Mas afinal- o que é mesmo documentário?
 9788573596847, 1010769624

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Fernão Pessoa Ramos

MAS AFINAL.. �

O QUE É MESMO

DOCUMENTÁRIO?

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ramos, Fernão Pessoa Mas afinal... o que é mesmo documentário?/ Fernão Pessoa Ramos. - São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2008. Bibliografia. ISBN 978-85-7359-684-7 1. Filmes documentários - História e crítica 2. Vídeos - Produção - História e crítica L Título.

1 11 1 1 1 1 1 1 1 11 11 1 1010769624

08-03107

778.534 R147m IA

CDD-778.534 Índices para catálogo sistemático:

1 . Documentários : Produção : Cinematografia 778.534 2. Filmes documentários : Produção : Cinematografia 778.534

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ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO SENAC NO ESTADO DE SÃO PAULO Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman Diretor do Departamento Regional: Luiz Francisco de A. Salgado Superintendente Universitário e de Desenvolvimento: Luiz Carlos Dourado

EDITORA SENAC SÃO PAULO Conselho Editorial: Luiz Francisco de A. Salgado

Luiz Carlos Dourado Darcio Sayad Maia Lucila Mara Sbrana Sciotti Marcus Vinicius Barili Alves

Editor: Marcus Vinicius Barili Alves ([email protected])

9 Nota do editor

Coordenação de Prospecção e Produção Editorial: Isabel M. M. Alexandre ([email protected]) Supervisão de Produção Editorial: Izilda de Oliveira Pereira ([email protected])

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Edição de Texto: Léia M. F. Guimarães Revisão Técnica: Luiz Felipe Miranda Preparação de Texto: lsabe!la Marcatti Revisão de Texto: Edna Viana, Ivone P. B. Groenitz Projeto Gráfico e Editoração Eletrónica: Fabiana Fernandes Capa: Fabiana Fernandes Fotos da Capa: fotogramas dos documentários "Õnibus l 74",

Prefácio I Miche/ Marie

15 Agradecimentos 17 Introdução

"Maioria absoluta" e "Santiago"

Impressão e Acabamento: Salesianas

Geréncia Comercial: Marcus Vinicius Banli Alves ([email protected]) Supervisão de Vendas: Rubens Gonçalves Folha ([email protected]) Coordenação Administrativa: Carlos Alberto Alves ([email protected])

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r, Proibida a reprodução sem autorização expres,a. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Senac São Paulo

Rua Rui Barbosa, 377 - l' andar-Bela Vista- Cl::P 01326-010 Caixa Postal 1120 - CEPO1032-970 - São Paulo - SP Tel. {11) 2187-4450- Fax (11) 2187-4486 E-mail: [email protected] Home pagc: hnp://www.edít0rasenacsp.com.br © Fernão Vítor Pessoa de Almeida !

269 O documentário novo (1961-1965): cinema direto no Brasil 269 O conceito de "direto" 280 A máquina, o estilo, alguns diretores 280 As novas máquinas 289 Alguns autores no início do direto 324 Dois precursores brasileiros: Aruanda e Arraial do Cabo 330 Panorama da chegada do direto no Brasil 330 A idéia do direto no Brasil 341 A chegada do direto 345 Joaquim Pedro 353 Hirszman 362 Saraceni 366 Jabor ,..j 376 Farkas r 421 Índice remissivo

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- - .___________ Mas afinal. ..

o que é mesmo documentário?

As fronteiras do documentário compõem um horizonte de difícil defini­ ção. A qualificação de uma narrativa como documentária, até bem pouco tempo, era negada por parcela de nossos críticos, seguindo algumas for­ mulações próprias à semiologia dos anos 1960. 1 A falta de conceitos especí­ ficos provocou dificuldades no desenvolvimento de ferramentas analíticas, comprometendo o horizonte da produção não ficcional. Se o documentário não existe, quem faz documentário faz o quê? Muitas vezes o conceito do­ cumentário confunde-se com a forma estilística da narrativa documentária em seu modo clássico, provocando confusão. Alguns autores se referem a documentário em geral, mas têm no horizonte o documentário clássico, confundindo a parte com o todo. Predominante nos anos 1930/1940, o documentário clássico enuncia baseado em voz O'Ver,2 fora-de-campo, de­ tentora de saber sobre o mundo que retrata. Na medida em que a ideologia dominante contemporânea foi criada na descónfiança da representação ob­ jetiva do mundo - e na desconfiança da espessura do sujeito que assume a voz de saber sobre o mundo -, a narrativa que se locomove com natu­ ralidade nesse meio sofre carga crítica. Nos anos 1990, aos poucos, foi se criando um consenso de que o documentário é um campo que existe para além de sua narrativa mais clássica. Uma vez expandido o campo, jovens em sintonia com seu tempo podem dizer, sem constrangimento, que fa­ zem documentário, apresentando narrativas diversas como resultado de seu trabalho. Incorporando procedimentos abertos pela revolução estilística chamada cinema direto/verdade, trabalhando com imagens manipuladas digitalmente, tomadas com câmeras minúsculas e ágeis, o documentário contemporâneo possui uma linha evolutiva que permite enxergar a tota­ lidade de uma tradição. Uma totalidade que tem a origem de sua concei­ tualização nas formulações griersonianas e que sofre as inflexões de seu tempo. - - ---.- .. ,�, ,v, pv1 cxcrnpro, aesde seus

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Fundamentos para uma teoria do documentário

Tanto em sua versão de grande produção das televisões a cabo quanto nos formatos mais alternativos, nos quais o horizonte da primeira pessoa • ocupa espaço, a narrativa do�umentárià possui traços estilísticos recorren­ tes e um nome (documentário), abrangendo a diversidade. A principal van­ tagem do nome é termos um conceito carregado de conteúdo histórico, movimentos estéticos, autores, forma narrativa, transformações radicais, mas em torno de um eixo comum. /pentro desse eixo comum, podemos afirmar que o documentário é uma narrativa basicamente composta por ima­ gens-câmera, acompanhadas muitas vezes de imagens de animação, carre­ gadas de ruídos, música e fala (mas, no início de sua história, mudas), para as quais olhamos (nós, espectadores) em busca de asserções sobre o n:iundo que nos é exterior, seja esse mundo coisa ou pessoa. Em poucas palavras, documentário é uma narrativa com imagens-câmera que estabelece asser­ ções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mun�A natureza das imagens-câmera e, principalmente, a dimensão da tomada através da qual as imagens são con tituídas determinam a singularidade da narrativa documentária em meio a outros enunciados assertivos, escritos ou falados.

As asserções Mas... qual a diferença entre documentário e ficção? Ao contrário da ficção, o documentário estabelece asserções ou proposições sobre o mundo histórico. 3 São duas tradições narrativas distintas, embo­ ra muitas vezes se misturem. O fato de autores singulares explicitamente romperem os limites da ficção e do documentário não significa que não possamos distingu i-los. Em nossa abordagem, o trabalho de definição do documentário é conceituai. Estamos trabalhando com ferramentas analíticas que têm por trás de si uma realidade histórica. Não se trata aqui de esta­ belecermos uma morfologia do documentário, com a mesma metodologia que cerca, por exemplo, definições nas ciências naturais. Diferenças entre documentário e ficção, certamente, não são da mesma natureza das que existem entre répteis e mamíferos. Lidamos com o horizonte da liberdade criativa de seres humanos, em uma época que estimula experiências ex­ tremas e de confia de definições. Artistas não querem se sentir classifica­ dos e são estimulados por nnssa sociedade nessa postura. No entanto, se

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queremos pensar a produção cultural de nosso tempo, temos de lidar com conceitos, com palavras mais ou menos precisas que designem o univer O a que estamos nos referindo. Na tradição narrativa4 documentária podemos vislumbrar umá história na qual alguns traços estruturais são recorrentes ' formando períodos. A repetição de conjuntos, mais ou menos homogêneos, podemos dar nomes. Documentário é um desses nomes. Designa um con­ junto de obras que possuem algumas características singu lares e estáveis, que as diferenciam do c"onjunto dos filmes ficcionais. )

As proposições, as asserções, do documentário são enunciadas através de estilos diversos, variando historicamente@á sempre uma voz que enun­ cia no documentário, estabelecendo asserções. o documentário clássico, até o final dos anos 195O, predomina a locução fora-de-campo (a voz O'Ver ou voz de Deus). É uma voz que possui saber sobre o mundo, enunciada, em geral, por meio de tonalidades grandiloqüentes. A produção brasilei­ ra do Ince (Instituto Nacional do Cinema Educativo) em seus primeiros anos (1937/1945) pode _ser citada como exemplo característico. A voz que nos acompanha em Why v¼ Fight, série norte-americana de documentários dirigida por Frank Capra ( 1942-1945), pode ser outro bom exemplo. A escola documentarista inglesa produz diversos filmes nessa linha, embora a flexão poética da voz O'IJer (trabalhada, entre outros, pelo brasileiro Alber­ to Cavalcanti) deva ser considerada como diferenciada. Alguns exemplos contundentes do documentário clássico britânico, como Night Mail [Cor­ reio noturno], 1935, Coai Face· [Cara de caruão], 1935 e Industrial Britain, 1933, trabalham de modo inovador a voz O'IJer (ou locução), distendendo-a com vozes múltiplas, enunciadas por corais, flexionando-a por meio de melodias com atonalidades de vanguarda. A partir dos anos 1960, com o aparecimento da estilística do cinema direto/verdade, o documentário mais autoral passa a enunciar por asser­ ções dialógicas. Assemelha-se, então, ao modo dramático, com argumentos sendo expostos na forma de diálogos. O mundo parece poder falar por si, e a fala do mundo, a fala das pessoas, é predominantemente dialógica. A tendência mais participativa do cinema direto/verdade introduz no do­ cumentário uma nova maneira de enunciar: a entrevista ou o depoimeno. As asscr ões continuam dialógicas, ma' são provocadas pelo cineasta. No documentário contemporâneo mais criativo, há uma forte tendência em se trahalhar cc m a enunciação em primeira pessoa. É geralmente o , ·,e . obre sua própria vida. O filme de "eu" que fala, estabeler er,

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depoimentos caminha nessa linha mesmo quando as falas são articuladas pela presença do diretor (caso de Eduardo Coutinho, por exemplo). o documentário contemporâneo clássico, o qual denomino documentário cabo, as vozes aparecem misturadas na maneira de postular. A voz do saber, em sua nova forma, perde a exclusividade da modalidade O'Ver. Ainda temos a voz O'Ver, mas os enunciados assertivos são assumidos por entrevistas, depoimentos de especialistas, diálogos, filmes de arquivo (flexionados para enunciar as asserções de que a narrativa necessita). O documentário, por­ tanto, se caracteriza como narrativa que possui vozes diversas que falam do mundo, ou de si.

A ficção Mas ... e a ficção, não estabelece igualmente asserções sobre o mundo? Não da mesma forma que o documentário e, principalmente, não para o mesmo espectador. Quando vemos um filme de ficção, nos propomos a nos entreter com um universo ficcional e seus perso nagens, levando adiante uma ação ficcional. Não vemos Star Wars [Guerra nas estrelasJ ,1977-2004, La notte [A noite J, 1961,À bout de soujjle [O acossado J, 1960, Goldfinger [007 contra Goldfinger J; 1964, ou Central do Brasil em busca de asserções sobre o mundo. Vamos ao cinema para nos entreter com um universo ficcional, co n­ forme nos é proposto pela narrativa. Entreter-nos deve ser entendido em seu sentido amplo, não exclusivamente de entretenimento. Entreter-nos com um universo ficcional significa estabelecermos (entretermos) hipóteses, rela­ ções, previsões sobre os personagens, suas personalidades e as ações veros­ símeis que lhes cabem, e com eles estabelecer empatias emotivas (emoções). Em qualquer definição da narrativa cinematográfica é importante termos claro que a narrativa é feita para alguém, o espectador, e que se efetiva na forma de recepção deste. Na maioria dos casos, o espectador sabe de ante­ mão estar vendo uma ficção ou um documentário e estabelece sua relação com a narrativa em função desse saber. O fato de algu ns documentaristas e documentários se proporem a enganar explicitamente o espectador (o que os norte-americanos chamam de mockumentary ),5 fazendo-o assistir a do­ cumentários que são na realidade ficções (ou o inverso), em nada diminui a espessura histórica dos campos que estamos abordando (cinema deficção e

