Mendigos: párias ou heróis da cultura? 9788572384186

Os comerciantes mandam matá-los para que não fiquem ali nas escadas de seus negócios. Os adolescentes os queimam vivos n

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Portuguese Pages [200] Year 2009

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Mendigos: párias ou heróis da cultura?
 9788572384186

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Ezio Flavio Bazzo

Mendigos

Párias ou heróis da cultura? JhífI______ EDITORA

Os comerciantes mandam matá-los para que não fiquem ali nas escadas de seus negócios. Os adolescentes os queimam vivos nas paradas de ônibus e os gover­ ISBN 978-85-7238-418-6 nantes os enfiam em trens, caminhões ou em carroças e os despacham para seus vilarejos de origem de onde tam­ 9 7 8 8 5 7 2,l3 84 1 86 bém já foram banidos. Os padres os excomungam quando os surpreendem cagando nos fundos das catedrais, a polícia e os “seguranças” dos prédios os acossam dia e noite. Se precisam de uma hospitalização são tratados como porcos e com horror. São vistos nos semáforos aos pedaços, como bufões decadentes, trémulos de embriaguez e de fome. Depois desapa­ recem e são encontrados mortos nos terrenos baldios, o crânio amassa­ do por uma pedra ou por um cabo de machado. A sociedade perdulária e extravagante os detesta mesmo mortos e os expurga implacavelmente até mesmo de sua memória, mas eles “milagrosamente” resistem. Não se rendem. Apesar de todas as canalhices, estão por todos os lados. Seguem dizendo não ao trabalho, não à sujeira política, não à corrida idiota do cotidiano em direção ao nada e cospem sobre as propostas estatais ou clericais de “readaptá-los” ou de “normatizá-los”.

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Sorte que escrita, a merda nào fede! Do

itrário... Produzido na década de 80. - no

auge de minha própria “mendicância” - este livro faz um percurso pelo mundo insólito dos

indigentes, dos desterrados, dos fodidos e da escória humana. As aventuras de Jack London, de Kerouac, de Genet, de Rimbaud e de outros

contadores de balelas, perto das dos mendigos que conheci não passam de peripécias de

garotinhos mimados. Antes de mais nada - para poupar grunhidos, fel e presságios de infortúnio

aos guardiães do establishment - quero deixar claro que este trabalho nào pretende ser

nenhuma epopéia, nenhum tipo de ensaio

“científico” premiações

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menos concorrer às

que

são

promovidas

semestralmente por vigaristas da mídia, da cultura e das multinacionais. Essas missões serão muito melhor executadas pelos milhares de escriíorzinhos Phds e picaretas que desde a

Ezio Flavio Bazzo

Mendigos Párias ou heróis da cultura? "Entre tanta mentira e tanta fraude é reconfortante contemplar os men­ digos. Eles, pelo menos, não mentem nem se enganam. Sua doutrina, se é que têm alguma, a encarnam eles mesmos. Não gostam de trabalhar e o demonstram na prática. Como não desejam possuir nada, cultivam seu desprendimento, condição de sua liberdade. A preguiça faz deles autênticos liberados, perdidos em um mundo de palhaços e de otários. Sobre a renúncia sabem muito mais que muitos de nossos padres, pas­ tores e mestres, sem contudo, terem lido nenhuma obra esotérica".

E.M. Cioran

LGE EDITORA

Brasília, DF

Copyright © LGE Editora, 2009 L G E Editora Lida. SI A • Trecho 03 • Lote n° 1.760 CEP: 71200-030 • Brasília-DF Fone: (61) 3362-0008 • Fax: (61) 3233-3771 E-mail: lgeeditoraiMgceditora.com.br www.lgeeditora.com.br www.lojalge.com.br

Editor Antonio Carlos A. Navarro

Autor Ezio Flavio Bazzo

Designer da capa Marcus Polo Rocha Duarte

Programação visual Samuel Tabosa de Castro Impressão e acabamento LGE Editora Ltda Foto da capa Cláudia Neves Lopes

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Bazzo, Ezio Flavio. Mendigos, párias ou heróis da cultura? / Ezio Flavio Bazzo; Brasília : LGE, 2009.

