradas menos decisivas que as invenções que vêm inflectir quase o conjunto das afirmações {exemplo princeps: o ternário sim bólico imaginário real, inventado em 1953 e mantido até o fim). Mas elas colocam um problema específico, a um só tempo fácil de assinalar e difícil de tratar. Fácil de assinalar, principalmente porque a citação é tornada quase impossível ao leitor apressado: a afirmação variou tanto que está excluído formular qualquer enunciado que pretenda dizer exatamente o pensamento de Lacan. Nenhum é verdadeiro, tanto menos verdadeiro ainda porquanto o fio do discurso está povoado de antorismos e epanortoses. Difícil de tratar, pois a que, então, recorrer?
0 A MOR L A C A N
Foi bem tardiamente que Lacan ressaltou a incidência dessa variabi lidade. Ele assim fez inventando um neologismo que subvertia seu próprio conceito de verdade, aquele mesmo ao qual, no entanto, ele já havia feito sérias restrições à verdade (entendida como "semidizer"). Assim, vemos, com "varidade", a variabilidade marcar não mais apenas a verdade dos enunciados, mas a própria verdade: Seria preciso ver abrir-se à dimensão da verdade como variável , vale dizer daquilo que ao condensar assim duas palavras chamarei a varidade com um e minúsculo engolido, a variedade 1 •
Assim, vai se tratar não tanto da verdade quanto da varidade do amor. Mas como? A questão pode ser encarada de um modo pouco formal. Ou seja, quanto a uma dada temática, duas proposições sucessivas: A e B. Recolhê-las poderá produzir um enunciado que anota a passagem de uma à outra. Tal enunciado dirá, a minima: " Entre A e B, tal traço variou (foi suprimido, foi acrescentado, foi modificado, foi mais acentuado, foi mais ligado a tal outro traço, etc.)". Esse novo enunciado de passagem, J3, não está em Lacan; não é tampouco de Lacan no sentido em que Lacan o teria proferido ou escrito. Entretanto, não é tampouco da ordem do comentário: nada nele que, num outro sentido que acima, não esteja em Lacan ou não seja de Lacan. Nenhuma leitura, nem que seja pouco aplicada, dos seminários, das transcrições de conferências ou de outras intervenções, ou ainda dos escritos, pode ficar sem tais enunciados de passagem. De mais a mais, a importância deles é aumentada por uma situação específica à qual Lacan destinou seu futuro leitor (sua "enrascada") ao quase sempre se dispensar de assinalar ele mesmo as transformações que ele permanentemente dava às suas afirma ções. Se não se privou muito de anunciar uma novidade, de acompanhar com um toque de clarim sua chegada, de redizê-la ainda a posteriori, não se encontram muito nele enunciados de passagem - tais anúncios não os
1
Jacques Lacan, 'Tinsu que sait de l'Une-bévue s'aile à mourre" , conforme o seminário de Jacques Lacan, sessão de 1 9 de abril de 1 977, in L'Unebévue, n º 2 1 , Paris, I.:unebévue éd. , p. 1 1 6. Doravante: L'inm . . .
AMOR S I MBÓLICO RU MO A U M
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s ubstit uindo. Além disso, as transformações que valem autocorreções são silenciosamente trazidas. Daí, para o leitor, uma dificuldade, a mesma, aliás, que foi ressaltada em Karl Popper, a de que uma culpa mal colocada 2 reria levado a calar suas mudanças de opinião • De sua parte, Lacan teria tido como que necessidade de fabricar ouvintes colados à atualidade de sua afirm ação, sem cessar e dessa maneira impedidos de exercer sua atividade crítica. Sem cessar, ele terá encenado o adágio: "Quem quer ser seguido deve correr m ais rápido que os outros". Esse tempo passou. Seja, pois, � o enunciado que anota a transformação do enunciado A em B. A operação vai se reiterar: a análise da passagem de B a C trará o enunciado y, depois, a de C a D, Õ, e assim por diante. O que acontece? Um surfe lacaniano sobre Lacan. Um trajeto se desenha, feito de uma sequência de enunciados que são "dele" tal como em si mesmo a leitura o fabrica. Não "verdadeiramente dele" mas "varidademente dele". Há mais. Com efeito, só é possível empurrar para mais longe essa mínima formalização da varidade escrevendo uma nova linha acima daquela que está em cima, em outras palavras, formulando a série das proposições que transcrevem a passagem entre enunciados que, eles mesmos, já transcrevem uma passagem. O surfe se faz mais leve, mais aéreo. Entretanto, um obstáculo empírico o espera, já que, num dado momento, o do fim dos seminários, o dizer terá cessado de varitar. Eis, por enquanto, Lacan seminarista, num lugar situado primeira mente em sua casa, depois no hospital psiquiátrico, depois em algum canto oferecido pela universidade. O amor ali ocorre de maneira não regular mas que comporta, ao contrário, certos tempos fortes, os quais supõem outros momentos em que, às vezes de maneira espantosa, isso não está em questão - assim, em 195 8- 1959, em O desejo e sua interpretação. Os momentos em que o amor ocupa a frente da cena saltam aos olhos do mais rápido leitor: a apresentação do amor cortês em A ética da psicandlise (1959- 1960), a leitura do Banquete de Platão em A transferência. . . ( 1960196 1), seguido de um terceiro momento mais dificilmente qualificável, pouco identificável por um nome mas temporalmente situado a cavalo 2 George Steiner, Maftres et disci les, Paris, Gallimard, 2003, p. 174. p
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sobre os seminários . . . ou pior (1971-1972) e Mais, ainda (1972-1973), e, enfim, talvez, um quarto momento em que o amor, graças a um jogo de palavras, pela primeira vez vem como título de um seminário: L'insu que sait de l'unebévue s'aile à mourre (1976-1977). Quatro tempos marcados, portanto, pelo menos à primeira vista, mas cuja situação será modificada por uma leitura mais aplicada - a "boa lentidão" do topologista Pierre Soury. Além disso, nada diz que essa afirmação sobre o amor, presente à maneira de um hápax em tal seminário, não seja tão decisiva quanto os desenvolvi mentos mais escorados. Primeira surpresa, primeiro espanto, primeira mudança radical dessa leitura sem reticências: esteve decisivamente em questão o amor nos se minários bem antes que neles surgisse o amor cortês. Logo, uma primeira varidade do amor, que vamos descobrir diferente em relação a quê? Ao amor segundo Freud.
O AMOR DE TRANSFERÊNCIA RECON HECIDO COMO AMOR VERDADEIRO Constatar a variabilidade das afirmações de Lacan sobre o amor de modo algum proíbe o reconhecimento de certas constâncias locais. Dois traços apresentam esse caráter. O primeiro é freudiano, o segundo contesta, antes em silêncio mas de modo claro, Freud num ponto capital de sua teoria (pois em Freud, sim, há uma teoria do amor, pelo menos a afirmação de que tal teoria é possível e desejável). Primeira constância: a transferência é o amor - .o que se condensou em "transmor"; a segunda admite que esse amor é o amor-paixão. Essas duas constâncias implicam uma terceira, cujo teor logo será precisado. Seja a primeiríssima evocação do amor nos seminários. Ela se encontra em Os escritos técnicos. Ali já estão indicadas as duas constâncias ditas acima. Depois de ter dito "a transferência, isto é, o amor", Lacan prossegue: Nas Observações sobre o amor de transferência, Freud não hesita em chamar a transferência pelo nome amor. Freud elude tão pouco o fenômeno amoroso,
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passional em seu sentido mais concreto, que chega até a dizer que não há, entre a transferência e o que na vida chamamos o amor, nenhuma distinção essencial. A estrutura desse fenômeno artificial que é a transferência e aquela do fenômeno espontâneo que chamamos o amor, e muito precisamente o amor-paixão, são, no plano psíquico, equivalentes 3 •
Publicado em 19 15, "Observações sobre o amor de transferência" vale como um dos elementos sobre os quais a abordagem lacaniana do amor toma um apoio decisivo. Freud ali discute o caso, particular mas julgado típico, de uma paciente apaixonada pelo psicanalista, macho evidentemente. Freud de imediato reconhece a coisa "inevitável" e esse traço nada menos constituiu que o primeiro espanto dos psicanalistas suscitado pelo amor. Como esse dispositivo combinado que é o dispositivo psicanalítico pode, de maneira tão "inevitável", tão automática dirá até Lacan4 , dar lugar ao amor de transferência reconhecido por Freud, depois por Lacan, como amor verdadeiro? Aliás, é essa própria automaticidade do surgimento do amor na análise que terá primeiramente trazido a questão: trata-se bem de um amor verdadeiro? Logo, o que é o amor verdadeiro para poder assim ser automaticamente produzido pelo dispositivo analítico? A questão é nova, e os primeiros psicanalistas sentiram que uma luz inédita era lançada sobre o amor, notadamente sobre suas condições de possibilidade. Como fazer com a apaixonada paciente? Freud, não sem humor, e até com um efeito cômico que chega ao lado bonitinho, evoca de entrada, mas para em seguida afastá-las, três soluções possíveis: 1) o casamento, 2) a ruptura, ou 3) o estabelecimento de relações ilegítimas. Não sendo
l Jacques Lacan, Les écrits teclmiques de Freud, sessão de 1O de março de 1954, Paris, Le Seuil, 1975, p. 106. Doravante: Les écrits tech11iq11es . . . 4 J. Lacan, Les écrits techniques . . . , p. 163 e 194 . Ao dizer "automática" a produção d a transfe rência, Lacan acrescenta que não é o caso da Verliebtheid que, esta, reclama "certas condições determinadas pela evolução do sujeito". Mas, se a transferência é o amor, essa diferença desaparece, é até aí o enigma primeiro do surgimento do amor na análise. A Verliebtheit é definida como "o amor-paixão" em 7 de julho de 1954 e vista, neste mesmo dia, como uma miragem. Posteriormente, o caráter narcísico da Verliebtheit será sempre mais acentuado (em 6 de fevereiro de 1957), isso até uma apresentação da Verliebtheit que aproxima o amor da hipnose (7 de junho de 196 1 ).
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recatado, ele diz simplesmente essa terceira solução "compatível corn o prosseguimento do tratamento" e só a afasta ao apelar para a "moral burguesa" (o que não é uma razão muito válida, inclusive a seus próprios olhos), ou ainda para a "dignidade médica" (o que não o é muito mais, uma vez que o amor está às voltas, pelo menos em sua figura cristã, bern mais com a indignidade que com a dignidade - logo antes do sacramento da comunhão: "Senhor, eu não sou digno de ..., mas basta você dizer uma palavra e..."). Mas, sobretudo, Freud menciona essas três soluções corn o único fim de convidar o psicanalista a encarar essa escabrosa situação "sob um aspecto bem diferente". Ele sabe estar inovando ao escrever esse artigo, e chega até a declarar que essa situação de transferência fez o de senvolvimento da teoria analítica perder dez anos. Como ele inova? Ao considerar que "o amor da paciente é determinado pela situação analítica e não pelas vantagens pessoais de que ele [o psicanalista] possa se van gloriar 5 ". Assim surge a imprevista e incômoda novidade: uma situação precisa, que desencadeia "com certeza" o amor. Não se pode duvidar que haja aí um fio a ser agarrado, historicamente inédito. A paciente ama, e, no entanto, o psicanalista (pelo menos pretende) nada fez para seduzi-la, para sua "conquista" - uma palavra que, precisa Freud, não convém, no caso em questão. Mais exatamente, corrige-se, o psicanalista nada fez além de empreender o tratamento. E isso basta! A resposta do psicanalista então proposta por Freud tem a ver com a santidade. A santidade evoca, por certo, Televisão, em que Lacan apresenta o psicanalista como um santo, mas remete aqui mais precisamente a um chiste de Michel Foucault relatado por Mathieu Lindon: "Michel me disse um dia que o santo não é aquele que estende a face direita após a esquerda ter sido esbofeteada mas aquele que suporta um apaixonado quando ele mesmo não está apaixonado6 " . Michel se lembrava, então, de que assim dava novamente vida a uma problemática já presente em Aristóteles (voltaremos a isso)? Seja como for, é também o que vai propor Freud nesse artigo. Esse amor
� Sigmund Freud, "Observations sur l'amour de transfere", in La techniq11e psychanalytiq11e, trad. do alemão por Anne Berman, Paris, PUF, 1953, p. 1 18. 6 Machieu Lindon, Ma catastrophe adorée, Paris, PoL, 2004, p. 68.
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de transferência, de que ordem é, segundo ele? Relacionado à resistência ao tra tamento, ele joga de duas maneiras opostas. Leve, contribui para que a p aciente aceite o tratamento, favorece sua colaboração, sua "docilidade", sua aceitação das explicações que lhe são fornecidas. Mas vem inevitavelmente 0 mom ento em que o amor adota outro regime, mutação que Freud torna sensível pela imagem de um incêndio que ocorre durante uma representação teatral. O amor então é utilizado pela resistência, posto a seu serviço embora não sendo (Freud faz questão de precisar) uma criação da resistência. Eis, então, o analista "em desagradável postura", tanto são insistentes "os esforços da doente para se assegurar de que é irresistível, para quebrar a autoridade do médico ao abaixar este ao nível de um amado (durch seine Herabetzung zum geliebaten7) " . Podemos medir o caminho percorrido durante quase um século, notadamente após Lacan, até a repugnância hoje suscitada por esse detestável "abaixamento" do psicanalista "ao nível do amado". O analista, nessa situação, não deve bem antes elevar-se à dignidade de uma certa figura do amado8 ? E com certeza esse caminho percorrido permite hoje ler esse artigo de 1915 como um texto cômico. Logo, Lacan tem boas razões para afirmar, por um lado, que Freud confirma o amor de transferência com sendo um verdadeiro amor e, por outro lado, que esse amor é o amor-paixão (não que esse amor-paixão deva, a seu ver, ser oposto a um amor dito "normal" - dito por quem? -, muito pelo contrário; ao ocupar todo o campo, ele recusa a distinção de um amor normal e um amor patológico). Para falar a verdade, uma reserva poderia ser emitida sobre esse segundo traço, já que Freud, antes que intervenha o incêndio amoroso, menciona a incidência de um amor menos ruidoso, não exigindo a reciprocidade e... benéfico para a análise uma vez que apaziguado. No momento em que sua amiga Eva Rosenfeld pensava empreender sua análise com Freud, Anna Freud a previne:
S. Freud, "Observations sur l'amour de transfert", art. citado, p. 120. Na tradução do artigo "Sobre o mais geral dos rebaixamentos da vida amorosa", "rebaixamento" responde a um outro termo que, acima, Herabetz1111g, o abaixamento: Emiedrig1111g. Emiedrigen: "abaixar, humilhar, degradar, aviltar, domar". 8 Jean Allouch, "Ou meilleur aimé", art. citado. 7
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O A M OR L A C A N
Sabe, não há contradição alguma no fato de você fazer uma análise ali onde você preferiria apenas amar. Fiz igual e, talvez por essa razão, as duas coisas se tornaram para mim inextricavelmente ligadas. No fim, você vai perceber : é a única maneira de entrar em análise. Por enquanto, você está perturbada pelo sentimento de que ali onde você ama você gostaria particularmente de ser [uma] boa [pessoa] . Você verá que ser boa e estar em análise corre s pondem, afinal, ao mesmo9 •
Uma psicanálise, tão logo a começamos, por vezes surge de imediato como uma tal fornalha 1 0 (ela abre aqui a possibilidade - infantil - de ser md com papai) que não nos espanta muito que sejam postas em ação certas disposições suscetíveis de prevenir o incêndio. Eis, pois, Eva Rosenfeld rogada a considerá-lo como dito: não há contradição alguma, nem sequer tensão alguma entre amar Freud (como pai) e analisar-se com ele {versão hispanizante), ou ser analisada por ele {versão francesa). O que, segundo alguns, teria ocorrido com Anna Freud: em análise com seu pai, ela tinha a segurança prévia (Lou Andreas-Salomé lhe confirma isso, prova de sua não-evidência) de que essa análise não colocaria em questão o amor que ela tinha por ele. Está claro que, com Lacan, tais precauções estavam excluídas. Porém outra coisa ainda não convém a Lacan nesse artigo. Mais uma vez, embora até pareça se alojar sob o teto de Freud, Lacan está dizendo "sim e não" a Freud. Sempre em Os escritos técnicos, lemos: Da mesma forma, desde sempre a questão do amor de transferência esteve ligada, de modo estreito demais, à elaboração analítica da noção de amor. Não se trata do amor enquanto Eros - presença universal de um poder de ligação entre os sujeitos, subjacente a toda realidade na qual se desloca a análise - mas do amor-paixão, tal como é concretamente vivido pelo sujeito como uma espécie de catástrofe psicológica 1 1 •
Anna Freud, Lettres à Eva Rosenfe/d, 1919-1937, trad. do inglês e do alemão por Corine Derblum, Paris, Hachette, Littérature, 2003, p. 144 . 10 A palavra é d e Ferenczi: a "fornalha d a transferência". 1 1 J. Lacan, Les écrits techniques. . . , p. 129- 130.
