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Portuguese Pages 258 [266] Year 2019
Alysson Leandro Mascaro Camilo Onoda Caldas Júlio da Silveira Moreira José Augusto Fontoura Costa Luiz Felipe Brandão Osório
Márcio Morais Brum Moisés Alves Soares Paulo G. Fagundes Visentini Ricardo Prestes Pazello Thomaz Delgado De David
Editora luMEN JuriS rio dE JaNEiro 2019
Copyright © 2019 by Thomaz Delgado de David, Maria Beatriz Oliveira da Silva Categoria: Relações Internacionais Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Diagramação: Rômulo Lentini A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Marxismo, direito e relações internacionais / organizadores Thomaz Delgado de David, Maria Beatriz Oliveira da Silva. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2019. 266 p. ; 23 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-519-1325-3 1. Direito internacional. 2. Relações internacionais. 3. Socialismo. 4. Vulnerabilidade. I. David, Thomaz Delgado de. II. Silva, Maria Beatriz Oliveira da. III. Título. CDD 341 Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927
Apresentação “Mientras Lenin escribía su obra fundamental sobre el imperialismo, en la primavera de 1916, las potencias imperialistas disputaban a sangre y fuego el dominio del mundo”, dizia Eduardo Galeano. Imperialismo é um conceito controverso que abriga diferentes significados no decorrer da história, mas, na sua essência, não foge muito ao que Galeano diz em poucas palavras: é uma disputa a sangue e fogo pelo domínio do mundo travada pelas grandes potências. Da acumulação primitiva ao atual processo de financeirização, o capitalismo se “metamorfoseia” visando a sua expansão e, assim, a própria sobrevivência. Portanto, está no gene do capitalismo a necessidade de avançar fronteiras e internacionalizar-se. Marx atentou para isso mesmo escrevendo em uma época em que o capitalismo ainda estava longe de atingir sua plenitude. No Manifesto de 1848 já assinalava o fato de que o capital metropolitano procura expandir seus mercados por todo o mundo, derrubando muralhas de sociedades até então isoladas. Na trilha de Marx vários autores, à luz do seu tempo e da configuração das relações internacionais de cada época, trataram (e tratam) da questão do imperialismo, o que fez com que, atualmente, apontem-se distinções no que se convencionou chamar de “imperialismo clássico” e de “novo imperialismo”. No entanto, é importante remarcar que, se a retórica dita “pós-moderna” retirou por longo tempo o tema do imperialismo de pauta, o mesmo não fizeram os marxistas, tanto no campo acadêmico, como no das lutas políticas. Isso porque, na realidade material, mesmo que o imperialismo também tenha sofrido metamorfoses (conformadas às do capitalismo) ele nunca deixou de existir e, mais do que isso, em momentos de crise (como a que atravessamos desde 2008, com tendência a aprofundar-se) uma das respostas do capitalismo é o recrudescimento do imperialismo. Para tratar deste tema com a devida competência e acuidade é que estamos organizando esta obra. Escrevo “estamos organizando” no plural, mas, a bem da verdade, deveria dizer no singular: que o Thomaz Delgado De David está organizando. O Thomaz – que não só organiza a obra como escreve um dos capítulos – é um dos integrantes do Núcleo de Direito e Marxismo da UFSM (NUDMARX) e realiza suas pesquisas no campo do Direito e das Relações Internacionais. Foi dele a iniciativa e o trabalho de organização desta obra coletiva que traz os “melhores
entre os melhores” autores que vivificam o legado marxista na reflexão sobre o Direito Internacional e as Relações Internacionais na atual quadra do capitalismo. Assim, juntamente ao Thomaz, agradeço a honra de podermos contar nesta obra com um elenco de autores de tamanha envergadura como: Alysson Leandro Mascaro, Camilo Onoda Caldas, Júlio da Silveira Moreira, José Augusto Fontoura Costa, Luiz Felipe Brandão Osório, Márcio Morais Brum, Moisés Alves Soares, Paulo G. Fagundes Visentini e Ricardo Prestes Pazello. Boa leitura e boa luta rumo a um mundo mais justo! Maria Beatriz Oliveira da Silva (Bia) Coordenadora do NUDMARX
Sumário Para uma Concepção Marxista das Relações Internacionais: a Contribuição do Materialismo Histórico........................................................ 1 Paulo G. Fagundes Visentini Marxismo e Relações Internacionais: Duas Faces da Mesma Moeda............. 23 Luiz Felipe Brandão Osório Relações Internacionais, Conflitos Nacionais e Vulnerabilidade Social: uma Análise a partir da Teoria da Derivação do Estado................................. 51 Camilo Onoda Caldas Reflexão sobre a Abordagem Crítica do Direito Internacional....................... 73 José Augusto Fontoura Costa Marxismo e Direito Internacional: de Pachukanis a Miéville......................... 93 Luiz Felipe Brandão Osório Formas e Estrutura do Internacional: Capitalismo, Direito Internacional e Relações Internacionais............................................117 Alysson Leandro Mascaro O Direito Internacional e a Dimensão Jurídica do Imperialismo ..................131 Thomaz Delgado De David Direito Internacional e Marxismo: Atualizações............................................167 Júlio da Silveira Moreira Pachukanis em Caracas: o Direito Internacional entre a Forma Jurídica e a Guerra (Neo)Colonial......................................... 201 Ricardo Prestes Pazello Moisés Alves Soares Imperialismo via Espoliação e Novo Constitucionalismo Latino-Americano: Contradições e Desafios................................................. 243 Márcio Morais Brum
Para uma Concepção Marxista das Relações Internacionais: a Contribuição do Materialismo Histórico Paulo G. Fagundes Visentini1 O marxismo continua em evolução como abordagem teórica, [e] o materialismo histórico é uma teoria geral abrangente da ação política, social e econômica capaz de considerar todos os campos da ação social. [...] Muitos [dos seus] aspectos conceituais contêm potencial para as relações internacionais e podem nelas ser aplicados, como já o foram em outras teorias. (Fred Halliday)
Introdução O campo de estudos das Relações Internacionais ainda não está consolidado, e é marcado por um equivocado debate “bipolar” (realismo x liberalismo), o qual, implicitamente, nega a validade do paradigma marxista. A dimensão histórica é deliberadamente excluída da maioria das análises da área, que tem uma tendência claramente instrumental, geralmente baseada na Ciência Política. Ou seja, o estudo das Relações Internacionais possui um caráter conservador e institucional, voltado ao Status Quo. Por outro lado, há uma confusão entre os acadêmicos críticos (e seus detratores) sobre o que é marxismo. Em diversos congressos muitos colegas experientes se frustram porque, sob tal rubrica, aparecem simplesmente enfoques esquerdistas militantes, que pouco ou nada têm a ver com o marxismo. Da mesma forma, de um lado e de outro do espectro ideológico, há uma confusão entre marxismo e socialismo. Com a queda dos regimes socialistas 1
Historiador, Professor Titular de Relações Internacionais na UFRGS. Pós-Doutorado em RI pela London School of Economics. E-mail: [email protected]
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de cunho soviético, diversos estudiosos afirmaram que o marxismo já não tinha mais relevância teórica (Sic!). Isso, em plena globalização... Muitos acadêmicos, inclusive, negam que haja uma abordagem marxista das Relações Internacionais. Mas ela existe, ainda que de forma encoberta, pois a censura e a autocensura são uma realidade e possuem múltiplas formas. A magnífica obra de Eric Hobsbawm, classificada como “História Internacional”, tem como fio condutor uma análise mundial de base materialista histórica, como ele mesmo admitiu. Nesse capítulo analisa-se a contribuição do materialismo histórico para a configuração de uma concepção marxista das Relações Internacionais (estabelecendo um debate “triangular”), com base na obra de Fred Halliday, orientador do meu Pós-Doutorado. Além de uma abordagem geral, um destaque é conferido a dois temas dentro do marxismo, o das Revoluções e o da Questão Nacional, sobre os quais já desenvolvemos trabalhos anteriores.
1. A área de Relações Internacionais: realismo x “liberalismo”? Como campo de estudo acadêmico específico, as Relações Internacionais surgiram após a Primeira Guerra Mundial, como ferramenta de análise e de formulação política, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Era o mundo que emergia da Grande Guerra, da Revolução Soviética e da jovem (e pouco experiente) potência norte-americana, que estava substituindo uma Europa dilacerada. Mas a reflexão sobre as relações entre povos e entre Estados, a Guerra e a Paz, bem como as conexões econômico-culturais mundiais não eram algo novo. A seguir, uma reflexão original sobre as “Escolas” de RI. Jacques Huntzinger (1987), ao analisar os autores clássicos, considera que Carl Von Clausewitz, Francisco de Vitória e Karl Marx representam os três grandes paradigmas das relações internacionais. As diversas correntes retratam as problemáticas e os momentos históricos de sua formação, refletindo ângulos de abordagem que não são completamente excludentes. Neste sentido, ortodoxia e ecletismo teórico são dois extremos a evitar, bem como a manipulação política prescritiva e normativa das teorias, as quais constituem, essencialmente, simplificações para a compreensão de uma realidade complexa demais para ser apreendida em todas as suas dimensões. 2
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O general prussiano Clausewitz, junto com Tucídides, Maquiavel, Hobbes, Vattel, Hume, os teóricos do Equilíbrio Europeu, Rousseau, Espinosa e os adeptos do nacionalismo europeu do século XIX representam o paradigma clássico das relações internacionais (segundo a visão francesa), também denominado realismo (na perspectiva anglo-saxônica). Esta corrente considera o sistema internacional como sendo total ou parcialmente anárquico, tendo o Estado como ator fundamental. Assim, o realismo enfatiza as relações de conflito e poder entre atores estatais. A estes, podemos acrescentar pensadores realistas do século XX como Edward Carr (Vinte anos de crise), Raymond Aron (Paz e Guerra entre as nações) e Hans Morgenthau (A política entre as nações). Esta corrente abriga, além do realismo clássico, o neorrealismo, as teorias da estabilidade hegemônica e a teoria dos jogos. O padre dominicano de Salamanca, Francisco de Vitória, juntamente com o estoicismo, Cícero, o cristianismo medieval, o jusnaturalismo do século XVI, Kant e o cosmopolitismo do século XVIII representam um paradigma idealista, o qual enfatiza a existência de uma comunidade internacional da societas inter gentes, ou comunidade universal do gênero humano. Esta corrente, no mundo anglo-saxônico, também é chamada de liberalismo, contendo ainda o liberal-institucionalismo, neoliberalismo, funcionalismo, teorias da integração e o construtivismo. Keohane, Klinderberg e Joseph Nye são acadêmicos contemporâneos ligados à escola do liberalismo/idealismo, a qual tem como base as relações de cooperação e ética, dentro de uma estrutura essencialmente “transnacional”. Importante ressaltar que, filosoficamente, o liberalismo é contraditório com a visão de matriz cristã, o que denota um certo caráter artificial da visão “bipolar” das teorias de Relações Internacionais. Marx e Engels, da mesma forma que os jacobinos, Fichte, Hegel, Hobson, Hilferding, Lênin, Bukarin e V. P. Potemkin, enfocam as noções de imperialismo econômico, as clivagens Norte/Sul e centro/periferia, bem como as teorias da dependência e do sistema mundial. Em termos contemporâneos e estritamente acadêmicos, podemos acrescentar os nomes de Ekkehart Krippendorff, Fred Halliday, Giovanni Arrighi, Immanuel Wallerstein, Justin Rosenberg, Ellen Wood, Benno Teschke e Samir Amin como internacionalistas de inspiração marxista. Embora o marxismo não tenha estruturado uma teoria formal das relações internacionais, o materialismo histórico permite fundamentar a noção de economia e de dominação no plano internacional, dentro de uma perspectiva que enfatiza os macroprocessos de evolução, transformação e ruptura. 3
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É importante ressaltar que cada pensador escreve não apenas expondo abstratamente suas ideias, mas no contexto do debate da época. Assim, como Marx argumentava a favor da importância dos fatores materiais na vida social e do processo histórico, ele teve de escrever muito sobre a dinâmica das forças econômicas, porque era algo desconsiderado nas ciências da época. Não se trata, todavia, de um “determinismo econômico nem histórico”, como o conjunto da teoria bem demonstra, mas de uma necessidade intelectual do seu tempo. Ele também escreveu obras importantes sobre filosofia e política. Contudo, embora fosse um pensador notável, era um homem mortal e do seu tempo. Teve insights importantes sobre conjunturas e eventos específicos, algumas ideias datadas e outras que se mostraram equivocadas, ao lado de uma formulação geral inovadora, a qual mantém sua capacidade de explicar o mundo. Marx contou com a colaboração de seu parceiro Friedrich Engels, que escreveu menos, mas sempre debateu, auxiliou e explorou alguns temas específicos. Mas fizeram tudo isso fora da academia, da qual o marxismo era excluído.
2. Conceitos do materialismo histórico aplicáveis às Relações Internacionais A obra de Marx e Engels desenvolveu uma teoria geral que possui interação com todos os campos de estudo das humanidades, bem como uma astúcia tática de bons observadores que eram. Todavia, não desenvolveram ferramentas específicas para um campo que, a bem da verdade, nem estava constituído como tal (as RI). O marxismo também é acusado de ser uma concepção apenas com fins políticos, como promover a Revolução e implantar regimes socialistas (caricaturados como “ditadura do proletariado”). Mas essa é uma acusação que também se poderia fazer ao Realismo, que esteve associado ao racismo, ao darwinismo social e à política de grande potência na passagem do século XIX ao XX. E nem por isso as portas da academia foram fechadas a ele. A área de Relações Internacionais, embora utilize ferramentas teóricas e metodológicas de diversas disciplinas, paradoxalmente não menciona o capitalismo, que propicia a maior parte das conexões do sistema mundial e embasa seus conflitos. Como argumenta Halliday (2007), a Guerra Fria é reduzida pelo Realismo a um confronto estratégico, desconsiderando a dimensão socioeconô4
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mica, por exemplo. E todas as teorias acabam embasando ações prescritivas, com o marxismo inspirando as Internacionais Social Democrata e Comunista e o liberalismo os 14 Pontos do Presidente Wilson e a Liga das Nações, que consistia em um organismo de imposição da vontade dos vencedores da I Guerra Mundial. Já no tocante ao debate entre a concepção centrada no Estado e a apoiada em um sistema mundial, Marx e Engels inovaram introduzindo a noção de classe, que conecta as duas abordagens, como se verá adiante. A ideia de que o marxismo menosprezava o papel do Estado e previa seu fim é reducionista, pois ele possui dois níveis: uma estrutura de dominação (de classe) e um locus do convívio em sociedade. O que Marx argumentou foi que, em algum momento do devir histórico, a primeira feneceria (pela crescente interdependência capitalista ou pela ruptura revolucionária socialista), mas a segunda permaneceria. Mas as classes e a luta entre elas (ou entre segmentos nacionais de uma mesma classe) estão presentes no sistema mundial. Marx falava em Weltklasse, Weltpartei e Weltrevolution. A internacionalização do interesse de classe, todavia, não diz respeito apenas ao proletariado, porque a burguesia é ainda mais articulada no plano transnacional. Dentro do conjunto da obra de Marx o que articula suas partes e confere à teoria um significado transcendente é o Materialismo Histórico. A partir de uma perspectiva dialética ele, inclusive, desarticula a narrativa esquerdista vulgar, tão em voga atualmente. Por exemplo, Marx e Lenin reconheciam que o que veio a ser chamado de imperialismo possui dois lados intimamente associados, um destrutivo e outro “construtivo”. Ele desarticulava e até destruía formações sociais pré-capitalistas, em relação às quais eles não nutriam qualquer admiração, enquanto expandiam a modernidade (então) revolucionária do capitalismo. As contradições de clãs ou feudais e imperiais de velho tipo davam lugar a antagonismos de classe, que serviram de base à libertação nacional anticolonial no século XX, ainda que ambos lamentassem os custos humanos e efeitos éticos deploráveis da dominação Ocidental da periferia. “A História não é o reino da felicidade”, como dizia Hegel. Aliás, a obra Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de V. I. Lenin, constitui uma valiosa investigação científica das razões pelas quais as grandes potências capitalistas desencadearam uma guerra mundial fratricida entre si em 1914. Ao analisar os fundamentos econômicos internacionais do conflito, ele superou as explicações essencialmente diplomáticas e militaristas ou personalistas e ideológicas. Os Generais sempre desejaram a guerra, os Imperadores (to5
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dos primos) buscavam continuamente ampliar seu poder, os Diplomatas sempre articularam alianças e o pangermanismo e o pan-eslavismo há décadas estavam em atrito geopolítico. Evidentemente eles constituíam um caldo de cultura que “lubrificava” a engrenagem do confronto, mas o elemento catalizador foi o potencial destrutivo existente na lógica econômica competitiva imperialista. Segundo Fred Halliday (2007, p. 70), “a tentativa do marxismo no período de 1900-1920 de teorizar o sistema internacional em torno do conceito de ‘imperialismo’, entendido como rivalidade estratégica interestatal, é uma das mais ambiciosas e criativas jamais feita antes”. Sem dúvida a dupla dinâmica da teorização e da ação política conformaram um tom dogmático, intolerante e militante ao marxismo, além de servir para legitimar movimentos e regimes socialistas. Mas mesmo a partir de um marxismo “ortodoxo e oficial” de regimes comunistas, houve contribuições sólidas e complexas para a teoria das Relações Internacionais. As noções de correlação de forças, a qual representa um avanço em relação a de Equilíbrio de Poder (no contexto da Guerra Fria), e de anti-imperialismo, que embasa o movimento de descolonização, são exemplos concretos. Já nos anos 1970 o marxismo logrou ocupar certo espaço na academia (como “estruturalismo”), em temas como o Estado, a guerra, o conflito internacional, a violência, a dimensão econômica transnacional e o sistema mundial. Nesse contexto merecem destaque os estudos de Fred Halliday, Gabriel Kolko, Stephen Gill, Kees van der Pijl, Eric Wolf, Ekkehart Krippendorff, Perry Anderson, Eric Hobsbawm e Samir Amin, entre outros. Logo foram seguidos pelos trabalhos de Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi, Justin Rosenberg, Ellen Wood e Benno Teschke. Apesar das críticas que sofreu, classificado como “circulacionista” por outros marxistas, a noção de Sistema Mundo de Wallerstein representa um avanço qualitativo em relação ao conceito de Sociedade Internacional, pois demonstra a existência de uma hierarquia de poder (com seu potencial conflitivo) e as relações centro-periferia. Quais são as categorias analíticas do paradigma Materialista Histórico e em que contribuiriam para o estudo das Relações Internacionais? Em primeiro lugar existe a dimensão material, que são os fenômenos socioeconômicos ligados à sobrevivência e à reprodução das sociedades humanas. As populações precisam se organizar para produzir os bens necessários à sua manutenção, em contínuo conflito com outros grupos na disputa por bens escassos. Por mais que eles sejam condicionados por sistemas de poder político e culturais, trata-se de uma 6
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necessidade básica, que o capitalismo transformou num movimento sistêmico, de dimensões planetárias. Para Halliday, “as relações internacionais são o estudo das relações entre as formações sociais e não o das relações entre os Estados” (2007, p. 74). Já Luis Fernandes (2018, p. 415) avança a argumentação afirmando que as novas relações sociais gestadas [pelo] processo [de construção do capitalismo no noroeste da Europa] constituíram o elo institucional central que articula o mundo moderno: a existência separada das esferas políticas e econômicas autônomas, tanto em nível doméstico como internacional. É esta separação que permite e viabiliza, via uma estrutura legal de direitos de propriedade, fluxos de investimento para além das fronteiras nacionais.
Em segundo lugar, há o processo histórico como teoria e como construção social. Além de indicar a existência de uma “direção evolutiva”, Marx mencionou que “a tradição das gerações mortas paira como um pesadelo sobre a mente dos vivos”. Ou seja, a história elucida o movimento geral do fazer-se social e o passado condiciona as ações do presente e projeta possíveis cenários para o futuro. Esse constitui um ponto em que sobressai a deficiência teórica das demais correntes da RI: a quase completa ausência da história, substituída por “modelos”, muitos dos quais se assemelham às escolas econômicas. A história auxilia, igualmente, a compreender a permanência da questão nacional, em suas dimensões psicológico-culturais e de percepção estratégica das elites dirigentes, mesmo sob o capitalismo globalizado. O brilhante acadêmico e diplomata da Romênia de Ceaucescu, Silviu Brucan, escreveu uma obra importante, mas pouco estudada, em que analisa a questão nacional dentro do marxismo2. Em terceiro lugar, há a questão de classe social na política nacional e mundial. Segundo Halliday (2007, p. 77): Internacionalmente [as classes] agem para aliar-se a grupos similares, quando isso lhes é benéfico, e para competir, por meios pacíficos ou militares, quando se prefere a rivalidade. O conflito entre classes, a ‘luta de classes’, ocorre, portanto, em dois níveis: entre grupos em diferentes posições na escala socioeconômica e entre grupos de posição equivalente. 2
Brucan, Silviu, La disolución del poder: sociologia de las relaciones internacionales y políticas. Mexico: Siglo XXI, 1974 (Ed. Norte-americana pela Alfred A. Knopf, 1971). Ele foi professor universitário na Universidade de Bucareste, embaixador romeno nos Estados Unidos e na ONU, atuou na UNESCO e concluiu esse livro no Centro para Estudo das Instituições Democráticas, em Santa Bárbara, Califórnia. Finalmente, participou da Frente de Salvação Nacional, que derrubou Ceaucescu.
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As classes dominantes, especialmente a moderna burguesia, age através do Estado (nacional) para competir com outras equivalentes, bem como buscam certo grau de coordenação global (muito mais eficazes que as de esquerda). Isto se dá através de organizações institucionais ou informais como o Clube de Roma, a Comissão Trilateral, o G-7, o Fórum Econômico Mundial de Davos e a União Europeia, por exemplo. Mas elas também utilizam a dimensão internacional do sistema capitalista como forma de manter sua liderança dentro do seu próprio Estado-Nação. Ou seja, o conceito é complexo e possui alto grau de capacidade explicativa no campo das Relações Internacionais. Por fim, em quarto lugar, há o conceito de Conflito e suas formas extremas, a Revolução e a Guerra. Os estudos do campo de Segurança e Defesa, que pode ser considerada uma área dentro das Relações Internacionais, possuem preocupantes carências teóricas e metodológicas por ignorarem as contribuições do Materialismo Histórico. Nesse contexto, a Guerra seria um conflito internacional entre Estados, liderados por duas classes similares ou em posição de domínio nacional equivalente (“a continuação da política por outros meios”, como afirmou Clausewitz). Já a Revolução seria um conflito entre classes antagônicas dentro de um Estado, mas com inevitável projeção internacional (podendo se transformar em Guerra). Mas é necessário diferenciar Revolução Política (conquista do poder, de curto prazo) de Revolução Social (processo de transformação estrutural, de longo prazo). O Materialismo Histórico considera que as contradições materiais (e a desigualdade) tornam a Guerra e a Revolução inevitáveis, constituindo algo racionalmente explicável (apesar de suas formas brutais). Segundo Brucan (1974, p. 132), “assim como a desigualdade social é a raiz do político na sociedade, a desigualdade nacional é a raiz da política na cena mundial”.
3. A questão das revoluções e da nação 3.1 Revoluções e Relações Internacionais As revoluções sempre estão relacionadas a fatores tanto internos quanto externos e, na sequência de sua concretização, necessariamente geram um impacto internacional na medida em que afetam regras internas nas quais a ordem (capitalista) internacional se baseia. “As Revoluções são eventos internacionais
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em suas causas e efeitos”, como lembra Fred Halliday (2007, p. 148). Neste sentido, inspiram forças políticas de outros países, tanto simpatizantes como adversárias. Normalmente as revoluções dão origem a guerras externas, geralmente associadas a guerras civis internas ou são delas resultantes. Assim ocorreu na Rússia (cuja Revolução aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial) e na China, países de grande relevância na ordem internacional. Nelas, ocorreram invasões externas, guerra civil e outros efeitos mundiais, como a criação da III Internacional (Comunista) e, posteriormente, a existência mais fluída do Movimento Comunista Internacional. Mas também foi o caso da Coreia, do Vietnã, de Cuba e da Nicarágua, nações menores da periferia do sistema mundial. As duas primeiras, apesar disso, adquiriram significado estratégico por estarem na fronteira da China, zona onde o socialismo não estava consolidado. Os dois últimos casos implicaram alterações dentro de área de influência direta dos Estados Unidos, caso de Cuba, que também teve grande atuação mundial no Terceiro Mundo, sobretudo através do Movimento dos Países Não Alinhados. Já a Coreia do Norte encontrava-se na fronteira chinesa e ao lado do Japão, zona estratégica para Washington, e a guerra de 1950-1951 teve repercussão global. No mundo islâmico e no continente africano, por outro lado, esse aspecto revestiu-se de maior complexidade, dado que a construção do Estado nacional ainda se encontrava em fase inicial e, no primeiro caso, estava localizado na zona geopolítica do petróleo. No caso africano, igualmente, as revoluções ocorreram durante a fase inicial de formação do Estado-nação, na esteira do colapso do aparato burocrático e repressivo colonial, com a exceção da Etiópia, onde ocorreu a conquista do aparelho estatal, que foi transformado e reforçado. Dessa maneira, as revoluções africanas alteraram o precário equilíbrio que ia se estabelecendo entre os jovens e frágeis Estados, gerando amplo efeito desestabilizador. Já a Revolução Iraniana teve características distintas, pois a corrente vitoriosa não se apoiou numa visão marxista, representando um movimento nacionalista, anti-imperialista e uma reação cultural ao Ocidente. Mas seu impacto internacional foi semelhante. Academicamente, as Relações Internacionais iniciaram como estudo da guerra como ato agressivo racional e deliberado, e não como a internacionalização de um conflito social. A própria Carta da ONU se preocupa com a ordem mundial como se ela fosse separada da situação interna dos Estados. Na
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mesma linha, a Ciência Política anglo-americana considera a Revolução como uma quebra de processos regulares. Até a publicação da obra de Theda Skocpol (que de certa forma atualiza o clássico de Barrington Moore Jr. As origens sociais da ditadura e da democracia), as Revoluções eram encaradas como fenômenos internos. Jack Goldstone, por sua vez, enfatizou que fatores internacionais (tais como pressões econômico-fiscais e política de alianças desestabilizadoras) enfraqueciam o Estado e provocavam revoluções. Realistas e neorrealistas como Kenneth Waltz, ao não relacionarem as dimensões interna e externa, ignoram que a maioria das alianças visa impedir as revoluções dentro de Estados membros. Certamente as Revoluções não podem escapar ao sistema previamente existente, mas elas forçam sua mudança e representam momentos de transição para um mundo novo, embora as Relações Internacionais as percebam como “colapso” (ou ruptura negativa, antissistêmica). Cabe destacar que toda a revolução tenta internacionalizar-se, da mesma forma que a contrarrevolução (que busca homogeneidade), geralmente sem sucesso. Assim, os limites da “exportação da Revolução” (ou da contrarrevolução), geram tréguas, redução da retórica ideológica e uma postura mais diplomática. Todavia, isso não significa que as revoluções tenham sido “socializadas”, pois, segundo Halliday (1999, p. 187), “enquanto suas ordens internas pós-revolucionárias permanecerem intactas, elas continuam a representar um desafio ao sistema de outros Estados”. Para a sociologia histórica, o “internacional” criou o Estado, e não o contrário, e no tocante aos processos revolucionários aqui mencionados em sua dimensão internacional, cabe ressaltar que guerras geram revoluções e vice-versa. Nos casos analisados, por exemplo, percebe-se que as revoluções dos anos 1970 levaram a guerras convencionais na periferia (com envolvimento de grandes potências), para as quais a comunidade internacional não estava preparada. Além disso, no plano regional o maior impacto não é tanto a ação deliberada, mas o exemplo, que serve de catalisador contra a ordem estabelecida. Mesmo o marxismo acadêmico, que supostamente poderia explicar as revoluções que a teoria enseja, possui limitações explicativas. Uma delas é ter poucos elementos para analisar as diferenças entre as várias revoluções e a persistência da questão nacional. Uma exceção se encontra em Brucan (1974). Outro é que a ênfase nos elementos “infraestruturais” os conduz a uma análise que privilegia as relações capitalistas sistêmicas em escala global. Paradoxalmente,
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até mesmo alguns renomados marxistas dão pouca atenção às possibilidades de revoluções. Wallerstein, por exemplo, aposta nos chamados movimentos sociais antissistêmicos e Arrighi navega pelos ciclos econômicos sem encontrar-se com as revoluções nem lidar adequadamente com Estados pós-revolucionários como a URSS e a China. Pensam o sistema internacional como um sistema socioeconômico global (capitalista) sobreposto a estruturas políticas secundárias. Metodologicamente, Halliday sugere quatro instrumentos que podem ser utilizadas como elementos de pesquisa: a) causa: até que ponto o “internacional” produz a revolução; b) política externa: como os Estados Revolucionários conduzem as relações com outras nações; c) respostas: qual é a reação dos outros Estados; d) formação: como num período mais longo os fatores internacionais e do sistema mundial constrangem o desenvolvimento interno pós-revolucionário dos Estados e condicionam sua evolução política, social e econômica. Esses elementos representam, igualmente, uma ferramenta indispensável para o estudo do impacto de tais rupturas no sistema internacional, ou na ordem mundial. Sobre tal realidade a área dos estudos de Defesa deve buscar elementos analíticos e teóricos para se ajustar a novas situações, pois as revoluções não apenas perturbam a ordem mundial: elas a transformam. Como as Forças Armadas são partes constitutivas do Estado, encarregadas da sua proteção, e como os estudos de Defesa tendem a estar linearmente ligados à ordem vigente, muitas vezes perdem a dimensão da transformação do ambiente em que devem operar. Já os grandes analistas e estadistas estudaram a revolução não sob um prisma político-ideológico, mas como um fenômeno político de luta pelo poder. Assim, conseguem compreender e formular estratégias adequadas à realidade.
3.2 Revoluções e Regimes de orientação marxista do século XX O socialismo de orientação marxista logrou, ao longo do século XX, impulsionar um conjunto de revoluções vitoriosas em sucessivas ondas. A primeira delas teve lugar na esteira da Primeira Guerra Mundial, com o triunfo da Revolução Russa e a construção do socialismo na URSS. A Revolução na Mongólia, por circunstâncias particulares, fez parte desse período. A segunda, decorrente dos movimentos antifascistas e dos resultados da Segunda Guerra Mundial, afetou o 11
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Leste europeu, tanto através das “revoluções pelo alto” apoiadas por Moscou, que constituiriam as Democracias Populares, quanto como por meio das revoluções autônomas da Iugoslávia e da Albânia. É importante ressaltar que países como a Alemanha, a Hungria, a Tchecoslováquia e a Bulgária protagonizaram, no final da Guerra (1918-1923), revoluções e até efêmeros regimes socialistas, com a esquerda sendo, posteriormente, derrotada, às vezes por intervenção externa. A terceira, que vinha se desenvolvendo paralelamente à anterior, teve como epicentro a Revolução Chinesa, iniciada já na década de 1920, caracterizada pela questão camponesa. Após um quarto de século de guerrilhas e guerras, a nação mais populosa do planeta tornou-se um regime socialista. A Revolução Coreana e a primeira etapa da Indochinesa fazem parte dessa fase. Essas revoluções marxistas e regimes engendrados na primeira metade do século XX ocorreram “na periferia do centro”. Isso porque as potências capitalistas industriais que dominavam o centro do sistema entraram em conflito aberto (corrida imperialista, Primeira e Segunda Guerra Mundiais), enquanto lutavam por redefinir o sistema mundial e, dentro dele, a posição hegemônica. Assim, foi possível a vitória de duas revoluções e regimes estruturantes de nova realidade mundial, a soviética e a chinesa, que se encontravam na periferia do espaço geopolítico afetado pela gigantesca confrontação e transformação, bem como de alguns países membros. Finalmente, na quarta e última, o movimento de descolonização e o nacionalismo do Terceiro Mundo protagonizaram o triunfo de diversas revoluções de orientação socialista, como a cubana, a vietnamita, a afegã, a sul-iemenita e as africanas dos anos 1970. Elas ocorreram na segunda metade do século XX “no centro da periferia”, isto é, na região meridional do planeta ainda não industrializada, onde ocorria a expansão do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo (Westad 2007; Davis, 1985). Dentre as referidas, apesar dos limitados recursos, duas acabaram se tornando paradigmáticas e tendo efeitos sistêmicos por todo o mundo, a cubana e a vietnamita. Evidentemente, elas estiveram ligadas e dependeram das duas grandes revoluções fundacionais, mas desenvolveram uma dinâmica própria. O caso da Revolução Iraniana pode ser enquadrado nessa categoria, embora seu desdobramento tenha sido diferente como projeto pós-revolucionário. De qualquer forma, a “islamização” do processo revolucionário não anula sua base republicana, modernizadora, anti-imperialista (mas não anticapitalista) e internacionalista. Também nessa fase se encontram os casos da Argélia e de outras revoluções dos anos 1950-1960. 12
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3.3 A Questão Nacional em perspectiva Marx e Engels, numa época marcada pelo domínio do pensamento metafísico na ciência, gastaram a maior parte de suas energias tentando demonstrar a relevância de fatores materiais como a economia e as relações sociais, como foi visto. Portanto, seus estudos se dedicaram menos a aprofundar aspectos políticos, em particular a ideia de nação. Todavia, forjaram um instrumento poderoso para esse estudo, a teoria do Materialismo Histórico, onde está presente a dimensão política e nacional. De particular relevância é o conceito de Formação Econômico-Social, que confere materialidade à abstração do Modo de Produção. O Materialismo Histórico e algumas outras escolas de pensamento destacam o caráter político da formação das nações, a partir do desenvolvimento do capitalismo e da formação dos Estados que o acompanhou. Até o século XVIII a Europa era constituída por Estados Dinásticos, e não nacionais. Mas os da Europa Ocidental já impunham uma língua oficial e um governo cada vez mais centralizado. Foi a Revolução Francesa que lançou as bases da ideia de nação, como comunidade dos cidadãos unidos por uma ideologia e um conjunto de instituições políticas, noção que causava pânico nas monarquias plurinacionais absolutistas sob controle de um soberano dinástico. Ao lado da causa que unia a maioria dos cidadãos de uma nação, que construía um Estado moderno, havia o avanço do capitalismo industrial, que necessitava um mercado unificado e integrado em termos de instituições, unidades de pesos e medidas, impostos e legislação. Mas a relação entre capitalismo (internacional) e Estado Nacional é complexa e possui uma contradição dialética. Por que o capital, que podia se deslocar para as regiões onde poderia se reproduzir de forma mais lucrativa, continuava a conviver com Estados-Nação? O nível diferenciado de desenvolvimento permitia ao capital explorar as vantagens dessa situação, pois enquanto se movia com relativa liberdade, o Estado representava um poder “fixo”, responsável pelo território e sua população, como demonstra Giovanni Arrighi em O longo século XX. Assim, quando o capital se deslocava para outras regiões, a nação abandonada retrocedia economicamente, como aconteceu com os países ibéricos e com a Holanda, quando sobrepujados pela Inglaterra. E quando havia crises, sempre era possível isolá-las dentro de certas fronteiras, além dos Estados serem responsáveis pela proteção dos seus capitalistas contra adversários nacionais ou de classe. 13
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3.4 A Questão Nacional no Sul Geopolítico Na Europa Oriental, onde o capitalismo industrial penetrou nos Impérios Dinásticos Multinacionais quase um século depois, a Questão Nacional assumiu a forma de um separatismo micronacionalista. Isso era um problema, pois não havia uma fronteira definida entre os diversos povos. Os teóricos marxistas austríacos propuseram soluções que, historicamente, falharam, com o desmembramento do Império dos Habsburgos após a I Guerra Mundial. Partindo dos estudos do austríaco Otto Bauer, Josef Stalin escreveu O Marxismo e a questão nacional e colonial, para defender as teses bolcheviques. Como tipo ideal, ele considerou que a nação possuía cinco características constitutivas: 1) uma comunidade estável e permanente; 2) uma linguagem comum; 3) um território próprio; 4) coesão econômica; e 5) um caráter coletivo. Todavia, como modelo teórico-abstrato, concretamente uma nação não necessariamente teria todos esses elementos, ou alguns deles poderiam ser superficiais. E assim, a Revolução Soviética criou o que foi um dos sistemas mais bem-sucedidos da questão nacional. As nacionalidades floresceram durante o período soviético, ao contrário dos quase totalmente exterminados indígenas norte-americanos ou australianos, por exemplo. O imperialismo do final do século XIX, por sua vez, levou à partilha do mundo, com a ocupação direta ou domínio indireto das regiões periféricas do Terceiro Mundo. Através dele antigas civilizações foram dominadas e outros povos de menor densidade civilizacional foram desenraizados ou até quase exterminados. Mas, como Marx lembrou, a expansão brutal do capitalismo, além de explorar e oprimir, levava as bases da modernidade econômica e política à periferia, substituindo as contradições de clãs pelas de classe. Setenta anos depois, o Sul do planeta se emancipava politicamente, conformando mais de uma centena de novos Estados que mudaram o perfil das ONU, enquanto (re) construíam suas nações. Os regimes marxistas implantados no Terceiro Mundo tiveram que construir um novo Estado (com suas tarefas econômicas e de defesa) e a nação ao mesmo tempo. E a vitória da luta de libertação fez com que a consolidação dos laços de uma população diversa se baseasse na experiência libertadora. Ao “colocar a China de pé”, o Partido Comunista ganhou o apoio de milhões de pessoas que não eram comunistas ou não sabiam o que isso significava, assim como 14
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em diversos outros países que lutaram contra o colonialismo. Uma espécie de luta contra a desigualdade em escala internacional, em que as nações pobres e oprimidas representam um “proletariado”.
3.5 Nota sobre o fim da União Soviética: colapso da nação? Um dado importante em relação à construção do Socialismo num Só País, é que a transformação social revolucionaria necessitava de uma base de poder nacional. Stalin teve que adaptar seu modelo geral à realidade histórica e geopolítica da Revolução Soviética. A ilusão de que outras revoluções poderiam simplesmente se agregar a ela, era fruto de um entusiasmo. Mesmo sob o socialismo a Questão Nacional se mostrou uma força que condicionava as transformações. Assim, cada processo revolucionário teve a sua “personalidade” nacional própria. A Revolução não podia ser “exportada” porque o capitalismo se baseia num Desenvolvimento Desigual e Combinado. A Revolução Soviética era, também, russa (isto é, de Todas as Rússias), mas outras nações não estavam maduras para a ruptura. O modelo federal da URSS resultou de um projeto misto de compromisso entre as concepções de Lenin e as de Stalin, que divergiram publicamente. O primeiro desejava criar uma União das Repúblicas Socialistas da Europa e da Ásia, a qual as novas Revoluções poderiam aderir (mas será que a China de Mao aceitaria que sua capital fosse em Moscou?). Stalin criticava esse modelo, pois carecia de um centro histórico aglutinador. Preferia uma estrutura de autonomias nacionais dentro de uma Rússia Socialista Soviética, mas teve que ceder e o resultado foi uma adaptação do que Lenin desejava, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Todavia, vale notar que a decisão sobre quais seriam as Repúblicas Federadas, as Autônomas e os Distritos Nacionais, resultaram de arranjos políticos locais que acompanharam a Revolução e a Guerra Civil, por um lado, e a construção da nova estrutura estatal e de suas implicações internacionais por outro (por exemplo, Ucrânia e Geórgia haviam sido reconhecidas como Estados independentes por países europeus). Embora os russos fossem maioria, na maior parte da existência da URSS ela foi governada por um georgiano e dois ucranianos, e apenas no início e no fim por russos. Um dado pouco analisado é que a desintegração da URSS não foi o 15
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resultado da luta de “nações”, porque as novas Repúblicas eram, também, unidades administrativas plurinacionais. Vinte e cinco milhões de russos ficaram em outras repúblicas e não criaram grande problema quando das “independências”. Apenas reagiram quando foram considerados cidadãos de segunda classe em outras Repúblicas, e a Federação Russa tem milhões de ucranianos e de povos de outras Repúblicas. O Cazaquistão tem quase o mesmo número de cazaques que russos, e eles convivem harmonicamente na sociedade e no controle do Estado. A União Soviética se desintegrou não porque fosse uma “prisão dos povos”, mas porque Gorbachov separou o Partido do Estado, abandonando o primeiro à própria sorte, e tentando forjar uma base de poder no segundo (criou o cargo de Presidente da URSS). O que gerava a unidade do maior país do mundo era o pertencimento a um projeto comum de transformação política, que propiciava a formação de um Homo Sovieticus, não apenas uma estrutura político-administrativa. Assim, a razão para o colapso se encontra no enfraquecimento do poder central no entrincheiramento de grupos nas unidades federadas. O clímax ocorreu após Ieltsin decidir retirar a Rússia da União (e, portanto, acabando com ela) e institucionalizar a construção do capitalismo na Rússia, onde tinha poder para tanto. Por essa razão Putin manobra incessantemente tentando forjar uma “identidade nacional russa”, revivendo a Igreja Ortodoxa e elementos alegóricos da época czarista, mesclando-os com o legado soviético. A Ucrânia não conseguiu definir uma nação, da mesma forma que na Ásia central a questão é utilizada apenas para lidar com um poder frágil3. Daí o temor que as potências do OTAN têm de qualquer forma de coordenação dentro do antigo espaço soviético. O que Moscou deseja não é a expansão da Rússia, mas a criação de um espaço supranacional onde os Estados herdeiros da Rússia Czarista e da URSS, habitados pelo Homo Sovieticus, possam viver e cooperar nos campos da economia, da defesa, da diplomacia e da cultura comum, frente a um sistema internacional cada vez mais hostil. Não deve ser fácil estar entre o poder militar e financeiro dos Estados Unidos e o poder econômico e populacional da China.
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As Repúblicas da Ásia Central se tornaram independentes contra a vontade, pois dependiam da transferência de recursos da União.
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Perspectivas Esse breve estudo objetivou contribuir para o tema “marxismo e relações internacionais”, através da exposição de elementos teóricos e metodológicos sobre a contribuição do Materialismo Histórico para as RI, a partir de propostas de Fred Halliday. Há uma ampla base como ponto de partida nas obras de Marx e Engels (e de seus discípulos), mas é necessário ainda trilhar um longo caminho para que a teoria e a realidade se associem em um paradigma inovador, formando uma “terceira vertente”. Um dos problemas reside na área de RI, dominada por um pensamento caudatário dos poderes políticos e acadêmicos estabelecidos, dominados por variantes do Realismo e do Liberalismo. Ser antimarxista representa um passaporte para a ascensão institucional e intelectual, bem como obtenção de financiamento público e privado para pesquisa e publicação. Outro problema se encontra dentro do próprio marxismo, ou melhor, entre os marxistas. A fronteira entre a teoria e a ação política é fluída e nem sempre devidamente reconhecida, especialmente quando há uma necessidade juvenil de estar sempre do lado “politicamente correto”. Como dito no início, é necessário não confundir marxismo, socialismo e esquerdismo. O marxismo, em particular seu Materialismo Histórico, tem todas as condições de dialogar inteligentemente com as demais teorias, que desenvolveram outras ferramentas metodológicas, sem perder sua identidade. Os realistas se especializaram no conflito e os “liberais” nas conexões “cooperativas” entre atores, mas o marxismo tem uma base epistemológica muito mais ampla e capacidade de explicar, com base histórica, o surgimento das demais teorias, bem como de si mesmo. E, principalmente, consegue explicar a origem do sistema, a forma de sua evolução e, algo que os demais são incapazes, a mudança e ruptura do mesmo. Os demais falam em um “modelo (ou cenário) estável”, onde as ações ocorrem. Há questões que necessitam ser aprofundadas, como a persistência do nacionalismo e da democracia liberal, mas o marxismo tem condições para tanto. Da mesma forma em relação a fenômenos socioculturais e históricos adormecidos no inconsciente individual e coletivo, que explodem de forma aparentemente irracional. Os acadêmicos que embasam suas análises no Materialismo Histórico podem ter a segurança de afirmar que a anarquia do mercado e do capitalismo é que causa a “anarquia do sistema interestatal”, que não existe abstratamente. E é necessário deixar o preconceito de lado, pois há originais contribuições marxistas 17
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das RI na China, no Vietnã, em Cuba e em países do Terceiro Mundo/Sul Geopolítico, bem como em países “desaparecidos”. Da mesma forma, seria construtivo evitar que, a cada crise política da esquerda, os intelectuais progressistas busquem refúgio psicológico em um “santuário” teórico. O mundo está em crise profunda, e, segundo Marx (cujo túmulo acaba de ser vandalizado), “tudo que é sólido, desmancha no ar e tudo que é sagrado será profanado”. Mais do que nunca uma análise científica da realidade internacional é necessária.
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Marxismo e Relações Internacionais: Duas Faces da Mesma Moeda Luiz Felipe Brandão Osório1
Introdução A narrativa do surgimento das Relações Internacionais, enquanto campo científico, completa seu jubileu centenário. A data comemorativa é um oportuno momento para repensá-la. Ao invés de louvas, em meio à miséria e ao horror que povoam sua concretude, a tarefa premente é desconstruí-la. Desde seu marco inicial, com a criação da cátedra da disciplina no Reino Unido, em 1919, a sua trajetória ao longo dos anos carrega a falácia em seu âmago. Em função desse vício original, em meio a toda grande crise, como a atual, seus analistas e estudiosos entram em curto-circuito. Eles tentam tirar uma foto com o carro em alta velocidade. A edificação do terreno teórico em bases movediças limita a capacidade de desenvolvimento da ciência, bem como a eclipsa perante outras searas. A riqueza das Relações Internacionais, frequentemente, fica travestida em meio a debates aparentes ou discussões de filigranas que emperram seu afloramento. Em função disso, cabe ao internacionalista que não se resigna ante o conforto das certezas ir além do que ensina a doutrina anglo-saxônica mais tradicional. As Relações Internacionais são muito mais do que mera narrativa de poder pelas grandes potências. Para tanto, ou seja, para que se constitua uma ciência no sentido pleno da palavra, para que funcione como uma ferramenta de compreensão e (fundamentalmente) de transformação do mundo é fulcral escancarar suas vísceras, escapando da jaula de aço que nos aprisiona. É sempre nas fraturas abertas que se pode ver o âmago da dor. Além da tarefa premente, também o contexto atual de crise de acumulação mundial descortina um fértil terreno para a superação dos falsos debates e para a imersão em uma releitura teórica do campo. A
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É autor do livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, pela Editora Ideias & Letras. Pós-doutor em Direito Político e Econômico e Doutor em Economia Política Internacional. Professor de Direito e Relações Internacionais da UFRRJ.
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mudança de narrativa das Relações Internacionais não é um mero preciosismo acadêmico, mas o fermento para a modificação de paradigmas, haja vista que a prática transformadora se constitui a partir de uma teoria que a guie. Nesse sentido, cabe aqui neste artigo redimensionar as balizas das Relações Internacionais. A empreitada demanda a reconstrução da narrativa, situando-a em seu marco preciso, para que sua trajetória real seja delineada, legando à margem tudo que é infértil e superficial, que em nada contribui para o desenvolvimento da matéria. Por isso, adentraremos em um ambiente que é rejeitado pelas leituras tradicionais e inóspito para os teóricos de superfície: a ciência que é internacionalista, em todo seu cerne, o marxismo2. Em outras palavras, o objetivo deste capítulo é, a partir do ferramental de Marx e do marxismo, delinear os traços e a trajetória do estudo das Relações Internacionais, para além dos grandes debates e de seus desdobramentos. Saímos da dualidade e das teorias que se propõem intermediárias, mas são mais do mesmo, para ancorar o estudo na ciência que consegue explicar com maior nitidez a realidade internacional. O caminho aqui será trilhado a partir das pegadas de Marx3 e daqueles que lhe sobrevieram. É a tradição marxista que conferirá as balizas metodológicas e teóricas para que se possa haurir a interpretação científica sofisticada, completa e fidedigna às relações internacionais. São os autores marxistas que enfocam o papel do Estado e do capitalismo na dinâmica internacional. Por isso, eles têm como categoria central o imperialismo, atribuindo a esse fenô-
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Nunca é demais lembrar que o termo marxismo é muito amplo, sendo o mais correto falar em marxismos, ante a amplitude de interpretações que se encontram dentro do mesmo signo. Para este artigo, especificamente, não cabe a discussão mais precisa do termo, servindo tanto a forma no singular quanto a do plural para tratar das visões sobre relações internacionais que partem de Marx ou de seus intérpretes imediatos.
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Engels entrará muito lateralmente nesta análise, haja vista que a maior contribuição dele é no Manifesto Comunista, mas não é lá que residem as principais teóricas elucubrações de Marx. Ao contrário da maneira como tratam muitos daqueles que ousam incluir o marxismo como teoria de relações internacionais, o ponto de partida para as análises marxistas não é Marx e Engels (ainda que este tenha tido enorme influência na vida e obra daquele), mas somente Marx. Cf. Bugiato, 2018; Halliday, 2007; Nogueira e Messari, 2005; Teschke, 2008; Vigevani et al, 2011),
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meno político-econômico a devida luminosidade. Logo, as interpretações sobre imperialismo serão o fio condutor dessa narrativa4. Desse modo, o texto será estruturado em três grandes seções. A primeira amalgama capitalismo e relações internacionais, ancorando a pedra fundamental da narrativa. As relações internacionais somente ganham especificidade e adquirem o conteúdo que hoje têm com o advento do capitalismo. Essa concepção é central para que não se retroceda a patamares da imprecisão histórica e teórica. A despeito de eras passadas, é só no capitalismo que as relações internacionais passam a estruturar-se em torno do eixo nuclear da mercadoria e os Estados, seus sujeitos principais, a atuarem como proprietários de seus territórios. Logo, se as relações internacionais frutificam no solo do capitalismo, cabe utilizar a ferramenta teórica que investiga essa engrenagem em sua totalidade, ou seja, a visão que parte do modo de produção histórico, a perspectiva de Marx, a qual será objeto da segunda seção. Apesar de o autor não ter deixado um estudo sistemático sobre o assunto, as relações internacionais foram objeto de análise por ele em vários momentos de sua vida e obra, legando pistas importantes para o aprofundamento posterior. Marx vivera um momento de emergência do capitalismo enquanto modo de produção mundial. Aqueles que lhe sucederam sentiram na pele a consolidação e os efeitos da internacionalização das relações de produção, desenvolvendo as abordagens marxianas para outros patamares. Assim, na terceira seção, será traçada a trajetória das teorias marxistas sobre relações internacionais, com eixo no conceito estrutural que guia as análises, o imperialismo, categoria nuclear nas vertentes marxistas. A partir dessa reconstrução de narrativa, objetiva-se redirecionar o foco dos estudos para as reflexões críticas, as quais franqueiam, de fato, caminhos para a compreensão e transformação da realidade internacional. Adiante!
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Importante salientar aqui, para este estudo, que as vertentes marxistas tratadas não necessariamente se confundem com teoria crítica, ramo mais aceito como uma ciência internacionalista de fato dentro dos meandros acadêmicos mais tradicionais. A teoria crítica, cujo cerne está em Gramsci e na Escola de Frankfurt, encontra-se dentro do que se convencionou chamar de marxismo ocidental, atribuindo relevância para outras questões, como a hegemonia, desigualdade, meio ambiente, cultura, ética e sociedade civil global, eclipsando, por vezes, o conceito de imperialismo. Logo, é relevante reconhecer seus méritos, como o de romper o tom monocórdio das academias centrais e de desenvolver estudos sobre hegemonia e classes sociais na política internacional. Ainda assim, não constará nesta trajetória. Para mais ver: Halliday (2007); Nogueira e Messari (2005); Garcia (2010); Ramos (2012); Teschke, (2008).
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1. Capitalismo e Relações Internacionais É a partir da emergência do modo de produção capitalista, inaugurando a contemporaneidade histórica, que determinadas relações sociais e econômicas insculpiram suas bases estruturais específicas, delineando as relações internacionais. Em modos de produção pretéritos, o que se tenta associar como relações internacionais é impreciso, acontecendo em dinâmicas completamente distintas, haja vista as engrenagens centrais em nada se assemelharem. O primeiro passo na demarcação da narrativa das relações internacionais é fixar seu marco inicial. Nesse diapasão, é imprescindível apontar sua especificidade necessária, para que não se perca a precisão teórica em abordagens abstratas, a-históricas e transcendentais. Cabe, portanto, para desvendar o real caráter das relações internacionais, tomar a direção da compreensão dos mecanismos e da estrutura que lhe conferem especificidade, ou seja, que permite identificar, a partir de certo ponto histórico, seu conteúdo e sua forma particulares, que contrastam irremediavelmente em relação a experiências anteriores. O próprio léxico internacional ajuda nessa empreitada. Se as relações se desdobram entre nações, é precisamente com a emergência da forma política histórica de Estado-nação que elas passam a existir. Em outras palavras, as relações internacionais alicerçam-se e desdobram-se em um contexto político-econômico muito específico, aquele moldado pelas relações sociais capitalistas concretas. No cerne desse construto está a forma mercantil, da qual derivam os mecanismos de operacionalização dessa sociabilidade, como a forma política estatal (no qual se insere o Estado burguês, o Estado-nação ou o Estado nacional), o qual é o ator que caracteriza nominalmente a interação dos agentes. Assim, as relações internacionais fincam seus sustentáculos como manifestação mais plena do capitalismo, por meio de um sistema de Estados. O Estado capitalista, por exemplo, não surge isoladamente, mas em coletivo, enquanto um sistema de Estados, sendo essa multiplicidade um traço estrutural do capitalismo (BRAUNMÜHL, 1978; 1983). O capitalismo é essencialmente internacional, ele não se limita a fronteiras geográficas ou políticas, expandindo-se ao máximo pelos quadrantes do globo. Seu espaço é o âmbito internacional e as relações internacionais configuram a sua manifestação específica. O capitalismo constitui-se, portanto, em sua forma mais desenvolvida no sistema internacional. O mercado mundial é a arena que capta os fenômenos capitalistas por completo. 26
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É a base e a atmosfera de vida do modo de produção capitalista (BARKER, 1991; CLARKE, 1991; BONEFELD, 2013; CALDAS, 2015). Logo, estudar o capitalismo sem adentrar nas questões internacionais, é residir na incompletude. Por sua vez, o horizonte teórico das Relações Internacionais é refratário à sua vinculação com o capitalismo. O panorama atual demanda um estudo orgânico e sistemático das relações internacionais que perpasse inexoravelmente o estabelecimento de balizas metodológicas e que viabilizem um olhar coerente e rigoroso sobre sua trajetória. Nesse exercício, cabe ao leitor atentar para as falácias postas pelas abstrações que cooptam essa seara científica para uma verve orgulhosamente e manifestamente ostentada como conservadora (TESCHKE, 2016). É interessante ressaltar como a narrativa científica das Relações Internacionais trata suas promíscuas relações com os aparatos governamentais, gabando-se de ser uma ciência que se limita a repetir e, eventualmente, a sofisticar os discursos e posições oficiais dos Estados nacionais. Há toda uma literatura que se evoca ser a dominante no estudo das Relações Internacionais que alicerça o início da verve acadêmica e científica da matéria nos estertores da Primeira Guerra Mundial (SATO, 2011). As Relações Internacionais teriam sido pensadas, enquanto ciência, a partir da criação da cátedra Woodrow Wilson na Universidade de Gales, em Aberystwyth, em 1919, ocupada pelo burocrata e diplomata Edward Carr (1892-1982), um dos principais negociadores do Tratado de Versalhes. Sua atuação destacada na conferência do pós-guerra credenciou-lhe a ocupar o posto acadêmico, como um prêmio por seus préstimos. Esse símbolo da construção enviesada que se vendeu aos outros países como marco inaugural de caráter científico de Relações Internacionais pertence ao monopólio das teorias anglo-saxãs na disputa também pelo conhecimento em âmbito mundial (MENDONÇA, 2015; MIYAMOTO, 2003; MONTEIRO, GONÇALVES, 2015). Na emergência de um novo cenário, de decadência britânica e ascendência estadunidense em um condomínio fraternal de poder que se impunha ao, então, ameaçado mundo capitalista, pós-1917. Como se, por exemplo, as discussões anteriores, notadamente as da Segunda Internacional, os debates pioneiros e a polêmica entre Lênin e Kautsky sequer tivessem existido (BERRINGER, 2014). É possível traçar um paralelo interessante sobre a expansão da lógica anglo-saxônica sob a liderança da hegemonia estadunidense e a difusão dos estudos de Relações Internacionais pelo mundo (MENDONÇA, 2015). O saber estadunidense das 27
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relações internacionais, por sua posição central, se constituía em uma imbricação ilustrativa, envolvendo a interligação direta entre academia e burocracia estatal, constando na lista dos expoentes teóricos de Relações Internacionais os membros do Departamento de Estado (e de outras posições) dos governos dos Estados Unidos assim como o foi e continuou sendo na Grã-Bretanha. Nitidamente manifestava-se um esforço dos Estados Unidos em criar uma elite acadêmica/ governamental para justificar e pensar a liderança estadunidense pelo mundo, em uma tentativa de enfraquecer os isolacionistas internamente. A partir da expansão do capitalismo pelos quadrantes do globo, com a intensificação do fenômeno próprio dos capitais, a internacionalização das relações de produção, a investigação científica inaugurou novos patamares, mas manteve o caráter enviesado. Não fortuitamente foi com o fim da Guerra Fria e a globalização financeira que os cursos de Relações Internacionais se expandiram consideravelmente por todo o mundo, sobretudo com uma franca ampliação na América Latina. Justamente no momento de imposição da vitória da democracia liberal pelo mundo é que se percebe a necessidade de compreender as relações internacionais. Então, se verificou um espraiamento ainda maior da influência anglo-saxônica pelas universidades. Não obstante as diversas matrizes de pensamento que circundam a seara científica, a aridez teórica predomina em seu horizonte. Há uma flagrante limitação entre os paradigmas teóricos, calcados na inócua discussão entre idealismo/ liberalismo5 e realismo, e seus desdobramentos (FERNANDES, 1998; BERRINGER, 2014). As preocupações atuais e históricas gravitam em torno do falso debate racionalista entre liberalismo (ou idealismo, para alguns) e realismo. Ou a razão está com o indivíduo no mercado ou está com o Estado no sistema interestatal, independentemente ambas as vertentes se justificam em busca da consagração de valores abstratos, como bem comum, vontade geral, interesse nacional ou coletivo ou público. Por exclusão o que não se encaixa nesse eixo é colocado no balaio das teorias críticas ou radicais (JACKSON; SORENSEN, 2007). Para que a crítica que não fique comprometida é fundamental extrapolar o monopólio anglo-saxão, sem o qual não se consegue enxergar além da superfície. 5
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Os dois termos não podem ser confundidos, levando em conta as distinções filosóficas entre as matrizes de pensamento idealista e da vertente liberal. No entanto, seguindo a literatura especializada em Relações Internacionais, a qual utiliza os vocábulos como sinônimos, o idealismo pode ser entendido aqui como um pensamento utópico.
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O pensamento único e tecnicista busca descolar-se das críticas ao apresentar-se como puro, aparentando rigor científico. As Relações Internacionais padecem do mesmo mal da especialização que contamina as ciências sociais como um todo. A falta de uma abordagem ampla que enfoque o objeto de estudo, mas a ele não se circunscreva, agregando outras áreas, é a regra e não a exceção. A inter ou multidisciplinaridade das Relações Internacionais não é a sua mácula, como pensam os puristas, ao contrário, é a sua imanência, que não se coaduna ao dogmatismo da departamentalização e consequente segregação das áreas do conhecimento. Se as relações internacionais se constituem e ganham especificidade com o advento do capitalismo enquanto modo de produção mundial, a segunda demarcação necessária significa partir da teoria que disseca essas relações de produção e a sociabilidade que o estrutura.
