Manual de Processo Penal - Volume Unico (Em Portugues do Brasil) [7 ed.] 8544225225, 9788544225226

Dentre as novidades constantes da 7ª edição do nosso Manual de Processo Penal, merecem destaque especial as seguintes: 1

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Manual de Processo Penal - Volume Unico (Em Portugues do Brasil) [7 ed.]
 8544225225, 9788544225226

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R e n a to B ra sile iro de Lim a

Manual de

Processo Penal VOLUME ÚNICO INCLUI • Mais de 3.500 precedentes do STF e do STJ • Referências ao Processo Penal Militar • Amplo estudo dos dispositivos processuais da legislação criminal especial • Cases da Corte Interamericana de Direitos Humanos • Novas Súmulas do STJ

• • • •

CONFORME • Lei n. 13.793/2019 - acesso de advogados a processos e procedimentos eletrônicos. • Lei 13.774/2018 - altera a Lei de Organização Judiciária da Justiça Militar da União • Lei 13.772/2018 - criminaliza o registro não autorizado da intimidade sexual • Lei 13.769/2018 - altera o CPP para estabelecer a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência • Lei 13.771/2018 - altera o art. 121 do CP • Lei 13.728/2018 - dispõe sobre a contagem de prazo nos Juizados Especiais • Lei 13.721/2018 - altera o CPP para estabelecer prioridade à realização do exame de corpo de delito nos

crimes de violência contra mulher, criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência Lei 13.718/2018 - traz novas disposições para os crimes contra a dignidade sexual Lei 13.715/2018 - perda do poder familiar Lei 13.654/2018 - altera os crimes de furto e roubo do CP Lei 13.641/2018 - tipifica o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência

• Lei 13.642/2018 - investigação pela Polícia Federal de crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam ódio ou aversão às mulheres • Lei 13.608/2018 - dispõe sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensas por informações que auxiliem nas investigações policiais • Lei 13.603/2018 - inclui a simplicidade como critério orientador do processo perante os Juizados Especiais Criminais

7* atualizada edição ampliada revista

EDITORA

mpodivm www.editorajuspodivm.com.br

Renato Brasileiro de Lima

Manual de

Processo Penal revista atualizada edição ampliada

I s-

2019

EDITORA

>PO D IV M

www.editorajuspodivm.com.br

EDITORA itfPODIVM www.editorajuspodivm.corn.br Rua Território Rio Branco, 87 - Pituba - CEP: 41830-530 - Salvador - Bahia Tel: (71) 3045.9051 • Contato: https://www.editorajuspodivm.com.br/sac Copyright: Edições JusPODIVM C onselho Editorial: Eduardo Viana Portela Neves, Dirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier Jr., José Henrique Mouta, José Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Júnior, Nestor Távora, Robrio Nunes Filho, Roberval Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha. Diagramação: Isabella Giordano ([email protected]) Capa: Ana Caquetti

L732m

Lima, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima - 7. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. 1.904 p. Bibliografia. ISBN 978-85-442-2522-6. 1. Direito processual. 2. Direito processual penal. I. Título. CDD 341.43

Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM. É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.

7.3 ed., 2.° tir.: mar./2019.

A Deus. Ao meu pai Mauro, pelo exemplo de luta e perseverança; A minha mãe Graça, pelo carinho e pelo amor; A minha querida esposa Vanessa: difícil acreditar que, enfim, consegui concluir “nosso ” Manual de Processo Penal (vol. único). Digo “nosso ’’porque tenho a consciência de que jamais teria conseguido concluir a obra sem você. Durante esses anos de dedicação à conclusão deste trabalho, você sem­ pre esteve ao meu lado: quando desanimava, era você que me davaforça e motivação para seguir adiante; quando precisava de alguém para discutir minhas reflexões e agonias acerca do processo penal, era você que estava sempre disposta a me ouvir. Pela paciência, pelo companheirismo, pelo carinho e pelo amor, Excelência, minha eterna gratidão!

É chegado mais um especial momento para nós: a apresentação de mais uma edição do nosso Manual de Processo Penal, agora em sua 7a edição. E o fazemos com um sincero e singelo agradecimento a todos os leitores, alunos, professores, advogados, Delegados de Polícia, Defensores Públicos, Magistrados e colegas do Ministério Público, que acolheram nosso trabalho com enorme receptividade. Essa acolhida, já verificada inclusive em algumas honrosas citações em julgados do Supre­ mo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, nos motiva a continuar na empreitada de fazer um livro que, tentando ser didático, consiga servir aos seus diferentes destinatários: graduandos, mestrandos, doutorandos, concursandos e operadores do Direito Processual Penal, tarefa reconhecidamente muito difícil. Para a publicação desta 7a edição, o livro foi revisado, atualizado e ampliado. Erros pontuais e episódicos na edição anterior foram devidamente corrigidos. Aliás, para tanto, contamos com a valorosa colaboração de diversos leitores, que gentilmente nos comunicaram a sua localização. Dentre as novidades constantes da 7a edição do nosso Manual de Processo Penal, merecem destaque especial as seguintes: 1) Lei n. 13.603/18: altera a Lei n. 9.099/95 para incluir a simpli­ cidade como critério orientador do processo perante os Juizados Especiais Criminais; 2) Lei n. 13.608/18: dispõe sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensas por informações que auxiliem nas investigações policiais; 3) Lei n. 13.642/18: altera a Lei n. 10.446/02 para acrescentar atribuição à Polícia Federal no que concerne à investigação de crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, defi­ nidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres; 4) Lei n. 13.641/18: altera a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/16) para tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência; 5) Lei n. 13.654/18: altera o Código Penal para dispor sobre os crimes de furto qualificado e de roubo quando envolvam explosivos e do crime de roubo praticado com emprego de arma de fogo ou do qual resulte lesão corporal grave; 6) Lei n. 13.715/18: altera o Código Penal para dispor sobre hipóteses de perda do poder familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente; 7) Lei n. 13.718/18: altera o Código Penal para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tomar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estu­ pro coletivo e o estupro corretivo; 8) Lei n. 13.721/18: altera o Código de Processo Penal para estabelecer que será dada prioridade à realização do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar contra mulher ou violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência; 9) Lei n. 13.728/18: altera a Lei n. 9.099/95 para estabelecer que, na contagem de prazo para a prática de qualquer ato processual, inclusive para a interposição de recursos, serão computados somente os dias úteis; 10) Lei n. 13.769/18: altera o Código de Processo Penal para estabelecer a substituição da prisão preventiva por

8

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência; 11) Lei n. 13.771/18: altera o art. 121 do Código Penal; 12) Lei n. 13.772/18: altera a Lei Maria da Penha para reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar, criminalizando o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado (CP, art. 216-B); 13) Lei n. 13.774/18: altera a Lei de Organização Judiciária da Justiça Militar da União (Lei n. 8.457/92); 14) Lei n. 13.793/19: altera o Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/94) para assegurar a advogados o exame e a obtenção de cópias de atos e documentos de processos e de procedimentos eletrônicos. Com o objetivo de manter a atualização jurisprudencial da obra, também foram acrescenta­ dos ao livro os julgados mais relevantes dos informativos do ano de 2018 do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Isso resultou no acréscimo de mais de uma centena de julgados, os quais se somam aos mais de 3.500 precedentes que já constavam do livro. Acres­ centamos, ademais, novas súmulas aprovadas em 2018 pelos referidos Tribunais Superiores. Por derradeiro, lembrando que a maior virtude que se pode ter é a gratidão, imprescindí­ vel pontuar nossos sinceros agradecimentos às pessoas que estiveram ao nosso lado durante a elaboração desta edição, em especial à minha família - minha querida esposa Vanessa, minha princesinha Laura e meu querido filho João Pedro. Agradeço também a todos os alunos aos quais tive o prazer de dar aulas de processo penal e legislação criminal especial ao longo desses quase 15 anos de docência: sem a carinhosa cobrança de cada um de vocês, jamais teria conseguido concluir esta obra. E, principalmente, agradecemos a Deus, por tantas oportunidades de vida e que, renovando a nossa fé, possibilite sermos instrumentos de Sua obra. Ao leitor, esperamos propiciar uma agradável leitura, aguardando as eventuais críticas e sugestões, que tanto nos permitem aprimorar a obra. Aliás, o nosso livro é fruto da colaboração permanente dos leitores. Para revisões, vídeos, perguntas, respostas, sugestões e críticas, pedimos que utilizem nossa página: facebook. com/profrenatobrasileiro Valinhos/SP, 21 de dezembro de 2018.

RENATO BRASILEIRO DE LIMA

PREFACIO O presente livro corresponde ao Manual de Processo Penal (vol. único) do amigo e pro­ fessor Renato Brasileiro de Lima, que a Editora Juspodivm traz a público. Conheci o Renato Brasileiro de Lima como aluno no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Logo, suas qualidades se fizeram notar. As observações precisas, o domínio dos temas debatidos, a clareza de seus posicionamentos, o equilíbrio e a ponderação das posições adotadas chamaram-me a atenção. Com o tempo, soube que Renato Brasileiro de Lima havia sido Defensor Público e, depois, passara a integrar o Ministério Pú­ blico Militar da União. Além disso, conjuntamente com a atividade forense, era, à época, um destacado professor de processo penal da Rede LFG. Desde então, passei a acompanhar, com maior atenção e satisfação, a carreira de Renato Brasileiro de Lima, que já se mostra muito bem-sucedida. Suas monografias anteriores, uma sobre Competência Criminal e outra tratando da Prisão Cautelar, já à luz da Reforma de 2011, mostravam as qualidades doutrinárias do autor. Quando recebi e consultei os volumes I e II do Manual de Processo Penal, que, somados, deram origem ao presente livro, fiquei feliz por ter certeza do sucesso que a obra teria, por ser uma fonte importante de consulta tanto para estudiosos quanto para profissionais que trabalham com Direito Processual Penal. Por outro lado, fiquei curioso para saber como os dois volumes seriam condensados pelo autor em um único livro. Agora, a curiosidade se desfez e a expectativa, que já era elevada, foi satisfeita. O Manual de Processo Penal (vol. único) do Professor Renato Brasileiro de Lima reúne as mesmas qualidades das obras anteriores. Assim como já acontecera nos volumes I e II, o Autor expõe, com profundidade e de forma sistemática, todos os temas pertinentes ao processo penal. Trata-se de estudo bem fundamentado, com minuciosa e detalhada divisão dos temas tratados. Quando o assunto é controvertido, há exposição das diversas posições, sem que o Autor se furte de indicar a corrente por ele seguida e os argumentos a justificar a posição adotada. Tudo isso, acompanhado de extensa e atualizadíssima jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, tem se mostrado vem se mostrado uma útil metodologia seguida por Renato Brasileiro de Lima em suas obras. Não há exagero em afirmar que a obra se tomará um referencial seguro tanto para o estu­ dante quanto para o profissional do direito. São Paulo, 12 de dezembro de 2012. GUSTAVO H E N R IQ U E R IG H IIV A H Y B A D A R Ó

Professor Associado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

rlüh. J H ' : TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS..................

39

3.8.1. Noções introdutórias......................

72

1. Introdução...........................................................

39

2. Sistemas processuais penais..............................

40

3.8.2. Titular do direito de não produzir prova contra si mesmo.............................

72

3.8.3. Advertência quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo.......

73

3.8.4. Desdobramentos do direito de não produzir prova contra si mesmo.......

75

3.8.5. Bafômetro: a infração adminis­ trativa de embriaguez ao volante e a nova redação do crime de embriaguez ao volante (Lei n9 12.760/12)..................

81

3.8.6. Conseqüências do exercício do direito de não produzir prova contra si mesmo.......................................................

85

3.8.7. O direito de não produzir provas contra si mesmo e a prática de outros delitos........................................................

86

Princípio da proporcionalidade.............

87

2.1. Sistema inquisitorial.................................

40

2.2. Sistema acusatório...................................

41

2.3. Sistema misto ou francês.........................

43

3. Princípios fundamentais do processo penal......

44

3.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade)...................................................

45

3.1.1. Noções introdutórias......................

45

3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo)............................................................

46

3.1.3. Da regra de tratamento..................

47

3.1.4. (In) constitucionalidade da exe­ cução provisória da pena.........................

48

3.2. Princípio do contraditório........................

54

3.2.1. Contraditório para a prova e con­ traditório sobre a prova...........................

3.9.

3.9.1. Da adequação.................................

89

56

3.9.2. Da necessidade..............................

90

3.3. Princípio da ampla defesa........................

56

3.3.1. Defesa técnica (processual ou específica).................................................

3.9.3. Da proporcionalidade em sentido estrito........................................................

91

57

3.3.1.1. Defesa técnica necessária e irrenunciável..............................................

4. Lei processual penal no espaço..........................

91

57

3.3.1.2. Direito de escolha do defensor....

59

4.1. Tratados, convenções e regras de direito internacional....................................................

92

3.3.1.3. Defesa técnica plena e efetiva....

60

4.2. Prerrogativas constitucionais do Presi­ dente da República e de outras autoridades...

93

4.3. Processos da competência da Justiça Militar...............................................................

94

3.3.2.

Autodefesa (material ou genérica)..

61

3.3.2.1. Direito de audiência....................

62

3.3.2.2. Direito de presença.....................

63

3.3.2.3. Capacidade postulatória autô­ noma do acusado.....................................

4.4. Processos da competência do tribunal especial.............................................................

94

64

4.5. Crimes de imprensa.................................

95

4.6. Crimes eleitorais.......................................

95

4.7. Outras exceções.......................................

96

5. Lei processual penal no tem po..........................

96

5.1. Lei n9 9.099/95 e seu caráter retroativo...

98

5.2. Lei n9 9.271/96 e nova redação do art. 366: suspensão do processo e da prescrição...

99

5.3. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e sua apli­ cabilidade imediata aos processos em an­ damento...........................................................

99

3.3.3. Ampla defesa no processo admi­ nistrativo disciplinar e na execuçãopenal 3.4. Princípio da publicidade........................... 3.4.1. Divisão da publicidade: ampla e restrita....................................................... 3.4.2. Sessão de julgamento na Justiça Militar e votação em sala secreta............ 3.5. Princípio da busca da verdade: supe­ rando o dogma da verdade real......................

64 66 67 69 69

3.5.1. Busca da verdade consensual no âmbito dos Juizados.................................

71

3.6. Princípio da inadmissibilidade das pro­ vas obtidas por meios ilícitos..........................

5.4. Lei n9 12.403/11 e o novo regramento quanto às medidas cautelares de natureza pessoal............................................................. 100

71

5.5. Normas processuais heterotópicas.......... 101

3.7. Princípio do juiz natural........................... 3.8. Princípio do nemo tenetur se detegere....

71 72

5.6. Vigência, validade, revogação, derroga­ ção e ab-rogação da lei processual penal....... 101

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

12

6.

Interpretação da lei processual penal............. 102

9.8. Identificação do indiciado........................

6.1. Interpretação extensiva............................

103

6.2. Analogia....................................................

104

9.9. Averiguação da vida pregressa do inves­ tigado ............................................................... 141

6.3. Distinção entre analogia e interpretação analógica.........................................................

105

9.10. Reconstituição do fato delituoso........... 141

6.4. Aplicação supletiva e subsidiária do novo Código de Processo Civil ao processo penal................................................................. 105

9.11. Acesso aos dados cadastrais de vítimas e de suspeitos................................................... 142 9.12. Requisição de informações acerca das estações rádio base (ERB's).............................. 144 10. Identificação criminal.......................................

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR............

109

1. Conceito de inquérito policial............................

109

2. Natureza jurídica do inquérito policial............... 109 3. Finalidade do inquérito policial..........................

140

110

4. Valor probatório do inquérito policial................ 111 5. Atribuição para a presidência do inquérito policial..................................................................... 112 5.1. Funções de polícia administrativa, judi­ ciária e investigativa......................................... 112 5.2. Da atribuição em face da natureza da infração penal................................................... 114

146

10.1. Conceito.................................................. 146 10.2. Leis relativas à identificação criminal..... 147 10.3. Documentos atestadores da identifi­ cação civil......................................................... 149 10.4. Hipóteses autorizadoras da identifica­ ção criminal...................................................... 149 10.5. Identificação do perfil genético (Lei ne 12.654/12)................................................... 151 11. Incomunicabilidade do indiciado preso........... 153 11.1. Regime disciplinar diferenciado............. 153 12. Indiciamento..................................................... 154

5.3. Da atribuição em face do local da con­ sumação da infração penal.............................

116

12.1. Conceito.................................................. 154

6. Características do inquérito policial...................

116

12.2. Momento................................................ 155

6.1. Procedimento escrito...............................

116

12.3. Espécies................................................... 155

6.2. Procedimento dispensável.......................

117

12.4. Pressupostos........................................... 155

6.3. Procedimento sigiloso..............................

117

12.5. Desindiciamento.....................................

6.4. Procedimento inquisitorial.......................

121

12.6. Atribuição................................................ 156

156

6.5. Procedimento discricionário.................... 129

12.7. Sujeito passivo........................................

6.6. Procedimento oficial................................

130

6.7. Procedimento oficioso.............................

130

12.8. Afastamento do servidor público de suas funções como efeito automático do in­ diciamento em crimes de lavagem de capitais 158

6.8. Procedimento indisponível.......................

130

6.9. Procedimento temporário........................ 131

13. Conclusão do inquérito policial........................

156

159

7. Formas de instauração do inquérito policial...... 131

13.1. Prazo para a conclusão do inquérito policial.............................................................. 159

7.1. Crimes de ação penal pública incondicionada............................................................. 131

13.1.1. Quadro sinóptico do prazo para a conclusão do inquérito policial............. 161

7.2. Crimes de ação penal pública condicio­ nada e de ação penal de iniciativa privada..... 134

13.2. Relatório da autoridade policial............. 162

8. Notitia criminis.................................................... 135

13.3. Destinatário dos autos do inquérito policial.............................................................. 162

8.1. Delatio criminis........................................

135

8.2. Notitia criminis inqualificada...................

135

13.4. Providências a serem adotadas após a remessa dos autos do inquérito policial...... 164

9. Diligências investigatórias..................................

136

14. Arquivamento do inquérito policial................. 167

Preservação do local docrime............... 136

14.1. Fundamentos do arquivamento............. 168

9.1.

9.2 Apreensão de objetos...............................

137

9.3. Colheita de outras provas........................

138

9.4. Oitiva do ofendido....................................

138

9.5. Oitiva do indiciado...................................

139

9.6. Reconhecimento de pessoas e coisas e acareações........................................................ 139 9.7. Determinação de realização de exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias 140

14.2. Coisa julgada na decisão de arquiva­ mento............................................................... 169 14.3. Desarquivamento, a partir da notícia de provas novas, e oferecimento de denún­ cia, na hipótese do surgimento de provas novas................................................................ 171 14.4.

Procedimento do arquivamento......... 174

14.4.1. Procedimento do arquivamento no âmbito da Justiça Estadual..................

174

13

SUMÁRIO

14.4.2. Procedimento do arquivamento no âmbito da Justiça Federal e da Justi­ ça Comum do Distrito Federal.................. 175 14.4.3. Procedimento do arquivamento na Justiça Eleitoral..................................... 176

18.

Controle externo da atividade policial.......... 210

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO..................................................................................

213

1. Direito de ação penal.........................................

213

14.4.4. Arquivamento de inquérito nas hipóteses de atribuição do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Ge­ ral da República........................................

177

14.5. Arquivamento implícito..........................

178

4.1. Condições genéricas da ação penal......... 218

14.6. Arquivamento indireto...........................

179

4.1.1. À luz da teoria geral do processo.... 218

14.7. Arquivamento em crimes de ação pe­ nal de iniciativa privada..................................

180

2. Características do direito de ação penal............ 214 3. Lide no processo penal.......................................

214

4. Condições da ação penal....................................

215

4.1.1.1. Possibilidade jurídica do pedido .. 218

14.8. Recorribilidade contra a decisão de arquivamento................................................... 180

4.1.1.2. Legitimidade para agir................. 221 4.1.1.2.1. Legitimidade ordinária e ex­ traordinária no processo penai................ 222

14.9. Arquivamento determinado por juiz absolutamente incompetente.........................

181

4.1.1.3. Interesse de agir.......................... 224

15. Trancamento (ou encerramento anômalo) do inquérito policial...............................................

182

4.1.1.3.1. Prescrição em perspectiva e ausência de interesse de agir................... 225

15.1. (Im) possibilidade de arquivamento de ofício de investigações nos casos de compe­ tência originária dos Tribunais......................... 183 16. Investigações diversas...................................... 16.1. Comissões Parlamentares de Inquéri­ to: inquéritos parlamentares..........................

4.1.2. À luz de uma teoria específica do processo penal.........................................

186

4.1.2.1. Prática de fato aparentemente criminoso................................................... 232

189

4.1.2.2. Punibilidade concreta.................. 232

4.3. Condições da ação e condições de pros-

16.5. Inquérito civil.........................................

194

seguibilidade (condição superveniente da

16.6. Termo circunstanciado...........................

194

16.7. Investigação pela autoridade judiciária... 195 195

231

4.2. Condições específicas da ação penal....... 233

16.4. Investigação pelo Ministério Público...... 190

16.7.1. Inquérito judicial..........................

228

4.1.1.4.1. Justa Causa duplicada.............. 230

185

16.2. Conselho de Controle de atividades financeiras (COAF)............................................ 188 16.3. Inquérito Policial Militar.........................

4.1.1.4. Justa Causa..................................

ação)................................................................. 235 4.4. Condições da ação, condições objetivas de punibilidade e escusas absolutórias........... 235

16.7.2. Revogada Lei das organizações criminosas................................................. 195

4.4.1. Decisão final do procedimento administrativo nos crimes materiais contra a ordem tributária........................... 237

16.7.3. Infrações penais praticadas por magistrados............................................... 196

5. Classificação das ações penais............................. 242

16.8. Investigação criminal defensiva.............. 197 16.9. Investigação por detetive particular (Lei n. 13.432/17)............................................. 198

5.1. Classificação das ações penais condenatórias.............................................................

243

6. Princípios da ação penal pública e da ação penal de iniciativa privada....................................... 245

17. Acordo de não-persecução penal..................... 200

6.1. Princípio do ne procedat iudex ex officio.. 245

17.1. Conceito e previsão normativa.............. 200

6.2. Princípio do ne bis in idem (inadmissi­ bilidade da persecução penal múltipla).......... 246

17.2. (In) constitucionalidade do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP.............................

202

6.3. Princípio da intranscendência.................... 249

17.3. Requisitos para a celebração do acor­ do de não-persecução penal...........................

205

6.4. Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública..................................................... 249

17.4. Condições a serem impostas ao inves­ tigado ............................................................... 207

6.5. Princípio da oportunidade ou conve­ niência da ação penal de iniciativa privada.... 253

17.5. Controle jurisdicional.............................

6.6. Princípio da indisponibilidade da ação penal pública.....................................................

208

17.6. Descumprimento injustificado das obrigações assumidas pelo investigado.......... 209 17.7. Cumprimento integral do acordo de não persecução penal.....................................

210

254

6.7. Princípio da disponibilidade da ação penal de iniciativa privada (exclusiva ou personalíssima)................................................. 255

14

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

:

6.8. Princípio da (in) divisibilidade da ação penal pública...................................................

14.2. Ação penal nos crimes de trânsito de 255

lesão corporal culposa, de embriaguez ao

6.9. Princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada.............................. 256

volante e de participação em competição

6.10. Princípio da oficialidade........................ 257

não autorizada................................................. 291

6.12. Princípio da oficiosidade....................... 258

14.3. Ação penal nos crimes de lesão cor­ poral leve e lesão corporal culposa com vio­ lência doméstica e familiar contra a mulher.... 292

6.13. Quadro comparativo dos princípios da ação penal.......................................................

14.4. Ação penal nos crimes ambientais: pessoas jurídicas e dupla imputação.............. 294

6.11. Princípio da autoritariedade................. 258

258

7. Ação penal pública incondicionada.................... 260 8. Ação penal pública condicionada.......................

262

8.1. Representação........................................... 262 8.1.1. Natureza jurídica da representação 263

14.5. Ação penal nos crimes contra a digni­ dade sexual (Lei n5 13.718/18)........................ 295 14.5.1. Redação original do art. 225 do CP (antes da Lei n. 12.015/09).................. 296

8.1.3. Destinatário da representação....... 263

14.5.2. Redação do art. 225 do CP de­ terminada pela Lei n. 12.015/09 (antes da Lei n. 13.718/18).................................. 298

8.1.4. Legitimidade para o oferecimen­ to da representação.................................

14.5.3. Redação do art. 225 do CP de­ terminada pela Lei n. 13.718/18............... 300

8.1.2. Desnecessidade de formalismo...... 263

264

8.1.5. Prazo decadencial para o ofere­ cimento da representação....................... 267 8.1.6. Retratação da representação......... 269

14.5.4. Quadro comparativo da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual......................................................... 301 14.5.5. Direito intertemporal.................... 301

8.1.6.1. Retratação da retratação da representação..........................................

269

8.1.6.2, Retratação da representação na Lei Maria da Penha...................................

14.6. Ação penal no crime de invasão de dispositivo informático..................................... 304

269

15. Peça acusatória................................................. 305

8.1.7. Eficácia objetiva da representação.. 270

15.1. Denúncia e queixa-crime........................ 305

8.1.8. Representação no processo penal militar........................................................ 271

15.2. Requisitos da peça acusatória................ 306

8.2. Requisição do Ministro da Justiça............ 272 8.2.1. Requisição no processo penal militar........................................................ 273 9. Ação penal de iniciativa privada.........................

273

9.1. Ação penal exclusivamente privada......... 275

15.2.1. Exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias............. 307 15.2.2. Qualificação do acusado.............. 309 15.2.3. Classificação do crime.................. 311 15.2.4. Rol de testemunhas...................... 311

9.2. Ação penal privada personalíssima.......... 275

15.2.5. Endereçamento da peça acusa­ tória

9.3. Ação penal privada subsidiária da pública 276

15.2.6. Redação em vernáculo................. 313

9.4. Extinção da punibilidade e ação penal de iniciativa privada........................................

15.2.7. Razões de convicção ou presun­ ção da delinqüência.................................

9.4.1. Decadência.....................................

279 279

9.4.2. Renúncia ao direitode queixa......... 281 9.4.3. Perdão do ofendido........................ 283 9.4.4. Quadro comparativo entre re­ núncia e perdão do ofendido................... 285 9.4.5. Perempção.....................................

285

9.5. Ação penal privada no processo penal militar............................................................... 287

312

313

15.2.8. Peça acusatória subscrita pelo Ministério Público ou pelo advogado do querelante................................................. 313 15.2.9. Procuração da queixa-crime e recolhimento de custas............................

314

15.3. Prazo para o oferecimento da peça acusatória......................................................... 316 16. Questões diversas............................................. 318 16.1. Denúncia genérica e crimes societários.. 318

10. Ação penal popular..........................................

287

11. Ação penal adesiva...........................................

288

12. Ação de prevenção penal.................................

288

16.2. Cumulação de imputações.....................

320

13. Ação penal secundária..................................... 289

16.3. Imputação implícita................................

320

16.4. Imputação alternativa............................

321

17. Aditamento à denúncia....................................

323

14. Ação penal nas várias espéciesde crimes......... 289 14.1.

Ação penal nos crimes contra a honra.... 289

16.1.1. nérica

Acusação geral e acusação ge­ 319

SUMÁRIO

17.1. Espécies de aditamento.........................

325

1.

I 15

Competência Criminal da Justiça Militar......... 371 1.1. Distinção entre a Justiça Militar da União e a Justiça Militar dos Estados.............. 371

17.1.1. Quanto ao objeto do aditamen­ to: próprio e impróprio............................ 325

1.1.1. Quanto à competência criminal..... 371

17.1.2. Quanto à voluntariedade do aditamento: espontâneo e provocado..... 326

1.1.2. Quanto à competência para o processo e julgamento de ações judi­ ciais contra atos disciplinares militares.... 372

17.2. Interrupção da prescrição...................... 327 17.3. Procedimento do aditamento................ 328

1.1.3. Quanto ao acusado........................ 373

17.4. Aditamento à queixa-crime.................... 328 18.

Ação civil ex delicto.......................................

329

18.1. Noções introdutórias..............................

329

1.1.4. Quanto ao órgão jurisdicional de l 9 instância................................................ 375 1.1.5. Quanto ao órgão jurisdicional de 29 instância................................................ 377

18.2. Sistemas atinentes à relação entre a ação civil ex delicto e o processo penal......... 330

1.1.6. Quadro comparativo entre a Jus­ tiça Militar da União e a Justiça Militar Estadual..................................................... 378

18.3. Efeitos civis da absolvição penai............ 332 18.4. Obrigação de indenizar o dano cau­ sado pelo delito como efeito genérico da sentença condenatória..................................... 336

1.2. Crime militar.............................................. 379 1.2.1. Crime propriamente militar e crime impropriamente militar.................. 379

18.4.1. Quantificação do montante a ser indenizado ao ofendido...................... 339 18.4.2. Natureza do dano cuja indeni­ zação mínima pode ser fixada na sen­ tença condenatória..................................

342

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL..............................................................................

345

CAPÍTULO I - PREMISSAS FUNDAMENTAIS E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS..................................

1.2.2. Crime militar de tipificação direta e crime militar de tipificação indireta....... 382 1.2.3. Crimes militares extravagantes (cri­ mes militares por equiparação à legislação penal comum ou crimes militares por exten­ são): a nova competência da Justiça Militar (Lei n. 13.491/17)............................................. 383 1.2.3.1. Lei n. 13.491/17 e o princípio do juiz natural...........................................

345

1. Jurisdição e competência................................... 345 2. Princípio do juiz natural.....................................

346

1.2.3.3. (In) constitucionalidade da Lei n. 13.491/17.............................................. 389

2.1. Lei processual que altera regras de com­ petência............................................................ 347

1.3. (In) constitucionalidade e (in) convencionalidade da competência da Jus­ tiça Militar da União para o processo e julgamento de civis pela prática de cri­ mes militares definidos em lei (ADPF 289)

2.2. Convocação de Juizes de l 9 grau de jurisdição para substituição de Desembar­ gadores............................................................. 349 3. Espécies de competência...................................

351

4.1. Quanto à natureza do interesse............... 353 4.2. Quanto à arguição da incompetência...... 354

4.4. Quanto às conseqüências da incompe­ tência absoluta e relativa................................ 359 4.5. Quanto à coisa julgada nos casos de incompetência absoluta e relativa.................. 362 4.6. Quadro sinóptico dos regimes jurídicos das regras de incompetência absoluta e re­ lativa................................................................. 363 5. Fixação da competência criminal....................... 364 6. Competência internacional................................ 365 7. Tribunal Penal Internacional............................... 367 CAPÍTULO II - COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA M ATÉRIA.......................................................................

371

391

1.4. (In) constitucionalidade da competên­ cia da Justiça Militar da União para o proces­ so e julgamento de crimes cometidos por ou contra militares no exercício de atribuições subsidiárias das Forças Armadas (ADPF 5.032) 395

4. Competência absoluta e relativa........................ 353

4.3. Quanto ao reconhecimento da incom­ petência no juízo ad quem.............................. 357

387

1.2.3.2. Lei n. 13.491/17 e o direito in­ tertemporal............................................... 387

1.5.

Dos crimes militares em tempo de paz........ 397 1.5.1. Do conceito de militar para fins de aplicação da lei penal militar............... 397 1.5.2. Do inciso I do art. 99 do Código Penal Militar.............................................. 401 1.5.3. Do inciso II do art. 99 do Código Penal M ilita r ................................................... 402

1.5.4. Do inciso III do art. 99 do CPM....... 414 1.5.5. Dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis......... 422 1.5.6. Dos crimes militares praticados em tempo de guerra................................. 429 2. Competência Criminal da Justiça Eleitoral........ 429 3. Competência Criminal da Justiça do Trabalho .... 432

16

4.

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Competência Criminal da Justiça Federal........ 433 4.1. Considerações iniciais.............................. 433 4.2. Atribuições de polícia investigativa da Polícia Federal.................................................. 435 4.3. Crimes políticos e infrações penais pra­ ticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluí­ das as contravenções penais e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral (CF, Art. 109, inciso IV)...................... 435 4.3.1. Crimes políticos.............................. 435 4.3.2. Crimes contra a União.................... 436 4.3.3. Crimes contra autarquias federais .. 437 4.3.4. Crimes contra empresas públicas federais...................................................... 438 4.3.5. Crimes contra fundações públicas federais...................................................... 440 4.3.6. Crimes contra entidades de fis­ calização profissional................................ 440 4.3.7. Crimes contra a Ordem dos Ad­ vogados do Brasil (OAB)........................... 441 4.3.8. Crimes contra sociedades de eco­ nomia mista, concessionárias e permissionárías de serviço público federal......... 442 4.3.9. Bens, serviços ou interesse da União, das autarquias federais (funda­ ções públicas federais) e das empresas públicas federais....................................... 443 4.3.10. Crimes previstos no Estatuto do Desarmamento (Lei n9 10.826/03).......... 449 4.3.11. Crimes contra a Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar da União .. 450

fundamento no art. 109, inciso V, da Constituição Federal.................................

475

4.5. Incidente de Deslocamento de Compe­ tência para a Justiça Federal (CF, Art. 109, V-A, c/c Art. 109, § 59).................................... 479 4.6. Crimes contra a organização do tra­ balho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira (CF, Art. 109, VI)............... 482 4.6.1. Crimes contra a organização do trabalho..................................................... 482 4.6.2. Crimes contra o sistema financei­ ro e a ordem econômico-financeira......... 485 4.6.2.1. Varas especializadas para pro­ cessar e julgar os crimes contra o siste­ ma financeiro nacional e os delitos de lavagem de capitais..................................

489

4.7. Habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangi­ mento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição (CF, Art. 109, VII).............................

491

4.8. Mandados de segurança contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos Tribunais Federais (CF, Art. 109, VIII)........................................................... 492 4.9. Crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar (CF, Art. 109, inciso IX)............. 493 4.10. Crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro (CF, Art. 109, X)......... 495 4.11. Disputa sobre direitos indígenas (CF, Art. 109, XI)...................................................... 496 4.11.1.

Genocídio contra índios............ 498

4.3.12. Crime praticado contra funcio­ nário público federal................................ 451

4.12. Conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual.......... 500

4.3.13. Crime praticado por funcionário público federal......................................... 453

5. Competência Criminal da Justiça Estadual......... 501

4.3.14. Tribunal do Júri Federal................ 454 4.3.15. Crimes contra o meio ambiente.... 455

6. Justiça Política ou Extraordinária....................... 502

4.3.16. Crimes contra a fé pública............ 459

CAPÍTULO III - COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FU N Ç Ã O ......................................

4.3.17. Execução penal............................. 466

1. Conceito.............................................................. 506

4.3.18. Contravenções penais.................. 467

2. Regras básicas..................................................... 507

4.3.19. Atos infracionais........................... 468

2.1. Investigação e indiciamento de pessoas com foro por prerrogativa de função.............. 507

4.3.20. Crimes previstos na Lei Antiterrorismo (Lei n5 13.260/16)........................ 468 4.4. Crimes previstos em tratado ou conven­ ção internacional, quando, iniciada a execu­ ção no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciproca­ mente (CF, Art. 109, inciso V).......................... 469

506

2.2. Arquivamento de inquérito nas hipóte­ ses de atribuição originária do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral da República.......................................................... 507 2.3. Duplo grau de jurisdição.......................... 507

4.4.1. Tráfico internacional de drogas...... 471

2.4. Crime cometido durante o exercício funcional (regra da contemporaneidade)....... 507

4.4.2. Rol exemplifícativo de crimes de competência da Justiça Federal com

2.5. Infração penal praticada antes do exer­ cício funcional (regra da atualidade)............... 510

SUMÁRIO

17

2.6. Crime cometido após o exercício fun­ cional................................................................ 513

CAPÍTULO IV - COMPETÊNCIA TERRITORIAL ...

2.7. Dicotomia entre crime comum e crime de responsabilidade......................................... 513

2. Competência territorial pelo lugar da consu­ mação da infração..................................................

2.8. Local da infração......................................

514

3. Casuística............................................................. 546

2.9. Crime doloso contra a vida...................... 515

3.1. Quanto às espécies deinfração penal...... 546

2.10. Hipóteses de concurso de agentes......... 516

3.1.1. Crimes de mera conduta................ 546

2.11. Constituições Estaduais e princípio da simetria............................................................ 518

3.1.2. Crimes formais...............................

547

3.1.3. Crimes materiais.............................

547

2.12. Exceção da verdade................................

545

1. Introdução........................................................... 545

520

545

3.1.4. Crimes qualificados pelo resultado. 548

2.13. Atribuições dos membros do Ministé­ rio Público perante os Tribunais Superiores.... 522

3.1.5. Crimes permanentes...................... 548 3.1.6. Infrações em continuidade delitiva. 548

2.14. Procedimento originário dos Tribunais... 523

3.1.7. Crimes plurilocais: princípio do esboço do resultado.................................

3. Casuística............................................................. 524 3.1. Quanto à competência dos Tribunais....... 524

548

3.1.1. Supremo Tribunal Federal.............. 524

3.1.8. Crimes à distância ou de espaço máximo...................................................... 549

3.1.2. Superior Tribunal de Justiça........... 525

3.1.9. Crimes cometidos no estrangeiro... 550

3.1.3. Tribunal Superior Eleitoral.............. 527

3.1.10. Infrações cometidas a bordo de embarcações ou aeronaves...................... 552

3.1.4. Superior Tribunal Militar................ 527

3.1.11. Infrações cometidas na divisa de duas ou mais comarcas....................... 553

3.1.5. Tribunais Regionais Federais.......... 527 3.1.6. Tribunais Regionais Eleitorais......... 528 3.1.7. Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal.................................

3.1.12. Crimes previstos na Lei de Im­ prensa (ADPF ne 130)...............................

528

553

3.1.13. Crimes falimentares..................... 554

3.1.8. Tribunal de Justiça Militar do Es­ tado de São Paulo....................................

529

3.1.14. Atos infracionais...........................

554

3.1.9. Senado Federal...............................

529

3.2. Quanto aos crimes em espécie..............

554

3.1.10. Tribunal Especial........................... 530 3.1.11. Câmara Municipal........................ 530 3.2. Quanto aos titulares de foro por prer­ rogativa de função............................................ 530

4. Competência territorial pela residência ou domicílio do ré u ...................................................... 557 5. Competência territorial na Justiça Federal, na Justiça Militar (da União e dos Estados) e na Justiça Eleitoral........................................................ 559

3.2.1. Presidente da República................. 530 3.2.2. Deputados federais e Senadores.... 531

CAPÍTULO V - COMPETÊNCIA DE JUÍZO...............

3.2.3. Ministros de Estado........................ 532

1. Determinação do juízo competente................... 560

3.2.4. Membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público....................................

2. Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher......................................................

561

3. Juízo colegiado em primeiro grau de jurisdi­ ção para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas.........................................

566

533

3.2.5. Governador de Estado................... 534 3.2.6. Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Fe­ deral e membros dos Tribunais Regio­ nais Federais.............................................. 536 3.2.7. Membros do Ministério Público Estadual e Juizes Estaduais....................... 536 3.2.8. Membros do Ministério Público da União.................................................... 538 3.2.9. Deputados Estaduais...................... 539 3.2.10. Prefeitos municipais..................... 540 3.2.11. Vereadores...................................

542

4. Quadro sinóptico de competência por prerro­ gativa de função...................................................... 543

3.1. Conceito legal de organizações crimino­ sas

560

566

3.2. Formação do juízo colegiado em primei­ ro grau.............................................................. 569 4. Competência do Juízo da Execução Penal.......... 575 5. Competência por distribuição............................

579

6. Competência por prevenção.............................. 580 CAPÍTULO VI - MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA...................................................................

1.

584

Conexão e continência.................................... 584 1.1.

Introdução............................................. 584

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

18

1.2. Conexão..................................................... 586 1.3. Continência..............................................

587

1.4. Efeitos da conexão e da continência........ 588 1.5. Foro prevalente........................................

590

1.5.1. Competência prevalente do Tri­ bunal do Júri.............................................. 590

1.2. Distinção entre prova e elementos in­ formativos ........................................................ 606 1.3. Provas cautelares, não repetíveis e an­ tecipadas .......................................................... 607 1.4. Destinatários da prova.............................

609

1.5. Elemento de prova eresultado da prova.. 609

1.5.2. Jurisdições distintas........................ 590

1.6. Finalidade da prova..................................

610

1.5.2.1. Concurso entre a jurisdição comum e a especial..................................

1.7. Sujeitos da prova......................................

610

590

1.8. Forma da prova........................................

611

1.5.2.2. Concurso entre órgãos de juris­ dição superior e inferior...........................

591

1.9. Fonte de prova, meios de prova e meios de obtenção de prova..................................... 611

1.5.2.3. Concurso entre a Justiça Fede­ ral e a Estadual.........................................

591

1.5.3. Jurisdições da mesmacategoria..... 591

1.9.1. Meios extraordinários de ob­ tenção de prova (técnicas especiais de investigação).............................................

613

1.6. Separação de processos........................... 592

1.10. Prova direta e prova indireta.................. 613

1.6.1. Separação obrigatória dos pro­ cessos ........................................................ 593

1.11. Indício: prova indireta ou prova semiplena................................................................. 614

1.6.1.1. Concurso entre a jurisdição comum e a militar....................................

1.12. Suspeita................................................... 615 593

1.13. Objeto da prova.....................................

616

1.6.1.2. Concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores.............. 593

1.14. Prova direta (positiva) e contrária (ne­ gativa); a contraprova.....................................

618

1.6.1.3. Doença mental superveniente à prática delituosa.................................... 594

1.15. Prova emprestada..................................

619

1.6.1.4. Citação por edital de um dos corréus, seguida de seu não-comparecimento e não-constituição de defensor .. 594

1.17. Prova típica e prova atípica.................... 622

1.6.1.5. Antiga hipótese de ausência de intimação da pronúncia ou de não-comparecimento do acusado à sessão de julgamento do júri, em se tratando de crime inafiançável............................... 594

1.19. Critérios de decisão (standards proba­ tórios) ............................................................... 624

1.6.1.6. Recusas peremptórias no júri...... 595 1.6.1.7. Suspensão do processo em re­ lação ao colaborador................................ 1.6.2.

1.16. Prova nominada e prova inominada...... 622 1.18. Prova anômala e prova irritual............... 623

1.20. Cadeia de custódia das provas............... 625 2. Ônus da prova..................................................... 627 2.1. Conceito.................................................... 627 2.2. Ônus da prova perfeito e menos perfeito. 627

595

Separação facultativa de processos 595

1.6.2.1. Infrações praticadas em cir­ cunstâncias de tempo ou de lugar di­ ferentes ..................................................... 597 1.6.2.2. Excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão pro­ visória........................................................ 597 1.6.2.3. Motivo relevante pelo qual o juiz repute conveniente a separação....... 598 1.7. Perpetuação da competência nas hipó­ teses de conexão e continência...................... 598

2.3. Ônus da prova objetivo e subjetivo......... 628 2.4. Distribuição do ônus da prova no pro­ cesso penal....................................................... 629 2.4.1. Ônus da prova da acusação e da defesa........................................................ 629 2.4.2. Ônus da prova exclusivo da acu­ sação

631

2.5. Inversão do ônus da prova....................... 633 3. Iniciativa probatória do juiz: a gestão da prova pelo magistrado.....................................................

634

3.1. Iniciativa probatória do juiz na fase investigatória....................................................... 634

2. Prorrogação de competência.............................

600

3. Perpetuação de competência.............................

601

TÍTULO 5 • PR O V A S........................................................

605

4.1. Sistema da íntima convicção do magis­ trado................................................................. 637

CAPÍTULO I - TEORIA GERAL DAS PROVAS........

605

4.2. Sistema da prova tarifada........................

638

1.

605

4.3. Sistema do convencimento motivado (persuasão racional do juiz)............................

639

3.2. Iniciativa probatória do juiz no curso do processo penal................................................. 635 4. Sistemas de avaliação da prova.......................... 637

Terminologia da prova..................................... 1.1.

Acepções da palavra prova.................... 605

SUMÁRIO

5. Da prova ilegal..................................................... 641

19

6.6.

Princípio do favor rei.............................

674

CAPÍTULO II - MEIOS DE PROVA E MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA EM ESPÉCIE................

674

5.1. Limitações ao direito à prova................... 641 5.1.1. Provas ilícitas e ilegítimas............... 642 5.1.2. Tratamento da (in) admissibilida­ de das provas ilícitas e ilegítimas............. 644 5.2. Prova ilícita por derivação (teoria dos frutos da árvore envenenada).........................

646

5.3. Limitações à prova ilícita por derivação.... 649 5.3.1. Da teoria da fonte independente.... 649

1. Exame de corpo de delito e outras perícias....... 674 1.1. Corpo de delito.........................................

674

1.2. Exame de corpo de delito e outras pe­ rícias ................................................................. 675 1.3. Laudo pericial............................................ 676

5.3.2. Teoria da descoberta inevitável..... 650

1.3.1. Momento para a juntada do lau­ do pericial.................................................. 677

5.3.3. Limitação da mancha purgada (vícios sanados ou tinta diluída)............... 652

1.3.2. Sistemas de apreciação dos lau­ dos periciais..............................................

5.3.4. Exceção da boa-fé..........................

654

1.3.3. Laudo pericial e contraditório........ 678

5.3.5. A teoria do risco.............................

654

5.3.6. Limitação da destruição da men­ tira do imputado......................................

655

1.4. Obrigatoriedade do exame de corpo de delito: infrações transeuntes e não tran­ seuntes............................................................. 678

5.3.7. Doutrina da visão aberta................ 655 5.3.7.1. Teoria do encontro fortuito de provas (serendipidade) e crime achado.... 656 5.3.8. Limitação da renúncia do interes­ sado

678

1.5. Exame de corpo de delito direto e indi­ reto................................................................... 679 1.5.1. Casuística........................................

680

1.6. Ausência do exame de corpo de delito.... 683 658

1.7. Peritos: oficiais e não oficiais................... 684

5.3.9. A limitação da infração constitu­ cional alheia.............................................. 659

1.7.1. Número de peritos......................... 685

5.3.10. A limitação da infração constitu­ cional por pessoas que não fazem parte do órgão policial.......................................

659

5.4. Inutilização da prova ilícita....................... 660 5.4.1. Inutilização da prova ilícita no Tribunal do Júri.......................................... 662 5.5. Descontaminação do julgado................... 663

1.8. Assistente técnico.....................................

687

1.9. Autópsia e exumação para exame cadavérico............................................................ 688 1.10. Laudo pericial complementar no crime de lesões corporais..........................................

688

1.11. Exame pericial de local de crime............ 689 1.12. Perícias de laboratório...........................

689

6. Princípios relativos à prova penal...................... 663

1.13. Exame pericial para avaliação do pre­ juízo causado pelo delito................................. 689

6.1. Princípio da proporcionalidade................ 663

1.14. Exame pericial nos casos de incêndio.... 690

6.1.1. Princípio da proporcionalidade e prova ilícita pro reo..................................

663

1.15. Exame pericial para reconhecimento de escritos.......................................................

690

6.1.2. Princípio da proporcionalidade e prova ilícita pro societate......................... 664

1.16. Exame pericial dos instrumentos do crime................................................................ 690

6.2. Princípio da comunhão da prova............. 667

1.17. Exame pericial por meio de carta pre­ catória .............................................................. 690

6.3. Princípio da autorresponsabilidade das partes............................................................... 667 6.4. Princípio da oralidade..............................

2. Interrogatório judicial.........................................

691

667

2.1. Conceito...................................................

691

6.4.1. Princípio da identidade física do juiz............................................................. 668

2.2. Natureza jurídica......................................

691

6.4.1.1. Magistrados instrutores e prin­ cípio da identidade física do juiz.............. 670 6.5. Princípio da liberdade probatória............ 671 6.5.1. Liberdade probatória quanto ao momento da prova...................................

672

6.5.2. Liberdade probatória quanto ao tema da prova........................................... 672 6.5.3. Liberdade probatória quanto aos meios de prova.........................................

2.3. Momento para a realização do interro­ gatório .............................................................. 692 2.4. Condução coercitiva.................................

694

2.5. Foro competente para a realização do interrogatório................................................... 696 2.6. Ausência do interrogatório....................... 696 2.7. Características do interrogatório.............. 697 2.7.1. Ato personalíssimo......................... 697

672

2.7.2. Ato contraditório............................

697

20

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

2.7.3. Ato assistido tecnicamente............ 698 2.7.4. Ato oral...........................................

699

2.7.5. Ato individual.................................

699

2.7.6. Ato bifásico..................................... 700 2.7.7. Ato protegidopelo direito ao si­ lêncio

700

2.7.8. Liberdade de autodeterminação.... 701 2.7.9. Ato público..................................... 703 2.7.10. Ato realizável a qualquer mo­ mento, antes do trânsito em julgado....... 703 2.8. Local da realização do interrogatório....... 704 2.9. Nomeação de curador.............................. 705 2.10. Interrogatório por videoconferência...... 705 2.10.1. Breve histórico da Lei ne 11.900/09: a Lei paulista ne 11.819/05 705 2.10.2. A entrada em vigor da Lei n2 11.900/09............................................

706

2.10.3. Finalidades do uso da videocon­ ferência...................................................... 708 2.10.4. Intimação das partes da realiza­ ção da videoconferência.......................... 709 2.10.5. Direito de presença remota do acusado aos demais atos da audiência una de instrução e julgamento................ 709 2.10.6. Direito de entrevista prévia e reservada com o defensor........................ 709 2.10.7. Da (in) constitucionalidade do interrogatório por videoconferência........ 710 3. Confissão............................................................. 711 3.1. Conceito.................................................... 711

5.5. Procedimento para a oitiva de testemu­ nhas.................................................................. 725 5.5.1. Apresentação do rol de testemu­ nhas

725

5.5.2. Intimação das testemunhas........... 726 5.5.3. Substituição de testemunhas......... 727 5.5.4. Desistência da oitiva de testemu­ nhas

727

5.5.5. Incomunicabilidade das testemu­ nhas

728

5.5.6. Retirada do acusado da sala de audiência................................................... 728 5.5.7. Assunção do compromisso de dizer a verdade.......................................... 729 5.5.8. Qualificação da testem unha.......... 729 5.5.9. Contradita e arguição de parcia­ lidade da testem unha..............................

730

5.5.10. Colheita do depoimento: exa­ me direto (direct-examination) e exame cruzado (cross-examination).................... 730 5.5.11. Inversão da ordem de oitiva das testemunhas.............................................. 733 5.6. Direito ao confronto e produção de prova testemunhai incriminadora................... 734 5.6.1. Testemunhas anônimas e direito ao confronto.............................................. 736 5.6.2. Testemunhas ausentes e direito ao confronto.............................................. 738 6. Reconhecimento de pessoas e coisas................ 739 6.1. Conceito e natureza jurídica.....................

739

6.2. Procedimento............................................ 740

3.2. Classificação da confissão........................ 712

6.3. Reconhecimento fotográfico e fonográfico.................................................................... 740

3.3. Características da confissão..................... 712

7. Acareação............................................................ 741

3.4. Valor probatório da confissão.................. 713

7.1. Conceito e natureza jurídica.....................

741

3.5. Circunstância atenuante da confissão...... 713

7.2. Procedimento probatório.........................

742

4. Declarações do ofendido....................................

714

7.3. Valor probatório........................................ 743

5. Prova testemunhai.............................................

715

8. Prova documental............................................... 743

5.1. Conceito de testemunha e sua natureza jurídica.............................................................. 715

8.1. Conceito e espécies................................... 743

5.2. Características da prova testemunhai...... 715 5.3. Deveres das testemunhas........................ 717

8.2. Produção da prova documental............... 744 8.3. Tradução de documentos em língua estrangeira........................................................ 746

5.3.1. Dever de depor.............................. 717

8.4. Restituição de documentos...................... 746

5.3.2. Dever de comparecimento............. 718

9. Indícios................................................................ 746

5.3.3. Dever de prestar o compromisso de dizer a verdade.................................... 721

10. Busca e apreensão............................................ 746

5.3.4. Dever de comunicar mudança de residência.................................................. 722 5.4. Espécies de testemunhas......................... 722 5.4.1. Testemunhas vulneráveis e de­ poimento sem dano (depoimento es­ pecial)........................................................ 724

10.1. Conceito e natureza jurídica................... 746 10.2. Iniciativa e decretação...........................

747

10.3. Objeto...................................................... 748 10.4. Espécies de busca.................................... 750 10.4.1. 10.4.1.1.

Busca domiciliar........................ 750 Mandado de busca e apreensão 755

21

SUMÁRIO

10.4.1.2. Execução da busca domiciliar.... 756 10.4.1.3. Descoberta de outros elemen­ tos probatórios e teoria do encontro fortuito de provas.....................................

757

10.4.2. Busca pessoal............................. 758 11. Interceptação telefônica................................. 759 11.1. Sigilo da correspondência, das comu­ nicações telegráficas, de dados e das comu­ nicações telefônicas......................................... 759

11.11.1. Encontro fortuito de diálogos mantidos com autoridade dotada de foro por prerrogativa de função e mo­ mento adequado para a remessa dos autos ao Tribunal competente................. 790 11.12. Procedimento.......................................

792

11.13. Decretação da interceptação telefô­ nica de ofício pelo juiz.....................................

793

11.14. Segredo de justiça................................

794

11.2. Direito intertemporal e Lei n3 9.296/96.. 760

11.15. Duração da interceptação.................... 794

11.3. Conceito de interceptação.....................

762

11.16. Execução da interceptação telefônica... 796

11.4. Interceptação e escuta ambiental.......... 764

11.17. Incidente de inutilização da gravação que não interessar à prova.............................. 799

11.5. Gravações clandestinas (telefônicas e ambientais)....................................................... 766 11.6. Comunicações telefônicas de qualquer natureza............................................................ 769 11.6.1. Gerações de provas (trilogia Olmstead-Katz-Kyllo) e (des) necessidade de autorização judicial para a extração de dados e de conversas registradas em aparelhos celulares apreendidos.............. 771 11.6.1.1. Direito probatório de l 3 gera­ ção: o caso Olmstead...............................

771

11.6.1.2. Direito probatório de 23 gera­ ção: o caso Katz......................................... 772 11.6.1.3. Direito probatório de 33 gera­ ção: o caso Kyllo.......................................

772

11.6.1.4. (Des) necessidade de autori­ zação judicial prévia para a extração de dados e de conversas registradas em aparelhos celulares apreendidos............. 773 11.7. Quebra do sigilo de dados telefônicos.... 775 11.8. Finalidade da interceptação telefônica: obtenção de elementos probatórios em in­ vestigação criminal ou instrução processual penal................................................................. 776 11.9. Requisitos para a interceptação tele­ fônica................................................................ 778 11.9.1. Ordem fundamentada da auto­ ridade judiciária competente (teoria do juízo aparente).........................................

11.18. Resolução n3 59 do Conselho Nacio­ nal de Justiça.................................................... 800 11.19. Caso Escher e outros (Corte Interamericana de Direitos Humanos)...................... 801 12. Quebra do sigilo de dados bancários, finan­ ceiros e fiscais......................................................... 801 13. Colaboração premiada.....................................

807

13.1. Origem e conceito..................................

807

13.2. Distinção entre colaboração premiada e delação premiada (chamamento de corréu). 808 13.3. Ética e moral...........................................

810

13.4. Direito ao silêncio...................................

810

13.5. Previsão normativa................................. 811 13.5.1. Lei de proteção às testemunhas (Lei n3 9.807/99)......................................

815

13.5.2. Nova Lei das Organizações Cri­ minosas (Lei n3 12.850/13)...................... 816 13.6. Voluntariedade e motivação da cola­ boração............................................................. 818 13.7. Eficácia objetiva da colaboração pre­ miada................................................................ 819 13.8. Prêmios legais........................................

821

13.9. Natureza jurídica da colaboração pre­ miada................................................................ 827

779

13.10. Valor probatório da colaboração pre­ miada: regra da corroboração......................... 828

11.9.1.1. Da fundamentação da decisão... 782

13.11. Acordo de colaboração premiada........ 830

11.9.2 Indícios razoáveis de autoria ou participação..............................................

783

13.11.1. Legitimidade para a celebração do acordo de colaboração premiada....... 832

11.9.3. Quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis........... 784

13.11.2. Retratação do acordo................. 835

11.9.4. Infração penal punida com pena de reclusão (crime de catálogo)............... 785 11.9.5. Delimitação da situação objeto da investigação e do sujeito passivo da interceptação............................................ 786 11.10. Sigilo profissional do advogado............ 787 11.11. Encontro fortuito de elementos pro­ batórios em relação a outros fatos delituo­ sos (serendipidade).........................................

788

13.11.2.1. Distinção entre retratação, rescisão e anulação do acordo de cola­ boração premiada....................................

836

13.11.3. Intervenção do juiz..................... 837 13.11.4. Momento para a celebração do acordo de colaboração premiada....... 841 13.11.5. Publicidade do acordo de co­ laboração premiada.................................

843

14. Ação controlada...............................................

843

22

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

14.1. Conceito e previsão legal....................... 843 14.2. (Des) necessidade de prévia autoriza­ ção judicial........................................................ 845 14.3. Flagrante prorrogado, retardado ou diferido............................................................. 847 14.4. Entrega vigiada....................................... 15.

848

Infiltração de agentes.................................... 849 15.1. Conceito e previsão normativa.............. 849 15.2. Atribuição para a infiltração: agentes de polícia.........................................................

851

15.2.1. (Im) possibilidade de infiltração de particulares.........................................

851

15.3. Requisitos para a infiltração................... 852 15.4. Duração da infiltração............................ 854 15.5. Agente infiltrado e agente provocador (entrapment doctrine ou teoriada armadilha) 855

5.5. Descumprimento injustificado das obri­ gações inerentes às medidas cautelares......... 882 5.6. Revogabilidade e/ou substitutividade das medidas cautelares...................................

885

5.7. Recursos cabíveis....................................... 888 5.7.1. Em favor da acusação..................... 888 5.7.2. Em favor do acusado...................... 889 5.8. Duração e extinção das medidas caute­ lares de natureza pessoal................................

890

5.9. Detração.................................................... 890 CAPÍTULO II - PR ISÃ O ...................................................

892

1. Conceito de prisão e seu fundamento consti­ tucional.................................................................... 892 2. Espécies de prisão..............................................

893

3. Prisão Extrapenal................................................. 893

15.6. Sustação da operação............................ 857

3.1. Prisão civil................................................. 893

15.7. Responsabilidade criminal do agente infiltrado........................................................... 857

3.1.1. Prisão civil do devedor de alimen­ tos e do depositário infiel........................ 893

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL.......................................................

859

CAPÍTULO I - DAS PREMISSAS FUNDAMENTAIS E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS..............................................................

859

3.1.2. Prisão do falido..............................

895

3.2. Prisão administrativa................................

896

3.2.1. Prisão do estrangeiro para fins de extradição, expulsão e deportação.......... 898 3.3. Prisão militar............................................. 900

1. A tutela cautelar no processo penal.................. 859 1.1. Lei n9 12.403/11 e o fim da bipolaridade das medidas cautelares de natureza pessoal previstas no Código de Processo Penal................................................................. 861 2. Princípios aplicáveis às medidas cautelares de natureza pessoal...................................................... 863 2.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade)................................................... 864 2.2. Da jurisdicionalidade (princípio tácito ou implícito da individualização da prisão e não somente da pena).................................... 864 2.2.1. Da vedação da prisão ex lege......... 866 2.3. Da proporcionalidade............................... 867 3. Pressupostos das medidas cautelares: fumus comissi delicti e periculum libertatis...................... 872

3.3.1. Da prisão militar em virtude de transgressão disciplinar............................

900

3.3.2. Da prisão militar em virtude de crime propriamente militar...................... 901 4. Prisão penal (career ad poenam)....................... 903 5. Prisão Cautelar (career ad custodiam)............... 904 6. Momento da prisão............................................. 906 6.1. Inviolabilidade do domicílio..................... 906 6.2. Conceito de d ia........................................

906

6.3. Cláusula de reserva de jurisdição............. 906 6.4. Momento da prisão e CódigoEleitoral..... 907 7. Imunidades prisionais........................................

907

7.1. Presidente da República e Governado­ res de Estado.................................................... 907 7.2. Imunidade diplomática............................

908

4. Características das medidas cautelares.............. 875

7.3. Senadores, deputados federais, esta­ duais ou distritais............................................. 910

5. Procedimento para a aplicação das medidas cautelares de natureza pessoal.............................. 877

7.4. Magistrados e membros do Ministério Público.............................................................. 912

5.1. Aplicação isolada ou cumulativa das medidas cautelares.........................................

7.5. Advogados................................................. 913 877

5.2. Decretação de medidas cautelares pelo juiz de ofício..................................................... 877 5.3. Legitimidade para o requerimento de decretação de medida cautelar....................... 878 5.4. Contraditório prévio à decretação das medidas cautelares.........................................

7.6. Menores de 18 anos.................................

914

8. Prisão e emprego de força.................................

914

8.1. Instrumentos de menor potencial ofen­ sivo (ou não letais)........................................... 915 9. Mandado de prisão............................................. 915

880

9.1. Cumprimento do mandado de prisão...... 918

23

SUMÁRIO

9.2. Difusão vermelha (red notice)................. 924 9.2.1. Difusão vermelha a ser executada no exterior................................................. 924 9.2.2. Difusão vermelha a ser cumprida no Brasil..................................................... 924 10. Prisão Especial e separação de presos provi­ sórios....................................................................... 925 10.1. Prisão de índios....................................... 929 11. Sala de Estado-Maior.......................................

930

CAPÍTULO III - DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E CONVENCIONAIS ATINENTES À TUTELA DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO......................................................................

932

1. Da observância dos direitos fundamentais no Estado de Direito..................................................... 932 2. Do respeito à integridade física e moral do preso........................................................................ 933 2.1. Respeito à integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia.................... 934 2.2. Respeito à integridade física e moral do preso e uso de algemas................................... 937 2.2.1. Vedação ao uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres durante a fase de puerpério imediato........................................... 938

7.2. Flagrante impróprio, imperfeito, irreal ou quase-flagrante..........................................

959

7.3. Flagrante presumido, ficto ou assimilado. 960 7.4. Flagrante preparado, provocado, crime de ensaio, delito de experiência ou delito putativo por obra do agenteprovocador......... 961 7.5. Flagrante esperado...................................

962

7.5.1. Venda simulada de droga............... 963 7.6. Flagrante prorrogado, protelado, retar­ dado ou diferido: ação controlada e entrega vigiada.............................................................. 964 7.7. Flagrante forjado, fabricado, maquina­ do ou urdido..................................................... 965 8. Prisão em flagrante nas várias espécies de crimes...................................................................... 965 8.1. Prisão em flagrante em crime perma­ nente ................................................................ 965 8.2. Prisão em flagrante em crime habitual.... 966 8.3. Prisão em flagrante em crime de ação penal privada e em crime de ação penal pública condicionada.......................................

967

8.4. Prisão em flagrante em crimes formais .... 967 8.5. Prisão em flagrante em crime continua­ do (flagrante fracionado)................................

968

2.3. Caso Damião Ximenes Lopes................... 939

9. Flagrante e apresentação espontânea do agente...................................................................... 968

3. Da comunicação imediata da prisão ao juiz competente e ao Ministério Público...................... 939

10. Lavratura do auto de prisão em flagrante delito....................................................................... 969

4. Da comunicação imediata da prisão à família do preso ou à pessoa por ele indicada.................. 941

10.1. Autoridade com atribuições para a lavratura do auto de prisão em flagrante....... 970

5. Do direito ao silêncio (nemo tenetur se detegere)........................................................................ 942

10.2. Condutor e testemunhas........................ 971

6. Da assistência de advogado ao preso................ 942

10.4. Fracionamento do auto de prisão em flagrante delito................................................. 974

7. Do direito do preso à identificação dos res­ ponsáveis por sua prisão ou por seu interroga­ tório policial............................................................ 945 8. Do relaxamento da prisão ilegal......................... 946

10.3. Interrogatório do preso.......................... 972

10.5. Prazo para a lavratura do auto de pri­ são em flagrante delito.................................... 974

9. Audiência de custódia (ou de apresentação)..... 948

10.6. Relaxamento da prisão em flagrante pela autoridade policial (auto de prisão em flagrante negativo)..........................................

CAPÍTULO IV - DA PRISÃO EM FLAGRANTE......

953

10.7. Recolhimento à prisão............................ 975

1. Conceito de prisão em flagrante........................ 953

10.8. Remessa do auto à autoridade com­ petente............................................................. 975

2. Funções da prisão em flagrante......................... 953 3. Fases da prisão em flagrante.............................. 954 4. Natureza jurídica da prisão em flagrante delito.. 955 5. Sujeito ativo da prisão em flagrante.................. 957

974

10.9. Remessa do auto de prisão em flagran­ te delito à autoridade judiciária...................... 976

5.1. Flagrante facultativo.................................. 957

10.10. Remessa do auto de prisão em fla­ grante à Defensoria Pública, se o autuado não informar o nome de seu advogado.......... 976

5.2. Flagrante obrigatório, compulsório ou coercitivo.......................................................... 958

11. Convalidação judicial da prisãoem flagrante.... 977

6. Sujeito passivo do flagrante...............................

958

7. Espécies de flagrante..........................................

958

7.1. Flagrante próprio, perfeito, real ou ver­ dadeiro............................................................. 959

10.11. Nota de culpa........................................ 976 11.1. Relaxamento da prisão em flagrante ilegal................................................................. 978 11.2. Conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária).............................

978

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

24

11.3. Concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada (ou não) com as medidas cautelares diversas da prisão....... 982 CAPÍTULO V - DA PRISÃO PREVENTIVA...............

983

1. Conceito de prisão preventiva...........................

983

2. Decretação da prisão preventiva durante a fase preliminar de investigações............................

8.3. Natureza do prazo para o encerramento do processo e princípio da proporcionalidade. 1014 8.4. Hipóteses que autorizam o reconheci­ mento do excesso de prazo...............................1014 8.5. Excesso de prazo provocado pela defesa.. 1016

984

8.6. Excesso de prazo após a pronúncia ou o encerramento da instrução criminal: mi­ tigação das súmulas 21 e 52 do STJ..................1017

3. Decretação da prisão preventiva durante o curso do processo criminal.................................... 986

8.7. Excesso de prazo e aceleração do julga­ mento ................................................................ 1018

3.1. Concessão antecipada de benefícios prisionais ao preso cautelar............................ 987

8.8. Relaxamento da prisão por excesso de prazo e decretação de nova prisão...................1019

4. Iniciativa para a decretação da prisão preven­ tiva........................................................................... 988

8.9. Excesso de prazo e efeito extensivo.......... 1019

4.1. Decretação da prisão preventiva pelo juiz de ofício..................................................... 988 4.2. Legitimidade para o requerimento de decretação da prisão preventiva..................... 988 5. Pressupostos....................................................... 989 5.1. Fumus comissi delicti............................... 989 5.2. Periculum libertatis..................................

990

8.10. Relaxamento da prisão preventiva e liberdade plena................................................. 1019 8.11. Relaxamento da prisão e natureza da infração penal....................................................1020 8.12. Excesso de prazo e investigado ou acu­ sado solto.......................................................... 1020 9. Fundamentação da decisão que decreta a prisão preventiva...................................................... 1021

5.2.1. Garantia da ordem pública............. 991

9.1. Fundamentação per relationem.................1023

5.2.2. Garantia da ordem econômica....... 995

10. Revogação da prisão preventiva.........................1024

5.2.3. Garantia de aplicação da lei penal.. 997

11. Apresentação espontânea do acusado..............1024

5.2.3.1. Prisão de estrangeiros e garan­ tia de aplicação da lei penal..................... 998

12. Prisão preventiva no Código de Processo Penal Militar............................................................. 1025

5.2.4.

Conveniência da instrução criminal 1000

5.2.5. Descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.........................1001 6. Hipóteses de admissibilidade da prisão pre­ ventiva ...................................................................... 1001 6.1. Crimes dolosos punidos com pena má­ xima superior a 4 (quatro) anos........................1001 6.2. Investigado ou acusado condenado por outro crime doloso em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no art. 64, inciso I, do Código Penal.............................1003 6.3. Quando o crime envolver violência do­ méstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência........................1003 6.4. Dúvida sobre a identidade civil da pes­ soa ou não fornecimento de elementos suficientes para seu esclarecimento.................1006 7. Prisão preventiva e excludentes de ilicitude e de culpabilidade.......................................................1008 8. Duração da prisão preventiva e excesso de prazo na formação da culpa.....................................1009 8.1. Noções introdutórias..................................1009 8.2. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e novo pra­ zo para a conclusão do processo quando o acusado estiver preso.......................................1011

CAPÍTULO VI - DA PRISÃO TEMPORÁRIA........... 1026

1. Origem.................................................................. 1026 2. Conceito de prisão temporária............................1028 3. Requisitos............................................................. 1028 3.1. Da imprescindibilidade da prisão tem­ porária para as investigações............................1030 3.2. Ausência de residência fixa e não for­ necimento de elementos necessários ao esclarecimento da identidade do indiciado....1031 3.3. Fundadas razões de autoria ou partici­ pação do indiciado nos crimes listados no inciso III do art. I 9 da Lei ne 7.960/89 e no art. 2e, § 42, da Lei n9 8.072/90........................1032 4. Do procedimento................................................. 1038 5. Prazo..................................................................... 1039 6. Direitos e garantias do preso temporário........... 1040 CAPÍTULO VII - DAS PRISÕES DECORRENTES DE PRONÚNCIA E DE SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRÍVEL................................... 1041

1. Análise histórica das prisões decorrentes de pronúncia e de sentença condenatória recorrível.. 1041 CAPÍTULO VIII - DA PRISÃO DOMICILIAR........... 1 048

1. Da prisão domiciliar............................................. 1048

SUMÁRIO

25

1.1. Hipóteses de admissibilidade e ônus da prova................................................................. 1050

5.1. Conceito e natureza jurídica da fiança..... 1093

1.2. Fiscalização da prisão domiciliar................ 1054

5.3. Concessão de fiança pela autoridade policial............................................................... 1095

1.3. Saídas controladas......................................1055 1.4. Utilização da prisão domiciliar como medida cautelar diversa da prisãopreventiva. 1055 1.5. Detração..................................................... 1056 CAPÍTULO IX - DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL DIVERSAS DA PRISÃO 1 0 5 7

1. Da ampliação do rol de medidas cautelares de natureza pessoal previstas no Código de Proces­ so Penal.................................................................... 1057 2. Compareciménto periódico em juízo...................1058 3. Proibição de acesso ou frequência a determi­ nados lugares............................................................1059 4. Proibição de manter contato com pessoa de­ terminada................................................................. 1061 5. Proibição de ausentar-se da Comarca ou do País........................................................................... 1062 6. Recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acu­ sado tenha residência e trabalho fixos....................1063 7. Suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira 1064 8. Internação provisória...........................................1069 9. Fiança....................

1072

10. Monitoração eletrônica......................................1073 11. Medidas cautelares de natureza pessoal di­ versas da prisão previstas na legislação especial.... 1076 12. Poder geral de cautela no processo penal........ 1079 CAPÍTULO X - DA LIBERDADE PROVISÓRIA....... 108 2

1. Conceito............................................................... 1082 2. Distinção entre relaxamento da prisão, liberdade provisória e revogação da prisão cautelar................1085 2.1. Quadro comparativo entre relaxamento da prisão, revogação da prisão cautelar e liberdade provisória.......................................... 1086 3. Espécies de liberdade provisória..........................1087 4. Liberdade provisória sem fiança..........................1087 4.1. Revogada liberdade provisória sem fiança nas hipóteses em que o conduzido livrava-se solto................................................... 1087 4.2. Liberdade provisória sem fiança nas hipóteses de descriminantes.............................1088 4.3. Revogada liberdade provisória sem fian­ ça pela inexistência de hipótese que auto­ rizasse a prisão preventiva (antiga redação do art. 310, parágrafo único)............................1090

5.2. Momento para a concessão da fiança.....1094

5.4. Valor da fiança............................................1096 5.5. Infrações inafiançáveis...............................1097 5.5.1. Infrações inafiançáveis que passaram a admitir fiança após a Lei n9 12.403/11..............................................1097 5.5.1.1. Crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada fosse superior a 2 (dois) anos (antiga redação do art. 323, I)..............................................1097 5.5.1.2. Contravenções tipificadas no art. 59 e no revogado art. 60 da Lei das Contravenções Penais (antiga redação do art. 323, II).............................................1097 5.5.1.3. Crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade, se o réu já tivesse sido condenado por outro crime doloso em sentença transitada em julgado (antiga redação do art. 323, III)............................................................... 1098 5.5.1.4. Em qualquer caso, se houvesse no processo prova de ser o réu vadio (revogado inciso IV do art. 323).................1098 5.5.1.5. Crimes punidos com reclusão, que provocassem clamor público ou que tivessem sido cometidos com vio­ lência contra a pessoa ou grave ameaça (revogado inciso V do art. 323)..................1099 5.5.1.6. Preso em gozo de suspensão condicional da pena ou de livramento condicional.................................................1099 5.5.2. Racismo............................................1099 5.5.3. Crimes hediondos, tráfico de dro­ gas, terrorismo e tortura............................1099 5.5.4. Ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.............................1100 5.5.5. Anterior quebramento de fiança no mesmo processo ou descumprimento das obrigações dos arts. 327 e 328 do CPP........................................................1100 5.5.6. Prisão civil ou militar........................1100 5.5.7. Presença das hipóteses que au­ torizam a prisão preventiva........................1101 5.6. Obrigações processuais..............................1101 5.7. Incidentes relativos à fiança.......................1101 5.7.1. Quebramento da fiança...................1101 5.7.2. Fiança definitiva...............................1103

4.4. Liberdade provisória sem fiança por motivo de pobreza............................................1092

5.7.3. Perda da fiança.................................1103

5. Liberdade provisória com fiança..........................1093

5.7.5. Reforço da fiança..............................1104

5.7.4. Cassação da fiança...........................1103

26

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

5.7.6. Fiança sem efeito (inidoneidade da fiança)....................................................1104

3.1. Conceito..................................................... 1140

5.7.7. Dispensa da fiança...........................1105

3.3. Classificação das exceções.........................1141

5.7.8. Conversão da liberdade provisó­ ria com fiança em liberdade provisória sem fiança..................................................1105

3.3.1. Quanto à natureza............................1141

5.7.9. Destinação da fiança....................... 1105

3.3.3. Quanto à forma de processamento 1142

5.7.10. Execução da fiança.........................1106

3.4. Natureza Jurídica........................................1142

6. Liberdade provisória obrigatória........................ 1107

3.5. Exceção de suspeição, de impedimento ou de incompatibilidade...................................1143

7. Liberdade provisória proibida............................ 1107 8. Liberdade provisória com vinculação................. 1116 9. Liberdade provisória sem vinculação..................1117 10. Liberdade provisória e definição jurídica do fato delituoso pela autoridade policial ou pelo Ministério Público....................................................1117 11. Liberdade provisória e recursos........................ 1118 12. Liberdade provisória no Código de Processo Penal Militar.............................................................1119 13. Menagem........................................................... 1122

3.2. Exceções ou objeções.................................1140

3.3.2. Quanto aos efeitos...........................1141

3.5.1. Procedimento da exceção de suspeição (impedimento e incompati­ bilidade) .....................................................1143 3.5.1.1. Reconhecimento de ofício da suspeição.................................................... 1143 3.5.1.2. Oposição da exceção de suspeição 1144 3.5.1.3. Apreciação da exceção de sus­ peição pelo juiz excepto.............................1146 3.5.1.4. Julgamento da exceção de sus­ peição pelo Tribunal competente............. 1147 3.5.1.5. Recursos cabíveis..........................1147

TÍTULO 7 • QUESTÕES E PROCESSOS INCIDENTES........................................................................ 112 5

1. Noções gerais.......................................................1125 2. Questões prejudiciais...........................................1125 2.1 Conceito e natureza jurídica........................1126 2.2. Características............................................1127 2.3. Distinção entre questões prejudiciais e questões preliminares.......................................1128 2.4. Classificação das questõesprejudiciais.......1129 2.4.1. Quanto à Natureza...........................1129 2.4.2. Quanto à competência.................... 1131 2.4.3. Quanto aos efeitos...........................1131 2.4.4. Quanto ao grau de influência da questão prejudicial sobre a prejudicada... 1132 2.5. Sistemas de Solução...................................1132

3.5.2. Suspeição nos Tribunais de 2a instância e nos Tribunais Superiores..........1148 3.5.3. Suspeição do órgão do Ministério Público........................................................ 1148 3.5.4. Suspeição de serventuários, de funcionários da justiça, peritos e intér­ pretes ......................................................... 1149 3.5.5. Suspeição dos jurados......................1150 3.5.6. Suspeição da autoridade policial.... 1150 3.6. Exceção de incompetência.........................1151 3.6.1. Do procedimento da exceção de incompetência............................................1151 3.6.2. Arguição da incompetência antes do início do processo.................................1151 3.6.3. Recursos cabíveis..............................1153 3.7. Exceção de ilegitimidade............................1153

2.6. Questões prejudiciais devolutivas abso­ lutas (heterogêneas relativas ao estado civil das pessoas)......................................................1133

3.7.1. Ilegitimidade ad causam e ad processum.................................................. 1153

2.6.1. Pressupostos....................................1133

3.7.2. Procedimento da exceção de ile­ gitimidade de parte....................................1153

2.6.2. Conseqüências.................................1135 2.7. Questões prejudiciais devolutivas rela­ tivas (heterogêneas não relativas ao estado civil das pessoas)...............................................1136

3.7.3. Recursos cabíveis..............................1154 3.8. Exceção de litispendência..........................1154

2.7.1 Pressupostos.....................................1136

3.8.1. Procedimento da exceção de li­ tispendência ...............................................1155

2.7.2. Conseqüências.................................1137

3.8.2. Recursos cabíveis..............................1155

2.8. Recursos cabíveis........................................1138

3.9. Exceção de coisa julgada............................1155

2.9. Decisão cível acerca da questão prejudi­ cial heterogênea e sua influência no âmbito criminal.............................................................. 1139

3.9.1. Conceito de coisa julgada.................1155

2.10. Princípio da suficiência da açãopenal.... 1139 3. Exceções............................................................... 1140

3.9.2. Coisa julgada formal e material..... 1156 3.9.3. Coisa julgada e coisa soberana­ mente julgada............................................1156 3.9.4. Limites da coisa julgada...................1157

SUMÁRIO

27

3.9.4.1. Limites objetivos............................1157

8.3. Recurso adequado......................................1218

3.9.4.2. Limites subjetivos...........................1159

8.4. Suspensão do processo principal...............1219

3.9.5. Duplicidade de sentenças condenatórias com trânsito em julgado............. 1160

9. Incidente de insanidade mental...........................1220

8.5. Coisa julgada..............................................1219

3.9.6. Procedimento da exceção de coi­ sa julgada....................................................1160

9.1. Instauração do incidente............................1221

4. Conflito de competência.......................................1160

9.2. Procedimento.............................................1222

5. Conflito de atribuições no âmbito do Minis­ tério Público............................................................. 1167

9.3. Conclusão do incidente de insanidade mental............................................................... 1225

6. Restituição de coisas apreendidas.......................1170

9.3.1. Durante o processo judicial............. 1226

6.1. Apreensão.................................................. 1170

9.3.2. Durante o curso do inquérito policial. 1231

6.2. Vedações e restrições à restituição de coisas apreendidas............................................1172

9.3.3. Durante a execução penal................1232

6.2.1. Destinação das coisas apreendi­ das não restituídas..................................... 1174

TÍTULO 8 • SUJEITOS DO PROCESSO...................... 1235

6.3. Procedimento da restituição de coisas apreendidas....................................................... 1175

2. Juiz........................................................................ 1235

6.3.1. Recursos cabíveis.............................. 1178 7. Medidas assecuratórias........................................ 1179 7.1. Noções introdutórias..................................1179 7.1.1. Jurisdicionalidade.............................1180 7.1.2. Pressupostos .................................... 1180 7.1.3. Contraditório prévio......................... 1181 7.2. Seqüestro...................................................1182 7.2.1. Procedimento................................... 1184 7.2.2. Defesa............................................... 1186 7.2.3. Levantamento do seqüestro............ 1191 7.2.4. Destinação final do seqüestro........ 1193 7.3. Especialização e registro da hipoteca legal...................................................

1. Noções gerais.......................................................1235 2.1. Capacidade para ser juiz............................1236 2.2. Escolha dos juizes.......................................1236 2.3. Funções do juiz no processo penal........... 1238 2.3.1. Funções de ordem jurisdicional..... 1238 2.3.1.1. Gestão da prova pelo magistrado 1239 2.3.2. Funções de ordem administrativa... 1241 2.3.3. Funções anômalas............................1242 2.4. Garantias e vedações dos juizes.................1242 2.5. Imparcialidade do juiz................................1243 2.5.1. Impedimento.................................. 1243 2.5.2. Suspeição.........................................1247 2.5.3. Incompatibilidade.............................1249

7.3.1. Momento....... ................................. 1196

3. Partes.................................................................... 1250 1194 4. Ministério Público................................................1252

7.3.2. Pressupostos ...;................................ 1197

4.1. (Im) parcialidade do Ministério Público.... 1253

7.3.3. Legitimidade..................................... 1197

4.2. Organização do Ministério Público............ 1255

7.3.4. Procedimento................................... 1199

4.3. Princípios institucionais do Ministério Público............................................................... 1259 1201 4.3.1. Princípio do Promotor Natural........ 1261

7.3.5. Defesa.............................. 7.3.6. Finalização...... ................................. 1202 7.4. Arresto prévio (ou preventivo).................. 1203 7.5. Arresto subsidiário de bens móveis.......... 1204 7.5.1. Inscrição de hipoteca legal e ar­ resto nos crimes de lavagem de capitais .. 1207 7.6. Alienação antecipada................................ 1208 7.6.1. Momento.........................................1208 7.6.2. Pressupostos....................................1209 7.6.3. Legitimidade.....................................1209 7.6.4. Procedimento...................................1210 7.7. Ação civil de confisco................................ 1212

4.4. Garantias e vedações.................................1265 4.5. Impedimento e suspeição do órgão do Ministério Público.............................................1267 4.6. Promotor ad hoc........................................1268 5. Ofendido............................................................... 1268 5.1. Ofendido como querelante........................1269 5.2. Ofendido como assistente da acusação.... 1270 5.2.1. Natureza do interesse do assis­ tente da acusação......................................1272 5.2.2. Habilitação do ofendido como assistente da acusação...............................1274

8. Incidente de falsidade........ ................................. 1214

5.2.3. Atribuições do assistente.................1277

8.1. Noções gerais............................................ 1214

6. Acusado................................................................ 1279

8.2. Procedimento do incidente de falsidade .. 1216

6.1. Capacidade do acusado..............................1280

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

6.1.1. Menores de 18 (dezoito) anos........ 1280 6.1.2. Acusado inimputável........................1280 6.1.3. Pessoa jurídica..................................1281 6.1.4. Animais, mortos e seres inanima­ dos

1281

6.

Intimação e notificação.................................... 1317 6.1. Formas de intimação e notificação das partes................................................................ 1317

TÍTULO 10 • PROCESSO E PROCEDIMENTO............................................................... 1323

6.1.5. Acusado certo e individualizado....1282 6.1.6. Imunidade diplomática....................1283

CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO....................................... 1323

6.2. Autodefesa e presença do acusado.......... 1283

1. Noções gerais..............................................'.........1323

6.3. Contumácia do acusado.............................1284

1.1. Procedimento e devido processo penal.... 1324

6.4. Direitos do acusado....................................1285

1.2. Violação às regras procedimentais............ 1325

7. Defensor...............................................................1286

2. Classificação do procedimento.............................1325

7.1. Espécies de defensor..................................1286

2.1. Classificação do procedimento comum .... 1326

7.1.1. Defensoria Pública............................1289

2.1.1. Concursos de crimes, qualificadoras, privilégios, causas de aumento e de diminuição de pena, agravantes e atenuantes.................................................1328

7.2. Defesa técnica plena e efetiva...................1291 7.3. Abandono do processo pelo defensor...... 1292 7.4. Impedimento do defensor.........................1293 8. Assistente da defesa.............................................1293

3. Procedimento adequado no caso de conexão e/ou continência envolvendo infrações penais sujeitas a ritos distintos............................................ 1329

TÍTULO 9 • COMUNICAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS...................................................................... 129 5

4. Antigo procedimento comum ordinário dos crimes punidos com reclusão...................................1330

1. Noções gerais..................................................... 1295 2. Citação.................................................................1295

CAPÍTULO II - PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO.......................................................................... 1331

2.1. Efeitos da citação válida.............................1297

1. Oferecimento da peça acusatória........................1331

2.2. Espécies de citação....................................1298

2. Juízo de admissibilidade: rejeição ou recebi­ mento da peça acusatória........................................1331

3. Citação pessoal.....................................................1298 3.1. Citação por mandado.................................1298 3.2. Citação por carta precatória.......................1300 3.3. Citação do militar.......................................1301 3.4. Citação de funcionário público...................1302 3.5. Citação de acusado preso..........................1302 3.6. Citação de acusado no estrangeiro........... 1303 3.7. Citação em legações estrangeiras............. 1304 3.8. Citação mediante carta de ordem............. 1305 4. Citação por edital.................................................1305

2.1. Momento do juízo de admissibilidade da peça acusatória............................................1332 3. Rejeição da peça acusatória................................. 1333 3.1. Causas de rejeição......................................1333 3.1.1. Inépcia da peça acusatória...............1333 3.1.2. Falta de pressuposto processual....1334 3.1.3. Falta de condições para o exercí­ cio da ação penal.......................................1335 3.1.4. Falta de justa causa (suporte probatório mínimo) para o exercício da ação penal.............................................1336

4.1. Hipóteses que autorizam a citação por edital.................................................................1306

3.2. Rejeição parcial da peça acusatória.......... 1336

4.2. Suspensão do processo e da prescrição (art. 366 do CPP)...............................................1308

3.3. Recurso cabível contra a rejeição da peça acusatória................................................. 1337

4.2.1. Art. 366 do CPP e sua aplicação na Justiça Militar........................................1309

4. Recebimento da peça acusatória.........................1337

4.2.2. Limitação temporal do prazo de suspensão da prescrição............................1310 4.2.3. Produção antecipada de provas urgentes.....................................................1311 4.2.4. Prisão preventiva..............................1312

4.1. (Des) necessidade de fundamentação do recebimento da peça acusatória..................1338 4.2. Conseqüências do recebimento da peça acusatória.......................................................... 1339 4.3. Recurso cabível contra o recebimento da peça acusatória............................................1339

4.2.5. Comparecimentodo acusado......... 1313

5. Citação do acusado..............................................1340

4.2.6. Aplicação do art. 366 do CPP na Lei de Lavagem de Capitais....................... 1313

6. Reação defensiva à peça acusatória.....................1340

5. Citação por hora certa..........................................1314

6.2. Defesa preliminar.......................................1341

6.1. Extinta defesa prévia..................................1341

29

SUMÁRIO

6.2.1. Procedimentos em que há previ­ são legal de defesa preliminar.................. 1342

CAPÍTULO IV-PR O C E D IM E N TO ESPECIAL DO TRIBUNAL DO JÚRI.................................................. 1372

6.2.2. Conseqüências decorrentes da inobservância da defesa preliminar.......... 1344

1.

6.2.3. Defesa preliminar e necessidade de apresentação concomitante da res­ posta à acusação........................................1345 6.3. Resposta à acusação..................................1347 6.4. Quadro comparativo entre a extinta de­ fesa prévia, a defesa preliminar e a resposta à acusação......................................................... 1350 7. Revelia.................................................................. 1351 8. Possível oitiva da acusação..................................1353 9. Absolvição sumária..............................................1354 9.1. Julgamento antecipado da lide no pro­ cesso penal........................................................ 1354 9.2. Causas de absolvição sumária no pro­ cedimento comum............................................1355 9.3. Inimputável do art. 26, caput, do CP....... 1356 9.4. Grau de convencimento necessário para a absolvição sumária.........................................1356 9.5. Distinção entre a absolvição sumária do procedimento comum e a da l ã fase do procedimento do júri........................................1357

Princípios constitucionais do jú ri..................... 1372 1.1. Plenitude de defesa....................................1372 1.2. Sigilo das votações.....................................1374 1.2.1. Sala especial.....................................1374 1.2.2. Incomunicabilidade dos jurados....1375 1.2.3. Votação unânime.............................1376 1.3. Soberania dos veredictos...........................1376 1.3.1. Cabimento de apelação contra decisões do Júri..........................................1377 1.3.2. Cabimento de revisão criminal contra decisões do Júri...............................1378 1.3.3. Execução provisória de decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri, independentemente do julga­ mento de eventual recurso de apelação pelo juízo ad quem..................................... 1378 1.4. Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.............................1380

2. Procedimento bifásico do Tribunal do Júri......... 1382 3. ludicium accusationis (ou sumário da culpa)..... 1382 3.1. Alegações orais...........................................1385 4. Impronúncia......................................................... 1387

9.6. Coisa julgada..............................................1357

4.1. Natureza jurídica e coisa julgada................1387

9.7. Recurso adequado......................................1357

4.2. Provas novas e oferecimento de outra peça acusatória.................................................1388

10. Aceitação da proposta de suspensão condi­ cionai do processo.................................................... 1358 11. Designação da audiência....................................1359

4.3. Infração conexa..........................................1388 4.4. Despronúncia.............................................1388

12. Audiência una de instrução e julgamento......... 1361

4.5. Recurso cabível...........................................1389

12.1. Da instrução probatória em audiência.... 1361

5. Desclassificação do delito....................................1390

12.2. Indeferimento de provas ilícitas, irre­ levantes, impertinentes ou protelatórias......... 1361

5.1. Nova capitulação legal...............................1391

12.3. Diligências................................................1363

5.2. Procedimento a ser observado pelo juízo singular competente.................................1392

12.4. Mutatio libelli: eventual necessidade de aditamento...................................................1364

5.3. Infração conexa..........................................1393

12.5. Alegações orais......... ............................... 1365 12.5.1. Conteúdo das alegações orais....... 1366 12.5.2. Ordem de apresentação das alegações orais...........................................1367

5.4. Situação do acusado preso........................1393 5.5. Recurso cabível...........................................1394 5.6. Conflito de competência.....................

1395

6. Absolvição sumária..............................................1397

12.5.3. Substituição das alegações orais por memoriais............................................1367

6.1. Inimputável do art. 26, caput,do CP........ 1397

12.5.4. Não apresentação de alegações orais ou memoriais pelas partes................1368

6.3. Infração conexa..........................................1399

12.6. S e n ten ça ................................................................1369

12.7. Registro da audiência...............................1369 CAPÍTULO III - PROCEDIMENTO COMUM SU M Á R IO .............................................................................. 137 0

6.2. Juízo de certeza..........................................1398 6.4. Natureza jurídica e coisa julgada................1400 6.5. Recurso cabível...........................................1400 6.5.1. Recurso de ofício.......................... 1401 7. Pronúncia............................................................. 1402 7.1. Pressupostos..............................................1402

1. Noções gerais....................................................... 1370

7.2. Natureza jurídica........................................1403

2. Distinção entre o procedimento comum ordi­ nário e o procedimento comum sumário............... 1371

7.3. Regra probatória: in dubio pro societate (ou in dubio pro reo).........................................1403

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

30

7.4.

Fundamentação e eloqüência acusatória . 1405

7.5. Emendatio e mutatio libelli........................1407 7.6. Conteúdo da pronúncia..............................1409

11.2.8.

Ausência do juiz presidente.......1434

11.3. Verificação da presença de, pelo me­ nos, 15 jurados.................................................. 1435

7.7. Infrações conexas.......................................1410

11.3.1. Empréstimo de jurados..................1435

7.8. Constatação do envolvimento de outras pessoas como coautores ou partícipes............ 1410

11.4. Suspeição, impedimento e incompati­ bilidade.............................................................. 1436

7.9. Efeitos da pronúncia...................................1411

11.4.1. Dos jurados....................................1436

7.9.1. Decretação da prisão preventiva ou imposição de medidas cautelares diversas da prisão.......................................1412

11.4.2. Do juiz-presidente..........................1438

7.10. Intimação da pronúncia...........................1413 7.11. Recurso cabível.........................................1415 8. Desaforamento.....................................................1415

11.4.3. Do órgão do Ministério Público .... 1438 11.5. Composição do Conselho de Sentença... 1438 11.5.1. Recusas motivadas, imotivadas (ou peremptórias) e estouro de urna....... 1439 11.5.2. jurados

Tomada do compromisso dos 1441

8.1. Legitimidade para o requerimento de desaforamento..................................................1416

11.6. Instrução em plenário..............................1441

8.2. Momento para o desaforamento.............. 1416

11.6.1. Leitura de peças.............................1442

8.3. Hipóteses que autorizam o desafora­ mento................................................................ 1417

11.6.2. Interrogatório do acusado............. 1444

8.4. Aceleração de julgamento..........................1418 8.5. Crimes conexos e coautores.......................1418 8.6. Comarca (ou subseção judiciária) para a qual o processo será desaforado................... 1419 8.7. Efeito suspensivo........................................1419 8.8. Recursos.....................................................1419 8.9. Reaforamento.............................................1420 8.10. Competência para a execução provisória 1420 9. Preparação do processo para julgamento pelo Tribunal do Júri.........................................................1420 9.1. Ordenamento do processo.........................1421 9.2. Ordem do julgamento................................1423 9.3. Habilitação do assistente do Ministério Público............................................................... 1423

11.6.2.1. Uso de algemas...........................1444 11.7. Debates.................................................... 1445 11.7.1. Réplica e tréplica.......................... 1447 11.7.1.1. Inovação na tréplica....................1448 11.7.2. Exibição e leitura de documen­ tos em plenário..........................................1449 11.7.3. Argumento de autoridade..............1451 11.7.4. Direito ao aparte............................1452 11.7.5. Sociedade indefesa........................1452 11.7.6. Acusado indefeso...........................1453 11.8. Esclarecimentos aos jurados e possível dissolução do Conselho de Sentença................1455 12. Quesitação.......................................................... 1456 12.1. Leitura dos quesitos.................................1457

10. Organização do Júri............................................1423

12.2. Votação.....................................................1458

10.1. Requisitos para ser jurado........................1424

12.3. Ordem dos quesitos.................................1460

10.2. Recusa injustificada..................................1427

12.4. Questões diversas....................................1466

10.3. Direitos dos jurados.................................1427

12.4.1. Absolvição imprópria...................1466

10.4. Escusa de consciência..............................1428

12.4.2. Falso testemunho em plenário....1466

11. Sessão de julgamento........................................1429

12.4.3. Agravantes e atenuantes................1467

11.1. Reunião periódica....................................1429

12.4.4. Concurso de crimes e homicí­ dio praticado por milícia privada ou por grupo de extermínio...................................1469

11.2. Ausências..................................................1429 11.2.1. Ausência do órgão do Ministério Público........................................................1429

13. Desclassificação..................................................1469

11.2.2. Ausência do advogado de defesa.. 1429

13.1. Desclassificação e infração de menor potencial ofensivo.............................................1471

11.2.3. Ausência do acusado solto............ 1431 11.2.4. Ausência do acusado preso........... 1432 11.2.5. Ausência do advogado do assis­ tente de acusação......................................1432 11.2.6. Ausência do advogado do querelante........................................................1432 11.2.7. Ausência de testemunhas............. 1433

13.2. Desclassificação e crimes conexos.......... 1472 14. Sentença............................................................. 1473 14.1. Sentença absolutória................................1473 14.2. Sentença condenatória............................1474 14.3. Ata............................................................ 1474 14.4. Atribuições do juiz presidente..................1474

31

SUMÁRIO

CAPÍTULO V - PROCEDIMENTO COMUM SUM AR ÍSSIM O ................................................................... 1 475

6.3. Rejeição ou recebimento da peça acu­ satória................................................................ 1510

1. Constituição Federal e Juizados Especiais Cri­ minais....................................................................... 1475

6.4. Citação do acusado....................................1511

2. Competência dos Juizados Especiais Criminais... 1478

6.6. Possibilidade de absolvição sumária........ 1513

2.1. Conceito de infração de menor poten­ cial ofensivo....................................................... 1478 2.1.1. Princípio da insignificância e in­ fração de médio potencial ofensivo......... 1480

6.5. Resposta à acusação..................................1512 6.7. Audiência de instrução e julgamento....... 1513 7. Sistema recursal no âmbito dos Juizados e julgamento pelas turmas recursais..........................1514 7.1. Apelação nos Juizados................................1515

2.2. Excesso de acusação..................................1481

7.2. Embargos de declaração nos Juizados..... 1516

2.3. Estatuto do Idoso.......................................1482

7.3. Recurso Extraordinário...............................1517

2.4. Acusados com foro por prerrogativa de função................................................................ 1482

7.4. Recurso Especial.........................................1518

2.5. Crimes eleitorais.........................................1483

7.6. Mandado de segurança..............................1518

2.6. Violência doméstica e familiar contra a mulher e aplicação da Lei n59.099/95..............1483 2.7. Aplicação da Lei ne 9.099/95 na Justiça Militar................................................................ 1484 2.8. Conexão e continência entre crime co­ mum e infração penal de menor potencial ofensivo............................................................. 1485 2.9. Causas de modificação da competência dos Juizados......................................................1486 2.10. Natureza da competência dos Juiza­ dos: absoluta ou relativa...................................1488 2.11. Competência territorial............................1489 2.11.1. Juizados Especiais Itinerantes...... 1489

7.5. Habeas corpus............................................1518 7.7. Revisão criminal.........................................1519 8. Representação nos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.............................................1519 9. Suspensão condicional do processo.....................1520 9.1. Conceito e natureza jurídica.......................1520 9.2. Requisitos de admissibilidade da sus­ pensão condicional do processo.......................1521 9.3. Suspensão condicional do processo em crimes de ação penal de iniciativa privada..... 1524 9.4. Iniciativa da proposta de suspensão condicional do processo....................................1525 9.5. Momento para a aceitação da proposta... 1526

3. Termo Circunstanciado.........................................1490

9.5.1. Desclassificação e procedência parcial da pretensão punitiva.................... 1526

4. Situação de flagrância nas infrações de menor potencial ofensivo....................................................1492

9.6. Aceitação da proposta................................1527

4.1. Afastamento do lar nos casos de vio­ lência doméstica................................................ 1493 5. Fase preliminar dos Juizados................................1494 5.1. Composição dos danos civis.......................1494 5.2. Oferecimento de representação....... ........ 1496 5.3. Transação penal..........................................1497 5.3.1. Pressupostos de admissibilidade da transação penal.....................................1497 5.3.2. Procedimento para o oferecimen­ to da proposta de transação penal........... 1500 5.3.3. Recusa injustificada de ofereci­ mento da proposta de transação penal.... 1502 5.3.4. Momento para o oferecimento da proposta de transação penal................ 1502 5.3.5. D escum prim ento injustificado da

transação penal..........................................1504 5.3.6. Recurso.............................................1507 6. Análise do procedimento comum sumaríssimo.. 1507

9.7. Recurso cabível contra a decisão homologatória da suspensão......................................1529 9.8. Condições da suspensão condicional do processo............................................................1530 9.9. Revogação da suspensão condicional do processo..........................................

1532

9.9.1. Revogação obrigatória......................1532 9.9.2. Revogação facultativa.......................1533 9.10. Extinção da punibilidade..........................1533 9.11. Suspensão condicional do processo em crimes ambientais.......................................1534 10. Execução no âmbito dos Juizados Especiais Criminais................................................................... 1535 TÍTULO 11 • SENTENÇA PENAL.................................. 1537

1. Atos processuais do juiz.......................................1537 2. Classificação dos provimentos judiciais.............. 1537 2.1. Despachos de mero expediente.................1537

6.1. Oferecimento da peça acusatória............. 1508

2.2. Decisões interlocutórias simples e mis­ tas (não terminativas e terminativas).............. 1538

6.2. Defesa Preliminar.......................................1510

2.3. Decisões definitivas....................................1539 2.4. Sentença.....................................................1539

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

32

2.5. Sentenças definitivas, decisões defini­ tivas e com força de definitivas.........................1540 2.6. Decisões executáveis, não executáveis e condicionais.................................................... 1540 2.7. Decisões subjetivamente simples, sub­ jetivamente plúrimas e subjetivamente complexas.......................................................... 1541 2.8. Decisões suicidas, vazias e autofágicas....1541 2.9. Decisões condenatórias, declaratórias, constitutivas (positivas e negativas), man­ da mentais e executivas.....................................1541 3. Estrutura e requisitos da sentença.......................1542 3.1. Relatório.....................................................1542 3.2. Fundamentação..........................................1543 3.2.1. Fundamentação per relationem..... 1547 3.3. Dispositivo..................................................1548 3.4. Autenticação..............................................1549 4. Sentença absolutória............................................1549 4.1. Espécies de sentença absolutória............. 1549 4.2. Presunção de inocência e regra proba­ tória................................................................... 1550 4.3. Fundamentos.............................................1551 4.4. Efeitos decorrentes da sentença abso­ lutória................................................................ 1552 4.4.1. Efeito principal: colocação do acusado em liberdade................................1552 4.4.2. Efeitos secundários...........................1553 5. Sentença condenatória........................................1553 5.1.

Fixação da pena.......................................1554 5.1.1. Fixação da pena-base.......................1557 5.1.2. Fixação da pena provisória.............. 1561 5.1.3. Fixação da pena definitiva................1564 5.1.4. Fixação do regime penitenciário....1565 5.1.4.1. Detração na sentença conde­ natória para fins de determinação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade (Lei n^ 12.736/12). 1568

6. Publicação da sentença........................................ 1587 6.1. Esgotamento da instância..........................1589 6.2. Intimação da sentença...............................1590 7. Princípio da correlação entre acusação e sen­ tença (ou da congruência).......................................1592 7.1. Emendatio libelli.........................................1593 7.1.1. Momento da emendatio libelli...... 1595 7.1.2. Emendatio libelli e necessidade de oitiva das partes....................................1597 7.1.3. Emendatio libelli nas diferentes espécies de ação penal..............................1599 7.1.4. Emendatio libelli na 2- instância..... 1599 7.2. Mutatio libelli.............................................1601 7.2.1. Surgimento de prova nos autos de elementares ou circunstâncias não contidas na peça acusatória.......................1602 7.2.2. Fato novo e fato diverso...................1603 7.2.3. Necessidade de aditamento, independentemente do quantum de pena cominado à imputação diversa........ 1604 7.2.4. Aditamento espontâneo (CPP, art. 384, caput) e provocado (CPP, art. 384, § I?).................................................... 1605 7.2.5. Procedimento da mutatio libelli...... 1608 7.2.6. Recurso cabível contra a rejeição do aditamento à peça acusatória.............. 1609 7.2.7. Mutatio libelli nas diferentes es­ pécies de ação penal..................................1609 7.2.8. Aditamento: imputação superve­ niente e possibilidade de condenação do acusado quanto à imputação origi­ nária ........................................................... 1611 7.2.9. Mutatio libelli na 2§ instância......... 1612 7.3. Quadro comparativo entre emendatio e mutatio libelli..................................................1614 7.4. Disposições comuns à emendatio e mu­ tatio libelli......................................................... 1614

5.1.5. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.......... 1570

7.4.1. Possibilidade de oferecimento da proposta de transação penal......................1614

5.1.6. Fixação da pena de multa................1573

7.4.2. Possibilidade de oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo.....................................................1616

5.2. Decretação (ou manutenção) da prisão preventiva ou das medidas cautelares diver­ sas da prisão na sentença condenatória......... 1574 5.3. Efeitos decorrentes da sentença penal condenatória.....................................................1575 5.3.1. Efeitos penais...................................1575

7.4.3. Mudança de competência............... 1617 7.4.4. Mudança da espécie de ação penal 1618 7.5. Emendatio e mutatio libelli no processo penal militar......................................................1619

5.3.2. Efeitos extrapenais...........................1576 5.3.2.1. Efeitos extrapenais obrigatórios... 1576

TÍTULO 12 • NULIDADES............................................... 1621

5.3.2.2. Efeitos extrapenais específicos....1580

1. Noções gerais: tipicidade processual e nulidade 1621

5.4. Pedido absolutório formulado pela acu­ sação e (im) possibilidade de condenação...... 1586

2. Espécies de irregularidades..................................1623 3. Espécies de atos processuais...............................1623

SUMÁRIO

4. Nulidade............................................................... 1625 4.1. Espécies de nulidades................................1626 4.1.1. Nulidade absoluta............................1626

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6.14. Falta do quorum legal para o julga­ mento nos Tribunais Superiores e nos Tribu­ nais de Justiça e Tribunais Regionais Federais. 1669

4.1.1.1. Hipóteses de nulidades absolutas 1628

6.15. Omissão de formalidade que constitua elemento essencial do a to ................................1669

4.1.2. Nulidade relativa..............................1629

7. Nulidades no inquérito policial............................1670

4.1.2.1. Hipóteses de nulidades relativas.. 1629 4.1.2.2. Momento para a arguição das nulidades relativas.....................................1630

TÍTULO 13 • RECURSOS................................................. 1673

4.1.3. Anulabilidades..................................1634

CAPÍTULO I - TEORIA GERAL DOS RECURSOS.. 1673

4.2. Reconhecimento das nulidades.................1634

1. Conceito e características.....................................1673

4.2.1. Na primeira instância.......................1634

2. Natureza jurídica dos recursos.............................1674

4.2.2. Na segunda instância.......................1635

3. Princípios.............................................

5. Princípios referentes às nulidades.......................1636 5.1. Princípio da tipicidade das formas............ 1636

1674

3.1. Duplo grau de jurisdição............................1674

5.2. Princípio do prejuízo..................................1637

3.1.1. Recolhimento à prisão para re­ correr

5.3. Princípio da instrumentalidade das for­ mas.................................................................... 1638

3.1.2. Acusados com foro por prerroga­ tiva de função.............................................1680

1676

5.4. Princípio da eficácia dos atos processuais 1639

3.2. Princípio da taxatividade dos recursos..... 1683

5.5. Princípio da restrição processual à de­ cretação da ineficácia........................................1640

3.3. Princípio da unirrecorribilidade das de­ cisões................................................................. 1683

5.6. Princípio da causalidade (efeito expan­ sivo) ................................................................... 1641

3.4. Princípio da fungibilidade...........................1684

5.7. Princípio da conservação dos atos pro­ cessuais (confinamento da nulidade)............... 1642

3.6. Princípio da voluntariedade dos recursos. 1687

5.8. Princípio do interesse.................................1643

3.5. Princípio da convolação........... i................ 1686 3.6.1. Reexame necessário (recurso de ofício ou remessa necessária).................. 1687

5.9. Princípio da lealdade (ou da boa-fé)......... 1644

3.7. Princípio da disponibilidade dos recursos. 1689

5.10. Princípio da convalidação.........................1644

3.8. Princípio da non reformatio in pejus (efeito prodrômico da sentença).......................1690

6. Nulidades em espécie..........................................1647 6.1. Incompetência............................................ 1647 6.2. Suspeição...................................................1647 6.3. Suborno do juiz..........................................1648 6.4. Ilegitimidade de parte................................1648 6.5. Falta da denúncia, da queixa, da re­ presentação e da requisição do Ministro da Justiça........................................................... 1649 6.6. Ausência do exame de corpo de delito....1650

3.8.1. Princípio da non reformatio in pejus direta e indireta................................1693 3.8.2. Non reformatio in pejus indireta e incompetência absoluta..........................1693 3.8.3. Non reformatio in pejus indireta e soberania dos veredictos........................1694 3.9. Princípio da reformatio in mellius..............1696 3.10. Princípio da dialeticidade.........................1697 3.10.1 Ausência de razões recursais da defesa e do Ministério Público.................. 1699

6.7. Falta de nomeação de defensor ao acusado presente, que não o tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 anos... 1652

3.11. Princípio da complementariedade...........1700

6.8. Não intervenção do Ministério Público....1653

3.12. Princípio da variabilidade.........................1701 3.13. Princípio da colegialidade........................1701

6.9. Ausência de citação (circundução), do interrogatório do acusado e de concessão dos prazos à acusação e à defesa.....................1654 6.10. Nulidades cominadas no procedimen­ to bifásico do Tribunal do Júri...........................1657

4. Pressupostos de admissibilidade recursal (juí­ zo de prelibação)...................................................... 1703 5. Pressupostos objetivos de admissibilidade recursal..................................................................... 1706

6.11. Falta da sentença.....................................1663

5.1. Cabimento.................................................. 1706

6.12. Falta do recurso de ofício, nos casos em que a lei o tenha estabelecido....................1665

5.2. Adequação................................................. 1706

6.13. Falta de intimação, nas condições es­ tabelecidas pela lei, para ciência das sen­ tenças e despachos de que caiba recurso....... 1666

5.3.1. Início do prazo recursal....................1707

5.3. Tempestividade..........................................1706 5.3.2. Prazo recursal para a defesa..... .

1708

34

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

5.3.3. Início do prazo recursal para o Ministério Público......................................1710

9.1. Quanto à obrigatoriedade..........................1740

5.3.4. Prazos recursais diversos..................1711

9.3. Quanto à extensão da matéria impug­ nada................................................................... 1742

5.3.5. Prazo em dobro................................1712

9.2. Quanto à fundamentação..........................1741

5.3.7. Interposição de recursos via fax...... 1714

9.4. Quanto aos pressupostos de admissibi­ lidade................................................................. 1742

5.3.8. Utilização de meios eletrônicos...... 1714

9.5. Quanto ao objeto imediato do recurso....1743

5.3.6. Férias forenses.................................1713

5.4. Inexistência de fato impeditivo..................1715 5.4.1. Renúncia ao direito de recorrer...... 1715

CAPÍTULO II - RECURSOS CRIMINAIS EM ESPÉCIE..................................................................................

5.4.2. Preclusão..........................................1716

1. Recurso em sentido estrito..................................1743

5.4.3. Recolhimento à prisão para re­ correr

1743

1.1. Interpretação extensiva..............................1744 1716

5.5. Inexistência de fato extintivo (extinção anômala do recurso).........................................1716 5.5.1. Desistência.......................................1717

1.2. Utilização residual do recurso em sen­ tido estrito......................................................... 1744 1.3. Hipóteses de cabimento.............................1745

5.5.2. Deserção...........................................1719

1.3.1. Não recebimento da peça acusatória............................................................ 1746

5.5.2.1. Deserção por falta depreparo..... 1719

1.3.2. Incompetência do juízo....................1748

5.5.2.2. Deserção por fuga doacusado.....1720

1.3.3. Procedência das exceções, salvo a de suspeição............................................1748

5.6. Regularidade formal...................................1720 6. Pressupostos subjetivos de admissibilidade recursal.............................

1.3.4. Pronúncia do acusado......................1749 1721

6.1. Legitimidade recursal.................................1722 6.1.1. Legitimação restrita e subsidiária do assistente da acusação..........................1723 6.2. Interesse recursal.......................................1727 6.2.1 Classificação da sucumbência.......... 1727 6.2.2. Sentença absolutória e interesse recursal da defesa......................................1728 6.2.3. Extinção da punibilidade e inte­ resse recursal no julgamento do mérito... 1728 6.2.4. Divergência entre o interesse recursal do acusado e o de seu defensor.. 1729 6.2.5. Sentença condenatória e/ou ab­ solutória e interesse recursal do Minis­ tério Público...............................................1729 7. Efeitos dos recursos..............................................1731 7.1. Efeito obstativo..........................................1731 7.2. Efeito devolutivo........................................1731 7.3. Efeito suspensivo........................................1734 7.3.1. Cabimento de mandado de segu­ rança para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Minis­ tério Público............................................... 1734 7.4. Efeito regressivo, iterativo oudiferido.....1735 7.5. Efeito extensivo..........................................1736 7.6. Efeito substitutivo......................................1737 7.7. Efeito translativo........................................1737 7.8. Efeito dilatório-procedimental...................1738 8. Direito intertemporal e recursos..........................1738 9. Classificação dos recursos....................................1740

1.3.5. Decisão que conceder, negar, arbitrar, cassar ou julgar inidônea a fiança, indeferir requerimento de pri­ são preventiva ou revogá-la, conceder liberdade provisória ou relaxar a prisão em flagrante...............................................1750 1.3.6. Decisão que julgar quebrada a fiança ou perdido o seu valor.....................1752 1.3.7. Decisão que decretar (ou não) a extinção da punibilidade............................1753 1.3.8. Decisão que conceder ou negar a ordem de habeas corpus.........................1754 1.3.9. Decisão que conceder, negar ou revogar a suspensão condicional da pena ou a suspensão condicional do processo.....................................................1754 1.3.10. Decisão que conceder, negar ou revogar livramento condicional..................1755 1.3.11. Decisão que anular o processo da instrução criminal, no todo ou em parte, ou que reconhecer a ilicitude da prova e determinar seu desentranhamento......................................................... 1756 1.3.12. Decisão que incluir jurado na lista geral ou desta o excluir.......................1757 1.3.13. Decisão que denegar a apelação ou a julgar deserta.....................................1757 1.3.14. Decisão que ordenar a sus­ pensão do processo, seja em virtude de questão prejudicial, seja quando o acusado, citado por edital, não compa­ recer, nem constituir defensor...................1758 1.3.15. Decisão que decidir sobre a uni­ ficação de penas.........................................1758

SUMARIO

1.3.16. Decisão que decidir o incidente de falsidade................................................ 1759

5. Embargos de Declaração......................................1789

1.3.17. Incidentes da execução da pena... 1759

5.2. Prazo........................................................... 1790

1.3.18. Decisão que converter a multa em detenção ou prisão simples.................1759

5.3. Procedimento.............................................1790

1.4. Aspectos procedimentais do recurso em sentido estrito................................................... 1760 1.4.1. Forma...............................................1760 1.4.2. Prazo.................................................1761 1.4.3. Processamento.................................1761 1.4.4. Competênciapara o julgamento..... 1762 1.5. Efeitos......................................................... 1762 2. Apelação............................................................... 1764 2.1. Noções gerais.............................................1764 2.2. Espécies...................................................... 1765 2.2.1. Apelação plena (ou ampla) e ape­ lação parcial (restrita)................................1765

5.1. Hipóteses de cabimento.............................1789

5.4. Efeitos quanto aos demais prazos recursais..................................................................... 1791 6. Agravo em execução............................................1792 6.1. Hipóteses de cabimento.............................1792 6.2. Procedimento.............................................1793 6.3. Prazo...........................................................1793 6.4. Efeitos.........................................................1793 7. Carta testemunhável............................................1794 7.1. Hipóteses de cabimento.............................1794 7.2. Prazo........................................................... 1795 7.3. Procedimento.............................................1795 7.4. Efeitos......................................................... 1795

2.2.2. Apelação principal e apelação subsidiária (ou supletiva)...........................1766

8. Correição parcial.................................................. 1796

2.2.3. Apelação sumária e apelação or­ dinária ........................................................ 1766

8.2. Natureza jurídica........................................1797

2.2.4. Apelação adesiva (ouincidental).... 1767

8.1. Hipóteses de cabimento.............................1796 8.3. Legitimidade...............................................1798 8.4. Prazo...........................................................1798

2.3. Hipóteses de cabimento.............................1768 2.3.1. Sentença definitiva de conde­ nação ou absolvição proferida por juiz singular....................................................... 1768

TÍTULO 14 • AÇÕES AUTÔNOM AS DE IMPUGNAÇÃO..................................................................... 1799

2.3.2. Decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz singular, nos casos em que não houver previsão legal de cabimento do recurso em sentido estrito......................................1768

CAPÍTULO I - HABEAS CORPUS................................. 1799

2.3.3. Decisões do Tribunal do Júri........... 1769 2.4. Aspectos procedimentais da apelação...... 1776 2.4.1. Forma...............................................1776 2.4.2. Prazo.................................................1777 2.4.3. Processamento.................................1777 2.4.4. Competênciapara o julgamento..... 1778 2.5. Efeitos......................................................... 1778 3. Protesto por novo júri..........................................1780 3.1. Revogação pela Lei n2 11.689/08.............. 1780 3.2. Pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade recursal do revogado pro­ testo por novo júri.............................................1780 4. Embargos infringentes edenulidade................... 1784 4.1. Hipóteses de cabimento.............................1785 4.2. Prazo e interposição...................................1786 4.3. Competência para seu julgamento........... 1786 4.4. Efeitos......................................................... 1787 4.5. Possibilidade de interposição simultâ­ nea dos embargos infringentes e de nulida­ de e dos recursos extraordinários.................... 1788

1. Noções Gerais.......................................................1799 2. Natureza jurídica..................................................1799 3. Interesse de agir na ação de habeas corpus...... 1801 3.1. Necessidade da tutela: violência ou coação decorrente de ilegalidade ou abuso de poder............................................................ 1801 3.2. Adequação: tutela da liberdade de lo­ comoção e a antiga doutrina brasileira do habeas corpus................................................... 1803 3.2.1. Hipóteses que autorizam o co­ nhecimento do habeas corpus...................1803 3.2.2. Hipóteses em que não se autoriza o conhecimento do habeas corpus por falta de adequação.....................................1804 3.2.2.1. Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário......................................1808 4. Possibilidade jurídica do pedido..........................1809 4.1. Cabimento do habeas corpus em rela­ ção a punições disciplinares militares.............. 1809 4.2. Estado de Sítio............................................1810 4.3. Prisão administrativa..................................1810 5. Legitimação ativa..................................................1811 5.1. Distinção entre impetrante e paciente.... 1811 5.1.1. Habeas corpus coletivo...................1811

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

36

5.2. Legitimação ampla e irrestrita.................. 1814

10.2. Petição inicial...........................................1841

5.3. Pessoa jurídica............................................1814

10.3. Dilação probatória....................................1842

5.4. Ministério Público......................................1815

10.4. Medida liminar.........................................1843

5.5. Outras autoridades.....................................1816

10.4.1. Indeferimento de liminar por Relator em Tribunal e impetração de novo habeas corpus...................................1844

6. Legitimação passiva.............................................. 1817 6.1. Autoridade coatora (ou coator) e de­ tentor ................................................................ 1817

10.5. Apresentação do preso e requisição

6.2. Ministério Público como autoridade coatora.............................................................. 1817

de informações.................................................. 1845

6.3. Particular como coator...............................1818

10.6. Efeito extensivo da ordem de habeas corpus................................................................ 1845

6.4. Outras autoridades.....................................1818

10.7. Intervenção das partes.............................1846

7. Espécies de habeas corpus: liberatório, pre­ ventivo, profilático e trancativo...............................1818

10.8. Recursos contra as decisões em ha­ beas corpus....................................................... 1847

8. Hipóteses de impetração dohabeas corpus.........1820

10.9. Coisa julgada............................................1849

8.1. Ausência de justa causa.............................1820 8.1.1. Falta de justa causa para a prisão... 1821 8.1.2. Falta de justa causa e trancamento de investigações preliminares............... 1822 8.1.3. Falta de justa causa etrancamento do processo penal..................................1823 8.2. Decurso do tempo de prisão previsto na lei.................................................................. 1824 8.2.1. Excesso deprazo da prisãopenal... 1825

CAPÍTULO li - REVISÃO CRIM INAL........................ 1 850

1. Noções gerais....................................................... 1850 2. Conceito............................................................... 1851 3. Natureza jurídica..................................................1851 4. Distinção entre revisão criminal e ação resci­ sória.......................................................................... 1852 5. Pedidos: juízo rescindente e juízorescisório....... 1853 6. Condições da ação................................................1854

8.2.2. Excesso de prazo da prisão tem­ porária........................................................ 1825

6.1. Legitimidade ativa e passiva.......................1854 6.2. Interesse de agir: coisa julgada................. 1855

8.2.3. Excesso de prazo da prisão pre­ ventiva........................................................ 1825

6.2.1. Desnecessidade de esgotamento das instâncias ordinárias (prequestionamento)........................................................ 1855

8.3. Coação ordenada por autoridade in­ competente .......................................................1825

6.3. Possibilidade jurídica do pedido: sen­ tença condenatória ou absolutória impró­ pria, inclusive após o cumprimento da pena e/ou morte do acusado.....................................1856

8.4. Cessação do motivo que autorizou a coação............................................................... 1826 8.5. Não admissão de prestação de fiança..... 1828 8.6. Processo manifesta mente nulo..................1830

6.3.1. Vedação da revisão criminal pro societate no ordenamento pátrio e princípio do ne bis in idemprocessual..... 1856

8.7. Extinção da punibilidade............................1831 9. Competência........................................................ 1832

6.3.2. Impossibilidade de utilização da revisão criminal para fins de modifi­ cação dos fundamentos de sentença absolutória própria.....................................1857

9.1. Competência do Supremo Tribunal Fe­ deral .................................................................. 1834 9.2. Competência do Superior Tribunal de Justiça................................................................ 1835

6.3.3. Extinção da punibilidade..................1857

9.3. Competência dos Tribunais Regionais Federais............................................................. 1836

6.3.4. Revisão criminal no âmbito do Júri e soberania dos veredictos..................1858

9.4. Competência dos Tribunais de Justiça...... 1836

6.3.5. Juizados Especiais Criminais........... 1859

9.5. Competência da Justiça Militar..................1836

6.3.6. Transação penal................................1859

9.6. Competência das Turmas Recursais.......... 1838 9.7. Competência da Justiça do Trabalho......... 1838 9.8. Competência do juiz de 1§ instância..........1839 9.9. Ministério Público como autoridade coatora e competência para o julgamento do habeas corpus..............................................1840 10. Procedimento.....................................................1841 10.1.

Capacidade postulatória....................... 1841

6.3.7. Impeachment...................................1860 7.

Hipóteses de cabimento da revisão criminal..1860 7.1. Contrariedade ao texto expresso da lei penal.................................................................. 1860 7.2. Contrariedade à evidência dos autos....... 1862 7.3. Decisão fundada em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos................................................................. 1863

SUMÁRIO

7.4. Descoberta de novas provas em favor do condenado................................................... 1863 8.

! 37

1. Noções gerais....................................................... 1876 2. Conceito e natureza jurídica.................................1876

7.5. Nulidade do processo.................................1865

3. Objeto da tutela................................................... 1877

Aspectos procedimentais da revisão criminal.1867

4. Prazo decadencial................................................. 1877

8.1. Capacidade postulatória.............................1867

5. Legitimação ativa e passiva..................................1877

8.2. Desnecessidade de recolhimento à prisão 1867

6. Cabimento............................................................ 1879

8.3 Inexistência de prazo decadencial...............1867 8.4. Competência..............................................1867

6.1. Hipóteses comuns de impetração do mandado de segurança no âmbito criminal.... 1880

8.5. Procedimento.............................................1869

7. Aspectos procedimentais.....................................1882

8.6. Efeito suspensivo........................................1870

7.1. Petição inicial.............................................1882

8.7. Ônus da prova............................................1871 8.8. Non reformatioin pejus direta e indireta . 1872

7.2. Procedimento e julgamento do manda­ do de segurança................................................ 1882

8.9. Recursos..................................................... 1873

7.3. Competência..............................................1883

8.10. Indenização pelo erro judiciário.............. 1873 8.11. Coisa julgada............................................1875

7.4. Medida liminar...........................................1885 7.5. Recursos..................................................... 1885 BIBLIOGRAFIA...................................................................