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documentário). O artista é livre para trabalhar embaralhando fronteiras, mas

parece evidente que esse fato não impede que elas existam, inclusive por fornecerem a medida do trabalho transgressor. O campo ficcional clássico no cinema se define a partir da estrutura narrativa (chamada de narrativa clássica) construída nos anos 191 O, cen­ trada em uma ação ficcional teleológica encarnada por entes co� persona­ lidade que denominamos personagens. Tipicamente, a ação ficcional estru­ tura-se em trama que se articula através de reviravoltas e reconhêcimentos. A estruturação espaço-temporal das imagens em movimento, através de unidades que chamamos planos, é basicamente motivada pela estrutura da trama. A grande conquista da narrativa clássica (ainda nos anos 191O) foi aprender a narrar a trama, abandonando a necessidade de uma voz over ou da locução da ação.6 Através de procedimentos como montagem paralela,pla­ nos ponto-de-vista, estrutura de campo/contracampo,raccords de tempo e espa­ ço motivados pela ação, o cinema ficcional aprendeu a narrar, compondo a ação ficcional em cenas ou seqüências. Aprendeu a levar o espectador pela mão, atravts da trama, sem que um meganarrador com sua voz em O'Ver (ou incorporada através de letreiros) tivesse de enunciar monologicamente a informação ficcional (ação da trama, e personalidade dos personagens). A utilização da voz O'Ver, ou locução, não é, portanto, uma característica estilística central no cinema ficcional. Pode eventualmente estar presente em formas clássicas com narrativa emjlashback, ou, mais comumente, em procedimentos estilísticos marcados pela modernidade. Em sua forma de estabelecer asserções sobre o mundo, o documentá­ rio caracteriza-se pela presença de procedimentos que o singularizam com relação ao campo ficcional. O documentário, antes de tudo, é defmido pela intenção de seu autor de fazer um documentário (intenção social, manifes­ ta na indexação da obra, conforme percebida pelo espectador). Podemos, iguaÍmente, destacar como próprios à narrativa documentária: presença de locução (voz O'Ver), presença de entrevistas ou depoimentos, utilização de imagens de arquivo, rara utilização de atores profissionais (não existe um star system estruturando o campo documentário), intensidade particular da dimensão da tomada. Procedimentos como câmera na mão, imagem tremi­ da, improvisação, utilização de roteiros abertos, ênfase na indeterminação da tomada pertencem ao campo estilístico do documentário, embora não ex­ clusivamente. Alguns Ôütros ele;;.;-entos -estilísticos da narrativa docum tária são comuns com a ficç ão. O documentário, por exemplo, desde s

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nição fica simples. Em geral, a narrativa documentária chega já classificada 1 ao espectador, seguindo a intenção do autor. ão costuma fazer parte de nosso prazer espectatorial ir ao cinema para tentar descobrir se uma nar­ rativa é ficção ou documentário. Ao entrarmos no cinema, na locadora ou quando sintonizamos o canal a cabo, sabemos de antemão se o que vemos é umaficfão ou um documentário. A intenção documentária do autor/cine­ asta, ou da produção do filme, é indexada através de mecanismos sociais diversos, direcionando a recepção. Em termos tautológicos, poderíamos dizer que o documentário pode ser definido pela intenção de seu autor em fazer um documentário, na medida em que essa intenção cabe em nosso entendimento do que ela se propõe. Ao recebermos a narrativa como docu­ mentária, estamos supondo que assistimos a uma narrativa que estabelece asserfÕes,postuLados, sobre o mundo, dentro de um contexto completamente distinto daquele no qual interpretamos os enunciados de uma narrativa fic­ cional. O homem que copiava, 2003, de Jorge Furtado, por exemplo, é uma narrativa sabidamente ficcional. A utilização criativa da voz fora-de-cam­ po, ou da voz em primeira pessoa, não levará ninguém a assistir a O homem que arpiava supondo tratar-se de um documentário sobre um operador de xerox. O fato, no entanto, não deve nos impedir de dizer que ficções, em sua generalidade, não trabalham com locufão, e que a voz fora-de-campo, fazendó asserções no modo over, possui um aspecto estrutural na história da tradição narrativa chamada documentán"o. Aspecto estrutural que nã9 tem a mesma dimensão m história da tradição narrativa chamada.ficcional. A indexação social de um filme determina de modo inexorável sua fruição _ .. e seu pertencimento ao campo ficcional ou documentário, interagindo com os procedimentos propriamente estilísticos que já mencionamos. Podemos dizer que a definição de documentário se sustenta sobre duas pernas, estilo e intenfão, que estão em estreita interação ao serem lançadas para a fruição espectatori.al, que as percebe como próprias de um tipo narrativo que pos­ sui determinações particulares: aquelas que são características, em todas as suas dimensões, do peso e da conseqüência que damos aos enunciados que

primórdios, com Grierson, utiliza-se da t,ncenafão (ver adiante) na tomada. Querer negar estatuto documentário a uma narrativa, alegando existência de encenafão, é desconhecer a tradição documentária. A decupagem espa­ cial do documentário também se assemelha bastante àquela do classicismo narrativo ficcional: articulação de planos com angulaçõcs díspares, mas convergentes, buscando unidade espacial; utilização intensa da contraposi­ ção campo/contracampo; corte em planos ponto-de-vista; raccords de mo­ vimento, olhar ou direção. A decupagem espacial e temporal docurnentária possui, no entanto, a especificidade de articular-se na exposição do argu­ mento ou da asserção (Bill Tichols nomeia essa particularidade montagem de evidência). 7 Já a decupagem espaço-temporal da narrativa clássica ficcio­ nal articula-se em função da demanda espaço-temporal da trama. Outro campo comum, entre ficções e documentários, é a utilização de personagens. Documentários os utilizam, dt' n ,,lo intenso, para encarnar as asserções sobre o mundo. Já a ficção trabalha cum personagens como entes que levam adiante a ação ficcional, temperando-os com v Tossimilhança (de­ terminados personagens abrem espaço para um leque determinado de ações verossímeis, sempre tendo no horizonte a abertura indispcnsavcl para revira­ voltas e reconhecimentos da trama). O documentário, desde seus primórdios, trabalha com personagens (o pioneiro de peso, que funda a descendência, é Nanook ofthe North [Nanook, o esquimo1, 1922, de Robert Flaherty). Pode­ mos mesmo dizer que o documentário aparece quando descobre a poten­ cialidade de singularizar personagens que corporificam as asserções sobre o mundo. Se a narrativa ficcional se utiliza basicamente de atores para encarnar personagens, a narrativa documentária prefere trabalhar os próprios corpos que encarnam as personalidades no mundo, ou utiliza-se de pessoas que ex­ perimentaram de modo próximo o universo mostrad 1.

A indexação Mas... como saber se o que estou assistindo é realmente um documentário?

chamamos asserfões. 8 Há autores, como Abbas Kiarostami, Michael Winterbottom e Jean que diluem de modo radical definições mais claras dos campos, ouch, � simplesmente fazendo oscilar a ·intenção documentária. La pyramide hu­ maine [A pirâmide humana], 1960, e La punition, J 963, são dois bons exem­ ·reto e do do umentário etnológico trabalha plos de como o p�1 do ci, ,·r•

Muito simples: pergunte a você mesmo. Em 99% dos casos você já está informado da indexação do filme a que assiste como espectador. E, na mesma propo ção dos casos, você está certo. Se retirarmos do campo do e ob "etivida.de, realidade, a defi-

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a tomada explorando o fechamento dramático da.trama, numa proposta inicial de ação predefinida que se abre à irrupção da intensidade e à inde­ terminação da tomada. Dentro de outro tipo de proposta, o de fazer expli­ citamente um filme que mostre os limites ficção/não-ficção, Jorge Furtado, em O sanduíche, 2000, articula uma narrativa em cascata onde alteramos nossa percepção sobre o estatuto da narrativa a que assistimos. Seguida­ mente, o filme define-se enquanto narrativa ficcional ou documentária, instaurando propositadamente a oscilação e o questionamento do campo. Podemos dizer que O sanduíche é um documentário sobre tomadas de uma ficção, buscando refletir sobre o estatuto das filmagens da ficção, através de procedimentos estilísticos reflexivos (mostrar a câmera filmando, por exemplo). Em alguns momentos é nítida a intenção de pregar uma 'peça no espectador (procedimento muito apreciado pela sensibilidade estilística contemporânea), levando-o a tropeçar em suas crenças sobre o fundo de realidade do enunciado. Em No Lies, o diretor do filme, Mitchell Block, revela-se um cineas­ ta trapaceiro, enganando propositadamente o espectador, inclusive com o título irônico do filme. Filmado no estilo verdade, filme curto, de 16 minu­ tos, No Lies é apresentado na forma narrativa de um documentário. Aquele que supomos ser seu diretor, um jovem cinegrafista (Alec Herschifeld, que também fotografa o filme), entrevista uma amiga (a atriz Shelby Levering­ ton),_ que está saindo para a noite de Nova York. Conforme a entrevista avança, Alec descobre que, recentemente, Shelby foi vítima de um estupro. O caso torna-se objeto central da entrevista do filme. Shelby inicialmente tenta levar a conversa sobre o assunto tranqüilamente, mas a pressão de Alec faz com que desmonte. A abordagem de Shelby por Alec é feita de modo agressivo e um tanto grosseiro, praticamente acusando-a de haver provo­ cado o estupro. O espectador progressivamente se identifica com Shelby e ressente-se da forma de entrevistar de Alec, pouco sensível ao sofrimento da moça. Alec parece estar nitidamente em busca do efeito da revelação do estupro para o filme. Na discussão que se segue, Shelby sai transtornada e irritada de seu apartamento para ir ao cinema, mas é obrigada a pedir que Alec a acompanhe por motivos de segurança. No final a tela fica escura e aparecem os letreiros através dos quais o espectador fica sabendo (após ter vivido intensamente a relação entre ambos e o sofrimento de Shelby) tratar­ se de obra ficcional sobre um estupro que não houve (na carne de quem o encenou em frente da câmera, ou no modo em que foi relatado), apesar da

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forma documentária estilo verdade com pano de fundo "jovem e sua colega fazendo um filme amador". O documentário, na realidade, foi inteiramente encenado a partir de uma idéia original de seu diretor, Mitchell Block.9 Seria essa obra a prova concreta, a prova que faltava, de que as fronteiras entre documentário e ficção, na medida em que podem ser manipuladas, não existem? Seriam O sanduíche e No Lies espécies de ornitorrincos do cinema, mostrando a inutilidade de classificações em face da espessura da liberdade autoral? Mas por que razão a existência de alguns filmes com a proposta de iludir ou brincar com o espectador deveria nos levar ao questionamento da definição do campo documentário como um todo? A metodologia do histo­ riador do cinema e do analista de filmes não pode ser a mesma do botânico ao lidar com exceções para classificar espécies vegetais.

A verdade Mas... este filme não é um documentário, ele manipula a realidade! O fato de asserções documentárias sobre o mundo serem falaciosas, ou sim­ plesmente tendenciosas (dependendo do ponto de vista 1e quem as analisa), também costuma provocar debates acalorados sobre os limites do campo do­ cumentârio. Meu ponto é que a qualidade das asserções que o documentário nos propõe não incide sobre a definição do campo çomo um todo. É im­ portante esclarecer essa questão. Não creio que possamos acusar alguém de nazista por considerar Der Triumph Des Willens [Triunfo da vontade], 1936, de Leni Riefenstahl, um documentário. Trata-se de um documentário ten­ dencioso, que pode ser questionado na qualidade das asserções apresentadas sobre o fato histórico do nazismo, mas que não deixa de ser um documentá­ rio por isso. Vejamos mais de perto como desenvolver essa afirmação. Existem documentários com os quais concordamos, documentários ( ' dos quais discordamos, documentários que aplaudimos e documentários ( que abominamos. Um documentário pode ou não mostrar a verdade (se é que ela existe) sobre um fato histórico. Podemos criticar um documentá­ / rio pela manipulação que faz das asserções que sua voz (over ou dialógica) estabelece sobre o mundo histórico, mas isso não lhe retira o caráter de do­ cumentário. O fato de documentários poderem estabelecer asserções falsas \.. �-como verdadeiras (o fato de poderem mentir) também não deve nos levar a

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negar a existência de documentários. A definição do campo documentário passa ao largo da existência de narrativas documentárias que ardilosamente se revelam ficções, e ao largo de narrativas documentárias que possuem as­ serções não verdadeiras. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a conceitos como realidade ou objetividade. Um documentário precisa mostrar a realidade? Mas de qual realidade es­

! tamos falando, dentro do leque de interpretações possíveis que o mundo ofere­

ce para mim, espectador? Um documentário deve erobjetivo? Mas o conceito de objetividade revela-se ainda mais frágil que o de realidade. Se entendermos por objetividade clareza na exposição das asserções, centraremos nossa defini­ ção de documentário em uma questão estilística: de que modo expor com a máxima clareza nossa interpretação sobre o fato que enunciamos? A resposta será múltipla, não incidindo sobre a definição do campo. Um documentário pode ser objetivo ou pouco claro, e continuar a ser documentário. m documentário pode certamente mostrar algo que não é real �'continuar a ser documentário. ão é difícil imaginarmos um docu­ mentário sobre mulãs-sem-cabeça. Há dezenas de documentários sobre seres de outro::. planetas, alguns defendendo sua existência. Não impor­ ta se, efetivamente, existem, dentro do que definimos como realidade, mulas-sem-cabeça, óvnis ou experiências de transferência de corpo com extraterrestres. Um documentário que enuncie categoricamente a exis­ tência de mulas-sem-cabeça pode ser um documentário pouco ético, manipulador, supersticioso, não objetivo, etc., mas não deixa de ser um documentário por isso. Se vincularmos a definição de documentário à qualidade de verdade da asserção que estabelece, estaremos reduzidos à seguinte definição de documentário: narrativa através de imagens-câmera sonoras que estabelece asserções sobre o mundo com as quais concordo. Trata-se certamente de uma definição frágil que oscila dentro da singularidade da crença de cada um. 10 Existem diversos sites na internet que afirmam que Bowli'ng far Columbine [Ií'ros em Columbine], 2002, de Michael Moore, não é um documentário. A direita armamentista norte-americana enumera, com muito cuidado, as diversas aftrmações falsas ou distorcidas que podemos encontrar nes'>e fiime. 1ichael Moore responde às denúncias com con­ tra-argumenros e números, aparentemente convincentes, erguidos a par­ tir da lógica do campo progressista. Historicamente, Moore é acusado, inclusive dentro da esquerda libe 1 norte-americana, de utilizar dados

