Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional 8537304174, 9788537304174

O livro se divide em três partes. Na primeira, a questão da identidade nacional é problematizada em ensaios cujo conceit

197 7 288MB

Portuguese Pages 514 [526] Year 2008

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD PDF FILE

Recommend Papers

Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional
 8537304174, 9788537304174

  • 0 0 0
  • Like this paper and download? You can publish your own PDF file online for free in a few minutes! Sign Up
File loading please wait...
Citation preview

Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual da Paraíba (1982), mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1988) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Cam pinas (1994). A tualm ente é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da H istó ria, a tu a n d o principalmente nos seguintes temas: gênero, nordeste, m asculinidade, identidade, cultura e produção de subjetividade. Autor dos livros: A Invenção do Nordeste e outras artes (Cortez/M assangana, 1999, 2001, ' 2006) ; Nordestino: uma invenção do' falo - uma história do gênero m a s c u lin o ( C a ta v e n to , 2 0 0 3 ); P r e c o n c e ito c o n tr a a o rig e m geográfica e de lugar: as fronteiras da. discórdia (Cortez, 2007) e História: aV arte de inventar o passado (EDUSC 2007) .

■■

NOS DESTINOS DE FRONTEIRA História, espaços e identidade regional

i

DURYAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

NOS DESTINOS DE FRONTEIRA História, espaços e identidade regional

Recife - 2008

Copyright © by Durval Muniz de Albuquerque Jr

Produção Gráfica

Edições Bagaço Rua dos Arcos, 150 • Poço da Panela Recife/PE • CEP 52061-180 Telefax: (81) 3441.0132/3441.0133 Email: [email protected] www.bagaco.com.br

A345n

Albuquerque Júnior, Durval Muniz de, 1961 Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional / Durval Muniz de Albuquerque Júnior. - Recife: Bagaço, 2008. 516 p. 1. BRASIL (NORDESTE) - HISTÓRIA 2. BRASIL (NORDESTE) GEOGRAFIA 3. BRASIL (NORDESTE) - ASPECTOS CULTURAIS. 4. HISTÓRIA SOCIAL - BRASIL (NORDESTE). 5. REGIONALISMO BRASIL (NORDESTE). 6. LITERATURA BRASILEIRA (NORDESTE) HISTÓRIA E CRÍTICA 7. NORDESTE NA LITERATURA 8. ESPAÇO E TEMPO. I. Título. CDU 981

PeR - BPE

08-0442

CDD 981 ISBN: 978-85-373-0417-4

IMPRESSO NO BRASIL - 2008

SUMÁRIO

PREFÁCIO................................................................................... 09 INTRODUÇÃO.............................................................................17 PARTE I: Historia e Espaços................................. :................... 31 Bicho Solto: natureza, espaços e história na transição da modernidade para a pós- modernidade.... .................................. 33 Zonas de Encrenca: algumas reflexões sobre poder eespaços.. 66 O Teatro da História: os espaços entre cenas ecenários.............80 O Espaço em Cinco Sentidos: sobre cultura, poder e representações espaciais...................................

97

PARTE D: História e Identidade Regional................................ 125 Enredos da Tradição: a invenção histórica da região Nordeste do Brasil............................................................................................127 Tempo, A Fera que Engole Tildo: a visão tropicalista do Nordeste...................................................................................164

Uma Projeção Lírica, Uma Poesia Recordadora: o Nordeste de Câmara Cascudo........................................................................182 Nordeste: uma paisagem que dói nos olhos e nas m entes..... 204 As Malvadezas da Identidade: uma análise do lugar epistemológico da história regional........................................... 218 Palavras que Calcinam, Palavras que Dominam: A invenção da seca do Nordeste......................................................................... 229 A Aridez das Idéias: a questão ambiental do Nordeste em busca de práticas e discursos inovadores.............................................246 PARTE III: História, Espaço e Gênero.............. ......................263 Cabra Macho, Sim Senhor! Identidade regional e identidade de gênero no Nordeste.................................................................... 265 Quem é Mole não se Mete: violência e masculinidade como elementos constitutivos da imagem do nordestino.................. 285 Homens de Fibra: uma história das subjetividades masculinas no Nordeste no começo do século.................................................. 312 Breve, Lento, mas Compensador A construção do sujeito nordestino no discurso socio-antropológico e biotipológico da década de trinta..........................................................................327 O Engenho de Meninos: literatura e história de gênero em José Lins do Rêgo...... ........................................................................ 350 De Fogo Morto: mudança social e crise dos padrões tradicionais de masculinidade no Nordeste do começo do século XX........372 Limites do Mando, Limites do Mundo: a relação entre indentidades de gênero e indentidades espaciaisno Nordeste do começo do século....................................................................... 419

/

No Ceará tem Disso Não? homossexualidade e nordestinidade ou a história dos homens tristes........................ .............................440 Nordestino: a miséria ganha corpo...........................................469 A Escrita Como Remédio: erudição, doença e masculinidade no Nordeste do começo do século XX...........................................482 Ágeis, Irrequietos e Buliçosos: o corpo do povo e outros corpos na obra de Luís da Câmara Cascudo....................................... 494

v

. '

\'~Po historiográfíco, que conseguiremos romper com eskr posição de inferioridade neste mesmo campo, mas

227

Nordeste: um a paisagem que dói nos olhos e nas mentes

Como nos lembra Simón Schama,151 a pais não é pura natureza, não é repouso para os sentidos paisagem é obra da percepção humana, da relação seus sentidos com o meio que o cerca, a paisagem obra da mente, é um conceito através do qual o hom dá sentido de conjunto a toda dispersão, ao caos elementos naturais que estão à sua volta Lembran Bachelard152153poderiamos dizer que a paisagem nas da atividade poética do homem, de sua imaginação sua capacidade de metaforizar, de se relacionar com elementos naturais através de imagens e enunciados são apreendidos social e culturalmente e que perm que os humanos dêem sentidos e significados dive aos espaços, construindo o que Marc Augé11' e Mic de Certeau154 chamarão de lugares, espaços particu 151 SCHAMA, Simón. Paisagem e memória. São Paulo: Compan ,a Letras, 1996, pp. 16 e 17. 152 BACHELARD, Gastón. A poética do espaço. São Paulo: Manfla tes, 1993. ¡ogja 153 AUGÉ, Marc. Não-Lugares: uma introdução a uma a n tro p supermodemidade. Campinas: Papirus, 1994. 154 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano l Artes dej ¡ trópolis: Vozes, 1994.

204

investidos de vivências, de memorias, de experiK Je mitos, de desejos, de sonhos. As paisagens énCiaS.' se “tanto de camadas de lembranças quanto ^ tr a to s de rochas”,155 portanto, podemos dizer na m pichel Foucault156 que as paisagens carre® consigo formas de visibilidade e regras de debilidade, as paisagens são construções do olhar humano, sempre orientado por valores, costumes, con­ cepções políticas, éticas e estéticas, interesses econô­ micos e sociais, e são ditas a partir de conceitos, metá­ foras, tropos lingüísticos, palavras que pertencem a urna dada trama histórica, a urna dada temporalidade, a lu­ gares de sujeito, a lugares sociais. “Contemplad’ a pai­ sagem é fabricá-la para consumo individual ou Coleti­ vo, é procurar fixá-la, ou dissipá-la, monumentalizá-la ou arruiná-la, memorizá-la ou esquecê-la, é gravá-la ou inscrevê-la em algum suporte que garanta sua pereni­ dade ou que apague suas marcas. Ao falarmos na região Nordeste logo nos vêm à mente algumas paisagens. A construção da idéia de Nordeste, da identidade regional nordestina, deste re­ corte espacial, requereu como diría Gilberto Freyre “a faação de sua paisagem” , seja natural, seja social e culUral' ^°‘ necessário “descrever a sua paisagem mais tía natureza e sua gente”, para que “as formas da 130erner§issem de seu passado turvo e de sua confu-

'999; DELEU7P p!™6*' A orc^em do discurso. 5 ed. São Paulo: Loyola, K C™es- Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1986.

205

1

são atual”,1,7 para que a região ganhasse contornos e fixasse como um recorte regional a parte no todo dofl país. Muitos foram os literatos, pintores, intelectuais, e ru -1 ditos que se dedicaram a definir o que seriam sua paj^. gem, suas formas particulares, sua natureza própria, suas"fl cores e traços singulares, seu perfil distinto e único. No processo de construção de uma visibilidade para a região, a fixação do que seria uma paisagem nordesti­ na foi decisiva para que esta ganhasse foros de realida­ de, para que esta se tomasse uma região não apenas conceituai ou política, mas que fosse uma materialidade capaz de ser lembrada, de ser levada na memória, de se transformar em matéria de expressão estética e artísti- \ ca. Paisagem que se tomará cristalizada, petrificada cumulada de ícones, símbolos, objetos, signos que per­ derão o seu caráter fugidio, o seu caráter equívoco, o seu caráter polissêmico, para serem domados pelo dis­ curso e pela prática da estereotipia, da repetição, da iden­ tidade, que procuram criar uma paisagem imutável, uma paisagem ahistórica, atemporal, paisagem de pedra, pai­ sagem árida de sentidos e significados. Paisagem nasu­ da da reposição incessante das mesmas imagens e dos mesmos enunciados, paisagem com figuras paradas no tempo, como se fosse esculpida para nunca se deixar corroer pelas mudanças de sentido e de significação. Mas desde o princípio definir o que seria a paisa' gem nordestina parece ter dado margem ao equívocCB157 .

I V

157 FREYRE, Gilberto. Nordeste. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, FUNDARPE, 1985, p. XVIII.

206

C

^

plural pelo menos ao binário. Já no prefácio à pri­ meira edição de seu livro Nordeste, aquele que conside­ r a como “uma tentativa de estudo ecológico da re­ gião”, Gilberto Freyre já admitia que nele tratava de de­ marcar com seu “método impressionista” a fisionomia de apenas um dos Nordestes, o agrário, da cana-de-açúcar, que “se alonga(va) por terras de massapé e por vár­ zeas, do Norte da Bahia ao Maranhão, sem nunca se afastar muito da costa”. Do outro Nordeste, o pastoril, "das areias secas rangendo debaixo dos pés, de paisa­ gens duras doendo nos olhos. Os mandacarus. Os bois e os cavalos angulosos. As sombras leves como umas almas do outro mundo com medo do soL.de figuras de homens e de bichos alongados quase em figuras de El Greco”, trataria “um dcfe conhecedores mais profundos de sua formação social - Djacir Menezes”.158 De saída a região parecia ter duas paisagens, não só naturais, mas sociais e históricas, que precisavam de especialistas di­ ferenciados para tratá-las com conhecimento de causa, com proximidade, com o “arquivo dos pés” como cha­ mou Schama.159 Mas, afinal, devemos nos perguntar, destas duas paisagens, que já excluíam outras descri­ ções possíveis deste espaço, qual delas veio a prevalecer e se tomar uma paisagem que se impõe aos olhos, uma Paisagem clichê que veio a servir de cenário para vários r°mances, poemas, quadros, espetáculos teatrais, filmes, Pr°gramas de televisão? Qual a paisagem que, saturada q

I5q c n m' Ciciem, p. 5 109iSCHAMA Si.no,, Op.Cit p . :

207

de sentidos, cumulada de estereotipos, atulhada peu repetição do mesmo, se tomou a forma de ver a região e da qual poucos conseguem fugir? É sobre esta pajsa. gem e seu processo de construção que versa este texto na tentativa de desconstruí-la e reenviá-la à sua disper­ são de origem, para desanuviar os horizontes, retirando esta pátina que parece cobrir nossos olhares quando se trata de ver e dizer a região Nordeste, para, talvez, voltar ao zero da paisagem160, permitindo que pensemos e ve­ jamos outros possíveis Nordeste, outras e distintas pai­ sagens regionais. Para isso é preciso desentorpecer os sentidos, desviar o olhar, ver nas pequenas frestas que habitam a película desta paisagem a possibilidade de vislumbrarmos outros mundos, outras terras possíveis, outras regiões das maravilhas ou não. O importante é, como Alice, não temermos explorar as aberturas e as cavernas que estão a nossa disposição. Em seu romance Infância, Graciliano Ramos parece responder a esta questão e, inclusive, ter consciência do processo de simulação, de inscrição e o papel que a me­ mória e sua escritura têm na construção desta paisagem, desta visibilidade da região da qual não se pode fugir sob pena de sua narrativa, de seu texto não se tomar verossí­ mil, crível. Vejamos como ele descreve as lembranças do primeiro verão que assistiu em sua infância, da primeira; seca que vivenciou, acontecimento chave, núcleo obrigatório de atribuição de sentido a seu espaço regional: ■

160 Referência a MELO NETO, João Cabral de. A paisagem zero. In: f f l

sias Completas. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968, p. 341.

“Desse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas. E nem deles posso afimiar que efetivamente me recorde. O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade. Sem dúvida as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou, as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim. Contudo ignoro se as plantas murchas e negras foram vistas nesta época ou em secas posteriores, e guardo na memória um açude cheio, coberto de aves brancas e flores. A respeito de currais há uma estranha omissão. Estavam na vizinhança, provavelmente, mas isto é conjectura. Talvez até o mínimo necessário para caracterizar a fazenda meio destruída não tenha sido obsírvado depois. Certas coisas existem por derivação e associação: reoetemse.impõem-se - e. em letra de forma, tomam consistência, ganham raízes. Dificilmente pintaríamos um verão nordestino em aue os ramos não estivessem pretos e as cacimbas vazias. Reunimos elementos considerados indispensáveis, ioaamos com eles, e se desprezam os alauns.o quadro parece incompleto”.161

Neste texto, todo o procedimento de construção do Que conhecemos como “paisagem nordestina” se explicita, ■pagem que seria composta por certas coisas que não

161Ramos, Graciliano. Infância. 19 ed. São Paulo: Record, 1984, pp. 26 e 27.

209

poderíam faltar, sob pena de não ganhar foros de verdade. A paisagem entendida como a reunião de elementos considerados indispensáveis, elementos com os quais se joga na composição do quadro, elementos impostos peia tradição, pelo hábito, por dadas regras de produção de imagens e de textos que se impõem como realidade. Em Graciliano, memória e imaginação aparecem como ele­ mentos fundamentais na construção das paisagens, mas estas são controladas por regras do ver e dizer que circu­ lam no social, são policiadas pela vontade de verdade que significa se adequar a formas de ver e dizer que estão consagradas, congeladas pelo trabalho conservador das instituições, das relações de poder e das centrais de dis­ tribuição de sentido que censuram e regulam todo dis­ curso que fuja do que está consagrado, punindo-o com o estranhamento, com o não reconhecimento, com a falta de legitimidade. Desta paisagem não podem fazer parte aquelas figuras díspares, aqueles pequenos rasgões no quadro fechado traçado pela memória hegemônica Como podería Graciliano colocar em sua paisagem nordestina “um açude cheio, coberto de aves brancas e de flores”? Ele tinha que descrever currais vazios e em ruína mesmo que não tivesse nenhuma lembrança de tê-los visto as­ sim, porque foram estes elementos que sempre estiveram j presentes nas narrativas de paisagens que escutara des­ de a infância Mesmo que seus olhos estivessem contem­ plando um lindo açude, cheio e florido, em pleno verao. aquilo devería ser um acontecimento excepcional, quase uma miragem, que ninguém iria acreditar se narrasse eD® outras oportunidades. Quem acreditaria num romance

210

regional que não traçasse a paisagem do Nordeste como ela deveria ser descrita? Quem continuaria lendo um tex­ to que, ao descrever a região, não incorporasse aqueles elementos de sua paisagem que a distinguiam das dema¡s e que lhe davam singularidade e personalidade? Mesmo sabendo que esta paisagem era pura convenção, como fugir dela? A “paisagem nordestina” desenhada por Freyre, não ganhou foros de verdade, não se cristalizou na memória regional. Foi o Nordeste “desfigurado pela expressão obras do Nordeste, entendidas como obras contra as secas” que se fixou no imaginário nacional. Paisagem voltada para resgatar um “Nordeste mais velho, Nordes­ te de árvores gordas, de sombras profundas, de bois pachorrentos, de gente vagarosa e às vezes arredonda­ das quase em sanchos-panças...Um Nordeste onde nun­ ca deixa de haver uma mancha de água: um avanço do mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma lagoa. Onde a água faz da terra mais mole o que quer: inventa ilhas, desmancha istmos e cabos, altera a seu gosto a geografia convencional dos compêndios... Um Nordeste oleoso onde noite de lua cheia parece escorrer um óleo Sordo das coisas e das pessoas. Da terra. Do cabelo pre­ to das mulatas e das caboclas. Das árvores lambuzadas de resina. Das águas...O Nordeste do massapé, da argila, do húmus gorduroso...da terra pegajenta e melada...que Se deixa marcar até pelo pé do menino..”162. Esta “paisa8em ú° Nordeste” da casa-grande e da senzala, do enge^ t'REYRE, Gilberto. Op. Cit. pp. 5 e 6.