2. Marx e Relações Internacionais Ao desenvolver a anatomia da sociedade capitalista, válida e finita somente enquanto durar a dominância desse modo de produção histórico (ALTHUSSER, 1998), a qual não se limita a espaços nacionais, mas se completa no panorama internacional, Marx franqueia alternativas para solucionar os enigmas esfíngicos das relações internacionais. Por isso, o marxismo é a ciência internacionalista por essência, aquela capaz de captar a plenitude do capitalismo, modo de produção que somente se perfaz totalmente em âmbito internacional. Em meio ao contexto histórico e estrutural da heterogeneidade entre países que predomina no sistema internacional, nada melhor do que evocar a concretude da totalidade social dos fenômenos sociais para apreender sua real forma. É somente no capitalismo que as relações internacionais adquirem especificidade, em meio à inevitável expansão dos capitais e da consequente internacionalização das relações de produção, constituindo a mercadoria seu elemento central. Como os Estados no capitalismo não emergem isoladamente, mas em multiplicidade, desde os primórdios do modo de produção, a tendência à expansão, à internacionalização já pode ser verificada, ainda que sua mundialização somente se consolidasse anos mais tarde. Em meados do século XIX, com a sociabilidade burguesa já estabelecida na Inglaterra e em franca expansão pela Europa continental, Karl Marx (181829
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1883), com a valiosa contribuição de Friedrich Engels (1820-1895), transforma completamente o pensamento social ao elaborar a crítica acerca do modo de produção capitalista em seu permanente movimento de desenvolvimento, traçando a radiografia da sociedade burguesa, com o fulcro de interpretar a realidade, mas não apenas. O objetivo final era compreendê-la para transformá-la radicalmente (pela raiz), revolucioná-la. Assim, lança as bases do método materialista histórico-dialético. O estudo do capitalismo com fulcro em sua origem histórica enquanto um sistema socioeconômico e seu lugar na história da humanidade inaugura o rompimento com as vertentes anteriores e estrutura novos alicerces do pensamento social. Por essa concepção, o que se verifica na decorrência dos modos de produção pelos tempos é o inerente conflito entre as forças materiais, em uma relação necessariamente dual e conflitiva, não podendo existir uma classe sem a outra, e nunca unitária. A acomodação das lutas leva a formas sociais concretas que estruturam a sociabilidade capitalista. Das premissas marxianas partem inexoravelmente as reflexões que se propõem críticas acerca da realidade vigente (MARX, 2013; ROSDOLSKY, 2001; NAVES, 2008; NETTO, 2011). A dinâmica globalizante já era anunciada pelo alemão de Trier, na obra conjunta com Engels, em meio à realidade industrial daquele ínterim. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. (MARX; ENGELS, 2010, p. 43).
O que se comprova desde os primeiros esboços de investigação sobre a sociabilidade capitalista. Ao longo das várias linhas de suas obras, bem como no plano de estudo que Marx traçou, as reflexões marxianas sobre Estado e mercado mundial encontravam-se presentes. É possível identificar por suas obras excertos esparsos que tratam de mercado mundial, monopólios e competição, bem como da expansão do capitalismo pelo mundo, com maior ênfase, desde o Manifesto Comunista (1848), que escreveu com Engels, passando pelos Grundrisse (1857-1858) e, mais claramente, nos Tomos I e III d’O Capital (1867 e 1894), sem relegar completamente outras obras. O que se trouxe à tona com a publicação dos Grundrisse, de 1857-1858, foi a relevância do âmbito internacional para a compreensão plena do capitalismo. 30
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O mercado mundial é desenvolvido como o ponto de chegada, a parte final de sua pesquisa. O plano originário estrutural para O Capital perfazia o caminho completo em 6 volumes, a saber: 1) sobre o capital (com uma seção para o capital em geral, com ênfase no processo de produção, no de circulação e nos lucros e juros; uma segunda seção sobre a concorrência; um terceira sobre o sistema de crédito; uma derradeira sobre o capital dividido em ações); 2) sobre a propriedade da terra; 3) sobre o trabalho assalariado; 4) sobre o Estado; 5) sobre o comércio internacional; 6) sobre o mercado internacional e as crises. Quase dez anos depois, em 1865, Marx optou por um esquema mais enxuto e mais próximo daquele efetivamente publicado, dividido em quatro livros. O Livro I ficaria por conta do processo de produção do capital. O Livro II referente ao processo de circulação do capital. O Livro III tocante ao processo global da produção capitalista. Por fim, o Livro IV sobre história da teoria. Não obstante toda a polêmica acerca das edições e compilação post-mortem, o que se denota, por ora, é a preocupação nas reflexões marxianas com a expansão do capitalismo no espaço internacional (MARX, 2013; ROSDOLSKY, 2011). Desde os esboços da crítica à economia política já é possível descobrir elementos que conferem o substrato teórico necessário para as análises. Em seu tempo, Marx já delineara os traços que contornariam debates que perpassaram a história do capitalismo e das relações internacionais. Aqui aparece a tendência universal do capital que o diferencia de todos os estágios de produção precedentes. Embora limitado por sua própria natureza, o capital se empenha para [o] desenvolvimento universal das forças produtivas e, desse modo, advém o pressuposto de um novo modo de produção, fundado não no desenvolvimento das forças produtivas para reproduzir e, no máximo, ampliar um estado determinado, mas onde o próprio desenvolvimento das forças produtivas – livre, desobstruído, progressivo e universal – constitui o pressuposto da sociedade e, por isso, de sua reprodução; onde o único pressuposto é a superação do ponto de partida. Tal tendência – que o capital possui, mas que ao mesmo tempo o contradiz como modelo de produção limitado e, por isso, o impele à sua própria dissolução – diferencia o capital de todos os modos precedentes e, ao mesmo tempo, contém em si o fato de que o capital é posto como simples ponto de transição. (MARX, 2011, p. 445-446).
A imanente tendência à expansão do capital é detectada por Marx, sem que ele tenha feito referência direta ao termo imperialismo e sem que tenha 31
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realizado um estudo sistemático sobre as relações internacionais. Ainda assim, a prematura morte do intelectual alemão, em 1883, não impediu a fertilização de suas ideias em um século de ebulição e de consolidação da classe operária6. À sua época fez brilhantes análises sobre o colonialismo britânico em locais distintos, denunciando a essência dessa prática, as quais repercutiram mundialmente. Malgrado os relevantes escritos de Marx sobre política internacional, nos quais, em artigos de conjuntura, publicados em periódicos (FERREIRA, 1999; CARNOY, 1994), impunha sua visão sobre as experiências ultramarinas britânicas, o pensador alemão não legou obras sistematizadas e acabadas sobre o tema. Mesmo assim, a tendência expansiva do capital foi ressaltada ao longo de seus escritos. “A tendência de criar o mercado mundial está imediatamente dada no próprio conceito de capital” (MARX, 2011, p. 332). Para além de esboços e rascunhos, também em sua obra magna, Marx (2013), ao tratar das relações de produção, enfatizava a dinâmica entre anarquia e despotismo que cercava os capitais, que dentro de si são arbitrários, mas entre si são rivais em franca disputa descoordenada e sem limites espaciais. Nesse sentido, o capital somente existe em multiplicidade, coletividade; por meio da interação entre os muitos capitais as leis gerais do capitalismo se concretizam. Um único capital universal é uma contradição em termos. É característico do capitalismo, o qual se desenvolve pela competição, que é a fonte e a expressão da anarquia da produção. Logo, para Marx (2013), as relações sociais capitalistas tomam a forma dual de anarquia e despotismo. Entre muitos capitais há a anarquia; dentro de cada capital, o despotismo. Cada relação, anarquia e despotismo, é a condição uma da outra. Assim também o é entre os Estados, dentro das suas fronteiras perante seus nacionais (sujeitados a seu direito), soberano, despótico; e fora, na inter-relação com seus pares, reina a anarquia, a falta de um comando central e hierarquicamente superior. Não obstante a ausência de uma seção explícita sobre o assunto, um olhar mais atento conduz o leitor às chaves da reflexão marxiana, que passam ne-
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Com apoio nodal de Engels, outros volumes de sua obra mais significativa e impactante ainda puderam ser publicados. Os volumes seguintes d’O Capital foram publicados post-mortem por Engels. O Volume II em 1885 e o III em 1894. De 1904 a 1910, Karl Kautsky publicou outros textos de Marx, cuja compilação foi chamada de Volume IV, cujo título original era Teorias do Mais-Valor, em português. O trabalho de edição de Kautsky foi muito criticado, não sendo aceito por muitos como a continuação da ciclópica obra marxiana (ROSDOLSKY, 2001).
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cessariamente pela forma capitalista mais desenvolvida, o mercado mundial. Ainda na seção I do livro I a tendência à internacionalização e a relevância do âmbito do mercado mundial ficam patentes, quando trata do dinheiro mundial, que ao deixar a esfera interna de circulação, despe-se das vestes nacionais, adentrando o mercado mundial. Ao deixar a esfera de circulação interna, o dinheiro se despe de suas formas locais de padrão de medida dos preços, de moeda, de moeda simbólica e de símbolo de valor, e retorna à sua forma original de barra de metal precioso. No comércio mundial, as mercadorias desdobram seu valor universalmente. Por isso, sua figura de valor autônoma as confronta, aqui, como dinheiro mundial. Somente no mercado mundial o dinheiro funciona plenamente como a mercadoria cuja forma natural é, ao mesmo tempo, a forma imediatamente social de efetivação do trabalho humano in abstracto. Sua forma de existência torna-se adequada a seu conceito (MARX, 2013, p. 215).
É somente no livro III d’O Capital, na reunião inacabada e editada por Engels, que as observações mais assertivas aparecem. Intitulado o processo global da produção capitalista, este volume derradeiro da crítica à economia política argumenta basicamente que o mercado mundial constitui em geral a base e a atmosfera vital do modo de produção capitalista, sendo o pressuposto e o resultado da reprodução das relações sociais capitalistas (MARX, 2017). Essa percepção sugere que o mercado mundial não é produto da soma de vários Estados ou de suas economias nacionais, senão, é a condição por meio da qual existem as relações entre Estados. O mercado mundial apresenta-se como a forma universal de existência capitalista. Em outras palavras, é por meio do mercado mundial que a mercadoria deixa de ser nacional para ser irrepreensivelmente capitalista. Com esse legado teórico, não foi imprescindível, portanto, para Marx, escrever um livro específico sobre o tema para que este ganhasse consistência e um posterior desenvolvimento notável. Muito além de seu tempo, o filósofo de Trier já interpretava com argúcia os desdobramentos da intensificação das relações de produção capitalistas7.
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Não fortuitamente, aparece na edição utilizada nesta pesquisa d’O Capital o capítulo 25 do Volume I, a teoria moderna da colonização para tratar do fenômeno emergente e crescente de expansão das relações capitalistas para outras áreas virgens, cujo exemplo inspirador do pensador alemão naquele momento era os Estados Unidos.
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Marx não viveu esse momento de exponencial transmutação e internacionalização do capitalismo, mas suas premissas foram, todavia, ratificadas ao longo dos tempos. Os autores que lhe sobrevieram, e dele extraíram a matriz teórica, buscaram interpretar suas ideias acerca das relações internacionais e o capitalismo, tendo em vista a inédita expansão das relações de produção pelo mundo.
3. Marxismo, Relações Internacionais e imperialismo O que se verifica é que o pensamento de Marx sobre relações internacionais não ficou perdido em meio à vastidão de sua obra. Ao contrário, foi o fio que de pronto serviu para que suas ideias se fertilizassem nas reflexões político-econômicas vindouras. Foi o ponto de partida daqueles que se colocaram na posição de sucessores do pensador alemão. Em outras palavras, a interface entre marxismo e Relações Internacionais é muito mais próxima do que se imagina. O prisma mais reluzente dessa imbricação é o imperialismo. É nos debates teóricos e políticos, os quais traduzem a realidade político-econômica do modo de produção e, consequentemente, das relações internacionais, que se vislumbra com maior nitidez marxismo e relações internacionais como faces da mesma moeda. Apesar de Marx não ter utilizado especificamente a palavra imperialismo, ele deixou pegadas em uma trilha seguida por seus intérpretes e sucessores. O nome imperialismo é utilizado, pioneiramente (e isoladamente), com o sentido mais economicista, por um autor não marxista, Hobson8, mas que declaradamente inspirou os marxistas, como fica claro no caso de Lênin, sobretudo no tocante ao termo vinculado à exportação de capitais. A despeito disso, é nos círculos marxistas que houve a imediata e sistemática dedicação ao tema. Pelo menos desde a Internacional Socialista (ou Segunda Internacional, iniciada em 1889), passando pelo congresso realizado em Stuttgart9, em 1907, mais 8
O economista britânico John Atkinson Hobson nasceu em 1858 e viveu até 1940. Seu pensamento, conforme citado por Lênin no prefácio de seu livro mais conhecido sobre o tema Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, influenciou as primeiras abordagens e estudos marxistas. Economista liberal crítico, adepto do reformismo burguês e com conhecimento heterodoxo, Hobson definiu o imperialismo como uma política expansionista baseada em raízes econômicas (exportação de capitais), que gerava distorções e tensões (como a intervenção britânica na China e a Guerra dos Bôers na África do Sul, da qual foi correspondente jornalístico) prejudiciais ao desenvolvimento do capitalismo. Para mais ver Tavares (1985).
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Para mais sobre os debates quanto à questão nacional e à colonial ver Andreucci (1984).
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precisamente, ocupando lugar de destaque, até a Primeira Guerra e a Revolução Russa, em 1917. O contexto favorecia o desenvolvimento da matéria. As transformações na produção industrial, com o fortalecimento dos monopólios, a concentração e centralização produtiva, a emergência do setor financeiro e a exportação crescente de capitais, bem como o acirramento das rivalidades e a intensificação do uso da violência e do domínio pelo mundo, impulsionaram as relações de produção capitalista para outros patamares. O inevitável movimento de internacionalização das relações de produção foi o fio condutor das análises e serviu de eixo para teorizações vindouras sobre a temática internacional, que frutificaram em contextos bem mais propícios, como o que se avizinhava. Do quartel final do século XIX até a aurora do século XX, aqui é o ponto de partida de um estudo sistemático e profundo sobre as relações internacionais. E o marxismo desaguou todos os conceitos relacionados a relações internacionais em um termo científico: o imperialismo. É alicerçado nele que o marxismo trata as relações internacionais com mais profundidade. Imperialismo e relações internacionais mesclam-se como se estivessem umbilicalmente ligados. A inerente interface não é, entretanto, obra do acaso ou uma construção dada e inacabada. Sim, ela foi erigida ao longo dos anos, tendo a historicidade dessa figura um aspecto nodal, ganhando feições distintas. Nessa seara, impõem-se os debates do imperialismo que não apenas inauguram, mas fundamentalmente carreiam o estudo das relações internacionais contemporâneas. Na trajetória das relações internacionais dentro da perspectiva marxista, em termos de desenvolvimento do capitalismo, é possível traçar três grandes momentos que traduzem substanciais transformações nas bases e na sociabilidade do modo de produção, orientados por crises estruturais e suas guerras correspondentes. Consequentemente, mudanças também na concepção de imperialismo (OSÓRIO, 2018). Na miríade de interpretações que se apresentam e nas oscilações sofridas pelo conceito, emerge a necessidade de sistematização e de organização do universo de abordagens marxistas (muitas das quais são até confrontantes). As alterações no panorama mundial podem ser ilustradas pelas diferentes fases do desenvolvimento capitalista em meio às estratégias de valorização apresentadas, às formas político-institucionais correspondentes e às relações sociais de forças10. 10 Com apoio na teoria econômica institucionalista e na teoria marxista pela verve althusseriana, a teoria inicialmente francesa da regulação mostrou-se frutífera e logo ganhou repercussão mundial. Para mais ver: Hirsch e Roth (1986), Boyer (1990), Lipietz (1985), Hirsch (1998; 2010) e Jessop (1991).
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Por essa perspectiva, as categorias intermediárias da economia política propostas para conduzir a discussão acerca das fases de ruptura e estabilidade do capitalismo são o regime de acumulação e o modo de regulação. O regime de acumulação é primordialmente econômico, mas a ele não se limita, envolvendo uma combinação particular de produção e consumo que pode ser reproduzida, não obstante a tendência a crises no capitalismo. A apropriação do resultado do trabalho de outrem acontece legitimada por um núcleo institucional (formal e informal), constituído pelas formas e práticas sociais, suficiente e voltado à acumulação, o modo de regulação. Esse conjunto institucional, ao lado de um vasto complexo de normas, assegura a reprodução capitalismo. A dualidade (regime de acumulação e modo de regulação) não é a junção de elementos indiferentes entre si nem a superposição de dois iguais, mas a coexistência estrutural, que revela um determinado grau de articulação entre seus termos. Atrelar o imperialismo ao capitalismo é não apenas dar marco e rigor científico ao conceito, mas também compreender as suas inegáveis transformações a partir das mudanças dentro do modo de produção em escala mundial. Em outras palavras, ter em mente a historicidade do capitalismo é central para entender as mudanças no conceito de imperialismo. Essa linha do tempo do imperialismo vai desde o momento pioneiro da internacionalização das relações de produção, no quartel derradeiro do século XIX, que traz caudatária a primeira grande crise estrutural e a Primeira Guerra Mundial, passando pelo interregno de reconfiguração mundial após a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, até chegar à crise do fordismo e a consequente dissolução da União Soviética. É para esse exato período de vitória da democracia liberal e da globalização econômica que os holofotes precisam ser direcionados. O debate inaugural é chamado de pioneiro e, consequentemente é o fundante das Relações Internacionais enquanto campo científico. Da primeira grande crise, a grande depressão até a primeira grande guerra, a Mundial, é factível traçar um fio condutor entre as ideias que investigaram com profundidade as transformações do capitalismo. Com o respaldo das armas, houve o assentamento efetivo da internacionalização da produção. No centro de acumulação capitalista, as rivalidades acirraram-se e materializaram-se em guerras e tensões pelo mundo em competição por recursos naturais e mercados. Ao mesmo tempo, verificou-se a decadência da hegemonia britânica, frente aos novos concorrentes, com a perda do comércio internacional e a ascensão 36
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do setor financeiro que pressionava por protecionismo, corrida armamentista e política colonial agressiva. Ademais, a emergência dos Estados Unidos da América se fazia notável. Os acontecimentos impactantes impunham ao movimento socialista internacional a necessidade de avaliar o que se passava. E nestas percepções eram incluídas inexoravelmente questões caudatárias, como a expansão colonial, o direito das nações à autodeterminação dos povos (e os desdobramentos do nacionalismo) e os impactos do capital financeiro e monopolista. Era preciso, ao mesmo tempo, compreender as transformações da nova fase de acumulação capitalista, em seus aspectos econômicos, sociais e políticos, bem como suas decorrências para a luta revolucionária, a partir dos cismas que enfrentava o movimento operário, mediante o refluxo da postura revolucionária e do fortalecimento do revisionismo e das soluções de compromisso com a burguesia, no ambiente de guerra que se prenunciava. Há um amplo consenso de que os autores desse ciclo são Hilferding, Kautsky, Luxemburgo, Bukharin e, principalmente, Lênin11. Eles eram oriundos de realidades germânicas e eslavas, ou seja, de sítios de desenvolvimento capitalista tardio e sem uma revolução burguesa; enxergavam de perto a concretude das alterações econômicas, que transbordam para as áreas política e social; com formação intelectual em estudos de economia política, buscavam complementar a obra inacabada de Marx; por sua participação política ativa sofreram de grandes privações e perseguições, quando não, vítimas de mortes trágicas. Reservadas as peculiaridades de cada um, há elementos que permitem conjugá-los em um mesmo interregno. As preocupações que carreiam os autores dessa época estão vinculadas às razões da expansão das relações capitalistas pelo mundo e seus desdobramentos, como as rivalidades interestatais, competição e guerras decorrentes. Gravitando em torno dessas premissas, cada qual assume uma postura particular, expondo suas singularidades dentro dessa gama. Em larga medida, constatavam as transformações evidentes do modo de produção e seus efeitos pelo mundo. O aumento da concentração da produção, a crescente exportação de capitais, a emergência dos monopólios, a intervenção e organização estatal nas economias, as fusões entre capitais e o surgimento do capital financeiro, as incursões coloniais e a eclosão de guerras pelo mundo eram traços
11 Para mais ver Barone (1985); Brewer (1990) e Warren (1980), além de Arrighi (1983), ainda que este considere os pioneiros superados, sobretudo, no tocante ao debate entre Lênin e Kautsky.
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inevitáveis da realidade vivente. Esses sinais evidenciavam a expansão do capitalismo pelo globo, o que, por sua vez, ilustrava crise e o consequente acirramento das contradições do modo de produção, abrindo frestas que poderiam levar à sua transição socialista ou à sua superação revolucionária. Após a fase do capitalismo concorrencial, as condicionantes detectadas apresentavam a era do capitalismo monopolista, derradeira. As leituras desse cenário pautavam-se pelo viés economicista, atribuindo à base material econômica a força determinante das relações sociais, inclusive do ente político estatal, observando o Estado como resultado da dinâmica financeira, atendendo inevitavelmente aos interesses burgueses. Em um contexto muito díspar em relação ao predecessor, as visões pioneiras são revisadas e adaptadas à nova realidade concreta, que irá aproximadamente de 1945 até os anos 1970. O fim da Segunda Guerra Mundial reconfigura completamente as peças do tabuleiro global. Um mundo novo descortina-se após a Revolução Russa, a destruição material das potências europeias e da emergência da hegemonia estadunidense. O modo de produção capitalista reorganiza suas bases a partir de uma nova locomotiva e partindo de um horizonte muito mais largo. É exatamente desse ínterim em diante que as relações de produção capitalistas extrapolam o continente europeu e outros pontos isolados do globo para chegar a todos os quadrantes do mundo. Não fortuitamente a periferia mundial entra definitivamente para jogar as regras do jogo capitalista. A industrialização em parte da América Latina, as descolonizações na Ásia e na África e as revoluções socialistas são exemplos emblemáticos de que o panorama se alterara substancialmente. O capitalismo deixara de ser basicamente europeu para se alastrar por todas as franjas do mapa, carregando consigo todas suas contradições e conflitos. A periferia entrou no radar de análise das relações internacionais, gerando uma primeira clivagem (entre centro e periferia) nos tempos do capitalismo. No tocante ao imperialismo, no centro, a questão ainda estava muito atrelada ao período anterior12 e acabou ficando eclipsada por outros elementos, tendo o tema pouco desenvolvimento; na periferia, ao contrário, o imperialismo era um ponto central e passou a ser debatido por teóricos e militantes nativos, o que permitiu ao tema que se reverberasse. Aqui se questionava o porquê do bloqueio à modernização e da industrialização seletiva. 12 Um bom exemplo da tendência tratada aqui é o surgimento da teoria crítica e a sua não ênfase ao conceito de imperialismo. Para mais sobre a trajetória do pensamento marxista ver Anderson (2004); Boucher (2015); Elbe (2010); Caldas (2015); Míguez (2010).
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O rearranjo no modo de desenvolvimento do capitalismo ocorreu em meio à historicidade do capitalismo pautado por crises estruturais (no caso a de 1929) e grandes guerras (a Segunda), alicerçado a um regime de acumulação interno ou nacional e a um modo de regulação correspondente keynesiano, estatal-intervencionista ou de bem-estar social, em uma dinâmica cunha por fordista13. Logo, assim será o chamado o debate dela decorrente. A partir dessa definição, as correntes teóricas que aqui se apresentam estão tanto no centro quanto na periferia. No centro, no entanto, expandem-se quantitativamente reflexões sobre o imperialismo e estabelece-se, com efeito, uma dualidade de concepções14, que negam e reafirmam o imperialismo, adaptando-o às novas condicionantes; na periferia, sim, há a emergência qualitativa de visões voltadas à realidade local, as quais contribuem e inovam substancialmente ao debate. Cumpre aqui falar de autores que estavam no centro com o olhar voltado à periferia ou aqueles enraizados no hemisfério meridional. Notadamente, destacam-se as correntes do capital monopolista, de Baran e Sweezy; especialmente, os teóricos marxistas da dependência, como Frank, Dos Santos, Bambirra e Marini; e autores terceiro-mundistas15 do sistema-mundo, como Wallerstein e Arrighi, ou das trocas desiguais, como Amin e Arghiri. Revisado, o conceito de imperialismo, tendo os pioneiros como baliza (a ênfase às crises de acumulação, à competição interestatal e às guerras), passa necessariamente atravessado por outros aspectos, como a dominação do centro à periferia e as relações de dependência desta ao capitalismo central. O período narrado acima é curto cronologicamente, configurando muito mais um período de transição, haja vista que já na década de 1970 começa a en13 Apesar da origem do termo designar a homenagem a Henry Ford que inseriu pioneiramente a esteira rolante na montagem de automóveis, o fordismo aqui discutido toca o sentido dado pela teoria materialista do Estado e pela escola regulacionista francesa, e não se confunde com a semântica dada por Gramsci (2008). O fordismo não está relacionado às ideias de organização da produção industrial retiradas originariamente de Frederick Taylor, mas, sim, abarca um padrão de desenvolvimento, composto pelo regime de acumulação e modo de regulação correspondentes a um período histórico do desenvolvimento capitalista específico, impulsionado pela crise estrutural de 1929 e pela Segunda Guerra Mundial. Para mais ver: Hirsch e Roth (1986). 14 Rowthorn (1982) vai apontar que há três vertentes no centro, mas, na compreensão desse artigo, as três recaem na mesma dualidade. 15 Sem qualquer conotação pejorativa, sem pretender se rogar na posição de superioridade da arrogância do dito Primeiro Mundo, ao contrário, destacando o caráter autóctone e original das reflexões, são referidos nesse trabalho como terceiro-mundistas aqueles que se voltam à ênfase às trocas desiguais e ao sistema-mundo.
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trar em colapso. A crise do fordismo arrasta-se e adentra o fim da Guerra Fria, com a dissolução do bloco socialista na Europa Oriental, a derrocada da União Soviética e a queda do muro de Berlim. A partir dos anos 1990, a abertura dos mercados e a financeirização das economias trazem uma nova dinâmica para a trajetória do capitalismo. A internacionalização das relações de produção ganha outros patamares, intensificados, uma vez que a produção deixa de residir sobre a base nacional-estatal e passa a disseminar-se pelo mundo, em uma organização difusa e desconcentrada. Do fordismo transita-se para o toyotismo, no sentido de racionalizar ainda mais a organização do trabalho. O Estado altera as diretrizes na intervenção em prol de políticas públicas e direitos sociais, reconfigurando-se ainda mais aberto aos sabores e aos dissabores do mercado internacional. Se no ínterim anterior, o regime de acumulação era interno ou nacional e seu correspondente modo de regulação era estatal-intervencionista, de bem-estar social ou keynesiano, o que caracterizava o capitalismo fordista, pode-se cunhar o interregno pós-1991 de capitalismo pós-fordista16. A nova organização social que emergia, rompendo com os parâmetros fordistas, constituía um momento de reação, de desfazimento da correlação de outrora. O capitalismo é essencialmente, portanto, desde sempre, globalizado, no sentido de pressionar pela internacionalização da produção. O que diferencia o padrão pós-fordista de desenvolvimento são as condições estruturais dadas, de um regime de acumulação interno, nacional, passa-se a um exterior ou internacional; e de um modo de regulação estatal-intervencionista, keynesiano, nacional, caminha-se para um neoliberal ou transnacional. Nesse sentido, a década de 1990 assinalou o apogeu da estratégia neoliberal, mas também o combate ferrenho das teorias do Estado com a emergência de concepções teóricas na direção adversa, de enfraquecimento e de demonização do aparato estatal e da política. Junto com o mito de aldeia global vieram a credo no fim das fronteiras e das rivalidades interestatais, intimamente conectadas com o conceito de imperialismo. Logo, o decênio foi um marco de refluxo das lutas17 e inflexão teórica dentro do pensamento crítico das esquerdas, 16 Ressalta-se que o termo pós-fordismo é e pode ser utilizado por correntes não marxistas também. O que fundamenta o uso do conceito nesta pesquisa é o sentido dado pela vertente marxista da teoria francesa da regulação econômica. Para mais ver: Bonefeld e Holloway (1991). 17 Cabe aqui ressaltar as honrosas e relevantes exceções que marcaram a contestação da época à globalização, como o zapatismo, no México, em 1994, a grande manifestação de Seattle, em 1999, nos Estados Unidos, e o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2001, no Brasil.
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notadamente quanto ao marxismo. As brumas da prosperidade neoliberal não tardaram, entretanto, para dissiparem-se. Na aurora dos anos 2000, o que já vinha se manifestando nos escombros da periferia e nos porões do capitalismo, oportunamente relegado pelos grandes centros, a insatisfação com as ilusões da globalização explodiu. Assim, veio o retorno triunfal do imperialismo. Despertados pelos rumos do sistema internacional e pela necessidade de repensar as alternativas, os autores internacionalistas resgataram o debate do imperialismo, colocando-o novamente em sua merecida centralidade. Portanto, se o pensamento das Relações Internacionais segue os rumos da toada das relações de produção capitalistas, a intensificação da tendência à internacionalização, levou a seara internacionalista aos holofotes dos debates políticos e acadêmicos. Inicialmente, ficou encapsulada dentro da euforia liberal, que logo foi estilhaçada pelas contribuições marxistas que voltaram à tona para reavivar as discussões18. Nesse sentido, adquirem relevância o livro Império, publicado por Hardt e Negri (muito mais pela crítica que provocou do que pelo brilhantismo das ideias) e os ataques de setembro de 2001 aos Estados Unidos, ressuscitando as correntes marxistas do imperialismo. Dos anos 2000 em diante, verificou-se significativa expansão dos debates do imperialismo, retomando a carga em plena potência. Do emaranhado de interpretações dessa época é possível apontar, ao menos, três direções: a) aquelas que tratam em maior ou menor medida, da hipostasiação de poder19 (ainda que tenham tido repercussões distintas e que politicamente se coloquem até como antípodas), como Hardt e Negri, globalistas, de um lado, e Panitch, Gindin e Wood, de outro, confe18 No tocante ao imperialismo, a afirmação, sim, procede. Não se pode, contudo, deixar de sublinhar é que nos anos 1980, também autores realistas (Susan Strange e Robert Gilpin, por exemplo) e liberais (como Robert Keohane e Joseph Nye), para além dos marxistas, chamam a atenção para as relações internacionais pela ótica da economia política, cada qual à sua maneira. Elas não entram, todavia, na análise deste artigo. As suas primeiras, por naturalmente não integrarem o rol de concepções marxistas e a marxista (principalmente, neogramsciano, cujo expoente maior seria Robert Cox) por não ter o imperialismo como núcleo de análise. Esse momento do pensamento das Relações Internacionais pode também ser cunhado como o nascedouro do estudo atual e sistemático da Economia Política Internacional. Para mais ver Fiori (2007). 19 Em outras palavras, é a defesa da autonomia da política em relação à base econômica. O imperialismo é vertido basicamente em torno dos elementos políticos, como a correlação política na luta de classes sociais (ou no fragmento de classes), preponderantes sobre as bases econômicas, buscando em elementos que não as categorias econômicas marxianas, a explicação para os fenômenos sociais. A disputa por frações classistas ou grupos políticos confere a tonalidade da condução do poder no Estado e consequentemente nas relações internacionais. Para mais ver Osorio (2018).
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rindo à hegemonia e ao papel do Estado-nação, em sua função extraeconômica, importância fundamental; b) aquelas que enfatizam as rivalidades interestatais, como Harvey e Callinicos, articulando questões políticas e econômicas como a dualidade do imperialismo; c) aquelas que defendem a retomada de categorias econômicas marxianas para entender e agregar a luta de classes, partindo da economia para entender a política, como as concepções da teoria materialista do Estado20, cujo expoente mais notório é Hirsch. Traçada essa linha do tempo, do século XIX ao XXI, percebe-se que marxismo e relações internacionais possuem uma relação bem mais estreita do que se apregoa. Pela mirada do imperialismo a interface fica ainda mais indisfarçável. O que se verificou ao longo dos anos é que as relações internacionais, em si, não tem uma caminhada própria, alheada, isolada, mas elas caminham passo a passo com as transformações do capitalismo, as quais são carreadas pelos acontecimentos político-econômicos, em meio à luta e à correlação de classes, como grandes guerras e crises estruturais. Os conceitos assim também variam, a depender do contexto, o conceito de imperialismo foi moldando-se, oscilando como nenhum outro, de virtuoso a desvirtuado, retornando, agora, à baila, com toda sua imprescindibilidade para a análise das questões mundiais. Desse modo, por meio de um breve panorama da trajetória do capitalismo no cenário internacional, é possível descortinar o fértil horizonte que se coloca ante a interface entre marxismo e relações internacionais.
Considerações finais Diante do que foi exposto, o marxismo revela-se a ciência apta a decifrar os enigmas esfíngicos das relações internacionais. O marxismo é a ciência internacionalista por essência, aquela capaz de captar a plenitude do capitalismo, modo de produção que somente se completa em âmbito internacional. Em meio ao contexto histórico e estrutural da heterogeneidade entre países que predomina no sistema internacional, nada melhor do que evocar a concretude da totalidade social dos fenômenos sociais para apreender sua essência. A inserção
20 Para mais ver tanto autores latino-americanos quanto europeus, como Bonnet (2007); Caldas (2015); Clarke (1991); Mascaro (2013); Holloway e Picciotto (1978).
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do marxismo nos debates internacionais, além de imprescindível, é incontornável para superar a aparência de sofisticação e penetrar até o cerne da realidade. Muito mais do que frases de afirmação, ficam aqui expostas vertentes para que o internacionalista caminhe no viés crítico da pesquisa em Relações Internacionais. Desde a imbricação entre relações internacionais e capitalismo, na qual este confere a especificidade daquela, diferenciando-as de relações externas de outros modos de produção históricos, ou seja, a demarcação da historicidade da ciência; passando pela sucinta mirada no pensamento de Marx sobre relações internacionais, o qual não apenas frutificou em autores posteriores, como, por si só, já é rico e franqueia diversas rotas de exploração, sobretudo tomando Marx a partir d’O Capital e das categorias econômicas nele presentes; até o deslocamento da narrativa para a trajetória das relações internacionais no capitalismo contada através do conceito de imperialismo, ponto mais reluzente da conexão entre marxismo e relações internacionais. Em suma, ao internacionalista que não se acomoda no conforto das certezas, cumpre a tarefa de romper com a narrativa dada pelo mundo anglo-saxão e buscar alternativas na crítica, no arcabouço teórico que, de fato, supera as estruturas dominantes das relações internacionais. Principalmente, o estudioso ou interessado da periferia, ao qual a resistência é o que lhe resta ante as explorações cotidianas. E as forças de transformação da prática precisam estar articuladas com uma teoria que a conduza, sob pena de não conseguirem sair do lugar. Redimensionar o universo teórico e deslocar seu ponto de partida e a trajetória de seu desenvolvimento é um passo inicial, porém, decisivo nessa empreitada. Esse capítulo é apenas uma parca contribuição, que, ora, se encerra sempre na esperança de gerar frutos.
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Relações Internacionais, Conflitos Nacionais e Vulnerabilidade Social: uma Análise a partir da Teoria da Derivação do Estado Camilo Onoda Caldas1
Introdução O desenvolvimento da ideia de “globalização” naturalizou um discurso da economia política: as condições de produção e circulação de mercadorias existentes em determinado país estrangeiro exercem cada vez mais pressão sobre as decisões políticas e econômicas que os governantes devem tomar em relação aos seus respectivos Estados. Dito de outro modo, isso significa que os Estados nacionais devem se conduzir internamente considerando, inexoravelmente, as decisões adotadas pelos demais Estados. Embora capital e trabalho sejam afetados pelo fenômeno da “globalização”, cada qual possui suscetibilidades muito distintas. A vulnerabilidade social dos trabalhadores é infinitamente maior que a dos capitalistas, ou seja, ainda que frações do capital nacional possam sofrer efeitos decorrentes da internacionalização da economia, existem dois pontos fundamentais a considerar: (i) frações do capital se beneficiam justamente pelo fato de extrapolarem de suas fronteiras nacionais; (ii) os trabalhadores encontram obstáculos muito maiores para transpor as fronteiras nacionais e minimizar os efeitos negativos dessa internacionalização. Conforme explica Alysson Mascaro em Estado e forma política:
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Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Bacharel em Direito e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Diretor do Instituto Luiz Gama, entidade que atua na defesa de direitos humanos. Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu e do Programa de Mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Pesquisador da Faculdade 28 de Agosto em São Paulo. Autor das obras Teoria Geral do Estado (Editora Ideias & Letras) e Manual de Metodologia do Direito (Editora Quartier Latin).
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O capital não se limita por fronteiras e as burguesias nacionais têm comportamentos variáveis quanto às suas relações externas: a depender das condições e situações específicas, aferram-se ou não aos limites nacionais. Já as classes exploradas, jungidas aos territórios que não permitem a livre-circulação internacional do trabalho, submetem-se de modo implacável às condições locais (MASCARO, 2013).
A internacionalização da economia tem servido para legitimação de um discurso voltado a maximizar a exploração do trabalho. Tornaram-se cotidianas as seguintes ideias: (i) condições existentes num país estrangeiro diminuem a competitividade nacional, afetando os interesses de investimentos em uma determinada localidade; (ii) as frações nacionais do capital não têm possibilidade de competir com as frações estrangeiras que se desenvolvem em condições mais favoráveis; (iii) se o capital internacional julgar “inviável” ou oneroso se alocar em determinado país, irá, inevitavelmente, optar por outro com melhores “condições”, beneficiando assim uma nação em detrimento de outra. O Direito, por sua vez, também é considerado um dos elementos indispensáveis que colabora para a construção das condições de competitividade de um Estado. Essa afirmação de um duplo significado que iremos explicar a seguir. Em primeiro lugar, trata-se de considerar o conteúdo do Direito: a depender do modo como as normas jurídicas organizam a economia e o Estado intervém na economia, atribui-se a um país maior ou menor competitividade em nível global. Assim, as “vantagens” de um Estado sobre outro estariam ligadas às decisões políticas que são tomadas, por exemplo, quando se decide o nível e forma de intervenção no domínio econômico (ocorrida por meio de subsídios, políticas públicas que ajudariam as empresas nacionais etc.) ou quando são feitas modificações na legislação existente (especialmente a trabalhista e previdenciária, ou seja, quando são alteradas as garantias e proteções dadas aos trabalhadores, pois estas implicam em aumento ou diminuição no custo da produção). Em segundo lugar, trata-se de considerar a estabilidade do Direito: nesse caso, o elemento chave seria a segurança jurídica, que decorre de um ambiente político e jurídico estável e previsível. A competitividade de um Estado, neste caso, dependeria do predomínio da legalidade, da eficácia das leis e contratos, bem como da efetividade, previsibilidade e celeridade das decisões dos tribunais e instâncias administrativas.
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Assim, o plano jurídico-estatal consiste no elemento indispensável para que os detentores do capital decidam pela alocação de seus recursos em determinada localidade. Portanto, Estado e Direito são elementos chave na constituição das condições a partir das quais serão desenvolvidas as relações sociais de reprodução do capital. É preciso mencionar ainda que a conjuntura internacional afeta diretamente os trabalhadores e as instituições por meio das quais estes se organizam. Portanto, a luta política e as reivindicações jurídicas não ficam indiferentes ao fato de as economias nacionais estarem inseridas num complexo sistema internacionalizado. Apesar disso, existe uma diferença substancial no modo como trabalhadores e capitalistas lidam com essa realidade. Vejamos isso em maiores detalhes: As frações do capital comumente centralizam suas reivindicações e defendem um nivelamento de direitos e intervenções “por baixo”, que invariavelmente consiste na diminuição dos direitos trabalhistas e previdenciários, desoneração tributária sobre o capital, flexibilização da legislação ambiental e urbanística etc. As contradições do discurso burguês, geralmente, ficam localizadas no plano das políticas públicas: de um lado, defendem a desoneração tributária e o “enxugamento” da máquina estatal; por outro, demandam investimentos públicos em infraestrutura, transporte, saúde, educação etc., afinal, o desenvolvimento do capitalismo depende de criação de determinadas condições materiais e estas são assumidas, em maior ou menor medida, pelo Estado (ALTVATER, 1973). Os trabalhadores, por sua vez, não conseguem atingir o mesmo grau de consenso em sua luta política, pois tem dificuldades em sustentar que a manutenção ou ampliação de direitos será possível sem a perda da mencionada “competitividade”, ou seja, sem afetar os investimentos e, consequentemente, a empregabilidade. Nesse ponto, percebe-se que quanto mais o pensamento da classe trabalhadora mergulha em ideias nacionalistas, mais difícil se torna emergir para uma saída definitiva do dilema acima mencionado. O recorte nacionalista, inclusive, acaba se tornando um lugar comum no discurso político, que, paradoxalmente, coloca em confronto as classes trabalhadoras de diferentes Estados, sobretudo na realidade atual – em que as economias mundiais estão mais integradas do que antes – e, portanto, há maior fluxo de mão de obra entre os países. A xenofobia crescente é um dos sintomas dessa confrontação que ocorre entre os próprios trabalhadores. Conforme explica Hirsch: Tal como antes, o sistema de Estados singulares é base da divisão das classes exploradas e dependentes ao longo das fronteiras nacionais; um 53
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quadro que, com a maior mobilidade do capital, adquire um significado mais acentuado. Ele, por um lado, permite que as classes e as populações sejam colocadas umas contra as outras, e, por outro lado, é simultaneamente o fundamento de coalizões voltadas para um ‘bem-estar’ de caráter chauvinista, que caracteriza a defesa de privilégios relativos que atravessam as classes. Elas definem cada vez com mais força as relações políticas no interior do Estado em disputa (HIRSCH, 2010, p. 179).
É oportuno mencionar que os discursos políticos do presidente estadunidense Donald Trump e de outros governantes expressam justamente o conflito entre o nacional e o internacional. De um lado, Trump venceu a disputa eleitoral exaltando o nacionalismo – seu lema de campanha era America First (América primeiro) – afinal, seu poder político depende do voto dos cidadãos dos Estados Unidos da América. Conforme explica Luís da Vinha, isso deu início a um movimento anti-internacionalista por parte de Trump: Na sua longa lista de críticas, Trump salientava o declínio do poder global dos Estados Unidos e a sua exploração por parte de aliados e adversários. Embora de forma errática, Trump articulou um programa de política externa em consonância com a sua narrativa populista e que assentava num discurso antielitista, de desconfiança no conhecimento técnico e científico e num forte sentimento de afiliação nacional. [...] A realização do desígnio militar implica, consequentemente, a necessidade de reforçar o crescimento económico através da alteração das políticas económicas, comerciais e de imigração. Há várias décadas que Trump é crítico dos acordos económicos internacionais celebrados pelos Estados Unidos. Durante a campanha eleitoral, ele foi inequívoco na sua condenação dos «dirigentes que veneram o globalismo mais do que o americanismo»27. Em particular, o candidato destacou os efeitos devastadores para a economia americana da institucionalização do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) e da participação da China na OMC, bem como dos perigos resultantes da criação do Acordo de Associação Transpacífico (TPP). Portanto, Trump garantiu que iria abandonar o TPP, bem como renegociar os acordos económicos com os parceiros comerciais – ou abandoná-los por completo se não conseguisse condições mais favoráveis para os Estados Unidos. Do mesmo modo, o candidato assegurou que iria reequilibrar a relação comercial com a China, começando por declarar o país como um «manipulador de moeda», e instaurar processos contra as práticas comerciais da China junto dos
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órgãos jurídicos nacionais e na OMC28. Todavia, o ímpeto nacionalista não se limita aos acordos comerciais. Trump tem continuamente rejeitado todos os constrangimentos à soberania americana, revelando desconfiança de quaisquer «associações internacionais que nos amarram e que prejudicam os EUA» e, consequentemente, nunca afiliar-se-á a «qualquer acordo que reduza a nossa capacidade para controlar os nossos próprios assuntos» (VINHA, 2017, p. 09-33).
De outro lado, Trump, alinhado com interesses de grupos capitalistas (que ele próprio integra) e operando dentro da lógica de reprodução do capitalismo, encontra-se bloqueado em desenvolver qualquer plataforma política nacionalista radical e, portanto, continua reproduzindo as condições necessárias para internacionalização da economia norte-americana, bem como é pressionando por manter os Estados Unidos da América (EUA) dentro das regras e princípios que orientam o comércio internacional. Tais ideias aqui expostas constituem o ponto de partida para se entender como o Estado nacional atua dentro desse movimento crescente e inexorável de internacionalização da economia no capitalismo. Conforme explica Luiz Felipe Osório, entender este fenômeno é imprescindível para compreender a própria natureza e funcionamento do Estado e do modo de produção capitalista: O capitalismo constitui-se em sua forma mais desenvolvida no sistema internacional. O mercado mundial é o âmbito de manifestação mais alargada do capitalismo. É a arena que capta os fenômenos capitalistas por completo. É a base e a atmosfera de vida do modo de produção capitalista. Logo, estudar o Estado e o capitalismo sem adentrar nas questões internacionais, é como tocar o violino com apenas uma das mãos. O Estado capitalista não surge isoladamente, mas em coletivo, enquanto um sistema de Estados, sendo essa multiplicidade um traço estrutural do capitalismo. O espaço geográfico do capital não é o das fronteiras estatais, senão o internacional (OSÓRIO, 2018).
Para entender algumas das causas, consequências e contradições oriundas de um sistema econômico cada vez mais internacionalizado e mediado por Estados nacionais e organismos internacionais (CALDAS, 2018, p. 158-162), iremos partir da exposição apresentada na obra Teoria da Derivação do Estado e do Direito (CALDAS, 2015), distribuindo algumas das contribuições decorrentes do debate derivacionista em cinco blocos distintos. 55
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1. O desenvolvimento histórico do capitalismo em escala mundial Simon Clarke, integrante do debate da derivação do Estado, redigiu uma obra em 1974 na qual trata do desenvolvimento do capitalismo em seus aspectos gerais (CLARKE, 1974, p. 27 et seq) e procura mostrar justamente como o predomínio das relações capitalistas no interior de cada um dos Estados não pode ser explicado apenas a partir do exame de seus elementos internos, sendo necessário, portanto, apontar como uma realidade local impactou e foi impactada pelo mercado internacional, ou seja, pelos demais países. Clarke argumenta que o surgimento do capitalismo na Inglaterra produziu consequências diretas nos Estados vizinhos: (i) as mercadorias de baixo custo produzidas pelos britânicos afetaram a produção nacional dos países nos quais eram comercializadas, provocando crises internas e, portanto, consequências para os camponeses e para a estrutura feudal em nível mundial; (ii) os britânicos tiveram de aumentar seu poderio militar a fim de garantir seu domínio e interesses sobre colônias e demais países; e (iii) os demais países passaram a enfrentar uma dupla crise, de um lado, a atividade econômica se enfraquecia e a arrecadação de tributos consequentemente diminuía, de outro, havia a necessidade de fortalecimento do Estado, tanto militarmente – como forma de garantir a defesa interna e a intervenção externa – quanto administrativamente – equilibrando a balança comercial e criando mecanismos para proteger e desenvolver a economia em nível nacional (CLARKE, 1974). Podemos observar ainda que, para aumentar sua capacidade de atuação no campo militar e no administrativo, os Estados dependiam diretamente da existência de uma economia em crescimento, afinal, o aparato militar possui custos materiais significativos e a esfera administrativa, além de ensejar um aparelho burocrático custoso, demanda recursos adicionais, pois determinadas decisões tomadas pela administração pública, inclusive as de cunho protecionista, dependem diretamente das possibilidades orçamentárias do Estado. Se confrontarmos as ideias escritas por Clarke na referida obra com as ideias expostas por Luís da Vinha anteriormente, notaremos, não por acaso, uma situação semelhante entre os britânicos do passado e os norte-americanos da atualidade. O governo Trump se desenvolve a partir de premissas seme-
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lhantes: (i) o crescimento econômico dos EUA relaciona-se diretamente com a indústria bélica, pois o aparato militar demanda vultosos recursos e investimentos, garante a hegemonia política dos norte-americanos em suas áreas de interesse e lhe dá força no jogo político internacional; (ii) as medidas de natureza tributária e administrativa adotadas pelo governo (desde as de natureza protecionista até a construção do infame muro na fronteira dos EUA com o México) são condicionadas pelas possibilidades orçamentárias existentes, portanto, dependem do crescimento da economia. Clarke explica que o predomínio do modo de produção capitalista na Inglaterra foi fruto de um longo processo desenvolvido durante séculos. Nos demais países, no entanto, sobretudo da Europa, isso demandou um lapso temporal muito menor, justamente porque tais localidades foram impactadas pela realidade já amadurecida da Inglaterra (no mesmo sentido BRAUNMÜHL, 1978). Para enfrentar as consequências do capitalismo inglês, os proprietários de terras nos demais países da Europa tiveram de tomar medidas que fortaleceram o modo de produção capitalista e, portanto, a própria classe burguesa. Conforme explica Hirsch, a burguesia, ainda não dominante, precisava se apoiar nos conflitos de classe existentes e utilizar-se do Estado, num ambiente pré-capitalista, a seu favor (HIRSCH, 1978, p.73). Clarke conclui, neste sentido, que existiram diversas razões para que os proprietários de terras agissem nesse sentido: Em primeiro lugar, observamos a crise das finanças estaduais. Esta crise foi dupla. Primeiro, a receita do Estado foi ameaçada apenas quando suas despesas tiveram que aumentar. Segundo, o aumento das importações perturbou o equilíbrio do comércio e ameaçou uma saída de ouro. O desenvolvimento da indústria nacional ofereceu uma solução para ambos os problemas. Por um lado, ele ofereceu uma oportunidade, através de impostos, para o Estado aumentar as receitas. Por outro lado, através da substituição de importações, que oferecia a oportunidade para corrigir o desequilíbrio comercial. Em segundo lugar, o aumento da Grã-Bretanha deixou clara a dependência da força militar pelo Poder econômico. Não só o Poder para financiar uma grande máquina militar, mas também o Poder de fazer todo o maquinário militar necessário. Assim, o desenvolvimento do capitalismo era a única maneira de enfrentar militarmente a Grã-Bretanha. Em terceiro lugar, os países que desenvolveram o capitalismo já tinham experimentado alguma comercialização da agricultura, a diferenciação do campesinato, o desenvolvimento da manufatura em larga escala. O
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núcleo de uma classe capitalista já existente e a classe latifundiária tiveram uma experiência de melhoria agrícola (CLARKE, 1974, p. 29-30).
Além de tratar das especificidades do caso britânico, o autor procura explanar a respeito das particularidades de alguns países, mostrando, de certa forma, uma preocupação mencionada anteriormente: realizar uma análise da constituição histórica do Estado, ou seja, da realidade particular de cada uma das localidades, neste caso, conjugada com uma explicação a respeito da economia mundial. No entanto, é justamente em outro ponto – a constituição formal do Estado – que Clarke ainda mostrará certas insuficiências (que serão superadas em escritos posteriores – vide CLARKE, 1991). Isso fica evidenciado no seguinte excerto de sua obra: Mas não é apenas como um impedimento direto que o Estado é importante, pois é o Estado que codifica e administra a lei. O tipo de direito que o capitalismo exige para o seu desenvolvimento é muito diferente do que o adequado, por exemplo, para uma sociedade feudal. As mudanças mais importantes no Direito estão relacionadas, não por acaso, à propriedade de um lado e ao trabalho do outro. Por exemplo, é necessário para o desenvolvimento do capitalismo que a usura seja legal. É essencial que a ideia feudal de propriedade como sendo algo social, o que implica obrigações sociais, seja substituída pela ideia capitalista de propriedade como sendo algo privado e livremente transferível, o que implica em direitos, mas em nenhuma obrigação. É essencial que haja leis para obrigar as pessoas a trabalhar, ou seja, as leis contra a vadiagem, e as leis que permitam a remoção de trabalhadores de seus meios de produção, de modo a criar uma força de trabalho livre (CLARKE, 1974, p. 50).
Neste trecho, Clarke acaba por incorrer num equívoco relativamente comum no próprio marxismo: tentar explicar as particularidades do Direito no capitalismo, em relação ao feudalismo, a partir de uma mera descrição do conteúdo das normas jurídicas, no caso, afirmando, por exemplo, que as leis passaram a tolerar a usura (favorecendo a economia financeira), a punir a vadiagem (constrangendo os trabalhadores a se inserirem no modo de produção capitalista). Com isso, no máximo, torna-se possível observar que as leis passaram a ter uma funcionalidade para o modo de produção capitalista. Uma crítica a esta argumentação não significa negar que isso tenha ocorrido, mas sim mostrar a insuficiência de 58
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se limitar a análise do Direito aos seus conteúdos, cujo resultado é a ausência completa a respeito da forma jurídica e sua relação com a forma mercadoria, nos moldes apresentados pelo jurista soviético Pachukanis (PACHUKANIS, 2017 [1924]) e por outros autores da teoria da derivação (CALDAS, 2015, p. 105-150).
2. A tensão entre as frações do capital nacional e internacional Bob Jessop, autor que dialoga diretamente com os principais participantes do debate da derivação do Estado, afirma que a constituição histórica dos Estados deve ser pensada necessariamente em termos do mercado mundial, o que implica entender: (i) a articulação do modo capitalista de produção com outros modos de produção e/ou formas de trabalho privado e social; e (ii) o desenvolvimento em termos de internacionalização da mercadoria, do dinheiro e do capital produtivo (JESSOP, 1982). O objetivo de uma teoria assim formulada é conseguir explicar como o Estado-nação possui uma tendência e uma contratendência de internacionalização que se relaciona com as lutas de classes, sobretudo se consideramos que a relação de um Estado com seus pares e com o mercado mundial pode estar mais vinculada ao interesse da burguesia ou do proletariado. Além disso, o enfoque limitado ao Estado-nação e ao capital nacional, ou seja, o desvio da compreensão do mercado mundial, poderia resultar na ideia de que seria necessário um Estado único para assegurar as condições necessárias para reprodução do capital em geral, complementando as forças de mercado mundial, uma vez que o movimento decorrente da lei do valor, por si só, seria insuficiente para tanto. Jessop considera um equívoco tal afirmação (no mesmo sentido, HIRSCH, 2010): apesar de existirem forças hegemônicas no nível mundial (seja Estado-nação, capital nacional ou fração internacional) atuando sobre a pluralidade de Estados-nação (JESSOP, 1982), isso não indica um movimento de consolidação de um Estado global. Os pontos acima mencionados aparecerão desde o início do debate sobre a derivação e em momentos posteriores. De início, cabe indicar a precursora dessa questão: Claudia von Braunmühl. A pensadora e cientista política Claudia von Braunmühl se sobressaiu no estudo a respeito do Estado e sua internacionalização ao tempo do debate da derivação do Estado. Pelo menos dois artigos da autora daquele período podem 59
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ser destacados: “Movimento do mercado mundial do capital, Imperialismo” – Weltmarktbewegung des Kapitals, Imperialismus und Staat (BRAUNMÜHL, 1973); “Acumulação do capital no contexto do mercado mundial: abordagem metodológica para uma análise do Estado nacional burguês” – Kapitalakkumulation im Weltmarktzusammenhang. Zum methodischen Ansatz eine Analyse des bürgerlichen Nationalstaats (BRAUNMÜHL, 1974). Em ambos, a análise do mercado mundial se faz presente como elemento para formular uma teoria a respeito do Estado. A autora alemã argumenta que a acumulação primitiva foi a premissa para a formação dos Estados e teve como base necessária de seu desenvolvimento o mercado mundial, que passou também a desempenhar um papel chave na organização da produção e circulação das mercadorias, relacionando-se com a valorização do capital-dinheiro. Nas palavras de Braunmühl (1978, p. 168): A existência de unidades políticas nacionalmente delimitadas, dotadas de atribuições soberanas, foi, desde o início, a premissa e meio específico do estabelecimento e consolidação de uma relação de troca fundada na divisão do trabalho e baseada no modo de produção capitalista, e, portanto, do desenvolvimento das leis do capital. Porém, ao mesmo tempo, o surgimento do modo de produção capitalista tinha como premissa fundamental o mercado mundial, de um lado, no sentido de conquista e tesouros e na absorção de mercadorias; de outro lado, o mercado mundial era atmosfera vital do capital no sentido de que os processos de acumulação fragmentários não se ligavam formando uma única unidade, mas sim, aproveitando e modificando as funções das delimitações e dos aparatos de dominação pré-existentes, tendo assumido formas políticas de organização – precisamente o Estado burguês – que se relacionavam competitivamente com as demais.
Dentro do modo de produção capitalista, a relação social desenvolvida é necessariamente de competição entre os vários capitais particulares; no entanto, a relação entre eles, no nível internacional, ocorre com algumas particularidades importantes, produzindo impactos significativos para as funções do Estado e, podemos acrescentar, para o Direito também. Claudia von Braunmühl (1978) explica que os capitais particulares em competição procuram os meios necessários para manter e ampliar a acumulação de capital, o que inclui a apropriação dos aparatos estatais para dirigi-los a favor de seu interesse, criando assim as condições mais favoráveis para tanto (podemos afirmar ainda que isso ocorre inclusive por meio da criação de normas jurídicas especial60
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mente voltadas para tal objetivo). Como consequência, no nível internacional, duas situações passam a coexistir: de um lado, há o fortalecimento dos múltiplos centros econômicos – os Estados-nação – voltados a assegurar a acumulação do capital; de outro lado, há a internacionalização das condições de produção e de circulação da mercadoria e do capital, realizada por intermédio dos organismos internacionais e do direito internacional. Ocorre, assim, um movimento dentro de uma relação de contradição, pois a internacionalização se desenvolve de maneira concomitante e concorrente com a nacionalização das condições de acumulação do capital. Podemos notar que tal situação fica evidenciada pela crescente importância dos organismos internacionais e do direito internacional, voltados para normatizar o circuito de trocas mercantis em nível mundial, utilizando inclusive sanções para tentar fazer valer suas regulamentações e decisões, o que serve para conferir maior estabilidade às condições gerais de reprodução do capital. Os Estados nacionais por sua vez, atendendo às demandas políticas em seu interior, tratam de resistir ou não a tais pressões, dinâmica esta que depende da correlação de forças entre classes e agentes sociais (estatais e privados) envolvidos e interessados nesse processo. Nesse contexto, existe uma tensão permanente entre as forças nacionais e as internacionais. A autora procura, assim, incluir uma análise acerca do desenvolvimento da economia e do mercado mundial na elaboração de uma teoria do Estado, mostrando que a compreensão histórica das funções estatais deve ser feita considerando o circuito de trocas mercantis em nível nacional e internacional, que se desenvolve com a industrialização e a consequente divisão internacional do trabalho: Portanto, com a revolução industrial, o processo de industrialização do País tornou-se ativamente abrangido pela estrutura de divisão internacional do trabalho, e, operando de acordo com a dinâmica da valorização do capital, efetuou mudanças permanentes sobre ele. No processo violento pelo qual a estrutura da divisão internacional do trabalho foi estabelecida formou-se a estrutura de comércio e de produção das colônias, de modo a satisfazer os requisitos de produção e do capital industrial (cf. Capital vol. 1, p. 705) e, assim, alcançar a acumulação necessária para assegurar o dispêndio de capital suficiente para o sucesso e a prosperidade do modo de produção capitalista nas regiões metropolitanas. A estrutura das relações internacionais tornou-se “a expressão de uma particular divisão do trabalho” (Marx, Carta a Annenkob, MESW vol. 1, p. 520) e alterado de acordo com ela; histórias distintas e particulares subsumiram-se e condensaram-se em uma única história mundial (A Ideologia Alemã [...]) (BRAUNMÜHL, 1978, p. 170, tradução nossa).
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E prossegue a autora, explicando como a expansão do capitalismo inglês impactou a organização política dos demais Estados: Considerando que a Inglaterra estava em competição no mercado mundial com os Estados que ainda estavam na fase de um capitalismo mercantil quase puro, os Estado europeus foram confrontados em ambos os mercados, interno e externo, por um concorrente tecnologicamente superior com conexões de mercado extensas que estava permanentemente na condição de efetuar transferência de valores por meio de trocas desigualmente lucrativas. Eles foram, assim, forçados, por um lado, a criar um complexo de produção e de circulação sem prejuízo do seu próprio controle e protegido, tanto quanto possível, de influências externas, por meio de tarifas de proteção, e por outro lado, revolucionar as relações econômicas e sociais para introduzir as relações capitalistas e promover o desenvolvimento de condições de concorrência da produção, ou, em suma, para desenvolver um capital nacional, que seria competitivo no mercado mundial. Quanto menos as relações pré-capitalistas de produção já estavam em estado de decadência, mais a aceleração mediada pelo Estado para acumulação contribuiu para a petrificação das relações pré-capitalistas de classe, e mais o aparelho de Estado ativo tornou-se autônomo. Assim, em cada país metrópole que foi submetido à acumulação primitiva e à revolução industrial na esteira da Inglaterra, as relações de classe e a relação do aparato de Estado com a sociedade comportaram-se de uma maneira específica marcada pela posição do país no mercado mundial (BRAUNMÜHL, 1978, p. 171, tradução nossa).
Os argumentos desenvolvidos por Braunmühl servem assim de embasamento para a tese de que a constituição do mercado mundial está relacionada com a organização do trabalho dentro dos moldes capitalistas no interior dos Estados nacionais, nas palavras da autora o “[...] Estado nação burguês é parte, tanto historicamente, quanto conceitualmente, do modo de produção capitalista” (BRAUNMÜHL, 1978, p. 173). Sendo assim, a internacionalização do circuito de trocas mercantis impacta a formação dos Estados e do Direito em escala mundial. Trata-se de uma linha de pensamento que será utilizada por outros autores inseridos no debate da derivação do Estado, como Werner Bonefeld e Joachim Hirsch, apresentados a seguir.