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em cascata sem o devido cuidado. Em 1989, Harlan Jacobson, crítico da tradicional revista nova-iorquina Film Comment, publicada pela Film So­ ciety do Lincoln Center, em entrevista ao diretor, o confronta com uma série de dados históricos pouco precisos de Roger & Me [Roger & eu] , l 989. 11 Moore responde acus.ando J acobson de estar a serviço da direita, dizendo que a precisão das datas citadas no filme não importa tanto, mas sim o quadro que apresenta da decadência de Flint e do desemprego provocado pela General Motors. Nos filmes seguintes do documentaris­ ta, em função dos temas que aborda e de sua pos_tura propositadamente polêmica, os debates se acirram. 12 Dados e interpretações sobre os filmes de Moore são controversos em função do enfoque centrado em diferen­ tes posições políticas. Moore não seria, então, um documentarista? Ou seria documenta­ rista para a esquerda norte-americana, mas não para a direita? Ou é do­ cumentarista em alguns de seus filmes (aqueles com os quais eu, espec­ tador, concordo), mas não em outros (aqueles dos quais eu, espectador, discordo)/ Qual seria o patamar de exatidão, em um tema polêmico, para o filme receber o estatuto de documentário? A questão não tem resposta nos termos em que está colocada. Moore é um documentarista e faz documen­ tários, pois trabalha dentro da tradição narrativa do cinema documentário e seus filmes são indexados como tais em sua colocação no mercado exibidor. Ao verm'os um filme de Moore, sabemos estar diante de uma narrativa que enuncia asserções sobre o mundo histórico e não de uma narrativa que propõe, a nós, espectadores,fazer de conta, estabelecendo hipóteses de con­ duta a partir de uma intriga ficcional, experimentando emoções com essa intriga. A pergunta correta, aquela que produz respostas férteis, é: Mi­ chael Moore pode ser considerado um documentarista ético? Seus filmes são documentários que possuem compromisso com a exatidão (a verdade, se: quiserem) dos enunciados apresentados? Ou as pequenas imprecisões factuais de seus documeutários comprometem o caráter ético e o conteúdo das asserções que estabelecem sobre o mundo? Em outras palavras, será que podemos fechar os olhos às imprecisões de seus documentários debitando-as à estratégia narrativa que visa atingir, com impacto político, um público maior, ou devemos criticá-las? a medida em que se propõe a estabelecer asserções sobre o mundo histórico, o documentário estará lidando diretamente com a reconstituição e a intt-rpr ·tação de um fato que, no passado, teve a

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intensidade de presente. A reconstituição, ou interpretação, poderá ser valorada positiva ou negativamente. A noção de verdade, muitas vezes, se aproxima de algo que definimos como interpretação. Se a verdade possui um estatuto epistemológico bem definido nas ciências exatas ou da vida, no caso dos estudos históricos e sociais (nas asserções que estabelecemos sobre fatos passados, por exemplo), a metodologia de abordagem situa-se em outras bases. Podemos constatar que a verdade possui um leque de validade que oscila, e que esse leque se relaciona ao conjunto de fatos que congregamos para servir de base à interpretação. Portanto, uma afirmação como "este filme não é um documentário, ele manipula a realidade", ou "este filme não é um documentário, ele é mera propaganda", dificilmente se sustenta em uma argumentação m�is elaborada. Do mesmo modo, trata-se de um argumento frágil ne. gar estatuto documentário ou colocar aspas no conceito na abordagem de Triunfo da vontade. O filme de Leni Riefenstahl é um documentário, assim definido por sua estruturação narrativa particular e sua forma de indexação, mas apresenta pontos de vista e um tipo de manipulação do discurso documentário com os quais discordamos. Para fugirmos dessas armadilhas, sugiro pensarmos a narrativa do­ cumentária tendo como analogia o estatuto de um ensaio. ão vamos, por exemplo, questionar o estatuto de um ensaio histórico sobre Getúlio Var­ gas pelo fato de discordarmos da interpretação que o texto faz das con­ quistas trabalhistas do varguismo. Dizemos tratar-se de um ensaio com perspectiva equivocada. Vargas, na realidade, teria sido um ditador que aboliu liberdades democráticas. Digamos que o procedimento deve valer pa:ra a caracterização da narrativa documentária e suas asserções. Pode­ mos dizer que determinada narrativa documentária (Getúlio Vargas,1974, de Ana Carolina, por exemplo) não estabelece asserções verdadeiras so­ bre o período histórico - ao apresentar Getúlio de modo idealizado -, mas isso não incide necessariamente sobre o estatuto de documentário do filme. Um ensaio ou uma tese podem estabelecer asserções com as quais não concordamos, mas nem por isso deixam de ser ensaio e tese. Pode­ mos igualmente imaginar um documentário com proposições polêmicas sobre a realidade histórica. A definição do estatuto de documentário de Getúlio Vargas, de Ana Carolina, estará então localizada em sua forma narrativa e na sua indexação, e não no conteúdo de verdade das afirma­ ções que traz sobre a vida de Getúlio e seu tempo.

Mas afinal... o que é mesmo documentário?

A ética Mas... se um documentário pode mentir, como valorar sua ética? Deixando para trás o pântano da definição de documentário a partir de conceitos como verdade, objetividade, realidade, temos espaço para traba­ lhar com as características e a história do documentário enquanto for­ ma narrativa particular. Colocando o documentário em uma perspectiva histórica, percebemos que a ética do documentário não é algo estático, a ser definido dentro de um panorama valorativo. O modo de enunciar do documentário é constituído historicamente e varia em pelo menos quatro grandes formações no século XX. 13 A tendência contemporânea domi­ nante da antropologia visual, por exemplo, não considera válido enunciar asserções sobre a alteridade de populações indígenas, sem deixar claro o percurso da enunciação e a medida da distância para essa alteridade. 14 A partir desse ponto de vista, analisam-se documentários de Flaherty numa postura pouco à vontade com a voz do saber que, em seus filmes, ainda consegue assumir, sem má consciência, a asserção que enuncia. Flaherty, no entanto, tinha sua própria visão do que era ético o documen­ tário enunciar, e de que forma devia fazê-lo (encenando, por exemplo, costumes extintos, de modo que a figuração da tradição não se perdesse). A antropologia visual do final do século XX possui sua própria visão da ética do documentário, centrada na desconstrução da subjetividade da voz que enuncia. São duas visões distintas do espaço ético da intervenção do sujeito que sustenta a câmera, no mundo, pela tomada. Não há por que deixar de supor que a visão ética dominante na antropologia visual contemporânea terá um dia sua validade histórica ultrapassada, na mes­ ma medida em que a ética de Flaherty representa hoje para muitos uma visão de mundo deslocada. Chamamos de ética um conjunto de valores, coerentes entre si, que fornece a visão de mundo que sustenta a valoração da intervenção do su­ jeito nesse mundo. O corpo-a-corpo com o mundo - através da mediação da câmera·, conforme se abre para o espectador e é por ele determinado - sempre foi uma questão premente para o documentário. A ética compõe o horizonte a partir do qual cineasta e espectador debatem-se e estabelecem sua interação, na experiência da imàgem-câmera/som conforme constituída no corpo-a-corpo com o mundo, na circunstância da tomada. A imagem,

Mas afinal. .. o que é mesmo documentário?

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definir quatro grandes conjuntos éticos na história do cinema documentá­ rio; cada um deles formando um sistema coerente de valores relacionados entre si. No eixo da construção do sistema de valores está o posicionamento do sujeito e sua câmera na to_mada, e o modo pelo qual se ,relaciona com o mundo, a partir de sua existência, para e pelo espectador. Denominarei os quatro principais sistemas de valores que sustentam a presença do sujeito­ da-câmera na tomada e as asserções do documentário sobre o mundo: a) educativo; b) imparcial (em recuo); c) interativo/reflexivo; d) modesto. 15

exi tindo para o e pectador, atualizada na recepção e na percepção de suas formas e sons, adquire sua verdadeira dimensão ao ser experimentada na fruição, dentro da plenitude das condições que cercaram, ou cercam (na imagem ao vivo), sua conformação desde a circunstância da tomada. A éti­ ca do documentário tem em seu coração o embate com o mundo, conforme existiu na tomada pelo espectador e conforme se lança para a fruição através da antevisão da articulação narrativa (a decupagem em planos). Podemos afirmar que, porque encenou as tomadas e montou o filme sem seguir os princípios metodológicos da cartilha da antropologia visual, Flaherty não fez um documentário sobre os pescadores de Aran? Chegamos perto desse ponto de vista em How the Mith v¼s Made [Corno o mitofai criado], 1978 , documentário crítico de George Stoney sobre Man ofAran [Os pescadores de Aran J ,1934, que cobra da obra de Flaherty princípios éticos próprios ao novo cinema direto dos anos 1960.

1. A ética educativa

O estilo dominante na ética educativa é o do documentário clássico: forte presença de voz over ou locução, ausência de entrevistas/depoimentos, en­ cenação em cenários ou locaçâo, utilização de pessoas comuns como atores. O conjunto de valores que sustenta esse tipo ético foi teorizado de modo amplo por John Grierson e também Paul Rotha. 16 A ética educativa não encontra dilema em assumir missão de propaganda. Sua principal fun � é ecJucar a população da nova sociedade de massas que emerge nos anos 1920 e 1930, de modo que possa exercer sua cidadania, cuidar da saúde, etc. A forma de produção do documentário clássico vincula-se predominan­ temente a financiamentos por organismos estatais que, através da idéia de missão educativa, justificam seu investimento no cinema. Para a ética edu­ cativa do documentário, a função da narrativa é a de veicular asserções que divulguem aspectos funcionais do Estado, formativos no processo educa­ cional do cidadão. No Brasil, a produção do Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince/1936), capitaneada pelo cineasta Humberto Mauro, dá forma final a todo um discurso sobre a ética educativa que cerca o pensa­ mento do cinema documentário no Brasil nos anos 1920 e 1930. 17

A defuúção do campo do documentário deve extrapolar o horizonte do eticamente correto, aprofundando e valorando sua dimensão histórica. Ao distanciarmos a definição de documentário do campo monolítico da verda­ de, criamos um espaço onde podemos discutir a distância de nossa crença em relação à voz que enuncia as asserções sobre o mundo, sem que tenha­ mos necessariamente de questionar o estatuto documentário do discurso narrativo. Na breve história do documentário, tivemos predominância de diversos contextos éticos. Em cada período, varia bastante o conjunto de valores que fun amenta a intervenção do sujeito que sustenta a câmera (e o gravador de sons) no mundo e o modo, validado positivamente, de articulação das tomadas, através da montagem, em narrativa. Para além da validade das asserções sobre o mundo, que podem ser discutidas ou questionadas, é indispensável fri ar a dimensão histórica que incide sobre a própria posição do sujeito que enuncia, flexionando a universalidade e atemporalidade das asserções.

O campo de valores da ética educativa é formado pelo próprio conteú­ do dos valores que veicula, sem que se atine para o estatuto, ou posição, do sujeito que enuncia. Em outras palavras: se sou de esquerda e veiculo valores socialistas em meu documentário, estou cumprindo adequadamen­ te com sua função social divulgando esses valores; se sou cristão e enuncio mensagens de amor ao próximo e abnegação, também posso considerar a função social de meu filme realizada; se trabalho para o Ministério da Educação e veiculo em meu documentário mensagens sobre como cons­ truir fossas secas ou preservar alimentos em conserva, também estou cum­ pri.ndo eticamente a missã., "ducativa que se espera do documentário; idem

A questão ética no documentário possui, portanto, uma premência que não existe no campo da ficção. Uma das vantagens em admitirmos que existem narrativas documentárias ·e narrativas ficcionais, e que diferem entre i, é podermos cobrar e analisar a dimensão ética dentro de um hori­ zonte próprio ao documentário. Aspectos éticos tencionam diretamente a forma da presença do sujeito (e sua equipe) que sustenta a câmera 11:1 torna­ da. A evolucão estilística do documentário no século XX pode em grande par e ser relacionada à valoração ética do sujeito que enuncia. Podemos -----�- - ---

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Mas afinal... o que e mesmo documentário?