211

I

nho bangüê, da glória e poder das gerações passadas este Nordeste de perfil aquilino, aristocrático e cavalhej resco não vai servir às elites regionais em suas lutas políticas, em seus embates econômicos do presente. Este Nordeste “saudoso” vai servir, no máximo, para se trans­ formar em literatura, em poesia e em pintura. Agora que a paisagem da região parecia perder a sua autenticida­ de, a ingenuidade dos flagrantes de Koster, que o pró­ prio físico do regional parecia se alterar profundamente, ganhando uma outra crosta, uma outra fisionomia, a paisagem sertaneja parecia mais adequada para servir de base a reivindicações de melhorias, de investimentos, de obras, de recursos, de cargos.163 Ela comovia mais, ela “furava as consciências, ela doía nos olhos e nas mentes, ela abalava os corações mais duros”. Ela, quan­ do descrita, era argumento quase imbatível nas querei las políticas. Agora eram as modernas fotografias das usinas e das avenidas novas que compunham a paisagem da “mata”. Beirando os canaviais, algodoais e pastagens corriam linhas telegráficas, fios de telefone, vias férreas... em vez do carro de boi levando aos engenhos de cana madura e liteiras conduzindo sinhazinhas para as festas de batizado e carruagens a trote doce, rodavam autos, espanando areia, roncando. O Nordeste onde antes rei­ naram os Cavalcanti, os Carneiro da Cunha, os Souza

163 Referência a FREYRE, Gilberto. Vida Social no Nordeste. In: Gilberto et alli, O Livro do Nordeste (edição facsimilada). Recife: Secre^H de Justiça/Arquivo Público Estadual, 1979, p. 126.

212

Leão, agora reinavam a “Great Western, os Hudsons, os pords, os Studebakers”. Paisagem já ferida pelos insoientes charutos negros e enormes das usinas, ostentan­ do letreiros de firmas comerciais das cidades. Agora pre­ valeciam no espaço do litoral as cidades de modelo eu­ ropeu, com gares, mercados, bancos, com a tração elé­ trica, com novos modelos de construções com arquite­ turas de confeitaria, com a preocupação da linha reta à americana.164 Este Nordeste desfigurado pela moderni­ zação já não podia servir de modelo de paisagem regio­ nal, de paisagem inóspita, sofredora, cruel, precisando ser dom ada pela civilização, pela ação do Estado, que tanto estas elites necessitavam. Nestas décadas iniciais do século XX, o sertão é então reinventado em Nordes­ te. As paisagens sertanejas, já homogeneizadas e mode­ ladas pelas narrativas que vinham desde o século ante­ rior, são transformadas em paisagens da região, do Nor­ deste.165 Descobre-se no outro Nordeste, nossa alma, nossa essência, nossa verdade mais profunda, nossa paisagem primeva, ainda quase intocada e que precisa­ va ser modernizada sem perder seu caráter, sua autenti­ cidade, su a ingenuidade. De desertão, esta paisagem vai se transform ar em um espaço amontoado de mitos, símbol°s, ícones, referências, citações, memórias, marcas e barcos que o engendrarão como este espaço superlati-

Gilberto. Vida Social no Nordeste, p. 126. Sa , ° bre a 'nvenção narrativa do sertão e de sua paisagem ver BARBOg L J*e Cordeiro. Sertão: um lugar incomum. Rio de Janeiro: Relumeara; Fortaleza: SECULT, 2000.

213

vo e ao mesmo tempo como motivo de nossa pequenez de nosso subdesenvolvimento, de nosso abatimento, de nossa miséria e ignorância. Mas o que passa a ser, a partir deste momento his­ tórico, uma “paisagem nordestina’? Dela o personagem central é o sol, o sol que como “espadas de fogo”166 res­ seca a terra, provoca a seca, faz ficar murcha, enegrecida, cinza a caatinga, garranchuda, espinhenta, selvagem a vegetação, que parece expulsar permanentemente o homem para outro lugar, que provoca o êxodo perma­ nente de sua gente. Uma paisagem de uma luminosidade forte, de uma luz branca que vaza os olhos. Paisagem torturada, onde as plantas de galhos retorcidos, como mãos suplicantes, parecem ser fruto de um embate per­ manente, uma luta corpo a corpo pela mancha de água, pelo refrigério de um a som bra. “Paragens impressionadoras, fruto da violência máxima dos agen­ tes exteriores, desenhando relevos estupendos, expon­ do as entranhas cristalinas da terra, mal cobertas por uma flora tolhiça” dando origem a cerros, lajedos, que desenham na paisagem “um lineamento incisivo de ru­ deza extrema”, mas onde a “Vida ainda luta, onde o lí­ quen ataca a pedra, fecundando a terra.”167 Os rios têm a existência fugidia das estações chuvosas, “são rios sem discurso, de águas quebradas em pedaços, de águas

166 Ver ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 26 ed. Rio de Janeir0' José Olympio, 1988, p. 4. . 167 CUNHA Euclides da, Os Sertões, 30 ed., Rio de Janeiro, Frana* j Alves, 1981, pp. 13 a 16.

214

em situação de poço, rios que não comuni­ cam, nos estancados”168. “São antes canais de esgotamento abertos a esmo pelos enxurros, leitos rudemente escavados, rios sem prumo e sem afluentes, que de re­ pente sobe, se empanzina, nas cheias, captando as águas selvagens, barrentas e revoltas, para vazar rapidamente para o mar”.169 A “atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pre­ sente visível...a efervescência dos ares”. “Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre - um salto de treva por cima de uma franja vermelha de poente...e o vento ali chega, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo.”170 0 Nordeste, que antes era um fugidio e revoltoso vento do sertão, vai agora sendo desenhado em sua pai­ sagem para ganhar sedentaridade, para ser fixado em seu perfil de paisagem só osso, para que as almas entranhem e não estranhem a pedra, a condição de pedra.171 Nordeste de paisagem rala, onde nem mesmo a fumaça encorpa, onde a árvore não se arvora a grandes ramifi­ cações, não sonha barroco, pode empinar-se apenas essencial, unicaule, sem folhagem e sem aprumo.172 Paiparalíticas,

^68 Texto construído a partir de MELO NETO, João Cabral de. Os rios de dia. In: MELO NETO, João Cabral. Op.Cit p. 28. i7n Euclides da. Op.Cit pp. 19 e 20.

\]° f m . Ibidem. p. 2 3 . p l exto construído a partir de MELO NETO, João Cabral de. A educação 1?2a Pedra. In: MELO NETO, João Cabral. O p C i t p. 11. no ext:o construído a partir de MELO NETO, João Cabral de. A fumaça sertão. In: MELO NETO, João Cabral. Op.Cit pp. 10 e 11.

215

sagem de caatinga, não deserta, mas superpovoada de bichos, de plantas e de homens que parecem viver situação de hospital, caatinga povoada pelo aleijão, pei0 esquelético, pelo atrofiado, pelo informe e o torto, estéti­ ca sintetizada pela caatingueira com seu aleijão poliforme, imaginoso.173 Como toda paisagem, a “paisagem nordestina” é uma criação narrativa, uma criação da e na linguagem é espaço que se conta mais do que se vê, é espaço que se monta mais do que se crê, é. um espaço que se sente mais do que se pensa, é um conjunto de signos que se articulam em tomo de uma imagem. Esta imagem, para o Nordeste, é a seca, temática que emergiu como nosso problema, desde o final do século XIX174 Podemos, pa­ rafraseando João Cabral de Melo Neto, ao definir o tra­ balho de composição literária de Graciliano, dizer que os discursos que inventaram a “paisagem nordestina” giram ao redor do sol, compõem-na somente com vinte palavras que falam do seco, falam de um Nordeste de­ baixo de um sol ali do mais quente vinagre, que reduz tudo ao espinhaço, cresta o simplesmente folhagem. Uma paisagem condicionada pelo sol, pelo gavião e outras rapinas, onde estão os solos inertes em que se cultiva apenas o que é sinônimo de míngua.175 Paisagem Que 173 Texto construído a partir de MELO NETO, João Cabral de. O hospital da caatinga. In: MELO NETO, João Cabral. Op.Cit p. 29. 174 Ver ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Falas de Astúcia e d e ^ m

gústia: a seca no imaginário nordestino - de problema a solução. nas: UNICAMP, 1988 (Dissertação de Mestrado). ... p0 175 Texto construído a partir de MELO NETO, João Cabral de. GraCiljW Ramos. In: MELO NETO, João Cabral. Op.Cit pp. 75 e 76.

216

pata muitos, mas enriquece a poucos. Paisagem fixa, petrificada, que não quer mudança nem de hierarquias, nem de poderes. Paisagem que não é neutra, não é na­ tural, é construção das relações de poder que molda­ ram este recorte regional, talvez seja sua espacialização, sua inscrição nas superfícies do mundo. A paisagem nordestina é um pedaço de mundo significado, que adquire um sabor particular, cores e sensações parti­ culares pelos investimentos subjetivos que aí se pro­ cessaram. A paisagem nordestina é fruto da escolha de alguns elementos do sublunar e pode ser usada para fins políticos, estéticos, pedagógicos diversos. Paisagem que, mesmo com cupins,176 ainda é sustentáculo de uma política e de uma estética nesta região e no país. Paisagem que dói nos olhos e que esperamos fira as mentes para nos abrir a possibilidade de outras ma­ nhas, de outras manhãs.

a MELO NETO, João Cabral de. Paisagem com cupim. In: oão Cabral. Op.Cit p. 145.

217

1

\

As Malvadezas da Identidade: um a análise

do lugar epistemológico da história regional

Em 1998, da tribuna do Senado Federal, Antônio Carlos Magalhães, senador pela Bahia, mais conhecido como Toninho Malvadeza, proferiu discurso contra o Po­ der Judiciário do país, discurso nos moldes que o consa­ grou como um ícone não só da política baiana e brasileira, como também um emblema do que há de mais atrasado e reacionário na representação nordestina no Congresso , Nacional. Ele seria o exemplar mais perfeito do político nordestino, do coronel popular, astuto, grosseiro, capaz de qualquer manobra para ficar ao lado das forças que estão governando o país, em cada momento, mas, ao mesmo tempo, seria o pai dos pobres, o homem a quem a Bahia deveria tudo, cantado e decantado até pelos artistas da terra. Támbém, no final do ano de 1997, assistimos a outro velho político nordestino, o senador pela Paraíba, Humberto! Lucena, então presidente do Congresso Nacional, ter seu registro de candidatura à reeleição cassado por ter usad® irregularmente a gráfica do Senado. Estes dois eventos, além de terem em comum o fato de que os dois senadoresj eram nordestinos, possuem em comum o uso da identid® de nordestina como argumentação. 218

Toninho Malvadeza, sempre tão criticado pelos in­

e políticos de esquerda, foi seguidamente per­ doado quando assumia o papel de defensor das causas do Nordeste, quando usava a sua "inflamada verve” para atacar os inimigos da região, seja pela imprensa, no ple­ nário da SUDENE ou no Congresso Nacional. Humberto Lucena atribuiu a sua cassação a uma vingança de seto­ res políticos, intelectuais e da imprensa do Centro-Sul, que não perdoariam o fato de um nordestino ocupar o cargo de presidente do Congresso Nacional, argumento que comoveu e convenceu amplos setores da popula­ ção paraibana e de outros Estados. A nordestinidade é, pois, uma poderosa arma de poder, assentada sobre uma vasta produção de saber, de imagens e textos, que pode ser usada estrategicamente sempre que algum interesse das elites desta área esteja ameaçado. A identidade nor­ destina funciona reproduzindo relações sociais e de poder as mais conservadoras. Diante disto, o que quero neste texto é questionar o papel que nós intelectuais e, particularmente, nós historiadores temos exercido na re­ produção deste dispositivo de poder e de saber que se chama Nordeste, desde que este foi inventado, nas pri­ meiras décadas deste século. Será mera coincidência Que um Simpósio Nacional de historiadores, cuja temática é História e Identidades, tenha se realizado jusmente no Recife, ponto de partida da elaboração da 1 entidade da região mais bem acabada do país, talvez a : 'ca realmente existente? Por que quando falamos em ■ p id a d e regional, a idéia de Nordeste nos vem à ment>- de forma imediata? telectuais

219

1 É comum encontrarmos, nos trabalhos de nossos: colegas historiadores da região, as imagens e enunciados recorrentes que inventaram o Nordeste, da forma mais acrítica possível. Continua-se escrevendo história ; para defender o Nordeste, para denunciar a marginalização do Nordeste, para narrar o processo de discrimi­ nação de que teria sido vítima, para denunciar o colonialismo interno, para reafirmar a identidade regio­ nal, para salvar a região, para deixar explícita a sua mi­ séria. Não queremos dizer que a miséria não exista no Nordeste, que os nordestinos não sejam discriminados, mas estes aspectos são conseqüências da invenção do Nordeste e não causas. O que afirmo é que estes efeitos são sustentados por um dispositivo que se compõe de relações de poder e de saber, que se produzem e se reproduzem através da incitação a esta discriminação e se sustentam em práticas econômicas, políticas e cultu­ rais. O Nordeste e o nordestino miseráveis e discrimina­ dos não são produto da carência de identidade e da sua não defesa; é inerente a esta identidade e ao sistema de forças que a gestou e sustenta. O próprio Nordeste e os nordestinos são invenções destas determinadas relações . de poder e de saber. Não se combate a discriminação simplesmente tentando inverter de direção o discurso discriminatório; não é procurando mostrar quem mente e quem diz a verdade, pois dessa forma se passa a f o r \ mular um discurso que parte da premissa de que o dis-j criminado tem uma verdade a ser revelada. Assumir nordestinidade e pedir aos sulistas que revejam seu d « curso sobre o nordestino, porque ele é errado, por tefl

220

nascido de um desconhecimento do nordestino verda­ deiro, vai apenas ler o discurso da discriminação com o sinal trocado, mas a ele permanecer preso. Tentar supe­ rar este discurso, estes estereótipos imagéticos e discursivos acerca do Nordeste passa pela procura das relações de poder e de saber que produziram estas ima­ gens e estes enunciados clichês, que inventaram este Nordeste e estes nordestinos. Pois, tanto o discriminado como o discriminador são produto de efeitos de verda­ de, emersos de uma luta e que mostram os rastros dela. Nós, os nordestinos, costumamos nos colocar como os constantemente derrotados, como o outro lado do poder do Sul, que nos oprime, discrimina e explora. Ora, não existe esta exterioridade às relações de poder que circulam no país, porque nós também estamos no po­ der. Por isso devemos suspeitar que somos agentes de nossa própria discriminação,' opressão ou exploração. Elas não são impostas de fora, elas passam por nós. Longe de sermos seu outro lado, ponto de barragem, somos ponto de apoio, flexão. A resistência que pode­ mos exercer é dentro desta própria rede de poder, não fora dela, com seu desabamento completo. O que pode­ mos provocar são deslocamentos no poder que nos imP°e um determinado lugar, que reserva para nós um determinado espaço, que foi estabelecido historicamene’ Portanto, sempre em movimento. Até que ponto a Melhor forma de provocar um deslocamento neste dis­ positivo e nesse saber é nos postarmos como o outro do der, assumir a posição de sujeito vencido e discrimiNão seria melhor se negar a ocupar este lugar?