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R S I M BÓLICO RU M O A U M A M O
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O u ainda: Vocês conhecem essa psicologia da vida amorosa já tão finamente desenvol vida por Freud. [ . . . ] Pois bem, vocês não podem deixar de ver a contradição que existe entre essa noção do amor e certas concepções míticas da ascese libidinal da psicanálise 1 2 •
Não se trata da "elaboração analítica da noção de amor" ou de "con cepções míticas [ . . . ] da psicanálise", mas de fato de Freud. Com efeito, este reconheceu que sua teoria das pulsões era de ordem mítica. Mas encontramos nele igualmente a tentativa reiterada de um entendimento, sob um mesmo conceito, do registro pulsional e do fenômeno amoroso (o par amor/ódio encarado como pulsional nos Três ensaios sobre a teoria do sexual, depois a segunda teoria pulsional opondo Eros e T ânatos). Freud toma esse conjunto num bloco e o refere a Platão. No prefácio à quarta edição ( 1920) dos Três ensaios, ele escreve o quanto "a sexualidade ampliada da psicanálise se apro xima do Eros do divino Platão" . Cinco anos mais tarde, em " Resistências à psicanálise", ele reitera: O que a psicanálise chama sexualidade não é de modo algum idêntico ao impulso que aproxima os sexos e tende a produzir a volúpia nas· partes geni tais, mas antes ao que é exprimido pelo termo geral e compreensivo [sublinho] de Eros em O banquete de Platão 1 3 •
Ou ainda, em seus Ensaios de psicandlise: " O 'Eros' do filósofo Platão coincide perfeitamente, em sua origem, suas realizações e sua relação com o amor entre os sexos, com a energia amorosa, a libido da psicanálise 1 4 " . Medimos a distância: Lacan jamais poderia ter falado de "energia amorosa" (liebes Kraft) , ter ligado esse qualificativo a esse subs12 lbid. , p. 1 4 5 . 1 3 S igmund Freud, Résultats, idées, problemes II, traduzido d o alemão por u m coletivo, Paris, PUF, 1 98 5 , p. 1 30. 14 S i gmund Freud, Essais de psychanalyse, traduzido do alemão por Pierre Cotet, And ré Bour guignon e Alice Cherki, Payot, coll . " Petite biblioatheque Payot", 1 98 1 , p. 1 5 1 .
O AMOR LAC A N
tantivo; a libido é nele a energia não do amor, mas do desejo. E jam ais tampouco do "amor entre os sexos" como de uma entidade regularmen te constituída. Nessas sessões de março de 1954, Lacan joga Freud contra Freud. Há, segundo ele, contradição "entre essa noção do amor e cer tas concepções míticas da ascese libidinal da psicanálise" . Contradição: a palavra é forte, ainda que a estenotipia, onde se lê "uma espécie de con tradição", tenha mais nuanças. Certo, algumas proposições dos Escritos técnicos parecem contravir a essa leitura de Freud. Esta, por exemplo (12 de maio de 1954): A libido aqui questionada é aquela cujas ressonâncias vocês conhecem, e que é da ordem da Liebe, do amor. É o grande X de toda a teoria analítica 1 5 • Lacan não está aqui, muito freudianamente, misturando libido e amor, libido e Liebe? Pode parecer; porém, concluí-lo seria errôneo, pois essa operação combina com a distinção não só de dois "níveis da libido", mas, pior ainda, de duas libidos, uma "libido primitiva" e uma "libido segunda" . Ora, Freud jamais terá sequer imaginado distinguir duas libidos. Logo, essa contradição que Lacan descobre nele, Freud nunca a viu. Em " Observações sobre o amor de transferêncià', os dois registros são ao contrário alegremente misturados - o que anuncia a dependência fiel, alguns anos mais tarde, da libido freudiana ao Eros platônico. Assim, evocando para recusar essa resposta do psicanalista que consistiria em colocar-se diante da paciente apaixonada como "campeão da pureza dos modos e da necessidade da renúncià', Freud escreve: Convidar a paciente, tão logo tiver feito a confissão de sua transferência amorosa, a sufocar sua pulsão, a renunciar e a sublimar não seria agir segundo o modo analítico, mas comportar-se de maneira insensata. Tudo então se passaria como se, depois de ter, com a aj uda de certas hábeis conj urações, forçado um espírito a sair dos infernos, nós lá o deixássemos de novo des cer sem tê-lo interrogado. Teríamos assim trazido à consciência as pulsões 15
J. Lacan, Les écrits tech11iq11es. . . , p. 203.
RU MO
A UM AMO R S I M B Ó L I CO
recal cad as, para, em nosso pavor, novamente provocar-lhes o recalque. [ ... ] Os dis cursos sublimes, como todos sabem, não afetam muito as paixões 1 6 • Não se entende em que esse flamejar do amor de transferência cor respon de ria a uma tomada de consciência das pulsões recalcadas! Ao amor, de reputação comum (é chamado cego), não é dada muita clarividência - é preciso nada me nos que o misticismo de um Platino para que igual virtude lhe seja outorgada. Freud se explica um pouco, mas à custa de um paradoxo. Ele in dica um dos vieses suscetíveis de comprometer a dissolução do amor de transfe rência, não, aliás, sem assinalar-lhe o limite e até a inconveniên cia. Seria valorizar, junto à paciente, como seu amor "não passa de uma reedição de fatos antigos, uma repetição das reações infantis". Mas, ele logo acrescenta, "é isso que é próprio mesmo de todo amor, e não existe amor que não tenha seu protótipo na infância 1 7 " . Se todo amor é uma reedição de um amor de criança, o que será, então, o amor de uma criança? Ou há paradoxo, ou será conveniente, a fim de evitá-lo, distinguir duas categorias de amores; mas, neste último caso, o amor de um grande (se tal coisa tem 0 menor sentido) não pode mais ser uma reedição idêntica de um amor de criança. E podemos aqui lembrar uma preocupação que teve Lacan de indicar que o amor de transferência é um fenômeno novo, sem equivalente no passado do analisando, traço que converge com sua recusa de encarar a transferência como repetição. N ão deixaremos esse texto de Freud sem ter assinalado um de seus elementos não levados em conta por Lacan, um detalhe também cômico, mas ostensivamente. Trata-se da metáfora da corrida de galgos, que Freud usa para indicar que o psicanalista não deve ceder aos convites amorosos da paciente: O analista não deve reproduzir a cena da corrida de galgos cujo prêmio consiste numa fieira de salsichas. Um espertinho, de brincadeira, bagunça tudo jogando no meio da pista de corridas uma única salsicha; os cães cor16 S. Freud, "Observations sur l'amour de transfere", are. citado, p. 12 1. 17 lbid. , p. 126- 127.
óo
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rem todos para cima e esquecem a corrida bem como a fieira de salsichas destinada ao vencedor 1 8 •
Assim, esse "espertinho" é o psicanalista que responde ao amor pelo amor. A colocação em jogo aqui de sua salsicha é conforme ao conceito de energia amorosa que mistura o amor e a libido. Ora, seguir essa metáfora leva a curiosas paragens. Os galgos sendo as pacientes, duas situações se apresentam. Ou o analista se terá feito espertinho, pondo em jogo su a salsicha além disso, em cujo caso nenhuma paciente terá acesso às salsichas da fieira e não sabemos muito qual delas (ou quais) devorará (devorarão) a perturbadora salsicha - a não ser que, na luta, elas acabem esquecendo a própria existência dessa salsicha que, pobrezinha, vai ficar à espera de um apreciador. Ou o analista se terá "comportado bem", mas, neste caso, uma única delas, ao sair de sua análise, poderia gozar de todas as salsichas da fieira. Brincadeira? Sim, mas que evoca certas práticas. E que, além disso, ressoará em Lacan quando este procurar situar o falo como o objeto amado para além até do objeto amado. Importa, por enquanto, a operação à qual se entrega Lacan. Falar de "contradição" corresponde a quebrar o belo conjunto da "energia amorosà', a afastar, desmembrando-o, o platonismo de Freud. O amor-paixão inter vém como operador desse gesto. É verdade que Freud o indica por certos traços, emprega até a palavra, mas nem por isso chega a identificar o amor de transferência ao amor-paixão. O que não deixava de ter lógica, uma vez que esse amor-paixão não é inscritível no eras platônico, o qual se limita a uma certa medida, exclui até, como se pode ler no Fedra 19 com a figura repelente do marinheiro, a concepção de um amor que passaria da medida. De onde vem para Lacan esse amor-paixão? Foram propostas, em introdução, algumas pistas. Entretanto, a questão se coloca: de sua própria experiência da transferência? Como analisando? Como psicanalista? Quem poderia dizer? Que perícia? Seja como for, não se pode aqui desprezar que essa experiência veio cruzar o amor tal como o viveram e o cantaram os
18 19
lbid., p. 1 28 .
J. Allouch, Le sexe du maftre.
L'érotisme d'ttpres Lacan, Paris, Exils, 2 0 0 l , p. 1 5 8- 1 6 1 .
AMOR S I MBÓL ICO RU MO A U M
s urrealistas. É nítida demais a proximidade entre o "amor louco" surrealista e esse amo r-paixão introduzido por Lacan em Freud como uma marca num tronco de madeira para que se possa passar ao lado. Há, entre o amor louco s urrealista e o amor de transferência versão Lacan, primeiramente esse traço comum do amor-paixão, mas também essa semelhança, que já foi ressalta da, entre a Aimée da tese de Lacan e Nadja; e ainda esta questão de André Breton que veremos ressurgir tardiamente em Lacan, a de saber que papel desempenha o acaso no encontro amoroso. Mas a história das influências sofridas ou buscadas por Lacan não é aqui decisiva. Restam estes dois traços: 1) a transferência é amor; 2) o amor é uma p aixão. Resulta da articulação dos dois que a referência freudiana ao amor platônico não pode ser retida. Logo, terceiro traço: a recusa do amor platônico, supostamente provedor de unidade (mito de Aristófanes em O banquete) . Ao reconhecer, com Freud, o caráter verídico (echte) do amor de transferência, Lacan vai encontrar em Freud outro apoio ainda. Dos Escri tos técnicos de Freud (cuja tradução em francês acaba de ser publicada em 1953), ele retém o caráter narcísico do amor, o que, tendo em vista seu ternário s. 1. R., corresponde a situar o amor no imaginário. No entanto, desde esse primeiro seminário, ele procura esticar o amor entre imagindrio e simbólico. É esta a primeira varidade do amor em Lacan; ela de imediato acarreta certas consequências. Em 17 de março de 1954, Lacan se propõe a identificar "a estrutura que articula a relação narcísica, a função do amor em toda sua generalidade e a transferência em sua eficiência prática20 " . Em 24 de março - citação que também mostra a recusa lacaniana do amor platônico - ele dirá: "Ou o amor é o que Freud descreveu, função imaginária em seu fundamento, ou então é o fundamento e a base do mundo". E, na semana seguinte, ele emite esta outra afirmação não menos clara e que dá o ponto a partir do qual ele vai aos poucos esticar o amor, desencravá-lo do imaginário: O amor é um fenômeno que acontece no nível do imaginário e que provo ca uma verdadeira subducção do simbólico, uma espécie de anulação, de
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J. Lacan, Les écrits tech11iq11es ... , p.
1 30.
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perturbação da função do ideal do eu. O amor abre a porta - como escreve Freud, que carrega nas tintas - à perfeição2 1 •
"Subducção", o termo designa o "mergulho da crosta oceânica sob uma placa litosférica adjacente" (Larousse). A etimologia é mais divertida, que confirma que não nos perdemos no caminho ao associar, à "subducção", . � de puxar,,, no figurado: "arrebatamento, extase . � ,, . u bauctto, "açao "seduçao J O francês antigo dispõe da palavra suduction, no sentido de "enganação", "ação de seduzir", eliminada, em seguida, em proveito de sedução. Lacan usa "subducção" no sentido geológico, moderno. O simbólico passa embaixo do imaginário quando, no imaginário, ocorre o fenômeno amoroso. Vem, em seguida, nessa mesma sessão, esta pascaliana observação:
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Essa coincidência do objeto com a imagem fundamental para o herói de Gcethe [trata-se dos Sofrimentos do jovem Werther, e lembraremos aqui a epidemia de suicídios à qual deu lugar a publicação desse relato] é o que desencadeia seu apego mortal. [ . . . ] É seu próprio eu [moz] que é amado no amor, seu próprio eu [mot] realizado no nível imaginário.
A afirmação anuncia o que será enunciado alto e forte em 7 de abril: "Estamos bem todos de acordo que o amor é uma forma de suicídio" . Com o que é possível conceber, ainda que não seja esta a visada, que retirar par cialmente o amor do registro imaginário terá por efeito colocá-lo a alguma distância do suicídio. Essas declarações criam dificuldade. Por que, então, em 3 1 de março de 1954 (citado acima), Lacan não convoca o eu ideal? Se for exato que amamos narcisicamente o próprio eu idealizado, não é essa instância que se impõe? Pois nada disso, é o ideal do eu, instância simbólica, que é requerido, e não o eu ideal, instância imaginária. Isso é que é decisivo, pois esse ideal do eu vai funcionar como o ponto pivô no qual poderá se apoiar o estica mento do amor, sua báscula parcial rumo ao simbólico. Dois enunciados 21 Ibid. , p. 1 62- 1 63 .
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dizem essa posição estratégica do ideal do eu. O primeiro também é de 3 1 de março de 1954: O Ich-ldeal, o ideal do eu é o outro na medida em que falante, o outro na medida em que tem comigo uma relação simbólica, sublimada [...]. O lch Jdeal, na medida em que falante, pode vir situar-se no mundo dos objetos no nível do Jdeal-Ich, ou seja, no nível em que pode ocorrer essa captação nardsica com a qual Freud nos enche os ouvidos ao longo desse texto. Pensem que, no momento em que essa confusão acontece, não há mais nenhuma espécie de regulação possível do aparelho. Em outras palavras, quem está apaixonado está louco, como diz a linguagem popular.
O segundo enunciado, de 5 de maio de 1954, dirá, ao inverso, como 0 ideal do eu, não rebatido sobre o eu ideal, pode dar lugar a um amor vertendo no simbólico: Inversamente, sempre que, no fenômeno do outro, surge algo que nova mente permite ao sujeito re-projetar, re-completar, nutrir, como diz Freud em algum lugar, a imagem do Jdeal-Ich, sempre que se refaz, de maneira analógica, a assunção j ubilatória do estádio do espelho, sempre que o su jeito é cativado por um de seus semelhantes, pois bem, o desejo volta no sujeito. Mas volta verbalizado. Em outras palavras, sempre que ocorrem as identificações objetais do Jdeal-lch, surge esse fenômeno para o qual chamei a atenção de vocês desde o início, a Verliebtheit.
Lembrança: de acordo com a lógica da varidade, que deixa aberta a possibilidade de "aquisições" serem posteriormente questionadas, nada assegura que Lacan, após certos passos, não tenha voltado a situar o amor como narc1s1co. Com essa primeira varidade do amor, Lacan pode ter a sensação de ter respondido à sua questão, de ter estabelecido o laço buscado entre amor e trans ferência. Dizer que, na situação de transferência, "se trata do valor da fala22 " (Lacan então não estica menos a transferência que estica o amor), acrescentar I
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•
J, Lacan, Les écrits techniq11es. . . , p. 2 5 5 .
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que o amor faz voltar o desejo "verbalizado" permite outorgar à fala uma posi ção-chave.A fala plena, resolutória, toma patente a articulação da transferência e do amor; vale como o acontecimento da fundamental comunidade dos dois. Assim, munido desse comum lugar entre transferência e amor que é a fala, Lacan pode propor uma explicação do surgimento quase automático do amor na análise. Eis em que termos ele fez isso em 12 de maio de 1954: A relação falada, flutuante, com o analista tende a produzir na imagem de si variações bem repetidas, bem amplas, ainda que sejam infinitesimais e limitadas, para que o sujeito perceba as imagens captadoras que estão no fundamento da constituição de seu eu [moi] . [ . . . ] Uma técnica assim produz no sujeito uma relação de miragem imaginária com ele mesmo para além daquilo que o vivido cotidiano lhe permite obter. Ela tende a criar artificial mente, em miragem, a condição fundamental de toda Verliebtheit. [ . . . ] O estado amoroso, quando acontece, é de modo bem diferente. Para isso é preciso uma coincidência surpreendente, pois ele não intervém por qualquer parceiro ou por qualquer imagem. Já aludi às condições máximas da paixão fulminante de Werther. Na análise, o ponto onde se focaliza a identificação do sujeito no nível da imagem narcísica é o que chamamos transferência.
Assim, é a própria regra fundamental que, ao fazer flutuar a fala ana lisante, convoca certas "imagens captadoras" no fundamento do eu [mot] do sujeito e, portanto, estádio do espelho obriga, "uma relação de miragem imaginária consigo mesmo" que seria como que um ponto de chamada para a Verliebtheit. E já é possível convocar aqui o apagamento do eu [mot] do psicanalista que, ele também, favorece o surgimento dessa "relação de miragem" do sujeito consigo mesmo, muito embora só vá estar em questão um ano mais tarde (25 de maio de 195 5).
E S CORAMENTOS E PERIGOS DE UM AMOR Q!)AS E S IMBÓLICO O esticamento do amor na direção do simbólico e o estabelecimento de uma articulação compreensível do amor e da transferência vão permitir
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ligar alguns termos ao amor, e assim dizer mais adiante seu teor, melhor desenhar-lhe a figura. Quais? Serão, sucessivamente: o pacto, o ser, ponto de fo calização do ternário lacaniano amor, ódio e ignorância (ao mesmo tempo) e, /ast but not least, o dom. Vem em primeiro "pacto", o pacto amoroso. Eis a frase que o introduz, em 5 de maio de 1954: A relação objetal deve sempre se submeter ao quadro narcísico e nele se inscrever. Ela certamente o transcende, mas de uma maneira impossível de ser realizada no plano imaginário. É o que faz para o sujeito a necessidade daquilo que chamarei amor. [...] Não há amor funcionalmente realizável na com unidade humana se não for por intermédio de um certo pacto [...] 23 •
Salta aos olhos a inconveniência desse amor "empactado" . A espécie de segurança, de estabilidade, de quietude, talvez até de garantia, oferecida pelo pacto não convém muito ao amor, menos ainda a esse amor que Lacan acabará chamando "amódio" . Que se saiba, nenhum pacto amoroso vem selar o transmor. E se, portanto, o amor devesse sustentar esse pacto, não se pode falar, como fazem Freud e Lacan, de um amor verdadeiro a respeito da transferência. O cômico é que, querendo dar um pouco de conteúdo a seu pacto amoroso, Lacan apela para a fala plena: "Você é minha mulher", em outras palavras, para o casamento no qual, com efeito, há pacto - se é que alguém, que se saiba, identifica o casamento e o amor. Quanto à declaração ' te amo" , el a de "eu te amo" , am . da que venha em resposta um "eu tam b em modo algum constitui um pacto; da mesma forma com a frase "sinto falta de você", tão notável em sua equivocidade - o sentido "você me perde", "você passa ao lado de mim" não sendo em geral aquele que é alegado. Sem parecer tomar cuidado com essa objeção, Lacan desenvolve sua ideia de um pacto amoroso. Em 2 de junho de 1954, ele apela para Sartre e, uma vez não é costume, em termos elogiosos. Desejar ser amado é dese jar alienar para si a liberdade do outro, não só que o outro se comprometa livremente, mas, mais ainda, que sua própria liberdade "aceite renunciar-se" . Daí esta declaração: 23
J. Lacan, Les écrits tech11iq11es . . . , p. 1 97.
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Se o amor estiver bem preso e enviscado nessa intersubjetividade imaginária, [ . . . ] , ele exige em sua forma acabada a participação no registro do simbólico, a troca liberdade-pacto, que se encarna na fala dada24 .