Fundamentos para uma teoria do documentário

se contribuo para a formação cívica do cidadão, permitindo a construção do saber social necessário ao exercício da democracia. Com outro recorte,

3. A ética interativa/reflexiva O quadro ético que sustenta a intervenção e interação do sujeito-da-câme­

a consciência de viés pós-estruturalista, que marca o documentário entre os anos 1970-2000, parece e importar menos com o valor do conteúdo e

ra com o mundo é constituído por uma visão crítica ao conjunto de valo­

mais com a qualidade da posição do sujeito na enunciação desse valor. No

uma frase lapidar ao definir a evolução da ética da imparcialidade para a

universo da ética educativa não paira a menor sombra sobre se é ético, ou não, um sujeito enunciar seu saber. Sendo válido o conteúdo do saber, o debate ético encerra-se, sem se derramar em direção ao questionamento das condições nas quais o saber é construído ou enunciado.

res que supõe a "imparcialidade no recuo/distanàamento. Noel Carroll possui ética interativa: "O cinema direto abriu uma lata de vermes e acabou sendo comido por eles"·. 18 A ética interativa sustenta que a intervenção no mundo pelo emissor do discurso (o sujeito-da-câmera) é inevitável. Advoga então uma interação aberta e assumida com esse mundo. Coloca no mesmo plano a ética educativa e a éúca do recuo, como duas formas distintas (e ocultas)

2. A ética da imparcialidade/recuo

de construir o universo representado. O novo eixo da valoração ética situa

Seu campo de valores articula-se a partir da defesa da presença em recuo

na assunção da construfâo do enunciar. A questão ética se desloca inteira­

do sujeito que sustenta a câmera na tomada (o cineasta). Surge na segun­

mente para o modo de construir e representar a intervenção do sujeito

da metade dos anos 1950, herdando tardiamente um quadro ideológico com atmosfera do pós-guerra, e aprofunda-se em obras de documen­

que enuncia: a idéia é que a construção revele-se ao espectador. Também é vista positivamente uma intervenção ativa do sujeito que sustenta a câ­

taristas-chave da segunda metade do século XX, como Frederick Wise­

mera sobre o mundo. A questão do conteúdo da asserção, premente para a

man e Albert Maysles.

típico essa atitude, a posição do sujeito que enuncia começa a ser pionei­

ética educativa, fica relativamente em segundo plano. A reflexão teórica e a p�ópria produção imagética que cerca essa ética são carregadas pela preo­

ramente questionada, como se fizesse parte integrante do quadro ético

cupação com a posição da voz que enuncia. Se a intervenção articuladora

o documentário que representa de modo mais

da narrativa documentária. Trata-se de um conjunto de valores que se

do discurso é inevitável, a narrativa deve jogar limpo e exponenciá-la, seja

constrói a partir da necessidade de trazer a realidade, sem interferências,

através de procedimentos interativos na tomada, seja na própria articulação

para o julgamento do espectador. Duas metáforas podem definir a ética

discursiva (montagem/mixagem). A ênfase narrativa é em procedimentos

do documentarista que age em situação de recuo: o paralelepípedo do

estilísticos (como entrevistas ou depoimentos) que demandam e determi­

real e a mosquinha na parede. A estilística dominante da ética que se crê

nam a participação/interação do sujeito-da-câmera no mundo. A pessoa

imparcial ou ambígua é a do cinema direto. Os principais procedimentos estilísticos de enunciação assertiva da ética da imparcialidade são a fala

do sujeito-da-câmera pode inclusive adquirir espessura de personagem.

no mundo, o som ambiente. As novas tecnologias são o gravador Nagra

Michael Moore (Tiros em Columbine, 2002), Jean Rouch (Chronique d'un

e a câmera na mão. A ambigüidade na representação do mundo, propor­ cionada pela posição em recuo, é valorizada como forma de permitir ao

été [ Crônica de um verão], 1961) e Agnes Varda (Les glaneurs et la glaneuse [Os catadores e eu], 2000) figuram, de modos distintos, a forma da entre­

espectador o exercício de sua liberdade. O quadro ideológico que cerca

vista a partir de si e de sua presença na tomada, deixando claro o que está

a_ética da imparcialidade, na posição de recuo do sujeito-da-câmera, é o

em jogo e de onde sai a enunciação.

existencialismo fenomenológico dos anos 195O. O mundo deve ser oferecido em uma bandeja para que o espectador possa assumir de modo integral sua parcela de responsabilidade, seu engajamento. A ética de recuo não trabalha com câmera oculta. Não haveria sentido em se ocultar para re­ presentar o mundo. O embate deve estar claro, e o recuo é conquistado como recompensa da excelência estilística.

Diretores como Eduardo Coutinho (Cabra marcado para morrer, 1984),

A ética da intervenfão valoriza aquele documentário que se abre para a indeterminação do acontecer, mas flexiona o acontecer do mundo segundo sua crença e o compasso de sua ação. Ao contrário da ética do recuo, não tem problemas morais com o fato de sua intervenção determinar os rumos do acontecer na tomada. O conjunt� de valores que determina a substância da ética interativa valoriza positivamente a intervenção ativa do cineasta

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Mas afinal... o que é mesmo documentário?

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na compos1çao do documentário, assumindo sem véus as necessidades da enunciação. O corpo-a-corpo do sujeito-da-câmera com o mundo e· a articulação narrativa das tomadas passam a ser carregados de preocupa­ ções metalingüísticas. A ênfase na instância discursiva é dilatada e nela se concentra a dimensão ética. Mostrar o discurso e sua construção, por quem enuncia, é o valor mais apreciado . Procedimentos metalingüísticos que revelam as condições de enunciação tornam -se figura: a exposição do dispositivo da tomada e sua circunstância (câm eras, microfones, re fletores, equipes de filmagem, claquetes), o espaço físico da montagem e mixagem, os contratos firmados entre produção e participantes do documentário, as condições de recepção do documentário, etc. É importante frisar que os procedimentos metalingüísticos que expone nciam a enunciação são diver­ sos e não se reduzem à exibição do dispositivo. 19 4. A ética modesta

A ética modesta r eflete o fim das ilusões das grandes ideologias, con­ forme apregoa o pós-modernismo. O suj eito pós-moderno, não poden­ do mais adquirir altura para enútir sabe r, se restringe a vôos modestos, q ue, em geral, se esgotam no criticismo dos enunciados de saber. "Não sei", "Não tenho densidade para interagir", "E, também, ninguém mais sabe ", diz o suj eito modesto. A voz que enuncia o documentário (a voz das asserções), o suj eito-da-câmera em seu embate com o mundo, carac­ teriza-se p ela valoração da posição modesta, de onde espalha seu olhar crítico p elo h orizonte que lhe cerca. A ética do saber do documentário clássico permanec e a milhas de distância. Os valores que orienta m o do­ cume ntário participativo e reflexivo deixam de ter a pre mência que foi própria em seu tempo. A represe ntação em recuo também não satisfaz o sujeito modesto. A imparcialidade não existe para o sujeito modesto, que assume sua posição n o mundo c omo n egação de um corte abrang ente de saber e não como ausência/recuo. Na ética modesta, o suj eito que enuncia vai diminuindo o campo de abrangência de seu discurso sobre o mundo até restringi-lo a si mesmo. D e si mesmo, o sujeito modesto ain­ da pode falar. A étic a mode ta re flete um co njunto de prod uções densas do dornmentário na virada do éc ul o, de nominada de docume ntário em prirneira pessoa. Sua incidência é for .e no documentário brasileiro (Carlos ader, Sandra Kogut, Kiko Goifman, Cao Guimarães) e no internacional (Tonas Mekas, Marlon Riggs, Daniel Reeves, Sadie Benning, Jonathan

Caouette). É o documentário que fal a, antes de tudo, so bre si mesmo, para depois, eventual mente, arriscar-se a vôos mais altos, n os quais e nun­ cia sobre sua condição no mundo. Quando atinge essa altura, mas sem­ pre através do enunci ado em primeira pessoa ou mediad o pela primei­ ra pessoa, o suj eito -da-câmera modesto tem como alvo questões sociais pontuais que envolvem seu eg o, longe de tematizações mais amplas sobre a sociedade c ontemporânea. A ética modesta pode também aba ndonar a primeira pessoa. Quando isso acontec e, utiliza-se de procedimentos de rarefação do discurso para sustentar a enunciação. Voz es múltiplas se sobrepõe m em uma narrativa extre mamente fragmentada, centrada em impressões fugazes do mundo. Bill Nichols analisa um a parce la das produções do documentário modesto chamando-as de performáticas, por encenarem, com o próprio corpo, as as erções que enunciam .2º A ética do suj eito modesto aceita os li�ites do c orpo e da vo z do " eu", deixando para trás as a mbições educativas, a busca de neutralidade ou as exigên­ cias da reflexividade. O "eu" fala dele mesmo e se satisfaz no e ncontro com a ressonância egóica para promo ver a amplitude de sua fala.

A encenação Mas... como este filme é um documentário se ele foi encenado? Alguns dos principais lugares-comuns na reflexão sobre documentário es­ tão relacionados à questão da encenação. Trata-se de tema onde grandes confusões conceituais são re�orrentes. Primeiro mito a ser desconstruído: não confere a visão de que o documentário cresce se distinguindo do ci­ nema ficcional que se fazia em estúdios (Lumiere versus Mélies). O do­ c umentário nasce utilizando-se largamente de estúdios e encenação. Boa parcela dos filmes que compõem o que chamamos de tradição documentária utiliz a encen ação, s eja em locação, seja em am bientes fechados, prepar ados especificamente para a encenação documentária (estúdios). Roteiro prévio detalhado e encenação são elementos básico para a enunciação narrativa docum entária. Existem documentários que não utilizam roteiros? Certa­ mente. Existem documentários no quais encenar é procedimento pouco ético? Certamente. Podemos dizér que todos os documentários trabalham com encenação ? Q ue qualquer atitude do sujeito na tomad a, p ara a câ mera,

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Mas afinal... o que é mesmo documentário?

é encenação? Certamente não. É necessário distinguir a modificação de ati­ tudes que a presença da câmera provoca da encenação propriamente dita. Vejamos mais de perto essas questões. A encenação é um procedimento antigo e corriqueiro em tomadas de filmes documentários. Para efeito de exposição, vamos distingui-la em três tipos: , ----

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construída, com utilização )i - 'a) encenação-construída: é inteiram�pte --- --- -- -·-----de estúdios e, geralmente, atores não profissionais. A circunstância da tomaia_��á �o�pl�t��ente separad;(�spaci� �!en_:1pdra��nte) da-cir:çun,s­ -tincia�c!_() !Ilunc!_q ç_otigian.9 q!1e_9I"C}l_n_iÍa a tomada. A relação entre e�paç�-:. dentro-de-campo e espaço-fora-de-��eo é de het�ogeneiçlac!e �diçal. Exemplos de documentários com utilização de encenação-construída: Ni­ ght Mai/ [ Correio noturno], 1935, de Harry Watt e Basil Wright, The Thin B/ue Line [A tênue linha da morte], 1988, de Errol Morris e Walking with Dinosaurs (BBC, 1999). A encenação-construída engloba um conjunto de atitudes de envolvidas ._ explicitamente para a câmera e a circunstância que a cerca (e que ela fim­ da para e pelo espectador), que denominamos tomada. André Bazin dizia que o espaço cinematográfico, o espaço próprio à imagem-câmera, era, por natureza, centrífugo, e que devia existir em homogeneidade com o espaço­ fora-de-campo. ,A_ imagem-câmera, para Bazin, não tem moldura. Dentro da normatividade que caracteriza sua crítica, o bom cinema deveria seguir essa ontologia da imagem, priorizando procedimentos estilísticos (como o plano-seqüência ou a profundidade de campo) que potencializam a natu­ reza da imagem em sua homogeneidade com o espaço fora-de-campo. A forte utilização de cenários no documentário de sua época (em particular, no britânico) talvez explique a distância da crítica baziniana em relação à tradição documentária. Na encenação-construída da narrativa documentária o espaço-fora-de-campo está ainda no cenário. E, para além do cenário e do estúdio, existe o mundo em seu transcorrer, numa heterogeneidade absoluta com o espaço da cena no estúdio. Em Correio noturno, a cena em que os carteiros estão dentro do trem distribuindo cartas em boxes por localidade foi inteiramente filmada num vagão especialmente adaptado para as tomadas do filme. As condições tecno­ lógicas da época não permitiam tomadas daquele tipo, com aquela imagem, em um vagão em movimento. A própria concepção estética do documentá-

rio griersoniano, em sua tentativa de construir uma narrativa com asserções sobre o mundo que estivesse à altura do panteão das grandes manifestações artísticas, solicita fotografia sofisticada e angulações rebuscadas. O tipo de fotografia com ó qual o documentarismo inglês trabalha leva o documentá­ rio em direção à encenação-construída. Exige preparação da ação, decupagem prévia e representação especificamente voltada para as condições de luz e sombra exigidas pela máquina-câmera, deixando passar ao largo o captar do -transcorrer do mundo em sua indeterminação e imprevisibilidade. Se não podemos pensar esse paradigma de modo absoluto (ver, por exemplo, as to­ madas em locação de Song oJCeylon [A canção do Ceilão] , 193 4, ou Coai Face [ Cara de Carvão] 1935), podemos afirmar que o documentarismo inglês, em seu período áureo nos anos 1930, e mais ainda na estilística de recorte dramático de Humphrey Jennings, lida sem má consciência com a ence­ nação nas tomadas, baseado em tomadas dentro de estúdios ou em cená­ rios construídos. Querer, portanto, estabelecer contradição entre encenação e narrativa documentária é desconhecer a história do documentário. Há no documentário contemporâneo - que denomino documentário cabo, divulgado predominantemente pela mídia televisiva - uma narrativa que se baseia intensamente em tomadas de estúdio e roteiros detalhados plano-a-plano. O documentário cabo possui diversidade, mas alguns traços estruturais são recorrentes. Utiliza bastante a narrativa over, ou locução, mas num modo distinto do documentário clássico. Como no documentário clássico, o saber implícito (a voz do saber), que fundamenta as vozes que fa­ zem as asserções, reina soberano, sem má consciência. O documentário cabo é um documentário assertivo. Mas, ao contrário do documentário típico do período clássico, as asserções são estabelecidas por vozes múltiplas. A narrativa enuncia não apenas através da locução, em sua posição de voz de Deus falando sobre o mundo, mas através de uma multiplicidade de vozes, representada por entrevistas, depoimentos, material de arquivo, diálogos. A multiplicidade de vozes não exclui, no entanto, a unicidade da asserção do saber veiculada pelo documentário cabo, dentro de um contexto i�eológi­ co próximo ao documentário clássico. O documentário cabo pode ser encontra­ do, em sua diversidade, dentro de produções da BBC, em documentários sobre fatos históricos qu� preenchem a programação do History Channel, em documentários sobre mundo animal que preenchem a programação do Animal Planet, nas produções do.cumentárias, um pouco mais sofisticadas, explorando densidade de personagens, do National Geography, etc. Em

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sua diversidade, existe um tom não autoral e uniformizador na narrativa documentária dos canais a cabo, que forma o veio dominante do documen­ tário contemporâneo. No documentário cabo podemos ver facilmente a dimensão que ocupa a encenaçã.o-construída. A produção citada da BBC, Wafking with Dinosaurs, é realizada com material de ponta em manipulação digital da imagem. To­ madas são feitas dentro e fora do estúdio com intenso uso de trucagem. Tanto a manipulação digital como a encenação em frente à câmera (a en­ cenação com a forma dinossauro) são utilizadas para obtenção da figu­ ra imagética desejada. A encenação do tipo reconstituição histórica, que vemos em Wafking, sempre foi forte no documentário (no gênero A vida de Cleópatra), com imagens digitais carregadas de trucagem e de estúdio. Toda uma parcela de documentários de um canal como His.tory Chan­ nel caminha nessa direção. Na produção em série de tempos passados (o homem das cavernas, Roma antiga, o mundo medieval), efeitos digitais baratos e cenários, pensados para tomadas fechadas, são pano de fundo para a encenação-construída de atores figurantes. Ao analisar a amplitude da tradição documentária hoje, devemos reconhecer o lugar de destaque que é ocupado pela encenação de documentários em estúdios.