221

O discurso regionalista não é emitido a partir de uma região objetivamente exterior a si, seja esta pensa­ da como um recorte geográfico já dado, seja pensada como produto da regionalização do espaço nas esferas econômicas ou políticas. É na sua própria locução que esta região é encenada, produzida e pressuposta. Ela é parte da topografía do discurso, de sua instituição. Todo discurso precisa medir e marcar um espaço de onde se enuncia. Antes de inventar o regionalismo, a região é produto deste discurso. Definir a região é pensá-la como um grupo de enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em di­ ferentes momentos, com diferentes estilos e não pensála como uma homogeneidade, uma identidade definida a priori. A região é urna espacialidade que está sujeita, pois, ao movimento pendular de construção/destruição, contrariando a imagem de eternidade que sempre se associa ao espaço. Ao invés de buscar uma continuida­ de histórica para a identidade do nordestino e para o recorte espacial Nordeste, a historiografia devia suspei­ tar destas continuidades, pondo em questão as identi­ dades e fronteiras fixas, introduzindo a dúvida sobre estes objetos históricos canonizados. Acho que está na hora de questionar as malvadezas de uma identidade regional, de um olhar e fala regionalistas, que ora aparecem como um olhar e falai novos, surgidos recentemente, como querem fazer crel recentes análises sobre os separatismos regionais, ora como formas de ver e falar que sempre existiram na his| tória do país. É preciso perceber as inflexões ocorridas noj

222

discurso regionalista, mais particularmente no discurso da identidade nordestina, afirmando a sua novidade e seu caráter de descontinuidade na historia brasileira. O regionalismo é muito mais do que uma ideologia de clas­ se dominante de urna dada região. Ele se apóia em práti­ cas regionalistas, na produção de uma sensibilidade regionalista, na produção de uma cultura regional. Estas práticas e produções são levadas a efeito e incorporadas por várias camadas da população, surgindo como ele­ mentos dos discursos destes vários segmentos. Por isso, achamos que devemos questionar a chamada “História Regional”, porque por mais que se diga crítica do regiona­ lismo, do discurso regionalista, está presa a seu campo de dizibilidade. Longe de constituir uma ruptura com esta dizibilidade, suas críticas são apenas deslocamentos no interior do próprio campo do regionalismo. Ao criticar o regionalismo, mas assumir a região como uma “proposi­ ção concreta”, como uma conscrição histórica, e fazer dela um referente fixo para seu discurso, de onde retira sua própria legitimação, esta História está presa à dizibilidade regionalista e à rede de poderes que sustenta a idéia de região como referencial válido para instituir um saber, um discurso histórico. A ‘História Regional” vem contri­ buir, sim, para colocar a idéia de região em outro patamar>legitimá-la, atribuir-lhe veracidade, dando a ela uma História, tentando dar-lhe, inclusive, uma base material. Ao invés de questionar a própria idéia de região, sua idenbdade e a teia de poder que a instituiu, ela questiona Pois, no fenômeno natural em si que devemos buscar SUa diferença, mas no momento histórico que a cercou

241

e nas práticas e discursos que a diferenciaram das deÜ mais. Ela se toma diferente por ter sido cercada p0r I uma conjuntura em que as relações de exploração e 1 dominação, dentro dos padrões em que eram realiza ] das, são postas em questão. Por isso, esta memória das 1 secas, num esforço discursivo empreendido pelo “djs. curso da secas”, vai tentar produzir o esquecimento des­ te momento histórico vivido pelas elites e este passa a ser explicado pela ocorrência da seca, deslocando, para o plano da natureza, explicações que se encontravam no plano social. Ao mesmo tempo* a seca de 1877 fornece às elites do Norte um tema que sensibiliza nacionalmente, ad­ quirindo, por seu tumo, consciência da arma que tinham em suas mãos. Politizar, pois, a seca, colocando-a no centro das atenções, sobrepô-la a qualquer outro pro­ blema da área, tomando-a a temática através dá qual se solicita qualquer recurso ou investimento neste espaço: recursos baratos, que viessem como doações, e permi­ tissem a recuperação da economia destas províncias, passa a ser a estratégia. Falar da seca fazia com que suas vozes fossem novamente ouvidas no plano nacio­ nal, o que já não vinha acontecendo com grande inten­ sidade. A seca toma-se assim o “problema do Norte” e a explicação para todos os demais problemas. As elites de outras áreas, no entanto, não aceitam passivamente o envio de tais somas de recursos para as 1 províncias do Norte, tomando-se necessária a articula'» ção, por parte das elites nortistas, de um discurso pomJ'I co que associasse a seca a outras reivindicações. A se&M

242

^ociada a imagens como: falta, escassez, miséria, im­ potência, martirio, violencia, etc, serve para expressar todas as carências desta área do país. Seca passa a ser sinônimo de crise, recobrindo toda a gama de proble­ mas que estavam ocorrendo ou que viessem a ocorrer, a partir de então no Norte e depois no Nordeste, região que vai surgir como um recorte espacial, feito a partir ¿este fenómeno.181 A seca passa a ser a temática central de uma série de discursos de grupos e instituições sociais que vão se cruzando e enformando um “discurso da seca”, feixe de imagens, enunciados e significados, que a tomam uma seca particular, urna seca que só o Norte e depois o Nordeste terão. Estes vários discursos se preocupam em definir a singularidade desta seca, suas causas e em pro­ por soluções que venham sempre ao encontro das aspi­ rações momentâneas de suas elites. Se, no final do sé­ culo XIX, as elites do Norte reivindicam estradas-de-ferro, estas são apresentadas como solução para a seca; se querem estradas de rodagem, estas se tomam solução para a seca; se hoje as elites do Nordeste querem a ins­ talação de Zonas de Exportação, elas são também apre­ sentadas como solução para a seca. Partindo de um discurso popular sobre a seca, pre­ sente n a produção cultural de homens pobres, acostu­ mados a ter a presença da seca como uma ameaça a suas vidas, e sendo esta vista como um castigo dos céus,

ALBUQUERQUE JR Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e ous artes. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 1999.

243

como uma demonstração da ira divina contra os pen­ dores, imagem reforçada pelo discurso da Igreja, qUe também fazia dos fenômenos naturais tema para dis­ cursos moralizantes e apocalípticos, o “discurso da seca” vai sendo gestado ainda com a contribuição dos discur­ sos de técnicos, que passam a visitar a área e tentar, a partir dos pressupostos cientificistas do final do século XIX, determinar as causas e propor soluções para o fe­ nómeno. Os discursos dos representantes das elites nor­ tistas no Parlamento e na imprensa vão se apropriar de imagens e enunciados presentes nestes discursos, em que enunciados técnicos se misturam a enunciados morais e a “experiências” populares com o fenómeno. A seca toma-se, ainda, um tema privilegiado da produção literária regionalista que dá seus primeiros passos neste momento. É no cruzamento destes vários discursos que certas imagens, enunciados e significados vão sendo re­ gularmente repetidos, tomando-se a “verdade” sobre a seca do Norte, depois sobre a seca do Nordeste. Ainda hoje lidamos com este agregado de imagens, textos e significados que chamamos de “seca do Nordeste”. Este “discurso da seca”, que tem na “grande seca” sua condição de possibilidade, vai sendo reelaborado, atualizado ao longo da história do Norte e do Nordeste, cumprindo sempre um papel estratégico de explicar o real, criando-o, e vai servir de base para a sustentação de privilégios de uma elite que há muito deixou de ser importante economicamente no país. Ele só se tornou n possível com a descoberta da seca como “problema, com a sua entronização como questão sempre a ser

244

solucionada, questão permanentemente reposta e que requer soluções diferenciadas, conforme os interesses desta elite em cada momento. Enquanto a seca foi pro­ blema para o mundo dos despossuídos, ela era uma senhora desconhecida, não merecia mais que breves notas em pé de páginas de jornais, mas, quando chega ao mundo dos proprietários, ela não só é percebida, como é transformada no “cavalo de batalha” de uma elite ne­ cessitada de argumentos fortes, para continuar exigindo o seu quinhão, na partilha dos benefícios econômicos e dos postos políticos em nível nacional. Foi, pois, a seca

um achado, uma invenção com a qual esta elite procu­ rou conquistar novamente seu espaço ema nível nacio­ nal e, com isso, dispor das condições necessárias para perpetuar a sua exploração e dominação secular, nesta área do país. Seca, pois, invenção não apenas de pala­ vras que calcinam, mas de palavras que dominam.

245

A Aridez das Idéias: a questão ambiental do

Nordeste em busca de práticas e discursos inovadores

Quando se trata de discutir a questão ambiental no Nordeste brasileiro a temática da seca emerge como assunto privilegiado e que, praticamente, obscurece o tratamento de qualquer outro tema ou problema, levan­ do ao que poderiamos chamar de urna aridez das idéias sobre esta questão. Tendo sido colocada como tema privilegiado do discurso regionalista das elites nortistas, no final do século XIX, a partir da chamada grande seca de 1877-1879, e depois da elite nordestina, no começo do século XX, ela tem servido como justificativa para a solicitação de recursos, de investimentos, de sucessivos pedidos de cancelamento de dívidas por parte dos pro­ dutores rurais, pela criação de órgãos e cargos públicos em que vão se alojar pessoas ligadas às elites regionais. Por isso o discurso da seca, que emergiu antes da P1'0' pria invenção da idéia de região Nordeste e foi um dos problemas em tomo do qual as elites do antigo Norte se articularam politicamente, gestando um discurso e inU‘] meras práticas regionalistas que terminaram por consfr tuir a identidade regional nordestina, tem contribuí a estrutura de exploração montada aqui pelos portu­ gueses caracterizou-se desde o princípio pela utilização s'stemática dos recursos naturais, já que desde a primeira carta escrita sobre a nova terra, esta tinha sido ^finida como de natureza luxuriante e dadivosa e,

249

portanto, de recursos inesgotáveis e que poderíam ser uti­ lizados sem qualquer política de reposição ou de raciona­ lização do seu uso. Tánto o corte indiscriminado do paubrasil, árvore que dá nome ao país, mas quase desaparececida de nossas matas, como o posterior uso dos rios, das matas, dos animais, do solo, foi presidido por esta urgência em gastar sem qualquer responsabilidade de pre­ visão para o futuro. Formou-se no Brasil uma cultura da depredação do meio ambiente, baseada na crença de que temos recursos inesgotáveis. O historiador americano Warren Dean,184 tratando da história da Mata Atlântica, mostra como esta foi devastada, inclusive, anteriormente à chegada dos brancos, acabando com esta visão idealizada da relação entre índios e natureza, já que como grupos humanos que eram, também se utilizavam de recursos 1 naturais para sobreviverem, sendo os introdutores de uma j das práticas agrícolas mais nefastas para a natureza brasi- ! leira e que continua sendo usada em larga escala, que é a chamada agricultura de coivara, baseada na queimada da mata para o posterior plantio. As queimadas que devastam j hoje a Amazônia têm, nesta prática indígena, um dos seus antecedentes. No Norte do Brasil queima-se até o lixo do- : méstico. A piromania é um elemento cultural, assim como j a varrição com água, que vemos até onde o líquido é mais _ escasso, como aqui no Nordeste. ■ O discurso da seca permitiu também que, por mui­ to tempo, fosse ignorada a destruição sistemática dos

184 DEAN, Warren, A Ferro e Fogo: a história da devastação da Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

25.0

manguezais da região. Habitados, quase sempre, pelas cha­ gadas populações tradicionais - caiçaras, pescadores, jangadeiros -, os mangues foram sendo cada vez mais ocupa­ dos por aquelas populações de baixa renda que, empurra­ das pela especulação imobiliária nas grandes cidades da região, se viram obrigados a ocuparem habitações cada vez mais precárias, construídas sobre estes terrenos desva­ lorizados. Os alagados de Salvador, os mocambos do Reci­ fe e as palafitas de São Luís são exemplos desta ocupação desordenada dos mangues e da conseqüente destruição destes ecossistemas. Somam-se a isso as inúmeras obras de aterramento para a construção ou ampliação de aveni­ das, para construção de espaços públicos, de edifícios, de complexos turísticos e de hotelaria, que foram feitas em detrimento de áreas de mangues. Grande parte da cidade do Recife foi conquistada às terras dos mangues e este processo ainda não foi concluído.185 Em São Luís sucessi­ vos aterramentos vão ampliando o território da ilha em detrimento dos manguezais. A poluição dos rios da região contribui para a desestruturação do ecossistema dos manguezais, para onde é carreado um volume imenso de lixo urbano, de dejetos industriais, de esgotos não tratados, de produtos químicos que tomam os mangues lixões a céu aberto, realidades espumantes e fétidas. A destruição dos manguezais, que se constituiu em 'mportante fonte de renda e de alimento para populat 185 Sobre este processo, ver ARRAIS, Raimundo. O Pântano e o Riacho: /ormoção do espaço público no Recife do século XDL São Paulo: Humanitas/FPLCH/USP, 200 4 .

251

ções tradicionais e de baixa renda na região, com a cata de mariscos e caranguejos, chama a atenção para outro fator desencadeante dos problemas ambientais do Nor­ deste e que não pode deixar de ser levado em conta quan­ do se trata de pensar políticas de preservação ambiental na região, que é o fator social, a miséria, que transforma uma boa parcela da população em predadores da natu­ reza como única alternativa de sobrevivência. Se a natu­ reza, no Nordeste, foi e é duramente atingida para gerar e manter os lucros de boa parte de suas elites, que têm na exploração descontrolada de seus recursos naturais um dos seus mecanismos principais de acumulação, ao lado da super-exploração da força de trabalho, já que, quase sempre, dispõem de um aparato tecnológico atrasado, quando não obsoleto, como é o caso da produção canavieira, da pecuária extensiva e mesmo alguns setores da produção industrial, as camadas populares da região também são um importante fator de destruição ambiental, por terem na natureza, na sua exploração intensiva, a única forma de sobrevivência. A pesca, a mariscagem e a caça predatórias, a venda de produtos da mata, de ani­ mais e de pássaros, a agricultura de coivara, a criação de animais soltos nos centros urbanos, são responsáveis pela destruição da natureza na região e pela poluição urbana a transmissão de doenças, etc. Mas talvez o maior crime ambiental cometido por essa centralização do discurso regional na questão da seca foi a sistemática, invisível e quase irrecuperável destruição do bioma caatinga. Para termos uma idéia desta invisibilidade basta constatarmos que somente

252

agora, no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva e na gestão de Marina Silva a frente do Ministério do ¡vleio Ambiente, é que se colocou o bioma caatinga no rol ¿aqueles biomas ameaçados de extinção no país. O mais contraditório e dramático, se não fosse cômico, é que este reconhecimento se faz na gestão de urna ambientalista , ligada à luta pela preservação da Amazônia, que por ter enorme destaque, dado, justamente, por esta mobilização política feita em tomo déla e pelos interesses internacio­ nais ai envolvidos, de certa forma encobre e mascara ou­ tros sérios problemas ambientais que temos no país, como é o caso da devastação do cerrado, do pampa e da caatin­ ga Já tivemos membros das elites nordestinas na gestão do Ministério e que se limitaram a tomar o discurso da seca como guia para sua atuação. A destruição da caatinga, assim como a da Mata Atlântica, é um processo secular, tendo se iniciado com as entradas para o interior, promovidas por colonos in­ teressados em reivindicarem doações de sesmarias e realizarem a criação de gado. Embora sendo uma ativi­ dade menos predatoria em relação à natureza, a pecuá­ ria logo teve que se associar a uma agricultura de sub­ sistencia feita nos mesmos padrões aprendidos com os ■ndígenas - o arado é uma novidade nesta área,- ainda no começo do século XX - e mais tarde à produção algo­ r r a , que alçada, na segunda metade do século XIX, à condição de importante produto na pauta de exporta­ do, levou a um desmatamento progressivo da área da caatinga. À medida que a população se adensou nesta area- outras exigências passam a ser feitas a este bioma,