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3. A tendência imanente de internacionalização do capital Werner Bonefeld apresenta ideias que contrastam com aquelas expostas por Clarke anteriormente e serve para ilustrar como o Estado pode ser pensado a partir da economia mundial e das categorias econômicas de Marx. Bonefeld explica que o capital tem a tendência de expandir a apropriação da mais valia e de homogeneizar a realidade social, que se realiza no deslocamento da produção e circulação das mercadorias para mercado mundial (MARX; ENGELS, [18571858] 2007, p. 40 et seq). Ocorrendo isso, desenvolve-se concomitantemente a existência do trabalho abstrato na realidade concreta do mercado mundial, pois ele integra o próprio processo pelo qual o capital se reproduz (BONEFELD, 1992). Para sustentar sua argumentação, Bonefeld remete a diversos excertos dos Grundrisse de Marx, nos quais este explica que: (i) há uma dupla tendência do capital, primeiro a de criar continuamente mais trabalho excedente, segundo a de aumentar os pontos de troca (que por sua vez permite a absorção do trabalho excedente), razão pela qual “[...] a tendência de criar o mercado mundial está imediatamente dada no próprio conceito de capital. Cada limite aparece como barreira a ser superada” (MARX; ENGELS, 2007 [1857-1858], p. 332); (ii) nas economias originárias a totalidade da troca era acessório relacionado com o supérfluo; no capitalismo, a atividade mercantil será um momento intrinsecamente ligado à produção como um todo; assim, o próprio dinheiro aparecerá de forma diferente: não mais como troca do excedente, mas como “[...] saldo do excedente no processo global da troca internacional de mercadoria”, sendo agora “moeda tão somente como moeda mundial” (MARX; ENGELS, 2007 [1857-1858], p. 170); (iii) no mercado mundial “a produção é posta como totalidade, assim como cada um de seus momentos, na qual, porém, todas as contradições simultaneamente entram em processo” (MARX; ENGELS, 2007 [1857-1858], p. 170-171), razão pela qual a produção se constitui ao mesmo tempo, como pressuposto e portadora dessa totalidade. Bonefeld concluirá, então, que a inversão da reprodução social como produção do capital se completa em nível mundial: O mercado mundial como o resultado do deslocamento conceitual da abstração substantiva transforma-se em uma premissa da riqueza abstrata, uma premissa que serve como um pressuposto para a reprodução das relações sociais de produção. O mercado mundial constitui um modo de existência da presença do trabalho dentro do capital. As condições de vida são, assim, subordinadas ao desenvolvimento concreto mais abun63
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dante da tendência antagônica do capital e do trabalho. Assim, a expansão máxima do processo de riqueza abstrata fundada na exploração inclui também a expansão do poder do dinheiro como forma de valor por causa do caráter internacional do circuito do capital-dinheiro dentro do circuito do capital-social, situado no mercado mundial. Do ponto de vista conceitual aqui defendido, o deslocamento da presença do trabalho no interior do capital da produção para o mercado mundial subordina as condições de vida para a forma mais ricamente desenvolvida da categoria de trabalho abstrato (BONEFELD, 1992, p. 112-113).
Com base nessa argumentação, Bonefeld irá afirmar que o desenvolvimento da economia em nível nacional está, portanto, “[...] subordinado à igualdade, à repressão, expressão última e reificada do valor na forma do (caráter internacional do) circuito do capital dinheiro” (BONEFELD, 1992, p. 112-113). Tais ideias levarão o pensador a uma conclusão que ele remete diretamente ao artigo escrito por Braunmühl: a imposição do trabalho, nos moldes capitalistas, ocorrida no interior da economia dos Estados nacionais, tem como premissa a constituição de um mercado mundial. A partir da exposição de Bonefeld, pode-se inferir que a tendência do capital em expandir a apropriação da mais-valia e de homogeneizar a realidade social ocorre em nível mundial, ao mesmo tempo em que, no nível nacional, a liberdade e igualdade formais passam a ser reconhecidas pelos Estados como pressupostos jurídicos para a ocorrência dessa tendência. A exposição de Bonefeld, portanto, ilustra perfeitamente o acúmulo decorrente da teoria da derivação do Estado, especialmente sua ligação direta com a teoria de Braunmühl, mostrando ainda um avanço significativo em termos de teoria do Estado se comparado com os argumentos expostos por Clarke no texto mencionado anteriormente (CLARKE, 1991)2, em que este também se propunha a combinar a análise da constituição histórica do Estado e do Direito com o exame do mercado mundial e das relações sociais do modo de produção capitalista.
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É preciso mencionar que na época da publicação do texto de Bonefeld, Clarke já demonstrava um conhecimento sobre o estado da questão muito mais avançado que aquele presente em sua publicação da década de 1970 (acima analisada). Isso fica evidente em seu artigo intitulado “O debate do Estado” (CLARKE, 1991).
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4. As relações assimétricas entre os estados nacionais desiguais Joachim Hirsch é um dos autores mais destacados do debate da derivação do Estado. Num primeiro momento, a relação entre mercado mundial e Estado é mencionada de forma assistemática em suas obras. O filósofo alemão, por exemplo, argumenta que o controle dos mercados e áreas de investimento no exterior, realizado de forma diplomática ou militar, deve ser visto como um fator que propicia a estabilidade política interna do Estado. Assim, a garantia das condições de reprodução do capital no exterior tem efeitos na ordem interna (HIRSCH, 1978). Tais menções também aparecem na sua obra de 1974, na qual o autor afirma que o modo de produção capitalista se expande em nível mundial, impactando diversos níveis e situações: mecanização da mão de obra, racionalização da organização produtiva; o aumento da exportação do capital e do comércio mundial; avanço do imperialismo e da divisão internacional do trabalho (HIRSCH, 1978). Em um momento posterior Hirsch trata da questão entre internacionalização da economia e Estado de modo mais detalhado. Em obra escrita em coautoria com Roland Roth em 1986, eles descrevem A nova face do capitalismo (HIRSCH; ROTH, 1986), enfatizando preocupações originalmente expressadas ao tempo do debate da derivação do Estado (desenvolvido, sobretudo, na década de 1970). Os autores afirmam que as transformações do tradicional Estado-nação altera a relação entre a sociedade civil e o Estado, sendo tal mudança decorrência do declínio do modelo fordista de produção (expressão que se torna recorrente entre diversos pensadores da derivação), que, por sua vez, é explicado, sobretudo, como resultado das crises econômicas e da crescente internacionalização do capital (HIRSCH; ROTH, 1986). Os autores explicam que o crescimento da competição internacional aumenta a pressão sobre diversos setores, inclusive sobre o Estado, que procura adequar-se a essa realidade em vários níveis, desde a produção de conhecimento – especialmente nas áreas de ciência e tecnologia – até a infraestrutura necessária para exploração dos recursos naturais e para produção e circulação de mercadorias (HIRSCH; ROTH, 1986). Podemos acrescentar, ainda, que a legislação, a jurisprudência, o direito internacional e a própria organização judiciária (MASCARO, 2003) dos Estados sofreram impactos e pressões decorrentes do acirramento da competividade global (GARDUCCI, 2014). 65
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Hirsch e Roth (1986) argumentam ainda que o desenvolvimento do Estado de bem-estar social foi um componente da forma fordista de socialização, tese esta que suscitará intensos debates entre os pensadores da teoria da derivação, que verão, nos novos regimes de organização da produção, uma das razões pelas quais o Estado modificará suas formas de intervenção e regulação da economia. Os autores afirmam ainda que esta adequação entre o regime fordista e o Estado de bem-estar social explica por que determinados grupos do grande capital puderam ser complacentes com as políticas sociais, um fenômeno ocorrido inclusive no Brasil nas décadas de 1960 a 1980. Com essas explicações os autores mostram que a diversidade de Estados não colide com o processo de valorização do capital; pelo contrário, a competitividade destes serve para criar e impulsionar as condições mais propícias para tanto. Percebe-se assim que as considerações a respeito da formação dos Estados na sua relação com a economia mundial constitui uma base relevante não apenas para discutir a origem da organização estatal na Europa, mas também as experiências vivenciadas nos países da periferia econômica (NAKATAMI, 1987), inclusive o Brasil (vide ERKERT, 2018), cujo surgimento na forma independente, no século XIX, ocorreu com a existência da escravidão no território nacional voltada para atender as necessidades da economia capitalista desenvolvida na Europa. A exposição de Hirsch sobre o mercado mundial poderia ser considerada datada, uma vez que foi apresentada há três décadas. Contudo, em uma de suas obras contemporâneas, Teoria Materialista do Estado, o filósofo alemão reafirma o papel fundamental da multiplicidade de Estados no circuito de trocas mercantis no nível mundial, mostrando que a internacionalização do Estado não implica na independência do capital em relação a estes, pois [...] o capital não se torna de modo algum “sem Estado”, mas apoia-se de maneira diferente nas estruturas dos Estados internacionalizados. Tal como antes, as empresas multinacionais voltam-se para os potenciais de força e de organização dos Estados. Por isso, não é nenhum acaso o fato de que elas, geralmente tenham suas sedes nos centros capitalistas dos Estados política, econômica e militarmente dominantes. São os Estados que proporcionam a infraestrutura social econômica e técnica que é ainda mais significativa para o desenvolvimento da tecnologia avançada para o processo de valorização. As redistribuições materiais no interior e entre as classes não são realizáveis sem a violência estatal e a existência dos Estados continua sendo elementar para a regulação das relações de 66
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classe, para legitimação das relações dominantes e para a garantia de certa coesão social (HIRSCH, 2010, p. 180).
A exposição elaborada por Hirsch deixa claro ainda que o direito internacional não pode ser resposta para enfrentar os problemas decorrentes do desenvolvimento das relações capitalistas em escala mundial. Noutras palavras, o agravamento da crise de legitimidade do Estado e aumento na degradação socioambiental estão ligados ao próprio movimento de reprodução e expansão do capitalismo em nível global, tema que Hirsch explora em duas passagens de sua obra mais recente: “[...] a internacionalização do direito envolve um fortalecimento do Estado autoritário e uma perda de poder dos parlamentos. Quanto mais a aplicação do direito se desloca para o plano internacional, mais claramente ela se torna um assunto das burocracias governamentais. Exemplos marcantes disso são não apenas os processos no interior da Organização Mundial do Comércio, mas também na União Europeia com o seu Conselho de Ministros enquanto órgão legislativo próprio. Acentua-se a tendência, inerente à sociedade burguesa, de transformação do Estado de direito em um Estado de medidas provisórias. Essa forma de “implementação jurídica governamental” (ver Bogdandy, 2000) é justificada por sua maior eficiência e por uma “necessidade social” de ação política punitiva – um argumento que sempre ressurge em favor de relações autoritárias” (HIRSCH, 2010, p. 193) [...] “Tal como antes, os estados possuem, dependendo das relações sociais de força nele presentes, uma margem de ação própria, ainda que altamente diferenciada. Isso, por sua vez, fundamenta a possibilidade de diversas estratégias de ligação com o mercado mundial. As desigualdades resultantes disso, como no caso das relações salariais, o padrão ecológico ou a infraestrutura tecnológica, são pressuposto decisivo do processo de acumulação e valorização global. Ele se baseia no fracionamento econômico do mundo, e a existência de Estados é decisiva para que a ‘globalização’ não provoque nenhuma homogeneização das relações de classe e de exploração. A formação de ‘redes de criação de valor’ transnacionais, que representa um meio fundamental da racionalização pós-fordista, apoia-se sobre essas condições. Quanto mais fortemente a política estatal se concentre em criar condições atrativas de valorização em concorrência com outros Estados, visando atrair um capital cada vez mais móvel, tanto mais ela colide com as condições de um desenvolvimento econômico equilibrado e social integrador” (HIRSCH, 2010, p. 180).
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Os debates em torno do Estado e do mercado mundial relacionam-se diretamente com outro tema: as crises econômicas e cíclicas do capitalismo. A década de 1990 e as primeiras do início do século XXI foram períodos nos quais as crises econômicas permaneceram, formando o consenso de que os problemas da década de 1980 e seguintes não eram conjunturais, mas estruturais. O cenário de internacionalização da economia tem mostrado que a interligação dos sistemas econômicos não tem minimizado as crises econômicas dos Estados nacionais, mas pelo contrário: cada vez mais os governantes e governados se veem constrangidos por forças políticas e agentes econômicos externos que determinam, direta ou indiretamente, quais modelos macroeconômicos devem ser adotados e qual legislação e iniciativas de natureza social devem ou não permanecer e serem desenvolvidas pelo Estado. As ideias presentes no debate da derivação do Estado juntamente com as obras mais contemporâneas de Alysson Leandro Mascaro (Estado e Forma Política) e de Luiz Felipe Osório (Imperialismo, Estado e Relações Internacionais), constituem um conjunto teórico indispensável para aqueles que desejam entender como o movimento de internacionalização da economia encontra-se ligado à lógica de reprodução do capital, e como esse movimento tem afetado de forma mais significativa e severa grupos mais vulneráveis, dentre eles os trabalhadores e todos os demais que dependam de legislações sociais e políticas públicas necessárias para manutenção de uma sobrevivência minimamente digna.
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Reflexão sobre a Abordagem Crítica do Direito Internacional1 José Augusto Fontoura Costa2 A corrente impetuosa é chamada de violenta, Mas o leito do rio que a contém Ninguém chama de violento. (Berthold Brecht) O imperialismo deixa um rastro de germes de podridão que devemos detectar clinicamente e remover tanto de nossa terra, quanto de nossas mentes. (Frantz Fanon)
Introdução Quem tem medo do Direito Internacional? As inúmeras afirmações de sua ineficácia e inefetividade apontam para uma resposta negativa. Os Direitos internos se formaram a partir da normalização e centralização do controle do uso da força por grupos armados. Pelo menos a narrativa da formação da Idade Média fala de grupos bárbaros com pouca estabilidade e estruturação administrativa que foram se tornando, à medida em que a produção 1
Este capítulo reproduz, com algumas alterações, o seguinte: Direito internacional e perspectiva crítica. In: Larissa Ramina; Tatyana Scheila Friedrich. (Org.). Coleção Direito internacional multifacetado: aspectos teóricos e históricos. Curitiba: Juruá, 2015. p. 75-92.
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Professor associado do Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo (FD/USP). Livre Docente e Doutor em Direito Internacional (USP). Pesquisador com bolsa de produtividade do CNPq. E-mail: [email protected]
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agrícola passou a estar sob sua responsabilidade, sedentários e territorializados. Por conseguinte, a eficácia (entendida como emprego dissuasório ou efetivo da força como fundamento do poder) vem antes de sua estruturação normativa. A antecede tanto no sentido lógico, quanto, ao que parece, histórico. A reconhecida fragilidade do Direito Internacional, portanto, é estigma congênito: ele não trata de uma domesticação jurídica da força, necessária para que esta, newtonianamente definível como massa multiplicada pela aceleração (F=m.a), seja o suporte material do poder; isso por uma razão simples: não há força a domesticar à exceção daquela já superestruturalmente constituída como poder pelo aparelho estatal. A breve reflexão aqui proposta trata das perspectivas críticas e a construção teórica do Direito Internacional com a finalidade de criar irritação e desconforto em relação a seu desenho clássico. Por isso, já de início, deve-se inverter a compreensão de seus limites: não é a baixa centralização desse sistema jurídico que impede a eficácia, é a ausência de uma força a ser convertida em poder que torna a construção de um aparelho administrativo inútil e perdulária. O texto, portanto, não teme excessos e afirmações estranhas. Muito menos se propõe neutro: trata-se de uma posição intencionalmente enviesada e, em alguns momentos, caricaturesca, afinal ridendo castigat mores. Para tanto, inicia-se com uma discussão do sentido da perspectiva crítica em Direito, com ênfase na reflexão sobre a criação e aplicação internas. Em seguida, abordam-se as peculiaridades do Direito internacional e sua diferenciação em relação às Ordens internas, o que se passa tanto em uma dimensão prática, quanto em uma teórica. Ao fim, propõem-se algumas alternativas para o tratamento crítico da teoria e prática.
1. O Direito como se conhece Uma expressão do Estado: essa parece ser a principal característica do Direito como percebido nos dias de hoje. Tendo como pressuposta a centralização do uso da força mediado pelo aparelho estatal, as manifestações jurídicas servem para instituir tal poder, ou seja, conferir-lhe a condição de instrumento normal do exercício da violência, organicamente estruturado. Por conseguinte, ao estabilizar expectativas
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em torno das reações do Estado aos comportamentos efetivados, impõe parâmetros e controle ao poder como o preço a ser pago por sua legitimação. Decerto, tal concepção de Direito, amplamente compartilhada tanto por juristas quanto por leigos, projeta uma aparência de naturalidade e induz a convicção ideológica de se tratar da única forma de manifestação da juridicidade. Estado e Direito, como conhecidos hoje, são projetados para o passado e para o futuro, como se pudessem ser os mesmos para os habitantes das cavernas e das estações espaciais. Uma análise mais atenta, no entanto, revela o caráter recente e robustamente sustentado por circunstâncias históricas de tais fenômenos, que nada têm de eternos ou essenciais. Seu aparecimento data de aproximadamente dois séculos atrás, junto com a generalização das economias de mercado e do predomínio capitalista. A erosão das instituições sociais e econômicas que sustentavam o modo de produção feudal e a organização urbana das corporações de ofício são profundamente relacionadas com o processo de centralização do Direito, pois as entidades políticas locais e especializadas perderam espaço frente aos reclamos do monarca a uma ampliação de suas competências concomitantemente à reordenação do trabalho, que deixa de estar vinculado ao status social específico de cada atividade e com baixíssima mobilidade para se recondicionar como trabalho assalariado, trabalho livre ou, simplesmente, o trabalho convertido em mercadoria e cujo valor, portanto, deixa de ser estruturado em termos de relações sociais não transacionáveis, formuladas como status, para ser representado quantitativamente em termos estritamente pecuniários. Em um sentido importante, a Grande Transformação de Karl Polanyi (1957) e a passagem de direitos baseados no status para os transacionáveis mediante contrato, de Henry Sumner Maine (1861), ocorrem de maneira concomitante. Do ponto de vista especificamente jurídico, a mais importante mudança da passagem do mundo medieval e moderno para o capitalista deriva da centralização e estatização jurídicas, as quais fizeram possível uma sistemática de legitimação e exercício dissimulado da violência como instrumento de dominação de classe. Antes disso, o Direito era predominantemente fragmentário ou, mais exatamente, policêntrico. Os diversos âmbitos das relações humanas eram regulados por normas de origens diversas, normalmente aplicadas por instituições próprias e especializadas, sem que houvesse um claro predomínio.
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Com efeito, a própria jurificação do domínio dos reis bárbaros substitutos da institucionalização imperial, embora às vezes pautada por compilações normativas cada vez mais afastadas de suas origens romanas, tendia a regular apenas alguns aspectos da vida, principalmente os relacionados ao predomínio militar e à capacidade de exigir os direitos de suserania. Os costumes feudais, originados na própria prática da ocupação e trabalho na terra, não passavam por positivação ou regulação de um poder central, mas tinham um caráter eminentemente local e, decerto, diferenciado de uma unidade territorial para a outra. Aspectos referentes à fé e as relações sociais que com ela se relacionavam, inclusive aspectos contratuais, sucessórios e familiares, ficavam muitas vezes a cargo do Direito canônico e das instâncias jurisdicionais eclesiásticas. Nos portos e feiras livres, vigorava a lex mercatoria e cada guilda estabelecia seu próprio estatuto. Impossível, portanto, se falar de uma unidade formal similar à da atualidade, embora o emprego de fontes romanas como jus commune fosse, pelo menos do ponto de vista teórico, bastante generalizado. Vários processos econômicos, sociais e políticos, porém, foram transformando o Direito a ponto de convertê-lo em um sinônimo de Estado. Tais mudanças ocorreram tanto de forma gradual e contínua, como no fortalecimento das cortes reais inglesas e a extensão de sua jurisdição sobre casos tradicionalmente relegados aos tribunais locais, quanto de maneira aguda, como nas Revoluções Americana e Francesa, as quais estabeleceram tanto a técnica constitucionalista liberal, quanto a codificação sistemática e racional do Direito privado. Assim, na mesma medida em que as relações de troca e o mercado perdiam seu caráter episódico e marginal próprios do tempo em que a economia ainda era feudal e corporativa, o Estado se centralizava e fazia com que um único Ordenamento jurídico fosse válido para todos. A própria noção fundamental de isonomia, literalmente denotando uma mesma (iso) gestão ou regime (nomos) para todos, não se refere a uma igualdade de direitos, mas à unicidade do corpo normativo relevante, evitando a submissão a regras especiais, os privilégios. O mercado se torna central para a organização política e econômica, portanto, em estreita coordenação com a centralização e unificação do Direito em torno das autoridades políticas estatais. A identificação do Direito com o Estado, portanto, ocorre ao mesmo tempo em que o trabalho se mercantiliza e a maior parte das relações econômicas se desloca para uma esfera autônoma,
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afastada da legitimação própria do status e das estruturas sociais que, até havia pouco, redundavam com os papéis econômicos. É nesse sentido que Lukács (1920), ao falar das formas jurídicas, esclarece que: Na sociedade capitalista essas formas são, simplesmente, uma fixação de interconexões cujo funcionamento é puramente econômico, se bem que, com freqüência, as formas jurídicas (...) possam referir-se, sem por isso modificar sua forma ou seu conteúdo, a estruturas econômicas modificadas. Em compensação, nas sociedades pré-capitalistas devem as formas jurídicas necessariamente intervir de maneira constitutiva nas conexões econômicas. Não há aqui categorias puramente econômicas. (...) [A]s relações econômicas e jurídicas são, efetivamente, em razão de seu conteúdo, inseparáveis e imbricadas umas nas outras (grifo no original).
Ressalta-se, portanto, não apenas o caráter eminentemente histórico do Direito hoje existente, mas a centralização de sua administração e a pressuposição da unidade de seu corpo normativo como características próprias do Direito burguês. Tal estrutura não é aleatória, mas corresponde às necessidades da organização das formas produtivas, associada à erosão do status social como determinante das práticas laborais e da mercantilização do trabalho, estabelecendo relações predominantemente mediadas por relações de mercado e, portanto, marcadas pela valorização em termos estritamente monetários. Por conseguinte, a definição de Althusser (2014) do Direito como “sistema de normas codificadas (...) que são aplicadas, ou seja, são tanto cumpridas como circundadas na prática cotidiana”, bem como seu foco na codificação privada, são importantes para a compreensão de tal situação, mas são limitadas para a demarcação funcional. Decerto, é revelador o foco na composição dos princípios e valores incorporados em um Direito voltado a facilitar a circulação de mercadorias, o uso e gozo da propriedade e, claro, a “livre” contratação do trabalho e, portanto, fortemente centrado em um individualismo fundamental, na liberdade como princípio sacrossanto, na igualdade como submissão a um único ordenamento e na propriedade como instrumento de satisfação eficiente das necessidades humanas. Entretanto, sua estrutura formal, que termina por se substituir ao núcleo valorativo-principiológico como critério de validade e aplicabilidade, vem se mostrando mais resiliente como pressuposto da institucionalização do capitalismo, capaz de sobreviver sem a liberdade, como os regimes ditatoriais e totalitários demonstraram.
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2. O Direito Internacional como se conhece Se a transformação do fazer jurídico medieval e moderno em um Direito burguês marcado pela centralização e unicidade de uma ordem territorial como articulada com o rearranjo das forças produtivas se realiza no Estado, o que acontece com o Direito internacional? Do ponto de vista estritamente doutrinário, as partir do momento em que as teorias jusnaturalistas deixam de ser necessárias para a estruturação do núcleo valorativo liberal do Direito interno, com a construção racional do direito escrito e positivado em torno do individualismo, liberdades e propriedade, houve uma profunda cisão dos fundamentos jurídicos. Se as obras de Hugo Grócio ou Samuel Puffendorf, entre outras, construíam a Ordem jurídica internacional sobre as mesmíssimas bases de sustentação do Direito interno – o estabelecimento de parâmetros principiológicos e normativos adequados à natureza humana e pressupostamente refletidos no Direito romano compreendido como ratio scripta – isso se torna impossível a partir da positivação. A mesma base soberana dos atributos do Ordenamento interno, apoiado na centralização do controle do uso da violência, é inadequada e insuficiente para oferecer alicerce a um edifício jurídico internacional capaz de exibir os mesmos atributos de unidade e completude. Se grande parte do exercício do poder se incorpora aos aparelhos estatais internos, a política tende a aparecer nas relações internacionais em sua forma não institucionalizada; manifestação crua, ausentes as justificativas naturalistas. Ainda assim, ressalte-se, a admissão de que o âmbito da Política entre as Nações, para empregar o título da principal obra de Hans Morgenthau (2003), compreendia apenas ações friamente calculadas em termos de poder demorou bastante para ser explicitamente formulada, tendo de esperar o término da II Guerra Mundial. Desprovido de dentes e tornado dependente da vontade das partes mediante a generalização das teorias voluntaristas, o Direito internacional passou a ser visto como eminentemente fraco, lacunoso, de escassa utilidade. Seu estudo, muitas vezes demasiado idealista, passou a ser visto como uma espécie de fisiologia de unicórnio; tratamento detalhado e cientificista de coisa inexistente. Grande parte da expansão econômica para além dos limites territoriais dos países de origem do capital se deu mediante a exportação do Direito estatal,
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mais do que com um fortalecimento de instituições propriamente internacionais. Assim apareceram estruturas coloniais, longa manus da Ordem estatal, e os acordos de capitulação, coroados por uma sistemática de concessões para a exploração de recursos naturais funcionando mediante verdadeiros enclaves jurídicos, não raramente ostentando o músculo militar (COSTA, 2010). O caráter interestatal do Direito internacional, rigorosamente cingido a aspectos das relações entre soberanos, deixava a exploração capitalista em mãos privadas, sem prejuízo da necessidade de apoio aos interesses dos nacionais, esposados em ações de proteção diplomática e, se necessário, algumas canhoneiras. Por conseguinte, grande parte do debate internacionalista do segundo pós-guerra se deu em torno do tema da descolonização, envolvendo aspectos como o reconhecimento dos movimentos nacionais de libertação, o princípio da soberania sobre os recursos naturais e a extensão do Direito costumeiro a novos países, os quais não estiveram envolvidos em sua formação. Essa última questão é difícil de resolver de um ponto de vista estritamente voluntarista, pois é impossível estabelecer uma precedência meramente lógica entre o argumento que afirmava ser o ingresso no sistema internacional condicionado à recepção de todos os costumes existentes ou o de que a vontade limitaria o universo de normas válidas para um país, sendo admissível oposição consistente. A perspectiva política, por seu turno, indica a necessidade de um esforço para a codificação do Direito internacional, pois, dada a cisão do mundo em países capitalistas e socialistas, bem como entre países industrializados e do Terceiro Mundo, não era razoável esperar a plena eficácia de costumes gestados e estabelecidos por um sistema internacional centrado em impérios e metrópoles coloniais. Essa diversidade foi o grande motor da criação de convenções internacionais universais e gerais, capazes de agregar Partes capitalistas, socialistas e não-alinhadas (HIGGINS, 1999). Tal movimento, por razões evidentes, se arrefeceu com o consenso neoliberal dos anos 1990 e, apesar das previsões otimistas da época, tem experimentado escasso progresso. No que se refere à estruturação da produção e, por conseguinte, da opressão do proletariado, o Direito internacional não chegou a ter muita importância: de ambiente capaz de proporcionar excepcionalmente, mediante proteção diplomática, a garantia de estruturas jurídicas adequadas à circulação das mercadorias e mercantilização do trabalho, para um regime internacional do desenvolvimento originalmente centrado no fortalecimento da soberania nacional 79
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para explorar recursos, oferecer serviços públicos e organizar a economia nacional de maneira independente. No primeiro período, rememore-se, o próprio Direito Internacional Econômico não podia ser classificado como universal, pois a clara distinção entre países capitalistas e socialistas se refletia na estrutura institucional e no âmbito subjetivo do sistema de Bretton Woods e do GATT. De outro lado, a afirmação internacional – tanto universal quanto regional – dos Direitos Humanos, mesmo que principalmente limitada ao campo capitalista, terminou por ganhar uma dimensão que talvez as preocupações iniciais com a paz e, sobretudo, com eliminar a possibilidade de um novo Holocausto não fossem capazes de por em perspectiva. Uma perspectiva crítica da construção internacional de mecanismos de proteção dos Direitos humanos aponta, numa primeira análise, para tendências reformistas; isso no máximo. A tríade da liberdade, isonomia e propriedade pode ser divisada, sem maiores esforços, nas declarações e convenções estabelecidas nas duas primeiras décadas posteriores à II Guerra Mundial. Foram, nesse sentido, instrumentos ideológicos de depreciações propagandísticas dos processos soviético e chinês. Deste modo, o Direito internacional como é conhecido hoje é, ainda, um sistema fortemente orientado pelo caráter interestatal e voluntarista. Perspectivas vinculadas aos Direitos Humanos terminaram por ser as que mais se afastaram dessa perspectiva estatocêntrica, pois: (a) aceitaram indivíduos como sujeitos de direitos imediatamente conferidos pela Ordem internacional, admitindo sua legitimidade processual ativa; (b) formularam obrigações erga omnes e um jus cogens para além da estrita garantia e proteção da paz entre Estados; (c) possibilitaram a construção de um Direito Penal Internacional que alberga, também, os interesses das vítimas e atribuiu aos indivíduos legitimidade processual passiva; (d) admitiram a coletividades não personalizadas no Direito interno a condição de interessadas capazes de funcionar como centros de imputação, verdadeiros sujeitos de direitos; e (e) estenderam o alcance das obrigações estatais para além das Liberdades Públicas à necessidade de prestações positivas em diversas matérias, estabelecendo obrigações de proteger, deveres humanitários e exigências ambientais, entre outras. Como, porém, tal Direito internacional se relaciona com as abordagens críticas? Tal resposta depende de uma revisão das próprias perspectivas críticas para uma posterior construção das alternativas epistêmicas e de ação em campos internacionais e transnacionais. 80
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3. Perspectivas críticas Na Ideologia Alemã, Marx e Engels (2001, p. 6) estabelecem a necessidade da transposição da crítica, que “não deixou o terreno da filosofia”, para uma dimensão capaz de compreender e transformar a história. O criticismo funciona, nesta perspectiva, como um instrumento revelador da falsidade dos sistemas de ideias que, construídos pelos sujeitos, mostram-se como se fossem sólidos. Ao mesmo tempo, apontando para os efetivos limites materiais da existência humana, começa a traçar o caminho da revolução possível. Deste modo, a crítica marxista se pauta por um princípio de realismo materialista: As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois verificáveis por via puramente empírica (MARX; ENGELS, 2001, p. 10).
Tal ponto de vista implica em uma relação necessária entre as representações da consciência e as atividades relacionadas com os modos de (re)produção da vida, ou seja, originariamente o pensamento é vinculado ao comportamento material, ao seu desenvolvimento prático (MARX; ENGELS, 2001). Porém essa consciência efetivamente atrelada à existência material é deformada pela opressão, que se revela em “uma força que se foi tornando cada vez mais maciça e se revela, em última instância, como o mercado mundial (MARX; ENGELS, 2001, p. 34).” A crítica filosófica, nesse sentido, não resolve nada e, portanto, a concepção materialista da História: não é obrigada, como ocorre com a concepção idealista da história, a procurar uma categoria em cada período, mas permanece constantemente no terreno real da história; ela não explica a prática segundo a idéia, explica a formação das idéias segundo a prática material; chega por conseguinte ao resultado de que todas as formas e produtos da consciência podem ser resolvidos não por meio da crítica (espiritual) intelectual, pela redução à “consciência de si” ou pela metamorfose em “almas do outro mundo”, em “fantasmas”, em “obsessões” etc., mas unicamente pela derrubada efetiva das relações sociais concretas de onde surgiram essas baboseiras idealistas. A revolução, não a crítica, é a verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria (MARX; ENGELS, 2001, p. 36) 81
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Uma teoria crítica pautada pelo marxismo, portanto, não cuida apenas de revelar inconsistências lógicas ou debilidades discursivas, mas de compreender a relação das estruturas de ideias com o efetivo desenvolvimento das forças produtivas. Ideológico, nesse sentido, é necessariamente falso e falseador da realidade. Mas tal engodo não é inócuo, mesmo quando se ergue sobre a inocência de muitos: a ideologia tem a função de atribuir a relações sociais historicamente mutáveis a condição de estáticas e estáveis; a função de evitar o afloramento da consciência capaz de por em movimento as forças transformadoras do modo de vida em suas diversas dimensões. Ao que parece, foi tal concepção, muito mais do que a tradição da filosofia analítica ou as noções kantianas de crítica, que serviu de ponto de partida, ainda que remoto, para o aparecimento e desenvolvimento de estudos jurídicos críticos no Brasil. É interessante, por exemplo, a noção trazida por Antônio Carlos Wolkmer (2004, p. 7), para quem “a teoria crítica expressa a idéia de razão vinculada ao processo histórico-social e à superação de uma realidade em constante transformação”. A explicitamente admitida filiação à Escola de Frankfurt não permite, decerto, negar os claríssimos ecos do marxismo. Eros Grau (2002, p. 148), da mesma forma, articula uma percepção da crítica jurídica como um conjunto heterogêneo de produções, algumas desviadas, pois: o que se tem praticado como se fora crítica do direito não ultrapassa os limites da crítica do discurso jurídico. A crítica do direito, então, é substituída por uma crítica da doutrina jurídica, que prospera no sentido de desviar o debate a respeito do direito para o âmbito do discurso sobre o direito.
Não cabe aqui, evidentemente, traçar um quadro amplo da complexa e delicada geografia das (auto-)denominadas teorias críticas no Brasil. Entretanto, é possível detectar alguma filiação marxista e proximidade às teorias frankfurtiana e análise dos discursos na trilha de Foucault. Nem tudo isso comporta uma visão radical do Direito como instrumento de opressão, sendo às vezes considerado apenas como instrumento de exercício do poder da classe dirigente mediante o emprego dos aparelhos estatais. O que diz Eros Grau, portanto, se refere ao discurso crítico que não se esteia na materialidade das relações produtivas, mas em uma revisão marxista desencantada com o processo soviético e preocupada com questões discursivas e culturais.
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Pode-se, nesse sentido, contrapor duas categorias de teorias críticas do Direito: uma percebendo todo o sistema como comprometido com a ideologia burguesa e com a opressão do proletariado e outra instrumentalista, conforme a qual ele é um instrumento de controle de comportamento e limitação do aparelho estatal, o qual pode se converter em vanguardista desde que posto nas mãos corretas, ou preenchido com um conteúdo correto. A maior parte do que se viu foi do segundo tipo. Com efeito, a existência à época do aparecimento e difusão de juristas críticos brasileiros de um governo ditatorial e de instrumentos de controle da política e restrição de liberdades públicas favorecia a percepção do Direito estatal como instrumento de efetivação do poder e, concomitantemente, de legitimação técnica a partir de dogmas como o da generalidade da lei, do devido processo legal e da imparcialidade dos processos de tomada de decisão jurisdicional. Consequentemente, o âmbito do especificamente jurídico era percebido como um campo potencialmente neutro, um instrumento que poderia ser usado para o bem se fosse posto nas mãos certas. A crítica, então, demoniza o chamado positivismo ou legalismo, tratado como uma concepção ideológica de subserviência rasteira ao Direito posto, com prejuízo para o dinamismo social e a realização de metas diversas das de legislativos e governos nem sempre democráticos. Hans Kelsen, às vezes, vinha travestido de capeta ou, pelo menos, de algum vendilhão do espírito da Justiça. Seu grande pecado, ao que parece, teria sido o de reduzir o Direito positivo a uma ordem social de controle definida formalmente a partir da capacidade de tornar eficazes as sanções previstas em normas incidentes em face de dada conduta. Tal concepção é denominada pura em razão do rigor epistemológico da construção e da impossibilidade lógica de derivar normas de fatos, bem como da caracterização do especificamente jurídico a partir da eficácia verificável de um Ordenamento válido e não, como na tradição da disciplina, de imperativos morais ou de escolhas políticas (KELSEN, 1984). O esvaziamento promovido por Kelsen, então, podia ser considerado um pressuposto da apropriação do Direito por qualquer ideologia, do fascismo ao liberalismo extremo. Mesmo antes e fora das concepções críticas, é exemplar o comentário de Paulo Nader (1999) sobre a Teoria Pura do Direito (TPD): “A sua falha radica na falta de exigências éticas, o que implica a autorização ou tolerância para que se instalem, sob o pálio da lei, regimes autoritários”. Essa 83
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cantilena é repetida à exaustão, como se o totalitarismo pudesse se apoiar em teorias relativistas, teorias que ao invés de proclamar a plenos pulmões os mil anos de porvir para o verdadeiro Império e a plena realização de desígnios históricos limitam-se a afirmar a capacidade de uma estrutura normativa apoiada no efetivo uso da força ser suficientemente flexível para abrigar diversos conteúdos. Ora, a obra kelseniana, por árida e crua, inspira a crítica. Tende-se a criticar tanto o que não se conhece – e as abstrações da TPD não são para fácil consumo – quanto aquilo que não incensa opiniões pessoais e posições políticas como essencialmente legítimas – e essa possibilidade Kelsen nega desde o princípio. Assim, embora o modelo kelseniano deva ser submetido à crítica, o conjunto ideológico voltado a reconstituir um fundamento moral ou valorativo para a validade ou legitimidade do Direito aponta em uma direção errada: a do retorno a formas jurídicas menos apropriadas para o pleno desenvolvimento das forças produtivas e, por conseguinte, à transformação social que visa o futuro. Querer recompor um núcleo “natural” – mesmo que travestido de histórico – é querer retroceder na compreensão do Direito e na identificação de sua funcionalidade ideológica. Vale recontar a estória dos canhões: pergunta-se se um canhão é bom ou ruim. A maioria dirá que a arma é meramente instrumental e, portanto, neutra. Sua avaliação depende de por quem está sendo utilizada: se por Moscou ou por Washington, por exemplo. Interessante, mas não necessariamente verdadeiro. A percepção de um aparelho militar como instrumental depende da ideologia que considera as cisões internacionais como elemento indissociável da vida política e o caráter bélico do poder como pressuposto do prestígio e força de um país. Nesse sentido, o canhão não é neutro. Mutatis mutandis o raciocínio se aplica ao Direito como descrito por Kelsen. Querer estabelecer um conteúdo naturalizado ou idealizado não é diferente de dizer que o canhão é bom quando serve a um ou a outro. É míope em relação à função geral da Ordem jurídica e, portanto, profundamente ideológica, já que não se apercebe do caráter falsificador que a pressuposição de um único Direito legítimo tem, sempre e quando não seja capaz de revelar seu caráter opressor, não em razão do conteúdo normativo, mas da estrutura pautada pela centralização, isonomia e especialização do campo de produção e aplicação, mas sobretudo mediante o controle da força que, ao submeter o proletariado, protege politicamente as estruturas econômicas. Como lembra Lênin (1918), em clássico emprego dos conceitos de Engels e Marx à realidade política: 84
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Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma ‘ordem’ que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes. Para os políticos da pequena burguesia, ao contrário, a ordem é precisamente a conciliação das classes e não a submissão de uma classe por outra; atenuar a colisão significa conciliar, e não arrancar às classes oprimidas os meios e processos de luta contra os opressores a cuja derrocada elas aspiram.
O funcionamento do Estado, portanto, funda-se na violência como ultima ratio. Não obstante, a aparência de normalidade ideologicamente constituída naturaliza a percepção das instituições e oblitera a visão de transformações e alternativas possíveis. Por isso, como aponta Louis Althusser (2014): [N]a vasta maioria dos casos não há necessidade de violência estatal para intervir, pois para que a prática jurídica ‘funcione’ a ideologia jurídico-moral é suficiente e as coisas seguem ‘por si próprias’, pois as pessoas jurídicas se arvoram nas ‘verdades autoevidentes’ ofuscantemente óbvias de que os homens são livres e iguais por natureza e ‘precisam’ respeitar suas promessas em razão da simples ‘consciência’ jurídico-moral.
Mas (deve-se estar sempre alerta) a violência continua sendo o fundamento estatal. As extensas construções sociais e discursivas obliteram a percepção imediata e escamoteiam a força por trás da prática do Direito, inclusive mediante a articulação de um discurso de especialistas que se mostra duplamente opaco, pois ao mesmo tempo em que se desenvolve numa linguagem capaz de excluir o leigo, tratando de manifestar como “científicas” e “tecnicamente corretas” aquelas decisões jurisdicionais predominantemente políticas, falseia o caráter opressor mediante a constituição de uma legitimidade tecnocrática (CÁRCOVA, 1996). É bastante esclarecedor, nesse sentido, o esquema proposto por Pierre Bourdieu (1986), em que a opressão se perfaz por meio da violência simbólica exercida pelas instâncias estatais, mas legitimadas por campos sociais compostos por acadêmicos, responsáveis pelo caráter técnico e científico do tratamento correto do corpus normativo, assim como por profissionais da advocacia e da judicatura que promovem a construção formal de uma pressuposta e pretensa imparcialidade, travestida de neutralidade. Importante, aqui, rememorar que essa estrutura legitimadora em favor de um Direito capaz de preservar politicamente o espaço para a espoliação econômica ocorre também mediante um ha85
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bitus capaz de incorporar comportamentos adequados às expectativas internas e externas ao campo. Mesmo sem se distanciar muito da percepção de Louis Althusser (2014) a respeito da ideologia como incorporada no aparelho ideológico e nas práticas, a construção de Bourdieu ressalta o papel da autoestruturação dos campos com participantes que desenvolvem seus próprios habitus e formas de legitimação, sem recorrer imediatamente ao aparelho ideológico do Estado, embora sempre tenham no aparelho repressivo o último recurso do Direito. Observa-se, portanto, que o Estado funciona invariavelmente como instrumento de opressão fundamentado na força, mas capaz de construir uma legitimidade ideológica de reconhecimento naturalizado, a crítica do Direito limitada aos conteúdos, não importa se socialistas, liberais ou autoritários, não é suficiente para dar conta da dimensão mais profunda, estrutural, de sua instrumentalidade em favor da contenção da luta de classes. Deste modo, a partir da perspectiva de Bourdieu, o entendimento dos limites da crítica acadêmica passa a ser compreensível na medida em que se inscrevem em um habitus próprio da sistemática social de legitimação da Ordem jurídica burguesa. Em outras palavras: o próprio reconhecimento do profissional ou acadêmico pelo campo jurídico do qual este participa depende de sua proficiência na incorporação de um habitus que reflete uma instrumentalidade ideológica. Essa composição do campo jurídico, porém, ajuda a compreender as dificuldades enfrentadas pela construção de uma teoria crítica do Direito que seja capaz de ir além dos comentários sobre o conteúdo burguês das regulações explicitamente liberais, com núcleos valorativo-principiológicos fortemente atrelados às construções setecentistas. A questão não é simplesmente a de uma identidade de classe dos profissionais vinculados à criação e aplicação da Ordem jurídica a ideologias pequeno-burguesas, capazes de aprisionar a consciência dos próprios estudiosos interessados em produzir trabalhos críticos. Talvez até isso ocorra em alguns casos, já que não é raro encontrar estudiosos e profissionais cujo compromisso com as transformações sociais não ultrapassa as margens do texto, quando sua práxis vital se espreme entre o reacionarismo e o conservadorismo. Entretanto, há um aspecto estrutural mais vigoroso, que ata os construtores do campo jurídico às suas próprias circunstâncias para além da consciência individual, correspondente a uma ideologia que se reduz à ideia. Como ressalta Louis Althusser (2014), a ideologia se inscreve na prática real e, contanto, se (re)produz em termos de relações materiais. Se a ideologia 86
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se resumisse à relação imaginária entre o indivíduo e o mundo real em que se insere, a simples recomposição das ideias resolveria qualquer problema. Mas a ideologia é mais profunda, mais arraigada no mundo material: Essa ideologia da ideologia fala de atos; devemos falar de atos inseridos em práticas. E devemos ressaltar que tais práticas são reguladas pelos rituais em que estão inscritas, na existência de um aparelho ideológico, mesmo que seja apenas uma pequena parte deste aparelho: uma pequena missa em uma pequena igreja, um funeral, um jogo sem importância em um clube esportivo, um dia na escola ou na universidade, um encontro ou convenção de partido político, ou a União Racionalista, ou o que quer que se queira (ALTHUSSER, 2014).
A materialidade da ideologia, portanto, corresponde em alguma medida à do próprio habitus e, com isso, a conformidade de comportamentos adequados que regulam a centralidade dos atores e das ações, das quais derivam as avaliações do capital social e cultural que se pode trocar (BORDIEU, 1986). No que se refere à possibilidade da crítica, seu eventual afastamento dos habitus ortodoxos a reposicionam na geografia do campo. Quanto mais excêntricas, menos as críticas se habilitam a influir sobre a distribuição do capital social e, portanto, a alterar as relações centro-periferia. Os projetos de ganho de reputação, de carreiras que partem das margens em direção ao cerne do campo jurídico, tendem a se conformar – tanto no sentido de se render, quando no de rearranjar sua materialidade em nova forma – aos posicionamentos ortodoxos. Projetos coletivos de reordenação de todo o campo são, do ponto de vista estratégico, bem mais difíceis de idealizar e de por em prática. Além disso, considerando que o campo jurídico, como qualquer outro, se projeta sobre um fundo social de múltiplas dimensões de trocas simbólicas e se constrói sobre a base econômica das forças produtivas buscando seu máximo emprego, evidencia-se a historicidade. O Direito, como o conhecemos, interno ou internacional, é o possível em face das circunstâncias históricas; sua função e instrumentalidade para o suporte do modo de produção capitalista pode ser claramente percebida, assim como sua adaptação às distintas manifestações predominantes do capital (mercantil, industrial, financeiro). Suas características específicas, seu ajuste fino e a composição de institutos e formas, se estabelecem em um espaço de variância razoável, que permite, por
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exemplo, as notáveis diferenças entre o Direito de tradição anglo-americana e o de romano-germânica; os serviços ao capital, porém, são os mesmos. Por conseguinte, além da dificuldade de superar a realidade da pertinência dos profissionais jurídicos a uma classe social – a pequena burguesia – para construir uma consciência capaz de transcender aos limites de seu tempo e lugar, coloca-se a estruturalmente inescapável limitação de que qualquer teoria efetiva e radicalmente crítica está fadada, no Direito como o conhecemos, a posições marginais e excêntricas, as quais condenam o criticismo geralmente aceito aos estreitos limites de um reacionarismo condenado a macaquear a vanguarda.
Considerações finais: para uma perspectiva crítica do Direito Internacional A mundialização jurídica não se processou mediante o Direito internacional, mas por um movimento de generalização e harmonização formal das estruturas dos aparelhos de Estado, normalmente acompanhada da difusão de padrões valorativos e principiológicos. O predomínio clássico de um voluntarismo exacerbante das soberanias, portanto, é consistente com um modelo de expansão do modo de produção capitalista às colônias e periferia econômica do mundo. Fraco, o Direito internacional teve relativamente poucas oportunidades de se colocar como objeto da crítica. À exceção da tentativa majoritariamente frustrada de construir uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI) a partir da Declaração para o Estabelecimento de uma NOEI, do Programa de Ação para o Estabelecimento de uma NOEI e a Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados (todos de 1974) (ABELLÁN, 2003; BROWNLIE, 1982; MELLO, 2000), pouco de efetivo se realizou nesse campo, restando estéril o âmbito do Direito entre Estados. A alternativa, portanto, parece ser a de considerar a construção internacional dos Direitos Humanos como uma base ética e principiológica fundamental – tão fundamental a ponto de encapsular um núcleo moral que chega, de tão duro, a ser pétreo – como o ponto de partida para seu emprego discursivo e pragmático para catapultar conquistas em termos de dignidade e bem estar.
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Às vezes parece patético, como celebrar como grande conquista dos Direitos Humanos a proibição do encarceramento de depositários infiéis em relações de leasing para aquisição de veículos; o proletariado agradece... Em geral, os efeitos da ausência de crítica com referência ao Direito internacional e seu emprego como bandeira para a reformulação de conteúdos jurídicos internos flertam com o reacionarismo, pois se prestam a tratar de mascarar quais as relações de fundo que promovem a opressão e expropriação dos trabalhadores. Há, decerto, usos realmente progressistas dos Direitos humanos, como a luta pelo reconhecimento da subjetividade jurídica de povos indígenas e comunidades tradicionais, ou os esforços para alargar a noção de refúgio e, contanto, circundar as doutrinas xenófobas e nacionalistas. Não há espaço para aprofundar tal discussão neste capítulo, mas a impressão que resta é a de que a efetiva presença de movimentos dos trabalhadores e dos excluídos do capitalismo moderno em torno da ativação desses direitos é a prova dos nove, é o indicador de que se trata de mudanças capazes de realinhar os eixos centrais do jurídico de modo a favorecer uma transformação profunda da sociedade. De qualquer modo, a crítica que possibilita é a do Direito interno, buscando legitimação em documentos internacionais; nada de novo sobre o Direito internacional propriamente dito, senão quando incorporado a ordenamentos nacionais e aplicado por autoridades internas, já que, até o momento, às cortes internacionais de Direitos Humanos só se reservam incensos e loas. Não se pode perder de vista a importante reflexão de que os Direitos Humanos, tal como os conhecemos, foram gestados e paridos ao mesmo tempo em que os princípios do liberalismo triunfaram e os aparelhos estatais passaram a dar esteio ao modo de produção capitalista. Vale recordar a definição de Joaquín Herrera Flores (2009): “a forma ocidental hegemônica de luta pela dignidade humana”. Seu caráter ocidental e hegemônico os relacionam, sim, com a expansão colonial e o domínio dos mais fracos; são, sim, instrumentos ideológicos de imposição de uma forma específica de opressão, a qual passa pela imposição, às vezes violenta, de padrões de economia de mercado. Questionar a efetiva existência de um campo jurídico internacional (COSTA, 2011), unitário ou fragmentado, pode ser um ponto de partida interessante para estender a reflexão crítica – e até a crítica da crítica – à seara dos fisiologistas de unicórnios.
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Marxismo e Direito Internacional: de Pachukanis a Miéville1 Luiz Felipe Brandão Osório2
Introdução Um casamento improvável: assim pode ser retratada a relação entre marxismo e direito internacional. Se a ciência jurídica como um todo já é refratária ao marxismo, o que dirá do direito internacional, que ocupa uma posição periférica, quase que descartável nessa dinâmica. Ao contrário do que possa imaginar o leitor desavisado, há, sim, um elo recôndito, porém, indisfarçável, entre as duas searas. As visões teóricas que tratam do direito internacional não o veem, pois estão ocupadas demais com as falsas problemáticas que emperram qualquer passo adiante. De sua jaula de aço não conseguem escapar, senão pela chave do marxismo. É a crítica à economia política carreada por Marx que elucida a realidade do direito, sobretudo, do direito internacional. Sem essa ferramenta as peculiaridades do ramo não podem ser desvendadas, ficando imersas em infindáveis aporias e paradoxos. Nesse sentido, é Pachukanis que descortina as brumas da incompreensão do direito enquanto ciência social. É desse manancial que se pode extrair o fio condutor que atravessa marxismo, relações internacionais e direito, para tecer o arcabouço que permitirá uma ampla e plena compreensão dos fenômenos internacionais. Essa visão tão impura a ponto de ser incontornável possui, ao menos, três efeitos imediatos. Rompe com a mesmice doutrinária e a insatisfação permanente de poucos, mas bons, juristas críticos, cansados do automatismo abstrato normativista e dos eternos falsos debates sobre filigranas. Escancara a necessidade de uma compreensão do Estado e do direito, como formas sociais do capitalismo, pelo prisma 1
Variações deste capítulo foram publicadas em periódicos científicos, no formato de artigos.
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É autor do livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, pela Editora Ideias & Letras. Pós-doutor em Direito Político e Econômico e Doutor em Economia Política Internacional. Professor de Direito e Relações Internacionais da UFRRJ.
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das relações internacionais (uma vez que o capital é por essência internacional). Ilumina o obscurantismo que cerca o direito internacional dentro do ensino jurídico, um ramo incompreendido por completo, logo, marginal, ministrado sem a devida centralidade que lhe cabe, justamente por ser discutido por uma lente que não capta sua essência, deixando os juristas presos à redoma de sua aparência. Aplicando o método do materialismo histórico-dialético de Marx ao direito, Pachukanis, por meio da teoria da forma mercantil, desfaz as ilusões da doutrina dominante e inaugura uma reflexão original e revolucionária sobre a relação jurídica internacional. Mais que a mera crítica do direito, o autor dissipa as brumas da institucionalidade e abre horizontes de superação da miséria hodierna e de transformações dos horrores do mundo. Portanto, a partir das pistas deixadas pelo jurista soviético, há um fértil terreno a ser explorado. Quem se incumbe da tarefa, trazendo a atualidade do pensamento pachukaniano para os dias de hoje é o britânico China Miéville. O autor vai além de seu mestre, esgarçando os limites da doutrina tradicional e navegando por águas poucos conhecidas ao atrelar a forma jurídica à forma mercantil, o elemento nuclear do capitalismo. Toma a equivalência das formas para desnudar o real caráter por trás das abstrações que circundam a subjetividade jurídica. Ao ressaltar as entranhas da relação jurídica, ele aponta a violência contida na norma legal e inerente de seu caráter. Refuta os raciocínios circulares da doutrina burguesa e busca na troca de equivalentes, na forma mercantil, o fundamento das relações jurídicas, que se desdobram em um terreno de forças e capacidades materiais desiguais. Se forma jurídica equivale à forma mercantil, se a relação mercantil é atravessada pela violência, implícita ou explícita, assim o é a relação jurídica. Em virtude disso, com o auxílio do parâmetro metodológico do ferramental marxista reverberado na teoria da forma mercantil e na teoria materialista do Estado, perfaz o roteiro desse capítulo uma sucinta incursão no pensamento dos dois autores, Pachukanis e Miéville. Desse modo, a primeira seção ocupa-se da vida e obra do autor soviético, a segunda, de sua teoria da forma mercantil e a terceira, do lugar (central) do direito internacional em suas ideias; a quarta, a quinta e a sexta partes tratam respectivamente da vida e obra do internacionalista britânico, sua compreensão sobre direito internacional e a interface do ramo jurídico com o imperialismo. Dessas duas interpretações radicais quando à forma jurídica internacional, parte esse estudo que, ora, se inicia. Adiante! 94
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1. Pachukanis: vida e obra Evguiéni Bronislavovic Pachukanis (também grafado como Paschukanis, Pashukanis ou Pasukanis, em outros idiomas), filho de pais lituanos, viveu entre 1891 e 1937(?) e pode ser considerado o maior expoente da teoria jurídica marxista. Viveu em São Petesburgo e em Munique, na Alemanha, onde estudou e defendeu sua tese de doutoramento. Revolucionário, contribuiu para a tomada do poder pelos bolcheviques, em 1917, primando pelas reflexões sobre o direito naquele momento tão único, contribuindo pela vertente jurídica para a sedimentação das bases comunistas pela via dos tribunais do povo. Com a consolidação da União Soviética, ele ocupou cargos importantes no governo e na universidade de Moscou, obtendo destaque em ambas as esferas3. Chegou até a desempenhar papel diplomático relevante na articulação do Tratado de Rapallo, de 1922, o qual visava à aproximação da Rússia soviética com a Alemanha, da República socialdemocrata de Weimar, tendo sido considerado um movimento estratégico acertado à época (BOWRING, 2017). Após o apogeu de suas ideias e escritos na fértil década de 1920, amargou no decênio seguinte a perseguição política em função da não coadunação de suas concepções teóricas e práticas com o Estado soviético nos moldes de Stálin. A partir das detrações de Vischinsky, procurador-geral à época, foi processado e julgado como inimigo do Estado e da revolução. Nem a revisão que Pachukanis foi obrigado a fazer de algumas noções fundantes de seu pensamento (o que permeou sua obra na década de 1930) salvou-lhe do destino siberiano, para onde foi mandado em 1937, perdendo-se, assim, as exatidões sobre seu paradeiro e morte. Não obstante as circunstâncias trágicas do abreviamento de sua vida, o jurista soviético traçou horizontes incontornáveis para o desenvolvimento teórico do direito (e também do Estado), podendo ser ainda hoje reavivados. Pachukanis dedicou seu pensamento a desenvolver as questões políticas e jurídicas inacabadas por Marx. Em um contexto profícuo, foi contemporâneo de outros dois expoentes de duas tradições distintas da filosofia jurídica4, como Kelsen e Schmitt, com eles dialogando e criticando diretamente (PAZELLO, 2017), além de ter convivido 3
Para mais ver Davoglio (2017) e Hazard (2017).
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Conforme sistematiza Mascaro (2013b), Kelsen, Schmitt e Pachukanis representam cada qual um dos caminhos da filosofia do direito contemporânea, respectivamente, o juspositivismo, o não juspositivismo e o crítico.
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com o soviético Stuchka, a quem ele veio a complementar e avançar na crítica jurídica (MASCARO, 2009). Ele foi um dos responsáveis por desenvolver as teorias do Estado e do direito em meio a um ambiente extremamente favorável, após a inédita janela científica aberta pelo processo revolucionário (ALMEIDA; CALDAS, 2017). A Revolução Russa franqueou aos viventes uma experiência sem paralelos na histórica, servindo de fermento para avanços científicos inéditos e paradigmáticos nas diversas áreas do conhecimento. O que importa salientar, todavia, é a necessidade do resgate das ideias pachukanianas, no que concerne à centralidade que o autor tem para o desenvolvimento do pensamento jurídico crítico. Com a morte de Stálin e o revisionismo na União Soviética, as obras e reflexões de Pachukanis foram reabilitadas, assim como sua condição jurídica, a partir de 1956, voltando a figurar como ícone do pensamento soviético. Desde então, suas noções teóricas vêm impactando consideravelmente os estudos do direito e do Estado. Por exemplo, o debate da derivação do Estado, iniciado na República Federal da Alemanha, a partir das décadas de 1960 e 1970, é norteado com fulcro nas concepções pachukanianas sobre a clivagem entre as esferas econômica e política no capitalismo para erigir-se uma teoria marxista do Estado (HIRSCH; KANNANKULAM; WISSEL, 2017). No Brasil, sua influência é exercida no campo jurídico, alicerçada nos estudos pioneiros de Naves (2000), frutificando por Mascaro (2008) e Caldas (2015), dentre outros importantes expoentes. Em 1988, foram editadas no país duas edições do principal livro do autor, Teoria Geral do Direito e Marxismo, uma pela Editora Renovar e outra pela Acadêmica. Anos depois, em 2017, no centenário da Revolução Russa, as editoras Boitempo e Sundermann trouxeram a obra novamente à baila, com traduções diretamente do original russo. A maior divulgação permitiu uma capilaridade mais ampla das ideias pachukanianas no meio jurídico e político, expandindo o rol de estudos sobre a visão crítica e inovadora do autor.