203 p. il.; 21 cm ISBN 978-85-7238-418-6

1. Literatura, sociologia, psicologia. Brasil. I. Título.

CDU 82; 821 316 159.9



"Se não posso ter o destino mais brilhante, quero o mais miserável, não para uma solidão estéril, mas afim de obter, de tão rara matéria, uma obra nova. E se a metempsicose me conceder um nova moradia, escolho esse planeta maldito, habito-o com os forçados da minha raça. Entre pavorosos répteis, vou à procura de uma morte eterna, miserável, em trevas cujas folhas são pretas, a água dos pântanos espessa e fria, o sono me será negado. Ao contrário, cada vez mais lúcido, reconheço a imun­ da fraternidade dos crocodilos sorridentes". Jean Genet

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"Desde el fondo del corazón odio la tumba de los grandes seíiores y sacerdotes, pero ódio aún más a aquellos que se comprometeu con ellos"

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CAPITULAÇÃO Da mesma maneira que a loucura, as doenças do sexo, a bruxaria, o terrorismo e o ateísmo, a mendicância sempre foi vista por nossos ditadores de direita, de esquerda e do centro, como algo vindo, no mínimo, das profundezas do inferno, lugar onde os diabos, saudáveis e cínicos, vivem às gargalhadas sob o signo do prazer, em um bacanal eterno... Nos escritos de quase todos os séculos, mais recente­ mente nos de Foucault encontramos relatos, anedotas e da­ dos históricos inacreditáveis sobre esse assunto, dados que não poderiam ser omitidos na introdução de um trabalho desta natureza. Em 1532, por exemplo, o Parlamento de Pa­ ris mandou prender os mendigos e os obrigou a trabalhar nos esgotos da cidade, amarrados dois a dois por correntes. Alguns anos depois, uma decisão do mesmo Parlamento decidiu que os mendigos seriam chicoteados em praça pú­ blica, marcados nos ombros, a cabeça raspada e expulsos da cidade. Para impedí-los de voltar, arqueiros foram instalados no telhado das moradias e nos portões da muralha da cidade. Um século mais tarde outro Decreto Real criou o Hospital Geral, cujo objetivo era confinar e internar a "mendicância e a ociosidade", bem como todas as outras formas de desordens. O Parágrafo 9 desse Decreto que era lido nas ruas dizia: [Fazemos expressa proibição a todas as pessoas de todos os sexos, lugares e idades, de toda qualidade de nascimento e seja qual for sua condição, válidos ou inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis ou incuráveis, de mendigar na cidade e nos subúrbios de Paris, ou em suas igrejas e em suas portas, às portas das casas ou nas ruas, nem em nenhum lugar

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público, nem em segredo, de dia ou de noite... sob pena de chicotcamento para os transgressores na primeira vez, e pela segunda vez as galeras para homens e meninos e banimento para as mulheres e meninas]. Uma semana após o Decreto, foi celebrada uma missa na igreja Saint-Louis de la Pitié e no outro dia, já pela manhã, a polícia começou a caçar os mendigos e a mandá-los para o hospital, para internamento. A mendicância e a vagabun­ dagem passavam a ser tratadas como uma enfermidade. E a vagabundagem era tanta naquele momento histórico que apenas quatro anos depois, a famosa Salpêtriêre abrigava 1460 mulheres e crianças. No Hospital da Misericórdia havia 98 me­ ninos, 897 moças entre 07 e 17 anos e 95 mulheres. Em Bicêtre, 1615 homens; na Savoiuierie, 305 meninos entre 08 e 13 anos. E essa caça aos mendigos era sempre precedida de Decretos, explicações, teorias, crenças, postulados moralistas e fraudu­ lentos engendrados nas sacristias e nos palácios. Para Santo Ambrózio - por exemplo - "...Essa desordem da vida ociosa era uma segunda revolta da criatura contra Deus". E prosseguiam as teorias: I