253

como o de fornecimento de energia com a queima da madeira ou o uso desta para a construção de casas ou mesmo para a feitura de cercas e currais, já que a pe­ cuária extensiva e as fazendas sem limites vão se e x t in ­ guindo com o avanço das relações capitalistas e de uma mentalidade mercantil e baseada na idéia da pro­ priedade privada. ¡ Esta depredação da caatinga se acentuava nos momentos de estiagem prolongada porque sua explora­ ção intensiva passava a ser a única alternativa para a sobrevivência de boa parte da população e urna das al­ ternativas encontradas pelos grandes proprietários para alimentarem seus rebanhos de gado e ao mesmo tempo manterem seus trabalhadores: a doação de partes das reservas de caatinga das fazendas para a feitura de car­ vão vegetal, a venda de madeira para as padarias ou outros tipos de industrias, que usam intensivamente a madeira como fonte energia, foram responsáveis pela devastação de boa parte da área de caatinga. A derruba­ da das xerófilas para a alimentação do gado, e até dos homens em momentos mais dramáticos, também con­ tribuiu para a destruição do equilibrio ecológico neste bioma e a proliferação nas capoeiras e áreas desmatadas de plantas secundárias e de ervas daninhas como o marmeleiro e o mata-pasto, além de pragas como o cu­ pim e a formiga que se espalham á medida que seus predadores naturais, como os pássaros, desaparecem- 0 solo nu, submetido a um regime de chuvas que é carac­ terizado por ser irregular, mas concentrado em dados períodos do ano e marcado pela ocorrência de chuvas

254

provoca a erosão e faz com que a camada fértil do solo seja levada para dentro de rios, riachos e açudes, aterrando-os, e levando ao afloramento das ro­ chas cristalinas, que nesta área está a pouca profundi­ dade, gerando verdadeiros pedregais e carrascais em processo acelerado de desertificação. A região do cariri paraibano é um exemplo deste processo que acabo de descrever. No Seridó do Rio Grande do Norte se perpe­ trou o u tro grande crime contra a caatinga que foi o uso da camada de solo fértil da região para a fabrica­ ção de produtos de cerâmica e o conseqüente uso da madeira para alimentar os fomos das fábricas, aliado ao uso em larga escala das águas dos açudes para a fabricação de telhas, tijolos e outros produtos cerâmicos. Este é um exemplo claro de falta de planejamento ou de perspectiva de longo alcance das políticas públicas de desenvolvimento industrial ou econômicas nesta área do país, mostrando que é bastante correta a dire­ triz do Ministério do Meio Ambiente de que política ambiental deva ser feita por todos os ministérios e não só por este Ministério específico. O discurso da seca e a própria forma como o Nor­ deste foi definido, desde o começo do século XX, como uma região rural, fizeram com que também ficassem em segundo plano tanto nas políticas públicas, quanto nos trabalhos acadêmicos e científicos, os sérios pro­ blemas ambientais vividos pelas grandes cidades da região. Tendo, desde a década de 1970, mais de 60% sua população vivendo em cidades e aí estando Muitas das grandes cidades do país, o Nordeste ainda torrenciais

255

continua sendo visto como sendo uma região cujos problemas ambientais localizam-se no campo. Grande parte das cidades nordestinas não conta com rede de esgoto e uma boa parcela da população destas cidades e­ não tem acesso à água encanada, situação que com ça a ser resolvida apenas neste governo. Natal, cidade voltada para o turismo, tem apenas 30% de seu perí­ metro urbano atendido por esgotos, sendo que uma boa parte da tubulação se encontra obsoleta, facilmente estourando, sempre que chove de forma mais contí­ nua. Parcela significativa dos esgotos da cidade é joga­ da diretamente nas praias, inclusive em Ponta Negra, cartão postal para a atração de turistas estrangeiros. A falta de educação ambiental da população faz com que esta escolha os rios, praias, lagoas, canais e terrenos baldios como lugares preferenciais para jogarem o lixo doméstico, quando não o atira da janela do ônibus nas ruas e nas pessoas que venham passando. A especulação imobiliária desenfreada e sem con­ trole do poder público, muitas vezes conivente e muitas vezes agente da construção indiscriminada de prédios, hotéis, resorts e outras edificações, inclusive em terre­ nos públicos, é responsável por graves problemas ambientais nas cidades nordestinas como: a ocupação e destruição dos manguezais, o aquecimento das cida­ des por falta de ventilação provocada pelos paredões de prédios construídos à beira mar, como em Boa Viagem no Recife, a impermeabilização do solo através do asfaltamento indiscriminado que resulta em alagamen­ tos, cheias e o aquecimento das cidades. A própria ca

256

de atendimento pela rede de água e esgoto se vê comprometida, como ocorre hoje em Ponta Negra. A privatização de praias e espaços urbanos e naturais é outra conseqüência, se não ambiental, mas social deste processo. A perfuração incontrolada de poços artesianos, para o atendimento do consumo d’água destes grandes aglomerados populacionais que são os grandes edifici­ os e condominios urbanos, põe em perigo a própria pre­ servação do aqüífero exigido numa velocidade superior àquela de sua reposição. Em Natal e em Recife já che­ gou a ser proibida a contínua perfuração de poços que estava levando à inviabilização de todo o sistema. A ocu­ pação dos terrenos de vales e platos por parte das ca­ madas mais abastadas leva as populações mais pobres a ocuparem encostas, mangues e áreas de risco, ocasio­ nando sucessivos desastres ambientais e sociais. As pró­ prias áreas de floresta ou áreas de preservação, como a área de dunas e lagoas em Natal, São Luís, Maceió, se véem sob forte pressão pelas ocupações irregulares. As margens dos rios e as nascentes que os alimentavam se vêem pressionadas e poluídas, quando não destruídas. Em Salvador, a própria Lagoa do Abaeté, está ameaçada de secar pela ocupação irregular das matas onde se lo­ calizam as nascentes que a alimentam. Canoa Quebra­ da, antes um festejado paraíso para turistas, é hoje um âglomerado de casas sem qualquer planejamento, joSando esgotos a céu aberto, que escorrem por suas lin^ encostas vermelhas para desaguar no mar. Não significa que as estiagens periódicas não seJajn um problema ambiental a ser enfrentado por medipacidade

257

das de cunho governamental ou particular. Mas é preCj. so superar a falácia do discurso da seca que promete e reivindica a solução para este problema, sabendo que um fenômeno natural e climático como a seca não se resolve, mas sim, com ele se aprende a conviver. Prometer acabar com a seca, promessa que já rendeu tan­ tos votos, que já encheu tantos bolsos de dinheiro, que já deu origem a muitas e duvidosas obras de grande envergadura, como parece ser agora a transposição das águas do rio São Francisco, necessária, mas não a panacéia que vai acabar com a seca, como vem sendo apresentada pelo Ministério de Integração Regional além de necessitar ser acompanhada de medidas de preservação do próprio rio, seriamente ameaçado há muitos anos, embora só agora as elites dos Estados por onde ele passa tenham descoberto isso - é o mes­ mo que prometer acabar com o deserto ou acabar com a chuva: não sejamos ridículos e falaciosos. Precisa­ mos é aprender a conviver com um dado da realidade, que está aí e que nada pode ser feito se não forem adotadas medidas no campo da economia e da políti­ ca, medidas sociais, no campo cultural e educacional para poder dar as condições aos diferentes grupos so­ ciais, em seus diferentes ambientes e em suas diversas atividades econômicas, de poder realizar suas ativida­ des normalmente apesar da seca; tecnologia e conhe­ cimentos acumulados para isso já temos, o que falta e vontade e condições políticas para isso. A educação ambiental tem um papel importante a desempenhar neste processo, exatamente porque,-com

258

procurei mostrar neste meu texto, o problema ambiental nordestino está envolto em uma série de mitos e cheio jg lugares comuns, de tal forma que toma necessário UIT1 trabalho de desconstrução destas elaborações discursivas, antes de qualquer outra atividade, feita a partir da própria contestação da visão monolítica que se tem sobre a natureza nordestina. O Nordeste não é só o semi-árido, a seca e a caatinga. Existem no Nordeste vários biomas e ecossistemas que também precisam de atividades de preservação e de sustentabilidade. Além da Mata Atlântica, dos manguezais, temos a mata dos cocais e mesmo parte do cerrado que estão seriamente ameaçados pela forma como vem se dando a ocupação destas áreas. As cidades são, hoje, no Nordeste, ambien­ tes a exigirem medidas ambientais e sociais urgentes, onde a educação tem um importante papel a desempe­ nhar. Há no Nordeste as inúmeras questões ambientais ligadas as suas várias atividades econômicas presididas por mentalidades bastante predatórias, que só serão mo­ dificadas por processos educativos. As elites nordesti­ nas se caracterizam historicamente pela predação, mes­ ma atitude que podemos encontrar nas camadas popu­ lares e nem sempre apenas por estarem premidas por necessidades econôm icas inadiáveis. A questão ambiental no Nordeste envolve inúmeras variáveis e uma delas é a cultural, que nasce da forma como os vários Suipos sociais deste espaço vêem a natureza, a definem, a utilizam, a valoram, a significam. E isto é uma discussa° a ser levada por atividades culturais e educativas. Existem concepções acerca da mata, do rio, da árvore,

259

1 do pássaro, do cacto, das abelhas, dos animais, que c¡r I culam ñas formas e expressões culturais populares ou I no senso comum que tanto podem contribuir para ati-1 tudes de preservação e respeito em tomo do meio ambi­ ente como para a sua destruição. A pesquisa em torno destas concepções sobre o espaço, sobre a natureza, e a posterior educação ambiental a partir das reflexões ai desenvolvidas é fundamental como complemento de políticas mais gerais e estruturantes como a criação de reservas do bioma caatinga, o prêmio com a redução de impostos para quem adotar atitudes preservacionistas em suas terras ou atividades econômicas, bem como a adoção de legislação que discipline a ocupação urbana, das praias, dos mangues, do solo urbano em geral. Le­ gislação que relativize o direito de propriedade ou pena­ lize com impostos progressivos aqueles que contribuí­ rem ativamente em suas propriedades ou atividades eco­ nômicas para a destruição ambiental. No Nordeste, mais do que adoção de uma política de acúmulo de água, é preciso democratizar o acesso às águas já acumuladas, e educar as populações para seu uso racional. Evitar a irrigação indiscriminada e a pró­ pria contaminação com agrotóxicos dos mananciais de água e rios com sua utilização na produção agrícola empresarial, como é o caso conhecido da produção de tomate no município de Boqueirão, contaminando o açude que abastece Campina Grande. No Nordeste e o monopólio da água, corolário do monopólio da terra, | que sustenta esta estrutura social iníqua de profundas desigualdades e de insuportáveis injustiças. O conhecí*

260

perito e debate destas questões através de atividades ¿e educação ambiental são fundamentais para a modi­ ficação das atitudes de super-exploração da natureza que caracterizaram até agora a nossa historia, como re­ gião e como país.

261

«r

)

VV

HISTÓRIA, ESPAÇO E GÊNERO

Cabra Macho, Sim Senhor! Identidade

regional e identidade de gênero no Nordeste.

Corria o ano de 1937. O intelectual e escritor afa­ mado da cidade do Recife, Gilberto Freyre, fundassentado186 em sua poltrona de couro na bibliote­ ca do solar dos Apipucos, escreve em sua prancheta, apoiada sobre a perna direita. Dedicado a fazer um livro que explicasse sua região e seu povo, ele rabisca o se­ guinte lamento: "A industrialização e principalmente a comercialização da propriedade rural vem criando usi­ nas possuídas de longe, algumas delas por Fulano ou Sicrano & Companhia, firmas para as quais os cabras trabalham sem saber direito para quem, quase sem co­ nhecer senhores, muito menos senhoras...Há nesta nova fase de desajustamento de relações entre a massa hu­ mana e o açúcar, entre a cana-de-açúcar e a natureza Por ela degradada aos últimos extremos, uma deformaÇao tão grande do hom em e da paisagem pela



Neologismo presente em MELO NETO, João Cabral de. Duas Fases do dos Comendadores (Educação pela Pedra). In: Poesias Completas. 0 de Janeiro: Sabiá, 1968, p. 46.

265

monocultura - acrescida agora do abandono do proleta­ riado da cana à sua própria miséria, da ausência da an­ tiga assistência patriarcal ao cabra de engenho - qUe não se imagina o prolongamento de condições tão arti­ ficiais de vida... Bem diverso do da época patriarcal. Fjr. mas comerciais das cidades começaram a explorar a terra de longe e quase com nojo da cana, do massapé, do trabalhador, dos rios, dos animais agrários. Desapa­ receu todo ó lirismo - que aliás, nunca fora grande nem profundo- entre o dono da terra e a terra ...desprezada cada vez mais como terra”.187 Freyre nos fala de uma experiência fundamental da modernidade, a de um distanciamento entre homem e natureza, entre homem e terra. O mundo do artifício mecânico, da cidade, da industrialização, da razão, vai afastando homem e natureza, colocando-os em pólos antagônicos. As mudanças sociais vivenciadas pela soci­ edade que chamava de patriarcal, nos últimos cinqüenta anos, eram sentidas por Freyre como a perda de sua terra, de seu território, um processo de desterritorialização de homens, plantas e animais. A nostalgia com que fala de um mundo de solidariedade entre homem e natureza, que teria ficado no passado do engenho bangüê, da sociedade patriarcal, só tem a mesma intensidade da acidez com que fala da nova so­ ciedade industrial e comercial que vinha surgindo; soci­ edade de agressão à natureza, de condições de vida ar­

187 FREYRE, Gilberto. Nordeste. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio; RecW FUNDARPE, 1985, p. 156-159.

266

tificiais, onde tudo parecia diminuir a saúde do homem, as fontes naturais de vida regional, a dignidade e a bele­ za da paisagem; a inteligência, a sensibilidade e a emo­ ção da gente do Nordeste. Tüdo nela era atitude de crispação, ressentimento e revolta.188 Estas páginas, que agora rascunhava, era o local onde a sua memória podería reterritorializar este mun­ do que parecia se esgarçar. Tomara como tarefa barrar este devir maquínico do homem e da natureza, o devirusina, que tomava a terra uma coisa estranha ao ho­ mem, para a qual este olhava com nojo, pela qual não tinha respeito e por isso a emporcalhava, a corrompia. Ao distanciar-se da natureza, os homens deixavam de ser sua expressão telúrica, seus espíritos já não mais refletiam o próprio modo de vida regional. Era preciso, pois, resgatar este homem regional que ameaçava ser extinto pela modernidade. Resgatá-lo não apenas como raça, mas como cultura, como psicologia. Era preciso traçar nestas linhas que escrevia a história da constitui­ ção deste homem regional, traçar o seu perfil fisiológico e espiritual. Era preciso atualizar imagens e enunciados que definiram anteriormente este tipo de homem rústi­ co, de patriarca rural, de cabra de engenho, para que novamente este pudesse servir de modelo a ser subjetivado pela população da região. Retomar a relação de intimidade entre homem e terra que havia na sociedade do engenho era a forma de tarrar o processo de declínio, de desvalorização que a 188 FREYRE, Gilberto. Op. Cit p. 157.