2. Pachukanis: teoria da forma mercantil Pachukanis esgarçou os limites teóricos ao, a partir do método de Marx, trazer à tona a equivalência entre forma jurídica e forma mercantil, retirando o cerne da ciência jurídica da norma, das relações sociais ou, mesmo, da luta de classes. Sua primeira e mais impactante obra foi publicada pela primeira vez 96
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em 1924, intitulada Teoria Geral do Direito e Marxismo, tendo sido editada novamente no Brasil em 1988 e em 2017. No prefácio à segunda edição, o jurista soviético faz um panorama da obra, alertando ao leitor que o esforço ambicioso para uma teoria geral marxista do direito era ainda incipiente, em moldes de um rascunho. Em função disso, direito e marxismo aparecem apartados no título. Em sua concepção, faltava ainda um aprofundamento maior em questões relevantes como as processuais, penais e internacionais para a formulação de uma teoria geral marxista. Ainda assim, essa primeira reflexão é responsável por alterar substancialmente as bases da compreensão jurídica. Partindo do materialismo histórico, Pachukanis esboça as linhas mestras do pensamento marxista sobre a ciência jurídica, traçando uma conexão profunda do direito com o capitalismo, a partir da forma mercantil, núcleo do capitalismo. O rigor com a historicidade é um ponto nevrálgico de seu raciocínio. Apesar de existir regras e mandamentos em modos de produção pretéritos, é somente na consolidação do capitalismo, enquanto modo de produção mundial, que o direito adquire centralidade, torna-se um elemento estrutural da dinâmica, e, portanto, ganha especificidade, a própria dos valores capitalistas. O direito é capitalismo tanto quanto o capitalismo é direito. Como no cerne das relações de produção se encontra a troca mercantil, é fundamental entender sua correlação com a forma jurídica. Pachukanis chama a atenção para o fato de que o direito não é apenas capitalista em seu conteúdo, mas, também e fundamentalmente, em sua forma. Em outras palavras, ele não se atrela ao formalismo puro, a-histórico e abstrato dos normativistas e, ao mesmo tempo, afasta-se dos sociologistas ao não focar apenas nas relações sociais que conformam o direito. Ele não rejeita o enlace formal na análise dos fenômenos sociais e aponta para a forma legal derivada do direito realmente existente, aquele oriundo das relações materiais concretas, dadas em terreno do capitalismo. Nesse diapasão, parte-se do direito concreto, vinculando o abstrato ao real para a explicação da realidade das relações sociais, investigando o porquê elas tomam a forma legal. Essa é a forma particular de um tipo de relação. Em verdade, as regras sempre derivam de alguma relação histórica e concreta. O conteúdo da relação jurídica é determinado pelas relações econômicas, oriundas do modo de produção capitalista, que funciona e se reproduz pela lógica da circulação mercantil, que configura a relação de troca (de equivalentes) entre possuidores de mercadorias (como os meios de produção e a força de trabalho). 97
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Em outras palavras, tenta-se aproximar a forma do direito à forma da mercadoria. Logo, o direito pode ser visto como uma relação social específica, que relaciona o intercâmbio de mercadorias por aqueles que detêm personalidade jurídica. Nessa lógica, a coerção garantidora das trocas está implícita e é exercida em última instância pelo Estado, uma vez que a força tem que ser a condição geral de manutenção das relações de troca. Diferentemente do que possa parecer, o direito não é um fenômeno dado e imutável em sua essência, o qual sempre existiu desde as primeiras coletividades. Muito menos é consequência das sofisticadas elaborações teóricas dos grandes juristas. Por mais que visões tradicionalistas tentem sobrevalorizar seu objeto de estudo, atomizando-o, não há como separá-lo das relações sociais concretas, das quais ele é resultado. A forma jurídica traduz o emaranhado das relações jurídicas. A sociedade apresenta-se em uma cadeia perene de relações jurídicas. Por isso, ele é valorizado e sob ele recai o enfoque do ordenamento jurídico. Nesse aspecto, atomizam-se os corpos sociais, os quais, ao invés de divididos em classes, são pensados individualmente. Toda pessoa que nasça com vida, independentemente de sua vontade, adquire personalidade jurídica, em outras palavras, torna-se sujeito de direito. Assim também ocorre com os bens ou as coisas, aos quais são atribuídos valores, logo, são transacionáveis como mercadoria. Nessa mesma categoria mercantil é colocada a força de trabalho. Com isso, sujeitos de direito e agentes da produção se coincidem, independentemente do lugar que ocupam no processo (quer proprietários dos meios de produção, quer trabalhadores). A condição jurídica fixa-os como indivíduos livres e iguais, na prática de seus atos. As relações de troca ao se generalizarem precisam de um substrato que lhes assegure unidade. O direito e o Estado (PEREIRA; ERKERT, 2016) preenchem essa lacuna, uma vez que as leis que o compõem revestem-se de generalidade e abstração, sendo aplicáveis a todos, independentemente da vontade ou do lugar dentro da divisão do trabalho. Nesse sentido, a subjetividade jurídica desempenha o papel de amálgama o processo generalizado de trocas mercantis. Em outras palavras, para que estas sejam efetivas, resta imperioso que os indivíduos sejam tratados de forma isolada e atomizada. São iguais, independentemente de classe social e do lugar na divisão do trabalho (se proprietário dos meios de produção ou se trabalhador). São livres para dispor do único bem que inerentemente detêm, a força de trabalho, valorada pelo salário. Portanto, o cerne do direito se funda, em última instância, nas relações de troca. Logo, 98
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Pachukanis não guarda nenhuma ilusão quanto à superação do capitalismo pela forma jurídica. Qualquer ideia próxima de um socialismo jurídico (NAVES, 2012) não lhe traz falsas esperanças de transformações. Se o direito é forma jurídica do capitalismo, e o capitalismo é um modo de produção mundial, as relações sociais concretas do capitalismo também impactam nas relações internacionais. Logo, o direito internacional é uma seara que, desde o início, já requeria a devida atenção do jurista soviético. Se em sua obra basilar não houve nenhuma seção específica sobre o tema, mas pistas relevantes espaçadas pelo livro, já no ano seguinte, em 1925, o autor dedica um artigo voltado ao tema, no qual ele esmiúça os meandros do direito internacional. Na visão de Pachukanis (1980), aliás, é no direito internacional que se pode ver com maior nitidez, sem as turvações próprias da aparência das formas sociais, o real caráter do direito, logo, o cerne de sua teorização.
3. Pachukanis e Direito Internacional A preocupação com o direito internacional, especificamente, permeia toda a obra do autor, a qual pode ser verificada não apenas em seu livro principal, como acontece mais abertamente nos capítulos 2 e 6, quando aborda respectivamente relação e norma; e direito e moral, mas também ao longo de todos seus escritos até sua morte. Por exemplo, data do ano seguinte, 1925, o verbete sobre direito internacional, seu texto mais relevante e direto sobre o assunto. Seu interesse sobre as relações internacionais não arrefeceu; atravessou sua carreira, constando escritos em 1927 e 1928 sobre soberania, Estado, imperialismo, política internacional, economia mundial, guerra e a ciência do direito internacional. Mesmo na revisão que fora obrigado a fazer sobre suas ideias, a partir da década de 1930, no contexto de perseguição e censura que sofrera, não minguaram as reflexões sobre a seara, ainda que distantes de suas concepções originais, como os ensaios sobre direito internacional, em 1935. Conforme advertido pela ampla incursão de Naves (2000; 2009) na vida e obra de Pachukanis, os escritos sobre os temas acima ainda estão, em sua maioria, em russo, sem tradução para outros idiomas. O cerne das reflexões sobre direito internacional encontra-se, todavia, disponível, o que, indubitavelmente, permite pavimentar o caminho da crítica. O direito internacional, em geral e até hoje, padece da incompreensão sobre di99
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reito e Estado que é fatal para que a ciência jurídica seja tratada como a teoria das técnicas normativas. Em virtude do ancoramento do direito e do Estado em bases movediças, como o normativismo ou o sociologismo, já denunciados por Pachukanis, o direito internacional torna-se a face mais nítida da falácia. Por não ter o revestimento que o Estado (enquanto ente superior dotado do monopólio de coerção e, por isso, garantidor das normas em última instância) confere aos ramos do direito interno, o real cerne da ciência jurídica fica desnudado, e sem sua roupagem fica indecifrável. Muito em função disso, o direito internacional é uma seara periférica no ensino jurídico hodierno, ficando relegada a professores de direito constitucional que enfocam os aspectos externos. Por não ser compreendido, não é desenvolvido, ficando preso a inférteis e infindáveis discussões. Para o viés normativista ou juspositivista são as normas (decorrentes, majoritariamente, do poder legiferante estatal, mas também oriundas de outras fontes) que criam o direito, e é o aparelho coercitivo estatal que lhes garante efetividade por meio do uso exclusivo da força. Sem o ente superior dotado do monopólio de coerção, a efetividade do direito internacional dependeria de uma jurisdição voluntária, ou seja, do comprometimento dos Estados em cumprir os acordos, o que poderia até retirar seu caráter jurídico, de obrigatoriedade. Em torno desses dois aspectos (legitimidade e obrigatoriedade) reside a discussão doutrinária majoritária do direito internacional (DINH; DAILLIER, 2003). Esses parâmetros induziram a história do direito internacional a ter a discussão ontológica como central, ocasionando a clivagem entre os que consideram ou não o ramo como jurídico. A vertente sociologista ou não juspositivista aponta o direito internacional como um mero instrumento em meio às relações de poder entre os Estados. Quem detém a força ou o poder decisório é que faz o direito (cria, tem o poder legiferante, daí advêm a legitimidade das normas) e, ao mesmo tempo, é quem executa (impõe a obrigatoriedade). As relações de força são relevantes na dinâmica internacional, mas, por si só, não explica a totalidade do fenômeno. Isso porque também recaem na necessidade de um Estado ou de um condomínio de Estados para dar efetividade ao direito. Em uma leitura mais extremada desse prisma, sequer haveria direito, mas apenas poder, relegando o direito internacional mais a uma noção de moralidade do que de juridicidade (obrigatoriedade). Em outras palavras, os juristas de ambas as tradições caem na mesma armadilha. Ei-la: para que o Estado-nação seja reconhecido como tal no capitalismo ele precisa do reconhecimento de seus pares; o reconhecimento de sua 100
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condição significa que, além de povo e território, a autoridade política que o governa é soberana; dotado desses atributos, notadamente da soberania, o Estado adquire subjetividade jurídica ou personalidade jurídica, logo, passando a ser considerado um sujeito de direito, detentor de direitos e deveres na esfera internacional; se ele é sujeito de direito, ele tem o poder legiferante, de criar normas jurídicas, as quais compõem o conjunto de regras e normas que esculpem o direito internacional. Resumindo: para ser sujeito de direito, o Estado precisa ser soberano. Se for soberano, o Estado decide cumprir ou não o direito internacional, a depender de sua vontade. Portanto, se o Estado for soberano não há direito; e para haver direito, o Estado não pode ser soberano. Em meio ao aparente paradoxo, o jurista soviético logo identifica o que está travestido nos infindáveis debates tradicionais: nas relações internacionais, o Estado não encarna a norma objetiva, mas é portador de direitos subjetivos. Ademais, a inegável ausência de uma ordem coercitiva externa, que tanto aflige os internacionalistas, recebe uma importância desmedida, pois ela não desempata a contenda. Ela não é decisiva para a configuração da relação jurídica, a qual não é garantida pela força, mas pelo reconhecimento do vínculo pelos dois polos, os sujeitos da relação. O direito não é norma; é relação jurídica, por isso, não depende necessariamente de coerção estatal para existir. O corpo coercitivo garante, mas não cria a relação, a qual subsiste sem a terceira força, mas não resiste ao desaparecimento de um dos dois polos da relação, os sujeitos de direito. Não se pode dizer que a relação entre o credor e o devedor seja criada pela ordem coercitiva de dado Estado como punição pela dívida. Tal ordem, que existe objetivamente, garante, mas de modo nenhum engendra, essa relação. (...) Podemos imaginar um caso-limite, em que, além das duas partes, esteja ausente uma terceira força capaz de estabelecer a norma e de garantir sua observância (...) – nesse caso, a relação se mantém. No entanto, basta imaginar o desaparecimento de uma das partes, ou seja, um dos sujeitos portadores de interesse autônomo isolado, para que a própria possibilidade da relação desapareça imediatamente. (PACHUKANIS, 2017, p. 100).
Sujeito e relação jurídica existem para além da norma objetiva, uma vez que o Estado pode conformar o direito, mas não o engendra. Nesse sentido, a forma política estatal guarda uma relação de conformação com a forma jurídica, mas ambas não se confundem. Nesse diapasão, a comparação com a forma valor é pertinente.
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Contudo, teoricamente, essa convicção de que o sujeito e a relação jurídica não existem fora da norma objetiva é tão errônea quanto a convicção de que o valor não existe e é determinado a não ser pela oferta e pela procura, uma vez que, empiricamente, se manifesta apenas na flutuação do preço. (PACHUKANIS, 2017, p. 101).
A evidência inafastável de que o direito internacional não conhece nenhuma coerção externamente organizada significa apenas que ele se caracteriza pela instabilidade, mas não há fundamentos para contestar sua existência. Ainda assim, discutir estabilidade é definitivamente infrutífero, pois não se pode verificar um ramo jurídico (mesmo aqueles do direito interno) absolutamente estável. A instável e precária natureza do direito internacional é encontrada em várias outras áreas já consolidadas do direito, como o civil ou penal, por exemplo, nos quais a maior parte das relações ocorre sob a influência de pressões limitadas pelos próprios sujeitos, e não exatamente e estritamente pela força policial ou dos tribunais. O que há é uma diferença de gradação entre as searas civil (ou penal) e internacional. As relações jurídicas não são totalmente dominadas pela vontade do Estado tanto na esfera interna quanto na internacional. Assim, assevera Pachukanis (1980, p. 180, tradução nossa): “é apenas na imaginação dos juristas que a totalidade das relações jurídicas é inteiramente dominada pela vontade do Estado”. A noção normativista de que cada direito subjetivo depende de uma norma objetiva entra em parafuso na cena internacional. Os sujeitos das relações jurídicas, os Estados, são os mesmos detentores da autoridade soberana. Pachukanis não afasta a relevância da coerção externa, mas a insere no foco de sua compreensão quanto à forma jurídica, ou seja, ela define apenas questões marginais, caudatárias, laterais quanto à estabilidade do ordenamento jurídico. Evidentemente a ideia de coerção externa – não somente a ideia, mas sua organização – constitui um aspecto fundamental da forma jurídica. Se a relação jurídica pode ser construída de modo puramente teórico como o avesso da relação de troca, então para sua realização prática é necessária a presença de modelos gerais definidos de modo mais ou menos sólido, uma elaboração casuística e, finalmente, uma organização que aplicaria esses modelos a casos específicos e garantiria a execução coercitiva das decisões. A melhor maneira de atender essas demandas é por meio do poder do Estado, ainda que a relação jurídica também se realize sem intervenção, com base no direito consuetudinário, na arbitragem voluntária, na arbitrariedade, e etc. (PACHUKANIS, 2017, p. 162). 102
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O revolucionário soviético reconhece a capacidade organizativa que o Estado confere ao direito, mas enxerga a existência e a operacionalidade da relação jurídica internacional que se alicerçam em outras bases, ainda que mais precárias. O que não significa que o direito internacional esteja conectado ao campo de moral, como o subestimam os sociologistas, pois o cumprimento do dever jurídico se desprende de quaisquer elementos subjetivos (voz interior), e se volta para exigências externas que emanam de um sujeito concreto, portador de um interesse material correspondente, em uma dinâmica quase objetiva. Ali onde a função coercitiva não é organizada e não é gerida por um aparato especial situado acima das partes, ela aparece sob a forma da assim chamada “reciprocidade”; o princípio da reciprocidade no que se refere à condição de equilíbrio de forças representa até agora a única e, é preciso dizer, extremamente precária base do direito internacional [...] Por outro lado, a pretensão jurídica surge de modo distinto da moral não por causa de uma “voz interior”, mas na forma de exigências externas que emanam de um sujeito concreto, o qual é, por regra, ao mesmo tempo, o portador de um interesse material correspondente. Por isso, o cumprimento de um dever jurídico, finalmente, afasta-se de quaisquer elementos subjetivos da parte da pessoa obrigada e assim uma forma externa, quase objetiva, de satisfação de uma exigência. (PACHUKANIS, 2017. p. 162-163).
O cumprimento do dever jurídico, por conseguinte, não se restringe a elementos subjetivos, dependente da vontade dos envolvidos, nem se localiza em uma norma objetiva, mas em uma forma externa oriunda da relação jurídica, dos interesses materiais envolvidos. Em outras palavras, a ausência de um soberano não faz do direito internacional um campo da moral ou um não direito, uma vez que o Estado é nuclear para o desenvolvimento do direito como um todo (doméstico e internacional), mas não para a forma jurídica em si. Forma política estatal e forma jurídica são derivações da forma mercantil, mas não se confundem entre si (MASCARO, 2013a). Em um regime de autotutela como o internacional, é a violência coercitiva dos próprios sujeitos de direito que tonifica as relações jurídicas. O que acontece sem a presença de uma autoridade suprema que se apresente como terceira força, neutra e imparcial, é que a violência que, em princípio, seria abstrata e impessoal, particulariza-se na relação jurídica entre dois sujeitos.
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Em suma, a constatação da ausência de uma força organizacional cogente (como o Estado faz com o indivíduo dentro das fronteiras nacionais) é bastante óbvia e, por si só, não é a medida exata do direito internacional, podendo servir tanto para negá-lo quanto para afirmá-lo. A única garantia das relações jurídicas entre os sujeitos de direito internacional (Estados, preponderantemente) continua a ser a troca de equivalentes, sob o fundamento jurídico do real equilíbrio de forças. Dentro dessa balança de poder, os conflitos serão dirimidos e os acordos travados com base no direito, cujo cumprimento precisa ser sopesado pelas desproporções materiais existentes entre as nações. Nas palavras do mestre Pachukanis (1980, p. 169, tradução nossa) vem o conceito de direito internacional: “(...) é a forma jurídica que assume a luta entre os Estados capitalistas pela dominação do restante do mundo”. Nessa toada, o direito internacional é o ramo que permite a Pachukanis elucidar suas concepções de maneira mais nítida. Por meio de perspectivas juspositivistas ou de visões não juspositivistas não se consegue atingir a essência recôndita do direito, sobretudo, em sua expressão internacional, o que induz os estudiosos a entrar em um círculo vicioso do qual não conseguem escapar. As tentativas de abrir a jaula de aço por mais variadas que sejam são fracassadas se não forem pela ferramenta da plena crítica marxista. Partindo dessas premissas, Pachukanis lega pistas importantes para a ampla compreensão do direito internacional.
4. Miéville: vida e obra Reabilitado na década de 1950, o pensamento de Pachukanis somente veio a frutificar no direito internacional, após a tradução de seu texto sobre o assunto, já nos anos 1980. Mais especificamente o resgate de suas ideias é puxado, ainda hodiernamente, pelo internacionalista China Miéville (2006; 2011; 2016; 2017), que corrobora e aprofunda as noções do mestre. Nascido em 1972, o britânico mescla a militância política com as atividades acadêmicas e literárias. Outrora membro da International Socialist Organization, ele foi um dos fundadores do partido inglês de esquerda Left Unity e hoje é professor de escrita criativa na Universidade de Warwick, bem como é um renomado e premiado autor e quadrinista do gênero weird fiction. Formou-se em Antropologia Social pela Universidade Cambridge e fez o doutorado em Filosofia do direito internacional, com uma tese envolvendo direito internacional e marxismo pela London School of Economics. 104
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Desse trabalho de doutoramento veio seu único e impactante livro sobre o assunto, Between equal rights, publicado pela primeira vez em 2005, ainda sem tradução para o português. O título da obra não é fortuito, retoma Marx, para asseverar que a violência está sempre implícita na relação mercantil, logo, também o está na relação jurídica. Especificamente no capítulo 8 do Volume I d’O Capital, Marx (2013, p. 308) assevera: “Entre direitos iguais, quem decide é a força”. É a força que está embutida na relação jurídica que desperta o interesse do autor. Em um universo de entes soberanos, entre direitos iguais, a força decide. Suas reflexões foram motivadas pela proeminência e consequente expansão que o direito internacional obteve no pós-Guerra Fria, despertando o que chama ironicamente de um interesse geral sobre a matéria. O inédito desenvolvimento normativo e institucional galgado foi acompanhado do contraditório aumento de guerras e conflitos pelo mundo, suscitando incômodos questionamentos (CRAVEN et al., 2004). A solidez teórica e política permitiu a Miéville transpor os obstáculos de aparentes aporias para traçar análises estruturais e conjunturais sobre os rumos do direito internacional e do imperialismo. Ao almejar abrir a caixa preta da doutrina internacionalista, Miéville pretendeu diferenciar-se dos autores tradicionais, não sendo mais um volume na pilha comum dos estudos acadêmicos. Nessa toada, vai direito ao cerne da questão para limpar os entulhos que travam a plena compreensão da matéria. Para ele, sem uma teoria da forma jurídica os desafios do direito internacional tornam-se impenetráveis, patinando nas eternas falsas polêmicas, como sobre sua natureza jurídica (e de suas obrigações), monismo e dualismo, e sobre a força vinculante de suas normas. Para fugir do marasmo da literatura especializada, Miéville, calcado no materialismo histórico e dialético de Marx, recorre à teoria da forma mercantil de Pachukanis para a compreensão da essência do direito internacional.
5. Miéville e o Direito Internacional Primordialmente, mais do que as necessárias revisões teóricas que realiza , o autor retoma e disseca as ideias pachukanianas, para atualizá-las dentro 5
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Em sua empreitada, cuidadosamente, tece os capítulos de maneira a permitir ao leitor uma abordagem sistemática do fenômeno internacional. Primeiramente, desconstrói a doutrina tradicional, apontando as falácias de cada vertente mais difundida. Nem o voluntarismo de Austin, nem o poder da política de
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das concepções mais avançadas no assunto. Diante da crítica mais frequente e proeminente ao jurista soviético quanto ao preenchimento do conteúdo da forma legal, ou seja, o problema da política e da coerção em sua teoria do direito, Miéville inova ao desconstruir a contestação por meio do arcabouço teórico do próprio Pachukanis, apontando a concepção de política e a determinação coercitiva do conteúdo do direito. Assim, o faz com o auxílio da teoria materialista do Estado (BARKER, 1991; BRAUNMÜHL, 1978; 1983; HIRSCH, 2010). Aplicando o teorema da equivalência entre a forma jurídica e a forma mercantil do baluarte soviético, o autor britânico desenvolve suas ideias próprias, avançando na matéria e em simetria com os debates mais modernos, na tentativa de mesclar concepções das formas sociais, como a da forma-valor, com aquelas que compartilham a análise concreta dos marxistas pioneiros do imperialismo, como, notadamente, Lênin e Bukharin. Por meio desse ferramental teórico, aplica a teoria da forma mercantil ao direito internacional. Na linha pachukaniana, a troca mercantil é carreada por disputas quanto à propriedade que podem ou não ser resolvidas pacificamente. Para Miéville, não, a força está necessariamente presente nas relações jurídicas porque assim o está na relação mercantil. A violência e a coerção são elementos imanentes da relação mercantil, não demandando necessariamente a forma política estatal para exercê-las. Na esfera internacional, a separação entre economia e política, essencial ao capitalismo, também se verifica, não condensada em uma forma política estatal, como no direito interno, mas desorganizada na forma política internacional, que é fragmentada em múltiplas unidades nacionais, deixando explícita a coerção das partes, intrínseca à forma legal (a qual não se traveste completamente na abstração e na generalidade normativa). “A violência é intrínseca ao direito, mas é na ausência de uma soberania, ao invés de um Estado abstrato e impessoal, que a violência revela suas particularidades” (MIÉVILLE, 2006, p. 136, tradução nossa). Miéville tem o mérito de atualizar e aprofundar as bases do pensamento pachukaniano. E o faz brilhantemente. A violência é o coração da forma mer-
Morgenthau, nem o não juspositivismo de Schmitt e muito menos o formalismo exacerbado de Kelsen oferecem alternativas para um pensamento que extrapole a aparência e toque a efetiva essência do direito internacional. Mesmo nas perspectivas mais críticas, a aridez permanece. O autor comenta os principais aspectos das visões de McDougal, para chegar àquilo que chama de teorias dissidentes, como as de Koskenniemi e Chimni. Em outras palavras, mesmo dentro do amplo universo marxista, há concepções divergentes que não conseguem captar o pleno movimento do direito. Para mais ver Miéville (2006).
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cantil. A força está implícita na forma geral do direito, sendo direcionada de um sujeito para o outro na concretude da relação jurídica. O intelectual britânico não está preocupado diretamente com a competição entre os Estados (como estava Pachukanis), mas em elucidar a coerção inerente à forma jurídica na relação entre Estados soberanos juridicamente iguais. E por mais distinta que seja a posição do Estado na relação jurídica e por mais notórias que se apresentem as variações entre direito interno e o internacional, não há razões para tratá-los como se fossem ciências apartadas. São partes, manifestações, em contextos diferentes do mesmo todo: o direito. Todavia, como se alicerçam sobre o mesmo solo, o do modo de produção capitalista, tanto para o território nacional quanto para o mercado mundial, as implicações são convergentes (OSORIO, 2018). É no próprio Marx (2013) que se pode desvendar a fonte da questão central do direito internacional. O filósofo de Trier traz, para além de esboços e rascunhos, também em sua obra magna, reflexões sobre as relações internacionais. Nessa toada, ao tratar das relações de produção, enfatiza e fundamenta a dinâmica entre anarquia e despotismo que cercam os capitais, que dentro de si são arbitrários, mas entre si são rivais em franca disputa descoordenada e sem limites espaciais. Nesse sentido, o capital somente existe em multiplicidade, coletividade; por meio da interação entre os muitos capitais as leis gerais do capitalismo se concretizam. Um único capital universal é uma contradição em termos. É característico do capitalismo, o qual se desenvolve pela competição, que é a fonte e a expressão da anarquia da produção. Logo, para Marx (2013), as relações sociais capitalistas tomam a forma dual de anarquia e despotismo. Entre muitos capitais há a anarquia; dentro de cada capital, o despotismo. Cada relação, anarquia e despotismo, é a condição uma da outra. Assim também o é entre os Estados, dentro das suas fronteiras perante seus nacionais (sujeitados a seu direito), soberano, despótico; e fora, na inter-relação com seus pares, reina a anarquia, a falta de um comando central e hierarquicamente superior. A forma jurídica corresponde à forma mercantil, assim como as relações jurídicas são correlatas às relações de troca. Para participar desse circuito, os Estados precisam ser reconhecidos como os sujeitos de direito, condição para a qual precisam ser soberanos. Dotados de subjetividade jurídica internacional (soberania política) gozam de atributos próprios da personalidade jurídica, como liberdade e igualdade formal, para exerceram seus direitos de propriedade, para dispor de seus bens no mercado. São proprietários do patrimônio que se limita a suas fronteiras territoriais. 107
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O cerne desse pensamento está claro em Pachukanis (1980, p. 176, tradução nossa): “Estados soberanos existem e interagem uns com os outros do mesmo modo que os indivíduos, proprietários de bens, o fazem por meio de direitos iguais”. Na acepção de Miéville, fica evidenciado o cerne a forma jurídica internacional. O aspecto fundamental do direito internacional é os Estados soberanos, que se relacionam entre si como proprietários de bens, cada qual com exercendo seu direito de propriedade sobre seu próprio território, da mesma forma que o direito interno garante aos proprietários suas prerrogativas legais sobre seu patrimônio (MIÉVILLE, 2006, p. 291-292, tradução nossa).
Formalmente, os Estados soberanos coexistem, dispondo cada qual de direitos iguais e do mesmo naco de liberdade. Livres e iguais, os Estados são sujeitos de direito, aptos a celebrar tratados internacionais (contratos). A execução e a interpretação das normas ficam por conta dos próprios sujeitos, os quais são completamente desiguais em termos de poder material. Não é de se admirar que a vontade do Estado mais forte geralmente prevaleça. No ambiente excludente e materialmente desigual das relações de produção capitalistas, é na premissa da igualdade formal que opera a incongruência concreta. Assume-se na consagração deste princípio da isonomia, a desigualdade material. Como a competição e a violência são o berço do moderno sistema de Estados, pode-se afirmar que o verdadeiro conteúdo histórico do direito internacional é a luta imperialista entre Estados capitalistas. Um exame da trajetória do direito internacional corrobora essa percepção. Desde sua fase embrionária (normas voltadas às guerras navais ou terrestres), a matéria jurídica internacional dispõe sobre conflitos e competição. Não fortuitamente, os primeiros tratados internacionais mais gerais tratavam das disposições sobre direito internacional humanitário. Mesmo as demais regras internacionais, quando regulamentam condições de paz, muitas vezes tratam dissimuladamente da luta, como no caso da expansão normativa e institucional da proteção internacional do indivíduo6. Ademais, inclusive os assuntos que são alvos de regulação, ao invés do interesse geral, tocam as vontades e estratégias das grandes potências7, em meio à competição capitalista permanente. 6
Para mais ver Osorio (2014).
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Poder-se-ia, ainda, exemplificar algumas das organizações internacionais, como as comissões internacionais para a supervisão da navegação nos antigos rios dos tratados, como o Reno e o Danúbio, e antes de Versailles, o Elba e o Oder.
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Em virtude disso, Miéville empreende uma retrospectiva até o século XV para extrair as raízes do colonialismo e a especificidade do capitalismo. Apesar de algumas evidências e coincidências pontuais em conjunturas temporais determinadas, é somente com a ascensão da soberania estatal que o direito internacional é gestado, como se constatou nos acordos de Vestefália. A partir da consolidação do capitalismo enquanto modo de produção de franjas mundiais, com a mercantilização das relações sociais pelo globo, é que a forma jurídica internacional se universalizou e se conformou o sistema internacional hodierno. Desse modo, considerando a especificidade desse sistema capitalista ancorado no direito internacional, é fulcral compreendê-lo a partir de seu ventre: a paradoxal relação entre igualdade formal e força que o constitui. É, mormente, esse enlace que permite que o que o direito internacional, próprio do modo de produção capitalista, se distinga de momentos históricos anteriores. Logo, aproximemos a lupa para a intrínseca relação entre imperialismo e direito internacional, travestida na estrutura sustentada pelos supracitados valores gerais e abstratos.
6. Direito Internacional e imperialismo Não se pode, todavia, ser apressado em entender que só os Estados mais fortes prevalecem ou que a coerção precisa ser física ou explícita. O revestimento legal dado pelo direito torna essas relações de força mais intrincadas. A grande contribuição de Miéville é a ênfase que confere à violência contida na relação mercantil, logo, também na relação jurídica e, consequentemente, no direito internacional. O enraizamento da violência no direito é a ponte que permite estabelecer uma relação inafastável entre a forma jurídica e o imperialismo, que constitui o cerne teórico do pensamento de Miéville. Logo, direito internacional e imperialismo possuem uma relação umbilical, indissociável. A inter-relação entre direito e violência é tão íntima que sem imperialismo, o direito internacional não tem sentido. O direito internacional é uma expressão e um momento do imperialismo. No nível mais abstrato, sem violência não poderá haver forma legal. Na conjuntura concreta do capitalismo internacional moderno isto significa que sem imperialismo não poderia haver direito internacional. (MIÉVILLE, 2006, p. 293, tradução nossa).
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O direito assume o imperialismo, que se configura como o processo estruturante do sistema internacional contemporâneo. Sem o imperialismo não pode haver direito internacional. Nesse diapasão, a tentativa de criticar o imperialismo por meio de argumentos jurídicos é inútil (CRAVEN et al., 2004). Imperialismo é um elemento contínuo do capitalismo, cuja trajetória atravessa mudanças políticas. A coerção implícita na relação jurídica erige a discussão sobre a conexão entre direito internacional e a sistemática coerção do imperialismo. A questão não é o direito internacional do imperialismo, mas, sim, o imperialismo do direito internacional. Um não é redutível ao outro, mas são mutuamente constituídos. A ambiguidade em torno desse arranjo leva Miéville (2006, p. 290, tradução nossa) a afirmar que os Estados ao pautarem-se pelo direito servem a dois mestres. “Os Estados podem categoricamente servir a dois mestres: na tentativa de dominação regional ou mundial e na defesa da forma independente de Estado soberano”. A inter-relação entre direito e violência é tão íntima que sem imperialismo, o direito internacional não tem sentido. Por essa perspectiva, é possível combinar expansão imperialista com expansão do direito internacional, uma vez que as relações de troca envolvem questões de coerção, e a forma legal traz a abstração da forma mercantil. Aqui é possível desconstruir quaisquer contradições ou aporias do desenvolvimento normativo e institucional que carreia o direito na atualidade (OSORIO, 2015). Dado o atual estágio de intensificação do movimento de internacionalização das relações de produção, encetado pelo início dos anos 1990 em diante, houve uma expansão inédita das normas legais e das organizações internacionais. Nelas a esperança da paz duradoura ou da racionalidade no cenário internacional foi depositada. O emaranhado de normas e instituições significou, antes de uma democratização ou racionalização dos foros de decisão, o aumento da tensão e da desigualdade em escala mundial. Isso porque, ao consagrar a igualdade, a forma jurídica das instituições e dos tratados exprime as relações de força materializadas nas discrepâncias militar, econômica e social latentes entre os países. Trazendo a análise para a concretude das relações internacionais, a imbricação se torna evidente e inegável. Nesse diapasão, Miéville (2005; 2009) aplica suas ideias aos casos conjunturais específicos, em dois artigos, discutindo a política externa britânica na Guerra do Iraque ante o direito internacional e o multilateralismo no cenário internacional, com ênfase à missão de paz no Haiti. O autor não 110
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fortuitamente resgata o caso haitiano para denunciar o imperialismo como pilar estruturante do cenário internacional. Na questão específica do país da América Central verifica-se um multilateralismo que impõe e subjuga as nações mais fracas, praticado não apenas pelas grandes potências ou também por aquelas que, ainda que periféricas, seguem a dinâmica internacional, na aspiração por compor o restrito condomínio de poder das nações centrais, dominantes. O intelectual britânico formula contestações necessárias para as estratégias de cooperação no mundo e para instrumentos de natureza cada vez mais intervencionista nos assuntos internos dos países-alvo, como as missões de paz da Organização das Nações Unidas8. Miéville alarga os horizontes de análise, fraqueando alternativas para escapar da mesmice doutrinária, quando aponta o direito internacional como uma relação e um processo, um modo de decidir as regras (e não um ordenamento normativo fixo). Nessa dinâmica, a violência, a coerção, o elemento político não se confunde com o jurídico, mas se correlaciona com este intimamente. Em nenhuma esfera isso fica tão evidente quanto no direito internacional. Portanto, o império da lei é o reino da violência imperialista. O horror e a miséria que assolaram a trajetória do capitalismo são a realidade do direito. Miéville (2006, p. 319, tradução nossa) é claro e chocante em sua assertiva: “Um mundo estruturado ao redor do direito internacional não pode ser senão aquele da violência imperialista. Este caótico e sangrento mundo em torno de nós é o império do direito”. Essa visão imprescindível é que inspira as visões mais críticas a darem um passo adiante nas elucubrações teóricas acerca da questão internacional e do imperialismo.
Considerações finais Diante da breve exposição da vida, obra e pensamento dos dois autores, Pachukanis e Miéville, é inevitável afirmar que há um vasto horizonte a ser descoberto e explorado dentro da relação entre marxismo e direito internacional. A disciplina internacional possui uma relevância muito maior do que frequentemente lhe é atribuída e é o marxismo a lente que franqueia essa visão. É por meio dele que se consegue compreender a seara jurídica no terreno concreto das relações internacionais. Por meio da perspectiva de Pachukanis e suas posteriores e necessárias atualizações, como a de Miéville, é imperioso esmagar 8
Para mais ver Osorio (2014).
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as grades da jaula de aço que aprisiona a esmagadora parte da doutrina internacionalista e trilhar o caminho da realidade internacional. Logo, falar em direito internacional é falar sobre como a forma mercantil manifesta-se no mercado mundial, carreada pelas relações jurídicas entre os Estados, nas quais campeiam a violência de seus atores (materialmente desproporcionais), de maneira ainda mais nítida do que ocorre dentro dos espaços nacionais, tendo em vista a ausência indisfarçável de uma ordem coercitiva externa. O modelo de anarquia coaduna-se plenamente com a dinâmica das relações de produção capitalistas, pois, se dentro de si os capitais são despóticos, entre si demandam a anarquia para potencializar a concorrência, motor da acumulação e, consequente, da reprodução. A ausência de um soberano, hierarquicamente superior aos Estados nacionais, não faz do direito internacional um campo da moral ou um não direito, uma vez que o Estado é nuclear para o desenvolvimento do direito como um todo (doméstico e internacional), mas não para a forma jurídica em si, pois essa não se confunde com a forma política estatal, ambas são equivalências da forma mercantil. O que acontece sem a presença de uma autoridade suprema que se apresente como terceira força, neutra e imparcial, é que a violência que, em princípio, seria abstrata e impessoal, particulariza-se na relação jurídica entre dois sujeitos. A única garantia das relações jurídicas entre os sujeitos de direito internacional (Estados, preponderantemente) continua a ser a troca de equivalentes, sob o fundamento jurídico do real equilíbrio de forças. A ausência de uma força organizacional cogente é bastante óbvia e, por si só, não é a medida exata do direito internacional e não desempata a polêmica, pois pode servir tanto para negá-lo quanto para afirmá-lo. São as práticas sociais concretas, lastreadas na troca mercantil, que conformam a subjetividade jurídica que, no direito internacional, ganha a roupagem da soberania dos Estados, principais sujeitos de direito. Uma vez reconhecida a personalidade jurídica, dela decorrem dois valores basilares, a igualdade e a liberdade, que em verdade, travestem a desigualdade material e a violenta competição que molda o sistema internacional. Logo, não fortuitamente, o internacionalista identifica que o real conteúdo do direito internacional é a luta dos Estados capitalistas pela dominação do mundo. Em suma, o atrelamento do direito internacional ao capitalismo, e da violência dele decorrente, é o fermento para o internacionalista trabalhar em sua realidade.
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Formas e Estrutura do Internacional: Capitalismo, Direito Internacional e Relações Internacionais Alysson Leandro Mascaro1
Introdução As formas do internacional e sua estrutura são as duas questões decisivas para alcançar e determinar a natureza do direito internacional e das relações internacionais no capitalismo. Na primeira delas, trata-se de perquirir a respeito das formas sociais que se engendram no internacional. Aqui, deve-se investigar se as coerções relacionais tradicionalmente pensadas a partir do espaço nacional soberano, como a forma política estatal, são iguais, falhas ou mesmo se há outras formas específicas quando das interações internacionais. Na segunda das questões, trata-se de estabelecer a base e o posicionamento vinculante entre Estados e sujeitos nos variados espaços internacionais e suas instituições. A pergunta sobre o caráter mundial do capitalismo e a apregoada igualdade entre Estados conduz à reflexão acerca da hierarquia e da verticalidade interestatal e da dinâmica do capital. O imperialismo é seu problema fulcral. É somente a partir da articulação destes dois eixos que toda a crítica pode, então, compreender os problemas concretos e específicos das relações entre sujeitos, empresas, Estados e instituições internacionais no capitalismo.
1. Formas sociais do internacional A articulação entre capitalismo, direito internacional e relações internacionais opera a partir de formas sociais específicas. A mercadoria, na dinâmica da valorização do valor, ao mesmo tempo se erige no solo de cada Estado mas 1
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco – USP). Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.
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também num espaço maior que o dele. Esta espacialidade dupla da mercadoria faz com que as formas sociais dela derivadas sejam também perpassadas pela dúplice condição de internas e internacionais. Entre esses dois espaços, na sociabilidade capitalista, não se dá nem um jogo de plena oposição nem de total complementaridade: onde há capitalismo há Estado e direito, mas, por decorrência da própria natureza e da evolução da forma mercantil, há Estados e direitos no plural, em relações variadas, concorrenciais, antagônicas, complementares, horizontais ou verticalizadas, em um leque de possibilidades que é grande parte de toda a história contemporânea. Assim, a forma política estatal é ao mesmo tempo um elemento terceiro e necessário aos agentes da produção no espaço interno como, ainda, se faz presente de modo próprio num sistema internacional. Também o direito se arma como forma jurídica no espaço nacional mas, também, numa articulação externa de seus vínculos. Só é possível pensar o direito internacional e as relações internacionais a partir do modo de produção capitalista, em decorrência de manifestação histórica e de determinação social próprias. As formas sociais das interações e vínculos internacionais se dão especificamente no capitalismo porque, em termos de manifestação histórica, somente surgem intercâmbios entre Estados, povos, nações e indivíduos mediante forma mercantil, forma política estatal e forma jurídica quando o modo de produção se torna capitalista. Até então, a exemplo de sociedades escravistas e feudais, a relação entre espaços internos e externos é de politicidade em sentido aberto, de força, vassalagem ou de injunções diretas de guerra. Com o capitalismo, pavimenta-se uma arena negocial, política e jurídica internacional, que vai se diferenciando de quaisquer interações entre espaços políticos distintos ou entre nacionais e estrangeiros até então existentes. Relações de força existiram em outros tempos históricos e outros modos de produção, mas apenas no capitalismo a forma de interação passa a ser comandada pela troca mercantil e pela acumulação. Neste sentido, as próprias imposições de força interagem, em variadas medidas, com a forma mercadoria, a valorização do valor e com as formas política estatal e jurídica. Assim sendo, o campo das relações internacionais, no capitalismo, não é apenas o de genéricas interações entre interno e exterior, mas é, também e especificamente, o da interação entre ou mediante Estados, dotados de individuação e soberania, e também de um direito internacional, com todas as peculiaridades que este representa na sua ligação com os direitos pátrios e os próprios entes estatais. Em diferença de velhas relações no pré-capitalismo 118
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que poderiam se chamar internacionais lato sensu, as relações internacionais especificamente capitalistas têm determinação social na mercadoria. Nem paz, nem liberdade, nem igualdade, nem dignidade humana, nem direitos humanos, nem meio-ambiente, nem tampouco a comunidade universal dos povos: o internacional, no capitalismo, opera sob a forma mercantil, no que se dá sua determinação e sua inexorável dinâmica. Qualquer outro modo de vínculo internacional determinante que não seja o da exploração e da acumulação só poderá se arraigar com a superação da sociabilidade do capital. O conhecimento científico das formas sociais capitalistas – e daí, em decorrência, daquelas que forjam as relações internacionais – se alcança com as descobertas e proposições de Karl Marx, de modo mais patente em seu livro O capital. No modo de produção capitalista reside a determinação específica dos vínculos sociais presentes. A forma mercadoria impõe-se às pessoas e às coisas, num movimento infinito de acumulação. O trabalho assalariado, quando da subsunção real do trabalho ao capital, faz com que se erija, então, um circuito universal das mercadorias, do qual a exploração do trabalho é seu cerne, porque aí está o segredo da acumulação: a extração de mais-valor do trabalho do trabalhador pelo capitalista. Fixando tal descoberta e a desdobrando, Evguiéni Pachukanis, o mais importante teórico do direito de todo o marxismo, aponta para a especificidade de uma forma jurídica no capitalismo. Para que todas as coisas sejam equivalentes – dinheiro, meios de produção, bens de consumo etc. – as pessoas se tornam equivalentes no que tange aos vínculos da produção, onde está a exploração. No capitalismo, o liame entre os produtores, entre o capitalista e o trabalhador, assalariado, se dá de modo jurídico, mediante contrato que iguala e equivale suas vontades, suas liberdades. Uma subjetividade jurídica, surgida no campo da produção, faz então com que os vínculos sejam todos postos sob forma contratual – decorrendo, daí, a generalização da forma mercadoria. Se assim o é, vendedores e compradores, no espaço interno e no internacional, vinculam-se mediante uma forma de relação social de subjetividade jurídica, num acordo de quereres livres e iguais (MARX, 2011; PACHUKANIS, 2017; NAVES, 2000; NAVES, 2014; MASCARO, 2019). O mesmo se dá no campo do Estado. A produção capitalista, cuja exploração se engendra pelos vínculos do trabalho assalariado, faz com que haja um espaço político relativamente distinto daquele dos agentes da produção que imponha a todos a liberdade e a igualdade para os vínculos da exploração, dando 119
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espaço territorial e infraestrutura para a movimentação dos negócios, ensejando ainda que o capital do capitalista não seja garantido apenas pela sua força direta, dada a força física que vai se reunindo num monopólio institucionalizado nas mãos do Estado. Assim, a forma política do capitalismo é inexoravelmente estatal, num aparato político terceiro aos agentes, jamais apenas um poder político coincidente com o poder econômico do burguês. O Estado tem por natureza e forma a sociabilidade da mercadoria. A partir da década de 1970, no bojo do chamado “novo marxismo”, empreendeu-se uma leitura sobre o Estado de feição similar à daquela feita por Pachukanis no campo do direito. Os debates sobre a derivação da forma política estatal a partir da forma mercantil, que se inicia com autores alemães como Wolfgang Müller e Christel Neusüβ, tem em Joachim Hirsch seu maior expoente, abrangendo, ainda, reflexões como as promovidas por Elmar Altvater, Bob Jessop, Sol Picciotto e John Holloway, dentre tantos. Deixando de compreender o Estado como um aglutinado genérico de poder, nem tampouco se contentando com a definição já sofisticada de Nicos Poulantzas do Estado como condensação material de relações de forças entre classes e frações, dá-se a investigação acerca de sua forma específica, derivada da forma mercadoria do mesmo modo que o é a forma de subjetividade jurídica (MASCARO, 2013; CALDAS, 2015; HIRSCH, 2010). Em especial para o campo do direito internacional e das relações internacionais, os debates derivacionistas encontram na obra de Claudia von Braunmühl suas posições teóricas mais avançadas. Para ela, só é possível pensar a forma política a partir do mercado internacional. A forma mercadoria não pode ser tomada como se, de início, fosse isolada no espaço interno estatal e então só depois se expandisse. É verdade que a internacionalidade do capital é uma noção já visível em toda a história do pensamento marxista; no entanto ela o era, via de regra, pensada a partir de cada qual dos espaços nacionais em posterior conjunção, numa espécie de nacionalismo metodológico. Tais posições foram vistas, dentro do próprio debate da derivação, nos pioneiros estudos de Neusüβ, partindo de uma distinção entre as esferas da circulação interna e a externa. No pensamento de Braunmühl, contudo, o movimento histórico e mesmo categorial do capital não é do nacional para o internacional, mas parte exatamente deste último, na medida em que as relações de produção capitalistas e a dinâmica da valorização do valor se dão em espaços mundiais, nos quais, inclusive, a existência de Estados em pluralidade é, para a reprodução capitalista e as estratégias de acumu120
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lação, um elemento central de concorrência, competição, aproveitando-se de e promovendo assimetrias que permitem a acumulação primitiva e estabelecendo vetores de imperialismo e expansão do capital (OSORIO, 2018; CALDAS, 2015; Neusüβ, 1972; BRAUNMÜHL, 1978). No mesmo diapasão da compreensão das relações internacionais fundamentadas na forma mercadoria, uma reflexão acerca do direito internacional foi desenvolvida pela teoria crítica marxista já de muito, desde Pachukanis, chegando, em tempos mais recentes, a uma expoente construção na obra do inglês China Miéville. Para este, o direito internacional, indo além de suas tradicionais definições juspositivistas, encontra sua chave de entendimento na forma jurídica, nos termos anunciados por Pachukanis (ainda que Miéville faça uma incorporação particular da tradição pachukaniana). O paradoxo do juspositivismo a respeito do direito internacional – se estiver acima dos Estados como um poder soberano, acaba com a própria soberania de cada ente estatal; se estiver na dependência da vontade dos Estados, termina por ser uma mera emanação do direito interno – é resolvido, por Pachukanis, pela própria derivação das formas de subjetividade jurídica e política estatal a partir da forma mercadoria. A troca de equivalentes, assim, funda o espaço do direito internacional, mediante sujeitos de direito livres e iguais; Estados, em suas relações recíprocas, erigem-se correlatamente à equivalência mercantil. Em todos os casos, seja dos agentes da produção seja dos Estados entre si – o que se chamaria, aqui, tradicionalmente, direito internacional público – o vínculo de juridicidade baseado na vontade livre e igual se mistura, inexoravelmente, à imposição da força. Por isso a forma jurídica, derivada da forma mercadoria, sempre se faz acompanhar da forma política estatal. Embora para as relações internas a presença do ente estatal seja plena, manifestações de força também são incontornáveis e estruturais no plano do direito internacional, apenas, neste caso, contando com as variáveis sortes de efetivação do poder estatal no espaço exterior. No campo do direito internacional privado, onde os Estados se apresentam como iguais entre si em direitos (conforme o próprio nome do livro de Miéville), decidirá então a força. Assim sendo, só é possível pensar o direito internacional mediante o imperialismo, a força, a luta, a disputa, a hierarquização que se opera incontornavelmente junto da equivalência (MIÉVILLE, 2006; OSORIO, 2018). No balanço variável mas sempre inexorável entre equivalência, direito e força estabelecem-se historicamente, no capitalismo, mecanismos de interação 121
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política e instituições internacionais. O chamado direito internacional, estabelecendo meios jurídicos de vínculo entre Estados e seus respectivos atos e negócios – tratados, acordos, convenções, contratos –, se enreda também em instituições, órgãos e aparelhos de representação e ação internacionais. Da ONU a câmaras de comércio, foi-se forjando um vasto e contraditório corpo de organismos que, mais do que terem a função de limitar, constituem a possibilidade do vínculo e da imposição internacional. O direito internacional e as instituições internacionais, erigindo arcabouços muito próprios e específicos dos Estados sob o capitalismo, parcialmente, ainda, resultaram de aproveitamentos e retificações de antigos e já estabelecidos aparatos, aparelhos, funções e práticas. Da antiga diplomacia entre senhores ou monarcas absolutistas à contemporânea diplomacia regida por normas e garantias específicas, nomes, traquejos, rituais e cortes se reconfiguraram. Um embaixador contemporâneo, se guarda o nome do cargo ou mesmo alguns dos símbolos daquele da Idade Moderna, opera, no entanto, a partir de formas sociais plenamente distintas, como as da subjetividade jurídica e estatal. Por isso, embora não se negue o papel e o peso de instituições políticas, a determinação do internacional, em suas relações e em seu direito, passa pelas formas do capital e de sua reprodução. Porque a forma política estatal, derivada da forma mercadoria, assim se erige sendo um terceiro em face dos agentes da produção, resultando daí uma autonomia relativa por conta de sua própria materialidade, também os Estados em interação e as instituições internacionais guardam, de alguma sorte, os variáveis traços da autonomia relativa dos próprios Estados nacionais. Por isso, o prolongamento da ação imperialista de alguns Estados pode ser feito mediante instituições internacionais que controlam, a exemplo da ONU ou da OTAN. Sonhados contrastes entre os Estados e o direito e as instituições internacionais (como modo do cosmopolita salvar o nacional de sua obtusidade ou como maneira do nacional imperar de modo progressista e soberano em face do domínio externo) são parciais, na medida em que todos operam a partir de formas sociais – política e jurídica – derivadas da mesma determinação pela forma mercantil (MOREIRA, 2011; CALDAS, 2018). O surgimento do capitalismo se dá, historicamente, a partir de uma multiplicidade de centros políticos, constituindo, então, Estados no plural, em sistema. Seria possível imaginar-se a virtualidade de um modo de produção capitalista mundial com um Estado só, mas isto não se deu enquanto manifestação histórica 122
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e, se assim o fosse, caíam por terra muitas das condições da acumulação e da exploração mediante espoliação, imperialismo e subjugação. Os Estados, existindo no plural, põem-se em disputa, concorrência e antagonismo; suas linhas de força, de expansão, de submissão, de colonialismo, de exploração e de dominação, têm no direito internacional um elemento de constituição de possibilidades e de luta. No que é decisivo, o direito internacional não pode ser pensado como normatividade institucional ou como moral, nem tampouco as relações internacionais devem ser tomadas como livres e iguais. A equivalência mercantil que erige e fixa o direito internacional e que dá base às relações internacionais opera a partir da constrição das formas mercantil, política estatal e jurídica. Em suas articulações próprias, fala a exploração dos trabalhadores de todo o mundo pelos capitalistas e o domínio de todo o globo pelos Estados dos donos do capital.
2. Estrutura do internacional A mesma duplicidade de igualdade e desigualdade que reside na base das relações da subjetividade jurídica também se dá naquelas da subjetividade interestatal. No caso dos vínculos jurídicos entre os agentes da produção, o escamotear da exploração se dá mediante a ideologia da autonomia da vontade entre iguais. No plano das relações internacionais e do direito internacional, tal máscara ideológica é ainda menos eficiente: o capital e o poder militar talham todas as chaves de ação internacional; as intervenções, embargos, bloqueios e manobras econômicas, políticas e militares pretensamente em razão de direitos humanos são, via de regra, armas seletivas contra inimigos; todos os países do mundo são declaradamente iguais entre si mas suas instituições internacionais são inscritas em desigualdade formal – Conselho de Segurança da ONU, por exemplo – o que equivaleria, em termos de analítica da subjetividade jurídica, à manutenção de privilégios pré-contemporâneos ainda hoje. As fraturas das relações de produção capitalistas, da acumulação, do Estado e do direito ficam expostas praticamente às claras no campo internacional. O desigual preside o igual e estrutura o sistema internacional. Perpassando o contexto geral da imbricação entre capitalismo, direito internacional e relações internacionais está então o imperialismo, que, sendo uma relação entre Estados e agentes da produção, dá, às formas sociais – que também são erigidas relacionalmente –, os
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espaços, as possibilidades, os interditos, as estratégias, as posições, as verticalizações e os sentidos da ação da acumulação no mercado mundial. Relações entre poderes políticos dominantes e espaços sociais dominados se deram, de modo inespecífico, na longa história dos pré-capitalismos. As guerras por todos os tempos e mesmo a dominação colonial, na Idade Moderna, são exemplares de uma hierarquia que se poderia chamar de internacional mas que ainda não tem a específica forma social da verticalização internacional capitalista. Somente com a determinação pela mercadoria tem-se, então, uma forma política estatal e uma forma de subjetividade jurídica fazendo com que o eixo de ação no espaço mundial seja lastreado em acordos, exigibilidades, indenizações, protocolos etc. Algo disso – e perfunctoriamente – é avindo da autonomia relativa do direito internacional público e das instituições internacionais, mas, no fundamental, é a dinâmica do capital que estabelece seus termos nas relações internacionais. O imperialismo, como estrutura das posições estatais e dos mercados e das ações da acumulação internacional, não é apenas a guerra aberta nem tampouco a colonização (embora não os abandone, a exemplo, só para tratar do século XXI, das guerras por petróleo em nome da liberdade, como contra o Iraque de Saddam Hussein, ou mesmo do caso de Porto Rico, ainda colônia dos EUA). O imperialismo perpassa o mecanismo da exploração, do lucro, da apropriação, da espoliação e ainda, no que seja possível, da acumulação primitiva. É mediante instrumentos como contratos, garantias negociais, segurança jurídica ou favorecimento aos investimentos que a marcha da mercadoria e do valor se dá na geopolítica do mercado mundial contemporâneo. O exemplo das injunções na tributação e pelos favorecimentos fiscais revela um jogo de alocação dos investimentos financeiros, de plantas industriais e comerciais e de estratégias empresariais de um imperialismo que escoa pelos dutos das formas política estatal e jurídica, manobrando-as conforme as vagas da forma mercadoria e da forma valor. Neste sentido, a existência de Estados no plural – um sistema internacional de Estados – permite que o capital encontre maiores estratégias de acumulação na fragilização relativa ou na constante submissão parcial dos Estados aos seus investimentos. O imperialismo, assim, se arraiga nas formas do direito, do Estado e das relações internacionais para erigir uma estrutura vertical de posicionamento dos capitais e dos Estados a eles imbricados (MASCARO, 2013; OSORIO, 2018).
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Daí, nem tem razão quem generalize o imperialismo a ponto de fazer sua equivalência desde o antigo Império Romano aos atuais EUA – porque desconhece a especificidade das formas sociais contemporâneas – nem, tampouco, quem enxerga no imperialismo um fenômeno de uma fase apenas dentro do capitalismo, isto porque, lastreado nas formas sociais da mercadoria e suas derivadas, todo o capitalismo, erigindo-se como modo de produção, já se estabelece num processo de valorização do valor para além dos espaços estatais, apoiado nestes. Não se trata, então, de se ver algumas épocas capitalistas não-imperialistas e outros imperialistas, mas, sim de compreender os distintos imperialismos em distintas fases do capitalismo. Momentos de acumulação e de regulação como os do capitalismo mercantil, fordista e pós-fordista podem iluminar, inclusive, os fenômenos de força do neocolonialismo do século XIX e das guerras mundiais da primeira metade do século XX, do domínio econômico do dólar no fordismo e, por fim, das estratégias de neoliberalismo, privatização e regressão de direitos sociais do século XXI; todos estas distintas fases são, cada qual ao seu modo, imperialistas. Tal como a forma social – mercadoria – é a nucleação geral do modo de produção, havendo em seu bojo histórico termos médios – regimes de acumulação, modos de regulação –, o imperialismo é derivado das formas sociais do internacional, sendo um de seus correlatos gerais e inextrincáveis nesse mesmo modo de produção, de tal sorte que, ao se tratar das épocas imperialistas, sua correspondência se dá com os termos médios no seio da própria reprodução do capital. As fases do imperialismo no capitalismo estruturam, geopoliticamente, variáveis centros de dinamização da exploração e da dominação. Pode-se ler a história do capitalismo como uma história da dominação do noroeste do globo terrestre, conforme os mapas atuais, sobre as demais regiões do mundo. Mas, dentro disso, o pêndulo muda de Inglaterra para EUA, chegando hoje a alguma polaridade secundária com o oriente, em especial a China. Além da modulação dos eixos geográficos, dá-se também a variação na estratégia relacional. De domínio direto de territórios a domínio das condições jurídicas negociais, de envio de seus próprios governantes e negociantes à formação ideológica em seu favor de governantes e negociantes subordinados, o imperialismo se estrutura mediante dispositivos vários, sem que possa, no entanto, fazer da primazia uma exclusão: a guerra continua sendo o limite último não só retórico, mas sim efetivo, das relações internacionais. Proponho, em Estado e forma política, que a variabilidade histórica e de dispositivos dos termos médios do imperialismo seja lida a partir 125
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de três fases: a) a do capitalismo mercantil do século XIX, arrastando-se até sua crise no início do século XX; b) a do fordismo, das décadas dos meados do século XX; c) a do pós-fordismo, desde o final do século XX até hoje. À primeira fase corresponde o cenário de domínio do mundo pela Europa; à segunda, o domínio do mundo pelos EUA; à terceira, uma plena difusão negocial da dominação do capital pelos países e economias do mundo, ainda que até agora sob comando estadunidense. Nestas três etapas, todas as formas sociais do capitalismo se apresentam imiscuídas nas manobras de força dos estados, mas, em cada uma delas, ressaltam dispositivos mais relevantes que outros (MASCARO, 2013). Também a leitura crítica marxista sobre o imperialismo acompanha as próprias fases dos regimes de acumulação e dos modos de regulação capitalistas. Luiz Felipe Osório, em Imperialismo, Estado e relações internacionais, propõe a sistematização das chaves de teoria marxista sobre o imperialismo em três momentos: a) o debate pioneiro, no movimento que vai de Rudolf Hilferding a Lênin, passando por Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky e Nikolai Bukharin; b) o debate fordista, que engloba as leituras do capital monopolista, as teorias marxistas da dependência e, ainda, visões como as de Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e Samir Amin; c) o debate pós-fordista, em Antonio Negri, Leo Panitch, Nicos Poulantzas, Ellen Wood, David Harvey, Alex Callinicos e, por fim, os derivacionistas, como Joachim Hirsch e Claudia von Braunmühl, além de China Miéville. Pode-se ver, aqui, a correspondência entre as teorias e as modulações na materialidade do objeto. Lenin enxerga, no neocolonialismo do final do século XIX e nas guerras do século XX, um movimento de exacerbação da acumulação mediante força. As teorias intermediárias correspondem ao fordismo inclusive pela de dominação mundial lastreada na produção industrial. As leituras sobre o imperialismo do novo marxismo, como a de Miéville, entendendo o mecanismo do capital a partir da nucleação universal da mercadoria, vão a fundo na questão da subjetividade jurídica, na medida em que o imediato da dominação pela força está sustentado pelo seu derivado – e naturalizado ideologicamente, sem que em geral se o perceba – da garantia jurídica aos mercados e aos capitais (OSORIO, 2018; MASCARO, 2018b). As relações necessariamente hierárquicas no campo internacional, como também o são as próprias relações mercantis no mercado interno, forjam um enredamento complexo, contraditório e atravessado de falhas na reprodução do capital. A força econômica se enlaça com a força política dos Estados num movimento 126
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perpassado por interesses antagônicos e concorrenciais. O sistema internacional é tanto dependente das formas políticas estatais quanto, estruturalmente, uma ameaça à plena autonomia de tais Estados. De modo cada vez mais eivado de crises se dá a reprodução do capital, na medida das demandas e clamores irresolúveis. Grandes crises do capital na história encontram causas e geram consequências imediatas no plano internacional, como é o caso da crise de 1929 no mesmo período das duas guerras mundiais, ou, em outros termos, a crise de 2008 e seus efeitos presentes, que ecoam até mesmo no golpe brasileiro de 2016. A movimentação dos capitais e dos Estados, internacionalmente, gera fissuras que não se resolvem nos termos das formas sociais capitalistas, mas por suas coerções passam para gestar outras dinâmicas e mesmo distintas geopolíticas do capital (MASCARO, 2018a). Se o direito internacional e as relações internacionais são determinados pelas formas sociais capitalistas e se estruturam a partir de verticalidades várias entre os espaços econômicos, políticos e sociais do mundo, trata-se, aqui, de um complexo mundial de exploração e dominação. Como, via de regra, a imposição política e jurídica é imediatamente de cada Estado nacional, as lutas de classe têm uma dimensão internacional e um desarme interno. Mesmo a estratégia de acumulação busca mitigar a luta de classes, na medida das tantas concórdias promovidas em favor do capital nacional contra as investidas dos capitais estrangeiros, reclamando, da classe trabalhadora, sacrifícios para a melhor lucratividade de seus burgueses pátrios. Atravessando o conjunto das contradições de esferas políticas e jurídicas nacionais e internacionais que sustentam a acumulação também interna e mundial, as lutas de classes se apresentam, como sua contrapartida inexorável, a reclamar a união das trabalhadoras e dos trabalhadores de todo o mundo. A superação da sociabilidade do capital é o que permitirá, ao mesmo tempo, tanto a derrubada dos muros que separam os proprietários dos não-proprietários em cada país quanto dos muros que separam países.