CAPÍTULO III - M ANDADO DE SEGURANÇA...... 187 6

1887

'JJ ,0 1

1. INTRODUÇÃO Quando o Estado, por intermédio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, surge para ele o direito de punir os infratores num plano abstrato e, para o particular, o dever de se abster de praticar a infração pe­ nal. A partir do momento em que alguém pratica a conduta delituosa prevista no tipo penal, este direito de punir desce do plano abstrato e se transforma no ius puniendi in concreto. O Estado, que até então tinha um poder abstrato, genérico e impessoal, passa a ter uma pretensão concreta de punir o suposto autor do fato delituoso. Surge, então, a pretensão punitiva, a ser compreendida como o poder do Estado de exigir de quem comete um delito a submissão à sanção penal. Através da pretensão punitiva, o Estado procura tomar efetivo o ius puniendi, exigindo do autor do delito, que está obrigado a sujeitar-se à sanção penal, o cumprimento dessa obrigação, que consiste em sofrer as conseqüências do crime e se concretiza no dever de abster-se ele de qualquer resistência contra os órgãos estatais a que cumpre executar a pena. Todavia, esta pretensão punitiva não pode ser voluntariamente resolvida sem um processo, não podendo nem o Estado impor a sanção penal, nem o infrator sujeitar-se à pena. Em outras palavras, essa pretensão já nasce insatisfeita. Afinal, o Direito Penal não é um direito de coação direta. Apesar de o Estado ser o titular do direito de punir, não se admite a imposição imediata da sanção sem que haja um processo regular, assegurando-se, assim, a aplicação da lei penal ao caso concreto, consoante as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais {nulla poena sine judicio). Aliás, até mesmo nas hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo, em que se admite a transação penal, com a imediata aplicação de penas res­ tritivas de direitos ou multas, não se trata de imposição direta de pena. Utiliza-se, na verdade, de forma distinta da tradicional para a resolução da causa, sendo admitida a solução consensual em infrações de menor gravidade, mediante supervisão jurisdicional, privilegiando-se, assim, a vontade das partes e, principalmente, do autor do fato que pretende evitar os dissabores do processo e o risco da condenação. É exatamente daí que sobressai a importância do processo penal, pois este funciona como o instrumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso. Mas o Estado não pode punir de qualquer maneira. Com efeito, considerando-se que, da aplicação do direito penal pode resultar a privação da liberdade de locomoção do agente, entre outras penas, não se pode descurar do necessário e indispensável respeito a direitos e liberdades individuais que tão caro custaram para serem reconhecidos e que, em verdade, condicionam a legitimidade da atuação do próprio aparato estatal em um Estado Democrático de Direito. Na medida em que a liberdade de locomoção do cidadão funciona como um dos dogmas do Esta­ do de Direito, é intuitivo que a própria Constituição Federal estabeleça regras de observância obrigatória em um processo penal. E a boa (ou má) aplicação desses direitos e garantias que permite, assim, avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e dis­ tinguir a civilização da barbárie.

40

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

De fato, como adverte Norberto Bobbio, a proteção do cidadão no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária. Na dicção do autor, “a diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A conseqüência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law)”.1 É esse, pois, o grande dilema do processo penal: de um lado, o necessário e indispensável respeito aos direitos fundamentais; do outro, o atingimento de um sistema criminal mais operante e eficiente.2 Há de se buscar, portanto, um ponto de equilíbrio entre a exigência de se assegurar ao investigado e ao acusado a aplicação das garantias fundamentais do devido processo legal e a necessidade de maior efetividade do sistema persecutório para a segurança da coletividade. E den­ tro desse dilema existencial do processo penal - efetividade da coerção penal versus observância dos direitos fundamentais - que se buscará, ao longo da presente obra, um ponto de equilíbrio no estudo do processo penal, pois somente assim serão evitados os extremos do hipergarantismo e de movimentos como o do Direito Penal do Inimigo ou do Direito Penal da Lei e da Ordem. 2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS 2.1. Sistema inquisitorial Adotado pelo Direito canônico a partir do século XIII, o sistema inquisitorial posterior­ mente se propagou por toda a Europa, sendo empregado inclusive pelos tribunais civis até o século XVIII. Tem como característica principal o fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem-se concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, chamado de juiz inquisidor. Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua impar­ cialidade. De fato, há uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Em virtude dessa concentração de poderes nas mãos do juiz, não há falar em contraditório, o qual nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e de­ fesa. Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, sendo mantido incomunicável. 1

BOBBIO, Norberto. As ideologias e o po der em crise. Tradução de João Ferreira; revisão técnica Gilson César Cardoso. 4§ ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 96-97.

2

Na linha do ensinamento de Antônio Scarance Fernandes, o vocábulo eficiência aqui empregado "é usado de forma ampla, sendo afastada, contudo, a ideia de eficiência medida pelo número de condenações. Será eficiente o procedimento que, em tempo razoável, permita atingir um resultado justo, seja possibilitando aos órgãos da persecução penal agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal". (Sigilo no processo penal: eficiência e garantism o. Coordenação Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de Almeida, Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 10).

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

41

No processo inquisitório, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse. Trabalha o sistema inquisitório, assim, com a premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma completa e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade. Considera-se possível a descoberta de uma verdade absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatória, quer em relação ao objeto do processo, quer em relação aos meios e métodos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso. No sistema inquisitorial, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Na busca da verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra, escrito e sigiloso, mas essas formas não lhe eram essenciais. Pode se conceber o processo inquisitivo com as formas orais e públicas. Como se percebe, há uma nítida conexão entre o processo penal e a natureza do Estado que o institui. A característica fundamental do processo inquisitório é a concentração de poderes nas mãos do juiz, aí chamado de inquisidor, à semelhança da reunião de poderes de administrar, legislar e julgar nas mãos de uma única pessoa, de acordo com o regime político do absolutismo. Em síntese, podemos afirmar que o sistema inquisitorial é um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o esclarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade do processo penal. Nele, não há falar em contraditório, pois as funções de acusar, defender e julgar estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do processo, e não sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inquisidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo tempo, possuindo amplos poderes de investigação e de produção de provas, seja no curso da fase investigatória, seja durante a instrução processual.3 Por essas características, fica evidente que o processo inquisitório é incompatível com os direitos e garantias individuais, violando os mais elementares princípios processuais penais. Sem a presença de um julgador equidistante das partes, não há falar em imparcialidade, do que resulta evidente violação à Constituição Federal e à própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8o, n° 1). 2.2. Sistema acusatório De maneira distinta, o sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial. Aqui, há uma separação das funções de acusar, defender e julgar.4 O processo caracteriza-se, assim, como legítimo actum trium personarum.

3.

4

Como observa GIACOMOLLI (O devido processo penal: abordagem conform e a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3- ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 90), "verifica-se um 'donismo' processual sem precedentes, endo e extraprocessuais: o processo é meu, o promotor é meu, o estagiário é meu, o servidor é meu, o carro é meu, eu sou eu, eu e eu. Então, eu posso investigar, eu posso acusar, eu posso julgar, recorrer e executar a sanção. Nesse modelo, confundem-se as funções dos agentes do Estado-Julgador com os do Estado-Acusador e com os do Estado-lnvestigador" Nesse sentido: PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conform idade constitucional das leis processuais penais. 3§ ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 114.

42 ;

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro deLima

Historicamente, o processo acusatório tem como suas características a oralidade e a publici­ dade, nele se aplicando o princípio da presunção de inocência. Logo, a regra era que o acusado permanecesse solto durante o processo. Não obstante, em várias fases do Direito Romano, o sistema acusatório foi escrito e sigiloso. Quanto à iniciativa probatória, o juiz não era dotado do poder de determinar de oficio a produção de provas, já que estas deveriam ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. Com o objetivo de preservar sua imparcialidade, o magistrado deve deixar a atividade probatória para as partes. Ainda que se admita que o juiz tenha poderes instratórios, essa iniciativa deve ser possível apenas no curso do processo, em caráter excepcional, como atividade subsidiária da atuação das partes. No sistema acusatório, a gestão das provas é função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal. A separação das funções processuais de acusar, defender e julgar entre sujeitos processuais distintos, o reconhe­ cimento dos direitos fundamentais ao acusado, que passa a ser sujeito de direitos e a construção dialética da solução do caso pelas partes, em igualdade de condições, são, assim, as principais características desse modelo. Segundo Ferrajoli, são características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.5 O sistema acusatório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, bem como na Idade Média, nos domínios do direito germano. A partir do século XIII entra em declínio, passando a ter prevalência o sistema inquisitivo. Atualmente, o processo penal inglês é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatório puro. Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tomou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investigatória, atribuição esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais e do Ministério Público. Como se percebe, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitorial do acusatório é a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova. O modelo acusatório reflete a posição de igualdade dos sujeitos, cabendo exclusivamente às partes a produção do material probatório e sempre observando os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Portanto, além da separação das funções de acusar, de­ fender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova.

5

FERRAJOLI, Luigi. D ireito e razão: teoria do garantism o penal. 2- ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

43

Em síntese, pode-se trabalhar com o seguinte quadro comparativo entre os dois sistemas: Sistema Inquisitorial

j

Sistema Acusatório

j

Não há separação das funções de acusar, defender e julgar, que estão concentradas em uma única pessoa, que assume as vestes de um juiz inquisidor;

Separação das funções de acusar, defender e julgar. Por j conseqüência, caracteriza-se pela presença de partes dis­ tintas (actum trium personarum), contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, sobrepondo-se a am­ bas um juiz, de maneira equidistante e imparcial;

Como se admite o princípio da verdade real, o acusado não é sujeito de direitos, sendo tratado como mero objeto do processo, daí por que se admite inclusive a tortura como meio de se obter a verdade absoluta;

0 princípio da verdade real é substituído pelo princípio da busca da verdade, devendo a prova ser produzida com fiel observância ao contraditório e à ampla defesa;

Gestão da prova: o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa acusatória e probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de elementos informa­ tivos e de provas, seja no curso das investigações, seja no curso da instrução processual;

Gestão da prova: recai precipuamente sobre as partes. Na fase investigatória, o juiz só deve intervir quando provoca­ do, e desde que haja necessidade de intervenção judicial. Durante a instrução processual, prevalece o entendimento de que o juiz tem certa iniciativa probatória, podendo de­ terminar a produção de provas de ofício, desde que o faça de maneira subsidiária;

A concentração de poderes nas mãos do juiz e a inicia­ tiva acusatória dela decorrente é incompatível com a garantia da imparcialidade (CADH, art. 8Q, § I s) e com o princípio do devido processo legal.

A separação das funções e a iniciativa probatória residual restrita à fase judicial preserva a equidistância que o ma­ gistrado deve tomar quanto ao interesse das partes, sen­ do compatível com a garantia da imparcialidade e com o princípio do devido processo legal.

2.3. Sistema misto ou francês Após se disseminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitorial passa a sofrer alterações com a modificação napoleônica, que instituiu o denominado sistema misto. Trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o Code d ’Instruction Criminelle francês, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francês. E chamado de sistema misto porquanto o processo se desdobra em duas fases distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Nesta, objetiva-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade. Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitorial. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princípio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório. É bem verdade que não se trata de um sistema acusatório puro. De fato, há de se ter em mente que o Código de Processo Penal tem nítida inspiração no modelo fascista italiano. Toma-se imperioso, portanto, que a legislação infraconstitucional seja relida diante da nova ordem consti­ tucional. Dito de outro modo, não se pode admitir que se procure delimitar o sistema brasileiro a partir do Código de Processo Penal. Pelo contrário. São as leis que devem ser interpretadas à luz dos direitos, garantias e princípios introduzidos pela Carta Constitucional de 1988.

M A N U A L DE P R O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lim a

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3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PENAL O vocábulo princípio é dotado de uma imensa variedade de significações. Sem nos olvidar da distinção feita pela doutrina entre princípios, normas, regras e postulados,6 trabalharemos com a noção de princípios como mandamentos nucleares de um sistema. A Constituição Federal de 1988 elencou vários princípios processuais penais, porém, no contexto de funcionamento integrado e complementar das garantias processuais penais, não se pode perder de vista que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos firmados pelo Brasil também incluíram diversas garantias ao modelo processual penal brasileiro. Nessa ordem, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH - Pacto de São José da Costa Rica), prevê diversos direitos relacionados à tutela da liberdade pessoal (Decreto 678/92, art. 7o), além de inúmeras garantias judiciais (Decreto 678/92, art. 8o). Embora seja polêmica a discussão em tomo do status normativo dos Tratados Internacio­ nais de Direitos Humanos, a partir do julgamento do RE 466.343, tem prevalecido no Supremo Tribunal Federal a tese do status de supralegalidade da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Não por outro motivo, a despeito do teor do art. 5o, LXVII, da Constituição Federal, que prevê, em tese, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel, a Suprema Corte entendeu que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7o, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do art. 5o, LXVII, da Carta Magna. Logo, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel.7 Em face da incorporação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ao ordenamento pátrio, o Brasil assume, então, o dever de adotar medidas legislativas para dar efetividade aos direitos preconizados na referida Convenção (art. 2o). Esta pode ser garantida em 3 (três) perspec­ tivas:8a) utilização da jurispmdência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)9e das opiniões consultivas na interpretação dos casos penais internos de cada país; b) controle difuso da convencionalidade, a ser exercido pelos magistrados em cada caso concreto, nos termos do art. 5o, §§ 20 e 3o, da CF; c) controle concentrado ou abstrato da convencionalidade, a ser realizado pela CIDH, em sua jurisdição contenciosa e consultiva, e pelos Tribunais, após a EC n° 45/04. De se notar, portanto, que as decisões da CIDH gozam de eficácia vinculante, nos termos dos arts. 67, 68.1 e 68.2 da CADH. São dotadas de autoridade de coisa julgada formal e mate­ rial, devendo, pois, ser cumpridas de forma eficaz e integral. Como observa Giacomolli,10 seus efeitos, todavia, não estão limitados às partes, mas irradiam um efeito hermêutico a todos aqueles que aderiram ao sistema interamericano, com eficácia erga omnes e standard interpretativo da

6

Para ampla análise dessa distinção, sugerimos a leitura da obra de Robert Alexy: Teoria dos direitos fundam entais. Trad. Vírgilio Afonso da Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.

7

STF, Pleno, HC 87.585/TO, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 118 25/06/2009.

8.

É nesse sentido a lição de Nereu José Giacomolli: O devido processo penal: abordagem conform e a CF e o Pacto 3® ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 30.

de São José da Costa Rica.

9.

Composta por sete juizes, eleitos por um período de seis anos, permitida uma reeleição, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) está situada em San José da Costa Rica. Existe desde 1978 como órgão jurisdicional internacional, vinculado à CADH, com competência consultiva automática (Convenção e Tratados) e contenciosa (violação aos preceitos da Convenção) sobre os Estados que ratificaram a Convenção e que reconheceram a sua jurisdição contenciosa (facultativa). O Brasil reconheceu a jurisdição contenciosa e obrigatória da CIDH por meio do Decreto-Legislativo n^ 89, de 03 de dezembro de 1998.

10.

Op. cit. p. 40.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

45

convencionalidade do ordenamento interno. Daí a importância da análise dos diversos cases da CIDH, já que suas decisões funcionam como importante ferramenta hermenêutica do Pacto de São José da Costa Rica. Enfim, já não basta mais o conhecimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Também se impõe o conhecimento da jurisprudência da CIDH. 3.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade) 3.1.1. Noções introdutórias Em 1764, Cesare Beccaria, em sua célebre obra Dos delitos e das penas, já advertia que “um homem não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.11 Esse direito de não ser declarado culpado enquanto ainda há dúvida sobre se o cidadão é culpado ou inocente foi acolhido no art. 9o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia da Organiza­ ção das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, em seu art. 11.1, dispõe: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”. Dispositivos semelhantes são encontrados na Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 6.2), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92 - art. 8o, § 2o): “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa". No ordenamento pátrio, até a entrada em vigor da Constituição de 1988, esse princípio so­ mente existia de forma implícita, como decorrência da cláusula do devido processo legal.12Com a Constituição Federal de 1988, o princípio da presunção de não culpabilidade passou a constar expressamente do inciso LVII do art. 5o: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Em síntese, pode ser definido como o direito de não ser declarado culpado senão após o término do devido processo legal, durante o qual o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório). Comparando-se a forma como referido princípio foi previsto nos Tratados Internacionais e na Constituição Federal, percebe-se que, naqueles, costuma-se referir àpresunção de inocência, ao passo que a Constituição Federal em momento algum utiliza a expressão inocente, dizendo, na verdade, que ninguém será considerado culpado. Por conta dessa diversidade terminológica, o preceito inserido na Carta magna passou a ser denominado de presunção de não culpabilidade. Na jurisprudência brasileira, ora se faz referência ao princípio da presunção de inocência,13 ora ao princípio da presunção de não culpabilidade.14 Segundo Badaró, não há diferença entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade, sendo inútil e contraproducente a 11

BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. Tradução: Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 69.

12

Nesse sentido: STF, l 9 Turma, HC 67.707/RS, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 14/08/1992.

13

Vide súmula n9 09 do STJ. E também: STF, I s Turma, HC-ED 91.150/SP, Rei. Min. Menezes Direito, DJe 018 019/02/2008. A título de exemplo: STF, 1§ Turma, AI-AgR 604.041/RS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 092 - 31/08/2007; STF, 29 Turma, HC 84.029/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ 06/09/2007 p. 42.

14

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

tentativa de apartar ambas as idéias - se é que isto é possível equivalência de tais fórmulas.15

devendo ser reconhecida a

Do princípio da presunção de inocência (ou presunção de não culpabilidade) derivam duas regras fundamentais: a regra probatória (também conhecida como regra de juízo) e a regra de tratamento, objeto de estudo nos próximos tópicos.16 3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo) Por força da regra probatória, a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado além de qualquer dúvida razoável, e não este de provar sua inocência. Em outras palavras, recai exclusivamente sobre a acusação o ônus da prova, incumbindo-lhe demonstrar que o acusado praticou o fato delituoso que lhe foi imputado na peça acusatória.17 Como consectários da regra probatória, Antônio Magalhães Gomes Filho destaca: a) a incumbência do acusador de demonstrar a culpabilidade do acusado (pertence-lhe com exclu­ sividade o ônus dessa prova); b) a necessidade de comprovar a existência dos fatos imputados, não de demonstrar a inconsistência das desculpas do acusado; c) tal comprovação deve ser feita legalmente (conforme o devido processo legal); d) impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos (daí o seu direito ao silêncio).18 Essa regra probatória deve ser utilizada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo. Na dicção de Badaró, cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência segundo a qual, para a imposição de uma sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade de certeza.19 Nesta acepção, presunção de inocência confunde-se com o in dubio pro reo. Não havendo certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em juízo, inegavelmente é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, pois, em um juízo de ponderação, o primeiro erro acaba sendo menos grave que o segundo. O in dubio pro reo não é, portanto, uma simples regra de apreciação das provas. Na verdade, deve ser utilizado no momento da valoração das provas: na dúvida, a decisão tem de favorecer o imputado, pois não tem ele a obrigação de provar que não praticou o delito. Antes, cabe à parte acusadora (Ministério Público ou querelante) afastar a presunção de não culpabilidade que recai sobre o imputado, provando além de uma dúvida razoável que o acusado praticou a conduta delituosa cuja prática lhe é atribuída. Enfim, não se justifica, sem base probatória idô­ nea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se - para

15

BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 283.

16

Por força do disposto no art. 89 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (n9 2), Luiz Flávio Gomes acres­ centa uma terceira regra, qual seja, a regra de garantia, segundo a qual a única forma de se afastar a presunção de inocência do acusado seria comprovando-se legalm ente sua culpabilidade (Legislação crim inal especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 442). A nosso ver, e com a devida vênia, tal regra já está inserida na regra probatória.

17

Para mais detalhes acerca da divisão do ônus da prova no processo penal, remetemos o leitor ao capítulo de provas.

18

"O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Am ericana sobre Direitos Hu­ manos (Pacto de São José da Costa Rica)", em Revista do Advogado, da AASP, n9 42, abril/94, p. 31.

19

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 285.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

f

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que se qualifique como ato revestido de validade ético-juri dica - em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambigüidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet.20 O in dubio pro reo só incide até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Portanto, na revisão criminal, que pressupõe o trânsito em julgado de sentença penal condena­ tória ou absolutória imprópria, não há falar em in dubio pro reo, mas sim em in dubio contra reum. O ônus da prova quanto às hipóteses que autorizam a revisão criminal (CPP, art. 621) recai única e exclusivamente sobre o postulante, razão pela qual, no caso de dúvida, deverá o Tribunal julgar improcedente o pedido revisional. 3.1.3. Da regra de tratamento A privação cautelar da liberdade, sempre qualificada pela nota da excepcionalidade, somente se justifica em hipóteses estritas, ou seja, a regra é responder ao processo penal em liberdade, a exceção é estar preso.21 São manifestações claras desta regra de tratamento a vedação de prisões processuais automáticas ou obrigatórias e a impossibilidade de execução provisória ou antecipada da sanção penal.22 Portanto, por força da regra de tratamento oriunda do princípio constitucional da não cul­ pabilidade, o Poder Público está impedido de agir e de se comportar em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao acusado, como se estes já houvessem sido condenados, defini­ tivamente, enquanto não houver o fim do processo criminal.23 O princípio da presunção de inocência não proíbe, todavia, a prisão cautelar ditada por razões excepcionais e tendente a garantir a efetividade do processo. Como bem assevera Canotilho, se o princípio for visto de uma forma radical, nenhuma medida cautelar poderá ser aplicada ao acusado, o que, sem dúvida, acabará por inviabilizar o processo penal.24 Em outras palavras, o inciso LVII do art. 5o da Carta Magna não impede a decretação de medidas cautelares de natu­ reza pessoal durante o processo, cujo permissivo decorre inclusive da própria Constituição (art. 5o, LXI), sendo possível se conciliar os dois dispositivos constitucionais desde que a medida cautelar não perca seu caráter excepcional, sua qualidade instrumental, e se mostre necessária à luz do caso concreto. Há quem entenda que esse dever de tratamento atua em duas dimensões: a) interna ao processo: funciona como dever imposto, inicialmente, ao magistrado, no sentido de que o ônus da prova recai integralmente sobre a parte acusadora, devendo a dúvida favorecer o acusado. Ademais, as prisões cautelares devem ser utilizadas apenas em situações excepcionais, desde que comprovada a necessidade da medida extrema para resguardar a eficácia do processo; b) externa ao processo: o princípio da presunção de inocência e as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade demandam uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização

20.

Nesse contexto: STF, I s Turma, HC 73.338/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 19/12/1996.

21

"Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu" (FIGUEIREDO DIAS, Jorge. D ireito processual penal, is vol. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. p. 428.)

22. 23

A nova orientação jurisprudencial do STF e do STJ acerca da execução provisória da pena será objeto de análise no próximo item. STF - HC 89.501/GO - 2^ Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 16/03/2007 p. 43.

24

Constituição da República portuguesa anotada.

3a ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1993. p. 203.

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do acusado, funcionando como limites democráticos à abusiva exploração midiática em tomo do fato criminoso e do próprio processo judicial.25 Portanto, por força do dever de tratamento, qualquer que seja a modalidade de prisão cautelar, não se pode admitir que a medida seja usada como meio de inconstitucional antecipação executória da própria sanção penal, pois tal instmmento de tutela cautelar penal somente se legitima se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do indiciado ou do acusado.26 3.1.4. (In) constitucionalidade da execução provisória da pena27 Pelo menos em regra, os recursos extraordinário e especial não são dotados de efeito suspensivo (CPP, art. 637, c/c arts. 995 e 1.029, § 5o, ambos do novo CPC). Por isso, prevaleceu, durante anos, o entendimento jurispmdencial segundo o qual era cabível a execução provisória de sentença penal condenatória recorrível, independentemente da demonstração de qualquer hipótese que autorizasse a prisão preventiva do acusado. O fundamento legal para esse entendi­ mento era o disposto no art. 637 do CPP. Assim, ainda que o acusado tivesse interposto recurso extraordinário ou especial, estaria sujeito à prisão, mesmo que inexistentes os pressupostos da prisão preventiva.28 Nessa linha, o STJ editou a súmula n° 267, segundo a qual a interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão. Portanto, mesmo que o acusado tivesse permanecido solto durante todo o processo, impunha-se o recolhimento à prisão como efeito automático de um acórdão condenatório proferido por ór­ gão jurisdicional de segundo grau, ainda que a decisão condenatória não tivesse transitado em julgado em virtude da interposição dos recursos extraordinário e especial.

25.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 47/48. Especificamente em relação à dimensão externa ao processo, vem bem a calhar a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso J. vs. Peru (2013), no qual o Peru foi responsabilizado por violação ao estado de inocência previsto no art. 8.2 do Pacto de São José da Costa Rica. A Sra. J. foi presa durante o cumprimento de medida de busca e apreensão residencial. Processada criminalmente por terrorismo e associação ao terrorismo, em virtude de suposta vinculação com o grupo armado Sendero Luminoso, foi absolvida em junho de 1993. Logo após ser solta, deixou o território peruano. Em dezembro do mesmo ano, a Corte Suprema Peruana cassou a sentença absolutória, determinou um novo julgado e decretou sua prisão. Tais fatos ocorreram durante o governo Fujimori, quando o Peru passava por um regime de exceção. Para a CIDH, os distintos pronunciamentos públicos das autoridades estatais, sobre a culpabilidade de J. violaram o estado de inocência, princípio determi­ nante que o Estado não condene, nem mesmo informalmente, emitindo juízo perante a sociedade e contribuindo para formar a opinião pública, enquanto não existir decisão judicial condenatória. Para a Corte, a apresentação da imagem da acusada para a imprensa, escrita e televisiva, ocorreu quando ela estava sob absoluto controle do Estado, além de as entrevistas posteriores também terem sido levadas a cabo sob conhecimento e controle do Estado, por meio de seus funcionários. A Corte acentuou não impedir o estado de inocência que as autoridades mantenham a sociedade informada sobre investigações criminais, mas requer que isso seja feito com a discrição e a contextualização necessárias, de tal modo a garantir o estado de inocência. Assim, fazer declarações públicas, sem os devidos cuidados, sobre processos penais, gera, na sociedade, a indevida crença sobre a culpabilidade do acusado. Nessa linha: GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conform e a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3- ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 135-137.

26

Nessa linha: STF - HC 90.753/RJ - 2§ Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 23/11/2007 p. 116.

27.

Para mais detalhes acerca da possibilidade de execução provisória de decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento sequer de uma eventual apelação pelos Tribunais de 2§ instância, remetemos o leitor ao Título 10 (Processo e Procedimento), mais precisamente ao Capítulo IV (Procedimento Especial do Tribunal do Júri), onde o tema é objeto de análise nos comentários à soberania dos veredictos.

28.

Nesse contexto: STF, 1§ Turma, HC 91.675/PR, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 04/09/2007, Dje 157 06/12/2007.

T ÍT U L O !

• N O Ç Õ E S IN TR O D U TÓ RIA S

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Ocorre que, no julgamento do Habeas Corpus n° 84.078 no ano de 2009, o Plenário do Supremo, por maioria de votos (7 a 4), alterou sua orientação jurisprudencial até então dominante para concluir que a execução da pena só poderia ocorrer com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Logo, a despeito de os recursos extraordinários não serem dotados de efeito suspensivo, enquanto não houvesse o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não seria possível a execução da pena privativa de liberdade, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, cuja decretação, todavia, estaria condicionada à presença dos pressupostos do art. 312 do CPP.29 Todavia, em julgamento histórico realizado no dia 17 de fevereiro de 2016 (HC 126.292),30 e novamente por maioria de votos (7 a 4), o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu que é possível a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido por Tribunal de segunda instância no julgamento de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordi­ nário, e mesmo que ausentes os requisitos da prisão cautelar, sem que se possa objetar suposta violação ao princípio da presunção de inocência, já que é possível fixar determinados limites para a referida garantia constitucional. Não se trata, portanto, de prisão cautelar. Cuida-se, na verdade, de verdadeira execução provisória da pena. Para justificar essa nova orientação foram apontados os seguintes fundamentos: a) deve ser buscado o necessário equilíbrio entre o princípio da presunção de inocência e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade; b) é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acu­ sado. É dizer, os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutividade, já que não se prestam ao debate da matéria fática probatória.31 Noutras palavras, com o julgamento implementado pelo tribunal de apelação, ocorreria uma espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa; c) se houve, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. Faria sentido, portanto, negar efeito suspensivo aos recursos extraordinários, como o faz o art. 637 do CPP; d) a Lei da Ficha Limpa (LC n° 135/2010) expressamente consagra como causa de inelegibilidade a existência de sentença condenatória por crimes nela relacionados quando proferidas por órgão colegiado; e) não se pode afirmar que, à exceção das prisões em flagrante, temporária, preventiva e decorrente de sentença condenatória transitada em julgado, todas as demais formas de prisão

29.

HC 84.078, Rei. Min. Eros Grau. Informativo ne 534 do STF - Brasília, 2 a 6 de fevereiro de 2009. No mesmo sentido: STF, 2* Turma, HC 88.174/SP, Rei. Min. Eros Grau, j. 12/12/1996, DJe 092 30/08/2007; STF, 2§ Turma, HC 89,754/BA, Rei. Min. Celso de Mello, j. 13/02/2007, DJe 04 26/04/2007; STF, 2^ Turma, HC 91.232/PE, Rei. Min. Eros Grau, j. 06/11/2007, DJe 157 06/12/2007; STJ - HC 122.191/RJ - 5^ Turma - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - Dje 18/05/2009.

30.

STF, Pleno, HC 126.292/SP, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 17/02/2016, DJe 100 16/05/2016.

31.

As matérias fáticas que levariam apenas a um reexame da prova estão excluídas dos recursos especial e extraor­ dinário, nos termos da súmula n5 279 do STF ("Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário") e da súmula ne 7 do STJ ("A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial").

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foram revogadas pelo art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei 12.403/2011, haja vista o critério temporal de solução de antinomias previsto no art. 2o, § Io, da Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Se assim o fosse, a conclusão seria pela prevalên­ cia da regra que dispõe ser meramente devolutivo o efeito dos recursos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF), visto que os arts. 995 e 1.029, § 5o, do CPC têm vigência posterior à regra do art. 283 do CPP. Portanto, não há antinomia entre o que dispõe o art. 283 do CPP e a regra que confere eficácia imediata aos acórdãos proferidos por tribunais de apelação; f) em nenhum país do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema; g) a jurisprudência que assegurava a presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença condenatória vinha permitindo a indevida e sucessiva interposição de recursos da mais variada espécie, com indisfarçados propósitos protelatórios, visando, não raro, à configuração da prescrição da pretensão punitiva ou executória, já que o último marco interraptivo do prazo prescricional antes do início do cumprimento da pena é a publicação da sentença ou do acórdão recorríveis (CP, art. 117, IV);32 h) quanto a eventuais equívocos das instâncias ordinárias, não se pode esquecer que há instrumentos aptos a inibir conseqüências danosas para o condenado, suspendendo, se necessá­ rio, a execução provisória da pena, como, por exemplo, medidas cautelares de outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ao recurso especial (art. 1.029, § 5o, do novo CPC) e o habeas corpus. Portanto, mesmo que exeqüível provisoriamente o acórdão condenatório recorrível, o acusado não estaria desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de direitos. Isso seria possível, por exemplo, em situações nas quais estivesse caracterizada a verossimilhança das alegações deduzidas na impugnação extrema, de modo que se pudesse constatar a manifesta contrariedade do acórdão com a jurisprudência consolidada da Corte a quem se destina a impugnação.33 Com a devida vênia à maioria dos Ministros do STF que admitiram a execução provisória da pena, parece-nos que esse novo entendimento contraria flagrantemente a Constituição Federal, que assegura a presunção de inocência (ou de não culpabilidade) até o trânsito em julgado de sentença condenatória (art. 5o, LVII), assim como o art. 283 do CPP, que só admite, no curso da investigação ou do processo - é dizer, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória -, a decretação da prisão temporária ou preventiva por ordem escrita e fundamentada da auto­ ridade judiciária competente. Não negamos que se deva buscar uma maior eficiência no sistema processual penal pátrio. Mas, a nosso juízo, essa busca não pode se sobrepor à Constituição Federal, que demanda a formação de coisa julgada para que possa dar início à execução de uma prisão de natureza penal.

32.

Como exemplo do uso abusivo do direito de recorrer com a nítida intenção de procrastinar o trânsito em julga­ do de sentença condenatória podemos citar o caso do ex-Senador L. E., condenado a 31 anos de reclusão pela prática dos crimes de peculato, estelionato, corrupção ativa, uso de documento falso e associação criminosa - os dois últimos delitos acabaram prescrevendo. Desde 2006, quando foi condenado pelo Tribunal Regional Federal da 3^ Região, o ex-Senador já havia interposto mais de 35 (trinta e cinco) recursos, obstando, assim, o trânsito em julgado. Com a mudança de orientação jurisprudencial do STF acerca do assunto, o ex-Senador foi, enfim, recolhido à prisão, em data de 8 de março de 2016.

33.

Após a decisão do STF no HC 126.292, o STJ também passou a admitir a execução provisória de acórdão con­ denatório. A propósito, confira-se: STJ, 6ã Turma, EDcl no REsp 1.484.415/DF, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 3/3/2016, DJe 14/4/2016; STJ, Corte Especial, QO na APn 675/GO, Rei. Min. Nancy Andrighi, j. 6/4/2016, DJe 26/4/2016.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

E só se pode falar em trânsito em julgado quando a decisão se toma imutável, o que, como sa­ bemos, é obstado pela interposição dos recursos extraordinários, ainda que desprovidos de efeito suspensivo. Não há, portanto, margem exegética para que o art. 5o, inciso LVII, da Constituição Federal, seja interpretado no sentido de se concluir que o acusado é presumido inocente (ou não culpável) tão somente até a prolação de acórdão condenatório por Tribunal de 2a instância. Por mais que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, n. 2)34 estenda o princípio da presunção de inocência até a comprovação legal da culpa, o que ocorre com a prolação de acórdão condenatório no julgamento de um recurso - lembre-se que a mesma Convenção Americana assegura o direito ao duplo grau de jurisdição (art. 8o, § 2o, “h”) -, não se pode perder de vista que a Constituição Federal é categórica ao afirmar que so­ mente o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória poderá afastar o estado inicial de não culpabilidade de que todos gozam. Seu caráter mais amplo deve prevalecer, portanto, sobre o teor da Convenção Americana de Direitos Humanos. De fato, a própria Convenção Americana prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão ser interpretados no sentido de restringir ou limitar a aplicação de normas mais amplas que existam no direito interno dos países signatários (art. 29, b). Em conseqüência, deverá sempre prevalecer a disposição mais favorável (princípio pro homine). Não bastasse a Constituição Federal, é fato que a legislação infraconstitucional também não dá acolhida à nova orientação dos Tribunais Superiores. Explica-se: apesar de o art. 637 do CPP autorizar a execução provisória de acórdão condenatório pelo fato de os recursos extraordiná­ rios não serem dotados de efeito suspensivo, este dispositivo foi tacitamente revogado pela Lei n° 12.403/11, que conferiu nova redação ao art. 283 do CPP (“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”). O art. 283 do CPP é categórico ao estabelecer as hipóteses em que pode haver restrição à liberdade de locomoção no processo penal: a) prisão em flagrante,35 prisão temporária e prisão preventiva: são as únicas espécies de prisão cautelar passíveis de decretação no curso da inves­ tigação ou do processo; b) prisão penal (career adpoenam): a prisão penal só pode ser objeto de execução com o trânsito em julgado de sentença condenatória. Há, portanto, um requisito de natureza objetiva para o início do cumprimento da reprimenda penal, qual seja, a formação da coisa julgada, que é obstada pela interposição de todo e qualquer recurso, seja ele ordinário ou extraordinário, seja ele dotado de efeito suspensivo ou não. Logo, o caráter “extraordinário” dos recursos especial e extraordinário, bem como o fato de serem recursos de fundamentação vinculada e limitados ao reexame de questões de direito não é um argumento legítimo para sustentar a execução antecipada da pena. Isso porque o caráter “extraordinário” desses recursos não afeta o conceito de trânsito em julgado expressamente estabelecido pelo art. 283 do CPP como marco final do processo para fins de execução da pena. Por mais que a Lei n° 12.403/11, responsável pela nova redação do art. 283 do CPP, não tenha feito qualquer referência ao art. 637 do CPP, é no mínimo estranho admitirmos que um dispositivo legal autoriza a execução da pena tão somente com o trânsito em julgado de 34.

"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legal­ mente sua culpa".

35.

Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. Há quem entenda que se trata de medida pré-cautelar, e não uma espécie de prisão cautelar. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao Título 6, Capítulo IV, item 4.

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sentença condenatória, enquanto outro a autoriza pelo fato de não outorgar efeito suspensivo aos recursos extraordinários. É bem verdade que o art. 9o da LC 95/98, com redação dada pela LC n° 107/01, determina que a cláusula de revogação de lei nova deve enumerar, expressamente, as leis e disposições revogadas, o que não ocorreu na hipótese sob comento. No entanto, a falta de técnica por parte do legislador - que, aliás, tem se tomado uma rotina -, não pode justificar a convivência de normas jurídicas incompatíveis entre si, tratando do conceito de execução da pena de maneira conflitante. Por conseqüência, como se trata de norma posterior que tratou da matéria em sentido diverso, parece-nos que a nova redação do art. 283 do CPP conferida pela Lei n° 12.403/11 revogou tacitamente o art. 637 do CPP, nos termos do art. 2o, § Io, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Não se pode objetar que o novo CPC teria revogado tacitamente o art. 283 do CPP, por prever expressamente que os recursos extraordinários não são dotados de efeito suspensivo (NCPC, arts. 995 e 1.029, § 5o). A uma porque o novo CPC só pode ser aplicado no âmbito processual penal de maneira subsidiária e supletiva, ou seja, quando restar evidenciada a existência de uma lacuna. Como não há qualquer omissão no âmbito do CPP, que prevê ex­ pressamente que a execução da pena pressupõe o trânsito em julgado (art. 283), não se pode admitir a revogação de seus dizeres por uma norma genérica prevista no novo CPC. Não bastasse isso, é fato que o art. 283 do CPP consiste em mera reprodução da cláusula pétrea do art. 5o, LVII, da Constituição Federal (“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’’), cujo núcleo essencial jamais poderia sofrer qualquer restrição, quer por parte de uma lei ordinária (Lei n° 13.105/15 - NCPC), quer pelo próprio Poder Constituinte. A solução para o caos do sistema punitivo brasileiro deve passar, portanto, por uma mudança legislativa - e não jurisprudencial, como feita pelo STF - para que seja antecipado o momento do trânsito em julgado de acórdãos condenatórios proferidos pelos Tribunais de 2a instância, hipótese em que os recursos extraordinários obrigatoriamente teriam que ter sua natureza jurídica alterada para sucedâneos recursais externos.36 De todo modo, pelo menos enquanto não sobrevêm essa mudança legislativa - se é que um dia virá - , cabe aos Tribunais maior rigor na verificação de eventuais excessos por parte da defesa no tocante ao exercício abusivo do direito de recorrer. Em outras palavras, quando restar evidenciado o intuito meramente protelatório dos recursos, apenas para impedir o exaurimento da prestação jurisdicional e o conseqüente início do cumprimento da pena, incumbe aos Tribunais determinar o imediato início da execução mesmo antes do trânsito em julgado, haja vista o exercício irregular e abusivo do direito de defesa e do duplo grau de jurisdição e a conseqüente violação ao princípio da cooperação, previsto no art. 6o do novo CPC, ao qual também se sujeitam as partes. Nessa linha, como já havia se pronunciado o Supremo em momento anterior ao HC 126.292, “a reiteração de embargos de declaração, sem que se registre qualquer dos seus pressupostos, evidencia o intuito meramente protelatório. A interposição de embargos de declaração com finalidade meramente protelatória autoriza o imediato cumprimento da decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente da publicação do acórdão”.37 36.

A expressão "sucedâneos recursais", introduzida por Frederico Marques (Instituições de D ireito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, v. 4, p. 377 e segs.), ora é utilizada para identificar o conjunto de meios não recursais de impugnação, ora é utilizada em acepção estrita, para referir apenas aos meios de impugnação que nem são recurso nem são ação autônoma.

37.

STF, ia Turma, RMS 23.841 AgR-ED-ED/DF, Rei. Min. Eros Grau, j. 18/12/2006, DJ16/02/2007. No sentido de que a utilização indevida das espécies recursais, consubstanciada na interposição de inúmeros recursos contrários à

TÍTULO 1 • N O Ç Õ E S IN TR O D U TÓ RIA S

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Em conclusão, convém ressaltar que o teor da decisão proferida no julgamento do HC 126.292 foi confirmada pelo Plenário do STF ao indeferir medida cautelar em duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC’s 43 e 44), permitindo, assim, a execução provisória da pena privativa de liberdade38 após a decisão condenatória de segundo grau e antes do trânsito em julgado, porquanto as decisões jurisdicionais não impugnáveis por recursos dotados de efeito suspensivo têm eficácia imediata. Assim, após esgotadas as instâncias ordinárias,39 a condenação criminal poderá provisoriamente surtir efeito imediato do encarceramento, uma vez que o aces­ so às instâncias extraordinárias se dá por meio de recursos que são ordinariamente dotados de efeito meramente devolutivo.4041Esse entendimento foi, posteriormente, confirmado pelo Plenário Virtual do STF na análise do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 964.246,41 que teve repercussão geral reconhecida. Assim, a tese firmada pelo Tribunal deve ser aplicada nos processos em curso nas demais instâncias.

jurisprudência como mero expediente protelatório, desvirtua o próprio postulado constitucional da ampla defesa: STF, 23 Turma, Al 759.450 ED/RJ, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 01/12/2009, DJe 237 17/12/2009; STF, Pleno, AO 1.046 ED/RR, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 28/11/2007, DJe 31 21/02/2008. Para o STJ, quando verificada a oposição de recursos manifestamente protelatórios apenas para se evitar o exaurimento da prestação jurisdicional, tem sido admitida a baixa imediata dos autos, para o início da execução penal: STJ, 5ã Turma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 1.142.020/PB, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 07/10/2010, DJe 03/11/2010. E ainda: STJ, 5§ Tur­ ma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 862.591/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/09/2009, DJe 05/10/2009. O abuso do direito de recorrer no processo penal, com o escopo de obstar o trânsito em julgado da condenação e, por conseqüência, de se alcançar a prescrição da pretensão punitiva, autoriza inclusive a determinação monocrática de baixa imediata dos autos por Ministro de Tribunal Superior, independentemente de publicação da decisão. Nessa linha: STF, Pleno, RE 839.163 QO/DF, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 05/11/2014. 38.

Embora o Supremo Tribunal Federal tenha decidido pela viabilidade da imediata execução da pena imposta ou confirmada pelos tribunais locais após esgotadas as respectivas jurisdições, não analisou tal possibilidade quanto às reprimendas restritivas de direitos. Considerando a ausência de manifestação expressa da Corte Suprema e o teor do art. 147 da LEP, não se afigura possível a execução da pena restritiva de direitos antes do trânsito em julgado da condenação. Nesse contexto: STJ, 3ã Seção, EREsp 1.619.087/SC, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 14/06/2017, DJe 24/08/2017.

39.

A execução da pena depois da prolação de acórdão em segundo grau de jurisdição e antes do trânsito em julgado da condenação não é autom ática, quando a decisão ainda é passível de integração pelo Tribunal de Justiça, sobretudo quando o juízo de primeiro grau conceder ao acusado, na sentença condenatória, o direito de recorrer em liberdade. Por isso, em caso concreto no qual ainda não havia se dado o esgotamento da jurisdição do Tribunal de Justiça, em virtude da interposição de Embargos de Declaração ainda não julgado, concluiu a 63 Turma do STJ (HC 366.907/PR, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 06/12/2016, DJe 16/12/2016) ser indevido, naquele momento, o início da execução provisória da pena. É bem verdade que os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo e apenas interrompem o prazo para a interposição dos recursos cabíveis. No entanto, dada a falibilidade que é característica do ser humano, excepcionalmente, existe a possibilidade de atribuir efeito infringente aos aclaratórios. Para a 5ã Turma do STJ (HC 371.870/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 13/12/2016, DJe 12/02/2017), também se revela ilegal a imediata execução provisória da pena na hipótese em que ainda não tiver havido a intimação da Defensoria Pública Estadual acerca de acórdão condenatório.

40.

STF, Pleno, ADC 43 MC/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016; STF, Pleno, ADC 44 MC/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016.

41.

"(.■■) Em regime de repercussão geral, fica reafirmada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 52, inciso LVII, da Constituição Federal. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com o reconhecimento da repercussão geral do tema e a reafirmação da jurisprudência sobre a matéria". (STF, Pleno, ARE 964.246 RG/SP, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 10/11/2016, DJe 251 24/11/2016).

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3.2. Princípio do contraditório De acordo com o art. 5o, inciso LV, da Constituição Federal, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Na clássica lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, sempre se compreendeu o princí­ pio do contraditório como a ciência bilateral dos atos ou termos do processo e a possibilidade de contrariá-los.42De acordo com esse conceito, o núcleo fundamental do contraditório estaria ligado à discussão dialética dos fatos da causa, devendo se assegurar a ambas as partes, e não somente à defesa, a oportunidade de fiscalização recíproca dos atos praticados no curso do processo. Eis o mo­ tivo pelo qual se vale a doutrina da expressão “audiência bilateral”, consubstanciada pela expressão em latim audiatur et altera pars (seja ouvida também a parte adversa). Seriam dois, portanto, os elementos do contraditório: a) direito à informação; b) direito de participação. O contraditório seria, assim, a necessária informação às partes e a possível reação a atos desfavoráveis. Como se vê, o direito à informação funciona como consectário lógico do contraditório. Não se pode cogitar da existência de um processo penal eficaz e justo sem que a parte adversa seja cientificada da existência da demanda ou dos argumentos da parte contrária. Daí a importância dos meios de comunicação dos atos processuais: citação, intimação e notificação. Não por outro motivo, de acordo com a súmula 707 do Supremo Tribunal Federal, “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo Também deriva do contraditório o direito à participação, aí compreendido como a possibi­ lidade de a parte oferecer reação, manifestação ou contrariedade à pretensão da parte contrária. Pela concepção original do princípio do contraditório, entendia-se que, quanto à reação, bastava que a mesma fosse possibilitada, ou seja, tratava-se de reação possível. No entanto, a mudança de concepção sobre o princípio da isonomia, com a superação da mera igualdade for­ mal e a busca de uma igualdade substancial, produziu a necessidade de se igualar os desiguais, repercutindo também no âmbito do princípio do contraditório. O contraditório, assim, deixou de ser visto como uma mera possibilidade de participação de desiguais para se transformar em uma realidade. Enfim, há de se assegurar uma real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo, assegurando a efetividade e plenitude do contraditório. E o que se denomina contraditório efetivo e equilibrado. Na dicção de Badaró, houve, assim, uma dupla mudança, subjetiva e objetiva. Segundo o autor, “quanto ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de par­ ticipação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em igualdade de condições. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador”.43 Notadamente no âmbito processual penal, não basta assegurar ao acusado apenas o direito à informação e à reação em um plano formal, tal qual acontece no processo civil. Estando em discussão a liberdade de locomoção, ainda que o acusado não tenha interesse em oferecer reação à pretensão acusatória, o próprio ordenamento jurídico impõe a obrigatoriedade de assistência técnica de um defensor. Nesse contexto, dispõe o art. 261 do CPP que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. E não se deve contentar 42

Princípios fundam entais do processo penal.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1973. p. 82.

43

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. D ireito processual penal. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008. Tomo 1. p. 1-36.

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com uma atuação meramente formal desse defensor. Basta perceber que, dentre as atribuições do juiz-presidente do júri, o CPP elenca a possibilidade de nomeação de defensor ao acusado, quando considerá-lo indefeso (CPP, art. 497, V).44 Portanto, pode-se dizer que se, em um primeiro momento, o contraditório limitava-se ao direito à informação e à possibilidade de reação, a partir dos ensinamentos do italiano Elio Fazzalari, o contraditório passou a ser analisado também no sentido de se assegurar o respeito à paridade de tratamento (par conditio ou paridade de armas). De fato, de nada adianta se assegurar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, se não lhe são outorgados os meios para que tenha condições reais e efetivas de contrariá-los. Há de se assegurar, pois, o equilíbrio entre a acusação e defesa, que devem estar munidas de forças similares. O contraditório pressupõe, assim, a paridade de armas: somente pode ser eficaz se os contendentes possuem a mesma força, ou, ao menos, os mesmos poderes. É nesse sentido que deve ser entendido o parágrafo único do art. 261, acrescentado pela Lei n° 10.792/03, que passou a dispor: “A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada”. Prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a observância do contra­ ditório só é obrigatória, no processo penal, na fase processual, e não na fase investigatória. Isso porque o dispositivo do art. 5o, LV, da Carta Magna, faz menção à observância do contraditório em processo judicial ou administrativo. Logo, considerando-se que o inquérito policial é tido como um procedimento administrativo destinado à colheita de elementos de informação quanto à existência do crime e quanto à autoria ou participação, não há falar em observância do con­ traditório na fase preliminar de investigações.45 Por força do princípio ora em análise, a palavra prova só pode ser usada para se referir aos elementos de convicção produzidos, em regra, no curso do processo judicial, e, por con­ seguinte, com a necessária participação dialética das partes, sob o manto do contraditório e da ampla defesa. Essa estrutura dialética da produção da prova, que se caracteriza pela pos­ sibilidade de indagar e de verificar os contrários, funciona como eficiente mecanismo para a busca da verdade. De fato, as opiniões contrapostas das partes adversas ampliam os limites da cognição do magistrado sobre os fatos relevantes para a decisão da demanda e diminuem a possibilidade de erros. A prova há de ser produzida não só com a participação do acusador e do acusado, como também mediante a direta e constante supervisão do órgão julgador. De fato, com a inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal, o juiz que presidir a instrução deverá proferir a sentença (CPP, art. 399, § 2o, com redação dada pela Lei n° 11.719/08). Funcionando a observância do contraditório como verdadeira condição de existência da prova, só podem ser considerados como prova, portanto, os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação dialética das partes. Nesse sentido, foi bastante incisiva a Lei n° 11.690/08, dando nova redação ao art. 155, caput, do CPP: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em

44

Com esse entendimento: TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 45.

45

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que o inquérito policial é peça meramente informativa, não suscetível de contraditório, e sua eventual irregularidade não é motivo para decretação da nulidade da ação penal. Nessa linha: STF, 2a Turma, HC 99.936/CE, Rei. Min. Ellen Gracie, DJe 232 10/12/2009. Em sentido semelhante: STF, 2a Turma, HC 83.233/RJ, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 19.03.2004.

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M A N U A L DE PR O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lima

contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e anteci­ padas”. Impõe-se, pois, a observância do contraditório ao longo de toda apersecutio criminis in indicio, como verdadeira pedra fundamental do processo penal, contribuindo para o acertamento do fato delituoso. Afinal, quanto maior a participação dialética das partes, maior é a probabili­ dade de aproximação dos fatos e do direito aplicável, contribuindo de maneira mais eficaz para a formação do convencimento do magistrado.46 3.1.5. Contraditório para a prova e contraditório sobre a prova O contraditório para a prova (ou contraditório real) demanda que as partes atuem na própria formação do elemento de prova, sendo indispensável que sua produção se dê na presença do órgão julgador e das partes. É o que acontece com a prova testemunhai colhida em juízo, onde não há qualquer razão cautelar a justificar a não intervenção das partes quando de sua produção, sendo obrigatória, pois, a observância do contraditório para a realização da prova. O contraditório sobre a prova, também conhecido como contraditório diferido ou pos­ tergado, traduz-se no reconhecimento da atuação do contraditório após a formação da prova. Em outras palavras, a observância do contraditório é feita posteriormente, dando-se oportuni­ dade ao acusado e a seu defensor de, no curso do processo, contestar a providência cautelar, ou de combater a prova pericial feita no curso do inquérito. É o que acontece, por exemplo, com uma interceptação telefônica judicialmente autorizada no curso das investigações. Nessa hipótese, não faz sentido algum querer intimar previamente o investigado para acompanhar os atos investigatórios. Enquanto a interceptação estiver em curso, não há falar, portanto, em con­ traditório real. Porém, uma vez finda a diligência, e juntado aos autos o laudo de degravação e o resumo das operações realizadas (Lei n° 9.296/96, art. 6o), deles se dará vista à Defesa, a fim de que tenha ciência das informações obtidas através do referido procedimento investigatório, preservando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa. Nesse caso, não há falar em violação à garantia da bilateralidade da audiência, porquanto o exercício do contraditório será apenas diferido para momento ulterior à decisão judicial.47 3.2. Princípio da ampla defesa De acordo com o art. 5o, LV, da Magna Carta, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Sob a ótica que privilegia o interesse do acusado, a ampla defesa pode ser vista como um direito; todavia, sob o enfoque publicístico, no qual prepondera o interesse geral de um processo justo, é vista como garantia. O direito de defesa está ligado diretamente ao princípio do contraditório. A defesa garante o contraditório e por ele se manifesta. Afinal, o exercício da ampla defesa só é possível em virtude de um dos elementos que compõem o contraditório - o direito à informação. Além disso, a ampla defesa se exprime por intermédio de seu segundo elemento: a reação. Apesar da influência recí­ proca entre o direito de defesa e o contraditório, os dois não se confundem. Com efeito, por força do princípio do devido processo legal, o processo penal exige partes em posições antagônicas, uma delas obrigatoriamente em posição de defesa (ampla defesa), havendo a necessidade de que

46

Nessa linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. I I s ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 34. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 116.

47.

TUCCI. Op. cit. p. 162/163.

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cada uma tenha o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária (contraditório). Como se vê, a defesa e o contraditório são manifestações simultâneas, intimamente ligadas pelo processo, sem que daí se possa concluir que uma derive da outra.48 Como há distinção, “é possível violar-se o contraditório, sem que se lesione o direito de defesa. Não se pode esquecer que o princípio do contraditório não diz respeito apenas à defesa ou aos direitos do réu. O princípio deve aplicar-se em relação a ambas as partes, além de também ser observado pelo próprio juiz. Deixar de comunicar um determinado ato processual ao acusa­ dor, ou impedir-lhe a reação à determinada prova ou alegação da defesa, embora não represente violação do direito de defesa, certamente violará o princípio do contraditório. O contraditório manifesta-se em relação a ambas as partes, já a defesa diz respeito apenas ao réu”.49 Quando a Constituição Federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administra­ tivo, e aos acusados em geral a ampla defesa, entende-se que a proteção deve abranger o direito à defesa técnica (processual ou específica) e à autodefesa (material ou genérica), havendo entre elas relação de complementariedade. Há entendimento doutrinário no sentido de que tam­ bém é possível subdividir a ampla defesa sob dois aspectos: a) positivo: realiza-se na efetiva utilização dos instrumentos, dos meios e modos de produção, certificação, esclarecimento ou confrontação de elementos de prova que digam com a materialidade da infração criminal e com a autoria; b) negativo: consiste na não produção de elementos probatórios de elevado risco ou potencialidade danosa à defesa do réu.50 Por força da ampla defesa, admite-se que o acusado seja formalmente tratado de maneira desigual em relação à acusação, delineando o viés material do princípio da igualdade. Por con­ seqüência, ao acusado são outorgados diversos privilégios em detrimento da acusação, como a existência de recursos privativos da defesa, a proibição da reformatio in pejus, a regra do in dubio pro reo, a previsão de revisão criminal exclusivamente pro reo, etc., privilégios estes que são reunidos no princípio do favor rei.51 3.2.1. Defesa técnica (processual ou específica) Defesa técnica é aquela exercida por profissional da advocacia, dotado de capacidade postulatória, seja ele advogado constituído, nomeado, ou defensor público. Para ser ampla, como impõe a Constituição Federal, apresenta-se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva, não sendo possível que alguém seja processado sem que possua defensor. 3.2.1.1. Defesa técnica necessária e irrenunciável A defesa técnica é indisponível e irrenunciável. Logo, mesmo que o acusado, desprovido de capacidade postulatória, queira ser processado sem defesa técnica, e ainda que seja revel, deve o juiz providenciar a nomeação de defensor. Exatamente em virtude disso, dispõe o art. 261 do CPP que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado

48.

Com esse entendimento: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 6§ ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 253.

49

BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2ã ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 37. AZEVEDO, David Teixeira de. O inte rrog atório do réu e o direito ao silêncio. RT, São Paulo, v. 682, p. 285-298, ago. 1992. p. 290.

50 51.

Para mais detalhes acerca do princípio do fa v o r rei, consultar comentários ao Título 5 ("Provas"), mais precisa­ mente no Capítulo I ("Teoria geral das provas"), item 6.6. ("Princípio do fa v o r rei").

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M A N U A L DE P R O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lim a

sem defensor”. Não se admite, assim, processo penal sem que a defesa técnica seja exercida por profissional da advocacia. Caso o processo tenha curso sem a nomeação de defensor, seja porque o acusado não constituiu advogado, seja porque o juiz não lhe nomeou advogado dativo ou defensor público, o processo estará eivado de nulidade absoluta, por afronta à garantia da ampla defesa (CPP, art. 564, III, “c”). Nessa linha, segundo a súmula n° 708 do Supremo, “é nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”.52 Considerando que, a fím de se assegurar a paridade de armas, a presença de defensor técnico é obrigatória no processo penal, especial atenção deve ser dispensada à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Isso porque, de acordo com o Pacto de São José da Costa Rica, toda pessoa acusada de delito tem direito de se defender pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha (CADH, art. 8, n° 2, “d”). Como se vê, da interpretação da CADH depreende-se que o acusado pode optar por exercer sua defesa pessoalmente ou ser assistido por um defensor de sua escolha. Logicamente, se o acusado é profissional da advocacia, poderá exercer sua própria defesa técnica. Todavia, não o sendo, sua defesa técnica deverá ser exercida por profissional da advocacia legalmente habilitado nos quadros da OAB. Portanto, se o acusado não é dotado de capacidade postulatória, não tem o direito de redigir pessoalmente sua defesa técnica, salvo em situações excepcionais expressamente previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal (v.g., interposição de habeas corpus, recursos e incidentes da execução penal).53 Para que o próprio acusado possa exercer sua defesa técnica, não basta que seja dotado de capacitação técnica. O acusado deve ser advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advo­ gados do Brasil. Por isso, a despeito do evidente conhecimento jurídico de que são dotados, se acusados criminalmente, juizes e/ou promotores não podem exercer sua defesa técnica. Nesse sentido, como já se pronunciou o Supremo, “nas ações penais originárias, a defesa preliminar (L. 8.038/90, art. 4o), é atividade privativa dos advogados. Os membros do Ministério Público estão impedidos de exercer advocacia, mesmo em causa própria. São atividades incompatíveis (L. 8.906/94, art. 28)”.54 Se a defesa técnica deve ser exercida por profissional da advocacia, é evidente que não é possível a nomeação de estagiários para patrocinar causas criminais, já que tal providência é proibida pelo Estatuto da OAB, notadamente quando desacompanhado de advogado (Lei n° 8.906/94, art. 3o, § 20).55 Com raciocínio semelhante, também não se admite que a defesa técnica seja exercida por advogado suspenso por ato disciplinar da Ordem dos Advogados do Brasil. Considerada a indispensabilidade do advogado para a administração da justiça (CF, art. 133) e a necessidade de o mesmo atender as qualificações profissionais que a lei estabelecer (CF, art. 5o, XIII), se os atos 52.

No sentido da nulidade absoluta de sessão de julgamento de apelação criminal realizada sem a presença de defensor constituído, porquanto, após a apresentação das razões de apelação, o advogado constituído teria re­ nunciado aos poderes que lhe foram conferidos, sem que o juiz tivesse notificado o acusado para a constituição de novo defensor, como demanda a súmula n9 708 do STF: STF, 2ã Turma, HC 94.282/GO, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 03/03/2009, DJe 75 23/04/2009.

53.

Nesse sentido: STF, lã Turma, HC 102.019/PB, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 17/08/2010, DJe 200 21/10/2010. Ainda no sentido de que o exercício da autodefesa pelo acusado deve se dar de forma complementar à defesa técnica, e não de forma exclusiva, salvo em hipóteses excepcionais, como no caso da impetração de habeas corpus: STJ, 59 Turma, HC 100.810/PB, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 29/04/2009, DJe 25/05/2009.

54

STF, 2® Turma, HC 76.671/RJ, Rei. Min. Nelson Jobim, j. 09/06/1998, DJ 10/08/2000.

55

STF, l 9 Turma, HC 89.222/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 04/09/2007, DJe 206 30/10/2008.

T ÍT U L O !

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processuais foram praticados por advogado que não estava legalmente habilitado a tanto, deve se reputar violado o direito à defesa plena, efetiva e real, que a Constituição Federal assegura a todos os acusados.56 A presença de advogado é imprescindível no processo criminal, mesmo no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Da análise da Lei 9.099/95 é fácil perceber que a presença de defensor é obrigatória em todos os momentos, seja na audiência preliminar (art. 72), na análise da proposta da transação penal (art. 76, § 3o), no curso do procedimento comum sumaríssimo (art. 81), seja no momento da proposta de suspensão condicional do processo (art. 89, § Io). Nesse ponto, especial atenção deve ser dispensada ao art. 10 da Lei n° 10.259/01, que dispõe sobre os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal. De acordo com o referido dispositivo, as partes poderão designar, por escrito, representantes para a causa, advogado ou não. No que se refere aos processos de natureza cível, o Supremo Tribunal Federal já firmou o entendimento de que a imprescindibilidade de advogado é relativa, podendo, portanto, ser afastada pela lei em relação aos juizados especiais. Contudo, quanto aos processos de natureza criminal, em homenagem ao princípio da ampla defesa, é imperativo que o réu compareça ao processo devidamente acompanhado de profissional habilitado a oferecer-lhe defesa técnica de qualidade, ou seja, de advogado devidamente inscrito nos quadros da Ordem dos Advo­ gados do Brasil ou defensor público. Este o motivo pelo qual o Supremo, no julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, fez interpretação conforme para excluir do âmbito de incidência do art. 10 da Lei 10.259/2001 os feitos de competência dos juizados especiais criminais da Justiça Federal.57 3.2.I.2. Direito de escolha do defensor Em virtude da relação de confiança que necessariamente se estabelece entre o acusado e quem o defende, entende-se que um dos desdobramentos da ampla defesa é o direito que o acu­ sado tem de escolher seu próprio advogado. Logo, não sendo possível ao defensor constituído assumir ou prosseguir no patrocínio da causa penal, incumbe ao juiz ordenar a intimação do réu para que este, querendo, escolha outro advogado. Antes de realizada essa intimação - ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado - não é lícito ao juiz nomear defensor dativo sem expressa aquiescência do réu.58 Tem o acusado, portanto, o direito de escolher seu próprio defensor, não sendo possível que o juiz substitua seu advogado constituído por outro de sua nomeação. A nomeação de defensor pelo juiz só poderá ocorrer nas hipóteses de abandono do processo pelo advogado constituído e desde que o acusado permaneça inerte, após ser instado a constituir novo defensor. Assim, se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação (CPP, art. 263, caput). Supondo, então, que o advogado constituído do acusado tenha deixado de apresentar me­ moriais (CPP, art. 403, § 3o), não poderá o juiz, de plano, nomear advogado dativo ou defensor 56

STF, 2^ Turma, HC 85.717/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 09/10/2007. Informativo n9 483 do STF. Reconhecendo a nulidade de processo em virtude da ausência de defesa técnica pelo fato de os atos terem sido praticados por advogado cuja inscrição estava suspensa na OAB: STF, 1- Turma, HC 110.271/ES, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 07/05/2013, DJe 124 27/06/2013. Em sentido diverso, entendendo não haver nulidade em processo criminal no qual a defesa técnica foi exercida por advogado licenciado da OAB: STF, l ã Turma, HC 99.457/RS, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 13/10/2009, DJe 100 02/06/2010.

57

STF, Pleno, ADI 3.168/DF, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 08/06/2006, DJe 72 02/08/2007.

58.

A propósito: STF, lã Turma, HC 67.755/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 26/06/1990, DJ 11/09/1992.

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público para oferecer a referida peça de defesa. Antes, deve intimar o acusado para que constitua novo advogado. Permanecendo o acusado inerte, e considerando a imprescindibilidade da apre­ sentação dos memoriais para o exercício da ampla defesa, aí sim deverá o juiz nomear advogado dativo ou defensor público. Nesse sentido, aliás, a súmula 707 do Supremo preconiza que “cons­ titui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso inter­ posto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo ” (nosso grifo).59 Caso o acusado não tenha condições de contratar um advogado, poderá se socorrer da Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, à qual incumbe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5o, LXXIV, da Constituição Federal. Caso não haja Defensoria Pública na comarca, incumbe ao juiz a nomeação de advogado dativo para patrocinar a defesa do acusado. Sobre o assunto, dispõe o Estatuto da OAB que constitui infração disciplinar recusar-se a prestar, sem justo motivo, assistência jurí­ dica, quando nomeado em virtude de impossibilidade da Defensoria Pública (Lei n° 8.906/94, art. 34, XII). E preceitua também que o “advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado” (art. 22, § Io). Em alguns Estados, existe um convênio entre a OAB e a Procuradoria de Assistência Judiciária, estabelecendo uma lista de profissionais dispostos a aceitar a nomeação para atuar, conforme a área de atuação, bem como existe uma tabela que serve de baliza para a fixação dos honorários a ser feita pelo magistrado. O arbitramento judicial dos honorários advocatícios ao defensor dativo nomeado para oficiar em processos criminais deve observar os valores mínimos estabelecidos na tabela da OAB, considerados o grau de zelo do profissional e a dificuldade da causa como parâmetros norteadores do quantum,60 3.2.1.3. Defesa técnica plena e efetiva Para que seja preservada a ampla defesa a que se refere a Constituição Federal, a defesa técnica, além de necessária e indeclinável, deve ser plena e efetiva. Ou seja, não basta assegurar a presença formal de defensor técnico. No curso do processo, é necessário que se perceba efetiva atividade defensiva do advogado no sentido de assistir seu cliente. Esse o motivo pelo qual a Lei n° 10.792/03 acrescentou o parágrafo único ao art. 261 do CPP, de modo a exigir que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, seja sempre exercida por manifestação fundamentada. Com efeito, de que adianta a presença física de defensor que não arrola testemunhas, que não faz reperguntas, que não oferece me­ moriais, ou que os apresenta sucintamente, sem análise da prova, em articulado que poderia ser utilizado em relação a qualquer processo criminal? Na verdade, em tal hipótese, haveria um profissional da advocacia formalmente designado para defender o acusado, mas a sua atuação seria tão precária que seria como se o acusado tivesse sido processado sem defesa técnica. Em casos como este, recai sobre o Ministério Público e sobre o juiz o dever de fiscalizar a atuação defensiva do advogado, evitando-se, assim, possível caracterização de nulidade absoluta do feito, por violação à ampla defesa. 59.

Nesse sentido: STJ, 5ã Turma, HC 162.785/AC, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 13/04/2010, DJe 03/05/2010. Na mesma linha, reconhecendo a nulidade absoluta do feito em virtude da ausência de intimação do acusado para constituir novo defensor diante de renúncia apresentada pelo advogado constituído: STJ, 5ã Turma, HC 132.108/PA, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 16/12/2010, DJe 07/02/2011.

60

No tocante aos critérios para o arbitramento dos honorários: STJ, 63 Turma, REsp 1.377.798/ES, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 19/8/2014.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

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Nesse sentido, a súmula 523 do STF dispõe que, “no processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu”. Assim, caso haja falha na atuação do defensor, com a causação de prejuízo ao acusado, o pro­ cesso deve ser anulado. Em outras palavras, a defesa não pode ser meramente formal, devendo ser adequadamente exercida. Para que essa defesa seja ampla e efetiva, deve-se deferir ao acusado e a seu defensor tempo hábil para sua preparação e exercício. Entre as várias garantias que o devido processo legal asse­ gura está o direito de dispor de tempo e facilidades necessárias para preparar a defesa. Há de se assegurar ao acusado e a seu defensor o tempo e os meios adequados para a preparação da defesa. Apesar de não haver dispositivo expresso no CPP acerca do assunto, cuida-se de previsão comum nas declarações internacionais de direitos humanos. De fato, de acordo com o art. 8o, n° 2, alínea “c”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92), ao acusado se assegura a concessão do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa. No mesmo sentido, vide art. 14, n° 3, “b”, do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos. Como destaca Gustavo Henrique Badaró, “conferir ao réu o direito de defesa, sem oferecer-lhe tempo suficiente para sua preparação é esvaziar tal direito. Deve haver um tempo razoável entre a comunicação do ato em relação ao qual deverá ser exercida a defesa e o prazo final para tal exercício. Defesa sem tempo suficiente é ausência de defesa, ou, no mínimo, defesa ineficiente”.61 Obrigatoriamente, deve o defensor atuar em benefício do acusado, sob pena de se con­ siderá-lo indefeso. Isso, no entanto, não significa dizer que o defensor deverá sempre e inva­ riavelmente pedir a absolvição do acusado. A depender das circunstâncias do caso concreto, esse pedido absolutório não será uma alternativa viável e tecnicamente possível. Basta ima­ ginar, por exemplo, processo penal em que o réu tenha confessado a prática delituosa após a colheita de farta prova testemunhai o incriminando. Em tal hipótese, pedir a absolvição seria absolutamente inócuo. Porém, visando à melhora da situação do acusado, incumbe ao defensor buscar o reconhecimento de eventual causa de diminuição de pena, circunstância atenuante ou algum benefício legal para o cumprimento da sanção penal (v.g., regime aberto, substituição por pena restritiva de direitos, concessão do sursis, etc.), além do reconhecimento de possíveis nulidades. E perfeitamente possível que um mesmo advogado patrocine a defesa técnica de dois ou mais acusados, desde que não haja teses colidentes. Havendo teses antagônicas, a defesa técnica não poderá ser exercida por um mesmo advogado, porquanto haverá, invariavelmente, prejuízo a um dos acusados. Logo, se um dos acusados nega sua participação no crime, enquanto o ou­ tro o incrimina em suas declarações, a defesa de ambos não pode ser promovida pelo mesmo advogado, sob pena de nulidade do feito.62 3.2.2. Autodefesa (material ou genérica) Autodefesa é aquela exercida pelo próprio acusado, em momentos cruciais do processo. Diferencia-se da defesa técnica porque, embora não possa ser desprezada pelo juiz, é disponível, já que não há como se compelir o acusado a exercer seu direito ao interrogatório nem tampouco a acompanhar os atos da instrução processual. 61 62

BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2§ ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 38. Com esse entendimento: STF, Turma, HC 69.716/RS, Rei. Min. limar Galvão, j. 13/10/1992, DJ 18/12/92. Na mesma linha: STJ, 6ã Turma, RHC 22.034/ES, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 19/08/2010, Informativo ne 443 do STJ.

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I

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De modo a se assegurar o exercício da autodefesa, o acusado deve ser citado pessoal­ mente, pelo menos em regra. Caso o acusado não seja encontrado, e somente depois de esgotadas todas as diligências no sentido de localizá-lo, será possível sua citação por edital, com o prazo de 15 (quinze) dias. Daí dispor a súmula n° 351 do Supremo Tribunal Federal que “é nula a citação por edital de réu preso na mesma unidade da federação em que o juiz exerce a sua jurisdição”. Ora, se o acusado estava preso, é dever do Estado ter conhecimento de sua localização, a fim de citá-lo pessoalmente. Se a citação foi feita por edital, deve ser considerada nula. Com a reforma processual de 2008, também foi introduzida no processo penal a possibilidade de citação por hora certa, se acaso verificado que o réu se oculta para não ser citado (CPP, art. 362). Eventual ofensa ao direito do acusado de exercer sua própria defesa é causa de nulidade absoluta por violação à ampla defesa. Assim, quando presente, deve o acusado ser interrogado, sob pena de nulidade do feito (CPP, art. 564,1, e, segunda parte). Também se afigura necessária a intimação do acusado para os atos processuais, para que possa acompanhá-los, intimação esta que só não precisa ser feita quando for decretada sua revelia (art. 367). Ademais, também deve ser intimado pessoalmente das decisões para que, querendo, possa exercer o seu direito de recorrer pessoalmente (CPP, art. 577). A autodefesa se manifesta no processo penal de várias formas: a) direito de audiência; b) direito de presença; c) capacidade postulatória autônoma do acusado. 3.2.2.1. Direito de audiência O direito de audiência pode ser entendido como o direito que o acusado tem de apresentar ao juiz da causa a sua defesa, pessoalmente. Esse direito se materializa através do interrogatório, já que é este o momento processual adequado para que o acusado, em contato direto com o juiz natural, possa trazer ao magistrado sua versão a respeito da imputação constante da peça acusatória. Daí o entendimento hoje majoritário em tomo da natureza jurídica do interrogatório: meio de defesa. E verdade que, durante muito tempo, o interrogatório foi considerado meio de prova. A própria posição topográfica que o interrogatório ocupa no CPP, dentro do Capítulo III (“Do interrogatório do acusado”) do Título VII (“Da prova”) reforçava esse entendimento. Além disso, antes da Lei n° 11.719/08 e da Lei n° 11.689/08, o interrogatório era o primeiro ato da instrução processual penal. Atualmente, no entanto, como o acusado não é obrigado a responder a qualquer indagação feita pelo magistrado processante em virtude do direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII), não podendo sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em virtude do exercício dessa especial prerrogativa, entende-se que o interrogatório qualifica-se como meio de defesa. O interrogatório está relacionado, assim, ao direito de audiência, desdobramento da autodefesa. Com a entrada em vigor da Lei n° 10.792/03, e, posteriormente, em virtude da reforma processual de 2008, já não há mais dúvidas quanto a sua natureza jurídica. A presença obrigatória de advogado ao referido ato, introduzida no art. 185, caput, do CPP, pela Lei n° 10.792/03, e sua colocação ao final da instmção processual pela reforma processual de 2008 (CPP, art. 400, caput), possibilitando que o acusado seja ouvido após a colheita de toda a prova oral, reforçam esse entendimento.63

63.

Considerando o interrogatório como meio de defesa: STF, 2§ Turma, HC 94.601/CE, Rei. Min. Celso de Mello, j. 04/08/2009, DJe 17110/09/2009. E ainda: STF, 2§ Turma, HC 94.016/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 16/09/2008, DJe 38 26/02/2009.

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3.2.2.2. Direito de presença Por meio do direito de presença, assegura-se ao acusado a oportunidade de, ao lado de seu defensor, acompanhar os atos de instrução, auxiliando-o na realização da defesa. Daí a importância da obrigatória intimação do defensor e do acusado para todos os atos processuais. Afinal, durante a instrução criminal, podem ser prestadas declarações cuja falsidade ou incor­ reção só o acusado consiga detectar. Nesse caso, o acusado deve poder relatar de imediato tais falsidades ou incorreções ao seu defensor técnico, a fim de que este último tenha tempo hábil para explorá-las, durante a colheita da prova. Se o direito de presença é um desdobramento da autodefesa, a qual é disponível, conclui-se que o comparecimento do réu aos atos processuais, em princípio, é um direito, e não um dever, sem embargo da possibilidade de sua condução coercitiva, caso necessário, por exemplo, para audiência de reconhecimento, ato este que não está protegido pelo direito à não autoincriminação. Nem mesmo ao interrogatório estará o acusado obrigado a comparecer, até mesmo porque a Constituição Federal lhe assegura o direito ao silêncio. De todo modo, caso o acusado não compareça à audiência, a presença do defensor será sempre necessária e obrigatória, seja ele constituído, público, dativo ou nomeado para o ato.64 Portanto, por força do direito de presença, consectário lógico da autodefesa e da ampla defesa, assegura-se ao acusado o direito fundamental de presenciar e participar da instrução processual. Não se trata, todavia, de um direito de natureza absoluta. Dentre os direitos fundamentais que podem colidir com o direito de presença, legitimando sua restrição, encontram-se os direi­ tos das testemunhas e das vítimas à vida, à segurança, à intimidade e à liberdade de declarar, os quais se revestem de inequívoco interesse público, e cuja proteção é indiscutível dever do Estado. Portanto, na hipótese de efetiva prática de atos intimidatórios, subentende-se que houve uma renúncia tácita ao direito de presença pelo acusado, pela adoção de comportamento in­ compatível com o exercício regular de um direito. Daí dispor o art. 217 do CPP que, se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Nesse caso de retirada do acusado da sala de audiência, deve o juiz manter todos os corolários da ampla defesa, assegurando a presença do defensor técnico na audiência, bem como um canal de comunicação livre e reser­ vada deste com o acusado.65 Ainda em relação ao direito de presença, muito se discute quanto à necessidade de des­ locamento do acusado preso para acompanhar a oitiva de testemunhas de acusação em carta precatória em unidade da Federação diversa daquela na qual ele se encontra recolhido. Há pre­ cedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. Portanto, estando preso o acusado, cumpre requisitá-lo para 64

Nessa linha: STJ, 69 Turma, RESP n9 346.677/RJ, rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 30/09/2002.

65

Considerando lícita a retirada dos acusados da sala de audiências, se as testemunhas de acusação demonstram temor e receio em depor na presença dos réus: STF, l ã Turma, HC 86.572/PE, Rei. Min. Carlos Britto, j. 06/12/2005, DJ 30/03/2007 p. 76. E também: STF, l 9 Turma, HC 86.711/GO, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 04/03/2006, DJ 16/06/2006; STF, 29 Turma, HC 73.879/SP, Rei. Min. Francisco Rezek, j. 10/06/1996, DJ 11/04/1997.

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a audiência de oitiva de testemunhas, pouco importando encontrar-se em unidade da Federação diversa daquela na qual tramita o processo. Seriam irrelevantes, então, eventuais alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder à remoção de acusados presos, porquanto razões de mera conveniência administrativa não poderiam se sobrepor ao direito de presença do acusado.66 Em sentido contrário, todavia, em julgados mais recentes, ambas as Turmas do Supremo têm entendido que a alegação de necessidade da presença do réu em audiências deprecadas, estando ele preso, configura nulidade relativa, devendo-se comprovar a oportuna requisição e também a presença de efetivo prejuízo à defesa.67Assim, caso o pedido seja indeferido motivadamente pelo magistrado, diante das peculiaridades do caso concreto, em especial diante da periculosidade do réu, e da ausência de efetivo prejuízo, não há falar em nulidade do feito.68 3.2.23. Capacidade postulatória autônoma do acusado Quanto ao terceiro desdobramento da autodefesa, entende-se que, em alguns momentos específicos do processo penal, defere-se ao acusado capacidade postulatória autônoma, inde­ pendentemente da presença de seu advogado. É por isso que, no processo penal, o acusado pode interpor recursos (CPP, art. 577, caput), impetrar habeas corpus (CPP, art. 654, caput), ajuizar revisão criminal (CPP, art. 623), assim como formular pedidos relativos à execução da pena (LEP, art. 195, caput). Em tais situações, mesmo não sendo profissional da advocacia, a Constituição Federal e a legislação ordinária conferem ao acusado capacidade postulatória autônoma, possibilitando que ele dê o impulso inicial ao recurso, às ações autônomas de impugnação ou aos procedimentos incidentais relativos à execução. Uma vez dado o impulso inicial pelo acusado, pensamos que, em seguida, e de modo a lhe assegurar a mais ampla defesa, há de ser garantida a assistência de defensor técnico, possibilitando, a título de exemplo, a apresentação das respectivas razões recursais, etc. Essas manifestações do acusado não violam o disposto no art. 133 da Constituição Federal, que prevê a advocacia como função essencial à administração da justiça. Deve se entender que, no processo penal, essas manifestações defensivas formuladas diretamente pelo acusado não prejudicam a defesa, apenas criando uma possibilidade a mais de seu exercício. 3.2.3. Ampla defesa no processo administrativo disciplinar e na execução penal Dispondo a Constituição Federal que, aos litigantes, em processo judicial ou administrati­ vo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5o, inciso LV), dúvidas não restam quanto à plena aplicação do

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STF, l ã Turma, HC 94.216/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 113 18/06/2009. No mesmo contexto: STF, 2a Turma, HC 93.503/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 02/06/2009, DJe 148 06/08/2009; STF, 2§ Turma, HC 86.634/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 23/02/2007. Independentemente da aquiescência do defensor, o acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal: STF, 23 Turma, HC 111.728/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 19/02/2013, DJe 161 16/08/2013.

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Não é nula a audiência de oitiva de testemunha realizada por carta precatória sem a presença do réu, se este, devidamente intimado da expedição, não requer o comparecimento: STF, Pleno, RE 602.543/RG-Q.O, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 035 25/02/2010.

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STF, 1 - Turma, HC 100.382/PR, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 08/06/2010, DJe 164 02/09/2010. Com o mesmo entendimento: STF, 2* Turma, HC 93.598/SP, Rei. Min. Eros Grau, j. 27/04/2010, DJe 91 20/05/2010.

TÍTULO 1 • N O Ç Õ E S IN TR O D U TÓ RIA S

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direito de defesa e do contraditório no âmbito do processo administrativo disciplinar. Questiona-se, todavia, se seria necessária a atuação de advogado no processo administrativo disciplinar, tal qual se faz necessário em processo judicial (CPP, art. 261, caput). Acerca do assunto, o Superior Tribunal de Justiça editou o verbete sumular de n° 343, segun­ do o qual é obrigatória a assistência de advogado em todas as fa s e s do pro cesso adm inistrativo disciplinar, de forma a assegurar a garantia constitucional do contraditório. Ocorre que, após a edição da súmula 343 do STJ, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido de que, em relação às punições disciplinares, o exercício da ampla defesa abrange: a) o direito de informação sobre o objeto do processo: obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; b) o di­ reito de manifestação: assegura ao defendente a possibilidade de se manifestar oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos contidos no processo; c) o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar: exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de ânimo para contemplar as razões apresentadas. Todavia, concluiu a Suprema Corte que não se faz necessária a presença de advogado no processo administrativo disciplinar.69Exatamente em virtude dessa conclusão, foi firmado pelo Supremo Tribunal Federal o enunciado da Súmula Vinculante n° 5, segundo a qual: “A fa lta de defesa técnica p o r advogado no processo adm inistrativo disciplinar não ofende a C onstituição .” A despeito do teor da Súmula Vinculante 5, tal verbete é aplicável apenas em procedimentos de natureza cível e não em procedimento administrativo disciplinar promovido para averiguar o cometimento de falta grave no curso da execução penal, tendo em vista estar em jogo a liberdade de ir e vir. Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar, no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado. A Súmula Vinculante n° 5 do STF não se aplica à execução penal. Primeiro, porque todos os precedentes utilizados para elaboração do aludido verbete sumular são originários de questões não penais, onde estavam em discussão procedimentos administrativos de nature­ za previdenciária, fiscal, disciplinar-estatutário militar e tomada de contas especial. Segundo, porque, na execução da pena está em jogo a liberdade do sentenciado, o qual se encontra em situação de extrema vulnerabilidade, revelando-se incompreensível que ele possa exercer uma ampla defesa sem o conhecimento técnico do ordenamento jurídico, não se podendo, portanto, equipará-lo ao indivíduo que responde a processo disciplinar na esfera cível-administrativa. Logo, na hipótese de o Juízo das Execuções decretar a regressão de regime de cumprimento de pena sem que o condenado seja assistido por defensor durante procedimento administrativo disciplinar instaurado para apurar falta grave, há de se reconhecer a nulidade do feito, haja vista a violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa. A propósito, eis o teor da súmula n° 533 do STJ, aprovada em data de 10/06/2015: “Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado”.70

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STF, Pleno, RE 434.059/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 07/05/2008, DJe 172 11/09/2008.

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STF, 29 Turma, RE 398.269/RS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 15/12/2009, DJe 35 25/02/2010. E ainda: STJ, 39 Seção, REsp 1.378.557/RS, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 23/10/2013, DJe 21/03/2014. Nesse sentido, basta atentar para as importantes modificações introduzidas pela Lei n9 12.313/10 na Lei de Execução Penal, que passou a prever a assistência jurídica ao preso dentro do presídio, além de outorgar importantes atribuições à Defensoria Pública.

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3.4. Princípio da publicidade A garantia do acesso de todo e qualquer cidadão aos atos praticados no curso do processo revela uma clara postura democrática, e tem como objetivo precípuo assegurar a transparência da atividade jurisdicional, oportunizando sua fiscalização não só pelas partes, como por toda a comu­ nidade. Basta lembrar que, em regra, os processos secretos são típicos de estados autoritários.71 Traduz-se, portanto, numa exigência política de se afastar a desconfiança da população na administração da Justiça. Com ela “são evitados excessos ou arbitrariedades no desenrolar da causa, surgindo, por isso, a garantia como reação aos processos secretos, proporcionando aos cidadãos a oportunidade de fiscalizar a distribuição da justiça”.72 Segundo Luigi Ferrajoli, cuida-se de garantia de segundo grau, ou garantia de garantia. Isso porque, segundo o autor, para que seja possível o controle da observância das garantias primárias da contestação da acusação, do ônus da prova e do contraditório com a defesa, é indispensável que o processo se desenvolva em público. Na dicção de Ferrajoli, a publicidade “assegura o controle tanto externo como interno da atividade judiciária. Com base nela os procedimentos de formulação de hipóteses e de averiguação da responsabilidade penal devem desenvolver-se à luz do sol, sob o controle da opinião pública e sobretudo do imputado e de seu defensor. Trata-se do requisito seguramente mais elementar e evidente do método acusatório”.73 De acordo com o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. Por sua vez, dispõe o art. 5o, XXXIII, da CF, que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Ademais, segundo o art. 5o, LX, da Carta Magna, a lei só poderá res­ tringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. De modo semelhante, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos também prevê que “o processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça” (Dec. 678/92, art. 8o, § 5o). Mesmo antes da vigência da Constituição de 1988, o Código de Processo Penal já trazia dispositivo acerca da publicidade. De acordo com o art. 792, caput, do CPP, as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. Lado outro, de acordo com o art. 792, § Io, do 71

Como aponta Celso Ribeiro Bastos, "a publicidade dos atos processuais insere-se em um campo mais amplo da transparência da atuação dos poderes públicos em geral. É uma decorrência do princípio democrático. Este não pode conviver com o sigilo, o segredo, o confinamento a quatro portas, a falta de divulgação, porque por este caminho, da sonegação de dados à coletividade, impede-se o exercício importante de um direito do cidadão em um Estado governado pelo povo, qual seja: o de controle. Não há dúvida, portanto, de que a publicidade dos atos, e especificamente dos atos jurisdicionais, atende ao interesse das partes e ao interesse público. Protege o magistrado contra insinuações e maledicências; da mesma forma que protege as partes contra um possível arbítrio ou prepotência. E confere à coletividade, de um modo geral, a possibilidade de controle sobre atos que são praticados com a força própria do Estado". (BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva, 1989. Vol. 2. p. 285).

72

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 68.

73

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2Sed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 567.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

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CPP, se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes. Funciona a publicidade, portanto, como pressuposto de validade não apenas dos atos pro­ cessuais, mas também das próprias decisões que são tomadas pelo Poder Judiciário. Logo, são normas de direito processual aquelas que versam sobre a publicidade, cabendo à União legislar privativamente sobre o tema, ex vi do art. 22, inciso I, da Constituição Federal.74 3.3.1. D ivisão da publicidade: ampla e restrita A publicidade é tida como ampla, plena, popular, absoluta, ou geral, quando os atos processuais são praticados perante as partes, e, ainda, abertos a todo o público. Nesse caso, além das partes, qualquer cidadão do povo poderá acompanhar as audiências criminais de coleta de provas e/ou julgamentos em qualquer grau de jurisdição, assim como consultar os processos ou obter certidões. Como observa a doutrina, a publicidade do processo implica os direitos de: a) assistência, pelo público em geral, à realização dos atos processuais; b) narração dos atos processuais, ou reprodução de seus termos, pelos meios de comunicação social; c) consulta dos autos e obtenção de cópias, extratos e certidões de quaisquer partes dele.75 Segundo Luiz Flávio Gomes, a publicidade externa tem inúmeras justificativas: possibilita o controle social da atividade jurisdicional, incrementa a confiança na Justiça no instante em que são conhecidos os motivos da decisão, evita a prática de arbitrariedades, é um freio e uma garantia contra a tirania judicial, otimiza o direito à informação (seja no aspecto de informar, seja no de ser informado), assegura a independência judicial contra ingerências externas ou internas etc.76 Como se percebe pela própria dicção da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, a regra é a publicidade ampla no processo penal, estando ressalvadas as hipóteses em que se justifica a restrição da publicidade: defesa da intimidade, interesse social no sigilo e imprescindibilidade à segurança da sociedade e do Estado (CF, art. 5o, incisos XXXIII e LX, c/c art. 93, IX); escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem (CPP, art. 792, § Io). Apesar de a regra ser a publicidade ampla, deve-se compreender que, como toda e qualquer garantia, esta não tem caráter absoluto, podendo ser objeto de restrição em situações em que o interesse público à informação deva ceder em virtude de outro interesse de caráter prepon­ derante no caso concreto. Daí se falar em publicidade restrita, ou interna, que se caracteriza quando houver alguma limitação à publicidade dos atos do processo. Nesse caso, alguns atos ou todos eles serão realizados somente perante as pessoas diretamente interessadas no feito e seus respectivos procuradores, ou, ainda, somente perante estes. A publicidade restrita ou interna é impropriamente chamada de “segredo de justiça”.77

74

75

Eis o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de dispositivos do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que previam que, nos casos de foro por prerrogativa de função, o julgamento seria realizado em sessão secreta: STF, Pleno, ADI 2.970/DF, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ12/05/2006. SILVA, Germano Marques. Curso de processo penal. 4â ed. Lisoba: Verbo, 2000. v. 1. p. 87 (A pud BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o garantism o e a efetividade da sanção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 322).

76

Legislação crim inal especial.

77

Veja-se que a Constituição Federal autoriza a restrição à publicidade, mas desde que assegurada, no mínimo, a presença dos advogados (art. 93, IX). Logo, o art. 520 do CPP não foi recepcionado na parte em que, ao tratar da audiência de reconciliação no procedimento dos crimes contra a honra, prevê que a ela estarão presentes apenas o juiz e as partes, sem a presença de seus advogados.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 454.

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É o que acontece, v.g., com processos criminais relativos a crimes contra a dignidade sexual, nos quais a publicidade ampla poderia aumentar sobremaneira o sofrimento da vítima, causando-lhe desnecessária exposição e humilhação. Com o objetivo de se preservar a intimidade da vítima de tais delitos, que sempre despertam a curiosidade alheia, a própria Lei 12.015/09 passou a prever a obrigatoriedade de segredo de justiça nesses casos: “Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça” (CP, art. 234-B). Nesses processos que tramitam sob segredo de justiça em virtude da qualidade da vítima (v.g., criança), o nome completo do acusado e a tipificação legal do delito podem constar entre os dados básicos do processo disponibilizados pela internet, mesmo que os crimes apurados se relacionem, por exemplo, com pornografia infantil. Ora, a mera repulsa que um delito possa causar à sociedade não constitui, por si só, fundamento suficiente para autorizar a decretação de sigilo absoluto sobre os dados básicos de um processo penal, sob pena de se ensejar a extensão de tal sigilo a toda e qualquer tipificação legal de delitos, com a conseqüente priorização do direito à intimidade do acusado em detrimento do princípio da publicidade dos atos processuais.78 Importante ressaltar que, nas hipóteses de sigilo judicial em que for decretado o segredo de justiça nos autos, somente a própria autoridade jurisdicional que o decretou poderá afastá-lo. Como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, comissões parlamentares de inquérito não tem poder jurídico de, mediante requisição, determinar a quebra de sigilo imposto a processo sujeito a segredo de justiça.79 Em se tratando de provas cautelares decretadas no curso do processo, também não se pode falar em publicidade às partes e a seus procuradores. Com efeito, supondo-se a necessidade da decretação de uma interceptação telefônica, ou da quebra dos sigilos bancário e fiscal para ulterior adoção de medidas cautelares patrimoniais, deve-se preservar o sigilo inclusive para o acusado e seu defensor, sob pena de se tomar inócua a medida em questão.80 Diferencia-se o processo penal, portanto, do processo civil, onde há uma enumeração legal de critérios objetivos em que se estabelecem restrições à publicidade em virtude da natureza da causa. Com efeito, consoante disposto no art. 189 do novo CPC, os atos processuais são públicos. Tramitam, todavia, em segredo de justiça os processos: I - em que o exija o interesse público ou social; II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitrai, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo. Segundo Tucci, ainda é possível diferenciar a publicidade ativa da passiva, e publicidade imediata da mediata. De acordo com o autor, na publicidade ativa, determinados atos do pro­ cesso são involuntariamente conhecidos do público; a publicidade passiva ocorre quando o público, por iniciativa própria, sponte sua, deles toma conhecimento. Por seu turno, a publicidade imediata se dá quando a cognição dos atos do processo está franqueada a todos os cidadãos; a publicidade mediata, quando deles só se toma conhecimento mediante certidão, cópia ou pelo mass media (imprensa, por exemplo).81

78.

Nessa linha: STJ; 5§ Turma, RMS 49.920/SP, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 02/08/2016, DJe 10/08/2016.

79

STF, Tribunal Pleno, MS 27.483/DF, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 192 09/10/2008.

80

Para mais detalhes acerca do assunto, vide item pertinente às provas cautelares.

81

TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3ã ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 177.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

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3.3.2. Sessão de julgamento na Justiça Militar e votação em sala secreta Segundo o art. 387 do Código de Processo Penal Militar, a instrução criminal será sempre pública, podendo, excepcionalmente, a juízo do Conselho de Justiça, ser secreta a sessão, des­ de que o exija o interesse da ordem e disciplina militares, ou à segurança nacional. De outro lado, o art. 434 do CPPM prevê que, concluídos os debates entre as partes durante a sessão de julgamento, e decidida qualquer questão de ordem levantada pelas partes, o Conselho de Justiça passará a deliberar em sessão secreta, podendo qualquer dos juizes militares pedir ao auditor esclarecimentos sobre questões de direito que se relacionem com o fato sujeito ao julgamento. Perceba-se que ambos os dispositivos do CPPM falam em sessão secreta, mas nada dizem acerca da necessária e obrigatória presença das partes e de seus advogados, ou somente destes. Esse o motivo pelo qual, analisando o dispositivo em questão, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, “embora o CPPM preveja a sessão secreta para o julgamento pelo Conselho de Justiça (art. 434), a nova Carta Política isso proíbe, mas pode ser limitada a presença às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes (art. 93, IX, da Constituição Federal)”.82 Portanto, a regra em relação aos julgamentos ocorridos na Justiça Militar é a publicidade ampla. Em situações excepcionais, e somente quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem, poderá ser restringida a publicidade da deliberação dos Conselhos de Justiça, assegurada, todavia, a presença das próprias partes e de seus advogados, ou somente destes.83 3.4. Princípio da busca da verdade: superando o dogma da verdade real Durante anos e anos, prevaleceu o entendimento de que, no âmbito cível, em que geralmente se discutem direitos disponíveis, vigorava o chamado princípio dispositivo, segundo o qual somente as partes levam ao processo o material probatório. Em conseqüência, ao magistrado se reservava uma postura passiva, não devendo influir na produção de provas, matéria de atribuição exclusiva das partes. Ao final do processo, caso tivesse dúvida acerca dos fatos, deveria julgar o litígio segundo a verdade formal. Somente quando a relação material fosse indisponível é que se admitia que o juiz determinasse a produção de provas ex officio. Daí se dizer que, no processo civil, vigorava o denominado princípio da verdade formal. Em contraposição a esse sistema, no âmbito processual penal, estando em discussão a liberdade de locomoção do acusado, direito indisponível, o magistrado seria dotado de amplos poderes instrutórios, podendo determinar a produção de provas ex officio, sempre na busca da verdade material. Dizia-se então que, no processo penal, vigorava o princípio da verdade material, também conhecido como princípio da verdade substancial ou real. A descoberta da verdade, obtida a qualquer preço, era a premissa indispensável para a realização da pretensão punitiva do Estado. Essa busca da verdade material era, assim, utilizada como justificativa para a prática de arbitrariedades e violações de direitos, transformando-se, assim, num valor mais precioso do que a própria proteção da liberdade individual. A crença de que a verdade podia ser alcançada pelo Estado tomou a sua perseguição o fim precípuo do processo criminal. Diante disso, em nome da verdade, tudo era válido, restando justificados abusos e arbitrariedades por parte das autoridades responsáveis pela persecução 82

83

STF, 1- Turma, RHC 67.494/RJ, Rei. Min. Aldir Passarinho, DJ 16/06/1989. De modo semelhante: "Convivência, reconhecida por esta Corte, com a Constituição Federal (art. 93, IX), da norma do art. 434 do CPPM, que prevê sessão secreta para os julgamentos do Conselho de Justiça, desde que assegurada a presença das partes e de seus advogados". (STF, I s Turma, HC 69.968/PR, Rei. Min. limar Galvão, DJ 01/07/1993). Com entendimento idêntico: STM, HC 1995.01.033137-9/RJ, Rei. Min. Carlos de Almeida Baptista, DJ 24/10/1995. Na mesma linha: LOBÃO, Célio. D ireito processual penal m ilitar. São Paulo: Editora Método, 2009. p. 465.

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penal, bem como a ampla iniciativa probatória concedida ao juiz, o que acabava por compro­ meter sua imparcialidade. Atualmente, essa dicotomia entre verdade formal e material deixou de existir. Já não há mais espaço para a dicotomia entre verdade fo r m a l , típica do processo civil, e verdade m aterial, própria do processo penal. No âmbito cível, mesmo nos casos de direitos disponíveis, tem sido aceito que o magistrado possa, de ofício, determinar a produção de provas necessárias ao esclarecimento da verdade. Afi­ nal, o processo deve ser considerado um meio efetivo de realização da justiça, quer seja o direito disponível, quer seja indisponível. A busca de um processo justo passa, inevitavelmente, pela pre­ visão de meios efetivos para que se atinja a maior aproximação possível da verdade. Prova disso, aliás, é o novo Código de Processo Civil, cujo art. 370 dispõe expressamente que caberá ao juiz, de oficio ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. No âmbito processual penal, hodiernamente, admite-se que é impossível que se atinja uma verdade absoluta. A prova produzida em juízo, por mais robusta e contundente que seja, é incapaz de dar ao magistrado um juízo de certeza absoluta. O que vai haver é uma apro­ ximação, maior ou menor, da certeza dos fatos. Há de se buscar, por conseguinte, a maior exatidão possível na reconstituição do fato controverso, mas jamais com a pretensão de que se possa atingir uma verdade real, mas sim uma aproximação da realidade, que tenda a refletir ao máximo a verdade. Enfim, a verdade absoluta, coincidente com os fatos ocorridos, é um ideal, porém inatingível. Como bem coloca Cândido Rangel Dinamarco, “a verdade e a certeza são dois conceitos absolutos, e, por isto, jamais se tem a segurança de atingir a primeira e jamais se consegue a segunda, em qualquer processo (a segurança jurídica, como resultado do processo, não se confunde com a suposta certeza, ou segurança, com base na qual o juiz proferiria os seus julgamentos). O máximo que se pode obter é um grau muito elevado de probabilidade, seja quanto ao conteúdo das normas, seja quanto aos fatos, seja quanto à subsunção desses nas categorias adequadas”.84 Por esse motivo, tem prevalecido na doutrina mais moderna que o princípio que vigora no processo penal não é o da verdade material ou real, mas sim o da busca da verdade. Seu fundamento legal consta do art. 156 do Código de Processo Penal. Por força dele, admite-se que o magistrado produza provas de ofício, porém apenas na fase processual, devendo sua atuação ser sempre complementar, subsidiária. Na fase preliminar de investigações, não é dado ao magistrado produzir provas de ofício, sob pena de evidente violação ao princípio do devido processo legal e à garantia da imparcialidade do magistrado. Além do art. 156, inciso II, do CPP, que permite que o juiz, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, determine de ofício a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante, há outros dispositivos legais com previsão semelhante. Com efeito, de acordo com o art. 196 do CPP, a todo tem po o ju iz p o d e rá p ro ced er a novo interrogatório de oficio ou a p ed id o fu n d a m en ta d o de qualquer das p artes. De seu turno, segundo o art. 209, caput, do CPP, o ju iz, quando ju lg a r necessário, p o d e rá o uvir outras testem unhas, além das indicadas p e la s p a rtes. O § Io do art. 209 do CPP também prevê que se ao ju iz p a recer conveniente, serão ouvidas as p esso a s a que as testem unhas se referirem. Por fim, segundo o art. 616 do CPP, no ju lg a m en to das apelações p o d e rá o tribunal, câm ara ou turm a p ro ced er a novo interrogatório do acusado, reinquirir testem unhas ou determ inar outras diligências.

84

A instrum entalidade do processo.

1987. Fundamentos do processo civil moderno. 2- ed. p. 449, n5 44.

TÍTULO 1 • N O Ç Õ E S IN TR O D U TÓ R IA S

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Importante ressaltar que essa busca da verdade no processo penal está sujeita a algumas restrições. Com efeito, é a própria Constituição Federal que diz que são inadmissíveis, no pro­ cesso, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5o, LVI). O Código de Processo Penal também estabelece outras situações que funcionam como óbice à busca da verdade: impossibilidade de leitura de documentos ou exibição de objetos em plenário do júri, se não tiverem sido juntados aos autos com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte (CPP, art. 479), as limitações ao depoimento de testemunhas que têm ciência do fato em razão do exercício de profissão, ofício, função ou ministério (CPP, art. 207), o descabimento de revisão criminal contra sentença absolutória com trânsito em julgado (CPP, art. 621), ainda que surjam novas provas contra o acusado. Outra exceção diz respeito às questões prejudiciais devolutivas absolutas, ou seja, questões prejudiciais heterogêneas que versam sobre o estado civil das pessoas. Exemplificando, suponha-se que determinado indivíduo esteja sendo processado pelo crime de bigamia (CP, art. 235) e que, em sua defesa, alegue que seu primeiro casamento seja nulo, tendo por isso se casado novamente. Nesse caso, como a questão prejudicial versa sobre o estado civil das pessoas, não haverá possibilidade de solução da controvérsia no âmbito processual penal, independentemente do meio de prova que se queira utilizar, devendo as partes ser remetidas ao cível, nos termos do art. 92 do CPP. 3.4.1. Busca da verdade consensual no âmbito dos Juizados A Lei n° 9.099/95 trouxe consigo quatro importantes medidas despenalizadoras: 1) Nas infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, contravenções penais e crimes cuja pena má­ xima não seja superior a 2 anos, cumulada ou não com multa, e submetidos ou não os crimes a procedimento especial, havendo composição civil dos danos, estará extinta a punibilidade nos casos de infrações de iniciativa privada ou pública condicionada à representação (art. 74, parágrafo único); 2) Não havendo composição civil, a lei prevê a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa através da transação penal (art. 76); 3) Os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa passaram a exigir representação da vítima (art. 88); 4) Desde que o crime tenha pena mínima igual ou inferior a um ano, e estejam preenchidos outros requisitos de natureza subjetiva, será cabível a suspensão condicional do processo (art. 89). Com a criação desses institutos despenalizadores, percebe-se que, no âmbito dos Juizados, a busca da verdade processual cede espaço à prevalência da vontade convergente das partes. Nos casos de transação penal ou de suspensão condicional do processo, não há necessidade de verificação judicial da veracidade dos fatos. O conflito penal é solucionado através de um acordo de vontade, dando origem ao que a doutrina denomina de verdade consensuada.85 3.5. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos O princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos está previsto na Constituição Federal (art. 5o, LVI): “são inadmissíveis, no processo, as p ro va s obtidas p o r m eios ilícitos ”. Referido princípio será abordado com mais propriedade no capítulo pertinente às provas. 3.6. Princípio do juiz natural O princípio do juiz natural será objeto de análise no Título 4 (“Competência criminal”), mais precisamente no Capítulo I (“Premissas fundamentais e aspectos introdutórios”), item 2 (“Princípio do juiz natural”). 85.

É nesse sentido a lição de Marco Antônio de Barros: A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 43.

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3.7. Princípio do n em o tenetur se detegere 3.7.1. Noções introdutórias De acordo com o art. 5o, inciso LXIII, da Constituição Federal, “o p reso será inform ado de seus direitos, entre os quais o de p e rm a n e c e r calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. O direito ao silêncio, previsto na Carta Magna como direito de permanecer calado, apresenta-se apenas como uma das várias decorrências do nem o tenetur se detegere, segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Além da Constituição Federal, o princípio do nem o tenetur se detegere também se encontra previsto no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.3, “g”), e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8o, § 2o, “g”). Trata-se de uma modalidade de autodefesa passiva, que é exercida por meio da inatividade do indivíduo sobre quem recai ou pode recair uma imputação. Consiste, grosso modo, na proi­ bição de uso de qualquer medida de coerção ou intimidação ao investigado (ou acusado) em processo de caráter sancionatório para obtenção de uma confissão ou para que colabore em atos que possam ocasionar sua condenação. Como anota Maria Elizabeth Queijo, como direito funda­ mental, o princípio do nem o tenetur se detegere “objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como contra métodos proibitivos de interrogatório, sugestões e dissimulações”.86 3 . 7.2. Titular do direito de não produzir p ro v a contra si mesmo

A forma como o direito de não se incriminar foi escrito e inserido em nosso texto consti­ tucional e nos Tratados Internacionais acima referidos padece de deficiência, porquanto, em um primeiro momento, dá impressão de que teve como destinatário apenas a pessoa que se encontra na condição processual de preso, ou que figura como acusado da prática de determinado delito. Na doutrina, apressadamente, houve quem, mediante interpretação excessivamente literal do comando normativo, tivesse ânimo para defender que a garantia contemplada em nosso sistema tinha o condão de alcançar, apenas, aquela pessoa que se encontra aprisionada. A doutrina mais aceita, contudo, é a de que o dispositivo constitucional em destaque se presta para proteger não apenas quem está preso, como também aquele que está solto, assim como qualquer pessoa a quem seja imputada a prática de um ilícito criminal. Pouco importa se o cidadão é suspeito, indiciado, acusado ou condenado, e se está preso ou em liberdade. Ele não pode ser obrigado a confessar o crime.87 O titular do direito de não produzir prova contra si mesmo é, portanto, qualquer pessoa que possa se autoincriminar. Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de não produzir prova contra si mesmo: nem o tenetur se detegere .88

86

QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo ten etur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 55.

87

Nessa linha: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. D ireito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tri­ bunais, 1997. p. 113.

88

Nessa linha: STF, 1§ Turma, HC 68.929/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 28/08/1992. Para André de Carvalho Ramos, até mesmo as pessoas jurídicas gozam desse direito: Limites ao poder de investigar e o privilégio contra

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Não é válido, por outro lado, arrolar alguém como testemunha e querer, em razão do dever de dizer a verdade aplicável à hipótese, forçá-la a responder sobre uma pergunta que importe, mesmo que indiretamente, em incriminação do depoente. De certo que a testemunha, diferentemente do acusado, tem o dever de falar a verdade, sob pena de responder pelo crime de falso testemunho (CP, art. 342), porém não está obrigada a responder sobre fato que possa, em tese, incriminá-la.89 Daí ter decidido o Supremo que não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la.90 É irrelevante, igualmente, que se trate de inquérito policial ou administrativo, processo criminal ou cível ou de Comissão Parlamentar de Inquérito. Se houver possibilidade de autoincriminação, a pessoa pode fazer uso do princípio do nem o tenetur se detegere. 3.7.3. Advertência quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo Diante do teor expresso do art. 5o, LXIII, da CF, segundo o qual o preso será inform ado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado, não nos convence a tese de que não é necessária a advertência quanto ao direito ao silêncio sob o argumento de que ninguém pode alegar o desconhecimento da lei. Com o objetivo de se evitar uma autoincriminação involuntária por força do desconhecimento da lei, deve, sim, haver prévia e formal advertência quanto ao direito ao silêncio, sob pena de se macular de ilicitude a prova então obtida.91 O acusado deve ser advertido, ademais, que o direito ao silêncio é uma garantia constitucional, de cujo exercício não lhe poderão advir conseqüências prejudiciais. Ao invés de constituir desprezível irregula­ ridade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas.92 Trata-se, o art. 5o, inciso LXIII, de mandamento constitucional semelhante ao famoso aviso de Miranda do direito norte-americano, em que o policial, no momento da prisão, tem de ler para o preso os seus direitos, sob pena de não ter validade o que por ele for dito. Os M iranda rights ou M iranda w arnings têm origem no famoso julgamento Miranda V. Arizona, verificado em 1966, em que a Suprema Corte americana, por cinco votos contra quatro, firmou o entendi­ mento de que nenhuma validade pode ser conferida às declarações feitas pela pessoa à polícia, a não ser que antes ela tenha sido claramente informada de: 1) que tem o direito de não responder; 2) que tudo o que disser pode vir a ser utilizado contra ele; 3) que tem o direito à assistência de defensor escolhido ou nomeado. No referido julgamento, a Suprema Corte americana adotou a posição de que a mera ausência dessa formalidade era o bastante para inquinar de nulidade as declarações da pessoa, especialmente a confissão e as provas conseguidas a partir dela.93

a auto-incriminação à luz do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Limites constitucionais da investigação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 16. 89

Ofende o princípio da não-autoincriminação denúncia baseada unicamente em confissão feita por pessoa ouvida na "condição de testemunha", quando não lhe tenha sido feita a advertência quanto ao direito de permanecer calada: STF, Turma, RHC 122.279/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 12/08/2014, DJe 213 29/10/2014.

90

STF, Pleno, HC 73.035/DF, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 13/11/1996, DJ 19/12/1996. Com entendimento semelhan­ te: STF, Pleno, HC 79.812/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 08/11/2000, DJ 16/02/2001, p. 21; STF, 2§ Turma, HC 106.876/RN, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/06/2011, DJe 125 30/06/2011).

91

Além de serem consideradas ilícitas as provas obtidas a partir de declarações do preso sem prévia e formal advertência quanto ao direito ao silêncio, também podem ser consideradas ilícitas as provas dela derivadas (teoria dos frutos da árvore envenenada), nos exatos termos do art. 157, § I s, do CPP.

92.

Com esse entendimento: STF, 1§ Turma, HC 78.708/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16/04/1999.

93

Em março de 1963, após ter sido identificado por uma testemunha, Ernesto Miranda foi preso em sua casa e conduzido à polícia em Phoenix. Foi levado a uma sala de interrogatórios e interrogado por dois policiais. Duas

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Com o objetivo de melhor assegurar o respeito aos direitos fundamentais, notadamente o nem o tenetur se detegere, tem-se tomado comum a entrega ao preso, no momento de sua pri­

são, de uma nota de ciência das garantias constitucionais, nos moldes preconizados pela Lei da prisão temporária (Lei n° 7.960/89). Em seu art. 2o, § 6o, a referida lei preceitua que “efetuada a prisão, a autoridade p o lic ia l inform ará o p reso dos direitos p revisto s no art. 5 oda C onstituição F e d e ra F . A entrega dessa nota de ciência das garantias constitucionais é medida extremamente

salutar, pois comprova que o acusado foi cientificado de seus direitos constitucionais antes de responder às indagações formuladas. Tendo em vista que se considera ilícita a prova colhida mediante violação a normas consti­ tucionais, notadamente aquelas que tutelam direitos fundamentais (CF, art. 5o, LVI, c/c art. 157, caput, do CPP), e como decorrência da necessidade de advertência quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo, não se pode considerar lícita, portanto, gravação clandestina de conversa informal de policiais com o preso, em modalidade de “interrogatório” sub-reptício, quando, além de o capturado não dar seu assentimento à gravação ambiental, não for advertido do seu direito ao silêncio.94 Impõe-se, pois, que qualquer pessoa em relação à qual recaiam suspeitas da prática de um ilícito penal seja formalmente advertida de seu direito ao silêncio, sob pena de ilicitude das declarações por ela firmadas. Deve constar expressamente do auto de prisão em flagrante, por conseguinte, a informação a respeito do direito ao silêncio conferido ao indiciado, “reputando-se como não formulada se dela não houver qualquer menção”.95 Se o preso deve ser prévia e formalmente advertido quanto ao direito ao silêncio, sob pena de se reputar ilícita a prova que contra si produza, também não podem ser consideradas válidas entrevistas concedidas por presos a imprensa, antes ou após a lavratura do flagrante, sem o co­ nhecimento de seu direito constitucional. Com efeito, não raramente a conversa informal entre indiciados presos e repórteres, antes ou depois do interrogatório, é gravada sem o conhecimento daqueles, e, de igual modo, utilizada, judicialmente, em prejuízo da defesa. Ora, a ausência de advertência quanto ao direito ao silêncio macula de ilicitude eventuais declarações por ele forne­ cidas que lhe sejam prejudiciais, porquanto produzidas com violação ao preceito constitucional que assegura o direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII). Como observa Ana Lúcia Menezes Vieira, “as declarações precipitadas que são forne­ cidas pelo preso ao repórter, sob a influência do clima sensacionalista criado pela mídia, não

horas depois, os policiais tinham em suas mãos uma confissão assinada por Miranda, na qual ele declarava que a confissão havia sido voluntária, sem ameaças ou promessas de imunidade e com completo conhecimento de seus direitos, inclusive ciente de que as declarações seriam utilizadas contra ele. No entanto, os policiais admitiram que Miranda não havia sido alertado quanto ao direito de ter advogado presente. 94.

Nessa linha: STF, l ã Turma, HC 80.949/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14/12/2001; STJ, 6a Turma, HC 244.977/SC, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 25/09/2012. Todavia, se determinado agente voluntariam ente efetuar gravação ambiental documentando crime de corrupção ativa por ele praticado, não há falar em ilicitude da prova por suposta violação ao princípio que veda a autoincriminação. Afinal, tal princípio veda que o acusado ou investigado sejam coagidos tanto física ou moralmente a produzir prova contrária aos seus interesses: STJ, Corte Especial, APn 644/BA, Rei. Min. Eliana Calmon, j. 30/11/2011.

95

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. MORAIS, Maurício Zanóide de. D ireito ao silêncio no interrogatório, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n5 6, abr.-jun., 1994. Logicamente, se, apesar de não ter havido prévia advertência quanto ao direito ao silêncio no momento do interrogatório, o preso silenciar ou exercer a autodefesa, sem produzir prova contra si mesmo, não há falar em ilicitude do ato, porquanto não houve prejuízo à defesa, já que inexistiu confissão. Nesse contexto: STJ, 5a Turma, Agint no AREsp 917.470/SC, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 02/08/2016, DJe 10/08/2016; STJ, 6a Turma, HC 348.104/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 05/04/2016, DJe 15/04/2016.

TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

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podem ser usadas indiscriminadamente no processo. Se o investigado é induzido a confessar, porque pressionado pela mídia, teve atingida a liberdade de calar-se ou falar de acordo com sua consciência. Portanto, a reportagem que contém a confissão é inadmissível como prova, pois, obtida fora dos ditames constitucionais do direito fundamental ao silêncio - com infringência à norma material contida na Constituição -, é considerada ilícita. E, nos termos da Carta Política brasileira, ‘são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos’ (art. 5o, LVI)”.96 Não foi essa, todavia, a orientação do Supremo Tribunal Federal. Em habeas corpus apre­ ciado pela 2a Turma, em que se alegava a ilicitude da prova juntada aos autos, consistente em entrevista concedida a jornal, na qual o acusado narrara o modus operandi de 2 homicídios a ele imputados, sem ter sido previamente advertido de seu direito ao silêncio, reputou-se que a Constituição teria conferido dignidade constitucional ao direito ao silêncio, dispondo expres­ samente que o preso deve ser informado pela autoridade policial ou judicial da faculdade de manter-se calado. Consignou-se que o dever de advertir os presos e os acusados em geral de seu direito de permanecerem calados consubstanciar-se-ia em uma garantia processual penal que teria como destinatário precípuo o Poder Público. Concluiu-se, entretanto, não haver qualquer nulidade na juntada da prova, entrevista concedida espontaneamente a veículo de imprensa.97 De todo modo, queremos crer que deve se evitar a concessão de entrevistas por presos à imprensa, salvo se, previamente advertido quanto ao direito ao silêncio, e devidamente orientado das conseqüências jurídicas de suas declarações, manifestar o cidadão de maneira voluntária seu interesse em apresentar sua versão acerca dos fatos, abrindo mão do direito de se calar. 3.7.4. Desdobramentos do direito de não produzir prova contra si mesmo Há uma tendência equivocada de se querer equiparar o princípio do nemo tenetur se detegere ao direito ao silêncio. Na verdade, assim como se trata de equívoco pensar que a garantia é destinada apenas a quem está encarcerado pelo fato de a dicção constitucional conter o termo preso, também se mostra inadequado acreditar que o direito de permanecer calado somente confere à pessoa a garantia de que ela não pode ser obrigada a falar. O que o constituinte diz, quando ele assegura o direito de permanecer calado, é que a pessoa não pode ser obrigada a se incriminar ou, em outras palavras, que ela não pode ser obrigada a produzir prova contra si. Aliás, essa última forma de revelar o conteúdo do preceito constitucional soa mais feliz, uma vez que consegue tomar mais clara a mensagem do constituinte. Portanto, deve se compreender que o direito ao silêncio funciona apenas como uma das decorrências do princípio do nemo tenetur se detegere, do qual se extraem outros desdobramentos igualmente importantes. Em síntese, pode-se dizer que o direito de não produzir prova contra si mesmo, que tem lugar na fase investigatória e no curso da instmção processual, abrange: a) o direito ao silêncio ou direito de ficar calado: corresponde ao direito de não responder às perguntas formuladas pela autoridade, funcionando como espécie de manifestação passiva da defesa. O exercício do direito ao silêncio não é sinônimo de confissão ficta ou de falta de defesa; cuida-se de direito do acusado (CF, art. 5o, LXIII), no exercício da autodefesa, podendo ser usado com o estratégia defensiva;

b) direito de não ser constrangido a confessar a prática de ilícito penal: de acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14, § 3o) e com a Convenção Americana

96

VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Op. cit. p. 240. Nos mesmos moldes: QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. cit. p. 397.

97

STF, 2- Turma, HC 99.558/ES, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/12/2010.

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sobre Direitos Humanos (art. 8o, § 2o, “g”, e § 3o), o acusado não é obrigado a confessar a prá­ tica do delito. Portanto, por força do princípio do nem o tenetur se detegere, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de uma infração penal;98 c) inexigibilidade de dizer a verdade: alguns doutrinadores entendem que o acusado possui o direito de mentir, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio.99A nosso ver, e com a devida vênia, não se pode concordar com a assertiva de que o princípio do nem o tenetur se detegere assegure o direito à mentira. Em um Estado democrático de Direito, não se pode afirmar que o próprio Estado assegure aos cidadãos direito a um comportamento antiético e imoral, consubstanciado pela mentira. A questão assemelha-se à fuga do preso. Pelo simples fato de a fuga não ser considerada crime, daí não se pode concluir que o preso tenha direito à fuga. Tivesse ele direito à fuga, estar-se-ia afirmando que a fuga seria um ato lícito, o que não é correto, na medida em que a própria Lei de Execuções Penais estabelece como falta grave a fuga do condenado (LEP, art. 50, inciso II). Na verdade, por não existir o crime de perjúrio no ordenamento pátrio, pode-se dizer que o comportamento de dizer a verdade não é exigível do acusado, sendo a mentira tolerada , porque dela não pode resultar nenhum prejuízo ao acusado. Logo, como o dever de dizer a verdade não é dotado de coercibilidade, já que não há sanção contra a mentira no Brasil, quando o acu­ sado inventa um álibi que não condiz com a verdade, simplesmente para criar uma dúvida na convicção do órgão julgador, conclui-se que essa mentira há de ser tolerada por força do nem o tenetur se detegere. A esse respeito, concluiu o Supremo Tribunal Federal que, no direito ao silêncio, tutelado constitucionalmente, inclui-se a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal.100 Se essa mentira defensiva é tolerada, especial atenção deve ser dispensada às denominadas m entiras agressivas, quando o acusado imputa falsamente a terceiro inocente a prática do delito.

Nessa hipótese, dando causa à instauração de investigação policial, processo judicial, investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém que o sabe inocente, o agente responderá normalmente pelo delito de denunciação caluniosa (CP, art. 339), porque o direito de não produzir prova contra si mesmo esgota-se na proteção do réu, não servindo de suporte para que possa cometer outros delitos.101 Também é crime a conduta de acusar-se, p e ­ rante a autoridade, de crime inexistente ou praticado p o r outrem (CP, art. 341, autoacusação falsa). Na mesma linha, tem prevalecido o entendimento de que o direito ao silêncio não abrange o direito de falsear a verdade quanto à identidade pessoal. Para o Supremo, tipifica o crime de falsa identidade o fato de o agente, ao ser preso, identificar-se com nome falso, com o objetivo de esconder seus maus antecedentes.102 A propósito, eis o teor da súmula n° 522 do STJ: “A 98

Nessa linha: STF; lã Turma, HC 68.929/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 28/08/1992.

99

GOMES, Luiz Flávio. D ireito penal: com entários à Convenção Am ericana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 106.

100 STF, lã Turma, HC 68.929/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 28/08/1992. 101

Nesse sentido: BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o garantism o e a São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 38.

efetividade da sanção.

102 STF, 2- Turma, HC 72.377/SP, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 30/06/1995 p. 271. Etambém: STF, P Turma, RE 561.704, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 64 02/04/2009. O STJ tinha entendimento em sentido contrario: STJ, 6ã Turma, HC 97.857/SP, Rei. Min. Og Fernandes, Dje 10/11/2008. Porém, acabou alterando seu entendimento a partir da decisão proferida pelo Supremo no RE 640.139 (STF, Pleno, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 22/09/2011, DJe 198 13/10/2011), no qual o Supremo concluiu que o princípio constitucional da ampla defesa não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o objetivo de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente. Sinalizando a mudança do entendimento do STJ: STJ, 5ã Turma,

TÍTULO 1 • N O Ç Õ E S IN TR O D U TÓ R IA S

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conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa”. d) direito de não praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo: por força do direito de não produzir prova contra si mesmo, doutrina e jurisprudência têm adotado o entendimento de que não se pode exigir um comportamento ativo do acusado, caso desse facere possa resultar a autoincriminação. Assim, sempre que a produção da prova tiver como pressuposto uma ação por parte do acusado (v.g., acareação, reconstituição do crime, exame grafotécnico, bafômetro, etc.), será indispensável seu consentimento. Cuidando-se do exercício de um direito, tem predominado o entendimento de que não se admitem medidas coercitivas contra o acusado para obrigá-lo a cooperar na produção de provas que dele demandem um comportamento ativo. Além disso, a recusa do acusado em se submeter a tais provas não configura o crime de desobediência nem o de desacato103, e dela não pode ser extraída nenhuma presunção de culpabilidade, pelo menos no processo penal. São incompatíveis, assim, com a Constituição Federal e com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos quaisquer dispositivos legais que possam, direta ou indiretamente, forçar o suspeito, indiciado, acusado, ou até mesmo a testemunha, a produzir prova contra si mesmo. Não por outro motivo, em diversos julgados, assim tem se pronunciado o Supremo Tribunal Federal: d.l) o acusado não está obrigado a fornecer padrões vocais necessários a subsidiar prova pericial de verificação de interlocutor;104 d.2) o acusado não está obrigado a fornecer material para exame grafotécnico: no exame para o reconhecimento de escritos, por comparação de letra, pode ser necessário que a pessoa a quem se atribui o escrito forneça material de seu punho subscritor para que sirva de parâmetro para a comparação. Nesse caso, como a realização do exame demanda um comportamento ativo do acusado, a tanto não se pode compeli-lo. Para exames periciais, é cabível apenas a sua intimação para que, querendo, oferte o material. Também não se admite que a autoridade policial determine ao indiciado a oferta de material gráfico, sob pena de desobediência.105 Caso a pessoa se recuse a fornecer material de seu punho subscritor, nada impede que a autoridade judiciária determine a apreensão de papéis e documentos que possam suprir o fornecimento do referido material. A título de exemplo, se o material a partir do qual for efetuada a análise grafotécnica consistir em petição para a extração de cópias, manuscrita e formulada esponta­ neamente pelo próprio acusado nos autos do respectivo processo penal, não há que se falar em ofensa ao princípio que veda a autoincriminação. Afinal, conforme disposto no art. 174, II e

HC 151.866/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 01/12/2011, DJe 13/12/2011. E ainda: STJ, 3§ Seção, REsp 1.362.524/ MG, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 23/10/2013. 103. Aos olhos da 3§ Seção do STJ, não há incompatibilidade do crime de desacato (CP, art. 331) com as normativas internacionais previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). A despeito do que fora aduzido no julgamento do REsp 1.640.084/SP pela 5ã Turma do STJ - no sentido de que o crime de desacato seria in­ compatível com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, por afrontar mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão - a 3§ Seção concluiu que as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) não possuem força vinculante, mas tão somente 'poder de embaraço' ou 'mobilização da vergonha'. Logo, o crime de desacato não pode ter sua tipificação penal afastada sob qualquer viés, seja pela ausência de força vinculante às recomendações expedidas pela CIDH, seja pelo viés interpretativo. (STJ, 3ã Seção, HC 379.269/MS, Rei. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j. 24/05/2017, DJe 30/06/2017). Na mesma linha: STF, 2ã Turma, HC 141.949/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 13/03/2018. 104 STF, 2ã Turma, HC 83.096/RJ, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 12/12/2003 p. 89. 105

STF, 1§ Turma, HC 77.135/SP, Rei. Min. limar Galvão, DJ 06/11/1998 p. 3.