Objeção: o problema da alienação da liberdade no amor caracteriza-se por não ter precisamente nenhuma contrapartida num pacto, caso contrário não se entenderia em que o amor fica permanentemente marcado por essa inquietude que o segue como sua sombra. Ovídio: Res est solliciti plena timoris amor, "o amor é coisa cheia de terror inquieto" (trad. J. Pigeaud) . Em 30 de junho de 1954, o ser entra na roda, mas tomado como a ponta do ternário amor, ódio, ignorância. Essa articulação (opaca) do amor e do ser com certeza não é novidade, no Ocidente, é bem mais um topos. Em 1926, José Ortega y Gasset, meditando sobre o que seria "estar [être] verdadeiramente com o outro", precisava que "a palavra mais exata, mas técnica demais, seria: estar ontologicamente com o amado, fiel a seu destino, seja ele qual for 2 5 " . Por distinguir ser e estar, o espanhol [e o português] traz uma luz ausente no francês* . O estar em jogo no amor é aqui pensado como uma questão ôntica (esta,1 , e não ontológica (ser). Lacan: É na dimensão do ser que se situa a tripartição do simbólico do imaginário e do real, categorias elementares sem as quais não podemos distinguir nada em nossa experiência26 •
Do amor vai-se dizer que ele toca no ser uma vez que foi reconhecido participar do imaginário e do simbólico. Essas duas dimensões, já enquanto tais, orientam o sujeito para o que seria seu ser. A fim de fazer entender essa posição do amor entre imaginário e simbólico, Lacan constrói uma pirâ mide dupla, que ele chama um "pequeno diamante". Essa pirâmide talvez não mereça o nome "materna" (pode-se dificilmente chamar "materna" um 24 ] . Lacan, Les écrits teclmiques. . . , p. 242. 25 José Ortega y Gasset, Études mr l'nmour, prefácio de Bernard Pautrat, traduzido do espa nhol por Christian Pierre, Paris, Rivages poche, 2004 , p. 56. * Em francês, só existe o verbo être. (NT ) 26 ] . Lacan, Les écrits techniques. . . , p. 297.
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esquema formal ou uma escrita que só terá servido uma vez e que ninguém nunca m ais vai utilizar); trata-se, antes, de um croqui que estenografa o p osicionamento do amor por s. I. R. O amor, ao mesmo tempo, vê-se ridi culamente acompanhado de seus dois acólitos, o ódio e a ignorância. Amor, ódio e ignorância são três paixões orientadas para o ser, como o são (porque 0 são) os três registros lacanianos. Lacan desenha essa pirâmide dupla logo dep ois de ter anunciado, a respeito do desejo, sua visada de seminarista, a saber "esse registro [o simbólico] no qual estou, bem devagar, tentando ,, , fazê-los entrar, e o ser que espera revel ar-se :
Na época, Lacan não parece duvidar muito que o ser possa revelar-se no simbólico. Que o ser seja dito "esperar", esperar o que quer que seja, ainda que a própria revelação, é uma proposição filosoficamente, espiritualmente carregada, e longe de ser evidente. Mas como funciona esse croqui? O ser à espera de sua "revelação" é localizado na ponta da pirâmide de baixo, que deve ser provavelmente olhada como virtual. Acrescentei . ao desenho de Lacan a indicação do plano que separa as duas pirâmides de três faces e coladas uma na outra pela base. Está dito desse plano que ele constitui "a superfície do real" , mas, precisão decisiva e na falta da qual desaba o funcio namento desse croqui, do real "simplesmente". O simbólico introduz um furo nesse real, tornando assim possíveis "todas as espécies de transposições e de coisas intercambiáveis" - o que estava excluído, portanto, só com o "real simplesmente". É exatamente na medida em que a fala progride, i sto é, em que esse algo que é a pirâmide superior se edifica, [ . . . ] em que se realiza esse ser, bem entendido absolutamente não realizado no início da análise, como no início de toda dialética, pois está bem claro que se esse ser existe implicitamente
[acreditamos entender que essa existência é cifrada pela pirâmide de baixo] , e
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0 A M O R LACAN
de uma maneira de certo modo virtual, o inocente, aquele que nunca entrou em nenhuma dialética, não tem literalmente nenhuma espécie de presença desse ser, ele se acha simplesmente no real27 •
Assim, a realização do ser é figurada pela dinâmica que supostamente anima esse croqui, a pirâmide de baixo transformando-se na de cima. As três faces (repetidas, portanto, mas não é precisado) representam respectivamente o simbólico, o imaginário e o real; assim podem ser situadas as três paixões do ser: o amor na aresta ligando/separando o imaginário do simbólico, o ódio naquela ligando/separando o imaginário do real e a ignorância na junção do real e do simbólico. Lacan fala do interesse de seu croqui, precisando que "é apenas na dimensão do ser, e não na do real, que podem se inscrever as três paixões fundamentais". Mas ocorre então um outro termo, prometido a um belo futuro: o dom. Dois ouvintes, Jenny Aubry e Serge Leclaire, ficam um pouco inco modados com essas "arestas", esses "pontos de ruptura", essas "cristas" que seriam as três "paixões do ser inscritas" na pirâmide do ser realizando-se. Eles interrogam Lacan. E este lhes explica menos o que ele acaba de dizer do que o modifica. Observa-lhes, antes de mais nada, que outra coisa vem com essa visada do ser que caracterizaria o amor, isto é, uma distinção nítida entre amor e desejo (em que encontramos a recusa do platonismo): O amor se distingue do desejo, considerado a relação limite que se estabe lece de todo organismo com o objeto que o satisfaz. Pois sua visada não é a
satisfação, mas o ser [sublinho] . É por isso que só se pode falar de amor ali onde a relação simbólica existe como tal 28 •
E encadeia, pelo menos na versão Seuil desse seminário, com uma frase jamais dita e cuja enunciação ressoa como um toque de clarim ou uma chibatada, feito um mestre seguro de seu saber e que dá uma ordem:
27 28
J. Lacan, Les écrits techniques. . . , p. 298.
Ibid. , p. 304-305. ESTENOTIPIA: " [ . . . ] só se pode falar de amor a partir do momento em que a relação simbólica existe como tal, em que a visada é não da satisfação, mas do ser" .
O RU M O A U M A M R S I M B Ó L I C O
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"Aprendam a distinguir agora o amor como paixão imaginária do dom ativo q ue ele constitui no plano simbólico". A estenotipia apresenta um discurso menos imperativo. Era de se prever que esse posicionamento do amor dividido entre ima ginário e simbólico trouxesse o risco de quebrar o amor em dois - um risco reiterado, na sequência dos seminários. Por enquanto, a rachadura está bem ali. Ao lembrar as "arestas passionais" de seu pequeno esquema piramidal, Lacan vai distinguir o amor-paixão, assimilado à Verliebtheit, e Liebe. Trata-se de "ver como em seu fenômeno o amor-paixão [...] é cativado (se podemos dizer), capturado essencialmente no ser humano por uma relação narcísica [estenotipia]". Entendemos que perigo está presente, aqui marcado pelo advér bio "essencialmente": nada menos que voltar aquém da observação freudiana, no entanto homologada, segundo a qual o amor de transferência é um amor verdadeiro. Distinguir Verliebtheit e Liebe não é tirar uma grande parte da pertinência dessa observação, no mínimo torná-la problemática? A experiência analítica e o ensino de Freud [ . . . ] fazem do amor enquanto paixão esse algo que é essencialmente do plano imaginário [ . . . ] . O amor no sentido do desejo de ser amado [sublinho] é essencialmente tentativa de captura do outro em si mesmo objeto, tomado enquanto objeto. Insisti nisso na medida em que, se disso falei longamente, pela primeira vez, desse fenômeno do amor narcísico, foi no prolongamento da dialética da perversão [ estenotipia] . A que intervenção Lacan faz aqui alusão? Ela parece perdida... A cisão do amor é aqui efetiva, com a introdução do amor "no sentido do desejo de ser amado". Será amar desejar ser amado por alguém, significar-lhe isso, talvez até pedir-lhe isso? A coisa está longe de estar estabelecida. Lacan não coloca explicitamente essa questão, mas insiste numa espécie de diatribe em que se entende que ele não parece muito trazer esse desejo de ser amado em seu coração: O que há no desejo de ser amado é essencialmente esse fato de que o ob jeto amante seja de certo modo tomado como tal, enviscado, sujeitado na particularidade absoluta de si mesmo como objeto. [ . ..] Quer-se ser amado
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por tudo; não só por seu eu [moz] , como diz Descartes, pela cor dos cabelos, pelas manias, pelas fraquezas, por tudo. "Preso", "enviscado", "sujeitado", poderíamos ouvir alguém aprestan do-se, a despeito de culpa ou por culpa, a deixar o domicílio comum, essa prisão onde, diz-se, ele sufoca. Mas é importante aqui a ruptura do amor, sublinhada pelo que vem imediatamente após essa diatribe. Mas, inversamente [sublinho] , o que é inteiramente não menos evidente, é que amar (e eu diria correlativamente, e por causa disso mesmo) é justamente amar um ser para além daquilo que ele parece ser. O dom ativo do amor visa não o ser em sua especificidade, mas em seu ser. Lacan joga aí com a oposição filosófica do ser e do fenômeno, do ser e do parecer. Sobrevém, então, um outro perigo, nada menos que o pla tonismo. Lacan dá um passo na direção de Platão, mas não mais que um passo. Para falar a verdade, a última frase acima, tirada de seu contexto, frase em que vemos pela primeiríssima vez aparecer, em Lacan, o amor como dom, poderia ser tomada como tendo a ver com o platonismo: "O dom ativo do amor visa não o ser em sua especificidade, mas em seu ser". Só que há uma "' d 1rerenç ·c a notave ' l entre isto que voce e e o ser d isto ' ". O ra, e' cl aramente "o ser disto" que é aqui visado. Pois bastaria escrever, o que é quase equivalente do ponto de vista da significação: "O dom ativo do amor visa não o ser em sua especificidade, mas enquanto ser" para cair na bitola (neo)platônica. Um passo que Lacan portanto não dá, já que devemos bem antes ler: "O dom ativo do amor visa não o ser do objeto amado em sua especificidade, mas em seu ser". Há barragem contra o Pacífico da via platônica. Lacan precisa isso logo depois: "O amor, em seu dom ativo, visa para além dessa cativação imaginária, sempre o ser, essa particularidade [sublinho] do sujeito amado" . Em outras palavras, o amor visa não o ser enquanto ser mas um ser em sua particularidade que diremos, portanto, ôntica. O ser enquanto ser não pode, este, depender do particular. Eis, então, o amor como dom. Ao transcrever a afirmação, Jacques Alain Miller terá visto a novidade já que faz Lacan dizer: "Aprendam agoA
'"
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ra. . . ". Pouco importa, esse dom cria dificuldade. Primeiramente porque o
amor como dom não pode se casar com o amor como pacto. O fato de se com prometer com alguém poder ser conotado como dom (até o estranho e obscuro "dar-se") em nada reduz a diferença notável entre acordar algo com alguém e oferecer algo a alguém. Há mais. O amor como dom introduz uma p erturbação bem grave naquilo que foi sustentado desde março de 1954. Pois, como acabamos de ler coloca-se a questão de saber se Lacan não está dizendo que o amor como dom não é o amor-paixão. Além disso, não é apen as o amor-paixão que então arrisca ter chumbo nas asas, é também, já que os dois traços estão ligados, o amor enquanto narcísico. Com efeito, o am or como dom não visaria tanto o ser do sujeito, mas o ser do outro: [... ] é na dimensão do ser do outro, isto é, de um certo para além do outro, de um certo desenvolvimento do outro em seu ser que se dirige o amor; não na medida em que aceito, mas muito precisamente na medida em que é uma dessas três essenciais linhas de partilha na qual penetra o sujeito quando se realiza simbolicamente na fala. Sem essa dimensão da fala na medida em que ela afirma o ser, há tudo o que quiserem; Verliebtheit, fascinação imaginária, mas não há a dimensão do amor. A perturbação introduzida pelo surgimento do amor corp.o dom iria até distinguir dois amores, um dos dois, a Verliebtheit (o amor-paixão) não sendo um verdadeiro? Esses dois amores se repartiriam entre o do amado (aquele que deseja ser amado) e o daquele que ama? Não teriam eles quase nada a ver um com o outro? Não é exatamente isso que é dito, e até nem um pouco isso. Ou seja, de novo, a citação que introduzia o amor como um dom, mas, desta vez, sem passar por cima do parêntese que ela comporta: Mas, ao inverso, o que de fato é não menos evidente é que amar (e eu diria correlativamente, e por causa disso mesmo) é justamente amar um ser para além do que ele parece ser. O dom ativo do amor visa não o ser em sua especificidade, mas em seu ser. Esse "correlativamente" vem indicar que essas duas palavras estão ligadas, articuladas. O amor do amado, de quem deseja ser amado, seria o
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amor paixão, um amor capturante; e lhe responderia o amor como dom, visando o ser amado para além daquilo que ele parece ser. Curiosa resposta, de qualquer modo, esse dom, como é percebido na dissonância, na discor dância entre essa afirmação de um amor dom-resposta e a pouca estima que Lacan parece ter pelo desejo de ser amado. Mesmo levando em conta esse "correlativamente", resta um certo través na articulação desses dois amores a um só tempo não recíprocos e diferentes até no teor (um imaginário, o outro simbólico). Assim, podemos nos perguntar se é possível, como Lacan parece aqui admitir, identificar o amado "àquele que deseja ser amado", àquele que não cessa de capturar o outro em si mesmo. E como entender essa articulação, essa "correlação", a qual é, além disso, apresentada co m o uma relação causal? O surgimento do amor como dom, esticando o amor entre imaginário e simbólico, coloca um estranho problema: o que é que, no amado que se dedica à captura do amante, à sua incorporação em si mesmo, poderia atuar como causa do dom de amor? Amaria eu um outro contanto que ele não cessasse de me submeter, de me enviscar nele mesmo? Amá-lo seria oferecer-me à sua captura, à sua submissão? Seria esse o dom de amor? Nesse caso, eu me veria como sendo tanto doador quanto objeto do dom. Tratando-se do amor dito verdadeiro, esse pendor dá a entender que os termos "masoquismo" ou "servidão voluntária" não pareceriam ina propriados. Pensamos em História d 'O. Esse amor escravo, seria esse o amor verdadeiro, o dom de amor?