"A libertinagem dos mendigos chegou a um ponto extremado através de um infeliz abandono a todas as espécies de crimes, que atraem a maldição de Deus sobre os Estados quando não punidos." (...) "Tendo a experiência mostrado às pessoas que se ocupam com as obras de ca­ ridade que vários dentre eles, de um e outro sexo, moram juntos sem casamento, que muitos de seus filhos não são batizados, e que vivem quase todos na ignorância da religião, no desprezo pelos sacramentos e no hábito contínuo de todas as espécies de vícios." (...) "Se foi pos­ sível submeter os animais ferozes, não se deve desesperar de corrigir o homem que se perdeu." (...) "A terra não tinha pecado, e se ela é maldita é por causa do trabalho do homem maldito que a cultiva." (..) "Inimigos de boa ordem, vagabundos, mentirosos, bêbados, impudicos, que não saberiam ter outra linguagem que não a do demónio, seu pai. (...) A ralé e o rebotalho da República, não tanto por suas misérias corporais, de que devemos ter compaixão, quanto espirituais, que nos horrorizam." (...) "Assim como é indecoroso para um pai de família

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permitir a alguém em sua morada confortável a desgraça de estar nu ou coberto de andrajos, do mesmo modo não convém que os magistra­ dos de uma cidade tolerem uma condição na qual os cidadãos sofram fome e miséria." (...) "E ninguém será tão fútil, nem quererá parecer tão pernicioso aos olhos do público, que dê esmolas a esses mendigos ou os encorage." Na Inglaterra não foi diferente. Enrique VIII (1530); Eduar­ do VI (1547); Isabel (1752); Jacob I etc., todos foram implacáveis com os que não trabalhavam e, ainda por cima, mendigavam.1 E não pensem que de lá para cá as coisas mudaram, que o destino desses homens desterrados seja hoje menos trágico que ontem. Os comerciantes mandam matá-los para que não fiquem ali nas escadas de seus negócios. Os adolescentes os queimam vivos nas paradas de ônibus. Os governantes os en­ fiam em trens, caminhões ou em carroças e os devolvem para seus vilarejos de origem de onde também já foram banidos. Os padres os excomungam quando os surpreendem cagando nos fundos das catedrais, a polícia e os "seguranças" dos prédios os acossam dia e noite. Se precisam de uma hospitalização são tratados como porcos e com horror. São vistos nos semáforos aos pedaços, como bufões decadentes, trémulos de embriaguês e de fome. Depois desaparecem e são encontrados mortos nos terrenos baldios, o crânio amassado por uma pedra ou por um cabo de machado. A sociedade perdulária e extravagante os detesta mesmo mortos e os expurga implacavelmente até mesmo de sua memória, mas eles resistem "milagrosamente". Não se rendem. Apesar de todas as canalhices, estão por todos os lados. Seguem dizendo não ao trabalho, não à sujeira política, não à corrida idiota do cotidiano em direção ao nada e cospem sobre as propostas estatais ou clericais de normatizá-los. Filhos de Caim, para uns e representantes de Lázaro, para outros. As ruas de São Paulo estão repletas. As do Rio nem se fala. 1 Isto tudo está em detalhes na obra chata mas imprescindível do Velho Marx que, aliás, também viveu durante décadas como um verdadeiro clochard. Ver o relato histórico dos mendigos e da repressão da época em detalhes no Capítulo XXIV La llamada acumulación originaria, da página 607 à 629. EI Capital, FCE, México, 1980.