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III, do CPP, para a comparação de escritos, podem servir quaisquer documentos judicialmente reconhecidos como emanados do punho do investigado ou sobre cuja autenticidade não haja dúvida. Portanto, o fato de o acusado se recusar a fornecer o material não afasta a possibilidade de se obter documentos por ele subscritos;106 d.3) configura constrangimento ilegal a decretação de prisão preventiva de indiciados diante da recusa destes em participarem de reconstituição do crime.107Afinal, cuidando-se de prova que depende da colaboração ativa do acusado, não se pode exigir sua participação, sob pena de violação ao nemo tenetur se detegere.108 Pelo que foi dito, percebe-se que o acusado tem o direito de não colaborar na produção da prova sempre que se lhe exigir um comportamento ativo, um facere. Portanto, em relação às provas que demandam apenas que o acusado tolere a sua realização, ou seja, aquelas que exijam uma cooperação meramente passiva, não se há falar em violação ao nemo tenetur se detegere. O direito de não produzir prova contra si mesmo não persiste, portanto, quando o acusado for mero objeto de verificação. Assim, em se tratando de reconhecimento pessoal, ainda que o acusado não queira voluntariamente participar, admite-se sua execução coercitiva.109 e) direito de não produzir nenhuma prova incriminadora invasiva: nesse ponto, é importante entender o que se entende por intervenções corporais, assim como o conceito de provas invasivas e não invasivas. Intervenções corporais (investigação corporal ou ingerência humana) são medidas de inves­ tigação que se realizam sobre o corpo das pessoas, sem a necessidade do consentimento destas, e por meio da coação direta se for preciso, com a finalidade de descobrir circunstâncias fáticas que sejam importantes para o processo, em relação às condições físicas ou psíquicas do sujeito que sofre as intervenções, ou objetos escondidos com ele.110 São exemplos de intervenções corporais: exame de sangue, ginecológico, identificação dentária, endoscopia, exame do reto, entre outras tantas perícias como o exame de matérias fecais, de urina, de saliva, exames de DNA usando fios de cabelo, identificações datiloscópicas de impressões dos pés, unhas e palmar e também a radiografia. As intervenções corporais podem ser de duas espécies: 1) provas invasivas: são as in­ tervenções corporais que pressupõem penetração no organismo humano, por instrumentos ou substâncias, em cavidades naturais ou não, implicando na utilização (ou extração) de alguma parte dele ou na invasão física do corpo humano, tais como os exames de sangue, o exame ginecológico, a identificação dentária, a endoscopia (usada para localização de droga no corpo humano) e o exame do reto; 2) provas não invasivas: consistem numa inspeção ou verificação corporal. São aquelas em que não há penetração no corpo humano, nem implicam a extração de parte dele, como as perícias de exames de materiais fecais, os exames de DNA realizados a partir de fios de cabelo encontrados no chão, etc. 106 STF, 2ã Turma, HC 99.245/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, 06/09/2011. 107

STF, Tribunal Pleno, HC 64.354/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, j. 01/07/1987, DJ 14/08/1987.

108 STF, ia Turma, HC 69.026/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 10/12/1991, DJ 04/09/1992. 109

Em sentido diverso: FIORI, Ariane Trevisan. A prova e a intervenção corporal: sua valoração no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 94.

110 GONZALES-CUELLAR SERRANO, Nicolas. P roporcionalidady derechos fundam entales em elproceso penal. Madri: Colex, 1990. p. 290. A pud FIORI, Ariane Trevisan. A prova e a intervenção corporal: sua valoração no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 106.

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As células bucais encontradas na saliva podem ser utilizadas para a realização de um exame de DNA. A forma de sua coleta é que vai determinar se é prova invasiva ou não invasiva. Caso as células sejam colhidas na cavidade bucal, haverá intervenção corporal invasiva. Agora, a saliva também pode ser colhida sem qualquer intervenção corporal, possibilitando a realização do exame de DNA a partir de material encontrado no lixo, como chicletes, pontas de cigarro, latas de cerveja e refrigerantes, que contêm resquícios da saliva que podem ser examinados. A radiografia também pode ser considerada prova não invasiva, sendo comum sua utilização para constatação de entorpecente no organismo, na forma de pílulas ou cápsulas de drogas. Na verdade, mesmo que se considere o exame de raios-X uma prova invasiva, pensamos que, em casos extremos, como no exemplo da mula que transporta drogas em seu estômago e que, por isso, corre sério risco de morte a partir de determinado tempo em que está com a droga em seu corpo, é possível a realização de exame pericial mesmo contra a vontade do agente, por força do princípio da proporcionalidade, dando-se preponderância à proteção da vida (CF, art. 5o, caput).111 Outro exemplo de prova não invasiva é a identificação dactiloscópica, das impressões dos pés, unhas e palmar, que podem ser utilizadas como parâmetro para comparação com aquelas encontradas no local do crime ou no corpo da vítima.112 Havendo o consentimento do sujeito passivo da medida, após prévia advertência do direito de não produzir prova contra si mesmo, a intervenção corporal poderá ser realizada normalmente, seja a prova invasiva ou não invasiva. A Carta Magna não estabeleceu a reserva de jurisdição para a determinação das intervenções corporais. Logo, não há necessidade de prévia autoriza­ ção judicial para a realização dessas medidas, as quais podem ser determinadas inclusive pela autoridade policial. Porém, mesmo com a anuência do cidadão, não se admite que o Estado submeta alguém a intervenções corporais que ofendam a dignidade da pessoa humana ou que coloquem em risco sua integridade física ou psíquica além do que é razoavelmente tolerável. A propósito, dispõe o art. 15 do Código Civil que ‘ninguém p o d e ser constrangido a subm eter-se, com risco de vida, a tratam ento m édico ou a intervenção c i r ú r g i c a Exemplo de procedimento mais complexo que pode causar risco à saúde, o que é denominado pela doutrina alemã de ingerência corporal, é a radiografia em mulheres grávidas. Na verdade, o problema quanto às provas invasivas ou não invasivas diz respeito às hipóteses em que o suspeito se recusa a colaborar. No ordenamento pátrio, não há uma regulamentação sistemática das intervenções corporais. Como vigora no processo penal brasileiro o princípio da

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No sentido de que é plenamente válida a prova produzida mediante a submissão de agente a exame de raios "X", de modo a constatar a ingestão de cápsulas de cocaína, já que não há qualquer violação ao princípio do nemo ten etur se detegere, haja vista que os exames de raios X não exigem qualquer agir ou fazer por parte do investigado, tampouco constituem procedimentos invasivos ou até mesmo degradantes que possam violar seus direitos fundamentais: STJ, 6ã Turma, HC 149.146/SP, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 05/04/2011.

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Essas provas não invasivas não se confundem com a busca pessoal. Naquelas, o objetivo precípuo é o exame do corpo; nesta, o objetivo é a localização de algo que se esteja ocultando junto ao corpo. A busca pessoal, que tem natureza preventiva, não pode ser considerada espécie de intervenção corporal porque com preende

atuação externa sobre o corpo e sobre as roupas e objetos que o indivíduo traz consigo. Quanto às revistas fei­ tas em presídios, caso realizadas de forma superficial, a fim de prevenir que visitantes levem armas ou objetos que possam colocar em risco a vida ou a saúde dos presos ou facilitar eventuais fugas, podem ser classificadas como revistas corporais e, assim, admitidas. No tocante às revistas praticadas em cavidades ou orifícios do corpo humano, comungamos do entendimento de Fiori (op. cit. p. 113), no sentido de que a busca por qualquer objeto de crime nestas regiões do corpo deva ser equiparada a uma intervenção corporal, por atingir a integridade física e a intimidade da pessoa constrangida a tal medida. Todavia, caso a pessoa se recuse a cooperar com a intervenção corporal, seu acesso ao estabelecimento prisional poderá ser obstado.

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liberdade probatória (CPP, art. 155, parágrafo único), segundo o qual quaisquer meios probató­ rios são admissíveis, mesmo que não expressamente previstos em lei, não se deve concluir por uma absoluta inadmissibilidade da utilização das intervenções corporais. Todavia, sua utilização deve se mostrar compatível com a Constituição Federal e com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Portanto, caso o agente não concorde com a realização de uma intervenção corporal, deve-se distinguir o tratamento dispensado às provas invasivas e às não invasivas à luz do direito de não produzir prova contra si mesmo. Em se tratando de prova não invasiva (inspeções ou verificações corporais), mesmo que o agente não concorde com a produção da prova, esta poderá ser realizada normalmente, desde que não implique colaboração ativa por parte do acusado. Além disso, caso as células corporais necessárias para realizar um exame pericial sejam encontradas no próprio lugar dos fatos (mostras de sangue, cabelos, pelos, etc.), no corpo ou vestes da vítima ou em outros objetos, poderão ser recolhidas normalmente, utilizando os meios normais de investigação preliminar (busca e/ou apreensão domiciliar ou pessoal). Por outro lado, cuidando-se de provas invasivas, por conta do princípio do nem o tenetur se detegere, a jurisprudência tem considerado que o suspeito, indiciado, preso ou acusado, não é obrigado a se autoincriminar, podendo validamente recusar-se a colaborar com a produção da prova, não podendo sofrer qualquer gravame em virtude dessa recusa. Em diversos julgados, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o acusado não está obrigado a se sujeitar a exame de DNA, mesmo no âmbito cível.113 Mas se o direito de não produzir prova contra si mesmo tem aplicação no âmbito extrapenal e no âmbito penal, daí não se pode concluir que a recusa em se submeter às provas invasivas seja tratada de modo semelhante no processo civil e no processo penal. De fato, há de se ficar atento à diferença do tratamento dispensado às conseqüências da recusa do agente em produzir prova contra si mesmo, porquanto, no que toca exclusivamente ao processo penal, vigora o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5o, LVII). Em outras palavras, se, no âmbito cível, também é possível que o agente se recuse a pro­ duzir prova contra si mesmo, ali não vigora o princípio da presunção de inocência, daí por que a controvérsia pode ser resolvida com base na regra do ônus da prova, sendo que a recusa do réu em se submeter ao exame pode ser interpretada em seu prejuízo, no contexto do conjunto probatório. Nesse sentido, dispõe o art. 232 do Código Civil: A recusa à p e ríc ia m édica ordenada p e lo ju iz p o d erá suprir a p rova que se pretendia obter com o exame. Por sua vez, a súmula n° 301 do STJ destaca que em ação investigatória, a recusa do suposto p a i a subm eter-se ao exam e de D N A induz presunção iuris tantum de paternidade. Logo, apesar de o agente também não ser obrigado a se submeter à prova invasiva no âmbito cível, de sua recusa poderão ser extraídas conseqüências que lhe sejam desfavoráveis, tais como a presunção relativa de paternidade, em casos em que existam outras provas.114 De modo diverso, no processo penal, firmada a relevância do princípio da presunção de inocência, com a regra probatória que dele deriva, segundo a qual o ônus da prova recai 113 STF, Tribunal Pleno, HC 71.373/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 10/11/1994, DJ 22/11/1996. 114 Como têm se pronunciado os Tribunais, apesar da súmula 301 do STJ ter feito referência à presunção ju ris tan­ tum de paternidade na hipótese de recusa do investigado em se submeter ao exame de DNA, os precedentes jurisprudenciais que sustentaram o entendimento sumulado definem que esta circunstância não desonera o autor de comprovar, minimamente, por meio de provas indiciárias a existência de relacionamento íntimo entre a mãe e o suposto pai. Nessa linha: STJ, 4ã Turma, REsp 1.068.836/RJ, Rei. Min. Honildo Amaral de Mello Castro, j. 18/03/2010, DJe 19/04/2010.

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exclusivamente sobre a parte acusadora, não se admite eventual inversão do ônus da prova em virtude de recusa do acusado em se submeter a uma prova invasiva. Assim, supondo um crime sexual em que vestígios de esperma tenham sido encontrados na vagina da vítima, da recusa do acusado em se submeter a um exame de DNA não se pode presumir sua culpabilidade, sob pena de violação aos princípios do nemo tenetur se detegere e da presunção de inocência.115 Como se vê, em se tratando de prova invasiva ou que exija um comportamento ativo, não é possível a produção forçada da prova contra a vontade do agente. Porém, se essa mesma prova tiver sido produzida, voluntária ou involuntariamente pelo acusado, nada impede que tais elemen­ tos sejam apreendidos pela autoridade policial. Em outras palavras, quando se trata de material descartado pela pessoa investigada, é impertinente invocar o princípio do nemo tenetur se detegere. Nesse caso, é plenamente possível apreender o material descartado, seja orgânico (produzido pelo próprio corpo, como saliva, suor, fios de cabelo), seja ele inorgânico (decorrentes do contato de objetos com o corpo, tais como copos ou garrafas sujas de saliva, etc.) Exemplificando, se não é possível retirar à força um fio de cabelo de um suspeito para realizar um exame de DNA, nada impede que um fio de cabelo desse indivíduo seja apreendido em um salão de beleza. Daí ter confirmado a Suprema Corte a legalidade da determinação de coleta da placenta no procedimento médico do parto da cantora chilena G. T., a fim de que fosse possível, pos­ teriormente, a realização do exame de DNA, de modo a dirimir a dúvida quanto a quem era o pai da criança. Nessa situação, a intervenção médica era necessária e não houve a coleta à força da placenta, uma vez que esta é expelida do corpo humano como conseqüência natural do processo de parto.116 Situação semelhante ocorreu em caso envolvendo a descoberta do episódio em que uma criança recém-nascida foi retirada do berçário da maternidade por uma mulher que passou a assumir perante todos ser a verdadeira mãe. Como a suposta mãe não aceitou submeter-se à coleta de material genético, esperou-se uma oportunidade para arrecadar uma ponta de cigarro descartada pela “filha ”, contendo partículas das glândulas salivares, o que permitiu, após a análise do DNA, ter-se a certeza de que ela, de fato, não era filha da investigada. Essa prova foi considerada válida, porquanto o que toma a prova ilícita é a coação por parte do Estado, obrigando o suspeito a produzir prova contra si mesmo. Como a prova foi produzida de maneira involuntária pela suposta filha, a prova então obtida foi considerada lícita. 3.7.5. Bafômetro: a infração administrativa de embriaguez ao volante e a nova redação do crime de embriaguez ao volante (Lei n° 12.760/12) Quanto ao bafômetro, especial atenção deve ser dispensada ao art. 277 do Código de Trân­ sito Brasileiro (Lei n° 9.503/97, com redação dada pela Lei n° 12.760/12), o qual dispõe que o condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito, ou que for alvo de fiscalização de trânsito, poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência. Nesse caso, a infração adm inistrativa de trânsito de dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância

psicoativa que determine dependência prevista no art. 165 do CTB poderá ser caracterizada me­ diante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, 115

Nessa linha: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. D ireito à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 119. 116 STF, Tribunal Pleno, Rcl-QO 2.040/DF, Rei. Min. Néri da Silveira, DJ 27/06/2003 p. 31.

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alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas (Lei n° 9.503/97, art. 277, § 2o, com redação dada pela Lei n° 12.760/12). Por força do art. 277, § 3o, do CTB, as penalidades e medidas administrativas previstas para essa infração administrativa do art. 165 do CTB - multa (dez vezes), aplicável em dobro em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses, e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses, além da medida administrativa de recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado - também serão aplicáveis ao con­ dutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. O fato de o art. 277, § 3o, do CTB, prever a aplicação de penalidades e medidas adminis­ trativas ao condutor que não se sujeitar a qualquer dos procedimentos previstos no caput do referido artigo é perfeitamente constitucional. Ao contrário do que ocorre no âmbito criminal, em que, por força do princípio da presunção de inocência, não se admite eventual inversão do ônus da prova em virtude de recusa do acusado em se submeter a uma prova invasiva, no âmbito administrativo, o agente também não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, po­ rém, como não se aplica a regra probatória que deriva do princípio da presunção de inocência, a controvérsia pode ser resolvida com base na regra do ônus da prova, sendo que a recusa do agente em se submeter ao exame pode ser interpretada em seu prejuízo, no contexto do con­ junto probatório, com a conseqüente imposição das penalidades e das medidas administrativas previstas no art. 165 do CTB. Superada a análise da infração administrativa de embriaguez ao volante (CTB, art. 165),117 convém analisarmos o crime de embriaguez ao volante, cuja previsão legal constante do caput do art. 306 do CTB foi alterada 2 (duas) vezes nos últimos anos: inicialmente, pela Lei 11.705/08 (“Antiga Lei Seca”); posteriormente, pela Lei n° 12.760/12 (“Nova Lei Seca”). Para fins de comprovação da embriaguez ao volante, o meio de prova mais eficaz para afe­ rição da dosagem etílica é o exame de sangue. Considerando-se que a extração de sangue é um método muito invasivo, foi criado o bafômetro, aparelho de ar alveolar destinado a estabelecer o teor alcoólico no organismo do condutor do veículo automotor através do sopro do motorista no referido equipamento.11819 Mas será que o condutor do veículo está obrigado a soprar o bafômetro ou se sujeitar ao exame de sangue? Não estaria ele, assim o fazendo, produzindo prova contra si mesmo? A respeito do assunto, é dominante o entendimento de que a recusa do condutor em submeter-se ao bafômetro ou a um exame de sangue não configura crime de desobediência nem pode ser interpretada em seu desfavor, pelo menos no âmbito criminal. Nessa linha, há precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de que não se pode presumir a embriaguez de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica: afinal, a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo (princípio do nemo tenetur se detegeré)}19

117 Vale ressaltar que, consoante o art. 276 do CTB, com redação dada pela Lei nS 12.760/12, qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar também sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165. 118 A prova da materialidade do delito de embriaguez ao volante pode ser feita pelo bafômetro, capaz de constatar, tal qual o exame toxicológico de sangue, a concentração alcoólica de ar nos pulmões correspondente à concen­ tração sanguínea acima do limite legal: STJ, 6ã Turma, HC 177.942/RS, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP, julgado em 22/02/2011. Na mesma linha: STF, 2- Turma, HC 110.905/RS, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 05/06/2012 119 STF, 13 Turma, HC 93.916/PA, Rei. Min. Cármen Lúcia, DJe 117 27/06/2008.

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O exercício do direito à não autoincriminação, no entanto, não era empecilho à comprovação do crime de embriaguez ao volante, pelo menos quando o Código de Trânsito Brasileiro entrou em vigor em 1998. Isso porque, à época, o art. 306 do CTB tinha a seguinte redação: “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”. Nesse caso, mesmo que o agente se re­ cusasse a soprar o bafômetro, era possível que a elementar do tipo “sob a influência de álcool ” fosse comprovada através de exame clínico com a participação passiva do agente. Com efeito, ainda que o motorista se recusasse a fazer exame de sangue ou a soprar o bafômetro, fazendo uso de seu direito de não produzir prova contra si mesmo, um médico perito poderia facilmente constatar que tal pessoa estava sob a influência de álcool, sem que se exigisse qualquer com­ portamento ativo do agente, bastando analisar, por exemplo, a aparência do agente, sua atitude, orientação, elocução, andar, coordenação motora, hálito, etc. Com a entrada em vigor da Lei n° 11.705/08 (antiga “Lei Seca”), o tipo penal do art. 306 passou a ter a seguinte redação: “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com con­ centração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Perceba-se que, ao contrário da antiga redação do art. 306 do CTB, que fazia menção à condução de veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem, o que acabava por transformar esse delito em crime de perigo concreto, sendo, pois, indispensável a demonstração do risco concreto de dano causado pela direção embriagada (v.g., motorista dirigindo em alta velocidade, na contramão, etc.), a nova redação típica do art. 306 do CTB deixa de fazer menção expressa à criação de uma situação de risco. Isso significa dizer que a “antiga lei seca” transformou o delito de embriaguez ao vo­ lante em crime de perigo abstrato, sendo dispensável, portanto, a comprovação de risco de dano efetivo. Na visão do Supremo, a objetividade jurídica desse delito transcende a mera proteção da incolumidade pessoal para alcançar também a tutela da proteção de todo corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança nas vias públicas. Assim, é de todo irrelevante indagar se o comportamento do agente atinge, ou não, algum bem ju­ rídico tutelado, sendo legítima a opção legislativa por objetivar a proteção da segurança da própria coletividade. Não há necessidade de se comprovar risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal. Basta que seja comprovado que o acusado conduzia veículo automo­ tor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro.120 Se, de um lado, a antiga “Lei Seca” transformou o delito de embriaguez ao volante em crime de perigo abstrato, do outro, tomou bem mais complicada a produção de prova quanto à referida prática delituosa. Isso porque o tipo penal que passou a vigorar com o advento da Lei n° 11.705/08 trazia como elementar a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas. Essa figura típica do crime de embriaguez ao volante só se aperfeiçoava, então, com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue (do­ sagem etílica), o que não se podia presumir. Tal comprovação, segundo o Decreto n° 6.488, 120 STF, 2§ Turma, HC 109.269/MG, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27/09/2011, DJe 195 10/10/2011. Com o mesmo entendimento: STJ, 5ã Turma, HC 175.385/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, julgado em 17/03/2011. O crime do art. 310 do CTB também funciona como espécie de crime de perigo abstrato. A propósito, eis o teor da sú­ mula n9 575 do STJ: "Constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB, independentem ente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução do veículo".

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de 19/06/08, só podia ser feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), este último também conhecido como bafômetro. Logo, tendo em conta que, por força do princípio do nemo tenetur se detegere, o condutor não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, caso o agente se recusasse a soprar o bafômetro ou a fornecer uma amostra de sangue, não seria possível se presumir a prática do delito do art. 306 do CTB. Com base nesse raciocínio, apesar de entender que teria havido um equívoco na edição da Lei n° 11.705/08, o que, todavia, não pode ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade, sob pena de violação ao princípio da legalidade e da tipicidade, concluiu o STJ pelo trancamento de processo penal relativo a acusado da prática do crime de embriaguez ao volante, já que não teria sido feito exame de sangue ou teste de bafômetro, provas técnicas que, à época, eram indispensáveis para a comprovação do grau de embriaguez, que funcionava como verdadeira elementar objetiva do referido tipo penal.121 Como se percebe, apesar de o objetivo da “antiga Lei Seca” ter sido o de aumentar a re­ pressão ao crime de embriaguez ao volante, é certo dizer que, a partir do momento em que a tipificação do crime do art. 306 do CTB passou a exigir a taxa de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, restou assaz mais difícil a comprovação da referida prática delituosa, visto que, em virtude do princípio que veda a autoincriminação, o motorista não pode ser obrigado a se sujeitar ao exame de sangue, nem tampouco ao bafômetro, únicos meios de prova tecnicamente capazes de aferir a concentração de álcool no sangue.122 Ante a péssima redação que foi conferida ao crime de embriaguez ao volante pela “antiga Lei Seca” e os números alarmantes da violência no trânsito brasileiro,123 o Congresso Nacional se viu obrigado a mudar novamente a redação do art. 306 do CTB. Assim é que, em data de 21 de dezembro de 2012, entra em vigor a Lei n° 12.760. Dentre outras modificações, referida Lei confere nova redação ao art. 306 da Lei n° 9.503/97: “Art. 306. Conduzir veículo automotor

121 STJ, 6- Turma, HC 166.377/SP, Rei. Min. Og Fernandes, j. 10/06/2010, DJe 01/07/2010. Na mesma linha: STJ, 3§ Seção, REsp 1.111.566, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu - Desembargador convocado do TJ/RJ -, j. 28/03/2012, DJe 04/09/2012. 122 Como exposto anteriormente, é dominante o entendimento da doutrina e da jurisprudência pátria no sentido de que, por força do princípio do nem o te n e tu r se detegere, o motorista suspeito de conduzir veículo auto­ motor embriagado não pode ser obrigado a soprar o bafômetro. Por isso, os laboratórios desenvolveram uma nova espécie de bafômetro, que não exige o uso de bocal nem a participação ativa do usuário. Cuida-se do b a fô m e tr o (o u e tilô m e tr o ) p a ssiv o , que é capaz de "absorver" do ar ambiente a presença de álcool, a uma distância de 20 a 30 centímetros. A utilização da referida espécie de bafômetro não pressupõe a prática de nenhum comportamento ativo por parte do suspeito de embriaguez ao volante. Na verdade, à semelhança do que ocorre num reconhecimento pessoal, o suspeito é mero objeto de verificação, pois dele não se exige nenhum facere. Logo, não há falar em violação ao direito à não produção de prova contra si mesmo. Na me­ dida em que o suspeito é obrigado apenas a tolerar a realização do referido exame, exigindo-se cooperação meramente passiva, admite-se sua execução coercitiva caso o suspeito não queira participar de maneira voluntária. 123 Essa verdadeira carnificina instalada no trânsito brasileiro pode ser constatada através de alguns dados: a) 43,95% dos mortos em razão de acidentes de trânsito no ano de 2005 na cidade de São Paulo tiveram a alcoolemia atestada em autópsia; b) segundo o IPEA, o custo da violência no trânsito no Brasil alcança a incrível marca de 30 bilhões por ano; c) são 120 mil internações por ano, o que subtrai leitos do tratamento de outras patologias e acidentes pessoais e trabalhistas. A título de exemplo, em determinado ano, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP teve 70% de seus leitos ocupados por vítimas da violência no trânsito; d) são hoje 30 mil brasileiros cadeirantes em razão de acidentes de trânsito; e ) varia entre 40 e 50 mil o número de mortes por ano, sendo 500 mil feridos, dos quais cerca de 180 mil terminam suas vidas com lesões irreversíveis.

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com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Fácil notar que, diante da nova redação do art. 306 do CTB, o grau de dosagem etílica deixa de integrar o tipo penal do crime de embriaguez ao volante. Isso significa dizer que, em relação aos delitos cometidos a partir da data da vigência da Lei n° 12.760/12, a comprovação da condução de veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool poderá ser feita não apenas pelo exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveo­ lar pulmonar (bafômetro), como também por prova testemunhai ou exame de corpo de delito indireto ou supletivo. Nesse contexto, o art. 306, § Io, do CTB, com redação dada pela Lei n° 12.760/12, dispõe que o novel crime de embriaguez ao volante será constatado por: I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou por sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. Ademais, nos termos do art. 306, § 2o, do CTB, com redação determinada pela Lei n° 12.971/14, a verificação da embriaguez ao volante poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhai ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.124 3.7.6. Conseqüências do exercício do direito de não produzir prova contra si mesmo Se a Constituição Federal (art. 5o, LXIII) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, § 2o, “g”) asseguram ao suspeito, indiciado, acusado, ou condenado, esteja ele solto ou preso, o direito de não produzir prova contra si mesmo, do exercício desse direito não pode advir nenhuma conseqüência que lhes seja prejudicial.125 Fosse possível a extração de alguma conseqüência prejudicial ao acusado por conta de seu exercício, estar-se-ia negando a própria existência desse direito. Portanto, o exercício desse direito não pode ser utilizado como argumento a favor da acusação, não pode ser valorado na fundamentação de decisões judiciais, nem tampouco ser utilizado como elemento para a formação da convicção do órgão julgador. Do uso desse direito não podem ser extraídas presunções em desfavor do acusado, até mesmo porque milita, em seu benefício, o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5o, LVII), de cuja regra probatória deriva que o ônus da prova recai integralmente sobre a acusação. Da recusa em produzir prova contra si mesmo também não se pode extrair a tipificação do crime de desobediência (CP, art. 330). Afinal de contas, se o art. 330 do Código Penal tipifica a conduta de “desobedecer a ordem legal de funcionário público”, há de se concluir pela ile­ galidade da ordem que determine que o acusado produza prova contra si mesmo. O exercício regular de um direito - de não produzir prova contra si mesmo - não pode caracterizar crime, 124 A nosso ver, cuida-se, a nova redação do art. 306 do CTB, de no vatio legis in pejus. Afinal, se antes da Lei n9 12.760/12 a comprovação do referido delito podia ser feita apenas por meio de exame de sangue e bafô­ metro, doravante outros meios de prova poderão ser utilizados. Destarte, esse novo tipo penal de embriaguez ao volante só abrange os ilícitos cometidos a partir da vigência da Lei n2 12.760/12, que se deu em data de 21 de dezembro de 2012, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa (CF, art. 59, XL). 125 Segundo Maria Elizabeth Queijo, "a única conseqüência admissível do exercício do direito ao silêncio é que o acusado deixará de declinar elementos a seu favor, caso não responda a nenhuma das indagações formuladas. Ou seja, o acusado não fornecerá à autoridade interrogante a sua versão dos fatos e os elementos probatórios que possam dar suporte a ela. Sob tal aspecto, em alguns casos, o silêncio do acusado poderá prejudicar sua defesa, no todo, independentemente de qualquer valoração dele por parte do julgador. É o que ocorre nas situações que comportem a indicação de um álibi, por exemplo", (op. cit. p. 221).

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nem produzir conseqüências desfavoráveis ao acusado. Sua recusa em submeter-se à determi­ nada prova é legítima. O exercício do direito ao silêncio também não pode ser utilizado como fundamento para majoração da pena do condenado, nem tampouco para dar suporte à eventual decretação de prisão cautelar, sob o argumento (equivocado) de que o acusado não colabora com a produção probatória. Nesse sentido, a Ia Turma do Supremo já decidiu que não constitui fundamento idôneo, por si só, à prisão preventiva, a consideração de que, interrogado, o acusado não haja demonstrado “interesse em colaborar com a Justiça”: ao indiciado não cabe o ônus de cooperar de qualquer modo com a apuração dos fatos que o possam incriminar.126 3.7.7. O direito de não produzir provas contra si mesmo e a prática de outros delitos. Não se pode negar a importância e a relevância do direito de não produzir prova contra si mesmo. Porém, em virtude do princípio da convivência das liberdades, pelo qual não se permi­ te que qualquer das liberdades seja exercida de modo danoso à ordem pública e às liberdades alheias, o direito à não autoincriminação não pode ser entendido em sentido absoluto. Discute-se, assim, se seria possível reconhecer a incidência do nemo tenetur se detegere quando um segundo delito fosse praticado para encobrir o primeiro. É o que ocorre, por exemplo, quando o agente, após praticar determinado delito, inova artificiosamente o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito com o objetivo de produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado (CP, art. 347, parágrafo único). Nesse caso, é possível que o agente responda pelos dois delitos em concurso material? Ou será que o segundo delito - fraude processual - está amparado pela excludente da ilicitude do exercício regular de direito (direito de não produzir prova contra si mesmo)? A nosso ver, caso haja a prática de nova infração penal, de maneira autônoma e dissocia­ da de qualquer exigência de colaboração por parte de autoridade, com o objetivo de encobrir delito anteriormente praticado, não há falar em incidência do nemo tenetur se detegere. Afinal, desse princípio não decorre a não punibilidade de crimes conexos praticados para encobrir a prática de outros. Não fosse assim, um crime de homicídio praticado contra a tes­ temunha que presenciou o crime antecedente poderia ser considerado como exercício regular de direito. Portanto, em tais situações, como não há risco concreto de autoincriminação, mas mero temor genérico de revelação de crime anteriormente praticado, não se pode admitir que o direito de não produzir prova contra si mesmo possa atenuar a responsabilidade criminal do agente. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou no habeas corpus impetrado em favor de A. N. e A. C. J, denunciados pelo homicídio triplamente qualificado de Isabela Nardoni, e também por fraude processual, em decorrência da alteração do local do crime: “(...) O direito à não auto-incriminação não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime, inovando o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, para, criando artificiosamente outra realidade, levar peritos ou o próprio Juiz a erro de avaliação relevante (...)”.127 Em sentido semelhante, no julgamento de Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida em que se discutia a constitucionalidade da criminalização da fuga de local de aci­ dente constante do art. 305 do CTB (“Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuí da”),o Plenário do STF aprovou a seguinte tese: “A regra que prevê o crime do art. 305 do CTB é constitucional posto não infirmar

126 STF, 1- Turma, HC 79.781/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 18/04/2000, DJ 09/06/2000. 127

STJ, 5a Turma, HC 137.206/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 01/12/2009, DJe 01/02/2010.

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o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e as hipóteses de exclusão de tipicidade e de antijuridicidade”. A semelhança do que já fora decidido pelo Supremo no julga­ mento do RE 640.139, quando se afirmou que o princípio constitucional da autoincriminação não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intuito de ocultar maus antecedentes, prevaleceu o entendimento de que não há direitos absolutos e que, no sis­ tema de ponderação de valores, há de ser admitida certa mitigação, até mesmo do princípio da não autoincriminação. Na visão da Corte, a exigência de permanência no local do acidente e de identificação perante a autoridade de trânsito não obriga o condutor a assumir expressamente sua responsabilidade civil ou penal e tampouco enseja que seja aplicada contra ele qualquer penalidade caso assim não o proceda. Na verdade, a depender do caso concreto, a sua permanência no local pode até constituir um meio de autodefesa, na medida em que terá a oportunidade de esclarecer, de imediato, eventuais circunstâncias do acidente que lhe sejam favoráveis.128 3.8. Princípio da proporcionalidade O princípio da proporcionalidade não está previsto de maneira expressa na Constituição Federal. Porém, não há como negar sua sedes m ateriae na própria Carta Magna, estando in­ serido no aspecto material do princípio do devido processo legal (substantive due process of law) - “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, art. 5o, LIV). Com efeito, o exame da cláusula referente ao due p ro cess o f law permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucio­ nal, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); b) direito à citação e ao conhe­ cimento prévio do teor da acusação; c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex p o s t fa c to ; f) direito à igualdade entre as partes; g) direito de não ser processado com fundamento em provas revesti­ das de ilicitude; h) direito ao benefício da gratuidade; i) direito à observância do princípio do juiz natural; j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); 1) direito à prova; e m) direito de presença e de “participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes.129 Como observa o Min. Gilmar Mendes, “a cláusula do devido processo legal - objeto de expressão proclamação pelo art. 5o, LIV, da Constituição, e que traduz um dos fundamentos dogmáticos do princípio da proporcionalidade - deve ser entendida, na abrangência de sua no­ ção conceituai, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do poder público {procedural due p ro cess o f law), mas, sobretudo, em sua dimensão material {substantive due process o f law), que atua como decisivo obstáculo à edição de atos normativos revestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due p r o ­ cesso o f law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação ou de regulamentação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade”.130

128

STF, Pleno, RE 971.959/RS, Rei. Min. Luiz Fux, j. 14/11/2018.

129

Nesse sentido: STF, 2- Turma, HC 94.016/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 038 26/02/2009.

130 Direitos fu n dam enta is e controle de constitucionalidade: estudos de d ire ito constitucional. 3- ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 65.

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Em sede processual penal, o Poder Público não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. Daí a importância do princípio da proporcionalidade, que se qualifica, enquanto coeficiente de aferição da razoabi­ lidade dos atos estatais, como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público.131 Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado - inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa - adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à ra­ cionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmá­ tica de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do due process o f law.132 A fim de conferir segurança e consistência à aplicação do princípio da proporcionalidade, doutrina e jurisprudência conceberam pressupostos e requisitos a serem atendidos para que o princípio pudesse ser aplicado de maneira coerente e legítima.133 O princípio da proporcionalidade tem como pressuposto formal o princípio da legalidade, e como pressuposto material o princípio da justificação teleológica. O princípio da legalidade processual, desdobramento do princípio geral da legalidade (CF, art. 5o, incisos II e LIV), demanda tanto a regulamentação, por lei, dos direitos exercitáveis durante o processo, como também a autorização e a regulamentação de qualquer intromissão na esfera dos direitos e liberdades dos cidadãos, efetuada por ocasião de um processo penal. Logo, por força do princípio da legalidade, todas as medidas restritivas de direitos fundamen­ tais deverão ser previstas por lei {nulla coactio sine lege), que deve ser escrita, estrita e prévia. Evita-se, assim, que o Estado realize atuações arbitrárias, a pretexto de aplicar o princípio da proporcionalidade. Afinal, como destaca Maurício Zanoide de Moraes, “é norma basilar de um Estado Demo­ crático de Direito que, no âmbito criminal (penal ou processual penal), somente poderá acontecer coerção da esfera de direitos individuais se houver lei anterior clara, estrita e escrita que a defina {nulla coertio sine lege). A legalidade, que deve obedecer a todos os ditames constitucionais de produção legislativa, confere a um só tempo (i) a segurança jurídica a todos os cidadãos para conhecerem em quais hipóteses e com que intensidade os agentes persecutórios podem agir e, também, (ii) a previsibilidade necessária para, de antemão, saber quando os agentes públicos agem dentro dos limites legais e se estão autorizados a restringir os direitos fundamentais”.134

131 Segundo Luís Roberto Barroso, há uma relação de fungibilidade entre o princípio da proporcionalidade e o da razoabilidade, cuja origem remonta à garantia do devido processo legal, principalmente na fase em que se atribui a essa garantia feição substancial. Ao discorrer sobre o princípio da razoabilidade, o referido autor aponta os mesmos requisitos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, trabalhados pela doutrina e pela jurisprudência como requisitos do princípio da proporcionalidade em sentido amplo. (Interpretação e aplicação da Constituição. 4- ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 219). 132

Nesse sentido: STUMM, Raquel Denize. Princípio da P roporcionalidade no D ireito C onstitucional Brasileiro, p. 159/170, 1995, Livraria do Advogado Editora; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos Humanos Funda­ m entais, p. 111/112, item n9 14,1995, Saraiva; BONAVIDES, Paulo. Curso de D ireito Constitucional, p. 352/355, item n9 11, 4® ed., 1993, Malheiros.

133 SERRANO, Nicolas Gonzales-Cuellar. P roporcionalidad y derechos fundam entales en ei proceso penal. Madrid: Colex, 1990. Capítulo 5, item 1. 134 Sigilo no processo penal: eficiência e garantism o. Coordenação: Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de Almeida e Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 33-34.

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Por seu turno, por força do princípio da justificação teleológica, busca-se a legitimação do uso da medida cautelar, a partir da demonstração das razões pelas quais a aplicação da medida tomou-se necessária em relação ao fim que se objetiva alcançar. Cabe aqui analisar se o fim almejado é constitucionalmente legítimo e se possui relevância social. Quanto à legitimidade constitucional, pode ser necessária a restrição de determinado direito fundamental não apenas para proteger outro direito fundamental, mas também bens constitucionalmente tutelados. Em relação à relevância social, os fins devem ser socialmente relevantes para justificar a limitação a um direito fundamental. Além dos pressupostos da legalidade e da justificação teleológica, o princípio da propor­ cionalidade também possui requisitos extrínsecos e intrínsecos. Subdividem-se os primeiros nos requisitos da judicialidade e da motivação; os segundos, na adequação (ou idoneidade), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Por judicialidade compreende-se a exigência que as limitações aos direitos fundamentais somente possam ocorrer por decisão do órgão jurisdicional competente. A denominada cláusula de reserva de jurisdição garante ao Poder Judiciário não apenas dar a última palavra em matéria de restrição de direitos fundamentais, como também assegurar sua manifestação já no primeiro momento em que a restrição se mostrar necessária.135 Quanto à motivação, há de se ter em mente que, em se tratando de decisões das quais resulte, de alguma forma, restrição a direitos fundamentais, será por meio da fundamentação da decisão judicial que se poderá aferir quais os motivos de fato e de direito levados em consideração pelo magistrado para a formação de seu convencimento, permitindo ao cidadão impugnar o ato se o entender inconstitucional ou ilegal. Os requisitos intrínsecos, também denominados de subprincípios da proporcionalidade ou elementos de seu conteúdo, são a adequação (ou idoneidade), a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Esses três subprincípios da proporcionalidade são bem sintetizados por Willis Santiago Guerra Filho: “Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens.”136 3.8.1. Da adequação O primeiro requisito intrínseco ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo é o da adequação, também denominado de princípio da idoneidade ou da conformidade. Por força da adequação, a medida restritiva será considerada adequada quando for apta a atingir o fim proposto. Não se deve permitir, portanto, o ataque a um direito fundamental se o meio adotado não se mostrar apropriado à consecução do resultado pretendido.

135 A propósito da importância do Poder Judiciário como instrumento concretizador das liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados por tratados internacionais firmados pelo Brasil, opor­ tuna é a lição do M in. Celso de M ello: "O juiz, no plano de nossa organização institucional, representa o órgão estatal incumbido de concretizar as liberdades públicas proclamadas pela declaração constitucional de direitos e reconhecidas pelos atos e convenções internacionais fundados no direito das gentes. Assiste, desse modo, ao Magistrado, o dever de atuar como instrumento da Constituição - e garante de sua supremacia - na defesa incondicional e na garantia real das liberdades fundamentais da pessoa humana, conferindo, ainda, efetividade aos direitos fundados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente mais sensível que se impõe aos magistrados". (STF, Tribunal Pleno, RE 466.343/SP, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 03/12/2008, DJe 104 04/06/2009). 136 Ensaios de teoria constitucional. Fortaleza, UFC - Imprensa Universitária, 1989. p. 75.

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Essa adequação deve ser aferida num plano qualitativo, quantitativo e também em seu âmbito subjetivo de aplicação. A adequação qualitativa impõe que as medidas sejam qua­ litativamente aptas a alcançar o fim desejado, ou seja, idôneas por sua própria natureza. Exemplificando, se o objetivo é evitar a fuga do acusado, não faz sentido querer proibi-lo de entrar em contato com certas pessoas, pois a medida adotada seria qualitativamente ina­ dequada. A adequação quantitativa cuida da duração e da intensidade da medida em relação à finalidade pretendida. Supondo-se que uma prisão preventiva tenha sido decretada para assegurar a conveniência da instrução criminal, uma vez concluída a instrução processual, a medida deve ser revogada, a não ser que haja outro motivo legal que justifique a segregação do acusado. Por derradeiro, a adequação na determinação do âmbito subjetivo de aplicação diz respeito à individualização do sujeito passivo da medida e à proibição de extensão indevida de sua aplicação. Afinal, a depender das circunstâncias do caso concreto, uma medida, em um mesmo processo, pode ser subjetivamente adequada em relação a um dos acusados, mas não sê-lo em relação a outro. Por isso, no âmbito processual penal, para que sejam adotadas medidas restritivas, é necessário que haja indícios de autoria ou de participação na prática de determinada infração penal, sendo que, a depender da ingerência a ser realizada, exige-se maior grau de suspeita.137 Com base no subprincípio da adequação, há, portanto, uma relação de meio e fim, devendo se questionar se o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido. 3.8.2. Da necessidade O segundo requisito ou subprincípio da proporcionalidade é o da necessidade ou da exi­ gibilidade, também conhecido como princípio da intervenção mínima, da menor ingerência possível, da alternativa menos gravosa, da subsidiariedade, da escolha do meio mais suave, ou da proibição de excesso. Por força dele, entende-se que, dentre várias medidas restritivas de direitos fundamentais idôneas a atingir o fim proposto, deve o Poder Público escolher a menos gravosa, ou seja, aquela que menos interfira no direito de liberdade e que ainda seja capaz de proteger o interesse público para o qual foi instituída. Como aponta a doutrina, o princípio da necessidade é princípio constitucional porque deriva da proibição do excesso; é princípio comparativo porque induz o órgão da persecução penal à busca de medidas alternativas idôneas; tende à otimização da eficácia dos direitos fundamentais porque obriga a refutar as medidas que possam ser substituídas por outras menos gravosas, com o que se diminui a lesividade da intromissão na esfera dos direitos e liberdades do indivíduo.138 Assim, entre diversas opções idôneas a atingir determinado fim, deve o magistrado bus­ car aquela que produza menos restrições à obtenção do resultado. Em outras palavras, deve o juiz se indagar acerca da existência de outra medida menos gravosa apta a lograr o mesmo objetivo. A título de exemplo, por conta do art. 2o, inciso II, da Lei n° 9.296/96, a interceptação de comunicações telefônicas só poderá ser deferida quando a prova não puder ser feita

137

Nesse sentido: DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. M edidas substitutivas e alternativas à prisão cautelar. Op. cit. p. 67-68.

138 SERRANO, Nicolas Gonzales-Cuellar. P roporcionalidad y derechos fundam entales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990. p. 189.

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por outros meios disponíveis, ou seja, se for possível comprovar-se o fato por meio de prova menos gravoso, não se justifica a violação à intimidade. Por outro lado, no caso de prisões cautelares, lembra Camelutti que a medida “se assemelha a um daqueles remédios heroicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, porque podem curar o enfermo, mas também podem ocasionar-lhe um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia geral, a qual é um meio indispensável para o cirurgião, mas ah se este abusa dela!”139 3.8.3. Da proporcionalidade em sentido estrito O terceiro subprincípio - proporcionalidade em sentido estrito - impõe um juízo de pondera­ ção entre o ônus imposto e o benefício trazido, a fim de se constatar se se justifica a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. É a verificação da relação de custo-benefício da medida, ou seja, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. De acordo com Canotilho, “uma lei restritiva, mesmo adequada e necessária, pode ser inconstitucional, quando adote cargas coativas de direitos, liberdades e garantias desmedidas, desajustadas, excessivas ou desproporcionadas em relação aos resultados obtidos”.140 Por força do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, entre os valores em conflito - o que demanda a adoção da medida restritiva e o que protege o direito individual a ser violado - deve preponderar o de maior relevância. Há de se indagar, pois, se o gravame imposto ao titular do direito fundamental guarda relação de proporcionalidade com a importância do bem jurídico que se pretende tutelar. No âmbito processual penal, este juízo de ponderação opera-se entre o interesse individual e o interesse estatal. De um lado, o interesse do indivíduo na manutenção de seu ius libertatis, com o pleno gozo dos direitos fundamentais. Do outro, o interesse estatal nas medidas restritivas de direitos fundamentais está consubstanciado pelo interesse na persecução penal, objetivando-se a tutela dos bens jurídicos protegidos pelas normas penais. 4. LEI PROCESSUAL PENAL NO ESPAÇO Enquanto à lei penal aplica-se o princípio da territorialidade (CP, art. 5o) e da extraterritorialidade incondicionada e condicionada (CP, art. 7o), o Código de Processo Penal adota o princípio da territorialidade ou da lex fori. E isso por um motivo óbvio: a atividade jurisdicional é um dos aspectos da soberania nacional, logo, não pode ser exercida além das fronteiras do respectivo Estado. Assim, mesmo que um ato processual tenha que ser praticado no exterior, v.g., citação, intimação, interrogatório, oitiva de testemunha, etc., a lei processual penal a ser aplicada é a do país onde tais atos venham a ser realizados. Na mesma linha, aplica-se a lei processual brasileira aos atos referentes às relações jurisdicionais com autoridades estrangeiras que devam ser praticados em nosso país, tais como os de cumprimento de carta rogatória (CPP, arts. 783 e seguintes), homologação de sentença estrangeira (CPP, arts. 787 e seguintes), procedimento de extradição (Lei n° 6.815/80, arts. 76 e seguintes), etc. Na visão da doutrina, todavia, há situações em que a lei processual penal de um Estado pode ser aplicada fora de seus limites territoriais: a) aplicação da lei processual penal de um Estado em território nullius; b) quando houver autorização do Estado onde deva ser praticado o ato processual; c) em caso de guerra, em território ocupado. 139

Lecciones sobre ei Proceso Penal.

140

CANOTILHO, J. J. Gomes. D ireito Constitucional.

Trad. Santiago Santis Melendo. Buenos Aires: Editora Bosch, 1950, v. II, p. 75. ed. Coimbra: Almedina, 1989. p. 488.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Confirmando a adoção do princípio da territorialidade, o art. Io do CPP dispõe que o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, pelo Código de Processo Penal, ressalvados: I os tratados, as convenções e regras de direito internacional; II - as prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade; III - os processos da competência da Justiça Militar; IV - os processos da competência do tri­ bunal especial; V - os processos por crimes de imprensa. Ademais, segundo o parágrafo único do art. Io, aplicar-se-á, entretanto, o CPP aos processos referidos nos incisos IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dispuserem de modo diverso. Além do art. Io do CPP, especial atenção também deve ser dispensada ao art. 5o, § 4o, da Constituição Federal, que prevê que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Interna­ cional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Tem-se aí mais uma hipótese de não aplicação da lei processual penal brasileira aos crimes praticados no país, nas restritas situações em que o Estado brasileiro reconhecer a necessidade do exercício da jurisdição penal internacional. Portanto, como se percebe, a regra é que todo e qualquer processo penal que surgir no território nacional deva ser solucionado consoante as regras do Código de Processo Penal (locus regit actum). Há, todavia, exceções. 4.1. Tratados, convenções e regras de direito internacional Em matéria penal, deve-se adotar, em regra, o princípio da territorialidade, desenvolvendo-se na justiça pátria o processo e os respectivos incidentes, não se podendo olvidar, outrossim, de eventuais tratados ou outras normas internacionais a que o país tenha aderido, nos termos dos arts. Io do CPP e 5o, caput, do CP. Tem-se, assim, que a competência internacional é regulada ou pelo direito internacional ou pelas regras internas de determinado país, tendo por fontes os costumes, os tratados normativos e outras regras de direito internacional. Portanto, não há ilegalidade na utilização, em processo penal em curso no Brasil, de in­ formações compartilhadas por força de acordo internacional de cooperação em matéria penal e oriundas de quebra de sigilo bancário determinada por autoridade estrangeira, com respaldo no ordenamento jurídico de seu país, para a apuração de outros fatos criminosos lá ocorridos, ainda que não haja prévia decisão da justiça brasileira autorizando a quebra do sigilo. Dessa forma, se a juntada da documentação aos autos se deu por força de pedidos de cooperação judiciária internacional baseados no Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, tendo sido apre­ sentada devidamente certificada, de modo a se comprovar a autenticidade e a regularidade na sua obtenção, não há que se falar em ilegalidade no compartilhamento das provas oriundas da quebra do sigilo bancário realizado em outro país.141 Noutro giro, por força da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo De­ creto Legislativo 103/1964, e promulgada pelo Decreto n° 56.435, de 08/06/1965, Chefes de governo estrangeiro ou de Estado estrangeiro, suas famílias e membros das comitivas, embaixadores e suas famílias, funcionários estrangeiros do corpo diplomático e suas família, assim como funcionários de organizações internacionais em serviço (ONU, OEA, etc.) gozam de imunidade diplomática, que consiste na prerrogativa de responder no seu país de origem pelo delito praticado no Brasil. Como se percebe, por conta de tratados ou convenções que o Brasil haja firmado, ou mesmo em virtude de regras de Direito Internacional, a lei processual penal deixa de ser aplicada aos

141

Nessa linha: STJ, 5§ Turma, HC 231.633/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 25/11/2014, DJe 3/12/2014.

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crimes praticados por tais agentes no território nacional, criando-se, assim, verdadeiro obstáculo processual à aplicação da lei processual penal brasileira. Destarte, tais pessoas não podem ser presas e nem julgadas pela autoridade do país onde exercem suas funções, seja qual for o crime praticado (CPP, art. Io, inciso I). Em caso de fa­ lecimento de um diplomata, os membros de sua família “continuarão no gozo dos privilégios e imunidades a que têm direito, até a expiração de um prazo razoável que lhes permita deixar o território do Estado acreditado” (art. 39, § 3o, da Convenção de Viena sobre relações diplo­ máticas). Admite-se renúncia expressa à garantia da imunidade pelo Estado acreditante, ou seja, aquele que envia o Chefe de Estado ou representante. Tal imunidade não é extensiva aos empregados particulares dos agentes diplomáticos. Quanto ao cônsul, este só goza de imunidade em relação aos crimes funcionais (Convenção de Viena de 1963 sobre Relações Consulares - Decreto n° 61.078, de 26/07/1967). Esse o motivo pelo qual, ao apreciar habeas corpus referente a crime de pedofilia supostamente praticado pelo Cônsul de Israel no Rio de Janeiro, posicionou-se a Suprema Corte pela inexistência de obstáculo à prisão preventiva, nos termos do art. 41 da Convenção de Viena, pois os fatos imputados ao paciente não guardavam pertinência com o desempenho das funções consulares.142 4.2. Prerrogativas constitucionais do Presidente da República e de outras autoridades Refere-se a segunda ressalva do art. Io do CPP às prerrogativas constitucionais do Presidente da República e de outras autoridades, em relação aos crimes de responsabilidade. A denominada Justiça Política corresponde à atividade jurisdicional exercida por órgãos políticos, alheios ao Poder Judiciário, apresentando como objetivo precípuo o afastamento do agente público que comete crimes de responsabilidade de suas funções. A título de exemplo, de acordo com o art. 52, incisos I e II, da Constituição Federal, compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, assim como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, bem como os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade, observando-se, em relação ao Presidente da República e aos Ministros de Estado, a competência da Câmara dos Deputados para a admissibilidade e a formalização da acusação (CF, art. 51,1; CF, art. 86; Lei n° 1.079/50, art. 20 e seguintes). Por sua vez, compete a um Tribunal Especial, composto por cinco Deputados, escolhidos pela Assembléia, e cinco Desembargadores, sorteados pelo Presidente do Tribunal de Justiça, que também o presidirá (Lei n° 1.079/50, art. 78, § 3o), processar e julgar, nos crimes de responsabili­ dade, o Governador, o Vice-Govemador, e os Secretários de Estado, nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, assim como o Procurador-Geral de Justiça e o Procurador-Geral do Estado. No caso de crimes de responsabilidade praticados por Prefeitos Municipais (infrações político-administrativas), que são os tipificados no art. 4o do Decreto-lei n° 201/67, a competência para julgamento é da Câmara Municipal. O processo pressupõe que o Prefeito Municipal esteja no exercício do mandato, na medida em que a única sanção prevista é a cassação do mandato. Conquanto a Constituição Federal e a legislação ordinária acima referida (Lei n° 1.079/50 e Decreto-lei n° 201/67) se refiram à prática de crimes de responsabilidade, atribuindo ao

142 STF, ia Turma, HC 81.158/RJ, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 19/12/2002.

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Senado Federal, ao Tribunal Especial e à Câmara Municipal o exercício dessa atividade jurisdicional atípica, tecnicamente não há falar em crime, mas sim no julgamento de uma infração político-administrativa.143 Nesse cenário, é indispensável diferenciarmos crimes de responsabilidade em sentido amplo de crimes de responsabilidade em sentido estrito. Crimes de responsabilidade em sentido amplo são aqueles cuja qualidade de funcionário público (CP, art. 327) funciona como elementar do delito. É o que ocorre com os crimes pra­ ticados por funcionários públicos contra a administração pública (CP, arts. 312 a 326). Esses crimes de responsabilidade em sentido amplo estão inseridos naquilo que a Constituição Federal denomina de crimes comuns ou infrações penais comuns. Por seu turno, crimes de responsabilidade em sentido estrito são aqueles que somente podem ser praticados por determinados agentes políticos. Prevalece o entendimento de que não têm natureza jurídica de infração penal, mas sim de infração político-administrativa, passível de sanções político-administrativas, aplicadas por órgãos jurisdicionais políticos (normalmente órgãos mistos, compostos por parlamentares ou por parlamentares e magistrados). Como desses crimes de responsabilidade não decorre sanção criminal, não podem ser qualificados como in­ frações penais, figurando, pois, como infrações políticas da alçada do Direito Constitucional.144 4.3. Processos da competência da Justiça Militar Outra ressalva feita pelo art. Io do CPP diz respeito aos processos da competência da Justiça Militar. De acordo com o art. 124 da Constituição Federal, à Justiça Militar da União compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei. Lado outro, segundo o art. 125, § 4o, da Carta Magna, compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. A inaplicabilidade do Código de Processo Penal no âmbito da Justiça Militar justifica-se pelo fato de ser aplicável, na Justiça Castrense, o Código Penal Militar (Decreto-Lei n° 1.001/69) e o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei n° 1.002/69). Entretanto, é importante destacar que o próprio estatuto processual penal militar prevê a possibilidade de os casos omissos serem supridos pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar (CPPM, art. 3o, alínea “a”). 4.4. Processos da competência do tribunal especial O art. Io, inciso IV, do CPP, faz menção aos processos da competência do tribunal especial (Constituição, art. 122, n° 17). Os artigos citados referem-se à Constituição de 1937, sendo que esse tribunal especial a que faz menção o inciso IV é o antigo Tribunal de Segurança Nacional, que já não existe mais, visto que foi extinto pela Constituição de 1946. O art. 122, n° 17 da Carta

143 Segundo Pacelli, "mesmo quando a Constituição atribui a órgãos do Judiciário a competência para o julgamento de crimes de responsabilidade (art. 105,1, a, por exemplo), não se estará exercendo outro tipo de jurisdição que não seja a de natureza política, diante da natureza igualmente política das infrações" (op. cit. p. 188). 144

De acordo com o art. 29 da Lei n9 1.079/50, os crimes definidos nesta Lei, ainda quando simplesmente tenta­ dos, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até 5 (cinco) anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou ministros de Estado, contra os ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador-Geral da República. Além disso, "a imposição da pena referida no artigo anterior (art. 29) não exclui o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal." (Lei n9 1.079/50, art. 39).

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de 1937 previa que “os crimes que atentarem contra a existência, a segurança e a integridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular serão submetidos a processo e julgamento perante tribunal especial, na forma que a lei instituir”. Hoje, os crimes contra a segurança nacional estão definidos na Lei n° 7.170/83. Apesar de o art. 30 da Lei n° 7.170/83 dispor que os crimes nela previstos são da competência da Justiça Militar, referido dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, porquanto, segundo o art. 109, inciso IV, compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes políticos, com recurso ordinário para o Supremo (CF, art. 102, II, “b”). 4.5. Crimes de imprensa Outra ressalva constante do art. Io do CPP diz respeito aos processos penais por crimes de imprensa. Referidos delitos estavam previstos na Lei n° 5.250/67. Dizemos que estavam previstos na Lei n° 5.250/67 porque, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental n° 130, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido ali formulado para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.250/67.145 Como decidiu a própria Suprema Corte, a não recepção da Lei de Imprensa não impede o curso regular dos processos fundamentados nos dispositivos legais da referida lei, nem tam­ pouco a instauração de novos processos, aplicando-se lhes, contudo, as normas da legislação comum, notadamente, o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal. 4.6. Crimes eleitorais Apesar de o art. Io do Código de Processo Penal não fazer expressa referência aos processos criminais da competência da Justiça Eleitoral, isso se justifica pelo fato de, à época da elaboração do CPP, estar em vigor a Constituição de 1937, que não tratava da Justiça Eleitoral, e muito menos dos crimes eleitorais, já que, vigia, então, um regime de exceção. Todavia, a Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 121 que Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juizes de direito e das juntas eleitorais. Destarte, embora editado como lei ordinária, o Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65) foi re­ cepcionado pela Constituição Federal como Lei complementar, mas tão somente no que tange à organização judiciária e competência eleitoral, tal qual prevê a Carta Magna (CF, art. 121, caput). Portanto, no tocante à definição dos crimes eleitorais, as normas postas no Código Elei­ toral mantêm o status de lei ordinária. A competência criminal da Justiça Eleitoral é fixada em razão da matéria, cabendo a ela o processo e julgamento dos crimes eleitorais. Mas o que se deve entender por crimes eleitorais? Como adverte a doutrina, somente são crimes eleitorais os previstos no Código Eleitoral (v.g., crimes contra a honra, praticados durante a propaganda eleitoral)146 e os que a lei, even­ tual e expressamente, defina como eleitorais.147 Todos eles referem-se a atentados ao processo 145

STF - ADPF

130/DF, Rei. Min. Carlos Britto, 30/04/2009.

146 Os crimes contra a honra prescritos no Código Eleitoral exigem finalidade eleitoral para que restem configurados. Sendo o eventual crime contra a honra praticado fora do período de propaganda eleitoral, resta afastada a figura típica especial do Código Eleitoral e subsiste o tipo penal previsto no Código Penal: STJ, 3a Seção, CC 79.872/BA, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 25/10/2007 p. 123. 147 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit. p. 142.

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eleitoral, que vai desde o alistamento do eleitor (ex: falsificação de título de eleitor para fins eleitorais - art. 348 do Código Eleitoral)148 até a diplomação dos eleitos. Crime que não esteja no Código Eleitoral ou que não tenha a expressa definição legal como eleitoral, salvo o caso de conexão, jamais será de competência da Justiça Eleitoral. A motivação política ou mesmo eleitoral não é suficiente para definir a competência da Justiça Especial de que estamos tratando. Da mesma forma, a existência de campanha eleitoral é irrele­ vante, pois, de per si, não é suficiente para caracterizar os crimes eleitorais à falta de tipificação legal no Código Eleitoral ou em leis eleitorais extravagantes. Assim, por exemplo, a prática de um homicídio, ainda que no período que antecede as eleições, e mesmo que por motivos político-eleitorais, será julgado pelo Júri comum, porquanto tal delito não é elencado como crime eleitoral. 4.7. Outras exceções O art. Io do CPP faz menção expressa apenas às ressalvas anteriormente trabalhadas. Toda­ via, face a existência de diversas leis especiais, editadas após a vigência do CPP (Io de janeiro de 1942), com previsão expressa de procedimento distinto, conclui-se que, por força do princípio da especialidade, a tais infrações será aplicável a respectiva legislação, aplicando-se o Código de Processo Penal apenas subsidiariamente. Vários exemplos podem ser lembrados: 1) O processo e julgamento dos crimes de abuso de autoridade é regulado pela Lei n° 4.898/65; 2) Os crimes da competência originária dos Tribunais possuem procedimento específico previsto na Lei n° 8.038/90; 3) As infrações de menor potencial ofensivo, assim compreendidas as contravenções penais e crimes cuja pena máxima não seja superior a 02 (dois) anos, cumulada ou não com multa, submetidos ou não a procedimento especial, devem ser processadas e julgadas pelos Juizados Es­ peciais Criminais, pelo menos em regra, com procedimento regulamentado pela Lei n° 9.099/95; 4) Os crimes falimentares também possuem procedimento especial disciplinado na Lei n° 11.101/05 (arts. 183 a 188); 5) O Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741/03, art. 94) também possui dispositivos expressos acerca do procedimento a ser aplicado aos crimes ali previstos; 6) A Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06) também estabelece dispositivos processuais penais específicos quanto às hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher; 7) A Lei de drogas (Lei n° 11.343/06) traz em seu bojo um capítulo inteiro dedicado ao procedimento penal, prevendo expressamente a possibilidade de aplicação, subsidiária, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal (art. 48, caput). 5. LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO A legislação processual penal tem sofrido inúmeras alterações nos últimos anos. Diante da sucessão de leis no tempo, apresenta-se de vital importância o estudo do direito intertemporal. No âmbito do Direito Penal, o tema não apresenta maiores controvérsias. Afinal, por força da Constituição Federal (art. 5o, XL), a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Logo, cuidando-se de norma penal mais gravosa, vige o princípio da irretroatividade. Da mesma forma que a lei penal mais grave não pode retroagir, é certo que a lei mais benéfica é dotada de extratividade: fala-se, assim, em ultratividade quando a lei, mesmo depois de ser revogada,

148 STJ, 33 Seção, CC 26.105/PA, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 27/08/2001 p. 221.

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continua a regular os fatos ocorridos durante a sua vigência; por sua vez, retroatividade seria a possibilidade conferida à lei penal de retroagir no tempo, a fim de regular os fatos ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor. Raciocínio distinto, porém, é aplicável ao processo penal. De acordo com o art. 2o do CPP, que consagra o denominado princípio tempus regit actum, “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Como se vê, por força do art. 2o do CPP, incide no processo penal o princípio da aplicabilidade imediata, no sentido de que a norma processual aplica-se tão logo entre em vigor, sem prejuízo da validade dos atos já praticados anteriormente. O fundamento da aplicação imediata da lei processual é que se presume seja ela mais perfeita do que a anterior, por atentar mais aos interesses da Justiça, salvaguardar melhor o direito das partes, garantir defesa mais ampla ao acusado, etc. Portanto, ao contrário da lei penal, que leva em conta o momento da prática delituosa (itempus delicti), a aplicação imediata da lei processual leva em consideração o momento da prática do ato processual {tempus regit actum). Do princípio tempus regit actum derivam dois efeitos: a) os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior são considerados válidos; b) as normas processuais têm aplicação imediata, regulando o desenrolar restante do processo. Apesar de o art. 2o do CPP não estabelecer qualquer distinção entre as normas processuais, doutrina e jurisprudência têm trabalhado crescentemente com uma subdivisão dessas regras: a) normas genuinamente processuais: são aquelas que cuidam de procedimentos, atos processuais, técnicas do processo. A elas se aplica o art. 2o do CPP; b) normas processuais materiais (mistas ou híbridas): são aquelas que abrigam naturezas diversas, de caráter penal e de caráter processual penal. Normas penais são aquelas que cuidam do crime, da pena, da medida de segurança, dos efeitos da condenação e do direito de punir do Estado (v.g., causas extintivas da punibilidade). De sua vez, normas processuais penais são aquelas que versam sobre o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Assim, se um dispositivo legal, embora inserido em lei processual, versa sobre regra penal, de direito material, a ele serão aplicáveis os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna. Não há consenso na doutrina acerca do conceito de normas processuais materiais ou mistas. Uma primeira corrente sustenta que normas processuais materiais ou mistas são aquelas que, apesar de disciplinadas em diplomas processuais penais, dispõem sobre o conteúdo da pretensão punitiva, tais como aquelas relativas ao direito de queixa, ao de representação, à prescrição e à decadência, ao perdão, à perempção, etc.149Uma segunda corrente, de caráter ampliativo, sustenta que normas processuais materiais são aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, meios de prova, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que produzam reflexos no direito de liberdade do agente -, ou seja, todas as normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão.150 Independentemente da corrente que se queira adotar, é certo que às normas processuais materiais se aplica o mesmo critério do direito penal, isto é, tratando-se de norma benéfica ao

149

Com esse entendimento: NUCCI, Guilherme de Souza. M anual de processo penal e execução penal. 5^ ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 139. Para o autor, as regras vinculadas à prisão do réu também devem ser consideradas normas processuais penais materiais, uma vez que se referem à liberdade do indivíduo.

150

Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. As reform as no processo penal: as novas Leis de 2008 Coordenação Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 22. e os projetos de reform a.

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agente, mesmo depois de sua revogação, referida lei continuará a regular os fatos ocorridos durante a sua vigência (ultratividade da lei processual penal mista mais benéfica); na hipótese de novatio legis in mellius, referida norma será dotada de caráter retroativo, a ela se conferindo o poder de retroagir no tempo, a fim de regular os fatos ocorridos anteriormente a sua vigência. São inúmeros os exemplos de normas processuais materiais que têm se sucedido no tem­ po.151 Vejamos alguns deles. 5.1. Lei n° 9.099/95 e seu caráter retroativo De acordo com o art. 90 da Lei n° 9.099/95, as disposições da Lei dos Juizados Especiais Criminais não seriam aplicáveis aos processos penais cuja instrução já estivesse iniciada. Dis­ cutiu-se, à época, se seria possível que esse dispositivo restringisse a aplicação da referida lei aos processos penais cuja instrução já estivesse em curso. Sem dúvida alguma, trata-se a Lei n° 9.099/95 de norma processual híbrida ou mista, por­ quanto reúne dispositivos de natureza genuinamente processual e de natureza material. De fato, no tocante ao procedimento sumaríssimo ali previsto, fica evidente que se aplica o art. 2o do CPP, já que se trata de norma genuinamente processual. Não obstante, não se pode perder de vista que a Lei n° 9.099/95 também introduziu no ordenamento jurídico institutos despenalizadores que produzem nítidos reflexos no exercício do jus puniendi, tais como a composição civil dos danos, a transação penal, a exigência de representação para os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa e a suspensão condicional do processo. A título de exemplo, basta pensar que o cumprimento das condições fixadas na proposta de suspensão condicional do processo acarreta a extinção da punibilidade (Lei n° 9.099/95, art. 89, § 5o). Na mesma linha, a composição civil dos danos é causa de renúncia ao direito de queixa ou representação (Lei n° 9.099/95, art. 74, parágrafo único). Diante dessa natureza mista da Lei n° 9.099/95, o Supremo Tribunal Federal acabou por concluir que as normas de direito penal nela inseridas que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5o, XL, da Constituição federal. Assim, conferiu interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réu contidas na citada lei.152 Seguindo essa linha de raciocínio, não se pode querer emprestar caráter retroativo ao art. 90-A da Lei n° 9.099/95. Explica-se: por força da Lei n° 9.839/99, foi inserido o art. 90-A à Lei n° 9.099/95, que passou a dispor: “As disposições da Lei dos Juizados Especiais Criminais não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”. Ao suprimir a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados no âmbito da Justiça Militar, fica evidente que a Lei n° 9.839/99 tem natureza processual material, ou seja, cuida-se de norma que, embora disciplinada em diploma processual penal, produz reflexos no ius libertatis do agente, pois priva o agente do gozo de institutos despenalizadores como a composição civil dos danos, a transação penal, a representação nos crimes de lesão corporal leve e culposa e a suspensão condicional do processo. Como conseqüência, o critério de direito intertemporal a ser aplicado não é o da aplicação imediata da norma processual (íempus regit actum), constante do art. 2o do CPP, mas sim o 151

Para a análise da discussão em torno das Leis 12.015/09 e 12.033/09, que modificaram a espécie de ação penai nos crimes contra a dignidade sexual e injúria racial, respectiva mente, remetemos o leitor ao capítulo referente à ação penal. No tocante à supressão das prisões decorrentes de pronúncia e de sentença condenatória recorrível, remetemos o leitor ao tópico pertinente, inserido no capítulo da prisão cautelar.

152 STF, Pleno, ADI 1.719-9, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 18/06/2007, DJe 72 02/08/2007.

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critério da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Assim, como a lei tem natureza nitidamente gravosa, pois priva o autor de crime militar da incidência dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados, há de se concluir que o art. 90-A só se aplica aos crimes militares cometidos a partir do dia 28 de setembro de 1999, data da vigência da Lei n° 9.839/99.153 5.2. Lei n° 9.271/96 e nova redação do art. 366: suspensão do processo e da prescrição Outro exemplo interessante de norma processual material diz respeito à Lei n° 9.271/96, que conferiu nova redação ao art. 366 do CPP. Em sua redação original, o art. 366 do CPP previa que o processo seguiria à revelia do acusado que, citado inicialmente ou intimado para qualquer ato do processo, deixasse de comparecer sem motivo justificado. Portanto, caso o acusado fosse citado por edital e não comparecesse, era possível que fosse condenado à revelia, bastando que o juiz providenciasse a nomeação de defensor técnico. Com a entrada em vigor da Lei n° 9.271/96, o art. 366 do CPP passou a ter a seguinte redação: “Se o acusado, citado por edital, não compa­ recer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”. Como a nova redação conferida ao art. 366 do CPP pela Lei n° 9.271/96 contempla regras de direito processual (suspensão do processo) e de direito material (suspensão da prescrição), grande polêmica foi formada quanto à aplicação imediata da lei aos processos em andamento à época. Formaram-se três posições: 1) o art. 366 teria aplicação aos processos em curso à época, tanto no que se refere à sus­ pensão do processo como à suspensão do prazo prescricional; 2) seria possível a aplicação imediata da norma processual referente à suspensão do processo, mas não haveria, em relação a fatos anteriores, a suspensão da prescrição; 3) não haveria aplicação imediata, só sendo atingidos pela nova lei os fatos cometidos após a sua vigência. No Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça acabou prevalecendo a última posição, sob o argumento de que, por ser mais grave a norma que manda suspender a prescrição (novaíio legis in pejus), não poderia retroagir, e, por isso, o artigo não poderia incidir sobre fatos anteriores.154 5.3. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e sua aplicabilidade imediata aos processos em andamento Com a reforma processual de 2008, houve profundas alterações quanto ao procedimento do júri e quanto ao procedimento comum, produzidas pelas Leis 11.689/08 e 11.719/08, respectivamente. Essas leis novas, de caráter genuinamente processual, não foram aplicadas aos processos já concluídos, respeitando-se, assim, os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior. De seu turno, é evidente que as leis novas foram aplicadas aos processos que se iniciaram após sua entrada em vigor. A discussão guarda relevância quanto aos processos que já estavam em andamento quando do início da vigência da Lei n° 11.689/08 (09 de agosto de 2008) e 11.719/08 (22 de agosto de 2008): continuariam eles sendo regidos pela legislação pretérita, que vigorava no início do

153

Com esse entendimento: STF, 1§ Turma, HC 79.390/RJ, Rei. Min. limar Galvão, j. 19/10/1999, DJ 19/11/1999. E ainda: STJ - AgRg no HC 60.081/SP - 6§ Turma - Rei. Min. Nilson Naves - DJe 26/05/2008.

154 STF, 1§ Turma, HC 83.864/DF, Rei. Min. Sepulveda Pertence, j. 20.04.2004, DJ 21.05.2004.

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procedimento, ou passariam a ter o seu curso regido pelas novas leis? A fim de solucionar o problema, três sistemas distintos são apontados pela doutrina:155 a) Sistema da unidade processual: apesar de se desdobrar em uma série de atos distintos, o processo apresenta uma unidade. Portanto, somente pode ser regulamentado por uma única lei. Essa lei deve ser a lei antiga, já que, fosse possível a aplicação da lei nova, esta teria efeitos retroativos. Assim, por esse sistema, a lei antiga tem caráter ultrativo; b) Sistema das fases processuais: por força desse sistema, cada fase processual pode ser regulada por uma lei diferente. Supondo, assim, a existência de sucessivas leis processuais no tempo, as fases postulatória, ordinatória, instrutória, decisória e recursal poderiam ser discipli­ nadas por leis distintas; c) Sistema do isolamento dos atos processuais: a lei nova não atinge os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior, porém é aplicável aos atos processuais que ainda não foram praticados, pouco importando a fase processual em que o feito se encontrar. Como se percebe pela leitura do art. 2o do CPP, é esse o sistema adotado pelo ordenamento processual penal. Afinal de contas, de acordo com o art. 2o do CPP, “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Considerando-se, então, que o sistema adotado pelo CPP é o do isolamento dos atos pro­ cessuais, conclui-se que as novas leis do procedimento comum e do procedimento do júri não foram aplicadas aos atos processuais anteriormente realizados, regendo-se, por elas, todavia, os atos processuais que ainda não haviam sido praticados quando de sua vigência. Logo, ainda que o recebimento da denúncia tivesse ocorrido antes do advento das Leis 11.689 e 11.719, não há constrangimento ilegal na adoção dos ritos introduzidos por estes diplomas, tendo em vista que, no âmbito do direito processual penal, a aplicação da lei no tempo é regrada pelo princípio do efeito imediato, representado pelo brocardo tempus regit actum, conforme estabelece o art. 2o do CPP.156 5.4. Lei n° 12.403/11 e o novo regramento quanto às medidas cautelares de natureza pessoal Vários dispositivos legais modificados pela Lei n° 12.403/11, a qual será objeto de estudo detalhado no Título relativo às Medidas Cautelares de natureza pessoal, repercutem diretamente no ius libertatis do agente, ora para beneficiar, ora para prejudicá-lo. Exemplificando, suponha-se que, em data de 04 de julho de 2011, data da vigência da Lei n° 12.403/11, determinado indivíduo estivesse preso preventivamente por conveniência da instrução criminal pela prática de suposto crime de furto simples, cuja pena é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, esta prisão pre­ ventiva tomou-se ilegal, pois desprovida de fundamento legal, já que a nova redação do art. 313, inciso I, do CPP, norma processual material de caráter benéfico, permite a decretação da prisão preventiva apenas em relação a crimes dolosos punidos com pena máxima superior a 4 (quatro) anos, ressalvadas as hipóteses de reincidente em crimes dolosos, casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, ou quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa e esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la. Impõe-se, pois, o reconhecimento da ilegalidade de tal prisão preventiva, o que, no entanto, não impede a decretação de medida cautelar diversa da prisão, desde que presentes 155

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria g e ral do 18§ ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2002. p. 98.

processo.

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Nesse sentido: STJ, 5^ Turma, HC 123.492/MG, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 17/09/2009, DJe 13/10/2009.

TITULO 1 • N O Ç Õ E S IN TR O D U TÓ RIA S

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o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, já que, em relação a estas, basta que à infração penal seja cominada pena privativa de liberdade (CPP, art. 283, § Io). Lado outro, quando nos deparamos com uma mudança gravosa, o caminho será o inverso. É o que ocorre com a nova redação do art. 310, parágrafo único, do CPP. Antes das mudanças, referido dispositivo permitia a concessão de liberdade provisória sem fiança quando o juiz veri­ ficasse, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, e seu propósito de revitalizar a fiança, tal espécie de liberdade provisória sem fiança foi suprimida do Código de Processo Penal, já que a nova redação do art. 310, parágrafo único, permite a concessão do benefício apenas quando verificada a presença de causas excludentes da ilicitude. Ora, se foi suprimida hipótese de liberdade provisória sem fiança, não restam dúvidas que se trata de novatio legis in pejus, logo, a norma anterior mais benéfica ao agente continuará a regular os fatos delituosos ocorridos durante a sua vigência, mesmo depois de sua revogação (ultratividade da lei processual penal mista mais benéfica). Portanto, em relação aos crimes praticados até o dia 03 de julho de 2011, data anterior à entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, ainda que a persecução penal tenha início após esta data, o agente continuará a fazer jus à antiga liberdade provisória sem fiança quando verificada a inocorrência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva. 5.5. Normas processuais heterotópicas Há determinadas regras que, não obstante previstas em diplomas processuais penais, pos­ suem conteúdo material, devendo, pois, retroagir para beneficiar o acusado. Outras, no entanto, inseridas em leis materiais, são dotadas de conteúdo processual, a elas sendo aplicável o critério da aplicação imediata (tempus regit actum). É aí que surge o fenômeno denominado de hetero­ topia, ou seja, situação em que, apesar de o conteúdo da norma conferir-lhe uma determinada natureza, encontra-se ela prevista em diploma de natureza distinta. Como observa Norberto Avena, a heterotopia “consiste na intromissão ou superposição de conteúdos materiais no âmbito de incidência de uma norma de natureza processual, ou vice-versa, produzindo efeitos em aspectos relacionados à ultratividade, retroatividade ou aplicação imediata {tempus regit actum) da lei”.157 Tais normas não se confundem com as normas processuais materiais. Enquanto a heterotópica possui uma determinada natureza (material ou processual), em que pese estar incorporada a diploma de caráter distinto, a norma processual mista ou híbrida apresenta dupla natureza, vale dizer, material em uma determinada parte e processual em outra. Como exemplos de disposições heterotópicas, o referido autor cita o direito ao silêncio assegurado ao acusado em seu interro­ gatório, o qual, apesar de previsto no CPP (art. 186), possui caráter nitidamente assecuratório de direitos (material), assim como as normas gerais que trataram da competência da Justiça Federal, que, conquanto previstas no art. 109 da Carta Magna, que é um diploma material, são dotadas de natureza evidentemente processual. 5.6. Vigência, validade, revogação, derrogação e ab-rogação da lei processual penal A lei processual penal nasce como todas as demais leis, ou seja, deve ser proposta, dis­ cutida, votada e aprovada pelo Congresso Nacional. Após ser aprovada, a lei processual penal deve ser promulgada (ato legislativo pelo qual se atesta a existência de uma lei), sancionada pelo Presidente da República e publicada.

157 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 2S ed. Rio de Janeiro: Editora Método, 2010. p. 65.

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A vigência da lei processual penal também segue o mesmo regramento das demais leis, isto é, a lei entra em vigor na data de sua publicação ou no dia posterior à vacância, quando assim o estabelecer o legislador. Sobre o assunto, o art. 8o, caput, da Lei Complementar n° 95/98, com redação dada pela LC n° 107/2001, dispõe que a vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contem­ plar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão. Ademais, segundo o art. 8o, § Io, da LC n° 95/98, “a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral”. Se a lei nada disser sobre sua vigência, entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação. Nessa hipótese, a vacatio legis (período próprio para o conhecimento do conteúdo de uma norma pela sociedade em geral, antes de entrar em vigor) será de 45 (quarenta e cinco) dias, nos exatos termos do art. Io da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decre­ to-Lei n° 4.657/42, com redação dada pela Lei n° 12.376/10). Uma vez em vigor, a lei processual penal vigora formalmente até que seja revogada por outra. Assim, revogação significa a cessação da vigência formal da lei, ou seja, a norma pro­ cessual penal deixa de integrar o ordenamento jurídico. Quanto a sua abrangência, a revogação compreende a ab-rogação (revogação total) e a derrogação (revogação parcial). Essa revogação pode ser expressa ou tácita. Será expressa quando a lei nova retirar a força da lei precedente de modo categórico: é o que aconteceu com a nova lei de identificação crimi­ nal (Lei n° 12.037/09), cujo art. 9o revogou expressamente a antiga lei de identificação (Lei n° 10.054/00). A revogação é tácita quando a lei nova se mostrar incompatível com a lei anterior. Exemplificando, foi o que aconteceu em face do advento do art. 5o do Código Civil, que fixou a maioridade a partir dos 18 (dezoito) anos completos, do que resultou a revogação tácita dos dispositivos processuais penais que previam privilégios para o acusado maior de 18 (dezoito) e menor de 21 (vinte e um) anos. Por fim, não se pode confundir vigência com validade. Para que uma lei processual penal entre em vigor, basta que seja aprovada pelo Congresso Nacional, sancionada pelo Presidente da República e publicada no Diário Oficial: superado eventual período de vacatio legis, inicia-se sua vigência. Para que seja considerada válida, todavia, referida lei deve se mostrar compatível com a Constituição Federal e com as Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos. 6. INTERPRETAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL Interpretar é tentar buscar o efetivo alcance da norma, ou seja, descobrir o seu significado, o seu sentido, a sua exata extensão normativa. É procurar descobrir aquilo que ela tem a nos dizer com a maior precisão possível. Toda lei necessita de interpretação, ainda que seja clara. O in clans non fit interpretativo é uma falácia, até mesmo porque para se concluir que a lei é clara já se faz necessária uma interpretação. Como se percebe, o que se procura com a interpretação é o conteúdo da lei, a inteligência e a vontade da lei (mens legis), não a intenção do legislador (mens legislatoris), embora esta última constitua um dos critérios de interpretação, porquanto, uma vez em vigor, a lei passa a gozar de existência autônoma. Em princípio, a interpretação da lei processual penal está sujeita às mesmas regras de her­ menêutica que disciplinam a interpretação das leis em geral. O que pretende o legislador com o art. 3o do CPP (“a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica,

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bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”) é simplesmente demarcar a distinção entre o direito penal e o processo penal: naquele, não se admite qualquer forma de ampliação hermenêutica dos preceitos incriminadores, muito menos o emprego da analogia em prejuízo do acusado (in malam partem); no processo penal, todavia, o art. 3o do CPP dispõe que é possível não apenas a interpretação extensiva e a aplicação analógica, mas também o suplemento dos princípios gerais de direito. 6.1. Interpretação extensiva Quanto ao resultado, a interpretação pode ser declaratória, restritiva, extensiva ou progressiva. Na interpretação declaratória o intérprete não amplia nem restringe o alcance da norma, porquanto o significado ou sentido da lei corresponde exatamente à sua literalidade. Limita-se, pois, a declarar a vontade da lei. Interpretação restritiva é aquela em que o intérprete diminui, restringe o alcance da lei, uma vez que a norma disse mais do que efetivamente pretendia dizer. De seu turno, na interpretação extensiva, expressamente admitida pelo art. 3o do CPP, a lei disse menos do que deveria dizer. Por conseqüência, para que se possa conhecer a exata ampli­ tude da lei, o intérprete necessita ampliar o seu campo de incidência. É o que ocorre, a título de exemplo, com as hipóteses de cabimento do RESE previstas no art. 581 do CPP. Ignorando o fato de que o Código de Processo Penal sofreu diversas alterações nos últimos anos - interrogatório, provas, procedimento comum, procedimento do júri e medidas cautelares de natureza pessoal -, sem que houvesse qualquer adequação das hipóteses de cabimento do RESE à nova sistemática processual penal, parte minoritária da doutrina ainda insiste em sustentar que a enumeração das hipóteses de cabimento do recurso em sentido estrito prevista no art. 581 é taxativa, não admitindo ampliação para contemplar outras hipóteses. Prevalece, no entanto, o entendimento no sentido da possibilidade de interpretação extensiva das hipóteses de cabimento do recurso em sentido estrito. Na verdade, o que não se admite é a ampliação para casos em que a lei evi­ dentemente quis excluir. Exemplificando, na hipótese de recebimento da peça acusatória, não se pode cogitar do cabimento do RESE, já que ficou clara a intenção do legislador de só admitir o recurso quando houver o não recebimento da inicial acusatória. Porém, como a lei prevê o cabimento de RESE contra a decisão que não receber a denúncia ou a queixa (CPP, art. 581, I), não há razão lógica para não se admitir o cabimento do recurso também para a hipótese de rejeição do aditamento. Cuida-se, na verdade, de omissão involuntária do legislador, que pode ser suprida pela interpretação extensiva. Por fim, considera-se interpretação progressiva (adaptativa ou evolutiva) como aquela que busca ajustar a lei às transformações sociais, jurídicas, científicas e até mesmo morais que se su­ cedem no tempo e que acabam por interferir na efetividade que buscou o legislador com a edição de determinada norma processual penal. Vejamos um exemplo: com o advento da Constituição Federal, outorgando ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput), e à Defensoria Pública a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (CF, art. 134), houve forte discussão quanto à recepção do art. 68 do CPP, já que, ao promover a ação civil ex delicto em favor de vítima pobre, o Ministério Público estaria agindo em nome próprio na defesa de interesse alheio, de natureza patrimonial e, portanto, disponível. Chamado a se pronunciar a respeito do assunto, o Supremo entendeu que o dispositivo seria dotado de inconstitucionalidade progressiva (ou temporária), ou seja, de modo a viabilizar o direito à assistência jurídica e judiciária dos necessitados, assegurado pela Constituição Federal de 1988 (art. 5o, LXXIV),

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enquanto não houvesse a criação de Defensoria Pública na Comarca ou no Estado, subsistiria, temporariamente, a legitimidade do Ministério Público para a ação de ressarcimento e de exe­ cução prevista no art. 68 do CPP, sendo irrelevante o fato de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento.158 6.2. Analogia A aplicação analógica a que se refere o art. 3o do CPP pode ser definida como uma forma de autointegração da norma, consistente em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a dis­ posição legal relativa a um caso semelhante. Afinal, onde impera a mesma razão, deve imperar o mesmo direito. Não se trata, a analogia, de método de interpretação, mas sim de integração. Em outras palavras, como ao juiz não é dado deixar de julgar determinada demanda sob o argumento de que não há norma expressa regulamentando-a - non liquet (arrt. 140 do novo CPC) -, há de fazer uso dos métodos de integração, dentre eles a analogia, com o objetivo de suprir eventuais lacunas encontradas no ordenamento jurídico. Diferencia-se a analogia da interpretação extensiva porque naquela o caso a ser solucionado não está compreendido na hipótese de incidência da regra a ser aplicada, daí por que se fala em aplicação analógica, e não em interpretação analógica. A título de exemplo, como o Código de Processo Penal nada dispõe acerca da superveniência de lei processual alterando regras de competência, admite-se a aplicação subsidiária do novo Código de Processo Civil, que dispõe sobre a perpetuatio jurisdictionis em seu art. 43 (“Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta”). Quando o art. 3o do CPP dispõe que a lei processual penal admite o emprego da analogia, há de se ficar atento à verdadeira natureza da norma, ou seja, se se trata de norma genuinamente processual penal ou se, na verdade, estamos diante de norma processual mista dispondo sobre a pretensão punitiva e produzindo reflexos no direito de liberdade do agente. Afinal, na hipótese de estarmos diante de norma processual mista versando sobre a pretensão punitiva, não se pode admitir o emprego da analogia em prejuízo do acusado, sob pena de violação ao princípio da legalidade. Bom exemplo disso diz respeito à sucessão processual prevista no art. 31 do CPP. Segundo o referido dispositivo, no caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. Por força do disposto no art. 226, § 3o, da Constituição Federal (“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”), grande parte da doutrina insere no rol dos sucessores o companheiro. Logo, a ordem seria cônjuge (ou companheiro), ascendente, descendente ou irmão. A nosso ver, todavia, não se pode incluir o companheiro nesse rol, sob pena de indevida analogia in malam partem. A inclusão do companheiro ou da companheira nesse rol de sucessores produz reflexos no direito de punir do Estado, já que, quanto menos sucessores existirem, maior é a possibilidade de que o não exercício do direito de representação ou de queixa no prazo legal acarrete a extinção da punibilidade pela decadência. Portanto, cuidando-se de regra

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Para mais detalhes acerca da ação civil ex delicto, remetemos o leitor ao Título referente à ação penal.

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de direito material, não se pode querer incluir o companheiro, sob pena de indevida analogia in malam partem, malferindo o princípio da legalidade (CF, art. 5o, XXXIX).159160 6.3. Distinção entre analogia e interpretação analógica Como o legislador não pode prever todas as situações que poderiam ocorrer na vida em sociedade e que seriam similares àquelas por ele já elencadas, a interpretação analógica permite, expressamente, a ampliação do alcance da norma. Atento ao princípio da legalidade, o legislador detalha as situações que pretende regular, estabelecendo fórmulas casuísticas, para, na seqüência, por meio de uma fórmula genérica, permitir que tudo aquilo que a elas for semelhante também possa ser abrangido pelo mesmo dispositivo legal. Em síntese, a uma fórmula casuística, que servirá de norte ao intérprete, segue-se uma fórmula genérica. A título de exemplo, ao inserir no art. 185, § 2o, do CPP a possibilidade de utilização da videoconferência, a Lei n° 11.900/09 teve o cuidado de autorizar a realização do interrogató­ rio por outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real. Como se percebe, atento aos avanços da tecnologia, o próprio dispositivo legal admite a utilização de outras modalidades de transmissão de sons e imagens em tempo real que porventura venham a surgir, desde que semelhantes à videoconferência. Diversamente da analogia, que é método de integração, a interpretação analógica, como o próprio nome já sugere, funciona como método de interpretação. Logo, neste caso, apesar de não ser explícita, a hipótese em que a norma será aplicada está prevista no seu âmbito de incidência, já que o próprio dispositivo legal faz referência à possibilidade de aplicação de seu regramento a casos semelhantes aos por ele regulamentados. 6.4. Aplicação supletiva e subsidiária do novo Código de Processo Civil ao processo penal De acordo com o art. 15 do novo CPC, na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente}60 Interpretação literal do referido dispositivo pode nos levar à conclusão (equivocada) de que o novo Código de Processo Civil só pode ser aplicado supletiva e subsidiariamente aos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, ou seja, como o dispositivo não faz qualquer menção aos processos criminais, ter-se-ia como inviável a aplicação residual do novo CPC aos processos de natureza criminal. No entanto, não há nenhuma razão lógica para se afastar a aplicação do novo CPC ao processo penal, até mesmo porque tal prática já era - e continuará sendo - recorrente na vigência do antigo (e do novo) CPC. Exemplificativamente, como o Código de Processo Penal nada diz acerca do procedimento a ser utilizado para a produção da prova antecipada prevista no art. 225, há de se admitir a aplicação subsidiária dos arts. 381a 383 do novo CPC. Portanto, quando o art. 15 do novo CPC faz referência apenas aos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, deve-se concluir que houve uma omissão

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Como se sabe, o Direito Penal é regido pelo princípio da legalidade, não havendo crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, nos termos do art. 5e, XXXIX, da CF, e do art. 2^ do CP. Por força desse postulado, não se admite analogia em matéria penal quando utilizada de modo a prejudicar o acusado. A título de exemplo, se o Código Penal prevê que o crime de dano será qualificado quando cometido contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia m ista (CP, art. 163, parágrafo único, III), não se pode considerar qualificado eventual crime de dano praticado em detrimento da Caixa Econômica Federal, espécie de empresa pública federal, sob pena de indevida analogia in m alam partem . Nessa linha: STJ, 5ã Turma, RHC 57.544/SP, Rei. Min. Leopoldo de Arruda Raposo - Desem­ bargador convocado do TJ/PE -, j. 06/08/2015, DJe 18/08/2015.

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Etimologicamente, existe uma diferença entre aplicação supletiva e aplicação subsidiária. A primeira se destina a suprir algo que não existe em uma determinada legislação, enquanto a subsidiária serve de ajuda ou de subsídio para a interpretação de alguma norma ou mesmo um instituto.

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involuntária do legislador, a ser suprida pela interpretação extensiva para fins de ser reconhecida a possibilidade de aplicação supletiva e subsidiária do novo diploma processual civil ao processo penal (comum e militar), desde que a interpretação dada à regra utilizada para suprir a omissão da lei processual penal se coadune com preceitos desse mesmo regramento processual penal. Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil em 2016, há de se ter extrema cautela com a sua aplicação ao processo penal. Como se trata de diploma processual muito mais moderno que o nosso Código de Processo Penal, que entrou em vigor em Io de janeiro de 1942, não temos dúvidas em afirmar que haverá grande euforia e entusiasmo com a possibilidade de aplicação de seus institutos ao processo penal brasileiro. No entanto, a aplicação do novo CPC ao processo penal só pode ocorrer de maneira subsidiária. O emprego da analogia permitido pelo art. 3o do CPP pressupõe a inexistência de lei disciplinando matéria específica, constatando-se, pois, a lacuna involuntária da lei. Por ser a analogia recurso de autointegração (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, art. 4o), e não instrumento de derrogação de texto ou de procedimento legal, o emprego da analogia só pode ser admitido quando a lei for omissa. Vejamos alguns exemplos. Consoante disposto no art. 219 do novel diploma processual civil, na contagem de prazos processuais em dias, computar-se-ão somente os dias úteis. Sem dúvida alguma, se no âmbito processual civil a contagem dos prazos processuais leva em consideração apenas os dias úteis, o ideal seria estender esse mesmo raciocínio ao processo penal, até mesmo para uniformizarmos a contagem de prazos processuais, independentemente da natureza do feito (cível, criminal, trabalhista, eleitoral,, etc). No entanto, o art. 798, caput, do CPP, é categórico ao afirmar que todos os prazos serão contínuos e peremptórios, não se interrompendo por férias, domingo ou dia feriado. Logo, como a lei processual não foi omissa em relação ao assunto, parece-nos inviável sustentar a aplicação do art. 219 do novo CPC ao processo penal, até mesmo porque a analogia pressupõe a omissão do legislador, o que, in casu, não teria ocorrido. Pelo contrário. A lei processual penal é expressa no sentido de que os prazos processuais são contínuos e pe­ remptórios, leia-se, são computados dias úteis e não úteis, com a ressalva de que, na hipótese de o prazo terminar em domingo ou feriado, considera-se prorrogado até o dia útil imediato (CPP, art. 798, § 3o). Por ser a analogia recurso de autointegração (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, art. 4o), e não instrumento de derrogação de texto ou de procedimento legal, seu emprego só pode ser admitido quando a lei for omissa. Tendo em conta que o CPP não é omisso em relação ao cômputo dos dias úteis para a contagem de prazos processuais, e consi­ derando que não consta das disposições finais e transitórias do novo CPC (arts. 1045 a 1072) qualquer referência à revogação do art. 798 do CPP, nem tampouco quanto à aplicação da regra do art. 219 ao processo penal, revela-se inviável estender a referida regra aos feitos criminais.161 Esse raciocínio também é válido para os Juizados Especiais Criminais. É bem verdade que, por força da Lei n. 13.728/18, foi acrescentado à Lei n. 9.099/95 o art. 12-A, nos seguintes termos: “Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, para a prática de qualquer ato processual, inclusive para a interposição de recursos, computar-se-ão somente os dias úteis”. To­ davia, não se pode perder de vista que o art. 12-A está inserido no Capítulo II da Lei n. 9.099/95, que versa sobre os Juizados Especiais Cíveis, e não no Capítulo III, atinente aos Juizados Espe­ ciais Criminais. De mais a mais, é fato que o novel dispositivo foi introduzido na Lei n. 9.099/95 161. No sentido de que não se aplica ao processo penal a regra do art. 219 do novo CPC, porquanto há regra expressa em sentido diverso, leia-se, o art. 798 do CPP: STF, 2- Turma, HC 134.554 Rcon/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 123 14/06/2016. Na mesma linha: STJ, 3ã Seção, AgRg na Rcl 30.714/PB, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 27/04/2016, DJe 04/05/2016.

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porque havia quem entendesse que o art. 219 do novo CPC não era aplicável aos Juizados Cíveis. No âmbito criminal, como o art. 92 da Lei n. 9.099/95 manda aplicar aos Juizados Especiais Criminais, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal, e como este tem dis­ positivo expresso (art. 798) em sentido contrário aos arts. 12-A da Lei n. 9.099/95 e 219 do CPC, não se pode admitir a contagem dos prazos levando-se em conta exclusivamente os dias úteis. Noutro giro, ante o silêncio do CPP em relação ao assunto, é perfeitamente possível a aplicação subsidiária ao processo penal do incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 976 a 987 do novo CPC), que, doravante, poderá ser instaurado em qualquer Tribunal, inclusive nos Tribunais de Justiça dos Estados e nos Tribunais Regionais Federais. A instauração desse incidente é cabível quando houver, simultaneamente: a) efetiva repetição de processos que con­ tenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Admitido o incidente, o relator determinará a suspensão dos processos pendentes que tramitam no Estado ou na Região, conforme o caso. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: a) a todos os processos que versem sobre idêntida questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou Região; b) aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo se houver a revisão da tese jurídica firmada no incidente. Como se percebe, a aplicação desse in­ cidente ao processo penal vem ao encontro do princípio da celeridade e da garantia da razoável duração do processo, contribuindo para diminuir a carga de recursos pendentes de julgamento pelos Tribunais. Logo, desde que a controvérsia em diversos processos criminais não esteja relacionada à matéria de fato ou probatória, mas sim à questão de direito, esse incidente poderá ser suscitado com o objetivo de evitar decisões contraditórias entre os juízos subordinados àquele Tribunal, preservando-se, assim, a isonomia e a segurança jurídica.

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1. CONCEITO DE INQUÉRITO POLICIAL Procedimento administrativo inquisitório e preparatório, presidido pela autoridade policial, o inquérito policial consiste em um conjunto de diligências realizadas pela polícia investigativa objetivando a identificação das fontes de prova1e a colheita de elementos de informação quan­ to à autoria e materialidade da infração penal, a fim de possibilitar que o titular da ação penal possa ingressar em juízo. Trata-se de um procedimento de natureza instrumental, porquanto se destina a esclarecer os fatos delituosos relatados na notícia de crime, fornecendo subsídios para o prosseguimento ou o arquivamento da persecução penal. De seu caráter instrumental sobressai sua dupla função: a) preservadora: a existência prévia de um inquérito policial inibe a instauração de um processo penal infundado, temerário, resguardando a liberdade do inocente e evitando custos desneces­ sários para o Estado; b) preparatória: fornece elementos de informação para que o titular da ação penal ingresse em juízo, além de acautelar meios de prova que poderiam desaparecer com o decurso do tempo. 2. NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO POLICIAL Trata-se de procedimento de natureza administrativa. Não se trata, pois, de processo judi­ cial, nem tampouco de processo administrativo, porquanto dele não resulta a imposição direta de nenhuma sanção. Nesse momento, ainda não há o exercício de pretensão acusatória. Logo, não se pode falar em partes stricto sensu, já que não existe uma estrutura processual dialética, sob a garantia do contraditório e da ampla defesa. Apesar de o inquérito policial não obedecer a uma ordem legal rígida para a realização dos atos, isso não lhe retira a característica de procedimento, já que o legislador estabelece uma seqüência lógica para sua instauração, desenvolvimento e conclusão. Por sua própria natureza, o procedimento do inquérito policial deve ser flexível. Não há falar, em sede de investigação policial, em obediência a uma ordem predeterminada, rígida, o que não infírma sua natureza de procedimento, já que o procedimento pode seguir tanto um esquema rígido quanto flexível. Logo, como o inquérito policial é mera peça informativa, eventuais vícios dele constantes não têm o condão de contaminar o processo penal a que der origem. Havendo, assim, eventual irregularidade em ato praticado no curso do inquérito, mostra-se inviável a anulação do processo penal subsequente. Afinal, as nulidades processuais concernem, tão somente, aos defeitos de ordem jurídica que afetam os atos praticados ao longo da ação penal condenatória.2 1

Cometida uma infração penal, tud o aquilo que possa servir para a sua elucidação pode ser conceituada como fonte

de prova. Derivam do fato delituoso em si, independentemente da existência do processo, ou seja, são anteriores ao processo, sendo que sua introdução no inquérito policial se dá através dos elementos de informação. Exempli­ ficando, suponha-se que determinado crime de homicídio tenha sido praticado em uma rua pouco movimentada. O primeiro passo da investigação é exatamente buscar pessoas ou coisas que possam contribuir para o esclareci­ mento do fato delituoso e de sua autoria. Caberá, então, à autoridade policiai diligenciar no sentido de localizar o cadáver, a arma usada para a prática do crime, pessoas que tenham visto o provável autor do delito, etc. 2

Nesse sentido: STF, U Turma, HC 94.034/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 10/06/2008, DJe 167 09/04/2008. E ainda: STF, 2- Turma, HC 85.286/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 29/11/2005, DJ 24/03/2006. Também é entendimento

no

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Logicamente, caso uma determinada prova tenha sido produzida com violação a normas de direito material, há de ser reconhecida sua ilicitude (CF, art. 5o, LVI), com o seu conseqüente desentranhamento dos autos, bem como de todas as demais provas que com ela guardem certo nexo causai (teoria dos frutos da árvore envenenada). Isso, todavia, não significa dizer que todo o inquérito será considerado nulo. Afinal, é possível que constem da investigação policial elementos de informação que não foram contaminados pela ilicitude originária (teoria da fonte independente).3 3. FINALIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL A partir do momento em que determinado delito é praticado, surge para o Estado o poder-dever de punir o suposto autor do ilícito. Para que o Estado possa deflagrar a persecução criminal em juízo, é indispensável a presença de elementos de informação quanto à autoria e quanto à materialidade da infração penal. De fato, para que se possa dar início a um processo criminal contra alguém, faz-se necessária a presença de um lastro probatório mínimo apontando no sentido da prática de uma infração penal e da probabilidade de o acusado ser o seu autor. Aliás, o próprio CPP, em seu art. 395, inciso III, com redação dada pela Lei n° 11.719/08, aponta a ausência de justa causa para o exercício da ação penal como uma das causas de rejeição da peça acusatória. Daí a importância do inquérito policial, instrumento geralmente usado pelo Estado para a colheita desses elementos de informação, viabilizando o oferecimento da peça acusatória quando houver justa causa para o processo (fumus comissi delicti), mas também contribuindo para que pessoas inocentes não sejam injustamente submetidas às cerimônias degradantes do processo criminal. Esses elementos de informação colhidos no inquérito policial são decisivos para a formação da convicção do titular da ação penal sobre a viabilidade da acusação, mas também exercem papel fundamental em relação à decretação de medidas cautelares pessoais, patrimoniais ou probatórias no curso da investigação policial. De fato, para que medidas cautelares como a prisão preventiva ou uma interceptação telefônica sejam determinadas, é necessário um mínimo de elementos quanto à materialidade e autoria do delito. Além disso, também são úteis para fundamentar eventual absolvição sumária (CPP, art. 397). Diferencia-se o inquérito policial da instrução processual por esse motivo: enquanto a inves­ tigação criminal tem por objetivo a obtenção de dados informativos para que o órgão acusatório examine a viabilidade de propositura da ação penal, a instrução em juízo tem como escopo colher provas para demonstrar a legitimidade da pretensão punitiva ou do direito de defesa. Perceba-se que insistimos na assertiva de que a finalidade precípua do inquérito policial é a colheita de elementos de informação quanto à autoria e materialidade do delito. Mas por que elementos de informação e não prova? Com as alterações produzidas pela Lei n° 11.690/08, passou a constar expressamente do CPP a distinção entre prova e elementos informativos. De fato, eis a nova redação do art. 155 do CPP: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, dominante no STJ que eventual nulidade do inquérito policial não contamina a ação penal superveniente, vez que aquele é mera peça informativa, produzida sem o crivo do contraditório: STJ, 6a Turma, RHC 21.170/RS, Rei. Min. Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF I a Região), j. 04/09/2007, DJ 08/10/2007 p. 368. Negando a anulação de processo penal em razão de suposta irregularidade verificada em inquérito policial, in casu, em virtude de o procedimento ter sido presidido por Delegado alegadamente suspeito: STF, 2a Turma, RHC 131.450/ DF, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 03/05/2016. 3

Para mais detalhes acerca do conceito de provas ilícitas e das teorias dos frutos da árvore envenenada e da fonte independente, vide capítulo pertinente às provas.

TÍTULO 2 • INV ESTIGA ÇÃO PRELIM INAR

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não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (nosso grifo).4 Diante da nova redação do art. 155 do CPP, elementos de informação são aqueles colhidos na fase investigatória, sem a necessária participação dialética das partes. Dito de outro modo, em relação a eles, não se impõe a obrigatória observância do contraditório e da ampla defesa, vez que nesse momento ainda não há falar em acusados em geral na dicção do inciso LV do art. 5o da Constituição Federal. Apesar de não serem produzidos sob o manto do contraditório e da ampla defesa, tais elementos informativos são de vital importância para a persecução penal, pois, além de auxiliar na formação da opinio delicti do órgão da acusação, podem subsidiar a decretação de medidas cautelares pelo magistrado ou fundamentar uma decisão de absolvição sumária (CPP, art. 397). De seu turno, a palavra prova só pode ser usada para se referir aos elementos de convic­ ção produzidos, em regra, no curso do processo judicial, e, por conseguinte, com a necessária participação dialética das partes, sob o manto do contraditório (ainda que diferido) e da ampla defesa. O contraditório funciona, pois, como verdadeira condição de existência e validade das provas, de modo que, caso não sejam produzidas em contraditório, exigência impostergável em todos os momentos da atividade instrutória, não lhe caberá a designação de prova. A participação do acusador, do acusado e de seu advogado é condição sine qua non para a escorreita produção da prova, assim como também o é a direta e constante supervisão do órgão julgador, sendo que, com a inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal, o juiz que presidir a instrução deverá proferir a sentença (CPP, art. 399, § 2o). Funcionando a observância do contraditório como verdadeira condição de existência da prova, só podem ser considerados como prova, portanto, os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação dialética das partes. 4. VALOR PROBATÓRIO DO INQUÉRITO POLICIAL Como visto anteriormente, a finalidade do inquérito policial é a colheita de elementos de informação quanto à autoria e materialidade do delito. Tendo em conta que esses elementos de informação não são colhidos sob a égide do contraditório e da ampla defesa, deduz-se que o inquérito policial tem valor probatório relativo. Se esses elementos de informação são colhidos na fase investigatória, sem a necessária participação dialética das partes, ou seja, sem a obrigatória observância do contraditório e da ampla defesa, questiona-se acerca da possibilidade de sua utilização para formar a convicção do juiz em sede processual. Ao longo dos anos, sempre prevaleceu nos Tribunais o entendimento de que, de modo isolado, elementos produzidos na fase investigatória não podem servir de fundamento para um decreto condenatório, sob pena de violação ao preceito constitucional do art. 5o, inciso LV, que assegura aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. De fato, pudesse um decreto condenatório estar lastreado única e exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase investigatória, sem a necessária observância do contradi­ tório e da ampla defesa, haveria flagrante desrespeito ao preceito do art. 5o, LV, da Carta Magna. No entanto, tais elementos podem ser usados de maneira subsidiária, complementando a prova produzida em juízo sob o crivo do contraditório. Como já se manifestou o Supremo,

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Para mais detalhes acerca do conceito de provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, remetemos o leitor ao título referente às provas.

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“os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo”.5 A Lei n° 11.690/08, ao inserir o advérbio exclusivamente no corpo do art. 155, caput, do CPP acaba por confirmar a posição jurisprudencial que vinha prevalecendo. Destarte, pode-se dizer que, isoladamente considerados, elementos informativos não são idôneos para fundamen­ tar uma condenação. Todavia, não devem ser completamente desprezados, podendo se somar à prova produzida em juízo e, assim, servir como mais um elemento na formação da convicção do órgão julgador. Tanto é verdade que a nova lei não previu a exclusão física do inquérito policial dos autos do processo (CPP, art. 12). 5. ATRIBUIÇÃO PARA A PRESIDÊNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL A palavra “polícia” está longe de ser um termo inequívoco, uma vez que perfaz um gênero do qual podem ser extraídas diversas acepções. Assim, para identificar a que atividades ou atri­ buições ela se refere, é quase que indispensável acrescer-lhe algum adjetivo que a especifique, fazendo-se referência à polícia “administrativa”, polícia “judiciária”, polícia “investigativa”, etc. 5.1. Funções de polícia administrativa, judiciária e investigativa De acordo com Julio Fabbrini Mirabete, “a Polícia, instrumento da Administração, é uma instituição de direito público, destinada a manter e a recobrar, junto à sociedade e na medida dos recursos de que dispõe, a paz pública ou a segurança individual”.6À ela, segundo a doutrina majoritária, são atribuídas duas funções precípuas: a) Polícia Administrativa: trata-se de atividade de cunho preventivo, ligada à segurança, visando impedir a prática de atos lesivos à sociedade; b) Polícia Judiciária: cuida-se de função de caráter repressivo, auxiliando o Poder Judiciá­ rio. Sua atuação ocorre depois da prática de uma infração penal e tem como objetivo precípuo colher elementos de informação relativos à materialidade e à autoria do delito, propiciando que o titular da ação penal possa dar início à persecução penal em juízo. Nessa linha, dispõe o art. 4o, caput, do CPP, que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. Conquanto a doutrina, em sua maioria, faça referência à Polícia Judiciária como aquela à qual é atribuída a função de apurar as infrações penais e sua autoria, comungamos do en­ tendimento de que funções de polícia judiciária não se confundem com funções de polícia investigativa. A despeito do teor do art. 4o, caput, do CPP, a Constituição Federal deixa clara a diferença entre funções de polícia judiciária e funções de polícia investigativa. Basta perceber que, ao se referir às atribuições da Polícia Federal, a Carta Magna diferencia as funções de polícia investigativa, previstas no art. 144, § Io, I e II, das funções de polícia judiciária (CF, art. 144, § Io, inciso IV). Com efeito, enquanto os incisos I e II do § Io do art. 144 da Carta Magna outorgam à Polícia Federal atribuições para apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual

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STF, 2§ Turma, RE-AgR 425.734/MG, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 28/10/2005 p. 57. Em sentido semelhante: STF, 1? Turma, RE 287.658/MG, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 03/10/2003 p. 22; STF, 1^ Turma, HC 83.348/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 21/10/2003, DJ 28/11/2003.

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Processo penal.

18a ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 57.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei, bem como prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e descaminho, o inciso IV estabelece que a Polícia Federal destina-se a exercer, com exclusividade, as funções de Polícia Judiciária da União. Ora, veja-se que a função investigativa está descrita nos dois primeiros incisos, de maneira distinta das funções de polícia judiciária. Seguindo a mesma linha, o art. 144, § 4o, da Constituição Federal, prevê que a Polícia Civil tem funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais. Veja-se que há uma clara distinção entre funções de polícia judiciária e funções de apuração de infrações penais. Como se percebe, a própria Constituição Federal estabelece uma distinção entre as funções de polícia judiciária e as funções de polícia investigativa. Destarte, por funções de polícia inves­ tigativa devem ser compreendidas as atribuições ligadas à colheita de elementos informativos quanto à autoria e materialidade das infrações penais. A expressão polícia judiciária está rela­ cionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas, etc. Por se tratar de norma hierarquicamente superior, deve, então, a Constituição Federal, prevalecer sobre o teor do Código de Processo Penal (art. 4o, caput).1 Veja-se, então, que uma mesma Polícia pode exercer diversas funções. A título de exem­ plo, quando um Policial Militar anda fardado pelas ruas, age no exercício de funções de polícia administrativa, já que atua com o objetivo de evitar a prática de delitos. Por sua vez, supondo a prática de um crime militar por um policial militar do Estado de São Paulo, as investigações do delito ficarão a cargo da própria Polícia Militar em questão, cujo encarregado do Inquérito Policial Militar agirá no exercício de função de polícia investigativa. Por último, segundo o art. 8o, “c”, do CPPM, incumbe à polícia judiciária militar cumprir os mandados de prisão expedidos pela Justiça Militar, atribuição esta inerente às funções de polícia judiciária militar. Apesar de acreditarmos que a Constituição Federal estabelece uma distinção entre polícia judiciária e polícia investigativa, somos obrigados a admitir que prevalece na doutrina e na jurisprudência a utilização da expressão polícia judiciária para se referir ao exercício de ativi­ dades relacionadas à apuração da infração penal. Basta atentar para o teor da súmula vinculante n° 14 do Supremo: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.78 Independentemente dessa discussão, é certo dizer que as atividades investigatórias devem ser exercidas precipuamente por autoridades policiais, sendo vedada a participação de agentes estranhos à autoridade policial, sob pena de violação do art. 144, § Io, IV, da CF/1988, da Lei n° 9.883/1999, e dos arts. 4o e 157 e parágrafos do CPP. Por isso, os Tribunais vêm conside­ rando que a execução de atos típicos de polícia investigativa como monitoramento eletrônico e

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Nesse sentido: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e praxis. 1- ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010. p. 173. A Lei n2 12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, parece acolher essa terminologia ao dispor em seu art. 2, caput: "As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado".

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Perceba-se que a súmula não preza por uma terminologia muito apurada. Afinal, faz menção à com petência de órgão de polícia judiciária, quando se sabe que competência é a medida e o limite da jurisdição, parcela do poder de julgar outorgada aos juizes. Trata-se, portanto, de expressão inapropriada para se referir à parcela de poder distribuída às autoridades administrativas, tecnicamente chamada de atribuição. No sentido da distinção entre função de polícia judiciária - qual seja, a de auxiliar do Poder Judiciário -, e a de função investigatória, isto é, a de apurar infrações penais, confira-se: STJ, 6§ Turma, REsp 332.172/ES, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, Dje 04/08/2008.

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telemático, bem como ação controlada, por agentes de órgão de inteligência (v.g., ABIN) sem autorização judicial, acarreta a ilicitude da provas assim obtidas.9 5.2. Da atribuição em face da natureza da infração penal Estabelecida a distinção entre funções de polícia ostensiva, judiciária e investigativa, cumpre analisar a quem é atribuída a presidência do inquérito policial. Em regra, à autoridade policial, sendo a atribuição determinada, a princípio, pela natureza da infração penal praticada, valendo lembrar que eventual investigação policial em andamento somente poderá ser avocada ou re­ distribuída por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação (Lei n° 12.830/13, art. 2o, § 4o). Em se tratando de crime militar, a atribuição para as investigações recai sobre a autoridade de polícia judiciária militar, a quem compete determinar a instauração de inquérito policial mi­ litar (IPM), seja no âmbito das Polícias Militares ou dos Corpos de Bombeiros, nos crimes da alçada da Justiça Militar Estadual, seja no âmbito do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica, em relação aos crimes militares de competência da Justiça Militar da União. No caso de militares federais de corporações distintas, mas sujeitos à Justiça Militar da União (v.g., crime militar praticado em coautoria por um militar do Exército e outro da Aeronáutica), afigura-se possível uma interpretação extensiva do art. 97, parágrafo único, do CPPM, concluindo-se, então, que a atribuição para a presidência do IPM será determinada pela prevenção. Caso, todavia, o crime tenha sido cometido por um oficial da ativa do Exército e um soldado da Marinha, prevalece a atribuição da corporação à qual pertence o oficial da ativa, daí por que, nessa hipótese, o IPM deveria ser instaurado no âmbito do Exército.10 No caso de infrações penais de competência da Justiça Federal, a atribuição para a reali­ zação das investigações incide sobre a Polícia Federal. Afinal, de acordo com o art. 144, § Io, I, primeira parte, da Constituição Federal, à Polícia Federal incumbe a apuração de infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas. Ademais, de acordo com o art. 144, § Io, IV, da Carta Magna, cabe à Polícia Federal exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.11

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STJ, 59 Turma, HC 149.250/SP, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu - Desembargador convocado do TJ/RJ j. 07/06/2011, DJe 05/09/2011. Além de instituir o Sistema Brasileiro de Inteligência, a Lei n9 9.883/99 também criou a Agência Brasileira de Inteligência, à qual compete: I - planejar e executar ações, inclusive sigilosas, rela­ tivas à obtenção e análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República; li - planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade; 111- avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional; IV - promover o desenvolvimento de recursos humanos e da doutrina de inteligência, e realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento da atividade de inteligência (art. 49). Por isso, no julgado acima referido, referente à operação "Satiagraha", o STJ considerou irregular a participação de dezenas de funcionários da ABIN e de ex-servidor do SNI em investigação conduzida pela Polícia Federal.

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Para mais detalhes acerca do inquérito policial militar, vide abaixo tópico pertinente ao assunto.

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Consoante disposto no art. 29-A, parágrafo único, da Lei n9 9.266/96, acrescentado pela Lei n9 13.047/14, os ocupantes do cargo de Delegado de Polícia Federal, autoridades policiais no âmbito da polícia judiciária da União, são responsáveis pela direção das atividades do órgão e exercem função de natureza jurídica e policial, essencial e exclusiva de Estado. O ingresso no referido cargo, realizado mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil,é privativo de bacharel em Direito e exige 3 (três) anos de atividade jurídica ou policial, comprovados no ato de posse. Outrossim, o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal, nomeado pelo Presidente da República, é privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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Na hipótese de crimes da competência da Justiça Eleitoral, a qual é tida como uma Justiça da União, a atribuição para a realização das investigações é, precipuamente, da Polícia Federal. Todavia, como já se pronunciou o próprio Tribunal Superior Eleitoral, verificando-se a prática de crime eleitoral em município onde não haja órgão da Polícia Federal, nada impede que sua investigação seja levada a efeito pela Polícia Civil. Portanto, a atribuição legal da Polícia Federal para a instauração de inquéritos policiais de apuração da prática de crimes eleitorais não exclui a atribuição subsidiária da autoridade policial estadual, quando se verificar a ausência de órgão da Polícia Federal no local da prática delituosa.1213 Cuidando-se de crime da competência da Justiça Estadual, as investigações devem ser presididas, em regra, pela Polícia Civil. No entanto, por força da própria Constituição Federal, também é possível a atuação da Polícia Federal. Deveras, de acordo com o art. 144, § Io, I, in fine, da Constituição Federal, à Polícia Federal também incumbe a apuração de infrações pe­ nais cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei. A lei a que se refere o dispositivo é a Lei n° 10.446/02, cujo art. Io preceitua que, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Depar­ tamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais: I - seqüestro, cárcere privado e extorsão mediante seqüestro, se o agente foi impelido por motivação política ou quando praticado em razão da função pública exercida pela vítima; II - formação de cartel (incisos I, a, II, III e VII do art. 4o da Lei n° 8.137/90); III - relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; IV - furto, roubo ou receptação de cargas, inclusive bens e valores, transportadas em operação interestadual ou internacional, quando houver indícios da atuação de quadrilha ou bando13em mais de um Estado da Federação; V - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e venda, inclusive pela internet, depósito ou distribuição do produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado (art. 273 do - Código Penal). - este inciso V foi incluído pela Lei n° 12.894/13; VI - furto, roubo ou dano contra instituições financeiras, incluindo agências bancárias ou caixas eletrônicos, quando houver indícios da atuação de associação criminosa em mais de um Estado da Federação (Incluído pela Lei n° 13.124/15); VII - quaisquer crimes prati­ cados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres: esse inciso VII foi acrescentado ao art. Io da Lei n. 10.446/02 pela Lei n. 13.642, com vigência em data de 04 de abril de 2018. Ademais, segundo o art. Io, parágrafo único, da Lei n° 10.446/02, verificada a repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, o Departamento de Polícia Federal procederá à apuração de outros casos, desde que tal providência seja autorizada ou determinada pelo Ministro de Estado da Justiça. Em conclusão, importante não perder de vista que, por força do art. 11 da Lei Antiterrorismo (Lei n° 13.260/16), a Polícia Federal também passou a ter atribuições investigatórias para apurar os delitos previstos no referido diploma normativo: terrorismo propriamente dito

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Nesse sentido: TSE, HC 439, Rei. Min. Carlos Mário da Silva Velloso, DJ 27/06/2003.

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Com a vigência da Lei ns 12.850/13, o antigo crime de quadrilha ou bando foi substituído pelo delito de asso­ ciação criminosa, que demanda a presença de pelo menos 3 (três) pessoas.