DA ESCRAVI DÃO AMORO SA O escravagismo amoroso bem cedo foi notado na Grécia antiga: como mostra, notadamente, em O banquete de Platão, o discurso de Pausânias. Só podemos ficar impressionados, considerando o contexto de uma época em que ser escravo era uma das piores coisas que poderiam acontecer a um cidadão, com a grande liberdade de espírito de Pausânias a esse respeito. Ele apresenta a escravidão amorosa sob duas formas, uma vergonhosa, outra não. Pausânias cobre de vergonha o amante que se entrega a todas as manobras degradantes da sedução (suplicar, pronunciar juramentos que
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n ão se po deria manter depois, deitar-se à porta do amado, etc.) mas se e som en te se esse amante for mal-intencionado, se ele buscar seduzir a fim de ob ter algum a vantagem (dinheiro, uma magistratura, uma influência polí tica , etc. ) . Pausânias vai muito longe, falando a respeito da sedução de 29 "u m a fo rma de escravidão que nenhum escravo aceitaria " . Ainda mais longe po rquanto admite, e é a segunda forma da escravidão amorosa, que ess a "es cravidão consentidora" é perfeitamente legítima, "escapa à censur à', deve até ser louvada na cidade, uma vez que o amante aspira à virtude e a co n duzir seu amado à virtude. Ser escravo do amor é, então, uma qualidade preciosa, como, diz ele, fazer-se escravo da virtude. O que Lacan compromete com o dom de amor difere das palavras de Pausâni as: não se encontra em Pausânias a ideia de que o amado (que deve ser um rapaz para que o amor venha da Afrodite celeste) deseja submeter se u am ante. Aliás, em nenhuma parte é evocado, na pederastia grega, o desejo do amado como tal, o desejo de ser amado. No Fedra, de fato está em questão o que acontece com o amado em razão de ser um amado, de ter consentido nisso 30 ; mas não o seu desej o na medida em que estaria na origem da aventura amorosa e, menos ainda, como em Lacan, uma inten ção que seria sua e para com a qual seu comprometimento no amor seria apenas um meio de submeter o amante. Entre os gregos da época clássica e o Ocidente contemporâneo, a ética virou de cabeça para baixo - o que Lacan não deixou de notar. É possível que esses desenvolvimentos tão sofridos sobre a escravidão amorosa se devam a um significante, um significante que, curiosamente, não foi retido pelos coletores aplicados dos neologismos de Lacan 3 1 : "cativação" , que nenhum dicionário oferece* . "Captação" existe, provém de captare, "procurar prender" , derivado iterativo de capere, "pegar" ; existe também "cativar", que deu "cativante" e que provém do latim captivare. O dicionário Le Robert observa que I ) "cativar" suplantou no antigo francês "chaitiver" , e 29 Platão, Le ba11q11et, trad. de Luc Brisson, Paris, GF Flammarion, 1998, p. 104. 30 Tratei esse ponto em detalhe em O sexo do mestre, op. cit. 31 Marcel Bénabou, Laurent Cornaz, Dominique de Liege, Yan Pélissier, 789 néologismes de Jacques L,1ca11, Paris, Epel, 2002. • O dicionário Houaiss registra o termo como "ato ou efeito de cativar". (NT)
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2) foi ele mesmo suplantado pouco depois por "capturar". E acrescenta: " O sentido figurado de 'impressionar favoravelmente, seduzir' então se expan diu, consumando a separação semântica de cativar e de cativo, cativeiro". Daí se deduz que o neologismo "cativação" de certo modo retorna aquém dessa separação semântica. Entretanto, reconheceremos nessa separação um a virtude analítica, pois ela distingue duas situações: que um ser me cative é uma coisa, que me capture é outra. "Cativação" conjuga os dois. Posso ser cativado, no sentido de "fascinado por alguma coisa" embora nem por isso haja, nessa coisa mesma, uma intenção de me capturar. Assim um a paisagem. Aí, diferente de um sedutor, uma paisagem, enquanto paisagem, não se serve de seu caráter cativante para me capturar. Poderíamos objetar que o jardim, paisagem feita por mão humana, parece realizar tal captura. O jardim japonês, especialmente em sua forma zen, é feito para que a cada passo a visão e a impressão mudem, para que cada passo dê acesso a outro lugar. Aquele que passeia não fica assim, não só cativado mas capturado? Mas não se pode desprezar que o xintoísmo faz de uma árvore, de u m a montanha, de um rochedo, de um pedacinho de folha outros tantos deu ses. No Ocidente, continua sendo difícil admitir essa ausência de intenção naquilo que me cativa, e talvez seja por essa razão que alguns, diante de uma paisagem cativante, recorrem a um Criador. Essa convocação assinala a dificuldade de pensar a captação sem a captura; ela assinala, em outras palavras, a lacaniana "cativação". Um ser que me seduz tem a intenção de me prender, de me fazer seu prisioneiro? Isso nada tem de necessário. Ele pode, por exemplo, seduzir-me com a única visada de capturar não a mim, mas um terceiro, primeiramente feito testemunha de a que ponto estou cativado. Ou ainda, como Freud descreveu a respeito de um certo tipo de sedução feminina, é a própria indiferença de que tal mulher dá prova para comigo que me seduz; daí a imputar-lhe uma intenção de me capturar, de abandonar sua indiferença... O assunto fica mais complexo se o transpusermos para o registro do amor. O cativante erômeno faz questão de capturar o eraste, de amá-lo no sentido de se apropriar dele? É possível não supor isso e pensar que o erômeno, como a rosa, é "sem porquê". Não é precisamente esse furo, que nem mesmo é uma ausência, que cativa o eraste? Para falar a verdade, nada em Lacan por enquanto permite responder, pois a resposta passará por um
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cer to desdobramento do objeto: haverá o objeto amado e, ligado ao objeto, vai chamar seu "para além" - a questão do dom tomando en tão 0 q ue Lacan ou tro regime. "Cativação" funciona ao oposto desse "sem porquê". Lacan deve ter entrevisto a armadilha, a do amor de escravo, pois, comprometido nessa abordagem singular do amado, ele sente a necessidade de logo dar u m limite a essa captura que o amado exerceria. Logo depois de ter falado de "cativação", ele acrescenta: O amor não mais como paixão mas como dom ativo sempre visa para além da cativação imaginária o ser do sujeito amado, sua particularidade. É por isso que ele pode aceitar muito longe suas fraquezas e desvios, pode até ad mitir seus erros, mas há um ponto onde ele para, um ponto que só se situa pelo ser - quando o ser amado vai longe demais na traição de si mesmo e persevera na enganação de si, o amor não segue mais.
Lacan não diz nem sugere nada mais que isso, nesse 7 de julho de 1954, quanto ao que seria o objeto do dom de amor. Com certeza porque lhe interessa, então, a visada do amor. Na sequência dos seminários, esse fio da submissão amorosa não será nem absolutamente afastado nem levado adiante tal qual. Uma vez introduzido o amor como dom, o se do "dar-se" não resolverá a questão do que seria o objeto do dom de amor;
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que se passa entre esse momento em que, sem desprender absolu tamente o amor do imaginário, Lacan procura inscrevê-lo também como simbólico ( Os escritos técnicos) , extraí-lo do imaginário para levá-lo ao simbólico, e esse outro momento em que o fin'amor intervém a um só tempo como referência e como questão (A ética da psicandlise) ? Por mais inédito que tenha sido no campo freudiano, o fato de se levar em conta o amor cortês não pode ser considerado inaugural do amor Lacan. Algo de novo precede e supera em importância esse fato. Não ainda exatamente o amor Lacan mas um arcabouço, que parecerá tão crucial quanto aquilo que examinamos mais comumente, isto é, a maneira como Lacan vai falar do a mor cortês e, pouco depois, do Ban quete de Platão. O amor não vai estar muito presente durante o período dos seminários que vai dos Escritos técnicos ( 195 3- 1954) até A relação de objeto e -as estruturas freudianas ( 1956- 1957), em que vai ser produzido o arcabouço do amor. Três traços, porém, merecem ser notados, ainda mais que alguns deles serão retomados para a construção do arcabouço do amor: o amor como miragem; a fidelidade amorosa; e, terceiro traço, o amor nas psicoses.
DA MIRAG EM AMORO SA Quase um chiste. Em 12 de maio de 195 5 , enquanto em fim de sessão o seminário discute, Lacan responde a um de seus ouvintes, Jean-Bertrand Pontalis, que se inquieta com o fato de que se tenha "perdido o sentido do real". "Não, não, não", parece dizer Pontalis, "a realidade não é o conjunto do símbolo". Muitos outros vão reagir do mesmo modo, não vão admitir
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a espécie de desvalorização da realidade que, segundo eles, a invenção do ternário s. 1. R. implica. O problema será abordado na descrição de Gilberta (trata-se de amor) feita pelo narrador de Em busca do tempo perdido: Seus olhos negros brilhavam e como eu então não sabia, nem fiquei sabendo desde então, reduzir a seus elementos objetivos uma impressão forte, como eu não tinha, tal como dizem, "espírito de observação", para extrair a noç ão da cor, durante muito tempo, sempre que eu pensava nela, a lembrança do brilho de seus olhos logo se me apresentava como a de um azul vivo, jd que ela era loura [sublinho] : de modo que, talvez se ela não tivesse tido olhos tão negros - o que tanto impressionava na primeira vez que a viam -, eu não teria ficado, como fiquei, mais particularmente apaixonado, nela, por seus olhos azuis 1 • Não há realidade (uma realidade distinguida por Lacan do real), há apenas julgamentos de realidade, os quais às vezes jogam com a implicação. Aqui: "seus olhos são azuis, jd que ela é lourà', em outras palavras, "que ela seja loura implica que ela tenha ["na realidade") olhos azuis" . O que reen contra o sentido primeiro, em Freud, da palavra Übertragung (transferência) : "falsa ligação" . O exemplo dado por Freud vem a ser da mesma veia que essa implicação proustiana. Trata-se de uma sessão na câmara dos deputados; de repente, ouve-se uma explosão. O narrador, que não era um frequentador do local, pensa que é assim que é assinalado o fim da sessão; ora, tratava-se de um ato terrorista. Lacan designava a realidade como uma montagem de imaginário e simbólico. Um juízo de realidade, a um só tempo de exis tência e atribuição, é um juízo que apela para a realidade a fim de não ser questionado enquanto juízo de realidade. Assim aparece o lado "grosseiro" da realidade, uma coloração que não é encontrada no fantástico, já que ali, ao contrário, tanto existência quanto atribuição espantam, surpreendem, não são evidentes.
1
Marcel Proust, À la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, coll. "Bibliotheque de la Pléiade", vol. I, p. 139. Devo esta citação a David Halperin.
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Assim, pouco proustiano na oportunidade, Pontalis se inquieta com a p erda da realidade naquilo que o seminário fomenta. Lacan lhe responde, m as com uma questão: [...] você percebeu a que ponto é raro um amor fracassar nas qualidades e nos defeitos reais da pessoa amada2? PoNTALIS: não estou seguro de poder responder não.
Parece ser preciso entender que não, ele não percebeu. No entanto, u ma segunda frase contravém essa leitura: Não estou seguro de que seja uma ilusão retrospectiva. LAcAN: Eu disse que era raro. E, na verdade, quando se chega ali, parece ser bem antes da ordem dos pretextos. Quer-se crer que essa realidade foi alcançada.
Não sabemos mais dizer muito se, agora, Pontalis está indignado ou aterrado: PoNTALIS: Mas isso vai muito longe. Corresponde a dizer que não há nun ca concepção verdadeira, que sempre se vai de correções em correções, de miragens em miragens. LAcAN: Com efeito, acho que é o caso nesse registro da intersubjetividade no qual se situa toda nossa experiência.
Em outras palavras: no amor de transferência. Este é assunto de mi ragem, não de realidade no sentido de Pontalis, razão pela qual a resposta na realidade (ou da realidade), a saber, "não sou aquele ou aquela que você diz" ("loura, no entanto não tenho olhos azuis") não tem outro alcance senão mostrar e fazer saber ao analisando que o analista nada entende em matéria de amor - o que, aliás, em tal análise e na oportunidade, pode trazer alguma tranquilidade. 2
Jacques Lacan, Le moi dam la théorie de Freud et dans la technique psychanalytique, Paris, Le
Seuil, 1 978, p. 254. Doravante:
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Logo, um primeiro traço: a intersubjetividade dá lugar ao amor corn o miragem.
DA F ID ELIDADE NO AMOR Em 8 de junho de 195 5, menos de um mês após essa conversa, a fidelidad e no amor vai estar em questão. Perfeita questão escabrosa, uma vez que não se ignora que a infidelidade, pois bem, simplesmente... isso não existe, que ninguém nunca é infiel a ninguém. Quando acontece o que chamamos urn a infidelidade num casal (e com certeza é igualmente verdade com aqueles que alguns chamam os "infiéis"), as condições exigidas da fidelidade não estão mais reunidas. A infidelidade de modo algum é o que vem romper o laço; ao contrário, é porque algo do laço amoroso já está quebrado que a pretensa infidelidade se torna possível. A infidelidade pode na oportunidade tornar manifesta a ruptura do amor; ela não a efetua. Logo, o que terá sido rompido? Não se pode responder "o pacto amoroso", ainda que, nesse 8 de junho de 195 5, Lacan fale de novo de "pacto simbólico" a respeito do amor. Ovídio, por sua vez, dá prova de bela prudência quando escrevia que a traição das juras de amor era perdoada: "Júpiter, do alto dos céus, vê rindo os perjúrios dos amantes e ordena aos ventos, súditos de Eole, que os carreguem e os anulem3 " . Como se chega a desprezar que o ser mais fiel que seja, isto é, o cão4 , pelo menos se acreditarmos em alguns, não pronuncie precisamente tais juras? Aliás, nada garante que uma jura de amor valha como ato de amor, nem sequer como declaração de amor. Entende-se a diferença de posição subjetiva: dizer a alguém "te amo" é sensivelmente menos suspeito, do ponto de vista da veracidade, que proferir um "vou te amar para sempre". Por que razão? Porque o "vou te amar para sempre" introduz no amor um
Ovídio, L'art d'aimer, prefácio de Hubert Juin, texto estabelecido e traduzido por Henri Bornecque, Paris, Gallimard, coll. " Folio classique" , 1 974, p. 4 8 . Uma nota da edição citada precisa que esse riso divino a respeito das juras de amor era um topos da poesia grega mais an tiga. 4 Jean Allouch, Sombra do teu cão. Disrnrso psicanalítico, discurso lésbico, Companhia de Freud Editora, Rio de Janeiro, 200 5 . 3
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ingrediente que o faz virar vinagre, a saber, a incondicionalidade. A coisa é p atente qua ndo o amor se refere à criança. Quando um dos pais se imagina ob rigado a amar incondicionalmente sua prole, regularmente aconte�e de, em reação, essa prole se comportar de maneira sempre mais tirânica. E que convém pôr um termo não no amor, mas em sua incondicionalidade. Ser amado inco ndicionalmente é sê-lo bem mal. Em que termos o problema da fidelidade amorosa é colocado por Lacan? Falando da fidelidade à palavra dada, ele se pergunta: "Como jus tificar essa palavra tão imprudentemente dada e, propriamente falando, co m o todos os espíritos sérios disso nunca duvidaram, insustentável 5 ? " Em outras palavras, não é o pacto, nem a jura que pode explicar a fidelidade
e m amor. Lacan não busca aqui dar conta do que pode se designar como uma fidelidade obrigada, essa modalidade da fidelidade que se deve a outra coisa q ue ao próprio laço amoroso, por exemplo ao fato de que um casal heteros sexual terá i nscrito seu amor na ordem católica apostólica e romana, caso no q ual o amor, ao se duplicar na forma sacramental do casamento, ao se querer análogo ao amor de Cristo por sua Igreja, não pode ser infiel. Uma versão leiga dessa sobredeterminação do amor se instala quando o amor mantém um olho voltado para "o que vão dizer", quando a fidelidade só se mantém pelo medo da vergonha que sua ruptura provocaria via "o que vão dizer" . Ali tampouco a fidelidade não é intrínseca ao laço amoroso. Por contraste a essa fidelidade obrigada, chamaremosfidelidade leve aquela devida apenas ao amor. Essa fidelidade é evidente; ela não pesa; vivida como uma felicidade, ela quase não se sabe. Ora, é ela que deve ser explicada. Para fazê-lo, Lacan antes de mais nada vai afastar uma primeira e falsa explicação: "Tentemos superar a ilusão romântica, que é o amor perfeito, o valor ideal que assume cada um dos parceiros para o outro, que sustenta o comprometimento humano" . Não mais que no pacto, a fidelidade não pode dever-se ao fato de o parceiro encarnar a figura ideal do amado. Essa observação é de puro bom senso psicanalítico. A psicanálise mantém-se afastada desse idealismo (ativo em Ortega y Gasset, o amado devendo ser portador de pelo menos um ) J, Lacan, Le moi . . . , p. 302.
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traço de excelência). E Lacan propõe outra explicação da fidelidade, que nã o caberá ao amado, às suas maravilhosas qualidades, mesmo supervalorizadas pelo amor, mas ao amante. Vai por certo reaparecer aqui o pacto simbólico , mas um pacto bem estranho, um "pacto" que não liga apenas dois sujeitos . Como, então, em psicanálise, explicar a fidelidade no amor? Resposta: Proudhon [...] encontra a solução em algo que só pode ser reconhecido p or um pacto simbólico. Ponhamo-nos na perspectiva da mulher. O amor que a mulher dá a seu esposo não visa o indivíduo, mesmo idealizado [...] mas um serpara além [sublinho]. O amor propriamente falando sagrado, aquele que constitui o laço do casamento, vai da mulher àquilo que Proudhon chama todos os homens. Da mesma forma, através da mulher, são todas as mulheres que a fidelidade do esposo visa. [ . . . ] não é uma quantidade, é uma fun ção universal [sublinho]. É o homem universal, a mulher universal, o símbolo, a encarnação do parceiro do casal humano. Com efeito, se uma mulher vale por todas, se um homem vale por todos, então sim, pode existir essa fidelidade leve que devia ser explicada. Essa fidelidade não é especialmente virtuosa, nem meritória; não decorre de uma exigência moral; seu único apoio é o próprio teor do amor. Mas, sobretudo, não é uma fidelidade, já que cada um, tendo um parceiro, possui ipso facto todos os parceiros possíveis. Logo, não há fidelidade, nem tampouco infidelidade. Aqui já se acha em ação, embora não problematizado, o quantificador "não-todo" que só será explicitamente explorado dezessete anos mais tarde6 . Com efeito, se "uma vale por todas", "um por todos" {mas precisamente não no sentido guerreiro do "um por todos, todos por um"), um jogo está instalado entre esse "um" e esse "todos", que implica o "não-todos", já que está bem precisado que esse "um" não iguala o "todos" {como no slogan guerreiro), mas o chama como seu para além. Descompletado desse "um", o "todos" é um "não-todos" . Ora, esse "para além" vai se afigurar decisivo
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Reportar-se a Guy Le Gaufey, Le pastout de Lacan. Consistance logique, conséquences clini ques, Paris, Epel, 2006.
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a curtíssimo prazo. Com efeito, estamos aqui às voltas com o primeiríssimo um para além do amado na figura lacaniana do amor7 • apa recim ento de A.mando uma mulher, amo, para além dela, todas as mulheres. Amando u m homem, amo, para além dele, todos os homens. Questão (que Lacan não coloca): qual é, então, o objeto de meu amor? E como não se espantar (La can não se espanta com isso) que o amado pareça aí tirar vantagem? Certo, ele pode buscar alguma satisfação narcísica nesse valor que lhe é dado de contar, ele, ela, por todos, por todas. Pouco importa, se, por acaso, sua exigência fosse ser amado "por ele mesmo", não dá certo! Eis um estorvo no q ual, para a perseverança do amor, parece preferível não se demorar muito (e Lacan não se demora nele). Rápido esse para além vai ser ainda mais en carnado, ao ponto de valer comofunção (a palavra já está na citação) de para além, função que receberá outros argumentos que esse "todos os homens" ou "todas as mulheres", e que vai assim atuar como um elemento fundamental do arcabouço do amor.