267

sua terra, a região Nordeste, vinha sofrendo em nível nacional. Era preciso reencontrar aqueles homens ma­ chos, viris, fortes, verdadeiros pai-d’éguas, gritando mui­ to e descompondo como um capitão de navio, homens bravos, homens de gênio forte, que eram capazes de amar e penetrar o âmago da terra e das mulheres; que faziam ambas procriarem, produzirem e reproduzirem. O nordestino devia ser capaz de sintetizar e atualizar tipos como o do sertanejo, do vaqueiro, do praieiro, mas principalmente do senhor de engenho e do cabra de engenho, homens machos capazes de domar e subme­ ter a terra fêmea, de fertilizá-la com seu suor e com seu sangue, se fosse necessário. Diante do quadro de uma região que parecia se emascular, perder a potência, dominada agora por uma camada de homens efeminados, de punhos de renda, o texto de Freyre parece ser tramado na busca da preser­ vação de uma sociabilidade e de uma sensibilidade regidas por códigos que pareciam perder a consistência. À medida que estes códigos mudavam, arrastavam con­ sigo territórios tradicionais que perdiam sua forma cris­ talizada e eram atravessados por novas intensidades. 0 mundo do senhor-de-engenho e de seu contraponto, o escravo, estava irremediavelmente perdido. O tipo aris­ tocrático que a casa-grande originou estava agora em franco declínio, se misturando progressivamente com uma nova camada de homens ricos, ou mesmo abastar­ dada nas suas misturas com o cabra do engenho, o ho­ mem do povo, o tipo especial de brasileiro que ia sur­ gindo. Tipos form ados d urante séculos Pe'a

268

sedentaridade, pela endogamia, pela especialização re­ gional das condições de vida, de habitação e de dieta e pelas restrições sociais às relações sexuais, numa socie­ dade regida pelos rígidos códigos da sangüinidade, se viam ameaçados agora pela dissolução das hierarquias tradicionais de classe, de raça e de sexo. O crescimento em importância das elites não aristocráticas do sertão, no interior da região, e a própria prevalência das ima­ gens ligadas à sociedade sertaneja como definidoras da região Nordeste, prevalência assegurada pela generali­ zação do discurso da seca, incomodava Freyre, que via se perder aquela sociedade e tipos sociais, que segundo ele eram o que de melhor a região havia produzido. Es­ trategicamente emitido a partir do lugar de represen­ tante das elites da mata, o discurso freyreano vai traçan­ do uma imagem do Nordeste e do nordestino como pro­ dutos sociais, culturais, sexuais e ecológicos do mundo da casa-grande e da senzala.. Sociedade agora, mais do que a do outro Nordeste, ameaçada pela modernidade, que levava a desenraizamentos, nomadismos, mudan­ ças profundas nas condições de vida, recorrentes transversalidades nas relações sociais, raciais e sexuais. 0 fim da endogamia, a progressiva generalização da fa­ mília nuclear em detrimento da parentela patriarcal, o declínio dos laços motivados por alianças políticas, econ°micas e de sangue, levam à emergência do dispositivo fia sexualidade, de uma sociedade individualista, onde Cada um trata de estabelecer a verdade de si, suas idendades, não mais a partir do pertencimento a uma “enealogia, a um sangue, mas a partir de seu sexo. A

269

cultura e a historia parecem penetrar e desnaturalizar de forma definitiva as relações entre os sexos. Também aí a natureza parecia estar batendo em retirada. Já não se viam mais, pelos engenhos, aquelas cenas de lubricidade entre homens e animais, homens e plan­ tas, entre meninos de engenho e moleques da bagaceira. Cenas como as descritas por seu amigo José Lins do Rêgo, onde o sexo é vivido pelos homens poderosos ou camumbembes como algo natural. Nos' cercados dos engenhos o menino se iniciava nos mistérios do sexo, concorrendo com touros e pais de chiqueiro. Nas pala­ vras moralistas deste intelectual aburguesado na cidade grande “a promiscuidade selvagem do curral arrastava a infância às experiências de prazeres que não tinham idade de gozar”.189 A separação rígida entre o mundo dos adultos e das crianças ainda não se fizera, não se perseguia com horror o onanismo, os adultos exibiam seus membros em riste para os meninos e lhes falavam de “porcarias”, de coisas de mulher, e o menino que cedo não apresentasse marcas da doença do amor, o gálico, começava a sofrer todo tipo de chiste. As possibi­ lidades de identidades de gênero na sociedade do enge­ nho ou mesmo na sociedade sertaneja eram apenas a do homem macho e da mulher fêmea. Só agora a influ­ ência da cidade, do mundo moderno, parecia trazer à tona uma série de seres estranhos que não se enqua­ dravam nesta natural bipartição fundada sobre o sexo.

189 RÊGO, José Lins do. Menino de Engenho. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, pp. 34-35.

270

Os lugares bem demarcados entre homem e mulher começavam a ser contestados. A prevalência do mascu­ lino, sua dominação, começava a ter que ser reposta em novas bases, o devir-mulher parecia ameaçar seres como o moleque Ricardo, que, urna vez fora do engenho, se vê confrontado com urna nova possibilidade de identidade de género, com um novo modelo de subjetividade, o do ser homossexual.190 Os homens pareciam perder o con­ trole sobre tudo o que era naturalmente deles, anterior­ mente: as terras, as mulheres, as crianças, os negros e até os animais, todos pareciam tomados por um proces­ so de transfiguração, todos pareciam agora tomados por uma capacidade de metamorfose. A mulher de Zé Amaro já vinha até a sala se meter nas suas conversas, sua filha já com trinta anos, ainda permanecia solteira, por isso Zé Amaro precisava reafirmar de uma forma até amarga que ele ainda era homem, que era ele quem mandava na casa. Ele falava o que queria.191 Era preciso reafirmar o direito à fala que pertencia ao masculino, no falo que estava simbolizado todo o seu poder. Por isso, também, Zé Amaro abomina seu patrão, o coronel Lula de Holanda, um homem calado, sem autoridade, fraco, de­ dicado a coisas de mulher como tocar piano e rezar. Era Por isso que sua terra estava decadente, seu engenho de f°go morto. A morte do fogo parecia ser o maior símbo­ lo de uma sociedade que se esvaía.

l90RÊGO José Lins do. O Moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio,

1935, ^

Idem, Fogo Morto, 6 ed, Rio de Janeiro, José Olympio, 1965, p. 06.

271

É por isso que Freyre dedica estes seus dias a relembrar, rememorar essa sociedade onde o fogo sem­ pre estava aceso, a fumaça saindo pela chaminé da fá­ brica e o calor percorrendo os corpos mestiços, que se tocavam sem o pejo da moral burguesa. As chaminés fálico símbolo do poder do senhor de engenho, já não emitiam sinais de vida, do calor que produziram. Esta­ vam frias, em ruínas, substituídas pelas poderosas cha­ minés da usina. Assim como o homem acariciava e pe­ netrava a terra, com amor e com paixão, assim também fazia com os corpos, corpos de mulheres do povo, cor­ pos femininos não segregados à vida de clausura reser­ vada às filhas de famílias de bem. O esfriamento dos corpos, suas desterritorializações, seus despedaçamentos, corpos agora reduzidos aos pés, mãos e sexos, para o trabalho e para a reprodução, eram corpos mutilados das relações com sua terra, com sua cultura, com seu território. Esses seres desenraizados, desprotegidos dos laços de solidariedade patriarcal, sem um senhor e sem uma senhora, perdem o amor à terra, à agricultura, tem aversão ao que fazem, alienam-se, tomam-se tristes, do­ entios. Ao contrário do que afirma seu amigo Paulo Pra­ do, a tristeza desta gente é nova, não foi produzida pela saudade, pela luxúria ou pela cobiça dos colonizadores, mas pela perda progressiva de suas condições de vida e de cultura. 192 É este processo de perda de si e de sua terra que explica a falta de interesse pela vida, o banzo,

192 PRADO, Paulo, Retrato do Brasil. In: Província e Nação, Rio de ro, José Olympio, 1972.

lombeira, a preguiça, a libertinagem do homem norg ¿ tin o . A falta de contato com a terra e com o outro leva a uma sociedade individualista, de seres autistas, qUe se infelicitam na masturbação tristonha dos mole­ ques ou na inclinação ao masoquismo de toda uma raça. A região perde sua altivez, seu orgulho, demonstrado desde o episódio fundante da nacionalidade, a expulsão dos holandeses, prolongado nas revoltas liberais, contra o centralism o usurpador do Império. Orgulho de ma­ cho, que agora vivia da súplica, do apelo, da concessão. Uma região de homens que se abaixam. A sociedade patriarcal e escravista, embora tenha criado uma casta de aristocratas altivos e brigões, homens de honra e res­ peito, abastardou toda uma canalha, sem força de von­ tade, amarela até na alma. Talvez, por isso, seu amigo escritor paraibano, José Américo de Almeida, tenha to­ mado o sertanejo como a última esperança de salvação desta região. O brejeiro pareceu àquele escritor comple­ tamente degradado pelas condições de trabalho e vida do latifúndio monocultor e escravista.193 Talvez não com­ partilhasse plenamente desta opinião, principalmente não via n a modernização do latifúndio a solução para o Problema regional, nem compartilhava da amargura do brejeiro José Américo com os seus descendentes. AchaVa que a volta a condições de vida mais naturais traria a recuperação deste homem do povo, que ia se formando ao Par com todas as misturas raciais e culturais e que

BLALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 26 ed. Rio de Janeiro: José •'mpio, 1988

273

era o tipo que; talvez, viesse a se tomar o brasileiro Era preciso corrigir o seu estilo de vida, recuperar o brío perdido, retomar a voz, falar alto e grosso. Era preciso reencontrar a essência do todo regional, era preciso res­ gatar a identidade do Nordeste, a região do agrário, da sedentaridade, da endogamia, dos patriarcas que não precisavam afirmar que eram homens. Reencontrar a região era reencontrar o masculino que nela havia, era reencontrar o poder, o mando, a dominação ameaçada, abalada. Se os tipos sociais, fisiológicos e psíquicos que o passado regional produziu não foram capazes de evi­ tar este processo de declínio, era preciso encontrar este homem novo, formá-lo, produzi-lo. Homem novo, mas assentado na tradição, defensor de um tempo em que homem e terra eram um só. O discurso de Freyre se pauta pela desesperada bus­ ca das origens, pela estratégia da produção do contí­ nuo. Ele lança para trás o homem que ele figura neste momento. Ele procura religar este presente com um passado que se foi. Ele faz uma história monumental e ergue monumentos a homens que ficaram no passado. Seu maior medo é do devir, dos devires minoritários da mulher, da criança, dos negros, dos animais. Freyre par­ tilha com outros membros das elites de seu tempo e de um tempo ¡mediatamente anterior, final do século XIXe início deste século, do medo da perda da natureza, da perda da terra, que é, na verdade, o medo de perder as territorialidades tradicionais construídas. O movimento cultural que encabeçara no Recife, desde o início dos^ anos vinte, quando retomou dos Estados Unidos, °u

pesólo antes, nos seus artigos numerados para o Diário u e pernambuco, já defendia essa necessidade de valorizar o tradicional e o regional. A construção da região \ordeste, para além dos particularismos políticos de província ou os bairrismos culturais, era a única saída que enxergava para barrar esse processo de predomínio devalores estranhos, que ameaçavam de dissolução uma cultura. Era preciso superar também os particularismos dos tipos regionais, já tão bem delineados em romances naturalistas do fim dos dezenove, e construir um novo homem capaz de ser uma síntese de todas estas singu­ laridades. A diferença, a multiplicidade o incomodava. Era preciso construir o homogêneo, o sem fissuras. Era preciso fixar um território que não sofresse as estranhas mutações que vinham ocorrendo. Mesmo na cultura popular da região essas mudanças que o mundo mo­ derno anunciava pareciam ameaçar o corpo da terra e dos homens de despedaçamento. A velocidade do tem­ po, a relatividade do espaço, a artificialidade da vida, a precariedade das identidades parecem ameaçar inclusive a longa luta do homem contra a fera que o habitava. Na literatura de cordel, que enche as barraquinhas das feiras de sua cidade, só se narra, neste período, histórias ern que personagens desrespeitam valores morais tradiC|onais e tomam-se bichos, devém-animal. O homem ;^Ue virou cachorro. O homem que virou jumento. O h°niem que bateu na mãe e virou cobra. A violação das e§ras sociais, fazendo os homens voltarem à selvageria. Car*to noturno de Dionisio parece arrastar estes ho: eris para a tragédia, para onde o divino e o diabólico

275

não se separam194. A dissolução da sociabilidade tra(j¡ cional pode liberar a fera que há em cada um. P0(j também mostrar a cara de fera castanha e malhada quJ é a terra e a miséria espiritual da raça piolhosa dos hu­ manos. Homens que viram feras como o cangaceiro ou se alienam no delírio místico como os fanáticos. Não era nova a estratégia que atravessa o seu texto Toda a produção de intelectuais como Silvio Romero José Veríssimo, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, que tanto ele admirava, embora nem sempre concordasse com suas teses, se pautava por esta ênfase na relação entre meio e homem, onde as condições ge­ ográficas ou ecológicas, como ele preferia chamar, de­ terminavam, em grande medida, a constituição física e psicológica dos indivíduos. Explicar, pois, a particular psicologia do homem nordestino, requeria uma análise da sua ambiência, seja natural, seja social. Embora já enfatize esta dimensão social ou cultural do meio, Freyre não deixa de atualizar em seu discurso imagens e enun­ ciados que circulavam nas obras de cunho naturalista A natureza pareceu durante muito tempo o elemento fixo, determinante de todos os outros aspectos da vida social. Numa região de natureza tão particular, tão cheia de contrastes, era preciso tomá-la como ponto de parti­ da para a reflexão sobre a formação social nordestina e dos tipos sociais que esta originou. Daí por que prefere 194 Sobre a relação entre a dimensão apolínea e dionisíaca da existênc® que parece atravessar muitos dos textos de Freyre, que foi leitor de NjeWa che, ven MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia ffQjM Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1997.

nietzschiana.

276

escolher a mata como o locus natural de produção desse novo homem, que é o nordestino. Não se sente atraído, como seu amigo José Américo de Almeida, pela vida épica e trágica do sertão. Porque tudo neste espa­ ço parece agressivo, áspero, rangendo como areia seca sobre os pés. O sertão lembra confrontos, conflitos, ti­ roteios, sangue, morte, nomadismos. Já aprendera com Euclides que o sertão era uma terra de contrastes, de ambigüidades. Lugar de vida tormentosa, cheia de tran­ ses. O sertanejo embora forte, bravo, um titã acobreado, era desgracioso, desengonçado, torto. Parecia um ho­ mem permanentemente fatigado, refletindo a preguiça invencível, a atonia muscular perene, embora em pou­ cos segundos pudesse se transfigurar, empertigandose, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto. Mas Freyre não quer fazer do nordestino este ser em permanente transfiguração. Ele quer figu­ rá-lo com uma forma fixa e estável, como aqueles pa­ triarcas que surgem nas fotografias de família. Homens anchos, bem assentados no mundo, que parecem do­ minar e ser dono de tudo a sua volta. O nordestino, figura desenhada para a retomada do domínio sobre sua terra invadida pelas usinas, pelo capital estrangeir°. pelas estrangeirices nos costumes, pelos modemism°s nas artes, pelos ditames políticos que vinham de umEstado que representava a vontade de outras plagas, ^ev'a ser uma figura sólida, sem fissuras, sem devir. ^ev¡a ser uma forma cristalizada. Uma forma masculina’ Que conjurasse todos os devires minoritários que a laçassem de desabamento.