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M A N U A L DE P R O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lim a

(art. 2o),14 organização terrorista (art. 3o), preparação de terrorismo (art. 5o) e financiamento ao terrorismo (art. 6o).15 5.3. Da atribuição em face do local da consumação da infração penal Firmada a atribuição da Polícia Civil, Federal, ou da Polícia Judiciária Militar, o passo seguinte é determinar à qual delegacia caberá a investigação do fato delituoso. Nesse ponto, tem-se que, nos mesmos moldes como é fixada a competência territorial do juízo para processar e julgar o crime, a atribuição para as investigações também é determinada em virtude do local onde se consumou a infração penal, ou no caso de tentativa, com base no local em que foi praticado o último ato de execução. Assim, se um crime de competência da Justiça Estadual foi perpetrado na cidade de Sete Lagoas/MG, temos que a atribuição para investigá-lo recai sobre a autoridade policial da circunscrição a que pertencer o referido município. Essa atribuição da autoridade policial para apurar os fatos ocorridos dentro de sua cir­ cunscrição não impede a realização de diligências em outra circunscrição, desde que esteja na mesma comarca; caso contrário, será necessária a expedição de carta precatória (CPP, art. 22). Nada impede que essa atribuição territorial para a investigação também seja subdividida a partir da natureza da infração penal. Isso porque, visando ao aperfeiçoamento das investigações, e considerando as vantagens que a divisão do trabalho proporciona, tanto a Polícia Federal quanto a Polícia Civil tem instituído delegacias especializadas no combate a certas espécies de crimes (ex: drogas, crimes praticados pela internet, crimes contra a vida, patrimoniais, etc.). De todo modo, ainda que uma investigação tenha sido presidida por autoridade policial que não detinha atribuições para fazê-lo, quer nos casos de um “crime federal” investigado pela Polícia Civil, quer nas hipóteses de investigação presidida por autoridade policial territorial­ mente sem atribuições, como o inquérito policial é considerado mera peça informativa de valor probatório relativo, trata-se de mera irregularidade, que não tem o condão de contaminar com nulidade o processo penal a que der origem.16 6. CARACTERÍSTICAS DO INQUÉRITO POLICIAL São várias as características do inquérito policial. Vejamo-las, separadamente. 6.1. Procedimento escrito De acordo com o art. 9o do CPP, todas as peças do inquérito policial serão, num só proces­ sado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade. Diante do teor desse dispositivo, discute-se, na doutrina, acerca da possibilidade de se utilizar de recursos de gravação audiovisual no curso das investigações policiais. A nosso juízo, apesar de o CPP não fazer menção à gravação audiovisual de diligências realizadas no curso do inquérito policial, deve-se atentar para a data em que o referido Codex entrou em vigor (Io de janeiro de 1942). Destarte, seja por força de uma interpretação progres­ siva, seja por conta de uma aplicação subsidiária do art. 405, § Io, do CPP, há de se admitir a 14.

15.

"Art. 29. O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública". Para mais detalhes acerca da Lei Antiterrorismo, remetemos o leitor ao nosso livro de Legislação Criminal Especial

(Salvador: Juspodivm, 2017), onde a Lei n9 13.260/16 é analisada artigo por artigo. No sentido de que a instauração de inquérito policial em circunscrição diversa daquela em que o crime foi cometido não acarreta a anulação do inquérito policial e muito menos do processo penal: STJ, 69 Turma, HC 44.154/SP, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 09/03/2006, DJ 27/03/2006 p. 337. Comentada

16

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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utilização desses novos meios tecnológicos no curso do inquérito. Portanto, sempre que possí­ vel, o registro dos depoimentos do investigado, do indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações. 6.2. Procedimento dispensável Como dito acima, o inquérito policial é peça meramente informativa, funcionando como importante instrumento na apuração de infrações penais e de sua respectiva autoria, possi­ bilitando que o titular da ação penal possa exercer o jus persequendi in judicio, ou seja, que possa dar início ao processo penal. Se a finalidade do inquérito policial é a colheita de elementos de informação quanto à in­ fração penal e sua autoria, é forçoso concluir que, desde que o titular da ação penal (Ministério Público ou ofendido) disponha desse substrato mínimo necessário para o oferecimento da peça acusatória, o inquérito policial será perfeitamente dispensável. O próprio Código de Processo Penal, em diversos dispositivos, deixa claro o caráter dis­ pensável do inquérito policial. De acordo com o art. 12 do CPP, “o inquérito policial acompa­ nhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”. A contrario sensu,17 se o inquérito policial não servir de base à denúncia ou queixa, não há necessidade de a peça acusatória ser acompanhada dos autos do procedimento investigatório. Por sua vez, o art. 27 do CPP dispõe que qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção. Ora, se qualquer pessoa do povo for capaz de trazer ao órgão do Ministério Público os elementos necessários para o oferecimento da denúncia, não haverá necessidade de se requisitar a instauração de inquérito policial. De seu turno, o art. 39, § 5o, do CPP, estabelece que o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de 15 (quinze) dias. Por fim, o art. 46, § Io, do CPP, acentua que quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de infor­ mações ou a representação. 6.3. Procedimento sigiloso O princípio da publicidade dos atos processuais está consagrado na Constituição Federal e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. De acordo com o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. Por sua vez, dispõe o art. 5o, XXXIII, da CF, que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Ademais, segundo o art. 5o, LX, da

17

Utiliza-se a regra da interpretação a c o n tra rio sensu quando, a partir de uma disposição legal clara so­ bre uma espécie, conclui-se que a espécie contrária está implicitamente excluída e deve ser regida por princípios igualmente contrários.

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M A N U A L DE P R O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lim a

Carta Magna, a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. De modo semelhante, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos também prevê que “o processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça” (Dec. 678/92, art. 8o, § 5o). Mesmo antes da vigência da Constituição de 1988, o Código de Processo Penal já trazia dispositivo acerca da publicidade. De acordo com o art. 792, caput, do CPP, as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. Lado outro, de acordo com o art. 792, § Io, do CPP, se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes. A publicidade dos atos processuais, garantia do acesso de todo e qualquer cidadão aos atos praticados no curso do processo, revela uma clara postura democrática, e tem como objetivo precípuo assegurar a transparência da atividade jurisdicional, oportunizando sua fiscalização não só pelas partes, como por toda a comunidade. Traduz-se, portanto, numa exigência política de se afastar a desconfiança da população na administração da Justiça. Com ela “são evitados excessos ou arbitrariedades no desenrolar da causa, surgindo, por isso, a garantia como reação aos processos secretos, proporcionando aos cidadãos a oportunidade de fiscalizar a distribuição da justiça”.18 Como se percebe pela própria dicção da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, a regra é a publicidade ampla no curso do processo penal, estando ressalvadas as hipó­ teses em que se justifica a restrição da publicidade: defesa da intimidade, interesse social no sigilo e imprescindibilidade à segurança da sociedade e do Estado (CF, art. 5o, incisos XXXIII e LX, c/c art. 93, IX); escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem (CPP, art. 792, § Io). Apesar de a regra ser a publicidade ampla no processo judicial, deve-se compreender que a publicidade, como toda e qualquer garantia, não tem caráter absoluto, podendo ser objeto de restrição em situações em que o interesse público à informação deva ceder em virtude de outro interesse de caráter preponderante no caso concreto. Daí se falar em publicidade restrita, ou interna, que se caracteriza quando houver alguma limitação à publicidade dos atos do processo. Nesse caso, alguns atos ou todos eles serão realizados somente perante as pessoas diretamente interessadas no feito e seus respectivos procuradores, ou, ainda, somente perante estes. Se na própria fase processual é possível a restrição à publicidade, o que dizer, então, quanto aos atos praticados no curso de uma investigação policial? Se o inquérito policial objetiva in­ vestigar infrações penais, coletando elementos de informação quanto à autoria e materialidade dos delitos, de nada valeria o trabalho da polícia investigativa se não fosse resguardado o sigilo necessário durante o curso de sua realização. Deve-se compreender então que o elemento da sur­ presa é, na grande maioria dos casos, essencial à própria efetividade das investigações policiais.19

18

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 68.

19

Exemplo interessante de situação em que a publicidade - e não o sigilo - passa a ser essencial à eficácia das inves­ tigações policiais diz respeito à hipótese em que as autoridades policiais dispõem do retrato falado do criminoso, porém não sabem sua real qualificação. Nesse caso, é evidente que a publicidade dada ao retrato falado será ex­ tremamente importante, já que, com a divulgação de tais imagens, talvez seja possível que a polícia venha a obter informações acerca da identificação do agente, assim como dados relativos acerca de sua possível localização.

TÍTULO 2

INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

Portanto, por natureza, o inquérito policial está sob a égide do segredo externo, nos termos do art. 20 do Código de Processo Penal, que dispõe que a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. A importância da preservação desse sigilo nas investigações é destacada pela previsão de tipos penais pertinentes à quebra desse sigilo. A título ilustrativo, podemos citar os crimes de violação de sigilo funcional, previsto no art. 325 do CP, assim como o delito previsto no art. 10 da Lei n° 9.296/96. Se a autoridade policial verificar que a publicidade das investigações pode causar prejuízo à elucidação do fato delituoso, deve decretar o sigilo do inquérito policial com base no art. 20 do CPP, sigilo este que não atinge a autoridade judiciária e nem o Ministério Público. Se, de um lado, os estatutos processuais penais dispõem que o inquérito é sigiloso, do outro, o Estatuto da OAB prevê que o advogado tem o direito de examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital (Lei n° 8.906/94, art. 7o, XIV, com redação dada pela Lei n° 13.245/16), sendo que tal prerrogativa aplica-se integralmente a processos e a procedimentos eletrô­ nicos (Lei n. 8.906/94, art. 7o, §13, incluído pela Lei n. 13.793/19). Havendo informações sigilosas nos autos do inquérito policial (v.g., quebra de sigilo bancário e/ou telefônico), todavia, não é qualquer advogado que pode ter acesso aos autos, mas somente aquele que detém procuração, nos termos do art. 7o, § 10, da Lei n° 8.906/94, acrescentado pela Lei n° 13.245/16. Na mesma linha, conforme disposto no art. 107,1, do novo CPC, o advogado tem direito a examinar, em cartório de fórum e secretaria de tribunal, mesmo sem procuração, autos de qualquer processo, independentemente da fase de tramitação, assegurados a obtenção de cópias e o registro de anotações, salvo na hipótese de segredo de justiça, nas quais apenas o advogado constituído terá acesso aos autos. De mais a mais, não se pode perder de vista que a própria Constituição Federal, em seu art. 5o, LXIII, assegura ao preso a assistência de advogado. Ora, se a Carta Magna assegura ao preso a assistência de advogado, evidente que essa assistência passa, obrigatoriamente, pelo acesso do de­ fensor aos autos do inquérito policial, sob pena de se tomar inócua a referida garantia constitucional. Logo, a despeito do art. 20 do CPP, e mesmo em se tratando de inquérito sigiloso, tem prevalecido o entendimento de o advogado deve ter acesso aos autos do procedimento investigatório, caso a diligência realizada pela autoridade policial já tenha sido documentada. Porém, em se tratando de diligências que ainda não foram realizadas ou que estão em andamento, não há falar em prévia comunicação ao advogado, nem tampouco ao investigado, na medida em que o sigilo é inerente à própria eficácia da medida investigatória. É o que se denomina de sigilo interno, que visa assegurar a eficiência da investigação, que poderia ser seriamente prejudicada com a ciência prévia de determinadas diligências pelo investigado e por seu advogado.20 Este o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante n° 14, cujo teor é o seguinte: “E direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.21

20

STF, lã Turma, HC 82.354/PR, Rei. Min. Sepulveda Pertence, DJ 24/09/2004. No mesmo contexto: STF, I a Turma, HC 94.387/RS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 25 05/02/2009; STF, l ã Turma, HC 90.232/AM, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 02/03/2007; STJ, 5a Turma, HC 58.377/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, DJe 30/06/2008.

21

Concluída a oitiva de uma vítima (ou testemunha) em sede policial, a imediata juntada do respectivo termo aos autos do inquérito policial é obrigatória, de modo a permitir o acesso do advogado ao seu teor, ou fica a critério da autoridade policial determinar discricionariamente o momento mais adequado para tanto? A nosso juízo, pelo menos em regra, uma vez concluída a oitiva de uma testemunha, o respectivo termo deverá ser juntado

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Negado o acesso do advogado aos autos do inquérito policial pelo Delegado de Polícia, o profissional da advocacia deve requerê-lo ao juízo competente (Lei n° 8.906/94, art. 7o, § 12, in fine). Se, mesmo assim, for negado o acesso, 3 (três) soluções se apresentam: a) considerando a edição da súmula n° 14, que tem efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Po-der Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, é viável o ajuizamento de reclamação ao Supremo Tribunal Federal, a fim de que seja preservada sua competência e assegurada a autoridade de suas decisões. Afinal, segundo o art. 103-A, § 3o, da Constituição Federal, do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. No mesmo sentido, vide art. T da Lei n° 11.417/06 e art. 988, IV, do novo CPC; b) independentemente da reclamação, como houve violação a um direito líquido e certo do advogado, previsto no art. 7o, XIV, da Lei n° 8.906/94, continua sendo cabível a impetração de mandado de segurança, apontando-se como autoridade coatora, para os fins do art. 6o da Lei n° 12.016/09, o juízo responsável pelo indeferimento do acesso aos autos do inquérito policial. Nesse caso, perceba-se que o que está em discussão não é a liberdade de locomoção do investi­ gado, mas sim o desrespeito ao exercício da defesa consubstanciado em violação à prerrogativa profissional do advogado, o que autoriza a impetração de mandado de segurança, nos termos do art. 5o, LXIX, da CF, c/c art. Io, caput, da Lei n° 12.016/09;22 c) nada impede que o acusado, seja pessoalmente, seja por meio de seu advogado, mas sempre em seu benefício, possa se valer do remédio heroico do habeas corpus (CF, art. 5o, LXVIII), arguindo que a negativa do acesso de seu advogado aos autos do procedimento investigatório acarreta constrangimento ilegal a sua liberdade de locomoção. Isso porque esse cerceamento à atuação do advogado no curso das investigações poderá se refletir em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação à pena privativa de liberdade, circunstância bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do investigado.23 A negativa de acesso do advogado aos autos da investigação preliminar, o fornecimento incom­ pleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno

aos autos na seqüência, salvo quando o Delegado de Polícia concluir que o acesso da defesa àquele depoimento, naquele momento, terá o condão de colocar em risco a eficácia da medida. A título de exemplo, basta imaginar uma hipótese em que haja um relato, por parte de testemunhas ouvidas em sede policial, acerca da localização de drogas, armas, etc. Na eventualidade de a defesa ter acesso a tais informações antes da expedição e cumpri­ mento de mandados de busca domiciliar, ter-se-ia evidente risco à eficácia da referida diligência. Logo, nada mais evidente do que retardar o momento da juntada dos respectivos termos aos autos da investigação preliminar, nos exatos termos do art. 7s, § 11, da Lei n9 8.906/94, incluído pela Lei ne 13.245/16. 22.

O cabimento de reclamação perante o Supremo não impede a impetração de mandado de segurança. A uma porque a Lei n9 11.417/06, ao dispor sobre a edição, revisão e cancelamento de súmula vinculante, prevê em seu art. 79 que da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação. A duas porque, na medida em que a reclamação tem natureza de ação de índole constitucional, e não de recurso, seu cabimento não acarreta incidência do art. 59, II, da Lei n9 12.016/09, que veda o uso do mandado de segurança contra ato judicial de que caiba recurso com efeito suspensivo.

23.

No sentido de que o cerceamento à defesa do indiciado no inquérito policial pode refletir-se em prejuízo de sua defesa e, em tese, redundar em condenação à pena privativa de liberdade ou na mensuração desta, daí por que deve ser admitida a impetração de habeas corpus de modo a se assegurar o acesso do advogado aos autos: STF, 1- Turma, HC 82.354, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 24/09/2004.

TÍTULO 2 • INV ESTIGA ÇÃO PRELIM INAR

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investigativo também implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa (Lei n° 4.898/65, art. 3o, alínea “j”, c/c art. 7o, § 12, da Lei n° 8.906/94, incluído pela Lei n° 13.245/16). Pelo menos em regra, o acesso do defensor aos elementos de informação já documentados nos autos do procedimento investigatório independe de prévia autorização judicial. No entanto, em se tratando de investigação referente a organizações criminosas, uma vez decretado o sigilo da inves­ tigação pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias, o acesso do defensor aos elementos informativos deverá ser precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento (Lei n° 12.850/13, art. 23, caput). 6.4. Procedimento inquisitorial Aprovada em regime de urgência pelo Congresso Nacional, quiçá devido ao incômodo cau­ sado a diversos parlamentares federais pelas investigações levadas a efeito pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal no curso da operação “Lava-Jato”, a Lei n° 13.245 (vigência em 13 de janeiro de 2016) deverá acirrar ainda mais as discussões quanto à verdadeira natureza jurídica das investigações preliminares. Isso porque, para além de reforçar o direito de o advogado ter acesso a qualquer proce­ dimento investigatório - não apenas o inquérito policial (Lei n° 8.906/94, art. 7o, XIV, com redação dada pela Lei n° 13.245/16) - referida Lei também introduziu no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil o direito de o advogado assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo inclusive apresentar razões e quesitos no curso da respectiva apuração (Lei n° 8.906/94, art. 7o, XXI, “a”). Diante da nova redação conferida à Lei n° 8.906/94, qual a verdadeira natureza jurídica das investigações preliminares? Procedimento sujeito ao contraditório diferido e à ampla defesa? Ou de natureza inquisitorial? Vejamos, separadamente, as duas correntes acerca do assunto, e seus respectivos argumentos: a) Investigação preliminar como procedimento sujeito ao contraditório diferido e à ampla defesa: de um lado, parte da doutrina sustenta que as investigações preliminares - não apenas o inquérito policial, mas também procedimentos investigatórios diversos, como, por exemplo, um procedimento investigatório criminal presidido pelo Ministério Público - estão sujeitas ao contraditório diferido e à ampla defesa, ainda que com um alcance mais limitado que aquele reconhecido na fase processual. Isso não apenas por conta das mudanças introduzidas pela Lei n° 13.245/16, mas notadamente devido à própria Constituição Federal, que assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5o, LV), assim como a assistência de advogado (art. 5o, LXIII). O inciso LV do art. 5o da Constituição Federal não pode ser objeto de interpretação restri­ tiva para fins de se concluir que a expressão processo administrativo ali utilizada não abrange as investigações preliminares, que têm natureza jurídica de procedimento administrativo, nem tampouco para se alegar que o fato de mencionar acusados, e não investigados ou indiciados, seja um impedimento para sua aplicação na fase pré-processual. O simples fato de figurar como suposto autor ou partícipe da infração penal em uma investigação criminal, por si só, já deve ser tratada como uma imputação em sentido amplo, porquanto o investigado fica sujeito a uma série de medidas coercitivas já na fase investigatória, como, por exemplo, medidas cautelares pessoais, patrimoniais, diligências policiais, etc. Logo, com o objetivo de se extrair a máxima

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lim a

eficácia do referido dispositivo constitucional, o ideal é concluir que qualquer forma de imputação determinada representa uma acusação em sentido amplo. Por isso, o constituinte empregou a expressão acusados em geral, abrangendo não apenas aquele contra quem foi instaurado um processo penal, mas também o indivíduo que figura como provável autor (ou partícipe) do fato delituoso, é dizer, o sujeito passivo da investigação preliminar. Em síntese, a observância do contraditório - ainda que de maneira diferida e restrita aos elementos informativos já docu­ mentados - e da ampla defesa não pode ficar restrita à fase processual da persecução penal.24 A observância do contraditório diferido e da ampla defesa na investigação preliminar tam­ bém pode ser extraída do inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal. Por mais que o Có­ digo de Processo Penal, com seus viés nitidamente autoritário, silencie acerca do direito de o investigado ser cientificado de que há uma investigação em andamento, na qual ele figura na condição de imputado, não se pode negar a existência desse direito. A partir do momento em que a própria Constituição Federal assegura ao preso o direito de permanecer calado (CF, art. 5o, LXIII), subentende-se que o preso, aí compreendido o suspeito, investigado ou indiciado, preso ou em liberdade, tem o direito de ser ouvido pela autoridade responsável pelas investiga­ ções. Afinal, alguém só pode permanecer calado se lhe for assegurado o direito de ser ouvido. Logicamente, o investigado poderá se valer de seu direito ao silêncio, permanecendo calado, mas daí não se pode admitir que um inquérito seja concluído sem que lhe seja franqueada a possibilidade de apresentar sua versão sobre os fatos sob investigação. E direito, pois, do investi­ gado, ser ouvido pela autoridade competente antes da conclusão das investigações preliminares. Logicamente, na hipótese de se tratar de investigado foragido, não será possível a realização de seu interrogatório, mas aí se entende que foi o próprio indivíduo que abriu mão do exercício da autodefesa (direito de audiência).25 A luz do art. 5o, inciso LV, da Constituição Federal, e em estrita harmonia com uma tendência crescente de jurisdicionalização do processo administrativo, assim compreendida a inserção das garantias do devido processo legal no âmbito processual administrativo, a garantia do contradi­ tório deve, sim, ser inserida na investigação criminal,26 ainda que de maneira diferida e restrita, dando-se ciência ao investigado - e a seu defensor - exclusivamente dos elementos informativos documentados, resguardando-se, logicamente, o sigilo quanto aos atos investigatórios ainda em andamento, tanto na deliberação quanto na sua prática, quando o direito à informação inerente ao contraditório puder colocar em risco a própria eficácia da diligência investigatória (Lei n° 8.906/94, art. 7o, § 11, incluído pela Lei n° 13.245/16).

24

Como observa a doutrina, "qualquer notícia-crime que impute um fato aparentemente delitivo a uma pessoa constitui uma imputação, no sentido jurídico de agressão, capaz de gerar no plano processual uma resistência. Da mesma forma, quando da investigação ex officio realizada pela polícia surgem suficientes indícios contra uma pes­ soa, a tal ponto de tornar-se o alvo principal da investigação - imputado de fato - devem ser feitos, a comunicação e o chamamento para ser interrogado pela autoridade policial. Em ambos os casos, inegavelmente, existe uma atuação de caráter coercitivo contra pessoa determinada, configurando uma agressão ao seu estado de inocência e de liberdade, capaz de autorizar uma resistência em sentido jurídico-processual". (LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação prelim inar no processo penal. 5§ ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 472).

25

Scarance Fernandes (Reação defensiva à im putação, p. 113) aponta os principais direitos do imputado na fase de investigação: a) ter ciência da imputação; b) ser ouvido sobre a imputação; c) ter conhecimento do proceder investigatório; d) apresentar, por si ou por defensor, dados que possam influir no andamento da investigação, no oferecimento da denúncia e na análise da viabilidade de futura acusação.

26

Fauzi Hassan Choukr (G arantias constitucionais da investigação crim inal. Lumen ju ris : Rio de Janeiro, 2006. p. 127) aponta argumentos básicos dos defensores do contraditório já na investigação: a) ser esta etapa um verdadeiro 'processo administrativo' preparatório ao exercício da ação penal; b) haver neste processo um conflito de interesses, portando existindo litígio e, por conseqüência, litigantes. O contraditório surge, então, exatamente dentro do quadro garantidor do novo direito processual administrativo.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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Em qualquer sistema minimamente garantista e democrático, é direito básico do indivíduo ser cientificado quanto à existência e quanto ao conteúdo de uma imputação contra a sua pes­ soa, oriunda de uma simples notícia-crime ou de uma investigação preliminar em andamento. Impõe-se, pois, a observância do contraditório, pelo menos em relação ao direito à informação, a fim de que o imputado, assistido pela defesa técnica (v.g., requerendo diligências, apresentando razões e quesitos), possa exercer a autodefesa por meio do interrogatório policial, oferecendo resistência à pretensão investigatória e coercitiva estatal, atuando no sentido de identificar fontes de prova favoráveis à defesa ou, ao menos, capazes de atenuar a pena que eventualmente venha a ser imposta ao final do processo. A propósito, o acesso do advogado aos autos da investigação preliminar consagrado pela súmula vinculante n° 14 funciona como evidente exemplo de mani­ festação do direito de informação que constitui o primeiro momento do contraditório. Também se revela inviável restringir o exercício do direito de defesa exclusivamente à fase judicial da persecução penal. Na fase investigatória, o direito de defesa já pode - e deve - ser exercido de duas formas distintas:27 a) exercício exógeno: é aquele efetivado fora dos autos do inquérito policial, por meio de algum remédio constitucional (habeas corpus ou mandado de segurança) ou por requerimentos endereçados ao juiz ou ao promotor de justiça; b) exercício endógeno: é aquele praticado nos autos da investigação preliminar, por meio da oitiva do im­ putado (autodefesa - direito de audiência), de diligências porventura solicitadas - jamais requi­ sitadas28 - à autoridade policial (CPP, art. 14), ou através da apresentação de razões e quesitos (Lei n° 8.906/94, art. 7o, XXI, “a”, com redação dada pela Lei n° 13.245/16).29 Sem dúvida alguma, essa primeira corrente ganha corpo com as mudanças produzidas pela Lei n° 13.245/16, notadamente diante da positivação do direito de o advogado assistir a seus clientes durante a apuração de infrações (Lei n° 8.906, art. 7o, XXI).

27

É nesse contexto a lição de Marta Saad: O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 221-222.

28

O Projeto de Lei aprovado pelo Congresso Nacional (PL 78/2015 - PL 6.705/13 na Câmara dos Deputados) também permitia aos advogados re quisitar diligências no curso da investigação preliminar (Lei n2 8.906/94, art. 72, XXI, alínea "b"). No entanto, esta alínea acabou sendo vetada pela Presidente da República. Entendeu-se - a nosso juízo, acertadamente - que, da forma como redigido, o dispositivo poderia levar à interpretação equivocada de que a requisição em questão seria mandatória, resultando em embaraços no âmbito de investigações e conse­ qüentes prejuízos à administração da justiça. Interpretação semelhante já fora afastada pelo próprio Supremo Tribunal Federal em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade de dispositivos da própria Lei ne 8.906/94 (ADI 1.127). Sem embargo do veto, fato é que subsiste o direito de petição ao Ministério Público e ao Poder Judiciário em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos termos do art. 55, XXXIV, alínea "a", da Constituição Federal.

29

Consoante disposto no art. 72 , XXI, alínea "a", da Lei n2 8.906/94, com redação determinada pela Lei ne 13.245/16, é direito do advogado, ainda no curso das investigações preliminares, apresentar: a) razões: devem ser com­ preendidas como um arrazoado que pode ser apresentado pela defesa técnica de modo a tentar influenciar o convencimento da autoridade policial no sentido da inexistência de elementos informativos em detrimento do investigado, seja para fins de evitar iminente pedido de medidas cautelares, seja de modo a evitar possível indiciamento pelo Delegado de Polícia em um inquérito policial (Lei n2 12.830/13, art. 22, § 6e); quesitos: são indagações direcionadas aos peritos, que devem ser respondidas quando da elaboração do laudo pericial. Levando-se em consideração que dificilmente é possível a repetição dos exames periciais realizados na fase investigatória após a instauração do processo penal, a Lei n5 13.245/16 passa a permitir a apresentação facultativa de quesitos pela Defesa. Importante registrar que a apresentação dessas razões e quesitos não é condição sine qua non para a validade do procedimento investigatório, nem tampouco do exame pericial, é dizer, cuida-se de mera faculdade da defesa, que pode ser exercida de acordo com a conveniência dos interesses do cliente investigado. Logo, em situações de urgência (v.g., exame de necropsia), a não apresentação de quesitos pela defesa não será óbice à imediata realização do exame pericial, o que, no entanto, não impede a apresentação de eventuais pedidos de esclarecimentos pela defesa aos peritos em momento posterior, nos termos do art. 159, § 55, |, do CPP.

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Aliás, firmada a premissa de que o exercício do direito de defesa é de observância obri­ gatória já na fase preliminar de investigações, da mudança introduzida no Estatuto da OAB poder-se-ia concluir que a presença de um advogado seria cogente inclusive no interrogató­ rio policial, funcionando, o inciso XXI do art. 7o da Lei n° 8.906/94, não apenas como um direito do advogado, mas sobretudo como uma garantia de proteção do próprio investigado, que teria resguardada a proteção a sua integridade física e moral, ao direito ao silêncio, etc., por um profissional da advocacia ao longo de toda a persecução penal, e não mais apenas durante a fase judicial propriamente dita. Ficariam resguardados, assim, direitos e garantias fundamentais da pessoa humana sujeita à investigação, funcionando, a presença obrigatória de um defensor já num interrogatório policial, como importante fator de dissuasão à adoção de práticas probatórias ilegais. A experiência do cotidiano policial (e ministerial) demonstra inexoravelmente que a sim­ ples entrega de uma nota de culpa ou de um termo de ciência das garantias constitucionais ao investigado (indiciado ou preso em flagrante) não tem se mostrado suficiente para a tutela de seus diversos direitos fundamentais. O sujeito passivo da investigação preliminar não tem co­ nhecimentos necessários e suficientes para resistir à pretensão estatal. Agravada pela posição de inferioridade ante o poder da autoridade estatal encarnada pelo Delegado de Polícia ou pelo Promotor de Justiça, esta hipossuficiência deve ser suprida com a presença de um defensor já na fase pré-processual, presença esta que deve ser concebida como um instrumento de controle da atuação do Estado e de seus órgãos persecutórios, garantindo-se, assim, o respeito ao devido processo legal. A primeira vista, poder-se-ia pensar que o exercício do direito de defesa nas investigações preliminares, inclusive com a obrigatória presença de advogado no interrogatório policial, poderia funcionar como obstáculo à eficácia das investigações. Pelo contrário. Como exposto anterior­ mente, as investigações preliminares não têm como finalidade única a obtenção de elementos de informação para que o titular da ação penal possa ingressar em juízo. Também visam inibir a instauração de um processo penal infundado, temerário. Logo, o exercício do direito de defesa na investigação preliminar não depõe contra a eficácia do trabalho investigatório. Depõe, sim, a favor dessa suposta eficiência, evitando que possíveis inocentes sejam processados criminalmente. Na verdade, superada uma reação contrária inicial que a Lei n° 13.245/16 deve provavel­ mente despertar em Delegados de Polícia e membros do Ministério Público, protagonistas na investigação preliminar, é inegável que, a longo prazo, o referido diploma normativo também deverá contribuir para o aprimoramento das investigações. Explica-se: apesar de o sistema da prova tarifada ter sido deixado de lado há anos, a busca incansável pela confissão ainda é uma rotina em Delegacias de Polícia e Promotorias Criminais. Aliás, em algumas raras ocasiões, essa busca incansável pela confissão ainda é feita de maneira ilegal, quer por meio de constran­ gimentos físicos e morais, quer por inobservância do dever de advertência quanto ao direito ao silêncio. Isso acaba prejudicando a qualidade do trabalho investigatório. De fato, uma vez obtida a confissão do crime, é comum haver um relaxamento natural das autoridades persecutórias em relação à busca de outras fontes de prova e elementos informativos, haja vista a crença equivo­ cada de que a confissão ainda é tida como a rainha das provas. Portanto, a partir do momento em que as autoridades responsáveis pela investigação preliminar se conscientizarem de que o investigado não é mais um mero objeto de prova, que tem direito ao silêncio e à assistência de um advogado, enfim, que o interrogatório é meio de defesa - e não meio de prova -, seja ele judicial ou policial, é provável que se dê maior ênfase à busca de outras fontes de prova, otimizando a eficácia das investigações por meio da produção de provas científicas, juntada de documentos, colheita de depoimentos de testemunhas presenciais, etc.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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De mais a mais, como é extremamente comum a alegação do acusado, por ocasião de seu interrogatório judicial, no sentido de que sofreu agressões, torturas ou sevícias na fase investigatória para que confessasse o fato delituoso, a presença obrigatória de advogado no interrogatório policial também terá o condão de resguardar a própria autoridade policial (ou ministerial) contra questionamentos dessa natureza. b) Investigação preliminar como procedimento inquisitorial (nossa posição): cuida-se, a investigação preliminar, de mero procedimento de natureza administrativa, com caráter ins­ trumental, e não de processo judicial ou administrativo. Dessa fase pré-processual não resulta a aplicação de uma sanção, destinando-se tão somente a fornecer elementos para que o titular da ação penal possa dar início ao processo penal. Logo, ante a impossibilidade de aplicação de uma sanção como resultado imediato das investigações criminais, como ocorre, por exemplo, em um processo administrativo disciplinar, não se pode exigir a observância do contraditório e da ampla defesa nesse momento inicial da persecução penal. As atividades investigatórias estão concentradas nas mãos de uma única autoridade - Dele­ gado de Polícia, no caso do inquérito policial (Lei n° 12.830/13, art. 2o, § Io); Ministério Público, em se tratando de um procedimento investigatório criminal (art. Io da Resolução n° 13/2006 do CNMP) -, que deve conduzir a apuração de maneira discricionária (e não arbitrária) de modo a colher elementos quanto à autoria e materialidade do fato delituoso. Logo, não há oportunidade para o exercício do contraditório ou da ampla defesa. Não há como negar que essa característica está diretamente relacionada à busca da eficácia das diligências levadas a efeito no curso de qualquer procedimento investigatório. Deveras, esse caráter inquisitivo confere às investigações maior agilidade, otimizando a identificação das fontes de prova e a colheita de elementos informativos. Fossem os atos investigatórios precedidos de prévia comunicação à parte contrária (contraditório), seria inviável a localização de fontes de prova acerca do delito, em verdadeiro obstáculo à boa atuação do aparato policial. Funciona o elemento da surpresa, portanto, como importante traço peculiar de toda e qualquer investigação preliminar.30 É uma ilusão - e até mesmo ingênuo - imaginar que o exercício do contraditório diferido e a ampla defesa na fase investigatória possa colaborar com as investigações, pois esta não é a regra que se nota no cotidiano policial. Ao revés, como destaca Mittermaier,31 em observação ainda atual para muitos casos, “no crime, o autor do delito toma todas as precauções imagi­ náveis para tomar a prova impossível, e apagar todos os vestígios; adrede procura a escuridão e afasta todas as testemunhas que possam comprometer”. Não se pode, portanto, admitir o contraditório e a ampla defesa nessa fase pré-processual, sob pena de se criar uma situação desigual capaz de prejudicar sobremaneira a eficiência dos órgãos persecutórios na elucidação das infrações penais.32

30

Para Antônio Scarance Fernandes (A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 120), "não há razão para se estender à investigação um contraditório amplo e irrestrito, reservado ao estágio processual. Ainda não há procedimento, mas atos de investigação, alguns marcados pela necessidade de sigilo, como a busca e apreensão, a interceptação telefônica. Para que se configure o contraditório pleno, seria necessária a ciência prévia do ato a ser realizado, a oportunidade de participação e de reação, o que é inviável, porque o sucesso de certas diligências está exatamente na surpresa de sua realização. Perderia, com isso, a atividade repressiva e ficaria prejudicada a rapidez das apurações e nem mesmo ganharia o indiciado. Não interessa geralmente antecipar a defesa para o momento pré-processual".

31

C. J. A. Mittermaier, Tratado da prova em m a téria criminal, p. 58.

32

Com entendimento semelhante: BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 173.

garantism o e a efetividade da sanção.

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Na prática, a falta de contraditório e ampla defesa nessa fase pré-processual acaba sendo compensada por mecanismos legislativos tendentes a evitar que o juiz julgue a imputação valen­ do-se exclusivamente dos elementos informativos colhidos na fase investigatória, excetuando-se as provas antecipadas, não repetíveis e cautelares. Deveras, se os elementos informativos colhidos na fase investigatória são produzidos sem a necessária participação dialética do investigado, ter-se-ia evidente violação ao contraditório e à ampla defesa se acaso fosse admitida a sua utilização como fundamento exclusivo para uma possível condenação do acusado. Daí a importância da regra constante do art. 155, caput, do CPP, que admite a utilização dos elementos informativos colhidos na fase pré-processual apenas subsidiariamente. Outra prova do caráter inquisitorial da investigação preliminar é o quanto disposto no art. 107 do CPP, segundo o qual não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal. Some-se a isso o quanto disposto no art. 306, § Io, do CPP, que passou a exigir a remessa do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública em 24 (vinte e quatro) horas após a prisão, caso o autuado não informe o nome de seu advogado. Ora, se o CPP exige a remessa do APF em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura, silenciando quanto à presença da Defensoria durante o interro­ gatório, denota-se que a presença do advogado não é obrigatória no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante delito. As mudanças legislativas produzidas pela Lei n° 13.245/16 não têm o condão de afastar a natureza inquisitorial das investigações preliminares, nem tampouco de tomar obrigatória a presença de advogado durante o interrogatório policial. Na verdade, preservada esta natureza, o que houve foi a outorga de um viés mais garantista à investigação preliminar, buscando-se garantir os direitos fundamentais do investigado. De um lado, a nova redação conferida ao inciso XIV do art. 7o da Lei n° 8.906/94 não introduziu nenhuma novidade concreta. O acesso do advogado aos autos das investigações pre­ liminares - não apenas o inquérito policial - já podia ser extraído a partir de uma interpretação extensiva da redação original do inciso XIV do art. 70.33 Com efeito, firmada a premissa de que a Polícia Judiciária não tem exclusividade na apuração de infrações penais, é de todo evidente que o advogado poderá ter acesso não apenas aos autos de inquéritos policiais, mas também a todo e qualquer procedimento investigatório em andamento. Isso, aliás, já havia sido reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal por ocasião do reconhecimento do poder investigatório criminal do Ministério Público.34 De outro, apesar de a Lei n° 13.245/16 ter positivado o direito de o advogado assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações (Lei n° 8.906/94, art. 7o, XXI), daí não se pode concluir que a presença de advogado passaria a ser obrigatória para fins de reali­ zação de interrogatórios policiais, sob pena de transformarmos a investigação preliminar em um verdadeiro juizado de instrução, porém sem a presença do Ministério Público, no caso de inquéritos policiais presididos por Delegados de Polícia, e da autoridade judiciária competente.

33

A propósito, eis a redação original do art. 7e, XIV, da Lei ne 8.906/94: "Art. 72. São direitos do advogado: (...) XIV - examinar em qualquer repartição policiai, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos". Confira-se a nova redação conferida ao inciso XIV pela Lei ne 13.245/16: XIV- examinar, em qualquer instituição responsável pela investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital".

34

STF, Pleno, RE 593.727/MG, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/05/2015, DJe 175 04/09/2015.

TÍTULO 2 • INV ESTIGA ÇÃO PRELIM INAR

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Nesse ponto, a Lei n° 13.245/16 não introduziu nenhuma novidade no ordenamento jurídico pátrio. Na verdade, simplesmente positivou o que a Constituição Federal sempre assegurou, a saber, a assistência de advogado ao preso (CF, art. 5o, LXIII).35 Ora, se a força normativa do referido preceito constitucional jamais foi suficiente para tomar cogente a presença de advoga­ do por ocasião da realização de interrogatórios policiais,36 é no mínimo estranho que a simples reprodução desse mesmo preceito em uma lei ordinária teria o condão de passar a exigir sua presença. De mais a mais, fosse necessária a presença de advogado no interrogatório policial, referida mudança legislativa deveria ter sido introduzida no âmbito do Código de Processo Pe­ nal, diploma normativo que regulamenta o interrogatório policial, e não no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Para que se possa compreender a exata amplitude do novel inciso XXI do art. 7o do Esta­ tuto da OAB, com redação dada pela Lei n° 13.245/16, há de se ter em mente o exato contexto fático em que essa alteração legislativa foi concebida. Sob o argumento de que a investigação preliminar é um procedimento inquisitorial, ainda é relativamente comum que seja negado aos advogados o direito de acompanhar interrogatórios realizados em sede policial (ou ministerial).37 Ora, se o advogado está presente por ocasião do interrogatório policial, a ele não se pode negar o direito de assistir a seu cliente, sob pena de evidente violação à garantia fundamental do art. 5o, LXIII, da CF. Nesse caso, é dizer, presente o advogado, e negado o seu direito de assistir a seu cliente investigado, aí sim restará caracterizada a ilegalidade38 do interrogatório policial e,

35

O dispositivo constitucional em questão tem como destinatário final não apenas aquele que está preso, mas também aquele que está solto, assim como qualquer pessoa a quem seja imputada a prática de um ilícito criminaL seja ele suspeito, investigado, indiciado, acusado ou condenado, preso ou em liberdade

36

No sentido de que a ausência de advogado por ocasião da lavratura do flagrante não é causa de nulidade do ato quando o indivíduo é informado de seus direitos constitucionais e expressamente declara que se reserva no direito de só falar em juízo: STJ, 59 Turma, HC 24.510/MG, Rei. Min. Jorge Scartezzini, j. 06/03/2003, DJ 02/06/2003 p. 310. Com o entendimento de que a documentação do flagrante prescinde da presença do defensor técnico do conduzido, sendo suficiente a lembrança, pela autoridade policial, dos direitos constitucionais do preso de ser assistido, comunicando-se com a família e com profissional da advocacia, e de permanecer calado: STF, Pleno, HC 102.732/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 04/03/2010, DJe 81 06/05/2010.

37

Dificilmente é negado explicitamente ao advogado o direito de acompanhar o interrogatório policial de seu cliente. Na prática, todavia, são usados subterfúgios para se realizar o ato sem a assistência da defesa técnica. A título de exemplo, em operações policiais (ministeriais) de grande porte, geralmente desencadeadas por meio do cumprimento de mandados de prisão cautelar (ou de condução coercitiva), o investigado é levado às Delegacias de Polícia (ou Promotorias Criminais), oportunidade em que, sem embargo da presença do defensor naquele local, são levadas a efeito diversas diligências investigatórias (v.g., interrogatório policial, acareação, etc) sem que seja franqueado ao investigado previamente o direito de conversar em reservado com seu advogado. Na verdade, quando o advogado finalmente tem acesso a seu cliente, a diligência investigatória já foi realizada.

38

O art. 79, XXI, da Lei n9 8.906/94, com redação determinada pela Lei n9 13.245/16, dispõe que a não observância desse direito acarretará a nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente. Sem embargo da terminologia utilizada pela Lei n9 13.245/16, parece-nos incorreto referir-se à inobservância desse direito como causa de nulidade absoluta, porquanto a nulidade funciona como uma sanção processual aplicada ao ato processual defeituoso, privando-o da aptidão de produzir seus efeitos regulares. Logo, como o art. 79, XXI, do Estatuto da OAB, faz referência à inobservância de um direito do advogado durante o curso da fase preliminar de investigações, tecnicamente soa mais correto dizer que há, in casu, uma ilegalidade, que pode contaminar os demais elementos informativos e probatórios daí derivados (teoria dos frutos da árvore envenenada). Ainda que se queira objetar que se trata de verdadeira nulidade, o fato de a Lei n9 13.245/16 tê-la rotulado de absoluta não acarreta, de p e r si, a invalidação do referido ato, salvo se comprovado o prejuízo causado ao investigado. Afinal, conforme recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (v.g., STF, 29 Turma, HC 117.102/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 25/06/2013), o reconhecimento de uma nulidade, ainda que absoluta, também pressupõe a comprovação do prejuízo. Por conseguinte, ainda que não seja franqueado ao

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por conseqüência, de todos os elementos informativos e probatórios dele derivados, direta ou indiretamente (teoria dos frutos da árvore envenenada - CPP, art. 157, § Io). Se o próprio Supremo Tribunal Federal entende que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição (súmula vinculante n° 5), é no mínimo contraditório concluir que, a partir da vigência da Lei n° 13.245/16, o interrogatório policial seja considerado válido tão somente quando o investigado estiver assistido por profis­ sional da advocacia. Em outras palavras, se não há necessidade de um defensor no curso de um processo administrativo disciplinar, do qual pode resultar a aplicação de sanções relativamente severas (v.g., suspensão, exoneração, perda de função, etc.), é de se estranhar a obrigatoriedade de defensor durante a realização de um interrogatório policial, do qual jamais será possível a aplicação imediata de uma sanção. É nesse sentido que deve ser feita a correta interpretação do inciso XXI do art. T da Lei n° 8.906/94: a investigação preliminar não perdeu a sua natureza inquisitiva. Ganhou, na ver­ dade, um viés garantista. Doravante, presente o advogado,39 se não lhe for assegurado o direito de assistir a seu cliente investigado durante a realização de seu interrogatório policial, inclusive com a observância do direito à entrevista prévia e reservada, para que possa instrui-lo acerca de quais perguntas deve responder, ou se deve simplesmente permanecer em silêncio, ter-se-á manifesta ilegalidade, daí por que eventual confissão nessas circunstâncias deve ser considerada ilícita, assim como as demais provas dela derivadas (CPP, art. 157, caput e § Io). De todo modo, apesar de o contraditório diferido e a ampla defesa não serem aplicáveis ao inquérito policial, que não é processo, não se pode perder de vista que o suspeito, investi­ gado ou indiciado possui direitos fundamentais que devem ser observados mesmo no curso da investigação policial, entre os quais o direito ao silêncio, o de ser assistido por advogado, etc. Aliás, como visto antes, do plexo de direitos dos quais o investigado é titular, é corolário e ins­ trumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos do inquérito policial (Lei n° 8.906/94, art. 7o, XIV), tal qual preceitua a súmula vinculante n° 14 do Supremo.40 Logo, se houver, no curso do inquérito, momentos de violência e coação ilegal, há de se assegurar a ampla defesa ao investigado. Daí por que o STJ deferiu ordem em habeas corpus para assegurar que a oitiva de testemunhas e a quebra do sigilo telefônico, requeridas pelo investigado, e indeferidas pela autoridade policial, fossem levadas adiante no curso da investigação.41

advogado presente o direito de assistir a seu cliente investigado durante a realização do interrogatório policial, não há falar em invalidação do procedimento investigatório se este permanecer em silêncio. 39

O fato de a defesa técnica acompanhar a colheita dos depoimentos ou a realização do interrogatório em sede policial não lhes confere a natureza jurídica de prova para fins de aplicação do art. 155, caput, do CPP. Tecni­ camente só se pode falar em prova quando tais elementos são produzidos em contraditório judicial, salvo em se tratando de provas cautelares, não repetfveis e antecipadas. Logo, ainda que as diligências investigatórias tenham sido levadas a efeito sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, preservam o status de elementos inform ativos. Logicamente, a partir do momento em que esses elementos informativos forem produzidos de maneira dialética, a eles poderá o magistrado lhes conferir maior credibilidade, porém sempre de maneira subsidiária.

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STF, 13 Turma, HC 90.232, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 18/12/2006, DJ 02/03/2007.

41

STJ, 6§ Turma, HC 69.405/SP, Rei. Min. Nilson Naves, j. 23/10/2007, DJ 25/02/2008 p. 362. Em sentido seme­ lhante: STJ, 63 Turma, HC 44.165/RS, Rei. Min. Nilson Naves, j. 18/12/2006, DJ 18/12/2006.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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6.5. Procedimento discricionário Ao contrário da fase judicial, em que há um rigor procedimental a ser observado, a fase preliminar de investigações é conduzida de maneira discricionária pela autoridade policial, que deve determinar o rumo das diligências de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Os arts. 6o e T do CPP contemplam um rol exemplificativo de diligências que podem ser determinadas pela autoridade policial, logo que tiver conhecimento da prática da infração pe­ nal: conservação do local do fato delituoso, até a chegada dos peritos criminais; apreensão dos instrumentos e objetos que tiverem relação com o fato; colheita de todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; oitiva do ofendido; oitiva do indiciado; re­ conhecimento de pessoas e coisas e a acareações; exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias; identificação do indiciado; averiguação da vida pregressa do indiciado; e reconstituição do fato delituoso. Conquanto tais dispositivos enumerem várias diligências que podem ser determinadas pela autoridade policial, daí não se pode concluir que o Delegado de Polícia esteja obrigado a seguir uma marcha procedimental preestabelecida. Tem-se, nos arts. 6o e T do CPP, apenas uma sugestão das principais medidas a serem adotadas pela autoridade policial, o que não impede que outras diligências também sejam realizadas. Discricionariedade implica liberdade de atuação nos limites traçados pela lei. Se a autori­ dade policial ultrapassa esses limites, sua atuação passa a ser arbitrária, ou seja, contrária à lei. Logo, não se permite à autoridade policial a adoção de diligências investigatórias contrárias à Constituição Federal e à legislação infraconstitucional. Portanto, quando o art. 2o, § 2o, da Lei n° 12.830/13, dispõe que cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, do­ cumentos e dados que interessem à apuração dos fatos, não se pode perder de vista que certas diligências investigatórias demandam prévia autorização judicial, sujeitas que estão à denomi­ nada cláusula de reserva de jurisdição (v.g., prisão temporária, mandado de busca domiciliar). Assim, apesar de o delegado de polícia ter discricionariedade para avaliar a necessidade de interceptação telefônica, não poderá fazê-lo sem autorização judicial. Nos mesmos moldes, por ocasião do interrogatório policial do investigado, deverá adverti-lo quanto ao direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII). Especial atenção deve ser dispensada ao art. 14 do CPP. De acordo com referido dispositivo, “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”. Interpretação gramatical do referido dispositivo poderia levar à conclusão de que fica ao puro alvedrio da autoridade policial determinar, ou não, eventuais diligências requeridas pelo investigado. Não obstante, certo é que essa discri­ cionariedade da autoridade policial não tem caráter absoluto, sobretudo se considerarmos que o próprio art. 184 do CPP estabelece que salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao escla­ recimento da verdade. Portanto, supondo que o delegado de polícia não tenha determinado a realização do exa­ me de corpo de delito, malferindo a regra do art. 6o, VII, do CPP, o art. 14 c/c art. 184 do CPP não deixam dúvidas de que a autoridade policial não poderá negar a perícia requerida pelo investigado quando se tratar de exame destinado a comprovar a materialidade do delito. Entende-se, pois, que a autoridade policial não pode negar o requerimento de diligências que guardem importância e correlação com o esclarecimento dos fatos. Admite-se, a contrario sensu, o indeferimento de medidas inúteis, protelatórias ou desnecessárias, o que, por cautela, deve ser feito motivadamente.

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De todo modo, caso uma diligência requerida pela defesa à autoridade policial não tenha sido realizada, assiste ao advogado a possibilidade de reiterar sua solicitação perante o juiz ou o Ministério Público, que poderão, então, requisitar sua realização à autoridade policial. Nes­ sa linha, em caso concreto em que o requerimento formulado pelo investigado para oitiva de testemunhas e quebra de seu sigilo telefônico foi indeferido pela autoridade policial, concluiu a 6a Turma do STJ ser cabível a impetração de habeas corpus com o objetivo de assegurar o cumprimento das referidas diligências, até mesmo de modo a se evitar apressado e errôneo juízo acerca da responsabilidade do investigado.42 6.6. Procedimento oficial Incumbe ao Delegado de Polícia (civil ou federal) a presidência do inquérito policial. Vê-se, pois, que o inquérito policial fica a cargo de órgão oficial do Estado, nos termos do art. 144, § Io, I, c/c art. 144, § 4o, da Constituição Federal. 6.7. Procedimento oficioso Ao tomar conhecimento de notícia de crime de ação penal pública incondicionada, a au­ toridade policial é obrigada a agir de ofício, independentemente de provocação da vítima e/ou qualquer outra pessoa. Deve, pois, instaurar o inquérito policial de ofício, nos exatos termos do art. 5o, I, do CPP, procedendo, então, às diligências investigatórias no sentido de obter ele­ mentos de informação quanto à infração penal e sua autoria. Para a instauração do inquérito policial, basta a notícia de fato formalmente típico, devendo a autoridade policial abster-se de fazer qualquer análise quanto à presença de causas excludentes da ilicitude ou da culpabilidade. No caso de crimes de ação penal pública condicionada à representação e de ação penal de iniciativa privada, a instauração do inquérito policial está condicionada à manifestação da vítima ou de seu representante legal. Porém, uma vez demonstrado o interesse do ofendido na persecução penal, a autoridade policial é obrigada a agir de ofício, determinando as diligências necessárias à apuração do delito. Essa característica da oficiosidade do inquérito policial não é incompatível com a discricionariedade de que tratamos acima. A oficiosidade está relacionada à obrigatoriedade de instauração de inquérito policial quando a autoridade policial toma conhecimento de infração penal de ação penal pública incondicionada; a discricionariedade guarda relação com a forma de condução das investigações, seja no tocante à natureza dos atos investigatórios (provas periciais, acareações, oitiva de testemunhas, etc.), seja em relação à ordem de sua realização. 6.8. Procedimento indisponível De acordo com o art. 17 do CPP, a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito policial. Diante da notícia de uma infração penal, o Delegado de Polícia não está obrigado a instaurar o inquérito policial, devendo antes verificar a procedência das informações, assim como aferir a própria tipicidade da conduta noticiada. Com efeito, a jurisprudência tem reconhecido a validade de investigações preliminares realizadas antes da instauração do inquérito policial, por meio de procedimento alcunhado de verificação de procedência de informação (VPI). De todo modo, uma vez determinada a instauração do inquérito policial, o arquivamento dos autos somente será possível a partir de pedido formulado pelo titular da ação penal, com ulterior apreciação pela autoridade judiciária competente. Logo, uma vez instaurado o inquérito policial, mesmo que a 42

STJ,

Turma, HC 69.405/SP, Rei. Min. Nilson Naves, j. 23/10/2007, DJ 25/02/2008 p. 362.

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autoridade policial conclua pela atipicidade da conduta investigada, não poderá determinar o arquivamento do inquérito policial. 6.9. Procedimento temporário Diz o Código de Processo Penal, em seu art. 10, § 3o, que, quando o fato for de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, a autoridade policial poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz. No dia-a-dia de fóruns criminais e delegacias, o que se vê é a existência de um número incontável de inquéritos em relação a investigados soltos que tem seu prazo de conclusão pror­ rogado ad eternum. Mas seria possível, então, que alguém fosse objeto de investigação em um inquérito policial por 10, 15 anos? A nosso ver, diante da inserção do direito à razoável duração do processo na Constituição Federal (art. 5o, LXXVIII), já não há mais dúvidas de que um inquérito policial não pode ter seu prazo de conclusão prorrogado indefinidamente. As diligências devem ser realizadas pela autoridade policial enquanto houver necessidade. Evidentemente, em situações mais complexas, envolvendo vários acusados, é lógico que o prazo para a conclusão das investigações deverá ser sucessivamente prorrogado. Porém, uma vez verificada a impossibilidade de colheita de elementos que autorizem o oferecimento de denúncia, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento dos autos.43 Não obstante o silêncio da legislação brasileira quanto às conseqüências de eventual dilação indevida referente a persecuções criminais em que o acusado esteja em liberdade, em pioneiro julgado acerca do assunto, a 5a Turma do STJ concedeu a ordem para determinar o trancamento de inquérito policial em andamento em relação a suspeitos que estavam em liberdade, por entender que, no caso concreto, passados mais de sete anos desde a instauração do inquérito, ainda não teria havido o oferecimento da denúncia contra os pacientes. Nas palavras do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, “é certo que existe jurisprudência, inclusive desta Corte, que afirma inexistir constrangimento ilegal pela simples instauração de Inquérito Policial, mormente quando o inves­ tigado está solto, diante da ausência de constrição em sua liberdade de locomoção; entretanto, não se pode admitir que alguém seja objeto de investigação eterna, porque essa situação, por si só, enseja evidente constrangimento, abalo moral e, muitas vezes, econômico e financeiro, principalmente quando se trata de grandes empresas e empresários e os fatos já foram objeto de Inquérito Policial arquivado a pedido do Parquet Federal”.44 7. FORMAS DE INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL A forma de instauração do inquérito policial varia de acordo com a espécie de ação penal. 7.1. Crimes de ação penal pública incondicionada Em regra, os crimes são de ação penal pública incondicionada. Em outras palavras, se a lei não dispor que “se procede mediante queixa” (crimes de ação penal de iniciativa privada) ou 43

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Para Gustavo Henrique Badaró e Aury Lopes Jr., o prazo razoável a que se refere o art. 59, LXXVIII, da Constituição Federal, incide desde a fase pré-processual, com a abertura do respectivo procedimento investigatório. Segun­ do os autores, "o fato de o dispositivo constitucional assegurar a razoável duração do 'processo' não pode ser argumento para excluir sua incidência na fase pré-processual. Pensamos que o legislador referiu-se a processo como o todo, incluindo as fases de investigação e judicial". (Direito ao processo penal no prazo razoável. 2- ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 90). STJ, 5^ Turma, HC 96.666/MA, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 04/09/2008, DJe 22/09/2008.

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que “se procede mediante representação ou requisição do Ministro da Justiça” (crimes de ação penal pública condicionada), subentende-se que o crime é de ação penal pública incondicionada. Nos crimes de ação penal pública incondicionada, o inquérito policial pode ser instaurado das seguintes formas: a) de ofício: por força do princípio da obrigatoriedade, que também se estende à fase investigatória,45 caso a autoridade policial tome conhecimento do fato delituoso a partir de suas atividades rotineiras (v.g., notícia veiculada na imprensa, registro de ocorrência, etc.), deve instaurar o inquérito policial de ofício, ou seja, independentemente da provocação de qualquer pessoa (CPP, art. 5o, I). Nesse caso, a peça inaugural do inquérito policial será uma portaria, que deve ser subscrita pelo Delegado de Polícia e conter o objeto da investigação, as circunstâncias já conhecidas quanto ao fato delituoso, assim como as diligências iniciais a serem cumpridas; b) requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público: diz o art. 5o, inciso II, do CPP, que o inquérito será iniciado, nos crimes de ação pública, mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público. Apesar de o CPP fazer menção à possibilidade de a autoridade judiciária requisitar a ins­ tauração de inquérito policial, pensamos que tal possibilidade não se coaduna com a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal. Na verdade, tal dispositivo só guarda pertinência com a ordem jurídica anterior à Constituição Federal, na qual se permitia aos magistrados até mesmo a iniciativa da ação penal, tal qual dispunha o revogado art. 531 do CPP, nos casos de homicídio e lesões corporais culposas.46 Num sistema acusatório, onde há nítida separação das funções de acusar, defender e julgar (CF, art. 129,1), não se pode permitir que o juiz requisite a instauração de inquérito policial, sob pena de evidente prejuízo a sua imparcialidade. Portanto, deparando-se com informações acerca da prática de ilícito penal, deve o magistrado encaminhá-las ao órgão do Ministério Público, nos exatos termos do art. 40 do CPP. Nessa linha, aliás, o art. 10 do CPPM faz menção apenas à requisição do Ministério Público, deixando de prever a possibilidade de a autoridade judiciária militar determinar a instauração de inquérito policial militar. Diante de requisição do Ministério Público, pensamos que a autoridade policial está obrigada a instaurar o inquérito policial: não que haja hierarquia entre promotores e delegados, mas sim por força do princípio da obrigatoriedade, que impõe às autoridades o dever de agir diante da notícia da prática de infração penal. De mais a mais, o art. 129, VIII, da Constituição Federal, determina que são funções insti­ tucionais do Ministério Público requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. Na mesma linha, o art. 13, inciso II, do CPP, dispõe que incumbe à autoridade policial realizar as diligências requisitadas pelo Ministério Público (vide também art. 26, inciso IV, da Lei n° 8.625/93). Logicamente, em se tratando de requisição ministerial manifestamente ilegal (v.g., para investigar crime prescrito ou conduta atípica), deve a autoridade policial abster-se de instaurar o inquérito policial, comunicando sua decisão, justificadamente, ao órgão do Ministério Público responsável pela requisição, assim como às autoridades correcionais. 45

Ferrajoli define tai postulado como "a obrigação dos órgãos da acusação pública de promover o juízo para toda que vier a seu conhecimento - ainda que para requerer o arquivamento ou a absolvição caso considerem o fato penalmente irrelevante ou faltarem indícios de culpabilidade". {D ireito e razão: teo ria do garantism o penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 457). n o titia crim inis

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Nesse sentido: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. l l â ed. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009. p. 47.

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c) requerimento do ofendido ou de seu representante legal: também é possível a ins­ tauração de inquérito policial a partir de requerimento do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo. Esse requerimento conterá, sempre que possível: 1) a narração do fato, com todas as suas circunstâncias; 2) a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de impossibilidade de fazê-lo; 3) a nomeação das testemunhas, com indicação de sua profissão e residência (CPP, art. 5o, § Io). Discute-se, nessa hipótese, se o delegado é obrigado a instaurar o inquérito policial em face do requerimento do ofendido. Prevalece o entendimento no sentido de que ao delegado incumbe verificar a procedência das informações a ele trazidas, evitando-se, assim, a instaura­ ção de investigações temerárias e abusivas. Convencendo-se que a notitia criminis é totalmente descabida, sem respaldo jurídico ou material, como, por exemplo, quando entender que o fato é manifestamente atípico, ou que a punibilidade esteja extinta, deve a autoridade policial indeferir o requerimento do ofendido para instauração de inquérito policial. Indeferido o requerimento do ofendido de abertura do inquérito, surge a possibilidade de recurso inominado para o chefe de Polícia (CPP, art. 5o, § 2o). Esse Chefe de Polícia pode ser o Delegado-Geral da Polícia Civil ou o Secretário de Segurança Pública, a depender do estado da Federação. Nas hipóteses de atribuição da Polícia Federal, esse Chefe de Polícia é o Superintendente da Polícia Federal. A previsão desse recurso não impede que o ofendido faça o requerimento diretamente ao Ministério Público. Caso a autoridade policial, justificadamente, se recuse a instaurar inquérito policial, sob o argumento de que os fatos levados a seu conhecimento são atípicos, não há falar em violação a direito líquido e certo a dar ensejo à impetração de mandado de segurança, sobretudo se consi­ derarmos que há previsão legal de recurso inominado ao Chefe de Polícia.47 d) notícia oferecida por qualquer do povo: de acordo com o art. 5o, § 3o, do CPP, qual­ quer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verifica­ da a procedência das informações, mandará instaurar inquérito. Cuida-se da chamada delatio criminis simples, comumente realizada através de uma ocorrência policial. Mais uma vez, ve­ rificada a procedência e veracidade das informações, deve o delegado determinar a instauração do inquérito policial. Trata-se, portanto, de mera faculdade do cidadão, não tendo ele o dever de noticiar a prática de infração penal. Excepcionalmente, no entanto, a notícia de crime é obrigatória, como deixa entrever o art. 66 do Dec.-lei 3.688/41, segundo o qual constitui contravenção penal deixar de comunicar à autoridade competente: a) crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação; b) crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal. De seu turno, as autoridades públicas, notadamente aquelas envolvidas na persecução penal, por força do princípio da obrigatoriedade, têm o dever de noticiar fatos possivelmente criminosos, sob pena de responderem administrativamente e de incorrerem no delito de preva­ ricação, caso comprovado que a inércia se deu para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (CP, art. 319).

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STJ, 6ã Turma, RMS 7.598/RJ, Rei. Min. William Patterson, j. 09/04/1997, DJ 12/05/1997.

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e) auto de prisão em flagrante delito: a despeito de não constar expressamente do art. 5o do CPP, o auto de prisão em flagrante é, sim, uma das formas de instauração do inquérito policial, funcionando o próprio auto como a peça inaugural da investigação. No âmbito processual penal militar, se o auto de prisão em flagrante delito, por si só, for suficiente para a elucidação do fato e sua autoria, constituirá o inquérito, dispensando outras diligências, salvo o exame de corpo de delito no crime que deixe vestígios, a identificação da coisa e a sua avaliação, quando o seu valor influir na aplicação da pena. A remessa dos autos, com breve relatório da autoridade policial militar, far-se-á sem demora ao juiz competente, no prazo de 20 (vinte) dias, se o indiciado estiver preso (CPPM, art. 27). A despeito do silêncio do CPP acerca do assunto, pensamos ser perfeitamente possível a aplicação subsidiária do art. 27 do CPPM no âmbito processual penal comum, ex vi do art. 3o do CPP. Ora, supondo que o auto de prisão em flagrante lavrado pela autoridade de Polícia Civil já contenha todos os elementos de informação necessários para o oferecimento da denúncia (v.g., prisão em flagrante no caso de tráfico de drogas), e tendo em conta que o inquérito policial é peça dispensável para o início da persecução penal em juízo, por que determinar-se a instauração de inquérito policial? 7.2. Crimes de ação penal pública condicionada e de ação penal de iniciativa privada Nos crimes de ação penal pública condicionada, a deflagração da persecutio criminis está subordinada à representação do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça (CPP, art. 5o, § 4o). Por representação, também denominada de delatio criminis postulatória, entende-se a manifestação da vítima ou de seu representante legal no sentido de que possuem interesse na persecução penal, não havendo necessidade de qualquer formalismo. Nesses casos (v.g., amea­ ça), a instauração do inquérito policial estará vinculada à manifestação da vítima ou de seu representante legal, de onde se possa extrair que têm intenção de ver apurada a responsabilidade penal do autor da infração. Em se tratando de crime de ação penal de iniciativa privada, o Estado fica condicionado ao requerimento do ofendido ou de seu representante legal. Nessa linha, dispõe o art. 5o, § 5o, do CPP, que a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito nos crimes de ação pri­ vada a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la. No caso de morte ou ausência do ofendido, o requerimento poderá ser formulado por seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (CPP, art. 31). Como se vê, esse requerimento é condição de procedibilidade do próprio inquérito policial, sem o qual a investigação sequer poderá ter início. Esse requerimento deve ser formulado pelo ofendido dentro do prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado, em regra, do dia em que vier a saber quem é o autor do crime. Portanto, verificando a autoridade policial que o requerimento do ofendido foi formulado após o decurso do prazo decadencial de 6 (seis) meses, deve se abster de instaurar o inquérito policial, porquanto extinta a punibilidade (CP, art. 107, IV).48 Em relação aos crimes de ação penal pública condicionada e de ação penal de iniciativa privada, a instauração do inquérito policial também poderá se dar em virtude de auto de prisão em flagrante, o qual deverá ser precedido de requerimento da vítima ou de seu representante legal. No tocante a tais delitos, é plenamente possível a captura e a condução coercitiva daquele que for encontrado em situação de flagrância, fazendo-se cessar a agressão com o escopo de manter a paz e a tranqüilidade social. No entanto, a lavratura do auto de prisão em flagrante

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Importante lembrar que o requerimento de instauração de inquérito policial não interrompe nem suspende a fluência do prazo decadencial.

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estará condicionada à manifestação do ofendido ou de seu representante legal. Se a vítima não puder imediatamente ir à delegacia para se manifestar, por ter sido conduzida ao hospital ou por qualquer motivo relevante, poderá fazê-lo no prazo de entrega da nota de culpa, que é de 24 (vinte e quatro) horas. 8 . N O T I T IA C R I M I N I S

Notitia criminis é o conhecimento, espontâneo ou provocado, por parte da autoridade po­ licial, acerca de um fato delituoso. Subdivide-se em: a) notitia criminis de cognição imediata (ou espontânea): ocorre quando a autoridade policial toma conhecimento do fato delituoso por meio de suas atividades rotineiras. É o que acontece, por exemplo, quando o delegado de polícia toma conhecimento da prática de um crime por meio da imprensa; b) notitia criminis de cognição mediata (ou provocada): ocorre quando a autoridade po­ licial toma conhecimento da infração penal através de um expediente escrito. É o que acontece, por exemplo, nas hipóteses de requisição do Ministério Público, representação do ofendido, etc. c) notitia criminis de cognição coercitiva: ocorre quando a autoridade policial toma co­ nhecimento do fato delituoso através da apresentação do indivíduo preso em flagrante. 8.1. D elatio crim inis A delatio criminis é uma espécie de notitia criminis, consubstanciada na comunicação de uma infração penal feita por qualquer pessoa do povo à autoridade policial, e não pela vítima ou seu representante legal. A depender do caso concreto, pode funcionar como uma notitia criminis de cognição imediata, quando a comunicação à autoridade policial é feita durante suas atividades rotineiras, ou como notitia criminis de cognição mediata, na hipótese em que a comunicação à autoridade policial feita por terceiro se dá através de expediente escrito. 8.2. N o titia crim in is inqualificada Muito se discute quanto à possibilidade de um inquérito policial ter início a partir de uma notitia criminis inqualificada, vulgarmente conhecida como denúncia anônima (v.g., disque-denúncia). Não se pode negar a grande importância da denúncia anônima no combate à crimi­ nalidade. De fato, por mais que grande parte da população tenha interesse em colaborar com a elucidação de um crime, é natural que não tenha interesse na divulgação da sua identidade, haja vista o temor de sofrer algum tipo de represália. Não por outro motivo, o art. 3o da Lei n. 13.608/18 dispõe expressamente que “o informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados”.49 Porém, não se pode olvidar que a pró­ pria Constituição Federal estabelece que é vedado o anonimato (CF, art. 5o, IV). Como, então, conciliar-se a denúncia anônima com a vedação do anonimato? Diante de uma denúncia anônima, deve a autoridade policial, antes de instaurar o inquérito policial, verificar a procedência e veracidade das informações por ela veiculadas. Recomenda-se, pois, que a autoridade policial, antes de proceder à instauração formal do inquérito policial, realize uma investigação preliminar a fim de constatar a plausibilidade da denúncia anônima. Afigura-se impossível a instauração de procedimento criminal baseado única e exclusivamente

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A Lei n. 13.608/18 também dispõe, em seu art. 4e, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos, dentre elas o pagamento de valores em espécie.

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em denúncia anônima, haja vista a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal. Na dicção da Suprema Corte, a instauração de procedimento criminal originada apenas em documento apócrifo seria contrária à ordem jurídica constitucional, que veda expressamente o anonimato. Diante da necessidade de se preservar a dignidade da pessoa humana, o acolhimento da delação anônima permitiria a prática do denuncismo inescrupuloso, voltado a prejudicar desafetos, impossibilitando eventual indenização por danos morais ou materiais, assim como eventual responsabilização criminal pelo delito de denunciação caluniosa (CP, art. 339), o que ofenderia os princípios consagrados nos incisos V e X do art. 5o da CF.50 Em síntese, pode-se dizer que a denúncia anônima, por si só, não serve para fundamentar a instauração de inquérito policial, mas, a partir dela, pode a polícia realizar diligências preli­ minares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito.51 9. DILIGÊNCIAS INVESTIGATÓRIAS O Código de Processo Penal traz, em seu arts. 6o e 7o, um rol exemplificativo de diligências investigatórias que poderão ser adotadas pela autoridade policial ao tomar conhecimento de um fato delituoso. Algumas são de caráter obrigatório, como, por exemplo, a realização de exame pericial quando a infração deixar vestígios; outras, no entanto, têm sua realização condicionada à discricionariedade da autoridade policial, que deve determinar sua realização de acordo com as peculiaridades do caso concreto (v.g., reconstituição do fato delituoso).52 Vejamos, então, quais são essas diligências: 9.1. Preservação do local do crime Segundo o art. 6o, inciso I, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 8.862/94, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais. Como se percebe, essa preservação do local do crime tem um objetivo precípuo: preservar os vestígios deixados pela infração penal (corpo de delito), a fim de não prejudicar o trabalho a ser desenvolvido pelos peritos criminais. Um dos requisitos básicos para que os peritos criminais possam realizar um exame pericial satisfatório é que o local esteja adequadamente isolado e preservado, a fim de que não se perca qualquer vestígio que tenha sido produzido pelos sujeitos ativos na cena do crime. Daí dispor o art. 169 do CPP que, para o efeito de exame do local onde houver sido prati­ cada a infração, a autoridade providenciará imediatamente para que não se altere o estado das coisas até a chegada dos peritos, que poderão instruir seus laudos com fotografias, desenhos

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STF, 1- Turma, HC 84.827/TO, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 07/08/2007, DJe 147 22/11/2007.

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STF, 1- Turma, HC 95.244/PE, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 23/03/2010, DJe 76 29/04/2010. E ainda: STF, 29 Turma, HC 99.490/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, 23.11.2010; STF, 2a Turma, HC 99.490/SP, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 23/11/2010.

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Várias diligências investigatórias listadas no art. 69 do CPP serão estudadas com mais detalhes no Título atinente às provas (v.g., oitiva do ofendido, reconhecimento de pessoas e coisas, acareações, exame de corpo de delito, etc.). Por isso, sugerimos ao leitor que o presente tópico seja estudado em conjunto com a leitura do item relativo às provas em espécie.

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ou esquemas elucidativos. Os peritos registrarão, no laudo, as alterações do estado das coisas e discutirão, no relatório, as conseqüências dessas alterações na dinâmica dos fatos. A investigação terá mais probabilidade de sucesso caso sejam observados dois fatores básicos: a) Inicie imediatamente as investigações a partir do local onde ocorreu o crime, pois será ali que haverá mais possibilidades de se encontrar alguma informação, tanto sob o aspecto da prova pericial, quanto das demais investigações subjetivas, tais como testemunhas, relatos di­ versos de observadores ocasionais, visualização da área para avaliação de possíveis informações de suspeitos, etc.; b) O tempo é fator que trabalha contra investigadores de polícia e peritos criminais no esclarecimento de qualquer crime, uma vez que, quanto mais tempo se gasta para iniciar de­ terminada investigação, fatalmente informações valiosas serão perdidas, que, em muitos casos, poderão ser essenciais para o resultado final da investigação.53 Em caso de acidente de trânsito, a autoridade ou agente policial que primeiro tomar conhe­ cimento do fato poderá autorizar, independentemente de exame do local, a imediata remoção das pessoas que tenham sofrido lesão, bem como dos veículos nele envolvidos, se estiverem no leito da via pública e prejudicarem o tráfego. Para autorizar a remoção, a autoridade ou agente policial lavrará boletim da ocorrência, nele consignado o fato, as testemunhas que o presenciaram e todas as demais circunstâncias necessárias ao esclarecimento da verdade (Lei n° 5.970/83, art. Io). 9.2 Apreensão de objetos Outra diligência que deve ser adotada pela autoridade policial é a apreensão dos objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais. A apreensão dos objetos relacionados ao fato delituoso tem os seguintes objetivos: a) futura exibição do instrumento utilizado para a prática do delito, como, por exemplo, durante o plenário do Tribunal do Júri; b) necessidade de contraprova; c) eventual perda em favor da União como efeito da conde­ nação (confisco). É possível a apreensão de quaisquer objetos que guardem relação com o fato delituoso, pouco importando sua origem lícita ou ilícita. Esses objetos apreendidos deverão acompanhar os autos do inquérito policial, nos termos do art. 11 do CPP. Por força dos arts. 118, 119 e 120 do CPP, não poderão ser restituídas: a) as coisas apreendidas, enquanto interessarem ao processo; b) os instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito produto do crime; c) qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso; d) objetos em relação aos quais haja dúvida quanto ao direito do reclamante. Para que a apreensão seja considerada lícita, há de se ficar atento aos requisitos da medida cautelar de busca pessoal e de busca domiciliar. A busca pessoal independe de prévia autorização judicial quando realizada sobre o indivíduo que está sendo preso, quando houver fundada sus­ peita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam o corpo de delito, assim como na hipótese de cumprimento de mandado de busca domiciliar (CPP, art. 244). A busca domiciliar está condicionada à observância do art. 5o, XI, da Constituição Fede­ ral, segundo o qual a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem

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M anual operacional do policial civil: doutrina, legislação, modelos.

São Paulo: Delegacia Geral de Polícia, 2002. p. 144.

Coordenação Carlos Alberto Marchi de Queiroz.

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consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. 9.3. Colheita de outras provas Confirmando a discricionariedade dispensada ao trabalho investigatório da autoridade po­ licial no curso do inquérito policial, prevê o CPP que a autoridade policial deve colher todas as provas que sirvam para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias (art. 6o, III). Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n° 11.340/06, art. 11), a autoridade policial deverá, entre outras providências: I - garantir proteção policial, quando ne­ cessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias; III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a con­ cessão de medidas protetivas de urgência; IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários; V - ouvir o agressor e as testemunhas; VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele; VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público. O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter: I - qua­ lificação da ofendida e do agressor; II - nome e idade dos dependentes; III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida. A autoridade policial deverá anexar a esse pedido da ofendida o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida. Ademais, nesses casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, serão ad­ mitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde. 9.4. Oitiva do ofendido Deve a autoridade policial proceder à oitiva do ofendido, se possível. Conquanto o depoi­ mento do ofendido deva ser colhido com certa reserva, haja vista seu envolvimento emocional com o fato delituoso e conseqüente interesse no deslinde da investigação, as informações por ele prestadas poderão ser muito úteis na busca de fontes de provas, contribuindo para o êxito das investigações. Como aduz Antônio Scarance Fernandes, “o próprio sucesso da investigação e, consequen­ temente, o bom resultado final do processo dependem muito do interesse da vítima em colaborar. É ela quase sempre quem comunica o crime e indica as principais testemunhas. O seu retomo

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para prestar ou fornecer novos esclarecimentos é de máxima importância. A sua participação é necessária para a realização de diligências relevantes, tais como os reconhecimentos de pessoas e coisas e a elaboração do exame de corpo de delito”.54 De acordo com o art. 201, § Io, do CPP, se, intimado para esse fim, o ofendido deixar de comparecer, é possível que a autoridade policial determine sua condução coercitiva. 9.5. Oitiva do indiciado De acordo com o art. 6o, V, do CPP, a autoridade policial deverá ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, de­ vendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura.55 Por força do princípio do nemo tenetur se detegere, há de se lembrar que o suspeito, in­ vestigado, indiciado ou acusado não é obrigado a produzir prova contra si mesmo (direito à não autoincriminação). Portanto, deve o investigado ser formalmente advertido pela autoridade policial que tem direito ao silêncio, e que do exercício desse direito não poderá decorrer qualquer prejuízo a sua pessoa. Não há mais necessidade de curador para o indiciado menor de 21 (vinte e um) anos. Isso porque, por força do Código Civil (art. 5o), a menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos. Ademais, o art. 194 do CPP, que previa a necessidade de nomeação de curador para o menor de 21 anos por ocasião do interrogatório judicial, foi revogado pela Lei n° 10.792/03. Daí o entendimento da doutrina no sentido da revogação tácita do art. 15 do CPP. Se os privilégios processuais para os menores de 21 e maiores de 18 anos deixaram de existir em face do novo Código Civil, importante esclarecer que as normas de natureza material que lhes são favoráveis ainda permanecem em vigor, como, por exemplo, a contagem da prescrição pela metade (CP, art. 115).56Não se pode esquecer, todavia, que ainda se afigura possível a nomeação de curador para o índio não adaptado ao convívio social, assim como para o inimputável do art. 26, caput, do CP, tal qual dispõe o art. 151 do CPP. O Marco Civil da Primeira Infância acrescentou uma nova diligência policial ao rol exemplificativo do art. 6o do CPP, qual seja, a colheita de informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa (inciso X). Questionamento semelhante a este também deve ser feito à pessoa presa por ocasião do interrogatório judicial e da lavratura do auto de prisão em flagrante (CPP, arts. 185, § 10, e 304, § 4o, incluídos pela Lei n° 13.257/16). O objetivo do legislador é conferir ao magistrado informações mais completas acerca da pessoa presa para fins de possível concessão de prisão domiciliar (CPP, art. 318, III, V, e VI). 9.6. Reconhecimento de pessoas e coisas e acareações Incumbe à autoridade policial proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações.

54

O papeI da vítim a no processo criminal.

55

Para mais detalhes acerca da obrigatoriedade da presença de defensor por ocasião da realização do interrogatório policial, remetemos o leitor ao item "6.4. Procedimento inquisitorial".

São Paulo: Malheiros, 1995. p. 59-60.

56

No sentido de não mais ser necessária a nomeação de curador especial para indiciados/acusados com idade entre 18 e 21 anos, já que a maioridade passou a ser adquirida não mais aos 21 anos, mas sim aos 18 anos: STJ, HC 89.684, Rei. Min. Felix Fischer, DJU 28.04.08.

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Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa no curso do inquérito policial, proceder-se-á pela forma prevista no art. 226 do CPP. O reconhecimento de coisas é ato ligado à identificação dos instrumentos empregados na prática delituosa (faca, revólver, etc.), dos objetos utilizados para auxiliar no delito (v.g., uma motocicleta usada em um crime de furto) e dos objetos que constituem o produto do crime (automóvel subtraído, celular roubado, etc.). Ao reconhecimento de coisas aplica-se o mesmo procedimento do reconhecimento de pessoas, no que for possível (CPP, art. 227). Por força do princípio da busca da verdade e da liberdade das provas, tem-se admitido a utilização do reconhecimento fotográfico, observando-se, por analogia, o procedimento previsto no CPP para o reconhecimento pessoal.57 A acareação será admitida entre investigados, entre investigado e testemunha, entre testemu­ nhas, entre investigado ou testemunha e a pessoa ofendida, e entre as pessoas ofendidas, sempre que divergirem, em suas declarações, sobre fatos ou circunstâncias relevantes. Os acareados serão reperguntados, para que expliquem os pontos de divergências, reduzindo-se a termo o ato de acareação. Por força do direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), o investigado tem o direito de não colaborar na produção da prova sempre que se lhe exigir um comportamento ativo, um facere, daí por que não é obrigado a participar da acareação. Todavia, em relação às provas que demandam apenas que o acusado tolere a sua realização, ou seja, aquelas que exijam uma cooperação meramente passiva, não se há falar em violação ao nemo tenetur se detegere. O direito de não produzir prova contra si mesmo não persiste, portanto, quando o acusado for mero objeto de verificação. Assim, em se tratando de reco­ nhecimento pessoal, ainda que o acusado não queira voluntariamente participar, admite-se sua execução coercitiva.58 9.7. Determinação de realização de exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias Dentre as várias diligências a serem determinadas pela autoridade policial, prevê o Código a determinação de exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias (CPP, art. 6o, VII). Relem­ bre-se que, por força do art. 158 do CPP, quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direito ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Com vigência em data de 3 de outubro de 2018, a Lei n. 13.721 incluiu um parágrafo único ao art. 158 do CPP para fins de estabelecer a prioridade da realização do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, ou seja, quando presentes os requisitos dos arts. 5o e 7o da Lei Maria da Penha e o sujeito passivo for uma mulher, e quando o delito envolver violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência. 9.8. Identificação do indiciado Consta do art. 6o, VIII, do CPP, que a autoridade policial deve ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes. A primeira parte desse preceito do CPP, que entrou em vigor antes da Constituição Fede­ ral, deve ser lida em cotejo com o art. 5o, LVIII, da Carta Magna, que prevê que o civilmente

57

STJ,

58

Em sentido diverso: FIORI, Ariane Trevisan. A prova e a intervenção corporal: sua valoração no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 94.

Turma, HC 136.147/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 06/10/2009, DJe 03/11/2009.

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identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei. Por isso, grande parte da doutrina advoga que a norma constante do art. 6o, VIII, do CPP, é incompatível com a Carta Magna, visto que referido dispositivo legal não pode ser considerado como a exceção prevista no texto constitucional. Portanto, para que seja possível a identificação criminal, mister se faz analisar a lei específica que versa sobre o assunto - Lei n° 12.037/09 -, o que será feito mais adiante. A folha de antecedentes é a ficha que contém a vida pregressa criminal do investigado, de onde constam dados como a relação dos inquéritos policiais já instaurados contra sua pessoa e sua respectiva destinação. Atente-se, neste ponto, à nova redação conferida ao art. 20, parágrafo único, do CPP, pela Lei n° 12.681/12: “nos atestados de antecedentes que lhe forem solicitados, a autoridade policial não poderá mencionar quaisquer anotações referentes à instauração de inquérito contra os requerentes”. Em sua redação anterior, o dispositivo ressalva a possibilidade de constar da folha de antecedentes eventual condenação anterior. 9.9. Averiguação da vida pregressa do investigado Incumbe também à autoridade policial averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter. 9.10. Reconstituição do fato delituoso Por fim, dispõe o art. 7o do CPP que, a fim de verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo, a autoridade policial poderá proceder à reprodução simulada dos fatos, desde que esta não contrarie a moralidade ou a ordem pública (por exemplo, crime contra a dignidade sexual). Por força do direito de não produzir prova contra si mesmo, doutrina e jurisprudência têm adotado o entendimento de que não se pode exigir um comportamento ativo do acusado, caso desse facere possa resultar a autoincriminação. Assim, sempre que a produção da prova tiver como pressuposto uma ação por parte do acusado (v.g., acareação, reconstituição do crime, exame grafotécnico, bafômetro, etc.), será indispensável seu consentimento. Cuidando-se do exercício de um direito, não se admitem medidas coercitivas contra o acusado para obrigá-lo a cooperar na produção de provas que dele demandem um comportamento ativo. Além disso, a recusa do acusado em se submeter a tais provas não configura o crime de desobediência nem o de desacato, e dela não pode ser extraída nenhuma presunção de culpabilidade, pelo menos no processo penal. Portanto, se o investigado não é obrigado a participar da reconstituição do crime, pensamos não ser possível sua condução coercitiva para tanto. Acerca do assunto, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que con­ figura constrangimento ilegal a decretação de prisão preventiva de indiciados diante da recusa destes em participarem de reconstituição do crime.59Afinal, cuidando-se de prova que depende da colaboração ativa do acusado, não se pode exigir sua participação, sob pena de violação ao n e m o te n e t u r s e d e te g e r e . 60

Tratando-se o inquérito policial de procedimento de natureza inquisitorial, não se faz ne­ cessária a intimação do investigado ou de seu advogado para participar da reconstituição do fato delituoso feita em sede de investigação policial. Obviamente, caso a reprodução simulada 59

STF, Tribunal Pleno, HC 64.354/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, j. 01/07/1987, DJ 14/08/1987.

60

STF, 1- Turma, HC 69.026/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 10/12/1991, DJ 04/09/1992.

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dos fatos ocorra na fase judicial, a validade dessa prova estará condicionada à observância do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5o, LV). 9.11. Acesso aos dados cadastrais de vítimas e de suspeitos. Introduzido pela Lei n° 13.344/16, que versa sobre o tráfico interno e internacional de pessoas, o novel art. 13-A do CPP permite o acesso imediato do Delegado de Polícia e do órgão do Ministério Público aos dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos da prática dos crimes de seqüestro e cárcere privado, redução a condição análoga à de escravo, tráfico de pessoas, extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, extorsão mediante seqüestro (CP, arts. 148, 149, 149-A, 158, § 3o e 159, respectivamente), e também do crime do art. 239 do Estatuto da Criança e do Adolescente (“Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro”). Não se trata de novidade no nosso ordenamento jurídico. De fato, dispositivos semelhantes a este já eram encontrados no art. 17-B da Lei de Lavagem de Capitais (Lei n° 9.613/98, com redação dada pela Lei n° 12.683/12) e no art. 15 da nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13). Há, todavia, duas diferenças fundamentais entre tais dispositivos: a) o art. 13-A do CPP não é tão explícito quanto os arts. 17-B da Lei n° 9.613/98 e 15 da Lei n° 12.850/13: enquanto aquele menciona apenas o acesso a dados e informações cadastrais de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas de iniciativa privada, estes fazem referência ao acesso aos dados cadastrais que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito. Como o art. 13-A do CPP não é muito claro acerca dos dados e informações cadastrais a que o Delegado de Polícia e o Ministério Público poderão ter acesso independentemente de prévia autorização judicial, nem tampouco em relação aos órgãos do poder público e às empresas de iniciativa privada que estão obrigados a atender à requisição no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, parece-nos perfeitamente possível a aplicação, por analogia, da mesma amplitude prevista na legislação especial acima citada. Afinal, é a própria Lei n° 13.344/16 que autoriza a aplicação subsidiária da Lei n° 12.850/13 aos crimes de tráfico de pessoas (art. 9o); b) os arts. 17-B da Lei n° 9.613/98 e 15 da Lei n° 12.850/13 autorizam o acesso aos dados cadastrais dos investigados, ao passo que o novel art. 13-A do CPP faz referência aos dados dos sus­ peitos e das vítimas, o que, convenhamos, se revela bastante salutar. Afinal, como são relativamente freqüentes os contatos entre os aliciadores e as vítimas de tráfico de pessoas, quer por telefone, quer pela internet, tais informações podem ser extremamente úteis ao longo das investigações, seja para fins de identificação dos suspeitos, seja para fins de localização das próprias vítimas. Certamente, haverá quem diga que os arts. 13-A do CPP, 17-B da Lei n° 9.613/98, e 15 da Lei n° 12.850/13 são flagrantemente inconstitucionais. Preferimos, no entanto, entender que esses dados cadastrais não estão protegidos pela garantia constitucional da intimidade (CF, art. 5o, X). Afinal, se empresas de concessão de crédito ou mesmo pessoas jurídicas que assinam determinados serviços a elas disponibilizados têm fácil acesso aos dados cadastrais de clientes ou potenciais clientes, não se pode negar este mesmo acesso às autoridades públicas, indepen­ dentemente de prévia autorização judicial. Como observa Tércio Sampaio Ferraz Júnior, deve se partir da premissa de que a inviolabili­ dade dos dados referentes à vida privada só tem pertinência para aqueles associados aos elementos identificadores usados nas relações de convivência, as quais só dizem respeito aos conviventes.

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Nas palavras do autor, “os elementos de identificação só são protegidos quando compõem re­ lação de convivência privadas: a proteção é para elas, não para eles. Em conseqüência, simples cadastros de elementos identificadores (nome, endereço, RG, filiação, etc.), não são protegidos”.61 A propósito, há precedentes do STJ no sentido de que a simples titularidade e o endereço do computador do qual partiu o escrito criminoso não estão resguardados pelo sigilo de que cuida o inciso XII do artigo 5o da Constituição da República, nem tampouco pelo direito à intimidade prescrito no inciso X, que não é absoluto.62 Portanto, independentemente de prévia autorização judicial, é possível que a Polícia e o Ministério Público tenham acesso exclusivamente aos dados cadastrais do investigado contendo as seguintes informações: a) qualificação pessoal: é composta pelo nome, nacionalidade, natu­ ralidade, data de nascimento, estado civil, profissão, número de carteira de identidade e número de registro no cadastro de pessoas físicas da Receita Federal; b) filiação: consiste na indicação do nome do pai e da mãe; c) endereço: local de residência e de trabalho. Especificamente em relação às informações prestadas pelas empresas telefônicas, esses dados cadastrais não podem fazer referência à data de início e fim de utilização da linha tele­ fônica, números para os quais foram efetuadas (ou recebidas) ligações, data, hora e tempo da duração das ligações feitas e recebidas. Nesse caso, será necessária prévia autorização judicial.63 Na mesma linha, no tocante às instituições financeiras e administradoras de cartão de cré­ dito, o acesso estará restrito aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereços utilizados para abertura de contas correntes, aplicações financeiras ou solicitações de cartões de créditos. Devem ser excluídas, portanto, eventuais informações quanto à data de abertura da conta corrente, operações com cartão de crédito, listagem das contas corrente de ori­ gem e de destino de operações financeiras, aplicações em fundos de investimentos, transferência de moeda e outros valores para o exterior, etc. Como esses dados estão protegidos pelo sigilo bancário de que trata a Lei Complementar n° 105/01 (art. 5o, § Io), o acesso a tais informações depende, em regra, de prévia autorização judicial. Para que o Delegado de Polícia e o Ministério Público tenham acesso a esses dados, a requisição policial (ou ministerial) deverá conter: a) o nome da autoridade requisitante; b) o número do inquérito policial (ou do procedimento investigatório criminal, no caso de investi­ gação presidida pelo Ministério Público); c) a identificação da unidade de polícia judiciária (ou Promotoria de Justiça) responsável pela investigação (CPP, art. 13-A, parágrafo único).

61.

Sigilo de dados: o direito à privacidade e os lim ites à fun ção fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito. São Paulo: USP, vol. 88, 1993, p. 449. No sentido da constitucionalidade do art. 15 da Lei ns 12.850/13: MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. 2§ ed. São Paulo: Método, 2016. p. 230.

62.

STJ, 6a Turma, HC83.338/DF, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 29/09/2009, DJe 26/10/2009. Em outro julgado, a 6§ Turma do STJ concluiu que a decisão que autoriza a quebra dos dados cadastrais de certa linha telefônica, com o fito de saber quem é seu titular, não importa quebra do sigilo das telecomunicações: STJ, 6ã Turma, HC 190.917/SP, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP -, j. 15/03/2011, DJe 28/03/2011. No sentido de que o disposto no art. 5Q, XII, da Constituição Federal não impede o acesso aos dados em si, ou seja, o objeto protegido no direito à inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas tão somente a comunicação desses dados: STJ, 6^ Turma, HC 128.466/PR, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 12/03/2013, DJe 19/03/2013.

63.

Com entendimento semelhante, referindo-se, todavia, ao art. 17-B da Lei n? 9.613/98: BADARÓ, Gustavo Hen­ rique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais - com entários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 355. Segundo os autores, no que diz respeito aos provedores de internet, estarão protegidos pela intimidade e, portanto, condicionadas à prévia autorização judicial, as senhas de acesso utilizadas, os sites visitados, os IP's com que se deu determinada conexão, o conteúdo dos e-mails e informações sobre com quem há trocas de mensagens eletrônicas, as datas e horas de tais mensagens etc.

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9.12. Requisição de informações acerca das estações rádio base (ERB’s). De acordo com o art. 13-B do CPP, introduzido pela Lei n° 13.344/16, “se necessário à prevenção e à repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o Delegado de Polícia poderão requisitar, mediante autorização judicial, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados - como sinais, informações e outros - que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso”. Apesar da falta de clareza por parte do legislador - o art. 13-B, § Io, do CPP, dispõe que sinal significa posicionamento da estação de cobertura, setorização e intensidade de radiofre­ qüência -, deve se compreender que o novel dispositivo cuida do acesso ao posicionamento das denominadas estações rádio base (ERB). Por meio da estação rádio base (ERB), é possível saber a localização aproximada de qualquer aparelho celular ligado, desde que este esteja em uso, seja recebendo ou enviando uma mensagem, seja fazendo ou recebendo uma ligação,64 e, consequentemente, de seu usuário. Grosso modo, as ERB’s são as antenas ou estações fixas utilizadas pelos aparelhos móveis para se comunicar. Utilizando seus dados, é possível saber o local aproximado onde se encontra o referido aparelho. Ademais, muitos celulares possuem GPS, o que permite encontrá-los em determinado momento ou saber, posteriormente, por onde seus proprietários estiveram. Tais informações podem ser extremamente úteis em determinadas investigações, não apenas como indício de que determinado agente estava nas proximidades do local do crime no exato momento em que o delito foi execu­ tado, mas também como contra-indício para infirmar a validade de eventual álibi apresentado pelo acusado no sentido de que estava em local diverso à época do delito.65 O novel dispositivo é extremamente dúbio e há de provocar intensas controvérsias, por­ quanto ora exige prévia autorização judicial para o acesso a tais informações (CPP, art. 13-B, caput), ora a dispensa (CPP, art. 13-B, § 4o). Certamente hão de se formar duas posições acerca do assunto. Vejamos seus respectivos argumentos: a) o acesso ao posicionamento das estações rádio base (ERB’s) não depende de prévia autorização judicial: a interceptação das comunicações telefônicas está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, nos termos do inciso XII do art. 5o da CF. Todavia, não se pode confun­ dir a interceptação das comunicações telefônicas com a obtenção de informações quanto ao posicionamento das ERB’s, verdadeira espécie de dados telefônicos, que podem ser obtidos pelas autoridades responsáveis pelas investigações preliminares independentemente de prévia autorização judicial. A propósito, como já se pronunciou a 6a Turma do STJ, “(...) o teor das comunicações efetuadas pelo telefone e os dados transmitidos por via telefônica são abrangidos pela inviolabilidade do sigilo - artigo 5o, inciso XII, da Constituição Federal - , sendo indispen­ sável a prévia autorização judicial para a sua quebra, o que não ocorre no que tange aos dados cadastrais, externos ao conteúdo das transmissões telemáticas. Não se constata ilegalidade no proceder policial, que requereu à operadora de telefonia móvel responsável pela Estação Rádio-Base o registro dos telefones que utilizaram o serviço na localidade, em dia e hora da prática 64.

Não por outro motivo, criminosos mais experientes costumam desligar seus respectivos aparelhos celulares por ocasião da execução de crimes, exatamente para impedir o rastreamento da sua localização por meio do acesso ao posicionamento das estações rádio base.

65.

A obtenção das informações atinentes às estações radio-base (ERB's) não se confunde com a denominada bilhetagem , assim compreendida a emissão de um relatório ou listagem contendo todas as ligações feitas pelo usuário num determinado período de tempo, contendo os números dos terminais para os quais foram feitas e dos quais foram recebidas ligações, a data, o horário e duração da chamada.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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do crime. A autoridade policial atuou no exercício do seu mister constitucional, figurando a diligência dentre outras realizadas ao longo de quase 7 (sete) anos de investigação. Ademais, eventuais excessos praticados com os registros logrados podem ser submetidos posteriormente ao controle judicial, a fim de se verificar qualquer achincalhe ao regramento normativo pátrio. In casu, a autoridade policial não solicitou à operadora de telefonia o rol dos proprietários das linhas telefônicas ou o teor do colóquio dos interlocutores, apenas os numerários que utilizaram a Estação de Rádio-Base na região, em período adstrito ao lapso delitivo, não carecendo de anterior decisão judicial para tanto, sobressaindo, inclusive, a necessidade da medida policial adotada, que delimitou a solicitação para a quebra do sigilo das conversas dos interlocutores dos telefones e da identificação dos números que os contactaram, feita perante o Juízo compe­ tente, que aquiesceu com a obtenção do requestado. (.,.)”.66 Destarte, é imperioso submeter o art. 13-B, caput, do CPP, a uma interpretação restritiva, porquanto o dispositivo disse mais do que pretendia dizer. Ou seja, conquanto o referido dispositivo faça referência à necessidade de autorização judicial, também faz uso do verbo requisitar, no sentido de ordem, do que se conclui que não há necessidade de prévia autorização judicial. Não bastasse a contradição inequívoca do caput do art. 13-B, que faz menção à requisição mediante autorização judicial, verdadeira contradictio in terminis, a desnecessidade de prévia autorização judicial para que a Polícia e o Ministério tenham acesso a tais informações é corroborada pelo teor dos próprios parágrafos do art. 13-B. Consoante disposto no art. 13-B, § 2o, inciso III, do CPP, para períodos superiores a 60 (sessenta) dias, será necessária a apresentação de ordem judicial. Ora, se a execução dessa diligência depende de prévia autorização judicial em toda e qualquer hipótese, como explicar, então, o inciso III do § 2o do art. 13-B do CPP, que impõe ordem judicial nas hipóteses em que a medida se prolongar por período superior a 60 (sessenta) dias? Se assim o fez, parece-nos possível concluir que a diligência pode ser executada sem prévia autorização judicial por até no máximo 60 (sessenta) dias. Ultrapassado este prazo, aí sim se impõe a chancela do Poder Judiciário. O art. 13-B, § 4o, do CPP, também confirma a desnecessidade de prévia autorização judicial ao prever que o decurso do prazo de 12 (doze) horas sem manifestação do magistrado autoriza que as empresas prestadoras de serviços de telecomunicações disponibilizem o acesso imediato ao posicionamento das estações rádio-base. Fosse a medida sujeita à cláusula de reser­ va de jurisdição, certamente não seria o decurso de um prazo tão exíguo circunstância hábil a afastar a necessidade de controle jurisdicional. De modo a evitar eventuais desvios de finalidade por parte do Delegado de Polícia e do órgão ministerial, parece-nos aplicável, in casu, o quanto disposto no art. 13-A, parágrafo único, do CPP, que exige que a requisição contenha o nome da autoridade requisitante, o número do inquérito policial (ou do procedimento investigatório criminal), e a identificação da unidade de polícia judiciária (ou Promotoria de Justiça) respon­ sável pela investigação. Por fim, ainda que se queira objetar que a ausência de controle jurisdi­ cional prévio sobre a execução dessa medida possa dar ensejo a eventuais abusos por parte de policiais e membros do Ministério Público, daí não se pode impor a realização de tal diligência ao amparo da cláusula de reserva de jurisdição, sob pena de se colocar em risco a sua própria eficácia. Enfim, se há abusos e desvios de finalidades, que sejam eles rigorosamente punidos. O que não se pode admitir é a criação de um sentimento indiscriminado de desconfiança em relação à lisura do comportamento do Delegado de Polícia e do órgão do Ministério Público, que sempre estariam a depender de autorização judicial para a realização de toda e qualquer diligência investigatória; 66.

STJ, 6®Turma, HC 247.331/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 21/08/2014, DJe 03/09/2014.

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b) o acesso ao posicionamento das estações rádio base (ERB) depende de prévia auto­ rização judicial (nossa posição): parece caminhar nesse sentido o art. 13-B, caput, do CPP, in­ troduzido pela Lei n° 13.344/16, ao fazer explícita referência à necessidade de prévia autorização judicial. Sem embargo da falta de precisão técnica por parte do legislador, que faz referência à requisição mediante autorização judicial, o que é uma contradição, porque aquele que requisita (v.g., Ministério Público) não depende de prévia autorização judicial, há de se compreender que a obtenção dessas infonnações guarda relação com a proteção do direito à intimidade e à vida privada. Afinal, por meio delas, é possível obter informações acerca da localização aproximada de uma pessoa, desde que esta traga consigo um aparelho celular ligado, o que, de certa forma, tangencia o direito à intimidade e à vida privada, porquanto nem sempre o indivíduo está disposto a revelar sua localização aos outros. Firmada a premissa de que é indispensável prévia autori­ zação judicial para a obtenção dessas informações, forçoso é concluir que o § 4o do art. 13-B é inconstitucional, porquanto não se pode admitir que o mero decurso do prazo de 12 (doze) horas sem manifestação judicial acerca da representação policial (ou do requerimento ministerial) tenha o condão de dispensar a ordem judicial. Ora, como se pode admitir que o caput do art. 13-B do CPP demande autorização judicial para a concretização da diligência e, na seqüência, o § 4o dispense tal exigência? Como observam Ronaldo Batista Pinto e Rogério Sanches Cunha, “ou bem se entende que a ordem judicial é necessária e pouco importa o tempo que o juiz demorará para proferir a decisão, ou bem se entende que a diligência em estudo prescinde do filtro judicial e, por conseqüência, não será o atraso de 12 horas que impedirá sua efetivação”.67 10. IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL 10.1. Conceito Para que o Estado possa punir o autor do delito, é indispensável o conhecimento efetivo e seguro de sua correta identidade, sobretudo se considerarmos que a própria Constituição Federal prevê que nenhuma pena pode passar da pessoa do condenado (art. 5o, XLV, Ia parte). De fato, ainda que não haja qualquer dúvida quanto à autoria do fato delituoso, há situações em que pode haver certa incerteza quanto à verdadeira identidade do autor do crime: afinal, durante a coleta de dados de identificação, é bastante comum que o autor do delito omita seus dados pessoais, apresente informações inexatas, mentindo, usando documento falsos, ou atribuindo-se falsa identidade. Daí a importância da identificação criminal, que desempenha papel fundamental no auxílio da aplicação do direito penal, porquanto, através dela, é feito o registro dos dados identificadores da pessoa que praticou a infração penal sob investigação, possibilitando o conhecimento ou a confirmação de sua identidade, a fim de que, ao término da persecução penal, lhe sejam impostas as sanções decorrentes do delito praticado. A identificação criminal é o gênero do qual são espécies a identificação datiloscópica - feita com base nas saliências papilares da pessoa -, a identificação fotográfica e a novel identifica­ ção do perfil genético, introduzida pela Lei n° 12.654/12. A propósito, dispõe o art. 5o da Lei n° 12.037/09, que a identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação. A identificação criminal abrange, portanto, uma sessão fotográfica, a coleta de impressões digitais do indivíduo e, em algumas hipóteses que serão estudadas mais adiante, a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético. 67.

Tráfico de pessoas: Lei 13.344/2016 com entada p o r artigos.

Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 125.

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Diante da mutabilidade da fisionomia das pessoas e a impossibilidade da formação de um cadastro fotográfico acessível, a fotografia deve ser usada como método auxiliar de identifica­ ção, não sendo possível que a autoridade policial a utilize de maneira exclusiva, dispensando a identificação datiloscópica. Para tanto, deve ser seguido o padrão fotográfico exigido para a cédula de identidade civil, ou seja, a foto de frente, tamanho três por quatro centímetros, prevista na Lei n° 7.116/83. As vantagens da identificação datiloscópica são destacadas pela doutrina: o desenho digital é perene, acompanhando o homem durante toda a vida, sendo notada a formação de pontos característicos a partir do 3o mês de vida fetal, os quais se consolidam, ainda na fase intrauterina, por volta do 6o mês de gestação, podendo ser encontrados, mesmo depois da morte, até a desagregação da matéria. A imutabilidade é a propriedade da inalterabilidade do desenho digital, desde sua formação até a putrefação cadavérica. Ademais, não é possível a localização de digi­ tais idênticas nos diferentes dedos de um mesmo indivíduo ou entre duas pessoas diferentes.68 De modo algum se confundem identificação criminal e qualificação do investigado. A iden­ tificação criminal diz respeito à identificação datiloscópica, fotográfica e genética, e só é pos­ sível nos casos previstos em lei (CF, art. 5o, LVIII). A qualificação do investigado deve ser compreendida como sua individualização, através da obtenção de dados como nome completo, naturalidade, filiação, nacionalidade, estado civil, domicílio, etc. A qualificação do investigado não traz qualquer forma de constrangimento, tipificando o art. 68 da Lei de Contravenções Penais (Dec.-lei 3.688/41) a conduta de recusar à autoridade, quando por esta justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência. Identificação criminal também não se confunde com reconhecimento de pessoas. Naquela, notadamente nas hipóteses de identificação datiloscópica e do perfil genético, há o emprego de técnica científica, sendo que o ato de identificação pressupõe conhecimentos técnicos por parte do identificador. No reconhecimento de pessoas (CPP, art. 226), não se exige habilidade especí­ fica, cuidando-se de mera comparação leiga feita com a finalidade de se encontrar semelhanças entre pessoas ou coisas. Assim, pode-se dizer que, enquanto o reconhecimento é feito por uma pessoa leiga, a identificação é feita por um técnico. 10.2. Leis relativas à identificação criminal Antes da Constituição Federal de 1988, a identificação criminal era tida como a regra, ainda que o indivíduo tivesse se identificado civilmente. Era esse, aliás, o teor do enunciado da súmula n° 568 do Supremo Tribunal Federal: a identificação criminal não constitui constran­ gimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente. No entanto, sob o argumento de que a persecução penal poderia ser levada adiante sem que fosse acompanhada da obrigatória identificação criminal, a Constituição Federal passou a dispor em seu art. 5o, LVIII, que o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei. Como se percebe, o que antes era a regra passou a ser a exceção, estando a identificação criminal do civilmente identificado condicionada à previsão em lei.69 68

SÉRGIO SOBRINHO, Mário. A identificação criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 49. Ainda segundo o autor, "a identidade do homem é determinada pelo emprego de um sistema de identificação mediante a realização de um conjunto técnico (comparação) dos traços físicos ou orgânicos imutáveis (imutabilidade), obtidos nos registros iniciai e posterior, individualizando-o dentro do universo das demais pessoas (unicidade) mediante método prático, simples e eficiente (praticabilidade e classificabilidade)." (op. cit. p. 185).

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Nesse sentido: STF, ia Turma, RHC 66.881/DF, Rei. Min. Octávio Gallotti, j. 07/10/1988, DJ 11/11/1988.

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Daí a importância de verificarmos os dispositivos legais que, ao longo dos anos, passaram a dispor sobre a identificação criminal: 1) art. 109 do Estatuto da Criança e do Adolescente: o adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção ejudiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada; 2) art. 5o da revogada Lei n° 9.034/95: a identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil. Tinha-se, pois, hipótese de identificação criminal compulsória de pessoas envolvidas com o crime organizado, independentemente da existência de identificação civil. Todavia, em data de 19 de setembro de 2013, a Lei n° 9.034/95 foi expressamente revogada pela nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13), da qual não consta nenhum dispositivo expresso acerca da obrigatoriedade de identificação criminal; 3) Lei n° 10.054/00: posteriormente revogada pela Lei n° 12.037/09, a Lei n° 10.054/00 pas­ sou a regulamentar de maneira específica a identificação criminal no ordenamento pátrio. Como o art. 3o, inciso I, da revogada Lei n° 10.054/00, enumerava, de forma incisiva, determinados crimes em que a identificação criminal seria compulsória - homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados com violência ou grave ameaça, receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público -, não constando, dentre eles, a hipótese em que o acusado se envolve com a ação praticada por organizações criminosas, concluiu a 5a Turma do STJ que o preceito do art. 5o da Lei n° 9.034/95 (hoje revogada expressamente pela Lei n° 12.850/13) já teria sido tacitamente revogado pela Lei n° 10.054/00;70 4) Lei n° 12.037/09: de acordo com seu art. Io, o civilmente identificado não será sub­ metido à identificação criminal, salvo nos casos previstos nesta lei. Ora, se a Lei n° 10.054/00 foi expressamente revogada pelo art. 9o da Lei n° 12.037/09, e se o art. Io da Lei n° 12.037/09 preceitua que a identificação criminal só poderá ocorrer nos casos previstos nesta lei, há de se concluir pela revogação tácita do art. 5o da Lei n° 9.034/95 (hoje revogada expressamente pela Lei n° 12.850/13), que, inclusive, já se tinha como revogado pelo advento da Lei n° 10.054/00. Raciocínio semelhante há de ser aplicado também ao art. 109 do Estatuto da Criança e do Ado­ lescente. Portanto, doravante, a identificação criminal somente será possível nas hipóteses es­ tabelecidas na Lei n° 12.037/09;71 5) Lei n° 12.654/12: publicada em data de 29 de maio de 2012, com prazo de vacatio de 180 (cento e oitenta) dias, com importantes acréscimos à Lei n° 12.037/09, a Lei n° 12.654/12 introduziu no ordenamento pátrio a possibilidade de coleta de material biológico para a obten­ ção do perfil genético. Também introduziu na Lei de Execução Penal o art. 9°-A, que dispõe que “os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. Io da Lei n° 8.072/90 serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor”.72 70

STJ,

Turma, RHC 12.965/DF, Rei. Min. Felix Fischer, j. 07/10/2003, DJ 10/11/2003 p. 197.

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Na mesma linha é o entendimento de Eduardo Luiz Santos Cabette. Comentários iniciais à nova lei de id e n tifi­ ano 14, n5 2.288, Teresina, 6 out. 2009. Disponível em: http:// jus.com.br/revista/texto/13628. Acesso em: 15 maio 2011. cação crim inal (Lei n g 12.037/09). Jus navigandi,

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Diversamente da hipótese prevista no art. 32, IV, da Lei n2 12.037/09, em que a identificação do perfil genético é feita para ser utilizada como prova em relação a um crime já ocorrido - pode ser qualquer delito, já que o dispositivo não faz qualquer restrição quanto à espécie de infração penal -, no caso do art. 92-A da LEP, a coleta do material genético será feita apenas em relação aos condenados por sentença transitada em julgado pela

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10.3. Documentos atestadores da identificação civil De acordo com o art. Io da Lei n° 12.037/09, o civilmente identificado não será submeti­ do a identificação criminal, salvo nos casos previstos nesta Lei. Interpretando-se a contrario sensu o referido dispositivo, conclui-se que, se acaso o indivíduo não se identificar civilmente, com a apresentação de um dos documentos listados no art. 2o da referida lei, será possível sua identificação criminal, quando se envolver com alguma prática delituosa. O art. 2o da Lei n° 12.037/09 dispõe sobre o rol de documentos que podem atestar a identificação civil das pessoas, o que, por conseqüência, impede a identificação criminal. São eles: carteira de identidade, carteira de trabalho, carteira profissional, passaporte, carteira de identificação funcional, ou outro documento público que permita a identificação do indiciado (v.g., carteira nacional de habilitação, cujo atual layout permite a identificação civil da pessoa). Para as finalidades da Lei n° 12.037/09, equiparam-se aos documentos de identificação civis os documentos de identificação militares. As carteiras expedidas por órgãos fiscalizadores do exercício profissional, criados por lei federal, têm o mesmo valor do documento de identidade, diante do teor da Lei n° 6.206/75, ser­ vindo, portanto, como forma de comprovação da identidade das pessoas. Ademais, aos advogados e membros do Ministério Público, é assegurado que o documento de identidade profissional ou a carteira funcional sirvam como prova de identidade civil ou cédula de identidade, ex vi do art. 13 da Lei n° 8.906/94 e do art. 42 da Lei n° 8.625/93. Apesar de o art. 2o, inciso VI, da Lei n° 12.037/09, fazer menção a qualquer outro docu­ mento público que permita a identificação do indiciado, queremos crer que uma certidão de nascimento, por si só, não é capaz de identificar civilmente o indivíduo, haja vista não ser dotada de fotografia. Aliás, o próprio art. 3o, II, da Lei n° 12.037/09, autoriza a identificação criminal quando o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado. A Lei n° 10.054/00 dispunha que o civilmente identificado por documento original não seria submetido à identificação criminal, exceto nas hipóteses discriminadas no art. 3o. A Lei n° 12.037/09, em seu art. 3o, fala apenas em apresentação de documento de identificação, sem dizer se tal documento teria que ser o original ou se bastaria uma cópia. A nosso ver, esse si­ lêncio eloqüente demonstra que a cópia de documento de identificação, desde que devidamente autenticada, é capaz de suprir a ausência do original, sobretudo se considerarmos que o próprio art. 232, parágrafo único, do CPP, dispõe que a fotocópia do documento devidamente autenticada tem o mesmo valor que o original. 10.4. Hipóteses autorizadoras da identificação criminal Segundo o art. 3o da Lei n° 12.037/09, embora apresentado documento de identificação, poderá ocorrer identificação criminal quando: I) o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação; II) o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado: é o que acontece, por exemplo, com documentos públicos que não são dotados de fotografia, como a certidão de nascimento; prática de certos delitos, sendo que a identificação irá para um banco de dados de modo a ser usada como prova em relação a fatos futuros. Ademais, neste caso, não há necessidade de prévia autorização judicial para a coleta do material biológico, vez que esta autorização é necessária apenas para ulterior acesso ao banco de dados por parte da autoridade policial (LEP, art. 99-A, § 22, com redação dada pela Lei n9 12.654/12).

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III) o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si; IV) a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da au­ toridade policial, do Ministério Público ou da defesa: diversamente das hipóteses anteriores e seguintes, esta hipótese de identificação criminal depende de prévia autorização judicial. Apesar de o legislador referir-se apenas à representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa, pensamos que não se pode excluir a possibilidade de o ofendido representar pela identificação criminal nas hipóteses de crimes de ação penal privada. Isso porque, caso não seja determinada a identificação criminal, estar-se-á a inviabilizar o exercício do direito de queixa, já que o ofendido não terá elementos precisos acerca da pessoa em relação à qual o processo criminal deva ser deflagrado. Noutro giro, a despeito de a Lei n° 12.037/09 não se referir ao cabimento de recurso contra essa decisão judicial relativa à identificação criminal, há de se admitir a possibilidade de impetração de habeas corpus, em prol do investigado, e de mandado de segurança, no caso da acusação. Outra diferença importante em relação a este inciso IV do art. 3o é que, nesta hipótese, a identificação criminal poderá incluir a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético (Lei n° 12.037/09, art. 5o, parágrafo único, com redação dada pela Lei n° 12.654/12). Como o inciso IV faz menção à identificação para auxiliar as investigações, é de se concluir que, nesse caso, o código genético será confrontado com as amostras de sangue, saliva, sêmen, pelos, etc., encontradas no local do crime, no corpo da vítima, para fins de comprovação da autoria do delito. A título de exemplo, basta pensar na realização de exame de DNA feito a par­ tir da comparação do material genético de determinado acusado com os vestígios de esperma encontrados no corpo da vítima. A partir da comparação, será elaborado laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado que analisará a coincidência (ou não) do perfil ge­ nético - a coincidência é denominada de match. Ante a gravidade da intervenção corporal, à autoridade judiciária incumbe demonstrar a impossibilidade de se obter a prova da autoria por método menos invasivo, funcionando a coleta de material genético como medida de ultima ratio, evitando-se, assim, sua banalização. V) constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; VI) o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do docu­ mento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais: parece ter havido um equívoco do legislador ao dispor que será possível a identificação criminal quando a localidade distante da expedição do documento impossibilitar a completa identificação dos caracteres essen­ ciais. Ora, o fato de alguém identificar-se civilmente na cidade de Pacaraima/RR com uma carteira de identidade em perfeitas condições expedida em Santa Maria/RS, por si só, não é fundamento suficiente para sua identificação criminal, a não ser que presente uma das hipóteses anteriores. Ao contrário da lei anterior (Lei n° 10.054/00), que estabelecia um rol taxativo de delitos onde a identificação criminal seria obrigatória, ainda que o investigado se identificasse civilmente, a Lei n° 12.037/09 deixou de estabelecer a espécie de crime como critério para a determinação da identificação criminal. Presente uma das hipóteses do art. 3o da Lei n° 12.037/09, e recusando-se o investigado a colaborar, é perfeitamente possível sua condução coercitiva, sem prejuízo de eventual responsa­ bilidade criminal pelo delito de desobediência. Nesse sentido, aliás, dispõe o art. 260 do CPP que se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado —é o caso da identificação criminal —a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. A nosso juízo, não se pode objetar que a identificação

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criminal importa em violação ao direito à não autoincriminação, previsto no art. 5o, LXIII, da Constituição Federal, e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, n° 2, “g”). Afinal, a mesma Constituição Federal que assegura o direito ao silêncio também prevê que o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei (art. 5o, LVIII). Portanto, pelo princípio da concordância prática ou da harmo­ nização, não se pode querer emprestar valor absoluto ao direito de não produzir prova contra si mesmo, inviabilizando que o Estado possa colher as impressões digitais com a finalidade de registrar os dados da identidade física do provável autor do delito.73 De acordo com o art. 23 do CPP, ao fazer a remessa dos autos do inquérito ao juiz com­ petente, a autoridade policial oficiará ao Instituto de Identificação e Estatística, ou repartição congênere, mencionando o juízo a que tiverem sido distribuídos, e os dados relativos à infração penal e à pessoa do indiciado. Objetivando preservar a imagem da pessoa identificada criminalmente, a Lei n° 12.037 prevê que, no caso de não oferecimento da denúncia, ou sua rejeição, ou absolvição, é facultado ao indiciado ou ao réu, após o arquivamento definitivo do inquérito, ou trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apresente provas de sua identificação civil (art. 7o). Perceba-se que a lei previu apenas a retirada da identificação fotográfica. Logo, a identificação datiloscópica deve permanecer nos autos do inquérito ou processo criminal. Na mesma linha, segundo o art. 7°-A da Lei n° 12.037/09, com redação dada pela Lei n° 12.654/12, a exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito. 10.5. Identificação do perfil genético (Lei n° 12.654/12) Com o crescente desenvolvimento de outras técnicas de identificação biométrica, tais como a identificação por voz, a identificação através da íris, da retina, da face, entre outros, sempre se discutiu se seria possível a utilização de outras formas de identificação.74A partir do momento em que a própria Constituição Federal determinou que o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei (art. 5o, LVIII), parece-nos que, pelo menos enquanto a legislação vigente delimitava as formas de identificação criminal apenas à datiloscópica e fotográfica (redação original da Lei n° 12.037/09), revelava-se inaceitável, à época, a utilização de outros métodos de identificação. Evidentemente, a partir do momento que sobrevêm mudança legislativa autorizando a utilização de novas formas de identificação criminal, o panorama é alterado. Daí a importância do estudo da Lei n° 12.654/12, que passou

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De acordo com Dirley da Cunha Júnior, esse princípio de interpretação constitucional impõe ao intérprete a coordenação e harmonização dos bens jurídicos constitucionais em conflito, de modo a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. Segundo o autor, "o que fundamenta este princípio é a idéia de que todos os bens jurídico-constitucionais ostentam igual valor, situação que impede a negação de um em face de outro ou vice-versa e impõe limites e condicionamentos recíprocos de modo a alcançar uma harmonização ou concordância prática entre eles, através de uma ponderação dos interesses em jogo à luz do caso concreto". (Curso de direito constitucional. 4§ ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2010. p. 225). Segundo Mário Sérgio Sobrinho, "a nova tecnologia empregada pela biometria permite o reconhecimento do indivíduo mediante a análise das características físicas, tais como a impressão digital, a geometria ou as caracte­ rísticas da face, da mão, da íris ou da retina e a análise do DNA ou características comportamentais únicas, como a dinâmica da assinatura ou da digitação, o reconhecimento pela voz ou pelos movimentos." Ainda segundo o autor, "entre os métodos de identificação que permitem o emprego das novas técnicas usadas pela biometria, um dos mais precisos é aquele que utiliza a íris. A íris, que é a parte colorida do olho situada em torno da pu­ pila, tem uma imagem muito complexa e única em cada pessoa, tal qual são as impressões digitais, podendo, portanto, ser usada para fins de identificação humana mediante o emprego de uma câmara de vídeo e de um programa de computador". (A identificação crim inal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 34).

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a permitir a possibilidade de coleta de material biológico para obtenção de perfil genético como forma de identificação criminal. Consoante disposto no art. 5°-A da Lei n° 12.037/09, acrescentado pela Lei n° 12.654/12, os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.75As informações gené­ ticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos. Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial. Ademais, as informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado. A novel identificação do perfil genético irá provocar muita controvérsia à luz do princípio que veda a autoincriminação. Evidentemente, se acaso a defesa solicitar esta forma de identi­ ficação, com o objetivo de, eventualmente, excluir sua responsabilidade, não haverá qualquer ilegalidade. Por isso, o cerne da questão diz respeito às hipóteses em que o acusado se negar a fornecer material biológico para a obtenção de seu perfil genético. Certamente, haverá quem diga que não se pode obrigar o investigado a contribuir com as investigações, e qualquer decisão judicial que lhe obrigue a fornecer material biológico para fins probatórios (Lei n° 12.037/09, art. 3o, IV) - e não de sua identidade - será afrontoso ao princípio constitucional que veda a autoincriminação. Afinal, não se pode impor ao investigado que contribua ativamente com as investigações, sobretudo mediante o fornecimento de material biológico que possa vir a incriminá-lo em ulterior exame de DNA. Sem embargo desse entendimento, parece-nos que a validade dessa identificação do perfil genético estará condicionada à forma de coleta do material biológico. Como o acusado não é obri­ gado a praticar nenhum comportamento ativo capaz de incriminá-lo, nem tampouco a se submeter a provas invasivas sem o seu consentimento, de modo algum pode ser obrigado a fornecer material biológico para a obtenção de seu perfil genético. Todavia, se estivermos diante de amostras de sangue, urina, cabelo, ou de outros tecidos orgânicos, descartadas voluntária ou involuntariamente pelo investigado na cena do crime ou em outros locais, parece-nos que não há qualquer óbice a sua coleta, sem que se possa arguir eventual violação ao princípio do nemo tenetur se detegere. Aliás, ao tratarmos do princípio do nemo tenetur se detegere, vimos que, aos olhos dos Tribunais, referido princípio impede que o acusado seja compelido a produzir qualquer prova incriminadora invasiva. Por isso, em diversos julgados, o STF já se manifestou no sentido de que o acusado não é obrigado a fornecer material para realização de exame de DNA.76 Todavia, o mesmo Supremo também tem precedentes no sentido de que a produção dessa prova será válida se a coleta do material for feita de forma não invasiva (v.g., exame de DNA realizado a partir de fio de cabelo encontrado no chão).77 Idêntico raciocínio deve ser empregado quanto 75

O Decreto n9 7.950/13 instituiu o Banco Nacional de Perfis Genéticos e a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos: aquele tem como objetivo armazenar dados de perfis genéticos coletados para subsidiar ações destinadas à apuração de crimes; esta visa permitir o compartilhamento e a comparação de perfis genéticos constantes dos bancos de perfis genéticos da União, dos Estados e do Distrito Federal.

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STF, Pleno, HC 71.373/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 10/11/1994, DJ 22/11/1996.