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Tratando das psicoses durante um seminário, Lacan não podia desprezar a afirmação de Freud segundo a qual o psicótico ama seu delírio como ama a si mesmo. Como ele vai tratá-la? Talvez não tivesse, na época, os meios nem os instrumentos que lhe permitiriam extrair todo seu suco dessa tão justa anotação. Notadamente porque, em 1956- 195 7, ele ainda não está em condição de colocar a questão da articulação do amor com o saber, daquilo que o amor deve, para seu próprio surgimento, a um certo posi cionamento do saber. É verdade que ter eleito "Aimée" como significante de sua transferência com relação a Marguerite Anzieu8 , que ter em seguida cometido o erro "técnico" de ter tomado Didier Anzieu em análise não era 7 É verdade que já esteve em questão um "para além" na derradeira sessão do seminário Os escritos técnicos. Mas Lacan logo precisava que esse "para além" era "um certo desenvolvimen to [sublinho] do outro" . Em Lacan, só há "para além" quando ele for claramente diferente daquilo em relação ao que ele está "para além" . É aqui o caso. " ]. Allouch, Marguerite, ou l'Aimée de Lacan, Paris, Epel, 1 994 (2' éd . ) .
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muito suscetível de esclarecê-lo sobre o estatuto do amor nas psicoses. Mas o que diz ele disso, nesse ano, mesmo que essas afirmações tenham ficado sem continuação9? A observação de Freud dá lugar à ocorrência, nos seminários, do amor cortês. Lacan pouca coisa diz então sobre isso, considerando-o antes de longe, como uma "arte de amar" (piscadela de olho a Ovídio) que te ria reinado por um tempo antes de se prolongar, mas de maneira sempre mais degradada, até no amor romântico. A ideia de uma tal "degradação", a ideia de que os "patterns amorosos", como ele ironicamente os cha ma, "tornaram-se cada vez mais incertos" poderia ser contestada. Entretanto, lançaremos no dossiê dessa "degradação" a "valentinagem* ", que foi insti tuída bem cedo, na Inglaterra, pouco depois do fin'amor (no século XIV, o texto de referência sendo The Parliament ofBirds, de Chaucer), e que foi, dois séculos mais tarde, trazido para a França por Charles d'Orléans, poeta duas vezes viúvo e feito prisioneiro na batalha de Azincourt, ao voltar a seu país após vinte e cinco anos de cativeiro na Inglaterra. Lemos, em sua balada LXXVI, estes versos: [ . . . ] Que eles marquem o dia de São Valentim este ano Aqueles e aquelas do partido amoroso: Só, permanecerei viúvo de reconforto, No mau leito do pensamento magoado 1 0 •
9 Uma observação de qualquer modo, nas "Conferências e entrevistas nas universidades nor te-americanas", segundo a qual: "A psicose é uma espécie de falência no que se refere ao cumprimento daquilo que é chamado 'amor"' (Scilicet, 6/7, Paris, Le Seuil, 1975, p. 16). Bem antes, os escritos de Aimée tinham sido ditos exprimir "uma aspiração amorosa, cuja expressão verbal é tanto mais tensa porquanto é na realidade discordante com a vida, mais fadada ao fracasso" (De la psychose para11oiaq11e drms ses rapports avec la perso1111alité, 2' éd., Paris, Le Seuil, 1980, p. 179. * O costume da "valentinagem", isto é, do namoro. Instituído por Valentim, sacerdote ca tólico que decidiu casar em segredo os apaixonados. Daí a comemoração do dia de São Valentim como dia dos namorados. (NT) 1 0 Texto em francês contemporâneo de Daniel Ménager, in Anthologie de la poésie .fi'fllzfnise d11 Moyen Âge nu xvf siecle (Paris, Gallimard, coll. "Bibliotheque de la Pléiade", 2000), citado por Pierre Canavaggio, Les superstitions de l'amour, Paris, Éd. Ou Rocher, 2004, p. 13 .
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Francisco de Sales em vão tentou recuperar a valentinagem em pro veito da Igreja . Não foi um pequeno acontecimento essa resistência dos valentinos e valentinas (mais amplamente, das populações) a serem afasta dos em proveito de santos e santas. O universo da valentinagem é mágico e supersticioso, não religioso. Como os pássaros na primavera, valentinos e valentinas cantam o amor já em 14 de fevereiro*, confiantes que amar é portar-se bem ("Valentim": de valere, portar-se bem). Do divertimento aristocrático que assumiu o lugar do jin'amor ao parodiar a publicação dos banhos do casamento, passando pelo ritual da eleição das valentinas depois, ainda no século passado, o mercado das moças de Camblain-Châtelain ( Pas- de- Calais), e até os classificados gratuitos do jornal Libération no dia de aniversário da morte do santo, parece bem, com efeito, haver degradação. Mas escrever uma história do sentimento amoroso não é aqui o propósito. Eis os de Lacan, em 3 1 de maio de 1956: Tomemos por ponto de referência a técnica, pois era uma, ou a arte de amar, digamos a prática da relação de amor que durante certo tempo reinou do lado da nossa Provença ou de nosso Languedoc. Há aí toda uma tradição que prosseguiu pelo romance arcadiano do estilo Astrée, e pelo amor ro mântico, e em que se observa uma degradação dos patterns amorosos, cada vez mais incertos. [ . . . ] O tom caiu, a coisa caiu no irrisório. Jogamos, com certeza, com esse processo alienado e alienante, mas de maneira cada vez mais exterior, sustentada por uma miragem cada vez mais difusa [ . . . ] Essa dimensão vai no sentido da loucura da pura miragem, na medida em que o acento original da relação amorosa está perdido. [ ... ] Era uma técnica espiritual, que tinha seus modos e seus registros [ . . . ] 1 1 •
Volta aqui a miragem da discussão com Pontalis. Entretanto, na pri meira ocorrência, Lacan parece indicar que à degradação do pattern amoroso corresponde uma miragem "cada vez mais difusa", em outras palavras, que quase não seria mais uma, e a falta da miragem faria a degradação. Ora, a
• Dia de São Valentim, dia dos namorados, na Europa. (NT ) 1 1 J. Lacan, Les ps chom, Paris, Le Seuil, 198 1, p. 288. y
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segunda ocorrência, em que está em questão "a loucura da pura miragem", parece ao contrário indicar que, tornada pura, a miragem seria mais ativa uma vez que essa degradação produziu seus efeitos. Não é garantido que haja aí uma contradição. Mas o importante é, então, o paralelo aqui tenta do entre o fato sociocultural da dita degradação do amor (de seu ponto de culminância) e o estatuto do amor nas psicoses: O caráter de degradação alienante, de loucura, que os dejetos dessa práti ca , perdidos no plano sociológico , conotam nos apresenta a analogia do que acontece no psicótico, e dá seu sentido à frase de Freud [...] que o psicótico ama seu delírio como a si mesmo. O psicótico só pode entender o Outro na relação com o significante, ele só se demora numa casca, num invólu cro , uma sombra, a forma da fala. Ali onde a fala está ausente, ali se situa o Eros do psicosado , é ali que ele encontra seu supremo amor.
Não se trata de modo algum de declarar que o psicosado (aceitemos essa palavra, que cria assonância com "gaseado") não ama, é incapaz de amar, que sua doença é uma "neurose narcísica" (Freud), que ela o torna, portanto, mas somente para quem o terá assim designado, incapaz de transferência; trata-se bem antes de dizer de que maneira ele ama. E, portanto, de indi car lateralmente o lugar onde seu psicanalista, quando acontece de ele ter elegido um, terá de se manter na transferência psicótica. Essa apresentação do amor do psicosado deve ser entendida levando em conta o fato de que, então, Lacan pensa o amor em referência à fala plena. Logo, trata-se de um contraste, e entre os mais bem acentuados, já que o amor do psicosado é dito ter lugar, ao oposto, "ali onde a fala está ausente". Entretanto, está excluído afirmar que o delírio corresponde a uma radical ausência de fala; não vemos, se fosse esse o caso, por que Lacan se teria dado tanto trabalho para decifrar a configuração complexa dos delírios sistematizados de Marguerite Anzieu, ou teria dedicado tantas reflexões a Schreber. Ele não sustenta que o psicótico ama seu delírio como a si mesmo, mas anuncia algo mais sutil: considerando essa relação com o significante, identificável notadamente no delírio (mas também na alucinação e no fe nômeno elementar), considerando o apego do psicótico apenas à forma da
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fala, ao significante "como tal", o psicótico só pode amar alhures, amar em o utro lugar. Qual é seu objeto? O que, pois, o psicótico ama e que seria, seguindo Freud embora corrigindo-o com Lacan, nada menos que "a si mesmo" ? Resposta: o Outro absoluto. Para falar a verdade, todo esse desen volvimento era feito para dar corpo a uma afirmação que lhe era anterior mas que ele torna a um só tempo menos abrupta e mais acessível. O que ela dizia? Lacan está defendendo uma vez mais sua distinção do pequeno o utro e do grande Outro. Ele ousa dizer, então, que esse grande Outro é aq uilo que visava Freud quando este falava, na origem, da não-existência de nenhum Outro (emprestando seus próprios conceitos a Freud, o qual não pode mais): [ ... ] esse Outro é todo em si, diz Freud, mas ao mesmo tempo todo inteiro fora de si. A relação extática com o Outro é uma questão que não data de ontem. [ ... ] Fazia-se, na Idade Média, a diferença entre o que chamavam a teoria física e a teoria extática do amor. Assim, colocava-se a questão da relação do su jeito com o Outro absoluto. Digamos que, para compreender as psicoses, devemos fazer com que se recubra, em nosso pequeno esquema da relação amorosa com o Outro enquanto radicalmente Outro, com a situação em espelho, com tudo o que é da ordem do imaginário, do animus � da anima, que se situa conforme os sexos num lugar ou no outro. [ . . . ] para o psicótico, é possível uma relação amorosa se o abolir como sujeito, na medida em que ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas esse amor também é um amor morto 1 2 •
Primeiramente uma precisão: sob a pena de Rousselot (que Lacan não menciona aqui, mas a quem ele deve a distinção das duas formas de amor, físico e extático), "amor físico" não quer absolutamente dizer o que hoje se entende espontaneamente por aí. Rousselot precisa isso já em sua introdução:
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J. Lacan, Les psychoses, op. cit. , p. 287.
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[ ... ] duas concepções do amor dividem os espíritos na Idade Média; podemos chamá-las a concepção flsica e a concepção extdtica. Física, é evidente, n ão significa aqui c01poral: os partidários mais decididos dessa maneira de ver só olham o amor sensível como um reflexo, uma fraca imagem do amor espiri tual. Físico significa natural, e serve aqui para designar a doutrina daq ueles
que fundam todos os amores reais ou possíveis na necessária propensão que têm os seres da natureza em busca de seu próprio bem 1 3 •
Confrontada com a estenotipia 1 4 , a transcrição da editora Le Seuil acima reproduzida parece falha em certos pontos, ao ponto de atribuir a Lacan uma afirmação diferente da que foi feita. 1) Desaparece a indicação segundo a qual o verdadeiro amor seria o amor extático 1 5 • 2) É evacuada a indicação corolário segundo a qual esse amor estaria às voltas co m a verdadeira existência do Outro. O objetivo teria sido recuar diante da afir mação, aqui tão crua, de uma existência do Outro? Teria sido apagar o que se designa de um possível misticismo nesse "amor verdadeiro"? 3) Lendo essa transcrição, deveríamos admitir que o amor nas psicoses faz com que se recubram a relação imaginária e a relação simbólica. É precisamente o que o psicótico, em seu amor extático, não faz. Se houvesse uma dúvid a na leitura dessa passagem da estenotipia, essa dúvida seria posteriormente suspensa, quando, depois de falar da degradação do amor, Lacan conclui: "O psicótico só pode entender o Outro na relação com o significante, ele só se demora numa casca, num invólucro, numa sombra, na forma da fala" . Logo, o contrassenso aqui se refere ao amor extático. Como o amor psicótico, o amor extático coloca a existência de um Outro radicalmente Outro, mas à custa da abolição do sujeito. 4) Lemos: "Mas esse amor é também um amor morto". Lacan certamente não diz que o amor extático do psicótico pelo Outro absoluto é um amor morto. Ao contrário, ele fala claramente a esse respeito de uma "possibilidade da relação amorosa", referindo-se, além disso, 1 3 P. Rousselot, Pour l'histoire du probleme de t:1111011r au Moyen Âge, op. cit., p. 8 . 1 4 Hoje facilmente acessível no site d a École lacan ienne d e psychanalyse.
1 5 Na citação referenciada aci ma, logo depois de " Outro absoluto" , buscaríamos em vão a pro posição seguinte, separada por uma simples vírgula de "Outro absoluto" : "No lugar do qual pode se situar na teoria extática o verdadeiro amor, a verdadeira existência do O utro [ . . . )".
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a u m objeto bem definido, a "heterogeneidade radical do Outro". Em outras palavras, o psicótico ama o Outro enquanto Outro. Esse amor está vivo. ' esta' morto" quer d'1zer, 1 a em que esse amor tam bem · "na med'd A sequênc ia de acordo com a análise de Rousselot, que esse amor vivo, precisamente na medida em que se realiza, implica, exige o desaparecimento do sujeito, que ele é de ordem sacrificial. Terá bastado suprimir o "também" para fabricar a tese segundo a qual o amor do psicótico é um amor morto. Como, além disso, ela converge com aquela, freudiana, de uma pretensa incapacidade de amar (e portanto de transferência) imputada ao psicótico, ela terá belos 16• dias pela frente, e bem recentemente ainda É possível esclarecer mais adiante a preferência dada por Lacan ao amor extático? Três razões correlatas escoram essa preferência. Primeira ra zão: o amor físico foi, este, teorizado bem longe, sobretudo por São Tomás. Part indo da ideia de que amar é buscar o próprio bem ou felicidade, que 1 "o amor de si é a medida de todos os outros amores e os supera todos 7 " , Tom ás usou todo seu arsenal teórico para tornar compatível essa ideia do amor com o amor de um Deus que deve ser amado "mais que a si mesmo". Sua demonstração dessa compatibilidade é sutil, brilhante, apaixonante. Se a coisa só for amada "na medida em que é uma com o sujeito que ama 1 8 " , será possível, mediante notáveis reconsiderações relativas à unidade, não só amar a si mesmo mas também amar Deus de modo altruísta. Esse amor físico é um amor de unidade; ele se opõe ao amor extático, que é de dualidade, de pessoa a pessoa. O amor extático distingue o amante do amado, e este deve ser um traço que convém a Lacan. Segunda razão de sua escolha: há dom no amor extático, ao passo que uma suspeita pesa sobre o caráter gracioso do dom no amor físico, na medida em que, até em seu amor altruísta por Deus, o sujeito busca seu próprio bem. Terceira razão, o amor extático, lançando o sujeito fora de si mesmo, é feito de violência e se apresenta como irracional (ausência de teoria). O que resta da pessoa que ama enquanto pessoa, se ficar despojada de tudo o que faz seu ser por 16 Como mostra a obra coletiva L'nmour dom les psychoses, dirigida por Jacques-Alain Miller, Paris, Le Seuil, 2007. 17 P. Rousselot, Pour l'histoire du probleme de l'nmour 011 Moyen Âge, op. cit., p. 9. 18 lbid., p. 1 1.
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seu amor mesmo ? Daí este dito espirituoso que emprestam a Agostin ho : "Meu Deus, se eu fosse Deus e o senhor fosse Agostinho, eu preferiria que o senhor fosse Deus e eu Agostinho 1 9 " . Se fosse pensado, esse amor ex t át i co acabaria aparecendo como se não distinguisse mais as pessoas em jogo , essas pessoas mesmo sem as quais ele no entanto não pode ficar. Trata- se de um amor destruidor do s ujeito, sacrificial, louco. Como Lacan não teria aí encontrado seus filhotes, ele que já ligou amor e ódio e tomou um disc re to apoio no amor louco s urrealista20 ? Restam dois problemas . Lacan pode sustentar
ao mesmo tempo
sua
preferência pelo amor extático e identificar esse amor como sendo o do psicótico ? Não haveria outro amor verdadeiro senão o do psicótico ? Ou então seria preciso dizer que o psicótico representa esse amor extático de uma certa maneira, a ser distinguida de uma outra, que diria respeito a qualquer um? Outro problema não abordado : o caráter narcísico do am or, que não pode ser afastado com desprezo . Esse narcisismo encontra seu lu gar do lado do amor físico e somente desse lado. É por isso que só se pode falar de uma
preferência dada
por Lacan ao amor extático e não de uma pura e
simples eleição. A indicação do "recobrimento" é interessante a um outro título. Com efeito, aí se encontra a presença discreta da função do para além, que havi a aparecido pela primeira vez um ano antes .
Já
estava explícita em Tomás,
logo , no amor físico, a respeito do qual Rousselot escreve: " Com efeito, S. Tomás ensina que todo ser da criação , em cada uma de suas apetiçóes, desej a Deus mais profundamente que o objeto particular que ele visa2 1 " . O recobrimento , característico do amor físico, seria tal que, para além do amado como pequeno o utro, seria visado o grande Outro, o Outro absoluto, por conseguinte colocado , ali também, como existindo (mas abordado de outra maneira) . Aqui ainda, a preferência dada por Lacan ao amor extático 19 Ibid. , p . 78. 20 A fim de dar alguma carne a esse amor extático, poderemos nos reportar ao poema que Paul Eluard enviou a Joe Bousquet numa carta datada de 7 de dezembro de 1928 e que Bousquet publicou em Chantiers, nº 7•, novembro de 1929. Eluard havia pescado esse soneto, escrito por uma alienada, na tese de "um triste imbecil", mas cuja leitura ele no entanto aconselha a Bousquet, "enquanto enormidade". 21 P. Rousselot, Po11r l'histoire du probleme de l'amo111: . . , op. cit., p. 15.