277

Embora faça questão de dizer na abertura de seu livro que o seu Nordeste não é aquele desfigurado peia expressão “obras contra as secas”, que não é o Nordeste do sertão de areias secas rangendo debaixo dos pés que não é o Nordeste das paisagens duras doendo nos olhos, assumindo a própria multiplicidade de significa­ dos do recorte regional Nordeste, não deixa de ir buscar na natureza do massapé acomodaticio uma determinante para explicar a própria psicologia do homem da mata195, Homem que, como o do sertão, também teve que se tomar forte, valente, fazendo-se respeitar. Se o sertane­ jo, como diz Euclides, 196 se enrijeceu na luta cotidiana contra o seu meio hostil, tomando-se como ele, seco, duro, espinhento, com o coração duro como pedra, o senhor de engenho teve que aprender desde cedo a mandar, a se fazer respeitar, sob pena de, sendo fraco, cair na mina. Se o sertanejo se viriliza na luta contra um meio hostil, do ponto de vista natural e social, o brejeiro se toma homem num meio que lhe exige comando e determinação. Sempre coube aos homens da mata gerir os destinos da nação e da região, por que agora se submeter aos ditames que vinham de homens do intenor. O que mais estava faltando na região eram, justa­ mente, homens capazes de comandar, de recuperar o lugar que este espaço já havia ocupado na economia e na política nacional. A própria cultura tradicional desta

195 FREYRE, Gilberto. Op.Cit p.05. Í J fl 196 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 30 ed. Rio de Janeiro: Franci J Alves, 1981. . "

278

¿rea do país, que era a que havia de mais brasileira, parecia am eaçada pela falta de alguém capaz de defendê-la contra estrangeirices e modernidades. Já não se faziam mais homens como antes, até as moças já expressavam esta opinião pelos jornais. Era preciso prevalecer o masculino, o elemento da conquista, do domínio, da fertilização, da criação, tal como este era definido na sociedade em que vivia. O feminino tinha o seu lugar, o da obediencia, da caridade, da prestimosidade, da delicadeza, da proteção maternal, da maternidade. Como também o lugar da cozinha, assegurando que deliciosas receitas de bolos e doces, traços marcantes da nossa civilização patriarcal dos engenhos, não se perdessem para sempre. P or isso desconfiava de certa literatura que, ao in­ vés de retratar Senhoras de Engenho, com seu papel civilizador, se dedicava a falar de m ulheres masculinizadas pelas duras condições de existência do sertão. Luzia Homem, 197 embora fosse muito admirada por ser capaz de carregar uma jarra d’água equivalente a três grandes potes feitos para os mais robustos dos homens carregarem, não o emocionava. Ele preferia mesmo era falar de sertanejas como Soledade, mulher branca que era azul, rapariga que ocultava a face entre 0s braços, numa atitude de acanhamento sempre que Lúcio a encarava com maus pensamentos. Mulheres que sabiam de sua importância e seu papel regional e tradiCl°nalmente civilizador, coadjuvando o seu marido. ^ OLÍMPIO, D om ingos. Luzia-Homem. 8 ed. S ã o Paulo: Ática, 1980.

279

Não gostava Freyre da sociedade guerreira do ser­ tão, porque a guerra, ele sabia, ameaça o Estado, amea­ ça sempre arrastar o povo para fora dos territórios tradi­ cionais, a guerra desterritorializa. Embora seja também potência masculina, a valentia, a épica guerreira, não traz as vantagens do sedentarismo do agricultor, do ho­ mem ligado a terra, afundado e fincado até as raízes no massapé. Esse homem acomodaticio, plástico, como a natureza que habita, sempre entre a lama e a terra fir­ me, parecia talhado para articulações políticas, por ser maleável, por ser como uma raposa, não onça pintada, arisca e cruel, como o homem da terra do sertão. Até os animais do engenho, o boi e o cavalo, são animais do­ mésticos, sedentários, voltados para o trabalho, não são os animais de rapina do sertão com seus gaviões, carearás, onças e cobras. Civilização, Freyre sabe, é a contenção do animal em nós, é o processo de suavização dos costumes, de seu abrandamento. Não admira, pois, os disparates da vida do sertão, vida cantada em prosa e verso pelo cordel e que iria inspirar um paraibano, radi­ cado em sua terra, a fazer um teatro e um romance que tentam enobrecer este mundo pardo sertanejo198. Seu N ordeste e seu nordestino são a tentativa de reterritorializar a raça, o sangue, a classe, o sexo da soci­ edade em que vivia, que pareciam arrastados para fufl gas, para nomadismos, para contrastes, para ambigui­ dades. Sonhava, não com um homem e uma natureza

198 SUASSUNA, Ariano. Romance D’A Pedra do Reino. 4 ed. Rio dejan^j ro:José Olympio, 1976.

280

rebeldes, mas com um homem e uma natureza domes­ ticados, sedentarizados, civilizados, tradicionalizados. Sonhava com um idilio lírico entre homens e terra, aman­ sados pelo trabalho, pela educação, pela arte. Um mun­

do sem visagens e assombrações, um mundo de formas fixas, de relações fixas, de conteúdo fixo. Retomar os brasões, as marcas, os sinais, restabele­ cer a arquitetura de um tempo em toda a sua dureza de pedra, impedir que se esfarele, que perca a sua fibra, petrificar o tempo e a memória era a que se propunha. Difícil, para ele e para os seus, era habitar o tempo que passa veloz, que é pura intensidade, que não tem o langor de tardes de calor no alpendre da casa-grande. O nor­ destino parecia não ter sido treinado para este passar do tempo, ainda sonhando com um tempo natural, de ciclos repetitivos, do eterno retomo da semelhança. Em que as hierarquias sociais se reproduziríam sempre as mesmas, mas com a docilidade e a harmonia, cada um reconhecendo o seu lugar. Em que as hierarquias de raça iam se abrandando pela mestiçagem, democrati­ zando o acesso ao sangue eugênico do branco, demo­ cratizando traços nórdicos, democratizando os traços eugênicos dos grupos de negros superiores que aqui chegaram de África. O nordestino, ao contrário do que Profetizavam as teorias raciais que muitos de seus antecessores abraçaram, não estava condenado a ser Um homúnculo pela raça, muito pelo contrário, era posSlvel encontrar seres eugênicos em todas as raças que o formaram. Também sua psicologia, enquanto viveu em Seu meio social, natural e regional, era plenamente adap­

281

tada, não gerando as patologias que o atual desajustamento vinha provocando, como atestavam os estudos de doença mental feitos por seu colega Ulisses Pernambucano. O nordestino não era um degenerado fisicamente, nem um tarado moral, mas um desajustado diante da alteração brusca de suas condições de vida, pelo desabar de todo o seu complexo cultural. Nas hierarquias de sexo era que este desajustamento mais se expressava, pois gerava a insegurança de indiví­ duos, sem o apoio sólido das parentelas patriarcais, sem a proteção do senhor, do homem da casa, aquele em que todos vinham buscar apoio, a grande fortaleza em que todos se defendiam, o grande timoneiro que dirigia esse navio para águas tranqüilas. O que lamentava era não poder contar com estes homens, mas ter que convi­ ver com homens tristes, tíbios, abobalhados como Vitorino Carneiro da Cunha, xingado pelos moleques como o Papa-Rabo, homem sem honra, sem respeito, sem posses, sem poder. Conviver com homens que sen­ tiam seu mundo encolher, que dele tiveram que fugir como retirantes, que foram buscar na cidade a forma de sobreviver e, de lá, choravam este mundo que haviam perdido, este reino que perdera o encanto. A sociedade do desencantamento produz homens reduzidos em seu tamanho, em sua potência, não produz mais uns Wanderley de Sirianhém, uns Rabelos de Nossa Senho­ ra do Ó, uns Lins da Paraíba. Homens de estirpe e de mando, homens agora reduzidos a velhos doentes e caturras, perdidos num mundo que não entendem e onde tudo é condenável. Velhos tristes, decadentes, adoecem

282

¿o de desgosto. Vendo os filhos abandonarem e

comercializarem tudo que lhes parecia sagrado: a terra, o engenho, a cana, os animais, os negros. Filhos como Juca, formado bacharel em Direito, com anel no dedo, mas incapaz de tocar o império deixado pelo pai, que se vende às forças do estrangeiro, que se deixa penetrar pelo estranho, que se deixa metamorfosear em outro homem, um burguês sem nenhum amor que não seja ao lucro, ao luxo e à politicagem. Freyre, mulatinho educado no estrangeiro, filho de famílias de boa cepa, faz uma viagem em busca de um tempo perdido, de um homem perdido, do eterno mas­ culino que parece estar ameaçado pela força do devir. O nordestino que emerge de seus escritos é este homem que deve se reconciliar com a natureza, com sua terra, com sua região. Ele já não acredita mais na elite aristocratizada que parece ter definitivamente se perdi­ do, mas joga todas as suas cartas neste novo homem do povo, que resumia e sintetizava uma multiplicidade de figuras da sociedade tradicional do engenho. Ele era o retomo ao uno, encontro do cabra de engenho, do mo­ leque da bagaceira, do capanga, do mulato vadio caça­ dor de passarinho, do malungo, do pajem, do branco Pobre, do amarelo livre, da mãe preta, da mucama, do oegro velho, do curandeiro, do caboclo conhecedor da mata e de seus bichos, da ama de leite, da cabra mulher, c°m gotas de sangue-azul da casa-grande. Este .era o cabra do engenho, o resumo do homem povo do Nordeste, “o herói de um grande número de h*stórias de coragem e de aventuras de amor. É o cabra

283 ri

danado. O cabra da peste. O cabra escovado. O cabra bom. O cabra de confiança. A ele a imaginação popular atribuía uma potência sexual extraordinária a que não faltariam vantagens físicas também excepcionais. Irre­ quieto, inconstante, forte, valente, trabalhador. Um ca­ bra macho, sim, senhor.199

199 FREYRE, Gilberto. Op. Cit p. 150.

284

Quem é Mole não se Mete: violência e mas­

culinidade como elementos constitutivos da imagem do nordestino.

Era “tempo de política”, 12 de setembro de 1976. A cidade de Caicó se vê abalada por um grande crime. Um corpo é achado e desenterrado próximo ao Parque de Exposições do município. Constata-se ser o corpo da menor Rita Reges, que por estar desaparecida há alguns dias, vinha sendo insistentemente procurada por seus familiares. A polícia prende, então, a última pessoa a ser vista na companhia de Ritinha, como era mais conheci­ da. Trata-se de Wilson Roque, seu namorado, que, após interrogatório, confessa ter sido o autor do assassinato. Conta que matou a sua namorada e prima após estuprála, enforcando-a com sua camisa, já que esta resistiu ao “atentado à sua honra”. O acontecimento parece só ter vindo a confirmar as suspeitas dos pais de Ritinha que Já a haviam alertado para não sair mais com o rapaz. Esta história, que à primeira vista nos parece até banal e cotidiana, que só é digna de ocupar as páginas Policiais dos jornais diários, para ser esquecida e substihbda ¡mediatamente por outra no dia seguinte ou, no Máximo, no mês seguinte, ganhou outra dimensão ao Ser transformada numa história narrada pelo cordelista 285

Leandro Simões da Costa. O folheto de cordel o torna um crime singular, um grande crime, um assassinato que se conta para dele extrair ensinamentos morais, para atra­ vés dele exemplificar quais devem ser os bons costumes, a boa conduta de homens e de mulheres. Ele traça uma imagem do masculino e do feminino em que cabe à mu­ lher defender-se dos homens, do perigo iminente que es­ tes sempre representam para a honra feminina, da índole naturalmente violenta e traiçoeira que estes parecem ter. Obedecer aos pais, não contrariar às suas ordens, é indi­ cado pelo discurso do cordelista como o único caminho que pode proteger a própria vida da mulher da violência que parece ser inerente à condição masculina: “Deixo tudo declarado/ escrito aqui neste j v e r s o / as moças pensam de um jeito/mais (sic) sempre sai adverso/ rapaz não tem coração/ todo ele é perverso “Aviso a toda mocinha/ não se iluda com rapaz/ seja bem obediente/ aos seus queridos pais/ a vida da gente é doce/ quando vai não volta mais”.200 O cordelista parece ter consciência da importância

de sua escritura; com ela o crime deixa de ser algo banal e corriqueiro, para entrar na galeria dos grandes crimes que merecem destaque por sua exemplaridade. O crime do pobre, o fato corriqueiro e cotidiano, as vidas de pesso200 COSTA, Leandro Simões da. O Grande Crime de Caicó. Caicó: Ed. D°: Próprio Autor, s/d, p. 14.

286

^ sem maior destaque, ganham com a sua escritura em verso um lugar na história. As personagens de uma his­ tória que parece obscura, se tomam importantes à me­ dida que servem de pretexto para a produção de um discurso que visa moralizar a sociedade e reforçar os códigos sociais que são rompidos por estes aconteci­ mentos ímpares. A sua narrativa serve de registro e ao mesmo tempo de apagamento daquele momento de vi­ olência, em que a dimensão conflituosa das relações sociais se explicitou de forma contundente, pois este moralismo do cordel é justificativa para a atitude disruptiva a posteriori, para ocultar ou castrar, para minimizar ou proteger a sociedade da potência desta ruptura. Tomar o crime contra Ritinha um símbolo do que pode acontecer com a moça que desobedece à fa­ mília e não teme os rapazes é uma forma de esvaziar este fato de sua dimensão diabólica, ou seja, sua capaci­ dade de segmentar, pôr em dúvida, romper, questionar, fazendo assim a realidade retomar ao seu centro, ao seu caminho previamente traçado.201 Mas, ao mesmo tempo, se este folheto é feito para vender, e isto requer que o assunto de que trate interes­ se ao público leitor, este crime que parece horrendo e cmel deve exercer algum fascínio. Por que as pessoas se interessariam em comprar a narrativa de um aconteci­ mento como este? Se nos detivermos na análise do discurso da litera­ tura de cordel, uma das poucas formas populares de

w ^er MAFFESOLI, Michel. A Violência Totalitária. Rio de Janeiro: Zahar, 981- PP. 43 e segs.

287

narrativa de que temos acervos, notaremos a presença constante de imagens de violência. A violencia é neste discurso um componente da sociabilidade no Nordeste urna característica da própria forma de ser do nordesti­ no e, mais acentuadamente, um dos elementos que com­ poriam os atributos da masculinidade nesta região. Ser “cabra macho” requer ser destemido, forte, valente, co­ rajoso. Nesta sociedade, o mole não se mete, não há lugar para homens fracos e covardes. Há, pois, uma tra­ dição de narrar atitudes de violência na produção cultu­ ral popular.* O crime do pobre parece exercer um fascí­ nio sobre a massa de homens dominados e submetidos a relações de poder as mais discricionárias possíveis; a virilidade do dominado é aí reafirmada. Sendo assim, perguntamos: esta literatura faria parte daquilo que Maffesoli chama de “encenação da violência”, única for­ ma que a sociedade teria de lidar com a violência - que é inerente às relações sociais - e está não se explicitar em atitudes de agressão aos outros ou de contestação à ordem? Pois, para este autor, “o ritual da violência per­ mite à sociedade tomar consciência de sua violência e, com isso, proteger-se dela”.202 A violência discursiva evi­ taria a violência prática? Fazer o texto da violência seria a forma de não cometê-la? .J Estas narrativas parecem sempre ficar na perigosa fronteira da reversibilidade, da ambigüidade. Ao mesmo tempo em que o criminoso é motivo de reprimenda moral, de punição, de castigo, para que isto possa ocor202 MAFFESOLI, Michel. Op. Cit p. 22.

288

rerse legitima que as autoridades ou os heróis das narrati.05 , aqueles que representam, nestas maniqueístas estru­ jaras de narrativa, o lado do bem, pratiquem atos tão vio­ lentos e extremados quanto aqueles que são atribuídos a0s criminosos, aos maus, aos bandidos. As fronteiras en­ tra a ordem e a desordem aparecem como muito tênues. Um ato encarado como de valentia e de bravura não fica muito distante de um ato criminoso. H á urna nítida valori­ zação da violencia nas imagens deste discurso do cordel. Em várias situações, o ato de violencia individual é legiti­ mado pelo código de moralidade popular, que este discur­ so veicula O enfrentamento pessoal parece ser urna cons­ tante nesta sociedade onde o monopolio da violência ain­ da não estaria com o Estado. A atuação precária deste, o privilegiamento, por parte de seus agentes, das pessoas in­ fluentes ou ricas, abriría espaço e tomaria uma necessida­ de que o homem pobre resolvesse com a sua atuação dire­ ta as injustiças de que fosse vítima; “Há muitos anos p a ssa d o s/ Residia um cidadão/ Na cidade de Jequié/ Destemido valentão/ Cabra de sangue e coragem/ Por nome de Zé Trovão”. “Zé Trovão disse: - Eu aceito/ Mas, com u m a condição/ De não ouvir desaforo/ Da patroa e do patrão/ E pra cabra safado/ Deixa comigo a questão!”.203

^C^SÃLCANTE, Rodolfo Coelho. O Valentão de Jequié. Salvador: Casa 'rovador, 1975, pp. 01 e 02.