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De se lembrar que no caso envolvendo a cantora chilena G.T., o Supremo considerou válida a coleta da placenta para que fosse possível a realização de exame de DNA, já que se tratava de objeto expelido do corpo humano como

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à identificação do perfil genético: desde que o acusado não seja compelido a praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo, nem tampouco a se sujeitar à produção de prova invasiva, há de ser considerada válida a coleta de material biológico para a obtenção de seu perfil genético. 11. INCOMUNICABILIDADE DO INDICIADO PRESO De acordo com a letra expressa do Código de Processo Penal (art. 21), a incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir. A incomunicabilidade, que não excederá de 3 (três) dias, será decretada por despacho fundamentado do juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o direito do advogado de se comunicar, pessoal e reservadamente, com o seu cliente, ainda quando este se achar preso ou detido em estabelecimento civil ou militar.78 Tal dispositivo é reflexo direto do caldo cultural e ideológico que deu azo ao nosso Código de Processo Penal, cujo DNA é 100% ditatorial {mezzo fascista, mezzo varguista) e assumidamente tratava o acusado como objeto de prova, cujo corpo podia ser instrumentalizado coercitivamente para fins de tutela do poder punitivo. A despeito do teor do art. 21 do CPP, tem prevalecido o entendimento de que tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal. A uma porque a Constituição Federal assegura que toda prisão será comunicada imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 5o, LXII) e que o preso terá direito à assistência da família e de advogado (art. 5o, LXIII). A duas porque, ao tratar do Estado de Defesa, onde há supressão de várias garantias constitucionais, a própria Constituição Federal estabelece que é vedada a inco­ municabilidade do preso (art. 136, § 3o, IV). Ora, se numa situação de exceção como o Estado de Defesa não se admite a incomunicabilidade, o que dizer, então, em um estado de normalidade? Por isso, pode-se dizer que o art. 21 do CPP não foi recepcionado pela Carta Magna, aplicando-se o mesmo raciocínio ao art. 17 do CPPM.79 11.1. Regime disciplinar diferenciado A Lei n° 10.792/03, a par de modificar o procedimento pertinente ao interrogatório judi­ cial, introduziu substanciais alterações na Lei de Execução Penal, dentre elas a criação de nova modalidade de sanção disciplinar: o regime disciplinar diferenciado. Prevê a LEP em seu art. 52 que a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso pro­ visório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 conseqüência natural do parto: STF, Pleno, Rcl-QO 2.040/DF, Rei. Min. Néri da Silveira, DJ 27/06/2003, p. 31. 78

Dispositivo semelhante consta do art. 17 do CPPM, que prevê que o encarregado do inquérito poderá manter incomunicável o indiciado, que estiver legalmente preso, por três dias no máximo.

79

Apesar de ser esse o entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência, há posição em sentido contrário. Para Vicente Greco Filho, o art. 136, § 39, IV, da Constituição Federal, não revogou a possibilidade da decretação da incomunicabilidade fora do tempo de vigência do estado de defesa; ao contrário, confirmou-a, no estado de normalidade. (M a nual de processo penal. 7a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 83).

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horas diárias para banho de sol. O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações ou associações criminosas. Quando da criação do regime disciplinar diferenciado, houve intensa polêmica quanto à eventual violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e à vedação da incomunicabilidade do preso. Nos Tribunais Superiores, tem prevalecido o entendimento de que, tendo em conta que os princípios fundamentais consagrados na Carta Magna não são ilimitados (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas), vislumbra-se que o legislador, ao instituir o Regime Dis­ ciplinar Diferenciado, atendeu ao princípio da proporcionalidade. Afigura-se legítima, portanto, a atuação estatal, porquanto o regime disciplinar diferenciado busca dar efetividade à crescente necessidade de segurança nos estabelecimentos penais, bem como resguardar a ordem pública, que vem sendo ameaçada por criminosos que, mesmo encarcerados, continuam comandando ou integrando facções criminosas que atuam no interior do sistema prisional - liderando rebe­ liões que não raro culminam com fugas e mortes de reféns, agentes penitenciários e/ou outros detentos - e, também, no meio social.80 Apesar de o regime disciplinar diferenciado dispensar tratamento carcerário mais rígido aos agentes que incorram em uma das situações acima elencadas, não há qualquer previsão de incomunicabilidade do preso. Na verdade, o art. 52, inciso III, da LEP, prevê apenas que as visitas semanais serão de duas pessoas, sem contar as crianças, e por até duas horas. Além disso, os Estados e o Distrito Federal poderão regulamentar o RDD para disciplinar o cadastramento e agendamento prévio das entrevistas dos presos provisórios ou condenados com seus advogados, regularmente constituídos nos autos da ação penal ou processo de execução criminal, conforme o caso (art. 5o, IV, da Lei n° 10.792/03). Como se vê, organização e agendamento de visitas não importa incomunicabilidade do preso, mas sim expediente administrativo visando à correta execução da pena. 12. INDICIAMENTO 12.1. Conceito Indiciar é atribuir a autoria (ou participação) de uma infração penal a uma pessoa. E apontar uma pessoa como provável autora ou partícipe de um delito. Possui caráter ambíguo, consti­ tuindo-se, ao mesmo tempo, fonte de direitos, prerrogativas e garantias processuais (CF, art. 5o, LVII e LXIII), e fonte de ônus e deveres que representam alguma forma de constrangimento, além da inegável estigmatização social que a publicidade lhe imprime. Produz efeitos extraprocessuais, pois aponta à sociedade a pessoa considerada pela autorida­ de policial como a provável autora do delito, ao mesmo passo que produz efeitos endoprocessuais, representados pela probabilidade de ser o indiciado o autor do delito, considerado antecedente lógico, mas não necessário, do oferecimento da peça acusatória. O indiciado, então, não se confunde com um mero suspeito (ou investigado), nem tampouco com o acusado. Suspeito ou investigado é aquele em relação ao qual há frágeis indícios, ou seja, 80

Nesse sentido: STJ, 5§ Turma, HC 40.300/RJ, Rei. Min. Arnaldo Esteves Uma, j. 07/06/2005, DJ 22/08/05 p. 312. Para o Supremo, o regime disciplinar diferenciado é sanção disciplinar. Logo, sua aplicação depende de prévia instauração de procedimento administrativo para apuração dos fatos imputados ao custodiado: STF, 2ã Turma, HC 96.328/SP, Rei. Min. Cezar Peluso. J. 02/03/2010, DJe 062 08/04/2010.

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há mero juízo de possibilidade de autoria; indiciado é aquele que tem contra si indícios conver­ gentes que o apontam como provável autor da infração penal, isto é, há juízo de probabilidade de autoria; recebida a peça acusatória pelo magistrado, surge a figura do acusado. Em relação à possibilidade de indiciamento no âmbito dos Juizados, entende-se que, por força da simplicidade que norteia a própria investigação das infrações de menor potencial ofensi­ vo, é inviável o indiciamento em sede de termo circunstanciado. De mais a mais, considerando a possibilidade de incidência das medidas despenalizadoras previstas na Lei 9.099/95 (composição civil dos danos, transação penal, suspensão condicional do processo e representação nos crimes de lesão corporal leve e culposa) e, tendo em conta que a imposição de pena restritiva de direitos ou multa nas hipóteses de transação penal não constará de certidão de antecedentes criminais (Lei n° 9.099/95, art. 76, § 6o), revela-se inviável o indiciamento, já que tal ato acarretaria o registro da imputação nos assentamentos pessoais do indivíduo. 12.2. Momento A condição de indiciado poderá ser atribuída já no auto de prisão em flagrante ou até o relatório final do delegado de polícia. Logo, uma vez recebida a peça acusatória, não será mais possível o indiciamento, já que se trata de ato próprio da fase investigatória. Os Tribunais Su­ periores têm considerado que o indiciamento formal após o recebimento da denúncia é causa de ilegal e desnecessário constrangimento à liberdade de locomoção, visto que não se justifica mais tal procedimento, próprio da fase inquisitorial.81 12.3. Espécies O indiciamento pode ser feito de maneira direta ou indireta: o indiciamento direto ocorre quando o indiciado está presente; o indiciamento indireto ocorre quando o indiciado está ausente (v.g., indiciado foragido). A regra é que o indiciamento seja feito na presença do investigado. No entanto, na hipótese de o investigado não ser localizado, por se encontrar em local incerto e não sabido, ou quando, regularmente intimado para o ato, deixar de comparecer injustificadamente, é possível a realização do indiciamento indireto. 12.4. Pressupostos Dada a importância do indiciamento como condição para o exercício do direito de defesa na fase investigatória e a possibilidade do advento de prejuízos à pessoa do indiciado, afigu­ ra-se indispensável a presença de elementos informativos acerca da materialidade e da autoria do delito. Destarte, o indiciamento só pode ocorrer a partir do momento em que reunidos elementos suficientes que apontem para a autoria da infração penal, quando, então, o delegado de polí­ cia deve cientificar o investigado, atribuindo-lhe, fundamentadamente, a condição jurídica de “indiciado”, respeitadas todas as garantias constitucionais e legais. Não se trata, pois, de ato arbitrário nem discricionário, já que, presentes elementos informativos apontando na direção do investigado, não resta à autoridade policial outra opção senão seu indiciam ento .82 81

STJ, 6ã Turma, HC 182.455/SP, Rei. Min. Haroldo Rodrigues - Desembargador convocado do TJ/CE j. 05/05/2011. E ainda: STJ, 5ã Turma, HC 179.951/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 10/05/2011. No sentido de que o indiciamento formal após o recebimento da denúncia configura constrangimento ilegal: STJ, 5^ Turma, HC 174.576/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 28/09/2010, DJe 18/10/2010.

82

Não havendo elementos que o justifiquem, constitui constrangimento ilegal o ato de indiciamento em inquérito policial: STF, 2^ Turma, HC 85.541, 2a Turma, Rei. Min. Cezar Peluso, Dje 157 21/08/2008.

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Apesar de não previsto pelo CPP, o indiciamento deve ser objeto de um ato formal, ante as implicações jurídicas que ocasiona para o status do indivíduo. Assim, o indiciamento funciona como um poder-dever da autoridade policial, uma vez convencida da concorrência dos seus pres­ supostos. Aliás, no Estado de São Paulo, a Portaria n° 18, de 25 de novembro de 1998, expedida pela Delegacia Geral de Polícia estabelece que o indiciamento deve ser precedido de despacho fundamentado da autoridade policial, indicando, com base nos elementos probatórios reunidos na investigação, os motivos de sua convicção quanto à autoria delitiva e à classificação infracional atribuída ao fato (art. 5o, parágrafo único). A Instrução Normativa n° 11, de 27/06/2011, da Polícia Federal, também impõe o dever de fundamentação do indiciamento à autoridade policial. Com a vigência da Lei n° 12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, parece não haver mais dúvidas quanto à necessidade de fundamentação do indiciamento. Deveras, consoante disposto no art. 2o, § 6o, da referida Lei, o indiciamento, privativo do Delegado de Polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias. 12.5. Desindiciamento Ausente qualquer elemento de informação quanto ao envolvimento do agente na prática delituosa, a jurisprudência tem admitido a possibilidade de impetração de habeas corpus a fim de sanar o constrangimento ilegal daí decorrente, buscando-se o desindiciamento: “O indicia­ mento configura constrangimento quando a autoridade policial, sem elementos mínimos de materialidade delitiva, lavra o termo respectivo e nega ao investigado o direito de ser ouvido e de apresentar documentos”.83 12.6. Atribuição O indiciamento é o ato resultante das investigações policiais por meio do qual alguém é apontado como provável autor de um fato delituoso. Cuida-se, pois, de ato privativo do Delegado de Polícia que, para tanto, deverá fundamentar-se em elementos de informação que ministrem certeza quanto à materialidade e indícios razoáveis de autoria. Portanto, se a atribuição para efetuar o indiciamento é privativa da autoridade policial (Lei n° 12.830/13, art. 2o, § 6o), não se afigura possível que o juiz, o Ministério Público ou uma Comissão Parlamentar de Inquérito requisitem ao delegado de polícia o indiciamento de determinada pessoa.84 12.7. Sujeito passivo Em regra, qualquer pessoa pode ser indiciada. Todavia, de acordo com o art. 41, inciso II, e parágrafo único, da Lei n° 8.625/93, constitui prerrogativa dos membros do Ministério Público, no exercício de sua função, a de não ser indiciado em inquérito policial, sendo que, quando, no curso de investigação, houver indício da prática de infração penal por parte de membro do Ministério Público, deve a autoridade policial, civil ou militar remeter, imediatamente85, sob pena

83

STJ, 63 Turma, HC 43.599/SP, Rei. Paulo Medina, j. 09/12/2005, DJe 04/08/2008.

84

No sentido de que não cabe ao juiz determinar à autoridade policial o indiciamento formal de investigados: STF, 23 Turma, HC 115.015/SP, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 27/08/2013; STJ, 5§ Turma, RHC 47.984/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 04/11/2014.

85.

Essa prerrogativa é preservada quando a possível participação do membro do Ministério Público em conduta criminosa é comunicada com celeridade ao Procurador-Geral de Justiça. Por isso, em caso concreto no qual uma interceptação telefônica fora decretada por um juiz de l ã instância para apurar a prática de homicídio por poli­ ciais militares, oportunidade em que foram fortuitamente identificadas tratativas de promotor de justiça com o

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de responsabilidade, os respectivos autos ao Procurador-Geral de Justiça, a quem competirá dar prosseguimento à apuração.86 De modo semelhante, quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, re­ meterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação (LC n° 35/79, art. 33, parágrafo único). Quanto às demais pessoas com foro por prerrogativa de função (v.g., senadores, deputa­ dos federais, etc.), não há dispositivo legal que vede o indiciamento, razão pela qual sempre prevaleceu o entendimento de que seria possível tanto a abertura das investigações quanto, no curso delas, o indiciamento formal por parte da autoridade que presidisse o inquérito, a qual, no entanto, deveria ter a cautela de remeter os autos ao tribunal que tivesse a competência especial pela prerrogativa de função.87 Ocorre que, em Questão de Ordem suscitada no Inq. 2.411, esse entendimento foi modi­ ficado pelo plenário do STF, que passou a entender que a autoridade policial não pode indiciar parlamentares sem prévia autorização do ministro-relator do inquérito, ficando a abertura do próprio procedimento investigatório (inquérito penal originário) condicionada à autorização do Relator. Nos casos de competência originária dos Tribunais, a atividade de supervisão judicial deve ser desempenhada durante toda a tramitação das investigações, desde a abertura dos proce­ dimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo titular da ação. Daí por que foi anulado o ato de indiciamento promovido pela autoridade policial em face de parlamentar federal sem prévia autorização do Ministro Relator.88 Portanto, a partir do momento em que determinado titular de foro por prerrogativa de função passe a figurar como suspeito em procedimento investigatório, impõe-se a autorização do Tribunal (por meio do Relator) para o prosseguimento das investigações. Assim, caso a autoridade policial que preside determinada investigação pretenda intimar autoridade que possui foro por prerrogativa de função, em razão de outro depoente ter afirmado que o mesmo teria cometido fato criminoso, deve o feito ser encaminhado previamente ao respectivo Tribunal, por estar caracterizado procedi­ mento de natureza investigatória contra titular de foro por prerrogativa de função.89Agora, se houver simples menção ao nome de um parlamentar federal, em depoimentos prestados por investigados, advogado dos investigados a indicar a ocorrência de outro crime, concluiu a Turma do STF (MS 34.751/CE, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 14/08/2018) que, na medida em que parte do procedimento investigatório foi deslocado ao Procurador-Geral de Justiça tão logo identificada a voz do membro do Ministério Público, não haveria por que se declarar a ilicitude das provas. 86

Regra semelhante é encontrada no art. 18, II, alínea "f", e parágrafo único, da Lei Complementar n^ 75/93, aplicável no âmbito do Ministério Público da União, com a diferença de que, neste caso, os autos devem ser encaminhados ao Procurador-Geral da República.

87

STF, Pet 3.825 QO/MT, rei. Min. Sepúlveda Pertence, 11.4.2007.

88

STF, Pleno, Inq. 2.411 QO/MT, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJe 74 24/04/2008. Compete ao relator apenas a auto­ rização para a instauração desse inquérito judicial, cabendo a ele, então, determinar as diligências próprias para a realização das investigações. Não há qualquer norma que imponha a submissão, ao órgão colegiado, desde logo, da autorização para que o inquérito possa prosseguir. Na verdade, compete ao Pleno do Supremo receber ou rejeitar a denúncia, conforme o caso, sendo desnecessária, entretanto, sua autorização para instauração do inquérito judicial: STF, Pleno, HC 94.278/SP, Rei. Min. Menezes Direito, Dje 227 27/11/2008. Em sentido diverso, há precedente isolado da 5ã Turma do STJ com o entendimento de que não há razão jurídica para condicionar a investigação de autoridade com foro por prerrogativa de função à prévia autorização judicial: REsp 1.563.962/ RN, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 08/11/2016, DJe 16/11/2016.

89

STF, 2ã Turma, Rcl 2.349/TO, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 05/08/2005. Portanto, se a investigação contra titular de foro por prerrogativa de função for levada adiante sem a supervisão do Tribunal competente, os elementos de informação obtidos pela autoridade policial devem ser considerados ilícitos. Nesse contexto: STF, Pleno, Inq. 2.842/DF, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 41 26/02/2014).

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sem maiores elementos acerca de seu envolvimento no fato delituoso, não há falar em necessidade de remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal para o processamento do inquérito.90 Se é essa a nova posição do Supremo quanto à necessidade de autorização de Ministro Relator do Supremo para a abertura de investigações ou para o indiciamento de parlamentares federais, mutatis mutandis, deve se aplicar o mesmo raciocínio às demais hipóteses de compe­ tência especial por prerrogativa de função em inquéritos originários de competência de outros Tribunais, como, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça.91 Conquanto a Suprema Corte tenha entendido que a supervisão do inquérito penal originário deva ficar a cargo de um Ministro-Relator, vale ressaltar que o recebimento da peça acusatória não pode ser deliberado monocraticamente por esse Relator: a denúncia ou queixa devem ser submetidas à apreciação do colegiado respectivo, reputando-se nula a decisão de Relator que, monocraticamente, receba peça acusatória contra titular de foro por prerrogativa de função.92 Portanto, à exceção de investigado dotado de foro por prerrogativa de função, não há neces­ sidade de prévia autorização judicial para fins de instauração de um inquérito policial, inde­ pendentemente da natureza do delito. Não por outro motivo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal se viu obrigado a deferir, em parte, pedido de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, para suspender, até julgamento final da ação, a eficácia do art. 8o da Resolução 23.396/2013, do Tribunal Superior Eleitoral - TSE (“O inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante determinação da Justiça Eleitoral, salvo a hipótese de prisão em flagrante”). Ora, uma resolução do TSE não pode contrariar a lei, nem tampouco a Constituição Federal, seja exigindo, em matéria eleitoral, o que a lei não exigira ou proibira, seja distinguindo onde o próprio legislador não distinguira.93 12.8. Afastamento do servidor público de suas funções como efeito automático do indicia­ mento em crimes de lavagem de capitais Por força da Lei n° 12.683/12, com vigência a partir do dia 10 de julho de 2012, foi acrescido à Lei de Lavagem de Capitais (Lei n° 9.613/98) o art. 17-D, que dispõe: “Em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo da remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retomo”. Como se percebe, em se tratando de crimes de lavagem de capitais, este dispositivo legal estabelece o afastamento do servidor público de suas funções como efeito automático do indiciamento, permitindo seu retomo às atividades funcionais apenas se houver decisão judicial fundamentada nesse sentido. Para além de violar a regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocên­ cia, porquanto estabelece o afastamento do servidor de suas funções como efeito automático do indiciamento, equiparando aquele que está sendo processado àquele condenado por sentença transitada em julgado, o art. 17-D também vai de encontro ao princípio da jurisdicionalidade, vez que permite que uma autoridade não judiciária - lembre-se que o indiciamento é atribuição 90

STF, 23 Turma, HC 82.647/PR, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 25/04/2003.

91.

Com expressa menção ao nosso M a nual de Processo Penal, o Supremo Tribunal Federal admitiu o indiciamento do Governador do Estado de Minas Gerais F. D. P., porquanto teria havido prévia autorização do relator do inquérito originário no tribunal competente (in casu, o STJ): STF, 2^ Turma, HC 133.835 MC/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 18;04;2016, DJe 25/04/2016.

92

Nesse sentido: STJ, 6ã Turma, HC 16.507/RJ, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 20/08/2001 p. 541.

93

STF, Pleno, ADI 5.104 MC/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 21/05/2014.

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privativa da autoridade policial - determine medida de natureza cautelar sem qualquer aferição acerca de sua necessidade, adequação e proporcionalidade. Por tais motivos, somos levados a acreditar que o art. 17-D da Lei n° 9.613/98 é manifestamente inconstitucional.94 No entanto, diante do envolvimento de servidor público em crimes de lavagem de capitais ou infrações antecedentes, nada impede que a autoridade judiciária competente decrete a sus­ pensão do exercício de função pública, se visualizar que essa medida cautelar diversa da prisão é necessária para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal, ou para evitar a prática de novas infrações penais (CPP, art. 282,1, c/c art. 319, VI). 13. CONCLUSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL 13.1. Prazo para a conclusão do inquérito policial De acordo com o art. 10, caput, do CPP, o inquérito deverá terminar no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 (trinta) dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela. Veja-se que, em relação ao agente que está solto, o prazo para a conclusão do inquérito é de 30 (trinta) dias, ao passo que, estando preso o indiciado, esse prazo será de 10 (dez) dias. E possível a prorrogação desse prazo? Segundo o art. 10, § 3o, do CPP, quando o fato for de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, a autoridade poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz. Portanto, caso o indiciado esteja solto, é perfeitamente possível a prorrogação do prazo para a conclusão do inquérito policial. Apesar de o CPP referir-se apenas à oitiva do juiz (CPP, art. 10, § 3o), pensamos ser obrigatória a oitiva do órgão Ministerial. Afinal, como o inquérito policial dirige-se exclusivamente à formação da opinio delicti, ou seja, do convencimento do órgão responsável pela acusação, é possível que o Ministério Público se dê por satisfeito com os elementos de informação já produzidos nos autos da investigação policial, entendendo des­ necessário o prosseguimento do inquérito policial. No tocante ao indiciado preso, a maioria da doutrina entende que se há elementos para a se­ gregação cautelar do agente (prova da materialidade e indícios de autoria), também há elementos para o oferecimento da peça acusatória, sendo inviável, por conseguinte, a devolução dos autos do inquérito policial à autoridade policial para realização de diligências complementares. Apesar de ser esse o entendimento que prevalece na doutrina, comungamos de entendimento diverso. Explica-se: se presentes os requisitos legais do art. 312 do CPP, a prisão preventiva deve ser decretada. Porém, mesmo após a decretação da preventiva, caso subsista a necessidade de realização de diligência imprescindível para a formação da opinio delicti, os autos podem retomar à autoridade policial. No entanto, o prazo total para a conclusão do processo, que começa a contar a partir da prisão, estará correndo, o que pode dar ensejo a eventual excesso de prazo, autorizando o relaxamento da prisão.95 Outra discussão quanto ao prazo para a conclusão do inquérito policial diz respeito a sua natureza: prazo de natureza material ou prazo de natureza processual?

94

Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: as­ pectos penais e processuais penais - comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 360. A propósito, tramita no Supremo a ADI 4.911, ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República em face da inconstitucionalidade do art. 17-D da Lei ns 9.613/98.

95

Denilson Feitoza comunga do mesmo entendimento: D ireito processual penal: teoria, crítica e práxis. 7- ed. Niterói/RJ: Impetus, 2010, p. 899.

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Se o prazo é de natureza material, significa que o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo (CP, art. 10). Ademais, tal prazo não se prorroga até o primeiro dia útil subsequente, não estando sujeito a causas interruptivas nem suspensivas. De outro lado, cuidando-se de prazo de natureza processual, exclui-se o dia do começo e inclui-se o dia do final, ou seja, significa dizer que o prazo começa a fluir a partir do primeiro dia útil subsequente. Além disso, o prazo que terminar em domingo ou dia feriado considerar-se-á prorrogado até o dia útil imediato (CPP, art. 798, §§ Io e 3o). Em relação ao prazo para a conclusão de inquérito policial relativo a investigado solto, não há maiores controvérsias: trata-se de prazo de natureza processual. A divergência fica por conta da natureza do prazo para a conclusão do inquérito quando o agente estiver preso: pensamos que se trata de prazo de natureza processual. Não se deve con­ fundir a contagem do prazo da prisão, que deve observar o art. 10 do Código Penal, incluindo-se o dia do começo no cômputo do prazo, com a contagem do prazo para a conclusão do inquérito policial, que tem natureza processual. Conta-se o prazo, pois, a partir do primeiro dia útil após a prisão, sendo que, caso o prazo termine em sábado, domingo ou feriado, estará automatica­ mente prorrogado até o primeiro dia útil. Todavia, como a atividade policial é exercida durante todos os dias da semana, entendemos que não se aplica a regra de que o prazo que se inicia na sexta-feira somente começaria a correr no primeiro dia útil subsequente.96 Quanto às conseqüências relativas à inobservância desse prazo para a conclusão do inquérito policial, entende-se que, no caso de investigado solto, esse prazo de 30 (trinta) dias é impróprio, tendo em vista que sua inobservância não produz qualquer conseqüência. Já no caso de investigado preso, eventual atraso de poucos dias não gera qualquer ilegali­ dade, já que tem prevalecido a tese de que a contagem do prazo para a conclusão do processo é global, e não individualizada. Assim, mesmo que haja um pequeno excesso nessa fase investigatória, é possível que haja uma compensação na fase processual. Todavia, se restar caracterizado um excesso abusivo, não respaldado pelas circunstâncias do caso concreto (complexidade das investigações e pluralidade de investigados), impõe-se o relaxamento da prisão, sem prejuízo da continuidade da persecução criminal.97 Especial atenção deve ser dispensada à legislação especial, que prevê prazos diferenciados para a conclusão do inquérito policial. Consoante dispõe o art. 66 da Lei n° 5.010/66 (Lei que organiza a Justiça Federal de primeira instância), o prazo para conclusão do inquérito policial será de quinze dias, quando o indiciado estiver preso, podendo ser prorrogado por mais quinze dias, a pedido, devidamente fundamen­ tado, da autoridade policial e deferido pelo Juiz a que competir o conhecimento do processo. Silenciando a Lei n° 5.010/66 quanto ao prazo para a conclusão do inquérito de investigado solto, entende-se aplicável o prazo de 30 dias previsto no CPP (art. 10, caput). De acordo com o art. 20 do CPPM, o inquérito deverá terminar dentro em 20 (vinte) dias, se o indiciado estiver preso, contado esse prazo a partir do dia em que se executar a ordem de prisão; 96

Para Guilherme de Souza Nucci (M anua l de processo penal e execução penai. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 164), cuida-se de prazo de natureza material, que deve ser contado nos termos do art. 10 do Código Penal. Para Mirabete (Processo penal. 18§ ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 81) e Feitoza (op. cit. p. 181), trata-se de prazo de natureza processual.

97

Na dicção do STJ, "a prisão ilegal, que há de ser relaxada pela autoridade judiciária, em cumprimento de dever-poder insculpido no artigo 5Q, inciso LXV, da Constituição da República, compreende, por certo, aquela que, afora perdurar por prazo superior ao prescrito em lei, ofende de forma manifesta o princípio da razoabilidade. É induvidosa a caracterização de constrangimento ilegal, quando perdura a constrição cautelar por mais de seis meses, sem oferecimento da denúncia, fazendo-se invocável a razoabilidade". (STJ, 6ã Turma, HC 44.604/RN, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 09/12/2005, DJ 06/02/2006 p. 356).

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ou no prazo de 40 (quarenta) dias, quando o indiciado estiver solto, contados a partir da data em que se instaurar o inquérito. Este último prazo poderá ser prorrogado por mais 20 (vinte) dias pela autoridade militar superior, desde que não estejam concluídos exames ou perícias já iniciados, ou haja necessidade de diligência, indispensáveis à elucidação do fato. O pedido de prorrogação deve ser feito em tempo oportuno, de modo a ser atendido antes da terminação do prazo (CPPM, art. 20, § Io). A Lei n° 11.343/06 (Lei de drogas) prevê que o inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto. Esses pra­ zos podem ser duplicados pelo Juiz, ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de polícia judiciária (art. 51, parágrafo único). Este dispositivo funciona como norma especial em relação ao art. 66 da Lei n° 5.010/66. Logo, na hipótese de crime de tráfico internacional de drogas, logo, da competência da Justiça Federal (CF, art. 109, V), o prazo para a conclusão do inquérito policial será aquele previsto na Lei de Drogas. A Lei n° 1.521/51 (crimes contra a economia popular) prevê que o inquérito policial deve ser concluído no prazo de 10 (dez) dias, esteja o indivíduo solto ou preso. Por fim, não se pode esquecer do prazo para a conclusão das investigações quando tiver sido decretada a prisão temporária do investigado. Como se sabe, a prisão temporária foi insti­ tuída por legislação especial após a entrada em vigor do CPP, e possui o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade (Lei n° 7.960/89, art. 2o, caput). Na hipótese de crimes hediondos e equiparados, o prazo da prisão temporária é de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o). Em relação ao prazo disposto no art. 2o, caput, da Lei n° 7.960/89, não há maiores con­ trovérsias. Isso porque, nessa hipótese, o prazo máximo para a prisão temporária será de 10 (dez) dias, prazo esse que coincide com o prazo previsto no CPP para as hipóteses em que o investigado está preso (art. 10, caput). O tema ganha relevância ao se analisar a hipótese de investigação policial em relação a autor de crimes hediondos e equiparados, cuja prisão temporária tenha sido decretada por até 60 (sessenta) dias. A nosso ver, se a prisão temporária foi decretada para auxiliar nas investigações em relação a crimes hediondos e equiparados, tem-se que o prazo máximo para a conclusão das investigações é de 60 (sessenta) dias, sendo inviável que, após esse interstício de 60 (sessenta) dias, a autoridade policial disponha de mais 10 (dez) dias para finalizar o inquérito policial. 13.1.1. Quadro sinóptico do prazo para a conclusão do inquérito policial

CPP (art. 10, caput)

Investigado p reso

Investigado so lto *

10 dias

30 dias

l

Inquérito policial federal

15 + 15

30 dias

i

Inquérito policial militar

20 dias

40 + 20

Lei d e drogas

30 + 30

90 + 90

Crimes contra a e co n o m ia popular

10

10

30 + 30

Não se aplica.

!

Prisão tem p orária d ecreta d a em inq uérito policial relativo a crim es h e d io n d o s e eq u ip arad os.

to, doutrina e jurisprudência admitem a prorrogação sucessiva do prazo para a conclusão do inquérito policial.

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13.2. R elatório da autoridade policial

De acordo com o Código de Processo Penal (art. 10, § Io), o inquérito policial deverá ser concluído com a elaboração, por parte da autoridade policial, de minucioso relatório do que tiver sido apurado, com posterior remessa dos autos do inquérito policial ao juiz competente. Cuida-se, o relatório, de peça elaborada pela autoridade policial, de conteúdo eminentemen­ te descritivo, onde deve ser feito um esboço das principais diligências levadas a efeito na fase investigatória, justificando-se até mesmo a razão pela qual algumas não tenham sido realizadas, como, por exemplo, a juntada de um laudo pericial, que ainda não foi concluído pela Polícia Científica. Apesar de a elaboração do relatório ser um dever funcional da autoridade policial, não se trata de peça obrigatória para o oferecimento da denúncia, ainda mais se considerarmos que nem mesmo o inquérito policial é peça indispensável para o início do processo criminal, desde que a imputação esteja respaldada por outros elementos de convicção. Todavia, demonstrada a desídia da autoridade policial no cumprimento de seu mister, a respectiva corregedoria deve ser comunicada, a fim de adotar eventuais sanções disciplinares. Deve a autoridade policial abster-se de fazer qualquer juízo de valor no relatório, já que a opinio delicti deve ser formada pelo titular da ação penal: Ministério Público, nos crimes de ação penal pública; ofendido ou seu representante legal, nos crimes de ação penal de iniciativa privada. Atente-se, no entanto, para a Lei de Drogas, que prevê expressamente que a autoridade policial relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente (Lei n° 11.343/06, art. 5 2 ,1). Mesmo nesse caso de drogas, é de bom alvitre esclarecer que o Ministério Público não fica vinculado à classificação provisória formulada pela autoridade policial, pois é ele o titular da ação penal. Para fins de análise quanto à possibilidade de concessão de liberdade provisória, o juiz também não se encontra vinculado à classificação formulada pela autoridade policial em seu relatório, nem tampouco àquela constante da peça acusatória, podendo corrigir a adequação do juízo de subsunção feita pelo Delegado ou pelo Promotor, embora o faça de maneira inci­ dental e provisória, apenas para decidir quanto ao cabimento da liberdade provisória. Não faria sentido manter o acusado preso ao longo de toda a instrução processual penal para, ao final, desclassificar a imputação para porte de drogas para consumo pessoal e, somente então, poder colocá-lo em liberdade. 13.3. D estinatário dos autos do inquérito p olicial Pela leitura do art. 10, § Io, do CPP, percebe-se que, uma vez concluída a investigação poli­ cial, os autos do inquérito policial devem ser encaminhados primeiramente ao Poder Judiciário, e somente depois ao Ministério Público. A despeito do teor referido dispositivo, por conta da adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal, outorgando ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, não há como se admitir que ainda subsista essa necessidade de remessa inicial dos autos ao Poder Judiciário. Há de se entender que essa tramitação judicial do inquérito policial prevista nos arts. 10, § Io, e 23, do CPP, não foi recepcionada pela Constituição Federal. Ora, tendo em conta ser o Ministério Público o dominus litis da ação penal pública, nos termos do art. 129,1, da Carta Magna, e, portanto, o destinatário final das investigações leva­ das a cabo no curso do inquérito policial, considerando que o procedimento investigatório é destinado, precipuamente, a subsidiar a atuação persecutória do órgão ministerial, e diante da desnecessidade de controle judicial de atos que não afetam diretos e garantias fundamentais do

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indivíduo, deve-se concluir que os autos da investigação policial devem tramitar diretamente entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, sem necessidade de intermediação do Poder Judiciário, a não ser para o exame de medidas cautelares (v.g., prisão preventiva, interceptação telefônica, busca domiciliar, etc.). Essa tramitação direta dos autos entre a Polícia e o Ministério Público, ressalvada a hipótese em que sejam formulados pedidos cautelares, além de assegurar um procedimento mais célere, em respeito ao direito à razoável duração do processo (CF, art. 5o, LXXVIII), contribuindo para o fim da morosidade da persecução penal, também é de fundamental importância na preservação da imparcialidade do órgão jurisdicional, porquanto afasta o magistrado de qualquer atividade investigatória que implique formação de convencimento prévio a respeito do fato noticiado e sob investigação. Valores importantes como a celeridade, a eficiência, a desburocratização e a diminuição dos riscos da prescrição recomendam, pois, que as peças investigatórias sejam remetidas diretamente ao titular da ação penal, salvo se houver necessidade de medidas cautelares, eliminando-se, assim, o intermediário que não tem competência ou atribuição para interferir na produção de diligências inquisitoriais. Daí por que já há diversas portarias de Tribunais de Justiça determinando que os autos da investigação policial devam ser remetidos diretamente ao órgão ministerial (centrais de in­ quéritos).98No âmbito da Justiça Federal, aliás, vale a pena destacar que o Conselho da Justiça Federal, por meio da Resolução n° 63, de 26 de junho de 2009, também regulamentou a matéria. De acordo com a referida Resolução, os autos de inquérito policial somente serão admiti­ dos para registro, inserção no sistema processual informatizado e distribuição às Varas Federais com competência criminal quando houver: a) comunicação de prisão em flagrante efetuada ou qualquer outra forma de constrangimento aos direitos fundamentais previstos na Constituição da República; b) representação ou requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público Federal para a decretação de prisões de natureza cautelar; c) requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público Federal de medidas constritivas ou de natureza acautelatória; d) oferta de denúncia pelo Ministério Público Federal ou apresentação de queixa crime pelo ofendido ou seu representante legal; e) pedido de arquivamento deduzido pelo Ministério Público Federal; f) requerimento de extinção da punibilidade com fulcro em qualquer das hipóteses previstas no art. 107 do Código Penal ou na legislação penal extravagante. Ainda segundo a Resolução n° 63 do Conselho da Justiça Federal, afora as hipóteses acima mencionadas, os autos de inquérito policial, concluídos ou com requerimento de prorrogação de prazo para o seu encerramento, quando da primeira remessa ao Ministério Público Fede­ ral, serão previamente levados ao Poder Judiciário tão-somente para o seu registro, que será efetuado respeitando-se a numeração de origem atribuída na Polícia Federal. A Justiça Federal deverá criar rotina que permita apenas o registro desses inquéritos policiais, sem a necessidade de atribuição de numeração própria e distribuição ao órgão jurisdicional com competência cri­ minal. Após o registro do inquérito policial na Justiça Federal, os autos serão automaticamente 98

No julgamento da ADI 2.886/RJ, o Plenário do Supremo julgou procedente, em parte, pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade formal do inciso IVart. 35 da Lei Complementar 106/2003, do Estado do Rio de Janeiro ("Art. 35. No exercício de suas funções, cabe ao Ministério Público:... IV- receber diretamente da Polícia Judiciária o inquérito policial, tratando-se de infração de ação penal pública"). O Tribunal reconheceu o caráter procedimental do inquérito e afastou a apontada ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I). Entretanto, entendeu violado o § l e do art. 24 da CF, porquanto o ato atacado dispõe de forma diversa do que estabelecido pela norma geral editada pela União sobre a matéria, qual seja, o § 12 do art. 10 do CPP. (STF, Pleno, ADI 2.886/RJ, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 03/04/2014).

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encaminhados ao Ministério Público Federal, sem a necessidade de determinação judicial nesse sentido, bastando a certificação, pelo servidor responsável, da prática aqui mencionada. Os autos de inquérito já registrados, na hipótese de novos requerimentos de prorrogação de prazo para a conclusão das investigações policiais, serão encaminhados pela Polícia Federal diretamente ao Ministério Público Federal. Por sua vez, os autos de inquérito policial que contiverem requerimentos mera e exclusiva­ mente de prorrogação de prazo para a sua conclusão, efetuados pela autoridade policial, serão encaminhados pela Delegacia de Polícia Federal diretamente ao Ministério Público Federal para ciência e manifestação, sem a necessidade de intervenção do órgão do Poder Judiciário Federal competente para a análise da matéria. A mesma Resolução prevê em seu art. 5o que os advogados e os estagiários de Direito regularmente inscritos na OAB terão direito de examinar os autos do inquérito, devendo, no caso de extração de cópias, apresentar o seu requerimento por escrito à autoridade competente." Na visão da 5a Turma do STJ, não é ilegal a portaria editada por Juiz Federal que, fundada na Resolução n° 63/2009 do Conselho da Justiça Federal, estabelece a tramitação direta de inqué­ rito policial entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. A evidência, isso não afasta a necessidade de observância, no bojo de feitos investigativos, da chamada cláusula de reserva de jurisdição, qual seja, a necessidade de prévio pronunciamento judicial quando for necessária a adoção de medidas que possam irradiar efeitos sobre as garantias individuais. Em que pese o fato de a referida Resolução ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade - ADI 4.305 -, o feito, proposto em 2009 pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, ainda está concluso ao relator, não havendo notícia de concessão de pedido liminar. Assim, enquanto não existir manifestação da Corte Suprema quanto ao tema, deve ser mantida a validade da Resolução. Registre-se, ademais, que não se olvida a existência de julgado do STF, nos autos da ADI 2.886, em que se reconhece a inconstitucionalidade de lei estadual que determinava a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária, por entender padecer a legislação de vício formal. Apesar de o referido julgamento ter sido finalizado em abril de 2014, convém destacar que se iniciou em junho de 2005, sendo certo que, dos onze Ministros integrantes da Corte (que votaram ao longo desses nove anos), quatro ficaram vencidos, e que, dos votos vencedores, três ministros não mais integram o Tribunal. Assim, não há como afirmar como certa a possível declaração da inconstitucionalidade da Resolução do CJF objeto da ADI 4.305.99100 13.4. P rovidências a serem adotadas após a rem essa dos autos do inquérito p olicial

Independentemente da discussão quanto ao destinatário dos autos da investigação policial, e trabalhando-se com a hipótese de que os autos sejam remetidos ao Poder Judiciário, certo é que, uma vez recebidos os autos do inquérito policial, são duas as possibilidades:

99

Para o TRF da 49 Região, embora seja juridicamente possível que o magistrado, no livre exercício da ativida­ de jurisdicional, sopesando princípios como economia processual, instrumentalidade, eficiência e celeridade, determine a tramitação direta de inquéritos sob sua jurisdição entre a polícia e o parquet, tal não pode ser imposto por resoluções administrativas, atos infralegais, como, por exemplo, a Resolução n9 63 do Conselho da Justiça Federal. Inexistindo na lei determinação de que o Juiz estabeleça a tramitação direta de inquérito policial entre Autoridade Policial e o Ministério Público Federal, e sendo certo que resoluções administrativas não têm o condão de arredar o disposto no art. 10, § 3e, do CPP, interferindo no livre exercício da jurisdição, eventual indeferimento dessa tramitação direta não caracteriza inversão tumultuária dos atos para fins de interposição de correição parcial. Nessa linha: TRF4, COR 2009.04.00.044743-5, Oitava Turma, Relator Guilherme Beltrami, D.E. 03/02/2010.

100. STJ, 5- Turma, RMS 46.165/SP, Rei. Min. Gurgel de Faria, j. 19/11/2015, DJe 4/12/2015.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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a) em se tratando de crime de ação penal de iniciativa privada, deve o juiz determinar a permanência dos autos em cartório, aguardando-se a iniciativa do ofendido ou de seu represen­ tante legal. Sobre o assunto, dispõe o art. 19 do CPP que, nos crimes em que não couber ação pública, os autos do inquérito serão remetidos ao juízo competente, onde aguardarão a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado. Na prática, todavia, os autos acabam sendo remetidos ao Ministério Público, para que analise se há elementos de informação quanto a eventual crime de ação penal pública; b) cuidando-se de crime de ação penal pública, os autos do inquérito policial são remetidos ao Ministério Público.

Com os autos em mãos, ao órgão do Ministério Público se abrem 5 (cinco) possibilidades: 1) oferecim ento de denúncia;101 2) arquivam ento dos autos do inquérito policial;102

3) requisição de diligências: de acordo com o art. 16 do CPP, o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Como exposto anteriormente, a legislação processual penal confere ao Delegado de Po­ lícia discricionariedade para conduzir a investigação criminal por meio de inquérito policial, podendo, para tanto, requisitar perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos (Lei n° 12.830/13, art. 2o, §§ 2o e 3o). Essa discrionariedade, todavia, não é absoluta, sofrendo evidente mitigação diante de eventual requisição ministerial. Se o Ministério Público é o titular da ação penal pública (CF, art. 129, I), sendo, portanto, o destinatário, por excelência, dos elementos de informação produzidos no curso da investigação policial, não se pode negar ao Parquet a possibilidade de requisitar diligências imprescindíveis à formação da opinio delicti. Esse poder de requisição deriva diretamente da Constituição Federal: dentre as funções institucionais do Ministério Público, consta do art. 129, VIII, da CF, a possibilidade de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os funda­ mentos jurídicos de suas manifestações processuais. Na mesma linha, consoante disposto no art. 13, II, do CPP, que não foi revogado pela Lei n° 12.830/13, incumbe à autoridade policial realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público. Requisição é a exigência para a realização de algo, fundamentada em lei, e não se confunde com ordem, porquanto o Promotor de Justiça e nem mesmo o Juiz são superiores hierárquicos do Delegado de Polícia, razão pela qual não podem lhe dar ordens. Na verdade, o Delegado de Polícia determina o cumprimento da exigência ministerial não para atender à vontade particular do Promotor de Justiça, mas sim em fiel observância ao princípio da obrigatoriedade, que impõe às autoridades estatais, inclusive Delegados de Polícia, um dever de agir de oficio diante da notícia de infração penal. Essas diligências devem ser requisitadas pelo Ministério Público diretamente à autoridade policial (CPP, art. 13, II), ressalvadas as hipóteses em que houver necessidade de intervenção judicial (v.g., interceptação telefônica). Havendo necessidade dos autos para auxiliar no cum­ primento das diligências, deve o Promotor requerer ao juiz a remessa dos autos à autoridade policial. Indeferindo o magistrado o pedido de devolução dos autos para novas e imprescindí­ veis diligências, caberá correição parcial. Afinal, não cabe ao Poder Judiciário, substituindo-se indevidamente ao titular da ação penal pública, formar juízo acerca da necessidade (ou não) da

101

Os requisitos da peça acusatória serão trabalhados no Título pertinente à ação penal.

102 Vide abaixo tópico atinente ao arquivamento do inquérito policial.

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realização de determinadas diligências reputadas indispensáveis pelo dominus litis à formação de sua convicção acerca da prática de determinada infração penal. A evidência, o Delegado de Polícia não é obrigado a atender requisições manifestamente ilegais. Aliás, ao tratar do poder de requisição ministerial, a própria Constituição Federal faz referência à indicação dos fundamentos jurídicos de sua manifestação. Nesse caso, fazendo-o de maneira fundamentada, incumbe ao Delegado se recusar a cumprir requisições manifestamente ilegais, comunicando a ocorrência ao respectivo Procurador-Geral de Justiça para as providências funcionais pertinentes.103 4) d eclin ação de com petência: caso o Promotor de Justiça entenda que o juízo perante o qual atua não é dotado de competência para o julgamento do feito, deve requerer ao juiz que remeta os autos ao juiz natural. Suponha-se, assim, que inquérito policial relativo ao crime de moeda falsa seja remetido à Justiça Estadual. Verificando tratar-se de crime de competência da Justiça Federal, haja vista o interesse da União (CF, art. 109, IV, c/c art. 21, VII), deve o Promotor requerer a remessa dos autos ao juízo federal competente para o julgamento do feito; 5) conflito de com petência: essa hipótese não se confunde com a anterior. Na hipótese anterior, nenhum outro órgão jurisdicional havia se manifestado quanto à competência. Quan­ do se fala em conflito de competência, significa dizer que já houve prévia manifestação de outro órgão jurisdicional, daí por que não se pode requerer o retomo dos autos àquele juízo - deve-se, sim, suscitar conflito de competência. A propósito, eis o teor do art. 66, parágrafo único, do novo CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal: “O juiz que não acolher a competência declinada deverá suscitar o conflito, salvo se a atribuir a outro juízo”. Usando o mesmo exemplo anterior, suponha-se que autos de inquérito policial federal, que estavam tramitando perante a Justiça Federal, tenham sido remetidos à Justiça Estadual, porquanto o juiz federal concluiu que não se tratava de crime de moeda falsa, mas sim de estelionato, já que a falsificação seria grosseira (súmula n° 73 do STJ). Ora, supondo que o Promotor de Justiça e o juiz estadual discordem dessa conclusão, entendendo, sim, que a falsificação seria de boa qualidade, não poderão declinar da competência em favor da Justiça Federal, já que o juiz federal já se manifestou no sentido de sua incompetência. Deve-se, pois, suscitar conflito negativo de competência, a ser dirimido pelo STJ, nos exatos termos do art. 105, I, “d”, da Constituição Federal.104 A depender do caso concreto, essas 05 (cinco) providências - oferecimento de denúncia, arquivamento do inquérito policial, requisição de diligências, declinação de competência ou a arguição de conflito de competência - podem ser adotadas pelo Ministério Público isoladamente, ou em conjunto. A título de exemplo, suponha-se que, com os autos de inquérito policial em mãos, verifique o Promotor de Justiça que há elementos que autorizam o oferecimento de de­ núncia quanto a um fato delituoso (v.g., estupro praticado por agente que está preso), havendo, todavia, a necessidade de se aprofundar as investigações quanto a outro indivíduo, que está em

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Negando a prática do crime de desobediência e/ou prevaricação em recusa da autoridade administrativa em atender requisição ministerial manifestamente ilegal: STF, 2ã Turma, RE 205.473/AL, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 15/12/1998, DJ 19/03/1999.

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Deixamos de aqui inserir o conflito de atribuições, pois se os autos estão tramitando perante o Poder Judiciário, obrigatoriamente deve ter havido prévia manifestação de uma autoridade judiciária acerca da competência (ou incompetência). Logo, se um juiz se manifestou acerca de sua (in) competência, já não se pode mais falar em conflito de atribuições, restrito às hipóteses de divergência entre órgãos do Ministério Público acerca da responsabilidade ativa para a persecução penal. Para mais detalhes acerca do conflito de competência e de atribuições, remetemos o leitor ao título referente aos procedimentos incidentais.

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liberdade, também constando dos autos elementos de informação atinentes à suposta prática de crime militar. Ora, em uma situação como essa, deve o Promotor de Justiça oferecer denúncia quanto ao crime de estupro, na medida em que há, quanto a este delito, lastro probatório sufi­ ciente, tratando-se, ademais, de acusado preso; requisitar à autoridade policial o cumprimento de diligências complementares, a fim de poder aferir o grau de envolvimento do outro agente com o fato delituoso, para fins de eventual aditamento à denúncia; e, por fim, solicitar, por meio de cota, a declinação de competência quanto ao crime militar. 14. ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL Como visto anteriormente, a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito (CPP, art. 17). O arquivamento do inquérito policial também não pode ser deter­ minado de ofício pela autoridade judiciária. Incumbe exclusivamente ao Ministério Público avaliar se os elementos de informação de que dispõe são (ou não) suficientes para o ofere­ cimento da denúncia, razão pela qual nenhum inquérito pode ser arquivado sem o expresso requerimento ministerial.105 Mesmo nos inquéritos relativos a autoridades com foro por prerrogativa de função, é do Ministério Público o mister de conduzir o procedimento preliminar, de modo a formar adequada­ mente o seu convencimento a respeito da autoria e materialidade do delito, atuando o Judiciário apenas quando provocado e limitando-se a coibir ilegalidades manifestas.106 Na verdade, o arquivamento é um ato complexo, que envolve prévio requerimento formu­ lado pelo órgão do Ministério Público, e posterior decisão da autoridade judiciária competente. Portanto, pelo menos de acordo com a sistemática vigente no CPP, não se afigura possível o arquivamento de ofício do inquérito policial pela autoridade judiciária, nem tampouco o arquivamento dos autos pelo Ministério Público, sem a apreciação de seu requerimento pelo magistrado. Há doutrinadores que entendem que o arquivamento não seria uma decisão judicial. Com a devida vênia, com tal assertiva não se pode concordar. Se, de um lado, o Código de Proces­ so Penal refere-se ao arquivamento como mero despacho (art. 67, I), do outro, atribui efeitos idênticos à decisão judicial de impronúncia, possibilitando que, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, nova denúncia ou queixa seja oferecida se houver nova prova (CPP, art. 414, parágrafo único). Se a impronúncia é considerada decisão judicial, como negar semelhante natureza jurídica ao arquivamento do inquérito policial? De mais a mais, não se pode perder de vista que, a depender do fundamento, o arquivamento terá o condão de formar coisa julgada formal e material, efeito próprio de verdadeira decisão judicial. O arquivamento poderá ser feito não só quanto ao inquérito policial, como também em relação a outras peças de informação à que tenha acesso o órgão do Ministério Público (proce­ dimento investigatório criminal, relatório de comissão parlamentar de inquérito, etc.).107De fato, o próprio art. 28 do CPP faz menção ao arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação. Na mesma linha, a Lei n° 9.099/95 também confirma a possibilidade de

105

STF, is Turma, HC 88.589/GO, Rei. M in. Carlos Britto, j. 28/11/2006, DJ 23/03/2007.

106. Para mais detalhes acerca da (im) possibilidade de arquivam ento de ofício de investigações nos casos de compe­ tência originária dos Tribunais, remetemos o leitor aos comentários ao item n. 15 (Trancamento (ou encerramento anôm alo) do inquérito policial.

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Para mais detalhes acerca da (im)possibilidade de arquivam ento de ofício de investigações nos casos de competên­ cia originária dos Tribunais, remetemos o leitor aos comentários ao item n. 15 - "Trancamento (ou encerramento anômalo) do inquérito policial".

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arquivamento do termo circunstanciado, ao dispor em seu art. 76 que a proposta de transação penal só deve ser oferecida quando não for caso de arquivamento. 14.1. F undam entos do arquivam ento

O Código de Processo Penal silencia acerca das hipóteses que autorizam o arquivamento do inquérito policial, ou, a contrario sensu, em relação às situações em que o Ministério Público deva oferecer denúncia. Em que pese o silêncio do CPP, é possível a aplicação, por analogia, das hipóteses de rejeição da peça acusatória e de absolvição sumária, previstas nos arts. 395 e 397 do CPP, respectivamente. Em outras palavras, se é caso de rejeição da peça acusatória, ou se está presente uma das hipóteses que autorizam a absolvição sumária, é porque o Promotor de Justiça não deveria ter oferecido a denúncia em tais hipóteses. Diante dessa consideração, podemos afirmar que as hipóteses que autorizam o arquivamento são as seguintes: a) ausência de pressuposto p rocessual ou de condição para o exercício da ação penal:

a título de exemplo de arquivamento por conta da ausência de condição da ação, suponha-se que vítima capaz de um crime de ameaça tenha oferecido a representação num primeiro momento, mas depois tenha se retratado, antes do oferecimento da denúncia. Diante da retratação da re­ presentação, o órgão do Ministério Público não poderá oferecer denúncia, porquanto ausente condição específica da ação penal. Deverá, pois, requerer o arquivamento dos autos;108 b) falta de ju sta causa para o exercício da ação penal: para o início do processo, é neces­ sária a presença de lastro probatório mínimo quanto à prática do delito e quanto à autoria. É o denominado fumus comissi delicti, a ser compreendido como a presença de prova da existência do crime e de indícios de autoria. Portanto, esgotadas as diligências investigatórias, e verificando o Promotor de Justiça que não há, por exemplo, elementos de informação quanto à autoria do fato delituoso, deverá requerer o arquivamento dos autos; c) quando o fato investigado evidentem ente não constituir crim e (atipicidade): supo­ nha-se que o inquérito policial verse sobre a prática de furto simples de res avaliada em R$ 4,00 (quatro reais). Nesse caso, funcionando o princípio da insignificância como excludente da tipicidade material, incumbe ao órgão do Ministério Público requerer o arquivamento dos autos, em face da atipicidade da conduta delituosa;109

108 Quanto ao estudo dos pressupostos processuais e das condições da ação, remetemos o leitor ao capítuo atinente à ação penal. 109

Para o Supremo, a aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a conduta atípica, exige a ocorrência de conduta minimamente ofensiva, a ausência de periculosidade do agente, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva. Com esse entendimento: STF, 1^ Turma, HC 104.117/MT, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26/10/2010, DJe 222 18/11/2010. No sentido de que a contumácia delitiva impede o reconhecimento do princípio da insignificância: STF, 25 Turma, RHC 114.717, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 13/11/2012. Para a 2§ Turma do Supremo, o reconhecimento da insignificância não pode levar em conta apenas a expressão econômica da lesão. Logo, se o agente possuir acentuada periculosidade, apostando na impunidade ao fazer do crime o seu meio de vida, há de ser reconhecida a tipicidade material da conduta: STF, 2§ Turma, HC 114.340/ES, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 14/05/2013, DJe 196 03/10/2013. Em caso concreto envolvendo a subtração de um engradado com 23 garrafas de cerveja e seis de refrigerante - todos vazios, avaliados em R$ 16,00-, por indivíduo que já tinha contra si sentença condenatória transitada em julgado, porém pelo crime de lesão corporal (CP, art. 129), e não por outro crime patrimonial, a 2^ Turma do Supremo concluiu que, con­ siderada a teo ria da reiteração não cum ulativa d e con d u tas d e g ê n e ro s distin tos, a contumácia de infrações penais que não têm o patrimônio como bem jurídico tutelado pela norma penal (a exemplo da lesão corporal) não poderia ser valorada como fator impeditivo à aplicação do princípio da insignificância, porque ausente a séria lesão à propriedade alheia: STF, 2§ Turma, HC 114.723/MG, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 26/08/2014.

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d) existên cia m anifesta de causa excludente da ilicitude: também é possível o arqui­ vamento dos autos do inquérito policial se o Promotor de Justiça estiver convencido acerca da existência de causa excludente da ilicitude, seja ela prevista na Parte Geral do Código Penal (legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito, estrito cumprimento do dever legal), seja ela prevista na parte especial do CP (aborto necessário). A nosso ver, para que o arquivamento se dê com base em causa excludente da ilicitude, há necessidade de um juízo de certeza quanto a sua presença; na dúvida, incumbe ao órgão do Ministério Público oferecer denúncia, a fim de que a controvérsia seja dirimida em juízo, após ampla produção probatória; e) existência m anifesta de causa excludente da culpabilidade, salvo a inim putabilidad e:

no caso do inimputável do art. 26, caput, do CP, deve o Promotor de Justiça oferecer denúncia, já que a medida de segurança só pode ser imposta ao final do devido processo legal, por meio de sentença absolutória imprópria (CPP, art. 386, parágrafo único, III); f) causa extintiva da punibilidade; g) cum prim ento do acordo de não-persecução penal: o tema será objeto de análise ao final desse Título sobre investigação preliminar. Por ora, convém apenas destacar que o art. 18, §11, da Resolução n. 181 do CNMP, dispõe expressamente que “cumprido integralmente o acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação, nos termos desta Resolução”. 14.2.

C oisa ju lgad a na decisão de arquivam ento

A partir do momento em que uma decisão judicial é proferida, temos que, em determinado momento, tomar-se-á imutável e indiscutível dentro do processo em que foi proferida, seja porque não houve a interposição de recursos contra tal decisão, seja porque todos os recursos cabíveis foram interpostos e decididos. A partir do momento em que não for mais cabível qual­ quer recurso ou tendo ocorrido o exaurimento das vias recursais, a decisão transita em julgado. Esse impedimento de modificação da decisão por qualquer meio processual dentro do pro­ cesso em que foi proferida é chamado de coisa julgada formal, ou ainda de preclusão máxima. Trata-se de fenômeno endoprocessual, pois a imutabilidade da decisão está restrita ao processo em que foi proferida. Se a coisa julgada formal é a imutabilidade da decisão no processo em que foi proferida, a coisa julgada material projeta-se para fora do processo, tomando a decisão imutável e indiscutível além dos limites do processo em que foi proferida. Pela coisa julgada material, a decisão não mais poderá ser alterada ou desconsiderada em qualquer outro processo. Em síntese, denomi­ na-se coisa julgada material a autoridade que toma imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso (art. 502 do novo CPC). Como se percebe, a coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal, mas o inverso não acontece. Firmados os conceitos de coisa julgada formal e material, questiona-se: a decisão judicial que homologa a promoção de arquivamento formulada pelo Ministério Público faz apenas coisa julgada formal ou coisa julgada formal e material? Na verdade, há de se aferir se houve (ou não) pronunciamento a respeito do mérito da conduta do agente. Em síntese, pode-se afirmar que haverá apenas coisa julgada formal nas seguintes hipóteses: a) A usência de p ressupostos processuais ou condições para o exercício da ação penal:

no exemplo acima citado, em que a vítima de um crime de ameaça ofereceu a representação num primeiro momento, mas depois se retratou, tendo o Ministério Público requerido o ar­ quivamento dos autos, suponha-se que esta mesma vítima resolva se retratar da retratação da representação, fazendo-o dentro do prazo decadencial de 6 (seis) meses. Nesse caso, como a

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decisão de arquivamento só faz coisa julgada formal, suprida a ausência da condição da ação (representação), nada impede que a peça acusatória seja oferecida pelo órgão ministerial;110 b) A u sên cia de ju sta cau sa p ara o exercício da ação penal: como visto acima, não havendo elementos de informação quanto à autoria, após o esgotamento das diligências, outro caminho não restará ao Promotor senão o arquivamento dos autos. Nesse caso, pode ser que, depois do arquivamento, surjam provas novas acerca da autoria, capazes de alterar o contexto probatório dentro do qual tal decisão foi proferida. Como esse arquivamento só faz coisa jul­ gada formal, será possível o oferecimento de denúncia. Como prevê o CPP (art. 18), depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia. Na mesma linha, segundo a súmula n° 524 do Supremo, arquivado o inquérito poli­ cial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas;111

Por sua vez, o arquivamento fará coisa julgada formal e material nas seguintes situações: a) atipicidade da conduta delituosa: reconhecida a atipicidade da conduta delituosa, ou seja, adentrando o juiz na análise do mérito da conduta praticada pelo agente para dizer que se trata de conduta formal ou materialmente atípica, a decisão de arquivamento fará coisa julgada formal e material, impedindo, pois, que o acusado seja denunciado posteriormente, ainda que a peça acusatória busque apoiar-se em novos elementos de informação;112 b) e x istê n c ia m a n ife sta de ca u sa e x c lu d en te da ilicitu d e: se o arquivamento com base na atipicidade do fato faz coisa julgada formal e material, há de se aplicar o mesmo raciocínio às hipóteses em que o arquivamento se dá com base no reconhecimento de uma causa justificante, haja vista que, em ambas as hipóteses, ocorre uma manifestação a res­ peito da matéria de mérito. A nosso sentir, não há diferença ontológica entre a decisão que arquiva o inquérito, quando comprovada a atipicidade do fato, e aquela que o faz, quando reconhecida a licitude da conduta do agente, porquanto ambas estariam fundadas na ine­ xistência de crime e não na mera ausência ou insuficiência de provas para oferecimento de denúncia. Assim, da mesma forma que não seria admissível o desarquivamento do inquérito policial pelo surgimento de provas novas que revelassem a tipicidade de fato anteriormente considerado atípico pelas provas existentes, também seria inviável o desarquivamento na hipótese de fato julgado lícito com apoio em provas sobejamente colhidas. Como o arqui­ vamento não decorrera de mero encerramento de investigações improfícuas, mas sim de um pronunciamento de mérito, anterior ao oferecimento da denúncia, há de se reputar presente a coisa julgada material. Há precedentes da 6a Turma do STJ nesse sentido.113 Em sentido

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No sentido de que o arquivamento com base na ausência de condição de procedibilidade não impede ulterior oferecimento de denúncia, caso a condição seja posteriormente implementada, porquanto não há qualquer mani­ festação a respeito do mérito: STJ, HC 54.148/DF, 5ã Turma, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 27/03/2008, DJe 22/04/2008.

111

Para mais detalhes acerca do conceito de provas novas e desarquivamento, vide abaixo tópico pertinente ao assunto.

112 STF, 2ã Turma, HC ns 84.156/MT, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 11/02/2005 p. 172. Na mesma linha: STF, N Turma, HC 80.560/GO, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20/02/2001, DJ 30/03/2001. Para a P Turma do STF (HC 157.306/SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 25/09/2018), eventual decisão proferida pelo juiz durante a audiência de custódia reconhecendo a atipicidade de determinada conduta para fins de determinar o relaxamento da prisão em flagrante não pode ser equiparada a uma decisão de mérito para efeito de coisa julgada. 113

Para a Turma do STJ, como se trata de decisão que faz juízo de mérito do caso penal, promovido o arquivamento do inquérito policial pelo reconhecimento de legítima defesa, a coisa julgada material impede rediscussão do caso penal em qualquer novo feito criminal, pouco importando o surgimento de provas novas: STJ, REsp 791.471/ RJ, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 25/11/2014.

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diverso, há precedente da Ia Turma do STF considerando válido o oferecimento de denúncia a partir do surgimento de provas novas, apesar de prévia decisão de arquivamento com base em excludente de ilicitude. Referia-se o caso concreto a um suposto crime de homicídio imputado a delegado de polícia, em que se reputara configurado, inicialmente, o estrito cumprimento do dever legal. Porém, novas investigações demonstraram que o que realmente ocorreu foi uma “queima de arquivo”. Com a obtenção de provas substancialmente novas, foi desarquivado o inquérito policial, e oferecida denúncia contra o agente. Entendeu-se, na hipótese, que a jurisprudência do Supremo seria farta quanto ao caráter impeditivo de desarquivamento de inquérito policial nas hipóteses de reconhecimento de atipicidade, mas não propriamente de excludente de ilicitude. Citando o que disposto no aludido Verbete 524 da Súmula, enfatizou-se que o tempo todo fora afirmado, desde o Ministério Público capixaba até o STJ, que houvera novas provas decorrentes das apurações. Ademais, obser­ vou-se que essas novas condições não afastaram o fato típico, o qual não fora negado em momento algum, e sim a ilicitude que inicialmente levara a esse pedido de arquivamento;114 c) existência m anifesta de causa excludente da culpabilidade: se o motivo determinan­ te do arquivamento dos autos do inquérito policial tiver sido a presença de causa exculpante (v.g., coação moral irresistível), tal decisão fará coisa julgada formal e material, já que houve pronunciamento de mérito sobre a conduta do agente; d) existência de causa extintiva da punibilidade: declarada a extinção da punibilidade

pelo magistrado no curso do inquérito policial, em virtude de requerimento do Ministério Pú­ blico, não se afigura possível a reabertura das investigações, nem tampouco o oferecimento de denúncia, já que tal decisão faz coisa julgada formal e material. Importante ressalva deve ser feita quanto à hipótese em que a extinção da punibilidade é declarada com base em certidão de óbito falsa. Nesse caso, a decisão não está protegida pelo manto da coisa julgada material. Afinal, se a conduta fraudulenta do próprio acusado foi a causa determinante do afastamento da pretensão punitiva, causando a alteração de situação de fato ou de direito juridicamente relevante, não se pode atribuir ao Estado qualquer responsabilidade. Para os Tribunais, não há falar em revisão criminal pro societate. E perfeitamente possível o ofereci­ mento de denúncia, porquanto a decisão declaratória que, com base em certidão de óbito falsa, julga extinta a punibilidade pode ser revogada, já que não gera coisa julgada em sentido estrito.115 14.3. D esarquivam ento, a partir da notícia de provas novas, e oferecim ento de denúncia, na hipótese do surgim ento de provas novas

O arquivamento por falta de lastro probatório é uma decisão tomada com base na cláusula rebus sic stantibus, ou seja, mantidos os pressupostos fáticos que serviram de amparo ao arqui­ vamento, esta decisão deve ser mantida; modificando-se o panorama probatório, é possível o desarquivamento do inquérito policial. 114

Informativo n9 538 do STF: l â Turma, HC 95.211/ES, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 10/03/2009. Em julgado recente, a 2a Turma do Supremo também concluiu que o arquivamento de inquérito policial em razão do reconhecimento de excludente de ilicitude - in casu, estrito cumprimento do dever legal - não teria o condão de fazer coisa julgada material. A propósito, confira-se: STF, 2- Turma, HC 125.101/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 25/08/2015, DJe 180 10/09/2015.

115

Nessa linha: STF, 29 Turma, HC 84.525/MG, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 16/11/2004, DJ 03/12/2004. Na visão do STJ, a formalidade não pode ser levada a ponto de tornar imutável uma decisão lastreada em uma falsidade, sobretudo se considerarmos que o agente não pode ser beneficiado por sua própria torpeza: STJ, 69 Turma, HC 143.474/SP, Rei. Min. Celso Limongi, Desembargador convocado do TJ/SP, j. 06/05/2010, DJe 24/05/2010. E ainda: STF, l 9 Turma, HC 104.998/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, 14/12/2010.

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Porém, para que seja possível o desarquivamento, é necessário que surjam notícias de provas novas. Explica-se: suponha-se que, em relação a um crime de homicídio, a despeito do esgotamento das diligências, não tenha constado dos autos da investigação policial qualquer elemento de informação quanto à autoria do fato delituoso. Arquivado o inquérito policial, uma determinada testemunha presencial resolve, então, comparecer perante as autoridades para noticiar que teria informações quanto ao provável autor do delito. Ora, diante dessa notícia de provas novas, é possível o desarquivamento do inquérito policial. Portanto, a reabertura das investigações não pode decorrer da simples mudança de opi­ nião ou reavaliação da situação. É indispensável o surgimento de notícia de provas novas ou, ao menos, novas linhas de investigação em perspectiva. Também não se revela possível a reabertura das investigações para aprofundar linhas investigativas já disponíveis para ex­ ploração anterior.116 E quem é responsável pelo desarquivamento do inquérito policial? Há doutrinadores que entendem que é a autoridade policial. De acordo com o art. 18 do CPP, depois de arqui­ vado o inquérito por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia. Por questões práticas, como os autos do inquérito policial ficam arquivados perante o Poder Judiciário, tão logo tome conhecimento da notícia de provas novas, deve a autoridade policial representar ao Ministério Público, solicitando o desarquivamento físico dos autos para que possa proceder a novas investiga­ ções. Com a devida vênia, pensamos que o desarquivamento compete ao Ministério Públi­ co, titular da ação penal pública, e, por conseqüência, destinatário final das investigações policiais. Diante de notícia de prova nova a ele encaminhada, seja pela autoridade policial, seja por terceiros, deve promover o desarquivamento, solicitando à autoridade judiciária o desarquivamento físico dos autos. Caso haja dificuldades no desarquivamento físico dos autos do inquérito policial, nada impede que o Ministério Público requisite a instauração de outra investigação policial.117 Perceba-se, então, que uma coisa é o desarquivamento do inquérito policial, cujo pressuposto é tão somente a notícia de provas novas; outra coisa é o ulterior oferecimento da denúncia, que somente será possível caso as investigações sejam capazes de introduzir nos autos provas novas propriamente ditas. Para o desarquivamento do inquérito policial, é necessária apenas a existência de notícia de provas novas, tal qual prevê o art. 18 do CPP. Lado outro, para que o Ministério Público possa oferecer denúncia, é indispensável a existência de provas novas, nos termos da súmula n° 524 do Supremo. Assim, enquanto o art. 18 do CPP regula o desarquivamento de inquérito policial, quando decorrente da carência de provas (falta de base para a denúncia), só permitindo o prosseguimento das investigações se houver notícia de novas provas, a Súmula 524 cria uma condição específica para o desencadeamento da ação penal, caso tenha sido antes arquivado o procedimento, qual seja, a produção de novas provas. Como observa Afrânio Silva Jardim,118 é lógico que o desarquivamento pode ensejar a imediata propositura da ação penal, se as novas provas tomarem dispensável qualquer outra 116. Com esse entendimento: STF, 2ã Turma, Rcl. 20.132/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 23/02/2016, DJe 82 27/04/2016. 117

No sentido de competir ao Ministério Público o desarquivamento, dispõe o CPPM que o arquivamento de inquérito não obsta a instauração de outro, se novas provas aparecerem em relação ao fato, ao indiciado ou a tercei­ ra pessoa, ressalvados o caso julgado e os casos de extinção da punibilidade. Verificando tal hipótese, o juiz remeterá os autos ao Ministério Público, a quem compete requisitar a instauração de outro inquérito policial militar. Ademais, se entender inadequada a instauração do inquérito, o Ministério Público poderá requerer o arquivamento (art. 25, caput, §§ 19 e 29 ) .

118. D ireito processual penal. l l â ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 174.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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diligência policial, mas isso não significa que esses dois momentos - o desarquivamento e a apresentação da demanda —possam ser confundidos. O desarquivamento do inquérito policial constitui tão-só uma decisão administrativa, de natureza persecutória, no sentido de alterar os efeitos do arquivamento; enquanto este tem como conseqüência a cessação das investigações, aquele tem como efeito a retomada das investigações inicialmente paralisadas pela decisão de arquivamento. Sem notícia de prova nova, o inquérito policial não pode ser desarquivado; sem produção de prova nova, não pode ser oferecida a denúncia.119 Mas o que se entende por provas novas, capazes de autorizar o oferecimento de denúncia, mesmo após o inquérito já ter sido arquivado por ausência de lastro probatório? Provas novas são as que produzem alteração no panorama probatório dentro do qual foi concebido e acolhido o pedido de arquivamento do inquérito policial. De acordo com a doutrina, há duas espécies de provas novas: a) substancialm ente novas: as que são inéditas, ou seja, desconhecidas até então, porque ocultas ou ainda inexistentes. Suponha-se que a arma do crime, até então escondida, contendo a impressão digital do acusado, seja encontrada posteriormente; b) form alm ente novas: as que já são conhecidas e até mesmo foram utilizadas pelo Estado, mas que ganham nova versão, como, por exemplo, uma testemunha que já havia sido inquirida, mas que altera sua versão porque fora ameaçada quando do primeiro depoimento.

Nessa linha, como se pronunciou o STJ, “três são os requisitos necessários à caracterização da prova autorizadora do desarquivamento de inquérito policial (artigo 18 do CPP): a) que seja formalmente nova, isto é, sejam apresentados novos fatos, anteriormente desconhecidos; b) que seja substancialmente nova, isto é, tenha idoneidade para alterar o juízo anteriormente proferi­ do sobre a desnecessidade da persecução penal; c) seja apta a produzir alteração no panorama probatório dentro do qual foi concebido e acolhido o pedido de arquivamento. Preenchidos os requisitos - isto é, tida a nova prova por pertinente aos motivos declarados para o arquivamen­ to do inquérito policial, colhidos novos depoimentos, ainda que de testemunha anteriormente ouvida, e diante da retificação do testemunho anteriormente prestado -, é de se concluir pela ocorrência de novas provas, suficientes para o desarquivamento do inquérito policial e o con­ seqüente oferecimento da denúncia”.120 Destarte, surgindo provas novas, capazes de alterar o contexto probatório dentro do qual foi proferida a decisão de arquivamento, é possível, então, que o órgão Ministerial ofereça denúncia em face do agente. É esse o teor, aliás, da súmula n° 524 do STF, segundo a qual arquivado o inquérito policial por despacho do juiz, a requerimento do promotor, não pode a ação pe­ nal ser iniciada sem novas provas. Como se percebe pela leitura da súmula 524 do Supremo, arquivado o inquérito policial por ausência de lastro probatório, só é possível o oferecimento de denúncia a partir do surgimento de provas novas. Logo, pode-se dizer que, nessa hipótese, essas provas novas funcionam como condição de procedibilidade para o exercício da ação penal. Caso a denúncia seja oferecida sem a efetiva produção de prova nova, procedendo o juiz ao seu recebimento, é possível a oposição de exceção de coisa julgada formal (CPP, art. 95, V), assim como a impetração de habeas corpus.

119

Nesse sentido: Informativo n9 574 do STF, Pleno, HC 94.869/DF, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 11/02/2010.

120 STJ, 6- Turma, RHC 18.561/ES, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 11/04/2006, DJ 019/08/2005 p. 545. Para o STJ, a mudança de entendimento jurisprudencial sobre aspectos jurídicos da situação fática apreciada no pro­ cedimento investigatório arquivado não autoriza o desarquivamento do inquérito policial: STJ, Corte Especial, Apn 311/RO, Rei. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 02/08/2006, DJ 04/09/2006, p. 198.

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14.4. P rocedim ento do arquivam ento Apesar de o Código de Processo Penal traçar o procedimento do arquivamento no art. 28, é importante perceber que tal dispositivo tem aplicação restrita aos processos criminais de competência da Justiça Estadual. No âmbito da Justiça Federal, da Justiça Comum do Distrito Federal, da Justiça Eleitoral, da Justiça Militar, e também nas hipóteses de atribuição originária do Procurador-Geral da República ou Procurador-Geral de Justiça, há diferentes procedimentos quanto ao arquivamento. Vejamos, então, separadamente, cada um desses procedimentos. 14.4.1. Procedimento do arquivamento no âmbito da Justiça Estadual O requerimento de arquivamento subscrito pelo Promotor de Justiça deve ser submetido à apreciação judicial. Se o juiz estadual concordar com a promoção ministerial, pode-se dizer que o arquivamento está aperfeiçoado. No entanto, se o juiz estadual não concordar com o pedido ministerial, aplica-se o art. 28 do CPP, por meio do qual os autos são enviados ao Procurador-Geral de Justiça. Ao remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, age o magistrado acobertado pelo princípio da devolução, por meio do qual o juiz devolve a apreciação da controvérsia ao chefe do Ministério Público, a quem compete a decisão final sobre o oferecimento (ou não da denúncia).121 Neste caso, o juiz também exerce uma função anômala de fiscal do princípio da obrigatoriedade. Se o magistrado não concorda com a promoção de arquivamento sob o argumento de falta de lastro probatório, deve aplicar o art. 28 do CPP. Não é dado a ele, discordando do pedido ministerial, determinar a realização de novas diligências pela Polícia, ao invés de remeter o caso ao Procurador Geral. Ora, não sendo o juiz o titular da ação penal, não cabe a ele determinar de ofício diligências durante a fase investigatória. Caberá correição parcial contra a decisão judicial que determine a realização de novas diligências, após a formulação de promoção de arquivamento pelo Ministério Público. Remetidos os autos ao Procurador-Geral de Justiça nos termos do art. 28 do CPP, a este compete: a) oferecer denúncia; b) requisitar diligências; c) designar outro órgão do Ministério Público para oferecer denúncia (Lei n° 8.625/93, art. 10, IX, “d”); d) insistir no pedido de ar­ quivamento, hipótese que o juiz está obrigado a atender, já que o Ministério Público é o titular da ação penal. Quanto à designação para oferecer denúncia, ao Procurador-Geral de Justiça não é dado designar o mesmo Promotor que havia requerido o arquivamento, sob pena de violação a sua independência funcional (CF, art. 127, § Io). Impõe-se, pois, a nomeação de outro Promotor de Justiça. Prevalece o entendimento de que este outro órgão ministerial é obrigado a oferecer denúncia, não podendo invocar sua independência funcional como impeditivo ao exercício da ação penal, já que atua como longa manus do Procurador-Geral, agindo por delegação.122 Na 121

Esse princípio da devolução, plasmado no art. 28 do CPP, também tem sido usado nas hipóteses de recusa injustificada do Ministério Público em oferecer a proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo. Nesse sentido, aliás, dispõe o enunciado da súmula n9 696 do Supremo que reunidos os pressupostos legais, permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Prom otor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se p o r analogia o art. 28 do Código de Processo Penal. O princípio da

devolução é igualmente utilizado no art. 384, § l 9, do CPP, que prevê que, não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento nas hipóteses de mutatio libelli, aplica-se o art. 28. Referido dispositivo também é utilizado no art. 49, § 29, da nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n9 12.850/13), quando houver divergência entre o Ministério Público e o juiz quanto à concessão do perdão judicial nos casos de colaboração premiada. 122

No entanto, como observa Pacelli, "o órgão designado não estará impedido de, ao final, manifestar-se pela absolvição do acusado, como lhe entender de direito, tendo em vista a limitação natural da atuação delegada (isto é: o cumprimento da obrigatoriedade da ação penal)", (op. cit. p. 406).

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prática, todavia, é bastante comum que Procuradores-Gerais tenham uma equipe de assessores especiais, composta por membros do Ministério Público ocupando cargo de confiança, designa­ dos pelo Procurador-Geral para atuar nas hipóteses do art. 28 do CPP, seguindo sua orientação. Trata-se do conhecido promotor do 28. Outrossim, não há ofensa ao princípio do promotor natural pelo fato de o pedido de arqui­ vamento do inquérito policial ser feito por um promotor de justiça e a denúncia ser oferecida por outro, indicado pelo Procurador-Geral de Justiça, depois de o juízo singular haver reputado improcedente o pedido de arquivamento, nos termos do art. 28 do CPP.123 14.4.2. Procedimento do arquivamento no âmbito da Justiça Federal e da Justiça Comum do Distrito Federal No âmbito da Justiça Federal e da Justiça Comum do Distrito Federal, o procedimento do arquivamento é distinto. Atuam na Ia instância de tais Justiças, respectivamente, os Procuradores da República e os Promotores de Justiça do Distrito Federal, os quais são integrantes do Ministé­ rio Público da União, submetidos à Lei Complementar n° 75/93. Como essa Lei Complementar entrou em vigor após o Código de Processo Penal, cuja vigência se deu em 01° de janeiro de 1942, e passou a regulamentar o procedimento de arquivamento nas hipóteses de atribuição do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, seus dispositivos devem ser lidos em cotejo com o art. 28 do CPP. Estabelece o art. 62, IV, da LC n° 75/93, que compete à Câmara de Coordenação e Re­ visão do Ministério Público Federal manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral.124 De seu turno, de acordo com o art. 171, V, da LC n° 75/93, compete à Câmara de Coorde­ nação e Revisão do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral. Portanto, discordando o juiz federal (ou juiz comum do Distrito Federal) do pedido de arqui­ vamento formulado pelo Procurador da República (ou pelo Promotor do MPDFT), deverá remeter os autos à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (ou do MPDFT). Há doutrinadores que entendem que a decisão final acerca do assunto é exclusiva da Câmara de Coordenação e Revisão. A nosso ver, na medida em que a própria LC n° 75/93 faz menção apenas a uma manifestação da Câmara, dispondo, ademais, o art. 28 do CPP que, somente diante da insistência no pedido de arquivamento feito pelo Procurador-Geral, o juiz estará obrigado a atender o pedido de arquivamento, a melhor interpretação é no sentido de que a deliberação da Câmara de Coordenação e Revisão tem caráter meramente opinativo, cabendo ao respectivo Procurador-Geral a decisão final em tomo do arquivamento (ou não) do inquérito policial.125 Todavia, nada impede que o Procurador-Geral da República delegue a decisão final à Câmara de Coordenação e Revisão, nos termos do art. 50,1, da LC n° 75/93. Aliás, é exatamente isso o 123

STF, I® Turma, HC 92.885/CE, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 29/04/2008, DJe 112 19/06/2008.

124 As Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal são organizadas por função ou por matéria. Cabe à 2a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF a coordenação, integração e revisão do exercício profis­ sional no MPF relativamente à matéria criminal. Incumbe à 7§ Câmara o Controle Externo da Atividade Policial e o sistema prisional. 125 Com o mesmo entendimento: Feitoza (op. cit. p. 197).

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que ocorre no âmbito do Ministério Público Federal. Nessa linha, segundo o enunciado n° 7 da 2a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, “o magistrado, quando discordar da motivação apresentada pelo órgão do Ministério Público para o não oferecimento da denúncia, qualquer que seja a fundamentação, deve remeter os autos à 2a Câmara de Coordenação e Revisão, valen­ do-se do disposto nos artigos 28, do Código de Processo Penal e 62, IV, da LC 75/93”. Por sua vez, de acordo com o enunciado n° 9 da 2a CCR/MPF, “a promoção de arquivamento feita pelo membro do Ministério Público Federal será submetida à 2a Câmara de Coordenação e Revisão, que se manifestará no exercício de sua competência revisional”. 14.4.3. Procedimento do arquivamento na Justiça Eleitoral Ao contrário da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, da Justiça Militar e da Justiça Es­ tadual, a Justiça Eleitoral não dispõe de um corpo próprio e permanente de magistrados, razão pela qual são utilizados os magistrados da Justiça Federal (Código Eleitoral, art. 25) e da Justiça Estadual (Código Eleitoral, art. 32), por períodos predeterminados. Na mesma linha, quanto às atribuições do Ministério Público, compete ao Ministério Pú­ blico Federal exercer, no que couber, junto à Justiça Eleitoral, as funções do Ministério Público, atuando em todas as fases e instâncias do processo eleitoral (LC n° 75/93, art. 72). As funções eleitorais do Ministério Público Federal perante os Juizes e Juntas Eleitorais serão exercidas pelo Promotor Eleitoral. Esse Promotor Eleitoral será o membro do Ministério Público Estadual que oficiar junto ao Juízo incumbido do serviço eleitoral de cada Zona.126 Supondo, assim, que o arquivamento formulado pelo Promotor de Justiça do Estado perante o Juiz Estadual esteja relacionado a crimes eleitorais, porquanto ambos estariam no exercício de funções eleitorais, não se afigura possível a aplicação do art. 28 do CPP, razão pela qual os autos não devem ser remetidos ao Procurador-Geral de Justiça. Segundo o art. 357, § Io, do Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65), se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento da comunicação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa da comunicação ao Procurador Regional, e este oferecerá a denúncia, designará outro Promotor para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

126. Na visão do STF, a designação de membro do MP local como promotor eleitoral por Procurador Regional Eleitoral, que é membro do MPF, não afronta a autonomia administrativa do MP do Estado. Com base nessa orientação, no julgamento da ADI n5 3.802 (Rei. Min. Dias Toffoli, j. 10/03/2016), o Plenário do Supremo reputou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada em face do art. 79 da LC 75/1993 ("Art. 79. O Promotor Eleitoral será o membro do Ministério Público local que oficie junto ao Juízo incumbido do serviço eleitoral de cada Zona. Parágrafo único. Na inexistência de Promotor que oficie perante a Zona Eleitoral, ou havendo impedimento ou recusa justificada, o Chefe do Ministério Público local indicará ao Procurador Regional Eleitoral o substituto a ser designado"). Apesar de haver a participação do MP dos Estados na composição do Ministério Público Eleitoral, cumulando o membro da instituição as duas funções, elas não se confundiriam, haja vista possuírem conjuntos diversos de atribuições, inclusive, de remuneração. Um recebe pelo Tesouro Estadual, em virtude da função estadual, e o outro, também recebe pelo Tesouro Federal, em razão da atribuição eleitoral. A subordinação hierárquico-administrativa não funcional do promotor eleitoral seria estabelecida em relação ao Procurador Regional Eleitoral, e não em relação ao Procurador-Geral de Justiça. Ante tal fato, nada mais lógico que o ato formal de designação do promotor eleitoral para a função eleitoral seja feita exatamente pelo MPF, e não pelo MP local. A designação do promotor eleitoral seria ato de natureza complexa, resultado da conjugação de vontades tanto do Procurador-Geral de Justiça, responsável por indicar um membro do MP estadual, quanto do Procurador Regional Eleitoral, a quem competiria o ato formal de designação. Dessa maneira, o art. 79, "caput" e parágrafo único, da Lei Complementar 75/ 1993, não teria o condão de ofender a autonomia do MP Estadual, porque não incidiria sobre a esfera de atribuição do "parquet" local, mas sobre ramo diverso da instituição, o Ministério Público Eleitoral. Por conseqüência, não interviria nas atribuições ou na organização do MP Estadual.

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A despeito do teor do Código Eleitoral, tem prevalecido o entendimento de que compete à 2a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF manifestar-se nas hipóteses em que o Juiz Eleitoral considerar improcedentes as razões invocadas pelo Promotor Eleitoral ao requerer o arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, derrogado o art. 357, § Io, do Código Eleitoral pelo art. 62, inciso IV, da Lei Complementar n° 75/93 (vide enunciado n° 29 da 2a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal). 14.4.4. Arquivamento de inquérito nas hipóteses de atribuição do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral da República Nos casos de atribuição originária do Procurador-Geral de Justiça (ou do Procurador-Ge­ ral da República), caso o órgão ministerial conclua pelo arquivamento do inquérito originário, apesar do teor do art. Io, caput, c/c art. 3o, inciso I, ambos da Lei n° 8.038/90, entende-se que, em regra, esta decisão não precisa ser submetida ao crivo do Poder Judiciário, na medida em que o tribunal respectivo não teria como se insurgir diante da promoção de arquivamento do Procurador-Geral, sendo inviável a aplicação do art. 28 do CPP. Com efeito, quando a competência originária for dos Tribunais, se o Procurador-Geral pede o arquivamento, não há como deixar de atendê-lo. Se a iniciativa da ação cabe ao Ministério Público, ao Tribunal não é dado obrigá-lo a oferecer denúncia. Àquele compete a última palavra sobre a pertinência da ação, já que não haveria uma autoridade superior no âmbito do Ministério Público que pudesse rever o mérito da posição adotada pelo Procurador-Geral. Portanto, quando se tratar de hipóteses de atribuição originária do Procurador-Geral, ou mesmo quando se tratar de insistência de arquivamento previsto no art. 28 do CPP, como essa decisão não precisa ser submetida à análise do Poder Judiciário, tem-se verdadeira decisão de caráter administrativo. Nessas hipóteses, como o acatamento do arquivamento pelo Poder Judiciário é obrigatório, sequer há necessidade de o órgão do Ministério Público submeter sua decisão de arquivamento ao crivo do Tribunal.127 Ressalva especial quanto a essa desnecessidade de submeter o pedido de arquivamento do Procurador-Geral à apreciação do Supremo Tribunal Federal diz respeito às hipóteses em que a decisão seja capaz de fazer coisa julgada material. Para o Supremo, quando o arquivamento for capaz de gerar coisa julgada material, ou seja, nas hipóteses de atipicidade do fato e nos casos de extinção da punibilidade, tem-se considerado indispensável que o Tribunal examine o pedido de arquivamento do Procurador-Geral do Ministério Público da União, in verbis: “[...] A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assevera que o pronunciamento de arquivamento, em regra, deve ser acolhido sem que se questione ou se entre no mérito da avaliação deduzida pelo titular da ação penal. [...] Esses julgados ressalvam, contudo, duas hipóteses em que a determinação judicial do arquivamento possa gerar coisa julgada material, a saber: prescrição da pretensão punitiva e atipicidade da conduta. Constata-se, portanto, que apenas nas hipóteses de atipicidade da conduta e extinção da punibilidade poderá o Tribunal analisar o mérito das alegações trazidas pelo PGR”.128 127 Se o procedimento administrativo encaminhado à Procuradoria vem a ser arquivado, essa decisão administra­ tiva não pode ser substituída por nova denúncia, apresentada pelo novo Procurador-Geral, sem a existência de provas novas: STF, Pleno, Inq. 2054/DF, Rei. Min. Ellen Grade, DJ 06/10/2006. Na mesma linha: STJ, 5ã Turma, HC 64.564/GO, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 09/04/2007 p. 259. Precedentes citados do STF: Pet 2.509-MG, DJ 18/2/2004; Inq 1.884-RS, DJ 27/8/2004; do STJ: AgRg na SD 32-PB, DJ 5/9/2005, e Pet 2.662-SC, DJ 23/3/2005. 128 STF, Pleno, Inq. 2.341 QO/MT, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 28/06/2007, DJe 82 16/08/2007. Precedentes citados nesse julgado: INQ n2 510/DF, Rei. Min. Celso de Mello, Plenário, unânime, DJ 19.4.1991; INQ n§ 719/AC, Rei. Min. Sydney Sanches, Plenário, unânime, DJ 24.9.1993; INQ n^ 851/SP, Rei. Min. Néri da Silveira, Plenário, unânime,

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Em síntese, portanto, pode-se dizer que, nas hipóteses de atribuição originária do Procura­ dor-Geral da República e do Procurador-Geral de Justiça, quando o arquivamento se fundar na inexistência de base empírica para o oferecimento da denúncia, não há necessidade de apreciação por parte do Poder Judiciário, já que seu acatamento por parte do Tribunal é compulsório. Porém, nos casos em que o pedido de arquivamento formulado pelo Ministério Público se lastrear na atipicidade dos fatos, que reputa apurados, ou na extinção de sua punibilidade, fundamentos estes capazes de produzir coisa julgada material, toma-se imperioso que o requerimento ministerial seja objeto de decisão jurisdicional do órgão judiciário competente.129 Nos procedimentos investigativos em tramitação originária no Superior Tribunal de Justiça também não se aplica o disposto no art. 28 do CPP. Por conseqüência, se um Subprocurador-Geral da República requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informa­ ção que tramitem originariamente perante aquele Tribunal Superior, este, mesmo considerando improcedentes as razões invocadas, deverá determinar o arquivamento solicitado, sem a possibi­ lidade de remessa para o Procurador-Geral da República, não se aplicando o art. 28 do CPP. Isso porque a jurispmdência do STJ é no sentido de que os membros do MPF atuam por delegação do Procurador-Geral da República na instância especial. Assim, em decorrência do sistema acusatório, nos casos em que o titular da ação penal se manifesta pelo arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, não há alternativa, senão acolher o pedido e determinar o arquivamento. Nesse passo, não há falar em aplicação do art. 28 do CPP nos procedimentos de competência originária do STJ.130 Ultrapassada essa questão, convém lembrar que, promovido o arquivamento, não será possível que novo Procurador-Geral ofereça denúncia, ressalvada a hipótese de surgimento de provas novas, capazes de alterar o contexto probatório dentro do qual foi proferida a decisão de arquivamento. Apreciando o Inquérito n° 2.028/BA, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a manifestação formulada pelo Procurador-Geral da República, no sentido do arquivamento de inquérito policial, é dotada de caráter irrevogável, não sendo passível de reconsideração ou revisão, salvo diante do surgimento de provas novas.131 Por fim, na hipótese de arquivamento de investigação por parte do Procurador-Geral de Justiça, caberá pedido de revisão ao Colégio de Procuradores, mediante requerimento do in­ teressado (ofendido), tal qual dispõe o art. 12, XI, da Lei n° 8.625/93. Portanto, se a decisão de arquivamento é do Procurador-Geral de Justiça, o Colégio de Procuradores de Justiça pode rever, mediante requerimento do legítimo interessado, nos termos da Lei Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informação determinada pelo procurador-geral, nos casos de sua atribuição originária. 14.5. A rquivam ento im plícito

Na lição de Afrânio Silva Jardim, “entende-se por arquivamento implícito o fenômeno de ordem processual decorrente de o titular da ação penal deixar de incluir na denúncia algum fato

DJ 6.6.1997; HC n9 75.907/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, l 9 Turma, maioria, DJ 9.4.1999; HC n9 80.560/GO, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, l 9 Turma, unânime, DJ 30.3.2001; INQ n9 1.538/PR, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, unânime, DJ 14.9.2001; HC n9 80.263/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, unânime, DJ 27.6.2003; INQ n9 1.608/PA, Rei. Min. Marco Aurélio, Plenário, unânime, DJ 6.8.2004; INQ n9 1.884/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, Plenário, maioria, DJ 27.8.2004; INQ(QO) n9 2.044/SC, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, maioria, DJ 8.4.2005; e HC n9 83.343/SP, l 9 Turma, unânime, DJ 19.8.2005. 129

Nesse sentido: STF, Pleno, Inq. 1.443/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30/08/2001, DJ 05/10/2001.

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Sob essa ótica: STJ, Corte Especial, Inq. 967/DF, Rei. Min. Humberto Martins, j. 18/3/2015, DJe 30/3/2015.

131 STF, Pleno, Inq. 2.028/BA, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 16/12/2005.

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investigado ou algum dos indiciados, sem expressa manifestação ou justificação deste procedi­ mento. Este arquivamento se consuma quando o juiz não se pronuncia na forma do art. 28 com relação ao que foi omitido na peça acusatória”.132 A título de exemplo, suponha-se que o inquérito policial tenha apurado a prática de dois delitos (furto e estupro), tendo a autoridade policial indiciado Tício e Mévio pela prática dos referidos delitos. Remetidos os autos ao órgão do Ministério Público, este, porém, oferece denúncia em face de Tício, imputando a ele apenas o crime de furto, silenciando-se quanto ao crime de estupro e em relação ao outro indiciado, que não foram denunciados, não foram obje­ to de requerimento de diligências, nem tampouco de pedido de arquivamento expresso. Nesse caso, deve o magistrado aplicar o art. 28 do CPP, remetendo a decisão ao Procurador-Geral de Justiça. Caso o juiz não se manifeste nos termos do art. 28 do CPP, ter-se-ia o denominado arquivamento implícito. Apesar da construção doutrinária, é bom destacar que a maioria da doutrina e da jurispru­ dência não admitem essa modalidade de arquivamento. Isso porque todo pedido de arquiva­ mento deve ser fundamentado - perceba-se que o próprio art. 28 do CPP faz menção às razões invocadas pelo Ministério Público. Logo, mesmo que o órgão do Ministério Publico não tenha se manifestado expressamente em relação a determinado fato delituoso e/ou coautor ou partí­ cipe, nem tampouco tenha o juiz determinado a aplicação do art. 28 do CPP, não há falar em arquivamento implícito.133 Ad cautelam, é sempre oportuno ressalvar expressamente, na denúncia ou em cota minis­ terial, o direito de o Ministério Público denunciar o indiciado por outro fato mencionado nos autos, ainda pendente de melhor investigação, ou de denunciar outras pessoas ou indiciados, também mencionados nos autos do inquérito. Quanto ao cabimento de ação penal privada subsidiária da pública nas hipóteses de arquiva­ mento implícito, ou seja, caso o órgão do Ministério Público tenha deixado de incluir na denúncia algum fato delituoso e/ou coautor investigado, silenciando-se quanto ao arquivamento do inquérito em relação a eles, o STJ tem entendido ser inviável o oferecimento de queixa-crime subsidiária.134 14.6. A rquivam ento indireto

O arquivamento indireto ocorre quando o juiz, em virtude do não oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, fundamentado em razões de incompetência da autoridade jurisdicional, recebe tal manifestação como se tratasse de um pedido de arquivamento. Quando o magistrado não concorda com o pedido de declinação de competência formulado pelo órgão ministerial, não pode obrigar o Ministério Público a oferecer denúncia, sob pena de violação a sua independência funcional (CF, art. 127, § Io). Há, assim, um impasse, porque o juiz se recusa a remeter os autos a outro juízo, por se considerar competente para o feito, ao passo que o órgão do Ministério Público recusa-se a oferecer denúncia, porque entende que a autoridade judiciária não é o juiz natural da causa. Não se trata de conflito de competência,

132 D ireito processual penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. p. 170. 133

No sentido da inadmissibilidade do arquivamento implícito no sistema processual penal brasileiro: STF, I a Tur­ ma, RHC 95.141/RJ, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06/10/2009, DJe 200 22/10/2009. E ainda: Informativo n9 605 do STF, I a Turma, HC 104.356/RJ, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19/10/2010. No sentido de não se admitir o arquivamento implícito, já que o art. 569 do CPP admite o aditamento da denúncia para suprir, antes da sentença, suas omissões, de modo a tornar efetivos os princípios da obrigatoriedade da ação penal pública e da busca da verdade: STJ, 6a Turma, HC 46.409/DF, Rei. Min. Paulo Gallotti, j. 29/06/2006, DJ 27/11/2006.

134 STJ, 5a Turma, HC 21.074/RJ, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 13/05/2003, DJ 23/06/2003 p. 396.

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M A N U A L DE PR O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lima

porquanto o dissenso não foi estabelecido entre duas autoridades jurisdicionais. Também não se cuida de conflito de atribuições, já que o dissenso envolve uma autoridade judiciária e um órgão do Ministério Público. Nesse caso, deve o juiz receber a manifestação como se tratasse de um pedido indireto de arquivamento, aplicando, por analogia, o quanto disposto no art. 28 do CPP: os autos serão remetidos ao órgão de controle revisional do Ministério Público, seja o Procurador-Geral de Justiça, no âmbito do Ministério Público dos Estados, seja a Câmara de Coordenação e Revisão, na esfera do Ministério Público da União. É este o denominado arquivamento indireto.135 14.7. A rquivam ento em crim es de ação p en al de iniciativa privada

Em regra, ao se tratar do arquivamento do inquérito policial, costuma-se dar primazia ao seu estudo nas hipóteses de ação penal de iniciativa pública, já que, em tais casos, vigora o prin­ cípio da obrigatoriedade. Mas e nos crimes de ação penal de iniciativa privada? Seria possível o arquivamento do inquérito policial? Como a decadência e a renúncia funcionam como causas extintivas da punibilidade em relação aos crimes de ação penal de iniciativa privada (exclusiva e personalíssima), depreende-se que a discussão em tomo do arquivamento nesse tipo de ação penal tem pouca, senão nenhuma relevância. Isso porque, supondo-se que alguém seja vítima de um crime contra a honra, cuja autoria seja conhecida, é difícil de acreditar que, não querendo exercer o direito de queixa, o ofendido se desse o trabalho de requerer o arquivamento dos autos do inquérito policial. Na verdade, caso pretenda não fazer uso do seu direito de ação penal privada, irá simplesmente deixar escoar o prazo decadencial de 6 (seis) meses, contados da data em que veio a saber quem era o autor do crime, gerando a extinção da punibilidade com base no art. 107, IV, do CR Ademais, mesmo que o ofendido requeresse o arquivamento do inquérito policial, tendo conhecimento da autoria, tal manifestação deveria ser acolhida como forma de renúncia tácita, o que também causaria a extinção da punibilidade. Subsiste, no entanto, a possibilidade de arquivamento em crimes de ação penal de iniciativa privada (exclusiva e personalíssima), quando, a despeito das inúmeras diligências realizadas no curso da investigação policial, não se tenha logrado êxito na obtenção de elementos de infor­ mação quanto à autoria do fato delituoso, como, por exemplo, na hipótese de crimes contra a honra praticados pela internet. Nesse caso, enquanto não se souber quem é o autor do delito, o prazo decadencial não começará a fluir. Em uma tal situação, há de se admitir o pedido de arquivamento do inquérito policial feito pelo ofendido, hipótese em que não haveria renúncia tácita, já que o autor da infração não teria sido identificado. 14.8. R ecorribilidade contra a decisão de arquivam ento

Em regra, não cabe recurso contra a decisão judicial que determina o arquivamento do inquérito policial, nem tampouco ação penal privada subsidiária da pública. Ressalva importante quanto à recorribilidade deve ser feita quanto aos crimes contra a eco­ nomia popular ou contra a saúde pública, hipótese em que há previsão legal de recurso de ofício. Segundo o art. T da Lei n° 1.521/51, “os juizes recorrerão de ofício sempre que absolverem os

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Como já se pronunciou o STJ, "quando o órgão ministerial, por meio do Procurador-Geral de Justiça, deixa de ofe­ recer denúncia em razão da incompetência do Juízo, entendendo este ser o competente, opera-se o denominado arquivamento indireto". (STJ, 3â Seção, CAT 225/MG, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 09/09/2009, DJe 08/10/2009).

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acusados em processo por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando determinarem o arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial”. Não se trata, o recurso de ofício, de um recurso propriamente dito, pois lhe falta a característica da voluntariedade. Tem-se, pois, verdadeira condição de eficácia objetiva da decisão, sendo que, nos casos em que a lei exige o recurso de ofício, a decisão só é apta a produzir seus efeitos regulares a partir da apreciação do feito pelo Tribunal. De seu turno, no caso das contravenções do jogo do bicho e de corrida de cavalos fora do hipódromo, há previsão legal de recurso em sentido estrito (Lei n° 1.508/51, art. 6o, parágrafo único). Como o juiz não é o titular da ação penal, a ele não é permitido determinar o arquivamento do inquérito policial de ofício, daí por que será cabível correição parcial contra tal ato tumultuário. Por fim, na hipótese de arquivamento de investigação por parte do Procurador-Geral de Justiça, caberá pedido de revisão ao Colégio de Procuradores, mediante requerimento do inte­ ressado (ofendido), tal qual dispõe o art. 12, XI, da Lei n° 8.625/93. 14.9. A rquivam ento determ inado por ju iz absolutam ente incom petente

Parte da doutrina entende que o arquivamento do inquérito por juiz absolutamente incom­ petente não está subordinado ao princípio da vedação de revisão pro societate, razão pela qual subsiste a possibilidade de instauração do processo penal perante o juízo competente, salvo nas hipóteses de arquivamento em virtude da atipicidade da conduta delituosa. Nesse caso, não é possível a aplicação do art. 8o, § 4o, do Pacto de São José da Costa Rica, visto que não se trata nem de sentença, propriamente dita, nem tampouco de sentença absolutória ou decisão declaratória extintiva da punibilidade. A título de exemplo, se, num inquérito policial relativo ao crime de moeda falsa - o qual é de competência da Justiça Federal (CF, art. 109, IV) -, um Promotor de Justiça requerer a um Juiz Estadual o arquivamento dos autos por ausência de lastro probatório para o oferecimento de denúncia, tal decisão não estará protegida pelo manto da coisa julgada. Tomando conhecimento do referido delito, caberá ao órgão do Ministério Público Federal oferecer denúncia perante o juiz federal. Porém, além de oferecer denúncia, deverá suscitar um conflito de competência, a ser dirimido pelo STJ. Explica-se: a partir do momento em que o juiz estadual determinou o arquivamento do inqué­ rito policial, implicitamente reconheceu sua competência para o feito. Afinal, não se pode admitir que um juiz, antes de decidir sobre o arquivamento, não decida também sobre sua competência. Logo, se o juiz federal deliberar pelo recebimento da denúncia, tem-se um conflito positivo de competência positivo entre duas autoridades judiciárias (CPP, art. 114, II), a ser dirimido pelo STJ, porquanto os dois juizes estão vinculados Tribunais diversos (CF, art. 105,1, “d”). Em que pese a referida posição doutrinária, prevalece no Supremo o entendimento de que o pedido de arquivamento de inquérito policial, quando se baseia na atipicidade da conduta de­ lituosa ou em causa extintiva da punibilidade, não é de atendimento compulsório, mas deve ser resultado de decisão do órgão judicial competente, dada a possibilidade da formação de coisa julgada material. Desse modo, há de se concluir pela ocorrência da coisa julgada material, pouco importando se a decisão tenha sido proferida por órgão jurisdicional incompetente ou se entre membros de diversos Ministérios Públicos.136 136 STF, 1^ Turma, HC 94.982/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 31/03/2009, DJe 84 07/05/2009. Em outro julgado, assim se pronunciou o Supremo: "Inquérito policial: arquivamento com base na atipicidade do fato: eficácia de coisa

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15. T R A N C A M E N T O (OU E N C E R R A M E N T O A N Ô M A L O ) D O I N Q U É R I T O P O L IC IA L

A instauração de um inquérito policial contra pessoa determinada traz consigo inegável constrangimento. Esse constrangimento, todavia, pode ser tido como legal, caso o fato sob investigação seja formal e materialmente típico, cuide-se de crime cuja punibilidade não esteja extinta, havendo indícios de envolvimento dessa pessoa na prática delituosa. Em tais casos, deve a investigação prosseguir. Todavia, verificando-se que a instauração do inquérito policial é ma­ nifestamente abusiva, o constrangimento causado pelas investigações deve ser tido como ilegal, afigurando-se possível o trancamento do inquérito policial, objeto de nosso estudo neste tópico. Como visto acima, o arquivamento do inquérito policial é uma decisão judicial que resulta do consenso entre o órgão do Ministério Público, responsável pela promoção de arquivamen­ to, e o Poder Judiciário, a quem compete a respectiva homologação. Portanto, não se pode confundir o arquivamento, ato complexo que resulta do consenso entre o Ministério Público e o Juiz, com o trancamento do inquérito policial, medida de força que acarreta a extinção do procedimento investigatório, a qual é determinada, em regra, no julgamento de habeas corpus, funcionando como importante instrumento de reação defensiva à investigação que caracterize constrangimento ilegal. De modo a não se incorrer no risco de coarctar as atividades próprias da polícia investigativa e do Ministério Público, inviabilizando a apuração de condutas delituosas, o trancamento do inquérito policial deve ser utilizado como medida de natureza excepcional, que só é possível quando evidente o constrangimento ilegal sofrido pelo investigado, nas seguintes hipóteses: a) manifesta atipicidade formal ou material da conduta delituosa: suponha-se que a autori­ dade policial determine a instauração de inquérito policial para apurar a subtração de uma lata de leite em pó, avaliada em R$ 2,00 (dois reais). Patente a insignificância da conduta delituosa atribuída ao agente, é possível a impetração do writ objetivando o trancamento do inquérito; b) presença de causa extintiva da punibilidade: a título de exemplo, suponha-se que um inquérito policial seja instaurado para investigar suposto crime de fraude no pagamento por meio de cheque (CP, art. 171, § 2o, VI). Ocorre que, imediatamente após a prática delituosa, e, portanto, antes do oferecimento da denúncia, o investigado comprovou que procedeu à re­ paração do dano. Ora, considerando que o Supremo entende que a reparação do dano nesse delito antes do recebimento da denúncia é causa extintiva da punibilidade (súmula n° 554 do STF), é possível a impetração de habeas corpus a fim de ser determinado o trancamento da investigação policial;137 julgada material. A decisão que determina o arquivamento do inquérito policial, quando fundado o pedido do Ministério Público em que o fato nele apurado não constitui crime, mais que preclusão, produz coisa julgada material, que - ainda quando em anada a decisão de ju iz absolutam ente in co m p e te n te -, impede a instauração de processo que tenha por objeto o mesmo episódio". (STF, IA Turma, HC 83.346/SP, Rei. Min. Sepúlveda Per­ tence, j. 17/05/2005, DJ 19/08/2005). Na mesma linha: STJ, 69 Turma, HC 173.397/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 17/03/2011. 137

Não configura óbice ao prosseguimento da ação penal - mas sim causa de diminuição de pena (art. 16 do CP) - o ressarcimento integral e voluntário, antes do recebimento da denúncia, do dano decorrente de estelionato praticado mediante a emissão de cheque furtado sem provisão de fundos. De fato, a conduta do agente que emite cheque que chegou ilicitamente ao seu poder configura o ilícito previsto no caput do art. 171 do CP, e não em seu § 29, VI. Assim, tipificada a conduta como estelionato na sua forma fundamental, o fato de ter o paciente ressarcido o prejuízo à vítima antes do recebimento da denúncia não impede a ação penal, não havendo falar, pois, em incidência do disposto na Súmula 554 do STF, que se restringe ao estelionato na modalidade de emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos, prevista no art. 171, § 29, VI, do CP. Com esse entendimento: STJ, 5- Turma, HC 280.089/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 18/2/2014.

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c) instauração de inquérito policial em crime de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, sem prévio requerimento do ofendido ou de seu representante legal: afinal, nessas espécies de ação penal, o requerimento do ofendido é condição sine qua non para a instauração das investigações policiais. O instrumento a ser utilizado para o trancamento do inquérito policial é, em regra, o habeas corpus. Para que seja cabível o habeas corpus, é necessário que haja uma ameaça, ainda que po­ tencial, à liberdade de locomoção. Verificando-se, assim, que se trata de infração penal à qual não é cominada pena privativa de liberdade, ou à qual seja cominada única e exclusivamente a pena de multa, não há falar em cabimento de habeas corpus. Nessa linha, aliás, dispõe a súmula n° 693 do Supremo que não cabe habeas corpus contra decisão condenatória a pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada. Na hipótese de impossibilidade de impetração de habeas corpus, pensamos ser cabível o mandado de segurança. Para que se possa saber qual é a autoridade jurisdicional competente para apreciar o ha­ beas corpus objetivando o trancamento da investigação, é de fundamental importância saber como o inquérito foi instaurado. Em outras palavras, a competência para o julgamento do writ é determinada com base na autoridade coatora que determinou a instauração das investigações. Logo, cuidando-se de inquérito policial instaurado em face de portaria da autoridade policial, ou nos casos de auto de prisão em flagrante, conclui-se que o Delegado de Polícia é a autoridade coatora, daí por que o writ deve ser apreciado por um juiz de Ia instância. Se, no entanto, o in­ quérito policial tiver sido instaurado por conta de requisição da autoridade judiciária ou do órgão do Ministério Público, ao Tribunal competente para o processo e julgamento dessa autoridade caberá a apreciação da ordem de habeas corpus.138 15.1. (Im ) possibilidade de arquivam ento de ofício de in vestigações nos casos de com pe­ tência originária dos Tribunais.

Especificamente em relação ao arquivamento de investigações originárias, especial atenção deve ser dispensada ao art. 231, §4°, do Regimento Interno do STF. De acordo com o referido dispositivo, o relator tem competência para determinar o arquivamento, quando o requerer o Procurador-Geral da República ou quando verificar: a) a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; b) a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; c) que o fato narrado evidentemente não constitui crime; d) extinta a punibilidade do agente; ou e) ausência de indícios mínimos de autoria ou materialidade, nos casos em que forem descumpridos os prazos para a instrução do inquérito ou para oferecimento de denúncia: segundo disposto no art. 230-C do RISTF, instaurado o inquérito, a autoridade policial deverá em sessenta dias reunir os elementos necessários à conclusão das investigações, efetuando as inquirições e realizando as demais diligências necessárias à elucidação dos fatos, apresentando, ao final, peça informativa, sendo que o Relator pode deferir a prorrogação desse prazo sob requerimento fundamentado da autoridade policial ou do Procurador-Geral da Repú­ blica, que deverão indicar as diligências que faltam ser concluídas. Com fundamento nesse dispositivo, a 2a Turma do STF tem determinado o arquivamen­ to de oficio de inquéritos originários, sem qualquer requerimento nesse sentido por parte do

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Para Weber Martins, o Promotor de Justiça "não será autoridade coatora quando se limitar a pedir a remessa de peças ao Delegado, para que este tome as providências cabíveis, ou quando requisitar a abertura do inquérito para apurar um certo fato criminoso, sem apontar seu provável autor. Neste caso, o indiciamento abusivo de pessoa contra quem não existam indícios capazes de colocá-la na posição de provável autora do fato, feito pelo delegado, torna este a autoridade coatora". (Trancamento de inquérito policia. Revista Forense, v. 328, p. 101-104, out.-dez. 1994).

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Procurador-Geral da República, sendo que, em alguns casos, essa decisão tem sido inclusive prolatada monocraticamente pelo respectivo Relator, sem ser submetida ao crivo do colegiado competente. Cite-se, a título de exemplo, a decisão monocrática proferida pelo Min. Gilmar Mendes nos autos do Inq. 4.244/DF,139 instaurado para apurar a responsabilidade do ex-Senador (atualmente Deputado Federal) e candidato derrotado às eleições presidenciais em 2014 A. N. C, pela prática dos crimes de corrupção passiva (CP, art. 317) e lavagem de capitais (Lei n. 9.613/98, art. Io, V). Sem embargo de o próprio STF ter assentado que a prerrogativa de foro dos parlamentares federais estaria limitada aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas (AP 937 QO, Rei. Min. Roberto Barroso, julgada em 3.5.2018) e que essa linha interpretativa deveria ser aplicada aos processos em curso, inclusive ao caso em questão, concluiu o Relator que a declinação da competência em uma investigação fadada ao insucesso representaria apenas protelar o inevitável. Entendeu-se que a pendência de investigação por prazo irrazoável - in casu, cerca de 10 (dez) meses -, sem amparo em suspeita contundente, ofende o direito à razoável duração do processo (art. 5o, LXXVIII, da CF) e a dignidade da pessoa humana (art. Io, III, da CF). Assim, apesar de constar expressamente da decisão em apreço que não haveria dúvida no sentido de que o STF não seria competente para o processo e julgamento do feito, conforme decidido na Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ, determinou-se, monocraticamente, o arquivamento de ofício do feito, nos termos do art. 18 do CPP, c/c art. 231, §4°, alínea “e”, do RISTF. Com a devida vênia, considerando-se que recai sobre o Ministério Público a titularidade da ação penal pública (CF, art. 129, I), o qual detém, portanto, o poder-dever de conduzir a investigação preliminar de modo a formar seu adequado convencimento a respeito da autoria e materialidade, atuando o Judiciário apenas quando provocado e limitando-se a coibir ilegalida­ des manifestas, não se pode admitir o arquivamento de inquéritos de ofício, nem mesmo em se tratando de inquéritos originários referentes a autoridades com foro por prerrogativa de função. Fosse isso possível, colocar-se-ia o Ministério Público na condição de mero espectador da persecução penal. De fato, partindo-se da premissa de que inquéritos poderiam ser arquivados de ofício pelo Judiciário, ter-se-ia que concluir então, a contrario sensu, que o Parquet só deveria intervir se acaso não fosse hipótese de arquivamento de ofício. É dizer, os autos seriam enca­ minhados ao Ministério Público pelo Judiciário tão somente este concluísse que o investigado deveria ser denunciado, porquanto incabível o arquivamento de ofício. Ou seja, a intervenção ministerial seria necessária apenas se o Ministro Relator visualizasse que o acusado deveria ser denunciado, algo que nos parece inconcebível à luz da garantia da imparcialidade. Compreendendo-se o arquivamento como um ato complexo que envolve prévia promoção de arquivamento formulada pelo órgão ministerial, e ulterior decisão da autoridade judiciária competente, homologando-a, o que se tem, nessas decisões monocráticas e colegiadas da 2a Turma do STF, não é propriamente um arquivamento, mas sim o trancamento de investigação originária, este sim passível de ser determinado de ofício. Ou seja, conquanto o art. 231, §4°, do RISTF, faça referência ao termo arquivamento tanto quando requerido pelo Procurador-Ge­ ral da República, quanto verificado de ofício pelo Relator, esta última hipótese não se trata de arquivamento propriamente dito, mas sim de trancamento, a despeito de ambos produzirem o mesmo efeito, qual seja o encerramento das investigações.

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STF, Inq. 4.244/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 29/06/2018. Na mesma linha, porém em decisão do colegiado: STF, 2- Turma, Inq. 4.420/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 21/08/2018, DJe 257 30/11/2018.

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Aliás, não por outro motivo, em caso concreto no qual o Min. Dias Toffoli determinou de ofício o arquivamento de inquérito policial instaurado para investigar conduta delituosa su­ postamente praticada por Deputado Federal, o Plenário do Supremo deu provimento a agravo regimental para determinar a reabertura das investigações.140Na mesma linha, pronunciando-se no julgamento de agravo regimental interposto contra a decisão monocrática proferida nos au­ tos do Inq. 4.244 acima mencionada, a 2a Turma do STF deliberou por reformá-la para fins de determinar o retomo dos autos ao Parquet para que conclua diligências de caráter instmtório, ainda pendentes de execução, no prazo de sessenta dias, sob pena de arquivamento do inquérito, na forma do art. 231, § 4o, e, do RISTF.141 Se o arquivamento de um inquérito só é possível diante de prévia manifestação ministe­ rial, sob pena de verdadeira usurpação da titularidade da ação penal pública pelo Judiciário, raciocínio diverso se aplica ao trancamento, que pode - e deve - ser determinado de ofício, nos termos do art. 654, §2°, do CPP. Com efeito, o Poder Judiciário não pode se quedar inerte diante de manifesto constrangimento ilegal à liberdade de locomoção de alguém. Tratando-se de investigação manifestamente abusiva, como, por exemplo, em relação a fato atípico ou cuja punibilidade esteja extinta, é de todo evidente que a mera tramitação desse inquérito já representa um constrangimento ao direito de ir e vir do cidadão, daí por que deve ser objeto de trancamento. Para que esse trancamento seja determinado, porém, duas observações se fazem neces­ sárias: Ia) a decisão só pode ser determinada pela autoridade judiciária competente; 2a) o trancamento de um procedimento investigatório é uma medida de natureza excepcional, cabível apenas diante de hipóteses teratológicas. Por isso, com a devida vênia, reputamos absolutamen­ te equivocada a decisão proferida pelo Min. Gilmar Mendes nos autos do Inq. 4.244. Primeiro porque, a despeito do explícito reconhecimento da incompetência do Supremo, o Ministro Relator determinou o arquivamento do feito. Segundo porque considerou que o decurso do prazo de 10 (dez) meses em uma investigação envolvendo um agente em liberdade seria in­ compatível com a razoável duração do processo, o que também não nos parece correto. Por se tratar de investigado solto, e não preso, cuida-se de prazo relativamente exíguo se comparado a outras centenas de milhares de inquéritos em tramitação em Delegacias de Polícia espalhadas pelo nosso país, e absolutamente compatível com a complexidade de investigações em crimes contra a Administração Pública e de Lavagem de Capitais. Ora, a título de comparação, se a Lei das Organizações Criminosas autoriza que uma instrução criminal envolvendo acusado preso possa se prolongar por até 240 (duzentos e quarenta) dias, ou seja, cerca de 8 (oito) meses (Lei n. 12.850/13, art. 22, parágrafo único), revela-se no mínimo contraditório afirmar que a tramitação de uma investigação em relação a indivíduo solto por 10 (dez) meses seja tratada como uma persecução penal eterna capaz de autorizar a extinção anômala e prematura de um procedimento investigatório. 16. IN V E S T IG A Ç Õ E S D IV E R S A S

A atividade investigatória não é exclusiva da Polícia Judiciária. Com efeito, o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 4o, parágrafo único, acentua que a atribuição para a apuração das infrações penais e de sua autoria não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.

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STF, Pleno, Inq. 2.913 AgR/MT, Rei. Min. Luiz Fux, j. 12/03/2012, DJe 121 20/06/2012. STF, 22 Turma, Inq. 4.244/DF, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20/11/2018.

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16.1. C om issões P arlam entares de Inquérito: inquéritos parlam entares De acordo com o art. 58, § 3o, da Carta Magna, as comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. As comissões parlamentares de inquérito são órgãos que instauram procedimento adminis­ trativo de feição política, de cunho meramente investigatório, semelhante ao inquérito policial e ao inquérito civil público. Diferenciam-se destes, no entanto, não só em virtude dos poderes de investigação de que são dotados seus membros, equiparados aos poderes de investigação dos jui­ zes, como também pelo fato de as CPFs não assumirem, obrigatoriamente, natureza preparatória de ações judiciais. Não se destinam a apurar crimes nem a puni-los, o que é da competência dos Poderes Executivo e Judiciário; entretanto, se no curso de uma investigação, vem a deparar com fato criminoso, dele dará ciência ao Ministério Público, para os fins de direito, como qualquer autoridade, e mesmo como qualquer do povo. As Comissões Parlamentares de Inquérito não são dotadas de poderes gerais de investiga­ ção. Só podem investigar fatos precisos e determinados, mesmo que relacionados a particulares, porém desde que sejam de interesse público. Esses fatos específicos podem ter qualquer natureza, inclusive criminosa, independentemente de quem esteja envolvido. Em relação aos poderes e limitações a que estão sujeitas às comissões parlamentares de inquérito, pode-se dizer que: a) a atuação das comissões parlamentares de inquérito está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, segundo a qual, por expressa previsão constitucional, compete exclusivamente aos órgãos do Poder Judiciário, com total exclusão de qualquer outro órgão estatal, a prática de determinadas restrições a direitos e garantias individuais: a) violação ao domicílio durante o dia (CF, art. 5o, inciso XI); b) prisão, salvo o flagrante delito (CF, art. 5o, inciso LXI); c) interceptação telefônica (CF, art. 5o, inciso XII); d) afastamento de sigilo de processos judiciais;142

b) o princípio constitucional da reserva de jurisdição não se estende ao tema da quebra de sigilo, pois, em tal matéria, e por efeito de expressa autorização dada pela própria Constituição da República (CF, art. 58, § 3o), assiste competência à Comissão Parlamentar de Inquérito, para decretar, sempre em ato necessariamente motivado, a excepcional ruptura dessa esfera de pri­ vacidade das pessoas. Para decretar a quebra de tais sigilos, devem as Comissões Parlamentares de inquérito demonstrar, a partir de meros indícios, a existência concreta de causa provável que legitime a medida excepcional, justificando a necessidade de sua efetivação no procedimento;143 c) uma comissão parlamentar de inquérito, “destinada a investigar fatos relacionados com as atribuições congressuais, tem poderes imanentes ao natural exercício de suas atribuições, como de 142

Comissão Parlamentar de Inquérito não é dotada do poder jurídico de obter, mediante requisição, a operadoras de telefonia, de cópias de decisão nem de mandado judicial de interceptação telefônica, quebrar sigilo imposto a processo sujeito a segredo de justiça. Este é oponível à Comissão Parlamentar de inquérito, representando expressiva limitação aos seus poderes constitucionais. (STF, Pleno, MS 27.483 REF-MC/DF, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 14/08/2008, DJe 192 09/10/2008).

143 STF, Pleno, MS 23.639/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 16/11/2000, DJ 16/02/2001. E também: STF - MS 23.652/ DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 16/02/2001.