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b) encenação-locação: feita em locação, no local onde o sujeito-da­ :�mera s·ustenta à tomada. Ódi�etor, ou .sLtjeito-da-câ�era, p�de explicita­ mente ao sujeito filmado que encef1:e. E!:_11 o�tra� palavras, que desenvolva à finalidade prátlca de figurar para a câmera um ato previamen­ ã.��s �e explicitado. f::._encenação-locação distingue-se da encenação-construída pelo (ato de_ a_ tomada �- rêaliz�da n; �ircunstância de mundo onde o SUJéito que é filmado vive a vida. !).. decalagem espacial entre espaço in/off é mais situad-;_ em-��a ho�ogeneidade, mas a força gravitacional da imagem-câ­ mera, para usarmos a terminologia de Bazin, ainda é ccmrípeta. A tomada realizada explora a fundo a tensão entre a encenação e o mundo em seu co­ tidiano. Existe aqui um grau de resistência entre a intensidade do mundo em seu transcorrer e a encenação para o sujeito-da-câmera, que não está presente na encenação-construída. E essa tensão respira-se na imagem.

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A mcenaçã.o-locação envolve ações preparadas especificamente para a câmera, mas nela a encenação enfrenta a tensão com a intensidade e a indeterminação do mundo, em seu transcorrer na tomada. Para encenar, Flaherty viveu a dura vida de Aran, do mesmo modo que viveu com e fez

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morrer Nanook. O encenar, para o diretor americano, possuía um sentido distinto daquele que teve para o grupo documentarista inglês dos anos 1930, que valorava a encenação em estúdio, ou não se opunha a ela. Na­ nook era efetivamente um esquimó. As tomadas foram feitas em seu mun­ do, a baía de Hudson, sob condições adversas de temperatura, mesmo que não exatamente aquelas que o filme representa. Não existiam condições tecnológicas no início dos anos 1920 (o negativo, por exemplo, não possui emulsão em baixas temperaturas) para se filmar ao ar livre, em locomoção, pela região Ártica. A solução encontrada por Flaherty foi encenar e pre­ parar a ação, mantendo-se próximo a pequenos centros habitados onde, encenando, representou o movimento de Nanook em terras distantes. Esse tipo de encenação docume11tária coloca questões éticas e estéticas bastan­ te distintas da encenação-construída ( exemplo de uma encenação-construída, no caso de Nanook: um ato� amador japonês, representando um esquimó dentro de um estúdio, no verão californiano, tendo acima de sua cabeça, fora-de-campo, um chuveiro jogando flocos de isopor). Na encenação-loca­ ção, própria à tradição documentária, a intensidade da tomada possui um grau inteiramente distinto daquele da encenação-construída (no modo que se determina pela fruição espectatorial). O espectador não vê uma imagem de estúdio, mas sim uma imagem da baía de Hudson, e isso está bem claro para ele, embora não esteja claro que o iglu, no qual Flaherty mostra uma familia abrigada do frio, não tem teto - para permitir a entrada da luz. Como a ética que rege a fruição do filme (em sua época) não é a ética inte­ rativa/reflexiva, o fato possui uma importância marginal. O fotógrafo Rucker Vieira também destelhou casas para filmar o interior de residências em Aruanda (1960)21 e, no mesmo documentário, o diretor Linduarte Noronha teve problemas especiais para encontrar o garotinho que atua na familia do filme22 (como Flaherty os tivera para obter permissão para o menino filmar em Os pescadores de Aran). Noronha também acabou escolhendo _um líder comunitário da região, João Carnei­ ro, para viver o protagonista_ Zé Bento. Aruanda é um típico documentário clássico, inteiramente construído dentro dos parâmetros éticos e estéticos da encenação-locação. Dizer que Aruanda "faz ficção (a de Zé Bento e a formação do quilombo)"23 é esquecer a tradição documentária da primeira metade do século. Aruanda é um documentário que, como tantos outros, reconstitui um fato histórico, a formação de um quilombo na serra do Ta­ lhado por Zé Bento. Para construir sua narrativa e estabelecer as asserções

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sobre o fato histórico, feitas em locução O'Ver, utiliza moradores da região, que encenam, no próprio ambiente em que vivem, um pedaço da histó­ ria na qual se inserem. A análise descarrilha se procedimentos estilísticos da encenação-locação forem avaliados com o foco da ética ancorada na di­ mensão interativa/reflexiva, que pede a encenação-atitude ou encen-ação (ver adiante). No caso de Nanook, o esquimó, a representação do esquimó Na­ nook é feita pelo esquimó Allariallak (nome real de Nanook), que morreu logo após a estréia do filme. É dele a figura de carne que vemos, no espaço da baía de Hudson, expressando no rosto o contato com o ar ártico. A encenação-tomada envolve a experiência do mundo da tomada pelo sujei­ to-da-câmera, na circunstância intensa de sua presença. Flaherty sabe da importância da intensidade da tomada para o documentário e nela centra seu estilo, ainda que utilize largamente a encenação e vá fazer a montagem de seus filmes como quem faz um desagradável dever de casa. A imagem de Allariallak encenando para a câmera nada tem a ver com a imagem de um ator japonês interpretando um esquimó em um estúdio de Hollywood. A redução de duas figurações tão distintas a um mesmo eixo de encenação mostra como a crítica contemporânea com recorte desconstrutivo pode ser limitante em suas certezas. Há toda uma gama de filmes ficcionais que exploram a intensidade da tomada. Diretores de ficção se especializaram em lidar com esse tipo de ima­ gem e extrair o máximo efeito da intensidade da tomada em locações. Dizer que filmes ficcionais possuem uma "característica documentária" por explo­ rar a tomada em locação demonstra falta de familiaridade com a tradição documentária e com a tradição ficcional do c0ema. Não só o documentário trabalha amplamente (e talvez dominantemente) com tomadas que não são abertas para a indeterminação do mundo transcorrendo, mas também, em toda a história do cinema de ficção, são comuns tomadas absorvidas pelas condições intensas da locação (seja na estilística clássica ou moderna). Filmes de ficção, que trabalham com a intensidade da tomada, são apenas ficções com traços realistas mais marcados. Nada possuem em comum com a narra­ tiva documentária, conforme vimos definindo a partir da forma de enuncia­ ção assertiva, em sua maneira de ser recebida como tal pelo espectador. Dentro da gama estilística de diretores que gostam de trabalhar fora do estúdio, na abertura da tomada para o corpo-a-corpo com a indetermi­ nação do acontecer, podemos destacar Roberto Rossellini, que firmou sua carreira introduzindo no cinema de ficção essa variável; Jean Renoir, que

se sente em casa nos campos da França, mas quando está em estúdio busca enfatizar a abertura espacial para além da cena; John Huston, que quando lhe davam oportunidade sentia-se muito à vontade em locações, apesar da estilística marcada pelo classicismo; Werner Herzog, que filmou ficções inteiramente mergulhado na aventura de viver o filme na locação; Abbas Kiarostami, que explora com sensibilidade a interpretação dramática da trama por seus próprios agentes; Michael Winterbottom, que reconstitui fatos históricos misturando locações com atores e ações históricas drama­ tizadas; ou Jorge Bodansky, que em lracema, 1974, constrói uma ficção inteiramente absorvida no acontecer indeterminado da vida na tomada. São todos diretores com fortes obras de ficção, que usam a encenação-lo­ cação para estabelecer uma estilística particular, dentro de narrativas fic­ cionais que devem pouco à tradição documentária. O importante a frisar é que a existência em si de um tipo determinado de encenação, como a encenação-locação, está longe de implicar qualquer índice de mestiçagem de gêneros. Filmes como lracema, uma transa amazônica, Stromboli, 1950 (Roberto Rossellini), Aguirre , der Zorn Gottes [Aguirre, a cólera dos deuses], 1972 (Werner Herzog), e Une partie de campagne, 1936 Qean Renoir), são indexados como filmes de ficção. Chamar Stromboli ou lracema de ficções documentárias pode satisfazer o ego de viés modernista do crítico, mas tem pouco significado conceitual ou metodológico.

$ c) encenação-atitude (encen-ação): engloba u�a série de compor­

tamentõ; p;o��ca&s pela presença da câmera e do sujeito que a sus', tenta. Na encenação-atitude, ou encen-ação, existe uma relação de completa homogeneidade entre o espaço fora-de-campo e o espaço fílmico. Os comportamentos detonados pela presença da câmera são os próprios comportamentos habituais e cotidianos, com alguma flexibilização pro­ _ 'VOcada, justamente, pela presença da câmera e sua equipe. Entreatos, 2004, e Nelson Frúre, 2003 Qoão Moreira Salles), Salesman [Caixeiroviajante], 1968 (Albert Maysles, David Maysles e Charlotte Zwerin), Grey Gardens, 1976 (Albert Maysles, David Maysles, Ellen Hovde e Muffie Meyer), High School, 1968 (Frederick Wiseman), e Santo forte, 1999 (Eduardo Coutinho), assim como boa parte da tradição documen­ tária que vem do cin.emà direto, podem ser citados como exemplos. En­ tre Maysles e Wiseman a encenação-atitude oscila. Os Maysles, embora sempre na posição de recuo, costumam abrir espaço maior para o aden­ samento da encenação, realçando personalidades que existem para a câ-

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mera. Coutinho, no exemplo citado e em sua produção recente, acentúa essa tendência rompendo quase por completo com a inserção no mundo cotidiano para figurar a personalidade na forma de depoimento. Já Wise­ man assume de modo decidido o recuo, e sentimos mais o mundo em seu transcorrer e menos o exibir-se para a câmera. Pierre Perrault em Pour la suite du monde, 1963, clássico do cinema direto canadense, recria, para o documentário, µma pesca à beluga que não mais existe. A encenação dos pescadores de beluga em Perrault poderia se sobrepor à encen�ção dos pescadores de t�barão em Os pescadores de Aran? Quando os pescadores falam para Perrault sobre a proposta de encenação da pesca, eles não encenam. Eles estão falando sobre a ação da pesca, do mesmo modo que Lula, na encenação cotidiana de seu ser, fala para a câ­ mera de João Moreira Salles em Entreatos. No filme de Perrault, a encen­ ação fica clara para o espectador, é discutida e tematizada no filme. Serve de motivo para o detonar da narrativa documentária, em sua abertura para a indeterminação, em um estilo bem característico do direto: como será ( esta é a questão que o filme se coloca pelos pescadores), encen-ar a caça à beluga, extinta há tantos anos? A ação da fala sobre a encenação é o tema da ação do filme, e não a re-encenação em si. Haverá sentido em chamar pelo mesmo conceito valorações tão distintas da mesma ação (encenar)? Haveria algo em comum entre o encenar dos pescadores de tubarão, em Os pescado­ res de Aran, para a câmera de Flaherty, o encen-ar dos pescadores de beluga para Perrault e o encen-ar de Lula para Salles? A encenação-atitude é a franja de encenação considerada ética pelo novo documentário que surge na virada dos anos 1960. Flaherty, em Os pescadores de Aran, vive dois anos na ilha de Aran, aproximando-se grada­ tivamente da população e filmando usos e costumes do lugar. Apesar da convivência intensa, e ex ensa no rempo, com o mundo que filma, Flaherty pensa a representação documentária exclusivamente dentro da perspectiva estilística da encenação-locação. Homem de seu tempo, não está no horizon­ te de Flaherty a ética e a concepção estilist,L. J cumentária que fundamen­ tará a nova narrativa que surge nos anos 1960. Como exigir de alguém a consciência de uma época que não é a sua, mas nossa? Richard Leacock, assisrente de Flaherty em seu último filme, Louisiana Story [A história de J .ouiszana], 1948, serve de figura-súnbolo da transição entre a tradição do­ cumentarista da encenação-locação e o documentário da encenação-atitude, ue é encenar em documentários.