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O Direito Internacional e a Dimensão Jurídica do Imperialismo1 Thomaz Delgado De David2
Introdução A gradativa transição do modo de produção feudal na Europa ao modo de produção capitalista e a generalização global deste são aspectos fundamentais para uma explicação da constituição do capitalismo na modernidade. Estabelecido e tornado hegemônico, o capitalismo desenhou os contornos das relações entre os Estados e, nos últimos dois séculos, também entre organizações internacionais (OI) e empresas transnacionais. Isso ocorreu porque os arranjos socioprodutivos e comerciais capitalistas demandaram o estabelecimento de relações internacionais que viabilizassem a sua dinâmica. Por sua vez, tais relações espelharam as assimetrias entre os atores internacionais, sobretudo entre os Estados, resumindo-se em uma confluência de poderes políticos e econômicos que dividiram o mundo em regiões centrais e periféricas3, em uma perspectiva dicotômica. Nesse cenário, o imperialismo, objeto de análise deste capítulo, traduz-se enquanto expressão de uma economia política de dominação e dependência. 1
O presente capítulo é uma republicação de artigo científico originalmente publicado no v. 15, n. 03, da Revista de Direito Internacional (Brazilian Journal of International Law).
2
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Franciscana (UFN) e do Curso de Ciências Sociais (bacharelado) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Integrante do Núcleo de Direito, Marxismo e Meio Ambiente (NUDMARX), da UFSM, e do Grupo de Pesquisa Teoria Jurídica no Novo Milênio, da UFN. Foi bolsista FIPE Sênior da UFSM durante o desenvolvimento deste capítulo. E-mail: [email protected]
3
Para a presente pesquisa, a distinção entre centro e periferia global abrange, para além de critérios tradicionais de análise e classificação dos Estados, como condição de desenvolvimento econômico e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a verificação em cada caso de fatores relativos à sua posição nas relações internacionais. São esses: nível de influência, alcance da soberania estatal e grau de autodeterminação. É recorrente que estudos situem os Estados Unidos da América e países europeus no centro e, por outro lado, países latino-americanos, africanos e asiáticos na periferia.
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Às vezes, sua orientação econômica apresenta-se em primeiro plano enquanto, por outras, sua faceta geopolítica o faz. Contudo, há sempre uma imbricação, em algum grau, aparente ou não, entre esses aspectos. Assim, o imperialismo apresenta-se enquanto relação complexa e “multidimensional”, composta por “dimensões”, como a política e a econômica. No entanto, cumpre destacar, que sua separação em dimensões possui fins analíticos, porquanto o imperialismo se apresenta, no plano concreto, de modo indivisível. Uma análise do papel do Direito nas relações internacionais sugere, pela função deste em prol de questões relacionadas com a manutenção do status privilegiado do centro global, que o imperialismo possui, também, uma dimensão jurídica. Nesse sentido, vertentes teóricas distintas contribuem para tal associação, como a de cunho marxista. Com base na crítica ao Direito, nos termos da formulação de Evgeni Pachukanis (fundamentada nos escritos de Karl Marx), torna-se possível, ainda, uma crítica específica ao ramo jurídico internacional. Com isso, possibilita-se uma aproximação entre a percepção marxista do imperialismo e do Direito Internacional. Cabe referir que a abordagem pachukaniana é uma das diferentes abordagens marxistas do Direito Internacional. De acordo com esse viés, o Direito e, portanto, o Direito Internacional, deve ser encarado como forma social específica, que surge e se desenvolve em concomitância à dinâmica capitalista, o que conduz ao questionamento do papel que desempenha nas relações internacionais sob esse sistema. À vista do exposto, questiona-se: com base em uma teoria marxista do Direito Internacional, bem como da consideração do imperialismo capitalista enquanto relação multidimensional de dominação e dependência, como pode ser compreendida a dimensão jurídica do imperialismo? Para responder tal questão, o referencial teórico utilizado será marxista, tanto para o entendimento crítico do Direito e de seu ramo internacional quanto para a interpretação do imperialismo capitalista. A escolha por esse referencial se dá em razão da capacidade da teoria marxista para a explicitação das engrenagens que movem o capitalismo e o desvelar de suas contradições sistêmicas. Destaca-se que há diversas contribuições significativas de teóricos marxistas acerca do imperialismo, em contraste com uma quantidade reduzida, porém, emergente e qualificada, de obras de pesquisadores que buscam, no legado teórico de Marx, formas de desvelar as imbricações entre o Direito e o capitalismo.
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Como objetivo geral, almeja-se compreender a dimensão jurídica do imperialismo capitalista, por intermédio da crítica marxista ao Direito Internacional e à economia política internacional. Para tanto, emprega-se o método de abordagem materialista histórico-dialético. O materialismo histórico-dialético fundamenta-se na premissa materialista de que os processos históricos se sucedem com base nas condições e nas necessidades materiais, bem como na afirmação de que isso se dá de modo dialético, por meio da superação de contradições em movimento. Assim, a escolha de tal abordagem importa na condução da pesquisa fundada em uma perspectiva crítica ao que, usualmente, é dado como natural e/ou imutável. Ademais, adota-se o método de procedimento histórico, considerando-se a necessidade de situar, temporalmente, as relações internacionais e seus desdobramentos político-econômicos e jurídicos. Como técnica de pesquisa, utiliza-se a pesquisa bibliográfica, por intermédio de documentação indireta, como meio de embasamento a partir do avanço teórico-científico já existente. Sequencialmente, o capítulo encontra-se estruturado em três partes. Na primeira, busca-se uma definição do imperialismo, demonstra-se seu aspeto multidimensional e explicitam-se duas dessas dimensões, nomeadamente a política e a econômica, utilizando-se de casos paradigmáticos4. Na segunda parte, analisam-se elementos metodológicos para uma teorização marxista do Direito e, posteriormente, expõem-se características centrais dessa teoria. Por seu turno, na terceira parte, compreende-se a relação entre imperialismo e Direito Internacional, isto é, a dimensão jurídica do imperialismo, com fundamento na forma jurídica e no conteúdo normativo.
1. Imperialismo: entre diferentes conceitos e interpretações Ao tratar do conceito de imperialismo, deve-se reputar que este apresenta um caráter polissêmico e que suas diferentes significações complicam a sua utilização de maneira explicativa, frequentemente tornando-a polêmica e descon4
Os casos paradigmáticos consistem em padrões exemplificativos. A seleção desses casos para esta pesquisa se deu de acordo com a possibilidade que possuem de servir como apoio fático à pesquisa bibliográfica, da qual extrai-se um arcabouço teórico reflexivo e crítico, que não deve estar descolado da interpretação da realidade concreta.
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siderando seu aspecto analítico (HARVEY, 2014). Isto significa que estabelecer uma conceituação para o imperialismo não é simples devido ao fato de se tratar de uma categoria controversa (MIÉVILLE, 2005). À vista disso, propõe-se entender, sumariamente, três questões fundamentais: a) a relação entre imperialismo e capitalismo; b) a distinção entre o imperialismo antes da modernidade e após; c) quais são as principais matrizes teóricas que tratam da questão. A partir dessas etapas, será possível traçar um entendimento adequado do imperialismo, que norteará a pesquisa. Desde já, cabe mencionar que não se trata de uma tentativa de exaurir a discussão em torno do imperialismo, mas sim de abordar as principais teorias e explicitar a opção conceitual adotada. Posteriormente, será possível compreender, de maneira contextualizada, as dimensões que o imperialismo comporta.
1.1 Em busca de uma definição do imperialismo A primeira questão proposta para uma tratativa acerca do que é, de fato, o imperialismo, constitui a relação entre imperialismo e capitalismo. No panorama global, é preciso reconhecer que o capitalismo consiste na primeira estruturação organizacional de cunho econômico e social com tendência mundial (OSORIO, 2014). Isso decorre da tendência contínua do capitalismo nacional à sua internacionalização com a finalidade de generalizar-se de modo transfronteiriço, o que é fundamental em uma formação social capitalista (BUKHARIN, 1988). Karl Marx não deixou de atentar para isso na medida em que compreendeu o capitalismo como um processo civilizatório de amplitude global (IANNI, 2010). A partir disso, depreende-se que o modo de produção capitalista (principal aspecto que define o sistema correspondente) é um divisor histórico em relação aos modos de produção passados, que não apresentaram um caráter transfroteiriço tão extremado. O imperialismo se desenvolveu, assim, ao longo da consolidação do modo de produção capitalista, sobretudo no âmbito do capitalismo monopolista, apresentando diversas características e efeitos. De modo amplo, “[o imperialismo se refere] simplesmente a qualquer relação de dominação ou controle efetivo, político ou econômico, direto ou indireto, de uma nação sobre outra” (COHEN, 1976, p. 21). Porém, não se deve
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confundir o imperialismo com outros conceitos básicos que estão diretamente conectados com as relações internacionais sob a sistemática capitalista. Nessa senda, a afirmação da soberania dos Estados e a dependência econômica interestatal não são sinônimos do imperialismo, em que pese estejam conectados. Assim, “a noção de dependência não substitui a de imperialismo; ao contrário, uma se desdobra na outra, integrando-se ambas tanto empírica quanto teoricamente” (IANNI, 1988, p. 139). De mesmo modo, a soberania, ou a sua flexibilização, em prol da acumulação e reprodução do capital, conectam-se com a ocorrência do imperialismo na contemporaneidade. Por derradeiro, frisa-se que sempre ocorreu um exercício desigual da soberania no capitalismo, sendo a afirmação da soberania maior nas nações imperialistas, em contraposição com as dependentes ou periféricas, em que se apresenta de forma reduzida (OSORIO, 2014). Esta é uma questão crucial, pois, formalmente, a soberania é reconhecida de modo semelhante para os diferentes Estados, em que pese no plano material o seu exercício ocorra de modo assimétrico. Para além, é preciso destacar que a reprodução do capital ao longo da história contemporânea corresponde à repetição do ciclo do capital industrial e que, no estágio do capitalismo financeiro, a sua acumulação assume novos contornos5. Essa reprodução do capital tem se amparado em diversos fatores, como a exploração da força de trabalho e de matérias-primas, a propriedade privada dos meios de produção e a divisão social, sexual, racial e internacional do trabalho etc. Todos os fatores elencados, além de outros que poderiam ser acrescentados, não se encontram isolados em uma lógica local na sistemática capitalista. Estes integram uma estrutura capitalista predominante, cuja determinação é supralocal, pois nesta o grau de determinação macroeconômico é aumentado6.
5
É necessário assinalar que o objetivo primordial da acumulação é o aumento da taxa de lucro e que todos os demais se filiam a esse. Dessa maneira, em que pese o processo de acumulação se desenvolva, seu escopo permanece constante. Conforme: FOLADORI, Guillermo; MELAZZI, Gustavo; KILPP, Renato. A economia da sociedade capitalista e suas crises recorrentes. São Paulo: Outras Expressões, 2016.
6
De acordo com Milton Santos, no capitalismo “cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente”. Contudo, o referido autor admite que a ordem global intenta a imposição de uma única racionalidade à totalidade do globo. Essa racionalidade não é, senão, a lógica do capital, centrada na reprodução de suas relações exploratórias características. Conforme: SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2014. p. 339.
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Nesse âmbito supralocal, a política externa de algumas nações interfere, diretamente, nos assuntos econômicos internos de outras. Há uma relação direta entre a política externa adotada pelos países e os interesses econômicos domésticos e estrangeiros que se beneficiam ou restam prejudicados. A partir de então, o imperialismo pode ser entendido nesse contexto da globalização do capital como uma forma de garantir hegemonia e poder econômico. À vista do exposto, até o momento, depreendem-se algumas constatações preliminares. Entre estas, tem-se que, no capitalismo, o imperialismo se conecta com: a) tendências de dependência econômica pautadas pela produção e circulação mercantil; b) políticas internacionais de subjugação adotadas por Estados; c) a igualdade formal e a desigualdade material entre as nações; d) o exercício desigual da soberania; e) a acumulação e a reprodução do capital. Para além, é preciso compreender que o imperialismo pode apresentar diferentes significados de acordo com o período histórico tratado. Nessa senda, tem-se que dinâmicas de imperialismo existem desde os modos de produção pré-capitalistas (MASCARO, 2013). Acerca da distinção proposta entre o imperialismo anterior e posterior à modernidade, nota-se que Bukharin critica as proposições para um entendimento linear do que poderia ser considerado como imperialismo ao longo da histórica. Segundo ele, para se compreender um estágio específico de uma categoria como o imperialismo, é necessário entendê-la com base em suas características particulares, distinções e condições próprias que a circundam (BUKHARIN, 1988). Em atenção ao materialismo histórico-dialético, não se pode desconsiderar as concretas e contraditórias relações de conquista e subjugação no passado, sob pena de não ser possível verificar a especificidade do imperialismo atual. Assim, ao romper com uma linearidade histórica que despreza as modificações estruturantes de cada formação social a partir de seu modo de produção característico, torna-se possível traçar um percurso adequado do imperialismo antes e após a modernidade. Na antiguidade, a manifestação do imperialismo se dava por intermédio do alcance de um poder diferenciado, ocasionado ou não por meio de ação militar direta, que possibilitava a expansão das cidades-Estado pelo fluxo de bens estabelecido. Nesse contexto, o potencial militar era uma maneira de constituir e garantir o poder (GUARINELLO, 1991).
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A Macedônia, sob o reinado de Alexandre, o grande (336 a.C - 323 a.C), e o Império Romano (27 a.C - 476 d.C) exemplificaram o imperialismo na antiguidade, em razão de seus aspectos militaristas, das suas expansões territoriais e de seus ganhos materiais. No caso da Macedônia e do Império Romano, suas extensões territoriais chegaram a se estender por grande parte da Europa central e mediterrânea, pelo norte da África, bem como pelo Oriente Médio. Assim, tem-se o desenvolvimento do imperialismo desde a antiguidade até a modernidade, em uma análise geral, com primazia nos interesses territoriais. A distinção passa a ocorrer na modernidade pois, invariavelmente, o imperialismo se conecta com a forma política estatal, mesmo sob diferentes composições (MASCARO, 2013), além de assumir novos objetivos centrais. Precisamente, David Harvey estabelece a distinção fundamental entre o imperialismo pré-capitalista e o imperialismo no capitalismo. O autor afirma que “o que distingue o imperialismo capitalista de outras concepções de império é que nele predomina tipicamente a lógica capitalista, embora [...] haja momentos em que a lógica territorial venha em primeiro plano” (HARVEY, 2014, p. 36). Ao tratar de predominância, resta claro que as lógicas capitalista e territorial coexistem e relacionam-se. Com fundamento no conceito de lógica capitalista, expressa-se o aspecto econômico da acumulação e da reprodução do capital, que se associa com a dominação geopolítica e que, portanto, segue, também, uma lógica territorial no âmbito global. A partir dessa distinção, passam-se a analisar, brevemente, algumas matrizes teóricas que versam acerca da questão imperialista na modernidade. À vista de uma definição, diferentes teorias marxistas sobre o imperialismo tomaram forma, como nas obras de Rudolf Hilferding, Lenin, Rosa Luxemburg, Nikolai Bukharin e Karl Kautsky — expoentes do marxismo no que se refere à matéria. Para Duménil, Löwy e Renault (2015, p. 71), “o conceito moderno [do imperialismo] aparece no século XX, com a obra pioneira de John Atkinson Hobson, Imperialismo (1910), que destaca a relação entre a dinâmica imperialista e a passagem do capitalismo de livre concorrência ao capitalismo monopolista”. Ainda, importa mencionar a obra O Capital Financeiro (1910) de Hilferding, que ergueu a base teórica sobre a qual Luxemburg, Kautsky, Bukharin e Lenin teorizaram acerca do imperialismo (LEITE, 2014).
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Para Lenin, o imperialismo deve ser considerado como uma “nova etapa do desenvolvimento capitalista, caracterizada pelo aparecimento de monopólios; do capital financeiro; da exportação de capitais; da formação de monopólios internacionais, e da luta constante pela partilha do mundo entre as grandes potências” (SALDANHA, 2006). Nesse sentido, Lenin obteve êxito ao associar o imperialismo com tendências do capitalismo que importaram em modificações substanciais na economia política global. Para ele, “o capitalismo transformou-se em imperialismo” (LENIN, 2012, p. 44). Tal constatação denota que, com base no desenvolvimento do capitalismo, emergiram condições concretas que deram forma a um imperialismo dotado de especificidade histórica. Em outro sentido, para Rosa Luxemburg, “o imperialismo é a expressão política da acumulação de capital, de sua luta para apoderar-se das áreas não capitalistas ainda disponíveis [...]” (SALDANHA, 2006). Contudo, isso não implica a existência de uma sociedade capitalista isolada, em concomitância com outra não capitalista, mas significa que há meios ainda não mercantilizados dentro de um todo econômico (LUXEMBURG, 1970). A definição de imperialismo dada pela autora é apropriada por compreender como o imperialismo se associa com a solução do problema de sobreacumulação7 do capital (HARVEY, 2014). Após o término do período colonial8, por exemplo, o imperialismo assumiu a tarefa de manter, na medida do possível, os ganhos econômicos provenientes das colônias em razão de sua exploração (MAGDOFF, 1978). Porém, conservar os benefícios econômicos não foi suficiente em longo prazo e, diante
7 Conforme a definição de David Harvey, a sobreacumulação “é uma condição em que excedentes de capital (por vezes acompanhados de excedentes de trabalho) estão ociosos sem ter em vista escoadouros lucrativos”. Conforme: HARVEY, David. O novo imperialismo. 8. ed. São Paulo: Loyola, 2014. p. 124. 8 O período colonial foi marcado pelo papel ativo de países europeus colonizadores, desde a chamada Era das Grandes Navegações, inaugurada por Portugal e Espanha no século XV, tendo-se estabelecido um novo padrão de controle mundial a partir da colonização da América Latina, de acordo com Anibal Quijano. Ao longo dos séculos, o colonialismo envolveu domínio e exploração no âmbito de regiões da América, da África, da Ásia e da Oceania. No decorrer do século XIX alguns movimentos de independização tomaram forma, apesar de o fim do colonialismo ter ocorrido somente na segunda metade do século XX. Conforme: QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
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da sobreacumulação de capital, novos processos se desenvolveram e é preciso pensar em um “novo imperialismo”. Nesse sentido, destaca-se o pensamento de David Harvey, que dispõe acerca de um imperialismo adaptado a uma dinâmica que remete a uma espécie de acumulação primitiva contemporânea, isto é, o imperialismo da acumulação por espoliação. Essa modalidade resume-se na liberação de meios de produção a baixo custo, para emprego do capital sobreacumulado e geração de lucro (HARVEY, 2014). Para a compreensão do desenvolvimento teórico de Harvey sobre a questão, Márcio Morais Brum (2017, p. 30) aponta soluções dadas pelo capital ao problema da sobreacumulação: a sobreacumulação num dado sistema territorial consiste em uma situação de excedentes de trabalho (desemprego em elevação) e excedentes de capital (acúmulo de mercadorias que não pode ser dissolvido sem uma perda; capacidade produtiva ociosa; ou excedentes de capital monetário a que faltam oportunidades de investimento produtivo e lucrativo), que podem ser absorvidos das seguintes maneiras: a) pelo deslocamento temporal mediante investimentos em projetos de longo prazo ou gastos sociais, para uma futura reentrada em circulação de valores de capital; b) pelo deslocamento espacial por meio da abertura de novos mercados, novas capacidades produtivas e novas possibilidades de recursos, sociais e de trabalho, em outros lugares; ou c) por alguma combinação de “a” e “b”.
Compreendidas as características da acumulação por espoliação, menciona-se que, independentemente das variações entre as teorias do imperialismo expostas, elas comunicam-se em alguma medida. As teorias abordadas convergem no entendimento de que “o imperialismo refere-se, especificamente, àquele tipo de relações internacionais caracterizadas por uma assimetria particular — a assimetria de dominação e dependência” (COHEN, 1976, p. 20). Considerando-se o exposto, adota-se o entendimento do imperialismo nos termos propostos por Harvey, de acordo com a perspectiva da acumulação por espoliação. Ademais, com base nos moldes dessa teoria, trata-se do imperialismo enquanto sinônimo de relações internacionais de dominação e dependência. Sequencialmente, passa-se a discorrer sobre as dimensões do imperialismo, especialmente a política e a econômica. Posteriormente, será possível traçar uma conexão com o Direito e compreender aquilo que se propõe chamar de dimensão jurídica do imperialismo. 139
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1.2 As dimensões do imperialismo: política e econômica Nesse momento, é de fácil constatação que o imperialismo não pode ser entendido, apenas, como uma relação política que envolve a sobreposição de poderes entre os Estados, tampouco como uma relação econômica para a acumulação e reprodução do capital. Há, inevitavelmente, uma relação entre o político e o econômico (mas não somente), que constituem o que se pode considerar como dimensões do imperialismo. Para Mascaro (2013, p. 101), “tomado em sentido lato, o imperialismo consiste na hierarquização dos espaços políticos e econômicos mundiais”. De fato, o imperialismo comumente é compreendido com base nessas duas dimensões fundamentais, que serão objeto de análise a seguir. Isso não significa, tendo em vista o materialismo histórico-dialético, uma desconsideração de que todas as dimensões que o imperialismo apresenta são indivisíveis. Contudo, importa em um desenvolvimento teórico com significativo valor, pois possibilita uma análise capaz de desvelar aspectos particulares frequentemente ocultos e reafirmar a existência de um todo estruturado. A primeira das dimensões a se discorrer a respeito refere-se à dimensão política do imperialismo. Sabe-se que o imperialismo se dá por intermédio do desempenho de relações de poder, através de políticas externas, no panorama geopolítico internacional. Poder (político), nesse caso, é uma palavra-chave para um entendimento adequado da conflitualidade que permeia as relações entre os Estados. Insta advertir que “o poder político de cada Estado não pode ser confundido, contudo, com o emprego puro e simples da força [...]” (BEDIN, 2011, p. 65). É certo, assim, compreender que a ingerência de determinadas nações sobre outras se associa com a sua capacidade de influência, imposição ou coerção. Coercitivamente, por exemplo, nações subjugam outras a atender aos seus interesses, o que pode se dar sem o uso efetivo da força. Anteriormente ao capitalismo, o poder (que não era centralizado nos Estados como passou a ser) se manifestava, sobretudo, por meio do uso da força — ou de sua possibilidade — como forma de coerção. Sob a sistemática capitalista, a força segue sendo um dos elementos constitutivos das relações de poder, mas essas relações tornam-se mais sofisticadas — para além da ameaça direta ou do uso imediato da força no plano concreto — na medida em que se institui uma pluralidade de Estados e, por conseguinte, aparelhos jurídicos estatais interconectados. 140
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Em razão do surgimento dos Estados no capitalismo, “abre-se a separação entre o domínio econômico e o domínio político” (MASCARO, 2013, p. 17) e então passa a haver dirigentes políticos diferentes daqueles proprietários que detém os meios de produção. Antes disso, no feudalismo o poder político “estava abertamente ao serviço dos interesses econômicos da classe dominante: os proprietários da terra eram, sem qualquer intermediação, titulares do poder político, que utilizavam para dirigir a economia [...]” (NUNES, 2012, p. 17). Como exemplo do apresentado, na atualidade, “devido à sua situação de centro imperialista dominante, a fração avançada do capital nos Estados Unidos pode impor sua hegemonia na aliança das classes dirigentes” (AMIN, 1977, p. 130) e, especialmente sobre a periferia global. Isso significa que, embora haja uma separação aparente entre os poderes político e econômico, segue havendo uma relação intrínseca entre os seus detentores. Na sequência, alguns casos paradigmáticos serão abordados enquanto sustentação empírica da teorização da dimensão política do imperialismo. O primeiro consiste na Doutrina Monroe e os demais, aos quais se dará uma breve atenção, consistem em guerras travadas pelos EUA. Acerca da Doutrina Monroe, José Luís Fiori (2004) dispõe o seguinte: anunciada em dezembro de 1823, foi uma declaração política destinada às Grandes Potências, e sem maior consideração pela vontade política dos novos estados recém-criados na América espanhola e portuguesa. Mas, pelo seu lado, os europeus simplesmente desconheceram o discurso de Monroe, enquanto os ingleses tentavam ridicularizá-lo [...] Logo em seguida do discurso de Monroe, os governos da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México solicitaram a intervenção americana a favor de suas posições e receberam a mesma resposta negativa, ficando clara a importância da Inglaterra como verdadeira autora e avalista da Doutrina Monroe que só passou de fato às mãos americanas, no momento em que os Estados Unidos acumularam o poder indispensável para sustentar suas posições internacionais, e isto só ocorreu no final do século XIX.
À vista disso, tem-se que a Doutrina Monroe consistiu em uma investida política de cunho imperialista operada pelos Estados Unidos da América (EUA), por intermédio de um discurso contrário ao colonialismo e à ingerência europeia nas Américas. Ao fim, o interesse estadunidense era expansionista, no
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sentido de garantir uma ampla dominação continental e fortalecer-se por meio da submissão das antigas colônias europeias aos interesses de Washington. Para além, durante a Guerra Fria, as relações internacionais foram marcadas por uma disputa “bipolar” entre EUA e URSS (FERNANDES, 2017). Nesse contexto, emergiram “guerras por procuração”, ocorridas em territórios não pertencentes a tais potências, mas que contavam com o envolvimento destas e serviam como forma de atender a interesses diversos, bem como de demonstrar poder na disputa política entre sistemas antagônicos (capitalismo e socialismo). De acordo com Fiori (2004), o desenvolvimento capitalista dos Estados Unidos não é obra exclusiva das suas grandes corporações privadas, mas decorre, também, das suas intervenções estatais e das guerras travadas. Para o alcance de sua condição de potência hegemônica unipolar, sua política externa passou a ser marcada por uma orientação bélica, que, na história recente, pode ser vista em casos como a Guerra da Coreia (1950-1953), a Guerra do Vietnã (1955-1975), a Guerra do Golfo (1990-1991), a Guerra do Afeganistão (2001-presente) e a Guerra do Iraque (2003-2011). A respeito da Guerra da Coreia, esta foi aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (sem a presença da URSS) e, embora aparentasse se tratar de uma ação conjunta, foi de fato uma ação estadunidense. A Guerra do Golfo, por sua vez, sequer pode ser caracterizada enquanto ação da ONU, mas tão somente enquanto operação dos EUA autorizada pela referida organização internacional (RIBEIRO; FERRO, 2016). Nesses casos, nota-se que o Conselho de Segurança da ONU, que será tratado de forma específica na terceira parte deste trabalho, juntamente à Carta das Nações Unidas, demonstrou-se conivente. Isso significa que a dimensão política do imperialismo se impõe mesmo diante de OIs que concedem uma aparência democrática à governança global, como a ONU. Ademais, ainda no contexto da Guerra Fria, os Estados Unidos desempenharam importante papel no estabelecimento de ditaduras na América Latina, por intermédio da Doutrina da Segurança Nacional (DSN), que também evidencia sua orientação política imperialista. Conforme apontam Padrós (2009) e Gallo (2018), os preceitos da DSN envolviam: a) o enfrentamento a um suposto comunismo em escalada; b) a substituição da figura do “inimigo externo” para
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a do “inimigo interno” no âmbito dos Estados; c) o alinhamento econômico a um novo modelo de desenvolvimento. Para além, resta abordar a dimensão econômica do imperialismo, a qual já pode ser percebida de antemão por intermédio do terceiro preceito elencado da DSN. Essa dimensão se evidencia na medida em que os Estados influenciam as relações internacionais de modo a garantir o seu status privilegiado de desenvolvimento, por meio de ganhos econômicos para si e para a sua elite nacional. Isso pode ocorrer de maneira predominante ou secundária nas relações imperialistas, considerando-se a multidimensionalidade proposta e a interconexão entre política e economia. Dois notórios exemplos da dimensão econômica do imperialismo serão abordados a seguir: os acordos de Bretton Woods (19441971) e o Consenso de Washington (1989). A Conferência de Bretton Woods foi responsável pela origem de instituições (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial) e normas (taxas cambiais fixas e mecanismos para alterá-las) que deram forma a um novo sistema monetário internacional. Isso ocorreu sob uma percepção compartilhada pela comunidade internacional acerca dos EUA como potência em um contexto de enfraquecimento dos países europeus em 1944 em face da guerra (DATHEIN, 2005). Ricardo Dathein (2005, p. 55), acerca da vantagem obtida pelos EUA, com base nos acordos de Bretton Woods, versa que: nos primeiros anos (aproximadamente até 1960), o padrão de Bretton Woods foi amplamente benéfico para a economia dos EUA. A transferência de dólares para a Europa permitiu compras de bens e serviços dos EUA, gerando saldos comerciais favoráveis e baixo desemprego, quase sem inflação. As empresas multinacionais aumentaram o poderio econômico dos EUA, e sua capacidade bélica cresceu muito com a instalação de bases militares por todo o mundo. Portanto, houve uma conjugação de hegemonia econômica, militar e política, que pode ser chamada de Pax Americana.
Portanto, percebe-se que Bretton Woods foi, do ponto de vista econômico, um dos fundamentos para a manutenção de uma posição privilegiada pelos Estados Unidos durante parte do século passado. O imperialismo, nesse caso, reside na configuração de um sistema monetário internacional pensado a partir do centro global e em benefício deste, que aumentou a dominação dos EUA e a dependência das regiões periféricas. 143
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Por sua vez, o Consenso de Washington adveio de um encontro organizado pelo Instituto de Economia Internacional, que reuniu funcionários do governo estadunidense, do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e economistas latino-americanos. Nesse encontro, foram apontadas soluções para os problemas econômicos, por meio de contenção dos gastos públicos, abertura ao capital estrangeiro e privatização generalizada (CAMPAGNARO, 2014). Desse modo, o Consenso de Washington serviu como cânone neoliberal, uma vez exportadas as suas diretrizes. As medidas de austeridade fiscal conduzem, em longo prazo, ao sucateamento de empresas estatais e, portanto, à viabilidade de sua privatização. Enquanto isso, a abertura ao capital estrangeiro encerra a lógica “neoimperialista” na medida em que disponibiliza meios para a acumulação por espoliação. Como pode-se compreender neste momento, “se o capitalismo vem passando por uma dificuldade crônica de sobreacumulação [...], então o projeto neoliberal de privatização de tudo faz muito sentido como forma de resolver o problema” (HARVEY, 2014, p. 124). Assim, a teorização acerca da dimensão econômica do imperialismo demonstra-se justificada pela sua aproximação com a realidade fática. Portanto, conclui-se, momentaneamente, que um Estado, ao adotar uma postura relacional imperialista com outro(s), está em busca da afirmação ou da manutenção de sua hegemonia e dá causa a eventos que lhe garantem benefícios econômicos (direta ou indiretamente). Havendo sobreacumulação de capital, possibilita-se, assim, a acumulação por intermédio da espoliação e ampliam-se os laços de dominação e dependência entre centro e periferia global. Para além de suas manifestações políticas, econômicas e de violência, que não bastam para caracterizar o imperialismo, há também outros fatores relevantes e que são analisados com pouca frequência (IANNI, 1988), como o Direito. Na sequência, trata-se da crítica marxista ao Direito, a começar pelos seus elementos metodológicos, para que depois possa-se compreender a dimensão jurídica do imperialismo.
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2. Teoria Marxista do Direito Embora Karl Marx não tenha se preocupado em estabelecer uma teoria crítica do Direito, suas obras tratam, de forma imediata ou não, de questões jurídicas. Inclusive, o legado metodológico marxista, expresso pelo materialismo histórico-dialético, pode ser utilizado enquanto ferramenta para tanto. O Direito é tema recorrente e explícito nos escritos que marcam a fase de juventude de Marx, como “A questão judaica” e os textos que publicou na Gazeta Renana (NAVES, 2014). Contudo, é somente em “O capital”, sua obra da maturidade, que Marx fornece elementos para a compreensão da especificidade do Direito moderno, que são notadamente interpretados por Evgeni Pachukanis (NAVES, 2014). Em razão de sua principal obra, intitulada “A teoria geral do Direito e marxismo”, Pachukanis tornou-se o principal responsável pela sistematização do pensamento marxista em torno do Direito. Um aspecto central da concepção formulada pelo autor é a distinção entre o direito, enquanto conteúdo normativo e, em outro sentido, como forma jurídica (PACHUKANIS, 1988). À vista disso, procede-se com uma análise da indissociabilidade do materialismo histórico e da dialética e de sua aplicação para a compreensão do Direito, nos termos expressos por Silva e De David (2017), com algumas adaptações. Posteriormente, será preciso compreender os significados assumidos pela forma jurídica e pelo direito positivo, que possibilitarão o estabelecimento de sua relação com o ramo internacional.
2.1 Elementos do materialismo histórico-dialético para uma Teoria Marxista do Direito O materialismo histórico-dialético (comumente denominado apenas como materialismo dialético), brevemente referido na introdução, consiste em uma formulação teórica e metodológica, advinda da conciliação entre a dialética e o materialismo-histórico. De pronto, é necessário advertir para o fato de que tais conceitos não foram tratados de forma sistematizada por Marx e Engels, apesar de suas contribuições fundamentais.
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Entre os teóricos da modernidade que trataram da análise social, Hegel foi o primeiro a desviar a centralidade da análise do indivíduo, expondo uma metodologia inédita, dialética (MASCARO, 2009). Desde então, a base teórica fundante para a compreensão da dialeticidade estava formada. No entanto, a dialética hegeliana era uma dialética abstrata (por ser idealista), diferentemente da dialética concreta, proposta por Karl Marx (MASCARO, 2009) e difundida. Em decorrência do seu caráter idealista, a dialética hegeliana tem como seu ponto de partida a abstração, motivo pelo qual a realidade concreta não pode ser considerada, nessa perspectiva, como instância determinante. Assim, as contribuições de Marx consistiram em um turning point para a compreensão da dialética, que, posteriormente, contou ainda, com diversas outras interpretações. Apesar de Marx tão somente ter deixado constatações espalhadas sobre a dialética, marxismos distintos conceberam-na como aspecto fundamental de sua teoria (DUMÉNIL; LÖWY; RENAULT, 2015). Desde as obras de sua juventude, a exemplo da supramencionada “A questão judaica”, é possível perceber uma lógica dialética em seu pensamento. Contemporaneamente, para Netto (2011) a dialética (não idealista) resumidamente é “o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, [e que] visa alcançar a essência do objeto”. Isso indica, ao tratar de essência (aquilo que é) e aparência (aquilo que parece ser), que a base da dialética reside em uma tese contraditada por sua negação concreta. Com frequência, a dialética é apresentada com base em uma estrutura aparentemente simples, composta por tese, antítese e síntese. A tese representa um elemento inicial contraditório, o qual produz sua antítese, isto é, sua contradição e, por fim, gera uma síntese, que expressa a superação da tese inicial por meio da antítese. A síntese, por sua vez, não se confunde com a antítese, que constitui etapa de condução, mas pode ser entendida como uma nova tese, contanto que seja contraditória. Em que pese esta seja uma alegoria para o entendimento do processo dialético, está longe de representar a complexidade de sua observação, sendo necessária uma análise aprofundada. Com o intuito de elucidação, propõe-se uma conceituação expressa. Assim, tem-se que: dialética é o modo dinâmico pelo qual se sucedem processos de 146
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transformação na sociedade, caracterizados por contradições em movimento, cujas superações representam a negação antitética da negação em si. Ainda, pode ser considerada enquanto método de análise, como nesta pesquisa, diante da sua aplicação para a compreensão dos fenômenos sociais dialéticos. Com base na definição exposta, observa-se que esta resulta de uma dialética já em conformidade com o materialismo histórico, o que se tornará perceptível adiante, quando esse conceito for objeto de análise. Isto posto, deve-se, então, buscar compreender o que é materialismo, sem a pretensão de esgotar o tema, e sua relação com os processos históricos. O materialismo, enquanto perspectiva oposta ao idealismo, surge com a crítica de Marx ao processo de conhecimento hegeliano, bem como a partir de uma oposição concreta ao pensamento de Hegel diante do Estado alemão, em 1843. Para o materialismo, tanto o ponto de partida quanto o de chegada devem corresponder à realidade concreta, com a diferença de que, no primeiro, ocorrerá a abstração dessa realidade e, no último, a realidade deve se traduzir na materialidade de maneira pensada. A respeito do materialismo enquanto oposição ao idealismo até o materialismo histórico marxista, há, nesse ínterim, a inserção da concretude das relações sociais como aspecto basilar para a compreensão da história. A proposta que deu origem ao materialismo histórico buscava proporcionar uma base teórica capaz de interpretar o mundo, com o intuito de modificá-lo (WOOD, 2013). Para Callinicos (2004, p. 40, tradução nossa), “o materialismo histórico pode ser observado como uma afirmação distintiva sobre os tipos de estruturas que têm primazia na explicação dos sistemas sociais, que são as forças e relações de produção”. A principal noção na qual se ampara o materialismo histórico não é a de luta de classe, ou ainda de classes em apartado, mas sim a que corresponde aos fatores concretos da vida em sociedade (WOOD, 2013) e seus mecanismos de reprodução9. Assim, o materialismo histórico, enquanto conceito, dispõe que os processos históricos se sucedem a partir das condições e das necessidades materiais. Como 9
A constatação de Ellen Wood não desconsidera a luta de classes, mas aponta, precisamente, para as condições materiais como o aspecto fundamental para a análise do materialismo histórico. A percepção da luta de classes como elemento constitutivo do materialismo histórico conduziria a um entendimento equivocado de que este perderia sua sustentação teórica diante da abolição da divisão social em classes.
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método, aplica-se tal noção no entendimento de fenômenos apreensíveis na área das Ciências Sociais. Acerca de sua utilização no âmbito metodológico, observa-se que: Marx apropria-se das categorias que emanam da realidade [material] e volta a ela utilizando-as para explicar o movimento de constituição dos fenômenos, a partir de sucessivas aproximações e da constituição de totalizações provisórias, passíveis de superação sistemática, porque históricas” (PRATES, 2012, p. 117).
Entendido como a dialética e o materialismo histórico são aspectos da prática social e participam do processo de conhecimento, resta explanar a indissociabilidade proposta que origina o termo materialismo histórico-dialético. Partindo-se do fato de que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 20015, p. 40), percebe-se que são as contradições que permitem superar cada período histórico e que isso ocorre dialeticamente, em face das contradições que envolvem o antagonismo das classes. Na perspectiva marxista, uma análise que se utilize da dialética como método de abordagem e desconsidere o materialismo histórico estará incompleta. Da mesma forma, o materialismo histórico sem a dialética torna-se incompreensível. Nessa senda, Henri Lefebvre e Norbert Guterman (1964, p. 35, tradução nossa) advogam que “a dialética somente segue sendo dialética se não se deixa fora dela o materialismo, se se une a ela”. De mesmo modo, para Callinicos (2004, p. 29, tradução nossa), o “materialismo histórico é dialético na extensão que estruturas sociais são constituídas por contradições internas”. À vista do exposto, resta conectar o materialismo histórico-dialético com o Direito. Tal relação pode ser estabelecida por meio dos seguintes termos: a) o direito positivo é a materialidade documentada de disputas e dissensos (LIMA, 2014); b) o conteúdo do Direito modifica-se dialeticamente conforme a correlação de forças em um dado período histórico; c) há uma dialeticidade entre aquilo que o Direito é (ser) e a sua aparência (dever ser), pois o ser jurídico corresponde à sua forma e o dever ser do Direito ao seu conteúdo normativo (o que será explicado na sequência); d) a estrutura institucional e normativa do Direito corresponde ao seu aspecto material, enquanto a sua abstração decorre dessa materialidade e encontra-se no plano ideal, como as prescrições legais; e) a materialidade concreta, pelas determinações econômicas, constitui a baliza das possibilidades do Direito (MASCARO, 2013). 148
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Considerando-se tais elementos, passa-se à análise do núcleo da crítica marxista ao Direito. Tem-se que a metodologia exposta servirá como base para uma análise que necessariamente precisa ser estruturada sob as bases do materialismo histórico-dialético, sob pena de romper com a própria concepção marxista.
2.2 Direito: entre forma jurídica e conteúdo normativo Em retomada ao princípio da Idade Moderna, tem-se que, com a fundação dos Estados nacionais e o absolutismo na Europa, surgiram aparelhos jurídicos que podem ser considerados, em interpretação restritiva, como o primórdio do sistema normativo estatal contemporâneo. Isso porque o “Direito”10, nas sociedades primitivas, antigas, medievais, entre outras, não é advindo da mesma fonte que o direito positivado, atrelado ao Estado capitalista, que tem a seu dispor o aparelho repressivo (sob a perspectiva althusseriana) para a garantia de seu cumprimento. Diante dos desdobramentos desse período no campo social e econômico, a esfera jurídica passou a ser disputada por poderes opostos que visualizam nela a possibilidade de impor a sua vontade de classe. Nesse sentido, houve auxílio para a solidificação da cultura jurídica, pois, conforme denunciado por Engels e Kautsky (2012, p. 19), havia um entendimento de que “a luta da nova classe [burguesa] em ascensão contra os senhores feudais e a monarquia absoluta, aliada destes, era uma luta política [...] que deveria ser conduzida por meio de reivindicações jurídicas”. Para além, desde o período de teorização de Marx e Engels, próximo à segunda revolução industrial — o ápice da exploração nas relações de trabalho — e a decorrente efervescência das reivindicações operárias por melhores condições de vida, o Direito em todo o globo sofreu alterações. Esse período histórico, que culminou no reconhecimento de direitos sociais, fez com que as lutas populares passassem a ser lutas por direitos, o que redundou na consolidação de Estados de bem-estar social em alguns países europeus. Em um salto temporal, ao longo do século XX e do curto lapso temporal transcorrido desse novo milênio, variadas e substanciais transformações se sucederam no 10 A Teoria Pachukaniana, a qual orienta o direcionamento desta pesquisa em relação à temática que envolve Direito e marxismo, não admite a existência de direitos em sociedades não capitalistas. Isso não significa negar a existência de normas sociais que regulavam a vida em sociedade, mas importa na constatação de que o Direito advém de uma especificidade histórica capitalista.
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âmbito jurídico. Entre estas, cabe destacar tendências no âmbito do Direito Internacional Público que evidenciam orientações progressistas, como a proteção internacional dos direitos humanos, do meio ambiente, do trabalhador etc. Contudo, apesar das alterações advindas do direito positivado, a essência do Direito não se alterou. Isso porque o conteúdo normativo difere da conceituação atribuída à sua forma, o que a Teoria Marxista aplicada ao Direito ajuda a compreender. Acerca das contribuições dessa teoria, a principal está na “[...] divisão [do Direito], por um lado, em norma, e por outro, em faculdade jurídica” (PACHUKANIS, 1988, p. 24). Para os fins desta pesquisa, utiliza-se o conceito de direito quando relativo à norma (e ao seu conteúdo), enquanto a forma jurídica será associada à equivalência da forma mercadoria, que corresponde à derivação do Direito com base nas formas sociais na economia capitalista. De acordo com o jurista soviético Piotr Stutchka, compreende-se o Direito como uma sistemática social que exprime interesses de classe, no caso a classe dominante, e se institui e é tutelado por meio da força dessa (NAVES, 2008). Na perspectiva de Stutchka, de entendimento do direito como instrumento de classe, surge a previsão de apropriação desse instrumento pela classe operária e de constituição de um direito socialista. No entanto, conforme Evgeni Pachukanis (1988), a forma jurídica é essencialmente capitalista, pois são as suas representações legais, correspondentes às relações fáticas, que amparam a sistemática de produção e circulação de mercadorias na contemporaneidade. Apesar dessa crítica pachukaniana, o entendimento da funcionalidade da norma para Stutchka, que merece uma atualização à dinâmica contemporânea, ainda deve ser levado em consideração (com ressalvas) para uma análise sobre a forma e o direito. Para um entendimento marxista das alterações jurídico-normativas, que permitiria a atualização supramencionada, tem-se que estas resultariam das contradições existentes em determinado lapso temporal que se manifestam, primeiramente, na base econômica e, posteriormente, na superestrutura, em que se encontram situados os aparelhos jurídicos estatais. A referida base econômica comporta os meios e as relações de produção, que, sob o sistema atual, é determinado como modo de produção capitalista, enquanto a superestrutura abrange as demais relações sociais e suas especificidades. 150
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Apesar de as categorias estruturais tratadas por Althusser possuírem finalidades explicativas, a relação de determinação da superestrutura pela base e de influência (em escala consideravelmente reduzida) desta sobre aquela explanam, com fundamento em uma relação dialética, a forma como os modos de produção têm protagonizado a construção sociohistórica. Nesse contexto, o aparelho ideológico de Estado jurídico figura como o instrumento típico de organização da superestrutura em razão da e na base econômica (ALTHUSSER, 2008, p. 192). Em que pese Marx não tenha formulado uma teoria acerca do Direito, sua contribuição para o entendimento e para a crítica da economia política, fundada em seu método materialista histórico-dialético, permite estabelecer, quando aplicado em uma análise da juridicidade, a forma jurídica como uma equivalência da forma mercadoria, conforme supramencionado. Assim, “a relação qualitativamente idêntica das mercadorias demanda uma relação qualitativamente idêntica entre os seus portadores” (KASHIURA JR., 2014, p. 165), isto é, o sujeito de direito, apto para exercer os atos da vida civil, é um sujeito indiferenciado, pois abstraídas suas particularidades. No capitalismo, é por intermédio de formas jurídicas que as relações de produção e circulação de mercadorias se estabelecem e, desde o momento de expansão da burguesia, conferem segurança e legitimam a mercancia. Conforme Buckel (2014, p. 374), “os sujeitos atuam como sujeitos jurídicos, de fato como iguais entre si e ‘livres’ para estabelecer contratos”. Desse modo, tem-se que “a relação jurídica de troca, cuja forma é o contrato, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica [...]” (MARX, 2013, p. 159). A reprodução das trocas e dos respectivos contratos pode ser expressa por meio da atividade comercial como fonte do liame jurídico. A forma mercadoria, enquanto equivalência valorativa, dá origem à forma jurídica, como igualdade abstrata entre titulares de direitos (TRINDADE, 2011). Desse modo, a forma jurídica oculta assimetrias materiais e promove uma generalização que permite o estabelecimento de relações capitalistas que, sofisticadamente, utilizam-se da legalidade para esconder a sua origem decorrente da desigualdade de classes. Em síntese, o Direito pela sua forma pode ser expresso em categorias jurídicas, como os sujeitos de direito, os contratos, a liberdade e a igualdade jurídica, a propriedade privada, etc., que revestem de legalidade relações sociais capitalistas. Ademais, o conteúdo normativo consiste em prescrição legal e,
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diferentemente da forma, é suscetível de alterações conforme a correlação de forças em cada momento histórico. Verifica-se, assim, a distinção entre a forma jurídica e o conteúdo normativo do Direito, o qual possui uma relação intrínseca com o Estado (forma política). Em oportuno, não se pode olvidar que não há forma jurídica descolada de um conteúdo que a preencha. Com isso, utiliza-se, a seguir, desses conceitos para a compreensão da relação entre o imperialismo e o Direito Internacional.
3. A dimensão jurídica do imperialismo Considerando-se a multidimensionalidade do imperialismo, cabe ainda compreender a sua dimensão jurídica, com base no Direito Internacional. Para tanto, empregam-se as noções abordadas sobre forma jurídica e conteúdo normativo, buscando-se verificar em que medida tais categorias servem para a explicitação dessa dimensão. De acordo com China Miéville (2005), o direito é uma expressão do imperialismo. Contudo, para que tal afirmação possa ser considerada válida, é preciso um esforço teórico no sentido de desvelar a maneira como a forma jurídica e o conteúdo normativo do Direito Internacional conectam-se com a economia política de dominação e dependência. Trata-se de um esforço na medida em que é necessário contestar a doutrina dominante tanto na seara do Direito Internacional quanto na da Teoria do Direito. A seguir, adentra-se no cerne da pesquisa, que consiste em compreender a dimensão jurídica do imperialismo, o que ocorrerá, primeiramente, pelo conteúdo normativo e, posteriormente, pela forma jurídica.
3.1 O Direito Internacional como expressão do imperialismo pelo conteúdo Nesta seção, interessa estabelecer uma associação entre o conteúdo do Direito Internacional e o imperialismo. Desse modo, será possível uma compreensão da dimensão jurídica do imperialismo pelo seu conteúdo legal.
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Conforme apontado por Marx e Engels (2007, p. 319), “o exame mais superficial da legislação, por exemplo da legislação para os pobres em todos os países, mostrará o quanto os dominadores avançaram quando imaginaram poder impor algo mediante sua simples ‘vontade soberana’”. No âmbito das relações internacionais, não é diferente, pois a positivação de interesses políticos dominantes se traduz na efetivação da agenda dos países imperialistas. Ademais, a economia política internacional, marcada por assimetrias materiais já referidas, conta com a interferência jurídica dos Estados para a garantia do padrão de acumulação. Nesse sentido, dispõe Luiz Felipe Osório (2018, p. 240) que: a acumulação internacional cria uma cadeia que beneficia o próprio aparato estatal, fazendo com que o favorecimento que confere aos capitais nacionais internacionalmente esteja vinculado à sua própria estrutura. Assim, a política dos capitais passa pela intermediação dos Estados, quando esses interferem juridicamente, politicamente, economicamente e militarmente na luta de classes.
Com base nisso, entende-se que o Direito e, no caso em análise, o Direito Internacional, apresenta-se conjuntamente ao imperialismo. As relações político-econômicas de dominação e dependência se valem de normas jurídicas ou da própria legalidade, de modo amplo, para a sua ocorrência. Desde os primórdios do Direito Internacional, com normas relativas às guerras terrestres e navais, trata-se, de maneira dissimulada, da luta quando se diz tratar da paz (OSÓRIO, 2018). Nessa senda, Emannuelle Jouannet (2007) afirma que o Direito Internacional clássico já combinava uma aparência universalizante com uma prática essencialmente discriminatória e imperialista. Exemplo disso, o Tratado de Paris (1763) formalizou o fim da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), sendo responsável pela cessão de colônias francesas (Canadá, Dominica, Granaba, Minorca, Nova Escócia e São Vicente) para o Império Britânico, que ascendia pela exploração colonialista. De acordo com Bhupinder S. Chimni (2018), o Direito Internacional confere legitimidade às ideias dominantes em uma época, transpondo-as em normas. O autor, ainda, destaca o papel que as instituições acadêmicas do centro global possuem nesse processo de legitimação. Moldam uma percepção domi-
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nante do Direito Internacional e definem uma agenda de pesquisa que é, em certa medida, exportada para a periferia11. Tendo em vista uma investigação crítica do conteúdo normativo do Direito Internacional moderno, será efetuada uma análise documental parcial da Carta das Nações Unidas (1945). Tal tratado internacional “foi assinado em 26 de junho de 1945, em São Francisco, na conclusão da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, e entrou em vigor em 24 de outubro de 1945” (UNITED NATIONS, 1945). A escolha por tal tratado internacional se dá em razão de ser o instrumento constitutivo da Organização das Nações Unidas (ONU), principal OI a promover a cooperação entre os Estados em matéria de Direito Internacional, e por versar sobre questões de segurança internacional. A Carta da ONU prevê, em seu art. 7º, §1º, uma estrutura orgânica composta por “uma Assembleia Geral, um Conselho de Segurança, um Conselho Econômico e Social, um Conselho de Tutela, uma Corte Internacional de Justiça e um Secretariado” (UNITED NATIONS, 1945). A Assembleia Geral, constituída por todos os membros das ONU (art. 9º), trata de quaisquer assuntos que se encontrem entre as finalidades da Carta ou que se relacionem com as funções de qualquer dos órgãos previstos (art. 10). Em razão de sua composição plural e competência abrangente, tal órgão transparece uma aparência democrática à ONU. Contudo, o Conselho de Segurança, responsável primário pela manutenção da paz e da segurança internacional (art. 24, §1º), cujas decisões possuem caráter mandatório sobre os demais membros (art. 25), é composto por quinze membros da ONU, sendo cinco desses membros permanentes. São membros permanentes do Conselho de Segurança: a República da China, a França, a Rússia (no lugar da antiga URSS), o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e os EUA (art. 23, §1º).
11 Nessa senda, “enxergar as continuidades históricas do imperialismo certamente instiga respostas ao eurocentrismo na produção de direito internacional: leva a questionar as narrativas de progresso que ignoram as interações com a periferia e a desconfiar das histórias que destoam da realidade local” (SANCTIS, 2017, p. 290). Disso decorre a emergência da análise terceiro-mundista do Direito Internacional, associada a uma crítica da ideologia dominante.
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A votação no âmbito do Conselho de Segurança se dá sobre questões procedimentais, por maioria de nove membros, e não procedimentais, por maioria de nove membros incluindo, necessariamente, o voto afirmativo dos cinco membros permanentes (art. 27, §2º e §3º). Por sua vez, a decisão acerca do que é procedimental é considerada não procedimental e, portanto, qualquer membro permanente pode vetar uma matéria, atribuindo-lhe caráter não procedimental e votando contrariamente (duplo veto). Diante do exposto, a aparência democrática da ONU cede lugar a uma configuração legalmente dada na qual potências possuem o poder decisório sobre as questões mais relevantes12. Assim, “a norma jurídica, que pauta as regras e as instituições internacionais, deve ser lida pela confluência de dois fenômenos sociais [político e econômico], sendo uma manifestação muito mais política do que baseada na tecnicidade jurídica (OSÓRIO, 2018, p. 244)”. Ademais, quando tratadas questões de ameaça à paz, ruptura da paz ou atos de agressão, compete ao Conselho de Segurança determinar a sua existência e fazer recomendações ou decidir medidas diante disso (art. 39). Isso significa, considerando-se as relações entre as grandes potências e o duplo veto, que a periferia global está à margem dos processos decisórios sobre segurança internacional. Em recapitulação ao exposto anteriormente, nos casos da Guerra da Coreia e da Guerra do Golfo, o Conselho de Segurança desempenhou papel de apoio às investidas imperialistas estadunidenses. Isso se deu por intermédio de suas resoluções, como a Resolução n. 82/1950 que declarou a ruptura da paz entre as Coreias e assistência à Coreia do Sul (UNITED NATIONS, 1950) e a Resolução n. 687/1991 que reafirmou ser injusta a invasão e ocupação do Kuwait pelo Iraque e reservou-se à utilização de todos os meios necessários para obrigá-lo a cumprir determinações (UNITED NATIONS, 1991). Com base nessa breve análise demonstrativa do conteúdo normativo do Direito Internacional e de sua aplicação prática, buscaram-se elementos fáticos que amparam uma compreensão da dimensão jurídica do imperialismo pelo conteúdo legal. Nesse sentido, verificou-se que o conteúdo normativo do Direi-
12 Considerando-se a necessidade de democratizar o Conselho de Segurança da ONU, emergiram discussões acerca de uma eventual reforma do órgão. Conforme Ljubo Runjic (2017, p. 268), “embora a Assembleia Geral das Nações Unidas tenha incluído a questão da reforma do Conselho de Segurança em sua agenda em 1992, as negociações sobre essa questão vital não lograram êxito, mesmo depois de um quarto de século”.
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to Internacional, às vezes, ampara o imperialismo, na medida em que é instrumentalizado para finalidades imperialistas. Contudo, conforme demonstrado anteriormente, o conteúdo legal do Direito é passível de mudança conforme a luta de classes e, em razão disso, pode assumir contornos não-hegemônicos. Desse modo, o conteúdo normativo internacional, apesar de amparar o imperialismo, não o consubstancia, isto é, não é elemento constitutivo deste, como aparenta ser a forma jurídica. Na sequência, passa-se à compreensão da dimensão jurídica do imperialismo por tal forma.
3.2 O Direito Internacional como expressão do imperialismo pela forma Essencialmente, o capitalismo é um sistema anárquico no qual as regras da economia frequentemente ameaçam romper a ordem social. Contudo, provavelmente trata-se, ainda, do sistema que mais demanda estabilidade e previsibilidade na sua estrutura organizacional, por meio de instituições e do Direito (WOOD, 2014). O fato de não haver uma instituição política acima dos Estados, capaz de ordenar o sistema internacional, confere a este o referido caráter anárquico, em contraposição à característica hierárquica presente no interior dos Estados. Nesse contexto, a legalidade é o suporte que permite que haja uma ordem capaz de assegurar a manutenção e a reprodução das relações internacionais típicas de uma formação social capitalista. Em síntese, ao mesmo passo que se afirma haver uma ordem global capitalista por meio da legalidade, há uma desordem ocasionada pela multiplicidade de Estados como entes máximos do sistema internacional. Por tais motivos, o cenário no qual a pluriestatalidade e a forma jurídica se apresentam pode ser considerado como (des)ordem global capitalista. Nesse sentido, Osório (2018, p. 235) afirma que “se o capital é impreterivelmente internacional, o Estado também o é, logo, apresenta-se em multiplicidade, forjando um sistema de regras e comportamento minimamente comuns”. Sendo assim, identifica-se que o capital global necessita de uma ordem, além de política e social, que seja jurídica e previsível, estabelecendo os marcos para a sua reprodução (OSÓRIO, 2018) dentro de uma perspectiva de segurança jurídica. 156
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Anteriormente, tratou-se da forma jurídica e mencionou-se algumas categorias que revestem de legalidade as relações capitalistas. Nesse momento, importa transpô-las à dinâmica das relações internacionais para entender, a partir disso, o Direito Internacional como expressão do imperialismo por intermédio da análise da sua forma. Assim, algumas categorias de fácil visualização no direito interno, consideradas categorias jurídicas basilares, podem ser verificadas para além desse. Nessa senda, na seara internacional, os sujeitos de direito passam a ser os Estados, os contratos assumem a denominação de tratados internacionais, a liberdade e a igualdade jurídica se traduzem na soberania estatal (que permite que Estados iguais sejam livres para estabelecer relações jurídicas), a propriedade privada assegura as relações econômicas internacionais etc. Sabendo-se que o Estado soberano é o sujeito na seara do Direito Internacional Público, a relação de igualdade formal entre os Estados soberanos permite que se desenvolvam relações internacionais revestidas pelo manto da legalidade, que escondem as suas assimetrias materiais. A importância da equivalência geral se dá, pois “toda a relação em que a equivalência não existe ou se encontra em posição subordinada, é uma relação de natureza não jurídica, uma relação de poder” (NAVES, 2014, p. 87). Nessa senda, o imperialismo capitalista é oposto, apesar do que possa parecer, justamente contra os Estados periféricos legalmente reconhecidos como livres e iguais (OSÓRIO, 2018). Por conseguinte, o entendimento de que a intervenção dos Estados soberanos é baseada na sua afirmação jurídica possibilita a compreensão do imperialismo em um cenário no qual os Estados são legalmente dados como iguais e o Direito Internacional é universal (MIÉVILLE, 2005). Nesses termos, alicerçando-se nas formulações teóricas de Evgeni Pachukanis, o jurista “[China] Miéville caminha para a direção mais completa e fundante de uma crítica marxista do direito internacional” (OSÓRIO, 2018, p. 246). No sentido oposto ao da literatura especializada, Miéville baseia-se no materialismo histórico-dialético e, por intermédio da sua leitura pachuakniana, avança na compreensão do cerne do Direito Internacional (OSÓRIO, 2018). A obra de Miéville sobre a questão, intitulada “Entre direitos iguais” (tradução nossa), refere-se à observação de Marx no sentido de que “entre direitos iguais, a força decide” (MIÉVILLE, 2005). Nessa senda, a relação de equivalên157
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cia entre os Estados permite uma aparência democrática na tomada de decisões de interesse comum, mas esconde que os poderes político e econômico são os fatores que determinam os interesses específicos que serão atendidos. A generalização decorrente de categorias jurídicas ampara a lógica econômica e a geopolítica, para que estas sejam postas em prática por meio de relações imperialistas. Assim, “a tendência do capitalismo é generalizar e Pachukanis tornou isso claro: o capitalismo é um capitalismo jurídico” (MIÉVILLE, 2005, p. 260, tradução nossa). Com as categorias jurídicas universalizadas, a essência do imperialismo é transfigurada na aparência da legalidade. Para além, através da associação da coerção promovida pelo imperialismo capitalista com a forma jurídica em uma formulação abstrata, tem-se que, na realidade concreta que envolve a internacionalização do capitalismo na modernidade, isso resulta no entendimento de que sem imperialismo não pode haver Direito Internacional (MIÉVILLE, 2005) e vice-versa. O Direito Internacional aparece, assim, conforme introdutoriamente mencionado, enquanto dimensão do imperialismo, devido à sua forma jurídica. Miéville (2008, p. 120, tradução nossa) afirma que “as ações imperialistas são enquadradas em termos jurídicos e que o imperialismo e o Direito Internacional são partes de um mesmo sistema”. Em complemento, tem-se que “o capitalismo moderno é um sistema imperialista e, simultaneamente, jurídico, sendo que as formas constituintes do Direito Internacional são as formas constituintes do capitalismo global e, por isso, imperialistas” (MIÉVILLE, 2008, p. 120, tradução nossa). Portanto, nota-se a relação imediata entre a dimensão jurídica e as dimensões política e econômica do imperialismo. Isso porque, nas relações imperialistas, “[...] a assimetria material, travestida pelas formas do direito, manifesta-se tanto na seara política quanto na econômica” (OSÓRIO, 2018, p. 239), resultando em dominação e dependência. O imperialismo capitalista demonstra-se, assim, um imperialismo político-econômico e jurídico, que se apresenta de modo indivisível na dialética concreta das relações internacionais.