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colher depoimentos, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, notificando-as a comparecer perante ela e a depor; a este poder corresponde o dever de, comparecendo a pessoa perante a comissão, prestar-lhe depoimento, não podendo calar a verdade. Comete crime a testemunha que o fizer. A Constituição, art. 58, § 3o, a Lei 1579, art. 4o, e a jurisprudência são nesse sentido. [...] Ao poder de investigar corresponde, necessariamente, a posse dos meios coercitivos adequados para o bom desempenho de suas finalidades; eles são diretos, até onde se revelam eficazes, e indire­ tos, quando falharem aqueles, caso em que se servirá da colaboração do aparelho judiciário;”144 d) se as comissões parlamentares de inquérito “detêm o poder instrutório das autoridades

judiciais - e não maior que o dessas - a elas se poderão opor os mesmos limites formais e subs­ tancias oponíveis aos juizes, dentre os quais os derivados das garantias constitucionais contra a autoincriminação, que tem sua manifestação mais eloqüente no direito ao silêncio dos acusados. Não importa que, na CPI - que tem poderes de instrução, mas nenhum poder de processar nem de julgar - a rigor não haja acusados: a garantia contra a autoincriminação se estende a qualquer indagação por autoridade pública de cuja resposta possa advir à imputação ao declarante da prática de crime, ainda que em procedimento e foro diversos;”145 e) ninguém pode escusar-se de comparecer a comissão parlamentar de inquérito para depor. Ninguém pode recusar-se a depor. Contudo, “a testemunha pode escusar-se a prestar depoimen­ to se este colidir com o dever de guardar sigilo. O sigilo profissional tem alcance geral e se aplica a qualquer juízo, cível, criminal, administrativo ou parlamentar. Não basta invocar sigilo profissional para que a pessoa fique isenta de prestar depoimento. É preciso haver um mínimo de credibilidade na alegação e só a posteriori pode ser apreciado caso a caso. A testemunha, não pode prever todas as perguntas que lhe serão feitas. O Judiciário deve ser prudente nessa matéria, para evitar que a pessoa venha a obter HC para calar a verdade, o que é modalidade de falso testemunho;”146 f) não é dado a uma Comissão Parlamentar de Inquérito querer controlar a regularidade ou a legalidade de atos jurisdicionais, obrigando magistrado a dar, além daquelas que constam dos autos do processo judicial, outras razões de sua prática, ou a revelar as cobertas por segredo de justiça, sob pena de violação frontal ao princípio da separação e independência dos poderes;147 g) Comissão Parlamentar de Inquérito não tem competência para expedir decreto de indisponibilidade de bens de particular, que não é medida de instrução - a cujo âmbito se restringem os poderes de autoridade judicial a elas conferidos no art. 58, § 3o- mas de provimento cautelar de eventual sentença futura, que só pode caber ao Juiz competente para proferi-la;148 Ultrapassada a análise dos poderes e limitações das Comissões Parlamentares de Inquérito, convém lembrar que, de acordo com o art. Io da Lei n° 10.001/00, os Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional encaminharão o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito respectiva, e a resolução que o aprovar, aos chefes do Ministério Pú­ blico da União ou dos Estados, ou ainda às autoridades administrativas ou judiciais com poder de decisão, conforme o caso, para a prática de atos de sua competência. 144 STF, Pleno, HC 71.039/RJ, Rei. Min. Paulo Brossard, j. 07/04/1994, DJ 06/12/1996 145

STF, Pleno, HC 79.244/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 23/02/2000, DJ 24/03/2000.

146 STF, Pleno, HC 71.039/RJ, Rei. Min. Paulo Brossard, j. 07/04/1994, DJ 06/12/1996. 147 STF, Pleno, HC 80.539/PA, Rei. Min. Maurício Corrêa, j. 21/03/2001, DJ 01/08/2003. 148 STF, Pleno, MS 23.466/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 04/05/2000, DJ 06/04/2001. STF, Pleno, MS 23.466/ DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 04/05/2000, DJ 06/04/2001.

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Ainda segundo a referida lei, a autoridade a quem for encaminhada a resolução informará ao remetente, no prazo de trinta dias, as providências adotadas ou a justificativa pela omis­ são. Ademais, a autoridade que presidir processo ou procedimento, administrativo ou judicial, instaurado em decorrência de conclusões de Comissão Parlamentar de Inquérito, comunicará, semestralmente, a fase em que se encontra, até a sua conclusão. As Casas Legislativas dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios também são dotadas de função fiscalizadora, mas só poderão investigar os fatos que se inserirem no âm­ bito de suas respectivas competências legislativas e materiais. Daí por que concluiu o Supremo que, ainda que seja omissa a Lei Complementar n° 105/01, é possível que uma CPI estadual determine a quebra de sigilo de dados bancários, com base no art. 58, § 3o, da Constituição.149 Para além dos poderes investigatórios de que são dotadas as Comissões Parlamentares de inquérito, vale ressaltar que, segundo a súmula n° 397 do Supremo, “o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas depen­ dências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito”. 16.2. C onselho de C ontrole de atividades financeiras (C O A F)

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) foi criado pela Lei n° 9.613/98. Originariamente, estava inserido no âmbito do Ministério da Fazenda. Porém, com o advento da Medida Provisória n. 870, de Io de janeiro de 2019, referido Conselho passou a funcionar junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Grosso modo, tem a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilíci­ tas relacionadas à lavagem de capitais, sem prejuízo da atribuição de outros órgãos e entidades. Tendo em conta que o processo de lavagem de capitais envolve, obrigatoriamente, a movi­ mentação de bens, valores ou direitos, estabeleceram-se mecanismos de controle dos registros de operações consideradas suspeitas. Determinou a Lei n° 9.613/98, em seu art. 9o, as espécies de atividades sujeitas à fiscalização permanente por parte da correspondente pessoa jurídica ou física, que se vê obrigada a comunicar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) a relação de operações suspeitas, de forma a viabilizar uma investigação mais detalhada. A maior parte dos encargos é dirigida às pessoas jurídicas que mantenham atividades li­ gadas aos sistemas financeiros e econômicos, compelindo-as a identificar seus clientes, manter registros das operações com eles realizadas e comunicar reservadamente as transações suspeitas que ultrapassem o valor-limite fixado pela autoridade. No entanto, o art. 9o também abarca outras instituições, e inclusive pessoas físicas (inciso XII acrescentado pela Lei 10.701/2003) que, por terem como atividade principal ou acessória, o giro de médias e grandes quantidades de dinheiro, podem ser utilizadas como canais para a lavagem de capitais. O art. 10 da Lei 9.613/98 consagra a chamada política do know your costumer, uma das armas mais poderosas no combate à lavagem de capitais, segundo a qual é dever da instituição financeira conhecer o perfil de seu correntista de forma que seja possível a definição de um padrão de movimentação financeira compatível com seus rendimentos declarados. Existindo incompatibilidade de movimentação, a notícia dessa operação suspeita deve ser encaminhada à autoridade administrativa responsável que adotará as providências cabíveis quanto à verificação da legalidade da operação. 149 STF, ACO 730/RJ, Pleno, rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 11.11.2005, p. 5.

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O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos na Lei de lavagem de capitais, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.150 16.3. Inquérito P olicial M ilitar

De acordo com a Constituição Federal (art. 144, § 4o), “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares Percebe-se que a própria Constituição Federal excepciona da atribuição da Polícia Civil a investigação dos crimes militares. O inquérito policial militar é a apuração sumária de fato que, nos termos legais, configure crime militar, e de sua autoria. Tem o caráter de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de ministrar elementos necessários à propositura da ação penal (CPPM, art. 9o). Os dispositivos do CPPM que outorgam atribuições aos militares para o exercício de fun­ ções de polícia judiciária militar já foram questionados perante o Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que não haviam sido recepcionados pela Carta Magna. A Suprema Corte, no entanto, entendeu que não é possível atribuir a investigação de fatos tipicamente militares a Polícia Federal ou à Polícia Civil.151 No âmbito das Forças Armadas ou das Policias Militares, não há um cargo específico desti­ nado exclusivamente ao exercício da atividade investigatória. Portanto, a polícia judiciária militar é exercida pelas autoridades listadas no art. T do CPPM, conforme as respectivas circunscrições: a) pelos Comandantes (antigos Ministros) da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em todo o território nacional e fora dele, em relação aos militares integrantes das respectivas Armas; b) pelo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, em relação a entidades que, por disposição legal, estejam sob sua jurisdição; c) pelos chefes de Estado-Maior e pelo secretário-geral da Marinha, nos órgãos, forças e unidades que lhes são subordinados; d) pelos comandantes de Exército e pelo comandante-chefe da Esquadra, nos órgãos, forças e unidades compreendidos no âmbito da respectiva ação de comando; e) pelos comandantes de Região Militar, Distrito Naval ou Zona Aérea, nos órgãos e unidades dos respectivos territórios; f) pelo secretário do Ministério do Exército e pelo chefe de Gabinete do Ministério da Aeronáutica, nos órgãos e serviços que lhes são subordinados; g) pelos diretores e chefes de órgãos, repartições, estabelecimentos ou serviços previstos nas leis de organização básica da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; h) pelos comandantes de forças, unidades ou navios. Grosso modo, a autoridade que exerce as funções de polícia judiciária militar é o Coman­ dante da Organização Militar em que o delito foi praticado, ou à qual pertença o militar infrator. Nesse caso, o próprio CPPM prevê que as atribuições dessa autoridade poderão ser delegadas a oficiais da ativa, para fins especificados e por tempo limitado - essa autoridade que recebe essa delegação do exercício da polícia judiciária militar é denominada de encarregado do inquérito policial militar. Em se tratando de delegação para instauração de inquérito policial militar, deverá aque­ la recair em oficial de posto superior ao do indiciado, seja este oficial da ativa, da reserva,

150

Para mais detalhes acerca do crime de lavagem de capitais, sugerimos a leitura da obra de autoria coletiva Legis­ ed.. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010, em que tivemos a oportunidade de fazer uma análise detalhada da Lei n9 9.613/98. 151 STF, 25 Turma, RMS-AgR 26.509/ES, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 07/08/2007, DJe 112 27/09/2007. lação crim in al especial, 2-

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

remunerada ou não, ou reformado. Não sendo possível a designação de oficial de posto superior ao do indiciado, poderá ser feita a de oficial do mesmo posto, desde que mais antigo. Se o indi­ ciado é oficial da reserva ou reformado, não prevalece, para a delegação, a antiguidade de posto. São atribuições da Polícia Judiciária Militar: a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria. Além dos crimes militares, o CPPM prevê que os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, que passaram a ser julgados pela Justiça Comum (Tribunal do Júri) a partir da Lei n° 9.299/96, podem ser objeto de investigação em inquéritos policiais militares (CPPM, art. 82, § 2o); b) prestar aos órgãos e juizes da Justiça Militar e aos membros do Ministério Público as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos, bem como realizar as diligências que por eles lhe forem requisitadas;

c) cumprir os mandados de prisão expedidos pela Justiça Militar; d) representar a autoridades judiciárias militares acerca da prisão preventiva e da insanidade mental do indiciado; e) cumprir as determinações da Justiça Militar relativas aos presos sob sua guarda e res­ ponsabilidade, bem como as demais prescrições do CPPM, nesse sentido; f) solicitar das autoridades civis as informações e medidas que julgar úteis à elucidação das infrações penais, que esteja a seu cargo; g) requisitar da polícia civil e das repartições técnicas civis as pesquisas e exames neces­ sários ao complemento e subsídio de inquérito policial militar; h) atender, com observância dos regulamentos militares, a pedido de apresentação de militar ou funcionário de repartição militar à autoridade civil competente, desde que legal e fundamen­ tado o pedido. Segundo o art. 26, inciso II, do CPPM, os autos de inquérito não poderão ser devolvidos à autoridade policial militar, a não ser: I - mediante requisição do Ministério Público, para diligên­ cias por ele consideradas imprescindíveis ao oferecimento de denúncia; II - por determinação do juiz, antes da denúncia, para o preenchimento de formalidades previstas neste Código, ou para complemento de prova que julgue necessária. Parte da doutrina considera que esse inciso II do art. 26 do CPPM não foi recepcionado pela Constituição Federal, porquanto não se pode admitir que, num sistema acusatório, intervenha o juiz de oficio na fase investigatória, malferindo o princípio da imparcialidade.152 16.4.

Investigação pelo M inistério Público

Na hipótese de o investigado ser membro do Ministério Público, a investigação não é atribuição da polícia judiciária, mas sim do respectivo Procurador-Geral, por força do art. 18, parágrafo único, da LC n° 75/93, e art. 41, parágrafo único, da Lei n° 8.625/93. Portanto, quando o investigado for membro da instituição, não há dúvidas de que sua conduta delituosa deve ser investigada pelo próprio Ministério Público.153 Portanto, a controvérsia acerca do poder inves152

Nesse sentido: CARVALHO, Esdras dos Santos. O direito processual penal m ilita r num a visão garantista: a con­ form açã o do processo penal m ilita r ao sistema constitucional acusatório como instrum ento de efetivação dos direitos fundam entais na tu te la penal m ilitar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 78.

153

STF, 2ã Turma, HC 93.224/SP, Rei. Min. Eros Grau, j. 13/05/2008, DJe 167 04/09/2008.

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TÍTULO 2 • INV ESTIGA ÇÃO PRELIM INAR

tigatório criminal do Ministério Público diz respeito às infrações penais que não tenham como investigado um membro do Ministério Público. De um lado, parte da doutrina e dos Tribunais Superiores posicionava-se contrariamente a esse poder investigatório ministerial com base nos seguintes argumentos: a) a investigação pelo Parquet atentaria contra o sistema acusatório, criando um desequilíbrio na paridade de armas; b) a Constituição Federal teria dotado o Parquet do poder de requisitar diligências e a instauração de inquéritos policiais (art. 129, VIII), mas não lhe conferira o poder de realizar e presidir inquéritos policiais;154 c) a atividade investigatória seria exclusiva da Polícia Judiciária (CF, art. 144, § Io, IV, c/c art. 144, § 4o); d) não haveria previsão legal de instrumento idôneo para a realização das investigações pelo Ministério Público. Em sentido diverso, grande parte da doutrina sempre admitiu a possibilidade de investi­ gação pelo Ministério Público, sob os seguintes argumentos: a) Não há falar em violação ao sistema acusatório, nem tampouco à paridade de armas, porquanto os elementos colhidos pelo Ministério Público terão o mesmo tratamento dispensado àqueles colhidos em investigações policias, leia-se, são elementos de informação, aptos a servir de base para a denúncia, devendo ser ratificados judicialmente sob crivo do contraditório e da ampla defesa, para embasamento da eventual condenação; b) Teoria dos poderes implícitos: segundo essa teoria, nascida na Suprema Corte dos EUA, no precedente Mc CulloCh vs. Maryland (1819), a Constituição, ao conceder uma atividade-fim a determinado órgão ou instituição, culmina por, implícita e simultaneamente, a ele também conceder todos os meios necessários para a consecução da­ quele objetivo. Se a última palavra acerca de um fato criminoso cabe ao Ministério Público, porquanto é o Parquet o titular da ação penal pública (CF, art. 129, inc. I), deve-se outorgar a ele todos os meios para firmar seu convencimento, aí incluída a possibilidade de realizar investigações criminais, sob pena de não se lhe garantir o meio idôneo para realizar a persecução criminal, ao menos em relação a certos tipos de delito; c) A Constituição Federal confere à Polícia Federal a exclusividade do exercício das funções de Polícia Judiciária da União, mas, como exposto anteriormente, funções de polícia judiciária não se confundem com funções de polícia investigativa; d) A possibilidade de o Ministério Público investigar pode ser extraída de diversos dispositivos constitucionais e legais, como, por exemplo, o art. 129, incisos I, VI e VIII, da Constituição Federal, arts. T e 8o da Lei Complementar n. 75/93,155 constando da Resolução n. 181 do CNMP farta regulamentação acerca do procedimento in­ vestigatório criminal. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sempre prevaleceu o entendimento de que a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional asseguram ao Ministério Público o po­ der de realizar investigações no âmbito criminal. Aliás, a súmula n° 234 do STJ dispõe que a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.156 Para a 2a Turma do STF, o Ministério Público dispõe de atribuições para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias

154

Nesse sentido:

STF; 29 Turma,

155

Por força do art. 80 da Lei n9 8.625/93, aplicam-se aos Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União.

156

Em várias decisões, o STJ tem confirmado a possibilidade de o MP realizar investigações: HC 47.752/PE, 59 Turma; RMS 17.884/SC, 59 Turma; RHC 13.823/RS 59 Turma; HC 55.100/RJ, 59 Turma; HC 34.151/SP, 59 Turma; HC 35.654/ RO, 69 turma; HC 38.495/SC, 69 turma; HC 39.614, 69 turma; HC 43.030/DF, 6§ turma; AgRg no Ag 676.354/SC, 69 Turma.

RHC

81.326/DF,

Rei. M in. Nelson Jobim, j.

06/05/2003,

DJ

Ols/08/2003.

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M A N U A L DE P R O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lim a

que assistem a qualquer pessoa sob investigação do Estado. Isso não significa retirar da Polícia Judiciária as atribuições previstas constitucionalmente, mas apenas harmonizar as normas cons­ titucionais (arts. 129 e 144) de modo a compatibilizá-las para permitir não apenas a correta e regular apuração dos fatos supostamente delituosos, mas também a formação da opinio delicti. Ora, é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos “poderes implícitos”, segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim - promo­ ção da ação penal pública - foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que “peças de informação” embasem a denúncia. Também não há falar em violação ao princípio do contradi­ tório. Afinal, mesmo quando conduzida, unilateralmente, pelo Ministério Público, a investigação penal não legitima qualquer condenação criminal, se os elementos de convicção nela produzidos - porém não reproduzidos em juízo, sob a garantia do contraditório - fossem os únicos dados probatórios existentes contra a pessoa investigada.157 Em julgamento histórico ocorrido em data de 14 de maio de 2015, o Plenário do Supremo reconheceu, enfim, que o Ministério Público dispõe de competência para promover, por auto­ ridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os advo­ gados, sem prejuízo da possibilidade - sempre presente no Estado democrático de Direito - do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Enunciado 14 da Súmula Vinculante), praticados pelos membros do Parquet. Nesse caso, é imperioso observar: a) ritos claros quanto à pertinência do sujeito investigado; b) formalização do ato investigativo; c) comunicação imediata ao Procurador-Chefe ou ao Procurador-Geral; d) autuação, numeração, controle, distribuição e publicidade dos atos; e) pleno conhecimento da atividade de investigação à parte; f) princípios e regras que orientariam o inquérito e os procedimentos administrativos sancionatórios; g) ampla defesa, contraditório, prazo para a conclusão e controle judicial. A função investigatória do Ministério Público não se converteria em atividade ordinária, mas excepcional a legitimar a sua atuação em casos de abuso de autoridade, prática de delito por policiais, crimes contra a Administração Pública, inércia dos organismos policiais, ou procrastinação indevida no desempenho de investigação penal, situações que exemplificativamente justificariam a intervenção subsidiária do órgão ministerial.158 Como o Ministério Público não pode presidir inquéritos policiais,159o meio a ser usado pelo Parquet para a realização das investigações é o procedimento investigatório criminal (PIC), o qual não exclui a possibilidade de formalização de investigação por outros órgãos legitimados da Administração Pública. Objeto de regramento pela Resolução n. 181 do CNMP, o PIC consiste no instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e inquisitorial, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com atribuição criminal, e terá como finali­ dade apurar a ocorrência de infrações penais de natureza pública, servindo como preparação e 157 STF, 2®Turma, HC 91.661, Rei. Min. Ellen Grade, j. 10/03/2009, DJe 64 02/04/2009. E ainda: STF, 23 Turma, HC 89.837/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 20/10/2009, DJe 20/11/2009. 158 STF, Pleno, RE 593.727/MG, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 14/05/2015, DJe 175 04/09/2015. 159

No sentido de ser vedado ao Ministério Público realizar e presidir o inquérito policial: STJ, 53 Turma, HC 45.057/ DF, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 19/08/2009, DJe 21/09/2009. Com o entendimento de que o Ministério Público possui legitimidade para proceder, diretamente, à colheita de elementos de convicção para subsidiar a propositura de ação penal, só lhe sendo vedada a presidência do inquérito, que compete à autoridade policial: STJ, 53 Turma, RHC 24.472/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 15/9/2011.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal. Esse procedimento poderá ser instaurado de ofício, por membro do Ministério Público, no âmbito de suas atribuições criminais, ao tomar conhecimento de infração penal, por qualquer meio, ainda que informal, ou mediante provocação. Também poderá ser instaurado por grupo de atuação especial composto por membros do Ministério Público. Essa instauração deve se dar por portaria fundamentada, devidamente registrada e autuada, com a indicação dos fatos a serem investigados e deverá conter, sempre que possível, o nome e a qualificação do autor da representação e a determinação das diligências iniciais. A par de outras providências que poderão ser adotadas, na condução das investigações, o órgão do Ministério Público poderá: I - fazer ou determinar vistorias, inspeções e quaisquer outras diligências; II - requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades, órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; III - requisitar informações e documentos de entidades privadas, inclusive de natureza cadastral; IV - notificar testemunhas e vítimas e requisitar sua condução coercitiva, nos casos de ausência injustificada, ressalvadas as prerrogativas legais; V - acompanhar buscas e apreensões deferidas pela autoridade judiciária; VI - acompanhar cumprimento de mandados de prisão preventiva ou temporária deferidas pela autoridade judiciária; VII - expedir notificações e intimações necessárias; VIII - realizar oitivas para colheita de informações e esclarecimentos; IX - ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública; X - requisitar auxílio de força policial. O prazo para a conclusão desse procedimento investigatório criminal é de 90 (noventa) dias, sendo permitidas, por igual período, sucessivas prorrogações, por decisão fundamentada do Ministério Público responsável pela sua condução. Quanto à conclusão deste procedimento investigatório criminal, são 3 (três) as providências que poderão ser adotadas pelo órgão ministerial, a saber: a) oferecimento de denúncia; b) declinação das atribuições para atuar em favor de outro órgão do Ministério Público; c) arquivamento dos autos, caso o membro do Ministério Público se convença da inexistência de fundamento para o oferecimento de denúncia, devendo essa promoção ser apresentada ao juízo competente, nos moldes do art. 28 do CPP, ou ao órgão superior interno responsável por sua apreciação (Procu­ rador-Geral de Justiça, no âmbito do Ministério Público dos Estados ou Câmara de Coordenação e Revisão, no âmbito do Ministério Público Federal). Admitida a possibilidade de o Ministério Público presidir investigações criminais através do procedimento investigatório criminal, é certo dizer que, da mesma forma que se assegura ao ad­ vogado acesso aos autos do inquérito policial, também se deve a ele assegurar o acesso aos autos desse procedimento, sob pena de violação ao preceito do art. 5o, LXIII, da Constituição Federal. Dentre outras limitações, não pode o Ministério Público desrespeitar o direito do investigado ao silêncio {nemo tenetur se detegeré), nem lhe ordenar a condução coercitiva, nem constrangê-lo a produzir prova contra si próprio, nem lhe recusar o conhecimento das razões motivadoras do procedimento investigatório, nem submetê-lo a medidas sujeitas à reserva constitucional de jurisdição, nem impedi-lo de fazer-se acompanhar de Advogado, nem impor, a este, indevidas restrições ao regular desempenho de suas prerrogativas profissionais.160 O Ministério Público também não está autorizado a requisitar documentos fiscais e bancários sigilosos diretamente ao Fisco e às instituições financeiras, sob pena de violar os direitos e garantias constitucionais de 160 STF, 2^ Turma, HC 94.173/BA, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 223 26/11/2009.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

intimidade da vida privada dos cidadãos, já que tal medida somente é válida quando precedida da devida autorização judicial.161 16.5. Inquérito civil Dentre as funções institucionais do Ministério Público está a de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129). Daí dispor o art. 8o, § Io, da Lei da Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/85), que o Ministério Público poderá instaurar, sob sua pre­ sidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo publico ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis. Funciona como um procedimento de natureza administrativa (não jurisdicional), de caráter pré-processual, não obrigatório, presidido pelo representante do Ministério Público, que se destina à colheita de elementos prévios e indispensáveis ao exercício responsável da ação civil pública.162 São duas as finalidades do inquérito civil: a) possibilitar a obtenção de dados e elementos visando instruir eventual ação civil pública; b) evitar o ajuizamento de demandas sem qualquer embasamento fático e/ou jurídico. Como destacam Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., diferencia-se do inquérito policial pelos seguintes motivos: a) o inquérito civil se destina precipuamente para a área cível lato sensu, enquanto o inquérito policial volta-se sempre para a área criminal; b) no inquérito civil é o próprio Ministério Público que preside as investigações, enquanto que, no inquérito policial, em geral, é a polícia que atua no inquérito; c) no inquérito civil o arquivamento é controlado pelo próprio Ministério Público, que determina o arquivamento (com obrigatória remessa de ofício para o Conselho Superior do Ministério Público); no inquérito policial, o controle do arquivamento é efetuado pelo juiz, o MP apenas requer o arquivamento (art. 28 do CPP).163 Apesar de o inquérito civil não estar direcionado a investigações criminais, descobertos dados relativos à determinada infração penal (v.g., crimes contra o meio ambiente), nada impede que o órgão do Ministério Público ofereça denúncia com amparo em tais elementos. A 2a Turma do Supremo, por exemplo, já teve a oportunidade de concluir que, tendo em conta a desnecessidade de prévia instauração de inquérito policial para o oferecimento de inicial acusatória, reputa-se válido o recebimento de denúncia lastreado em notitia criminis extraída de inquérito civil público presidido pelo Ministério Público destinado à apuração de danos ao meio ambiente.164 16.6. Termo circunstanciado No âmbito do Juizado Especial Criminal, não há necessidade de instauração de inquéritos policiais. Prevê o art. 69, da Lei n° 9.099/95, que a autoridade policial que tomar conhecimento

161 STJ, 5- Turma, HC 160.646/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 12/9/2011. 162

Nesse sentido: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogério. Comentários à Lei de Im probidade A dm inistrativa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 224.

163

Curso de d ire ito processual civil: processo coletivo.

Volume 4. 3§ edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2008,

p. 242-243. 164 STF, 22 Turma, RE 464.893/GO, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 20/05/2008, DJe 31/07/2008.

TÍTULO 2 • INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

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da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando as requisições dos exames periciais necessários.165 16.7. Investigação pela autoridade judiciária 16.7.1. Inquérito judicial Esse inquérito judicial estava previsto na antiga Lei de Falência (Dec.-lei n° 7.661/45, arts. 103 e seguintes), funcionando como um procedimento preparatório para a ação penal, presi­ dido por um juiz de direito, no qual era assegurado o contraditório e a ampla defesa. A nova lei de falências (Lei n° 11.101/05), no entanto, além de revogar o diploma anterior, não tratou do assunto, razão pela qual se conclui que já não existe mais o denominado inquérito judicial. Atualmente, se houver prova da ocorrência de crime falimentar, o Ministério Público deve apresentar denúncia, se possuir elementos para tanto, ou requisitar a instauração de inquérito policial, nos termos do art. 187, caput, da Lei n° 11.101/05. O novo regramento vem ao en­ contro do sistema acusatório, impondo ao juiz um distanciamento das funções investigatórias, reservando-lhe o papel de acudir à fase preliminar apenas quando necessário para a tutela das liberdades fundamentais. 16.7.2. Revogada Lei das organizações criminosas Quando entrou em vigor, a Lei n° 9.034/95 (hoje revogada expressamente pela Lei n° 12.850/13) previa em seu art. 3o que a quebra do sigilo de dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais poderia ser decretada de oficio pelo juiz, ainda na fase investigatoria. Referido dispositivo foi alvo de duras críticas por parte da doutrina, por possibilitar que o magistrado passasse a agir na fase investigatória (juiz inquisidor), auxiliando o trabalho investigatório da Polícia Judiciária e do Ministério Público, o que caracteriza evidente violação ao sistema acu­ satório e ao princípio da imparcialidade. Deveras, deve o juiz manter-se afastado da investigação preliminar, atuando somente quan­ do provocado nas hipóteses em que houver possibilidade de restrição a direitos fundamentais do investigado (v.g., interceptação telefônica, busca domiciliar, etc.), ou em casos de eventual abuso de autoridade praticado pelo Ministério Público ou pelas autoridades policiais. Em um sistema acusatório, a investigação de fatos e a gestão das provas não deve ficar nas mãos do juiz: somente assim, afastando-o da fase investigatória, será possível preservar sua imparcialidade, princípio fundamental do devido processo penal.166 O Supremo Tribunal Federal foi chamado a analisar a constitucionalidade do referido dis­ positivo, tendo concluído que, em relação aos sigilos bancário e financeiro, o art. 3o da Lei n° 9.034/95 teria sido parcialmente revogado em face do advento da Lei Complementar n° 105/01, que passou a regulamentar a matéria em seu art. Io, § 4o, IX. Quanto aos dados fiscais e elei­ torais, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade do referido dispositivo, por violar o princípio da imparcialidade e o devido processo legal. Nas palavras do Relator, observa-se que o art. 3o da Lei n° 9.034/95 efetivamente cria procedimento excepcional, não contemplado na

165

Para mais detalhes acerca do termo circunstanciado, remetemos o leitor ao título relativo aos procedimentos, especificamente no tópico destinado ao estudo dos Juizados Especiais Criminais.

166 O art. 156, inciso I, do CPP, com redação dada pela Lei n9 11.690/08, passou a prever a possibilidade de o juiz decretar, de ofício, mesmo antes do início do processo, a produção antecipada de provas urgentes. Para mais detalhes quanto à (in)constitucionalidade desse dispositivo à luz do sistema acusatório e do princípio da impar­ cialidade, remetemos o leitor ao capítulo pertinente às provas.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

sistemática processual contemporânea, dado que permite ao juiz colher pessoalmente as provas que poderão servir, mais tarde, como fundamento fático-jurídico de sua própria decisão. Inda­ ga-se, por isso mesmo, se o magistrado está imune de influências psicológicas, de tal sorte que o dinamismo de seu raciocínio lógico-jurídico fique comprometido por idéias preconcebidas, pondo em risco a imparcialidade de sua decisão?! Penso que não. Evidente que não há como evitar a relação de causa e efeito entre as provas coligidas contra o suposto autor do crime e a decisão a ser proferida pelo juiz. Ninguém pode negar que o magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique envolvido psicologicamente com a causa, contaminando sua imparcialidade”.167 16.7.3. Infrações penais praticadas por magistrados Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do Magis­ trado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou Órgão Especial competente para o julgamento, a fim de que se prossiga na investigação (LC 35/79, art. 33, parágrafo único). A nosso juízo, referido dispositivo deve ser lido à luz da Constituição Federal, que adotou o sistema acusatório em seu art. 129,1, do qual deriva a separação das funções de acusar, defender e julgar, além de reservar ao magistrado, na fase investigatória, o papel de mero garante das regras do jogo, devendo intervir apenas quando provocado para resguardar a proteção a direitos e garantias fundamentais. Ou seja, na fase investigatória, o juiz deve permanecer absolutamente alheio à qualidade da prova em curso, somente intervindo para tutelar violações ou ameaça de lesões a direitos e garantias individuais das partes, ou para resguardar a efetividade da função jurisdicional, quando, então, exercerá atos de natureza jurisdicional. Não se pode, pois, querer atribuir ao próprio Tribunal de Justiça ou ao órgão Especial que irá julgar o magistrado a tarefa de investigar infrações penais por ele praticadas, sob pena de evidente violação à imparcialidade e ao devido processo legal. Na verdade, em tais situações, ao Tribunal de Justiça ou ao órgão especial deve ser reservada apenas a atividade de supervi­ são judicial durante toda a tramitação das investigações, desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo titular da ação penal.168 Não se pode, pois, interpretar o art. 33, parágrafo único, da LC 35/79, no sentido de que o Tribunal de Justiça irá desempenhar, na fase investigatória, funções equivalentes às de um delegado de polícia ou de um membro do Ministério Público. Afinal, no Brasil, não foi adotado o instituto acolhido por outros países do juizado de instrução, no qual o magistrado exerce, grosso modo, as competências de polícia judiciária. Portanto, o art. 33, parágrafo único, da LC n° 35/79, deve ser interpretado conforme a Constituição no sentido de que o Tribunal de Justiça ou órgão especial, ao presidir o inquérito, apenas atua como um administrador, um supervisor, um coordenador, no que tange à montagem do acervo probatório e às providências acautelatórias, agindo sempre por provocação, e nunca de ofício, detendo as mesmas atribuições que a legislação processual confere aos juizes singulares (Lei n° 8.038/90, art. 2o). Portanto, não exterioriza nenhum juízo de valor sobre os fatos ou as

167 STF, Pleno, ADI 1.570, Rei. Min. Maurício Corrêa, j. 12/02/2004, DJ 22/10/2004. 168

No sentido de que a Constituição da República não reconhece poderes investigatórios aos juizes: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11^ ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 72. Ainda segundo o autor, "não há como recusar a impossibilidade constitucional de se deferir à autoridade judiciária a titularidade para a própria investigação, e não somente para a presidência do inquérito, como ocorria com o inquérito judicial no juízo falimentar". (op. cit. p. 84).

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questões de direito, emergentes nessa fase preliminar, que o impeça de proceder com imparcia­ lidade no curso da ação penal. Assim, o Judiciário, em nosso sistema processual penal, atua no inquérito para assegurar a observância dos direitos e liberdades fundamentais e dos princípios sobre os quais se assenta o Estado Democrático de Direito.169 Surgindo indícios da prática de crime por parte de magistrado, o prosseguimento dessa inves­ tigação criminal não depende de deliberação do órgão especial do tribunal competente, cabendo ao relator a quem o inquérito foi distribuído determinar as diligências que entender cabíveis. O parágrafo único do art. 33 da LOMAN não autoriza concluir ser necessária a submissão do procedimento investigatório ao órgão especial tão logo chegue ao tribunal competente, para que seja autorizado o prosseguimento do inquérito. Trata-se, em verdade, de regra de competência. No tribunal, o inquérito é distribuído ao relator, a quem cabe determinar as diligências que entender cabíveis para realizar a apuração, podendo chegar, inclusive, ao arquivamento. Cabe ao órgão especial receber ou rejeitar a denúncia, conforme o caso, sendo desnecessária a sua autorização para a instauração do inquérito judicial.170 16.8. Investigação criminal defensiva De acordo com o Projeto do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei n° 156/09, art. 13), passará a ser facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas. Tais entrevistas deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento das pessoas ouvidas. Como se percebe, como forma de se assegurar a efetiva isonomia entre as partes na persecução penal e o direito de defesa do imputado, o projeto do novo CPP passa a prever a possibilidade de investigação criminal defensiva. Mas o que se entende por tal espécie de investigação? Segundo André Boiani e Azevedo e Edson Luís Baldan, a investigação defensiva pode ser definida como “o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido, em qualquer fase da persecução criminal, inclusive na ante judicial, pelo defensor, com ou sem assistência de consulente técnico e/ou investigador privado autorizado, tendente à coleta de elementos ob­ jetivos, subjetivos e documentais de convicção, no escopo de construção de acervo probatório lícito que, no gozo da parcialidade constitucional deferida, empregará para pleno exercício da ampla defesa do imputado em contraponto a investigação ou acusações oficiais”.171 Essa investigação defensiva não se confunde com a participação do defensor nos autos do inquérito policial, a qual inclusive já é prevista pelo atual CPP no art. 14. Apesar de em ambas ser concretizado o direito de defesa, ao participar do inquérito policial, o advogado está delimi­ tado aos rumos dados à investigação pela autoridade policial. Na investigação defensiva, que se desenvolve de maneira independente do inquérito policial, incumbe ao defensor delimitar a estratégia investigatória, não estando vinculado às autoridades públicas, devendo apenas respeitar os critérios constitucionais e legais pertinentes à obtenção da prova.172

169

Nessa linha: STF, Pleno, HC 92.893/ES, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/10/2008, DJe 236 11/12/2008.

170

Nessa linha: STJ, 6^ Turma, HC 208.657/MG, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/4/2014, DJe 13/05/2014.

171 A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva (ou do direito de defender-se provando). Boletim do IBCCrim, ne 137, p. 07. 172. Em data de 11 de dezembro de 2018, o Conselho Pleno da OAB aprovou um provimento que regulamenta o exercício da prerrogativa profissional do advogado de realização de diligências investigatórias e de presidência de inquérito defensivo.

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Dentre os principais objetivos dessa investigação defensiva, pode-se citar: a) comprovação do álibi173 ou de outras razões demonstrativas da inocência do imputado; b) desresponsabilização do imputado em virtude da ação de terceiros; c) exploração de fatos que revelam a ocorrência de causas excludentes de ilicitude ou de culpabilidade; d) eliminação de possíveis erros de ra­ ciocínio a quem possam induzir determinados fatos; e) revelação da vulnerabilidade técnica ou material de determinadas diligências realizadas na investigação pública; f) exame do local e a reconstituição do crime para demonstrar a impropriedade das teses acusatórias; g) identificação e localização de possíveis peritos e testemunhas.174 Perceba-se, então, que a atividade probatória desenvolvida nessa investigação não pode obstruir a investigação policial nem tampouco danificar fontes de prova, sob pena, aliás, de tipificação de figuras delituosas, tais como a fraude processual (CP, art. 347). Os elementos obtidos através dessa investigação criminal defensiva costumam ser introduzi­ dos nos autos da persecução penal sob a forma documentada. Quanto ao momento da introdução desses elementos, há de se verificar qual é a estratégia da defesa: se o objetivo é o arquivamento do feito, a juntada deve ocorrer ainda na fase preliminar; se o escopo é a absolvição sumária do acusado, devem ser juntados no momento da resposta à acusação (CPP, art. 396-A); se se pretende a absolvição em sentença de mérito ao final do processo, devem ser introduzidos no curso do feito. Como dito acima, a despeito da importância desse instrumento investigatório como forma de se assegurar o respeito à paridade de armas, não há, no direito processual penal brasileiro, pelo menos por ora, a possibilidade de investigação criminal pela defesa. Não obstante, enquanto não aprovado o projeto do novo CPP, deve-se considerar ser possível a investigação pela defesa como espécie de investigação por particular. A investigação por particular foi instituída pela Lei n° 3.099, de 24/02/1957, e regulamentada pelo Dec. 50.532, de 03/05/1961. A Lei n. 13.432/17, por sua vez, dispõe sobre o exercício da profissão de detetive particular, objeto de análise no próximo tópico. 1 6 .9 . I n v e stig a ç ã o p o r d e te tiv e p a r tic u la r (L e i n. 1 3 .4 3 2 /1 7 )

Em vigor desde o dia 12 de abril de 2017, a Lei n. 13.432 passou a dispor sobre o exercício da profissão de detetive particular, assim considerado “o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante” (art. 2o). A regulamentação da matéria é complementada pelo Decreto n. 50.532/61 e pela Lei n. 3.099/57, que não foram revogados pela Lei n. 13.432/17. A redação do art. 2o da Lei n. 13.432/17 deixa evidente que a atuação do detetive particular não terá natureza criminal. Ou seja, sua função está relacionada à coleta de dados e informações extrapenais, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado, que, pelo menos em tese, não devem ter qualquer relevância penal, como, por exemplo, situações envolvendo ques­ tões familiares, conjugais e identificação de filiação, desaparecimento e localização de pessoas ou de animais, idoneidade de prepostos e empregados para fins de possível contratação, etc. 173 Álibi é a comprovação da presença de uma pessoa em local diferente daquele em que se suponha que ela esti­ vesse, para efeito de escusa de ato criminoso. 174 OLIVEIRA, Francisco da Costa. A defesa e a investigação do crime. Coimbra: Almedina, 2004. A pud MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação crim inal defensiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 172.

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Fica evidente, portanto, que a investigação criminal continua sendo uma atividade essencial e exclusiva do Estado. E nem poderia ser diferente. Afinal, à luz do princípio da oficialidade, a apuração das infrações penais fica, em regra, a cargo da polícia investigativa, enquanto que a promoção da ação penal pública incumbe ao Ministério Público. E permitido, portanto, o trabalho de investigador particular, desde que não invada a com­ petência privativa da Polícia Judiciária, nem atente contra a inviolabilidade domiciliar, a vida privada e a honra das pessoas. O traço peculiar dessas investigações privadas é, basicamente, a ausência de imperatividade, ou seja, de poder de coerção. Assim, quando o detetive investiga por conta própria, conta apenas com seus esforços pessoais, com meios tecnológicos permitidos e com a colaboração de outras pessoas e de entes públicos ou privados. Falta-lhe poder de polícia, ou seja, não goza de imperatividade. Enfim, como observa a doutrina, “a coleta particular de dados é desprovida dos atributos da discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade, inexistindo supremacia do seu agir em relação ao particular, ao contrário da atuação do mem­ bro da polícia judiciária (art. 144 da CF, art. 2o, §2°, da Lei n. 12.830/13 e art. 6o do CPP)”.175 A propósito, o art. 10, IV, da Lei n. 13.432/17, deixa expresso que é vedado ao detetive particular participar diretamente de diligências policiais. Como deveres desse profissional apre­ senta-se, dentre outros, o de respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas (art. 11, II). Logo, não se admite que o detetive profissional faça uso de meios ordinários (v.g., quebra de sigilo de dados bancários), nem tampouco extraordinários de obtenção de prova (v.g., infiltração), podendo inclusive responder criminalmente se o fizer - tome-se como exemplo o delito do art. 10 da Lei n. 9.296/96, que pode ter o detetive como autor se for ele o responsável pela realização de interceptação de comunicações telefônicas sem autorização judicial. Enfim, no exercício de seu mister, o ideal é concluir que o detetive pode apenas coletar informações em fontes abertas, como, por exemplo, redes sociais, locais públicos, etc. Não agindo dessa forma, ou seja, desrespeitando direitos e garantias individuais, para além de uma possível responsabilização cível e criminal (v.g., usurpação de função pública, violação de domicílio), eventuais provas por ele obtidas também devem ser declaradas ilícitas, nos termos do art. 157 do CPP. Especial atenção deve ser dispensada ao art. 5o da Lei n. 13.432/17, que dispõe: “Art. 5o. O detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, desde que expressa­ mente autorizado pelo contratante. Parágrafo único. O aceite da colaboração ficará a critério do delegado de polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo”. O dispositivo em referência versa sobre uma possível colaboração do detetive particular com investigação policial. Nesse caso, para além da autorização de seu contratante, seja ele a vítima do delito, seja ele o próprio suspeito, também deverá haver a concordância do delegado de polícia, que tem ampla discricionariedade para aceitá-la ou não. O art. 5o sob comento não faz referência à necessidade de prévia autorização judicial, nem tampouco concordância do órgão ministerial. De mais a mais, também não faz qualquer restrição quanto à espécie de ação penal do crime a ser investigado. À evidência, admitida a colaboração do detetive particular, hão de ser observadas todas as restrições anteriormente expostas, o que significa dizer que o detetive não poderá participar diretamente de diligências policiais, nem tampouco violar direitos e garantias individuais. Enfim, nessas hipóteses, o ideal é concluir que o detetive poderá tão somente sugerir às autoridades de polícia judiciária eventuais fontes de prova. A conversão dessas fontes de prova em elementos

175 COSTA, Adriano Sousa; HOFFMANN, Henrique. Temas avançados de Polícia Judiciária. Organizadores: Eduardo Fontes; Henrique Hoffmann. Salvador: Juspodvim, 2017. p. 52.

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de informação e/ou provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, todavia, só poderá ser feita pelas autoridades responsáveis pela persecução penal. 17. ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL 17.1. Conceito e previsão normativa Na sistemática adotada pelo art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP, com redação dada pela Resolução n. 183/18, cuida-se de negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente, celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato deli­ tuoso - devidamente assistido por seu defensor -, que confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, sujeitando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet de promover o arquivamento do feito, caso a avença seja integralmente cumprida. Como se pode notar, há um reconhecimento da viabilidade acusatória, já que o investigado se vê obrigado a confessar circunstanciadamente a prática do delito. Nesse aspecto, o acordo diferencia-se de outros institutos de Justiça negociada existentes no nosso ordenamento jurídico, como, por exemplo, a transação penal e a suspensão condicional do processo, que não exigem a confissão. No entanto, à semelhança destes, a aceitação e cumprimento do acordo não causam reflexos na culpabilidade do investigado. Vários são os fatores que justificaram a sua criação pela Resolução n. 181 do CNMP: a) exigência de soluções alternativas no processo penal que proporcionem celeridade na resolução dos casos menos graves; b) priorização dos recursos financeiros e humanos do Ministério Público e do Poder Judiciário para processamento e julgamento dos casos mais graves; c) minoração dos efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação judicial, reduzindo os efeitos sociais prejudiciais da pena e desafogando os estabelecimentos prisionais. Como espécie de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, o acordo de não-persecução penal guarda relação muito próxima com o princípio da oportunidade, que deve ser compreendido como um critério de seleção orientado pelo princípio da intervenção mínima, o que, em tese, permite que o Ministério Público estipule regras de seleção conforme a política criminal adotada pela instituição. Enfim, representa uma alternativa promissora para tornar o nosso sistema de justiça criminal um pouco mais eficiente, com uma escolha mais inteligente das prioridades, levando-se a julgamento tão somente aqueles casos mais graves. De acordo com a doutrina,176 a depender do modelo de definição dos consensos, o acordo de não-persecução penal funciona como uma espécie de diversão, opção de política criminal usada para resolução dos processos penais de maneira diversa daquelas ordinariamente adotadas no processo criminal, e que consistem na solução antes de qualquer determinação ou de decla­ ração de culpa. A diversão pode ser de 3 (três) espécies: 1) Diversão simples: a despeito da presença de indícios de autoria e/ou participação e prova da materialidade do delito, o processo é arquivado sem a imposição de quaisquer obrigações ao acusado, porquanto a persecução penal seria absolutamente inócua (v.g., prescrição virtual); 2) Diversão encoberta: dar-se-á a extinção da punibilidade se o autor do fato delituoso praticar determinados atos, que impossibilitam a

176 BRANDALISE, Rodrigo da Silva; ANDRADE, Mauro Fonseca. Investigação crim inal pelo M inistério Público: com entários à Resolução 181 do Conselho N acional do M in isté rio Público. Douglas Fischer, Mauro Fonseca Andrade (organizadores). Livraria do Advogado, 2018. p. 237.

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deflagração da persecução penal, como, por exemplo, a composição dos danos civis (Lei n. 9.099/95, art. 74, parágrafo único); 3) Diversão com intervenção: o investigado/acusado fica sujeito ao cumprimento de certas condições. Se cumpridas de maneira regular, o procedimento investigatório será arquivado, ou o processo será extinto. É o que ocorre não apenas no caso do acordo de não-persecução penal, mas também nos casos de transação penal e suspensão condicional do processo. Como exposto anteriormente, o acordo de não-persecução penal foi introduzido no or­ denamento pátrio pelo art. 18 da Resolução n. 181 do CNMR Esta Resolução versa sobre as investigações criminais realizadas pelo Ministério Público por meio do denominado procedi­ mento investigatório criminal. Como o acordo de não persecução penal está previsto no art. 18 desse diploma normativo, era de se concluir que a celebração desse negócio jurídico poderia se dar exclusivamente no bojo de um procedimento investigatório criminal presidido pelo órgão ministerial, jamais no âmbito de um inquérito policial, sob pena de se admitir que a Resolução n. 181 pudesse se sobrepor a uma norma prevista em Lei Ordinária, qual seja, o nosso Código de Processo Penal, que não trata da matéria, pelo menos explicitamente. Sem embargo, parece não haver nenhum critério razoável para se estabelecer esse díscrimen. Em outras palavras, a sorte - ou o azar - de ser investigado no curso de um procedimento investigatório criminal presidido pelo Ministério Público - e não no bojo de um inquérito policial presidido pela autoridade de polícia judiciária - não pode ser usado como fundamento razoável para se admitir - ou não - a celebração do acordo de não-persecução penal. Se se trata de um procedimento investigatório, seja ele um inquérito policial, seja ele um procedimento investigatório criminal presidido pelo MP, há de se admitir a celebração desse negócio jurídico extrajudicial. Afinal, o simples nomen juris do instrumento investigatório não pode ser fator determinante para se admitir (ou não) a celebração do acordo. Conquanto o CPP não seja explícito acerca do acordo sob comento - o que é plenamente justificado pelo fato de ter entrado em vigor em 1942, quando o princípio da obrigatoriedade ainda era tido como um dogma absoluto - fato é que, ao tratar do arquivamento, o art. 28 do nosso diploma processual penal não especifica nem dispõe expressamente quais devem ser as razões invocadas pelo Ministério Público para a promoção do arquivamento do inquérito policial. Ora, se o dispositivo faz referência genérica às razões invocadas, parece-nos possível incluir, dentre elas, o cumprimento do acordo de não-persecução penal, por meio de uma interpretação sistemática do art. 28 do CPP com os arts. 18 e 19 da Resolução n. 181 do CNMP.177 De mais a mais, se a celebração desse acordo ficar restrito às investigações realizadas pelo Ministério Público no bojo de um procedimento investigatório criminal, a utilidade e eficácia do novel instituto estará circunscrita a pouquíssimos casos. Explica-se: a atividade investigatória levada a efeito pelo Ministério Público tem caráter residual. Deve ficar adstrita, pois, a casos de abuso de autoridade, crimes praticados por policiais, crimes contra a administração pública, etc.. Ou seja, dificilmente será cabível a celebração do acordo nesses casos, quer porque tais delitos geralmente são cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, quer porque o prejuízo por

177 Para Rodrigo Leite Ferreira Cabral (Acordo de não persecução penal: resolução 181/2017 do CNMP. Organizadores: Rogério Sanches Cunha, Francisco Dirceu Barros, Renee do Ó Souza, Rodrigo Leite Ferreira Cabral. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 43), chegando às mãos do Ministério Público um inquérito policial que tenha por objeto a apuração de um delito no qual seja possível a celebração do acordo de não-persecução penal, deverá o órgão ministerial determinar a instauração de um procedimento investigatório criminal, no bojo do qual será realizada a avença, sendo que o inquérito deverá ser apensado ao respectivo PIC, como forma não apenas de emprestar justa causa à celebração do negócio, mas também para eventual e futura ação penal.

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eles causado costuma ser superior a 20 (vinte) salários mínimos. É de se notar, então, que o acordo de não-persecução penal terá muito mais eficácia e utilidade se empregado em crimes que geralmente são objeto de investigação em inquéritos policiais (v.g., furto, estelionato, apropriação indébita, etc.). Enfim, há de se admitir a celebração desse negócio jurídico extraprocessual em todo e qualquer procedimento investigatório, sob pena de evidente lesão ao princípio da isonomia. O acordo será formalizado nos autos, com a qualificação completa do investigado e esti­ pulará de modo claro as suas condições, eventuais valores a serem restituídos e as datas para cumprimento e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e seu defen­ sor. Realizado o acordo, a vítima será comunicada por qualquer meio idôneo e os autos serão submetidos à apreciação judicial. Pelo menos em tese, o acordo pode ser celebrado durante a fase investigatória, tendo como limite temporal o oferecimento da denúncia. Aliás, consoante disposto no art. 18, §7°, da Re­ solução n. 181 do CNMP, o acordo poderá ser celebrado inclusive na mesma oportunidade da audiência de custódia. Há de se ter cautela com a correta exegese desse dispositivo. À primei­ ra vista, fica a impressão de que o acordo de não-persecução penal poderia ser celebrado na própria audiência de custódia. Não nos parece ser a melhor interpretação. Explica-se: como é sabido, por ocasião da realização da audiência de custódia, não se admite que o preso seja indagado acerca do mérito da imputação (Resolução n. 213 do CNJ, art. 8o, VIII, e §1°). Considerando-se que a celebração do acordo de não-persecução penal pressupõe a confissão formal e circunstanciada da prática delituosa, é de todo evidente que esta confissão jamais poderia se dar no mesmo ato jurídico da audiência de custódia, sob pena de se transformá-la em verdadeiro interrogatório judicial antecipado. Destarte, o ideal é concluir que o Ministério Público poderá aproveitar o deslocamento do preso à audiência de custódia e, em ato dela separado, porém na mesma oportunidade, eventualmente propor e celebrar o acordo, o que viria ao encontro dos princípios da economia processual, celeridade e razoável duração do processo. Para tanto, há de se verificar se o Promotor de Justiça responsável pela proposta e celebração do acordo, assim como o magistrado responsável pela homologação da avença, são, respectivamente, o promotor e o juiz natural do caso, sob pena de manifesta violação ao art. 5o, LIII, da CF. De todo modo, logrando-se êxito na celebração do acordo de não-persecução penal na mesma oportunidade da audiência de custódia, o preso deverá ser prontamente colocado em liberdade, nos termos do art. 8o, §5°, da Resolução n. 213 do CNJ. 17.2. (In) constitucionalidade do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP A melhor forma para a criação do acordo de não-persecução penal seria a aprovação de lei nesse sentido pelo Congresso Nacional. Disso não temos dúvida. Todavia, ante a inércia do Poder Legislativo em aprovar o Projeto de Lei n. 513/2013 do Senado Federal, que versa exatamente sobre o acordo, o Conselho Nacional do Ministério Público deliberou por aprovar a regulamentação da matéria através do art. 18 da Resolução n. 181. E é exatamente isso que será objeto de grande controvérsia: poderia uma Resolução do CNMP tratar do assunto? Vejamos, separadamente, as duas correntes acerca da controvérsia, e seus respectivos argumentos: a) Inconstitucionalidade do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP: de acordo com a Constituição Federal (art. 2 2 ,1), compete à União legislar sobre Direito Processual. É evidente que o art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP versa sobre matéria processual, porquanto intro­ duz no ordenamento verdadeira exceção ao princípio da obrigatoriedade. Se se trata de matéria atinente à ação penal, tal matéria jamais poderia ser objeto de criação por uma Resolução do

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Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de natureza administrativa,178 até mesmo porque é a própria Constituição Federal que confere ao Ministério Público, dentre suas funções institu­ cionais, a de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (CF, art. 129,1). Não há nenhum problema em se criar exceções ao princípio da obrigatoriedade. Afinal, como o referido postulado não tem status constitucional - para muitos, o fundamento legal do princípio da obrigatoriedade é o art. 24 do CPP -, outra lei ordinária pode criar exceções a sua aplicação, como, aliás, já ocorre em diversas hipóteses: a) transação penal (art. 76 da Lei n° 9.099/95); b) acordo de leniência (Lei n° 12.529/11, arts. 86 e 87); c) termo de ajustamento de conduta (Lei n° 7.347/85, art. 5o, § 6o); d) parcelamento do débito tributário (Lei n° 9.430/96, art. 83, § 2o, com redação dada pela Lei n° 12.382/11); e) colaboração premiada na nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13, arts. 4o a 7o). Para tanto, porém, há necessidade de lei formalmente constituída, obedecido o processo legislativo constitucional, e não uma mera Resolução do CNMP. Também não se pode admitir o uso da analogia com a Resolução n. 213 do CNJ, responsável pela implantação da audiência de custódia, como fundamento para legitimar o poder legiferante do CNMP. Como decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 5.240/SP (Rei. Min. Luiz Fux, j. 20/08/2015), referida resolução não seria incompatível com os princípios da legalidade e da reserva de lei federal em matéria processual penal (CF, art. 5o, II, e art. 22,1, respectivamente) pelo fato de simplesmente regulamentar o que já estaria previsto na Conven­ ção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7o, §5°), dotada de status normativo supralegal, e do próprio CPP, cujo art. 656 prevê a possibilidade de apresentação do paciente preso em dia e hora a ser designada pela autoridade judiciária. Tal raciocínio não seria válido para o acordo de não-persecução penal, porquanto, nesse caso, não haveria previsão convencional nem tampouco infraconstitucional explícita. Enfim, pelo menos enquanto o acordo de não-persecução penal não for objeto de lei em sentido formal, não se pode admitir sua celebração com base em mera Resolução do CNMP;179 b) Constitucionalidade do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP (nossa posição): no exercício de suas atribuições administrativas, o CNJ e o CNMP ostentam o poder de expedir atos regulamentares (CF, art. 103-B, §4°, I, e art. 130-A, §2°, I, respectivamente). Na dicção do Supremo,180 tais resoluções ostentam caráter normativo primário, ou seja, são dotadas de abstração e generalidade, extraindo seus fundamentos de validade diretamente de dispositivos constitucionais. Enfim, “são atos de comando abstrato que dirigem aos seus destinatários coman­ dos e obrigações, desde que inseridos na esfera de competência do órgão”.181 Considerando-se, pois, que o art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP busca tão somente concretizar os princípios constitucionais da eficiência (CF, art. 37), da proporcionalidade (CF, art. 5o, LIV), da razoável duração do processo (CF, art. 5o, LXXVIII) e o próprio sistema acusatório (CF, art. 129, I),

178 No julgamento da ADI 3.367/DF (Rei. Min. Cezar Peluso, j. 13/04/2005, DJ 17/03/2006), o Supremo afirmou a natureza administrativa do Conselho Nacional de Justiça. Com base nesta decisão, e levando-se em consideração a simetria entre os dois Conselhos, a doutrina afirma que esta também é a natureza do CNMP, o que limita a atuação e a interpretação a ser feita por ele. 179 No sentido da inconstitucionalidade do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP: BRANDALISE, Rodrigo da Silva; ANDRADE, Mauro Fonseca. Investigação crim in al pelo M inisté rio Público: com entários à Resolução 181 do Conselho N acional do M inistério Público. Douglas Fischer, Mauro Fonseca Andrade (organizadores). Livraria do Advogado, 2018. p. 212/251. 180 STF, Pleno, ADC 12 MC/DF, Rei. Min. Carlos Britto, j. 16/02/2006, DJ 01/09/2006. 181

STF, Pleno, MS 27.621/DF, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 07/12/2011, DJe 092 10/05/2012.

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não há falar em inconstitucionalidade do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP, porquanto se trata de regulamento autônomo destinado a regulamentar diretamente a aplicação de princípios constitucionais. Não haveria, in casu, violação à competência legislativa exclusiva da União prevista no art. 22, I, da Constituição Federal, já que o acordo de não-persecução penal não tem natureza processual. Como observa a doutrina,182o art. 18 da Resolução sob comento “não envolve matéria de direito processual, vez que se trata de avença realizada em procedimento administrativo em que não há o exercício da pretensão punitiva por meio de denúncia, não há propriamente partes, não há exercício da função jurisdicional penal, nem se faz necessária a observância do princípio do contraditório e da ampla defesa. Em suma, não há processo penal”. Outrossim, à semelhança da Resolução n. 213 do CNJ, que retirou seu fundamento de validade da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7o, §5°), o art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP também seria dotado de fundamento convencional, qual seja, a Resolução n. 45/110 (Regras de Tóquio), aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 14 de dezembro de 1990. Nesse sentido, o item 5.1. da referida Resolução recomenda que: “Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da Justiça Criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas. Para a decisão sobre a adequação da retirada ou determinação dos procedimentos deve-se desenvolver um conjunto de critérios estabelecidos dentro de cada sistema legal. Para infrações menores, o promotor pode impor medidas não privativas de liberdade, se apropriado”. De mais a mais, ainda que se queira negar que as Resoluções do CNMP sejam dotadas de caráter normativo primário, não teria havido, por parte do art. 18 do Provimento n. 181 do CNMP, nenhuma extrapolação daquilo que já constaria da própria legislação infraconstitucional, numa interpretação teleológica de diversos dispositivos que conferem validade à celebração desse negócio jurídico extrajudicial, como, por exemplo, o art. 28 do CPP, que faz referência às razões invocadas para o arquivamento do inquérito, mas não explicita quais razões justificam o não oferecimento da denúncia, o art. 6o do novo CPC, que versa sobre o princípio da cooperação entre todos os sujeitos do processo para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva, assim como os arts. 76 (transação penal) e 89 (suspensão condicional do processo) da Lei n. 9.099/95 e o art. 4o da Lei n. 12.850/13 (co­ laboração premiada). Um último argumento em prol da constitucionalidade é o de que o acordo veicula matéria de política criminal a ser realizada pelo titular da ação penal pública. Na qualidade de agentes políticos, os membros do Ministério Público têm o dever funcional de realizar uma seleção de casos penais que ostentem maior relevância dentro da política de persecução penal adotada pelo Parquet. Assim, no exercício desse poder de realizar política criminal de persecução penal, in­ cumbe ao Ministério Público buscar respostas alternativas e mais céleres para os casos penais de baixa e média gravidade, o que poderá ser alcançado através dos acordos de não-persecução penal.183

182

CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Op. cit. p. 34.

183 Na dicção de Vladimir Aras (Acordo de não persecução penal: resolução 181/2017 do CNMP. Organizadores: Rogério Sanches Cunha, Francisco Dirceu Barros, Renee do Ó Souza, Rodrigo Leite Ferreira Cabral. Salvador:

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Não obstante a controversa constitucionalidade do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP, parece-nos que, por um critério de lealdade com o leitor do nosso Manual, o ideal é comentar o acordo de não-persecução penal levando-se em consideração a validade do referido diploma normativo, até mesmo porque a matéria ainda não foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal.184 17.3. Requisitos para a celebração do acordo de não-persecução penal Consoante disposto no art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP, com redação dada pela Resolução n. 183/2018, a celebração do acordo de não-persecução penal está condicionada à observância dos seguintes requisitos: a) Infração penal à qual seja cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos: para aferição da pena mínima cominada ao delito, devem ser levadas em consideração as causas de aumento e diminuição de pena aplicáveis ao caso concreto (art. 18, §13, da Resolução n. 181 do CNMP); b) Infração penal cometida sem violência ou grave ameaça à pessoa: conquanto o caput do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP faça uso da expressão crime não cometido com violên­ cia ou grave ameaça à pessoa, não há razão lógica para não se permitir a avença nos casos de contravenções penais. Nesse caso, é bem provável que seria cabível a transação penal. Logo, como este instituto despenalizador tem preferência sobre o acordo de não persecução penal (Resolução n. 181 do CNMP, art. 18, §1°, I), não haveria por que se cogitar da celebração desse negócio jurídico. Porém, na eventualidade de a contravenção penal não admitir a transação penal, parece-nos não haver óbice à celebração do acordo, sob pena de manifesta violação ao princípio da isonomia; c) Não ser caso de arquivamento do procedimento investigatório: o acordo de não-perse­ cução penal só deve ser celebrado quando se mostrar viável a instauração do processo penal. Por conseqüência, se o titular da ação penal entender que o arquivamento é medida de rigor, não poderá proceder à celebração do acordo. O CPP silencia acerca das hipóteses que autori­ zam o arquivamento do procedimento investigatório. Não obstante, é possível a aplicação, por analogia, das hipóteses de rejeição da peça acusatória e de absolvição sumária, previstas nos arts. 395 e 397 do CPP, respectivamente. Destarte, as hipóteses que autorizam o arquivamento são as seguintes: I) ausência de pressuposto processual ou de condição para o exercício da ação penal; II) falta de justa causa para o exercício da ação penal; III) atipicidade da conduta; IV) existência manifesta de causa excludente da ilicitude; V) existência manifesta de causa excludente da culpabilidade, salvo a inimputabilidade do art. 26, caput, do CP; VI) existência de causa extintiva da punibilidade. Outrossim, não será admitida a proposta nos casos em que:

Juspodivm, 2017. p. 263), “o Ministério Público brasileiro é, assim, um promotor da política criminal do Estado. Não é mero espectador, não é autômato da lei penal. Na condição de agente político do Estado, tem o dever de discernir a presença, ou não, do interesse público na persecução criminal em juízo, ou se, diante da franquia do art. 129,1, da Constituição, combinado com o art. 28 do CPP, deixará de proceder à ação penal, para encaminhar a causa penal a soluções alternativas, não judicializando a pretensão punitiva. Entre essas soluções estão a opção pela Justiça Restaurativa ou pelos acordos penais”. 184 A controvérsia deverá ser dirimida em breve pelo STF no julgamento da ADI 5.790, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra a Resolução n. 181 do CNMP.

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1) For cabível a transação penal: o art. 18, §1°, I, da Resolução n. 181 do CNMP, deixa transparecer que a transação penal tem preferência sobre a celebração do acordo de não-persecução penal. Logo, se o agente fizer jus ao benefício previsto no art. 76 da Lei n. 9.099/95, não será cabível a celebração do acordo; 2) Dano causado pelo delito superior a vinte salários-mínimos ou a parâmetro diverso definido pelo respectivo órgão de revisão, nos termos da regulamentação local: o órgão de coordenação a que se refere o dispositivo sob comento depende do Ministério Público em ques­ tão. A título de exemplo, no âmbito do Ministério Público da União, tais funções são exercidas pelas respectivas Câmaras de Coordenação e Revisão; 3) presença de uma das hipóteses listadas no art. 76, §2°, da Lei n. 9.099/95: revela-se indevido o oferecimento de proposta se ficar comprovado que o agente fora condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva, se o agente tiver sido beneficiado anteriormente, no prazo de 5 (cinco) anos, por uma transação penal, e na hipótese em que os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias revelarem não ser necessária e suficiente a adoção da medida; 4) risco de prescrição da pretensão punitiva estatal em virtude da demora para o cum­ primento do acordo: não se admitirá a proposta nos casos em que o aguardo para o cumprimento do acordo puder acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal. A restrição em questão justifica-se pelo fato de não haver qualquer previsão legal no sentido de que a formalização do acordo de não-persecução penal teria o condão de acarretar a suspensão e/ou interrupção da prescrição, como ocorre, por exemplo, com a suspensão condicional do processo.185 Logo, se o titular da ação penal visualizar que o aguardo para o cumprimento do acordo pode colocar em risco a pretensão punitiva, em virtude de iminente prescrição, ainda que virtual, deve se abster de oferecer a proposta; 5) Delito hediondo e/ou equiparado: não se admitirá a proposta nos casos em que o delito for hediondo ou equiparado; 6) Delito praticado no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher: não será admitida a proposta nos casos de incidência da Lei Maria da Penha, ou seja, quando a mulher for vítima de violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família, ou em qualquer relação íntima de afeto (Lei n. 11.340/06, arts. 5o e 7o); 7) Quando a celebração do acordo não atender ao que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime: só se deve admitir o acordo nos casos em que a persecução penal em juízo não traga medida de responsabilização mais gravosa que o próprio conteúdo do acordo; 8) Delitos cometidos por militares que afetem a hierarquia e a disciplina: consoante disposto no art. 18, §12, da Resolução n. 181 do CNMP, as disposições deste Capítulo - que ver­ sa sobre o acordo de não-persecução penal - não se aplicam aos delitos cometidos por militares que afetem a hierarquia e a disciplina. Logo, enquanto não se admite a celebração do acordo em relação a delitos como, por exemplo, o desrespeito a superior (CPM, art. 160) ou abandono de posto (CPM, art. 195), porquanto nitidamente ofensivos à hierarquia e a disciplina, nada impede a avença em relação a crimes militares como furto (CPM, art. 240), estelionato (CPM, art. 251), etc. 185 De acordo com o art. 89, §6°, da Lei n. 9.099/95, não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.

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17.4. Condições a serem impostas ao investigado Para que o acordo seja celebrado, o investigado deverá assumir o dever de cumprir certas condições, de forma cumulativa ou não. Não se trata de pena, justamente por faltar uma das características fundamentais de toda e qualquer pena, qual seja, a imperatividade. Em outras palavras, em se tratando de pena, o Estado pode impor coercitivamente o seu cumprimento, pouco importando a voluntariedade do condenado. No acordo de não persecução penal, o investigado voluntariamente se sujeita ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, que, se cumpridas, esvaziam o interesse processual no manejo da ação penal, dando ensejo ao arquivamento do procedimento investigatório. Enfim, como não há imputação (denúncia), nem tampouco, consequentemente, processo penal, não há e nem poderia haver a imposição de pena.186 Essas condições necessariamente deverão ser não privativas de liberdade, versando sobre prestações claramente disponíveis (v.g., reparação do dano, renúncia a instrumentos do crime, etc.). Inserem-se, assim, na dicção da doutrina, “no âmbito de liberdade, de disponibilidade, que o investigado detém na celebração de negócios jurídicos. Afinal, todos os dias são firma­ dos contratos com esses objetivos, como se pode ver dos contratos de trabalho ou contratos de compra e venda, por exemplo”.187 Vejamos, então, as obrigações (ou condições) a serem cumpridas pelo investigado, de maneira cumulativa ou não, a depender do caso concreto: a) confessar formal e circunstanciadamente a prática do delito: desde que o investigado seja formalmente advertido quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo e não seja constrangido a celebrar o acordo, parece não haver nenhuma incompatibilidade entre esta primeira obrigação do investigado e o direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII). Ora, como não há dever ao silêncio, todo e qualquer investigado (ou acusado) pode voluntariamente confessar os fatos que lhe são imputados. Nessas condições, cabe ao próprio indivíduo decidir, livre e assistido pela defesa técnica, se tem (ou não) interesse em celebrar o acordo de não-persecução penal; b) reparação do dano ou restituição da coisa à vítima: consoante disposto no art. 17, caput, da Resolução n. 181 do CNMP, o membro do Ministério Público que preside o procedi­ mento investigatório criminal esclarecerá a vítima sobre seus direitos materiais e processuais, devendo tomar todas as medidas necessárias para a preservação dos seus direitos, a reparação dos eventuais danos por ela sofridos e a preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem. Daí por que uma das condições para a celebração do acordo de não-persecução penal é exata­ mente a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima. Como o art. 18,1, da Resolução n. 181 do CNMP não faz qualquer restrição, parece-nos possível a reparação de qualquer espécie de dano, seja ele material, moral, estético, etc. Evidentemente, quando o delito não causar danos à vítima, esta condição não será imposta; c) renúncia voluntária a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público, como ins­ trumentos, produto ou proveito do crime: nenhum sentido faria a celebração do acordo de não-persecução penal se o investigado pudesse manter consigo, por exemplo, os instrumentos do crim e, m uito m enos se pudesse preservar o produto direto ou indireto da infração penal. D estarte,

como verdadeira condição para a celebração do acordo, deverá o investigado voluntariamente concordar com a renúncia a bens e direitos, indicados pelo Parquet, como instrumentos, pro­ duto ou proveito do crime. Conquanto não possam ser rotuladas como efeitos da condenação, 186 Nesse sentido: ARAS, Vladimir. Op. cit. p. 251. 187

CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Op. cit. p. 39.

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já que não há, in casu, sentença condenatória transitada em julgado, as condições em questão assemelham-se aos efeitos extrapenais obrigatórios das alíneas “a” e “b” do inciso II do art. 91 do Código Penal; d) prestação de serviços: o investigado deverá prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público; e) pagamento de prestação pecuniária: a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, esse pagamento deve ser feito a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; f) cumprimento de outras condições estipuladas pelo Ministério Público: à semelhança do disposto no art. 89, §2°, da Lei n. 9.099/95, atinente, todavia, à suspensão condicional do processo, o art. 18, V, da Resolução n. 181 do CNMP prevê que o órgão ministerial responsável pelo oferecimento do acordo de não-persecução penal poderá estipular outras condições, desde que proporcionais e compatíveis com a infração penal aparentemente praticada. Tais condições são predispostas não para punir o investigado, mas para demonstrar sua autodisciplina e senso de responsabilidade na busca da ressocialização, corroborando a desnecessidade de deflagração dapersecutio criminis in iudicio. Com base no mesmo entendimento jurisprudencial dominante acerca do art. 89, §2°, da Lei n. 9.099/95, o ideal é concluir que essas outras condições podem abranger o cumprimento de penas restritivas de direitos diversas daquelas já previstas no art. 18 da Resolução n. 181, como, por exemplo, a perda de bens e valores, a interdição temporária de direitos e a limitação de fim de semana; g) Comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail, e comprovar mensalmente o cumprimento das condições, independentemente de notificação ou aviso prévio, devendo ele, quando for o caso, por iniciativa própria, apresentar imediatamente e de forma documentada eventual justificativa para o não cum­ primento do acordo. 17.5. Controle jurisdicional Em sua redação original, o art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP não previa nenhum tipo de controle jurisdicional prévio à celebração do acordo de não-persecução penal. Na con­ tramão de outros institutos semelhantes, como, por exemplo, a composição civil dos danos (Lei n. 9.099/95, art. 74, caput), a transação penal (Lei n. 9.099/95, art. 76, §4°), a suspensão condicional do processo (Lei n. 9.099/95, art. 89, §1°) e a própria colaboração premiada (Lei n. 12.850/13, art. 4o, §7°), o acordo de não-persecução penal não contava com nenhum tipo de controle jurisdicional prévio. Na verdade, a intervenção judicial se dava tão somente após o cumprimento do acordo, quando caberia ao Ministério Público a promoção do arquivamento do procedimento investigatório perante o juízo competente nos termos do art. 28 do CPP. Corria-se o risco, assim, de o indivíduo cumprir todas as condições pactuadas com o Ministério Público, mas não receber, ao final, o que lhe fora prometido como prêmio legal, a saber, o arquivamento do procedimento investigatório. Afinal, como o magistrado não participara da homologação do acordo, não estava vinculado ao quanto pactuado entre o investigado e o Ministério Público. Com as mudanças aprovadas pelo CNMP por meio da Resolução n. 183/2018, passou a existir um controle jurisdicional prévio sobre o acordo de não-persecução penal. As mudanças

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buscam atrair um controle prévio do Juízo sobre o cabimento do acordo e sobre o próprio con­ teúdo das condições avençadas. Ora, sendo o arquivamento a conseqüência de um acordo de não-persecução penal exitoso, tanto melhor que o juízo competente atue desde logo para verifi­ car o cabimento da avença e de suas condições. A propósito, eis o teor do §5° do art. 18: “Se o juiz considerar o acordo cabível e as condições adequadas e suficientes, devolverá os autos ao Ministério Público para sua implementação”. Aplicando-se, por analogia, o mesmo procedimento atinente à colaboração premiada (Lei n. 12.850/13, art. 4o, §7°), uma vez proposto e aceito o acordo de não-persecução penal, os res­ pectivos autos deverão ser encaminhados ao juízo competente para homologação, o qual deverá verificar a sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo, para este fim, sigilosamente, ouvir o investigado, na presença de seu defensor. Na eventualidade de o juiz considerar incabível o acordo, bem como inadequadas ou insufi­ cientes as condições celebradas, fará remessa dos autos ao Procurador-Geral ou ao órgão superior interno responsável por sua apreciação (v.g., Câmaras de Coordenação e Revisão), nos termos da legislação vigente, que poderá adotar as seguintes providências: I - oferecer denúncia ou designar outro membro para oferecê-la; II —complementar as investigações ou designar outro membro para complementá-la; III - reformular a proposta de acordo de não persecução, para apreciação do investigado; IV - manter o acordo de não persecução, que vinculará toda a Instituição. Noutro giro, quando o órgão ministerial se recusar, injustificadamente, a oferecer a proposta do acordo de não-persecução penal, e o investigado tiver interesse na avença, o juiz também deverá aplicar, por analogia, o princípio da devolução constante do art. 28 do CPP, remetendo a solução final da controvérsia ao Procurador-Geral de Justiça ou à respectiva Câmara de Coordenação e Revisão, à semelhança, aliás, do que já ocorre nos casos de recusa injustificada de oferecimento de proposta de transação penal e/ou suspensão condicional do processo (súmula n. 696 do STF). 17.6. Descumprimento injustificado das obrigações assumidas pelo investigado Uma vez celebrado o acordo de não-persecução penal, o Ministério Público deixará de oferecer denúncia contra o investigado. Para tanto, é intuitivo que o agente cumpra todas as obrigações por ele assumidas por ocasião da avença. Não o fazendo, estará sujeito ao ofere­ cimento de denúncia, à semelhança do que já ocorre com o descumprimento injustificado da transação penal (súmula vinculante n. 35). É exatamente nesse sentido o teor do art. 18, §9°, da Resolução n. 181 do CNMP: “Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo ou não observados os deveres do parágrafo anterior, no prazo e nas condições estabelecidas, o membro do Ministério Público deverá, se for o caso, imediatamente oferecer denúncia”. Essa denúncia a ser oferecida pelo Ministério Público poderá trazer, como suporte proba­ tório, inclusive a confissão formal e circunstanciada do investigado por ocasião da celebração do acordo. Ora, se o próprio investigado deu ensejo à rescisão do acordo, deixando de adimplir as obrigações convencionadas, é de todo evidente que não se poderá desprezar os elementos de informação por ele fornecidos. Para além do possível oferecimento de denúncia, a Resolução n. 181 do CNMP também prevê que o descumprimento do acordo poderá ser utilizado pelo órgão ministerial como justifi­ cativa para o eventual não-oferecimento de suspensão condicional do processo (art. 18, §10).188

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Segundo Rodrigo da Silva Brandalise e Mauro Fonseca Andrade (op. cit. p. 244), “o descumprimento do acordo deve ser usado como fundamento para o não oferecimento da suspensão condicional do processo desde que ele

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A justificativa para esse dispositivo é evidente: se o investigado não demonstrou autodisciplina e senso de responsabilidade para o cumprimento das condições avençadas por ocasião da cele­ bração do acordo de não-persecução penal, é bem provável que terá idêntico comportamento se acaso lhe for oferecida a proposta de suspensão condicional do processo, até mesmo pelo fato de as condições pactuadas serem bastante semelhantes em ambos os institutos. 17.7. Cumprimento integral do acordo de não persecução penal Cumprido integralmente o acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação. Conquanto a resolução não seja explícita quanto ao fundamento para esse ar­ quivamento, a ideia é que, uma vez cumpridas as condições, esvazia-se o interesse processual no manejo da ação penal, tendo em conta que já estaria suficientemente satisfeita a pretensão punitiva estatal em virtude do cumprimento das obrigações a que se sujeitou o investigado. Na hipótese de arquivamento do procedimento investigatório criminal, ou do inquérito policial, quando amparado em acordo de não-persecução penal, a promoção de arquivamento será ne­ cessariamente apresentada ao juízo competente, nos moldes do art. 28 do CPP. 18. CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL De acordo com o art. 129, inciso VII, da Constituição Federal, caberá ao Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar, de iniciativa dos respectivos Procuradores-Gerais da União e dos Estados. Segundo Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, o controle externo da atividade policial deve ser compreendido como o “conjunto de normas que regulam a fiscalização exercida pelo Ministério Público em relação à Polícia, na prevenção, apuração e investigação de fatos tidos como criminosos, na preservação dos direitos e garantias constitucionais dos presos que estejam sob responsabilidade das autoridades policiais e na fiscalização do cumprimento das determinações judiciais”.189 A atividade de controle exercida pelo Ministério Público decorre do sistema de freios e contrapesos previsto pelo regime democrático. Afinal, o sistema preconizado na Carta Magna pressupõe a existência do controle de uma instituição por outra, condição necessária ao regular funcionamento do Poder Público. Este controle não pressupõe subordinação ou hierarquia dos organismos policiais. De fato, a expressão controle externo da atividade policial pelo Ministério Público não significa ingerência que determine a subordinação da polícia judiciária ao Ministério Público, mas sim a prática de atos administrativos pelo Ministério Público, de forma a possibilitar a efetividade dos direitos assegurados na lei fundamental. De acordo com a Lei Complementar n° 75/93 (art. 9o), o Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais, podendo: I - ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais; II - ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial; III - representar à autoridade compe­ tente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder; IV - requisitar à autoridade competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial; V - promover a ação penal por abuso de poder. Além disso, segundo o art. 10 da LC n° 75/93, a prisão de qualquer pessoa, por parte de autoridade federal ou do Distrito Federal e Territórios, qualifique uma das causas impeditivas da suspensão prevista no art. 89, caput, da Lei n. 9.099/95. Por ser uma Resolução, não pode impor mais do que a lei prevê”. 189

Controle externo da atividade policial pelo Ministério Público. 2ã ed. Curitiba: Juruá, 2009. p. 80.

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deverá ser comunicada imediatamente ao Ministério Público competente, com indicação do lugar onde se encontra o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão.190 Os organismos policiais relacionados no art. 144 da Constituição Federal, bem como as polícias legislativas ou qualquer outro órgão ou instituição, civil ou militar, à qual seja atribuída parcela de poder de polícia relacionada com a segurança pública e persecução criminal, sujei­ tam-se ao controle externo do Ministério Público. Dessa forma, pode-se conceber o controle externo como instrumento de realização do poder punitivo do Estado. Seu objetivo é dar ao Ministério Público um comprometimento maior com a investigação criminal e, consequentemente, um amplo domínio e lisura na produção da prova, a qual lhe servirá de respaldo na eventual propositura da ação penal pública ou na propositura da ação penal privada pelo ofendido. O controle externo da atividade policial pelo Ministério Público também visa à manuten­ ção da regularidade e da adequação dos procedimentos empregados na execução da atividade policial bem como a integração das funções do Ministério Público e das Polícias voltadas para a persecução penal e o interesse público. A atuação institucional nessa seara vai além da fiscalização das atividades tendentes à perse­ cução penal, cabendo ao Ministério Público reprimir eventuais abusos, mediante instrumentos de responsabilização pessoal (penal, cível e administrativa) e também zelar para que as instituições controladas disponham de todos os meios materiais para o bom desempenho de suas atividades, inclusive, quando necessário, acionando judicialmente o próprio Estado. Importante ficar atento à Resolução n° 20, de 28 de maio de 2007, do Conselho Nacional do Ministério Público, que regulamenta, no âmbito do Ministério Público, o controle externo da atividade policial. De acordo com seu art. 2o, o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público tem como objetivo manter a regularidade e a adequação dos procedimentos empregados na execução da atividade policial, bem como a integração das funções do Ministério Público e das Polícias voltada para a persecução penal e o interesse público, atentando, especialmente, para: I - o respeito aos direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal e nas leis; II - a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio público; III - a prevenção da criminalidade; IV - a finalidade, a celeridade, o aperfeiçoamento e a indisponibilidade da persecução penal; V - a prevenção ou a correção de irregularidades, ilegalidades ou de abuso de poder relacionados à atividade de investigação criminal; VI - a superação de falhas na produção probatória, inclusive técnicas, para fins de investigação criminal; VII - a probidade administrativa no exercício da atividade policial. Há duas formas de controle externo da atividade policial: a) controle difuso: é aquele exercido por todos os membros do Ministério Público com atribuição criminal, quando do exame dos procedimentos que lhes forem atribuídos. Aqui, é possível a adoção das seguintes medidas: a) controle de ocorrências com acesso a registros manuais e informatizados; b) prazos de inquéritos policiais; c) qualidade do inquérito policial; d) bens apreendidos; e) propositura de medidas cautelares. b) controle concentrado: é aquele exercido através de membros com atribuições espe­ cíficas para o controle externo da atividade policial, conforme disciplinado no âmbito de cada Ministério Público. Em sede de controle concentrado, são inúmeras as medidas que podem ser 190 Aplicam-se aos Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei ne 8.625/93, art. 80).

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adotadas pelo órgão do Ministério Público: a) ações de improbidade administrativa; b) ações civis públicas na defesa dos interesses difusos; c) procedimentos de investigação criminal; d) requisições; e) recomendações; f) termos de ajustamento de conduta; g) visitas às delegacias de polícia e unidades prisionais; h) comunicações de prisões em flagrante. A Resolução n° 20 do Conselho Nacional do MP foi objeto de discussão perante o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI n° 4.220, que não foi conhecida, porquanto se trata de ato de índole regulamentar, atrelado aos dispositivos legais que já disciplinam satisfatoriamente a matéria, não havendo inovação justamente porque os mecanismos primordiais para o exercício do controle externo da atividade policial são extraídos dos artigos 9o e 10 da Lei Complementar n° 75/93, que se referem, por seu turno, ao art. 80 da Lei n° 8.625/93.

TÍTULO 3

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1. DIREITO DE AÇÃO PENAL De acordo com a doutrina majoritária, direito de ação penal é o direito público subjetivo de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo a um caso concreto. Funciona, portanto, como o direito que a parte acusadora - Ministério Público ou o ofendido (querelante) - tem de, mediante o devido processo legal, provocar o Estado a dizer o direito objetivo no caso concreto. Há doutrina (minoritária) sustentando que a ação penal não seria um direito, mas sim um poder, porque a contrapartida seria uma sujeição do Estado-Juiz, que está obrigado a se manifestar. O direito de ação encontra seu fundamento constitucional no art. 5o, XXXV, que prevê que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Não se pode confundir o direito de ação com a ação, propriamente dita. Direito de ação é o direito de se exigir do Estado o exercício da jurisdição. Ação, todavia, é o ato jurídico, ou mesmo a iniciativa de se ir à justiça, em busca do direito, com efetiva prestação da tutela jurisdicional, funcionando como a forma de se provocar o Estado a prestar a tutela jurisdicional. No ordenamento jurídico pátrio, a ação penal é tratada tanto no Código Penal (arts. 100 a 106) quanto no Código de Processo Penal (arts. 24 a 62). Não obstante sua previsão no CPP, como a ação penal tem estreita relação com o direito de punir do Estado, não deixa de ter também caráter penal. Disso resulta a possibilidade de aplicação da lei mais favorável que versa sobre as condições da ação e sobre causas extintivas da punibilidade relacionadas à representação e à ação penal de iniciativa privada, por força do princípio da retroatividade da lei mais benigna, previsto no art. 5o, inciso XL, da Constituição Federal. A constatação de sua natureza mista tem extrema importância quando nos deparamos com as recentes leis que introduziram modificações quanto às espécies de ação penal. Basta ver, nessa linha, o exemplo da Lei n° 12.015/09, que transformou os crimes sexuais, pelo menos em regra, em crimes de ação penal pública condicionada à representação (CP, art. 225, caput). Fosse o direito de ação considerado de natureza estritamente processual, aplicar-se-ia o art. 2o do CPP, com a regra do princípio da aplicação imediata. Porém, a partir do momento em que se constatam os reflexos que o exercício do direito de ação produz em relação ao ius puniendi, não se pode deixar de aplicar a regra da irretroatividade da lei mais gravosa, ou da retroatividade da lei mais benéfica. Exemplificando, se determinado crime era de ação penal pública incondicionada e passa a ser de ação penal de iniciativa privada, forçoso é concluir que se trata de lex mitior. Afinal, a partir do momento em que determinado crime passa a ser de ação penal de iniciativa privada, maior será a possibilidade de incidência de causas extintivas da punibilidade, como a decadência, a renúncia, o perdão e a perempção. Por outro lado, se determinado delito era de ação penal de iniciativa privada e uma lei nova o transforma em crime de ação penal pública condicionada à representação - veja-se o exemplo da Lei n° 12.033/09, que alterou a natureza da ação penal do crime de injúria racial, antes de ação penal de iniciativa privada, hoje de ação penal pública condicionada à representação —cuida-se de evidente novatio legis in pejus, não podendo retroagir.

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De fato, a partir do momento em que o crime passa a ser de ação penal pública condicionada à representação, não serão mais cabíveis a renúncia, o perdão e a perempção como causas extintivas da punibilidade, subsistindo apenas a possibilidade de decadência do direito de representação. Evidente, portanto, tratar-se de lei nova prejudicial ao acusado, logo, irretroativa. 2. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE AÇÃO PENAL Considerada a ação penal um direito, suas principais características são: a) direito público: a atividade jurisdicional que se pretende provocar é de natureza públi­ ca. Daí se dizer que a ação penal é um direito público. Mesmo nas hipóteses em que o Estado transfere ao ofendido a possibilidade de ingressar em juízo (v.g., em regra, nos crimes contra a honra), tal ação continua sendo um direito público, razão pela qual se utiliza a expressão ação penal de iniciativa privada - vide exemplo do art. 100, §§ 2o e 3o, do CP. Além disso, como o direito de ação é dirigido contra o Estado-Juiz, costuma-se usar, na peça acusatória, a expressão “vem oferecer denúncia em relação a Tício”, ao invés de se usar a expressão “vem oferecer denúncia contra Tício”. b) direito subjetivo: o titular do direito de ação penal pode exigir do Estado-Juiz a prestação jurisdicional, relacionada a um caso concreto; c) direito autônomo: o direito de ação penal não se confunde com o direito material que se pretende tutelar; d) direito abstrato: o direito de ação existe e será exercido mesmo nas hipóteses em que o juiz julgar improcedente o pedido de condenação do acusado. Ou seja, o direito de ação in­ depende da procedência ou improcedência da pretensão acusatória; e) direito determinado: o direito de ação é instrumentalmente conexo a um fato concreto, já que pretende solucionar uma pretensão de direito material; f) direito específico: o direito de ação penal apresenta um conteúdo, que é o objeto da imputação, ou seja, é o fato delituoso cuja prática é atribuída ao acusado. 3. LIDE NO PROCESSO PENAL E conhecida a concepção clássica de Camelutti, segundo a qual a lide seria um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Discute-se se seria possível a transposição desse conceito para a seara processual penal. Tem prevalecido o entendimento de que deve se evitar a transposição do conceito de lide para o processo penal. Em primeiro lugar, porque não haveria um conflito de interesses, já que o interesse na preservação da liberdade individual também é um interesse público, uma vez que interessa ao Estado, na mesma medida, a condenação do culpado e a tutela da liberdade do inocente. No processo penal, o Estado pretende apenas a correta aplicação da lei penal. Ademais, mesmo que o imputado esteja de acordo com a imposição de pena, com o que não haveria qualquer resistência de sua parte ao pedido condenatório, ainda assim a defesa técnica será indispensável no processo penal, valendo lembrar ser inviável a aplicação de pena sem a existência de processo em que sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa (nulla poena sine judicio). Por tais motivos, no processo penal, costuma-se trabalhar com o que se convenciona cha­ mar de pretensão punitiva, que significa a pretensão de imposição da sanção penal ao autor do

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fato tido por delituoso. Pretensão, por sua vez, deve ser compreendida como a exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio.1 4. CONDIÇÕES DA AÇÃO PENAL O Código de Processo Civil consagrou expressamente a concepção eclética sobre o direi­ to de ação, segundo a qual o direito de ação é o direito ao julgamento do mérito da causa - é irrelevante se favorável ou desfavorável -, que fica condicionado ao preenchimento de certas condições, aferíveis à luz da relação jurídica material deduzida em juízo. São as chamadas condições da ação, desenvolvidas na obra do processualista italiano Enrico Tullio Liebmam. A teoria eclética sustenta que a existência do direito de ação não depende da existência do direito material, mas do preenchimento de certos requisitos formais chamados de condições da ação. Segundo essa concepção, as condições da ação não se confundem com o mérito, ainda que sejam aferidas à luz da relação jurídica de direito material discutida no processo, sendo analisadas preliminarmente e, quando ausentes, geram uma sentença terminativa de carência de ação (art. 485, VI, do novo CPC), sem a formação de coisa julgada material, o que, em tese, permite que a demanda seja renovada, desde que haja a correção do vício que deu ensejo à sentença sem resolução do mérito (art. 486, § Io, do novo CPC). Constatada a presença das condições da ação no caso concreto, o juiz profere sentença de mérito, que tanto poderá acolher quanto rejeitar o pedido do autor. Tratando-se de matéria de ordem pública, não há falar em preclusão. Daí concluírem os defensores da teoria eclética que, a qualquer momento do processo e com qualquer grau de cognição, o juiz deve extinguir o processo sem resolução de mérito por carência de ação se entender ausente uma das condições da ação (art. 485, § 3o, do novo CPC). Em tempos mais recentes surge na doutrina processual civil a teoria da asserção {in statu assertionis), também chamada de teoria dela prospettazione, segundo a qual a presença das condições da ação deve ser analisada pelo juiz com base nos elementos fornecidos pelo próprio autor em sua petição inicial, que devem ser tomados por verdadeiros, sem nenhum desenvol­ vimento cognitivo. As condições da ação exercem, pois, uma clara função de filtro processual. Justamente para distinguir as questões que constituem as condições da ação daquelas relativas ao mérito, afirma-se que o exame das condições da ação deve ser realizado segundo o afirmado na petição inicial. Se o juiz constatar a ausência de uma condição da ação mediante uma cognição sumária, deverá extinguir o processo sem resolução do mérito por carência de ação (art. 485, VI, do novo CPC); se houver necessidade de uma cognição mais aprofundada para a análise da presença das condições da ação, a carência de ação passa a ser analisada como mérito, gerando uma sentença de rejeição do pedido do autor (art. 487, I, do novo CPC), com a formação de coisa julgada formal e material. Num exemplo tradicionalmente citado pela doutrina processual penal, supondo que, ao final do processo, reconheça o juiz que a denúncia fora oferecida em face de acusado inocente,

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Segundo Gustavo Henrique Badaró, "pretensão punitiva seria o poder do Estado de exigir de quem comete um delito a submissão à sanção penal. Através da pretensão punitiva o Estado-Administração procura tornar efetivo o ius puniendi, com o exigir do autor do crime, que está obrigado a sujeitar-se à sanção penal, o cumprimento dessa obrigação, que consiste em sofrer o delinqüente as conseqüências do crime e se concretiza no dever de abster-se ele de qualquer resistência contra os órgãos estatais a que cumpre executar a pena. Porém, tal pre­ tensão não poderá ser voluntariamente resolvida sem um processo, não podendo nem o Estado impor a sanção penal, nem o infrator submeter-se à pena. Assim sendo, tal pretensão já nasce insatisfeita". (Correlação entre acusação e sentença. 2- ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 68).

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entende-se que, ao invés de reconhecer sua ilegitimidade passiva ad causam, extinguindo o processo sem a apreciação do mérito, incumbe ao magistrado proferir sentença absolutória, com enfrentamento do mérito, hipótese em que a decisão fará coisa julgada formal e material. Outro exemplo interessante diz respeito à ausência de justa causa, pelo menos para aqueles que a consideram como espécie de condição da ação penal.23Verificada sua ausência por ocasião do juízo de admissibilidade da peça acusatória, incumbe ao magistrado rejeitá-la, nos termos do art. 395, III, do CPP, hipótese em que a decisão fará apenas coisa julgada formal. Logo, surgindo novos elementos probatórios, nova peça acusatória poderá ser oferecida, enquanto não extinta a punibilidade. Todavia, iniciado o processo, não se pode admitir que o próprio juiz que recebeu a denúncia determine sua extinção sem apreciação do mérito por ausência de justa causa. Nesse caso, ao final do processo, cabe ao juiz proferir sentença de mérito, absolvendo o acusado com fundamento no art. 386, incisos I, II, IV, V, VI, ou VII, hipótese em que a decisão estará protegida pelo manto da coisa julgada formal e material. Em sede processual penal, a presença dessas condições da ação deve ser analisada por ocasião do juízo de admissibilidade da peça acusatória. A denúncia ou queixa deve ser rejeitada pelo magistrado quando faltar condição para o exercício da ação penal (CPP, art. 395, II). Se, no entanto, isso não ocorrer por ocasião do juízo de admissibilidade da peça acusatória, é perfeitamente possível o reconhecimento de nulidade absoluta do processo, em qualquer instância, com fundamento no art. 564, inciso II, do CPP - o dispositivo refere-se apenas à ilegitimidade de parte, mas, por analogia, também pode ser aplicado às demais condições da ação penal. Há quem entenda que também seria possível a extinção do processo sem julgamento do mérito, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 485, VI, do NCPC. O antigo Código de Processo Civil referia-se às condições da ação em 3 (três) momentos distintos: ao tratar da “ação” (art. 3o), referindo-se à necessidade de interesse e legitimidade; dentre as hipóteses de inépcia da inicial constava a hipótese em que o pedido fosse juridicamente impossível (art. 295, parágrafo único, III); ao cuidar dos casos de extinção do processo sem apreciação do mérito (art. 267, VI), quando fazia menção expressa à ausência das “condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual”. Se bem examinadas, as três condições referem-se a cada um dos três elementos da ação: legitimidade ad causam (partes); possibilidade jurídica do pedido (pedido); interesse de agir (causa de pedir). Ao contrário de seu antecedente, o novo CPC não faz uso, pelo menos expressamente, do termo “condições da ação”. Isso, no entanto, não significa dizer que houve a extinção da cate­ goria “condições da ação”. Ora, se o texto do novo CPC não faz uso da expressão “condição da ação”, não se pode perder de vista que o Código de Processo Penal consagra expressamente essa categoria em seu art. 395, II, reproduzindo, aliás, o que já constava do revogado art. 43, III, do CPP, que dispunha que a denúncia ou queixa seria rejeitada quando fosse manifesta a ilegitimidade da parte ou faltasse condição exigida pela lei para o exercício da ação penal? 2

Para mais detalhes acerca da controvérsia em torno da natureza jurídica da justa causa, remetemos o leitor ao item "4.1.1.4. Justa Causa".

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Há quem entenda que, à luz do novo Código de Processo Civil, não houve o desaparecimento das condições da ação, isoladamente consideradas. No entanto, a categoria "condição da ação", compreendida como uma questão relacionada a um dos elementos da ação (partes, pedido e causa de pedir) que ocupa uma zona intermediária entre as questões de mérito e as questões de admissibilidade, foi eliminada do nosso ordenamento jurídico. Se há apenas dois tipos de juízo que podem ser feitos pelo órgão jurisdicional (juízo de admissibilidade e juízo de mérito), só há duas espécies de questões que o mesmo órgão jurisdicional pode examinar. Não há sentido lógico na criação de uma terceira espécie de questão - no caso, as condições da ação -, pois ou a questão é de mérito ou é de admissibilidade. Logo, o órgão jurisdicional continua sendo obrigado a examinara legitimidade,

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Como o novo CPC continua fazendo referência à legitimidade e ao interesse de agir em diversos dispositivos legais, subentende-se que esse conceito jurídico processual não foi proscrito do direito processual. Com efeito, sem embargo do silêncio do novo CPC acerca da possibilidade jurídica, há diversas referências expressas à legitimidade e ao interesse de agir, que subsistem como condições da ação. Em seu art. 17, o novo CPC dispõe expressamente que é necessário ter interesse e legitimidade para postular em juízo. Ao tratar da contestação, o art. 337, inciso XI, determina que, antes de discutir o mérito, incumbe ao réu alegar, dentre outras matérias, a ausência de legitimidade ou de interesse processual. Por fim, no capítulo referente à sentença e à coisa julgada, o novo CPC determina que o juiz não resolverá o mérito quando verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual (art. 485, VI). Se a categoria das “condições da ação” não foi extinta pelo novo CPC, melhor sorte não assiste à possibilidade jurídica do pedido. Aliás, mesmo antes da vigência do novo CPC, grande parte da doutrina já sustentava que a possibilidade jurídica não podia ser considerada espécie autônoma de condição da ação. Em seus primeiros estudos, Liebman defendia a existência de três espécies de condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade, sendo que essa construção teórica foi expressamente consagrada pelo antigo CPC no art. 267, VI. Ocorre, porém, que o próprio Liebman reformulou seu entendimento original, passando a defender que a possibilidade estaria contida no interesse de agir - se o pedido é juridicamente impossível, não há necessidade de o processo prosseguir, ante a absoluta impossibilidade de o juiz emitir um provimento final conforme pedido pelo autor -, de forma que, ao final de seus estudos, restaram somente duas condições da ação, quais sejam, legitimidade e interesse de agir. Outros doutrinadores processuais civis negam que a impossibilidade jurídica do pedido seja distinta do julgamento do mérito de improcedência. Em outras palavras, ainda que no início do processo, e mesmo que com base em uma cognição superficial, quando o juiz considera o pedido juridicamente impossível, estaria, na verdade, julgando o mérito improcedente. Louvável, portanto, a sistemática adotada pelo novo diploma processual civil, que deixa de fazer referência à “possibilidade jurídica do pedido” como hipótese que leva a uma decisão de inadmissibilidade do processo. Consolida-se, assim, o entendimento praticamente majoritário até então no sentido de que o reconhecimento da impossibilidade jurídica funciona como decisão de mérito, e não de inadmissibilidade. No âmbito processual penal, as condições da ação subdividem-se em condições genéricas, assim compreendidas como aquelas que deverão estar presentes em toda e qualquer ação penal, e condições específicas (de procedibilidade), cuja presença será necessária apenas em relação a determinadas infrações penais, certos acusados, ou em situações específicas, expressamente previstas em lei. Como condições específicas da ação penal, podemos citar, a título de exemplo, a representação do ofendido e a requisição do Ministro da Justiça. Quanto às condições genéricas da ação penal, grande parte da doutrina entende que são aplicáveis ao processo penal as mesmas condições da ação tradicionalmente trabalhadas pelo processo civil - à luz da sistemática do novo CPC, legitimidade e interesse de agir -, sendo que há controvérsias quanto à verdadeira natureza jurídica da justa causa. Outra corrente (minoritária)

o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido. No entanto, tais questões seriam examinadas como questões de mérito (possibilidade jurídica do pedido e legitimidade ad causam ordinária), ou como pressupostos processuais de validade - o interesse de agir como pressuposto de validade objetivo intrínseco e a legitimidade extraordinária como pressuposto de validade subjetivo relativo às partes. Nesse sentido: DIDIER Jr., Fredie. Será o fim da categoria "condição da ação"? Um elogio ao projeto do novo CPC. Publicado na Revista de Processo. São Paulo: RT, 2011, v. 197, p. 255-260.

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entende que, diante da necessidade de se respeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal, as condições genéricas da ação penal devem ser buscadas dentro do próprio processo penal: prática de fato aparentemente criminoso, punibilidade concreta, legitimidade de parte e justa causa. 4.1. Condições genéricas da ação penal 4.1.1. À luz da teoria geral do processo Grande parte da doutrina entende que, no processo penal, as condições genéricas da ação penal não apresentam conceituações distintas daquelas pensadas para o processo civil, em face de uma teoria geral do processo. Logo, sob a ótica do novo CPC, que afastou a possibilidade jurídica como condição da ação, o exercício regular do direito de ação penal pressupõe a legiti­ midade e o interesse de agir. Sem o preenchimento dessas condições genéricas, teremos o abuso do direito de ação, autorizando, pois, a rejeição da peça acusatória (CPP, art. 395, II). 4.1.1.1. Possibilidade jurídica do pedido O pedido formulado pela parte deve se referir a uma providência admitida pelo direito objetivo, ou seja, o pedido deve encontrar respaldo no ordenamento jurídico, referindo-se a uma providência permitida em abstrato pelo direito objetivo. Entende-se que não se afigura conve­ niente a instauração e o desenvolvimento de um processo quando, desde logo, se afigura inviável o atendimento em absoluto da pretensão, seja porque a ordem jurídica não prevê providência igual à requerida, porque a ordem jurídica expressamente a proíba, seja porque o ordenamento jurídico impede a manifestação judicial sobre a questão. No processo civil, é comum o exemplo citado pela doutrina de se ingressar em juízo plei­ teando o pagamento de dívidas de jogo, hipótese em que a petição inicial deve ser indeferida de plano, já que a petição inicial é inepta em virtude de o pedido ser juridicamente impossível, porquanto o art. 814 do Código Civil estabelece que as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam ao pagamento. Perceba-se que a impossibilidade não é do pedido, mas sim da causa de pedir. O pedido de cobrança na hipótese de dívida de jogo, isoladamente considerado, é perfeitamente admissível. O que não se admite é uma cobrança cuja origem seja uma dívida de jogo. Se, no plano processual civil, a possibilidade jurídica é configurada negativamente, no âmbito processual penal, sua conceituação é positiva, como previsão expressa do pedido condenatório no ordenamento jurídico. A fim de se evitar persecuções levianas, infundadas, dando ensejo a processos penais temerários, deve se analisar se a imputação formulada na peça acu­ satória leva a alguma providência prevista no direito objetivo. Em observância ao princípio da legalidade (CF, art. 5o, XXXIV, c/c art. Io do CP), atendendo, ademais, à função de garantia dos tipos penais, para que o pedido seja juridicamente possível no processo penal, é imprescindível a existência de norma jurídica definindo a conduta imputada ao acusado como infração penal, estabelecendo a respectiva sanção. Como se vê, essa condição da ação guarda relação com a possibilidade de o juiz pro­ nunciar, em tese, a decisão pleiteada pelo autor, consoante o que dispõe a ordem jurídica de forma abstrata. De modo a não se confundir a análise dessa condição da ação com a do mérito, a apreciação da possibilidade jurídica do pedido deve ser feita sobre a causa de pedir (causa petendi), considerada em tese, desvinculada de qualquer prova porventura existente. Analisa-se o fato tal qual narrado na inicial, sem se discutir se é ou não verdadeiro, a fim de se concluir se o ordenamento material lhe comina, em abstrato, uma sanção.

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São exemplos de impossibilidade jurídica do pedido tradicionalmente citados pela dou­ trina processual penal, que autorizam a rejeição da peça acusatória com fundamento no art. 395, II, do CPP, ou, se recebida, ensejarão o trancamento do processo por meio de habeas corpus: a) oferecimento de denúncia e/ou queixa com a imputação de conduta atípica; b) peça acusatória oferecida a despeito da presença de um fato impeditivo do exercício da ação (v.g., ausência de decisão final do procedimento administrativo de lançamento nos crimes mate­ riais contra a ordem tributária);4 c) peça acusatória oferecida sem o implemento de condição específica da ação penal (v.g., ausência da representação do ofendido); d ) denúncia oferecida em face de menor de 18 (dezoito) anos, a ele imputando a prática de crime e, por isso, reque­ rendo a imposição de pena privativa de liberdade, contrariando, assim, o quanto disposto na Constituição Federal, que prevê que são penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos (CF, art. 228).5 Como exposto anteriormente, por conta da influência do antigo Código de Processo Civil, que fazia referência expressa, como espécie de condição da ação, à possibilidade jurídica (art. 267, VI), esta sempre foi apontada como uma das condições da ação penal, ao lado da legitimidade e o do interesse de agir. No entanto, essa transposição simplista dos conceitos processuais civis para o processo penal - no caso, a utilização da possibilidade jurídica do pedido como espécie de condição da ação penal - sempre foi alvo de críticas, porquanto ignora as peculiaridades e especificidades do processo penal. Diante da inadequa­ da transposição da possibilidade jurídica do pedido como condição da ação para o processo penal, reputamos absolutamente válido e oportuno o afastamento dessa condição pelo novo diploma processual civil. Doravante, à semelhança do novo CPC, a impossibilidade jurídica do pedido também deverá ser enfrentada no âmbito processual penal como decisão de mérito, e não de inadmissibilidade. No âmbito processual cível ou penal, é impossível extremar a possibilidade jurídica do pedido do mérito da causa, fato que, por si só, acabou justificando a exclusão dessa condição da ação do novo CPC, e, consequentemente, do processo penal, que, doravante, terá como condições da ação penal tão somente a legitimidade e o interesse de agir. A transposição da possibilidade jurídica do pedido como condição da ação penal ignora, por completo, uma premissa básica do processo penal, segundo a qual o pedido é de todo irrelevante numa ação penal condenatória, já que o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, pouco importando o pedido formulado pelo acusador. Exemplificando, ainda que conste da peça acusatória o pedido de imposição de uma pena vedada pelo ordenamento jurídico, a exemplo da pena de morte para crime comum (CF, art. 5o, XLVII, “a”), tal vício não terá o condão de ensejar a rejeição da peça acusatória. Noutro giro, ainda que o pedido de imposição de determinada sanção não corresponda efetivamente àquela prevista na cominação legal pertinente ao fato imputado ao agente, nada impede o recebimento da denúncia ou queixa e o regular processamento do feito, haja vista a possibilidade de emendado libelli por ocasião da sentença (CPP, art. 383). Na 4

Para mais detalhes acerca dessa condição objetiva de punibilidade, remetemos o leitor ao item "4.4.1. Decisão final do procedimento administrativo nos crimes materiais contra a ordem tributária".

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Nesse caso, além da impossibilidade jurídica do pedido, outros motivos também poderiam dar ensejo à rejei­ ção da peça acusatória: a) não há legitimidade, já que o menor de 18 (dezoito) anos não tem capacidade de praticar atos processuais penais na posição de acusado; b) o juízo criminal comum é absolutamente incompe­ tente para processar e julgar a causa, cuja competência recai sobre o Juizado da Infância e Adolescência, onde o Promotor de Justiça poderá oferecer representação para que se inicie o processo socioeducativo; c) o fato narrado evidentemente não constitui crime, já que se trata de ato infracional, nos termos do art. 103 da Lei n^ 8.069/90.

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mesma linha, se uma denúncia pela prática de crime doloso contra a vida for oferecida perante o Juiz Sumariante com pedido de condenação, que, como é sabido, tem autorização apenas para pronunciá-lo, já que o juiz natural para eventual decreto (condenatório ou absolutório) é o Conselho de Sentença do Tribunal do Júri, também não há falar em rejeição da denúncia em virtude de suposta impossibilidade jurídica do pedido. Cuida-se de mera irregularidade, incapaz de produzir qualquer vício, porquanto o acusado defende-se da imputação que recai sobre sua pessoa, e não do pedido constante da denúncia. Para além disso, sob a ótica da teoria eclética, para que se possa falar em impossibilidade jurídica do pedido como condição da ação, sua ausência deveria dar ensejo a uma sentença terminativa de carência de ação (art. 485, VI, do novo CPC), é dizer, sem a formação de coisa julgada material. No entanto, se a possibilidade jurídica a ser investigada no processo penal diz respeito à causa de pedir, ou seja, à imputação de um fato típico, ilícito e culpável, fica difícil sustentar que a análise desta condição da ação não esteja relacionada ao mérito, produzindo, pois, coisa julgada formal e material. Basta pensar no exemplo da rejeição da denúncia em virtude da atipicidade (formal ou ma­ terial) da conduta imputada ao acusado. Ora, se um simples arquivamento do inquérito policial com base na atipicidade funciona como decisão de mérito, com a formação de coisa julgada formal e material, como negar semelhantes efeitos à decisão proferida no limiar do processo, reconhecendo, por exemplo, a atipicidade material da conduta em virtude do princípio da in­ significância? Do ponto de vista da profundidade da cognição, mesmo em se tratando de um exame superficial, o reconhecimento da atipicidade no início do processo pode ser considerado um verdadeiro julgamento do mérito, por não haver controvérsia fática. Portanto, se, por oca­ sião do juízo de admissibilidade da peça acusatória, reconhecer o juiz ser possível a aplicação do princípio da insignificância, com o conseqüente reconhecimento da atipicidade material da conduta, não se trata de sentença de carência de ação em face da impossibilidade jurídica do pedido, mas sim de verdadeira decisão de mérito, à semelhança da absolvição sumária prevista no art. 397, III, do CPP, logo, acobertada pela coisa julgada formal e material. Em síntese, se a atipicidade, descriminante, exculpante (salvo inimputabilidade), ou causa extintiva da punibilidade estiverem cabalmente demonstradas no momento do juízo de admissi­ bilidade da peça acusatória, e desde que haja um juízo de certeza acerca de sua presença, pouco importando se, para tanto, foi necessária uma cognição superficial (primafacie) ou macroscópica, deve o juiz absolver sumariamente o acusado desde logo com fundamento no art. 397 do CPP. Se o novo Código de Processo Civil autoriza o reconhecimento liminar da improcedência do pedido quando for dispensável a instrução probatória e se revelarem presentes uma das hipóteses listadas nos incisos do art. 332,6 não há justificativa razoável para não se aplicar idêntico raciocínio ao processo penal, autorizando, por conseguinte, a prolação de um decreto liminar de absolvição sumária por ocasião do juízo de admissibilidade da peça acusatória, independentemente da citação do acusado e apresentação da resposta à acusação. Em todos esses casos, o que menos importa é o momento procedimental em que houver o reconhecimento de uma das hipóteses do art. 397 do CPP. Como há efetiva análise do mérito em todas elas, a decisão fará coisa julgada formal e material, nos mesmos moldes do que ocorre, por exemplo, com o arquivamento do inquérito policial com base na atipicidade da conduta delituosa.

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Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.

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4.1.1.2. Legitimidade para agir Na clássica lição doutrinária, legitimidade para agir ou legitimatio ad causam é a pertinência subjetiva da ação. Ou seja, é a situação prevista em lei que permite a um determinado sujeito propor a demanda judicial e a um determinado sujeito ocupar o polo passivo dessa mesma de­ manda. Há legitimidade de partes quando o autor afirma ser titular do direito subjetivo material demandado (legitimidade ativa) e pede a tutela em face do titular da obrigação correspondente àquele direito (legitimidade passiva). A legitimidade ad causam subsiste como condição da ação sob a ótica do novo CPC, que prevê expressamente que é necessário interesse e legitimidade para postular em juízo (art. 17). Quanto à legitimidade ativa no processo penal, temos que, nas hipóteses de ação penal pú­ blica, por força do art. 129,1, da Constituição Federal, o titular da ação penal será o Ministério Público; nas hipóteses de ação penal de iniciativa privada, será legitimado a agir o ofendido, ou seu representante legal. Em situações excepcionais, que serão oportunamente estudadas, a queixa-crime também pode ser oferecida por curador especial (CPP, art. 33), pelos sucessores do ofendido, em caso de morte ou declaração de ausência (CPP, art. 31), ou até mesmo por entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, assim como associações, especificamente destinadas à defesa dos interesses e direitos do consumidor (Lei n° 8.078/90, art. 80, c/c art. 82, III e IV). Daí a grande importância de se saber se determinado delito é de ação penal pública ou de ação penal de iniciativa privada. Afinal, se o delito é de ação penal de iniciativa privada (v.g., em regra, crime de calúnia), e o Ministério Público oferece denúncia em relação a ele, há de se reconhecer a falta de legitimatio ad causam do órgão ministerial, com a conseqüente rejeição da peça acusatória (CPP, art. 395, II). Caso o processo já esteja em andamento, a ilegitimidade ad causam será causa de nulidade absoluta do processo, tal qual prevê o art. 564, II, do CPP. Por outro lado, em se tratando de crime de ação penal pública (v.g., crime contra a honra praticado durante a propaganda eleitoral, o qual é crime eleitoral e, portanto, de ação penal publica incondicionada), não se pode admitir o oferecimento de queixa-crime pelo ofendido ou por seu representante legal, salvo se caracterizada a inércia do órgão ministerial, hipótese em que a própria Constituição Federal ressalva o cabimento da ação penal privada subsidiária da pública (art. 5o, LIX). No polo passivo, a legitimação recai sobre o provável autor do fato delituoso, com 18 (de­ zoito) anos completos ou mais, já que a própria Constituição Federal estabelece que os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis (art. 228). Alguns doutrinadores entendem que, no âmbito processual penal, na medida em que o tema relativo à autoria diz respeito ao próprio mérito da ação penal condenatória, a legitimatio ad causam só oferece relevância quando analisada sob o ponto de vista do polo ativo, ou seja, no tocante à iniciativa da persecução penal. Com a devida vênia, ousamos discordar. Em tempos atuais, com a crescente utilização da inform ática, é perfeitam ente possível que, por um equívoco n a digitação de u m a denúncia,

a prática de determinada infração penal seja imputada a uma pessoa distinta do suposto autor do fato delituoso (v.g., à testemunha). Ora, em uma hipótese como essa, não se tem dúvida de que o reconhecimento da ilegitimidade passiva da testemunha independe de qualquer dilação probatória, autorizando a rejeição da peça acusatória de plano. Outro exemplo bastante comum diz respeito a homônimos. Sobre o assunto, assim já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal: “Exsurgindo descompasso entre as impressões digitais constantes do boletim de identificação

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criminal alusivo ao delito e as do acusado via denúncia, impõe-se a conclusão sobre a ilegiti­ midade passiva, declarando-se nulo o processo a partir, inclusive, da peça primeira, ou seja, da denúncia”.7 Quanto à legitimação da pessoa jurídica no processo penal, dúvidas não há quanto a sua legitimação ativa. De fato, supondo-se que uma pessoa jurídica seja vítima de um crime de difamação, o que é plenamente possível, já que referido ente é dotado de honra objetiva, sendo possível a imputação de fato ofensivo a sua reputação, poderá figurar no polo ativo de queixa-crime por ela proposta em face do suposto autor do delito. Em relação à legitimação passiva da pessoa jurídica, tem-se admitido o oferecimento de denúncia em face da pessoa jurídica pela prática de crimes ambientais, desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, já que não há como se compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio. É a denominada teoria da dupla imputação.8 Legitimidade ad causam não se confunde com legitimatio ad processum, fenômeno rela­ cionado à capacidade de estar em juízo, tida como pressuposto processual de validade. Essa capacidade processual refere-se à capacidade de exercer direitos e deveres processuais, ou seja, de praticar validamente atos processuais. E o que ocorre com um ofendido menor de 18 (de­ zoito) anos, que não tem capacidade processual para oferecer queixa-crime, razão pela qual sua incapacidade é suprida por seu representante legal. Esse representante processual age em nome alheio na defesa de interesse alheio, não sendo considerado parte no processo, mas mero sujeito que dá à parte capacidade para que esteja em juízo. Capacidade processual, por sua vez, não se confunde com capacidade postulatória, assim compreendida a aptidão para postular perante órgãos do Poder Judiciário. Supondo, assim, ofendi­ do que não seja advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, o ajuizamento da queixa-crime deverá ser feito por advogado com poderes especiais (CPP, art. 44). Como se vê, a incapacidade postulatória é suprida por meio da representação voluntária necessária. Por fim, não se pode contundir o conceito de legitimidade ad causam com o de capacidade de ser parte, pressuposto de existência de um processo. A capacidade de ser parte deriva da per­ sonalidade, consistindo na capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações (CC, art. Io). No âmbito processual penal, além de pessoas físicas e jurídicas, é interessante perceber que alguns “entes” também são considerados como pessoas formais. É o que ocorre, por exemplo, com as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor, a quem o CDC atribui legitimidade não só para figurar como assistente do Ministério Público, como também para ajuizar queixa-crime subsidiária, se a denúncia não for oferecida no prazo legal (Lei n° 8.078/90, art. 82, III, c/c art. 80).9 4.1.1.2.1. Legitimidade ordinária e extraordinária no processo penal Em termos de legitimidade, a regra geral está consagrada no art. 18 do novo CPC, que prevê que somente o titular do alegado direito poderá pleitear em nome próprio seu próprio

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STF, 25 Turma, HC 72.451/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 27/02/1996, DJ 19/04/1996.

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Para mais detalhes acerca da referida teoria, remetemos o leitor ao tópico referente à "ação penal nos crimes ambientais: pessoas jurídicas e dupla imputação"

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Nessa linha: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 75 ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010. p. 244.

TÍTULO 3 • A Ç Ã O PEN A L E A Ç Ã O CIVIL EX DELICTO

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interesse. É o que se denomina de legitimação ordinária. Portanto, em regra, alguém só pode agir, em nome próprio, na defesa de interesse próprio. É o que ocorre, no âmbito processual penal, nas hipóteses de ação penal pública. Na medida em que a Constituição Federal outorga ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, é evidente que o Parquet age em nome próprio na defesa de interesse próprio. Se a regra é a legitimação ordinária, excepcionalmente, e desde que autorizado por lei, o ordenamento jurídico prevê situações em que alguém pode pleitear, em nome próprio, direito alheio. É o que se denomina de legitimação extraordinária ou substituição processual. Sobre o assunto, consoante disposto no art. 18 do novo CPC, ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico. Mas quais são os exemplos de legitimação extraordinária no processo penal? A doutrina costuma citar como exemplo a ação penal de iniciativa privada. Nessa espécie de ação penal, o Estado, titular exclusivo do direito de punir, transfere a legitimidade para a propositura da ação penal à vítima ou ao seu representante legal, a eles concedendo ojus persequendi in judicio. Cuida-se, portanto, de hipótese de legitimação extraordinária, já que o ofendido age, em nome próprio, na defesa de um interesse alheio, pois o Estado continua sendo o titular da pretensão punitiva.10 Há doutrinadores que também citam como exemplo de legitimação extraordinária no pro­ cesso penal a ação civil ex delicto proposta pelo Ministério Público em favor de vítima pobre (CPP, art. 68).11 A nosso juízo, não se trata de hipótese de legitimação extraordinária, pois o órgão ministerial não age em nome próprio na defesa de interesse alheio. Na verdade, se a vítima pobre não é profissional da advocacia, não tem capacidade postulatória para postular perante o Poder Judiciário. Logo, o ajuizamento da ação civil ex delicto deve ser feito por advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, por Defensor Público, ou pelo próprio Ministério Público, nas comarcas em que não houver serviço de assistência judiciária gratuita. Como se vê, a incapacidade postulatória é suprida por meio da representação voluntária necessária. Não se pode confundir a legitimação extraordinária (substituição processual) com a sucessão processual. Há sucessão processual quando um sujeito sucede outro no processo, assumindo a sua posição processual. Há, portanto, uma troca de sujeitos no processo, uma mudança subjetiva da relação jurídica processual. A propósito, consoante disposto no art. 31 do CPP, no caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. Por outro lado, na legitimação extraordinária (substituição processual), não há troca de sujeitos. Na verdade,

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Em sentido diverso, Badaró {Processo penal. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012. p. 104) sustenta que a distin­ ção entre legitimação ordinária e extraordinária é destituída de todo e qualquer significado no processo penal, pois tanto o Ministério Público quando o querelante são legitimados ordinários. Segundo o autor, "o Ministério Público não é o titular do direito de punir, que pertence ao Estado. Ao Ministério Público se confere, apenas, a titularidade ou legitimidade para a propositura da ação penal. Tal poder, porém, decorre simplesmente da lei, independentemente da titularidade do 'direito material' debatido em juízo, no caso, 'o direito de punir'. Assim, somente no sentido de ser o titular da pretensão processual posta em juízo é que se pode considerar o Ministério Público um 'legitimado ordinário'. Entretanto, nesse conceito, na ação penal de iniciativa privada, em que, ex­ cepcionalmente, o poder de perseguir em juízo é conferido à vítima, ela também seria um 'legitimado ordinário'. Com entendimento distinto, segundo Aury Lopes Jr. (Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 340), o poder de punir do Estado é exercido pelo juiz, e não pelo Ministério Público e pelo querelante, aos quais é outorgada tão somente a pretensão acusatória. Logo, ambos exercitam um poder que lhes é próprio, ou seja, o poder de acusar.

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Para mais detalhes acerca da recepção do art. 68 do CPP pela Constituição Federal de 1988, vide adiante capítulo referente à ação civil ex delicto.

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não há qualquer alteração da relação processual, pois um sujeito tem o poder (legitimidade) de estar legitimamente em um processo defendendo interesse de outrem. A legitimação extraordinária também não se confunde com a representação processual (legitimado adprocessum), fenômeno relacionado à capacidade de estar em juízo. Há represen­ tação processual quando um sujeito está em juízo em nome alheio defendendo interesse alheio. O representante processual não é parte; parte é o representado. O representante processual atua em nome alheio na defesa de interesse alheio, não sendo considerado parte no processo, mas mero sujeito que dá à parte a capacidade para estar em juízo. É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses de nomeação de curador especial. Se o ofendido for menor de 18 (dezoito) anos, ou mentalmente enfermo, ou retardado mental, e não tiver representante legal, ou colidirem os interesses deste com os daquele, o direito de queixa poderá ser exercido por curador especial, nomeado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo juiz competente para o processo penal (CPP, art. 33). Em sentido diverso, na legitimação extraordinária, o substituto processual é parte; o substituído não é parte processual, por mais que seus interesses jurídicos estejam sendo discutidos em juízo. O substituto processual age em nome próprio defendendo interesse alheio, ao passo que o representante processual atua em juízo para suprir a incapacidade processual da parte. 4.1.13. Interesse de agir A ideia de interesse de agir ou de interesse processual está relacionada à utilidade da pres­ tação jurisdicional que se pretende obter com a movimentação do aparato judiciário. Deve-se demonstrar, assim, a necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário para a obtenção do resultado pretendido, independentemente da legitimidade da pretensão. A fim de se verificar se o autor tem (ou não) interesse processual para a demanda, deve se questionar se, para obter o que pretende o autor, é efetivamente necessária a providência jurisdicional pleiteada (art. 17 do novo CPC). Não se discute se o autor faz jus ou não ao direito que alega possuir, porque esse tema é pertinente ao mérito e não às condições da ação. Incumbe ao juiz apenas a verificação em abstrato e de maneira hipotética da efetiva necessidade do provimento jurisdicional, comprovando-se que o autor não poderia obter o mesmo resultado por outro meio extraprocessual. Segundo parte significativa da doutrina, o interesse de agir deve ser analisado sob três as­ pectos distintos: a necessidade de obtenção da tutela jurisdicional pleiteada; a adequação entre o pedido e a proteção jurisdicional que se pretende obter; e a utilidade, que se traduz na eficácia da atividade jurisdicional para satisfazer o interesse do autor.12 A necessidade estará presente sempre que o autor não puder obter o bem da vida pretendido sem a devida intervenção do Poder Judiciário. Esse raciocínio só é correto para as situações em que se pretende exercitar, pelo processo, direitos a uma prestação, pois há a possibilidade de cumprimento espontâneo da prestação. Portanto, quando não houver meios para a satisfação voluntária, há necessidade de jurisdição. E é exatamente isso o que ocorre com a pretensão punitiva. No âmbito processual penal, essa necessidade é implícita na ação penal condenatória, já que, em virtude do princípio do nulla poena sine judicio, nenhuma sanção penal poderá ser aplicada sem o devido processo legal, ainda que o acusado não tenha interesse em oferecer qualquer resistência. A ação penal é, por conseguinte, uma ação necessária. Logo, o exame da “necessidade” para a verificação do interesse de agir é dispensável, pois está in re ipsa. Com efeito, no âmbito processual penal, em face do princípio nulla poena sine judicio, ter-se-á uma pretensão insatisfeita, vez que, para solucionar a demanda penal, é sempre necessário 12

Há quem entenda que o interesse de agir é um binômio, composto pela necessidade e adequação.