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O cinema direto/verdade não encena ou, ao menos, não encena den­ tro dos parâmetros da encenação-construída ou da encenação-locação. Pode um documentarista, que filma dentro da estilística do direto, pedir para o sujeito na tomáda repetir duas vezes a mesma passagem por uma porta, pois a luz não estava adequada? Eticamente não pode. ão seria ética a representação de uma ação-chave para o filme, por meio de procedimentos de motivação da ação próprios da encenação-locação, em filmes como Entre­ atos, Caixeiro-viajante, Grey Gardens, _Titicut Jollies, 1937 (Frederick Wise­ man), Os catadores e eu. Em uma das passagens marcantes de Cabra marca­ do para morrer, Coutinho pede ao personagem João Mariano para repetir a cena em uma entrevista, em função de um problema técnico com o som. A magia da tomada se quebra e a encenação do tipo locação subitamente vem ao primeiro plano. A figuração do personagem se adensa na imagem e sua persona, seu estar no mundo para o ujeito-da-câmera na tomada, se afina. Em sua ética intuitiva, curtida no cotidiano de camponês, João Mariano sente que há algo de errado no ar e se cala. O embaraço, seguido do silên­ cio, é um embaraço ético pela mudança de sintonia no encenar. Cou�inho percebe o tropeço e se esforça para sair da situação delicada, retomand0 o ritmo da vida na tomada. Dentro da dimensão reflexiva própria à narrativa de Cabra, a quebra do código é exposta como uma dívida ao espeu dor, como se o espectador merecesse uma explicação para a encenaçâo-tocação instaurada de modo deslocado naquele instante. O conceito de encenação perde consistência se ampliado de modo uni­ forme para toda a história do documentário no século XX. Tudo se torna encenação, seja no documentário, seja na ficção. Coloca-se no mesmo pa­ tamar uma encenação em estúdio e uma leve inflexão de voz do sujeito na tomada, provocada pela presença da câmera. Os atos de encenação do ipo locação dos três habitan es de Aran, que, sem nenhum vínculo de pa�e 1tesco, interpretam uma família nuclear em Os pescadores de Aran, surgem como equivalentes às atitudes afetadas de Edith e Edie Beale em Grey Gar­ dens, à medida que passam alguns meses encenando seu cotidiano para a câmera, mais ou menos discreta, de Albert e David Maysles. Do mesmo modo, podemos dizer que Lula não encena seu cotidiano de campanha para a câmera de \Valter Carvalho e a presença de João Mo eira Salles, em Entreatos. Ele vive a vida de político em campanha e a equipe de Entreatos o filma. Certamente, a pre ença ·da câmera e seu equipamento flexionam, em alguma medida, a atitude de Lula. Podemos vislumb rnr, em diversos

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momentos do filme, como também claramente em Grey Gardens, a atitude exibicionista para a câmera provocada pela situação de tomada, tão comum em documentários de estilística direta. Mas seria essa encen-ação, a encena­ ção-atitude, propriamente uma encenação? No sentido amplo, todos nós encenamos, a todo momento, para to­ dos. A cada presença para nós, tentamos interpretar a nós mesmos para outrem, e não seria diferente para a câmera. Para cada um, compomos uma imago, e reagimos assim à sua presença. Somos nós, através dos olhos de outros, agindo para esse nós conforme o sinto dentro de mim. Não é diferente com a experiência da presença da câmera e seu sujeito na circuns­ tância da tomada. Apenas a mediação fenomenológica é um po1,1co mais complexa. No caso da tomada, temos como alteridade não apenas a pessoa física que sustenta a câmera, mas o endereço para o qual nos lança o sujei­ to-da-câmera na tomada: o endereço do espectador em sua circunstância. 24 Se Lula ou Edie Beale encenam para a câmera, encenam do mesmo modo que o fazem para o mundo que os compõe enquanto alteridade, e que os define, para si, como Lula ou Edie. A câmera e seu sujeito são apenas mais um outrem, com a capacidade particular de flexionar minha expressão, mas similar a outras alteridades que se oferecem à minha percepção. Esse é, portanto, o campo a partir do qual se define a encenação-atitude, um campo que, na realidade, não pertence ao universo da encenação, conforme costu­ mamos defini-la. A encenação-atitude não existe, por isso podemos chamá­ la de encen-ação: trata-se de um comportamento cotidiano, flexionado em expressões e atitudes pela presença da câmera. Diferentemente, as encena­ ções construída e locação envolvem procedimentos que isolam por completo a ação do sujeito na tomada de seu transcorrer cotidiano. Tais encenações são modos de agir que afunilam a alteridade que se oferece ao sujeito-da­ câmera, retorcendo-o para o leque do outrem espectatorial: jogam assim a circunstância da tomada no funil da circunstância da fruição.

As fronteiras Mas... podemos falar em fronteiras do documentário? O campo do documentário possui fronteiras, como todo campo que se define enquanto tal. Devemos pensar as fronteiras do documentário não de modo normativo (o que deve ser o documentário), mas com o objeti-

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vo de refinarmos nosso instrumental analítico. O fato de as fronteiras do documentário serem flexíveis não implica sua inexistência, nem retira o significado das áreas que delimitam, conforme já buscamos demonstrar. A constatação de que um artista singular pode criar uma obra que explore a mixagem entre traços estruturais de documentário e ficção não possui in­ cidência metodológica direta sobre a definição propriamente. Nesse caso, constatamos apenas que a obra de X ou Y trabalha a interface entre cam­ pos definidos como A e B. Se alguns documentários mentem, brincando e enganando o espectador, demonstram que a criação autoral é livre. Na medida em que não situamos uma posição normativa, a incidência sobre o campo definitório é pequena. Em F for Fake [¼rdades e mentiras] , 197 5, Orson Welles brinca com a noção de documentário, enganando de forma explícita (o narrador men­ ciona claramente o fato) o espectador em uma narrativa onde asserções falsas e verídicas se sobrepõem. Em Zelig (1983), Woody Allen utiliza pro­ cedimentos narrativos clássicos da narrativa documentária (imagens com formato de arquivo, entrevistas, depoimentos, voz O'Ver), para criar um per­ sonagem fantástico e estabelecer asserções que evoluem em um crescendo de nonsense. Já analisamos anteriormente o caso de No Li"es, onde o engano é breve e brusco, assumido de modo explícito. Assim como Zelig, No Lies é um exemplo característico do que a crítica anglo-saxã chama defa.ke do­ cumenta!.] ou, em uma versão mais debochada, mockumentary.25 Em Las Hurdes [Terra sem pão], 1932, Luís Buiíuel nos ipresenta um estarrecedor documentário sobre a miséria em uma região remota da Espanha, antes da guerra civil. Seu terceiro filme, após um início de carreira marcado pela estética surrealista ( Un chien Andalou [ Um cão andaluz], 1928, e J;age d'or [A idade do ouro], 1930), traz uma interessante contraposição entre a sensibilidade da vanguarda surrealista e a imagem realista da miséria. A narrativa de Terra sem pão, como um todo, é a de um filme característico do classicismo documentário, mas que em breves momentos se descola, pare­ cendo romper com uma camÍsa-de-força demasiadamente estreita para o campo gravitacional criativo de seu diretor. A descolagem produz efeito de afastamento, raro na estilística clássica. O discurso assertivo sobre a região Las Hurdes derrapa e vemos a sensibilidade de Buõ.uel explorando, nos interstícios da realidade vazia, a explosão da desordem surreal. A estra­ nheza desloca a voz que assere e ·instaura a pausa da encenação e da poesia oculta, rompendo a lógica da miséria para além da denúncia. Terra sem pão

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é, portanto, um documentário clássico no qual se respira a influência dos movimentos de vanguarda (e não o inverso). As fronteiras do campo são também claras em Verdades e menúras. Trata-se basicamente de um documentário irônico sobre falsários (El­ myr de Hory, Chfford Irving), entre os quais se inclui, com prazer, o próprio diretor do filme (Orson Welles). Não tardamos a perceber que a própria narrativa escorrega em verdades e mentiras, confundindo-se com o objeto que aborda (os quadros falsos de Elmyr de Hory, sua falsa biografia, a falsificação dos escritos de Howard Hughes, a falsa aventura de Oja Kodar, etc.). Trata-se de um documentário que tem em seu núcleo as asserções sobre a vida do mais famoso falsário de quadros dçi século XX (Elmyr de Hory), incorporando outros falsários ligados de alguma forma a Elmyr, inclusive aquele que faz o filme. A mentira maior nos é pregada por Welles, ao dizer, no início do filme, que na próxima hora só nos contará verdades. O tempo passa sem nos darmos conta, e, depois de esgotado o prazo, bem antes do final do filme (que tem 98 minutos), é enunciada a falsa história, da falsa aventura amorosa de Picasso, inter­ pretada por Kodar. Será que os últimos vinte minutos de mentira, em Verdades e mentiras, fazem com que o documentário deixe de ser um documentário? Mas... e se tivéssemos a situação inversa/ vinte minutos de verdade e 78 de men­ tiras/ E será qu� as verdades, no prazo que a narrativa se dá para contar verdades, são realmente verdades? Os quadros falsos são realmente os fal­ sos? Não estaria Elmyr queimando em sua lareira um verdadeiro Picasso? Constatamos, ainda uma vez, a fragilidade dos conceitos de verdade, reali­ dade, objetividade para lidar com u campo documentário. Verdades e mentiras é simplesmente um documentário por sua forma de enunciação caracte­ rística dos documentários, embora estabeleça asserções ambíguas (algu­ mas verdadeiras, outras falsas) S(lhre a vida de Elmyr de Hory e sobre a fragilidade da dimensão autoral (sua relatividade) nas artes pictóricas e em outras artes. Orson Welles - dentro de uma estilística própria ao conjunto de procedimentos narrativos que aparece com o que chamamos de cinema direto - encarna a figura do per onagem cineasta que personifica (chama a si) o corpo-a-corpo com o mundo, interferindo ativamente e estabelecendo asserções que seguem a modalidade exibicionista do sujeito-da-câmera (Ver também Moore, Varda de Os catadores e eu, Rouch de Crônica de um verão, 26 Coutinho de Cabra, Glauber em Di-Glauber, 1977).

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Mas... se Verdades e mentiras é um documentário, e Zelig certamente não é, podemos apontar um campo preciso de narrativas com imagens, sons e fala no qual definições se esboçam/ Vamos destacar quatro campos fronteiriços com os quais a tradição histórica da narrativa documentária in­ terage, estabelece diálogos frutíferos, e em que também se dilui, formando uma espécie de círculo com quatro pontos cardinais: a) o docudrama; b) o telejornalismo ou "atualidades"; e) a publicidade; d) o cinema experimen­ tal/videoarte. São fronteiras que interagem de modo denso com as articula­ ções estruturais da narrativa documentária em sua configuração histórica.

O docudrama Mas... por que uma narrativa baseada em fatos históricos seria um docudrama e não um documentário? A ficção baseada em fatos históricos, ou docudrama, possui todas as características narrativas de uma ficção, conforme a narrativa ficcional se conf1gurou na história do cinema. Para representar fatos históricos, o docudryima usa estruturas narrativas marcadas pelo classicismo hollywoodiano. Não é um documentário, pois não enuncia como enunciam os documentários. Personagens e intriga, embora derivados de fatos históricos, são enunciados de um modo que não é característico do cinema documentário. A ausência de voz over/locução, entrevistas, depoimentos, imagens de arquivo, o uso de atores profissionais, o fato de as peripécias serem complexas, articuladas em torno de reconhecimentos e reviravoltas, tudo isso aproxima o doeu­ drama da estruturação típica da narrativa clássica ficcional, afastando-o do documentário. O docudrama é fruído pelo espectador no modo ficcional de entreter- e, a partir de uma trama, dentro do universo do faz-de-conta, embora aqui a realidade histórica module oJaz-de-conta.27 Ficções hútóricas não são documentários, e creio ser possível chegar­ mos a um consenso sobre isso sem nos esforçarmos muito. O que é isso companhúro?, 1997 (Bruno Barreto), Guerra de Canudos, 1997 (Sérgio Rc­ zende), Lamarca, 1994 (Sérgio Rezende), Gandhi, 1982 (Richard Atten­ borough), kay, 2004 (Taylor Hackford), Mississipi Burning [Músissipi em chamas], 1988 (Alan Parker), lMirld Trade Center [As Torres Gêmeas], 2006 (Oliver Stone), All the President's Men [Todos os homens do presidente], 1976 (Alan J. Pala.da), ln the Namt ,{the Father [Em nome do pai], 1993 Qim