Considerações finais Em sede conclusiva, tem-se que o imperialismo capitalista é uma especificidade histórica e traduz-se nas relações político-econômicas de dominação e 158
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dependência em um mundo globalizado e desigual. Com fundamento na análise do imperialismo como conceito multidimensional, entenderam-se as suas dimensões notáveis, como a política e a econômica e, para além, buscou-se compreender sua dimensão jurídica. Para tanto, a Teoria marxista do Direito, analisada sob bases metodológicas adequadas, forneceu uma concepção capaz de dar conta dos aspectos contraditórios desse no capitalismo, de entender a legalidade como algo historicamente situado e de explicar as transformações normativas pela luta de classes. A partir de então, a divisão do Direito entre forma e conteúdo foi o avanço teórico que permitiu um entendimento crítico e inovador da dimensão jurídica do imperialismo. Em consideração ao conjunto exposto, conclui-se que há uma dimensão jurídica do imperialismo e que esta pode ser compreendida pelo conteúdo normativo do Direito Internacional e pela forma jurídica em si. Quanto à compreensão por meio do conteúdo, esta tem como base a apreciação do direito positivo e do estabelecimento de sua relação com o imperialismo. Historicamente, o Direito Internacional tem sido expressão do imperialismo na medida em que o seu conjunto normativo assumiu os interesses das grandes potências em seu conteúdo, direta ou indiretamente. Casos paradigmáticos utilizados ao longo do capítulo, como a Doutrina Monroe, os acordos de Bretton Woods, as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas diante da Guerra da Coreia e da Guerra do Golfo e o Consenso de Washington expressam o conteúdo do Direito Internacional ou relacionam-se com ele em alguma medida. Contudo, ressalta-se que o conteúdo normativo do Direito Internacional é passível de mudança conforme a correlação de forças em uma formação social capitalista global e que, em razão disso, pode comprometer-se com o imperialismo ou assumir contornos não hegemônicos. Por isso, em que pese a dimensão jurídica do imperialismo possa ser compreendida com base no conteúdo do Direito em alguns casos, não se trata de uma regra geral. Por outro lado, a forma jurídica, de acordo com a teoria de China Miéville, fundamentada no marxismo pachukaniano, possibilita uma maneira diferente de compreender a dimensão jurídica do imperialismo, que não anula a primeira (por meio do conteúdo), mas complementa-a. Nesse sentido, verifica-se que a forma jurídica que fundamenta o Direito e seu ramo internacional é condição necessária para a manutenção e a reprodução das relações imperialistas de dominação e dependência. 159
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Isso ocorre porque a forma jurídica constitui uma correspondência da sociabilidade capitalista, que transforma as situações e relações concretas relativas ao âmbito econômico em categorias jurídicas abstratas. Com isso, possibilita a reprodução de uma dinâmica que esconde, por trás da aparência da legalidade, a essência da desigualdade material entre os Estados na modernidade. A (des)ordem global capitalista, nesse contexto, é contraditória pois, em que pese o cenário internacional seja anárquico, há uma ordem advinda da legalidade que garante segurança jurídica às relações imperialistas. Diante disso, a compreensão do imperialismo pela análise da forma jurídica, de acordo com a abordagem marxista empregada, implica uma correspondência imediata entre Direito e imperialismo, que permite a constatação de que existe uma dimensão jurídica, pelo Direito Internacional, do imperialismo. À vista do exposto e, em consideração à filosofia marxista, a qual defende, para além da compreensão do mundo, a sua transformação, este capítulo resulta em uma contribuição para a disputa no campo das ideias e como suporte para uma resistência anti-imperialista, crítica ao capitalismo e à legalidade. Por fim, destaca-se a relevância deste, que reside na atualização da crítica marxista ao Direito, aplicando-a ao ramo jurídico internacional, enquanto sua originalidade decorre da sua interdisciplinaridade e da metodologia empregada.
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Direito Internacional e Marxismo: Atualizações Júlio da Silveira Moreira1
Nota de início Nos dias em que esse capítulo foi finalizado, havia 6 dias que o presidente brasileiro, Bolsonaro, havia fechado acordo com os Estados Unidos cedendo o uso da Base de Alcântara para lançamento de satélites, oficializando a ocupação estadunidense no Brasil, na mesma época em que a Venezuela estava sob uma intensa operação de guerra. O colonialismo se manifesta no Brasil e na América Latina com elementos tradicionais e novos, incluindo os esquemas de conflito de baixa intensidade e guerras híbridas. Tenho estudado o Direito Internacional por mais de 10 anos, e é preciso afirmar que o sentido último desse estudo é a crítica do imperialismo e a afirmação das possibilidades de solidariedade internacional entre os povos.
Introdução Entre 2009 e 2011, em programa de mestrado2, desenvolvi um projeto de pesquisa sobre a crítica da igualdade jurídica no Direito Internacional, à luz de reflexões sobre dois elementos contextuais e fáticos: a Estratégia de Segurança Nacional de George W. Bush e a desigualdade jurídica em esfera internacional nos esquemas institucionais da Carta das Nações Unidas e do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. O trabalho resultou na publicação do livro “Direito internacional: 1
Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás. Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected]
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Refiro-me ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia-GO; mestrado realizado entre 2009 e 2011 e concluído com a dissertação “Crítica da igualdade jurídica no Direito Internacional: segurança nuclear e guerra ao terror”.
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para uma crítica marxista” (MOREIRA, 2011), uma obra de referência e precursora na literatura em língua portuguesa, prefaciada pelo Prof. Alysson Mascaro. Seguindo a concepção metodológica de que o processo de criação/análise se diferencia do processo de exposição, a pesquisa foi construída a partir da busca de uma crítica científica, fundamentada no materialismo histórico e dialético, a processos contemporâneos das relações internacionais e do direito internacional, demonstrando assim as limitações das análises e métodos acadêmicos mais comuns, fundados no idealismo e no juspositivismo ou formalismo jurídico, bem como no pragmatismo/realismo pró-imperialista das relações internacionais. Na literatura internacional, como será citado, já se demonstravam os impactos da chamada guerra ao terror sobre o direito e as relações internacionais, enquanto a doutrina estudada nos cursos de Direito do Brasil passava ao largo dessa reflexão e muitas análises internacionais retratavam George W. Bush como um governante louco, desequilibrado e sádico. Era preciso demonstrar, mais a fundo, que ele atuava dentro de um processo global de interesses econômicos, políticos e históricos, que o objetivo do Direito Internacional praticado nas instituições como a ONU e os Estados não era uma paz duradoura ou uma comunidade de nações, e que o ensino jurídico tradicional, limitando-se a repetir as frases dos tratados, não ajudava a entender suas razões. Mesmo antes de testemunhar a Primeira Guerra Mundial, Lênin (1984, p. 355) afirmava que “os capitalistas não partilham o mundo levados por uma particular perversidade, mas porque o grau de concentração a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para obterem lucro”. Ao mesmo tempo, estudos de psicologia social, publicados após a Segunda Guerra (p. ex. FROMM, 1974; ADORNO et al, 1950; TCHAKHOTINE, 1967) demonstraram que, juntamente com os interesses econômicos, a personalidade dos governantes e as crenças compartilhadas social e coletivamente condicionam também suas ações, o que se tornou evidente com as práticas e discursos do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e as teias de contradições com seus aliados. Portanto, um trabalho crítico do Direito Internacional deve levantar elementos teóricos, históricos e filosóficos, e aplicar esses elementos em fatos e processos contemporâneos, buscando contribuir com as formas de se pesquisar em Direito e Ciências Sociais. Minhas análises e reflexões foram nutridas pela experiência no ensino do Direito Internacional e pela atuação, como advogado internacionalista, em
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visitas de campo ou missões de investigação (fact-finding missions), congressos e articulações nacionais e internacionais junto a organismos de direitos humanos, como a Associação Internacional dos Advogados do Povo (ou International Associatoion of People’s Lawyers) e comissões de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil. Existia (e segue existindo) uma preocupação compartilhada com inúmeros juristas, estudantes e ativistas em todo o mundo, em colocar o conhecimento e a profissão jurídica a serviço de pessoas e coletividades injustiçadas por violações massivas e sistemáticas de direitos humanos, frente a prisões políticas, desocupações forçadas, execuções, perseguições e ameaças a direitos individuais e coletivos. Era necessário trazer às discussões jurídicas e processuais a vigência de tratados como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ambos de 1966), compor redes de solidariedade e conectar as violações apresentadas com os processos políticos e conflitos de interesses no âmbito dos Estados e sociedades relacionadas. Radha D’Souza (apud MOREIRA, 2011), professora de Direito Internacional da Universidade de Westminster (Londres), pondera no texto de orelha do referido livro: Muita coisa tem sido escrita, pelo menos na língua inglesa, sobre segurança coletiva e a chamada Guerra ao Terror. Muitos desses escritos criticam o Direito Internacional por suas falhas nesses campos. Júlio Moreira vai mais longe. Fornece uma análise dos fundamentos teóricos do Direito Internacional pela perspectiva marxista. Argumenta que os Estados são o propósito do Direito Internacional e suas relações devem ser entendidas pelos seus fundamentos materiais na economia política do mundo contemporâneo.
O trabalho de China Miéville (2006), um conhecido acadêmico marxista do Reino Unido e escritor de literatura fantástica, foi um grande inspirador da pesquisa, somando-se aos estudos sobre Pachukanis (1988) e Naves (2000) desde anos anteriores.
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2. Da crítica do Direito à crítica do Direito Internacional A teoria geral do direito e do Estado ensina que o carácter coercitivo que dá eficácia ao direito provém do monopólio estatal da violência legítima; dentro do monismo (que prevê uma única fonte formal de criação e aplicação do direito, e difere do dualismo ou pluralismo, que admite múltiplas fontes), a soberania do Estado é uma premissa para o funcionamento do edifício jurídico. Soberania quer dizer que não há um ente superior ao soberano, o topo da pirâmide de poder e legitimidade formal. Sobre estas bases – e buscando superá-las - se erguem também as teorias críticas do direito e do Estado. Na esfera internacional, porém, esse esquema colapsa, pois não está em vigência uma só soberania, mas conflitos de interesses entre entidades soberanas, que ao mesmo tempo se combinam, nas “malhas da dependência financeira e diplomática” (LÊNIN, 1984, p. 364) e na força coercitiva de um Estado sobre outro. Assim, “a forma jurídica internacional assume igualdade jurídica e violência desigual entre Estados soberanos”, diz Miéville (2006, p. 293), aplicando no sistema internacional a máxima usada por Marx na problemática da igualdade jurídica entre burgueses e trabalhadores: entre direitos iguais, prevalece a força. Na definição de Pachukanis (2006, p. 322), o direito internacional é “a forma jurídica da luta dos Estados capitalistas entre si pela dominação sobre o resto do mundo”. O direito internacional se baseia na desigualdade de poderes e no exercício da força; em outras palavras, na lei do mais forte. Mais que no esquema jurídico da ordem interna estatal, com seus mecanismos de legitimidade e perpetuação do status quo, na esfera internacional se desnuda a natureza parcial e classista do direito. A revisão de literatura também incluiu perspectivas críticas internacionais sobre o direito, como os Estudos Jurídicos Críticos (ou Critical Legal Studies) e as Abordagens de Terceiro Mundo sobre o Direito Internacional (ou Third World Aproaches to International Law) (RAJAGOPAL, 2003; CHIMNI, 2006). Nesse caminho, veio o trabalho de Anghie (2004), que trouxe a conexão que eu buscava entre Direito Internacional e Imperialismo nos fatos e processos contemporâneos, como a Estratégia de Segurança Nacional de George W. Bush, sem perder a reflexão sobre os fundamentos do Direito Internacional em clássicos como Vitória e Grotius. Embora esses textos em língua inglesa fossem os que mais aportavam ao tema do projeto de pesquisa, já estava em pleno desenvolvimento no Brasil um movimento de juristas acadêmicos que vinha publicando sobre a crítica mar170
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xista do direito, me permitindo construir desde e com esse espaço de troca acadêmica. A crítica do direito no ensino e na vida profissional é um alento para profissionais e estudantes nos milhares de cursos de direito pelo país, desconfiados do fetichismo da norma jurídica, olhando mais para os valores da justiça e sedentos de bases teóricas e práticas para um fazer jurídico transformador. Por atenção ao método, percebi que não poderia partir da crítica marxista do direito sem antes passar por uma revisão, estudo e entendimento da crítica marxista geral, dos conceitos fundamentais da obra de Marx e Engels que aportam ao funcionamento do capitalismo. Dessa obra e conceitos, auxiliado por Pachukanis e por reflexões anteriores sobre a história e dinâmica das revoluções, fui desenlaçando os elementos de direito ali presentes e os debates entre revisionismo e marxismo que acompanharam essa construção histórica, onde o direito aparece tanto como fundamento filosófico (forma de pensar) e como tática da luta de classes. Cito, como exemplo, a crítica de Engels e Kautsky (1995) a Menger e a crítica de Roxa Luxemburgo (1999) a Bernstein. Passando da análise à construção da exposição, o trabalho final ficou desglosado em quatro partes: a) elementos do marxismo e crítica marxista do direito; b) estudo das origens filosóficas clássicas e contradições do Direito Internacional, em especial estudos sobre Vitoria, Grotius e Kant; c) aprofundamento da teoria do imperialismo em Lênin para juntar com as reflexões contemporâneas sobre o Direito Internacional; e d) reflexões contemporâneas sobre o Direito Internacional, especificamente sobre guerra ao terror, Conselho de Segurança das Nações Unidas e segurança nuclear. Nos próximos tópicos, entrelaçarei elementos dessa pesquisa que permitem seguir olhando para o direito e as relações internacionais com perspectiva crítica, e, na última parte, abordarei elementos novos que não foram incluídos na obra inicial.
3. A construção da jurisprudência do Direito Internacional Quando Bush anunciou sua Estratégia de Segurança Nacional, em 2001, advogou pela mudança e revisão dos parâmetros do Direito Internacional que representavam obstáculos aos objetivos militares e de política externa dos Estados Unidos. Isso se referia a um padrão, um modus operandi, sobre como as potências hegemônicas se relacionam com as instituições internacionais no pro171
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cesso de construção de legitimidade e no contexto do imperialismo, que é parte da construção da jurisprudência do direito internacional (já que a política, as instituições e o direito internacionais se influenciam mutuamente). As instituições (como as Nações Unidas) são criadas pelos Estados hegemônicos (potências) e, ao mesmo tempo, refletem as pugnas e contradições entre os mesmos. Por um lado, parece que as instituições internacionais possuem autonomia relativa para aplicar sanções sobre os Estados; por outro, esse processo de entendimento e desentendimento entre as instituições e os Estados tem raiz nas contradições próprias das disputas interimperialistas (que se manifestam ora por diplomacia, ora por guerra, assim como pelos mecanismos intermediários entre uma e outra). Para Lênin (1984, p. 396), as organizações internacionais são alianças interimpelialistas que se formam como unidades temporárias entre períodos de guerra: As alianças pacíficas preparam as guerras e por sua vez surgem das guerras, conciliando-se mutuamente, gerando uma sucessão de formas de luta pacífica e não pacífica sobre uma mesma base de vínculos imperialistas e de relações recíprocas entre a economia e a política mundiais.
As potências se relacionam em lapsos de pugnas e unidades com as instituições internacionais e demais potências, fazendo que as tendências, normas e jurisprudência do Direito Internacional sejam reflexo do momento em que se encontram os arranjos internacionais na dinâmica histórica, seguindo os interesses econômicos em disputa. Ao tratar das mudanças no direito internacional, Lambert (2004) nos lembra um fato histórico exemplar: o debate entre os conceitos de mar fechado (mare clausum) e mar aberto (mare liberum) ao longo do século XVI, pelo qual a Holanda (e especialmente seu advogado Hugo Grotius) provocou uma mudança paradigmática na ordem internacional sobre o domínio das águas marítimas, numa época de capitalismo e colonialismo nascentes. Tendo Portugal e Espanha saído na frente na formação das escolas de navegação e nas empreitadas coloniais, afirmaram um uso e acesso exclusivo às rotas ultramarinas que navegaram primeiro. Porém, outros países, como a Holanda, questionaram esse direito exclusivo. A história do colonialismo é
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também a história da disputa entre os colonizadores, e outras potências, como Reino Unido e Holanda, também desenvolveram seus recursos de navegação. A Igreja Católica (que atuava com autoridade comparável à de um árbitro internacional) sustentava que esses temas deveriam ser resolvidos por acordos entre as potências soberanas; já a Holanda sustentava a vigência do direito natural, em que as águas marítimas são de acesso e uso universal, devido a sua imensidão e impossibilidade de demarcar território sobre elas. Em 1603, a Companhia Holandesa das Índias Orientais capturou um navio de carga português nas proximidades de Singapura, fato que gerou protestos inclusive na Holanda. Hugo Grotius foi chamado a defender a companhia holandesa. No curso dessa defesa, sobretudo entre 1604 e 1609, Grotius escreveu obras fundamentais do Direito Internacional, incluindo a doutrina do Mare Liberum (Mar Livre ou Mar Aberto), baseada nos princípios do direito natural. Essa teoria, na prática, quebraria o monopólio de Portugal e Espanha sobre as rotas do Atlântico. O Reino Unido contestou a doutrina, para defender a sua própria exclusividade de navegação e exploração no entorno das ilhas britânicas, e lançou a doutrina Mare Clausum (ou Mar Fechado), em que as potências teriam controle sobre os mares estendidos a partir do controle dos territórios continentais mais próximos. Muitos debates, congressos e arbitragens se deram na contenda entre as duas teses, até se estabelecer a convenção sobre o mar territorial, com faixa de três mil milhas marítimas a partir da costa. Essas viragens interpretativas acompanharam o crescimento do poderio do Reino Unido e Holanda nas rotas de colonização frente a Portugal e Espanha, e expressaram também transformações nas formas de exercer o colonialismo. Como diz Eduardo Galeano (1998, p. 25), “a Espanha tinha a vaca, mas outros tomavam o leite”. O fracasso da Liga das Nações é outro exemplo do condicionamento do Direito Internacional pela economia política, já no período definido por Lênin como capitalismo monopolista, ou imperialismo. Vivendo no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, Einstein (2017) denunciava as contradições da Liga das Nações, criada para selar um mundo de paz e respeito ao Direito Internacional, idealizado após a primeira guerra, a partir da carta de 14 pontos do presidente estadunidense Woodrow Wilson, que incluíam: fim dos tratados secretos e lançamento da diplomacia como um ato público; liberdade dos mares e remoção das barreiras ao livre comércio; redução dos
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armamentos; ajuste das reivindicações coloniais aos interesses de seus habitantes; formação de uma organização mundial para garantir a independência política e integridade territorial para Estados grandes e pequenos. Esses princípios foram passo a passo violados nos anos seguintes. A Liga das Nações se revelou como um instrumento dos países colonialistas (permitindo, por exemplo, a invasão da China pelo Japão e a invasão do norte da África pela Itália), e testemunhou o incremento armamentista e a ascensão do nazi-fascismo como ingredientes preparatórios da segunda guerra. Einstein foi um ativista político presente nas manifestações, denunciando esses fatos, levantando-se contra o serviço militar obrigatório e em favor do desarmamento e dos mecanismos arbitrais e judiciais de solução de controvérsias internacionais. Para ele, a mesma ética imperativa das relações pessoais deveria valer para as relações entre povos e países: A coexistência pacífica dos homens baseia-se em primeiro lugar na confiança mútua, e só depois em instituições como a justiça ou a polícia. Essa regra aplica-se tanto às nações como aos indivíduos. A confiança implica a sincera relação do give and take, quer dizer, do dar e do tomar (EINSTEIN, 2017, p. 74).
Vendo o caminho tomado pela Liga das Nações, sugeriu ironicamente que fosse escrito na fachada da organização: “apóio os fortes e reduzo os frágeis ao silêncio sem derramamento de sangue” (apud FERRO, 2003). Tamanha ironia, já que, por trás do aparato institucional fundado supostamente na solução pacífica das controvérsias, se deram ocupações militares e matanças massivas, incluindo o nazi-fascismo e a Segunda Guerra Mundial. Einstein defendia a valorização da Corte Permanente de Arbitragem Internacional (que no pós-segunda guerra foi reconstruída como Corte Internacional de Justiça), enquanto assistia e denunciava o lobby da indústria armamentista para as ações militares.
4. Direito Internacional e colonialismo Ao submeter esses fatos a análise sistemática e metódica, concluí, junto com Lambert (2004), Anghie (2004) e Miéville (2006): Na prática, os 14 pontos e o tratado instituinte da Sociedade das Nações se prestavam a (1) garantir uma relação de forças mundial favorável aos vencedo-
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res da guerra (Aliados), e especialmente aos Estados Unidos, que culminaram sua ascensão hegemônica com o processo da Segunda Guerra Mundial ; (2) favorecer a expansão do capitalismo monopolista mediante princípios de livre comércio; (3) instituir novos marcos da política colonial, o que se consubstanciou no Sistema de Mandatos (MOREIRA, 2011, p. 133).
O direito internacional surgiu intimamente ligado ao colonialismo, com as grandes navegações, e andam juntos até os dias atuais, mesmo depois que a maior parte dos territórios colonizados se tornaram Estados independentes, pois estão inscritos na lógica do imperialismo. A derrubada do colonialismo e a reconstituição de uma ex-colônia como um agente na ordem do Direito e da Política Internacional foi, portanto, informada por uma dinâmica de rivalidade interimperialista em curso. Isso é crucial – a derrota do imperialismo formal não significa o fim da ordem imperialista; [...] o próprio tecido jurídico do pós-colonialismo pode ser constitutivo de uma ordem tal, em uma nova forma (MIÉVILLE, 2006, p. 237).
O colonialismo é a chave para compreender a lógica histórica e atual do direito internacional. As doutrinas predominantes nos cursos de direito não alcançam essa compreensão, pois ficam limitadas ao formalismo idealista já abordado – o anti-método predominante no ensino e reprodução do discurso jurídico. Quando o ensino toma o Tratado de Paz de Vestfália (1648) como marco fundador do direito internacional, ressalta de maneira formal a igualdade soberana entre as nações – que não consegue explicar as contradições internacionais históricas e contemporâneas, e foi concebido para uma escala reduzida do globo (os países do norte da Europa Ocidental no contexto em que firmaram o tratado ao fim da Guerra dos Trinta Anos). Esse conceito não explica um mundo de colonizados e colonizadores (em 1648, todo o continente americano estava sendo colonizado, e os colonizadores eram os próprios países que selavam o tratado afirmando a igualdade entre as nações). O paradoxo da igualdade jurídica internacional fica evidente no debate sobre os tratados desiguais. Grotius (2005, p. 218) problematiza se os tratados desiguais entre entidades soberanas teriam efeitos jurídicos. Descreve a aliança desigual como “aquela que, em virtude da própria força do tratado, confere a um dos aliados uma proeminência permanente sobre o outro, quando, por exemplo, um dos contratantes se empenhou em manter o poder e a majestade do outro”. Porém, foi sobre a 175
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crítica dos acordos desiguais entre indivíduos que a filosofia ilumunista liberal chegou ao conceito de ordem pública, ou jus cogens no direito internacional. O direito afirma que a liberdade de contratar encontra limites na dignidade humana, não sendo válido um acordo em que uma pessoa submete a outra seus atributos humanos fundamentais. Não seria válido, por exemplo, que uma pessoa se submetesse a ser escravizada por outra, ainda que estivesse de acordo. Miéville (2005) aborda o tema exemplificando com os tratados de comércio impostos pelo Reino Unido, como o Tratado de Nanquim com a China, em 1842. Esses tipos de tratados possuíam essas características: foram impostos por ameaça ou uso da força; estabeleciam na prática obrigações desiguais; e eram percebidos como tratados injustos por afrontar a soberania de uma das partes. Não obstante, foi com esses tipos de tratados que o conceito de civilização e o direito internacional foram gestados. Os teólogos espanhóis Francisco de Vitoria, Franciso Suárez e Bartolomeu de Las Casas trabalharam os princípios do direito internacional mais diretamente conectados com o tema da colonização, nas sendas do pensamento político moderno e suas raízes judaico-cristãs. Como diz Dussel (2004, p. 207), “no es ni Maquiavelo ni Hobbes los que inician la filosofía política moderna, sino aquellos pensadores que se hicieron cargo de la expansión de Europa hacia un mundo colonial”. Como explicar juridicamente a colonização, os massacres e escravização dos povos nativos, se o direito natural aceito pelos próprios colonizadores preconizava que todos são iguais perante a lei, e, diante do direito internacional, deveriam ter suas instituições políticas respeitadas sob o princípio da igualdade soberana? O principal fundamento da colonização era religioso. Literalmente, conforme registrado por Todorov (1983), os homens das caravelas chegavam até os nativos do continente americano com um texto em espanhol3 dizendo que o Papa havia doado o continente para que eles cumprissem uma missão, e explicando que o Papa era o sucessor do fundador da Igreja Católica, que agiu por delegação de Jesus Cristo, o qual era a expressão de Deus. Caso resistissem, os nativos seriam punidos: Se não o fizerdes, ou se demorardes maliciosamente para tomar uma decisão, vos garanto que, com a ajuda de Deus, invadir-vos-ei poderosamente e far-vos-ei a guerra de todos os lados e de todos os modos que puder, e sujeitar-vos-ei ao jugo e à obediência da Igreja e de Suas Altezas. Captura3
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Requerimiento, do jurista real Palacios Rubios, datado de 1514 (TODOROV, 1983).
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rei a vós, vossas mulheres e filhos, e reduzir-vos-ei à escravidão. Escravos, vender-vos-ei e disporei de vós segundo as ordens de Suas Altezas. Tomarei vossos bens e far-vos-ei todo o mal, todo o dano que puder, como convém a vassalos que não obedecem a seu senhor, não querem recebê-lo, resistem a ele e o contradizem (apud TODOROV, 1983, p. 144).
Contra essas práticas se insurgiu Francisco de Vitória, com duas obras fundamentais datadas de 1532 (De Indis e De Jure belli Hispanorum in barbaros), mostrando que o fato de esses povos não terem uma crença cristã, antes ou depois da chegada dos espanhóis, não afetava suas prerrogativas diante do direito natural, incluindo seus direitos de domínio sobre a terra e o reconhecimento de suas instituições representativas e diplomáticas. Acontece que sua doutrina é contraditória, pois, ao mesmo tempo, sustentava a condição jurídica dos povos colonizados e o direito de guerra dos colonizadores. A forma de pensar de Vitória e dos colonizadores se fundava no etnocentrismo: afirmavam que os nativos eram iguais, mas diante de uma concepção jurídica e filosófica europeia. O direito natural e universal que caracterizava a igualdade, ao ser interpretado e aplicado, não era nem natural nem universal, era um direito moderno de base judaico-cristã, e a autoridade que examinava e decidia sobre as violações desse direito também era unilateral. Enquanto Vitória rechaçava os massacres e subjugação dos indígenas e afirmava o advento de uma ordem jurídica internacional, era essa mesma ordem jurídica internacional que também permitia o ataque aos povos nativos. Afinal, ela permitia aos colonizadores afirmar que os nativos haviam violando essas normas e que poderiam ser atacados em legítima defesa! Diante das lentes jurídicas, os europeus poderiam ocupar as terras da América com base no direito de ir e vir, e, se os nativos resistissem ao seu trânsito, estariam violando um direito universal e poderiam ser punidos! Mas quem decidia quem foi que violou a lei? Ironicamente, nenhum nativo da América nessa época saiu em um barco rumo à Península Ibérica para exercer seu “direito de ir e vir” sobre os reinos de além-mar. O olhar histórico não deixa esconder que as empreitadas coloniais não se deram sob equilibrados debates jurídicos, mas sim sobre o massacre e escravização dos povos nativos e devastação da natureza, que se perpetuaram pelos séculos mesmo depois das guerras de independência. Com o passar dos anos, com as guerras de independência e as contradições entre os próprios colonizadores, que disputavam entre si os territórios colo177
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nizados, o sistema colonial sofreu abalos, sendo constantemente reformado sem alterar suas bases. Sendo negada, a colonização se perpetuou. Com as invasões napoleônicas à Península Ibérica, o sistema colonial foi submetido às reformas bourbônicas, que tentaram salvar o sistema e ao mesmo tempo o levaram à ruína, abrindo passo às guerras de independência. Entre os séculos XVII e XIX, Reino Unido e Holanda inauguraram uma forma original de colonização, através das companhias privadas: a Companhia Britânica das Índias Orientais e as duas companhias holandesas, das Índias Orientais e das Índias Ocidentais. Eram formadas por comerciantes (aliança entre capitais comerciais e bancários), com concessão dos respectivos reinos, e competiam entre si. O embrião das transnacionais, já com força armada, cargos de governo e poderes políticos abertos. A partilha da África na Conferência de Berlim entre 1884 e 1885 é outro momento emblemático das novas formas que o sistema colonial foi tomando, e ao mesmo tempo foi uma preparação para a Primeira Guerra Mundial, pois já era evidente o período histórico que Lênin estuda como Imperialismo, em que as potências capitalistas com suas respectivas frações burguesas, já tendo ocupado todos os territórios que podiam alcançar no globo terrestre, passaram a competir entre si para tomar as zonas de influência umas das outras. Os Estados Unidos alçaram a hegemonia mundial sobre os escombros do sistema colonial europeu. Criticou com ênfase a colonização ibérica e fez guerra à Espanha apenas quando esse sistema já estava em crise: o apoio estadunidense não chegou às independências da América do Sul entre 1808 e 1824, mas chegou às independências do Caribe na década de 1890, com a política da Doutrina Monroe. Apoiou a luta pela soberania de Cuba e Filipinas, e deixou ali suas bases militares. Celebrou com Cuba a Emenda Platt em 1903, um tratado assegurando que Cuba não faria tratados com outros países que ameaçassem sua independência e previa a intervenção estadunidense sempre que fosse necessário “proteger a independência”. Em outras palavras, assegurando o monopólio diplomático e as salvaguardas militares dos EUA sobre Cuba. No mesmo ano, EUA apoiou a separação da província do Panamá da Colômbia para controlar o seu canal interoceânico. O Panamá proclamou sua independência em 3 de novembro de 1903, sob os canhões do barco USS Nashville ancorado em sua costa, e 15 dias depois foi celebrado o tratado estabelecendo a venda do canal aos EUA, negociada pelo empresário francês que liderava a sua construção até então. 178
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Após a Primeira Guerra Mundial, o sistema colonial foi condenado internacionalmente e as instituições passaram a colocar mais ênfase em uma ordem internacional pós-colonial, nos termos da Carta de 14 Pontos de Woodrow Wilson. Ao mesmo tempo, o Pacto da Sociedade das Nações, originado no Tratado de Versalhes em 1919, estabeleceu o Sistema de Mandatos, que manteve a tutela colonial sobre os territórios. O seu artigo 224 ilustra as bases em que estão fundados os princípios do direito internacional, especialmente na contradição entre igualdade soberana formal e relações diplomáticas desiguais. O texto afirmava a existência, por um lado, de povos incapazes de governar a si próprios, e, por outro, de “nações desenvolvidas”, portadoras da “missão sagrada da civilização”. Que tais ideias tenham sido afirmadas em um documento jurídico (e não em um discurso religioso), no recente século XX (e não nos idos de 1500), é muito significativo. Dando seguimento à Conferência de Berlim na nova conjuntura de forças gerada após a Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Versalhes estabeleceu regras para a continuidade da partilha do mundo entre as potências imperialistas, e sentou as bases para a ascensão dos governos nazi-fascistas, que continuaram as ocupações coloniais, dos Estados Unidos, que foram ascendendo à hegemonia mundial no modelo de livre comércio e colonização financeira (que se consolidaria após a Segunda Guerra Mundial, com a Conferência de Bretton Woods), e das revoluções socialistas, que, em sua primeira fase, viraram o tabuleiro do jogo colonial e tiveram papel essencial na derrota temporária do nazi-fascismo. Havia começado a Era dos Extremos (HOBSBAWN, 1995). Existem pontes que ligam o colonialismo tradicional e suas negações/reafirmações históricas, até chegar ao estágio atual do capitalismo. Como diz Galeano (1998, p. 19), “aparecem os conquistadores nas caravelas e, próximo, os tecnocratas nos jatos; Hernán Cortés e os fuzileiros navais; os corregedores do
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“Os princípios seguintes aplicam-se às colónias e territórios que, em consequência da guerra, cessaram de estar sob a soberania dos Estados que precedentemente os governavam e são habitados por povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno. O bem-estar e o desenvolvimento desses povos formam uma missão sagrada de civilização, e convém incorporar no presente Pacto garantias para o cumprimento dessa missão. O melhor método de realizar praticamente esse princípio é confiar a tutela desses povos às nações desenvolvidas que, em razão de seus recursos, de sua experiência ou de sua posição geográfica, estão em situação de bem assumir essa responsabilidade e que consistam em aceitá-la: elas exerceriam a tutela na qualidade de mandatários e em nome da Sociedade” (SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 1919).
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reino e as missões do Fundo Monetário Internacional; os dividendos dos traficantes de escravos e os lucros da General Motors”. A guerra ao terror segue o mesmo princípio colonial de diferenciar civilizados e não civilizados, chegando a justificar a guerra de agressão como mecanismo para impor seu modelo de democracia. A negação do colonialismo e a afirmação de uma sociedade internacional baseada na igualdade soberana entre Estados caminha junto com a renovação dos mecanismos de subordinação e exploração.
5. O sistema internacional pós Segunda Guerra Mundial Fundada após a segunda guerra, a Organização das Nações Unidas repetiu a lógica colonial, porém mais elaborada, burocratizada e capilarizada num guarda-chuvas institucional formado pelos conselhos, organizações, comissões e agências ligadas à mega-organização internacional. Para D’Souza (2006), a arquitetura desse sistema se define pelos primados do capitalismo monopolista, e está fundada nos seguintes pilares: (1) os órgãos político-militares; (2) as agências econômicas; e (3) o meio pelo qual as instituições e a legislação doméstica dos EUA são sincronizadas com as constituições das agências para assegurar a liderança dos EUA. Esses pilares evidenciam a desigualdade jurídica no direito internacional, no caso da composição desigual do Conselho de Segurança, com seus cinco membros permanentes com direito de veto e prerrogativa exclusiva de Estados Nuclearmente Armados conforme o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Demonstrei que o sistema de segurança coletiva previsto na Carta das Nações Unidas não se trata de um instrumento de prevenção da guerra, mas de uma regulamentação sobre como a guerra deve ocorrer – tudo a partir de uma condução jurídico-institucional e hermenêutica dos princípios milenares da guerra justa e da legítima defesa (é injusto começar um conflito e é justo fazer a guerra contra quem agrediu primeiro). Ao longo dos anos, temos visto, por exemplo, os bombardeios de Israel na Faixa de Gaza, matando centenas de pessoas em cada investida, serem justificados como reação a foguetes caseiros lançados a esmo em território israelense a partir da Faixa de Gaza (MOREIRA, 2009). Não bastasse, a partir de 2001, os Estados Unidos lançaram o conceito de legítima defesa preventiva, para justificar que não seria mais necessário ser atacado primeiro atacar os demais países. 180
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Com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos consolidaram sua hegemonia no sistema das Nações Unidas. O diplomata francês Alain Dejammet (2003), que assumiu a presidência do Conselho de Segurança no final da década de 90, explicou que o P-5 (os cinco membros permanentes) se reuniam com antecedência para levar decisões prontas aos demais membros do conselho. Antes dessas reuniões, porém, o P-3 (Estados Unidos, Reino Unido e França) se entendia para enquadrar China e Rússia. Porém, havia momentos em que a posição do P-3 era reflexo direto da posição do P-1 (Estados Unidos). A mobilização das instituições internacionais e da opinião pública para as ações imperialistas é um processo complexo e fundado em argumentos morais e de generalizada comoção social, para parecer que a guerra (nos planos material e subjetivo) é a única solução possível, e que um inimigo afeta a existência da humanidade: o socialismo, as drogas, o terrorismo, o crime organizado. A colocação da guerra às drogas na agenda internacional e nos planos nacionais de segurança pública é um forte exemplo de como o inimigo construído pela potência é uma projeção daquilo que ela mesma pratica na esfera internacional. A guerra às drogas anda junto com o proibicionismo, a ideologia de que o consumo de certas substâncias imputadas como drogas ilegais seria diminuído com sua proibição, o que se revelou historicamente como uma ideia equivocada, já que essas políticas estão relacionadas com o aumento, e não diminuição, da produção e consumo de drogas e da violência e elas associadas. A história do proibicionismo remonta à proibição de bebidas alcoólicas aos Estados Unidos, com o Volstead Act ou Lei Seca, que teve vigência entre 1920 e 1933. A proibição impulsionou as destilarias clandestinas, os bares ilegais e o contrabando de bebidas, como whisky, para os Estados Unidos, movimentando uma poderosa economia “à margem” da lei, e gerando biografias lendárias como a do contrabandista Al Capone. Após a segunda guerra, os Estados Unidos se consolidaram, ao mesmo tempo, como o país mais proibicionista e mais consumidor de drogas ilícitas no mundo. No contexto da Guerra Fria, em 1971, Nixon estabeleceu a política de combate internacional às drogas ilícitas como uma política de guerra, nomeando a heroína como inimigo número um; seu governo “mais que duplica o corpo de funcionários de controle de drogas lotados nas embaixadas e missões no exterior e intensifica a aplicação de sanções econômicas a países que não coo-
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perassem com a empreitada” (APPEL, 2009, p. 31). Esse processo envolveu um lobby permanente junto às instituições internacionais, através da diplomacia, até a política ser incorporada em documentos, orientações e mecanismos dessas instituições, legitimando os governos para incorporar a guerra às drogas como política interna de segurança pública (WOODIWISS, 2007). A “guerra às drogas” de Nixon inaugura a distinção entre países produtores e países consumidores de drogas ilícitas, direcionando a culpa naturalmente para os produtores. Estava criada uma divisão internacional das drogas, exteriorizando para a América Latina e outras regiões periféricas a responsabilidade pela produção e distribuição. Ainda mais, esse discurso possui o mérito de significar o mais grave ponto de inflexão na construção de uma narrativa histórica que condensa noções de segurança nacional e hemisférica ao mesmo tempo que, por outro lado, possibilitou intervenções militares a partir dos anos 1990 (BRAGANÇA, GUEDES, 2018, p. 70).
Durante pelo menos três décadas, a diplomacia fundada na guerra às drogas preparou investidas militares de “terra arrasada” (aprendidas no Vietnã) em países como El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Colômbia e Peru; serviu para reprimir os movimentos sociais da juventude negra nas periferias do próprio Estados Unidos (vale lembrar que o Partido dos Panteras Negras foi declarado inimigo número um, e que uma forma encontrada de desmobilizar a organização foi inserindo drogas e varejistas do tráfico nas comunidades); e instaurar um modelo de segurança pública ainda vigente inclusive no Brasil (incluindo a criminalização da juventude negra e periférica, a prisão massiva de varejistas de drogas combinada com a impunidade das cúpulas do sistema e a disseminação e empoderamento de faixas privadas de agentes de segurança, como milícias, paramilitares e cartéis). Na virada do século, o ataque de 11 de setembro de 2001 e a sucedânea guerra ao terror revelaram estruturas subjacentes e tendências já em marcha nos anos anteriores (WACQUANT, 2003). O governo de George W. Bush lançou a partir daí os pressupostos jurídicos para sua geopolítica já em curso. As ocupações militares do Iraque e do Afeganistão já estavam planejadas, pois, além dos elementos históricos (como a Guerra do Golfo e as relações conflitivas com Saddam Hussein), o controle desses países se incluía na geopolítica de controle da produção de petróleo no Oriente Médio, e também dariam um impulso à indústria armamentista e movimentação de tropas em um contexto de crise econômica e estrutural. 182
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Essas ocupações militares, porém, não tinham o aval de todos os membros permanentes do Conselho de Segurança. Caso os Estados Unidos seguissem com a empreitada, estariam cometendo uma violação da paz e da segurança internacional. Foi preciso então advogar que o terrorismo constituía uma ameaça à humanidade e seu combate exigia novas regras – chegando assim ao conceito de legítima defesa preventiva: a legitimidade de uma ação militar sem uma agressão anterior de fato. Seria preciso, então, prever o futuro, atacando alvos baseando-se apenas na suposição de que futuramente eles promoveriam atos terroristas. [...] o problema é que o próprio Estado que ataca define o que é ou não uma atividade terrorista e quem pode ser considerado um alvo. A tradicional noção de legítima defesa e de guerra justa se inverte e se confunde com a de guerra injusta, porque, agora, quem está atacando primeiro é a própria parte que se considera ofendida (MOREIRA, 2011, p. 169).
O convencimento e aderência do sistema internacional a essa tese seguiu uma dinâmica semelhante ao processo pelo qual Nixon bancou a guerra às drogas no sistema internacional na década de 1970. O guarda-chuvas institucional das Nações Unidas atuou tanto refreando como também aderindo aos preceitos da guerra ao terror. Conforme mostra Jónatas Machado (2006), ainda em setembro de 2001, o Conselho de Segurança expediu duas Resoluções nesse sentido: Resolução n. 1368, lançada em 12 de setembro de 2001, prontificando-se a tomar todos os passos necessários para responder aos ataques terroristas e reafirmando o direito à legítima defesa individual e coletiva. Já na Resolução n. 1373, de 28 de setembro de 2001, dá amplos poderes aos Estados para tomar todas as medidas necessárias para prevenir o cometimento de atos terroristas, incluindo a generalização do uso da força, o que parece uma permissão para a ação unilateral dos EUA, em contradição com a própria Carta das Nações Unidas, que estabelece o monopólio do uso da força pelo Conselho de Segurança (MOREIRA, 2011, p. 9).
A adesão da ONU não foi uniforme nem imediata. Mesmo com o pretexto de que o Iraque possuía armas químicas de destruição massiva – fato que nunca foi provado – o Conselho de Segurança não autorizou a ação, e assim a guerra ao terror – como terrorismo de Estado – se iniciava oficialmente no dia 23 de março de 2003, com os primeiros bombardeios ao Iraque, sem aval do Conselho de Segurança.
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O sistema de segurança coletiva da ONU, o TNP, a Agência Internacional de Energia Atômica (com suas medidas de salvaguarda) e as Medidas de Construção de Confiança se tornaram os elementos essenciais do sistema de segurança nuclear, por onde têm passado polêmicas como o programa nuclear do Irã, sem colocar em questão o poderio nuclear de outras potências. A partir de 11 de setembro de 2001, esses mecanismos têm sido remodelados em função da guerra ao terror. Na análise de Anghie (2004), a Estratégia de Segurança Nacional anunciada sustentava, além da legítima defesa preventiva, o conceito de Estados nocivos (ou rogue states) e a ideia da guerra para promover a democracia (derrubada de regimes governantes desses Estados chamados de nocivos). A revisão do Direito Internacional da guerra ao terror não se projeta só sobre o sistema de segurança coletiva (núcleo jurídico das Nações Unidas e do direito da guerra), mas vai mais fundo, projetando-se sobre os princípios da soberania e autodeterminação reconhecido a todos os Estados. Quando um Estado ataca outro alegando descumprimento das normas internacionais, sendo que o próprio atacante está descumprindo normas internacionais; quando violações à paz e à segurança internacional são praticadas sob o pretexto de proteger a paz e a segurança internacional; quando a potência que pratica essas violações é a que possui poder para ditar as regras do direito internacional; então o direito internacional chega na parede de um labirinto; o edifício lógico sobre o qual funda e justifica sua existência se desmorona, tal qual a modernidade europeia frente ao nazismo e à segunda guerra, como demonstraram Adorno e Horkheimer (1985) na Dialética do Esclarecimento e como denunciou Aimé Cèsaire (1978) no Discurso sobre o colonialismo.
6. Sistema de justiça internacional Um novo sistema de justiça internacional, fundado no primado dos direitos humanos, foi erguido após a Segunda Guerra Mundial e a mega-estrutura das Nações Unidas. Tratava-se de reconstruir e efetivar a Corte Internacional de Justiça (fechada com o início do conflito mundial), como forma pacífica de solução de conflitos entre Estados. Ao mesmo tempo, a crítica às experiências dos tribunais de Nuremberg e Tóquio (1945-1946), como tribunais de guerra, passando pelos tribunais criados por resolução do Conselho de Segurança, (Ex184
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-Iugoslávia e Ruanda, 1993-1994), permitiram a estruturação de um sistema permanente de justiça internacional para crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de agressão e crimes de genocídio. Assim foi estruturado o Tribunal Penal Internacional (TPI) com seu respectivo Estatuto de Roma (1998). Miranda (apud MAZZUOLI, 2010) fala em três fases da justiça penal internacional: a de tribunais de vencedores sobre vencidos, a de tribunais criados por resolução do Conselho de Segurança, e a fase do tribunal permanente, criado por tratado internacional e com vigência ratificada pelos poderes legislativos dos Estados. Esse tribunal resolveria problemas de ilegitimidade dos tribunais de guerra, que violam princípios jurídicos universais: da legalidade (ou reserva legal) e da anterioridade (e irretroatividade) da lei penal. Isso porque uma pessoa só pode ser julgada por um crime que esteja definido sem ambiguidades em uma lei penal soberana, legítima, vigente e eficaz, e essa definição deve existir antes da ação concreta que se acusa como crime. Apesar da inteligência e tecnologia institucional que edificaram o TPI como uma medida de promoção da paz sem precedentes no sistema internacional, sua jurisdição tem sido bastante limitada, não sendo invocada na maioria dos conflitos internacionais. Essas limitações estão na mesma base da contradição fundante do direito internacional, que é o tema da igualdade soberana entre Estados. Segundo o art. 12.2, o tribunal só pode julgar indivíduos que sejam nacionais de um Estado que tenha ratificado o seu tratado (ou que tenha reconhecido a sua competência), ou então que o crime tenha sido cometido no território de um Estado ratificante. Vários dos países mais envolvidos nos conflitos internacionais não são parte no tratado: Estados Unidos, Israel, Rússia, China, Índia, Paquistão, entre outros. Os Estados Unidos não só se mantiveram fora do tratado, mas passaram a fazer acordos bilaterais em matéria militar para excluir a jurisdição do tribunal em outros Estados. A única exceção ao requisito do art. 12.2 e que permitiria uma pessoa de Estado não membro ser processada, é a previsão do art. 13(b), que autoriza o Conselho de Segurança a denunciar ao Procurador do Tribunal qualquer situação que considere como um dos crimes descritos no estatuto. Porém, essa prerrogativa esbarra novamente nos cinco membros com poder de veto. Se a pessoa imputada for alguém cuja proteção interesse a Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia, China ou qualquer país a eles aliado, a questão pode ser vetada. Ninguém menos que o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan (2010, p. 8), ponderava os desafios do TPI: “um Tribunal Penal Internacional permanente deve ser também universal”. 185
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Pela simples razão de que as potências bélicas hesitam em ratificar o Estatuto de Roma e apoiar a universalização do TPI, ele perde eficácia. A lógica de “entre direitos iguais, prevalece a força” ganha sentido aqui, quando o tribunal só é capaz de submeter a seus procedimentos figuras que já estão em um cenário internacional de desempoderamento (assim como a Alemanha foi submetida nos julgamentos Nuremberg), as forças empoderadas que estão causando agressões pelo mundo não se submetem à sua jurisdição. Caberia aqui o debate sobre superar o direito dos tratados, de base contratual, e adentrar no terreno do jus cogens, com base no direito natural. Acontece que, além de esbarrar na prevalência da técnica e do juspositivismo no atual estágio da história do direito, a força, superior à vontade dos Estados corrompidos, que pudesse lhes impor justiça, poderia ser outra força corrompida, um imperialismo travestido de justiça. É a velha problematização sobre a hegemonia no sistema internacional (FIORI, 2007). Não obstante, para além da eficácia estrita da jurisdição do TPI, devemos seguir discutindo os princípios da justiça internacional. Afinal, enquanto as instituições internacionais no pós segunda guerra (especialmente as Nações Unidas) têm construído, aos trancos e barrancos, um sistema de justiça internacional, as ações da guerra ao terror e do imperialismo vão no sentido contrário, violando as bases desse sistema. Queremos demonstrá-lo recordando as formas como foram executados três dos maiores inimigos recentes dos Estados Unidos na guerra ao terror: Saddam Hussein, Osama Bin Laden e Muamar Kadafi. Assim como Wacquant enuncia que a guerra ao terror não inova, mas evidencia tendências em marcha em períodos anteriores, uma dessas tendências é a construção do inimigo, estudada pelo chamado direito penal do inimigo. Essa construção parte de uma relativização dos princípios do direito moderno e dos direitos humanos historicamente afirmados. Esses princípios incluem a universalização e a igualdade jurídica, pois o fato de ser titular de direitos está na própria constituição do ser humano, e não depende de uma outorga ou reconhecimento por parte de uma autoridade política ou jurídica. Ao evidenciar que o terrorismo era um inimigo da humanidade, que deveria atacar territórios sem respeitar o princípio da legítima defesa, que a certos Estados não deveria ser reconhecida a soberania, e que a guerra é uma forma de promover uma certa democracia, George W. Bush e seus estrategistas de guerra estavam afirmando que certas pessoas, coletividades e entidades político-jurídicas não eram titulares de direitos. No momento em que essa pessoa, coletividade ou Estado é imputado inimigo, ela 186
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deixa de ser titular de direitos, segundo essa concepção. Porém, essa concepção gera o abalo de todo o edifício jurídico, como já analisamos, já que o poder que nomeia o outro como inimigo é o mesmo poder que ataca. O direito internacional humanitário, disposto em uma série de tratados encabeçados pelas Convenções de Genebra de 1949, que reafirmaram a convenção de 1864, tem se construído historicamente para afirmar o contrário, de que todos os sujeitos, mesmo numa guerra, continuam tendo direitos, e que a guerra possui limites éticos e jurídicos, por mais contraditória que possa parecer essa afirmação.
7. Violações da justiça internacional na Guerra ao Terror As formas como Hussein, Bin Laden e Kadafi foram executados mostra três diferentes formas de atuação do imperialismo em relação aos seus nomeados inimigos, três variações do modus operandi da guerra ao terror, tendo em comum a violação dos parâmetros do Direito Internacional e da Justiça Internacional. Quando anunciou sua Estratégia de Segurança Nacional, George W. Bush anunciou o conceito de Estados párias (rogue states), Estados que descumpriam sistematicamente o direito internacional e cuja atuação caracteriza uma ameaça à segurança internacional. Dizia que se deveria fazer guerra a Estados cuja vida política os tornava berços de terroristas. Depois de ofender o princípio da legítima defesa, GW Bush ofendia o princípio da igualdade soberana entre Estados, ao retirar de certos Estados a prerrogativa de existência. A estratégia já nomeava alguns Estados párias: Iraque, Irã e Coreia do Norte, indicando que esses seriam alvos preferenciais da Guerra ao Terror. Vale lembrar que o Iraque foi atacado, em 20 de março de 2003, após um relativo período de preparativos que incluiu a tentativa frustrada de obter apoio do Conselho de Segurança da ONU. O ataque se tornou paradigmático na história do Direito Internacional, pois invertia o agressor na lógica jurídica da Carta das Nações Unidas: sem a aprovação do Conselho de Segurança, eram os Estados Unidos, e não o Iraque, que estavam violando o Direito Internacional e realizando uma agressão ilegítima, o que dava base para que o Conselho aprovasse sanções contra os EUA, o que efetivamente não aconteceu. Hussein foi preso em dezembro de 2003, e julgado pelo Alto Tribunal Penal Iraquiano, um tribunal criado pelas forças de ocupação para julgar seus 187
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próprios inimigos de guerra. Foi condenado à morte por enforcamento em 2006 e a pena foi imediatamente executada. Um vídeo apócrifo do momento de sua execução “vazou” e circulou por toda a imprensa mundial. Evidentemente, tal tribunal era ilegítimo diante da justiça internacional, pois se tratava de um arremedo de justiça criado pelas forças militares da coalizão que ocupou o país. Tanto no Iraque como no Afeganistão, foram questionadas as prisões de guerra e as comissões militares formadas para julgar os prisioneiros de guerra. Vale lembrar as fotos vazadas das torturas, sadismo e violações sexuais na prisão de Abu Ghraib, no Iraque (uma das marcas visuais mais aterrorizantes da guerra ao terror). A Suprema Corte dos Estados Unidos abordou casos emblemáticos sobre a ilegitimidade das comissões militares, as torturas por afogamento e as condições dos presos de guerra. Osama Bin Laden foi o suposto líder e fundador da organização afegã Al Qaeda, reputada autora dos atentados de 11 de setembro. Foi simbolicamente o alvo principal da guerra ao terror, chegando a ser representado na cultura ocidental como o estereótipo do terrorista. Durante vários anos a sua busca se confundiu com a própria guerra, até o anúncio oficial de sua morte por Barack Obama em maio de 2011. Segundo reportado oficialmente, os agentes estadunidenses entraram ilegalmente no Paquistão, onde havia sido encontrado, para capturá-lo e executá-lo, o que levou a uma crise diplomática entre os dois Estados. Seu corpo foi atirado ao mar, numa evidente medida para apagar sua memória. Diferentemente de Hussein, Bin Laden não foi submetido a um tribunal, ainda que fosse um tribunal de guerra. Vale lembrar que ele e seu grupo foram treinados pelos EUA para combater a Rússia no Afeganistão, algumas décadas antes. A captura e execução de Bin Laden demonstra a continuidade da guerra ao terror por Barack Obama. GW Bush baseou a imagem e marca de seus anos de governo na guerra ao terror, tentando, de maneira muito contraditória, um certo populismo na ideia de enfrentamento ao inimigo comum. A incógnita se Obama daria continuidade a essa guerra foi uma marca das campanhas presidenciais. Ao anunciar a execução de Bin Laden, Obama colheu os resultados da empreitada, mostrando que o principal objetivo da guerra havia sido alcançado no seu governo, e não no anterior. No entanto, Obama procurou dar uma nova cara à política externa dos EUA. Nas relações internacionais, se fala das diferenças entre hard power e soft power, para mostrar que o poder pode ser exercido não só por meios diretos e físicos, mas por meios diplomáticos e mecanismos 188
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não armados de solução de controvérsias, e a preferência por uma ou outra forma permitiria caracterizar a política externa de determinado governo, especialmente das potências mundiais. Obama lançou então um esquema de smart power, o poder inteligente, que não é binário, com modelos auto-excludentes, mas que – sem sair da construção imperialista sobre o papel dos EUA como hegemonia mundial – procura dar respostas apropriadas a cada situação. Em oposição ao unilateralismo de GW Bush, promoveu o multilateralismo, como forma de recompor a Organização do Tratado do Atlântico Norte e reaproximar-se da União Europeia (em outras palavras, nada mais que restaurar a tão questionada hegemonia, mas que teve consequências importantes no tecido mundial, como as medidas progressivas para suspender o embargo econômico a Cuba). Obama prometeu fechar as prisões de Guantánamo e terminou seu governo sem cumprir; prometeu reforma migratória e garantiu sua vitória com o voto dos imigrantes, terminou seu governo sem realizá-la e ainda deportou mais pessoas que o governo anterior; promoveu as ocupações militares da Líbia e da Síria.
8. Da primavera árabe às guerras híbridas Muammar al-Gaddafi esteve no governo da Líbia de 1969 a 2011. Uma figura fundamental do pan-arabismo liderado pelo presidente egípcio Nasser e no contexto histórico dos países não-alinhados – a reunião de governos com ênfase nacionalista que se opuseram, no cenário da Guerra Fria, a alinhar-se com as potências estadunidense ou russa. Participou dos movimentos de libertação na Líbia que se opuseram ao monarca títere dos EUA, Idris I, apoiaram a revolução na Argélia, repudiaram as ações de Israel e apoiaram movimentos de libertação em todo o mundo, incluindo no continente americano. Em 2010, um grande levantamento popular na Tunísia, movido pelas crises econômicas e sociais e pela revolta acumulada contra as classes dirigentes, resultando na fuga do então presidente Zine el-Abdine Ben Ali para a Arábia Saudita, abandonando o governo. O movimento tomou dimensões para além de um só país, e foi chamado de Primavera Árabe. Em comum, a incapacidade ou esgotamento dos governos em lidar com as crises, a ascensão de protestos massivos, mobilizados pela juventude com uso de redes sociais, e a ocupação de praças e outros lugares públicos. Em janeiro de 2011, os protestos já estavam disseminados na
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Argélia, Jordânia, Egito e Iêmen. A queda do regime de Hosni Mubarak, que governou o Egito por 30 anos, foi um dos fatos mais marcantes da Primavera Árabe. Acontece que os movimentos da Primavera Árabe tomaram uma dimensão além do carácter popular, que foi a interferência de forças do imperialismo, através de Estados, das Nações Unidas e mesmo de agências e organizações privadas. As revoltas populares foram manejadas como momentos para que os países e transnacionais imperialistas renovassem e recompusessem suas alianças na região. Depois de apoiar historicamente alguns desses regimes, esses países se colocaram contra, acompanhando, e também dirigindo as revoltas, conforme seus interesses. Como resultado, as soluções apontadas às quedas de regimes não culminaram no triunfo das revoltas, mas na colocação de novos regimes corruptos ou na desestabilização permanente do país, e instalação permanente de um estado de guerra, de acordo com os interesses geopolíticos na região. Isso tem a ver com as limitações do direito de autodeterminação, que foi invocado historicamente para assegurar a independência de povos e nações, mas que pode ser manejado por uma potência em desfavor de outra, como fazem o bloco EUA-União Europeia contra a Rússia na Ucrânia: “não só os Estados Unidos, mas também as demais potências imperialistas têm ao longo da história utilizado o princípio da autodeterminação para anexar territórios diretamente colonizados ou levados às suas esferas de influência” (MOREIRA, 2014, p. 47). Em fevereiro de 2011, um levantamento popular tomou também a Líbia, governada por Muammar al-Gaddafi, concentrando-se a rebelião na cidade de Bengazi e alcançando a capital Trípoli. Diferentemente de outros países, como a Tunísia e o Egito, na Líbia o processo avançou rapidamente para uma guerra civil. As forças de oposição formaram um Conselho Nacional de Transição para estabelecer o poder gradual sobre territórios conquistados, em grandes confrontos com as tropas leais a Gaddafi. Em março do mesmo ano, as Nações Unidas aprovaram que países membros do Conselho de Segurança bombardeassem alvos militares, o que foi feito, especialmente por tropas da França e Estados Unidos, conformando a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em outubro de 2011, as forças de oposição cercaram a cidade de Sirte, onde se encontravam Gaddafi e membros de seu alto comando, e o assassinaram. As notícias sobre como se deu sua morte são controvertidas (PÚBLICO, 2011), prevalecendo a versão de que ele estava em um comboio militar que foi bombardeado quando se dirigia à saída da
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cidade. Foram divulgadas ao mundo imagens de “rebeldes” carregando seu corpo moribundo, sem dar clareza se nesse momento já estava sem vida. Portanto, três paradigmáticos reputados inimigos da guerra ao terror – Hussein, Bin Laden e Gaddafi – tiveram diferentes formas de execuções, todas elas, porém, por fora do Tribunal Penal Internacional e em desacordo com as regras da justiça internacional. Em nenhum momento se questionou o fato se Gaddafi deveria ter sido capturado com vida e submetido a um tribunal legítimo. As forças da OTAN afirmaram que a única autoridade legítima na Líbia era o Conselho Nacional de Transição, respaldando qualquer de suas ações, e a imprensa internacional se limitou a noticiar que Gaddafi havia sido capturado e morto pelos “rebeldes” da Líbia, sem invocar qualquer responsabilidade internacional por sua execução. Esses fatos, ocorridos após a publicação de Direito internacional: para uma crítica marxista (MOREIRA, 2011) reafirmaram as teses aí estudadas sobre as formas de fazer o direito internacional na época de guerra ao terror, agregando elementos novos, já que um de seus inimigos foi morto não por um agente militar externo de alguma potência, mas por agentes nomeados como “forças de oposição”. A partir da era Obama, os objetivos da guerra ao terror já eram alcançados por forças internas dos países atacados. Algo muito relevante tem sido feito ao nível da sociedade civil desses países, que precisa urgentemente ser estudado. É aqui que ganham importância os conceitos de conflito de baixa intensidade, guerras híbridas e revoluções coloridas. Ao concluir a obra publicada em 2011, já sinalizava para o conceito de conflito de baixa intensidade, definido em manuais do Departamento de Exército dos EUA e analisado por Noam Chomsky (2002) como práticas análogas ao terrorismo, porém com participação das potências. Ele analisa a definição de terrorismo no US Code5, que enumera suas características, para logo demonstrar que essas práticas são realizadas exatamente por quem as diz combater. A diferença demonstrada na prática tem sido se o governo ameaçado por essas práticas seria aliado ou inimigo de cada bloco de potências imperialistas em conflito. 5
(Um) ato de terrorismo quer dizer qualquer atividade que: a) envolva um ato violento ou uma séria ameaça à vida humana que seja considerado delito pelos Estados Unidos ou qualquer outro Estado, ou que seja delito assim reconhecido, se praticado dentro de um território jurisdicional americano ou de qualquer outro Estado; b) aparente (i) ser uma intimidação ou coerção à população civil; (ii) influencie a política governamental por meio de intimidação ou coerção; ou (iii) ameace a conduta de um governo por um assassinato ou sequestro (CHOMSKY, 2002a, p. 17).