TÍTULO 3 • A Ç Ã O PEN A L E A Ç Ã O CIVIL EX DELICTO

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o processo, pois o Estado não pode aplicar a norma penal de imediato, mesmo que haja a con­ cordância de quem cometeu o delito. Para que as regras punitivas atuem concretamente, toma-se imprescindível o processo, pois a pena não pode ser imposta diretamente ao autor do crime, sem prévia apuração de sua responsabilidade. Afinal, o jus puniendi é de coação indireta em face da exigência de que a pena só seja imposta após regular processo. A ressalva à possibilidade de aplicação de pena sem processo no âmbito processual penal fica por conta da transação penal no âmbito dos Juizados Especiais Criminais (Lei n° 9.099/95, art. 76). Presentes os pressupostos objetivos e subjetivos, deverá o titular da ação penal formular proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou de multa. Nesse caso, ainda não há processo. O ato compositivo ocorre por ocasião da audiência preliminar, logo, antes do oferecimento da denúncia.13 Por adequação entende-se o ajustamento da providência judicial requerida à solução do conflito subjacente ao pedido. Se essa adequação é assaz importante no processo civil, é interes­ sante perceber que, em uma ação penal condenatória, tal condição não ostenta grande relevância, já que não há espécies distintas de ações penais condenatórias. De fato, sempre que o órgão ministerial ou o querelante pleiteiam a aplicação do direito de punir, o fazem por meio de uma ação penal condenatória. Em se tratando de ações penais não condenatórias, todavia, é mais fácil visualizar a impor­ tância do interesse-adequação. Basta pensar no exemplo de persecução penal em andamento por conduta manifestamente atípica à qual seja cominada apenas pena de multa. Em tal hipótese, o habeas corpus não será instrumento adequado para se buscar o trancamento do processo, já que o referido remédio constitucional está ligado à proteção da liberdade de locomoção (CF, art. 5o, LXVIII). Logo, como o não pagamento de multa não mais autoriza sua conversão em pena privativa de liberdade (CP, art. 51, com redação determinada pela Lei n° 9.268/96), o instrumento adequado será o mandado de segurança. A propósito, diz a súmula n° 693 do STF que “não cabe habeas corpus contra decisão condenatória a pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada”. Na mesma linha, se, durante o trâmite de um habeas corpus, o juiz ou tribunal verificar que já cessou a violência ou coação ilegal, julgará prejudicado o pedido, nos termos do art. 659 do CPP. Em tal hipótese, a extinção do processo sem a apreciação do mérito se dará pelo desaparecimento superveniente do interesse de agir, porquanto teria deixado de existir ameaça à liberdade de locomoção. A utilidade, por sua vez, consiste na eficácia da atividade jurisdicional para satisfazer o interesse do autor. Só haverá utilidade se houver possibilidade de realização do jus puniendi estatal, com eventual aplicação da sanção penal adequada. 4.1.1.3.1. Prescrição em perspectiva e ausência de interesse de agir Ao tratarmos da condição da ação penal do interesse de agir, apresenta-se de vital impor­ tância o estudo da denominada prescrição em perspectiva, também conhecida como prescrição

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Com a Lei n9 9.099/95, discutiu-se se haveria ofensa ao citado princípio em virtude da possibilidade de o juiz aplicar, na fase preliminar, antes de ser formulada a acusação, pena de multa ou pena restritiva de direitos em face da proposta apresentada pelo Ministério Público e aceita pelo autor do fato (art. 76 e parágrafos). Para Scarance Fernandes, "não se trata, contudo, de imposição direta de pena. Utiliza-se de forma diversa da tradicional para a resolução da causa, sendo admitida a solução consensual em infrações de menor gravidade, privilegiando a vontade das partes e, prin­ cipalmente, do autor do fato que pretende evitar os dissabores do processo e o risco da condenação". (FERNANDES, Antônio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 144).

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M A N U A L DE P R O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lima

virtual ou prescrição da pena em perspectiva. Esta deve ser compreendida como o reconhecimento antecipado da prescrição, em virtude da constatação de que, no caso de possível condenação, eventual pena que venha a ser imposta ao acusado inevitavelmente será fulminada pela prescrição da pretensão punitiva retroativa, tomando inútil a instauração do processo penal. Imagine-se o seguinte exemplo: em data de 12 de maio de 2008, o Ministério Público tem vista de autos de inquérito policial relativo a suposto crime de furto simples ocorrido em 25 de outubro de 2005. A época do delito, o investigado era menor de 21 (vinte e um) anos, além de ser primário e portador de bons antecedentes. Nesse caso concreto, ainda não houve prescrição da pretensão punitiva abstrata. De fato, tal espécie de prescrição leva em consideração o máximo da pena cominada ao delito - no exemplo, 4 (quatro) anos de reclusão; considerando que o lapso prescricional seria de 8 (oito) anos, nos termos do art. 109, IV, do CP, contado pela metade - 4 (quatro) anos por se tratar de acusado menor de 21 (vinte e um) anos ao tempo do crime, resta evidente que não transcorreu lapso temporal superior a 4 (quatro) anos entre a data do crime - 25 de outubro de 2005 - e a data em que o Ministério Público teve vista dos autos (12 de maio de 2008). Porém, se ainda não ocorreu a prescrição da pretensão punitiva abstrata, já se pode visua­ lizar, no caso concreto, a presença da prescrição em perspectiva. O delito de furto simples tem pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos; tendo em conta que o acusado é primário, portador de bons antecedentes, mesmo antes de instaurado o processo penal, o Promotor de Justiça já pode visualizar que, se acaso proferida sentença condenatória, a pena a ser imposta ao acusado seria de 1 (um) ano. Pois bem, supondo-se que a pena imposta pelo juiz fosse de 1 (um) ano, dar-se-ia a prescrição da pretensão punitiva retroativa em 04 (quatro) anos, prazo este que é contado pela metade, logo, em 02 (dois) anos, por se tratar de acusado menor de 21 anos (CP, art. 115). Ora, entre a data do crime - 25 de outubro de 2005 - e a data em que o Ministério Público teve vista dos autos - 12 de maio de 2008 - já transcorreu lapso temporal superior a 02 (dois) anos. Portanto, o órgão ministerial já pode visualizar, antecipa­ damente, que o processo está fadado à prescrição da pretensão punitiva retroativa, porquanto, mesmo que o acusado seja condenado no futuro, haverá o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva retroativa.14 Em tal hipótese, o que deve fazer o Promotor de Justiça: oferecer denúncia ou requerer o arquivamento do inquérito policial? Requerendo o arquivamento do inquérito, qual deve ser o fundamento: extinção da punibilidade pelo advento da prescrição ou ausência de interesse de agir? A nosso ver, com a quantidade avassaladora de processos criminais que lotam os fóruns criminais, não faz sentido dar início a um processo penal fadado à prescrição. Em outras pala­ vras, qual seria a utilidade de um processo penal, com grande desperdício de atos processuais, de tempo, de trabalho humano, etc., se, antecipadamente, já se pode antever que não haverá resultado algum? Como já se pode visualizar que, fatalmente, a pena a ser aplicada acarretaria a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva retroativa, e, portanto, que a sentença penal condenatória seria ineficaz quanto aos seus efeitos penais e civis, pensamos que não há qualquer utilidade em tal demanda. Não se trata de requerer o arquivamento com base em causa extintiva da punibilidade, já que a prescrição em perspectiva não tem amparo legal. Cuida-se, sim, de requerer o arquivamento do inquérito policial com fundamento na ausência de interesse

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Vide abaixo comentário quanto à Lei ne 12.234/10.

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de agir, condição sine qua non para o regular exercício do direito de ação. Afinal, qual a utili­ dade de se levar adiante um processo penal em que já se pode visualizar, antecipadamente, a superveniência da prescrição? Se, porventura, o processo já estiver em andamento, e a prescrição em perspectiva for visualizada, também não faz qualquer sentido levar-se adiante o feito. Deve-se, pois, extinguir o processo sem a apreciação do mérito, aplicando-se subsidiariamente o quanto disposto no art. 485, VI, do novo CPC, ou anular o processo, com fundamento no art. 564, II, do CPP, aplicável por analogia, já que ausente uma das condições da ação - o interesse de agir. Apesar de o reconhecimento antecipado da prescrição ser uma rotina no dia-a-dia de fóruns criminais, contando com o respaldo de respeitada parte da doutrina processual penal, convém destacar que a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem se posicionado contrariamente a ela, sob o argumento de que referida espécie de prescrição não tem amparo no ordenamento jurídico pátrio, além de contrariar o princípio da presunção de não culpabilidade, já que parte do pressuposto de que o acusado será condenado ao final do processo. Nessa esteira, em Questão de Ordem em Repercussão Geral em Recurso Extraordinário, o Plenário do Supremo assim se manifestou quanto ao tema: “É inadmissível a extinção da punibilidade em virtude de prescrição da pretensão punitiva com base em previsão da pena que hipoteticamente seria aplicada, independentemente da existência ou sorte do processo criminal”.15 Com entendimento semelhante ao do Supremo Tribunal Federal, vale a pena prestar atenção ao enunciado da Súmula n° 438 do STJ: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”. Uma observação final deve ser feita quanto à prescrição em perspectiva: com o advento da Lei n° 12.234/10, será cada vez menos comum a sua aplicação. Explica-se: a Lei n° 12.234/10 revogou o § 2o do art. 110 do Código Penal, o qual que previa que a prescrição, depois da sen­ tença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regulava-se pela pena aplicada, podendo ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou queixa. Além disso, deu nova redação ao art. 110, § Io, do CP, que passou a dispor: “A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”. Como se vê, apesar de o art. Io da Lei n° 12.234/10 dizer que a mesma teve por objetivo excluir a prescrição retroativa, pôs-se fim apenas à prescrição da pretensão punitiva retroativa entre a data do fato e a data do recebimento da peça acusatória. Subsiste, todavia, a possibili­ dade de prescrição retroativa, levando-se em conta a pena aplicada, porém apenas no tocante ao lapso temporal compreendido entre a data do recebimento da denúncia ou queixa e a data da publicação de sentença condenatória recorrivel. Como, na grande maioria dos casos, a prescrição antecipada levava e leva em consideração a virtual prescrição da pretensão punitiva retroativa entre a data do fato delituoso e a data do recebimento da peça acusatória, haja vista a lentidão na conclusão de inquéritos policiais, é evi­ dente então que a Lei n° 12.234/10 também produzirá reflexos no reconhecimento da prescrição em perspectiva, cuja incidência tende a ser cada vez mais incomum.

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STF, Pleno, RE 602.527 RG-QO/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 19/11/2009, DJe 237 17/12/2009. Na mesma linha: STF, 2- Turma, RHC 86.950/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 07/02/2006, DJ 10/08/2006; STF, 2§ Turma, HC 94.729/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 02/09/2008, DJe 182 25/09/2008;

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De fato, em regra, ao receber os autos do inquérito policial, levando em conta o lapso temporal entre a data do fato delituoso e a data de eventual recebimento da peça acusatória, o Promotor de Justiça já se manifestava no sentido do arquivamento dos autos com base na ausência de interesse de agir (prescrição em perspectiva). Com o fim da possibilidade de se reconhecer a prescrição retroativa levando-se em conta termo inicial ao do recebimento da denúncia ou queixa (CP, art. 110, § Io, com redação dada pela Lei n° 12.234/10), significa dizer que a referida lei também produzirá reflexos quanto ao reconhecimento da prescrição antecipada. Porém, é bom que se advirta que, tratando-se de novatio legis in pejus, já que extingue hipótese de prescrição da pretensão punitiva, é evidente que a Lei n° 12.234/10 só se aplica aos crimes cometidos após a sua vigência (06 de maio de 2010). Portanto, aos crimes cometidos até o dia 5 de maio de 2010, ainda é possível o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva retroativa entre a data do fato delituoso e a data do recebimento da peça acusatória, assim como eventual reconhecimento da prescrição antecipada quanto a esse período. 4.1.1.4. Justa Causa Justa causa é o suporte probatório mínimo {probable cause) que deve lastrear toda e qual­ quer acusação penal. Tendo em vista que a simples instauração de um processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado, não se pode admitir a instauração de processos levianos, temerários, desprovidos de um lastro mínimo de elementos de informação, provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis, que dê arrimo à acusação. Em regra, esse lastro probatório é fornecido pelo inquérito policial, o que, no entanto, não impede que o titular da ação penal possa obtê-lo a partir de outras fontes de investigação. Aliás, como destaca o próprio art. 12 do CPP, os autos do inquérito policial deverão acompanhar a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra. Para que se possa dar início a um processo penal, então, há necessidade do denominado fumus comissi delicti, a ser entendido como a plausibilidade do direito de punir, ou seja, a plausibilidade de que se trate de um fato criminoso, constatada por meio de elementos de informação, provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, confirmando a presença de prova da materialidade e de indícios de autoria ou de participação em conduta típica, ilícita e culpável.16 Com a reforma processual de 2008, a expressão justa causa passou a constar expressamente do Código de Processo Penal. De acordo com o art. 395, inciso III, do CPP, com redação de­ terminada pela Lei n° 11.719/08, a denúncia ou queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal. A propósito, em caso concreto envolvendo suposto crime de assédio sexual praticado por Ministro do STJ em detrimento de servidora daquele Tribunal, concluiu o Supremo pela rejeição

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Para Maria Thereza Rocha de Assis Moura, o conceito de ju s ta causa é mais abrangente, já que a autora leva em consideração tanto aspectos materiais quanto processuais. Segundo ela, em sentido estrito, a justa causa pode ser conceituada "como sendo o conjunto de elementos de direito e de fato que tornam legítima a acusação. [...] Em outras palavras, no direito brasileiro, a justa causa corresponde ao fundamento da acusação. [...] Vista sob o ângulo positivo, é a presença de fundamento de fato e de direito para acusar, divisando mínima probabi­ lidade de condenação, na qual se baseia o juízo de acusação [...] Justa causa não se identifica com qualquer das condições da ação. A falta de uma delas conduz à falta de justa causa. Mas a recíproca não é verdadeira. A justa causa é mais do que uma condição [...] O ato que rejeita a imputação, sob o fundamento de falta de justa causa é, prevalentemente, de mérito, embora, por vezes, tenha caráter misto, quando não apenas processual". (Justa causa para a ação penal condenatória no direito brasileiro. 1997. 339 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, USP, São Paulo, p. 208).

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO

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da queixa crime sob o argumento de não haver justa causa para o exercício da ação penal, por­ quanto a acusação estava lastreada exclusivamente no relato da vítima. Segundo o Plenário do STF, para fins de recebimento da peça acusatória, há necessidade de que as alegações estejam minimamente embasadas em provas, ou, ao menos, indícios de efetiva ocorrência dos fatos. Não basta que a queixa-crime se limite a narrar fatos e circunstâncias criminosas que são atribuídas pela querelante ao querelado, sob o risco de se admitir a instauração de ação penal temerária, em desrespeito às regras do indiciamento e ao princípio da presunção de inocência.17 A instauração de um processo penal em virtude da prática de uma infração de menor po­ tencial ofensivo também demanda a presença de justa causa. De fato, a despeito de o rito dos Juizados ser pautado pelos critérios da oralidade, simplicidade e informalidade, a inicial acusa­ tória também deve vir acompanhada com o mínimo embasamento probatório, ou seja, com lastro probatório mínimo apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do ilícito penal, sob pena de rejeição da denúncia (ou da queixa), nos termos do art. 395, III, do CPP.18 Não há consenso na doutrina acerca da natureza jurídica da justa causa. Vejamos as diversas correntes acerca do assunto: a) justa causa como elemento integrante do interesse de agir: doutrinadores como Fre­ derico Marques, por exemplo, sustentam que ajusta causa se identifica com ofumus boni iuris, que caracteriza o legítimo interesse para a denúncia; b) justa causa como condição da ação penal autônoma: ao lado das demais condições da ação (legitimidade e interesse de agir) - lembre-se que a possibilidade jurídica do pedido perdeu esse status com a vigência do novo CPC -, a justa causa funciona como verdadeira condição para o regular exercício da ação penal condenatória. Nessa linha, como destaca Afrânio Silva Jardim, “toma-se necessário ao regular exercício da ação penal a demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que lastreada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade. Somente diante de todo este conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública”;19 c) justa causa como fenômeno distinto das condições da ação penal: como as condições da ação foram concebidas, inicialmente, com base nos três elementos da ação - partes (legiti­ midade ad causam), pedido (possibilidade jurídica do pedido), e causa de pedir (interesse de agir), revela-se inviável a transposição do conceito processual civilístico de condições da ação para justificar a verdadeira natureza jurídica da justa causa. Esse entendimento ganhou força com a reforma processual de 2008, já que, ao tratar das causas de rejeição da peça acusatória, o art. 395 do CPP distingue as “condições da ação” da “justa causa”, colocando-a em inciso diverso. O inciso II do art. 395 do CPP aponta como causa de rejeição da peça acusatória a falta das “condições para o exercício da ação penal”. O inciso III do art. 395, por sua vez, dis­ põe que a denúncia ou queixa deve ser rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal. Colocada em inciso diverso, fica a impressão de que o CPP considera a justa causa 17

STF, Pleno, Inq. 2.033/DF, Rei. Min. Nelson Jobim, j. 16/06/2004, DJ 17/12/2004.

18.

No sentido de que deve ser rejeitada a queixa-crime, oferecida antes de qualquer procedimento prévio, que imputa a prática de infração de menor potencial ofensivo com base apenas na versão do autor e na indicação de rol de testemunhas, desacompanhada de termo circunstanciado ou de qualquer outro documento hábil a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a autoria e materialidade do crime: STJ, 5ã Turma, RHC 61.822/DF, Rei. Min. Felix Fischer, j. 17/12/2015, DJe 25/02/2016.

19

JARDIM, Afrânio Silva. D ireito processual penal. 11a edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. p. 97.

230 :

M A N U A L DE PR O C E S S O PEN A L - Renato Brasileiro de Lim a

fenômeno distinto das condições da ação penal, que não se enquadraria nem no interesse de agir, nem poderia ser considerada uma terceira condição da ação penal, ao lado da legitimidade e do interesse de agir.20 De todo modo, independentemente da posição que se queira adotar, é fato que a presença da justa causa é indispensável para um juízo positivo de admissibilidade da peça acusatória. A previsão legal constante do inciso III do art. 395 do CPP sepultou, de uma vez por todas, qualquer discussão sobre a necessidade de o juiz analisar, quando do recebimento da acusação, se há (ou não) lastro probatório suficiente para a instauração do processo penal. Ausente o fumus comissi delicti, incumbe ao juiz rejeitar a peça acusatória. Não o fazendo, transforma-se em autoridade coatora para fins de impetração de habeas corpus - ou de mandado de segu­ rança, caso não haja cominação de pena privativa de liberdade - objetivando o trancamento do processo penal. 4.1.1.4.1. Justa Causa duplicada Em se tratando de crimes de lavagem de capitais, não basta demonstrar a presença de lastro probatório quanto à ocultação de bens, direitos ou valores, sendo indispensável que a denúncia também seja instruída com suporte probatório demonstrando que tais valores são provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal (Lei n° 9.613/98, art. Io, caput, com redação dada pela Lei n° 12.683/12). Tem-se aí o que a doutrina chama de justa causa duplicada, ou seja, lastro probatório mínimo quanto à lavagem e quanto à infração precedente. A propósito, o art. 2o, § Io, da Lei n° 9.613/98, estabelece que a denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente. Em conjunto com a denúncia, incumbe ao Ministério Público trazer indícios suficientes e seguros da ocorrência da infração antecedente, sob pena de inépcia da peça acusatória. A título de exemplo, já se reconheceu como indício suficiente para efeito do recebimento da denúncia o fato de o agente “ter apresentado um enorme descompasso entre os rendimentos declarados ao Fisco, e aqueles valores que transitaram por suas contas bancárias”.21 Da própria redação do dispositivo depreende-se que é suficiente a demonstração de indí­ cios suficientes da existência do crime antecedente,22 sendo desnecessária a indicação da sua

20

Para José Antônio Paganella Boschi {Ação penal: as fases adm inistrativa e ju d ic ia l da persecuçõo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 356), é tecnicamente incorreto relacionar, à luz do art. 395 e in­ cisos do CPP, a justa causa à inépcia, à falta de condições da ação, ou mesmo dos pressupostos processuais. Por sua vez, Marcellus Polastri Lima entende que a justa causa não é uma condição da ação, mas sim um requisito especial para recebimento da inicial, ou seja, uma condição de admissibilidade da denúncia ou queixa (M anual de processo penal. 2ã ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 154). Referindo-se à justa causa como pressuposto processual: STJ, 5a Turma, RHC 61.822/DF, Rei. Min. Felix Fischer, j. 17/12/2015, DJe 25/02/2016.

21

TRF-3.3, HC 2002.03.00.046017-0/MS, Rei. Juíza Ramza Tartuce, DJ 14.10.2003.

22

Em caso concreto em que indivíduos foram flagrados no aeroporto de Londrina, vindos de Foz do Iguaçu, na posse de aproximadamente US$ 500.000,00 (quinhentos mil dólares), o TRF da 4a Região entendeu que, em que pese a possibilidade de a denúncia por crime de lavagem estar apoiada em simples indícios da existência do crime conexo, havendo prisão em flagrante, não há como legitimar a manutenção da prisão sob o simples fundamento que os flagrados possam ter cometido algum delito abrangido pela Lei 9.613/98. Deve haver um mínimo de segurança sobre a materialidade do crime conexo para que o julgador possa determinar a custódia cautelar. Ausente a demonstração da origem do numerário e, portanto, sem que se possa aferir se tais valores são (ou não) provenientes de um dos crimes antecedentes listados no art. I s da Lei n5 9.613/98, e diante da possibilidade de se tratar de mera irregularidade administrativa, concedeu-se liberdade provisória aos agentes: TRF-4.ã Reg., HC 1998.04.01.073459-7, 2.a T„ rei. Tânia Terezinha Cardoso Escobar, DJ 17.02.1999.

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO

231

autoria. Portanto, a autoria ignorada ou desconhecida do crime antecedente não constitui óbice ao ajuizamento da ação pelo crime de lavagem. Mas qual é o verdadeiro significado da palavra “indício” nesse dispositivo? Seria necessária prova cabal da existência do crime antecedente? Na verdade, a palavra “indício” usada na Lei de Lavagem representa uma prova dotada de eficácia persuasiva atenuada (prova semiplena), não sendo apta, por si só, a estabelecer a verdade de um fato. Em outras palavras, no momento do recebimento da denúncia, é necessário um início de prova que indique a probabilidade de que os bens, direitos ou valores ocultados sejam provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Portanto, em sede de juízo de admissibilidade, não há necessidade de um juízo de certeza acerca da existência da infração pretérita.23 Nesse contexto, como já se pronunciou o Tribunal Regional Federal da 4a Região, não há necessidade de prova concreta da ocorrência da infração antecedente, bastando a existência de elementos indiciários de que o capital branqueado provenha de alguma conduta ilícita.24 Em sentido semelhante, em caso concreto apreciado pelo STJ, entendeu-se que não seria possível arguir a ausência de prova da infração antecedente praticada em outro país se havia, nos autos, depoimentos colhidos em juízo de um agente especial da Drug Enforcement Administration (DEA) - entidade estatal americana de repressão ao tráfico de drogas - e a companheira de chefe de cartel no exterior, comprovando a prática de tráfico internacional de drogas de organização criminosa da qual participava o acusado com destacada atuação.25 Não é necessário descrever pormenorizadamente a conduta delituosa relativa à infração antecedente, que pode inclusive sequer ser objeto desse processo (art. 2o, II, da Lei 9.613/98), mas se afigura indispensável ao menos a sua descrição resumida, evitando-se eventual arguição de inépcia da peça acusatória,26 ou até mesmo trancamento do processo por meio de habeas cor­ pus. Sem que haja indícios acerca da infração antecedente, deve o juiz rejeitar a peça acusatória, ante a inexistência de justa causa para a ação penal.27 4.1.2. À luz de uma teoria específica do processo penal Como dito anteriormente, há doutrinadores que entendem que, devido às especificidades do processo penal, não se pode admitir a importação das condições da ação do processo civil. É nesse sentido a lição de Aury Lopes Jr., para quem, diante da necessidade de se respeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal, deve-se buscar as condições da ação dentro do próprio processo penal, a partir da análise das causas de rejeição da acusação. Há de se partir, assim, do revogado art. 43 do CPP, a contrario sensu, de onde era (e ainda é) possível se extrair as seguintes condições da ação penal: a) prática de fato aparentemente criminoso; b) punibilidade concreta; c) legitimidade de parte; d) justa causa.28 23

Nessa linha: Maia, Rodolfo Tigre, Lavagem de dinheiro - lavagem de ativos provenientes de crime - Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 120.

24

TRF4, HC 2007.04.00.003551-3, 8.a T, rei. Paulo Afonso Brum Vaz, DE 11.04.2007.

25

STJ, 53 Turma, HC 128.590/PR, Rei. M in. Gilson Dipp, julgado em 15/02/2011.

26

Na dicção do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Denúncia - Crime de lavagem de dinheiro - Art. 13, § iej \t c/c o § 4e da Lei 9.613/98 - Inépcia - Admissibilidade - Vaga narrativa do fato típico - Não individualização das condutas inerentes à transformação do patrimônio ilícito em lícito - ordem concedida" (TJSP, 1.3 Câm. Crim., HC 278.695-3-SP, rei. Des. Andrade Cavalcanti, j. 22.03.1999).

27

STJ, RHC 14.575/MS, 6.3 1, rei. Min. Paulo Medina, DJ 06.12.2004, p. 364.

28

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Volume I. 3® ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 336. Segundo o autor, em que pese a revogação do art. 43 do CPP, as condições da ação penal permanecem inalteradas.

232

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Os conceitos de legitimidade de parte e justa causa, segundo essa visão específica das condições da ação processual penal, são semelhantes àqueles já trabalhados, para onde reme­ temos o leitor. Vejamos, então, o que se entende por prática de fato aparentemente criminoso e punibilidade concreta. 4.1.2.1. Prática de fato aparentemente criminoso O revogado art. 43, inciso I, do CPP, dispunha que a denúncia ou queixa deveria ser rejei­ tada quando o fato narrado evidentemente não constituísse crime. É desse dispositivo que parte da doutrina processual penal extraía (e continua a extrair) uma outra condição da ação penal: a prática de fato aparentemente criminoso, ou criminalidade aparente. Só se pode admitir o oferecimento de peça acusatória se a conduta delituosa atribuída ao acusado for, em tese, típica, ilícita e culpável. Se da própria peça acusatória já se pode constatar a ausência de um dos elementos do conceito analítico de crime - tipicidade, ilicitude e culpabi­ lidade -, independentemente de qualquer dilação probatória, não se pode admitir a instauração de um processo penal contra alguém. Portanto, da mesma forma que o Promotor de Justiça pode requerer o arquivamento do in­ quérito policial com base em excludente da ilicitude, quando, por exemplo, estiver convencido de que o investigado agiu sob o manto da legítima defesa, também não se admite que o juiz possa dar início a um processo penal se já visualiza a presença manifesta de causa justificante ou exculpante. Ressalva especial, todavia, deve ser feita quanto à hipótese do inimputável do art. 26, caput, do Código Penal. Isso porque o ordenamento jurídico reserva a ele a imposição de medida de segurança (internação e tratamento ambulatorial), a qual só pode ser imposta ao final do processo, por meio de sentença absolutória imprópria, nos termos do art. 386, parágrafo único, inciso III, e do art. 492, II, alínea “c”, ambos do Código de Processo Penal. Considerando-se, então, a prática de fato aparentemente criminoso como condição da ação processual penal, diante de sua ausência, deve o juiz rejeitar de plano a peça acusatória, com fundamento no art. 395, inciso II, do CPP. Nessa hipótese, como há efetiva análise do mérito da acusação, já que o juiz analisa a tipicidade, ilicitude e culpabilidade da conduta do agente, a decisão de rejeição fará coisa julgada formal e material. Mas como se diferenciar a rejeição da peça acusatória com base na ausência dessa primeira condição e a possibilidade de absolvição sumária prevista no art. 397 do CPP? Na verdade, se a atipicidade, descriminante ou exculpante estiver demonstrada no momento em que é oferecida a denúncia ou queixa, deve o juiz rejeitar a peça acusatória, com fundamento no art. 395, II, do CPP, porquanto ausente uma das condições da ação penal - a prática de fato aparentemente criminoso. Se, todavia, a convicção do juiz sobre a atipicidade, presença de causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade, salvo inimputabilidade, ou causa extintiva da punibilidade, somente for atingida após a resposta à acusação (CPP, art. 396-A), com anterior recebimento da peça acusatória, deve o juiz absolver sumariamente o acusado, nos exatos termos do art. 397 do CPP.29 4.1.2.2. Punibilidade concreta O revogado art. 43, inciso II, do CPP, dispunha que a denúncia ou queixa deveria ser rejeitada quando já estivesse extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa. É desse

29

Na mesma linha: LOPES JR., Aury. D ireito Processual Penal e sua Conform idade Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 392.

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO

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dispositivo que parte da doutrina processual penal extraía (e continua a extrair) uma segunda condição da ação penal: a punibilidade concreta. Portanto, quando houver prova da extinção da punibilidade, ou ausência do implemento de condição objetiva de punibilidade, deve o juiz rejeitar a peça acusatória. Novamente, para que se possa diferenciar a rejeição da peça acusatória com base na ausência de punibilidade concreta e a hipótese de absolvição sumária prevista no art. 397, IV, do CPP, há se verificar em qual momento o juiz adquiriu a convicção acerca da presença da causa extintiva da punibilidade. Em outras palavras, se o magistrado formou sua convicção acerca da presença de uma causa extintiva da punibilidade por ocasião do oferecimento da peça acusatória, verificando o juiz, por exemplo, que o ofendido teria decaído do direito de queixa, já que a ofereceu nove meses após saber quem seria o autor do crime, deve rejeitar a exordial acusatória, com fundamento no art. 395, inciso II, do CPP, hipótese em que referida decisão fará coisa julgada formal e material. Se, no entanto, se convencer da presença de causa extintiva da punibilidade somente após o recebimento da peça acusatória, a citação do acusado e a apresentação de sua resposta à acusação, o caminho natural será a absolvição sumária, com base no art. 397, inciso IV, do CPP, que também fará coisa julgada formal e material. 4.2. Condições específicas da ação penal Para além das condições genéricas da ação penal, cuja presença é obrigatória em todo e qualquer processo penal, há determinadas situações em que a lei condiciona o exercício do di­ reito de ação ao preenchimento de certas condições específicas. Sua presença também deve ser aferida pelo magistrado por ocasião do juízo de admissibilidade da peça acusatória, impondo-se a rejeição da denúncia ou da queixa, caso verificada a ausência de uma delas (CPP, art. 395, II). Caso a ausência de uma dessas condições específicas não seja detectada nesse momento, nada impede que o magistrado anule o processo ab initio, com fundamento no art. 564, III, “a”, do CPP, aplicável por analogia, ou, ainda, que declare a extinção do processo sem apreciação do mérito, ex vi do art. 485, VI, do novo CPC, aplicável por analogia, já que tal dispositivo refere-se apenas à ausência de legitimidade ou de interesse processual. São vários os exemplos de condições específicas da ação penal: a) Representação do ofendido, nos crimes de ação penal pública condicionada à represen­ tação. É o que ocorre, por exemplo, com o delito de ameaça (CP, art. 147, parágrafo único); b) Requisição do Ministro da Justiça, nos crimes de ação penal pública condicionada à requisição. Cite-se, a título de exemplo de crime que depende de requisição, os crimes contra a honra do Presidente da República (CP, art. 145, parágrafo único); c) Provas novas, quando o inquérito policial tiver sido arquivado com base na ausência de elementos probatórios: como vimos no capítulo referente à investigação preliminar, de acordo com a súmula n° 524 do Supremo, “arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas”. Como se vê, arquivado o inquérito por falta de elementos probatórios, o surgimento de provas novas, capazes de alterar o contexto probatório dentro do qual foi proferida a decisão de arquivamento, funciona como verdadeira condição específica da ação penal, já que, sem elas, o processo não poderá ter início.30 d) Provas novas, após a preclusão da decisão de impronúncia, em se tratando de crimes dolosos contra a vida: de acordo com o art. 414 do CPP, não se convencendo da materialidade 30

STJ, 6^ Turma, HC 46.409/DF, Rei. Min. Paulo Gallotti, j. 29/06/2006, DJ 27/11/2006 p. 320.

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do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado. Essa decisão de impronúncia não faz coisa julgada material. De fato, segundo o próprio parágrafo único do art. 414 do CPP, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa, se houver prova nova. Perceba-se que, nos mesmos moldes que o arquivamento por falta de provas, caso o acusado tenha sido anterior­ mente impronunciado, o oferecimento de nova denúncia em relação a ele está condicionado ao surgimento de provas novas, capazes de produzir alteração do contexto probatório dentro do qual foi proferida a impronúncia; e) Laudo pericial nos crimes contra a propriedade imaterial: de acordo com o art. 525 do CPP, no caso de haver o crime deixado vestígio, a queixa ou a denúncia não será recebida se não for instruída com o exame pericial dos objetos que constituam o corpo de delito; f) autorização da Câmara dos Deputados, por dois terços de seus membros, para a ins­ tauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado (CF, art. 51,1);31 g) qualidade de militar da ativa regular, nos crimes militares de deserção: quando a praça sem estabilidade (v.g., soldado no período do serviço militar obrigatório) pratica o crime militar de deserção, ela é excluída das Forças Armadas; quando é capturada ou se apresenta volunta­ riamente, é submetida à inspeção de saúde. Sendo considerada apta, será reincluída ao serviço ativo das Forças Armadas, reinclusão esta que funciona como condição de procedibilidade em relação ao crime de deserção, tal qual preceitua o art. 457, §§ Io, 2o e 3o, do CPPM. Nessa linha, aliás, segundo a súmula n° 12 do STM, “a praça sem estabilidade não pode ser denunciada por deserção sem ter readquirido o status de militar, condição de procedibilidade para a persecutio criminis, através da reinclusão. Para a praça estável, a condição de procedibilidade é a reversão ao serviço ativo”. Em relação ao crime de deserção, essa condição de militar da ativa deve estar presente não só quando do oferecimento da peça acusatória, como também durante todo o curso do processo de conhecimento. Portanto, a perda do status de militar, em razão do fato de haver sido considerado temporariamente incapaz para o serviço militar, antes do trânsito em julgado de eventual sentença condenatória, impede o prosseguimento do feito. Em outras palavras, so­ mente a capacidade plena para o serviço ativo permite a reinclusão do militar e a continuidade do processo, a teor do enunciado n° 8 do STM (“O desertor sem estabilidade e o insubmisso que, por apresentação voluntária ou em razão de captura, forem julgados em inspeção de saúde para fins de reinclusão ou incorporação, incapazes para o Serviço Militar, podem ser isentos do processo, após o pronunciamento do representante do Ministério Público”).32 h) trânsito em julgado da sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casa­ mento, nos crimes de induzimento a erro essencial e de ocultação de impedimento de casamento (CP, art. 236, parágrafo único);33

31

Na visão do STF, esta condição de procedibilidade do art. 51,1, da CF, não se estende, por simetria, a governa­ dores de estado. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao tópico atinente à com petência p o r prerro gativa de função.

32

No sentido de que a perda da condição de militar por conta de incapacidade antes do julgamento de apelação impede a continuidade do processo: STF, I s Turma, HC 90.838/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 14/10/2008, DJe 94 21/05/2009.

33

No sentido de que o trânsito em julgado da sentença tem natureza jurídica de condição específica da ação penal: Mirabete (op. cit. p. 93), Feitoza (op. cit. p. 261) e Pacelli (op. cit. p. 100).

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL EAÇÃO CIVIL EX DELICTO

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4.3. Condições da ação e condições de prosseguibilidade (condição superveniente da ação) Condições da ação não se confundem com condições de prosseguibilidade. Condição da ação (ou de procedibilidade) é uma condição que deve estar presente para que o processo penal possa ter início. A título de exemplo, verificando-se a prática de crime de lesão corporal leve ocorrido em data de 20 de janeiro de 2010, temos que a representação é uma condição de pro­ cedibilidade, porquanto, sem o seu implemento, não será possível o oferecimento de denúncia em face do suposto autor do delito, já que o art. 88 da Lei n° 9.099/95 dispõe que o crime de lesão corporal leve depende de representação. Condição de prosseguibilidade (ou condição superveniente da ação) é uma condição neces­ sária para o prosseguimento do processo. Em outras palavras, o processo já está em andamento e uma condição deve ser implementada para que o processo possa seguir seu curso normal. Exem­ plo interessante é aquele constante do art. 152, caput, do CPP. De acordo com tal dispositivo, se se verificar que a doença mental do acusado sobreveio à infração, o processo permanecerá suspenso até que o acusado se restabeleça. Como se percebe, a necessidade de o agente recobrar sua higidez mental no caso de insanidade superveniente é uma condição de prosseguibilidade do processo; sem o seu implemento, o processo fica paralisado, com a prescrição correndo normalmente, o que é denominado pela doutrina de crise de instância. Outro exemplo de condição de prosseguibilidade foi introduzido pela Lei dos Juizados Es­ peciais Criminais. Como se sabe, com a entrada em vigor da Lei n° 9.099/95, os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa, que antes eram de ação penal pública incondicionada, passaram a depender de representação, por força do art. 88. Mas e quanto aos processos que já estavam em andamento? Haveria necessidade do oferecimento de representação? De acordo com o art. 91 da própria Lei n° 9.099/95, nos casos em que a Lei dos Juizados passou a exigir representação para a propositura da ação penal pública (leia-se: lesão leve e culposa), o ofendido ou seu representante legal teve que ser intimado para oferecê-la no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência. Como se percebe, referida lei também impôs o im­ plemento da representação para os processos que já estavam em andamento, sem a qual haveria decadência e conseqüente impossibilidade de prosseguimento do processo. Portanto, quanto à representação na Lei n° 9.099/95, pode-se dizer o seguinte: quanto aos processos penais que ainda não tinham tido início quando da entrada em vigor da referida lei, a representação funcionou como condição de procedibilidade nos crimes de lesão corporal leve e de lesão corporal culposa (art. 88); quanto aos processos penais atinentes aos crimes de lesão corporal leve e de lesão corporal culposa que já estavam em andamento quando da vigência da Lei n° 9.099/95 (27/09/95), a representação funcionou como condição de prosseguibilidade. 4.4. Condições da ação, condições objetivas de punibilidade e escusas absolutórias Há situações em que, por questões de política criminal, a punibilidade fica na dependência do aperfeiçoamento de elementos ou circunstâncias não encontradas na descrição típica do crime e exteriores à conduta. São as denominadas condições objetivas de punibilidade, as quais não se confundem com as condições da ação. As condições da ação estão relacionadas ao direito processual penal, sendo exigidas para o exercício regular do direito de ação, subdividindo-se em condições genéricas e específicas. De seu turno, as condições objetivas de punibilidade referem-se ao direito penal, funcio­ nando como fatos externos ao tipo penal, que devem ocorrer para a formação de um injusto culpável punível, sendo chamadas de objetivas porquanto independem do dolo ou da culpa do

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agente. Constitui-se a condição objetiva de punibilidade em acontecimento futuro e incerto, localizada entre o preceito primário e secundário da norma penal incriminadora, condicionando a existência da pretensão punitiva do Estado. São condições exigidas pelo legislador para que o fato se tome punível e que estão fora do injusto penal. As condições da ação também diferem das condições objetivas de punibilidade no que tange à conseqüência de sua ausência: se não estiver presente uma condição de procedibilidade, ocorre a anulação do processo e não a absolvição do agente, pois não há, em regra, analise do mérito, ou seja, nada impede a renovação do processo, desde que seja removido o impedimento processual. Em outras palavras, tal decisão só faz coisa julgada formal. Por outro lado, a ausência de uma condição objetiva de punibilidade impede o início da persecução criminal; porém, proposta a ação penal, haverá decisão de mérito e, portanto, formação de coisa julgada formal e material. Exemplo de condição objetiva de punibilidade é a sentença declaratória da falência. Na vigência da lei antiga, tratava-se de condição de procedibilidade. Porém, de acordo com o art. 180 da Lei n° 11.101/05, a sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial de que trata o art. 163 desta Lei é condição objetiva de punibilidade das infrações descritas na referida lei.34 Outros exemplos de condições objetivas de punibilidade são a circunstância do fato ser punível no país em que foi praticado e estar incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição nos crimes praticados fora do território nacional (CP, art. 7o, § 2o, “b” e “c”), assim como a decisão final do procedimento administrativo nos crimes materiais contra a ordem tributária, objeto de análise no tópico seguinte. As condições objetivas de punibilidade também não se confundem com as escusas absolutórias. Apesar de também funcionarem como condições de punibilidade do delito, as escusas absolutórias são condições de punibilidade negativamente formuladas, excluindo a punibilidade do crime em relação a determinadas pessoas, como, por exemplo, nas hipóteses de isenção de pena previstas nos arts. 181, incisos I e II,35 e 348, § 2o, ambos do CP, imunidades referentes a crimes contra o patrimônio e de favorecimento real, respectivamente. A despeito da presença de todos os elementos constitutivos da infração penal - tipicidade, ilicitude e culpabilidade -, isenta-se o acusado de pena por razões de política criminal. Grosso modo, há várias diferenças entre as escusas absolutórias e as condições objetivas de punibilidade: a) as primeiras antecipam-se ao momento consumativo da infração, ou seja, excluem a imposição da pena desde o começo, enquanto as últimas são eventos futuros e in­ certos; b) as primeiras são formuladas de maneira negativa, representando condições negativas de punibilidade do delito, visto que sua presença afasta a punibilidade do ilícito; as segundas se apresentam de modo positivo, ou seja, sua presença autoriza a punibilidade do crime; c) as escusas absolutórias não se comunicam aos eventuais coautores e partícipes, não detentores das

34

Não obstante o teor do art. 180 da Lei n9 11.101/05, Vicente Greco Filho entende que a sentença declaratória da fa­ lência é uma elementar do tipo penal falimentar. De acordo com o autor, "se falta a sentença antes da denúncia, esta não pode ser oferecida porque é impossível ação penal sobre fato atípico. Se a sentença desaparece, em virtude de rescisão, durante a ação penal, esta será extinta porque o pedido tornou-se juridicamente impossível dada a atipicidade do fato. Finalmente, se a rescisão ocorre depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, esta desaparece como se nunca tivesse existido, porque ficou constatado, ainda que a posteriori, que o fato era atípico", (op. cit. p. 109).

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Na visão da 6ã Turma do STJ, nos casos de ato infracional equiparado a crime contra o patrimônio, é possível que o adolescente seja beneficiado pela escusa absolutória prevista no art. 181, II, do CP. Não há razoabilidade no contexto em que é prevista imunidade absoluta ao sujeito maior de 18 anos que pratique crime em detrimento do patrimônio de seu ascendente, mas no qual seria permitida a aplicação de medida socioeducativa, diante da mesma situação fática, ao adolescente (STJ, 6a Turma, HC 251.681/PR, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 03/10/2013).

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características personalíssimas fixadas em lei, já que são causas pessoais de isenção de pena, ao passo que as condições objetivas de punibilidade, quando ausentes, impossibilitam a punição dos coautores e partícipes.36 4.4.1. Decisão final do procedimento administrativo nos crimes materiais contra a ordem tributária Tema que sempre provocou - e continua a provocar - acirrada discussão na doutrina e na jurisprudência diz respeito à relação existente entre a persecução criminal pela prática de crimes materiais contra a ordem tributária e a decisão final do procedimento administrativo de lançamento. Essa polêmica ganhou reforço com a entrada em vigor do art. 83 da Lei n° 9.430/96. Em sua redação original, o art. 83 da Lei n° 9.430/96 dispunha que a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. Io e 2o da Lei n° 8.137/90 seria encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.37Por conta desse dispositivo legal, houve quem sustentasse que referido dispositivo teria criado uma condição específica da ação penal em relação a tais delitos. Logo, a atuação do Ministério Público estaria condicionada à decisão final do fisco. Em virtude da controvérsia, foi ajuizada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo (ADI n° 1.571), de cujo julgamento podem ser extraídas as seguintes conclusões: a) o art. 83 da Lei n° 9.430/96 não criou condição de procedibilidade da ação penal por delito tributário; b) o art. 83 da Lei n° 9.430/96 rege atos da administração fazendária, prevendo o momento em que as autoridades competentes da área da administração federal devem encaminhar ao Ministério Público expedientes contendo notitia criminis acerca de delitos contra a ordem tributária descritos nos arts. Io e 2o da Lei n° 8.137/90; c) o Ministério Público pode, entretanto, oferecer denúncia independen­ temente da comunicação, dita “representação tributária”, se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo, já que se trata de crime de ação penal pública incondicionada.38 Se o Supremo entende que não se trata de condição específica da ação penal, indaga-se: qual é a natureza jurídica da decisão final do procedimento administrativo de lançamento em relação a tais delitos? Uma corrente minoritária entende que o Ministério Público não está obrigado a aguardar o prévio exaurimento da via administrativa para oferecer a denúncia. Todavia, a apuração da existência do tributo em processo administrativo constitui questão prejudicial heterogênea (CPP, art. 93), levando à suspensão do processo. Assim, uma vez oferecida a denúncia, poderá o juiz suspender o curso do processo penal, bem como o curso do prazo prescricional com base no art. 93 do CPP, a fim de que, no procedimento administrativo fiscal, se apure a existência de tributos reduzidos ou suprimidos.39 36

37

Com esse entendimento: FERRO, Ana Luiza Almeida. Escusas absolutórias no Direito Penal: doutrina e jurispru­ dência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 24. No mesmo contexto: MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18ã ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 92. O art. 83 da Lei ne 9.430/96 teve sua redação alterada pela Lei ns 12.350/10, passando a ter, atualmente, a seguinte redação: "A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. I 9 e 2a da Lei n9 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei n9 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente".

38

STF, Tribunal Pleno, ADI 1.571/UF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 10/12/2003, DJ 30/04/2004.

39

É nesse sentido a posição de Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de processo penal. 11§ ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 104.

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Uma segunda corrente entende que, tratando-se de crime material contra a ordem tributária, ou seja, crime tributário que depende da produção de um resultado (supressão ou redução de tributo ou contribuições sociais), a decisão final no procedimento administrativo de lançamento funciona como elementar do referido delito. Em outras palavras, a existência ou não de supressão ou redução de tributos ou contribuições, a ser decidida no procedimento fiscal, é elementar do tipo, estando ligada à própria tipicidade da conduta delituosa. Por fim, uma terceira corrente (majoritária) sustenta que a decisão final do procedimento administrativo de lançamento funciona como condição objetiva de punibilidade nos crimes ma­ teriais contra a ordem tributária. Ou seja, cuida-se de evento futuro e incerto, cujo implemento é condição sine qua non para a deflagração da persecução penal. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83 da Lei n° 9.430/96, o STJ já afirmou por várias vezes que a condição ali existente é condição objetiva de punibilidade. Consequentemente, a ação penal pressupõe haja decisão final sobre a exigência do crédito tributário correspondente.40 De modo a pôr fim à controvérsia, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante n° 24, segundo a qual “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. Io, incisos I a IV, da Lei n° 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. À primeira vista, ao dizer “não se tipifica”, a súmula vinculante deixa a impressão de que a decisão final do procedimento administrativo de lançamento funcionaria como elementar do referido delito. Não se trata, todavia, da posição prevalente no Supremo. Antes da edição da referida súmula, e mesmo depois, os Tribunais Superiores mantêm o entendimento de que o prévio exaurimento da via administrativa é condição objetiva de punibilidade, não havendo que se falar, antes dele, em possibilidade de deflagração dapersecutio criminis contra o suposto autor do fato delituoso, haja vista que, somente após a decisão final do procedimento administrativo fiscal é que será considerado lançado, definitivamente, o referido crédito.41 Portanto, embora a denúncia do Ministério Público não esteja condicionada à representação da autoridade fiscal (ADI 1.571), já que se trata de crime de ação penal pública incondicionada, enquanto não houver o lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo ad­ ministrativo, o Estado não pode dar início à persecução penal em relação aos crimes materiais contra a ordem tributária. Todavia, enquanto durar, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.42 A exigência de conclusão do procedimento administrativo de lançamento diz respeito ape­ nas ao crédito tributário, e não a cada um dos acusados. Logo, diante da conclusão do procedi­ mento administrativo fiscal em relação ao crédito tributário que, por meio de pessoa jurídica, teria ocorrido o delito de sonegação, há lastro para a promoção da ação penal. Portanto, não é

40

STJ, 6ã Turma, HC 54.248/PB, Rei. Min. Nilson Naves, j. 21/11/2006, DJ 25/06/2007 p. 303.

41

No sentido de que o lançamento definitivo do crédito tributário é condição objetiva de punibilidade nos crimes contra a ordem tributária: STJ, Corte Especial, Apn 449/AM, Rei. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 21/11/2007, DJ 06/12/2007, p. 286. Na mesma linha: STJ, 59 Turma, HC 77.424/RJ, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 21/08/2008, DJe 22/09/2008; STF, 2* Turma, HC 86.032/RS, Rei. Min. Celso de Mello, j. 04/09/2007, DJe 107 12/06/2008. Para a 5- Turma do STJ, também não há justa causa para o processo penal pelo crime de descaminho (CP, art. 334) quando o crédito tributário ainda não estiver devidamente constituído: STJ, 5ã Turma, RHC 31.368/PR, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 08/05/2012. Em sentido contrário, referindo-se ao lançamento definitivo como elementar do tipo e, portanto, produzindo a atipicidade da conduta delituosa quando não implementada a decisão definitiva: STF, 2a Turma, HC 101.900/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 21/09/2010, Informativo n9 601 do Supremo.

42

Com esse raciocínio: STF, Tribunal Pleno, HC 81,611/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10/12/2003, DJ 13/05/2005.

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necessário que se promova, em relação a cada um dos corréus, na qualidade de pessoas físicas, procedimento administrativo.43 Destarte, se a decisão definitiva do procedimento administrativo de lançamento é condição objetiva de punibilidade, ou mesmo que a tratemos como elementar do delito, é certo que, en­ quanto não se concluir, perante o órgão competente da administração tributária, o procedimento fiscal tendente a constituir, de modo definitivo, o crédito tributário, será inviável a instauração de persecução penal contra o suposto autor do delito, seja na fase pré-processual (investigação preliminar),44 seja na fase processual (persecutio criminis in judicio). Havendo a instauração de inquérito policial, e desde que ao delito investigado seja confi­ nada pena privativa de liberdade, entendem os Tribunais que haverá manifesto constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, já que estaria sendo instaurado procedimento investigatório para a apuração de fato que pressupõe, para a punibilidade, o lançamento definitivo na esfera administrativa, sendo cabível, portanto, seu trancamento por meio de habeas corpus. Na mesma ordem, se instaurado processo penal sem que tenha havido o lançamento definitivo, também será possível o trancamento do feito por meio de habeas corpus.45 No entanto, se, a despeito da ausência de constituição definitiva do crédito tributário à época em que recebida a denúncia, por estar pendente de conclusão o procedimento administrativo-fiscal, houver a constituição definitiva do crédito tributário no curso do processo, com posterior prolação de sentença condenatória, não é mais possível o trancamento do processo.46 Esse trancamento do inquérito policial por ausência de lançamento definitivo abrange não só o crime material contra a ordem tributária, como também eventual delito que tenha funcio­ nado como meio para sua prática. Em caso concreto apreciado pelo Supremo, em que cidadão domiciliado no Estado de São Paulo teria obtido o licenciamento de seu veículo no Estado do Paraná de modo supostamente fraudulento - indicação de endereço falso -, com o fim de pagar menos tributo, haja vista que a alíquota do IPVA seria menor, entendeu-se que o crime defalsum teria constituído meio para o cometimento do delito-fim (Lei n° 8.137/90, art. Io), resolvendo-se o conflito aparente de normas pela aplicação do postulado da consunção, de tal modo que a vinculação entre a falsidade ideológica e a sonegação fiscal permitiria reconhecer, em referido contexto, a preponderância do delito contra a ordem tributária. Logo, afastada a caracterização 43

STJ, 69 Turma, HC 86.309/MS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 08/02/2011, DJe 28/02/2011.

44.

No sentido de não ser possível a instauração de inquérito policial para apurar a prática do crime previsto no art. I 9 da Lei n9 8.137/90 enquanto não houver lançamento definitivo do tributo: STJ, 69 Turma, AgRg no REsp 717.291/PR, Rei. Min. Haroldo Rodrigues - Desembargador convocado do TJ/CE -, j. 14/09/2010, DJe 25/10/2010. No mesmo sentido: STF, 29 Turma, HC 90.957/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, j. 11/09/2007, DJe 126 18/10/2007. Em sentido diverso, concluindo que a inexistência do lançamento tributário definitivo não é óbice à deflagração das investiga­ ções preliminares: STF, l 9 Turma, HC 106.152/MS, Rei. Min. Rosa Weber, j. 29/03/2016, DJe 106 23/05/2016.

45

Nessa linha: STF, l 9 Turma, HC 88.994/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 28/11/2006, DJ19/12/2006. Etambém: STF, l 9 Turma, HC 88.657 AgR/ES, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13/06/2006, DJ 10/08/2006. No sentido do tran­ camento de processo penal em curso pela prática de crime material contra a ordem tributária (Lei n9 8.137/90, art. I 9), porquanto ausente o lançamento definitivo do crédito tributário, sem o qual é inviável a execução de qualquer ato investigatório ou persecutório judicial: STF, I a Turma, HC 97.118/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23/03/2010, DJe 71 22/04/2010.

46

Nessa linha: STF, l 9 Turma, HC 108.037/ES, Rei. Min. Marco Aurélio, 29/11/2011. Em sentido diverso, a 29 Turma do Supremo entende que tal vício não é passível de convalidação. Por isso, deferiu habeas corpus para deter­ minar, por ausência de justa causa, o trancamento de processo penal deflagrado durante pendência de recurso administrativo fiscal do contribuinte. Entendeu-se que, conquanto a denúncia tenha sido aditada após a inclusão do tributo na dívida ativa, inclusive com nova citação dos acusados, o vício processual não seria passível de convalidação, visto que a inicial acusatória fundara-se em fato destituído, à época, de tipicidade penal: STF, 29 Turma, HC 100.333/SP, Rei. Min. Ayres Britto, 21/06/2011.

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da falsidade ideológica, concluiu-se que, enquanto não encerrada, na instância fiscal, o respectivo procedimento administrativo, não se mostraria possível a instauração da persecução penal nos delitos contra a ordem tributária tipificados no art. Io da Lei 8.137/90.47 Como dito acima, esse trancamento do inquérito policial ou do processo penal por meio de habeas corpus por falta de condição objetiva de punibilidade (lançamento definitivo) será possível apenas em relação ao crime material contra a ordem tributária (ou de eventual crime-meio), do que se conclui que a persecução criminal em relação a crimes autônomos será preservada. Aliás, em precedente do Supremo, entendeu-se que, a depender das peculiaridades do caso concreto, é viável a instauração de inquérito policial mesmo antes do encerramento do procedimento administrativo-fiscal, quando a investigação se mostrar imprescindível para viabilizar a fiscalização. No caso concreto, diante da recusa da empresa em fornecer docu­ mentos indispensáveis à fiscalização da Fazenda estadual, tomou-se necessária a instauração de inquérito policial para formalizar e instrumentalizar o pedido de quebra do sigilo bancário, diligência imprescindível para a conclusão da fiscalização e, consequentemente, para a apuração de eventual débito tributário.48 Convém ressaltar que a decisão final do procedimento administrativo de lançamento fun­ ciona como condição objetiva de punibilidade nos crimes materiais contra a ordem tributária, ou seja, crimes cuja consumação está condicionada à produção de um resultado, tal como ocorre em relação àqueles definidos no art. Io da Lei n° 8.137/90, já que o caput do referido dispositivo é bem claro ao dizer que constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, contribuição social e qualquer acessório, mediante as condutas ali descritas. Logo, se os delitos previstos no art. Io da Lei 8.137/90 são de natureza material, exigem, para a sua tipificação, a constituição definitiva do crédito tributário para o desencadeamento da ação penal.49

47

STF, 2ã Turma, HC 101.900/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 21/09/2010, Informativo ne 601 do Supremo. Por força do princípio da consunção, o STJ também entende que o crime de sonegação fiscal absorve o de falsidade ideológica e o de uso de documento falso praticados posteriormente àquele unicamente para assegurar a evasão fiscal: STJ, 3ã Seção, EREsp 1.154.361/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 26/2/2014.

48

STF, 2§ Turma, HC 95.443/SC, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 02/02/2010, DJe 3018/02/2010. No sentido da possibilidade de continuidade da persecução penal em relação aos crimes autônomos de lavagem de capitais e de evasão de divisas: STJ, 65 Turma, HC 133.274/RJ, Rei. Min. Celso Limongi, j. 15/04/2010, DJe 31/05/2010. Com o entendi­ mento de que, na hipótese de a imputação versar não apenas sobre sonegação de tributos, mas também sobre outros delitos, tais como falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, com frustração de direitos trabalhistas, haverá justa causa para a deflagração da persecução penal independentemente do suposto crédito tributário ainda pender de lançamento definitivo: STF, l ã Turma, HC 96.324/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 14/06/2011, DJe 157 16/08/2011. No sentido de que não há nulidade na decretação de medidas investigatórias para apurar crimes autônomos conexos (v.g., formação de quadrilha e falsidade ideológica) ao crime de sonegação fiscal quando o crédito tributário ainda pende de lançamento definitivo: STJ, 55 Turma, HC 148.829/ RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 21/08/2012.

49

O STJ já firmou o entendimento de que o delito de supressão ou redução de tributo é material (art. 12 da Lei ng 8.137/1990), consumando-se, portanto, no momento da efetiva supressão ou redução consubstanciadas na vantagem auferida ou no prejuízo causado com a evasão tributária. Por sua vez, o delito previsto no parágrafo único do referido dispositivo (de descumprir exigência da autoridade fazendária) também tem essa natureza. Portanto, para sua configuração, é necessário que haja a redução ou supressão de tributo tal qual definido no caput daquele artigo: STJ, 65 Turma, REsp 1.113.460/SP, Rei. Min.Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ-SP -, j. 24/11/2009, DJe 14/12/2009. Para os Tribunais Superiores, o crime de apropriação indébita previdenciária (CP, art. 168-A) também tem natureza material, cuja consumação pressupõe, portanto, a realização do lançamento tributário definitivo. Logo, como a decisão cível acerca da exigibilidade do crédito tributário reper­ cute diretamente no reconhecimento da própria existência do tipo penal, é de se concluir que a prescrição da pretensão punitiva em relação a tal delito permanecerá suspensa enquanto a exigibilidade do crédito tributário estiver suspensa em razão de eventual decisão de antecipação dos efeitos da tutela no juízo cível. Nesse sentido: STJ, 55 Turma, RHC 51.596/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 3/2/2015, DJe 24/2/2015.

TÍTULO 3 • A Ç Ã O PEN A L E A Ç Ã O CIVIL EX DELICTO

241

Todavia, na hipótese de crime formal contra a ordem tributária (v.g., Lei n° 8.137/90, art. 2o, I), a conclusão do procedimento administrativo é desnecessária para a persecução penal. É o que acontece, por exemplo, com o crime do art. 2o, inc. I, da Lei 8.137/90, o qual é formal, e, portanto, independe da consumação do resultado naturalístico correspondente à auferição de vantagem ilícita em desfavor do Fisco, bastando a omissão de informações ou a prestação de declaração falsa, não demandando a efetiva percepção material do ardil aplicado. Portanto, nesse caso, a conclusão do procedimento administrativo é dispensável para configurar a justa causa legitimadora da persecução.50 A constituição definitiva do crédito tributário por processo administrativo-fiscal também não funciona como condição objetiva de punibilidade para o delito de descaminho, também conhecido como contrabando impróprio (art. 334, caput, do CP, com redação determinada pela Lei n° 13.008/14). Isso porque se trata de crime formal que se perfaz com o ato de iludir o pagamento de imposto devido pela entrada de mercadoria no país, razão pela qual o resulta­ do da conduta delituosa relacionada ao quantum do imposto devido não integra o tipo legal. O bem jurídico protegido pelo art. 334 do CP é mais do que o mero valor do imposto, engloba a própria estabilidade das atividades comerciais dentro do país, refletindo na balança comercial entre o Brasil e outros países. O produto inserido no mercado brasileiro fruto de descaminho, além de lesar o fisco, enseja o comércio ilegal, concorrendo, de forma desleal, com os produ­ zidos no país, gerando uma série de prejuízos para a atividade empresarial brasileira. Além do mais, diversamente do que ocorre com os crimes de sonegação fiscal propriamente ditos, havendo indícios de descaminho, cabe à fiscalização, efetivada pela Secretaria da Receita Fe­ deral, apreender, quando possível, os produtos ou mercadorias importadas/exportadas (art. 15 do Decreto 7.482/2011). A apreensão de bens enseja a lavratura de representação fiscal ou auto de infração, a desaguar em duplo procedimento: a) envio ao Ministério Público e b) instauração de procedimento de perdimento, conforme dispõe o art. Io, § 4o, III, do Decreto-Lei 37/1966. Uma vez efetivada a pena de perdimento, inexistirá a possibilidade de constituição de crédito tributário. Daí a conclusão de absoluta incongruência no argumento de que é imprescindível o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva de crédito tributário, para se proceder à persecutio criminis no descaminho, porquanto, na imensa maioria dos casos, sequer existirá crédito a ser constituído.51 50

Com esse entendimento: STF, Tribunal Pleno, RHC 90.532/ED, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 23/09/2009, DJe 208 05/11/2009. Também é dispensável a constituição definitiva do crédito tributário para que esteja consumado o crime previsto no art. 293, § I s, III, "b", do CP, porquanto o referido delito possui natureza formal, sendo inaplicável, portanto, o disposto na Súmula Vinculante nQ24 do STF: STJ, 6§ Turma, REsp 1.332.401/ES, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 19/8/2014.

51

Nessa linha: STJ, 5^ Turma, HC 218.961/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 15/10/2013, DJe 25/10/2013; STJ, 6§ Tur­ ma, REsp 1.343.463/BA, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 20/3/2014, DJe 23/09/2014. Quanto à aplicação do princípio da insignificância em relação ao crime de descaminho, há precedentes de ambas as Turmas do STF admitindo a aplicação do referido postulado se o valor elidido for inferior ao quantum de R$ 20.000,00 e não houver reiteração criminosa: STF, 2§ Turma, HC 155.347/PR, Rei. Min. Dias Tóffoli, j. 17/04/2018; STF, 2§ Turma, HC 120.620/RS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/02/2014; STF, 2^ Turma, HC 121.322/PR, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/02/2014; STF, I a Turma, HC 121.717/PR, Rei. Min. Rosa Weber, j. 03/06/2014. Atente o leitor, todavia, para um precedente isolado da 1§ Turma do STF (HC 128.063, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 10/04/2018) negando a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho quando o montante do tributo não recolhido for inferior ao limite de R$ 20.000,00, sob o argumento de que a lei que disciplina o executivo fiscal não repercute no campo penal. Também há precedentes da 3a Seção do STJ admitindo o princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00. A propósito, confira-se: STJ, 3ã Seção, REsp 1.688.878/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 28/02/2018, DJe 04/04/2018. Para a 3ã Seção do STJ (EREsp 1.217.514/RS, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 09/12/2015, DJe 16/12/2015), a reiteração criminosa inviabiliza a aplicação

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Por fim, é importante destacar que, por força da Lei n° 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, o art. 83 da Lei n° 9.430/96 ganhou nova redação. Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento (Lei n° 9.430/96, art. 83, § Io). 5. CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES PENAIS Na medida em que o direito de ação é instrumental, conexo a uma pretensão, podemos dividi-lo em diversas categorias, tendo-se em conta a razão da tutela jurisdicional invocada ou a razão da pretensão. Valendo-se da classificação tradicionalmente trabalhada no processo civil - ações de conhecimento, cautelar e de execução - vejamos sua aplicação no âmbito processual penal. Na ação penal de conhecimento, a prestação jurisdicional consiste numa decisão sobre situa­ ção jurídica disciplinada no Direito Penal.52 Como subespécies de ação penal de conhecimento, podemos citar a condenatória, objeto de estudo no próximo tópico, a constitutiva e a declaratória. A ação penal de conhecimento constitutiva visa criar, modificar ou extinguir uma situação jurídica. É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses de revisão criminal, pedido de homologação de sentença penal estrangeira, pedido de extradição passiva ou o habeas corpus para anular determinado processo por ausência de citação. Ação penal de conhecimento declaratória é aquela cujo objetivo é apenas a declaração da existência ou não de uma relação jurídica (v.g., habeas corpus objetivando a declaração da extinção da punibilidade, nos termos do art. 648, VII, do CPP). Quanto à ação cautelar, pensamos que não se pode admitir a existência de um processo penal cautelar autônomo. Não há ação e processo cautelares autônomos no âmbito processual penal. Na verdade, a tutela jurisdicional cautelar é exercida através de uma série de medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal e na legislação especial, para instrumentali­ zar, quando necessário, o exercício da jurisdição.53 Deveras, é comum a ocorrência no processo penal de situações em que tais providências urgentes se tomem imperiosas, seja para assegurar a correta apuração do fato delituoso, a futura e possível execução da sanção, seja para assegurar o ressarcimento do dano causado pelo delito.54 Essas medidas cautelares processuais penais estão elencadas de modo atécnico no CPP, po­ dendo ser encontradas tanto no título que versa sobre provas, como também no título pertinente à prisão e à liberdade provisória, ou, ainda, dentre os incidentes relativos às medidas assecuratórias. do princípio da insignificância nos crimes de descaminho, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, o magistrado verificar que a medida é socialmente recomendável. Outrossim, em se tratando de contrabando (CP, art. 334-A, com redação dada pela Lei n9 13.008/14), os Tribunais Superiores não admitem a aplicação do princípio da insignificância, ainda que o valor do tributo incidente sobre a mercadoria seja inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Afinal, quando se trata de importação ou exportação de mercadoria absoluta ou relativamente proibida, para além da sonegação de tributos, há lesão à moral, higiene, segurança e saúde pública. A propósito: STJ, 69 Turma, REsp 1.427.796/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 14/10/2014; STJ, 59 Turma, AREsp 348.408/RR, Rei. Min. Regina Helena Costa, j. 18/2/2014, DJe 24/02/2014; STF, l 9 Turma, HC 120.550/PR, Rei. Min. Roberto Barroso, DJe 30 12/02/2014. 52

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 189 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 94.

53

Na clássica lição de Cândido Rangel Dinamarco, as medidas cautelares "são instrumentos a serviço do próprio instrumento, que é o processo: servem à eficiência do provimento jurisdicional principal, e este, por sua vez, serve ao direito material e à própria sociedade". (A instrumentalidade do processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987).

54

Nesse sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini, et alii. As nulidades no processo penal. I I 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 262.

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Além dessas medidas cautelares, também não podemos nos esquecer das chamadas medidas de contracautela, as quais visam à eliminação do dano provocado pela concessão da medida cautelar, isto é, funcionam como espécie de antídoto em relação às medidas cautelares, tal como acontece com a prisão em flagrante legal, que tem como contracautela a liberdade provisória, com ou sem fiança.55 Por fim, quanto à ação de execução, é bom lembrar que, nos termos do processo civil, o processo de execução deve obedecer ao princípio da demanda. No âmbito processual penal, a execução de penas privativas de liberdade e de medidas de segurança tem início de ofício, com a expedição da respectiva guia (LEP, arts. 105 e 171). A execução das penas restritivas de direitos pode ser iniciada mediante requerimento do Ministério Público, mas a lei também prevê que o juiz possa dar início a sua execução de ofício (LEP, art. 147). Logo, em tais hipóteses, não se pode visualizar uma verdadeira ação de execução, tal qual ainda ocorre em algumas hipóteses no processo civil. Subsiste, todavia, a execução da pena de multa, cuja atribuição executória sempre foi objeto de controvérsia. De fato, sem embargo do teor da súmula n. 521 do STJ (“A legitimidade para a execução fiscal de multa pendente de pagamento imposta em sentença condenatória é exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública”), em recente decisão proferida no julgamento da ADI 3.150, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que, por ter natureza de sanção penal, o Ministério Público é o principal legitimado para executar a co­ brança das multas pecuniárias fixadas em sentenças penais condenatórias perante o Juízo das Execuções Penais, limitando-se a atribuição da Fazenda Pública para executar essas multas perante a vara de execução fiscal tão somente aos casos de inércia ministerial. Na dicção do Relator, Min. Roberto Barroso, o fato de a nova redação do art. 51 do CP ter transformado a multa em dívida de valor não retira a atribuição do Parquet para efetuar sua cobrança, já que se trata de espécie de sanção penal prevista na Constituição Federal (artigo 5o, inciso XLVI, alínea “c“), do que se conclui que sua natureza jurídica jamais poderia ser alterada por uma lei ordinária. Ressaltou, ademais, que o art. 164 da LEP reconhece a atribuição do Ministério Público para executar a dívida. Se a condenação criminal é um título executivo judicial, seria incongruente sua inscrição em dívida ativa, que é um título executivo extrajudicial. Enfim, concluiu que, caso o órgão ministerial não proponha a execução da multa no prazo de 90 dias após o trânsito em julgado da sentença, aí sim o juízo da vara criminal deverá comunicar ao órgão competente da Fazenda Pública para efetuar a cobrança na vara de execução fiscal com base na Lei n. 6.830/80. 5.1. Classificação das ações penais condenatórias Ação penal condenatória é aquela em que é deduzida em juízo a pretensão punitiva, por meio da denúncia ou da queixa, imputando-se ao acusado a prática de conduta típica, ilícita e culpável, a fim de que seja proferida sentença em que se tome concreta a sanção que a lei prevê em abstrato, quer no sentido da imposição de pena privativa de liberdade (sentença condena­ tória), quer no sentido da aplicação de medida de segurança (sentença absolutória imprópria). Não há falar em constrangimento ilegal pelo fato de a peça acusatória usar a titulação ação penal condenatória. Afinal, trata-se de classificação usual da doutrina processual penal, que comumente subdivide as ações penais de conhecimento em declaratórias, constitutivas e condenatórias.56

55 56

É essa a lição de Marcellus Polastri Lima. Curso de processo penal. Vol. III. 3a ed. Rio de Janeiro/RJ: Editora Lumen Juris, 2008. p. 242. Com esse entendimento: STJ, 6- Turma, HC 88.448/DF, Rei. Min. Og Fernandes, j. 06/05/2010, DJe 02/08/2010.

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No âmbito processual penal, a doutrina costuma classificar a ação penal a partir da legi­ timação ativa. Tem-se, assim, a ação penal pública e a ação penal de iniciativa privada. Cada uma delas será estudada detalhadamente mais adiante, mas, por ora, pode-se dizer que a ação penal pública, cujo titular é o Ministério Público, subdivide-se em: a) ação penal pública incondicionada: nesta espécie de ação penal, a atuação do Ministério Público independe do implemento de qualquer condição específica; b) ação penal pública condicionada: nessa hipótese, a atuação do Ministério Público está subordinada ao implemento de uma condição - representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça; c) ação penal pública subsidiária da pública: sua inserção como espécie de ação penal pública não é ponto pacífico na doutrina. Porém, para alguns doutrinadores, essa subespécie de ação penal pode ser vislumbrada nas seguintes hipóteses: c.l) de acordo com o art. 2o, § 2o, do Dec.-lei n° 201/67, que dispõe sobre crimes de res­ ponsabilidade de prefeitos e vereadores, “se as providências para a abertura do inquérito policial ou instauração da ação penal não forem atendidas pela autoridade policial ou pelo Ministério Público estadual, poderão ser requeridas ao Procurador-Geral da República”. Para grande parte da doutrina, esse dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal, quer porque desloca para a Justiça Federal competência que não está prevista no art. 109 da Constituição Federal, quer porque atenta contra a autonomia dos Ministérios Públicos dos Estados e contra a própria estrutura do pacto federativo. Portanto, diante da inércia do Procurador-Geral de Justiça em oferecer a denúncia, entende-se possível a provocação do Colégio de Procuradores, órgão da estrutura do Ministério Público dos Estados, ou o oferecimento de ação penal privada subsidiária da pública, nos termos do art. 29 do CPP; c.2) outra espécie de ação penal pública subsidiária da pública estaria prevista no art. 357, §§ 3o e 4o, do Código Eleitoral. De acordo com o art. 357, § 3o, do Código Eleitoral, “se o órgão do Ministério Público não oferecer a denúncia no prazo legal representará contra ela a autoridade judiciária, sem prejuízo da apuração da responsabilidade penal”. Por sua vez, dispõe o art. 357, § 4o, do referido Codex que “ocorrendo a hipótese prevista no parágrafo anterior o juiz solicitará ao Procurador Regional a designação de outro promotor, que, no mesmo prazo, oferecerá a denúncia”. Como o Ministério Público dos Estados atua por delegação nos crimes eleitorais, permanecendo o Promotor eleitoral inerte, é possível que o Procurador Regional Eleitoral designe outro órgão do MP para oferecer denúncia; c.3) uma última subespécie de ação penal pública subsidiária da pública pode se dar nos casos de incidente de deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal (IDC). Referida medida, que será estudada no capítulo pertinente à competência criminal, foi inserida na Constituição Federal pela Emenda Constitucional n° 45/04 (art. 109, V-A, c/c art. 109, § 5o), estando o deslocamento da competência subordinado à presença de 02 (dois) requisitos: 1) crime com grave violação aos direitos humanos; 2) risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, em virtude da inércia do Estado-membro em proceder à persecução penal. Como o IDC importa em deslocamento da competência da Justiça Estadual, onde atua o Ministério Público dos Estados, para a Justiça Federal, onde funciona o Ministério Público Federal, tem-se aí mais uma espécie de ação penal pública subsidiária da pública. A outra espécie de ação penal condenatória é a ação penal de iniciativa privada. Certos crimes atentam contra interesses tão próprios da vítima que o próprio Estado transfere a ela ou ao seu representante legal a legitimidade para ingressar em juízo. Como será visto com mais

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detalhes ao tratarmos da legitimidade para o exercício da ação penal de iniciativa privada, em situações excepcionais, que serão oportunamente estudadas, a queixa-crime também pode ser oferecida não só pelo ofendido ou por seu representante legal, como também por curador especial (CPP, art. 33), pelos sucessores do ofendido, em caso de morte ou declaração de ausência (CPP, art. 31), ou até mesmo por entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, assim como associações, especificamente destinadas à defesa dos interesses e direitos do consumidor (Lei n° 8.078/90, art. 80, c/c art. 82, III e IV). São espécies de ação penal de iniciativa privada: a) ação penal exclusivamente privada: em se tratando de ação penal de iniciativa privada, funciona como a regra; b) ação penal privada personalíssima: são raras as espécies de crimes subordinados a esta espécie de ação penal privada. Na verdade, subiste apenas o crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (CP, art. 236, parágrafo único), já que o adultério foi revogado pela Lei n° 11.106/05. Diferencia-se da hipótese anterior porque a queixa só pode ser oferecida pelo próprio ofendido, sendo incabível a sucessão processual; c) ação penal privada subsidiária da pública (ou ação penal acidentalmente privada): diz a Constituição Federal que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal” (art. 5o, LIX). Seu cabimento está subordinado à inércia do Ministério Público. 6. PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL PÚBLICA E DA AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA Por razões didáticas, e visando uma melhor compreensão do assunto, preferimos abordar os princípios da ação penal em conjunto. 6.1. Princípio do n e p ro c e d a t iu d e x e x o fficio A partir do momento em que a Constituição Federal adota o sistema acusatório (CF, art. 129, I), determinando que o órgão da acusação seja distinto do órgão jurisdicional, não mais poderá o juiz dar início a um processo de ofício, sendo-lhe vedado o exercício da ação. É esse o significado do princípio do ne procedat iudex ex officio, também conhecido como princípio da iniciativa das partes ou do nullum iudicio sine actore. Funciona como consectário do direito de ação, e dele deriva a diretriz segundo a qual o juiz não pode dar início a um processo sem que haja provocação da parte. Dele também deriva a proibição de que o juiz profira um provimento sobre matéria que não tenha sido trazida ao processo por uma das partes (princípio da correlação entre acusação e sentença). Até o advento da Constituição Federal de 1988, era possível que o órgão jurisdicional desse início a um processo penal condenatório de ofício (processo judicialiforme). Era o que ocorria nas hipóteses estabelecidas na Lei n° 4.611/65 (crimes culposos de lesão corporal ou de homicídio) e nos casos de contravenções penais: vide arts. 26 e 531 (o art. 531 teve sua redação alterada pela Lei n° 11.719/08). Consistia o processo judicialiforme, assim, na possibilidade de se dar início a um processo penal através de auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade policial ou judiciária, daí por que era denominado de ação penal ex officio (sem provocação). Com a outorga da titularidade da ação penal pública ao Ministério Público pela Constituição Federal, doutrina e jurisprudência já eram uníssonas em apontar que os arts. 26 e 531 (em sua redação original) não haviam sido recepcionados pela Carta Magna de 1988. Com a reforma processual de 2008, não há mais qualquer dúvida acerca da inaplicabilidade de tais dispositivos: a uma, porque o art. 531 teve sua redação modificada, dispondo, atualmente, sobre o procedimento sumário; a duas, porque o art. 257,1, do CPP, passou a prever

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de maneira expressa que ao Ministério Público cabe promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida no CPP, revogando, tacitamente, o art. 26 do CPP. Se, diante da titularidade da ação penal pública pelo Ministério Público, ao magistrado não é dado iniciar um processo criminal de ofício (neprocedat iudex ex officio), isso não significa dizer que juizes e tribunais não possam conceder ordem de habeas corpus de ofício. De fato, de acordo com o art. 654, § 2o, do CPP, juizes e tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Por fim, se a inércia do juiz é dogma intangível no processo penal de conhecimento, aplicável tanto à ação penal pública quanto à ação penal de iniciativa privada, o mesmo não se pode dizer em relação ao processo penal de execução. Transitada em julgado a sentença penal condenatória, inicia-se de ofício sua execução, independentemente de qualquer iniciativa por parte do autor da ação penal de conhecimento, seja ele o Ministério Público ou o querelante.57 6.2. Princípio do ne bis in idem (inadmissibilidade da p e rse c u ç ã o p e n a l m ú ltip la ) Conhecido no direito norte-americano como double jeopardy, ou seja, para se evitar o risco duplo, entende-se que, por força do princípio do ne bis in idem (ou da inadmissibilidade da persecução penal múltipla), aplicável à ação penal pública e privada, ninguém pode ser processado duas vezes pela mesma imputação. Entende-se que duas ações penais são idênticas quando figura no polo passivo o mesmo acusado e quando o fato delituoso atribuído ao agente em ambos os processos criminais for idêntico. Supondo-se, assim, que determinado indivíduo tenha sido absolvido em um processo criminal pela prática de furto em virtude da ausência de provas, operando-se o trânsito em julgado, não será possível o oferecimento de nova denúncia (ou queixa) em relação à mesma imputação, mesmo que surjam, posteriormente, provas cabais de seu envolvimento no fato delituoso. Apesar de não constar expressamente da Constituição Federal, o princípio do ne bis in idem consta da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Segundo o art. 8o, n° 4, do Dec. 678/92, “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”. O Estatuto de Roma também dispõe sobre o referido princípio em seu art. 20. Como destaca a doutrina, “o princípio tem uma latitude maior do que a coisa julgada, uma vez que impede inclusive que tramite simultaneamente duas ações sobre o mesmo fato imputado ao réu (abrange, portanto, inclusive a questão da litispendência)”.58 Portanto, da mesma forma que uma pessoa não pode ser alvo de nova persecução criminal em relação à imputação que já foi objeto de processo penal com sentença definitiva transitada em julgado, também não pode ser perseguida criminalmente pela mesma imputação simultanea­ mente em processos diferentes. Mas e na hipótese dessa sentença absolutória ter sido proferida por juízo absolutamente incompetente? Decisão absolutória ou extintiva da punibilidade, ainda que prolatada com suposto vício de competência, é capaz de transitar em julgado e produzir efeitos, impedindo que o acusado seja novamente processado pela mesma imputação perante a justiça competente. De fato, nas hi­ póteses de sentença absolutória ou declaratória extintiva da punibilidade, ainda que proferida por juízo incompetente, como essa decisão não é tida por inexistente, mas sim como nula, e como o 57 58

Nesse contexto: BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da prova: a questão da iniciativa instrutória do ju iz em fa ce do sistem a acusatório e da natureza da ação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 12-13. BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o garantism o e a efetividade da São Pauio: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 346.

sanção.

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ordenamento jurídico não admite revisão criminal pro societaíe, não será possível que o acusado seja novamente processado perante o juízo competente, sob pena de violação ao princípio do ne bis in idem, o qual impede que alguém seja processado duas vezes pela mesma imputação.59 Só se pode falar em aplicação do princípio do ne bis in idem se o fato delituoso atribuído ao agente em ambos os processos criminais for idêntico. Em outras palavras, evidenciando-se que as imputações deduzidas nas peças acusatórias referem-se a fatos distintos, não há falar em violação ao princípio do ne bis in idem. Se a imputação for distinta, é perfeitamente possível, portanto, o oferecimento de nova peça acusatória em face do acusado.60 Em interessante exemplo encontrado na jurisprudência acerca do assunto, relativo a Po­ licial Militar que teria aceitado transação penal no âmbito dos Juizados pela prática do crime de abuso de autoridade, com ulterior declaração da extinção da punibilidade pelo cumprimen­ to integral das condições ali estabelecidas, entendeu-se possível o oferecimento de denúncia perante a Justiça Militar pela prática dos crimes militares de lesão corporal leve e de violação de domicílio (CPM, arts. 209 e 226, §§ Io e 2o, respectivamente). Para o Supremo, na conduta imputada ao paciente, haveria, em tese, infrações de natureza funcional e militar, cada qual com sua definição própria, repreendidas por legislações penais específicas e processadas por juízos de competências distintas, a saber: o crime de abuso de autoridade, por não estar inserido no CPM, de competência da justiça comum, ao passo que os crimes de lesão corporal e de violação de domicílio, da justiça militar. Entendeu-se, assim, que o eventual reconhecimento da coisa julgada ou da extinção de punibilidade do crime de abuso de autoridade na justiça comum não teria o condão de obstar o processamento do paciente na justiça militar pelos delitos de lesão corporal leve e violação de domicílio.61 Para a 5a Turma do STJ, o agente que, numa primeira ação penal, tiver sido condenado pela prática de crime de roubo contra uma instituição bancária não poderá ser, numa segunda ação penal, condenado por crime de roubo supostamente cometido contra o gerente do banco no mesmo contexto fático considerado na primeira ação penal, ainda que a conduta referente a este suposto roubo contra o gerente não tenha sido sequer levada ao conhecimento do juízo da primeira ação penal, vindo à tona somente no segundo processo. Conquanto o suposto roubo contra o gerente do banco não tenha sido sequer levado ao conhecimento do juízo da primeira ação penal, ele se encontra sob o âmbito de incidência do princípio ne bis in idem, na medida em que praticado no mesmo contexto fático da primeira ação. A proibição de imposição de mais 59

Nessa linha: STF - HC 86.606/MS Turma - Relatora Ministra Cármen Lúcia - DJE-072 - DJ 03/08/2007 p. 86. Em caso concreto em que fora aceita proposta de suspensão condicional do processo perante a Justiça Comum Estadual pela prática de crime militar, entendeu a 2^ Turma do Supremo que seria inadmissível a instauração de novo processo perante a Justiça Militar em relação à mesma imputação: STF, 2ã Turma, HC 91.505/PR, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 24/06/2008, DJe 157 21/08/2008.

60

Nessa linha: STJ, 6§ Turma, HC 27.142/RS, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 21/03/2006, DJ 28/08/2006 p. 309. E ainda: STJ, 5§ Turma, HC 91.403/RJ, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17/06/2010, DJe 02/08/2010. No mesmo sentido; “A absolvição, pelo júri, da imputação da autoria material do crime de homicídio não faz coisa julgada impeditiva de o paciente responder em nova ação penal como participante, por autoria intelectual, do mesmo crime cuja autoria material é imputada a outrem" (RT 615/358 e RTJ 120/117). Em sentido diverso, Bedê Júnior e Senna (op. cit. p. 350) entendem que o princípio do não risco duplo impede novo processo pela simples alteração da condição do réu de autor para partícipe ou da mudança do elemento anímico (de dolo para culpa). Segundo os autores, o Estado deveria, ao imputar ao réu o fato, fazê-lo com precisão; se perdeu essa oportunidade, infelizmente não há de se conceder uma segunda chance de punição. Ora, se se entende que a narração dos fatos deve conter o elemento anímico e a conduta do réu com detalhamento, aquele contexto deduzido e dedutível é inexoravelmente abrangido pela coisa julgada, ou, como preferem os civilistas pela eficácia preclusiva da coisa julgada.

61

STF, 1§ Turma, HC 92.912/RS, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 20.11.2007, DJe 165 18/12/2007. Em sentido semelhante: STF, 2- Turma, HC 105.301/MT, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 05/04/2011, DJe 089 12/05/2011.

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de uma conseqüência jurídico-repressiva pela prática dos mesmos fatos também ocorre quando o comportamento definido espaço-temporalmente imputado ao acusado não foi trazido por inteiro para apreciação do juízo. Isso porque o objeto do processo é informado pelo princípio da consunção, pelo qual tudo aquilo que poderia ter sido imputado ao acusado, em referência a dada situação histórica e não o foi, jamais poderá vir a sê-lo novamente.62 Em conclusão, convém destacar que, a nosso ver, o princípio do ne bis in idem não deve ser invocado quando se verificar que, no julgamento originário, o processo não fora conduzido de maneira independente ou imparcial, ou que tenha sido conduzido de modo a subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal. Afinal, como proclama o velho brocardo, ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza. Nessa linha, em caso concreto em que o acusado apresentou certidão de óbito falsa, e teve declarada a extinção de sua punibilidade, o Supremo entendeu que é possível a revogação da decisão extintiva de punibilidade, à vista de certidão de óbito falsa, por inexistência de coisa julgada em sentido estrito, pois, caso contrário, o paciente estaria se beneficiando de conduta ilícita. Nesse ponto, asseverou-se que a extinção da punibilidade pela morte do agente ocorre independentemente da declaração, sendo meramente declaratória a decisão que reconhece, a qual não subsiste se o seu pressuposto é falso.63 Na mesma linha, é perfeitamente possível a desconstituição de acórdão de revisão criminal que, de maneira fraudulenta, tenha absolvido o réu, quando, na verdade, o posicionamento que prevaleceu na sessão de julgamento foi pelo indeferimento do pleito revisional. Ora, a publica­ ção intencional de acórdão apócrifo - não autêntico, ideologicamente falso, que não retrata, em nenhum aspecto, o julgamento realizado - com o objetivo de beneficiar uma das partes não se encontra protegido pelo princípio do ne bis in idem processual. Afinal, não é possível estender ao ato ilícito os planos de validade e de eficácia destinados somente aos atos jurídicos lícitos, principalmente quando, no exemplo citado, o suporte fático que lastreou o ato impugnado for objeto de fraude, operada na publicação. Vale dizer, nenhum efeito de proteção do sistema processual pode ser esperado da publicação de um acórdão cujo conteúdo e resultado foram forjados. Portanto, não se pode emprestar os efeitos da coisa julgada a acórdão absolutório falso, de conteúdo ideologicamente falsificado. Essa desconstituição não pode ser equiparada a uma revisão criminal pro societate. Trata-se de simples decisão interlocutória por meio da qual o Poder Judiciário, dada a constatação de flagrante ilegalidade na proclamação do resultado de seu julgado, porquanto sedimentado em realidade fática inexistente e em correspondente docu­ mentação fraudada, corrige o ato e proclama o resultado verdadeiro. Pensar de modo diverso ensejaria ofensa ao princípio do devido processo legal, aqui analisado sob o prisma dos deveres de lealdade, cooperação, probidade e confiança, que constituem pilares de sustentação do siste­ ma jurídico-processual. O processo, sob a ótica de qualquer de seus escopos, não pode tolerar o abuso do direito ou qualquer outra forma de atuação que enseje a litigância de má-fé. Logo, condutas contrárias à verdade, fraudulentas ou procrastinatórias conspurcam o objetivo publicístico e social do processo, a merecer uma resposta inibitória exemplar do Poder Judiciário.64

62

STJ, 5a Turma, HC 285.589/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 4/8/2015, DJe 17/9/2015.

63

STF, HC 84.525/MG, Rei. Min. Carlos Velloso, j. 16/11/2004. Como não há nenhuma diferença ontológica entre a hipótese de extinção da punibilidade ou de absolvição fundada em fraude perpetrada pelo réu, situações em que não há motivo para se invocar a proteção do ne bis in idem, Bedê Júnior e Senna (op. Cit. p. 354) defendem a releitura da proibição da reform atio in pejus para a sociedade para admitir, em tese, 0 prosseguimento do processo quando a absolvição ou extinção de punibilidade estiver fundada em fraude praticada pelo réu, até porque tal conduta significa que apenas formalmente e não materialmente o réu se submeteu ao processo penal. Parece, aos autores, o mais adequado e justo admitir um novo (melhor dizendo, um primeiro) julgamento real nessas hipóteses.

64

Nessa linha: STJ, 6^ Turma, REsp 1.324.760-SP, Rei. para acórdão Min. Rogério Schietti Cruz, j. 16/12/2014, DJe 18/2/2015.

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6.3. Princípio da intranscendência Por força do princípio da intranscendência, entende-se que a denúncia ou a queixa só podem ser oferecidas contra o provável autor do fato delituoso. A ação penal condenatória não pode passar da pessoa do suposto autor do crime para incluir seus familiares, que nenhuma partici­ pação tiveram na infração penal. Esse princípio funciona como evidente desdobramento do princípio da pessoalidade da pena, previsto no art. 5o, XLV, da Constituição Federal. Como o Direito Penal trabalha com uma responsabilidade penal subjetiva, não se pode admitir a instauração de processo penal contra terceiro que não tenha contribuído, de qualquer forma, para a prática do delito (CP, art. 29). Não obstante, se estivermos diante de uma responsabilidade não penal, como, por exemplo, a obrigação de reparar o dano, é perfeitamente possível que, na hipótese de morte do condenado e tendo havido a transferência de seus bens aos seus sucessores, estes respondam até as forças da herança, nos moldes preconizados pelo art. 5o, XLV, da Carta Magna, e pelo art. 1.997, caput, do Código Civil, segundo o qual “a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube”.65 Esse princípio é aplicável tanto à ação penal pública quanto à ação penal de iniciativa privada. 6.4. Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública De acordo com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, também denominado de legalidade processual, aos órgãos persecutórios criminais não se reserva qualquer critério político ou de utilidade social para decidir se atuarão ou não. Assim é que, diante da notícia de uma infração penal, da mesma forma que as autoridades policiais têm a obrigação de proceder à apuração do fato delituoso, ao órgão do Ministério Público se impõe o dever de oferecer denúncia caso visualize elementos de informação quanto à existência de fato típico, ilícito e culpável, além da presença das condições da ação penal e de justa causa para a deflagração do processo criminal. Esse princípio impõe um dever de atuação aos órgãos oficiais encarregados da investigação (CPP, art. 5o) e da ação penal (CPP, art. 24), nos crimes de ação penal pública. Por força dele, tanto a Polícia investigativa quanto o Ministério Público devem agir compulsoriamente para apurar e denunciar a infração, respectivamente. Não contam com nenhuma disponibilidade, ao contrário, vale o dever de persecução e de acusação. Para grande parte da doutrina, o princípio da obrigatoriedade não tem status constitucional, sendo extraído do art. 24 do CPP, segundo o qual “nos crimes de ação pública, esta será pro­ movida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo”. Na mesma linha, o art. 30 do CPPM estabelece que a denúncia deve ser apresentada sempre que houver: a) prova de fato que, em tese, constitua crime; b) indícios de autoria. O legislador prevê alguns mecanismos para a fiscalização do princípio da obrigatoriedade. Um primeiro instrumento de fiscalização do cumprimento do dever de oferecer a denúncia é o art. 28 do CPP, que impõe ao juiz o exercício da função anômala de fiscal do princípio da obrigatoriedade, podendo remeter os autos do inquérito policial ao Procurador-Geral de Justiça caso não concorde com a promoção de arquivamento formulada pelo Promotor de Justiça. Outro mecanismo é a ação penal privada subsidiária da pública, que nada mais é do que uma importante forma de controle da inércia ministerial. 65

Nessa linha: GRECO, Rogério. Curso de direito penal: pa rte geral. Volume 1. 12§ ed. Rio de Janeiro: Editora Im­ petus, 2010. p. 75.

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Como aduz Silva Jardim, “o raciocínio é o seguinte: se a denúncia é oferecida, caiu-se na regra geral do código; se o Ministério Público requer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, o juiz examina o acerto deste procedimento (analisando se a hipótese não seria de denúncia), podendo remeter os autos ao Procurador-Geral; entretanto, se o Ministério Público não faz uma coisa nem outra, surge para o ofendido uma legitimação extraordinária para instaurar o processo, tendo em vista a inércia da parte ordinariamente legitimada. Averbe-se que o Ministério Público será obrigado a retomar a ação como parte principal, caso o querelante se tome negligente”.66 A obrigatoriedade de oferecer a denúncia não significa que, em sede de alegações orais (ou de memoriais), o Ministério Público esteja sempre obrigado a pedir a condenação do acusado. Afinal, ao Parquet também incumbe a tutela de interesses individuais indisponíveis, como a liberdade de locomoção. Logo, como ao Estado não interessa uma sentença injusta, nem tam­ pouco a condenação de um inocente, provada sua inocência, ou caso as provas coligidas não autorizem um juízo de certeza acerca de sua culpabilidade, deve o Promotor de Justiça mani­ festar-se no sentido de sua absolvição. A propósito, o art. 385 do CPP dispõe que, nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição. Se a regra, em sede de ação penal pública, é o princípio da obrigatoriedade, algumas ex­ ceções merecem ser lembradas: a) transação penal: em se tratando de infrações de menor potencial ofensivo, ainda que haja lastro probatório suficiente para o oferecimento de denúncia, desde que o autor do fato delituoso preencha os requisitos objetivos e subjetivos do art. 76 da Lei n° 9.099/95, ao invés de o Ministério Público oferecer denúncia, deve propor a transação penal, com a aplicação ime­ diata de penas restritivas de direitos ou multa. Nessa hipótese, há uma mitigação do princípio da obrigatoriedade, comumente chamada pela doutrina de princípio da discricionariedade regrada ou princípio da obrigatoriedade mitigada; b) termo de ajustamento de conduta: a Lei n° 7.347/85, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, à ordem econômica, à ordem urba­ nística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, ao patrimônio público e social, e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, prevê em seu art. 5o, § 6o, que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”. Inserido nas disposições finais da Lei n° 9.605/98 em 2001, o art. 79-A também dispõe que os órgãos ambientais integrantes do Sisnama, responsáveis pela execução de programas e projetos e pelo controle e fiscalização dos estabelecimentos e das atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental, ficam autorizados a celebrar, com força de título executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores. É comum que a simples instauração de um inquérito civil ou a celebração de um termo de ajustamento de conduta resulte na solução da controvérsia, quer porque a conduta lesiva nem se iniciou, quer porque os seus efeitos maléficos são plenamente reparados, tomando ausente o interesse jurídico de se propor demanda judicial. Apresenta-se o termo de ajustamento de con­ duta, portanto, como importante instrumento de solução extrajudicial desses conflitos. Ademais, 66

JARDIM, Afrânio Silva. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. 4S ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. p. 101.

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pelo princípio da subsidiariedade, como as sanções não penais serão suspensas em virtude da celebração e cumprimento do quanto pactuado no termo de ajustamento de conduta, não se afigura razoável, a nosso juízo, cobrar responsabilidade penal pela mesma conduta delituosa. Para além disso, não se pode perder de vista que o cumprimento das penas restritivas de direitos a que estão submetidas as pessoas jurídicas (interdição temporária de direitos, suspensão parcial ou total de atividades e prestação pecuniária - Lei n° 9.605/98, art. 8o) pode ser obtido por meio do termo de ajustamento de conduta, sem a necessidade de se iniciar um processo penal, com todos os custos dele decorrentes, seja para o acusado, que se livraria das cerimônias degradantes do processo penal,67 seja para o próprio Ministério Público, que passaria a se preocupar com os delitos mais graves. Portanto, lavrado um termo de ajustamento de conduta, e desde que o acordo esteja sendo cumprido, o oferecimento de denúncia em razão de ilícito ambiental praticado perde com­ pletamente o sentido e, em especial, a utilidade, condição da ação penal sem a qual não é possível a deflagração da persecutio criminis injudicio. Logo, pelo menos enquanto houver o cumprimento do quanto acordado no termo de ajustamento de conduta, o Ministério Público está impedido de oferecer denúncia. Como se pronunciou o Supremo, cuidando-se de delitos ambientais, o termo de ajustamento de conduta não pode consubstanciar salvo-conduto para que empresa potencialmente poluente deixe de ser fiscalizada e responsabilizada na hipótese de reiteração da atividade ilícita,68 c) parcelamento do débito tributário: o parcelamento do débito tributário também figura como exceção ao princípio da obrigatoriedade, já que a sua formalização antes do recebimento da denúncia é causa de suspensão da pretensão punitiva, impedindo, pois, o oferecimento da peça acusatória pelo Ministério Público (Lei n° 9.430/96, art. 83, § 2o). Atente-se para as várias leis que, ao longo dos anos, passaram a tratar do assunto. Inicialmente, o art. 9o da Lei n° 10.684/03 passou a dispor que a pretensão punitiva do Estado seria suspensa, referente aos crimes previstos nos arts. Io e 2o da Lei n° 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do CP, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estivesse incluída no regime de parcelamento. Ainda segundo a referida lei, a pres­ crição criminal não correria durante o período de suspensão da pretensão punitiva, extinguindo-se a punibilidade dos crimes acima referidos quando houvesse o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios (Lei n° 10.684/03, art. 9o, §§ Io e 20).69

67

O conceito de cerimônias degradantes (status-degradation cerimony) foi introduzido em 1956 por H. Garfinkel para indicar os procedimentos ritualizados nos quais uma pessoa é condenada e despojada de sua identidade, recebendo outra, dita degradada.

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STF, 1§ Turma, HC 92.921/BA, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19/08/2008, DJe 182 25/09/2008. Em sentido diverso, tem prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que a assinatura do termo de ajustamento de conduta não obsta a instauração do processo penal, pois esse procedimento ocorre na esfera administrativa, que é independente da penal. Logo, a assinatura de termo de ajustamento de conduta, com a reparação do dano ambiental e posterior arquivamento do inquérito civil público são circunstâncias que não se prestam para elidir a tipicidade penal, nem tampouco para obstar o prosseguimento da persecução penal: STJ, 6§ Turma, HC 187.043/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/03/2011, DJe 11/04/2011. E ainda: STJ, 5§ Turma, HC 82.911/MG, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 05/05/2009, DJe 15/06/2009. No sentido de que, por força do art. 95, § 22 , da Lei n2 10.684/03, o pagamento integral de débito fiscal em­ preendido pelo acusado em momento anterior ao trânsito em julgado da condenação que lhe foi imposta é causa de extinção de sua punibilidade: STF, l ã Turma, HC 116.828/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 13/08/2013. Nou­ tro giro, se o pagamento do débito ocorrer após 0 trânsito em julgado da sentença condenatória, não há falar em extinção da punibilidade. Isso porque o art. 99, § 29, da Lei 10.684/2003, trata da extinção da punibilidade pelo pagamento da dívida antes do trânsito em julgado da condenação, uma vez que faz menção expressa à pretensão punitiva do Estado. Dessa forma, não há que se falar em extinção da punibilidade pelo pagamento quando se trata de pretensão executória. Nesse contexto: STJ, 6â Turma, HC 302.059/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 5/2/2015, DJe 11/2/2015. Para os Tribunais Superiores, não extingue a punibilidade do crime

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Posteriormente, entrou em vigor a Lei n° 11.941/09, que modificou a legislação tributária federal e instituiu novo regime de parcelamento de débitos tributários, sendo conhecida como Lei do Refis 4. De acordo com seu art. 68, “é suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. Io e 2o da Lei n° 8.137/90, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei n° 2.848/40 - Código Penal, limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, en­ quanto não forem rescindidos os parcelamentos de que tratam os arts. Io a 3o desta Lei, observado o disposto no art. 69 desta Lei. Parágrafo único. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva”. Por sua vez, consoante dispõe o art. 69 da Lei n° 11.941/09, extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, in­ clusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento. Ademais, na hipótese de pagamento efetuado pela pessoa física prevista no § 15 do art. Iodesta Lei, a extinção da punibilidade ocorrerá com o pagamento integral dos valores correspondentes à ação penal.70 Por fim, por força da Lei n° 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, o art. 83 da Lei n° 9.430/96 ganhou nova redação. Segundo o art. 83, § Io, da Lei n° 9.430/96, na hipótese de concessão de par­ celamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento. Ademais, é suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal (Lei n° 9.430/96, art. 83, § 2o). A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva, extinguindo-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento (Lei n° 9.430/96, art. 83, §§ 3o e 4o). O disposto nos §§ Io a 4o não se aplica nas hipóteses de vedação legal de parcelamento (Lei n° 9.430/96, art. 83, § 5o). Ademais, as disposições contidas no caput do art. 34 da Lei n° 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz. (Lei n° 9.430/96, art. 83, § 6o); d) acordo de leniência: também conhecido como acordo de brandura ou doçura,71 este acor­ do é uma espécie de colaboração premiada prevista na Lei que dispõe sobre o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Segundo consta dos arts. 86 e 87 da Lei n° 12.529/11, o acordo de

de estelionato previdenciário (art. 171, § 32, do CP) a devolução à Previdência Social, antes do recebimento da denúncia, da vantagem percebida ilicitamente, podendo a iniciativa, eventualmente, caracterizar arrependimento posterior, previsto no art. 16 do CP. Não se admite a aplicação, por analogia, da causa extintiva de punibilidade prevista no art. 99 da Lei 10.684/2003 pelo pagamento do débito ao estelionato previdenciário, pois não há lacuna involuntária na lei penal a demandar o procedimento supletivo, de integração do ordenamento jurídico. A propósito: STJ, 69 Turma, REsp 1.380.672/SC, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 24/3/2015, DJe 6/4/2015. No sentido de que o pagamento da diferença do imposto devido, antes do recebimento da denúncia, não extingue a punibilidade por eventual crime de corrupção ativa atrelado ao de sonegação fiscal: STJ, 6®Turma, RHC 95.557/ GO, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 21/06/2018, DJe 01/08/2018. No sentido de que o pagamento do débito oriundo de furto de energia elétrica antes do recebimento da denúncia não configura causa extintiva da punibilidade, mas sim causa de diminuição de pena relativa ao arrependimento posterior (CP, art. 16): STJ, 52 Turma, HC 412.208/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 20/03/2018, DJe 23/03/2018. 70

Encontra-se em tramitação perante o Supremo a ADI 4273/DF (pendente de julgamento), sob a relatoria do Min. Celso de Mello, em que se questiona a constitucionalidade dos artigos 67 a 69 da Lei 11.941/2009.

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Na dicção de Damásio Evangelista de Jesus, o acordo de leniência "significa que à colaboração do autor de infrações à ordem econômica, sejam administrativas ou penais, corresponde um tratamento suave, brando, da autoridade admi­ nistrativa ou judicial" (Phoenix: órgão informativo do Complexo Jurídico Damásio de Jesus. São Paulo, n9 1, fev. 2001).

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leniência poderá ser celebrado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na infração; e II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação. Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei n° 8.137/90 e nos demais crimes diretamente relacionados àprática de cartel, tais como os tipificados na Lei n° 8.666/93 e os tipificados no art. 288 do Código Penal, a celebração de acordo de leniência determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o ofereci­ mento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. Ademais, cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes acima referidos; e) colaboração premiada na nova Lei das Organizações Criminosas: consoante disposto no art. 4o, § 4o, da Lei n° 12.850/13, se da colaboração do agente resultar um ou mais dos seguin­ tes resultados - identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas, a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa, a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da orga­ nização criminosa, a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa ou a localização de eventual vítima com sua integridade física preservada -, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se preenchidos dois requisitos concomitantemente: I - o colaborador não for o líder da organização criminosa; II —o colaborador for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. Como se percebe, o legislador aí inseriu mais uma exceção ao princípio da obrigatoriedade, porquanto o órgão ministerial poderá deixar de oferecer denúncia se a colaboração levar à consecução de um dos resultados constantes dos incisos do art. 4o da Lei n° 12.850/13. Apesar de o legislador ter previsto a possibilidade de não oferecimento da denúncia, nada disse quanto ao fundamento de direito material a ser utilizado para fins de arquivamento do procedimento investigatório. Diante do silêncio da nova Lei de Organizações Criminosas, parece-nos possível a aplicação subsidiária do art. 87, parágrafo único, da Lei n° 12.529/11, que prevê que o cumprimento do acordo de colaboração premiada acarreta a extinção da punibilidade do colaborador; f) acordo de não-persecução penal: o tema foi objeto de análise no título referente à investigação preliminar. 6.5. Princípio da oportunidade ou conveniência da ação penal de iniciativa privada Por conta deste princípio, cabe ao ofendido ou ao seu representante legal o juízo de opor­ tunidade ou conveniência acerca do oferecimento (ou não) da queixa-crime. Consiste, pois, na faculdade que é outorgada ao titular da ação penal para dispor, sob determinadas condições, de seu exercício, com independência de que se tenha provado a existência de um fato punível contra um autor determinado. É evidente que, à ação penal de iniciativa privada, jamais seria possível a aplicação do princípio da obrigatoriedade. Como não há qualquer mecanismo de controle sobre o exercício do direito de ação penal de iniciativa privada —tal qual o art. 28 do CPP em relação à ação penal pública —, recai sobre o ofendido, de maneira autônoma, a liberdade de escolha entre a propositura (ou não) da queixa-crime. Ademais, nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada ou personalíssima, se o legitimado a oferecer a queixa-crime optar pelo não exercício de seu direito, o Ministério Público não poderá oferecer denúncia, pois não possui legitimidade ad causam para propor a ação penal, já que tais delitos estão sujeitos exclusivamente à ação penal de iniciativa privada.

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Referido princípio também se aplica à representação e à requisição do Ministro da Justiça, onde o legitimado ao exercício do direito pode, segundo critérios próprios de conveniência ou de oportunidade, deixar de exercê-lo. Nas hipóteses de ação penal de iniciativa privada, caso o ofendido não queira exercer seu direito de queixa, há 2 (duas) possibilidades: a) decadência: com natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade, consiste a deca­ dência na perda do direito de queixa ou de representação pelo seu não exercício dentro do prazo legal (seis meses), contados, em regra, a partir do conhecimento da autoria; b) renúncia: a renúncia também funciona como causa extintiva da punibilidade, de apli­ cação restrita à ação penal exclusivamente privada e à ação penal privada personalíssima. Caso o ofendido queira abrir mão do seu direito de queixa, poderá fazê-lo por meio da renúncia, expressa ou tácita. 6.6. Princípio da indisponibilidade da ação penal pública Também conhecido como princípio da indesistibilidade,72 funciona como desdobramento lógico do princípio da obrigatoriedade. Em outras palavras, se o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia, caso visualize a presença das condições da ação penal e a existência de justa causa (princípio da obrigatoriedade), também não pode dispor ou desistir do processo em curso (indisponibilidade). Enquanto o princípio da obrigatoriedade é aplicável à fase pré-processual, reserva-se o princípio da indisponibilidade para a fase processual. Como desdobramentos do princípio da indisponibilidade da ação penal pública, o Minis­ tério Público não poderá desistir da ação penal (CPP, art. 42). Por sua vez, segundo o art. 576 do CPP, o Ministério Público não poderá desistir de recurso que haja interposto. Veja-se que o Parquet não é obrigado a recorrer, haja vista que os recursos são voluntários (CPP, art. 574, caput). Porém, se o fizer, não poderá desistir de recurso que haja interposto. Aplicável à ação penal pública, o princípio da indisponibilidade também se aplica à ação penal privada subsidiária da pública quanto ao Ministério Público, pois este não apenas tem que assumir o processo que foi iniciado e negligenciado pelo querelante, como também não pode dele desistir (CPP, art. 29). Nos mesmos moldes do que acontece com o princípio da obrigatoriedade, há de se ficar atento à seguinte exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública: a) suspensão condicional do processo: de acordo com o art. 89 da Lei n° 9.099/95, “nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) a 4 (qua­ tro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)”. Preenchendo o acusado os requisitos objetivos e subjetivos para a suspensão, oferecida a proposta pelo órgão ministerial, com posterior aceitação do acusado e de seu defensor, e ulterior homologação da autoridade judiciária, o processo permanecerá suspenso. Logo, trata-se de exceção ao princípio da indisponibilidade.73 72

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18ã ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 98.

73

Sob a égide da Lei ne 10.684/03 (art. 9°), o parcelamento, que podia ser celebrado a qualquer momento, também funcionava como exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, já que, em curso o processo criminal, a pretensão punitiva do Estado ficaria suspensa durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos crimes ali referidos estivesse incluída no regime de parcelamento. Ocorre que, ante a nova redação do art. 83, § 2-, da Lei n^ 9.430/96, o parcelamento do débito tributário só terá o condão de acarretar a suspensão da pretensão punitiva se formalizado antes do recebimento da denúncia. Logo, conclui-se que o

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6.7. Princípio da disponibilidade da ação penal de iniciativa privada (exclusiva ou personalíssima) A ação penal de iniciativa privada (exclusiva ou personalíssima) aplica-se o princípio da disponibilidade, que funciona como consectário do princípio da oportunidade ou conveniência. Diferenciam-se na medida em que o princípio da oportunidade incide antes do oferecimento da queixa-crime, ao passo que, por força do princípio da disponibilidade, é possível que o querelante desista do processo criminal em andamento, podendo fazê-lo de 3 (três) formas: a) perdão da vítima: consiste em causa extintiva da punibilidade de aplicação restrita à ação penal exclusivamente privada e à ação penal privada personalíssima, cabível quando houver a aceitação por parte do querelado; b) perempção: ainda que o querelado não aceite o perdão, é possível dispor da ação penal exclusivamente privada ou personalíssima por meio da perempção, causa extintiva da punibili­ dade, consubstanciada na perda do direito de prosseguir no exercício da ação penal privada em virtude da desídia do querelante; c) conciliação e termo de desistência da ação no procedimento dos crimes contra a honra de competência do juiz singular: grande parte dos crimes contra a honra é tida como infração de menor potencial ofensivo, e, portanto, da competência do Juizado Especial Criminal, já que a pena máxima privativa de liberdade não é superior a 2 (dois) anos. É o que ocorre, por exemplo, com os crimes de calúnia, difamação e injúria, previstos nos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal, respectivamente. Supondo, no entanto, a prática de crime contra a honra cuja pena máxima seja superior a 02 (dois) anos (v.g., a calúnia, que tem pena de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, quando cometida na presença de várias pessoas, sujeita-se a uma causa de aumento de pena de 1/3, prevista no art. 141, inciso III, do CP), logo, da competência do juiz singular, o procedimento a ser observado é aquele compreendido entre os arts. 519 e 523 do CPP. Ali está previsto que, antes de receber a queixa, o juiz oferecerá às partes oportunidade para se reconciliarem, fazendo-as comparecer em juízo e ouvindo-as, separadamente, sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termo. Se, depois de ouvir o querelante e o querelado, o juiz achar provável a reconciliação, promoverá entendimento entre eles, na sua presença. No caso de reconciliação, depois de assinado pelo querelante o termo da desistência, a queixa será arquivada (CPP, art. 522). 6.8. Princípio da (in) divisibilidade da ação penal pública De acordo com o princípio da indivisibilidade, o processo criminal de um obriga ao pro­ cesso de todos. Há intensa discussão quanto a sua incidência na ação penal pública. Parte da doutrina entende que, à ação penal pública, aplica-se o princípio da indivisibilidade, no sentido de que, havendo elementos probatórios quanto a coautores e partícipes, o Ministério Público está obri­ gado a oferecer denúncia em relação a todos. É essa a nossa posição. Afinal, se vigora, quanto à ação penal pública, o princípio da obrigatoriedade, não se pode admitir que o Parquet tenha qualquer margem de discricionariedade quanto aos acusados que figurarão no polo passivo da demanda. Se há elementos de informação em face de duas ou mais pessoas, o Ministério Público se vê obrigado a oferecer denúncia contra todos eles.74 parcelamento deixa de funcionar como exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, por­ quanto, doravante, só terá o condão de obstar a persecução penal se formalizado antes do início do processo. 74

Entre outros, é esse o entendimento de Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo penal. Volume 1. 31A ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 345), Aury Lopes Jr. (Direito processual penal e sua conform idade constitucional.

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Há, contudo, posição em sentido contrário. Parte da doutrina entende que o Ministério Público pode oferecer denúncia contra apenas parte dos coautores e partícipes, sem prejuízo do prosseguimento das investigações quanto aos demais envolvidos.75 Nos Tribunais Superiores, tem prevalecido o entendimento de que, na ação penal pública, vigora o princípio da divisibilidade. Como já se pronunciou o STJ, o princípio da indivisibilidade da ação penal aplica-se tão somente à ação penal privada (CPP, art. 48). Não há nulidade no ofe­ recimento de denúncia contra determinados agentes do crime, desmembrando-se o processo em relação a suposto coautor, a fim de se coligir elementos probatórios hábeis à sua denunciação.76 Entendendo-se que se aplica à ação penal pública o princípio da indivisibilidade, é bom destacar que tal princípio também foi mitigado pela introdução da transação penal e da suspen­ são condicional do processo pela Lei n° 9.099/95. De fato, supondo-se que três pessoas tenham praticado em concurso de agentes uma infração de menor potencial ofensivo, é possível que, oferecida a proposta de transação penal, apenas uma delas a aceite, hipótese em que o processo criminal terá seguimento normal quanto às demais. 6.9. Princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada Se há controvérsias quanto à aplicação da indivisibilidade na ação penal pública, dúvidas não há quanto a sua incidência no âmbito da ação penal de iniciativa privada. De acordo com o art. 48 do CPP, “a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade”. Como visto acima, por força do princípio da oportunidade ou conveniência, cabe ao ofendido ou ao seu representante legal fazer a opção pelo oferecimento (ou não) da queixa-crime. Agora, se optar pelo oferecimento da queixa, uma coisa é certa: o querelante não pode escolher quem vai processar; ele está obrigado a processar todos os autores do delito, por força do princípio da indivisibilidade. Aliás, em decorrência da indivisibilidade, a renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá (CPP, art. 49). Na mesma linha, o perdão concedido a um dos querelados aproveitará a todos, sem que produza, todavia, efeito em relação ao que o recusar (CPP, art. 51). Mas a quem compete e como se dá a fiscalização do princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada? Como deixa entrever o próprio art. 48 do CPP, ao Ministério Públi­ co incumbe velar pela observância do referido princípio. Há doutrinadores que entendem que, verificando a ausência deliberada de determinado coautor e/ou partícipe, deve o Ministério Público promover o aditamento da queixa-crime para inseri-lo no processo penal. A nosso ver, tal posicionamento apresenta-se equivocado, porquanto o órgão ministerial não é dotado de legiíimatio ad causam para aditar queixa-crime com o objetivo de incluir coautores, partícipes e outros fatos delituosos em crimes de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima. Com fundamento no art. 45 do CPP, o Parquet pode até corrigir ou complementar a queixa-crime, porém trabalhando apenas com os elementos trazidos a juízo pelo querelante, incluindo, por exemplo, circunstâncias relativas ao tempo, lugar ou modus operandi do crime. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 351) e Marcellus Polastri Lima (M anual de processo penal. 2§ ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 167). 75

É essa a posição de Denilson Feitoza: D ireito processual penal. 7ã ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010, p. 268.

76

STJ, 6a Turma, Resp 388.473/PR, Rei. Min. Paulo Medina, j. 07/08/2003, DJ 15/09/2003 p. 411. No sentido de que não se aplica o princípio da indivisibilidade à ação penal pública: STJ, 6§ Turma, RHC 34.233/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 6/5/2014.

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Destarte, como o Parquet não possui legitimidade ativa em relação a crimes de ação penal de iniciativa privada, duas são as possibilidades: a) omissão voluntária: verificando-se que a omissão do querelante foi voluntária, ou seja, mesmo tendo consciência do envolvimento de mais de um agente, o ofendido ofereceu queixa-crime em relação a apenas um deles, há de se reconhecer que teria havido renúncia tácita quanto àquele que foi excluído, renúncia tácita esta que se estende a todos os coautores e partícipes, inclusive àqueles que foram incluídos no polo passivo da demanda (CPP, art. 49). Logo, verificando-se que, apesar de ter consciência quanto ao envolvimento de um coautor ou partícipe na prática delituosa, o ofendido deliberadamente tenha deixado de propor a ação penal em relação a ele, entende-se que houve renúncia tácita quanto ao que foi excluído, renúncia esta que se estende àquele que constou da queixa-crime (CPP, art. 49), acarretando a extinção da punibilidade de todos os autores da infração penal;77 b) omissão involuntária: tratando-se de omissão involuntária do querelante, ou seja, caso fique constatado que, por ocasião do oferecimento da queixa-crime, o querelante não tinha cons­ ciência do envolvimento de outros agentes, deve o Ministério Público requerer a intimação do querelante para que proceda ao aditamento da queixa-crime a fim de incluir os demais coautores e partícipes. Se o querelante assim o fizer, o processo terá curso normal. Se, todavia, instado pelo Promotor, o querelante não promover o adequado aditamento à queixa-crime, deixando de nela incluir outros coautores e partícipes do fato delituoso que tenham sido identificados, há de se reconhecer evidente violação ao princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada (CPP, art. 48), o que configura renúncia tácita ao direito de queixa (CP, art. 104), que se comunica a todos os supostos autores do delito, tal qual prevê o art. 49 do CPP, e constitui causa extintiva da punibilidade (CP, art. 107, V). A propósito, em caso concreto relativo a mensagens eletrônicas por meio das quais foram praticados em coautoria os crimes de calúnia, injúria e difamação, porém cuja queixa-crime foi oferecida contra apenas uma das autoras dos delitos, concluiu a 5a Turma do STJ que cabe ao querelante propor a ação penal privada obrigatoriamente contra todos os supostos coautores do delito, sobretudo quando todos eles forem perfeitamente identificáveis. O direito de queixa é indivisível. Assim, a queixa contra qualquer autor do crime obrigará ao processo de todos os envolvidos (art. 48 do CPP). Esclareceu o Min. Relator que não observar o princípio da indivi­ sibilidade da ação penal, que toma obrigatória a formulação da queixa contra todos os autores, coautores e partícipes do crime, além de acarretar a renúncia ao direito de queixa a todos, é causa da extinção da punibilidade (art. 107, V, do CP).78 6.10. Princípio da oficialidade Consiste na atribuição da legitimidade para a persecução criminal aos órgãos do Estado. Em outras palavras, a apuração das infrações penais fica, em regra, a cargo da polícia investigativa, enquanto que a promoção da ação penal pública incumbe ao Ministério Público, nos

77

78

No sentido de que o não oferecimento de queixa-crime contra todos os supostos autores ou partícipes da prática delituosa afronta o princípio da indivisibilidade da ação penal, a implicar renúncia tácita ao direito de querela, cuja eficácia extintiva da punibilidade se estende a todos quantos alegadamente hajam intervindo no cometimento da infração penal: STF, 1^ Turma, Inq. 3.526/DF, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 02/02/2016, DJe 80 25/04/2016. Na visão da 5ã Turma do STJ, a não inclusão de eventuais suspeitos na queixa-crime não configura, por si só, renúncia tácita ao direito de queixa. Exige-se a demonstração de que a não inclusão de determinados autores ou partícipes na queixa-crime se deu de forma deliberada pelo querelante. A propósito: STJ, 5§ Turma, RHC 55.142/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 12/05/2015, DJe 21/05/2015. STJ, 5§ Turma, RHC 26.752/MG, Re. Min. Felix Fischer, j. 18/02/2010.

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exatos termos do art. 129,1, da Constituição Federal. Aplica-se à ação penal pública, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual. Em relação à ação penal de iniciativa privada, vigora apenas para a fase pré-processual, já que prevalece o entendimento de que ao particular, pelo menos em regra, não foram conferidos poderes investigatórios.79 6.11. Princípio da autoritariedade Os órgãos responsáveis pela persecução criminal são autoridades públicas. Aplica-se à ação penal pública, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual. Em relação à ação penal de iniciativa privada, vigora apenas para a fase pré-processual, já que prevalece o entendimento de que ao particular, pelo menos em regra, não foram conferidos poderes investigatórios.80 6.12. Princípio da oficiosidade Em se tratando de crimes de ação penal pública incondicionada, os órgãos incumbidos da persecução penal devem agir de ofício, independentemente de provocação do ofendido ou de terceiros. Nas hipóteses de ação penal pública condicionada, a autoridade policial e o Ministério Público ficam dependendo do implemento da representação do ofendido ou da requisição do Ministro da Justiça. Referido princípio não tem aplicação às hipóteses de ação penal de iniciativa privada, já que a atuação da polícia investigativa está subordinada à prévia manifestação do ofendido ou de seu representante legal (CPP, art. 5o, § 5o). 6.13. Quadro comparativo dos princípios da ação penal Princípios da açã o penal pública

com a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal, ao juiz não é dado iniciar um processo de ofício. 0 denomi­ nado processo judicialiforme, por meio do qual o juiz dava início a um processo por meio de portaria, não foi recepcionado pela Constituição Federal.

Princípio d o n e p ro cedat iudex ex officio:

Princípios da ação penal d e iniciativa privada Princípio d o ne p ro c e d a t iudex ex officio:

também se

aplica à ação penal de iniciativa privada. '

Princípio d o ne bis in idem : ninguém pode ser proces­ sado duas vezes pela mesma imputação. Previsto ex­ pressamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 89, n9 4)

Princípio do ne bis in idem: também

Princípio da in tra n sc e n d ê n c ia : a ação penal pública só pode ser proposta em relação ao provável autor do delito.