289

A narrativa de um crime contemporâneo, pelo cordel, atualiza, na verdade, toda uma tradição de narrar contendas, pelejas, desafíos e valentías que remetem à própria origem dos folhetos entre nós, no final do século XIX, bem como ao romanceiro medieval europeu, ao qual ele se liga Mesmo os folhetos que são escritos atualmen­ te, quase sempre remetem as suas histórias para um tem­ po onde “reinavam os coronéis e os cangaceiros” no Nor­ deste. É com certa ponta de nostalgia que estes folhetos constroem este Nordeste onde a violência andava solta onde os homens adquiriam status pelo seu destemor e não pelo seu dinheiro. Nordeste onde ser valente podia significar uma via de ascensão social. Nordeste onde a covardia era o maior defeito e a valentia a maior virtude, onde a macheza era testada todos os dias: “Nos tem pos dos coron éis/ De patente afiançada/ Os crimes pelo Nordeste/ Eram missa encomendada,/ A vida de qualquer homem/ Não valia quase nada”. “Palmares ficou em p a z/ muito bom de si viver/ e do moço Carlos/ todo o povo com prazer/festejou sua bravura/ por ele bem merecer”. “A Câmara honrou-lhe o títu lo / como cidadão local/ o juiz lhe deu prestígio/ e o delegado geral/ ofereceu-lhe uma vaga/ na força policial”.204

204 SANTOS, Valeriano Félix dos. Pistoleiros do Nordeste. Salvador: Tipização da Política.

337

seu melhor adestramento e adaptação a tarefas e mJ quinas. Era preciso conectar a máquina desejante à máquina técnica para que novos mundos pudessem ser produzidos. Para isso era preciso achar o lugar biologj. camente definido para cada homem, assim como se acha um lugar para cada peça que compõe o automatismo Adotando uma estratégia de naturalização das diferen­ ças sociais, bem como dos lugares de sujeitos, este dis­ curso reivindica que cada um ocupe um lugar que é definido pela natureza. O indivíduo é tomado como um órgão no grande corpo que é o Estado, tendo cada um uma função e papel sociais previamente definidos, a que deve se resignar. Não há porque se revoltar contra este lugar social porque seria se revoltar contra a natureza; quem o faz é monstruoso, pervertido, anormal, patológi­ co ou de constituição delinqüencial. Aos delinqüentes também se chega pelo estudo dos corpos. O crime é um estigma que deixa seu sinal, seu signo a flor da pele, ele se deixa emergir em alguma sali­ ência do crânio, ele se insinua em cada gesto. Portanto, é preciso que o especialista em craniometria, em frenología, em antropometría, venha decodificar estes sinais e ajudar os criminologistas e a justiça a aplicar a pena que cada um individualmente merece. Nada de leis gerais, que par­ tem da concepção universalista do homem. Os códigos, têm que ser agora flexíveis e abertos aos novos conheci­ mentos das ciências sociais, atribuindo a pena a cada delinqüente de forma individualizada Todas estas medidas seriam saneadoras do corpoj social, operariam finalmente a tão necessária profilaxia

física e moral da população nordestina, medida urgente e decisiva para a recuperação da região, destruida por anos de imoralidades e imundícies. Se o novo regime davia varrido as imundícies das oligarquias que gmpestavam o governo, cabia agora a este higienizar a população, cuidando daqueles elementos mais eugênicos e deixando desaparecer, no conjunto da população, aque­ les elem entos de desordem. No preâmbulo do livro, já escrito pelos autores, encontram os uma citação do biotipólogo italiano Pen­ de, que afirma a importância da pesquisa da biologia e da psicologia da individualidade, saberes a quem a so­ ciologia e a antropologia pareciam estar subordinadas, já que a cultura humana e a sua organização social tinham como determinantes últimos a constituição fí­ sica dos indivíduos e seus reflexos na constituição psíquica. Para ele a biotipologia humana interessava ao médico e ao investigador da higiene e da medicina social; ao educador; ao antropólogo e ao biólogo que estudavam os problemas da herança e da eugenia; in­ teressava ao criminalista filantropo que anela a reden­ ção dos imorais e dos predispostos ao delito; interes­ sava ao filósofo pela eterna questão das relações entre a Personalidade física e a personalidade psíquica; inte­ ressava, sobretudo, ao homem público e ao condutor Povos, pela instauração de urna política nova, que Podemos chamar política biológica ou psicofisiologia 0u bio-sociologia.250 ^■FERRAZ e LIMA JR A Morfología, pp. 14 e 15.

339

Foucault chamaria de biopoder este governo (j0$ corpos, este poder que se encarna, que plasma uma população disciplinada em nome da vida, de sua preser­ vação e reprodução. E como ele suspeitava, está aí, nes­ ta forma de poder, a possibilidade de emergência das ciências sociais, dispositivo de exame e intervenção so­ bre o cotidiano, antes cinzento e desconhecido, das ca­ madas populares. Saberes e práticas que produzem o homem comum, o pobre, o operário, o criminoso, a po­ pulação como objeto de conhecimento, como superfície de inscrição de desejos e como destinatário privilegiado de olhares e práticas de governo.251 No prim eiro capítulo do livro define-se a biotipologia como o estudo da individualidade huma­ na nos seus caracteres físicos (anatômicos e funcio­ nais) e psíquicos que fazem distinguir cada ser de seu semelhante. Saber, pois, que investe na definição do indivíduo, de sua diferenciação, ao qual só interessam as particularidades em detrimento das leis que, segun­ do os autores, era o que interessaria à Antropologia. Este saber teria como conceito básico a noção de cons­ tituição, formulada pela escola italiana comandada por Viola, Frasetto, Di Tulio e Pende. A constituição seria a resultante morfológica e psicológica, variável de indiví­ duo a indivíduo, das propriedades de todos os elemen­ tos celulares e humorais do corpo e também de sua combinação em um tipo especial de composiÇ30

2 5 1 Sobre a noção de biopoder ver FOUCAULT, Michel. Poder e Co p. 11..

354

Com enorme melancolia, José Lins constata que seus textos são incapazes de evitar a morte daquela civiliza­ do e daqueles homens, assim como tinham sido inca­ pazes de aliviar a dor pela morte de sua mãe, de seu primo Gilberto e de Lili. Mortes que inauguram a sua rida de menino, que fizeram ter consciência de sua pró­ pria existência, que lhe adoeceram de puxado, sufocamentos constantes que prenunciavam seu pró­ prio fim e que trouxeram nas intermináveis narrativas da negra Totonha à sua cabeceira, seus primeiros con­ tatos com o mundo da narrativa. Se as narrativas de príncipes encantados e princesinhas bondosas lhe cu­ ravam, lhe traziam de volta à vida, por que não usar da narrativa, da literatura, para trazer de volta à vida tantos seres queridos que o tempo destruiu? Mas à medida que o engenho literário constrói as figuras dos sujeitos que povoaram sua infância, à medida que os vários textos do, por ele denominado, Ciclo da Cana-de-Açúcar vão desenhando e redesenhando sua própria imagem de sujeito, Zé Lins vai percebendo que a literatura só faz afastar de si estes personagens e só faz afastá-lo de si mesmo. A literatura constrói seus personagens como ausência, o autor se descobre solitário. Quanto mais fi­ xadas ficavam suas lembranças da infância, maior a cons­ entía de seu inevitável desaparecimento. / Tálvez, por isso, já quase, no final da vida, em 1954, J°sé Lins escreva suas memórias, Meus Verdes Anos. O qüe Aplicaria o fato de um autor que escrevera pelo enos sete romances apoiados em dados de suas me^órias, ainda necessitar registrá-las num livro a parte?

355

Não terá sido a consciência do malogro de sua experj ência literária em salvar aquela sociedade tradicional do engenho bangüê e sua gente que o fazia agora recor­ rer a outro gênero de discurso? Se a literatura, na modernidade Ocidental, é o lugar da ficção e, portanto designado como um discurso que não tem compromis­ so com a verdade, talvez fosse melhor recorrer a um gênero de discurso que é pensado, no Ocidente, como o lugar do fato, da realidade, da verdade, que seria o dis­ curso da memória. Se ele estava preocupado na fixação dos últimos momentos de esplendor do engenho e dos tipos humanos e psicológicos que povoaram aquele mundo, nada melhor do que um discurso legitimado como o lugar do retomo do passado em sua inteireza ou em seus momentos mais significativos. Se memória é tradição, é a busca do tempo perdido, é o passado revisitado, aí se encontrava a possibilidade de retirar da roda implacável do tempo e de seu passar aquela civili­ zação que não podia ser esquecida, para que continuas­ se pesando e repercutindo no presente. Mas, novamente, ao final da tarefa, José Lins parece convencido do seu fracasso. Se, em Menino de Enge­ nho, os últimos enunciados remetem a um menino per­ dido, menino que se perdeu moralmente, mas também» perdido no tempo, em Meus Verdes Anos, a metáfora do vôo do seu canarinho fugido da gaiola que, ao vê-lo, bate asas para longe e vai desaparecendo no céu, taittl bém remete à sensação de perda que parece ter sempre acompanhado o autor, perda do bicho de estimaça°> mas, também, perda dos verdes anos, que, em vão, P ;

356

cura reter, como ele mesmo admite. Dar vida à literatura e à história parece a ele dar vida a urna trama vã. Mas, será que, realmente, o discurso literário e o discurso historiografía) são feitos em vão, por que falam ¿a nossa fmitude? Foucault, ao contrário de Blanchot, nos fala de outro momento do discurso, o momento da fundação, da invenção de realidades e de sujeitos. Se a literatura e a historia falam da morte é porque falam da vida, já que uma só se entende em contraposição à ou­ tra. Falar de fms é falar de começos, falar de rompimen­ tos é falar de partos, falar de desterritorialização é falar da possibilidade da construção de novos territórios. O discurso constrói e desconstrói realidades. À medida que José Lins fala de mortos, fala para os vivos e toma os mortos capazes de atuarem sobre os vivos. Estes sujei­ tos do passado que são escritos pela literatura de José Lins, que são criados pelos seus enunciados e imagens, tomam-se modelos a serem subjetivados, introjetados pelos vivos. Como disse Michelef nós, vivos, bebemos o sangue negro dos mortos, deles nos alimentamos.265 Mas, se, os discursos literário e histórico, como ví­ mos, só fazem reafirmar a dispersão dos sujeitos, sua fragmentação, como podem, ao mesmo tempo, construir sujeitos? Esta pergunta só se coloca à medida que estamos acostumados, no Ocidente moderno, a pensar 0 sujeito como uma unidade, como uma totalidade fe­ mada, como sendo portador de um “eu”, uma essência

pp°j®^THES, Roland. Michelet São Paulo: Companhia das Letras, 1991,

357

particular que o definiría. Mas Foucault advoga, como também Rorty e Derrida, que os sujeitos são uma rede lingüística de crenças e desejos. Os sujeitos emergem através de descrições e estas estão enredadas ñas diversas relações sociais, portanto, o sujeito é um nó numa disper­ são de experiências, todas elas significadas pela lingua­ gem. A imagem que tenho de mim, minha identidade ou a imagem e identidade dos outros são tecidas nas rela­ ções que mantenho no social e que podem ser relações de luta e de conflito, como de assentimento e afeto. É através das diferentes experiências sociais, em que se in­ sere um corpo e onde emergem atitudes, gestos e falas, sejam dele próprio ou dos outros, que uma imagem de sujeito vai sendo construída. São os diversos agenciamentos sofridos por este corpo, seja de desejo, seja econômico, seja político, que vão modelando uma figura de sujeito. Agenciamentos que precisam ser descri­ tos pela linguagem, fixados por um texto, para que pas­ sem a ter existência, para que passem a ser alguma coisa Os textos de José Lins, como todo texto literário no Ocidente moderno, têm como primeira tarefa escrever a própria figura do süjeito-autor. José Lins se define como autor à medida que constrói sua obra. A idéia é que através da obra se podería ler a própria subjetividade de quem a escreveu. A crítica literária, e o texto introdutório, de José Aderaldo Castelo, em Menino de Engenho, e bem um exemplo disto, que não cessa de encontrar rosto do autor por trás da obra, não cansa de capturé para lá do que está escrito um sentido mais profund°i| que seria a própria verdade do autor. A literatura setm

358

mas que deixava entrever os olhos e neles a alma de quem escreve. Já José Lins, que realmente parece obsedado pela idéia de encontrar a si próprio, naquele menino perdi­ do, pela idéia de construir uma continuidade entre aquele menino de engenho e o citadino, o literato e o intelectu­ al em que havia se transformado, não me parece ter muita certeza de que tenha logrado êxito. Talvez, por isso, tenha então recorrido ao discurso da memória, que por não precisar de máscara para se exprimir, poderia finalmente revelar o seu verdadeiro rosto ou o rosto daquele menino que, quanto mais procurava, mais per­ dia, mais fragmentava-se nos diferentes outros sujeitos que pareciam fazer parte de si. A literatura e a história, em José Lins, podem ser tomadas como engenhos discursivos distintos para a construção da imagem de seu ser enquanto menino, de sua infância. Este aspecto de sua obra a toma de suma importância como fonte para o estudo da história de gênero no Nordeste. Uma obra de um homem adulto, de um intelectual citadino, que no começo dos anos Wnta e depois, no começo dos anos cinqüenta, olha Para o começo do século, para a vida de um menino de er>genho e tenta traçar a trajetória da construção de seu Ptóprio ser, de sua subjetividade amargurada, de sua •Masculinidade. Sua obra nos ajuda a compreender como 0 adulto José Lins percebe suas continuidades e descontinuidades em relação àquele menino e como Percebe, no presente, o que teria sido seu passado. Ou SeJa, Lins faz como escritor ou como memorialista a tamáscara,

359

refa que, no Ocidente moderno, foi direcionada, espec-¡ ficamente, a um profissional, nele mesmo criado, o ^ ; toriador, responsável por inventar um passado para 0 presente, um passado que dê sentido ao presente, qUe 0 justifique e legitime. A obra de Lins permite que tenhamos acesso a frag. mentos de passado de um menino e com estes possamos pensar como se construía um homem no começo do século, como se definia a masculinidade neste mo­ mento, a partir da própria visão negativa e moralista que é construída por este homem adulto, anos depois. Aquilo que é considerado pelo adulto como perdição, não parecia incomodar o menino, nem os moleques que com ele cresceram. A centralidade que a sexualidade tem nos escritos do adulto, não parecia ter na vida do menino. O mundo do engenho parecia ainda não parti­ lhar do dispositivo da sexualidade, que emerge no Oci­ dente, no século XIX, e que coloca o sexo como o ele­ mento central, essencial na definição das identidades dos indivíduos. Marca de uma moralidade burguesa, centrada na família nuclear e monogâmica, na radical separação de mundo público e privado, mundo da inti­ midade e dos negócios, mundo de indivíduos e não de pessoas, de heterossexuais e homossexuais, de normais e perversos, a sexualidade emerge como o elemento definidor da própria identidade do indivíduo. Ela pass a ser o umbigo do ser, em tomo do qual giram todas as preocupações e inquéritos, para se definir quem afinal j o sujeito daquela sexualidade. Esta angustiada procuri pelo enigma do seu ser, nas venturas e desventuras ua

360

seii sexo, que tanto caracteriza o escritor adulto, parece não perturbar o menino. Se ele, como diz Castelo, parece querer dar à própria criança explicações daquilo que ela não podia compre­ ender, o que ressalta é a distância que separa o adulto da criança. Em vez de reconhecimento de uma identidade preservada, seus textos se tomam o inventário de diferen­ ças lancinantes. Assim como o menino fixara a sua pri­ meira lembrança de si mesmo, engatinhando no chão perto da cama onde a mãe morria, de tanto ouvir as ne­ gras da cozinha contar, ele quer, como adulto, fixar a ima­ gem negativa de um menino perdido, que, portanto, não deve servir de padrão para a construção da masculinida­ de e a educação dos meninos, nesse novo tempo. Mas, ao mesmo tempo, o seu texto infunde saudade dessa vida de menino de engenho, onde se aprendia sexo com os ani­ mais, desde muito cedo. Em que qualquer moleque sabia de onde saíam os meninos, porque via as negras da sen­ zala parirem e podia ver, à noite, nas camarinhas escuras, seus pais a fazerem enxerimento. Sexo que parece ainda selvagem, não domado pelos códigos disciplinares do mundo moderno. Mas que, na verdade, obedecem a oufros códigos, que policiam apenas de forma rigorosa o sexo das “mulheres de família”, as brancas, que devem ser educadas para serem boas donas de casa, aprenden­ do a dar ordens no espaço da casa e, acima de tudo, a obedecerem a seus maridos, os patriarcas, dando-lhes Muitos descendentes, ajudando-os na criação de todos 0s Parentes e aderentes, fechando os olhos para as inúnieras aventuras que estes possam ter fora de casa ou na