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n ão pode valer de modo absoluto. Sem contar que não pode se satisfazer com a distinção de duas figuras do amor - verdadeira serpente marítima nos seminários. O importante, aqui, é que, posteriormente, essa função do para além vai de certo modo se consolidar e assim participar da construção do arcabouço do amor.
CAP ÍTU LO
Ili
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RE C USA C RÍ TICA 0 0 PAR NARC I S I SMO-ANAC LITI SMO Dezembro de 1956 é notadamente dedicado a criticar e a pôr de lado o que alguns dos ouvintes de Lacan haviam aprendido de Freud em matéria de amor. Tudo se passa como se, aprestando-se para trazer certas novidades nas r sessões de janeiro de 1957 do seminário A relação de objeto e as est uturas .freudianas, Lacan fosse levado a fazer uma limpeza geral. Do que se trata? A teoria freudiana dita do "tubo em U " supostamente deve estabelecer a relação em balança entre amor de si (narcisismo) e amor de objeto (anacli tismo): todo investimento libidinal que não fosse lançado na conta de um o seria na conta do outro, e vice versa. Freud não estava sem apoio de bom senso para escorar sua "teoria anaclítica", como a nomeia Lacan. ·Não parece empiricamente exato que amar carregue consigo um certo empobrecimento do investimento do eu [mot] enquanto o amado, este, se beneficia de um excesso de investimento (retomado desse próprio empobrecimento), de uma superestimação que parece só ter pouco escoramento em seu valor próprio? No entanto, Lacan vai se dedicar a, como mais tarde vai dizer, "esvaziar" essa evidência. Essa tentativa não espanta muito: ele já não manifestou que não se satisfaria com um amor unicamente localizado no imaginário? Assim, as afirmações de 19 de dezembro de 1956 vão ser dedicadas a uma dupla carga contra a teoria do tubo em U . A primeira o encara em seus dois polos, a segunda se refere apenas ao anaclitismo. Primeira carga 1 : haveria "contradição" em Freud pelo fato de que ele atribuiria a necessidade de ser 1
Jacques Lacan, La relation d 'objet, Paris, Le Seuil, 1 994, p . 83. Doravante: A relttçdo de objeto.
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amado ao lado anaclítico e a necessidade de amar ao lado narcísico. Lac a n não cita nenhum texto de Freud, mas precisa em que, desse lado, narcísico, a coisa é mais sensível: o tipo de atividade própria ao narcisismo implicando o desconhecimento do outro (narcisismo... segundo Lacan) não pode vale r como uma oblativa necessidade de amar. A segunda carga diz respeito ao anaclitismo. Já se deplorou, a expo sição em que, pela primeiríssima vez, Lacan teria falado do amor ligando- o à perversão (fazendo do amor uma perversão?) não está acessível em lugar algum. Mas parece bem que esse 19 de dezembro de 1956 valha como um a sessão de recuperação - ainda que, do texto perdido àquele dessa sessão, as coisas possam ter variado. Esse jogo perversão/amor é tanto menos des prezível porquanto a perversão vai intervir como um dos três elementos do tripé clínico sobre o qual será fabricado o arcabouço do amor. Nesse 19 de dezembro de 1956, Lacan toma suas referências num chamado "esquema do fetichismo", que aqui está:
PAI
A relação anaclftica é uma persistência, no adulto, de uma relação infantil. Duas páginas precisam essa relaç ã o. O homem adveio como fa lóforo, e até "mestre" do falo (nada menos evidente, no entanto, que nos lembremos apenas de Ovídio a se desesperar com a inércia persistente d e seu pênis2); e é a esse homem prevenido, único a poder satisfazê-la, que a mulher se endereça (não se discutirá aqui esse "fato"). Essa configuração
2
Ovide, Les amours, texto estabelecido e traduzido por Henri Bornecque, introdução e notas de Jean-Pierre Néraudau, Paris, Les Belles Lettres, 2002, p. 1 5 1 - 1 57.
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o d eria ser qualificada de "ótima" se não se tratasse da "mulher materna", ; relação mulher homem escorando-se na relação mãe criança. O esquema do fetichismo é produzido num contexto que ressalta q u e chegar à falta de objeto já é um jogo no plano imaginário - o que vai se afigurar precioso, quando se tratar do amor. Com efeito, a perversão tem a propriedade de realizar um modo de acesso a esse para além da imagem do outro que caracteriza a dimensão humana. Mas [sublinho] ela só se realiza em momentos como os que sempre produzem os paroxismos das perversões, momentos sincopados no interior da história do sujeito [ . . . ] . Durante essa passagem ao ato, algo é realizado, que é fusão, e acesso a esse para além. A teoria anaclítica freudiana formula como tal essa dimensão transindivi dual, e chama Eros a união de dois indivíduos [ . . . ] . Essa unidade é realizada em certos momentos da perversão, mas [sublinho] o próprio da perversão é precisamente que essa unidade só possa ser realizada em momentos que não são ordenados simbolicamente3 •
Podemos encontrar nessas observações com o que esclarecer o feti chismo, mas também ver nisso um viés eleito para tomar distância, a partir do fetichismo, em relação ao eros freudiano. De que maneira? b fetichista se identifica com o objeto, com a criança do esquema. Sua prática erótica, a que lhe permite ter acesso à falta de objeto no plano imaginário, lhe dá o acesso, para além do objeto, ao falo (exemplo canônico: o sapato é falo fetichizado). Entretanto, o fetichismo ensina que isso só se dará no "curto instante" de uma "iluminação fascinante" (o próprio momento da satisfação erótica) e à custa de uma perda do "objeto primitivo", a saber, a mãe. Nesse esquema, o traço criança falo, que seu redobramento sublinha, transcreve a prática fetichista. A relação mãe falo por certo faz parte disso, mas na medida em que o acesso ao falo equivale, não menos pontualmente, a uma destruição da mãe. Quanto às três linhas centrais, elas desenham a relação primitiva na qual se apoia a satisfação anaclítica do fetichista. 1
J. Lacan , La relati011 d'objet, p.
85.
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Uma reserva importante é aqui trazida ao Eros freudiano unificador. Cer to, Eros é reconhecido suscetível de unificar, mas pontualmente. Nada convida a ler essa reserva como própria à perversão. Muito pelo contrário, a perversão, como com frequência quando Lacan apela para uma entidade clínica, ou até lhe redesenha o teor, aí é convocada por seu caráter exemplar. Em matéria de unificação erótica, ninguém faz melhor que o perverso, ao passo que ele mesmo exemplifica melhor que qualquer um o que acontece em qualquer pessoa. Logo, a dualidade narcisismo-anaclitismo não pode de modo algum valer como a última palavra sobre o amor. Lacan abre lugar. Não menos importante de reter, um outro traço diz respeito ao para além do objeto . Lembrança: essa função do para além recebeu primeiramente como argu mento o "todos os homens" para além de um homem, o "todas as mulheres" para além de uma mulher; em seguida foi, com o amor extático, o Outro absoluto, em que o para além vem ao primeiro plano. Eis agora, terceiro argumento, o falo. Ofetichismo escora em Lacan o primeiríssimo aparecimento do falo nesse lugar de para além do objeto amado.
A I N STITUIÇÃO DA FALTA NA RELAÇÃO COM O OBJ ETO Um arcabouço [um bâtt] (de bastjan, "montar ou construir com a casca da árvore, bast") , em costura, já é uma montagem das peças da roupa futura, a qual, no entanto, ainda não está cosida nem pode ser usada. Além do fe tichismo, dois outros dados clínicos, tomados em Freud, vão permitir que Lacan construa o que chamo seu arcabouço do amor: a Jovem Homossexual (e portanto, uma segunda vez, a perversão) e Dora. A Jovem Homossexual, mais precisamente sua maneira de amar a dama, leva Lacan a afastar uma afirmação que decerto não se encontra tal qual em seu texto, mas que alguns poderiam ler, na sessão de 19 de dezembro de 1956 de seu seminário, a partir da seguinte afirmação: Tudo o que sabemos da prática do amor cortês e da esfera na qual ele se localizou na Idade Média implica uma rigorosíssima elaboração técnica
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da abordagem amorosa, que comportava longos estágios de contenção na presença do objeto amado, tendo em vista a realização desse para além que é buscado no amor, o para além propriamente erótico4 •
Poder íamos entender nesse "para além propriamente erótico" uma referên cia ao ato sexual, o amor sendo então apresentado como uma es p é cie de estribo para a realização desse ato. Sem se confundirem, amor e gozo sexual de qualquer modo andariam de mãos dadas - assim como, 5" e m Ovídio, em quem "o fogo do amor é alimentado pelo desejo físico . No entanto, outra frase dessa mesma sessão vem afastar essa leitura: O que é aqui visado e efetivamente atingido é, sem dúvida alguma, um para além do curto-circuito fisiológico, se assim podemos nos exprimir. Para atingi-lo, é feito um uso deliberado da relação imaginária como tal6 •
A trepada, aqui qualificada de "curto-circuito fisiológico", não é o que 0 amor visa, nem o que o amor alcança. Qual é, pois, esse "para além propria mente erótico" que, para além da trepada, o amor visaria e atingiria? Várias respostas vão se apresentar, desde 9 de janeiro de 1957, seis exatamente, a quinta sendo chamada a se tornar, pelo menos por um tempo,_ canônica. Primeira asserção, relativa ao amor "platônico [da Jovem Homossexual] no que ele tem de mais exaltado": É realmente o amor sagrado, se podemos dizer, ou o amor cortês no que ele tem de mais devoto. [ . . . ] Em suma, ele [Freud] situa a relação da jovem com a dama no mais alto grau da relação amorosa simbolizada, colocada como serviço, como instituição, como referência. [ . . . ] é um amor que, em si, não só dispensa a satisfação, mas visa muito precisamente a não-satisfação. É a 4 J. Lacan, La relation d'objet, p. 8 8 . s Jean-Pierre Néraudau , Prefácio a Lettres d'amo111; Les Héroiâes, edição apresen tada e ano tada por Jean-Pierre Néraudau, tradução de Théophile Baudement, Paris, Gallimard, 1 999 , p. 3 5 . 6 J. Lacan , La relation d'objet, p. 88 .
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própria ordem na qual um amor ideal pode desabrochar - a instituição da falta na relação com o objeto [sublinho] 7 .
''A instituição da falta" aqui está localizada "na relação com o objeto" . Entretanto, logo depois, Lacan vai se corrigir: ela tem seu lugar não no sujeito que ama mas no outro, o qual "dentro" também é um p ara além. Esses dois termos localizadores são lidos em outra passagem, em que também transpa rece uma alusão ao amor extático, esse amor que implica o "aniquilamento" do sujeito que ama. Para ser lida, a afirmação pede que nos lembremos que, segundo o que Freud concebeu, a Jovem Homossexual se precipita no amor da dama depois de ter ficado decepcionada por não ter recebido um filho de seu pai8 , pai este que, simplesmente, acaba de fazer esse filho não nela, sua filha, mas em sua mãe (a mãe... dela): [ . . . ] o que é desejado está para além da mulher amada. O amor que a j ovem devota à dama visa algo que é outra coisa que ela. Esse amor que vive pura e simplesmente na ordem do devotamento e que leva ao supremo grau o apego do sujeito e seu aniquilamento na Sexualüberschatzung9, Freud pa rece reservá-lo, e não é por nada, ao registro da experiência masculina. [ ... ] A reflexão da decepção fundamental nesse nível, sua passagem ao plano do amor cortês, a saída que o sujeito encontra nesse registro amoroso colocam a questão de saber o que é, na mulher, amado para além dela mesma, e isso questiona o que é realmente fundamental em tudo o que se refere ao amor em seu acabamento i o .
Antes de mais nada é convocado "o que é desejado" para além da mulher amada, desejado, não amado. Lacan colocaria juntos desejo e amor?
7 Ibid., p. 109. 8 O que ela nunca admitiu, hoje sabemos, achando até extravagante essa "interpretação" de Freud. Ver, de lnes Rieder e Diana Voigt, Sidonie Csillag, homosexuelle chez Freud, lesbienne dans !e siecle, trad. do alemão por Thomas Gindele, Paris, Epel, 2003. 9 Überschiitzen: sobrestimar, supervalorizar, sobretaxar, superestimar, presumir demais; Übers chiitzung;. sobrestimação, supervalorizaçáo. 10 J. Lacan, La relation d'objet, p. 1 10. Sublinhei certos termos franceses usando itálicos.
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N ão é o que ele está fazendo ao dizer que o amor institui a falta na relação com O objeto? Há aí um flerte com a possibilidade de conjugar amor e de sej o. O ra, se existe alguém que os diferencia, é bem a Jovem Homossexual, e até O ponto de fazer (segundo Lacan, tolo de Freud) de seu amor pela dam a a "solução" da "decepção fundamental" de seu desejo de criança. Há "p assagem ao plano do amor cortês"; ou ainda, outra palavra marcada em Lacan, "reflexão" (não se trata do espelho mas, ao contrário, do deslizamento d a problemática imaginária do desejo de criança para o plano simbólico do amor); outra palavra utilizada: "inversão"; a Jovem Homossexual encontra u ma "saída" nesse "registro amoroso". Essa mudança de registro basta para resolver a questão amor desejo? Não parece, pois logo é precisado que " O que é, propr iamente falando, desejado na mulher amada é justamente o que lhe falta", esse objeto primordial (entender: o falo) do qual a criança poderia ter sido um substituto imaginário e ao qual o sujeito volta. É esta a flutuação do trilhamento antes que ele dê a fórmula. Assim, vamos ler, mais adiante, uma frase em que esse mesmo objeto buscado, isto é, o "aquilo que lhe falta", é posto na conta do amor e não mais do desejo. Por enquanto, subsiste a flutuação. Na Jovem Homossexual, o amor vem resolver um impasse do desejo (sua decepção). Tal movimento subjetivo não recebe nome, ao contrário do recalque, da renegação, da denegação, da foraclusão, etc. Várias palavras designam essa operação (passagem, reflexão, inversão), sem que nenhuma, jamais, seja elevada à dignidade de conceito. Essa operação, é verdade, é um pouco complexa. Lacan usa a clássica equivalência freudiana criança/falo, sugerindo que essa equivalência teria atuado na própria Jovem Homossexual. Ela não terá recebido do pai, sob a forma da criança, o falo. E, aí também, não é um conceito que Lacan use; ele não fala, por enquanto pelo menos, nem de frustração, nem de privação, nem de castração (célebre ternário lacaniano, é verdade ainda a vir), mas de uma "decepção". O assunto tem sua lógica temporal: ela "ia encontrar" esse falo (Lacan gostava de sublinhar a espécie de suspense que comporta, em francês, a afirmação "a bomba ia estourar"). Como a mãe teve um filho, a Jovem Homossexual teria reco nhecido que não foi ela a eleita do pai, de um pai que - isso vai contar -, ao contrário do pai de Dora, não é impotente. Em outras palavras, por essa
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mudança de registro, essa passagem ao plano simbólico, nem tudo vai estar inteiramente perdido para ela, no que se refere a esse falo. O fato é qu e essa operação comporta um preço, isto é, não só uma renúncia à satisfação (sexual e amorosa), mas uma visada como tal da "não-satisfação" . Esse falo que é amado para além da dama não é um objeto do qual ela tiraria urn a satisfação qualquer. O que deve ser entendido em função da insistência de Lacan em referir todo o assunto ao registro simbólico, o do amor cortês. O fato de esse falo ser simbólico implica que ele seja colocado em jogo enquanto não satisfatório. Mas como esse falo pode ser amado para além da amada, da dama? A resposta se lê nas duas próximas sessões e, com ela, vão vir novas e importantes asserções a respeito do amor.
DO AMOR COMO DOM
Seja, portanto, a afirmação do dom ( 16 de janeiro de 195 7): Com efeito, ela trata essa dama num estilo altamente elaborado de relações cavalheirescas e propriamente masculinas, com uma paixão oferecida sem exigência, desejo, nem sequer esperança de retribuição, com o caráter de um dom, aquele que ama projetando-se para além até de toda espécie de manifestação da amada 1 1 • Usando seu esquema L, Lacan vai escrever as duas posições subjeti vas da Jovem Homossexual, a que precede o amor da dama, depois a desse amor realizado. PRIMEIRA CONFIGURAÇÃO :
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Mãe imaginária
Criança real
Pênis imaginário
Pai simbólico
J. Lacan, Ln relation d'objet, p.
1 2 1 - 1 22.