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Os conflitos de baixa intensidade são definidos como uma forma de confronto político-militar intermediária entre a competição pacífica e a guerra convencional, geralmente localizados no Terceiro Mundo; “frequentemente envolve lutas prolongadas de princípios e ideologias conflitantes. Varia entre a subversão e o uso da força armada. É travado por uma combinação de meios, envolvendo instrumentos políticos, econômicos, informacionais e militares” (HQDA, apud MOREIRA, 2011). Em seguida, o Manual de Campo 100-20 explica como os EUA participam desses conflitos: “a política dos EUA reconhece, mais indireta que diretamente, que as aplicações do poder militar dos EUA são os meios mais apropriados e de baixo custo para alcançar os objetivos nacionais em um ambiente de CBI”, e seu principal instrumento é “a assistência de segurança na forma de treinamento, equipamento, serviços e apoio em combates” (HQDA, apud MOREIRA, 2011). Resultou historicamente demonstrado como essa “assistência de segurança” favoreceu golpes militares na América do Sul, incluindo o Brasil, com realização operações conjuntas e treinamentos, além de apoio e inspiração às respectivas doutrinas de segurança nacional. Korybko (2015), analisando as crises recentes na Ucrânia e na Síria, observa como as guerras não convencionais (praticadas por grupos armados não oficiais) e as revoluções coloridas (tentativas de derrubada de governos por forças locais) se complementam no que chama de guerras híbridas, o que representa “uma nova teoria de desestabilização de Estados pronta para implantação estratégica em todo o mundo” (KORYBKO, 2015, p. 9). Essas ideias teriam surgido na Conferência de Moscou sobre Segurança Internacional, em 2014, juntamente com a introdução do conceito de “abordagem adaptativa” para operações militares, significando que “meios não militares (identificados como Revoluções Coloridas) são reforçados pelo uso de forças encobertas ou de interferência militar aberta (depois que um pretexto é encontrado) contra um Estado opositor (KORYBKO, 2015, p. 7). Para esse autor, o fato de que a intervenção militar direta com pretexto de intervenção humanitária tenha sido aplicada na Líbia mas não na Ucrânia e Síria se explica pela proximidade que esses últimos estão dos “núcleos alvo” (Rússia, Irã e China), sendo preferível, na periferia desses núcleos e na conjuntura registrada pelo autor em 2015, lançar mão de ações de desestabilização e meios indiretos. A análise do conflito generalizado na Síria até os dias atuais mostrará algumas mudanças nessa conjuntura, o que não invalida as teses do autor. 192
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A primeira medida das revoluções coloridas seria atuar na propaganda, na psicologia das massas, disseminada pelas tecnologias de comunicação instantânea, como as redes sociais. As ideias contra o governo devem ser propagadas de maneira coordenada para fabricar consenso em uma parcela apropriada (decisiva) da população […] Esses indivíduos não tomarão consciência do verdadeiro papel que desempenham nos eventos em desdobramento, mas serão meramente usados como artifício para dar a impressão de apoio unânime ao golpe (KORYBKO, 2015, p. 36).
A fabricação dessa base social inclui a chamada guerra neocortical, que consiste em “controlar ou moldar o comportamento dos organismos inimigos sem destruí-los” (SZAFRANSKY, apud KORYBKO, 2015, p. 37), o que inclui atuar diretamente nos processos mentais e sistemas de percepções, nos ciclos de observação, orientação, decisão e ação dos líderes adversários. Em seguida, analisa a guerra social em rede, as formas progressivas pelas quais as decisões de derrubar um governo surgem de centros estratégicos localizados mas se disseminam com o apoio de estudos sociais realizados por think tanks (institutos de pesquisa ou laboratórios de ideias) e Organizações Não-Governamentais (ONGs) atuando sob o amparo das potências mas com aparência de sociedade civil, para logo alcançar sujeitos que reproduzem ideias sem identificar de onde elas partiram, seguindo-se a massificação pelo efeito de mentes em colmeia e enxames. As revoluções coloridas, por fim, são fabricadas com a combinação desses elementos: ideologia, financiamento, social, treinamento, informação e mídia.
9. Considerações finais Depois de publicar, em 2011, um livro abordando temas fundamentais do direito internacional público e da política internacional, me tornei um leitor crítico da própria publicação. Como a realidade e os fatos estudados são dinâmicos, a todo momento foram se dando fatos novos e reflexões que poderiam ser incluídos nas análises anteriores. Por muito tempo havia ficado na minha cabeça a preocupação em publicar uma nova edição. Porém, o que foi publicado tem seu valor sistemático e ainda deve ser estudado em sua integralidade, e a oportunidade de seguir nas reflexões veio em forma de capítulo na presente obra coletiva. 193
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Vivemos tempos em que a maior parte da sociedade, incluindo aqueles que opinam ardorosamente sobre tudo, têm formado suas opiniões com base em manchetes e enunciados das redes sociais, sem assumir uma análise consciente, contextual e prolongada do que lê, e reproduz essas ideias na forma de preconceitos diversos. É angustiante pensar que um estudo aprofundado como este possa ser lido por menos pessoas que uma publicação de rede social. Porém, é necessário aprofundar, e é muito necessário, ainda, publicar sobre a realidade social. Estou seguro de que estudantes de direito e outros cursos, profissionais juristas e estudiosos de relações internacionais aproveitarão bastante essa publicação, onde se propõem mudanças de paradigma nas próprias formas de se ensinar o direito e as relações internacionais. Pude aprofundar aqui os mecanismos que têm determinado historicamente a evolução do direito internacional, a tese sobre a relação umbilical entre direito internacional e colonialismo, observar de modo crítico a ordem internacional gerada no pós-segunda guerra, como continuidade da ordem imperialista, e lançar olhares para alguns desdobramentos da guerra ao terror, para chegar ao conceito extremamente atual e imprescindível de guerras híbridas. Na atualidade, os ataques à Venezuela, um conflito latente e permanente ao longo da guerra fria, e relacionado à geopolítica da cadeia produtiva e distributiva do petróleo, tem se extremado na América do Sul e chegado às fronteiras com o Brasil. Aí se percebem claramente os processos de guerras híbridas e a reprodução de táticas utilizadas em outros países, como a criação e apoio do imperialismo a forças paralelas de oposição que inicialmente disputam espaços políticos e depois se acirram para o conflito armado interno. Também é perceptível, no Brasil, como muitas táticas das chamadas revoluções coloridas têm sido utilizadas, em processos como o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, gerando os binarismos políticos: a redução da arena de conflito político a dois blocos que representam uma disputa entre esquerda e direita mas que na prática são expressões variantes dos mesmos poderes. Muito ainda resta por analisar, sobretudo porque o trabalho precisava ser encerrado para atender aos prazos editoriais, ficando o aprofundamento crítico do conceito de guerras híbridas aplicado a conflitos contemporâneos para publicações futuras. Também segue necessário, para ser fiel à proposta de referencial teórico marxista, que a própria evolução do marxismo e suas respec-
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tivas revoluções sejam observadas conforme se analisa a evolução do direito internacional. Aí chegaremos à necessidade de ir além dos referenciais teóricos abordados até aqui e fazer uma crítica contemporânea do imperialismo, bem como das alternativas e possibilidades de resistência e transformação da ordem mundial. O certo é que o socialismo como sistema social não pôde ser enterrado, permanecendo como horizonte enquanto se perpetua e se aprofunda uma ordem capitalista em crise. Gostaria de terminar esse momento, assim, com o fragmento de uma das cartas do Partido Comunista da China em comentário à carta do Partido Comunista da União Soviética, em 1964. É necessário um período muito longo para resolver o problema de “quem vencerá a quem”: o socialismo ou o capitalismo nas frentes política e ideológica. Para conseguir o êxito não bastam uns decênios, se necessitarão de cem a centenas de anos. Quanto ao tempo, mais vale preparar-se para um período maior que um menor; quanto ao trabalho, mais vale considerar preferentemente a tarefa como difícil do que como fácil (PCCH, 2003, p. 438)
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Pachukanis em Caracas: o Direito Internacional entre a Forma Jurídica e a Guerra (Neo)Colonial Ricardo Prestes Pazello1 Moisés Alves Soares2
Introdução: por onde anda Pachukanis? O marxismo costuma sofrer de uma grande contradição que nem sempre é enfrentada pelas críticas (e autocríticas, quando existem) que os próprios marxistas elaboram. Tal contradição se revela no fato de o marxismo ter se academicizado, ou seja, de ter se tornado acessível apenas a estudiosos e expertos, ainda que declare como seu sujeito principal o proletariado (ou, em versões mais abertas, as classes populares). Por outro lado, grupos políticos, agremiações partidárias, movimentos sociais e organizações sindicais – a não ser quando enfronhados na universidade – têm cada vez menos visto sentido ou mesmo conseguido ligar suas lutas e práticas à interpretação marxista. O academicismo e a aversão pela teoria, cindindo a noção práxis, são faces da mesma crise. Mesmo onde há agrupamentos que se esforçam em realizar formações políticas, há grande dificuldade em aproximar o estudo de clássicos, como Marx, Engels, Lênin, Rosa, Gramsci ou outros, com a realidade social, política e econômica vivida. Não é o nosso objetivo investigar as razões deste problema, mas apenas partir dele para constatar que na crítica marxista ao direito (que, reconheçamos, teve
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Professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). E-mail: [email protected]
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Doutor em Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Professor integral do Curso de Direito da UNISOCIESC. E-mail: [email protected]
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um considerável reflorescimento nos últimos anos) se passa a mesma coisa. O grande clássico do marxismo para o campo do direito, Evguiéni Pachukanis, vem sendo relativamente bastante resgatado nas universidades, mas ainda dormita no âmbito da teoria do direito (quem sabe, com a exceção do direito penal) e não tem sido fonte para interpretações mais concretas, ainda que particulares. Mesmo que seja crucial recuperar o pensamento pachukaniano para compreender a crítica estrutural ao direito que todo marxista deve conhecer (evitando cair em visões juridicistas ou laudatórias do direito), não é menos importante partir de suas inspirações para interpretar as questões de nosso tempo, juntando a elas os avanços que o próprio marxismo, mas também outros marcos, tiveram após seu desaparecimento na década de 1930, na União Soviética (vide SOARES, 2018). Assim é que o presente texto pretende, no tempo da política e com o esforço de esboçar uma tradução da obra de Pachukanis, trazer suas contribuições a nossa realidade, tendo em vista os recentes (e importantes) acontecimentos que se passam na Venezuela, tomada por crises e turbulências, em meio a um cenário internacional de ataque das forças do capital contra quaisquer organizações de esquerda ou mesmo não alinhadas a sua política externa, em todos os seus matizes e nos mais diversos pontos do globo. Com isso, o necessário trabalho de traduzir a crítica pachukaniana às questões concretas do nosso tempo pode ganhar algum terreno, para além de suas valorosas utilizações teórico-abstratas.
1. Pachukanis desde Moscou: um verbete sobre Direito Internacional Entre 1925 e 1927, Pachukanis participou da edição da “Enciclopédia do estado e do direito”, organizada pela Academia Comunista. Na “Enciclopédia”, ele apareceu como o principal autor de direito internacional (BEIRNE; SHARLET, 1980) e já gozava de reconhecimento teórico-jurídico por ter publicado em 1924 seu livro mais importante, “Teoria geral do direito e marxismo”. Além disso, trabalhara no Comissariado do Povo para Assuntos Estrangeiros, no período exatamente anterior à primeira edição de seu livro clássico, de 1920 a 1923, assim como já tivera experiência prática como juiz (NAVES, 2009). Aqui, resgataremos sua reflexão, aparecida no volume 1 da citada “Enciclopédia”, sobre o direito internacional, bastante instrutiva para os propósitos deste en202
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saio. Ela, de alguma maneira, ao mesmo tempo continua e contrasta com suas formulações de 1924 sobre o direito. Ali, a forma jurídica aparece como a garantia da circulação mercantil, ou seja, “a relação jurídica entre os sujeitos é apenas outro lado das relações entre os produtos do trabalho tornados mercadoria” (PACHUKANIS, 2017, p. 97). A inspiração no método de Marx é evidente e é a partir dela que Pachukanis constitui seu repertório interpretativo, segundo o qual “a relação jurídica é a célula central do tecido jurídico, e apenas nela o direito se realiza em seu real movimento. Somado a isso, o direito, enquanto conjunto de normas, não é nada além de uma abstração sem vida” (PACHUKANIS, 2017, p. 97). Portanto, tal elaboração parte da forma sujeito de direito no contexto das relações sociais de produção e circulação do capital. Assim, podemos dizer que seu pressuposto está contido nos limites do estado-nação (ainda que, eventualmente, esta barreira possa ser transposta a depender dos agentes privados envolvidos, como empresas multinacionais). Evidentemente, ao realizar esta leitura Pachukanis não está pensando na figura do estado como a célula das relações sociais jurídicas, afinal de contas o caminho metódico que segue leva-o a perceber seus sujeitos como sendo outros, vale dizer, os livres e iguais proprietários de mercadorias. Há consequências importantes na constatação disso. De um lado, a necessidade de se dar uma resposta sobre o que o direito é como forma social. De outro, a evidência da crítica à vinculação entre estado – com suas normas positivas ou de expressão natural – e direito. Dentre as tentativas de se responder a estas últimas questões, encontram-se a noção de estado como forma política (MASCARO, 2013), que não deixa de ser tributária das teorias derivacionista e materialista do estado (HIRSCH, 2010); assim como a perspectiva de uma teoria do direito antinormativista, da qual Pachukanis é seu precursor. Ainda assim, fica pendente de avaliação sobre saber se o assim chamado direito internacional – ou melhor, a relação entre estados como sujeitos (públicos) de direito – existe nos mesmos moldes do que a teoria pachukaniana observou. É por isso que se mostra muito interessante viajar para a União Soviética da década de 1920 e perceber o que Pachukanis escreveu a respeito. Desde Moscou, no verbete para a “Enciclopédia do estado e do direito”, sua reflexão sobre o direito internacional ganha nova luz e irá permitir, inclusive, uma aterrissagem em Caracas, quase cem anos depois.
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1.1 A forma jurídica e o Direito Internacional: as trocas são componentes da luta É comum compreender-se o direito a partir de suas regras ou normas e o direito internacional, por extensão, pela tentativa – nem sempre exitosa, como também se costuma reconhecer – de coordenar a relação entre estados-nação segundo, igualmente, seus critérios normativos. Como se sabe, porém, Pachukanis é um crítico radical da visão normativista e deontológica do direito. Em seu verbete sobre o direito internacional, Pachukanis inicia resgatando justamente as definições sobre tal ramo do direito e demonstrando como elas se caracterizam por uma tecnicalidade que não traduz o seu real caráter, quer dizer, o “caráter de classe do direito internacional”. Em suas palavras, o apelo ao normativismo dos internacionalistas é um demonstrativo nítido de que eles “consciente ou inconscientemente empenham-se em ocultar tal elemento de classe” (PACHUKANIS, 1980, p. 169). Assim é que, de cara, Pachukanis já nos apresenta sua definição para o direito internacional: “o moderno direito internacional é a forma jurídica (legal form) da luta dos estados capitalistas entre si pela dominação sobre o resto do mundo” (PACHUKANIS, 1980, p. 169). Tal definição, a partir de agora, servirá de fio condutor para as avaliações que viremos a fazer a respeito tanto da relação entre forma jurídica e direito internacional, que é o objeto deste item, quanto do papel do imperialismo em sua visualização, notadamente no caso da Venezuela, como enfocaremos a seguir. É interessante fazer notar, aqui, que Pachukanis apresenta uma especificidade à noção de direito internacional que não nega suas formulações a respeito da forma jurídica, mas que as complexifica. O direito (como forma de relações sociais específicas entre sujeitos iguais e livres entre si) continua se ligando às relações de produção e circulação mercantil, no entanto agora, sob este prisma, tais relações apresentam-se em sua crueza. Afinal, o que vem a ser, por exemplo, uma troca de mercadorias? A resposta a esta indagação ganha um colorido diferente a partir da pena pachukaniana: “sob as condições desta luta [a luta dos estados capitalistas entre si], toda troca é a continuação de um conflito armado e o prelúdio para o próximo” (PACHUKANIS, 1980, p. 169).
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Portanto, uma oposição simples no pensamento de Pachukanis entre forma jurídica e luta de classes, a primeira valendo para a explicação sobre o que o direito é e a segunda dizendo respeito ao que fazer depois que se compreende do que o direito é, encontra-se desautorizada a partir da leitura do verbete que aqui interpretamos. Em algum grau de desenvolvimento das relações sociais do capital é possível ver que a troca é a continuidade da luta, já que “toda luta, incluindo a luta entre estados imperialistas, precisa incluir uma troca como um de seus componentes” (PACHUKANIS, 1980, p. 169). A densidade teórica desta página de Pachukanis é eloquente e justifica o resgate de sua literalidade. Pois bem, se no contexto das relações de produção nacionais as trocas de mercadorias aparecem como “normalidade” social, o deslocamento de tal visualização para uma ênfase nas trocas mercantis mais importantes para esta mesma produção – força de trabalho por salário – permite perceber que dita normalidade nada mais é que a exploração dos vendedores da mercadoria força de trabalho, ou seja, a classe trabalhadora. Logo, a exploração dos trabalhadores aparece como algo normal – e de fato assim o é em nossa sociedade. Estendendo, contudo, este mesmo percurso de enfoques, podemos chegar às relações internacionais. Neste nível, a latência do conflito incubado nas trocas internacionais é muito mais sensível, aparecendo, inclusive e muitas vezes, como guerra comercial. Mas aqui a exploração tem um caráter de “guerra” justamente porque se costuma destacar o papel de países soberanos entre si na disputa internacional, portanto sujeitos mais do que formalmente iguais entre si, já que materialmente também o são relativamente. É evidente, porém, que esta situação se modifica drasticamente quando os atores da guerra comercial internacional passam a ser também os estados que foram, por séculos, colônias dos estados imperialistas, para usar a expressão de Pachukanis. Assim, com a entrada em jogo das ex-colônias, agora formalmente independentes, a explicitude do direito internacional como uma guerra parece diminuir, requisitando-se reavivar as lições pachukanianas da década de 1920, como pretenderemos fazer na segunda parte deste artigo. Isto porque os sujeitos que se relacionam em nível internacional são estados-nação livres e iguais entre si. Mas estas equivalências se dão apenas, a partir de então, em um nível formal, pois na prática o que prevalece são relações de dependência internacional, inclusive do ponto de vista jurídico (vide PAZELLO, 2016).
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Acabamos de adiantar um tema de nodal relevância para Pachukanis, qual seja, o de quem são os sujeitos de direito, no caso, das relações internacionais. O jurista soviético, em seu verbete, apresenta a teoria hegemônica, entre os juristas burgueses de então, do estado como único sujeito do direito internacional. Pachukanis atribui esta prevalência teórica (que hoje, podemos dizer, já está abalada ao haver teorias que aceitam outros sujeitos de direito internacional para além de o estado) ao desenvolvimento do próprio capitalismo. Segundo ele, “a real premissa histórica para este ponto de vista é a formação de um sistema de estados independentes que têm, dentro de suas fronteiras, um poder central suficientemente forte para habilitar cada um deles a agir como um todo único” (PACHUKANIS, 1980, p. 173). A partir de tal constatação, Pachukanis sumaria a formação do estado moderno, mas atribui certo caráter de universalidade à regulação das relações internacionais, aludindo a exemplos de momentos históricos que ele denomina de “períodos antigos da sociedade de classes e até da sociedade de pré-classes” (PACHUKANIS, 1980, p. 175). Não é nosso interesse, aqui, explorar tal argumentação, que parece dar subsídios interessantes para se pensar uma “história do direito” – ainda que Pachukanis não abra mão de dizer que se há um “direito” internacional antigo é porque tais “regras universais não podem ser outra coisa senão um reflexo das condições gerais de troca” –, mas sim aterrissar na argumentação do autor ao resgatar a figura de Hugo Grócio como o “primeiro teórico do direito internacional” (PACHUKANIS, 1980, p. 176). Para ele, Grócio, com sua doutrina do direito natural, pressupõe as condições de troca para o surgimento do direito internacional moderno. Resgatando uma noção inicial de seu verbete – qual seja, a de que a “chave do moderno direito de guerra” é a “propriedade burguesa”, “o interesse geral e básico da burguesia” (PACHUKANIS, 1980, p. 172) – Pachukanis implica Grócio no nascedouro cosmológico do capital, já que todo o seu sistema depende do fato de que ele considera relações entre estados como sendo relações entre donos de propriedade privada; ele declara que as condições necessárias para a execução da troca, isto é, da troca de equivalentes entre proprietários privados, são as condições para a interação legal entre estados. Estados soberanos coexistem e são contrapostos uns aos outros exatamente na mesma medida em que são donos de propriedade individual com direitos iguais. Cada estado pode “livremente” dispor de sua própria propriedade, mas só pode ter acesso 206
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à propriedade de outro estado por meio de um contrato sob a base da compensação: do ut des (PACHUKANIS, 1980, p. 176).
A expressão em latim arremata o argumento de Pachukanis que foi e voltou para a história europeia (clássica, medieval e moderna) a fim de encontrar nela a realidade das trocas comerciais. Mas, o argumento procura, sobretudo, ratificar sua concepção de que o direito é o grande afiançador do intercâmbio de mercadorias e a expressão do ut des não pode nos confundir: o clássico “dou para que dês” não é mais o dar da reciprocidade das comunidades tradicionais nem o mero toma-lá-dá-cá de um jogo de favores que se dá nos bastidores das relações formais, mas sim as prestações às quais se obrigam os contraentes de uma relação de compra-e-venda, tal como entre proprietários de mercadorias, sejam eles capitalistas entre si, sejam eles proprietários de força-de-trabalho e de dinheiro pago em troca. Assim é que a fundamentação teórica a respeito do caráter da forma jurídica se põe à mostra na avaliação de Pachukanis a respeito do direito internacional. Para corroborá-lo, chega a citar o criminalista liberal alemão Franz von Liszt, famoso por sua teoria da prevenção especial da pena, mas que também teve considerável impacto no direito internacional. Pachukanis (1980, p. 177) assegura que Liszt possui “idéias esboçadas a partir de relações de direito civil com base na igualdade entre as partes” e menciona expressamente o entendimento do autor segundo o qual o direito internacional se baseia em “regras legais não escritas”, apesar de Liszt ser reconhecidamente um autor positivista do direito penal (ou seja, que defendia que as punições só poderiam decorrer de normas positivadas previamente e não de entendimentos metafísicos de julgadores). É curiosa, e bastante arguta, a aproximação que Pachukanis faz entre os entendimentos do jusnaturalista Hugo Grócio, do século XVII, e do positivista Von Liszt, do século XX, pois coloca em tela o fato de que, ao nível internacional, o direito revela sua face mais crua, explicitando que a normatividade intraestatal é uma forma de regular o que internacionalmente não tem vez, já que os sujeitos são os estados-nação (a essa altura, basicamente os estados imperialistas). O esboço do Liszt tem, portanto, de apelar para uma lógica do direito civil, que é a única maneira de tornar aceitável o direito natural. Assim é que o normal das relações sociais torna-se naturalizado, mas nem por isso um ou outro (seja o normal seja o natural) deixam de ser fenomenalidades de algo que exige uma explicação mais profunda e essencial. 207
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Daí Pachukanis buscar uma analogia para explicá-lo. Sua interpretação analógica lança mão de um paralelo entre o direito privado (intranacional, portanto) e o internacional (que adquire aparente caráter de direito público): o direito privado burguês assume que os sujeitos são formalmente iguais mesmo que simultaneamente permita uma desigualdade real quanto à propriedade, enquanto o direito internacional burguês, em princípio, reconhece que os estados têm direitos iguais ainda que, na realidade, eles sejam desiguais em sua significância e poder (PACHUKANIS, 1980, p. 178).
Como se percebe, a esta altura a reflexão de Pachukanis já está crivada pelo impacto da visualização de relações internacionais em que figuram estados periféricos e ex-colônias. O próprio caso da União Soviética, seu ponto de partida geopolítico, é lembrado para aquilatar um “diferente significado” do direito internacional, em que este se caracterizaria por estar passando por um “período transicional” marcado pela “forma de um compromisso temporário entre dois sistemas de classe antagônicos” (PACHUKANIS, 1980, p. 172-173). Desse modo, os compromissos vão ganhando relevo para mediar a disputa internacional, até que um confronto aberto sobrevenha. Nesse sentido, como todos sabemos, a história foi implacável e confirmou as asserções de Pachukanis com as centenas de guerras a que o século XX assistiu. Longe de advogar pela inexistência de um direito internacional – que Pachukanis acusa de posição niilista que acometera inclusive alguns marxistas – ele credita a este ramo do direito um objeto “precário, instável e relativo” em face de outras áreas. Portanto, uma “diferença de grau” (PACHUKANIS, 1980, p. 180) sobre a juridicidade das esferas internacional e da civil, por exemplo. As relações jurídicas internacionais existem, mas são tomadas por contradições que se configuram a partir de um “equilíbrio real de forças” (PACHUKANIS, 1980, p. 179). Quando este equilíbrio é rompido, irrompe igualmente um conjunto de condições internacionais que não se atenua institucionalmente, como se pode observar no caso dos direitos nacionais (via força do estado), mas sói expor-se por meio de confrontos de várias naturezas, da econômica à bélica. Dessa maneira, duas questões interessantes emergem. A primeira, textualmente reconhecida por Pachukanis (1980, p. 178): dá-se uma “contradição” quanto à própria existência do direito internacional que depende, para tal, da existência de estados soberanos e, portanto, que são soberanos com relação ao próprio direito 208
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internacional. Ou seja, a ele só se submetem enquanto não houver motivo (ou força) para debelá-lo. Esta questão é interessante para percebermos conflitos e intervenções de cunho internacional, como as que caracterizam, por exemplo, a Venezuela. De outro lado, decorrente da anterior, uma segunda questão pode ser aduzida. Pachukanis, ao mencionar o “equilíbrio real de forças” complexifica sua interpretação sobre a forma jurídica, ao afirmá-la e, a um só tempo, pô-la em xeque ante o direito internacional. Na verdade, ele retira da esfera internacional a característica mais pura da luta de classes (dominação e imperialismo dos estados capitalistas) e, ao fazê-lo, demonstra que a igualdade entre sujeitos (públicos) depende de um jogo de forças material, ou seja, há igualdade jurídica enquanto houver estabilidade entre os estados. Quando esta desaparece, o mesmo ocorre com a igualdade. Ao interpretar assim, Pachukanis revela, por contraste, que a igualdade jurídica da esfera interna também depende disso (da estabilidade que pode ser questionada e enfrentada a qualquer tempo em um contexto de aberta luta de classes), mas que costuma manter-se pela força repressiva do estado contra os indivíduos, bem como pela coerção econômica da burguesia, tanto interna quanto externa, e ainda pela naturalização de tais relações sociais no quotidiano da classe trabalhadora. Assim, forma jurídica e luta de classes se entrelaçam e a interpretação pachukaniana se mostra altamente instrutiva para compreender as profundezas do direito, seja ao nível das relações nacionais seja para além delas. Por isso é que se faz interessante, também, procurar algum aprofundamento quanto à questão do imperialismo, que atravessa totalmente o direito internacional e permite o contraste analógico quanto às relações jurídicas privadas. É o que veremos a seguir.
1.2 Imperialismo e Direito Internacional: a luta entre Estados capitalistas pelo domínio de países coloniais Citamos várias vezes o imperialismo, ou melhor, os estados-nação imperialistas para apresentar os aspectos, a nosso ver, mais interessantes em que Pachukanis se apoia para debater o direito internacional. A nosso ver, sua análise sobre tal área do direito segue dois grandes caminhos: de um lado, o de visualizar o direito internacional como extensão da garantia para as relações de troca, fazendo incidir a forma jurídica neste contexto; de outro, concebê-lo 209
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como forma de dominação pela via do imperialismo. Daí o tema do imperialismo ganhar centralidade nesse segundo momento da exposição a respeito do pensamento de Pachukanis sobre o direito internacional. Em seu verbete, Pachukanis cita Lênin, a partir de um trecho encontrado no quinto capítulo de “Imperialismo, estágio superior do capitalismo”. O capítulo se intitula “A partilha do mundo entre as associações capitalistas” e é curioso notar que antecede outro chamado “A partilha do mundo entre as grandes potências”. Por que lembrar disso? Porque Pachukanis faz uso da distinção de Lênin entre “partilha econômica” e “partilha territorial” (ou política) para fortalecer sua visão sobre o direito internacional. Fazendo uma brevíssima e pontual incursão na análise de Lênin, podemos resgatar dois elementos interessantes: o primeiro diz respeito a certa fluidez entre as relações capitalistas nos níveis nacional e internacional. Vejamos uma afirmação bem didática de Lênin (2012, p. 99): as associações de monopolistas capitalistas – cartéis, sindicatos, trustes – partilham entre si, em primeiro lugar, o mercado interno, apoderando-se mais ou menos completamente da produção do país. Mas sob o capitalismo o mercado interno está inevitavelmente entrelaçado com o externo. Há já muito que o capitalismo criou um mercado mundial.
Quer dizer, reforçando o que dissemos no item acima, o direito internacional carrega consigo a forma jurídica, uma vez que, para além da circulação simples, o que existe, de fato, é um mercado mundial. Logo, o que há são circulações de mercadorias em todos os níveis, devendo-se considerar relativamente arbitrária a distinção entre direito internacional público e privado, a não ser pelo que segue. O segundo elemento refere-se à especificidade política do imperialismo, quanto a suas disputas por colônias e novos territórios sob sua influência. Se, por um lado, é arbitrária a distinção entre público e privado no direito internacional, por outro lado é compreensível, ainda que talvez não tão rigorosa, a nomenclatura. Existe, de fato, uma incidência política própria na relação internacional entre estados. Ao tempo em que Lênin escrevia seu ensaio sobre o imperialismo – escrito em 1916 e publicado em 1917 – era nítida a preocupação política com as relações internacionais dado que a partir delas se expressavam disputas territoriais:
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a época do capitalismo contemporâneo nos mostra que estão se estabelecendo determinadas relações entre os grupos capitalistas com base na partilha econômica do mundo, e que, ao mesmo tempo, em ligação com isto, estão se estabelecendo determinadas relações entre os grupos políticos, entre os Estados, baseadas na partilha territorial do mundo, na luta pelas colônias, na “luta pelo território econômico” (LÊNIN, 2012, p. 108).
Eis, portanto, que as indicações de Lênin levam Pachukanis a reafirmar a complexidade do direito internacional, entre a partilha econômica e a partilha territorial, vale dizer, entre a forma jurídica (que garante as relações econômicas) e a dominação colonial ou neocolonial (que serve de meio de luta em nível internacional). Nesse sentido, fica peremptoriamente rejeitada qualquer concepção de direito internacional como “instrumento, posto fora e acima das classes” (PACHUKANIS, 1980, p. 169) – ideia na qual creem tanto os juristas burgueses quanto os socialistas reformistas. Interessante é perceber que a complexificação que Pachukanis imprime à análise do direito quando aborda uma de suas partes, o direito internacional, vai ganhando vida e estabelecendo sua morfologia própria. É o que podemos ver quando ele diz que o direito internacional “deve sua existência ao fato de que a burguesia exerce sua dominação sobre o proletariado e sobre os países coloniais”. Uma vez mais a dupla face do direito internacional se faz presente: de uma banda, forma jurídica, partilha econômica e exploração do proletariado; de outra, exercício de força, partilha territorial e dominação colonial. Evidentemente que as duas expressões estão interligadas, até porque a sociedade que se constitui nesse contexto pressupõe um mercado mundial (que relaciona o interno e o externo sempre), mas não é menos verdade que cada uma delas guarda consigo uma peculiaridade, a qual o direito internacional permite entrever. Concebida esta pedra de toque do direito internacional, é possível perceber que há criação de instituições e normativas que são, ao mesmo tempo, correspondentes a esta morfologia, mas que se pretendem (em suas autoproclamações) acima delas. No entanto, sobre o assunto, Pachukanis parece ser taxativo: “a luta entre os estados imperialistas pela dominação do resto do mundo é, assim, um fator básico na definição da natureza e destino das correspondentes organizações internacionais” (PACHUKANIS, 1980, p. 171). Desse modo, o já aludido “equilíbrio real de forças” condiciona inteiramente a construção de
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organismos e mecanismos de regulação das relações internacionais, mormente ligados à geopolítica e aos interesses econômicos dos estados. Assim é que Pachukanis, escrevendo menos de dez anos após a Grande Guerra, tal como os próprios europeus a denominaram à época, assevera que “a própria composição dessas comissões [internacionais] reflete perfeitamente relações específicas de forças e é, normalmente, o resultado da guerra” (PACHUKANIS, 1980, p. 171). No contexto dessa avaliação, cita vários tratados sobre rios, como os do Danúbio, Reno, dentre outros, bem como comissões e o Tratado de Versalhes, para demonstrar que os despojos da guerra era o que interessavam os estados nacionais e as organizações paridas em tal situação expressavam justamente o poderio de quem venceu o conflito e queria continuar se expandindo geopoliticamente. Basta uma mirada para as atuais organizações internacionais para comprovar o acerto de Pachukanis em sua análise – e o caso da Venezuela não fugirá a esta regra. Um elemento bastante interessante a se ressaltar na formulação pachukaniana é o interesse dedicado à problemática colonial – aliás, recorrente e até mesmo central no conjunto de preocupações da política externa soviética – entendida como uma “peculiaridade” do direito internacional produzido pela burguesia. Segundo Pachukanis (1980, p. 172), tal direito se caracteriza por dividir os estados entre “civilizados e ‘semicivilizados’, integrados e ‘semi-integrados’ à comunidade internacional”, substituindo o que no período feudal era o índice de evolução, ser ou não ser um povo “cristão”. Dessa maneira, o autor associa a noção de civilização à emergência do capitalismo e, ao criticar este último, permite uma crítica ao etnocentrismo da primeira. Os russos, por estarem nas margens do Ocidente, entre a Europa e Ásia, sempre cultivaram bastante este exercício de crítica ao ocidentalcentrismo, ainda que nem sempre de maneira consciente. No caso de Pachukanis, ela aparece de maneira explícita e liga-se diretamente à condenação do colonialismo, do qual a própria Rússia não deixava de sofrer as consequências. Por isso, o texto de Pachukanis soa como uma denúncia, ao ressaltar que o direito internacional serve para a disputa territorial, antecipando a tese clássica do geógrafo crítico Yves Lacoste (1993): “a geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”. Para o jurista russo, “o resto do mundo é considerado como um simples objeto de suas [estados burgueses] transações concluídas” (PACHUKANIS, 1980, p. 172). E nem o liberalismo desata a dicotomia entre civilizados e ainda-não-civilizados, já que o próprio Von Liszt, em pleno alvo212
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recer do século XX (seu manual de direito internacional é de 1913), diz que o direito internacional não é válido para os não civilizados (estados e povos que estão fora da comunidade internacional). O que é válido, isto sim, é o “amor pelo ser humano e o cristianismo”. Implacável, Pachukanis ironiza: “para avaliar o fervor dessa afirmação, lembre-se que, ao tempo das guerras coloniais, os representantes desses princípios elevados, por exemplo a França em Madagascar e os alemães no sudoeste da África, liquidaram a população local sem levarem em conta idade e sexo” (PACHUKANIS, 1980, p. 172). É por este motivo que ganha ascendência, no discurso pachukaniano, a importância da defesa de que a União Soviética instaura um período de transição para o direito internacional, uma vez que cunha uma disputa com os países capitalistas, e, se vitoriosa, levará à extinção do próprio direito internacional, já que as relações entre os povos não mais se guiará pela exploração dos trabalhadores nem pela dominação colonial. O sentido da construção teórica de Pachukanis ganha grande atualidade, ainda que precise de atualizações, devido às mudanças que os quase cem anos que nos separam fizeram surgir. Vários intérpretes (vide CHIMNI, 2004; MIÉVILLE, 2005; MOREIRA, 2011; KNOX, 2014; TAYLOR, 2014) seguiram, de maneiras variadas, pela senda que ele abriu e, portanto, sua contribuição não pode ser desprezada. Entendemos, então, que a análise da questão do direito internacional deve passar sempre pela dupla problemática que a interpretação de Pachukanis permite visualizar: de um lado, a repercussão da forma jurídica no mercado mundial, como a garantia do intercâmbio capitalista entre sujeitos de direito, mesmo que estes sujeitos sejam os estados-nação; e, de outro, a incidência de uma “acumulação originária permanente” ou mesmo de uma “colonização sistemática” (NEOCLEOUS, 2012) que se traduz ou em pilhagem direta de países centrais sobre os dependentes ou mesmo em pressões que estes sofrem, levando a guerras, latentes ou abertas, desde as comercias até as militares. Assim sendo, estendamos os passos de Pachukanis da Moscou dos anos 1920 para Caracas da década de 2010 e vejamos como sua análise pode nos permitir reavivar a crítica marxista ao direito à luz de problemas concretos de situações concretas da periferia do mundo.
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2 Pachukanis em Caracas: aproximações entre crítica marxista ao direito e realidade Como podemos justificar a necessidade de resgate da obra clássica do jurista marxista russo em um contexto tão diverso como o latino-americano de hoje? A nosso ver, fazer Pachukanis passear por Caracas é um bom antídoto para os que apostam em suas contribuições meramente em nível teórico ou para aqueles que a desprezam totalmente. Nosso esforço será, aqui, o de construir uma cronologia dos graves acontecimentos que acometem a Venezuela nos últimos anos (até o exato momento de nossa redação) e passar a um exame, ainda que sumário, do que poderiam ser interpretações pachukanianas (portanto, de crítica marxista ao direito) a respeito. Com isso, pretendemos colocarmo-nos à disposição da tarefa de refletir intelectualmente (para ajudar na práxis política, fundamental das esquerdas no Brasil e, quiçá, no âmbito jurídico crítico) sobre o que ocorre na Venezuela, bem como afiar os dentes da ferina crítica de Pachukanis ao direito, para que ela não quede como peça de museu dos gloriosos tempos da revolução de 1917.
2.1 Cronologia da crise venezuelana A Venezuela não é um país qualquer na geopolítica latino-americana. Aqui, não nos referimos somente a sua posição estratégica no continente e por possuir, estima-se, a maior reserva petrolífera do mundo, disputando o posto com a Arábia Saudita, bem como por sua quantidade igualmente representativa de recursos minerais (em particular, ouro) e imensa biodiversidade. A questão central é que o triunfo de Hugo Chávez constituiu-se como o epicentro da expansão de um movimento político latino-americano que Rafael Correa denominara, em seus efeitos, de a “década ganada” em oposição à hegemonia do “populismo do capital”3, isto 3
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Em sua obra, “Equador: da noite neoliberal à revolução cidadã”, Correa analisa que a popularidade do neoliberalismo na América Latina está associada à obsessão a qualquer custo do controle de preços em um continente assolado por surtos inflacionários. O populismo do capital, de fato, reduz a inflação, mas o ponto é observar o custo-benefício de políticas de contração econômica. “Para retratar o que foi dito com um exemplo extremo, um governo cuja obsessão, independentemente de suas causas e consequências, é o controle inflacionário, poderia deixar sem emprego e sem renda a toda a população; a inflação certamente baixaria, mas isso não significa que o bem-estar social melhoraria.
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é, a ascensão de governos à esquerda em diferentes níveis e não alinhados diretamente com a política externa estadunidense nos anos 2000. É uma ilusão pensar que a instabilidade política é uma marca apenas do período Maduro, uma vez que o próprio presidente Chávez enfrentou um golpe de Estado frustrado e o desafio permanente de pôr à prova a legitimidade de seu projeto político pelas urnas – seja por eleições ou referendos revogatórios. Agora, certamente, se podemos identificar um momento de inflexão na cena política venezuelana, não resta dúvida que este seria a prematura morte do timoneiro da revolução bolivariana e os dilemas de sua sucessão. Nunca é demais recordar que, com a morte de Chávez em 2013, o seu escolhido, Nicolás Maduro, enfrentou eleições duríssimas contra o candidato oposicionista, Henrique Capriles, em condições econômico-sociais muito melhores que as atuais, vencendo o pleito com 50,66% dos votos válidos – uma estreita diferença de 225 mil votos. “Maduro não é Chávez”. A frase mais repetida em qualquer análise do processo venezuelano mostrou-se de várias maneiras na condução do legado chavista. Embora a vitória da oposição à direita não tenha se consolidado eleitoralmente, houve uma corrosão progressiva da hegemonia chavista na sociedade venezuelana ao ponto de, em outro desses momentos decisivos, quem sabe o mais importante para nosso estudo, ocorrer uma vitória esmagadora da oposição nas eleições legislativas de 2015. A Mesa da Unidade Democrática (MUD) arrebatou 112 cadeiras e a situação apenas 55 (mandato 2016-2021). A chave virara e Maduro teria que navegar por uma guerra econômica interna e externa, momento em que o preço do petróleo despenca cerca de 100 dólares, com uma oposição legislativa que não nutria um projeto de confronto democrático-institucional com vistas às próximas eleições presidenciais, mas disposta a provocar uma ruptura com a legalidade instituída. Neste momento, há grande projeção de um ator central da cena política: o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ). A oposição tinha a capacidade, por sua maioria absoluta, pelo menos no plano infraconstitucional, de realizar um carnaval normativo e estabelecer múltiplas dificuldades de governabilidade. O obstáculo no meio desse caminho seria a Constituição Bolivariana, que possui
Em outras palavras, nos cemitérios, claro que não há inflação (CORREA, 2015, p. 91). Os governos populares da América Latina ousaram, cada um em sua realidade nacional, não cumprir, pelo menos a risca, o receituário de Washington. Há vida para além do neoliberalismo!
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os delineamentos de um projeto político à esquerda e a formulação de outra forma-estado. Ao contrário do Brasil, onde o projeto da Constituição de 1988 foi dilacerado por emendas constitucionais sucessivas, a estratégia de destroçar a Constituição Bolivariana envolve cálculos e enfrentamentos políticos muito mais profundos. Isto porque o poder constituinte derivado, seja por emenda constitucional (artigo 341, 3) ou por reforma constitucional (artigo 345), para conferir validade a suas alterações legislativas, necessita da realização de referendo que confira legitimidade popular às iniciativas. Por isso, uma vitória eleitoral esmagadora na Assembleia Nacional pode converter-se em derrota política rapidamente em uma nova disputa eleitoral acerca do modelo de Estado. Assim, desde antes da posse da Assembleia Nacional de 2016, já havia um clima de tensão e enfrentamento com o poder judiciário. Era necessário testar a fidelidade do TSJ ao projeto da Constituição Bolivariana e abrir caminho para uma contrainsurgência dentro da institucionalidade ou o pretexto para a formação de uma dualidade de poderes. A epiderme deste conflito ocorre antes da posse da Assembleia Nacional de maioria oposicionista, pois no fim do mandato da composição anterior, portanto ainda dentro da legislatura composta por maioria expressiva chavista, nomeou-se treze novos juízes ao Tribunal Supremo da Venezuela (TSJ). A oposição, de início, contestou a legalidade das indicações por vícios procedimentais, mas, ao não encontrar respaldo fático para suas alegações, criticou duramente a legitimidade da ocasião e a urgência com que foram preenchidas tais vagas – fora em dezembro de 2015 e a nova legislatura começaria em janeiro de 2016. Sem dúvida, a conveniência de fazer nomeações às pressas pode e deve ser contestada do ponto de vista político pela oposição, por outro lado, nem de longe, trata-se de ato jurídico em desacordo com a Constituição. Ao contrário, os novos juízes nomeados substituíram magistrados que haviam pedido sua aposentadoria e foram designados pela Assembleia Nacional, em conformidade com a Constituição (artigo 264) e com a Lei Orgânica do TSJ (artigos 8, 38 e 40 da lei de 11 de maio de 2010). A polêmica gira em torno do fato da antecipação forçada de pedido de aposentadoria de dez dos treze magistrados (sobre o que não há provas, até porque é relativamente comum os magistrados não terminarem seus mandatos de 12 anos) e por supostas manobras do legislativo (segundo o artigo 38 da Lei Orgânica do TSJ, a aprovação dos magistrados depende de maioria qualificada de dois-terços dos deputados e, se este número 216
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não é alcançado até a terceira sessão, basta uma maioria simples, e foi o que se sucedeu no caso). Fica a pergunta: nos States um governo republicano, caso tivesse a oportunidade de fazê-lo, deixaria a possibilidade de indicar um juiz da Suprema Corte aos democratas? A resposta é óbvia, pois no reino da liberdade sabe-se, com muita clareza, que as cortes constitucionais atuam no limiar da política e do direito. Nesse sentido, se a composição do Tribunal, seja por sua formação ou posição ideológica de seus membros, desagrada à oposição, disso não se infere sua ilegitimidade quanto mais que opera à revelia da Constituição Bolivariana traindo sua função constitucional. O primeiro grande embate, uma verdadeira guerra declarada, entre poder judiciário e poder legislativo se dá logo na posse da Assembleia Nacional da Venezuela: o caso dos deputados Julio Ygarza, Nirma Guarulla e Romel Guzamana. Em medida cautelar, a Sala Eleitoral do TSJ suspendeu os “efeitos dos atos de totalização, adjudicação e proclamação emanados pelos órgãos subordinados do Conselho Nacional Eleitoral a respeito dos candidatos eleitos por voto uninominal, voto em lista e a representação indígena” para a Assembleia Nacional do Estado do Amazonas (Sentença 260/2015). Contudo, em desobediência à decisão judicial, o poder legislativo empossou os três deputados confluentes com a oposição e tomaram seguidas decisões consideradas inconstitucionais pelo TSJ. O que faz o feitiço da ilegitimidade, que os oposicionistas acusam o governo chavista de possuir, virar contra os feiticeiros, agora como ilegalidade propriamente dita. A queda de braço foi levada a cabo pela oposição, porque com estes três deputados seria possível atingir o quórum qualificado em matérias legislativas infraconstitucionais. É interessante notar, como uma marca do chavismo, a importância dada às duas trincheiras secularmente dominadas por blocos conservadores: forças armadas e poder judiciário. No que se refere à mediação jurídica, a estratégia de sempre atuar politicamente, seja na ofensiva ou em momentos regressivos, amparados na extensão, defesa e recomposição da legalidade é típica da revolução bolivariana. Hoje, a legitimidade jurídica é um anteparo muito evidente ao governo Maduro. Nessa condição, há um estranhamento e uma dificuldade de a direita venezuelana se movimentar, pois atuar na legalidade constitucional com a produção dos sentidos do texto normativo sob a hegemonia do adversário político é um terreno árido, que, diga-se de passagem, as esquerdas comumente experimentam no cenário das democracias burguesas (vide SOARES, 2017, p. 217
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215-225). Sendo assim, a oposição possuía, basicamente, dois caminhos: o da reforma radical da legalidade (reforma constitucional ou nova constituinte) ou uma ruptura com a ordem jurídica vigente. Não se pode considerar a oposição venezuelana um monólito, mas por diversas questões conjunturais resta nítida a opção tomada atualmente. O Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela confirmou a decisão cautelar, quanto à posse dos deputados, em agosto de 2016 e a escalada do conflito apenas se intensificou desde então. No primeiro ano de legislatura, a Assembleia Nacional afronta e flerta com a ilegalidade para instaurar uma crise orgânica no país. A Venezuela sente os impactos de uma política econômica vinculada a um único produto de exportação, o petróleo, perante a crise dos preços de commodities, mas que ainda não havia resultado na degradação das formas de mediação política do Estado Bolivariano. Nesse sentido, a grande briga, absolutamente legítima, da direita venezuelana foi a instauração de um referendo revogatório (recall), previsto constitucionalmente, do mandato do presidente Maduro. Mas, com o perdão do trocadilho, sem a devida unidade da MUD, dado que líderes, como o hoje detido Leopoldo López, defendiam a resistência em armas, conjugada com a luta do governo bolivariano para atrasar o referendo para depois de 10 de janeiro de 2017 – data que demarcava o prazo, em caso de derrota no referendo, da posse do vice-presidente e não novas eleições –, a oposição não conseguiu cumprir seus prazos relativos aos recolhimentos de assinaturas previstos e o referendo apenas ficaria previsto para outubro de 2017 (o que, aliás, acabou por não ocorrer). De outra parte, para não arriscar traduzir sua vitória eleitoral em derrota política, a Assembleia Nacional assumiu grave postura e tentou um golpe parlamentar como no Brasil, tentou aprovar legislação que restringisse o poder judiciário por via infraconstitucional, tentou tirar o controle do petróleo do poder executivo, dentre outras iniciativas. O ponto é que todas essas tentativas esbarraram no controle de constitucionalidade do TSJ, o guardião dos sentidos da constituição na Venezuela. O ápice da crise do projeto constituinte de 1999 ocorreu quando, em mais de um ano de desobediência, nas sentenças 155 e 156 de 2017, o TSJ declara oficialmente o “desacato à sentença 260” – imagine-se se a mesma situação se desse no Brasil, com descumprimento das ordens judiciais! – e dispõe “como absolutamente nulos os atos da Assembleia Nacional que foram realizados ou venham a se realizar, enquanto se mantenha a presença dos cidadãos sujei218
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tos à decisão 260 de 30 de dezembro de 2015” (Sentença 156/2017, grifos no original). Além disso, o TSJ implode o sistema político de vez ao dispor que “enquanto persista a situação de desacato e da invalidez dos atos da Assembleia Nacional, esta Sala Constitucional garantirá que as competências parlamentares sejam exercidas diretamente por esta Sala ou por órgão de que ela disponha, para velar pelo Estado de Direito” (Sentença 156/2017). Na prática, esta decisão jogava na ilegalidade a Assembleia Nacional e todos os seus atos e ainda ampliava os poderes do judiciário para uma função constitucional que não era de sua competência propriamente. No fim das contas, porém, as sentenças 157 e 158, do mesmo ano, reverteram essa situação, revendo parcialmente o que havia sido disposto nas sentenças 155 (limitações à imunidade parlamentar e funções presidenciais extraordinárias) e 156 (exercício das funções legislativas pelo judiciário), respectivamente. Já no início de abril, a Assembleia Nacional, operando na ilegalidade apesar do determinado pela Sala Constitucional, intenta um procedimento para eleger novos juízes. Esta crise, que contou com grandes manifestações de rua, mas também com massivas marchas contrárias, resultou do ponto de vista político na criação de um Supremo Tribunal de Justiça no Exilio em julho de 2017. Um sintoma, já visto no episódio do referendo revogatório, da incapacidade de articulação de uma oposição vigorosa que escolheu a estratégia de construir uma duplicidade de poderes. Tal pitoresco Tribunal Constitucional opera fora de seu país, com sessões on-line, particularmente, desde os Estados Unidos e da Colômbia. Reúne-se, semanalmente, para tomar decisões sobre a Venezuela desde o exterior que são carentes, para dizer o mínimo, de efetividade. Então, o surgimento de Juan Guaidó, o autoproclamado presidente da república, não é uma surpresa, mas uma construção precária de uma dualidade de poderes. Por mais que as sentenças seguintes tenham recuado nessa posição de subsumir o legislativo ao poder judiciário, a Carta Constitucional de 1999 assentada na força popular e no enfrentamento permanente não mais encontra sua base no arranjo institucional em marcha. Nessa conjuntura, Nicolás Maduro, comumente desprezado pelos analistas políticos, para além das mesas de diálogo, toma uma decisão política audaciosa e que recoloca em outros parâmetros as regras do jogo democrático, como diria Pachukanis, e opera com a “elasticidade
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da forma jurídica”4, isto é, convoca uma nova Assembleia Constituinte a partir de um mecanismo presente na própria Constituição Bolivariana (artigo 348). Ao constitucionalismo clássico ou do norte do mundo, certamente, soará um bocado insólito a existência dos dispositivos 347 ao 350 – De la Asamblea Nacional Constituyente. Mas a Constituição Bolivariana, talvez por sua própria natureza de ser construída para uma determinada fase do processo revolucionário, tanto foi feita para resistir a ataques, uma vez que as mudanças em seu conteúdo devem passar pelo crivo popular (emenda e reforma constitucional via referendo), quanto para ser substituída em uma nova fase de estruturação do poder popular, a possibilidade de convocação “constitucional” de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. O Presidente Maduro edita, em 1º de maio de 2017, o Decreto 2.830 em que convoca uma Assembleia Nacional Constituinte no meio do caos institucional venezuelano. Em sua função declarada, destaca: “1. a paz como necessidade, direito e desejo da nação, o processo constituinte é uma grande convocatória a um diálogo nacional para conter a escalada de violência política mediante o reconhecimento político mútuo e de uma reorganização do Estado, que recupere o princípio constitucional de cooperação entre os poderes públicos como garantia do pleno funcionamento do Estado democrático, social, de direito e de justiça, superando o atual clima de impunidade” (Decreto 2.830/2017). É evidente que tal discurso não pode ser completamente desprezado, uma vez que, de fato, Maduro quer reconstruir o tecido político na Venezuela e diminuir a zona de confronto permanente que se tornou o país com a crise. Apostar na constituinte é transformar um conflito social, de massas, num conflito eleitoral e depois político-jurídico e, além disso, uma cartada para fortalecer sua base social com uma possível postura abstencionista da oposição no futuro pleito e formar um poder legislativo alternativo ao da Assembleia Nacional. Tal processo, igualmente, trata-se do reconhecimento de Maduro a respeito da profunda crise instaurada e que sua legitimação precisa de um novo espaço para construção de 4 Em O Estado Soviético e a Revolução no Direito, Pachukanis afirma que “numa sociedade burguesacapitalista, a superestrutura jurídica deve caracterizar-se por um máximo de imobilidade – máximo de estabilidade –, pelo fato de constituir uma arena para o movimento das forças econômicas representadas pelos empresários capitalistas”, por outro, em uma sociedade de transição ao socialismo “necessitamos que nossa legislação possua um máximo de elasticidade – não podemos acorrentar-nos a qualquer tipo de sistema jurídico –, visto que diariamente estamos demolindo a estrutura das relações de produção e substituindo-as por novos modos de produzir a vida” (PACHUKANIS, 1951, p. 278).
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consensos e demonstração de força, como o próprio caminho político-jurídico de uma nova carta constitucional. Neste sentido, ele não deixa de fazer uma aposta política, já que a política de massas e a política institucional (âmbito político-jurídico) não podem ser vistos como coisas estanques. A posição abstencionista, realmente, concretizou-se e foi arguida a inconstitucionalidade da propositura da Assembleia Nacional Constituinte, pois não há previsão no decreto da existência de um plebiscito ou referendo para a sua realização. O ponto central da tese jurídica da oposição consiste na necessidade de consulta popular, como ocorrera nos outros processos constituintes venezuelanos, em 1961 e 1999. O TSJ, sobre o tema, faz duas principais considerações: “em primeiro lugar, não há previsão alguma sobre um referendo acerca da iniciativa convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte. Por outro lado, ao consultar o conteúdo da sessão 41 de 9 de novembro de 1999, no Diário da Constituinte, esta Sala observou que no desenvolvimento do debate, a proposta de Constituinte de Manuel Quijada de que o povo poderia convocar a Assembleia Constituinte mediante um referendo foi negada” (Sentença 378/2017). Por fim, ressaltando uma intepretação exegética e restritiva do texto constitucional, a Sala Constitucional assinala que “a ausência de previsão é, ainda, comum para as outras modalidades de modificação constitucional, como são a Emenda (Capítulo I) e a Reforma Constitucional (Capítulo II)” (Sentença 378/2017), isto é, o referendo é apenas exigido para reafirmar o projeto de alteração delineado pela Assembleia Nacional e não um processo consultivo prévio. Apesar de o acirramento da conjuntura política, com a legalidade da proposta da Assembleia Constituinte reafirmada pelo TSJ, as eleições são organizadas perante um intenso boicote da oposição, a 30 de julho. Era hora de medir o apoio da população ao governo Maduro por meio do nível de abstenção. Uma grande pressão de ambos os lados se fez, seja para ampliar a abstenção seja para impulsionar a participação. Conforme cifras oficiais do Conselho Nacional Eleitoral, a participação foi de 8.089.320 de votantes, representando cerca de 41,5% do colégio eleitoral como um todo, um contingente expressivo. Apesar das acusações de manipulação dos números, foi uma vitória importante para o governo que ganhara fôlego e agora teria uma Assembleia Constituinte, que poderia fazer as vezes de Assembleia Legislativa. Como a estratégia de abstenção não foi vitoriosa e a oposição precisava manter suas estruturas regionais, a MUD apostou todas as suas fichas nas 221
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eleições regionais, já que o chavismo controlava 20 de 23 estados. Com o caos social e a perspectiva de derretimento da base de apoio ao governo Maduro, a MUD estimava ganhar em torno de 12 a 15 Estados. Mas abertas as urnas, o PSUV venceu em 18 de 25 estados, alcançando quase 6 milhões de votos e 53% dos votos válidos. Um recuo frente às eleições regionais anteriores, mas uma vitória expressiva se comparada às pesquisas de opinião. Com a recuperação de sua musculatura eleitoral, mesmo em meio a uma dura crise social, o impasse institucional permanecia, agora, com o elemento extra do sombreamento da Assembleia Nacional pela Assembleia Constituinte. Então, a partir da negociação frustrada realizada na República Dominicana com mediação do ex-presidente espanhol José Luis Rodríguez Zapatero – entre dezembro de 2017 até fevereiro de 2018 –, a Assembleia Constituinte, com base em seu poder originário e ilimitado, antecipa as eleições presidenciais. É importante ressaltar que novas eleições presidenciais eram um pedido da oposição, contudo a oposição estava divida em seus conflitos e estratégias, pesando ainda o fato de vários de seus candidatos estarem inabilitados e sem um líder capaz de unificar uma frente eleitoral. Com as eleições realizadas, e o boicote de parte das forças oposicionistas ainda representadas pela MUD, Maduro vence as eleições com 67% dos votos válidos, totalizando aproximadamente 6.200.000 votos com a participação de 46% dos eleitores aptos. Com a nova eleição presidencial de Maduro para o ciclo 2019-2025, acabou a possibilidade de uma solução pactuada pelo alto – muitas vezes tentada, aliás, pela oposição. Não que não estivessem presentes antes, pois sempre pairavam pelas negociações, em fundos de financiamento a “ajudas humanitárias”, mas as forças do capital transnacional e o interesse político dos Estados Unidos saem da coxia e colocam em marcha uma operação imperialista de derrubada do governo bolivariano da Venezuela sem disfarces. Se, em boa parte da América Latina, a estratégia de criminalização dos líderes políticos da “década ganada” e manobras parlamentares para golpear a vontade popular tiveram sucesso (Honduras, Paraguai, Brasil, Argentina, Peru, Equador etc.), as trincheiras institucionais impostas pelo governo bolivariano minaram essa capacidade de atuação. Aqui, nos acercamos dos acontecimentos recentes, um mergulho profundo à posição de desobediência perante o Tribunal Supremo de Justiça, quando em 23 de janeiro, o então presidente da Assembleia Nacional se autodeclara em uma manifestação de rua como Presidente da Venezuela. O principal argumen222
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to encontra-se evidente na exposição de motivos da intitulada “Ley del Estatuto para la Transición” (LET), ao afirmar que, não reconhecendo as eleições realizadas em 2018, “a partir de 10 de janeiro de 2019, Nicolás Maduro Moros continua usurpando a Presidência da República Bolivariana da Venezuela e instalou um governo de fato no país” (Ley del Estatuto para la Transición, 2019). É uma situação curiosa, que lembra a tenebrosa noite de 2 abril de 1964, quando João Goulart, presidente legítimo e em território nacional, é golpeado de suas funções e seu cargo é decretado vacante, assumindo como presidente interino o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Na Venezuela, em acordo com os EUA e seus satélites, utilizando como base o artigo 233 da Constituição Bolivariana, a Assembleia Nacional declarou a vacância do cargo a partir de 10 de janeiro em virtude da ilegitimidade das eleições de 2018 e aferrados ao artigo 333 defende o direito de resistência a regimes de força. Além disso, para superar a situação de vacância, no referido “Estatuto de Transição”, o Presidente da Assembleia Nacional é proclamado como Presidente da República (artigo 14, LET), podendo, caso não haja condições para eleições, estabelecer um governo provisório (artigos 24 a 28, LET). Um ponto que deve observado em separado é o artigo 29 do “Estatuto de Transição”: “o governo provisório poderá solicitar a ajuda da comunidade internacional com o fim de reestabelecer a soberania estatal no território da República” (Ley del Estatuto para la Transición, 2019). Este dispositivo é revelador da incapacidade que esta operação centrada em Guaidó, pelo menos em aparência, possui em constituir uma duplicidade de poderes ou mesmo em realizar um golpe de Estado contra o governo de Maduro, abrindo pontes para uma intervenção internacional. É evidente que a Sala Constitucional do TSJ, mantendo a coerência com suas decisões anteriores e diante de tamanha lesão às competências constitucionais dos poderes da república, na Sentença 6 de 2019, declarou a nulidade absoluta e a carência de efeitos jurídicos do Estatuto de Transição. A decisão é bastante dura, uma vez que considera tal iniciativa um “assalto ao Estado de Direito e a todos os poderes públicos por parte da Assembleia Nacional, órgão que se encontra em desacato e cujos atos são absolutamente nulos”. Ainda, “exorta ao Ministério Público para que se investigue penalmente a alegada materialização de condutas constitutivas de tipos delitivos contemplados na Constituição e na lei” (Sentença 6/2019, ênfase no original). 223
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Por si só, a autoproclamação seria um episódio constrangedor e visto com escárnio pela comunidade internacional, mas, evidentemente, o deputado Guaidó não decidiu este ato isoladamente. Na verdade, como a oposição não teve forças internamente para vencer as batalhas de 2017 (derrocar a constituinte e vencer as eleições regionais) e boicotou as eleições presidenciais de 2018, golpear o governo Maduro assumiu contornos absolutamente exógenos. Em primeiro lugar, o denominado Grupo de Lima, à exceção do México, não reconheceu a legitimidade e legalidade do novo mandato de Maduro. Em declaração, no dia 4 janeiro de 2019, seis dias antes do novo mandato presidencial, os países afirmavam em seu primeiro ponto: o processo eleitoral realizado na Venezuela em 20 de maio de 2018 carece de legitimidade por não haver contado com a participação de todos os atores políticos venezuelanos, nem com a presença de observadores internacionais independentes, nem com garantias e padrões necessários a um processo livre, justo e transparente. Consequentemente, não reconhecem a legitimidade do novo mandato presidencial do regime de Nicolás Maduro, que terá início em 10 de janeiro de 2019” (ITAMARATY, 4 de jan. 2019).