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O país inteiro os abriga contra a vontade, os detesta e os oculta. A França de hoje tem o desgosto de tê-los aos montes. Roma aca­ ba de abrir redes de restaurantes para saciá-los e apaziguá-los. Atenas, Istambul, Israel, o Cairo. Nova Iorque está infestada, os países latino americanos já não sabem mais quem é quem, a índia já passou a considerá-los até seres iluminados. Estão por todos os cantos do planeta, loucos egocêntricos ou tuberculo­ sos egoístas2, não dirigem a palavra a ninguém, vivem rindo ou em prantos sem medo de escancarar a boca desdentada. O riso deve ser o último recurso de suas vidas, uma espécie de antidoto contra a dor, o niilismo e o desespero. Seja qual for o continente, estão lá, as mãos sempre arquitetando o mesmo gesto, o mesmo olhar, as mesmas feridas causando o mesmo asco aos caipiras elitizados que, com um silêncio ofensivamente cúmplice, também fizeram de suas vidas um contínuo e perpé­ tuo festival de mendicâncias. Sem cair na mesmice carola dos escritores profissionais, quero dedicar este trabalho em primeiro lugar, aos milhões de mendigos que, consciente ou inconscien­ temente vivem de migalhas, de restos e de humilhações neste país. Sim, em primeiro lugar aos milhões de mendigos que vêm mendigando habitação, trabalho, saúde, comida, respeito, salvação e dignidade há séculos. Em segundo lugar, aos outros milhões de ex-mendigos que compõem hoje a população brasi­ leira estes, formados por comerciantes, políticos, latifundiários, estrangeiros, religiosos e outras aves de rapina, quase sempre responsáveis diretos pelo pauperismo, pela indigência e pela degradação dos demais. Em terceiro lugar, aos monstros que edificaram essa "praça dos milagres" e que do fundo de seus túmulos ainda continuam definindo as diretrizes e as políticas de Governo. Em quarto lugar, aos religiosos de todas as laias e de todos os naipes, esses mentirosos vampiros de almas que, com sua sujeira absolutista alimentam-se das dores, do sangue, 2 Num livreto de Joseph Gabei intitulado Mensonge et maladie mentale, alguém havia sublinhado: “le tuberculeux crônique est parfois un étre égoiste; le maladc mental serait plutôt un égocentrique. L*égoisme est un phénomène moral; legocentrisme est, avant tout, un phénomène logique et ontologique. Avec légoiste le dialoque reste possible, avec 1’égocentrique il n’y a pas de dialoque possible. Edition Allia, pp. 13-14, Paris, 1995.

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da ignorância e das lágrimas do populacho. Em quinto lugar, a todos os vereadores, prefeitos, deputados, senadores, ministros e presidentes desse país, responsáveis tanto pelas feridas dos indigentes, como pela anomalia mercantil, pelo analfabetismo, pelas endemias e epidemias que degradaram esse povo. Em sexto lugar, aos professores, aos médicos, aos economistas e aos militares que, por egoísmo, por avareza ou por uma idiossincra­ sia fascista, viabilizaram essa caricatura de país e essa caricatura de sociedade. Em sétimo lugar, aos intelectuais, aos músicos e aos artistas em geral, que seguiram escrevendo, compondo e atuando como se nada estivesse acontecendo. Em oitavo lugar, a todos os covardes da América Latina que têm fascínio pelas pompas oficiais e que mesmo espoliados e subjugados, sempre sugeriram a "paciência", a "conciliação", a "espera", a balela cristã e a "via democrática"... Em nono lugar, aos burocratas, servidores públicos e outros parasitas do gênero que, por esclerose múltipla, por demência precoce, por pieguice e por alcoolismo crónico, sempre fizeram o papel da "prostituta", da "proxeneta" e do "cornudo", aplaudindo e elogiando, e com isso consolidando uma por uma todas as ditaduras e todas as draconices de seus amos. Em décimo lugar, a todas as mães e a todos os pais que, sabendo ou não que a terra é a privada do diabo seguem cruzando como búfalos e criando seus filhos para serem políticos, bandidos, torturadores e alcaquetes... Por fim, dedico novamente este trabalho a todos os indigentes do orbe. Sim, a eles, que já poderiam ter marchado sobre seus opressores e os esmagado sumariamente apenas com os humores de sua imundice.