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Sheridan), The Queen [A rainha], 2006 (Stephen Frears),JK, 2006 (minis­ série de Maria Adelaide Amaral, dirigida por Dennis Carvalho, Vinícius Coimbra e Amora Mautner, produzida pela Rede Globo), e &ma, 2005 (série para TV, escrita por John Milius, William B. MacDonald e Bruno Heller, dirigida por Allen Coulter e outros, co-produzida por BBC, HBO e RAI), são narrativas que, num debate em que impere o bom senso, di­ ficilmente seriam consideradas documentários. De onde vem, portanto, a confusão? Talvez pela insistência em se ater a exceções no campo delimi­ tado pelas fronteiras, para daí deduzir a impossibilidade de estabelecê-las. Um dos pontos na diferenciação entre documentário e docudrama deve ser estabelecido na forma de recepção. Docudramas são ficções e, como tais, interpretadas pelo espectador dentro do universo do faz-de-conta, centrado em hipóteses que estabelecemos sobre a indeterminação da ação ou a ve­ rossimilhança dos personagens diante da trama. A expectativa espectatorial (carregadq de emofões) sobre a conduta de entes com personalidade, ave­ rossimilhanfa das reviravoltas, a catarse nos reconhecimentos são elementos que constituem a fruição da ficção, baseada no acordo tácito que funda o faz-de-conta ficcional. A narrativa clássica cinematográfica evoluiu, desde o início do século, em torno do enunciar ficções. Procedimentos estilísticos de decomposição da imagem em planos, como montagem paralela, planos-ponto-de-vista, raccords de montagem em continuidade espacial, foram desenvolvidos ten­ do como objetivo o fechamento do espaço cênico, delimitando-o para o espectador. A disposição temporal da trama e a construção de personagens são estabelecidas pela articulação e motivação desse fechamento. A voz over, historicamente, é deixada para trás, destituída de dimensão estrutu­ rante na narrativa clássica. O cinema de ficção costuma narrar sem a voz do narrador, narra na forma dramática. Nesse sentido, o docudrama per­ tence integralmente à tradição da narrativa clássica ficcional, tanto em seu aspecto formal quanto em seu modo de fruição. É em relação à tradição da narrativa ficcional que o docudrama deve ser analisado. Já o documentário dela se distancia e se singulariza a partir dos elementos que estamos ten­ tando definir neste ensaio. E, no entanto, o docudrama tem, na substância de sua trama, um fato histórico. A imagem da ação histórica diferencia-se da imagem da ação qualquer em função da intensidade sobredeterminando a singularidade da circunstância em que ocorreu. Como a trama do docudrama é histórica, a

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estrutura dofaz-de-conta no qual se baseia o universo ficcional encontra-se um pouco deslocada. A história, apesar de haver acontecido, pode não ser verossímil. O docudrama, na qualidade de discurso que enuncia pela for­ ma da narrativa clássica, deve trabalhar a história a fim de transformá-la em trama. A história, em si mesma, não basta para o docudrama. Sua significa­ ção pode parecer forçada, inverossímil, ou apenas tediosa ao espectador. O espectador, quando assiste a um docudrama, não busca asserções sobre a realidade histórica representada, no modo que é próprio ao documentário. O docudrama retorce a realidade histórica na fôrma da trama, de modo que o espectador possa entreter hipóteses sobre os personagens e sua ação, ou considerações (inclusive políticas) sobre a trama representada. Entre essas hipóteses pode estar, inclusive, a pertinência da representação com relação à história (o fato histórico), conforme experimentada ou compreen­ dida pelo espectador. O docudrama toma a realidade histórica enquanto matéria básica e a retorce para que caiba dentro da estrutura narrativa, conforme delineada pelo classicismo hollywoodiano. Terá de criar personagens secundários, adaptar personalidades para torná-las verossímeis, distorcer ações para configurar reviravoltas marcadas, acentuar conflitos para proporcionar re­ conhecimentos catárticos, etc. O trabalho de transformar história em trama é comum, em maior ou menor grau, a todos os docudramas e, geralmente, pouco compreendido. A inevitabilidade da "torção" da história para fazê- · la caber no molde da narrativa clássica pode ser criticada, mas nunca de forma absoluta, pois história não é narrativa. 28 Peguemos como exemplo o docudrama O que é isso companheiro?, de Bruno Barreto, realizado a partir do livro biográfico homônimo, de Fernando Gabeira. O filme tem como fonte de sua narrativa o relato pessoal de Gabeira sobre o seqüestro do em­ baixador norte-americano, Charles Elbrick, em set�mbro de 1969. Como é comum nesse tipo de filme, Barreto utiliza-se de material histórico (o seqüestro de Elbrick), a partir de uma visão pessoal (a de Gabeira), para articular personagens, trama e suspense na forma característica do clas­ sicismo narrativo (criação de personagens secundários, manipulação de personalidades, condensação-dilatação temporal-espacial da ação, revira­ voltas, etc.). Em entrevista à revista da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp), respondéndo a críticas por ter supostamente detur­ pado a realidade histórica, Barreto diz ter realizado uma "reflexão drama-

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túrgica sobre o que aconteceu" .29 Demonstrando consciência do processo de adaptação do fato histórico ao classicismo narrativo, afirma que "o cine­ ma narrativo utiliza elementos dramatúrgicos como desenvolvimento, con­ flito e interação entre os personagens. E foram esses ós instrumentos que utilizei para contar uma história" . 30 Ao lidar com fatos que aconteceram, a inflexão da trama pode, no entanto, tornar-se excessivamente aberta em seu percurso tangencial com o fato histórico. De um lado, estão as necessidades dramatúrgicas próprias ao classicismo narrativo cinematográfico; de outro, a maneira crua e lenta,· fenomenológic�; por assim dizer, através da qual se configura o transcorrer do presente. O filme de Barreto, por exemplo, pode ser criticado pela visão infantil que fornece da luta armada no B:asil contra a ditadura, ou pela densidade humanista da personagem do embaixador americano, em contraposição à personalidade rala e sem profundidade do "velho" ;omunista, que orienta os garotos revolucionários brasileiros. São críticas pertinentes que incidem sobre a qualidade da "torção" do fato his­ tón"co (0 seqüestro do embaixador) que aconteceu ( ninguém há de negar o fato do seqüestro), mas que está aberto a interpretações. A interpretação que Barreto fornece da história pode, então, ser criticada dentro do leque de opções que são abertas pelo docudrama, em seu modo de representar a , história, flexionada pela fôrma do classicismo narrativo. E justo, portanto, criticar a representação de Barreto do seqüestro, na redução que inflige ao lado brasileiro do evento, mas me parece deslocado questionar a forma do docudrama e a tradição narrativa cinematográfica, como se existisse um patamar aquém, ou além, da narrativa no qual A História seria representa­ da em si mesma. Mas... se o docudrama é a representação da história flexionada pelo classicismo narrativo, seria o documentário a representação da história em si? Hfrcules 56, 2006, de Sílvio Da-Rin, por exemplo, poderia ser definido como um documentário por apresentar uma visão objetiva do seqüestro, ao contrário do que acontece em O que é isso companheiro?, que apresentaria uma versão romantizada? Certamente não, e certamente essa objetividade não aparecerá como tal a Fernando Gabeira, que teve a dimensão de sua participação no evento praticamente anulada nesse filme. Se Hércules 56 é, em dúvida, um documentário, e se O que é isso companheiro? por certo não 0 é, devemos, em primeiro lugar, aceitar a evidência dessa distinção. Em seguida, devemos situá-la em fundamentos menos movediços que concei­ tos corno objetividade ou verdade. Em outras palavras, Hércules 56 é um

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documentário por se relacionar de modo estrutural com a forma narrativa que a tradição documentária configurou (asserções sobre o mundo, entre­ vistas, depoimentos, material de arquivo, locução, ausência de atores pro­ fissionais, etc.),· e por ser indexado enquanto tal socialmente. Ao evitarmos os adjetivos verdade/objetividade na definição do campo documentário, nos atemos ao diferencial estilístico e à indexação para afirmar a tradição docu­ mentária. Diferencial estilístico que singulariza o documentário em relação ao cinema de ficfão, ou em relação a seu primo próximo, o docudrama. a raiz da confusão que o conceito de verdade traz para a definição do documen­ tário está a atração contraditória da metodologia desconstrutivista por uma espécie de éden não discursivo (a hútória em si, depois da desconstrução do discurso). A ilusão, que marcou uma geração, é a de que existe um pa­ tamar não ideológico, meta-subjetivo, ao qual a desconstrução do discurso nos conduz. Nosso ponto é que o documentário apenas enuncia a hútória de um modo distinto do docudrama. E tamos debatendo aqui, portanto, quais são os procedimentos estiüsticos que a narrativa documentária, nos séculos XX/XXI, desenvolve para enunciar suas asserções. Esses proce­ dimentos distinguem-se claramente daqueles da narrativa ficcional, ainda que em algumas propostas pessoais de trabalho possam vir misturados.

A reportagem Mas ... como distinguir reportagem de documentário? Historicamente o documentário surge nas beiradas da narrativa ficcional, da propaganda e do jornalismo. A frase clássica de Gri.erson define o do­ cumentário como tratamento criativo das atualidades (creative treatment of actuality). Algumas vezes a frase é citada com a sub,-.•,,, \ão de atuahdades por realidade, o que não é de todo fora do campo conotativo do termo actua­ lity. No entanto, o remeter à ação de ocorrer, forma narrativa das atualidades (aciuafities), é essencial (afinal o conceito griersoniano original é actuality não reality).31 O documentarismo inglês constitui o primeiro momento no qual o documentário pensa a si mesmo, enquanto forma narrativa parti­ cular. Uma forma que descobre um modo de financiar-se (pelo Estado), respondendo, enquanto narrativa fílmica, às expectativas do investimen o estatal. O Estado britânico paga a produção de um cinema que enuncie asserções sobre as n--·ilizações de se Estado, dentro de uma ideologia de

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molde educativo, que se delineia a partir de uma visão missionária do do­ cumentário, destinado a educar as massas para a democracia liberal e o voto universal (ética educativa do documentário). O projeto ideológico do documentarismo britânico é amplo e aparece como contraposição à emer­ gência do totalitarismo na Europa continental dos anos 1930, ainda que o próprio Grierson manifeste, progressivamente, dúvidas sobre os predica­ dos do liberalismo. O documentário deve ser um púlpito, diz o produtor inglês, a partir do qual se enunciem asserções que eduquem as massas, e se propagandeiem não só os produtos e a indústria britânica, mas também a possibilidade de um liberalismo de massa. O movimento documentarista é criado tendo no horizonte a reflexão norte-americana dos anos l 920 sobre as novas tecnologias da comunicação de massa nascente, e seu papel entre a opinião pública. A ênfase de Grierson está nesse papel dos meios de comu­ nicação de massa, e na educação popular, para criar as bases da democracia liberal (não tanto universal), na construção da unidade nacional. 32 A tradição documentária, portanto, em sua principal corrente, é filha do imperialismo britânico e do liberalismo democrático. Não deve ser me­ nosprezado o fato de que, na primeira fase, abriga-se em um departamento do Estado britânico que possui o significativo nome Emperial Marketing Board (EMB). Mas, além da propaganda de Estado, que Grierson assu­ me sem má consciência como a missão maior do documentário, a singulari­ dade do documentarismo britânico está localizada em sua relação dinâmica com o universo das artes. O sonho de Grierson é que o documentário se transforme em uma grande Arte ( com A maiúsculo), conquistando o esta­ tuto que o cinema construtivista e os clássicos do mudo, no final da década de 1920, já haviam conquistado na intelectualidade e em vasto público. É com esse objetivo, e com o dinheiro do Estado britânico sempre na ponta do lápis, que contrata a nata dos artistas de sua época, abrindo espaço, em um primeiro momento, para uma interação dinâmica entre novas propos­ tas da arte de vanguarda e a tradição documentária. É assim que artistas como Alberto Cavalcanti, Robert Flaherty, o músico Benjamin Britten, o poeta W. H. Auden são chamados, e pagos, para darem sua contribuição criativa ao universo do documentário nascente. Na definição do documen­ tário como tratamento criativo das atualidades, o termo criativo cobre a forte incidência das artes em geral, e do cinema em particular, sobre o documen­ tário. É para aprofundar a dimensão criativa do documentário que Grier­ son solta as cordas de seus pupilos em filmes mais experimentais como Song

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ofCeylon, Coai Face ou Industrial Britain. A tensão entre arte e dever, entre 0 documentário-arte e o documentário-púlpito, entre o documentário missão cívica e o documentário ex-pressão individual do artista estará sempre presen­ te, marcando a-reflexão de Grierson e sendo um dos principais motivos de polêmica no grupo. Se a nova proposta de uma narrativa documentária se casa bem com o tratamento criativo do mundo, o outro lado da fórmula griersoniana é bem mais problemático e funda o horizonte do qual quer afastar-se: as atualidades. As atualidades formam um gênero cinematográfico bastante comum d�sde os anos 191 O até pelo menos a década de 1970. São, em geral, programas noticiosos, produzidos em série, exibidos antes do filme de ficção. No Brasil tivemos intensa produção de atualidades, chamadas de cinejornais, algumas vezes tratadas pelo adjetivo pejorativo de cavação, durante todo o período mudo e a primeira metade do século XX, indo até os anos 1980. Os cinejornais compunham a programação cinematográfica como prólogo, com proteção e regulamentação do Estado (mais recente­ mente temos como exemplo Jean Manzon, Primo Carbonari, Canal 100, etc.).33 Boa parte da produção ficcional no período mudo sobrevive através de cinejornais, que se tornam a base do sustento dos cineastas e uma fonte segura de recursos. Nos anos 1930 o governo getulista investe fortemente no Cine Jornal Brasileiro, que faz o papel de órgão oficial do regime. O espaço dos cinejornais na programação cinematográfica continua até quase o final do século XX, sendo sua presença parte da �emória de qualquer freqüentador de cinema nascido antes da década de 1970. A forma narrativa das atualidades e do documentário diverge historica­ mente. No caso do documentarismo inglês, existe o esforço para adensar o verniz artístico do enunciar asserções sobre o mundo através de imagens e sons. É através do tratamento criativo que os documentaristas vão criar uma nova arte que se diferencia das atualidades, que são apenas/ootage, ou seja, o transcorrer do mundo impresso na película na posição de recuo completo do sujeito-da-câmera. Travelogues34 e atualidades compõem o horizonte da grava­ ção do transcorrer atual, aquém do tratamento criativo, do qual o documentáno nascente quer se distingu ir. A nova forma narrativa que surge da matéria-pri­ ma das atualidades quer obter, em outro campo, o status artístico já conquistado pela narrativa clássica ficcional. O documentário é arte e não mera atualidade. As atualidades tomadas pela câméra são transformadas em realidade quando flexionadas pela arte e pela missão cívica que justifica o financiamento estatal.