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O A RC A B O U Ç O D O A M O R
RA Ã SEG UN DA CO NFI GU Ç O
Dama real
Criança
pênis simbólico
Pai imaginário
Bastaria jogar com o esquema L como com um bom velho metro de m arceneiro que desdobraríamos ainda mais para que surgissse, vista a partir de S , a função do para além: A para além de a (completamente desdobrado, teríamos a sequência S , a' , a, A) Criança
S
Pai imaginário
a
z
à
Dama real
A
Pênis simbólico
De acordo com essa segunda configuração do esquema L, a dama, em a', assumiu o lugar da criança como objeto de amor. Em a, o pai ima ginário com o qual se identifica a Jovem Homossexual (assim tornada ao realizar, se ouso dizer, esse segundo esquema), amando a dama conforme u m miinnliches 1j,pus (Freud, citado por Lacan). Ora, o comentário desse esquema dará lugar à quarta e importante asserção anunciada: Se a dama é amada, é precisamente na medida em que ela não tem o pênis
simbólico, mas tem tudo para tê-lo, pois [sublinho] ela é o objeto eleito de todas as adorações do sujeito 1 2 •
O espantoso "pois" poderia ser assim desenvolvido: "Eu te ofereço isso mesmo que, ao acolhê-lo, tu me indicas que te falta" . Estamos quentes! Lacan ainda não disse sua fórmula do amor, pelo menos aquela que se tornará célebre e que só será produzida na sessão seguinte. Por enquanto, atuam dois "ele não tem" : o sujeito que ama ama o que ele não tem; e a mulher amada é amada por não ter (o falo). Ainda não está feita a junção que vai ligar esses dois "ele não tem" . Por enquanto, amar é dar ao amado o que ele 12
J. Lacan, La relation d'objet, p.
1 28.
ro8
O AMOR LAC A N
não tem, é dar o que não se tem a alguém que não o tem. Pouco importa, iss o "nos coloca justamente no cerne da relação amorosa e do dom 1 3 " . Não se trata apenas do amor mas do "ficar apaixonado". O amor reconfigura certos dados presentes antes de sua ocorrência. Ele não nasce de nada - já O banquete de Platão fazendo uma criança de Poros e Pên ia. A bateria dos termos aqui é diferente, enquanto que o uso do esquem a L oferece outra lição, mostrando que o amor não é assunto puramente dual. Mas a marca mais sensível dessa relativa complexidade dos elementos em jogo no amor está no fato de o pênis, não por certo como simbólico mas com o instrumento da satisfação erótica, ficar fora do amor da Jovem Homossexual por sua dama (esse traço foi confirmado pelo que se ficou sabendo depois de sua vida). Ele permanece no pai, observa Lacan; assim, essa localização do pênis fora do amor que se tem pela dama faz parte desse amor. Antes da sessão de 23 de janeiro de 195 7, em que pela primeira vez o amor aparece como dom daquilo que não se tem, toda uma série de pro posições foram portanto levantadas: 1) o amor como instituição da falta na relação de objeto; 2) o amor pelo falo para além do amado; 3) o amor como dom; 4) o amor como dom ao amado daquilo que ele não tem. Uma quinta proposição, esta, vai se basear no caso Dora, confrontado com o da Jovem Homossexual. O que Dora traz a Lacan, que não seria acessível apenas com o caso da Jovem Homossexual e que permitiria, depois de ter abordado o amor em termos que acabam de ser lembrados, que ele encer rasse seu percurso com a afirmação do amor como dom daquilo que não se tem? Resposta: a impotência do pai. Dora está frustrada por não receber simbolicamente do pai o "objeto faltante 1 4 ". Curiosamente, essa afirmação introduz uma fórmula nos antípodas da definição futura do amor, fórmula em que Lacan declara: " Eis agora o pai, que é feito para ser aquele que dá simbolicamente esse objeto faltante. Aqui, no caso de Dora, ele não o dá porque não o tem". Só se daria o que se tem? Lacan vai dever reposicionar o dom, notadamente em relação a Marcel Mauss e a Claude Lévi-Strauss, a fim de fazer entender que não. Ele vai dever, no mesmo passo, diferenciar
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14
J. Lacan, La relation d'objet, p. Ibid. , p. 1 39 .
1 29 .
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am or e desejo. Em outras palavras, a nova definição do dom é a um só tempo iso mor fa e correlativa de sua distinção do amor e do desejo: O que é dar? Não há outra dimensão introduzida na relação de objeto no nível em que ela é levada ao grau simbólico pelo fato de o objeto poder ser dado ou não? Em outros termos, é sempre o objeto que é dado?
Seja a troca tal como a usavam Marcel Mauss para analisar o potlatch e Claude Lévi- Strauss, as estruturas elementares do parentesco: objetos circulam, ou mulheres tomadas como objetos. A lei da troca é a recipro cidade (até quando é posta em jogo uma lógica do suplemento, como no potlatch). Ela se formula como: "Não se tem nada por nada". Lacan vai to mar essa fórmula ao pé da letra e fazê-la assim ressoar de outro modo: não se tem nada, mas também é por nada. Assim, a fórmula acaba enunciando "a pura gratuidade 1 5 " , ou seja, uma nova dimensão do dom. Dito ainda de outro modo, nunca é tanto um objeto que se dá quanto um signo. Daí o primeiro aparecimento, nos seminários, do amor como dom daquilo que não se tem: O que intervém na relação de amor, o que é pedido como signo de amor, é sempre algo que vale apenas como signo. Ou para ir ainda· mais longe, não há maior dom possível, maior signo de amor, que o dom daquilo que não se tem. Mas observemos bem que a dimensão do dom só existe com a introdução da lei. Como nos afirma toda a meditação sociológica, o dom é algo que circula, o dom que você faz sempre é o dom que você recebeu. Mas quando se trata do dom entre dois sujeitos, o ciclo dos dons vem ainda de outro lugar, pois o que estabelece a relação de amor é que o dom é dado, se podemos dizer, por nada.
O estreito foi cruzado. Lacan pode voltar a insistir e alojar suas pre cedentes asserções nesse dom daquilo que não se tem: "Em outras palavras, o que faz o dom é que um sujeito dá algo de maneira gratuita, na medida 15
J, Lacan, La relation d'objet, p.
140.
1 10
0 A M OR LACA N
em que por trás do que ele dá há tudo o que lhe falta, é o que o sujeito sacrifica para além do que ele tem" . Depois, um pouco mais adiante: "O que é amado num ser está para além do que ele é, a saber, no fim das con tas, o que lhe falta" . Há quatro ocorrências do verbo "ser" nessa frase. A estenotipia comporta sete! Esse momento do percurso de Lacan é anterior à definição do sign ifi cante enquanto diferente do signo, o primeiro representando o sujeito junto a outro significante, o segundo representando algo para alguém. Entretanto, notaremos que já aqui a linguagem do amor é feita de signos e não de sig nificantes. Lemos bem: "Não há maior dom possível, maior signo de am or que o dom daquilo que não se tem" . Há, estilisticamente, redundância: o maior dom é o maior signo; o teor do dom é o do signo. Uma vez produzida, a definição do signo vai se aplicar perfeitamente a esse propósito. O maior signo/dom do amor representa algo para alguém. O quê? O falo, ele mesmo tomado como um signo. Deseja-se com sign ificante, ama-se com sign os. Todo amoroso pratica isso. O amor é fabricado como uma linguagem de signos. Assim aparece, por exemplo, o estatuto da cançoneta que terá presidido ao encontro amoroso, igualmente o dos dons de amor que, justamente, não valem tanto como objetos quanto como signos do amor: digo-te novamente meu amor usando hoje o vestido que me deste, ao oferecer a teu olhar, em nosso presente, esse signo de meu e de teu amor. Língua de sign os, a língua do amor é uma linguagem de surdos e mudos; de cegos igualmente, como se diz comumente que ele é. Lacan não inventa essa conivência do amor e do signo. Encontramo-la em Ovídio numa página feliz dos Amores: o marido, a amante e o amante participam de um jantar, outros convivas igualmente. O que propõe, o que ensina o amante à sua amante, numa carta que lhe envia logo antes das festividades? Nada mais que o código da linguagem privada dos dois: Quando pensares no ardor de nossos amores, toca com teu dedo delicado tuas faces rubras. Se, em ti mesma, tiveres queixas de mim, embaixo de teu ouvido graciosamente para a tua mão. Quando meus gestos ou minhas palavras te derem prazer, luz de minha vida, roda teu anel por muito tempo
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O A RCA B O U Ç O D O A M O R
nos dedos.Toca a mesa com teus dedos como os suplicantes o altar, quando desejares a teu marido todo s os males que ele merece 1 6 • O amor é feito de signos; o dom de amor é dom de signos, dom de u m signo (mas aí deixamos Ovídio para nos vermos em Lacan) que não se tem, do falo. ESQYEMA D O VÉ U Os elementos agora estão instalados para que Lacan entregue a seus ouvintes seu arcabouço do amor. Ele faz isso, durante a sessão seguinte de seu semi nário (3 0 de janeiro de 1957), ao trazer um chamado "esquema do véu" . Vão voltar o fe tichismo, desta vez como terceiro pé clínico do arcabouço do am or, assim como a função do para além e a distinção mantida do amor e do desejo. A fórmula "amor por nada" já ocorrera (23 de janeiro), a respeito da Jovem Homossexual, maneira de dizer que seu amor pela dama era "absolu tamente desinteressado 1 7 " . Oito dias mais tarde, esse "nadá' toma lugar no arcabouço do amor, enquanto um novo elemento desse arcabouço, o véu, ofe recerá alguma consistência à função, até então mais abstrata, do para além. Bem no começo desse 30 de janeiro, Lacan tem o sentimento de ter b em recentemente trazido o que ele chama então "esquemas fundamentais". Ele o comunica lembrando "essas afirmações paradoxais - o que é amado no objeto é aquilo que lhe falta, só se dá aquilo que não se tem 1 8 " . Quanto ao "esquema", só agora ele o apresenta. Como? Aplicando-o ao fetiche. Esse objeto importa, pois, como o objeto do dom amoroso, ele também é simbólico. O objeto amado para além do amado "com certeza não é nada" , mas, mais ainda, deve "ser esse nada" 1 9 • Com efeito, se o símbolo é a morte da coisa, como é dito já há um certo tempo, o dom simbólico de amor, 16 17 18
19
Ovide, Les amours, op. cit. , p. 1 3 .
J. Lacan, La relatio n d'objet, p. Ibid. , p. 1 5 1 . lbid. , p. 1 5 5 .
1 45 .
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O AMOR LAC A N
dom de um símbolo (o falo), só pode ser dom de nada. O dom do falo é insepardvel do dom de nada, é necessariamente dom de nada. Mas como, em relação ao amado, situar esse nada que lhe é oferecido? Como esse nada se "materializa"? O véu, a cortina diante de algo, é ainda o que melhor permite imaj ar a situação fundamental do amor. Pode-se até dizer que, com a presença da cortina, o que está para além como falta tende a se realizar como imagem . Sobre o véu se pinta a ausência. [ . . . ] A cortina é, se podemos dizer, o ídolo da ausência.
Referência é feita, então, ao véu de Maya, "metáfora mais comumente em uso para exprimir a relação do homem com tudo o que o cativa". Depois vêm o "esquema do véu" (esquema tanto do fetichismo quanto do amor: o flerte prossegue entre amor e perversão) e seu comentário:
• Objeto
Sujeito
Nada
Cortina ESQUEMA DO VÉU
Eis o sujeito e o objeto, e esse para além que é nada, ou ainda o símbolo , ou ainda o falo na medida em que falta à mulher. Mas tão logo se instala a cortina sobre ela se pode pintar algo que diz - o objeto está para além. O objeto pode então assumir o lugar da falta e ser também como tal o suporte do amor, mas na medida em que não é, j ustamente, o ponto onde se amarra o desejo. De certa maneira, o desejo aparece aqui como metáfora do amor, mas o que o amarra, a saber, o objeto, aparece, este, enquanto ilusório, e enquanto valorizado como ilusório.
Véu ou cortina? Mas não é essa a própria inquietude do amor e igualmente a dificuldade do fetichismo, cuja ilusão sem cessar é ameaçada "pelo desabamento ou o levantar de cortina"?
1 13
O A R C A B O U Ç O D O A M OR
O início da sessão de 6 de fevereiro de 1953 recapitula o recente avanço sobre o amor que surpreendeu alguns. Já tornado mais complexo co m a introdução do para além e da falta, a relação sujeito-objeto sofreu u ma complicação suplementar com a introdução do véu, colocado antes do objeto e onde "vem figurar precisamente aquilo que falta para além do . 20 o bJeto " Duas observações provisoriamente conclusivas: antes de mais nada, essa fo calização do amor sobre a falta no outro prolonga o amor como uma q uestão de ser (ôntica), e não, como para o desejo, de satisfação. Lacan lembra isso ainda em 6 de março de 1957: o amor visa não o objeto legal (o da união consagrada), tampouco o objeto de satisfação, mas o ser. Segunda observação: a aceitação do simbólico que vemos aqui operar é anterior à definição acasalada do significante e do signo. A nova definição do significante virá modificar a abordagem do amor? Vemos mal que pudesse ter sido de outro modo - razão, também, pela qual essa configuração do am or acaba de ser apresentada como um arcabouço. Seu teor depende muito estreitamente do símbolo, precisamente, do falo como símbolo no sentido da ausência do objeto. Entrevemos que as peças da roupa assim dispostas p uderam jamais ter sido cosidas.
20
J. Lacan, La relation d'objet, p.
1 65 .
CAP ÍTU LO I V
0 AMO R É C Ô MI CO
A
ética da psicandlise vai introduzir o fin'amor no campo freudiano, não sem a intenção precisa e confessada de colocá-lo a serviço de uma nova teoria da sublimação - o que, aliás, estava explícito nos Minnesiin ger1. Entretanto, o amor é objeto de observações não desprezíveis nos dois seminários que precedem A ética, a saber, principalmente, As formações do inconsciente, mas também O desejo e sua intetpretação. As formações do inconsciente vão dar ao amor nada menos que seu registro. Não que o arcabouço tenha realmente mudado; aqui e ali vão reaparecer tal ou tal de seus elementos: 1) o amor como dom daquilo que não se tem volta com alguma insistência; 2) a problemática distinção amor desejo é escorada; 3) a função do para além vai ver seu âmbito ampliar-se. Logo, esse arcabouço continua mantido tal qual. Entretanto, como uma variação mínima da iluminação modifica uma cena, o amor será colorido de uma certa maneira ao longo desse seminário. Com efeito, nele bem cedo é afirmado que o amor é um sentimento cômico, primeiro ponto a ser discu tido antes de encarar suas consequências primeiramente sobre o complexo de Édipo, mas também, e de maneira mais espantosa, sobre a paradigmática fantasia "espanca-se uma criança". Outra determinação do amor, introduzida com As formações do inconsciente e O desejo e sua interpretação, diz respeito ao lugar e à incidência do amor do ponto de vista de um ternário hoje um pouco esquecido, parece: o ternário necessidade/demanda/desejo. O amor ali encontra um novo lugar. Mas não sem levantar, terceira determinação
1 Mais exatamente em André Moret, na introdução de sua Anthologie du Mi1111esa11g, Paris, Aubier, coll. "Bibliotheque de philologie germanique", 1 949, p. 29.
O A M O R LACAN
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dessa época dos seminários, a possibilidade problemática de dois amores, 0 do homem pela mulher, o da mulher pelo homem.
DO CÔMICO COMO REG I STRO DO AMOR Lacan havia introduzido o amor como dom ao se afastar da perspectiva "de troca" do dom; da mesma forma, ele vai ressaltar o amor como sentimento cômico ao desenvolver uma inédita versão do que seria o cômico (da mesma forma, ainda, o posicionamento do amor como sublimação exigirá uma remodelagem desta). Em que base(s) foi portanto formulado o cômico do amor? Questão ainda mais importante porquanto o amor encarado como sentimento cômico foi mantido quase até o fim do percurso de Lacan. Aliás, não po deria ter sido diferente por parte de alguém que escreveu, é verdade que bem mais tarde: "Nada pode ser dito 'a sério' (ou seja, para formar série limite) a não ser tomando sentido da ordem cômica 2 " . O próprio Lacan foi publicamente declarado "palhaço" enquanto vivo, e não é seguro que a coisa lhe tenha desagradado. Uma testemunha escrevia recentemente que ele imprimiu "na história da psicanálise na França, muito terna antes dele, o ar, um pouco frívolo talvez mas jamais fastidioso, de uma comédia de Sacha Guitry cheia de brigas, surpresas e repercussões3 " . O mesmo, a saber, Maurice Pinguet, não hesita em falar das "más maneiras" (à moda surrealista?), com efeito patentes em Lacan, ao passo que são latentes em Freud4 • Ele escreve ainda: Esse homem pronto para zombar não via portanto que ele pontificava, que ele se levava a sério? Mas não, ele teria respondido que o fato de nada levar a 2 Jacques Lacan, 'Tétourdit", Scilicet, nº 4, Paris, Le Seuil, 1973, p. 44. 3 Maurice Pinguet, "Stele pour Jacques Lacan", L'infini, nº 88, outono de 2004, 1 16. 4 Ver, por exemplo, suas maneiras duvidosas (no sentido das Ligações perigosas) com Ferenczi Oean Allouch, La psychanalyse: 1111e érotologie de passage, Cahiers de L'Unebévue, Paris, Epel, 1998, p. 69 sq.) .
É CÔM I CO O AMO R
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sério o impedia de ser paranoico: por trás de momentos de ênfase, orgulho, violência, sentia-se passar o riso e a paródia5 .
O saber maneira Lacan é barroco, alegre, vivo; ele se abre amplamente para O que Pinguet lembra de Mallarmé, para "a iniciativa deixada às pala vras" ("alínguà' é o conceito dessa iniciativa). Mesmo quando não conseguia avançar, Lacan não dava essa impressão. Lacan talvez seja unicamente isso: u m tom na psicanálise. Logo, o fato de o amor ser um sentimento cômico será dito por um personagem ele mesmo amplamente situado na vertente cô m ica. O que teria acontecido se ele tivesse declarado isso num tom trágico? S ua p roposta simplesmente não teria valido nada. Costuma ser de feliz estratégia, quando é possível, ler Lacan a partir daquilo que, no que ele trilhava, chocava seus ouvintes. Em 29 de janeiro de 1958, voltando à sessão de 1 8 de dezembro de 1957 e confrontado com 0 fato de que sua proposta não fora "bem engolida", ele lhes confiava que a tirara de Hegel6 • Com efeito, Hegel fora discretamente mencionado em 1 8 de dezembro, mas antes de modo evasivo: De onde vem a comédia? Dizem-nos [na verdade, Hegel] que ela sai do banquete em que, em suma, o homem diz sim numa espécie de orgia - dei xemos a essa palavra toda a sua imprecisão. O banquete é constituído pelas oferendas aos deuses, isto é, aos Imortais da linguagem. No fim das contas, todo o processo de elaboração do desejo na linguagem se resume e se conjuga no consumo de um banquete. Todo esse desvio serve apenas para voltar ao gozo, e ao mais elementar. Eis por que a comédia faz sua entrada naquilo que é possível considerar, com Hegel, a face estética da religião7 •
A religião estética (Kunstreligion) intervém bem no fim da Fenome nologia do espírito, logo antes do saber absoluto. Ao contrário de Kant, que reduz a religião a uma pura fé moral, Hegel ressalta seu valor especulativo.