361

senzala. Mulheres servis, mulheres sagradas, mulheres solitárias, mulheres resignadas com um papel que lhes é prescrito desde cedo pela família. Nesta sociedade do engenho bangüê, os códigos de gênero parecem ser estritamente rigorosos e pobres quan­ to à definição de papéis, mas parecem lábeis e frouxos no que diz respeito às práticas masculinas e femininas, quan­ do as mulheres são das camadas populares. Nesta família extensa, patriarcal, onde pais e filhos se misturam numa mesma casa com parentes dos mais variados graus, tios, primos, avós, cunhados, genros e com toda uma popula­ ção de empregados e dependentes, comadres e compa­ dres, além das inúmeras e eventuais visitas, os papéis sexu­ ais parecem se resumir ao de homem e mulher, embora esta balbúrdia de corpos, dê margem a muitos encontros que podiam fugir destes papéis. As práticas, que vão ser definidas pelo dispositivo da sexualidade como perversas, desviantes e até constitutivas de novos sujeitos sexuais, como a pedofilia, a masturbação, a zoofilia, a sodomía, não pare­ cem ameaçar, aí, as identidades fixas e definidas, desde sempre, de homem e mulher. A identidade de gênero pare­ ce não ser, nesta sociedade, uma construção a posterion do indivíduo, mas parece ser uma atribuição natural, defi­ nida no nascimento, não havendo, pois, grandes questões a fazer a seu sexo: a verdade dele seria tão clara, que nao daria motivo para problematização. As chamadas práticas perversas, as safadezas, apenas integram a construção des-j tas identidades de homem e de mulher. No campo das práticas, no entanto, o cardápio é basi tante variado, principalmente para um menino. Não dispona

362

¿o de uma literatura voltada para explicar os misterios do

ggxo, nesta sociedade do engenho, se aprende a ser homem e mulher fundamentalmente através das práticas e das nar­ rativas que são feitas pelos “experientes”. A moça de familia é aquela que, por estar condenada a se furtar às práticas, será a mais ignorante em materia de uso do seu corpo. Quan­ dosabe de alguma coisa é através do cochicho de suas amigas, das negras da cozinha ou dos conselhos pré-nupciais de suas mães. O que parecia vir mudando com a modernidade, para espanto de nosso autor, surpreendido pela sem-ceri­ mônia de sua prima citadina, que lhe mostra as partes pudendas completamente nuas e lhe beija e abraça, fazendo-o fugir e se sentir culpado, talvez duplamente, por não ter reagido e ao mesmo tempo por tê-la desejado. O que faz o adulto José Lins considerar aquela fa­ mília do engenho tradicional uma família desleixada era a liberdade de práticas sexuais com que cresciam os meninos. Tanto os moleques da bagaceira, como os senhorzinhos das casas-grandes, cresciam brincando pelos matos, onde inicialmente viam os animais no des­ caramento, aprendendo com eles o ato sexual: “Começava o meu sexo a desabrochar por aquele recanto. Víamos ali no curral a im petuosidade dos touros por cima das vacas. A vara vermelha dos bichos à procura de se contentar.”266

RÊGO, José Lins do. Meus Verdes Anos. Rio de Janeiro: José Olympio, ^56, p. 34 Ver também: Menino de Engenho. 16 ed. Rio de Janeiro: José u'ympio, 1971, p. 35.

363

Eram os animais, portanto, que acabavam por se cons­ tituírem no primeiro objeto de desejo dos meninos, embo­ ra, não fossem, por isso, classificados como uma espécie à parte, a de zoófilos, como faria o discurso da sexualidade O discurso da ciência sexualis ainda não havia penetrado esta sociedade, mas já parece conformar a memória do adulto, que narra estas experiências num tom de condena­ ção e usando conceitos como o de libertinagem: “Havia uma vaca chamada Selada, com defeito na espinha. Quando ia chegando a boca da noite, os moleques corriam com os primos para os fundos do curral. Com o pouco mais chegava-se para juntos deles a pobre Selada. E começavam a servir-se dela uns atrás dos outros. A vaca não se movia do lugar, enquanto Silvino ou Moreira subia no barranco para cobri-la. Depois passei a fazer parte do grupo dos libertinos”.267

Ia-se aprendendo a ser homem ouvindo as narrati­ vas dos trabalhadores. O sujeito masculino ia se consti­ tuindo à medida que os trabalhadores que vinham do Crumataú para os trabalhos do engenho falavam sem­ pre de mulheres, quando o menino os via quase nus no sobradinho do engenho, de brincadeiras uns com os outros e com os gestos dos touros, de pernas abertas e membros em riste, no deboche, na gargalhada.268 267 RÊGO, José Lins do. Meus Verdes Anos. p. 98. 268 Idem. Ibidem. p. 34.

364

Este aprendizado da masculinidade, olhada sob a ótica de uma nova moral do adulto burguês e citadino, parece realmente perversa Um aprendizado que conti­ nuava na casa dos carros onde os moleques se exibiam em atitudes viris. À medida que, um adulto, como Manoel Severino, masturbava-se impassível na vista dos moleques, estes aprendiam desde cedo esta prática A única vergo­ nha sentida pelo menino, então, era que no começo não conseguia sentir as mesmas coisas que os colegas de brin­ cadeira narravam, não se considerava por isto um onanista, nem uma ameaça à saúde física e mental da criança Ali­ ás, parece ser diferente a própria noção de infância, na sociedade rural, do começo do século. A infância se res­ tringia aos primeiros anos de vida Com doze anos, Zé Lins já havia conhecido uma mulher. Como homem, já havia se enchido de doença venérea, marco de passagem do status de menino para o de homem. A gonorréia, con­ traída com Zefa Cajá, fazia com que já fosse olhado em pé de igualdade pelos homens adultos. Aprendia-se a ser homem escutando as conversas do avô com seus convidados para o jogo, momento tão masculino que sua vó Janoca se recolhia aos aposentos e todas as outras mulheres aguardavam o chamado, na cozinha. Atitudes masculinas eram, também, as descom­ posturas e deboches do Capitão Virgulino Carneiro da Cunha, que afirmavam a possibilidade do marido da sua laiá não ser mais homem, momento único em que o Ser homem parecia ser um estado, não uma condenaÇa° natural. Aprendia-se a ser homem através do que ^nino e menina podiam fazer ou não fazer, através

365

das estripulias de seu tio Juca, a emprenhar todas as moças novinhas, filhas dos moradores, e a arrumar de­ pois, para elas, um marido de sua mesma condição, para “tapar o buraco”: “O outro mestre que eu tive foi o Zé Guedes, meu professor de muita coisa ruim...Contavame tudo que era historia de amor, sua e dos outros. - Ali mora Zefa Cajá. E lá vinha com detalhes, com as coisas erradas da vida desta mulher. Às vezes parava. na porta, e era uma conversa comprida, cheia de ditos e sem-vergonhices.”269

Outro modelo de homem com o qual o menino sonhava era o cangaceiro Antônio Silvino, homem forte, valente, corajoso, brigão, em quem ninguém mandava, homem que desfeiteava coronéis, ou seja, um exemplo de poder e mando, traço que parecia ser o mais decisivo na definição dos perfis masculinos desta sociedade divi­ dida em patriarcas e camumbembes servis, quase ani­ mais, que, a exemplo dos burgueses citadinos, como José Lins era agora pareciam emasculados, como emasculada parecia ter sido a própria sociedade do engenho, o Nor­ te dos barões do açúcar, cuja salvação parecia depender destes homens rústicos sertanejos:

269 RÊGO, José Lins do. Menino de Engenho, p. 34.

“A visita de A nton io Silvino fo i um acontecimento em minha vida. Foi ai que eu compreendí ao certo que o meu avô não era o maior de todos os homens...O homem brabo de coragem para enfrentar o mundo passava a ter para mim as feições do cangaceiro falante”.270 As várias histórias das aventuras e desventuras dos

casamentos na família também preparavam o futuro varão para a difícil tarefa de ser um chefe de parentela, de sustentar mulher e filhos e dar ordem a parentes, agregados e trabalhadores. Formar um patriarca incluía muitos sofrimentos, mas também muitos prazeres. Nes­ ta formação o sexo não parece ter a centralidade que é dada posteriormente pelo adulto José Lins. Ser homem porque tinha a genitália masculina, isto se definia no nascimento; o que o fazia um homem de verdade era outros tipos de aprendizado, era acima de tudo apren­ der a mandar, a ser obedecido, a comandar, a subjugar, ao mesmo tempo ter atributos morais que o fizessem respeitado, admirado, temido e permitissem ocupar o lugar de provedor econômico da família, dono da pro­ priedade e capaz de administrá-la com sabedoria, uma força que morava na brandura e na sabedoria de quem deveria ter sempre a última palavra, a que todos deviam Ipuvir, silenciosos.

I o Wem. Meus VerdesAnos. pp. 253-254. Ver também: Menino de Engení]°- PP. 18-20. 367

Mas não havia melhores professoras das artes da masculinidade do que as mulheres pobres, elas fossem prostitutas ou não. As negras, descendentes de antigos escravos e as aderentes pobres eram os objetos sexuais preferenciais dos senhores brancos, educados para res­ peitarem moças de sua igualha. Estas moças, princi­ palmente se não tinham um pai para protegê-las, eram o objeto final da educação sexual do futuro patriarca. Com elas, estes enchiam suas casas de filhos naturais, alguns reconhecidos, outros não. A masculinidade nes­ ta sociedade do engenho se reafirma na reiterada práti­ ca do ato sexual. Provar que é homem, que é viril, passa, principalmente, por deixar uma enorme descendência Fertilizar uma mulher, dar origem a filhos com o seu sangue é que reafirma a masculinidade do homem e faz com que cumpra uma de suas tarefas principais nesta sociedade que tanto valoriza o sangue: a transmissão de seus traços hereditários, é isto que faz dele um pai-d'égua Não gerar filhos é ameaça de ser encarado como um ser que deixou de ser homem: “A negra me arrastava para as suas pernas e se esfregava em mim, despertando as minhas verdes conscuspicências. Punha-me a serviço de to d a s as su a s volúpias desenfreadas. suas mãos passava a ser um boneco. Mas não um boneco O cheiro das partes de Marta despertava-me

Em

um fogo perigoso”.271 271 RÊGO, José Lins do. Meus Verdes Anos. p.162.

368

impassível.

O sexo é ai encarado primordialmente como dirigi­ do para a reprodução. Ainda não se estabeleceu o vín­ culo entre amor, sexo e casamento, que define nossos códigos sociais. As mulheres pobres pariam todos os anos, ou como diz o autor, para dem onstrar a animalidade desse ato, davam cria todo ano, de um ho­ mem diferente, não mantinham laços afetivos duradou­ ros. O sexo parecia estar longe de ser o componente mais importante destas vidas da bagaceira. A mulher branca também estava longe de ser o objeto de afeição de seu marido, que, quase sempre, também a encarava como destinada à reprodução e à pureza, não podendo submetê-la às mesmas práticas sexuais que exercitava com as mulheres pobres e as prostitutas. Numa família extensa, como a família patriarcal, em casas que fervilhavam de pessoas das mais diferentes classes, raças, idades parecia não ter sentido a idéia de intimidade ou privacidade, uma criação do mundo bur­ guês. Onde o adulto Zé Lins vê relaxamento e promis­ cuidade, o menino parecia ver um mundo rico em expe­ riências, um mundo excitante, um mundo de convivên­ cia fortemente personalizada, onde também existe um enorme potencial de conflito, que podia, facilmente, descambar para a violência e a vindicta pessoal: “O engenho estava moendo quando se ouviu um rumor de pancada na boca dafomalha. Eram dois cabras brigando de cacete e faca de ponta: Mané Salvino e o negro José Gonçalo. O de arma na mão avançava para

369

o que sacudia o cacete pequeno, que chega * tinia na cabeça de escapóle do outro.”272

Portanto, tanto o discurso literário como o discur so da memória são produtores de figuras de sujeitos masculinos, participam da produção de subjetividades no momento para o qual foram escritos, o presente. Mas então, o que diferenciaría o discurso literário do discur­ so da memoria? Quando faz literatura, Zé Lins, seguin­ do as regras de produção deste discurso, em nossa soci­ edade, pode produzir personagens e sujetos, até a si mesmo, muito mais a partir do desejo de como deverí­ am ter sido do que como realmente foram, o que pretensamente seria a tarefa da memoria. Se, em Meus Verdes Anos, o seu pai praticamente o abandonou, indo morar longe do controle do sogro, que não suportava, em M enino d e Engenho, o romancista pode imaginar uma situação que podia servir de álibi para a ausencia do pai, que decerto o autor nunca aceitou completa­ mente. Imaginar o pai assassinando a mãe, num acesso de ciúme e loucura e depois o seu internamento num hospício, talvez servisse para justificar, a p o s t e r i o r i , o seu pai, ao mesmo tempo em que servia para ressaltar a dimensão doentia da família do engenho, que o adulto José Lins queria demonstrar. Em Meus Verdes Anos, semppe que os estranhos ^ vêem o identificam com o seu pai, o que por certo o devia magoar duplamente, já que isso lembrava semp

272 Idem. Menino de Engenho, p. 112.

370

figura de homem que queria esquecer e o homem ffacassado que o adulto José Lins também se considera^ no entanto, sua identidade ia sendo construida a partir da figura masculina que rejeitava, sua rostidade ia sendo construida por estas narrativas que o diziam a repetição do pai. Já, ao escrever M enino de Engenho, seu auter-ego Carlinhos, nova figura de sujeito que pode livremente criar para si, agenciando os seus desejos, se parece com a mãe, a grande presença ausente na sua vida Ao se identificar com a mãe é com o próprio vazio, com a morte, que José Lins se identifica. Embora possa na literatura inventar o mundo como bem quiser, um mundo de palavras, e ñas memorias não possa, Zé Lins parece perceber que ambos são ficção, ambos só se pro­ duzem à medida que se afastam daquilo que narram: ambos por mais que tentem reconstruir mundos, neste mesmo ato os destroem. Portanto, seja na literatura, seja na história o ato de escrever funda mundos e os faz desabar. Parafraseando Borges diriamos que na escrita o inconcebível universo está diante de nós, concentrado em páginas, como prova da engrenagem do amor e da modificação da morte.273

I P BORGES, Jorge Luís Borges. O Aleph. São Paulo: Globo, 1992, p. 9.

371

De Fogo Morto: m udança social e crise dos padrões tradicionais de masculinidade no Nordeste do começo do século XX.

A obra literária de José Lins do Rêgo já tem sido suficientemente utilizada por historiadores e cientistas sociais para abordar o que teria sido o processo de declínio e decadência da produção açucareira nordestina no co­ meço do século XX, com a substituição progressiva dos engenhos bangüês pelas usinas, e as conseqüentes mu­ danças nas relações sociais e de poder que teriam levado ao declínio de um patriarcado rural e de uma forma de vida rural que progressivamente ia sendo substituída por padrões urbanos de sociabilidade e sensibilidade. Apon­ tada como a expressão literária dos processos de deca­ dência de uma classe social e de uma região submetidas às novas condições sociais e históricas, que emergiam com o desenvolvimento da sociedade capitalista e bur guesa no Brasil, a obra de José Lins, no entanto, apresen­ ta outras facetas que ainda não foram suficientemente abordadas pelos estudos acadêmicos. Neste texto tomarei a obra literária de José Lins do Rêgo, mais particularmente o seu livro Fogo Morto, P blicado pela primeira vez em 1943, como um discurs