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Formam então, para os britânicos, o campo particular do documentário, em contraste com o horizonte ralo das atualidades ou dos travelogues.

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O nome contemporâneo da forma narrativa "atualidades" é reportagem. O que é uma reportagem e no que ela se distingue de um documentário? Hoje a questão artística ficou para trá . Ninguém mais discute, como se discutia de modo premente no início do século XX, se tal manifestação é arte ou deixa de sê-lo. No documentário, há um espaço mais denso para a expressão do viés autoral, geralmente ausente na reportagem. Pela noção de 'Viés autoral designamos a possibilidade de uma articulação discursiva mais trabàlhada, incluindo a participação de uma equipe de especialistas em som e imagem que possui recursos e condições de explorá-los de forma mais detida. Mas não está aí a diferença central entre reportagem e documentáno. O documentário constitui uma forma narrativa que é geralmente fruída na unidade de uma extensão temporal determinada. Em outras palavras, as vozes que enunciam no documentário pertencem a um conjunto discursivo orgânico que estamos chamando de narrativa. E qual é a unidade da narrativa documentána? Algo muito próximo daquela que chamamos.filme: uma unidade narrativa enun­ ciada numa duração temporal variável, mas una, sendo veiculada ao especta­ dor enquanto unidade. O documentário, portanto, é um filme no modo que possui de veicular suas asserções e no modo pelo qual as asserções articulam­ se enquanto narrativa com começo e fim em si mesma. Mas... e a 'reportagem? Nosso ponto é que a reportagem é uma forma narrativa que nada tem em comum com o.filme, mas se articula predomi­ nantemente dentro de outro formato enunciativo que vamos chamar de programa. O programa é a unidade discursiva de um meio particular, a tele­ visão (mais recentemente começam a ser abertos espaços de programas na internet), com recorte mais espetacular, onde podemos incluir programas de autoritório, programas de entrevistas, transmissões esportivas, mesas redondas, etc. A reportagem é uma narrativa que enuncia as erções sobre o mundo, mas que, diferentemente do documentário, é veiculada dentro de um programa televisivo que chamamos telejornal. Do mesmo modo que a tradição do filme documentário flexiona uma narrativa com imagens/sons, estabelecendo asserções sobre o mundo, a fôrma do telejornal flexiona a narrativa assertiva sobre o mundo no formato programa telejornal. E qual seria a forma da narrativa da reportagem? Embora uma abordagem mais ampla fuja aos objetivos deste ensaio, podemos notar alguns aspectos que permitem distinguir reportagem e documentário.

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Quando veiculada no telejornal, a reportagem articula-se de modo di­ nâmico com o discurso do âncora, ou jornalista(s) que apresenta(m) o pro­ grama, figura ausente do documentário. A enunciação para o espectador também é distinta: na reportagem há a figura do repórter (existe paralelo com a imagem do documç'.ntarista em alguns filmes do cinema verdade), que veicula suas asserções, dialogando com o âncora e com o espectador. O olhar-câmera é uma figura imagética recorrente na reportagem. O te_ lejornal é dominado pela voz do_ âncora na exposição das notícias e por pequenos blocos de asserções sobre os fatos do dia, que podem ou não vir acompanhados de imagens. Há uma estrutura sincopada no telejornal, na qual cada notícia conforma uma unidade em si, sendo ligada à próxima pelo fato mesmo da sucessão (estrutura que o espectador reconhece como sendo do telejornal), mas sem motivação narrativa para tal. O programa telejornal é composto pela sucessão de notícias, sem haver propriamente uma narrativa que articule sua unidade no todo. Ao contrário da reportagem do programa telejornal, o documentário não está vinculado a acontecimentos cotidianos de dimensão social que denominamos notícia. Há casos, no entanto, em que reportagens de telejornais, ou de outros programas televisivos, se aproximam mais da forma enunciativa da tradi­ ção documentária. Reportagens mais amplas, mais distantes da cobertura cotidiana, compostas de diversos episódios, periodicamente são exibidas por certos telejornais. Em 200 l, o Jornal Nacional exibiu uma ampla série de reportagens sobre a fome no Brasil. As reportagens causaram grande repercussão, tendo inclusive promovido a criação de um programa go­ vernamental, o Fome Zero, feito na medida para responder às denúncias veiculadas, no semestre a�terior, em rede nacional. Embora distante, na forma, de um documentário sobre a fome no Brasil, a série de reportagens aproxima-se bastante do campo documentário, principalmente se pensada isoladamente do programa ao qual foi vinculada (e se articularmos seus diferentes episódios em urila unidadeftlmica). Mas... isso teria algum sen­ tido analítico? A série sobre a fome no Brasil exibida no Jornal Nacional so­ mente terá seu entido pleno apreendido ao ser analisada na forma que foi enunciada, conforme sua recepção pelo e para o espectador. E essa forma inclui não só a voz de William Bonner e Fátima Bernardes, enquanto nar­ radores que enunciam abrindo e fechando a breve narrativa, mas também sua veiculação dentro do program·a Jornal Nacional, em si mesmo com forte determinação dL i · f;cado. Podemos então dizer que a série de reporta-

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gens sobre a fome, do Jornal Nacional, é uma forma de enunciar (com ma­ terial imagético/sonoro) asserções sobre a fome no Brasil, que se remete, de modo marginal, à tradição documentária, mas que faz parte do que hoje é a forma de enunciar da reportagem dentro do programa telejornal. Já analisamos em outro texto a veiculação do documentário Falcão: meninos do tráfico no programa Fantástico. 35 Outro caso que podemos explo­ rar, na confluência entre reportagem e documentário, é o Globo R.epórter. Esse programa possui interesse para nós não só pelas questões formais que suscita, mas também por sua dimensão histórica para o documentário brasi­ leiro. Inicialmente sob o nome de Globo Shell (1971/1972), o Globo R.epórter é exibido, a partir agosto de 1973, pela TV Globo. Entre 1973, e 1982 concentra em três pólos (Núcleo de Reportagens Especiais Rio de Janeiro, sob a direção de Paulo Gil Soares; Divisão de Reportagens Especiais São Paulo, sob a coordenação de João Batista de Andrade; e Blirnp Filmes, também em São Paulo) a produção de documentários veiculados sema­ nalmente pela TV Globo.36 Nos primeiros anos de sua existência, o Globo Repórter concentra alguns dos principais nomes da geração que orbita em torno do cinema novo, tanto no Rio como em São Paulo. Eduardo Couti­ nho, Paulo Gil Soares, Walter Lima Jr., João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel, Renato Tapajós, Hermano Penna, Denoy de Oliveira, Sylvio Back estiveram de alguma forma ligados ao programa, seja de modo mais efetivo, trabalhando na emissora, seja através de produções esporádicas, vinculadas, por exemplo, à Blimp Filmes. Eduardo Coutinho é um exemplo de diretor que formou seu estilo no Globo R.epórter, como ele mesmo frisa em entrevistas. Mas... seriam as narrativas do programa Globo Repórter documentá­ rios ou reportagens/ A questão está deslocada e devemos levá-la para longe da morfologia para obter algu ma resposta. Podemos dizer que, em um primeiro momento, de 1973 até 1982, há maior espaço para a dimensão autoral (na época muito ligada a questões políticas imediatas), com o uso da película como suporte fílmico. A partir de 1982, com a utilização do U­ Matic e do suporte vídeo, a produção do programa teria encontrado for­ mas mais efetivas de cercear e controlar o trabalho autoral dos cineastas. O suporte pelícuJ.a, em princípio, dificultaria a supervisão mais próxima, por significar a entrega do produto em uma etapa já mais acabada. A hipótese da progressiva mudança da forma, em função da mudança tecnológica, ainda está para ser verificada. O fato é que, a partir de 1982, e principal-

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mente depois de 1984, a produção documentária do Globo R.epórter deixa progressivamente de lado o formato fílmico e sua unidade, para aproxi­ mar-se, cada vez mais, do formato reportagem, conforme se configura, atualmente, no programa Globo R.epórter, próximo das formas do telejornal. O Globo R.epórter tornou-se hoje um programa de variedades, no formato da reportagem de telejornal, com diferenças nítidas com relação à forma documentária dominante até 1982. Podemos então dizer que a forma do programa Globo R.epórter não flexionou a forma narrativa documentária (mas a veiculou como espécie de mídia neutra) até 1982? É uma questão que está aberta para uma análise mais detalhada . Além da flexão daforma narrativa documentária, pela mídia programa televisivo da Rede Globo, em questões claras como censura (ver, por exemplo, a relação política da emissora com as demandas da ditatura militar), escolha de tema (é a emissora que paga as contas e decide, em úl­ tima instância, o que vai ao ar), escolha de voz over,37 o fato é que perdemos pouco se tirarmos Seis dias de Ouricuri ou Teodorico, o imperador do s�rtão do formato do programa e o exibirmos em unidade fílmica. Embora em outra medida (a medida da mão do produtor no trabalho au_toral de João Batista de Andrade), o mesmo se pode dizer de documentários como Wilsinho Galiléia, 1978, ou Caso norte, 1977, apenas para citar dois exemplos. Reca­ pitulando: a narrativa filme documentário pode ser veiculada, e mesmo pro­ duzida, por �ma televisivo de reportagens como o Globo Repórter. Há, no entanto, formas narrativas particulares a programas jornalísticos (os telejornais), às quais chamamos reportagens, que possuem vínculos mais tênues com a forma narrativa documentária.

A propaganda, a publicidade Mas... este filme não é documentário, é mera propaganda! A mesma argumentação desenvolvida na questão da verdade no documen­ tário pode ser aplicada com relação à propaganda. Tiros em Columbine, para muitos, é mera propaganda antiarmamentista e, portanto, não seria um documentário. Para outros é um documentário que fala a verdade sobre a indústria armamentista americana e o modo de ser de nossos vizinhos ao norte. Já expusemos anteriormente como esse tipo de argumentação nos leva a falácias intransponíveis. A definição do documentário a partir

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do conceito de verdade é um círculo fechado que não nos tira do lugar. Existem asserções falsas e verdadeiras (logicamente falando, por exemplo) e os enunciados da narrativa documentária são compostos por ambas. Es­ tamos definindo documentário como forma imagética-sonora que enuncia asserções, entendidas como documentárias, para o espectador (na medida em que esse espectador as recebe e as define enquanto tais, a partir de indexação social). É nesse sentido que definimos a asserção documentária como descolada da verdade, suposta enquanto entidade lógica i_mpessoal. Sejam verdadeiras ou não as asserções; é o modo assertivo que defrne 0 documentário. O mesmo tipo de raciocínio deve valer para a propaganda. O que para alguns épro-paganda para outros é verdade, e vice-versa.

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Mas... vamos nos deter mais um pouco no quesito pro-paganda para pensarmos a narrativa documentária. O primeiro pensamento sobre o do­ cumentário surge imiscuído na noção de propaganda, sem que isso provo­ que o mais leve remorso de consciência nos documentaristas. Mais uma vez, existe necessidade de analisarmos a tradição documentária dentro de uma dimensão histórica que coloque em perspectiva a análise do contexto ético em que se inserem diferentes modos de representação. Grierson pen­ sa a missão cívica do documentário utilizando-se do conceito de propagan­ da. a ética que norteia o documentário clássico, não há contradição em se fazer propaganda desde que as asserções estejam dentro do campo ideo­ lógico consider�do positivo pelo sujeito que enuncia. Tanto no Ince bra­ sileiro como no documentarismo inglês a função do documentário é fazer propaganda das boas idéias (construir fossas secas, preservar alimentos, promover a cultura popular, divulgar a ciência) ou das boas causas (vender produtos do império britânico, enaltecer sua capacidade produtiva, promo­ ver a educação cívica para a democracia, glorificar as grandes figu ras da história, criar uma identidade nacional). Não existe, portanto, contradição entre proposta documentarista e propaganda dentro do universo dá sico e da ética edttcaúva. Já tardiamente, no final dos anos 1930, Grierson leva a me�ma pro­ posta documentarista que havia desenvolvido na Inglaterra para o Cana­ dá. A criação do ational Film Board, hoje o maior centro produtor de documentários do mundo, tambcm se encontra fortemente marcada pelo discurso griersoniano, que assume a propaganda como base para o docu­ mentário. Um dos principais historiadores do período, Gary Evan , mos­ tra claramente como a empreitada documentarista no Canadá teve Cf)mo

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objetivo primeiro formar uma identidade nacional ainda ausente.38 No mesmo esquema do documentarismo inglês, o Estado investiu pesadamen­ te na formação