O Grupo de Lima, em 4 de fevereiro de 2019, mais uma vez com exceção do México, atuando em detrimento da autodeterminação dos povos e como um conjunto de países submetidos à política externa estadunidense, declarou: seu reconhecimento e respaldo a Juan Guaidó como Presidente Encarregado da República Bolivariana da Venezuela, em respeito à sua Constituição. Saúdam a decisão do crescente número de países que reconheceram o Presidente Encarregado Juan Guaidó e instam a comunidade internacional a dar-lhe seu mais forte respaldo, assim como à Assembleia Nacional, em seus esforços no sentido de estabelecer um governo de transição democrática na Venezuela. (ITAMARATY, 4 de fev. 2019).
Ainda, de forma mais grave, anunciam: “com grande satisfação o pedido do Presidente Encarregado Juan Guaidó de incorporar ao Grupo de Lima o legítimo governo da Venezuela e lhe dão as boas-vindas” (ITAMARATY, 4 de fev. 2019). Mas, para além do reconhecimento em termos de soberania externa por parte da comunidade internacional, de forma sincrônica às movimentações internas desde a Assembleia Nacional, as duas grandes tentativas de legitimação 224
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e iniciativa política no âmbito internacional se deram na Organização dos Estados Americanos (OEA) e na Organização das Nações Unidas (ONU). Já no próprio dia 10 de janeiro, quando o presidente Nicolás Maduro começaria seu novo mandato fruto das eleições de 2018, ocorreu uma manifestação da OEA em relação a sua legitimidade internacional. Tal processo teve início a partir da nota nº 7 liderada pela “Missão Permanente da Colômbia junto à Organização dos Estados Americanos (OEA)”, mas que foram signatárias também as “Missões Permanentes da Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Estados Unidos, Paraguai e Peru”, cujo teor observa que “mediante a resolução AG/RES. 2929 (XLVIII-O/18), de 5 de junho de 2018, a Assembleia Geral declarou que o processo eleitoral realizado na Venezuela, em 20 de maio de 2018, carece de legitimidade, por não ter contado com a participação de todos os atores políticos venezuelanos” (CP-OEA, Nº 019/2019). Em resumo, o pedido consistia da declaração de ilegitimidade do novo governo e não ainda em um processo de substituição, tampouco a suspensão da Venezuela da OEA. No dia da sessão extraordinária do Conselho Geral da OEA, o primeiro teste do bloco imperialista redundou em vitória com gosto de derrota, pois, mesmo com toda a mobilização, a resolução foi aprovada com apenas 19 votos, 6 contrários e 8 abstenções. O gosto de vitória: o texto da Resolução 1.117/2019, que fora aprovado sem alteração ao proposto inicialmente pela Missão Colombiana, dispôs: “1. Não reconhecer a legitimidade do mandato do regime de Nicolás Maduro a partir de 10 de janeiro de 2019. [...] 4. Fazer um chamado à realização de novas eleições presidenciais com todas as garantias necessárias a um processo livre, justo, transparente e legítimo, em data próxima, com a presença de observadores internacionais” (CP-OEA, RES.1117/2019). O amargor decorre de que o não reconhecimento internacional não significa a afirmação de uma duplicidade de poderes e, para tanto, seria necessário ativar uma espécie de cláusula democrática (artigos 20 e 21 da Carta Democrática Interamericana), sendo que o procedimento exigiria sua discussão inicial no Conselho Geral por maioria absoluta (18 votos) e sua confirmação em sessão extraordinária da Assembleia Geral por maioria qualificada (24 votos). Em ato que demonstra nitidamente a orquestração internacional para forjar uma relação de dualidade de poderes na Venezuela, antes mesmo de Guaidó publicizar sua autoproclamação nas ruas de Caracas no dia 23 de janeiro, no dia 18 de janeiro, sem estabelecer prepostos, a própria Missão Permanente dos 225
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Estados Unidos solicita uma sessão extraordinária “a fim de considerar os recentes acontecimentos na Venezuela” (CP-OEA, INF. 8180/19). Entra em cena a figura emblemática de Mike Pompeo, que tenta por todos os meios traduzir a vitória de Pirro de 10 de janeiro em uma vitória real na sessão convocada extraordinariamente para o dia 24 de janeiro. Ao olhar da política externa estadunidense, por meio da OEA deveria se sacar duas conquistas: o reconhecimento pela maioria dos membros da OEA de Juan Guaidó como presidente legítimo e a suspensão da Venezuela da OEA enquanto durar a suposta usurpação de poder. Ocorre que, apesar das pressões impostas pelos Estados Unidos, apenas 16 países (3 a menos que em 10 de janeiro) manifestaram seu apoio em simples comunicado a Guaidó. Um gigantesco fracasso vendido como vitória para a mídia internacional, isto é, menos da metade dos países americanos aceitaram a inusitada fórmula imperialista. Com os esforços diplomáticos fracassados na América Latina, já no dia 26 de janeiro, os Estados Unidos partiram para um esforço de aglutinação e denúncia em âmbito mundial, recorrendo a uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU. Por óbvio, pela própria lógica de funcionamento do conselho, onde figuram com poder de veto os dois grandes gigantes da geopolítica aliados do governo constitucional da Venezuela (Rússia e China), o intento era angariar maior apoio internacional a Guaidó e legitimar um possível cenário de intervenção, mesmo que ao pior estilo Iraque. Pela primeira vez, a Venezuela foi protagonista do Conselho de Segurança da ONU. Os EUA basearam-se na crise humanitária e migratória vivida pelo povo venezuelano para justificar a inclusão emergencial do caso em pauta. Em declaração concedida antes da sessão, Pompeo afirmou sem meias palavras: “Agora, temos um novo líder, Juan Guaidó, na Venezuela, que prometeu trazer as eleições e a ordem constitucional de volta à Venezuela e a segurança de volta à região. Não podemos protelar essa conversa crucial que tem a atenção do mundo. Para o bem da Venezuela e da região, devemos apoiar o povo venezuelano e fazê-lo agora mesmo” (U.S. DEPARTAMENT OS STATE, 2019). De outro lado, o representante russo Vassily Nebenzia defendeu: “Não vemos quaisquer ameaças externas na situação da Venezuela. Se há algo, é a ação despudorada dos Estados Unidos e seus aliados – visando à destituição de um governo legítimo, em violação do direito internacional e a tentativa de colocar em marcha um golpe de Estado na Venezuela” (UNITED NATIONS, 2019). 226
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Em primeiro lugar, ocorreu um debate preliminar acerca da necessidade de incluir em pauta o caso venezuelano. Restou claro desde o início, para além da Venezuela, que o duelo mais áspero se daria entre os representantes dos Estados Unidos e Rússia. Envolvidos em disputas geopolíticas por todo o globo, tendo como lamentáveis destaques o caso da Síria e da Ucrânia. Nesse sentido, sobre o tema, votaram os membros permanentes e não-permanentes e “por uma votação processual de 9 favoráveis (Bélgica, República Dominicana, França, Alemanha, Kuwait, Peru, Polónia, Reino Unido, Estados Unidos), 4 contra (China, Guiné Equatorial, Federação Russa, África do Sul), com 2 abstenções (Costa do Marfim e Indonésia), o item foi incluído na pauta” (UNITED NATIONS, 2019). A respeito do debate sobre a questão venezuelana, o Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG) avaliou que se “destacaram por sua agressividade os representantes da Colômbia, Peru, Brasil, Chile e Argentina. Chile falou em ‘abrir um canal humanitário’ e o Peru pediu a atuação da ONU amparando-se no Art. 34 da Carta” (TIRADO; ROMANO, 2019). Fica evidente que a política estadunidense de desestabilização política na América Latina produziu um alinhamento representativo, pois, além do antibolivarianismo alimentado como espectro ou inimigo, tais países sofreram danos diretos da guerra econômica na Venezuela com a situação dos refugiados. A posição belicosa do grupo de Lima exortando por intervenção externa na Venezuela, seja com canal humanitário ou com a ativação do artigo 34 – investigação da ONU de possível situação de guerra entre nações, que poder redundar em atuação de forças militares comandadas pela ONU (uma intervenção imperialista clean). Apesar do acalorado combate verbal, contraditado por forças pró-Venezuela de maneira contundente a partir das declarações de Cuba e Bolívia em particular, não havia dúvida de que os donos do tabuleiro eram EUA, Rússia e China. A União Europeia, por cima de suas contradições internas, manteve-se numa posição medíocre de ultimato para novas eleições em 8 dias, em outras palavras, um apequenado apoio velado à política estadunidense. Com o poder de veto de China e Rússia e estruturada em uma histérica denúncia dos males do bolivarianismo para o mundo, como era de se esperar, nada foi deliberado e sequer posto a votação. Ao final, o representante russo, Nebenzia, “relembrou como mais cedo o Sr. Pompeo afirmou que sua posição era compartilhada pela maior parte do mundo, mas os alto-falantes hoje foram quase igualmente divididos sobre o assunto. [...] ‘Então, qual era o ponto para a convocação desta reunião hoje? [...]’. 227
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Dê aos venezuelanos uma chance para resolver os seus próprios problemas, mas não os boicote em suas tentativas” (UNITED NATIONS, 2019). Nesta linha, a análise da CELAG explica que na sessão “participaram 30 países, os 15 membros permanentes e não permanentes e 15 Estados que solicitaram participação, entre eles a República Bolivariana da Venezuela (RBV). Ainda que não tenha havido votação final, pois não foi apresentada nenhuma resolução, as posturas ficaram dividas entre uma maioria de países, 19, a favor do diálogo e da negociação (20 se incluímos a RBV5) e 176 países favoráveis à ingerência” (TIRADO; ROMANO, 2019). A partir dessa ofensiva diplomática fracassada de utilizar os canais diplomáticos e o direito internacional como faces da luta de classe, só restou a saída de confrontação imperialista destituída de legitimidade internacional pelo território e recursos naturais venezuelanos. O “frágil” governo Maduro, desta vez sem trocadilho, parece dar mostras suficientes de resistência interna e externa nessa dura e assimétrica batalha econômica e territorial. No atual momento em que escrevemos este artigo, porém, a cronologia continua a se desenrolar e não podemos prever o rumo dos acontecimentos. Em nível internacional, o imperialismo se esforça por legitimar-se divulgando sua ingerência externa como ajuda humanitária. Como reação, o governo de Maduro fecha suas fronteiras, rompe relações diplomáticas com a Colômbia, posiciona mísseis de defesa aérea na fronteira com o Brasil e exclui o espaço aéreo venezuelano da normalidade de tráfego internacional. Enquanto isso, Guaidó discursa na fronteira da Colômbia, pousando ao lado dos presidentes colombiano (que não reconhece o rompimento das relações diplomáticas com os venezuelanos) e chileno, exortando os militares a abandonarem Maduro. Do mesmo modo, conflitos forjados nos limites entre estes países ganham visibilidade no noticiário, assim como há forte adesão popular ao chavismo nos grandes centros urbanos. Eis uma história analisada em tempo real, com Pachukanis voando de Moscou para Caracas.
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Conforme estudo da CELAG: África do Sul, Antígua e Barbuda, Barbados, Bolívia, China, Costa do Marfim, Cuba, Dominica, El Salvador, Guiné Equatorial, Indonésia, Kuwait, México, Nicarágua, República Dominicana, Rússia, São Vicente e Granadinas, Suriname, Uruguai (TIRADO; ROMANO, 2019).
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Conforme estudo da CELAG: Alemanha, Argentina, Bélgica, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica Estados Unidos, Equador, França, Honduras Paraguai, Panamá, Peru, Polônia, Reino Unido (TIRADO; ROMANO, 2019).
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2.2. Considerações pachukanianas sobre o Direito na crise da Venezuela A partir da cronologia acima, cabe-nos agora uma breve e limitada – por tempo, espaço e distanciamento histórico – análise jurídico-crítica a respeito do papel do direito e, notadamente, do direito internacional no caso da crise venezuelana. Considerando que o direito internacional, segundo o jurista soviético, guarda consigo a expressão dúplice de ser portador de uma forma jurídica em nível internacional, mas também índice de confronto e guerra nos termos das relações internacionais capitalistas, percorremos quatro possíveis momentos de uma abordagem que levará em conta, a partir do caso da Venezuela, o papel das formas jurídicas, a avaliação a respeito de uma dualidade de poderes supostamente vivida no país, o sentido da atuação dos organismos internacionais neste contexto, bem como a disputa pelos recursos naturais que abundam entre os venezuelanos. E assim se esboça – reconheçamos nossos limites – uma passada em revista do coetâneo clima de Caracas para o jurista soviético.
2.2.1 O papel das formas jurídicas: das disputas legais e judiciais às comerciais O primeiro aspecto que pode e deve ser destacado de uma contribuição pachukaniana para o debate a respeito da crise pela qual passa a Venezuela a partir do enfoque que colaciona aspectos nacionais e internacionais é o da atuação da forma jurídica como sustentáculo do próprio direito internacional em um contexto do capitalismo marcado por um mercado cada vez mais agudamente mundial. Assim é que, de um lado, há todo o desenvolvimento de dimensões normativas do direito, a partir da hegemonia do paradigma constitucional para a explicação e fundamentação do fenômeno jurídico. Pachukanis já percebera isso quando escrevera, no terceiro volume da “Enciclopédia do estado e do direito”, um verbete sobre “O objeto do direito”: “tais construções dogmáticas formais – categorias jurídicas desprovidas de significado econômico – são típicas do tempo presente em que o papel dominante na jurisprudência burguesa, particularmente na elaboração de questões gerais, passou dos civilistas para os publicistas” (PACHUKANIS, 1980, p. 184).
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Nesse sentido, a promulgação de uma Constituição, como a que a Venezuela concebeu em 1999 após um processo constituinte; a estatuição de poderes de estado, que no caso venezuelano são cinco; a edição de um conjunto legislativo infraconstitucional (que regulou desde as riquezas petrolíferas até a reforma agrária); a existência de um corpo jurídico de estado especializado; e a possibilidade para que demandas processuais-constitucionais, para além de as dos demais chamados ramos do direito, se desdobrassem; tudo isso faz parte de uma dimensão do direito que não pode ser desprezada, ainda que não possa, igualmente, ser tomada como essencial. É nesse sentido que acolhemos a formulação de que se trata de exemplos da forma jurídica aparente, ou seja, as dimensões normativas e jurisprudenciais que buscam medrar o direito, autonomizando, ainda que parcialmente, de sua forma essencial (PAZELLO, 2014). De outro lado, a aparição mais nua da forma jurídica em suas dimensões contratuais e sancionatórias, ainda que muitas vezes mediada pela ação de um estado nacional, pode ser visualizada na guerra comercial na qual foi a Venezuela envolvida. Por exemplo, os Estados Unidos promoveram sanções contra o governo de Maduro, em especial após a autoproclamação de Guaidó como presidente. Trump ordenou sequestro de ativos externos da PDVSA, na ordem 20 bilhões de dólares, bem como repasse da titularidade de contas bancárias ao suposto novo presidente venezuelano. Por seu turno, Guaidó se comprometeu, publicamente, com a criação de uma nova Lei de Hidrocarburetos, a qual, evidentemente, beneficiará a economia dos países imperialistas que apoiam a destituição de Maduro. No entanto, o governo chavista reage e busca acordos de cooperação e de investimentos com a China e com a Rússia, nos setores petrolífero, energético e de mineração aurífera, bem como alianças militares, como as que os exercícios com aviões bélicos russos em território venezuelano demonstraram. Cada um dos polos, pois bem, busca demonstrar a força que aglutinou. Com referência a este outro lado da forma jurídica, vemo-la aparecer mais nitidamente, dando vez ao que consideramos seja sua forma essencial (PAZELLO, 2014), por expressar a garantia da circulação mercantil, ainda que atravessada por disputas geopolíticas até o nível militar. Para usar as palavras de um dos muitos analistas que buscou interpretar a situação a quente: “a intervenção militar e a dívida externa são dois mecanismos de invasão e consolidação do domínio imperialista” (ZÚÑIGA, 2019). Como fica explícito, a análise do Pachukanis da década de 1920 já adiantara e compreende muito bem tais mecanismos. 230
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2.2.2 Dualidade internacional de poderes nacionais? Como uma espécie de decorrência do papel das formas jurídicas, temos a inusitada situação de disputas simbólicas pelos poderes de estado. Pela Carta Constitucional de 1999, são cinco os poderes de estado: para além de o arranjo liberal clássico que costuma se dividir em executivo, legislativo e judiciário, os venezuelanos criaram o poder eleitoral e o poder cidadão. Pois bem, desde que instaurada a crise venezuelana, muito se tem falado de uma situação de duplicidade de poderes de estado, a qual se traduziria na consequente existência de duplicidade de comando das instituições venezuelanas. Vários analistas têm lembrado as formulações de Lênin, às vésperas da revolução de 1917, quando ele teorizou sobre a aparição de uma dualidade de poderes entre o governo provisório e os sovietes. No entanto, a situação da Venezuela está distante de tal formulação. A não ser que concebamos a existência de uma dualidade de poderes apenas em nível internacional. Isto porque esta disputa institucional tem três grandes exemplos, referentes aos três poderes clássicos (logo, não diz respeito aos cinco poderes constitucionais). O primeiro deles diz respeito ao poder judiciário que, como dissemos acima, aparece como um dos primeiros atores a gerarem a crise na Venezuela. Diante da nomeação de novos magistrados e da hegemonia governista no TSJ, a oposição resolve criar um tribunal superior paralelo, o qual, no entanto, só atua no exílio e não tem quase nenhuma capacidade efetiva em território nacional, a não ser ideológica e simbolicamente. O segundo exemplo remente ao legislativo (Assembleia Nacional, dominada pela oposição, e Assembleia Constituinte) que, apesar de real, está às vésperas de perder sentido, já que haverá eleições para deputados em breve. E o terceiro dos exemplos é que se refere ao mais recente dos episódios da crise, a quase cômica, não fosse trágica – pelo apoio internacional que recrutou, o qual, na verdade, era seu pressuposto –, autoproclamação de Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, como presidente interino da Venezuela, destituindo Maduro de suas funções a partir de uma interpretação enviesada da Constituição de 1999. Ocorre, porém, que uma corte que julga desde Miami (ou outras cidades fora da Venezuela) não tem efetivo poder judicial algum. Da mesma maneira, um presidente que não tem poderes efetivos sobre quaisquer instituições e órgãos de estado a não ser o próprio parlamento do qual já se possuía a liderança 231
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não permite configurar uma dualidade de poderes. É evidente, porém, que há manobras internacionais para se conferir eficácia a Guaidó, pela via das sanções recrudescidas ao governo de Maduro, bem como pelas, por enquanto, tentativas brancas de intervenção no país, como as relativas às ajudas humanitárias (que os generosos doadores externos recusam em entregar ao governo chavista que tem a efetiva capilaridade e estrutura para distribuí-las). Assim, vale lembrar que o capital – e sua mídia – também pode angariar, extensivamente, um caráter de poder, neste caso social, e a depender de sua habilidade, ser capaz, aí sim, de conferir musculatura aos pretensos poderes da dualidade. Apesar de não ser temática própria às preocupações teóricas de Pachukanis, mencionamos a situação, já que ela costuma aparecer nos debates sobre o caso e, em geral, se citam os líderes políticos soviéticos aos quais o nosso jurista se vinculava. Depurar a inexatidão de atribuir à Venezuela de hoje uma dualidade de poderes é necessário, pois Lênin (1980) concebeu a noção a fim de separar o poder que se encarapitava no Estado daquele advindo das massas trabalhadoras, o que não parece ser o caso de Guaidó e seus anteparos.
2.2.3 Organismos Internacionais: reflexo de relações específicas de forças Assim como dissera Pachukanis a respeito das organizações internacionais, aconteceu no caso venezuelano. Retomando sua fórmula: “a própria composição dessas comissões [internacionais] reflete perfeitamente relações específicas de forças” (PACHUKANIS, 1980, p. 171). Visualizando como o momento ideal de desestabilizar o governo antissistêmico de Maduro, o imperialismo, capitaneado pelos Estados Unidos, patrocina – no mínimo, com seu decisivo apoio – o golpe de Estado dentro da Venezuela. Diante da crise interna, tratava-se de apear do poder um governo menos comprometido com a lucratividade do capital de países centrais (pelo menos, um dos menos comprometidos na história do país) e que, afora sua gigantesca reserva de petróleo, assumiria a presidência da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), peça bastante importante no tabuleiro da economia internacional. Nesse contexto de jogo de forças, apesar de várias investidas internacionais contra a Venezuela não terem obtido seu programa máximo, ainda assim 232
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o direito internacional mostrou sua verdadeira face. Como vimos, o imperialismo moveu suas peças muito antes da autoproclamação de Guaidó, no caso do pedido de sessão extraordinária da OEA que atesta ilegitimidade da vitória eleitoral de Maduro, bem como na rapidez com que foi convocada a reunião após a autoproclamação, com diminuição do número de países que apoiariam a fórmula ianque de desestabilização da Venezuela. Do mesmo modo, a reunião da ONU explicitou o conflito geopolítico entre EUA e Rússia, uma “nova guerra fria” como vários analistas a isto vêm se referindo, demarcando os limites do “jurídico” no plano internacional. Mesmo que na Organização das Nações Unidas e em seu Conselho de Segurança, assim como na Organização dos Estados Americanos, a diplomacia tenha conseguido importantes, apesar de talvez provisórias, vitórias, bem como o apoio ou neutralidade de alguns países importantes na conjuntura (China, Rússia, Itália, Turquia, México, Uruguai, Bolívia e os países da Comunidade do Caribe – CARICOM), ainda assim as relações específicas com quase toda a Europa Ocidental, a América Latina e a América Anglo-Saxã foi dilapidada. Ademais, ganhou visibilidade o Grupo de Lima, encabeçado por Canadá, Brasil, Argentina e Peru, além de a mão paternal ianque, que não faz parte do grupo, mas acompanha as discussões. O Grupo de Lima surgiu em 2017 justamente para acompanhar e intervir na conjuntura política venezuelana. Esta conjunção, nada astral, entre Europa e Américas contra a Venezuela mostra-se como uma verdadeira guerra que parece ter por escol não outro senão o de “estrangular a economia venezuelana baixando o preço do petróleo”. A arguta interpretação da iraniana Nazanín Armanian (2019) converge com o cru diagnóstico de Pachukanis sobre o direito internacional: faz tempo que a guerra deixou de ser “o último recurso para resolver o conflito entre os estados” para se converter em um suculento negócio. Agora, haveria de se esperar “incidentes de bandeira falsa” com o fim de “justificar” ante a opinião pública uma intervenção agressiva dos EUA. Ainda estamos em tempo para impedir uma nova guerra, desta vez contra o povo venezuelano.
Oxalá este tempo seja aproveitado, já que não sabemos qual será o desfecho desta situação, uma vez estamos a escrever o presente artigo no calor dos acontecimentos.
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2.2.4 “Toda troca é a continuação de um conflito armado e o prelúdio do próximo”: o petróleo venezuelano e a forma jurídica dependente O direito internacional mostra, no caso venezuelano, toda a sua potencialidade que, por óbvio, é negativa, seguindo a interpretação de Pachukanis. A sanha imperialista, com suas duas grandes fomes – a partilha econômica e a partilha territorial do mundo –, aparece com vigor a partir do caso crítico da Venezuela por pretender assenhorear-se de recursos naturais nobilíssimos nos tempos de hoje (petróleo e ouro, sobretudo), mas também para pôr um termo na contestação representada pelos bolivarianos em nível internacional. Com o enfraquecimento das condições internas da Venezuela, surge a oportunidade definitiva para o imperialista dar seu bote e extirpar a barulhenta contra-hegemonia chavista, no continente, perigosamente próxima, aliás, de contendores do capitalismo euroamericano, na grande geopolítica mundial, como o são Rússia e China. Assim sendo, o que antes era compromisso – como o que descreveu Pachukanis quanto ao que chamou de período de transição do direito internacional burguês em face da atuação soviética – passa a ser possibilidade de restauração neocolonial, inclusive em nível militar. Por isso, a questão do petróleo e demais recursos naturais não pode nunca estar fora de questão. A maior reserva deste recurso, no mundo, encontra-se na Venezuela, ainda que subexplorada e, portanto, entregue em qualidade inferior no mercado mundial. Este fato não pode ser menosprezado. A formulação de um analista – mais um a quente – expressa bem o que se passa: O petróleo não é a causa de todos os conflitos do sistema internacional. Mas não há dúvida que a grande centralização de poder que está em curso dentro do sistema interestatal também está transformando a permanente luta pela “segurança energética” dos estados nacionais, numa guerra entre as grandes potências pelo controle das novas reservas energéticas que estão sendo descobertas nestes últimos anos. Uma guerra que se desenvolve palmo a palmo, e em qualquer canto do mundo, seja no território tropical da África Negra, ou seja nas terras geladas do Círculo Polar do Ártico; seja nas turbulentas águas da Foz do Amazonas, ou seja na inóspita Península de Kamchatka. Mas não há dúvida que as 234
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descobertas mais importantes e promissoras deste início de século, foram a das areias betuminosas do Canadá, do pré-sal brasileiro, e a do cinturão do rio Orinoco, na Venezuela. O cinturão do Orinoco transformou a Venezuela na maior reserva de petróleo do mundo, calculada hoje em 300 bilhões de barris (FIORI, 2019).
Assim sendo, o esgarçamento das possibilidades de o petróleo se tornar um objeto de trocas comerciais em condições “normais” – vale dizer, inquestionada a dependência de seus possuidores, como a Venezuela, ante as grandes potências – faz com que a prédica pachukaniana se atualize, quase cem anos depois: “toda troca é a continuação de um conflito armado e o prelúdio para o próximo” (PACHUKANIS, 1980, p. 169). Os barris de petróleo, mesmo quando mercantilizados normalmente, eram o devir de uma guerra ou sua antecipação, em condições desfavoráveis para o vendedor. O sujeito, aqui, é a petroleira venezuelana, a PDVSA. E ainda que em condições bem menos ousadas que as da União Soviética dos anos de 1920, não deixa de fazer sentido o apelo geopolítico de Pachukanis, ao denunciar os arroubos do colonialismo e do imperialismo. Eis, portanto, a presença de uma acumulação originária permanente que se viabiliza ou por uma forma jurídica dependente (PAZELLO, 2016) ou pelo achaque direto que toda atuação belicista costuma desempenhar. Desse modo, conclui-se a extensão dos argumentos pachukanianos a respeito do direito complexificados pela análise do direito internacional, indo da tipicidade da forma jurídica (ou mesmo sua defectividade, como entendemos nós, desde uma mirada latino-americana) até o conflito direto, protagonizado pelas potências imperialistas.
Considerações finais: por onde andará a América Latina? O que o caso venezuelano, eloquentemente, nos ensina? Em primeiro lugar, que precisamos estar atentos para nossas questões geopolíticas concretas. Não há marxismo que resista ao distanciamento da realidade, por mais desejável que seja a reflexão e explicação teórica do mundo. Em segundo, que Pachukanis, mesmo refletindo desde Moscou, serve como um bom marco referencial para pensarmos o papel do direito nos dias de hoje. Neste caso, o direito internacional serve, inclusive, de vetor para perce-
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bermos o entrelaçamento da forma jurídica com os métodos mais abertamente espoliativos com os quais o capital atua. Por sua vez, Pachukanis em Caracas, apesar de suas dificuldades de adaptação imediata aos trópicos, resiste, com a extensão e atualização de suas análises para os problemas atuais. Ao invés de ser autor ultrapassado, apresenta-se como intérprete-chave para avançar em uma crítica marxista ao direito. Aqui, visualizamos o papel das formas jurídicas, a partir do caso concreto, debelamos a identificação de uma dualidade de poderes, avalizamos o entendimento de que os organismos internacionais são resultantes de relações de forças específicas, bem como denunciamos o assalto ao petróleo como, a um só tempo, uma forma jurídica dependente bem como um método de acumulação originária permanente do capital. Mas, mais do que isso, descrevemos um caso exemplar de ataque imperialista que se não derrotado colocará em risco nosso futuro como sociedades que possam viver em condições mais justas e igualitárias, para além do capitalismo. Nesse sentido, a premonição de Katz (2019) parece bastante ciosa da realidade: “se os golpistas lograrem derrotar o chavismo, avançarão imediatamente sobre Bolívia e Cuba, para estender o autoritarismo neoliberal a todo o continente. Na Venezuela, disputa-se o freio ou a extensão dessa onda reacionária”. Sendo assim, à pergunta “por onde andará a América Latina?” poderemos responder apenas com a força de nossa resistência ao imperialismo, defendendo a paz na Venezuela e denunciando a guerra que o império quer impor.
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Imperialismo via Espoliação e Novo Constitucionalismo LatinoAmericano: Contradições e Desafios Márcio Morais Brum1
Introdução Por suas riquezas naturais abundantes, extensão territorial e capacidade de absorção de capitais internacionais, a América Latina continua no centro das disputas geopolíticas de poder. Após a crise financeira internacional de 2008 e o crescente aumento das competições internacionais, o imperialismo promove forte ofensiva na América Latina, com vistas a uma super-exploração de recursos naturais e força de trabalho. Nesta empreitada, o imperialismo avança de forma predatória, via espoliação, à revelia das leis de mercado. O capitalismo precisa de um fundo de ativos para contornar pressões de sobreacumulação e se esses ativos, como terra ou novas fontes de matérias-primas, não estiverem à mão, tenta produzi-los forçando os territórios a se abrirem ao comércio e permitirem que o capital invista em negócios lucrativos usando terra, matéria-prima e força de trabalho baratas. Porém, na América Latina, as investidas do capital financeiro internacional têm, historicamente, enfrentado alguns obstáculos de ordem política e jurídica. A exemplo disso, a partir dos anos 2000, em Bolívia e Equador, as lutas populares anti-imperialistas levaram à promulgação de novas constituições nacionais caracterizadas por uma afirmação mais enfática de suas soberanias frente ao colonialismo e ao imperialismo dos países capitalistas centrais. Neste contexto caracterizado, de um lado, pelo avanço do imperialismo via espoliação sobre a América Latina e, de outro, pelas novas constituições de países 1
Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bacharel em Direito pela mesma instituição. Integrante do Núcleo de Direito, Marxismo e Meio Ambiente (NUDMARX) da UFSM. E-mail: [email protected]
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como Equador e Bolívia, que instituem o princípio do buen vivir e os direitos da Pachamama, o capítulo pretende analisar a relação entre imperialismo via espoliação e novo constitucionalismo latino-americano, com vistas a responder: que tipo de relação há entre os dois conceitos/fenômenos? São eles antitéticos um em relação ao outro? Pode-se dizer que o novo constitucionalismo latino-americano constitui um movimento e/ou conjunto jurídico normativo anti-imperialista? Com isso, a investigação busca tecer uma síntese sobre a relação entre imperialismo e novo constitucionalismo latino-americano. São questionamentos importantes cujas respostas podem ajudar a compreender as possibilidades e limites do próprio direito (constitucional) contra os fluxos do capital financeiro e suas práticas espoliatórias. Ao mesmo tempo, podem contribuir para verificar quais avanços produzidos pelo novo constitucionalismo poderiam ser re-produzidos pelos demais países da região, com as devidas adequações às suas realidades sociais particulares. Para responder ao problema de pesquisa, os autores adotam a revisão bibliográfica como técnica de pesquisa. Observam, de partida, que a relação entre imperialismo via espoliação e o novo constitucionalismo latino-americano é, ao mesmo tempo, uma relação entre conceitos e uma relação que se estabelece na realidade concreta. De um lado, o imperialismo avança sobre a América Latina por meio da desestabilização de regimes democráticos, privatizações, abertura de mercados ao capital financeiro internacional, compra de terras e avanço do agronegócio. De outro lado, o novo constitucionalismo impõe medidas no sentido contrário: a nacionalização de setores estratégicos da economia, a regulação dos mercados pelo Estado, limitações ao latifúndio, incentivo a modos de produção familiares e comunitários, democratização da política e da administração do Estado, etc. Tendo isso em vista, a investigação procede a partir de dados sobre o avanço do novo imperialismo na América Latina (especialmente os estudos sobre a estrangeirização da terra e o agronegócio) que são confrontados com as normas constitucionais de Bolívia e Equador a fim de chegar a uma síntese sobre a relação entre imperialismo via espoliação e novo constitucionalismo.
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1. Imperialismo via espoliação na América Latina Segundo o discurso oficial dos EUA, a América Latina ocupa lugar secundário em suas estratégias geopolíticas. As prioridades do imperialismo norte-americano seriam Oriente Médio, Israel, Irã, Europa, Extremo Oriente (China, Coreias e Japão), Ásia Central, e só finalmente, América Latina e África. Atilio Borón (2014) não exita em dizer que esse discurso oficial dos EUA constitui uma das maiores falácias da história da diplomacia mundial. Por seu valor estratégico, pela importância e impacto regional e pela abundância de recursos naturais, a América Latina é a região do mundo mais importante para os EUA (BORÓN, 2014). A região amazônica guarda uma riqueza natural inestimável, composta por uma megabiodiversidade, minerais estratégicos, petróleo e água. Por esta razão, o continente tem estado desde o século XIX na mira imperialista, inicialmente, do imperialismo das potências industriais europeias, depois do imperialismo norte-americano, e hoje, também na mira do imperialismo chinês. A América Latina, em suas relações com os centros econômicos capitalistas, ocupa posição subordinada e dependente. Dependência significa a subordinação internacional dos países latino-americanos, cujas relações de produção são modificadas para assegurar a reprodução do capital e da própria dependência em relação aos países centrais. A doutrina da dependência, formulada por teóricos latino-americanos na década de 1960, funciona como complemento à teoria do imperialismo naquilo em que esta, na sua versão clássica, mostra-se insuficiente para explicar a maneira de reprodução do capital no interior das nações periféricas e o papel que estas desempenham na manutenção do sistema capitalista. Embora Hilferding, Lenin, Rosa Luxemburgo e Bukharin tenham apontado a lógica de funcionamento do imperialismo a partir da qual se pode compreender as razões e o modo como os países periféricos são levados à situação de dependência, suas discussões são insuficientes para explicar o desenvolvimento econômico de regiões como a América Latina. A teoria da dependência mostra como o subdesenvolvimento está conectado com a expansão dos países industrializados, de modo que desenvolvimento e subdesenvolvimento são dois lados da mesma moeda e o subdesenvolvimen-
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to não pode ser considerado como a condição primeira ou ponto inicial de um processo evolucionista que tem o desenvolvimento como linha de chegada (AMARAL, 2013). Marini (2008) observa que países como Argentina, México e Brasil nunca chegaram a conformar uma economia verdadeiramente industrial que acarretasse uma mudança qualitativa no desenvolvimento econômico desses países. Pelo contrário, suas indústrias estiveram sempre subordinadas à produção e exportação de bens primários. A pequena indústria latino-americana, hoje, continua inserida no quadro da divisão internacional do trabalho que transfere aos países dependentes as etapas inferiores da produção industrial e reserva aos centros imperialistas as etapas mais avançadas e o monopólio da tecnologia correspondente. A presença crescente do capital estrangeiro no financiamento, comercialização e produção dos países latino-americanos transfere grande parte dos bens produzidos aos países industriais e o montante de capital cedido mediante operações financeiras cresce mais depressa que o saldo comercial. No contexto da crise financeira mundial agravada a partir de 2008, uma das saídas encontradas pelo capital internacional foi a ofensiva neo-extrativista sobre os países periféricos. Na América Latina, tal ofensiva tomou a forma de investimentos na compra ou arrendamento de terras para produção agrícola e pecuária. A crise alimentar surgida nesse período, relacionada ao aumento e volatilidade dos preços agrícolas, gerou maior preocupação e interesse pela apropriação de terras. No cenário global, o número de fundos de investimento operando nos setores da agricultura e alimentação passou de 33, em 2005, para 240, em 2014, manejando 45 bilhões de dólares em ativos, em escala mundial. Esses fundos arrendam ou compram grandes extensões de terra para produção de matérias-primas destinadas à exportação. Além disso, “ofrecen a empresas extranjeras la ventaja de asociarse con actores locales para aprovechar ventajas fiscales y subsidios o evadir posibles restricciones a la compra de tierras” (OXFAM, 2016, p. 43). Essas empresas têm realizado megafusões que fortalecem o poder econômico de um pequeno grupo de corporações que já era oligopólico. Isto elimina a concorrência entre elas e leva pequenas empresas do ramo à falência. Os novos monopólios podem fixar preços especulativos e estabelecer modelos de negócio dependentes de sementes transgênicas e pesticidas formulados para uso combi-
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nado. Em médio prazo, terão capacidade para consolidar o controle oligopólico e corporativo da produção e distribuição de alimentos (COLQUE, 2016). O crescimento do interesse e da busca por terras tem relação com o aumento da demanda por alimentos, agroenergias e matérias-primas provocado pelos novos padrões de consumo da classe média nos países de rápida urbanização. O subcontinente latino-americano, com suas aptidões agrícolas, é chamado a atender ao crescimento da demanda mundial por grãos como soja, milho, trigo, carne bovina, frango, frutas, vinho e reflorestamento para fins industriais, o que tem gerado o crescimento das indústrias extrativistas e a intensificação dos processos espoliatórios de concentração e estrangeirização das terras. Relatório da FAO publicado em 2012, intitulado “Dinámicas del mercado de la tierra en América Latina y el Caribe: concentrición y extranjerización”, mostra o fenômeno da explosão de operações comerciais (trans)nacionais de terras e especulação que tem ocorrido em torno da produção, venda e exportação de alimentos e biocombustíveis. Este fenômeno, em espanhol denominado acaparamiento de tierras, e em inglês, land grabbing, pode ser traduzido por “apropriação de terras” ou “neogrilagem” de terras no mundo. O relatório da FAO demonstra que esse fenômeno tem levado à concentração e estrangeirização da propriedade da terra na América Latina, com o consequente controle privado e estrangeiro de recursos naturais especialmente sensíveis aos países da região como as reservas da biosfera amazônica, os recursos de água doce, turismo, energia, minerais e outros. Atualmente, os níveis de concentração e estrangeirização da terra e dos recursos naturais tem aumentado para além da realidade observada na década de 1960. O último estudo da Organização Internacional OXFAM, intitulado “Desterrados: tierra, poder y desigualdad en América Latina”, publicado em novembro de 2016, confirma que a América Latina continua sendo a região do mundo mais desigual quanto à distribuição da terra. O coeficiente de Gini para a terra indicador entre 0 e 1 onde 1 representa a máxima desigualdade - é de 0,79 para o conjunto da região, sendo 0,85 na América do Sul e 0,75 na América Central. São níveis de concentração superiores aos observados na Europa (0,57), África (0,56) ou Ásia (0,55) (OXFAM, 2016). No conjunto da região, o 1% das propriedades de maior extensão concentra mais da metade da superfície agrícola, isto é, 1% das propriedades concentra 247
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mais terra que os 99% restantes. As grandes fazendas são explorações agropecuárias que possuem, em média, 2.000 hectares (aproximadamente 4.000 campos de futebol), embora essa média seja bem mais elevada em países do Cone Sul, como Argentina, onde o tamanho médio das maiores propriedades é superior a 22.000 hectares (OXFAM, 2016). No extremo oposto, as pequenas propriedades formam um setor majoritário ao qual pertencem quatro de cada cinco explorações agropecuárias da região. Segundo cálculos da OXFAM (2016), no total, as pequenas propriedades utilizam menos de 13% da terra produtiva e sua superfície média é de 9 hectares na América do Sul e 1,3 hectares na América Central. O cálculo geral da situação demonstra que, na região, 32 pessoas privilegiadas, donas das grandes empresas, acumulam a mesma riqueza que os 300 milhões de pessoas mais pobres. A concentração da terra é mais marcante no Brasil e na Argentina, mas se evidencia em outros países da região, situação que acarreta um novo tipo de latifúndio e de conflitos de soberania territorial. A intensificação da centralização das propriedades rurais, com a comercialização de vastas superfícies de terra na América do Sul vem sendo feita por grandes empresários, empresas internacionais de grande porte e por governos de países que desejam aumentar seu acesso a recursos naturais (VITTE, 2014). Na Argentina e no Brasil, onde os fenômenos da concentração e estrangeirização de terras é mais acentuado, tem-se verificado uma expansão no tamanho das fazendas e notórios casos de compra ou arrendamento de terras por empresários e Estados estrangeiros. Os casos de compra de terras por empresas estrangeiras envolvem centenas de milhares de hectares e grandes fortunas internacionais. Conforme dados consolidados pelo Observatório Global Land Matrix, entre os anos 2000 e 2015, empresas norte americanas participaram da compra de aproximadamente 591.327 hectares de terra na Argentina e 351.784 hectares no Brasil (LAND MATRIX, 2016). Para garantir a segurança no fornecimento de produtos primários, empresas chinesas – algumas com capital estatal – passaram a investir, a partir de 2007, na compra de terras no subcontinente latino-americano. Segundo informações reunidas pelo Observatório Global Land Matrix, empresas chinesas compraram nos últimos anos 627.072 hectares de terra na Guiana, 300.000 ha na Nicarágua, 60.000 ha na Venezuela, 43.997 ha no Brasil, 22.085 ha na Ar-
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gentina, 18.000 ha na Jamaica, 5.000 ha em Cuba, 3.988 ha no Uruguai e 2.859 ha no Paraguai, o que totaliza a extensão de 1.083.001 ha. Deste total, 455.929 ha destinam-se à agricultura e 627.072 ha (na Guiana) são para silvicultura. A compra de terras na América Latina por empresas chinesas, embora tenha se intensificado a partir de 2007/2008, existe desde os anos 1990. As primeiras aquisições realizadas foram em Cuba, em 1996, e no México, em 1998, destinadas ao cultivo do arroz. Este processo, qualificado por Machado (2014) como neo-extrativista, gera novas formas de dependência nos países da América Latina e degradação ambiental decorrente da mineração e do avanço do modelo do agronegócio baseado na produção de soja e biocombustíveis. Além de empresas privadas, figuram ainda como compradores de terra na América Latina alguns Estados estrangeiros. Províncias argentinas têm realizado negociações com os Estados da China, Coreia do Sul, Arábia Saudita e Qatar, que quando não envolvem a compra direta de terras ao menos comprometem a produção, pelas determinações do investidor estrangeiro. No Brasil, há a compra de terras por Arábia Saudita, China e Coreia do Sul, cujos investimentos se concentram na produção de soja, cana de açúcar, carnes brancas, setor florestal, gado e frutas. A concentração e estrangeirização da terra têm gerado problemas de várias dimensões na América Latina: 1) de dimensão política, na medida em que a concentração de terra em poucas mãos outorga um poder político importante aos proprietários das grandes empresas, faz surgir espaços de poder paralelos à estrutura estatal, dificulta os processos democráticos e afeta a soberania dos Estados nacionais; 2) de dimensão econômica, já que o emprego de modernas tecnologias e modelos organizacionais geram maiores rendas às empresas e aumento da desigualdade social devido à concentração dessa renda; 3) de dimensão ambiental, pois a concentração da terra com fins produtivos leva ao uso intensivo do solo, da água e de agrotóxicos, causando a espoliação da riqueza e diversidade natural da região; e 4) de dimensão social, relacionados aos conflitos entre empresas, campesinos e povos indígenas pela posse da terra (FAO, 2014). O aumento do poder político dos empresários capitalistas lhes permite pressionar o Estado para que aprove leis flexibilizadoras das restrições à mercantilização da terra e para que reprima cada vez mais fortemente a resistência da sociedade civil. Quanto maior o poder dos monopólios, maiores são as suas “capacidades
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de chantajear cualquier esfuerzo por resguardar la biodiversidad, el respeto del medio ambiente, la sostenibilidad de los pequeños productores, la salud de los consumidores y la dignidad de los seres humanos” (COLQUE, 2016, p. 01). A alteração dessa lógica imperialista depende de uma mudança radical nos padrões de produção e consumo. Dentro dos limites da dinâmica de reprodução capitalista não existe possibilidade de implementação de políticas econômicas que compatibilizem investimentos produtivos com preservação ambiental. A saída dessa situação só pode ser construída pela ação política anti-imperialista conjunta de trabalhadores e movimentos sociais. Nesse sentido, a América Latina tem uma história de importantes lutas populares contra o colonialismo, o imperialismo e as ditaduras militares instaladas no continente com apoio do imperialismo estadunidense. Foram inspiradas nas ideias dos libertadores Simón Bolívar, José Martí, José Artigas e outros, que surgiram as primeiras iniciativas revolucionárias na região. A primeira grande revolução social se deu a partir de 1910, no México, promovendo avanços na reforma agrária e nacionalização de empresas estrangeiras que exploravam petróleo no país. Depois disso, seguiram-se o levante popular de 1952, na Bolívia; a Revolução cubana, de 1959, que irradiou pelo continente uma multiplicidade de movimentos populares, com participação de indígenas, campesinos, trabalhadores urbanos e outros segmentos sociais explorados; as revoltas e greves gerais no Chile, que levaram ao governo popular de Salvador Allende, em 1970; a Revolução Sandinista de 1979, na Nicarágua; a Revolução bolivariana, na Venezuela. Mas foi a partir dos anos 2000 que, em Bolivia e Equador, as lutas populares anti-imperialistas levaram à promulgação de novas constituições caracterizadas por uma afirmação mais enfática de suas soberanias nacionais frente às potências capitalistas do Norte.
2. O novo constitucionalismo frente ao imperialismo Por Novo Constitucionalismo Latino-americano compreende-se o modelo constitucional surgido na América Latina, na primeira década dos anos 2000, em um contexto de intensas mobilizações populares contra o neoliberalismo e a favor de reformas estruturais dos Estados para a democratização da política, com ampliação da participação popular, reconhecimento da autonomia dos povos indígenas originários e maior intervenção do Estado na economia para fins 250
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de enfrentamento do poder econômico das empresas transnacionais, redistribuição de riqueza e incentivo a novas formas de produção. Sousa (2014) vai mais longe ao considerar que o novo constitucionalismo é produto de movimentos sociais que começaram a se articular e sofisticar a partir da primeira metade do século XX, com a incorporação de ideias marxistas na classe trabalhadora pobre, que progressivamente foram influenciando os setores progressistas até culminar na revolução boliviana de 1952. Neste começo de século XXI, as fortes mobilizações populares no subcontinente levaram à caída de governos de perfil neoliberal e a alterações constitucionais em alguns países, a exemplo de Equador e Bolívia, que construíram novas ordens jurídicas e políticas para contemplar os interesses das comunidades e povos tradicionais e permitir as mudanças almejadas pelos movimentos sociais. Nesse sentido, Pastor e Dalmau (2010) afirmam que as lutas sociais foram fundamentais para o aparecimento do novo constitucionalismo latino-americano, entendido como resultado dos conflitos sociais ocorridos na vigência das políticas neoliberais. Conforme os autores, os movimentos de contestação ao neoliberalismo na Bolívia e no Equador promoveram a refundação desses Estados e produziram mudanças políticas e novos textos constitucionais que romperam com o consenso político e econômico até então vigente. As novas constituições de Equador e Bolívia são hoje os instrumentos jurídicos mais avançados em matéria de proteção ambiental, bem-estar social e proteção das soberanias nacionais. Nelas estão positivados, dentre outros, o direito à água, à soberania e à segurança alimentar, os direitos dos povos indígenas, o reconhecimento de sua cosmovisão sobre o bien vivir e a Pachamama, a elevação da natureza a novo sujeito de direitos no Equador (BRANDÃO, 2015). A oposição ao colonialismo significa o rompimento com laços simbólicos da colonialidade do poder ainda presentes e também um reposicionamento das nações latino-americanas no cenário geopolítico, em uma tentativa de sair da posição de países dependentes à qual foram colocados no contexto do imperialismo. Porém, as mudanças trazidas pelo novo constitucionalismo possuem limitações. Apesar da preocupação com a soberania e segurança alimentar, as novas constituições não rompem completamente com a tradição constitucional de origem europeia e ainda carregam elementos de uma estrutura constitucional liberal. Elas são resultado de negociações entre grupos sociais antagônicos que, 251
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em certa medida, lograram incluir no texto constitucional preceitos normativos garantidores de seus interesses. Isso explica a coexistência contraditória de disposições segundo as quais os recursos naturais são de propriedade do povo e serão administrados pelo Estado com disposições que permitem e protegem a propriedade privada da terra e dos meios de produção. É inegável o amplo processo de estatização de setores estratégicos da economia e até mesmo a monopolização estatal de alguns setores produtivos, como a exploração de hidrocarbonetos, na Bolívia. Além disso, as novas ordens constitucionais garantem uma maior participação popular nas decisões sobre os rumos da economia; instituem medidas de incentivo a modos de produção alternativos; protegem os modos de produção e organização da vida comunitária das nações indígenas e criam mecanismos jurídicos para o desenvolvimento de uma economia endógena com garantia de gestão participativa dos processos produtivos (ORIO, 2015), porém nenhuma dessas medidas impede a continuidade de atividades empresariais privadas organizadas sob o modelo capitalista. No que diz respeito à distribuição da terra, a Constituição boliviana estabelece a regulação do mercado de terras pelo Estado – responsável por evitar a acumulação em superfícies maiores que as reconhecidas pela lei e sua divisão em superfícies menores à estabelecida para a pequena propriedade – e a proibição, a qualquer título, da aquisição de terras do Estado por estrangeiros (artigo 396). Em nível infraconstitucional, a Lei nº 1715, de 18 de outubro de 1996 (Lei do Serviço Nacional de Reforma Agrária) é a norma que regula até hoje o tema das proteções ou restrições à compra de terras por estrangeiros. Diz o artigo 46 que: ARTICULO 46º (Personas Extranjeras). I. Los Estados y Gobiernos Extranjeras así como las corporaciones y otras entidades que de ellos dependan, no podrán ser sujetos del derecho de propiedad agraria a ningún título, ya sea directamente o por interpósita persona. II. Las personas extranjeras naturales o jurídicas no podrán adquirir ni poseer, por ningún título, dentro de los cincuenta (50) kilómetros de las fronteras internacionales del país, ninguno de los derechos reconocidos por esta ley, bajo pena de perder en beneficio del Estado la propiedad adquirida, en concordancia con el artículo 25º de la Constitución Política del Estado. Los propietarios nacionales de medianas propiedades y empresas agropecuarias pueden suscribir con personas individuales o colectivas extranjeras, con excepción de las que pertenecen a países limítrofes a la propiedad, contratos de riesgo compartido para su desarrollo, con prohibición expresa de transferir o arrendar la propiedad, total o parcialmente bajo 252
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sanción de nulidad y reversión a dominio de la Nación. III. Las personas extranjeras naturales o jurídicas no podrán ser dotadas ni adjudicadas de tierras fiscales en el territorio nacional. IV. Las personas extranjeras naturales o jurídicas, para adquirir tierras de particulares tituladas por el Estado fuera del límite previsto en el parágrafo II precedente, o para suscribir contratos de riesgo compartido, deberán residir en el país tratándose de personas naturales, estar habilitadas para el ejercicio de actividades agropecuarias en Bolivia, tratándose de personas jurídicas.
A Constituição equatoriana, no Titulo VI, artigo 276, estabelece que o regime de desenvolvimento do país terá como um de seus objetivos construir um sistema econômico justo, democrático, produtivo, solidário e sustentável baseado na distribuição igualitária dos benefícios do desenvolvimento, dos meios de produção e na geração de trabalho digno e estável. Para tanto, afirma ser responsabilidade do Estado promover políticas redistributivas que permitam o acesso do campesinato à terra, à água e outros recursos produtivos. A Carta estabelece que o Estado promoverá o acesso equitativo aos fatores de produção, para o que lhe corresponderá evitar a concentração ou apropriação de fatores e recursos produtivos, promover sua redistribuição e eliminar privilégios ou desigualdades no acesso a eles (artigo 334) e determina que um fundo nacional de terra, estabelecido por lei, regulará o acesso equitativo de campesinos e campesinas à terra (artigo 282). Proíbe o latifúndio, a concentração da terra, a apropriação ou privatização da água e suas fontes (artigo 282) e normatiza que a política comercial do país deve ter como objetivo evitar práticas monopólicas e oligopólicas, particularmente no setor privado, e outras que afetem o funcionamento dos mercados, e que estrangeiros não poderão adquirir a nenhum título terras ou concessões em áreas de segurança nacional nem em áreas protegidas, de acordo com a lei (artigos 304 e 405). Além disso, os artigos 283, 319 e 321 estabelecem, respectivamente, que “o sistema econômico será integrado pelas formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária, e as demais que a Constituição determine”, que “se reconhecem diversas formas de organização da produção na economia, entre outras as comunitárias, cooperativas, empresariais públicas ou privadas, associativas, familiares, domésticas, autônomas e mistas” e que “o Estado reconhece e garante o direito à propriedade em suas formas pública, privada, comunitária, estatal, associativa, cooperativa, mista, e que deverá cumprir sua função social e ambiental”. 253
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O avanço inegável produzido por tal nova normatividade constitucional boliviana e equatoriana é a direção e planificação da economia pelo Estado, o que contraria o dogma neoliberal da desregulamentação da economia e abertura dos mercados à livre circulação de mercadorias e capitais. Isso possibilitou a esses Estados realizar a nacionalização de setores estratégicos da economia, estabelecer maior regulação das atividades privadas, incentivar modos de produção não capitalistas, realizar reforma agrária e distribuição de renda. Ao mesmo tempo, porém, a nova normatividade protege ainda o direito à propriedade privada e o livre exercício de atividades empresariais, permitindo que ao lado dos modos de produção alternativos e da propriedade coletiva da terra siga vigente o modo de produção capitalista, a propriedade privada de meios produtivos e a exploração do trabalho. Não há vedação a atividades agrícolas monocultoras de larga escala e outras atividades extrativistas cujas receitas das exportações de seus produtos são utilizadas pelo Estado na distribuição de renda. Ainda que o processo de reforma agrária tenha avançado consideravelmente na Bolívia, a normatividade constitucional que a determina possui limites decorrentes das negociações que lhe deram origem. Embora o artigo 398 diga que se proíbe o latifúndio e a dupla titulação por serem contrários ao interesse coletivo e ao desenvolvimento do país e que a superfície máxima em nenhum caso poderá exceder cinco mil hectares, o artigo 399 determina que os novos limites da propriedade agrária zonificada se aplicarão a propriedades que tenham sido adquiridas posteriormente à vigência da Constituição. Logo, o texto constitucional garante àqueles que possuíam propriedades com mais de cinco mil hectares antes da vigência da nova Carta o direito de mantê-las, o que limita as possibilidades do acesso equitativo à terra. Nota-se que, por um lado, o novo constitucionalismo apresenta instituições que não repetem automaticamente as formas liberais e eurocêntricas. Ele reconhece diferentes modelos e condições de desenvolvimento e incentiva normativamente uma dinâmica econômica diversificada, atrelada ao alcance do vivir bien (JÚNIOR, 2014). Por outro lado, as mudanças constitucionais mantêm aspectos liberais claros, a exemplo da propriedade privada, que segue sendo bastião do Estado. As inovações tratam de uma reestruturação e diversificação do direito de propriedade na nova Constituição, mas ainda sustentando-o, não estando colocada a possibilidade de socialização dos meios de produção ou algo nesse sentido.
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Embora as intervenções estatais na economia tenham garantido uma melhora no acesso aos serviços e aos bens de consumo pela população, o rentismo baseado na exploração e exportação de recursos naturais continua sendo a principal fonte de arrecadação desses Estados, o que mantém vivo o capitalismo dependente, as transferências de valor da periferia para os centros capitalistas, bem como a lógica exploratória danosa ao meio ambiente e aos trabalhadores.
Considerações finais O imperialismo, fruto da tendência e necessidade de expansão do capital, é a política de rapina do capital financeiro que substitui as velhas relações de produção pré-capitalistas por relações de produção do capitalismo financeiro e transforma as relações de concorrência em monopólios e oligopólios, que passam a dominar as fontes de matéria-prima para garantir segurança e possibilidade de reprodução ao capital. Tal significa que onde houver relação de produção capitalista, por necessidade intrínseca do capital, haverá tendência e força expansiva que, se necessário, infringirá as normas estatais e as próprias leis de mercado e adotará métodos violentos para satisfazer as necessidades reprodutivas do capital. Daí o acerto das lições da teoria clássica de que o combate ao imperialismo não pode ser um fim em si mesmo e único. Combater o imperialismo implica combater as próprias relações capitalistas de produção e sua voracidade expansionista. O novo constitucionalismo latino-americano é exemplo concreto de instrumentalização do direito a favor das lutas dos oprimidos, sejam eles membros da classe trabalhadora ou povos indígenas, campesinos, negros, mulheres e outros segmentos sociais organizados na forma dos movimentos sociais contemporâneos. As novas constituições de Equador e Bolívia são um instrumento de resistência institucionalizada contra a dominação colonial – política, cultural, epistemológica e racial – instalada na América Latina. Porém, em seu conjunto normativo, as Constituições de Equador e Bolívia não são anticapitalistas. Frutos da síntese da correlação de forças do momento, as novas Cartas Constitucionais, ao lado das noções anticapitalistas de Pachamama e buen vivir, trazem, contraditoriamente, as suas próprias antíteses, com a autorização das relações privadas capitalistas de produção, a permissão da 255
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exploração de mão-de-obra assalariada, a legalização de propriedades rurais latifundiárias, a permissão do cultivo de monoculturas para exportação, etc. O novo constitucionalismo latino-americano apresenta as contradições próprias de uma sociedade de classes, assentada sobre o modo de produção capitalista e atrelada à economia mundial em situação de dependência, o que lhe torna incapaz de bloquear por completo práticas imperialistas espoliatórias prejudiciais ao buen vivir e à efetivação dos direitos da Pachamama.
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