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"A sociedade se compõe de duas grandes classes: os que têm mais jantares que apetite e os que têm mais apetite que jantares." N. de Chamfort

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Antes de mais nada - para poupar grunhidos, fel e pres­ ságios de infortúnio aos guardiães do establishnient - quero deixar claro que este trabalho não pretende ser nenhum tipo de trabalho "científico" sobre os mendigos e muito menos concorrer às premiações fajutas que são promovidas anual­ mente por vigaristas e por multinacionais. Essas missões serão muito melhor executadas pelos milhares de Phds picaretas que desde a inquisição até a Ditadura Militar ocuparam milímetro por milímetro os espaços cults, acadêmicos, empresariais, uni­ versitários etc, e que, segundo recentes denúncias, além dos pacotes de contra-cheques que empilham compulsivamente sobre os "búrôs", não estão produzindo absolutamente nada de aproveitável. Pelo contrário estão transformando o cotidiano e a principalmente universidade, nada mais nada menos que num festim de charlatães, de burocratas e de incompetentes. Também não pretende ser um tratado religioso glamourizado, puritano, beato ou beneficente sobre os "desterrados", os "miseráveis", os "imprestáveis", os "despossuídos" e pedintes do planeta. Essa é outra missão que não cabe a mim, mas sim à Santa Madre Igreja e a seus eunucos, a ela e a seus marqueteiros que têm usado os mendigos para incrementar sua demagogia de caridade, seus albergues, suas sopas, suas bastardices falsamente pacifistas3 e sua metafísica piegas. Nesta centena de páginas não se teve a mais mínima pre­ ocupação de saber se os mendigos estão dentro da categoria do lupemprolariado, se fazem parte do Exército Industrial de Reserva, de uma underclass, se constituem um ethos, se são dementes, se são descendentes do sêmen de Caim, se já foram barbeiros, coroinhas, banqueiros ou proxenetas, isso, como 3 Num dos textos de Debord podemos ler: “O mundo da guerra tem pelo menos a vantagem de não tolerar as néscias tagarelices do otimismo. É sobejamente sabido que no fim vão todos morrer, que, como dizia Pascal, o último ato é sangrento, por mais excelente que seja a defesa" Guy Debord, Panegírico, Ed. Antigona, p 70, Lisboa, 1995.

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já disse, são preocupações e balelas de outros profissionais, principalmente, daqueles que para conseguirem uma bolsa de estudos em Cambridge ou em Louvan, são capazes de parafra­ sear o Kapital de Marx ou as quatro mil páginas de Freud, em menos de um trimestre. Este trabalho não simpatiza nem antipatiza com os mendi­ gos, não os vê nem como párias repulsivos nem como heróis, nem como nada. Se são santos como Lázaro, traidores como Judas ou implacáveis como Caim; se são o excremento do capitalismo ou a semente fértil do socialismo; a evidência da degeneração da espécie ou um tipo novo de indivíduo; se são o resultado nefasto da moral cristã-burguesa, o primeiro passo para a revolução radical de todos os valores ou o principio do fim, isso, insisto, são coisas que cada leitor e cada observador terá que entender por si mesmo. Agora, uma coisa é certa: o fervor quase afrodisíaco por dejetos que caracteriza essa Ordem Monástica de Indigentes nos obriga a olhá-la com uma atenção especial. Admiro a forma como se relacionam com a sujeira, com o nomadismo, com o lixo, com as próprias tripas e mais ainda com a indiferença que professam para com os árbitros da verdade. Admiro o cinismo, a eutanasia e o desprezo que professam por tudo aquilo que a sociedade "normal" gastou 7 mil anos para construir e organizar. Sim, essa filosofia kamicase é algo digno de admiração e de interesse, algo fascinante, que merece muito mais que algumas fotos e que alguns textos. Essa prática "agnóstica" e essa praxis "niilista", exposta livremente nas ruas e nos becos deveria ser tema de Encontros Internacio­ nais, de Aulas Magnas, de Congressos e até mesmo de Canoni­ zação por parte do Vaticano. Aliás, alguém já viu um mendigo ser canonizado? Quem sabe olhar e ver tem nesses personagens a cristalização de tudo o que fez e padeceu a humanidade, a civilização, o homem-sapo. O certo é que diante deles, com seu obscurantismo de horrores, a idéia de iluminismo parece uma balela e que os noventa volumes nauseabundos de Lenin, as estórias balzaquianas, os mil e um porres do Oriente, a falácia da medicina, da sociologia, da história, tudo está condensado ali, naqueles corpos vadios que não têm rumo, nem lei, nem 17

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