1 M. Pinguet, "Stele pour Jacques Lacan", are. citado, p. 1 18. J. Lacan, Les.fomU1tions de l'inconscient, Paris, Le Seuil, 1998, p. 212. Doravante: As.formações... 7 lbid. , p. 1 34.
6
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Em sua explicação de texto, Jean Hyppolite escreve que, em Hegel, a religião ''jd [sublinho] é a apresentação da verdade especulativa mas num elemen to particular, o da representação ( Vorstellunf) " . No movimento de realização da consciência de si, Hegel distingue três sucessivas modalidades da religião: religião natural, religião estética e religião manifesta (ou revelada) . Ora , nesse mesmo movimento, no seio da religião estética, o trágico precede 0 cômico. Logo, o cômico lhe é superior, notadamente porque ali é dissolvida a efetividade do terror. O terror, tal como Foucault sublinha em seu curso Segurança, território, população, não é alguém a aterrorizar um outro, mas o fato de que quem aterroriza é ele mesmo aterrorizado. A comédia - assirn se encerram as páginas relativas à religião estética - "é o retorno de tudo 0 que é universal na certeza de si mesmo, e essa certeza é, por conseguinte, a ausência completa de terror, a ausência completa de essência de tudo o que é estranho, um bem-estar e um relaxamento da consciência tal como não se encontra mais fora dessa comédia9 " . Uma afirmação para não ser lida como psicólogo. A passagem a que Lacan recorre sem citá-la dizia isto: No que se refere ao elemento natural, a consciência de si, efetiva já na utilização desse elemento para seu ornamento, sua morada, etc., depois no consumo no festim de sua própria oferenda, mostra-se como o destino ao qual é desvelado o segredo da essencialidade autônoma da natureza; no mistério do pão e do vinho, ela se apropria deles, com a significação da essência interior e na comédia ela é em geral consciente da ironia de tal significação 1 0 •
Logo, Lacan se baseia em Hegel, usando, se quisermos, o argumento de autoridade - um gesto que nem sempre merece a habitual depreciação que o atinge. No entanto, ele retoma a proposta hegeliana em seus próprios termos. Com efeito, ele define a comédia como se ela instaurasse uma certa Jean Hyppolice, Genese et structure de la Phénoménologie de l'esprit de Hegel, Paris, Aubier Montaigne, coll. "Philosophie de l'esprit", 1 946, p. 5 1 1 . 9 Hegel, Phénoménologie de l'esprit, t. II, trad. Jean Hyppolite, Paris, Aubier Montaigne, 1 94 1, p. 257. 10 Ibid., p. 2 5 5 . 8
MICO O AMOR É CÔ
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com a linguagem (talvez o que Hegel chamava "a essencialidade relaç ão do si natureza") . Certo, "esse si só pode ser entendido para além de autô n oma da linguagem 1 1 " ; pouco importa, ele ro da a elaboração do desejo na rede da "veicula e conserva a existência primeira da tendência" . Lacan lê como um "re torno da necessidade sob sua forma mais elementar" a maneira como Aristófanes, em As nuvens, ridiculariza Sócrates: um ancião a usar de toda u ma série de truques para satisfazer suas vontades, escapar aos credores, 12 re ceber dinheiro, etc. ''A coisa vai longe", diz ele • O cômico consistiria nesse rebatimento do desejo sobre a tendência, o que advém na medida em q ue se está "comprometido da maneira mais fascinada e mais obstinada em 13 alg um objeto metonímico " . Definição: O princípio da comédia é expô-las [trata-se das paixões] como tais, isto é, centrar a atenção num isso [sublinho] que crê inteiramente em seu objeto metonímico. Confia nele, o não quer dizer que a ele esteja ligado, pois tam bém é uma das características da comédia que o isso [sublinho] de qualquer sujeito cômico dela saia sempre ileso 1 4.
Tal como nos é apresentada na transcrição da editora Le Seuil, essa defi nição da comédia assinala silenciosa e oportunamente um problema, na medida mesma em que é inexata. Reportemo-nos à estenotipia: Lacan não havia falado de um isso mas de um si, e não nos espantamos muito com isso, haja vista que Hegel funciona aqui escondido. Por que ter virado para Freud uma afirmação informada por Hegel? Porque esse si, diferentemente do isso, n ão deve ser uma categoria psicanalítica? Porque Lacan não era um partidário do se/fl Permitimo-nos igual correção na medida em que está em questão a necessidade ou ainda o gozo elementar? Mas, justamente, essa necessidade elementar não é, como sugere o uso do termo "isso", da ordem da pulsão, que, esta, é uma montagem complexa (fonte, objeto, alvo, impulso) . Em 11 12 13 14
J.
Lacan, Les formatiollS de l'inco11Scient, estenotipia, sessão de 1 8 de dezembro de 1 9 57. Logo veremos por que não cito aqui a versão Seuil . lbid. , p. 1 3 5 . lbid. , p . 1 3 5- 1 36 . J . Lacan, Les formatiollS... , p, 1 36.
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0 A M O R LACAN
toda essa passagem, a pulsão, de modo preciso e legítimo, nunca está em questão. A comédia revela a necessidade na medida em que aí responde 0 puro consumo, o gozo "mais elementar" . Como, então, aí intervém o amor ? Lacan: "enquanto instrumento da satisfação" . Uma nova emboscada ali deve ser evitada: trata-se da satisfação a um só tempo da demanda teimosa , rígida, e da necessidade, não da satisfação do desejo. Algo ocupou o lugar da irrupção do sexo, e foi o amor - o amor chamado como tal, o amor que chamaremos o amor naif, o amor ingênuo, o amor que une dois jovens em geral bem bobões 1 5 •
Pela primeiríssima vez ocorre aqui em Lacan um jogo entre amor e sexo (uma substituição), um jogo prometido, anos mais tarde, a um consideráve l mas provisório futuro . . . Das análises então propostas, notadamente a de A escola de mulheres, só reteremos um ponto, o da declaração de amor. De onde vem tal decla ração? Obcecado pela paixão de não ser corno, Arnolfo fixou sua escolha numa menina de quatro anos, um anjo, e decidiu que ela seria sua mulher. A idiotice de Agnes lhe cai perfeitamente: ele poderá ser seu educador. Mas, observa Lacan a um só tempo divertido e sério, Agnes fala e sua ingenuidade torna sua fala bem mais perigosa que se ela fosse uma menina prevenida. A menina raciocina, e até chegar a arrazoar com seu educador ancião, ao ponto que, tendo as coisas mudado, ser ele, Arnolfo, quem se torna o ingênuo. E é no momento preciso em que ele se vê à sua mercê, permitindo até que ela conviva com o jovem Horácio (o "bobão" da citação acima), em que chega a aceitar tornar-se corno, que ele lhe diz seu amor. Declaração essa que, para qualquer um, parece de uma comicidade perfeita. Isto dito, dois enunciados parecem não combinar nesse 18 de de zembro de 1957: "Ora, o problema do Outro ["outro", na estenotipia] e • " O amor, e, esse o ponto no qual eu A 16 do amor esta, no centro do com1co ", e
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lbid.
J . Laca n . /.,,, fn, ..,,,,,;,, .,,
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CÔM I CO O AMOR É
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17 di go que se situa o auge da comédia clássica " . Dizer que o amor é "centro" o u "auge" da comédia é uma coisa. Dizer que ele mesmo é cômico é outra. Lacan dirá as duas, mas sem jamais se explicar sobre a passagem de uma à o utra asserção, como se fosse evidente essa inferência que não é uma, pois n ão h á razão alguma para admitir que essas paixões, sejam elas quais forem, q ue a comédia presentifica, sejam em si mesmas cômicas. Lacan diria a mesma coisa do ódio? Com certeza que não. Eis a passagem exata em que ele se a utoriza essa transposição:
[ . . . ] e quando digo pivô [o papel do amor que une os jovens bobões] , é bem porque o amor desempenha esse papel, não de ser ele mesmo cômico [sublinho] mas de ser o eixo em torno do qual gira todo o cômico da situação, até uma época que de modo bem nítido pode ser caracterizada pelo aparecimento do romantismo, e que hoje deixaremos de lado. O amor é um sentimento cômico. O salto é patente, valorizado pela alínea da estenotipia. Logo, não será u inj stificado, considerando essa intempestiva inferência, afirmar que se, em Lacan, o amor é um sentimento cômico, isso se deve. . . a ele. É assunto dele pensar isso e assunto dele ainda fazer com que seus ouvintes o admitam, embora até não consiga fundar a observação em razão. E talvez convenha entender seu apelo a Hegel como fundado nesse defeito lógico. Quais são as consequências disso? Ele obriga, assim, qualquer um a se pronunciar. De certo modo, seria um sentimento no sentido em que se diz que se tem o sentimento de que . . . isto, ou aquilo - o que não tem muito valor do ponto de vista da racionalidade, mas mesmo assim tem seus inconvenientes. La can vai tentar que seus ouvintes consintam em seu sentimento pela paixão amorosa. Nesse intuito, ele precisa afastar uma incômoda figura do amor, a do amor romântico: É curioso ver a que ponto só percebemos agora o amor através de todas as espécies de paredes que o sufocam, paredes românticas, embora o amor
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seja uma força essencialmente cômica. É precisamente nisso que Arnolfo é um verdadeiro apaixonado [ . . . ] . É um fato - quanto mais a peça é en ce n a.
da, mais Arnolfo é encenado em sua nota de Arnolfo, e mais as pessoas se
curvam e dizem - Esse Moliere, tão nobre e tão profundo, mal acabamos de
ri1; deveríamos chorar.
Invertida, essa última frase diz a que Lacan se dedica. Ali onde vocês choram, sugere ele aos ouvintes psicanalistas e outros, isto é, com as desgraÇas do pequeno Édipo de cinco anos, ou ainda com a criança espancada, al i mesmo seria o caso de rir. Pensamos em Final de partida de Beckett: " Nada é mais engraçado que a desgraça" . As últimas palavras dessa sessão condensam o conjunto da afirmação com, mais uma vez, o problema isso/si. Além disso, como com bastante frequência na transcrição dos seminários, uma dificuldade aflora relativa à escrita de "otro", e escrevê-lo assim permitirá não decidir entre "Outro" e "ou tro" quando parece excluído decidir. Partindo da estenotipia, proporei: O si está por natureza para além da tomada do desejo na linguagem. A re lação com o otro é essencial na medida em que o caminho do desejo passa necessariamente por ele, não na medida em que o outro seria o objeto único, mas na medida em que o Outro é o respondente da linguagem, e por si mesmo o submete a toda sua dialética.
Essa conclusão está bem feita para introduzir o que será desdobrado no seminário seguinte, a saber, o lugar do amor no ternário necessidade/de manda/desejo. Rechaçado pelo "não" que o precede, o "na medida em que o outro seria o objeto único" remete ao amor. Aliás, Lacan havia anunciado como intervém o amor no que se refere ao desejo embora se aprestasse para introduzir o amor como sentimento cômico, o amor enquanto instrumento da satisfação da necessidade, do si: Ora, se encontramos nas subjacências do chiste essa estrutura essencial da demanda segundo a qual, na medida em que é retomada pelo Outro, deve permanecer essencialmente insatisfeita, de qualquer modo há uma solução,
O AM
côM I CO OR É
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a solução fu ndamental, aquela que todos os seres humanos buscam desde vida até o fim da existência. Já que tudo depende do Outro, a 0 i n íc io da 8 s oluç ão é ter um Outro só para si. É o que se chama amor 1 •
Escreveremos antes: "Já que tudo depende do otro, a solução é ter ra si. É o que se chama amor". um o utro só pa Em seus dois primeiros seminários, Lacan desenviscava o amor do ora sem desprendê-lo) para levá-lo ao simbólico. Ora, i maginário (emb como sentimento cômico, ele procura, ao com O reconhecimento do amor ao imaginário. O fato de o eu [mot] , i nverso, levar novamente o amor rumo e nq uanto imagem narcísica, encontrar sua unidade fora de si mesmo tem p or resultado que esse mesmo eu [mot] tem função de defesa. E é, acres ce nta ele, no campo desse ser enquanto ser narcísico que o fenômeno do ris o deve ser situado: liberada, a imagem não constrange mais e vai passear 19 sozinha • O amor como sentimento cômico rebaixa (uma palavra de Freud) 0 O utro que de "respondente da linguagem" vira "objeto único" . Sentimento cô mico, o amor serve à necessidade e ilude o desejo. A afirmação admite s ua recíproca: servindo à necessidade, desprezando o desejo, o amor, p or aí mesmo, é cômico. Não se pode duvidar que a prática analítica esteja em jogo. Talvez seja para indicar isso que Lacan, três meses mais tarde, convoca o grito de horror de André Gide ao tomar conhecimento de que sua mulher e querida prima, que ele ama com um amor "supremo" e não deseja, ao saber que ele fora para Londres com o Antinoüs Marc Allégret, acabara de queimar suas cartas20 • Um drama absoluto para um autor que considerava que até suas notas fiscais de lavanderia faziam parte de suas obras. Como Lacan ouve esse grito, resposta ao ato de uma "verdadeira mulher"? Ele o identifica ao de Harpagão: "Minha caixinha! Minha querida caixinha! " que, este, incon testavelmente, faz rir. Em outras palavras, o que para Gide é uma perda a mais trágica possível tem a ver com o cômico, é cômico. Assim, teríamos a 18
J. Lacan, Les fo rmatiom. . . , p.
1 33. Aqui, de qualquer modo, não era possível colocar o isso no lugar do si. 19 lbid. , p. 1 3 1 . 20 lbid. , p. 26 1 , sessão de 5 de março de 1 958.
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indicação de que o que é da ordem do trágico é cometido a partir do cômi co. O cômico ali assume um compromisso, se compromete, se refugia n o trágico, um registro com o qual ele não teria necessariamente que conviver, O trágico é o cômico que funcionou mal. Reencontrar, tornar sensível 0 cômico do trágico, seria esse o caso no exercício analítico. Assim aparece a lição clínica a ser tirada da translação do grito trágico de André Gide para o plano cômico do grito de Harpagão. Ora, Lacan vai repetir essa mesma operação, ressaltando de novo e po r duas vezes o cômico sob o vivido trágico, isto não só a respeito do complexo de Édipo, o que não é muito surpreendente visto que se trata de amor entre a criança, mamãe e papai, mas também, o que pode espantar mais, em re lação à fantasia "espanca-se uma criança" - que ele lê igualmente como um assunto de amor, aliás em conformidade com a análise de Freud. O complexo de Édipo é um assunto de briga amorosa. Logo, resulta do cômico. O que há de mais cômico que o menino que, em nome do investimento libidinal de seu piruzinho, renuncia a amar a mãe uma vez que esse amor implicaria o castigo que conhecemos por parte de seu pai? Mais espantosa é a retomada da fantasia "espanca-se uma criança" . Lacan aí sublinha que se trata de amor. Primeiro tempo dessa fantasia, a própria cena, observada pelo irmão, é lida pela criança como signo. Eis aqui de novo a linguagem do amor, uma linguagem de signos. Como funciona o signo na construção de "espanca-se uma criança"? A cena observada vale primeira mente como signo do "rebaixamento do irmão odiado2 1 " . Em compensação, no segundo tempo, esse mesmo signo "torna-se, ao contrário, signo do amor" . Essa mudança de valor tem importância, pois suporta nada men os que o jogo do amor com o ódio. Não deixa de espantar Lacan, para o qual, "propriamente falando, isso só é concebível pela função de significante". A explicitação vem a seguir: É tudo o que está em causa na dialética do reconhecimento do para além do desejo. Abrevio-lhes o que ele [Freud] diz - Essa bem particular fixi dez, Starrheit, que se lê na fórmula monótona "uma criança é espancada'; 11
J.
Lacan, Les fa rmatíons. . . , p. 345, sessão de 23 de abril de 1 95 8 .
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só perm ite, de modo verossímil, uma única significância: a criança que é ali espan cada, é por esse foto apreciada, nichts anderes sein, ais die Klitoris s elb st, ela nada mais é que o próprio clitóris. Trata-se, nesse estudo, das me ninas. Starrheit, a palavra é muito difícil de traduzir em francês por ter u m sentido ambíguo em alemão. Quer a um só tempo dizer fixo, no sen tido de um olhar fixo, e rígido22 • Com efeito, sem o significante jamais uma criança pode valer como u m clitóris; sem o duplo sentido de Starrheit, que permite o deslizamento da fixidez à rigidez, Freud (lido por Lacan) não poderia ter reconhecido na criança espancada um clitóris. Clássico nisso, Lacan em seguida identifica ess e clitóris ao falo e encontra assim um terceiro traço do arcabouço do amor, a função do para além do objeto amado. O apego da menina ao clitóris não é menos cômico que o do pequeno Édipo a seu peru. Num e noutro caso, está ganho o dia em que o analisando que descobre isso ri.
0 0 AMOR COMO HORI ZONTE: NECESS I DADE, DEMAN DA, DESEJO Lacan procurou situar o amor, no que se refere ao ternário necessidade/de manda/desejo, num certo lugar, com uma certa função e não sem certas consequências, pois a prática analítica está aqui abertamente em questão. Não se está aqui às voltas com uma oposição binária amor desejo, como em muitas outras afirmações. Não dois, mas também um para além de três, já que o amor de certo modo interviria a título de um outro elemento no ternário necessidade/demanda/desejo. Nem por isso admitiremos a pseu dofacilidade sugerida pelo borromeano, isto é, fazer desse quarto elemento um anel de barbante e oferecer-lhe assim o mesmo estatuto dos três outros. Elegeremos, ao contrário, a dificuldade maior (lectio dificilior) , considerando que se há bem, para acabar, um ternário e não uma maquininha de quatro 22
J. Lacan. l.er fnrm11tinm. . . . n. �4