Princípio da intran scendência: a ação penal de iniciati­ va privada só pode ser proposta em relação ao provável autor do delito.

(ou legalidade processual): presentes as condições da ação penal e havendo justa causa para a deflagração de um processo criminal, o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia. De­ riva do art. 24 do CPP e do art. 30 do CPPM. Exceções ao princípio da obrigatoriedade:

Princípio da o p ortu n id ad e ou da con ven iên cia: median­ te critérios próprios de oportunidade ou conveniência, o ofendido pode optar pelo oferecimento (ou não) da queixa-crime. Caso não pretenda exercer seu direito, pode per­ manecer inerte durante o curso do prazo decadencial, ou renunciar (expressa ou tacitamente) ao direito de queixa, situações que darão ensejo à extinção da punibilidade em relação aos crimes de ação penal exclusivamente privada

Princípio da O brigatoriedade

1) Transação penal (art. 76 da Lei n9 9.099/95); 2) Acordo de leniência (Lei n9 12.529/11, arts. 86 e 87 );

se aplica à ação penal

de iniciativa privada.

79

Quanto à investigação criminal defensiva, vide capítulo pertinente à investigação preliminar.

80

Idem.

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO

—---- ---------—•

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“~r—

Princípios da a çã o pen al pública

..... _ ........ ........... . ___________ 3) Termo de ajustamento de conduta (Lei n9 7.347/85, art. 59, § 69);

j

Princípios da ação pen al d e iniciativa privada

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e de ação penal privada personalíssima, nos termos do art. 107, inciso IV e V, do Código Penal.

Parcelamento do débito tributário (Lei n9 9.430/96, art. 83, § 29, com redação dada pela Lei n9 12.382/11);

4)

5) Colaboração premiada na nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n9 12.850/13, arts. 49 a 79); Acordo de não persecução penal (Resolução n. 181 do CNMP, art. 18); r~ "” Princípio da ind isp onibilidade: se, por conta do princí­ pio da obrigatoriedade, o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia, não pode desistir da ação penal pública, nem tampouco do recurso que haja interposto (CPP, arts. 42 e 576). Isso, todavia, não significa dizer que o Ministério Público não possa pedir a absolvição do acusado. Exceção ao princípio da indisponibilidade: 6)

1) suspensão condicional do processo (Lei n9 9.099/95, art. 89);

se a ação penal de iniciativa privada está sujeita a critérios próprios de oportunidade ou conveniência do ofendido ou de seu representante legal, isso significa dizer que o querelante poderá dispor do processo penal em andamento. Formas de disposição: Princípio da disponibilidade:

1) perdão do ofendido: tem natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade nos crimes de ação penal exclu­ sivamente privada ou personalíssima, porém, ao contrário da renúncia, depende de aceitação do querelado; 2) perempção: é a perda do direito de prosseguir com o exercício da ação penal exclusivamente privada ou per­ sonalíssima em virtude da desídia do querelante, com a conseqüente extinção da punibilidade; 3) conciliação e assinatura de termo de desistência, no procedimento dos crimes contra a honra de competência do juiz singular (CPP, art. 522).

Princípio da (in) d ivisib ilidade: parte da doutrina en­ Princípio da indivisibilidade: o ofendido não é obrigado a tende que vigora na ação penal pública o princípio da agir (princípio da oportunidade ou conveniência). Porém, indivisibilidade. Logo, havendo lastro probatório contra se quiser exercer seu direito de queixa-crime, é obrigado a todos os coautores e partícipes, o Ministério Público é exercê-lo em relação a todos os coautores e partícipes do obrigado a oferecer denúncia contra todos (nossa posi­ fato delituoso. Como dispõe o art. 48 do CPP, o processo ção). Outra parte da doutrina e a jurisprudência majo­ de um obriga ao processo de todos. Como conseqüên­ ritária entende que vigora o princípio da divisibilidade, cia desse princípio, a renúncia ao exercício do direito de significando que o Parquet pode oferecer denúncia con­ queixa em relação a um dos autores do crime estende-se tra certos agentes, sem prejuízo do aprofundamento das aos demais (CPP, art. 49). Da mesma forma, o perdão concedido a um dos querelados aproveita a todos, salvo investigações quanto aos demais envolvidos. se um deles não o aceitar (CPP, art. 51). 0 fiscal desse princípio é o Ministério Público, que não tem legitimidade ad causam para aditar a queixa crime para incluir coau­ tores. Verificando-se que a omissão do querelante fora voluntária, haverá renúncia tácita, extensiva a todos os envolvidos. Afinal, se sabia da existência de outros coau­ tores e partícipes, e deixou de inclui-los no polo passivo da demanda, é porque renunciou ao direito de ação quanto a eles, renúncia esta que se estende aos demais, nos termos do art. 48 do CPP. Se, todavia, a omissão do querelante foi involuntária, deve o MP instar o querelante a aditar a queixa-crime para incluir os demais envolvidos, sob pena de caracterização de renúncia tácita, acarretando a extin­ ção da punibilidade de todos os envolvidos.

a legitimidade para a perse­ cução penal recai sobre órgãos do Estado, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual. Princípio da oficialid ade:

Princípio da oficialidade: aplica-se à ação penal de inicia­ tiva privada, porém apenas na fase pré-processual.

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Princípios da açã o penal pública

Princípios da açã o pen al d e iniciativa privada

Princípio da autoritariedade: o órgão responsável pela persecução criminal é autoridade pública, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual.

Princípio da au toritaried ad e:

nos crimes de ação penal pú­ blica incondicionada, as autoridades estatais são obriga­ das a agir de ofício, independentemente de provocação do ofendido ou de terceiros.

Princípio da oficiosid ad e:

Princípio da o ficio sid a d e:

aplica-se à ação penal de iniciativa privada, porém apenas na fase pré-processual. não se aplica à ação penal de iniciativa privada, já que, mesmo na fase investigatória, a atuação da polícia investigativa depende de prévio re­ querimento do ofendido ou de seu representante legal.

7. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA Se a pena deixou de ser um mero instrumento de restabelecimento da ordem jurídica violada pelo autor do fato delituoso e passou a ser um instrumento dissuasório da prática de infrações penais, nada mais natural do que o exercício da ação penal também deixasse de ser um direito exclusivo do ofendido e passasse a ser, em regra, um direito público, a ser exercido pelo próprio Estado. O titular da ação penal pública incondicionada é o Ministério Público (CF, art. 129,1), e sua peça inaugural é a denúncia. É denominada de incondicionada porque a atuação do Ministério Público não depende da manifestação da vontade da vítima ou de terceiros. Ou seja, verificando a presença das condições da ação e havendo justa causa para o oferecimento da denúncia, a atuação do Parquet prescinde do implemento de qualquer condição. Nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal, o titular da ação penal pública é o Ministério Público. Na mesma linha, com a reforma processual penal de 2008, o art. 257,1, do CPP, também passou a dispor que cabe ao Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida no Código de Processo Penal. A única exceção a essa regra fica por conta do art. 5o, LIX, da Carta Magna, que prevê que será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal. É a ação penal privada subsidiária da pública, também denominada de ação penal acidentalmente privada, cujo cabimento está condicionado à inércia do Ministério Público. Recaindo a titularidade da ação penal pública sobre o Ministério Público, é de se concluir que não foram recepcionados pela Constituição Federal dispositivos legais que permitiam que o delega­ do de polícia iniciasse o processo penal na delegacia, ou que o juiz instaurasse um processo penal condenatório de ofício. Não há mais espaço, portanto, para o denominado processo judicialiforme. Como visto acima, até o advento da Constituição Federal de 1988, era possível que o órgão jurisdicional desse início a um processo penal condenatório de ofício (ação penal de ofício). Era o que ocorria nas hipóteses estabelecidas na revogada Lei n° 4.611/65 (crimes culposos de lesão corporal ou de homicídio) e nos casos de contravenções penais: vide arts. 26 e 531 (o art. 531 teve sua redação alterada pela Lei n° 11.719/08). Consistia o processo judicialiforme, assim, na possibilidade de se dar início ao processo penal através de auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade policial ou judiciária, daí por que era denominado de ação penal ex officio (sem provocação). Funciona a ação penal pública incondicionada como a regra geral em nosso ordenamento jurídico. De acordo com o art. 100, caput, do CP, a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. Por sua vez, consoante dispõe o art. 100, § Io, do CP, a ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça. Além disso, segundo o

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art. 24, § 2o, do CPP, seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública. Os crimes praticados contra a criança e o adolescente previstos no EGA (Lei n° 8.069/90, art. 227), os crimes previstos na Lei de Falência e recuperação judicial (Lei n° 11.101/05, art. 184) e os crimes eleitorais (Lei n° 4.737/65, art. 355) são de ação penal pública incondicionada. Também o são os crimes definidos no Estatuto do Idoso, não se lhes aplicando os arts. 181 e 182 do Código Penal (Lei n° 10.741/03, art. 95). Por fim, o art. 29 do CPPM também estabelece que, em regra, a ação penal será pública incondicionada no processo penal militar. Assim, para que se possa saber a espécie de ação penal referente a determinado delito, de­ ve-se analisar se o Código Penal ou se a lei especial dispõe em sentido contrário, seja no próprio artigo onde o delito está tipificado, seja nas disposições finais do capítulo ou do título onde o crime estiver inserido. Quando o delito depende de representação, portanto, hipótese de crime de ação penal pública condicionada à representação, costuma-se usar a expressão “somente se procede mediante representação”; se o delito depende de requisição, logo, crime de ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça, utiliza-se a locução “procede-se me­ diante requisição do Ministro da Justiça”; por fim, quando se trata de crime de ação penal de iniciativa privada, usa-se a expressão “somente se procede mediante queixa”. A título de exemplo, quando se faz a análise de cada um dos crimes patrimoniais previstos no Título II da Parte Especial do Código Penal, percebe-se que, pelo menos em regra, o Có­ digo Penal nada dispõe acerca da espécie de ação penal. Logo, se a lei nada prevê em sentido contrário, estamos diante de crimes de ação penal pública incondicionada. Porém, há exceções: a) o art. 156, § Io, do CP, determina que, no crime de furto de coisa comum, somente se procede mediante representação; b) de acordo com o art. 161, § 3o, do CP, no crime de alteração de limites, se a propriedade é particular e não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa; c) no caso dos crimes de dano do art. 163, caput, art. 163, parágrafo único, IV, e na hipótese do crime de introdução ou abandono de animais em propriedade alheia, somente se procede mediante queixa, ex vi do art. 167 do Código Penal; d ) somente se procede mediante representação em relação ao crime do art. 176 do Código Penal (“tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento); e) somente se procede mediante queixa no crime de fraude à execução (CP, art. 179, pa­ rágrafo único); f) de acordo com o art. 182 do CP, inserido no capítulo que trata das disposições gerais dos crimes contra o patrimônio, somente se procede mediante representação se tais crimes forem cometidos em prejuízo: I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado; II - de irmão, legítimo ou ilegítimo; III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.81Aqui, há de se ficar atento à ressalva do art. 183 do CP, segundo o qual o disposto no art. 182 não terá aplicação:

81

Para incidir a imunidade do art. 182, III, do CP, deve ser comprovada a relação de parentesco entre tio e sobrinho, bem como a coabitação, a residência conjunta quando da prática do crime, que não se confunde com a mera hospedagem, a qual tem caráter temporário. Portanto, se o sobrinho passou apenas 3 (três) se­ manas na casa de seu tio, não há falar em coabitação, mas sim em mera hospedagem ocasional, daí por que não se aplica a imunidade penal relativa do art. 182, III, do CP, tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada: STJ, 6^ Turma, REsp 1.065.086/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 16/02/2012, DJe 05/03/2012.

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I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa; II - ao estranho que participa do crime; III - se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Por fim, convém destacar que, ao contrário da ação penal de iniciativa privada, que está sujeita ao prazo decadencial de 6 (seis) meses, a ação penal pública incondicionada pode ser proposta enquanto não tiver ocorrido a extinção da punibilidade, sendo que, na prática, a hipótese mais comum é a prescrição. 8. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA Quando a promoção da ação penal pública pelo Ministério Público depender de represen­ tação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça, diz-se que a ação penal é pública condicionada. Diz-se que é pública, pois promovida pelo órgão do Ministério Público; diz-se que é condicionada, já que o Parquet não poderá promovê-la sem que haja o implemento da condição imposta pela lei: representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça. Ao tratarmos do inquérito policial, foi dito que, quando o crime for de ação penal pública condicionada, o próprio início da investigação policial está subordinado ao implemento da representação ou da requisição do Ministro da Justiça. De fato, segundo o art. 5o, § 4o, “o inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado”. Quando um crime for de ação penal pública condicionada, a própria lei o dirá, geralmente usando as expressões “somente se procede mediante representação” (“ou mediante requisição do Ministro da Justiça”). É o que ocorre, por exemplo, com o crime de ameaça, consoante se infere do parágrafo único do art. 147 do CP. Por sua vez, o art. 7o, § 3o, “b”, do CP, dispõe que a lei brasileira também se aplica ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as condições previstas no art. 7o, § 2o, houve requisição do Ministro da Justiça, e desde que não tenha sido pedida ou que não tenha sido negada a extradição. 8.1. Representação Representação é a manifestação do ofendido ou de seu representante legal no sentido de que possui interesse na persecução penal do autor do fato delituoso. Por força do que a doutrina denomina de escândalo do processo pelo ajuizamento da ação penal {strepitus iudicii), reserva-se à vítima ou ao seu representante legal o juízo de oportuni­ dade e conveniência da instauração do processo penal, com o objetivo de se evitar a produção de novos danos em seu patrimônio moral, social e psicológico, em face de possível repercussão negativa trazida pelo conhecimento generalizado do fato delituoso. Some-se a isso o fato de que certos delitos afetam imediatamente o interesse particular, e apenas mediatamente o interesse geral, o que dificulta até mesmo a produção probatória, caso não haja cooperação da vítima. Daí o motivo pelo qual se condiciona a atuação do aparato estatal à manifestação da vontade da vítima ou de seu representante legal. Portanto, em relação à representação, vigora o princípio da oportunidade ou da conveniên­ cia, já que o ofendido ou seu representante legal podem optar pelo oferecimento (ou não) da representação. Apesar disso, doutrina e jurisprudência entendem que, pelo menos em regra, não é possível a ocorrência de renúncia à representação, já que o art. 104 do Código Penal refere-se apenas à renúncia do direito de queixa. Logo, não é cabível a renúncia do direito de represen­ tação, sob pena de se acrescentar uma hipótese de extinção da punibilidade sem previsão legal. A exceção a essa regra fica por conta da Lei dos Juizados, que prevê que, tratando-se de ação

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penal pública condicionada à representação, a homologação do acordo de composição dos danos civis acarreta a renúncia ao direito de representação (Lei n° 9.099/95, art. 74, parágrafo único). 8.1.1. Natureza jurídica da representação Em regra, a representação funciona como uma condição específica da ação penal. Ou seja, em relação a alguns delitos, a lei impõe o implemento dessa condição para que o órgão do Mi­ nistério Público possa promover a ação penal pública. Assim, caso o processo penal ainda não tenha tido início, e a atuação do Ministério Público dependa de representação, temos que esta funciona como condição específica de procedibilidade, sem a qual é inviável a instauração do processo penal, como deixa entrever o art. 24 do CPP e o art. 100, § Io, do CP. Se, porventura, for oferecida denúncia sem o implemento da representação do ofendido, deverá o magistrado rejeitar a peça acusatória, nos exatos termos do art. 395, II, segunda parte, do CPP, pois estaria faltando uma condição para o exercício da ação penal. Se, em regra, a representação funciona como condição específica da ação penal, não se pode perder de vista que, caso o processo já esteja em andamento, e a lei passe a condicionar seu prosseguimento ao implemento da representação, esta funcionará como condição de prosseguibilidade. É o que ocorreu em virtude do art. 91 da Lei n° 9.099/95: em relação aos processos relativos aos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa que estavam em andamento quando a Lei dos Juizados Especiais Criminais entrou em vigor (26/11/95), a representação funcionou não como uma condição específica de procedibilidade, mas sim como uma condição de prosseguibilidade, porquanto a lei condicionou o prosseguimento do feito ao implemento da representação no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência. 8.1.2. Desnecessidade de formalismo Ao longo dos anos, a jurisprudência tem proclamado, reiteradamente, que não há necessidade de maiores formalidades no tocante à representação. Prescinde-se, portanto, de que haja uma peça escrita com nomen iuris de representação nos autos do inquérito policial ou do processo criminal. Basta que haja a manifestação da vontade da vítima ou de seu representante legal, evidenciando a intenção de que o autor do fato delituoso seja processado criminalmente. Não por outro motivo, já se considerou como representação um mero boletim de ocorrência, declarações prestadas na polícia, etc.82 8.1.3. Destinatário da representação De acordo com o art. 39, caput, do CPP, o direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial. Além disso, a represen­ tação deverá conter todas as informações que possam servir à apuração do fato delituoso e de sua autoria (CPP, art. 39, § 2o). Oferecida ou reduzida a termo a representação, a autoridade policial procederá a inquérito, ou, não sendo competente, remetê-lo-á à autoridade que o for (CPP, art. 39, § 3o). A despeito do

82

Na dicção da I a Turma do Supremo, para a representação, não se exige formalismo, sendo suficiente a ma­ nifestação inequívoca de que se inicie o processo contra o acusado: STF, I a Turma, RHC 65.549/RS, Rei. Min. Moreira Alves, j. 22/03/1988, DJ17/06/1988. Com entendimento semelhante: STJ, 5a Turma, HC 89.475/PR, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28/08/2008, DJe 22/09/2008; STF, I a Turma, HC 86.122/SC, Rei. Min. Eros Grau, j. 15/12/2005, DJ 17/03/2006; STJ, 6a Turma, HC 101.742/DF, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/08/2011, DJe 31/08/2011.

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teor desse dispositivo, ao estudarmos o inquérito policial, já foi visto que incumbe ao delegado, a priori, verificar a procedência e veracidade das informações, evitando-se, assim, a instauração de investigações temerárias. Quando feita ao juiz, há duas possibilidades, pelo menos de acordo com o CPP: a) se, com a representação, forem fornecidos elementos que possibilitem a apresentação da denúncia, deve o juiz abrir vista ao Ministério Público, nos termos do art. 40; b) se, com a representação, não forem fornecidos elementos que possibilitem o oferecimento da denúncia, deve o juiz remetê-la à autoridade policial para que esta proceda à instauração de inquérito policial (CPP, art. 39, § 4o). A despeito do teor do Código de Processo Penal, pensamos que, de modo a preservar sua imparcialidade, deve o magistrado abster-se de fazer qualquer análise de seu conteúdo, encaminhando-a de imediato ao órgão ministerial. Ainda segundo o CPP, o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a re­ presentação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de 15 (quinze) dias (art. 39, § 5o). Caso contrário, deve requisitar a instauração de inquérito policial, após o que poderá oferecer denúncia ou promover seu ar­ quivamento. Perceba-se, então, que a representação não vincula o órgão do Ministério Público. Afinal, se a ação penal tem natureza pública, tendo como titular o Ministério Público, cabe ao órgão ministerial formar sua opinio delicti, podendo requerer o arquivamento caso conclua, por exemplo, pela atipicidade dos fatos narrados na representação da vítima. No âmbito dos Juizados Especiais Criminais, especial atenção deve ser dispensada ao quanto disposto no art. 75 da Lei n° 9.099/95: “não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade de exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo. Parágrafo único. O não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei.” Da leitura do referido dispositivo, depreende-se que, no âmbito dos Juizados, a representação deve ser feita em juízo. Não obstante, a jurisprudência tem emprestado validade à representação feita em sede policial, entendendo ser desnecessária sua ratificação em juízo. Deveras, tendo em conta a possibilidade concreta de que a audiência preliminar nos Juizados seja designada após o decurso do prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado do conhecimento da autoria, é recomendável que essa representação já seja colhida pela própria autoridade policial, por ocasião da lavratura do termo circunstanciado, evitando-se, assim, a frustração do exercício do direito por conta da demora na designação da referida audiência. 8.1.4. Legitimidade para o oferecimento da representação A legitimidade para o oferecimento da representação possui o mesmo regime jurídico da titularidade para o oferecimento da queixa-crime. Portanto, o que for trabalhado neste tópico também se aplica à ação penal exclusivamente privada e à ação penal privada subsidiária da pública. Por isso, quando fizermos menção à “representação”, leia-se também “queixa-crime”.83 Como deixa entrever o art. 39 do CPP, o direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente, ou por procurador com poderes especiais. Esse procurador a que se refere o art. 83

Dissemos que a discussão em torno da titularidade aplica-se apenas à ação penal exclusivamente privada e à ação penal privada subsidiária da pública, eis que, quanto à ação penal privada personalíssima, o tema não apresenta maior complexidade, já que o direito de ação só pode ser exercido pelo ofendido, não sendo possível a intervenção de eventual representante legal, de curador especial, nem tampouco sucessão processual no caso de morte ou ausência da vítima.

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39 do CPP não precisa ser um profissional da advocacia. A procuração, por sua vez, deve conter poderes especiais, fixando-se a responsabilidade do mandante e do mandatário. Em regra, o titular da representação é o ofendido. Porém, há situações específicas que merecem especial atenção: a) ofendido com 18 (dezoito) anos de idade, que não seja mentalmente enfermo ou retardado mental: tem capacidade plena para exercer o direito de representação. De acordo com o art. 5o do Código Civil, a menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Logo, o direito de representação já pode ser exercido pelo ofendido, independentemente de representação, já que não se pode falar em representante legal de uma pessoa capaz. A partir dos 18 (dezoito) anos, o ofendido já conta com legitimidade exclusiva para oferecer representação, em crime de ação penal pública condicionada à representação, ou para oferecer queixa, em infração penal de iniciativa privada. Essa capacidade processual autônoma do ofendido com 18 (dezoito) anos é confirmada pela Lei n° 10.792/03, que revogou o art. 194 do CPP, o qual previa a necessidade de nomeação de curador para o ofendido com idade entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos de idade.84 Até a vigência do novo Código Civil, a sistemática do CPP em relação ao ofendido maior de 18 (dezoito) e menor de 21 (vinte e um) anos era de legitimidade concorrente, nos termos do art. 34 do CPP. Esse o motivo pelo qual a queixa e outros institutos como o perdão e a re­ núncia poderiam ser feitos tanto pela vítima quanto por seu representante legal, já que era ela considerada relativamente capaz para a prática dos atos da vida civil. Por isso, aliás, foi editada a súmula n° 594 do Supremo (“os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos, independentemente, pelo ofendido ou por seu representante legal”). Na mesma linha, o parágrafo único do art. 50 do CPP também dispunha que a renúncia do representante legal do menor que houver completado 18 (dezoito) anos não privará este do direito de queixa, nem a renúncia do últim o excluirá o direito do primeiro, o que confirma que, a partir dos 18 (dezoito) anos, o direito do ofendido e de seu representante legal eram autônomos, daí por que a renúncia de um não prejudicaria o direito do outro, pelo menos até que a vítima atingisse a idade de 21 (vinte e um) anos. Com o art. 5o do Código Civil, e a revogação do art. 194 do CPP pela Lei n° 10.792/03, entende-se que, ao completar 18 (dezoito) anos, a vítima já é plenamente capaz, não havendo mais a possibilidade de o direito de representação ou de queixa ser exercido por seu ascendente, já que este não é mais seu representante legal. Conclui-se, então, que os arts. 34 e 50, parágrafo único, ambos do CPP, e igualmente a súmula 594 do STF, estão tacitamente revogados, não tendo mais qualquer aplicação prática. b) ofendido com menos de 18 (dezoito) anos, mentalmente enfermo ou retardado mental: o direito de representação será exercido por seu representante legal. Devido ao informalismo que impera em sede de representação, a jurisprudência entende que qualquer pessoa que, de alguma forma, seja responsável pelo menor, poderá oferecer a representação, tais como avós, irmãos, pessoa de que dependa economicamente, etc. c) ofendido menor de 18 (dezoito) anos, mentalmente enfermo, ou retardado mental, que não tenha representante legal, ou havendo colidência de interesses: nessa hipótese, o direito

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A mulher casada, com 18 (dezoito) completos ou mais, pode representar ou oferecer queixa-crime sem o con­ sentimento do marido. Em sua redação original, o CPP (art. 35) previa que a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem consentimento do marido, salvo quando estivesse dele separada ou quando a queixa fosse contra ele. Obviamente, tal dispositivo não fora recepcionado pela Constituição Federal, sendo finalmente revogado pela Lei n9 9.520/97.

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de queixa ou de representação poderá ser exercido por curador especial, nomeado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo juiz competente para o processo penal (CPP, art. 33, por interpretação extensiva).85Esse curador especial nomeado pelo juiz não é obrigado a oferecer representação ou queixa, pois, se assim fosse, o juiz estaria promovendo a persecução penal. Cabe a ele, na verdade, avaliar a conveniência e a oportunidade de agir, só o fazendo se julgar oportuno aos interesses do menor, do mentalmente enfermo ou do retardado mental. Quando o curador especial oferece a representação ou a queixa, age em nome próprio na defesa de interesse alheio. Cuida-se, portanto, de hipótese de legitimação extraordinária ou substituição processual. d) pessoa jurídica: as fundações, associações ou sociedades legalmente constituídas po­ derão exercer seu direito de representação, devendo ser representadas por quem os respectivos contratos ou estatutos designarem ou, no silêncio destes, pelos seus diretores ou sócios-gerentes (CPP, art. 37, por interpretação extensiva); e) ofendido maior de 16 (dezesseis) e menor de 18 (dezoito) anos casado: segundo o art. 1.517 do Código Civil, após os 16 (dezesseis) anos, os menores podem se casar com autorização dos pais ou responsáveis legais, vindo a adquirir a capacidade civil plena. A despeito da aquisição da capacidade civil plena, entende-se que este ainda não é dotado de capacidade para oferecer representação ou queixa. Como ele não pode exercer seu direito pessoalmente, não possuindo representante legal por conta da emancipação, há duas possibilidades: 1) nomeação de curador especial, nos termos do art. 33 do CPP; 2) aguarda-se que atinja a idade de 18 (dezoito) anos, quando, então, poderá exercer seu direito de queixa ou de representação. Nesse caso, não há falar em decadência, porquanto o prazo decadencial não flui para aquele que não pode exercer seu direito por conta da incapacidade. Esse mesmo raciocínio é aplicável às demais hipóteses de emancipação.86 f) morte da vítima: no caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, a lei prevê especial hipótese de legitimação anômala, sendo que o direito de oferecer queixa ou representação ou de prosseguir na ação penal de iniciativa privada passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. É o que se denomina de sucessão processual, prevista no art. 24, § Io (sucessão nos casos de representação) e no art. 31 (sucessão processual na ação penal de iniciativa privada). Há, aí, uma ordem de preferência: primeiro cônjuge, depois ascendente, sucessivamente. Caso o cônjuge não possua interesse, o direito de representação ou de queixa-crime passará ao ascendente e, assim, sucessivamente. No entanto, na hipótese de sucessão processual em queixa-crime, qualquer um dos sucessores poderá prosseguir no processo já instaurado, caso o querelante (v.g., o cônjuge) desista ou abandone a instância (CPP, art. 36). Havendo divergência entre os sucessores, prevalece a vontade daquele que deseja dar início à persecução criminal. Por força do disposto no art. 226, § 3o, da Constituição Federal, grande parte da doutrina insere no rol dos sucessores o companheiro. Logo, a ordem seria cônjuge (ou companheiro), ascendente, descendente ou irmão. A nosso ver, não se pode incluir o companheiro nesse rol, 85

Por força do art. 3e do CPP, permite-se a interpretação extensiva. Se, na hipótese de queixa-crime, o juiz pode nomear um curador especial para o ofendido, também poderá fazê-lo na hipótese de simples representação.

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Como observa Marcellus Polastri Lima, apesar da emancipação, o critério guarda correspondência com o Código Penal, que prevê a imputabilidade a partir do momento em que o agente completa 18 (dezoito) anos de idade, só se admitindo o oferecimento de representação ou de queixa por parte daquele que tenha responsabilidade penal. Logo, como observa o autor, "se somente o agente de 18 anos pode responder criminalmente, também só nesta idade poderá oferecer a representação". (M anual de processo penal. 2§ ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 169).

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sob pena de indevida analogia in malam partem. A inclusão do companheiro ou da companheira nesse rol de sucessores produz reflexos no direito de punir do Estado, já que, quanto menos sucessores existirem, maior é a possibilidade de que o não exercício do direito de representa­ ção ou de queixa no prazo legal acarrete a extinção da punibilidade pela decadência. Portanto, cuidando-se de regra de direito material, não se pode querer incluir o companheiro, sob pena de indevida analogia in malam partem, malferindo o princípio da legalidade (CF, art. 5o, XXXIX). 8.1.5. Prazo decadencial para o oferecimento da representação De acordo com o art. 38, caput, do CPP, “salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá do direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia”. Como se vê, o prazo para o oferecimento da representação é de 6 (seis) meses, contado do dia em que se sabe quem é o autor do delito. Trata-se de prazo de natureza material, fatal e im­ prorrogável, a ser contado nos termos do art. 10 do CP: “o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum”.87 Assim, como o dia do início inclui-se no cômputo do prazo, supondo-se que um crime de lesão corporal leve tenha sido cometido contra uma pessoa capaz com 18 (dezoito) anos com­ pletos (ou mais) em data de 26 de março de 2010, pode-se dizer que a representação deve ser oferecida até o dia 25 de setembro de 2010, às 23h59min, sob pena de decadência e conseqüente extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, IV, segunda figura, do Código Penal. Ao contrário do que ocorre com a prescrição, cujo prazo está sujeito a interrupções ou suspensões, o prazo decadencial é fatal e improrrogável. Assim, não se suspende e não se in­ terrompe. Também não admite prorrogações. Logo, expirando-se num domingo ou feriado, não pode ser prorrogado, como se dá com os prazos processuais (CPP, art. 798, § 3o). Em regra, o decurso do prazo decadencial só começa a fluir a partir do conhecimento da autoria. E isso por uma razão muito óbvia: só se pode falar em decadência de um direito que pode ser exercido. Se o ofendido não sabe quem é o autor do delito, não pode exercer seu direito. Mas como se comprova que o titular do direito de representação ou de queixa-crime só tomou conhecimento da autoria nesta ou naquela data? A nosso ver, a fim de se evitar o reconhecimento da decadência, caso a queixa ou a representação sejam apresentadas após o decurso do prazo de 6 (seis) meses da data do crime, recai sobre o autor da representação ou da queixa-crime o ônus de comprovar que só tomou conhecimento da autoria do delito em momento posterior, e em lapso temporal inferior a 6 (seis) meses, contados da queixa ou da representação, para trás. Muito se discute acerca da decadência do direito de queixa ou de representação nas hipó­ teses de inércia do representante legal do menor de 18 (dezoito) anos, mentalmente enfermo ou retardado mental. Parte da doutrina entende que, tratando-se de incapaz, o prazo decadencial de 6 (seis) meses não flui para ele enquanto não cessar a incapacidade, já que não se pode falar em decadência de um direito que não pode ser exercido. Logo, ainda que o representante legal, tendo tomado conhecimento da autoria do fato delituoso, não ofereça representação (ou queixa),

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Como observa Tourinho Filho, "considera-se mês o período de tempo contado do dia do início até às 24 horas do dia correspondente ao imediatamente anterior do mês subsequente. Assim, iniciado o prazo no dia 1Qde janeiro, expirar-se-á às 24 horas do dia 31 de janeiro. Se o ano não for bissexto e o prazo se iniciar no dia I s de fevereiro, terá o seu término às 24 horas do dia 28 do respectivo mês", (op. cit. p. 381).

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subsiste para o menor o direito de oferecê-la, a partir do momento em que atingir 18 (dezoito) anos, logicamente desde que não extinta a punibilidade por outra causa, como, por exemplo, a prescrição.88 Com a devida vênia, pensamos que o prazo decadencial é um só. O representante legal exerce na plenitude o direito de queixa ou de representação, como já se podia inferir do revogado art. 50, parágrafo único, do CPP, quando, implicitamente e a contrario sensu, permitia concluir que a renúncia do representante legal da pessoa com menos de 18 (dezoito) anos de idade privaria esta do direito de queixa. Logo, o decurso do prazo decadencial para o representante legal também afetaria o direito do menor, do mentalmente enfermo ou do retardado mental.89 De todo modo, esse raciocínio só é válido se o representante legal tiver conhecimento acerca da autoria do crime. Por exemplo, se um menor com 16 (dezesseis) anos de idade foi vítima de um crime de ação penal pública condicionada à representação, e seu representante legal veio a saber de imediato quem teria cometido o delito, o prazo decadencial único irá começar a fluir, operando-se a extinção da punibilidade se o direito de representação não for exercido no prazo de 6 (seis) meses. Se, todavia, o representante legal não sabia quem era o autor do crime, o prazo decadencial não irá fluir nem para ele, nem para o menor, pois não se pode falar em decadência de um direito que não pode ser exercido, seja porque não se sabe quem é o autor do delito - no caso do representante legal -, seja porque se trata de pessoa incapaz. No entanto, a partir do momento em que o menor atingir a idade de 18 (dezoito) anos, poderá exercer seu direito. Por fim, se o menor estava com 17 (dezessete) anos e 10 (dez) meses quando foi vítima do crime, e, naquela mesma data, contou ao seu representante legal quem teria sido o autor do delito, conclui-se que o representante legal terá 02 (dois) meses para exercer o direito de queixa ou de representação, já que, quando o menor completar 18 (dezoito) anos, cessará a representação legal. Se a representação não for oferecida pelo representante até aquele momento, o ofendido ainda poderá fazê-lo, contanto que dentro do prazo restante de 04 (quatro) meses. Há exceções à regra de que o prazo decadencial só começa a fluir a partir do conhecimento da autoria. Como deixa entrever o art. 236, parágrafo único, do Código Penal, referente ao crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento, a ação penal depende de queixa do contraente enganado e não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento. Nos casos de sucessão processual (CPP, art. 31), o prazo decadencial também é de 6 (seis) meses, tal qual prevê o parágrafo único do art. 38 do CPP. Assim, operando-se a morte do ofen­ dido, seus sucessores terão direito ao prazo restante. Se já ocorrera o decurso de 02 (dois) meses do prazo decadencial do ofendido, seus sucessores terão direito ao prazo restante - 04 (quatro) meses. Considerando que o prazo decadencial é uno, se um dos sucessores já tinha conhecimen­ to da autoria, o prazo restante de 04 (quatro) meses fluirá automaticamente a contar do óbito do ofendido. Caso venham a tomar conhecimento da autoria apenas após o óbito do ofendido, o prazo decadencial restante de 4 (quatro) meses irá começar a fluir a partir de tal momento. A Lei de imprensa (Lei n° 5.250/67) trazia regramento diferenciado para a contagem do prazo para o oferecimento da representação. De acordo com seu art. 41, § Io, o direito de

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É essa a opinião de Guilherme de Souza Nucci (M a nual de processo penal e execução penal. 5ã ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 205) e de Julio Fabbrini Mirabete (Processo penal. 18ã edição. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 133).

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Nesse sentido: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. I I s ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 138.

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queixa ou de representação deveria ser exercido dentro de 3 (três) meses da data da publicação ou transmissão. Este prazo era suspenso pelo requerimento judicial de publicação de resposta ou pedido de retificação, e até que este fosse indeferido ou efetivamente atendido, assim como pelo pedido judicial de declaração de inidoneidade do responsável, até o seu julgamento. Ocorre que, por força da decisão do Supremo na ADPF n° 130-7, todo o conjunto de dispositivos da Lei n° 5.250/67 foram tidos como não recepcionados pela Constituição Federal. Destarte, às demandas decorrentes das relações de imprensa, aplica-se o regramento da legislação comum, no caso, o art. 38 do CPP. 8.1.6. Retratação da representação Já foi dito que, em relação à representação, vigora o princípio da oportunidade ou da conveniência, significando que o ofendido ou seu representante legal podem optar pelo ofere­ cimento (ou não) da representação. Como desdobramento dessa autonomia da vontade, a lei também prevê a possibilidade de retratação da representação, que só poderá ser feita enquanto não oferecida a denúncia pelo órgão do Ministério Público. Retratação, portanto, somente até o oferecimento da denúncia, marco temporal este que não se confunde com o recebimento da peça acusatória pelo magistrado. É esse, aliás, o teor do art. 102 do Código Penal e do art. 25 do CPP, que preveem que a representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia. Logo, oferecida a denúncia, o ofendido ou seu representante legal já não podem mais se retratar sob a alegação de que o juiz ainda não teria recebido a peça acusatória. Essa retratação da representação a que se refere o art. 102 do CP e o art. 25 do CPP não se confunde com aquela de que cuida o art. 107, inciso VI, do Código Penal, segundo o qual ex­ tingue-se a punibilidade pela retratação do agente, nos casos em que a lei a admite. Nesta, quem se retrata não é a vítima do crime, mas sim o próprio autor do delito, que resolve desdizer o que havia dito antes, o que caracteriza, nos casos permitidos em lei, causa extintiva da punibilidade (v.g., arts. 143, 342, § 2o, ambos do CP). 8.1.6.1. Retratação da retratação da representação Como visto no tópico anterior, ainda que o ofendido tenha apresentado sua representação, poderá voltar atrás, desde que a retratação da representação ocorra antes do oferecimento da denúncia. Discute-se, então, se, diante da retratação da representação, seria possível ao ofendido ou ao seu representante legal oferecer nova representação, o que eqüivaleria, grosso modo, à uma retratação da retratação da representação. Apesar de posição minoritária em sentido contrário,90prevalece na doutrina o entendimento de que, mesmo após se retratar de representação anteriormente oferecida, poderá o ofendido oferecer nova representação, desde que o faça dentro do prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado do conhecimento da autoria. 8.1.6.2. Retratação da representação na Lei Maria da Penha Retratar-se significa voltar atrás, arrepender-se; pressupõe o prévio exercício de um direito. Não se confunde, portanto, com a renúncia, quando alguém abre mão de um direito que ainda não fora exercido. 90

Para Fernando da Costa Tourinho Filho, permitir a retratação da retratação é entregar ao ofendido arma poderosa para fins de vingança ou outros inconfessáveis (Processo penal. Volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 370).

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Por isso, especial atenção deve ser dispensada ao art. 16 da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06). Apesar de o dispositivo falar em renúncia à representação, trata-se, na verdade, de retratação. Se a própria lei fala em audiência, a ser designada antes do recebimento da denúncia, significa dizer que já teria havido o oferecimento da representação. Afinal, se a representação não tivesse sido anteriormente oferecida, sequer seria possível a deflagração das investigações e o oferecimento da denúncia. Nesse sentido, convém lembrar que, em sede de violência doméstica, a representação é levada a efeito por ocasião do registro da ocorrência, oportunidade em que é tomada a termo pela autoridade policial (Lei n° 11.340/06, art. 12,1). Destarte, conclui-se que houve uma impropriedade técnica do legislador ao usar a expressão renúncia no art. 16 da Lei Maria da Penha, já que se trata, na verdade, de hipótese de retrata­ ção da representação. Portanto, de forma distinta da previsão do art. 25 do CPP, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a retratação da representação pode se dar até o recebimento da peça acusatória, em audiência especialmente designada com tal finalidade, assegurada a presença do juiz, e ouvido o Ministério Público.91 Ainda em relação ao art. 16 da Lei n° 11.340/06, é importante destacar que a audiência a que se refere o dispositivo não é de designação obrigatória nos crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal audiência também não é uma condição de abertura da ação penal em relação a tais delitos. Em síntese, sua realização não pode ser determinada de ofício pelo juiz como forma de se constranger a vítima a ratificar representação anteriormente oferecida. Na verdade, sua realização só deve ser determinada pela autoridade judiciária nos casos de crime de ação penal pública condicionada à representação (v.g., ameaça, lesão corporal leve, injúria racial, etc), e desde que tenha havido prévia manifestação da parte ofendida antes do recebimento da denúncia, a demonstrar sua intenção de retratar-se da representação oferecida para o ajuizamento da ação penal contra o autor da violência doméstica, cabendo ao magistrado verificar a espontaneidade e a liberdade na prática de tal ato. Logo, caso não tenha havido qual­ quer manifestação da vítima quanto ao seu interesse em se retratar, não há qualquer nulidade decorrente da não realização da referida audiência, já que a lei não exige a realização ex officio de uma audiência para ratificação da representação anteriormente oferecida.92 8.1.7. Eficácia objetiva da representação Suponha-se que determinado ofendido ofereça representação em relação a Tício pela prática de um crime de lesão corporal leve ocorrido em data de 22 de abril de 2010. As in­ vestigações, no entanto, demonstram que referido crime foi cometido em coautoria por Tício e por Mévio. Além disso, também ficou comprovado que um outro crime de lesão corporal leve havia sido praticado contra a mesma vítima no dia 15 de abril de 2010. Questiona-se: o Ministério Público está autorizado a agir em relação a Tício e Mévio? Poderá oferecer de­ núncia em relação aos dois crimes de lesão corporal ou somente em relação àquele que foi objeto de representação?

91

Na mesma linha: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica (Lei M a ria da Penha): Lei n g 11.340/2006, com entada a rtigo p o r artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 75; DIAS, Maria Berenice. A Lei M a ria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de com bate à violência doméstica e fa m ilia r contra a mulher. 3ã ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 99.

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STJ, 5ã Turma, RMS 34.607/MS, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu - Desembargador convocado do TJ/RJ -, j. 13/9/2011. E ainda: STJ, 5ã Turma, HC 178.744/MG, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 10/05/2011; STJ, 5* Turma, HC 179.446/PR, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 03/05/2012, DJe 10/05/2012; STF, 1* Turma, HC 98.880/MS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 04/10/2011, DJe 201 18/10/2011.

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Feita a representação contra apenas um dos coautores ou partícipes de determinado fato delituoso, esta se estende aos demais agentes, autorizando o Ministério Público a oferecer de­ núncia em relação a todos os coautores e partícipes envolvidos na prática desse crime (princípio da obrigatoriedade). É o que se chama de eficácia objetiva da representação. Funcionando a representação como manifestação do interesse da vítima na persecução penal dos autores do delito, o Ministério Público poderá agir em relação a todos eles. Isso, no entanto, não permite que o Ministério Público ofereça denúncia em relação a outros fatos delituosos, ou seja, se se trata de fato delituoso distinto, haverá necessidade de outra representação. Pudesse o Ministério Público oferecer denúncia em relação a outros fatos delituosos, também de ação penal pública condicionada, estaria o Parquet a contornar o caráter condicionado da ação penal pública, con­ ferindo-lhe natureza incondicionada.93 Portanto, se, num crime contra a honra praticado contra funcionário público no exercício de suas funções, limitar-se o ofendido a oferecer representação no sentido de que o autor do delito seja processado apenas em relação a um delito (v.g., injúria), poderá o Ministério Público denunciar todos os envolvidos na prática do referido delito. Todavia, não poderá o órgão mi­ nisterial, em ação penal pública condicionada à representação, extrapolar os limites materiais previamente traçados na representação, procedendo a uma ampliação objetiva indevida para oferecer denúncia, por exemplo, pela prática de calúnia, difamação e injúria. Se assim o fizer, deverá o magistrado rejeitar a peça acusatória em relação aos crimes de calúnia e difamação, ex vi do art. 395, inciso II, do CPP, haja vista a ausência de uma condição específica da ação penal em relação a tais delitos: a representação.94 8.1.8. Representação no processo penal militar O Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar não preveem crimes de ação penal pública condicionada à representação. Não obstante, por força do art. 88 da Lei n° 9.099/95, que dispôs que os crimes de lesão corporal leve e lesões culposas passariam a de­ pender de representação, surgiu intensa controvérsia quanto à aplicação do referido dispositivo na Justiça Castrense. Ocorre que a Lei n° 9.839/99 acrescentou o art. 90-A à Lei n° 9.099/95, passando a dispor que as disposições da Lei dos Juizados Especiais Criminais não seriam aplicáveis no âmbito da Justiça Militar. Ao suprimir a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados no âmbito da Justiça Militar, fica evidente que a Lei n° 9.839/99 tem natureza processual material, ou seja, cuida-se de norma que, embora disciplinada em diploma processual penal, produz reflexos no ius libertatis do agente. Como conseqüência, o critério de direito intertemporal a ser aplicado 93

Com entendimento semelhante: NUCCI. Op. cit. p. 197-198. Comungam do mesmo entendimento Aury Lopes Jr. (Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 360) e Marcellus Polastri Lima (Manual de processo penal. 29 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 172). Em sentido contrário, Luiz Flávio Gomes sustenta que, caso a vítima represente apenas elencando parte dos envolvidos, deve o M inisté rio Público provocá-la a se manifestar quanto ao corréu ou partícipe não indicado.

Permanecendo a omissão, deve ser reconhecida a renúncia ao direito de representar, o que operaria a extinção da punibilidade em benefício de todos os envolvidos na infração. (Direito processual penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 98). 94

Com esse entendimento: STF, 29 Turma, HC 98.237/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 15/12/2009. Na mesma linha: STJ, 59 Turma, HC n9 57.200/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 30/10/2006 p. 348. Em sentido semelhante, a l ã Turma do STF já teve a oportunidade de concluir que o fato objeto da representação da ofendida ou de seu represen­ tante legal constitui limitação material à ação penal pública a ela condicionada: STF, l 9 Turma, RHC 83.009/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 05/09/2003.

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não é o da aplicação imediata da norma processual (tempus regit actum), constante do art. 2o do CPP, mas sim o critério da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Assim, como a lei tem natureza nitidamente gravosa, pois priva o autor de crime militar da incidência dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados, há de se concluir que o art. 90-A só se aplica aos crimes militares cometidos a partir do dia 28 de setembro de 1999, data da vigência da Lei n° 9.839/99.95 8.2. Requisição do Ministro da Justiça Quando a persecução penal estiver subordinada à manifestação de vontade do Ministro da Justiça, diz-se que a ação penal é pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça. Se, porventura, a denúncia for oferecida sem o implemento da requisição do Ministro da Justiça, deverá o magistrado rejeitar a peça acusatória, nos exatos termos do art. 395, II, segunda parte, do CPP, pois estaria faltando uma condição (específica) para o exercício da ação penal. Requisição é a manifestação da vontade do Ministro da Justiça, no sentido de que pos­ sui interesse na persecução penal do autor do fato delituoso. É condição sine qua non para a instauração de inquérito policial e para o oferecimento da ação penal pública nos crimes em que a lei a exigir. O fundamento para condicionar a persecução penal de determinado delito à requisição do Ministro da Justiça é semelhante ao da representação: evitar o strepitus judicii ou strepitus processus, quer no sentido de se evitar que o processo penal cause maiores prejuízos que o próprio delito, quer no sentido de se evitar inconvenientes políticos ou diplomáticos para o Brasil. Portanto, quanto a ela, vigora o princípio da oportunidade ou conveniência, segundo o qual o Ministro da Justiça tem a faculdade de oferecer (ou não) a requisição. No âmbito processual penal comum, não é comum a exigência de requisição do Ministro da Justiça para a deflagração da persecução penal, podendo ser lembradas as seguintes hipóteses: a) crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil (CP, art. 7o, § 3o, “b”); b) cri­ mes contra a honra cometidos contra o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro (CP, art. 141,1, c/c art. 145, parágrafo único, primeira parte). A requisição do Ministro da Justiça, nos mesmos moldes que a representação do ofendido, tem natureza jurídica de condição específica de procedibilidade, funcionando como mera auto­ rização para proceder, permissão para que o processo penal possa ser instaurado, manifestação da vontade do Ministro da Justiça no sentido de que possui interesse na persecução penal. É dirigida ao Ministério Público, na pessoa de seu respectivo Chefe: Procurador-Geral de Justiça ou Procurador-Geral da República. Deve conter todas as informações que possam servir à apuração do fato e de sua autoria. Apesar do nomen juris “requisição”, o Ministério Público não está obrigado a oferecer de­ núncia, sendo descabido falar-se em vinculação do Parquet à requisição do Ministro da Justiça. Como dito acima, a requisição é mera condição específica da ação penal pública, ação penal pública esta que tem como titular o Ministério Público, nos termos do art. 129,1, da Constituição Federal. Portanto, dotado que é o Ministério Público de independência funcional (CF, art. 127, § Io), cabe ao órgão ministerial formar sua opinio delicti, verificando, assim, se os elementos constantes da requisição autorizam (ou não) o oferecimento de denúncia. Ao contrário da representação, que deve ser oferecida no prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado do conhecimento da autoria, a lei silenciou acerca de eventual prazo para o oferecimento da requisição. Entende-se, portanto, que a requisição não está sujeita a prazo

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Com esse entendimento: STJ - AgRg no HC 60.081/SP - 6ã Turma - Rei. Min. Nilson Naves - DJe 26/05/2008.

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decadencial, podendo ser oferecida a qualquer tempo, contanto que ainda não tenha havido a extinção da punibilidade pelo advento da prescrição. No tocante à possibilidade de retratação da requisição, há controvérsias. Há doutrinadores, como Tourinho Filho,96 que entendem que, diante do silêncio do art. 25 do CPP, que faz menção apenas à retratação da representação, esse silêncio eloqüente deve ser compreendido no sentido de se considerar a retratação irrevogável, irretratável. A despeito dessa orientação, prevalece o entendimento doutrinário de que, nos mesmos moldes da representação, também é cabível a retratação da requisição do Ministro da Justiça, enquanto não oferecida a denúncia.97 Por fim, tal qual a representação, a requisição do Ministro da Justiça é dotada de eficácia objetiva: oferecida contra um dos agentes, estende-se aos demais coautores e partícipes do fato delituoso. 8.2.1. Requisição no processo penal militar No âmbito processual penal militar, a despeito de a regra ser a ação penal pública incondicionada promovida pelo Ministério Público Militar perante a Justiça Militar da União (ou pelo Ministério Público dos Estados perante a Justiça Militar dos Estados), diz o art. 122 do Código Penal Militar que, no caso do crime do art. 141 do CPM (“entendimento para gerar conflito ou divergência com o Brasil”), quando o agente for civil e não houver coautor militar, a ação penal dependerá requisição do Ministro da Justiça; nos crimes dos arts. 136 (“hostilidade contra país estrangeiro”), 137 (“provocação a país estrangeiro”), 138 (“ato de jurisdição indevida”), 139 (violação de território estrangeiro”), 140 (“entendimento para empenhar o Brasil à neutralidade ou à guerra”) e 141 (“entendimento para gerar conflito ou divergência com o Brasil”), todos do CPM, quando o agente for militar, a ação penal dependerá de requisição do Comandante da Arma a que aquele estiver subordinado. De acordo com o art. 31 do CPPM, o destinatário da requisição é o Procurador-Geral da Justiça Militar. 9. AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA No silêncio da lei, a ação penal é pública incondicionada. Há, porém, situações em que o Estado, titular exclusivo do direito de punir, transfere a legitimidade para a propositura da ação penal à vítima ou ao seu representante legal, a eles concedendo ojus persequendi injudicio. E o que ocorre na ação penal de iniciativa privada, verdadeira hipótese de legitimação extraordinária (ou substituição processual), já que o ofendido age, em nome próprio, na defesa de um interesse alheio, pois o Estado continua sendo o titular da pretensão punitiva. Na ação penal de iniciativa privada, o autor da demanda é denominado de querelante, ao passo que o acusado é chamado de querelado, sendo a peça acusatória chamada de queixa-crime. Nos últimos anos, nota-se uma crescente tendência em se restringir a quantidade de crimes submetidos à ação penal de iniciativa privada. Basta verificar o exemplo da Lei n° 12.033/09, que transformou o crime de injúria racial em crime de ação penal pública condicionada à 96 97

Op. cit. p. 401. Na mesma linha: LIMA, Marcellus Polastri. Manual de processo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 175. Com esse entendimento: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 7a ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010. p. 285. Etambém: Luiz Flávio Gomes (Direito processual penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 97) e Eugênio Pacelli de Oliveira (Curso de processo penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 126).

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representação, bem como o exemplo da Lei n° 12.015/09, que também transformou a maioria dos crimes sexuais em crimes de ação penal pública condicionada à representação - vide nova redação do art. 225, caput, do CP. Aliás, o projeto do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei do Senado n° 156/09) chega a prever a extinção da ação penal de iniciativa privada, subsistindo apenas a hipótese de ação penal privada subsidiária da pública, já que esta espécie está prevista na própria Constituição Federal. Os fundamentos que levam o legislador a dispor que determinado delito depende de queixa-crime do ofendido ou de seu representante legal são: a) há certos crimes que afetam imedia­ tamente o interesse da vítima e mediatamente o interesse geral; b) a depender do caso concreto, é possível que o escândalo causado pela instauração do processo criminal cause maiores danos à vítima que a própria impunidade do criminoso - é o que se chama de escândalo do processo (strepitusjudicií); c) geralmente, em tais crimes, a produção da prova depende quase que exclusi­ vamente da colaboração do ofendido, daí por que o Estado, apesar de continuar sendo o detentor do jus puniendi, concede ao ofendido ou ao seu representante legal a titularidade da ação penal. Tratando-se de crime de ação penal de iniciativa privada, é possível que a vítima prefira que o fato permaneça impune, diante da publicidade a que estaria exposta em virtude do início de um processo penal, incidindo naquilo que a criminologia denomina de vitimização secundária, a qual pode ser entendida mediante o efeito vitimizador “que têm os órgãos encarregados da Administração da Justiça quando, em suas investigações e atuações policiais ou processuais, expõem a vítima a novos danos ou a situações incômodas, umas vezes desnecessárias, mas outras inevitáveis, para a investigação do delito e castigo do delinqüente”.98 Especificamente quanto à ação penal privada subsidiária da pública, há outros fundamentos: a) a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5o, XXXV) - princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional; b) trata-se de importante instrumento de fiscalização do exercício da ação penal pública pelo Ministério Público. Quando um crime for de ação penal de iniciativa privada, assim o dirá a lei, expressamente, geralmente por meio da expressão “somente se procede mediante queixa”. E o que ocorre, em regra, com os crimes contra a honra, face o quanto disposto no art. 145, caput, do Código Penal.99 De mais a mais, mesmo na hipótese de crimes de ação penal pública, não se pode perder de vista o cabimento da ação penal privada subsidiária da pública. Afinal, de acordo com a própria Constituição Federal (art. 5o, LIX), será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal. Os princípios da ação penal de iniciativa privada foram trabalhados em conjunto com os da ação penal pública, para onde remetemos o leitor. A legitimidade para o exercício do direito de ação penal de iniciativa privada também foi abordada anteriormente, quando tratamos da titularidade para o oferecimento da representação. Para além da análise da legitimatio ad causam e da capacidade processual, aspectos que já foram abordados, é de fundamental importância ressaltar que o ajuizamento de queixa-crime demanda a presença de profissional da advocacia devidamente habilitado na Ordem dos Advo­ gados do Brasil, dotado de capacidade postulatória. Como será visto ao tratarmos dos requisitos da peça acusatória, é indispensável a existência de procuração com poderes especiais (CPP, art. 98

HASSEMER, Winfried; MUNOZ CONDE, Francisco. Introducción a Ia crim inologia. Valencia: Tirant Io Blanch, 2001. p. 184. A pud GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Volume III. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2006. p. 609.

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Para mais detalhes quanto à ação penal nos crimes contra a honra, vide abaixo tópico referente ao assunto.

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44). Ademais, na hipótese de ofendido pobre, assim considerado aquele que não possa prover às despesas do processo sem se privar dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da família (CPP, art. 32, § Io), o juiz deve nomear advogado dativo para a promoção da ação penal, onde não houver Defensoria Pública regularmente instalada. São 03 (três) as espécies de ação penal de iniciativa privada: exclusivamente privada, personalíssima e subsidiária da pública. 9.1. Ação penal exclusivamente privada Em sede de ação penal de iniciativa privada, funciona a ação penal exclusivamente privada como a regra. Diferencia-se da ação penal privada personalíssima porquanto, nesta, não é cabível a sucessão processual. Diversamente, nos crimes de ação penal exclusivamente privada, ope­ rando-se a morte ou a declaração de ausência do ofendido, o direito de queixa será transmitido aos sucessores, nos exatos termos do art. 31 do CPP. Supondo, assim, a prática de um crime contra a honra, os quais são, em regra, de ação penal exclusivamente privada (CP, art. 145, caput, Ia parte), ocorrendo a morte do ofendido, o direito de oferecer queixa-crime ou de prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, nos exatos termos do art. 31 do CPP. Se se tratasse de um crime de ação penal privada personalíssima, essa sucessão processual não seria cabível. Por conseqüência, a morte do ofendido causaria a extinção da punibilidade. 9.2. Ação penal privada personalíssima Nesta espécie de ação penal de iniciativa privada, o direito de ação só pode ser exercido pelo ofendido. Nesse caso, não há intervenção de eventual representante legal, de curador especial, nem tampouco haverá sucessão processual no caso de morte ou ausência da vítima. Logicamente, se o ofendido não possuir capacidade postulatória, deverá contratar advogado, o qual não será a parte principal, já que o profissional da advocacia defende em nome alheio direito alheio, agindo como se fosse o próprio ofendido. Se, em regra, a morte do autor do delito é causa extintiva da punibilidade, tal qual o prevê o art. 107,1, do CP, nas hipóteses de ação penal privada personalíssima, a morte da vítima também irá produzir a extinção da punibilidade. Isso porque, como não é cabível a sucessão processual, com a transmissão do direito de queixa-crime aos sucessores, se o ofendido vier a óbito, ter-se-á que reconhecer a extinção da punibilidade, quer pela decadência, se a ação penal ainda não tiver sido exercida, quer pela perempção, se o processo já estiver em andamento, já que a ninguém é dado promover a ação ou prosseguir no processo que estava em curso. Na hipótese de vítima menor de 18 (dezoito) anos, há necessidade de se aguardar que ela atinja 18 (dezoito) anos, quando poderá exercer seu direito de queixa. Isso porque a emancipa­ ção pelo casamento não produz efeitos no processo penal, nem para tomá-lo imputável, nem tampouco para lhe outorgar capacidade para exercer a ação penal. Nesse caso, não há falar em decadência, porquanto não se pode cogitar de decadência de um direito que não pode ser exercido. Há apenas um exemplo de crime de ação penal privada personalíssima no Código Penal: é o crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento ao casamento, previsto no art. 236 do Código Penal. Segundo o parágrafo único do art. 236 do CP, a ação penal depende de queixa do contraente enganado, do que se infere tratar-se de crime de ação penal privada personalíssima. Havia um outro exemplo no Código Penal, referente ao crime de adultério, porém referido delito foi abolido do estatuto penal por força da Lei n° 11.106/05.

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9.3. Ação penal privada subsidiária da pública Diz a Constituição Federal, em seu art. 5o, inciso LIX, que será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal. A ação penal privada subsidiária da pública, conhecida como ação penal acidentalmente privada (ou supletiva), também encontra previsão expressa no CP (art. 100, § 3o) e no CPP (art. 29). A previsão da ação penal privada subsidiária da pública no art. 5o da Constituição Federal denota que se trata de um direito fundamental, verdadeira cláusula pétrea, funcionando como importante forma de fiscalização do exercício da ação penal pública pelo Ministério Público. Supondo, assim, a prática de um crime de ação penal pública (v.g., furto), caso o Ministério Público permaneça inerte, o ofendido passa a deter legitimidade ad causam supletiva para o exercício da ação penal privada (no caso, subsidiária da pública). Logo, se o Ministério Público permanecer inerte - ou seja, se o órgão ministerial não oferecer denúncia, não requisitar dili­ gências, não requerer o arquivamento ou a declinação de competência, nem tampouco suscitar conflito de competência - surgirá para o ofendido, ou seu representante legal, ou sucessores, no caso de morte ou ausência da vítima, o direito de ação penal privada subsidiária da pública. Para o STF, há de ser feita uma interpretação estrita em relação ao que se pode atribuir como atuação do Ministério Público, dela excludindo as posturas que, ainda que formalmente demonstrem uma forma de agir do acusador público, em realidade - e materialmente - não passam de subterfúgios utilizados para mascarar sua inércia acusatória. Por isso, em julgado da Ia Turma daquela Corte,100concluiu-se que somente diligências imprescindíveis é que poderiam obstaculizar o ajuizamento da ação penal privada subsidiária da pública, excluindo, assim, aquelas movimentações na fase de investigação que seriam inúteis, ilegais ou destinadas a um não ajuizamento proposital da ação penal. Em outras palavras, somente atuações pautadas por um agir fundado em justificativas legalmente previstas é que desautorizam o ajuizamento daquela ação privada. Já houve intensa controvérsia quanto à possibilidade de a vítima oferecer queixa-crime subsidiária em caso de arquivamento do inquérito policial. Hoje, não há qualquer dúvida. Tendo o órgão do Ministério Público promovido o arquivamento dos autos do inquérito policial, resta claro que não houve inércia do Parquet, logo, não cabe ação penal privada subsidiária da pública. Em síntese, podemos afirmar que o que caracteriza a desídia é a ausência de qualquer manifestação do órgão ministerial dentro do prazo previsto em lei para o oferecimento da peça acusatória.101 Caracterizada a inércia do Parquet, enquanto o ofendido não oferecer a queixa subsidiária, também denominada de queixa substitutiva, o Ministério Público continua podendo propor a ação penal pública, sendo possível fazê-lo inclusive após a propositura da queixa, caso opte por repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva (CPP, art. 29). Afinal, a inércia do Ministério Público não transforma a natureza da ação penal, que continua sendo pública. Tal conclusão é importante, porque demonstra que a ação continua sendo regida pelos princípios da obrigato­ riedade e da indisponibilidade.

100 STF, 1- Turma, HC 74.276/RS, Rei. Min. Celso de Mello, j. 03/09/1996, DJe 37 23/02/2011. 101

Com esse entendimento: STF, Pleno, Inq 2.242 AgR/DF, Rei. Min. Eros Grau, j. 07/06/2006, DJ 25/08/2006, p. 16. Se houve a instauração de procedimento investigatório contra Promotora de Justiça, o qual, ao final, foi arquivado pela Procuradoria-Geral de Justiça por falta de tipicidade da conduta, não há como ter por cabível a ação privada subsidiária, mesmo que se reconheça como ausência de manifestação do MP o fato de o procurador-geral só ter arquivado a representação após o ajuizamento da citada ação penal subsidiária, pois eventual inação do MP estaria suprida por seu parecer de rejeição da queixa-crime, pedido que, segundo a jurisprudência, é irrecusável: STJ, 63 Turma, HC 175.141/MT, Rei. Min. Celso Limongi, j. 02/12/2010, DJe 17/12/2010.

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Portanto, após o nascimento do direito de ação penal privada subsidiária da pública, por conta da inércia do órgão ministerial, o mesmo fato delituoso fica sujeito, simultaneamente, à ação penal privada subsidiária da pública, exercida pelo ofendido por meio da queixa subsidiária, e à ação penal pública, exercida pelo órgão do Ministério Público por intermédio de denúncia, em verdadeira hipótese de legitimação concorrente. Como deixa entrever o próprio dispositivo constitucional, o cabimento da ação penal privada subsidiária da pública está diretamente condicionado à inércia absoluta do órgão do Ministério Público. Portanto, se o órgão ministerial determinou a devolução dos autos à autoridade policial para a realização de diligências imprescindíveis, se requereu o arquiva­ mento dos autos do inquérito, se suscitou conflito de competência ou qualquer outra medida, não há falar em cabimento de ação penal privada subsidiária da pública, já que não restou caracterizada a inércia do Parquet. Apesar de a Constituição Federal e o Código de Processo Penal silenciarem acerca do as­ sunto, só se pode falar em ação penal privada subsidiária da pública se a infração penal contar com um ofendido determinado. Basta pensar nos chamados crimes de perigo (v.g., porte ilegal de arma de fogo, tráfico de drogas). Se o delito não possuir uma vítima determinada, não haverá uma pessoa física ou jurídica que possa oferecer a respectiva queixa-crime subsidiária.102 No entanto, há situações em que, por expressa previsão legal, o legitimado para o ofereci­ mento da queixa-crime subsidiária pode ser pessoa jurídica e/ou entes não ligados diretamente ao ofendido. É o que ocorre na hipótese de crimes e contravenções que envolvam relações de consumo. Segundo o art. 80, c/c art. 82, III e IV, da Lei n° 8.078/90, no processo penal atinente a tais delitos, as entidades e órgãos da administração publica, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC, assim como as associações legalmente constituídas há pelo menos 1 (um) ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC, dispensada a autorização assemblear, poderão intervir como assistentes do Ministério Público, sendo lhes facultada também a propositura de ação penal privada subsidiária, se a denúncia não for oferecida no prazo legal pelo Ministério Público. De modo semelhante, por força da Lei n° 11.101/05 (art. 184, parágrafo único), que versa sobre a falência e a recuperação judicial e extrajudicial, caracterizada a inércia do Ministério Público, qualquer credor habilitado ou o administrador judicial poderá oferecer ação penal privada subsidiária da pública, observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses. Vigora, quanto à ação penal privada subsidiária da pública, o princípio da oportunidade ou da conveniência. Portanto, caracterizada a inércia do órgão ministerial, fica ao critério do ofendido ou de seu representante legal fazer a opção pelo oferecimento (ou não) da queixa subsidiária. A ação penal privada subsidiária da pública também está sujeita ao prazo decadencial de 6 (seis) meses, porém este prazo só começa a fluir do dia em que se esgotar o prazo para o ofereci­ mento da denúncia (CPP, art. 38, última parte). Além disso, como essa ação penal, em sua essência, é de natureza pública, a decadência do direito de ação penal privada subsidiária da pública não irá produzir a extinção da punibilidade, sendo, por isso, cham ada de decadência imprópria. Portanto,

ainda que tenha havido a decadência do direito de queixa subsidiária, o Ministério Público continua podendo propor a ação penal pública em relação ao referido fato delituoso, logicamente desde que não tenha se operado a prescrição ou outra causa extintiva da punibilidade.

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Nesse contexto: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Impetus, 2010. p. 289.

edição. Niterói/RJ: Editora

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A título de exemplo, suponha-se que o Ministério Público tenha recebido os autos de inquérito policial de investigado solto em data de 2 de maio de 2011 (segunda-feira). Considerando que o Ministério Público tem 15 (quinze) dias para oferecer denúncia (CPP, art. 46), e tendo em conta que prazo de natureza processual só começa a fluir a partir do primeiro dia útil subsequente - no caso, dia 03 de maio de 2011 (terça-feira) - temos que o prazo para o oferecimento da denúncia finda-se no dia 17 de maio de 2011 (terça-feira). Dia 17 de maio de 2011 deve ser considerado, então, como o último dia do prazo do órgão ministerial. Verificada a inércia do Ministério Público até essa data, surge para o ofendido o direito de propor a queixa subsidiária no dia seguinte - dia 18 de maio de 2011. O ofendido terá, para tanto, o prazo decadencial de 6 (seis) meses. Esse prazo decadencial, apesar de não produzir a extinção da punibilidade, tem natureza penal, a ser contado nos termos do art. 10 do CP, logo, incluindo-se o dia do início no compute do prazo. Iniciando-se a contagem desse prazo decadencial no dia 18 de maio de 2011 (quarta-feira), conclui-se que o ofendido decairá de seu direito de queixa subsidiária no dia 17 de novembro de 2011 (quinta-feira), decadência esta, todavia, que não irá gerar a extinção da punibilidade, já que, em sua origem, o crime é de ação penal pública. Observe-se que esse prazo decadencial não se suspende, não se interrompe e nem se prorroga. Logo, se o prazo decadencial tivesse se expirado num sábado ou domingo, caberia ao ofendido antecipar a propositura da queixa-subsidiária. Na ação penal privada subsidiária da pública, o Ministério Público atua como verdadeiro interveniente adesivo obrigatório (ou parte adjunta), devendo intervir em todos os termos do processo, sob pena de nulidade (CPP, art. 564, III, “d”). Quanto aos poderes do Ministério Pú­ blico na ação penal privada subsidiária da pública, convém ficar atento ao dispositivo do art. 29 do CPP, que elenca as seguintes atribuições do Parquet: a) inicialmente, é possível que o Ministério Público opine pela rejeição da queixa-crime subsidiária, caso conclua pela presença de uma das hipóteses do art. 395 do CPP: I) inépcia da peça acusatória; II) ausência de pressuposto processual ou de condição para o exercício da ação penal; III) ausência de justa causa para o exercício da ação penal; b) aditar a queixa-crime: na ação penal exclusivamente privada e na ação penal privada personalíssima, o Ministério Público só tem legitimidade para proceder ao aditamento para cor­ rigir aspectos formais, incluindo circunstâncias de tempo ou de lugar. Não poderá fazê-lo para adicionar um novo fato delituoso ou outro corréu porquanto não possui legitimatio ad causam para tanto. Em se tratando de ação penal privada subsidiária da pública, como o crime é, em essência, de ação penal pública, o Ministério Público pode aditar a queixa subsidiária tanto em seus aspectos acidentais quanto em seus aspectos essenciais, quer incluindo novos fatos deli­ tuosos, quer adicionando coautores ou partícipes do fato delituoso; c) intervir em todos os termos do processo: por força do art. 29 do CPP, na ação penal pri­ vada subsidiária da pública, deve o Ministério Público intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, assim como interpor recurso. Ademais, de acordo com o art. 564, III, “d”, do CPP, haverá nulidade caso não haja a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública; d) pode o Ministério Público repudiar a queixa-crime subsidiária, desde que o faça até o recebimento da peça acusatória, apontando, fundamentadamente, que não houve inércia de sua parte. Nessa hipótese, prevalece o entendimento de que o Ministério Público se vê obrigado a oferecer denúncia substitutiva. Uma vez oferecida a queixa subsidiária, não pode o Ministério Público repudiá-la e requerer o arquivamento do inquérito policial. De fato, fosse possível ao Parquet repudiar a queixa subsidiária e nada fazer, tomar-se-ia cláusula morta o dispositivo constitucional do art. 5o, inciso LIX;

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e) verificando-se a inércia ou negligência do querelante, deve o Ministério Público retomar o processo como parte principal. É o que se denomina de ação penal indireta. Como se vê, diversamente do que ocorre nas hipóteses de ação penal privada personalíssima e exclusivamente privada, em que a desídia do querelante poderá dar ensejo a perempção (CPP, 60), a inércia do querelante nos casos de ação penal privada subsidiária da pública não produz a extinção da punibilidade, já que a ação penal, em sua origem, é de natureza pública. De se ver, então, que a ação penal privada subsidiária da pública não está sujeita ao princípio da disponibilidade, por­ quanto, desistindo o querelante de prosseguir com o processo ou abandonando-o, o Ministério Público retomará o processo como parte principal. 9.4. Extinção da punibilidade e ação penal de iniciativa privada Ao tratarmos do tema ação penal de iniciativa privada, é de vital importância abordarmos a decadência, a renúncia, o perdão do ofendido e a perempção, causas extintivas da punibilidade previstas no art. 107 do Código Penal. 9.4.1. Decadência Decadência é a perda do direito de ação penal privada ou de representação em virtude de seu não exercício no prazo legal. Funciona como causa extintiva da punibilidade, nos exatos termos do art. 107, inciso IV, do Código Penal. De acordo com o art. 38, caput, do CPP, “salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá do direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia”. Como se vê, o prazo para o oferecimento da queixa-crime e da representação é, em regra, de 6 (seis) meses, contado do dia em que se sabe quem é o autor do delito. Trata-se de prazo de natu­ reza material, fatal e improrrogável, a ser contado nos termos do art. 10 do CP: “o dia do começo inclui-se no compute do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum”.103 Assim, como o dia do início inclui-se no cômputo do prazo, supondo-se que um crime de calúnia tenha sido cometido contra uma pessoa capaz com 18 (dezoito) anos completos (ou mais) em data de 12 de abril de 2010, pode-se dizer que a queixa-crime deve ser oferecida até o dia 11 de outubro de 2010, sob pena de decadência e conseqüente extinção da punibilidade. Ao contrário do que ocorre com a prescrição, cujo prazo está sujeito a interrupções ou sus­ pensões, o prazo decadencial é fatal e improrrogável, logo, não se suspende e não se interrompe. Também não admite prorrogações. Por isso, expirando-se num domingo ou feriado, não pode ser prorrogado, como se dá com os prazos processuais (CPP, art. 798, § 3o). Como se trata de prazo fatal e improrrogável, que não está sujeito a causas interruptivas ou suspensivas, é bom destacar que o pedido de instauração de inquérito policial não obsta o curso do prazo decadencial. Caso o inquérito não tenha sido concluído no prazo decadencial de 6 (seis) meses, para que o ofendido não decaia de seu direito de queixa-crime, resta a ele propor a demanda criminal sem o inquérito, solicitando ao magistrado, na inicial, que os autos sejam apensos ao processo, tão logo o inquérito seja concluído. 103

Como observa Tourinho Filho, "considera-se mês o período de tempo contado do dia do início até às 24 horas do dia correspondente ao imediatamente anterior do mês subsequente. Assim, iniciado o prazo no dia l 9 de janeiro, expirar-se-á às 24 horas do dia 31 de janeiro. Se o ano não for bissexto e o prazo se iniciar no dia l 9 de fevereiro, terá o seu término às 24 horas do dia 28 do respectivo mês", (op. cit. p. 381).

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Em regra, o decurso do prazo decadencial só começa a fluir a partir do conhecimento da autoria. E isso por uma razão muito óbvia: só se pode falar em decadência de um direito que pode ser exercido. Se o ofendido não sabe quem é o autor do delito, não pode exercer seu direito. Mas como se comprova que o titular do direito de queixa-crime só tomou conhecimento da autoria nesta ou naquela data? A nosso ver, caso a queixa seja apresentada após o decurso do prazo de 6 (seis) meses da data do crime, a fim de se evitar o reconhecimento da decadência, pensamos que recai sobre o querelante o ônus de comprovar que só tomou conhecimento da autoria do delito em momento posterior, e em lapso temporal inferior a 6 (seis) meses, contados da queixa para trás. Nessa linha, em caso concreto apreciado pelo STJ, sua Corte Especial entendeu que ocorrera a decadência do direito de queixa e a conseqüente extinção da punibilidade: os supostos delitos de injúria e difamação teriam sido consumados em data de 17/9/2008; diante da não manifes­ tação do querelante a respeito de que a ciência do fato poderia ter-se dado em data posterior, considerou-se que o início do prazo decadencial ocorreu na referida data; todavia, as queixas, tanto pela difamação como pela injúria, só foram apresentadas no Superior Tribunal na data de 17/3/2009, isto é, um dia depois de findo o prazo para o oferecimento da inicial. Ressaltou-se, ainda, que o prazo decadencial para oferecimento de queixa-crime é de seis meses, indepen­ dentemente do número de dias de cada mês, já que a contagem dá-se pelo número de meses.104 O que efetivamente importa no âmbito da decadência é a manifestação de vontade persecutória por parte do querelante, o que ocorre com o oferecimento da peça acusatória. Como a decadência é considerada a perda do direito de ação penal privada ou do direito de representa­ ção pelo seu não exercício no prazo legal, conclui-se que, ainda que oferecida a queixa-crime perante juízo incompetente (incompetência absoluta ou relativa), estará superada a decadência, desde que observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses previsto no art. 38 do CPR Portanto, exercido o direito de queixa-crime por meio da propositura da peça acusatória dentro do prazo legal, independentemente de ter sido apresentada perante juízo incompetente ou ainda que não tenha sido analisado seu recebimento, não há falar em extinção da punibilidade em face do advento da decadência.105 Como se percebe, o prazo decadencial de 6 (seis) meses é semelhante tanto para o exercício do direito de representação, quanto para o oferecimento da queixa-crime, contado em ambas as hipóteses do conhecimento da autoria do fato delituoso. Porém, como destaca Pollastri, “a diferença é que, na ação penal pública condicionada, uma vez representado, pode o fato ficar longo tempo em investigação, que não há mais que se falar em decadência, já que a represen­ tação autoriza a ação ou investigação penal. Já em se tratando de ação penal privada deve ser oferecida a peça inicial em juízo, ou seja, a queixa, dentro de seis meses do conhecimento da autoria do fato. Tal é importante, porque é comum na prática se adentrar com o requerimento de abertura de inquérito policial e achar que o lapso decadencial está suspenso ou interrompido, quando este é fatal, não sendo passível de suspensão ou interrupção”.106 Se a regra é que o prazo decadencial só comece a fluir a partir do conhecimento da autoria, há de se ficar atento às exceções. Como deixa entrever o art. 236, parágrafo único, do Código Penal, referente ao crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento, a ação penal depende de queixa do contraente enganado e não pode ser intentada senão depois de

104

Nesse sentido: STJ, Corte Especial, Apn 562/MS, Rei. Min. Felix Fischer, j. 02/06/2010.

105

Nessa linha: STJ - HC 11.291/SE - 6§ Turma - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 23/10/2000. E também: STJ Apn 165/DF - Corte Especial - Rei. Min. Eduardo Ribeiro - DJ 22/04/2002 p. 154.

106

LIMA, Marcellus Polastri. M anual de processo penal. 2§ ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 214.

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transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento. Logo, em relação ao delito do art. 236 do CP, o prazo decadencial para o contraente enganado propor a ação penal privada personalíssima continua sendo de 6 (seis) meses, porém contados do trânsito em julgado da sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento. Nos casos de sucessão processual (CPP, art. 31), o prazo decadencial também é de 6 (seis) meses, tal qual prevê o parágrafo único do art. 38 do CPP: “verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou de representação, dentro do mesmo prazo (6 meses, nosso acréscimo), nos casos dos arts. 24, § Io, e 31”. Assim, operando-se a morte do ofendido, seus sucessores terão direito ao prazo restante. Se já ocorrera o decurso de 02 (dois) meses do prazo decadencial do ofendido, seus sucessores terão direito ao prazo restante - 04 (quatro) meses. Considerando que o prazo decadencial é uno, se um dos sucessores já tinha conhecimento da autoria, o prazo restante de 04 (quatro) meses fluirá automaticamente a contar do óbito do ofendido. Caso venham a tomar conhecimento da autoria apenas após o óbito do ofendido, o prazo decadencial restante de 4 (quatro) meses irá começar a fluir a partir de tal momento. Ao tratarmos da ação penal privada subsidiária da pública, foi dito que o não exercício do direito de queixa subsidiária também acarreta a extinção desse direito, como ocorre com a deca­ dência de qualquer direito, porém não haverá a extinção da punibilidade, já que a legitimidade ad causam do Ministério Público para a ação penal pública não deixa de existir pelo surgimento da ação penal privada subsidiária. Em se tratando de crimes contra a propriedade imaterial que deixem vestígios, o art. 529, caput, do CPP, dispõe que, nos crimes de ação privativa do ofendido, não será admitida queixa com fundamento em apreensão e em perícia, se decorrido o prazo de 30 (trinta) dias, após a homologação do laudo. Não obstante o teor do referido dispositivo, pensamos que, a fim de com­ patibilizá-lo com o do art. 38 do CPP, continua válido o raciocínio de que o oferecimento dessa queixa não poderá ultrapassar o prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado do conhecimento da autoria. Em síntese, conhecida a autoria do fato delituoso, o prazo decadencial de 6 (seis) meses começa a fluir. Iniciadas as diligências investigatórias e homologado o laudo pericial, o ofendido passa a dispor de 30 (trinta) dias para oferecer a queixa-crime. Por fim, convém destacar que o prazo decadencial é extinto no momento do oferecimento da queixa-crime, pouco importando a data do recebimento da peça acusatória. Portanto, oferecida a queixa-crime dentro do prazo decadencial de 6 (seis) meses, se o juiz demora para proferir o recebimento, não há falar em decadência. 9.4.2. Renúncia ao direito de queixa Renúncia é o ato unilateral e voluntário por meio do qual a pessoa legitimada ao exercício da ação penal privada abdica do seu direito de queixa. Cuida-se de causa extintiva da punibilidade nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e personalíssim a (CP, art. 107, V). N as hipóteses de ação penal privada subsidiária da

pública, por mais que o ofendido resolva abrir mão de seu direito de queixa subsidiária, esta renúncia não terá o condão de produzir a extinção da punibilidade, já que, em sua origem, a ação penal é de natureza pública, subsistindo a legitimidade ativa do Ministério Público para oferecer denúncia enquanto não extinta a punibilidade pelo advento da prescrição. A renúncia está diretamente relacionada ao princípio da oportunidade ou da conveniência, sendo cabível antes do início do processo penal, além de ser irretratável. Como o Supremo

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entende que o prazo decadencial é extinto no momento do oferecimento da queixa-crime, pouco importando a data de seu recebimento,107 entendemos que a renúncia pode ocorrer até o ofere­ cimento da queixa. Portanto, pode-se dizer que a renúncia é extraprocessual. Trata-se de ato unilateral do ofendido ou de seu representante legal, ou seja, não há neces­ sidade de aceitação por parte do suposto autor do delito. Não há falar em renúncia no âmbito da ação penal pública, já que vigora, quanto a ela, o princípio da obrigatoriedade. O Código de Processo Penal também não prevê a renúncia ao direito de representação ou à requisição do Ministro da Justiça como causas de extinção da punibilidade, referindo-se apenas à renúncia do direito de queixa (CP, art. 107, V). Daí o motivo pelo qual o próprio CPP admite a possibilidade de retratação da representação, desde que efetuada antes do oferecimento da denúncia (art. 25), assim como a retratação da retratação da representação, en­ quanto não transcorrido o prazo decadencial. Especial atenção, porém, deve ser dispensada à Lei dos Juizados Especiais Criminais: o art. 74, parágrafo único, da Lei n° 9.099/95, prevê que a homo­ logação do acordo de composição dos danos civis acarreta a renúncia ao direito de representação. A renúncia pode ser expressa ou tácita. Renúncia expressa é aquela feita por declaração inequívoca, assinada pelo ofendido, por seu representante legal ou por procurador com poderes especiais (CPP, art. 50, caput). A renúncia tácita ocorre quando a vítima pratica ato incompatível com a vontade de processar (CP, art. 104, parágrafo único). Costuma-se citar como exemplo de renúncia tácita o fato de o autor da infração penal ser convidado para ser padrinho do filho do ofendido. A renúncia tácita poderá ser provada por todos os meios de prova (CPP, art. 57). De acordo com o art. 104, parágrafo único, última parte, do CP, o fato de o ofendido receber a indenização do dano causado pelo crime não implica em renúncia tácita. Não obstante, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, a homologação do acordo de composição dos danos civis é causa de renúncia ao direito de representação (Lei n° 9.099/95, art. 74, parágrafo único). Por força do princípio da indivisibilidade, segundo o qual a queixa contra qualquer dos autores obriga ao processo de todos, a renúncia concedida a um dos coautores estende-se aos demais (CPP, art. 49). E o que a doutrina denomina de extensibilidade da renúncia. Não obstante, a renúncia de uma vítima não produz qualquer conseqüência quanto à propositura da queixa pela outra vítima, já que se trata de direitos autônomos. Como conseqüência do princípio da indivisibilidade, se o querelante oferecer, na própria queixa-crime, composição civil de danos para parte dos querelados, a peça acusatória deverá ser rejeitada em sua integralidade - isto é, em relação a todos os querelados. Isso porque a composição civil dos danos, sendo aceita e homologada judicialmente, implica a renúncia ao direito de queixa, nos termos do disposto no art. 74, parágrafo único, da Lei 9.099/1995. Nesse caso, por força do princípio da indivisibilidade, a todos se estende a manifestação do intento de não processar parte dos envolvidos.108 O legitimado para a renúncia é o legitimado para o exercício do direito de queixa. Como o assunto já foi abordado ao tratarmos do direito de representação, para lá remetemos o leitor. Como o ofendido atinge sua maioridade aos 18 (dezoito) anos de idade e, portanto, deixa de ter representante legal, salvo, obviamente, em casos como os de doença mental ou retardamento 107

Na visão do Supremo: "Queixa oferecida dentro do prazo, mas perante Juízo incompetente ratione loci. Irrelevante tal circunstância para o efeito de contagem do prazo decadencial. O que importa é a data do início da ação penal, ou seja, do oferecimento da queixa-crime em juízo e não a do seu recebimento. [...] In casu, não se configurou a decadência". (STF, 2a Turma, RHC 63.665/RS, Rei. Min. Djaci Falcão, j. 01/04/1986, DJ 09/05/1986).

108

Nesse contexto: STJ, Corte Especial, AP 724/DF, Rei. Min. Og Fernandes, j. 20/8/2014.

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mental, conclui-se que o art. 50, parágrafo único, do CPP, foi revogado tacitamente pelo advento do novo Código Civil. 9.4.3. Perdão do ofendido Perdão do ofendido é o ato bilateral e voluntário por meio do qual, no curso do processo penal, o querelante resolve não prosseguir com a demanda, perdoando o acusado, com a conse­ qüente extinção da punibilidade, nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima (CP, art. 107, V). O perdão do ofendido, que funciona como causa extintiva da punibilidade nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e privada personalíssima (CP, art. 107, V), não se confunde com o perdão judicial, que também é causa extintiva da punibilidade, nos casos previstos em lei (CP, art. 107, IX), como ocorre, por exemplo, na hipótese de homicídio culposo, em que o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se tome desnecessária (CP, art. 121, § 5o).109 Perdão do ofendido também não se confunde com a renúncia. Enquanto a renúncia ocorre antes do início do processo, estando relacionada ao princípio da oportunidade ou da conve­ niência, o perdão do ofendido irá ocorrer no curso do processo penal, após o oferecimento da queixa-crime, daí a razão pela qual se diz que decorre do princípio da disponibilidade. Nessa linha, como observa Feitoza, “após o oferecimento da queixa, a figura cabível é a do perdão. Se a queixa for recebida, será verificada a aceitação do perdão pelo querelado ou pessoa legitimada a aceitá-lo. Se a queixa for rejeitada e ocorrer a preclusão da decisão de rejeição, isso eqüivale a não ter havido oferecimento da queixa e, então, o ato será considerado, tecnicamente, como renúncia, com a conseqüente extinção da punibilidade”.110 Quanto ao limite temporal para sua concessão, o art. 106, § 2o, do CP, prevê que o perdão pode ser concedido até o trânsito em julgado de sentença condenatória. Tal qual se dá com a renúncia, o perdão do ofendido também funciona como causa extintiva da punibilidade nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima (CP, art. 107, V). Na ação penal privada subsidiária da pública, o perdão do ofendido não produz qualquer efeito, porquanto, em tal hipótese, o Ministério Público retoma a ação como parte principal (ação penal indireta). Como dito acima, o perdão é um ato bilateral, ou seja, depende de aceitação do querelado (CPP, art. 51). É bom que se diga, todavia, que a aceitação do perdão não implica assunção de culpa, e, por isso, de responsabilidade civil. Pode ocorrer de o querelado não aceitar o perdão, seja porque pretende provar sua inocência, seja porque pretende demonstrar que o querelante 109

Na visão dos Tribunais, o perdão judicial não pode ser concedido ao agente de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 do CTB) que, embora atingido moralmente de forma grave pelas conseqüências do acidente, não tinha vínculo afetivo com a vítima nem sofreu seqüelas físicas gravíssimas e permanentes. Conquanto o perdão judicial possa ser aplicado nos casos em que o agente de homicídio culposo sofra seqüelas físicas gra­ víssimas e permanentes, a doutrina, quando se volta para o sofrimento psicológico do agente, enxerga no § 5^ do art. 121 do CP a exigência de um laço prévio entre os envolvidos para reconhecer como "tão grave" a forma como as conseqüências da infração atingiram o agente. A interpretação dada, na maior parte das vezes, é no sentido de que só sofre intensamente o réu que, de forma culposa, matou alguém conhecido e com quem mantinha laços afetivos. O exemplo mais comumente lançado é o caso de um pai que mata culposamente o filho. Portanto, a solidarização com o choque psicológico do agente não pode conduzir a uma eventual banalização do instituto do perdão judicial. Nessa linha: STJ, 6ã Turma, REsp 1.455.178/DF, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 5/6/2014.

110

FEITOZA, Denilson. D ireito processual penal: teoria, crítica e práxis. p. 329.

edição. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010.

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praticou o crime de denunciação caluniosa. Portanto, havendo notícia da concessão do perdão do ofendido, o querelado será intimado para que se pronuncie quanto à aceitação (ou não) da benesse. No entanto, ainda que o querelado não aceite o perdão, é possível que o ofendido dê causa à perempção (v.g., deixando de formular o pedido de condenação nas alegações finais), dando ensejo à extinção da punibilidade. Por força do princípio da indivisibilidade, o perdão concedido a um dos querelados aproveitará aos demais, sem que produza efeito, no entanto, em relação àquele que o recusar (CPP, art. 51, c/c art. 106,1, do CP). Nada impede que, havendo vários processos criminais relativos a crimes de ação penal de iniciativa privada, delibere o querelante pela concessão do perdão em um só dos feitos. Caso assim o faça, tal perdão há de ser compreendido como um perdão parcial, significando que o andamento dos demais processos criminais não será prejudicado pela concessão do perdão em um só dos feitos. Por outro lado, quando houver mais de um ofendido, ainda que um deles resolva conceder o perdão, isso não impede que as demais vítimas continuem a processar criminalmente o autor do delito. Afinal, o direito de cada uma das vítimas é autônomo. Daí dispor o art. 106, inciso II, do Código Penal, que o perdão, no processo ou fora dele, expresso ou tácito, se concedido por um dos ofendidos, não prejudica o direito dos outros. O perdão pode ser expresso ou tácito. O perdão expresso constará de declaração assinada pelo querelante, por seu representante legal ou por procurador com poderes especiais. O perdão tácito é aquele que resulta da prática de ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação (CP, art. 106, § Io), admitindo todos os meios de prova (CPP, art. 57). Como deixa entrever o art. 106, caput, do CP, também é possível subdividir-se o perdão em extrajudicial ou judicial. Extrajudicial é aquele perdão concedido fora do processo penal, ao passo que o judicial é aquele concedido no bojo do processo penal condenatório. A aceitação do perdão também pode ser extraprocessual ou processual, expressa ou táci­ ta. A aceitação tácita ocorre quando o querelado, intimado para se manifestar sobre o perdão concedido pelo querelante, permanece inerte durante 3 (três) dias. Diz o art. 58 do CPP que, concedido o perdão, mediante declaração expressa nos autos, o querelado será intimado a dizer, dentro de 3 (três) dias, se o aceita, devendo, ao mesmo tempo, ser cientificado de que o seu silêncio importará aceitação. A recusa também pode ser extraprocessual ou processual, expressa, mas não pode ser tácita, já que o silêncio importa a aceitação do perdão. Segundo o art. 59 do CPP, a aceitação do perdão fora do processo constará de declaração assinada pelo querelado, por seu representante legal ou por procurador com poderes especiais. De seu turno, o art. 54 do CPP prevê que, sendo o querelado menor de 21 (vinte e um) anos, a aceitação do perdão poderá ser feita pelo querelado ou por seu representante legal, mas, se um dos dois se opuser, a aceitação será ineficaz. Com o novo Código Civil (art. 5o) e com a própria Lei n° 10.792/03, que deixou de prever a necessidade de nomeação de curador para o menor de 21 (vinte e um) anos, não existe mais a figura do representante legal para aceitar ou para se opor à aceitação do perdão, quanto ao querelado capaz que tiver 18 (dezoito) anos de idade ou mais. Se o querelado for mentalmente enfermo ou retardado mental, ele deverá ter um represen­ tante legal, que é o seu curador de direito civil, a quem compete aceitar o perdão. Se o querelado for mentalmente enfermo ou retardado mental e não tiver representante legal, ou colidirem os interesses deste com os do querelado, a aceitação do perdão caberá ao curador que o juiz lhe nomear, nos termos do art. 53 do CPP.

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL EAÇÃO CIVIL EX DELICTO

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9.4.4. Quadro comparativo entre renúncia eperdão do ofendido Renúncia

Perdão d o o fe n d id o

Causa extintiva da punibilidade nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima.

Causa extintiva da punibilidade nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima.

Decorre do princípio da oportunidade ou conveniência.

Decorre do princípio da disponibilidade.

Ato unilateral: não depende de aceitação.

Ato bilateral: depende de aceitação do querelado

É concedida antes do início do processo (até o ofereci­ mento da queixa-crime).

É concedido durante o curso do processo.

Por força do princípio da indivisibilidade, a renúncia concedida a um dos coautores ou partícipes do delito estende-se aos demais.

Por força do princípio da indivisibilidade, o perdão con­ cedido a um dos querelados estende-se aos demais, mas desde que haja aceitação.

9.4.5. Perempção Perempção é a perda do direito de prosseguir no exercício da ação penal privada em virtude da negligência do querelante, com a conseqüente extinção da punibilidade nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima. Tem natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade, cuja aplicação é restrita às hipóteses de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima (CP, art. 107, IV). Afinal, nas hipóteses de ação penal privada subsidiária da pública, no caso de negligência do que­ relante, o Ministério Público retoma a ação como parte principal (ação penal indireta). O próprio art. 60 do CPP, que trata da perempção, reforça esse entendimento, ao dispor que se considera perempta a ação penal somente nos casos em que se procede mediante queixa. Ora, nas hipóteses de ação penal privada subsidiária da pública, não se procede somente mediante queixa, já que, originalmente, tal ação penal tem natureza pública, podendo se proceder mediante denúncia. Como a perempção produz a extinção da punibilidade, não se afigura possível a renovação da ação penal privada. Além disso, é bom destacar que, na hipótese de dois ou mais querelantes em juízo (litisconsórcio ativo), a atuação negligente de um deles, dando ensejo à perempção, não se comunica ao outro. As hipóteses de perempção estão previstas no art. 60 do CPP: a) quando, iniciada a ação penal exclusivamente privada ou personalíssima, o querelante deixar de promover o andamento do processo durante 30 (trinta) dias seguidos: prevalece o entendimento de que, antes de declarar a perempção, o juiz deve intimar o querelante para apre­ sentar eventual justificativa para o abandono do processo.111Ademais, a contagem desse prazo de 30 (trinta) dias deve ser contínua. Logo, se ocorrerem diversas paralisações, mas nenhuma isoladamente dando margem ao prazo de 30 (trinta) dias, não há falar em perempção; b ) quando, falecendo o querelante, ou sobrevindo sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no processo, dentro do prazo de 60 (sessenta) dias, qualquer das pessoas

111

No sentido de que somente se reconhece a perempção em tal hipótese desde que seja regularmente intimado o querelante (ele e seu procurador) para a adoção de providências necessárias ao impulso do processo: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11- ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 140.

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a quem couber fazê-lo, ressalvado o disposto no art. 36: se comparecer mais de uma pessoa com direito de queixa, terá preferência o cônjuge, e, em seguida, os ascendentes, descendente e irmãos, podendo, no entanto, qualquer deles prosseguir na ação, caso o querelante desista da instância ou a abandone, nos termos do art. 60, II, c/c art. 36, ambos do CPP. A nosso ver, não há necessidade de intimação de cada um dos sucessores, já que o referido prazo começa a fluir imediatamente após a morte do querelante ou do reconhecimento de sua incapacidade. Ademais, seria inviável querer se instaurar um processo sucessório no âmbito criminal, a fim de se localizar eventuais cônjuges, ascendentes, descendentes e irmãos do falecido. c) quando o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais. Discute-se na doutrina se a ausência do querelante à audiência de conciliação prevista no procedimento dos crimes contra a honra de competência do Juiz singular seria causa de perempção. Referido procedimento, que ainda abarca os crimes contra a honra que não se enquadrem no conceito de infração de menor potencial ofensivo, prevê que, antes de receber a queixa, ofereça o juiz às partes uma oportunidade para se reconciliarem. Supondo, assim, que o quere­ lante deixe de comparecer à audiência de conciliação do art. 520 do CPP, é caso de perempção? Não. A uma, porque não se pode falar em perempção se ainda não há processo - perceba-se que essa audiência ocorre antes de o juiz receber a peça acusatória. A duas, porque o não comparecimento do querelante não deve ser compreendido como hipótese de abandono do processo, mas sim como demonstração inequívoca de que não deseja a reconciliação. Sua presença é tida como relevante apenas em relação aos atos de natureza instrutória, ou seja, aqueles em que sua presença é necessária para a apuração dos fatos.112 Por força do art. 60, inciso III, última parte, do CPP, a ausência de pedido de condenação por parte do querelante também dá causa à perempção. Não há necessidade de que esse pedido de condenação seja formulado de maneira expressa. Se o querelante, em sede de memoriais, aponta toda a prova produzida no curso do processo criminal, indicando os elementos probatórios que confirmam a autoria, subentende-se que se manifestou no sentido da condenação do querelado. Diferencia-se, nesse ponto, a ação penal exclusivamente privada ou privada personalíssima da ação penal pública. Isso porque, segundo a primeira parte do art. 385 do CPP, nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição. Lado outro, na hipótese de ação penal exclusivamente privada e privada personalíssima, se o querelante requerer expressamente a absolvição do acusado em sede de alega­ ções orais ou memoriais, o juiz nada poderá fazer senão reconhecer a perempção com fundamento no art. 60, III, do CPP, com o conseqüente reconhecimento da extinção da punibilidade. Com a criação da audiência una de instrução e julgamento pela Lei n° 11.719/08 (art. 400, no procedimento comum ordinário, e art. 531, no procedimento comum sumário), é intuitivo que o não comparecimento injustificado do advogado do querelante à referida audiência tam­ bém será causa de perempção, já que não haverá alegações orais, ou seja, não haverá pedido de condenação do acusado, o que também dará ensejo à perempção. Raciocínio semelhante também se aplica à sessão de julgamento perante o Tribunal do Júri, pelo menos em relação ao crime de ação penal exclusivamente privada ou privada personalíssima.113

112 Com esse entendimento: STF, l ã Turma, HC 71.219/PA, Rei. Min. Sydney Sanches, DJ 16/12/1994. 113

Para mais detalhes acerca das conseqüências decorrentes da ausência do advogado do querelante à sessão de julgamento, vide Título referente aos Procedimentos.

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL EAÇÃO CIVIL EX DELICTO

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Havendo pluralidade de infrações, é possível a ocorrência de perempção em face de apenas algumas delas. Basta supor que o querelante, em sede de alegações orais, peça a condenação em relação a apenas uma das infrações imputadas. Além disso, na hipótese de haver mais de um querelante, a perempção em relação a um deles não prejudica o direito dos demais. d) quando, sendo o querelante pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar sucessor. 9.5. Ação penal privada no processo penal militar O Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar silenciam acerca do cabi­ mento da ação penal de iniciativa privada. Na verdade, ao se referir à ação penal, só o fazem quanto àquela promovida pelo Ministério Público. O art. 121 do CPM dispõe que “a ação penal somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público da Justiça Militar”. De modo semelhante, o art. 29 do CPPM assevera que “a ação penal é pública e somente pode ser pro­ movida por denúncia do Ministério Público Militar”. Em que pese o silêncio da legislação castrense quanto ao cabimento da ação penal de ini­ ciativa privada, não se pode perder de vista que, por força da Constituição Federal, será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal (CF, art. 5o, LIX). Como a Constituição Federal não restringiu o cabimento da ação penal privada subsidiária da pública ao processo penal comum, entende-se que, verificada a inércia do órgão do Ministério Público com atribuição para atuar perante a Justiça Militar em relação à infração penal que tenha um ofendido, poderá a vítima, seu representante legal, seu curador especial, ou seus sucessores processuais, oferecer a queixa subsidiária, aplicando-se, subsidiariamente, os dispositivos do Código de Processo Penal comum ao processo penal militar, nos termos do art. 3o, alínea “a”, do CPPM. 10. AÇÃO PENAL POPULAR Parte da doutrina aponta a existência da ação penal popular no ordenamento jurídico pátrio nas seguintes hipóteses: a) habeas corpus: de acordo com a Constituição Federal (art. 5o, LXVIII), conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Por estar em jogo a liberdade de locomoção, qualquer pessoa pode impetrar uma ordem de habeas corpus, não sendo exigida capacidade postulatória. O remédio constitucional do habeas corpus qualifica-se como típica ação penal popular, o que legitima o seu ajuizamento por qualquer pessoa, qualquer que seja a instância judiciária competente. A propósito, o art. 654, caput, do CPP, estabelece que o habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público. Vê-se, portanto, que a legitimidade ativa para o ajuizamento de habeas corpus reveste-se de caráter universal, o que toma prescindível, até mesmo, a outorga de mandato judicial que autorize o impetrante a agir em favor de quem estaria sujeito, alegadamente, a situação de injusto constrangimento em sua liberdade de locomoção física.114 b) faculdade de qualquer cidadão oferecer denúncia, por crime de responsabilidade, contra determ inados agentes políticos, perante a C âm ara dos D eputados (Presidente da R epública e

Ministro de Estado), o Senado Federal (Ministros do Supremo Tribunal Federal e Procurador-geral da República) ou a Assembléia Legislativa (Governador de Estado), conforme arts. 14, 41, e 75 da Lei 1.079/50, respectivamente. No plano municipal, o Decreto-lei n° 201/67 tam­ bém autoriza qualquer eleitor a propor ação de cassação do prefeito, mediante denúncia a ser 114

Nessa linha: STF, HC 100.000/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 05/08/2009, Informativo n^ 557 do Supremo.

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encaminhada à Câmara de Vereadores, competente para o julgamento, em razão da prática de infrações político-administrativas previstas no art. 4o do referido Decreto-lei. Não se nega a possibilidade de qualquer pessoa impetrar ordem de habeas corpus, assim como a faculdade de qualquer cidadão oferecer denúncia pela prática de crimes de responsabi­ lidade. Porém, as duas hipóteses não podem ser consideradas espécies de ação penal condenatória popular, pelo menos se se compreender ação penal condenatória popular como o direito de qualquer pessoa do povo promover uma ação penal visando à condenação do suposto autor da infração penal, tal qual ocorre no âmbito do processo civil com a ação popular. No caso do habeas corpus, não se trata de uma ação penal condenatória, mas sim de uma ação de natureza constitucional, vocacionada à tutela da liberdade de locomoção. No caso da denúncia oferecida por qualquer cidadão em relação à prática de crimes de responsabilidade, a palavra denúncia é usada no sentido de notitia criminis, e não com o significado de peça inaugural da ação penal pública. Ademais, os crimes de responsabilidade aí referidos não são crimes propriamente ditos, mas sim infrações político-administrativas. 11. AÇÃO PENAL ADESIVA No ordenamento jurídico alemão, é possível que o Ministério Público ingresse com ação penal pública mesmo em relação aos crimes sujeitos à ação penal privada, desde que divise um interesse público. Se isso ocorrer, o ofendido (ou outro legitimado) poderá constituir-se em parte acessória, acusador subsidiário ou acusador acessório, equivalente ao instituto brasileiro do assistente do Ministério Público, como se fosse uma ação penal acessória ou uma ação penal adesiva.115 Para Fernando da Costa Tourinho Filho, se o Ministério Público promove a ação penal e fica à frente do processo, essa ação penal adesiva do direito alemão não seria uma modalidade de ação, pois o ofendido, no caso, é um simples interveniente adesivo facultativo. Não obstante, o mesmo autor entende que existe na Alemanha a ação penal adesiva, que não é propriamente penal, estando relacionada à circunstância de ser proposta no juízo penal, porém com o objetivo de se obter a satisfação do dano ex delicio no juízo criminal. Quanto ao ordenamento pátrio, Tourinho observa que o art. 268 do CPP permite ao ofendido o direito de ingressar no processo penal, ao lado do MP, como assistente. Para ele, trata-se de evidente intervenção adesiva facul­ tativa. Não há, pois, ação penal autônoma.116 12. AÇÃO DE PREVENÇÃO PENAL Ação de prevenção penal é aquela ajuizada com o objetivo de se aplicar ao inimputável do art. 26, caput, do CP, exclusivamente, medida de segurança. Verificando-se que o acusado, em virtude de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era,

115

Nessa linha: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 1- ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010. p. 266.

116 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 31a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 515. Em sentido oposto, segundo Távora e Alencar, ação penal adesiva "é a possibilidade de militarem no polo ativo, em conjunto, o Ministério Público e o querelante, nos casos onde houver hipótese de conexão ou continência entre crimes de ação penal de iniciativa pública e de ação penal de iniciativa privada. Trata-se de casos similar ao litisconsórcio do direito processual civil, interessando destacar que, no âmbito do processo penal, ao invés de uma petição única (litisconsórcio originário), a regra é que haja a propositura de denúncia pelo Parquet e a de queixa pela vítima do delito conexo, surgindo assim um 'litisconsórcio' (impróprio) em momento ulterior, qual seja, o da reunião das demandas". (TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 4a ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, p. 174).

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ao tempo da ação ou omissão, absolutamente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (CP, art. 26, caput), deve o inimputável ser absolvido (absolvição imprópria), aplicando-se a ele medida de segurança. Nessa hipó­ tese, surge a denominada ação de prevenção penal, cuja finalidade é a aplicação de medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial). Logo, como observa Tourinho Filho, a ação penal condenatória se bifurca: a ação penal propriamente dita, tendo por finalidade a aplicação a pena privativa de liberdade, e a ação de prevenção penal, visando à imposição de medida de segurança.117 13. AÇÃO PENAL SECUNDÁRIA Ocorre na hipótese em que a lei estabelece uma espécie de ação penal para determinado crime, porém, em virtude do surgimento de circunstâncias especiais, passa a prever, secunda­ riamente, uma nova espécie de ação penal para essa infração. É o que acontece, por exemplo, com os crimes contra a honra, em que, em regra, a ação penal é de iniciativa privada (CP, art. 145, caput). No entanto, se cometido o crime contra a honra de injúria racial (CP, art. 140, § 3o), a ação penal será pública condicionada à representação (CP, art. 145, parágrafo único, in fine, com redação determinada pela Lei n° 12.033/09). 14. AÇÃO PENAL NAS VÁRIAS ESPÉCIES DE CRIMES 14.1. Ação penal nos crimes contra a honra Em regra, os crimes contra a honra previstos no Código Penal são de ação penal de ini­ ciativa privada. É o que diz o art. 145, caput, do Código Penal. Por isso, a Ia Turma do STF reconheceu a legitimidade ativa ad causam de mulher de Deputado Federal para formalizar queixa-crime com imputação do crime de injúria (CP, art. 140), em tese perpetrada por senador contra a honra de seu marido, que teria insinuado, no Twitter, que seu marido manteria relação homossexual extraconjugal com outro parlamentar. Para o colegiado, essa afirmação poderia configurar injúria contra a honra da mulher do deputado federal, em face da apontada traição, o que lhe conferiria a legitimidade ativa. Se o homem casado que é chamado de corno em relação à conduta desonrosa atribuída a sua mulher tem legitimidade ativa, idêntico tratamento deve ser conferido à mulher que se sente ofendida, em decorrência de alegada traição.118 Daí, todavia, não se pode concluir que todo e qualquer crime contra a honra seja submetido a tal espécie de ação penal. De fato, há certos crimes contra a honra que estão submetidos a espécies distintas de ação penal, a saber: a) injúria real: consiste na prática de injúria através de violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes (CP, art. 140, § 2o). Se a injúria real for praticada através de vias de fato, a ação penal será de iniciativa privada, porquanto as vias de fato são absorvidas pelo crime contra a honra. Se, todavia, resultar lesão corporal, diz o art. 145, caput, in fine, do Código Penal, que a ação penal será de natureza pública. Nessa hipótese, é importante saber a espécie de lesão corporal produzida, já que, por força do art. 88 da Lei n° 9.099/95, se a lesão corporal for de natureza leve ou culposa, a ação penal será pública condicionada à representação. A contrario sensu, se a lesão corporal for de natureza grave ou gravíssima, a ação penal será pública incondicionada;

117 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 31® ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 516. 118

STF, 13 Turma, Pet 7.417 AgR/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/10/2018.

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b) crime contra a honra do Presidente da República ou contra chefe de governo es­ trangeiro: de acordo com o art. 145, parágrafo único, do Código Penal, trata-se de crime de ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça; c) crime contra a honra de funcionário público no exercício das funções: diz o Código Penal que, no caso de crime contra a honra de funcionário público em razão de suas funções (propter ojficium), a ação penal será pública condicionada à representação (CP, art. 145, parágrafo único). Apesar do teor do Código Penal, considerando que tal delito também viola sobremaneira o interesse individual do funcionário público, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que também seria cabível a ação penal de iniciativa privada. Nesse sentido, aliás, dispõe a súmula n° 714 do Supremo que “é concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções”. A leitura da referida súmula deixa entrever que a legitimação seria concorrente: assim, de maneira simultânea, tanto o ofendido poderia oferecer queixa-crime, quanto o Ministério Público poderia oferecer denúncia. Não é esse, todavia, o melhor entendimento. Isso porque, de acordo com o próprio Supremo, se o funcionário público ofendido em sua honra apresenta representação ao Ministério Público, optando, pois, pela ação penal pública condicionada à representação, estaria preclusa a instauração penal de iniciativa privada, já que, em tal hipótese, o Ministério Público estaria definitivamente investido na legitimação para a causa.119 Ora, se o próprio Supremo entende que, uma vez oferecida a representação pelo ofendido, autorizando o Ministério Público a agir, não será mais possível o oferecimento de queixa-crime, forçoso é concluir que a legitimação, nesse caso da súmula n° 714, não é concorrente, mas sim alternativa. Na verdade, sendo condicionada à representação, o Ministério Público jamais estaria legitimado a agir de ofício; caberia, portanto, ao ofendido fazer a opção entre a representação, escolhendo a via da ação penal pública, ou oferecer queixa-crime, optando pela ação penal de iniciativa privada. Para que fosse efetivamente concorrente, o ofendido deveria poder discordar da manifestação do Ministério Público - no sentido de arquivamento - e ingressar com a ação privada.120 d) crimes militares contra a honra: da mesma forma que o Código Penal prevê crimes contra a honra (arts. 138 a 140), o Código Penal Militar também prevê tais espécies de delitos entre os arts. 214 e 216, todos eles de ação penal pública incondicionada, ressalvada, logica­ mente, a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública, caso verificada a inércia do órgão ministerial; e) crimes eleitorais contra a honra: de modo semelhante ao Código Penal Militar, o Có­ digo Eleitoral também prevê crimes contra a honra (arts. 324, 325 e 326), acrescidos, porém, do elemento especializante “na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda”. Só há falar em crimes contra a honra de natureza eleitoral quando a ofensa à honra objetiva ou subjetiva ocorrer na propaganda eleitoral ou com fins de propaganda. Logo, eventual crime contra a honra cometido no âmbito doméstico, desvinculado, direta ou indiretamente, de propaganda eleitoral, ainda que motivada por divergências políticas às vésperas de eleição, deve ser processado e julgado pela Justiça Comum Estadual, e não pela Justiça Eleitoral.121 Todos os crimes eleitorais

119 STF, Pleno, Inq. 1.939/BA, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 03/03/2004. 120 Com raciocínio semelhante: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. I I 3 edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 127. 121 STJ, 3® Seção, CC 134.005/PR, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 11/6/2014.

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são de ação penal pública incondicionada, ex vi do art. 355 do Código Eleitoral, ressalvada, logicamente, a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública, caso verificada a inércia do órgão ministerial (CF, art. 5o, LIX); f) injúria racial: até bem pouco tempo atrás, o crime previsto no art. 140, § 3o, do CP, era espécie de crime de ação penal de iniciativa privada. Porém, com a entrada em vigor da Lei n° 12.033/09, e a nova redação conferida ao art. 145, parágrafo único, do Código Penal, referido delito passou a ser crime de ação penal pública condicionada à representação. Em relação ao direito intertemporal, pensamos que o novo regramento só deve incidir em relação aos crimes de injúria racial cometidos após a entrada em vigor da referida lei. Em outras palavras, se o crime era de ação penal de iniciativa privada e passou a depender de representação, não serão mais cabíveis a renúncia, o perdão e a perempção como causas extintivas da punibilidade, mas somente a decadência do direito de representação. Tal modificação, como se vê, é penalmente prejudicial ao acusado, porquanto o priva da incidência de causas extintivas da punibilidade. Portanto, a modificação em questão não se submete ao princípio da aplicação imediata (CPP, art. 2o), mas sim ao da irretroatividade da lei penal mais gravosa, consoante dispõe a Constituição Federal (art. 5o, XL). Não se pode confundir o crime de injúria racial com os delitos de racismo, tipificados na Lei n° 7.716/89, os quais são de ação penal pública incondicionada. No art. 140, § 3o, há ofensa à honra subjetiva de determinada pessoa; nos delitos de racismo, há oposição indistinta a toda uma raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Em caso concreto apreciado pelo STJ, um passageiro a bordo de aeronave de empresa americana com destino ao Rio de Janeiro, de­ sentendeu-se com dois comissários de bordo quando já estavam em território nacional. Um dos acusados, incitado pelo outro, proferiu a seguinte ofensa: “amanhã vou acordar jovem, bonito, orgulhoso, rico e sendo um poderoso americano e você vai acordar como safado, depravado, repulsivo, canalha e miserável brasileiro”. Entendeu o STJ que a conduta dos recorrentes não se limitou ao delito de injúria preconceituosa - ataque verbal em que se procura atingir a honra subjetiva da vítima por raça, cor, etnia, origem etc. (art. 140, § 3o, do CP). Em tese, houve o delito de preconceito de procedência nacional previsto no art. 20 da Lei n° 7.716/1989, em que a intenção dos denunciados foi contra toda a coletividade brasileira, ao ressaltar a pretensa superioridade advinda do fato de serem americanos em contraposição à condição de a vítima ser brasileira. Logo, cuidando-se de crime de racismo, a legitimidade ad causam recai sobre o Ministério Público, já que se trata de crime de ação penal pública incondicionada.122 14.2. Ação penal nos crimes de trânsito de lesão corporal culposa, de embriaguez ao volante e de participação em competição não autorizada Em sua redação original, dispunha o art. 291, parágrafo único, do Código de Trânsito Bra­ sileiro (Lei n° 9.503/97), que seriam aplicáveis aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa,

122 STJ, 53 Turma, RHC 19.166/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, j. 24/10/2006, DJ 20/11/2006 p. 342; STF, l 9 Turma, HC 90.187/RJ, Rei. Min. Menezes Direito, j. 04/03/2008, DJe 074 24/04/2008. De se notar que o art. 20 da Lei 7.716/1989 possui rol exaustivo de condutas tipificadas, cuja lista não contempla a discriminação decorrente de opção sexual, mas apenas em virtude de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Logo, se determinado agente publicar em redes sociais manifestação de natureza discriminatória em relação a homossexuais, por mais repulsiva que seja a conduta, não se pode enquadrá-la como crime de racismo, sob pena de indevida violação ao art. 59, XXXIX, da CF. Nesse contexto: STF, l â Turma, Inq. 3.590/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 12/08/2014, DJe 177 11/09/2014. No entanto, se a conduta discriminatória for perpetrada contra portador do HIV e doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente, o agente deverá responder pelo crime previsto no art. I s da Lei ne 12.984/14, que entrou em vigor no dia 3 de junho de 2014.

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de embriaguez ao volante, e de participação em competição não autorizada o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei n° 9.099/95. Em relação ao tema ação penal, o dispositivo produzia certa controvérsia, porquanto se referia ao art. 88 da Lei n° 9.099/95, que transformou os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa em crimes de ação penal pública condicionada à representação. Discutia-se, então, se seria exigível o oferecimento de representação em relação aos crimes de embriaguez ao volante e de participação em competição não autorizada. Ora, tendo em conta que tais delitos são crimes de perigo, em que não há uma vítima determinada, como seria possível exigir-se o oferecimento de representação para o início da persecução penal? Por isso, sempre se considerou que, a despeito do teor do art. 291, parágrafo único, do CTB, tais delitos eram mesmo de ação penal pública incondicionada. Com a entrada em vigor da Lei n° 11.705/08, tal incongruência foi corrigida. De acordo com a nova redação conferida ao art. 291, § Io, do CTB, aplica-se aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei n° 9.099/95, exceto se o agente estiver: I - sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; II - participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilís­ tica, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente; III - transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 Km/h (cinqüenta quilômetros por hora). Em resumo, pode-se dizer que o crime de lesão corporal culposa no trânsito é uma infração de menor potencial ofensivo (porque sua pena não ultrapassa a dois anos de detenção). Como regra geral, deve ter incidência a Lei n° 9.099/95. Logo, a ação penal será pública condicionada à representação, devendo ser lavrado termo circunstanciado, com ulterior possibilidade de tran­ sação penal, etc. Se, no entanto, estiver presente uma das situações descritas nos incisos I, II e III do § Io do art. 291 do CTB, o crime deixa de ser considerado infração de menor potencial ofensivo. Deverá, pois, ser instaurado inquérito policial para a investigação da infração penal (Lei n° 9.503/97, art. 291, § 2o). Como o art. 88 da Lei n° 9.099/95 não terá incidência, a ação penal passará a ser pública incondicionada.123 No tocante ao crime de embriaguez ao volante (CTB, art. 306), tendo em conta que sua pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, não se trata de infração de menor potencial ofensivo. Cuida-se de crime de ação penal pública incondicionada, sendo incabível exigir-se representação da vítima. Raciocínio semelhante deve ser aplicado à participação em competição não autorizada: outrora considerada infração de menor potencial ofensivo, porquanto a pena a ela cominada era de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, referido delito perdeu esse status a partir do advento da Lei n. 12.971/14, que majorou a pena máxima para 3 (três) anos.124 14.3. Ação penal nos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa com violência doméstica e familiar contra a mulher De um lado, o art. 16 da Lei n° 11.340/06 prevê que, nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento

123 Aury Lopes Jr. comunga do mesmo entendimento: D ireito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 364. 124 Com esse entendimento: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às reform as do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 372.

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da denúncia e ouvido o Ministério Público. Como o dispositivo refere-se à representação, há quem entenda que, mesmo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, continua sendo exigível o implemento da representação em relação aos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa. Lado outro, o art. 41 da Lei n° 11.340/06 dispõe que, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n° 9.099/95. Ora, se a Lei dos Juizados não é aplicável às situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, e se é a Lei n° 9.099/95 que dispõe que o crime de lesão corporal leve e de lesão corporal culposa é de ação penal pública condicionada à representação (art. 88), con­ clui-se que, se acaso praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, tais delitos seriam de ação penal pública incondicionada. Sempre nos pareceu que, não obstante a aparente contradição entre os dois dispositivos, a lesão corporal leve com violência doméstica e familiar contra a mulher é crime de ação penal pública incondicionada. Primeiro, porque o art. 88 da Lei n° 9.099/95 foi derrogado no tocante à Lei Maria da Penha, já que o art. 41 da Lei n° 11.340/06 expressamente afasta a aplicação da Lei dos Juizados às hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo, porque o escopo de cada uma dessas leis é absolutamente distinto: enquanto a Lei n° 9.099/95 busca evitar o início do processo penal, a Lei Maria da Penha busca punir com maior rigor o agressor que age às escondidas nos lares, pondo em risco a saúde de sua família. Nessa linha, aliás, é interessante perceber que a nova redação do art. 129, § 9o, do Código Penal, dada pelo art. 44 da Lei n° 11.340/06, impondo pena máxima de 03 (três) anos à lesão corporal leve qualificada praticada no âmbito familiar, confirma a intenção da Lei Maria da Penha de se proibir a utilização do procedimento dos juizados especiais, afastando, assim, a exigência de representação da vítima.125 No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.424, o Supremo deu interpre­ tação conforme a Constituição aos arts. 12,1, 16 e 41, todos da Lei n° 11.340/06, para assentar a natureza incondicionada da ação penal em casos de lesão corporal leve e/ou culposa envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher.126 Pesou o fato de dados estatísticos revelarem que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, esta acaba por não representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada em face de vício de vontade da parte dela. Por isso, o agressor passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva. Conclui-se, então, que deixar a mulher decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. Implicaria relevar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão. Entendeu-se não ser aplicável às hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher o disposto na Lei 9.099/95, independentemente da pena prevista, de maneira que, em se tratando de lesões corporais, mesmo que de natureza leve ou culposa, praticadas contra a mulher em âmbito doméstico, a ação penal cabível seria pública incondicionada. Quanto ao art. 16 da Lei Maria da Penha, concluiu o Supremo que subsiste a 125

Nessa linha: STJ, 6ã Turma, HC 96.992/DF, Rei. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), j. 12/08/2008, DJe 23/03/2009. 126 STF, Pleno, ADI 4.424/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/02/2012. De se notar que, a partir da decisão proferida pelo STF, o Superior Tribunal de Justiça se viu obrigado a alterar seu entendimento: STJ, 6^ Turma, HC 145.577, Rei. Min. Assussete Magalhães, j. 18/09/2012, DJe 11/10/2012.

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necessidade de representação para crimes dispostos em leis diversas da 9.099/95, como o de amea­ ça (CP, art. 147, parágrafo único) e os cometidos contra a dignidade sexual (CP, art. 225, caput). Com o objetivo de evitar novos questionamentos em relação à matéria, o Superior Tribunal de Justiça deliberou pela aprovação da súmula n° 542: “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. De se notar que a súmula n° 542 do STJ não faz qualquer referência à espécie de lesão corporal resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher, do que se poderia concluir que tanto aquela de natureza dolosa quanto a culposa seriam crimes de ação penal pública incondicionada. Deveras, considerando-se que o art. 5o e os incisos do art. T da Lei Maria da Penha não estabelecem qualquer distinção, há quem entenda que toda e qualquer infração penal - dolosa ou culposa - seria capaz de configurar violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, se se trata de violência de gênero - de se notar que o próprio art. 5o, caput, da Lei n° 11.340/06, faz referência à qualquer ação ou omissão baseada no gênero -, deve ficar evidenciada a consciência e a vontade do agente de atingir uma mulher em situação de vulnerabilidade, o que somente seria possível na hipótese de crimes dolosos. Logo, com a devida vênia ao STJ, parece-nos que a súmula n° 542 deve ser interpretada nos seguintes termos: “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal dolosa resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondiciona­ da”. A contrario sensu, eventual crime de lesão corporal de natureza culposa (CP, art. 129, § 6o), ainda que praticado, por exemplo, contra a esposa ou contra uma filha, continua funcionando como crime de ação penal pública condicionada à representação, já que a Lei Maria da Penha não é aplicável aos crimes de natureza culposa. A propósito, por ocasião da apreciação da Pet 11.805 sob o rito dos repetitivos, a 3a Seção do STJ deliberou pela revisão do entendimento firmado no REsp n. 1.097.042/DF para fixar a seguinte tese: “A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública incondicionada”.127 14.4. Ação penal nos crimes ambientais: pessoas jurídicas e dupla imputação Não há qualquer controvérsia quanto à espécie de ação penal nos crimes ambientais. O art. 26 da Lei n° 9.605/98 dispõe que, nas infrações penais previstas na referida lei, a ação penal é pública incondicionada. Na verdade, a controvérsia diz respeito à possibilidade de se oferecer denúncia em face da pessoa jurídica. Independentemente da discussão quanto à possibilidade de responsabilidade penal da pes­ soa jurídica, controvérsia a ser analisada nos manuais de Direito Penal, tem sido admitida a possibilidade de se oferecer denúncia em face da pessoa jurídica, desde que a conduta delituosa também seja imputada à pessoa física que atua em seu nome ou benefício (teoria da dupla im­ putação), uma vez que não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio. Logo, se a denúncia tiver sido oferecida tão somente em face da pessoa jurídica, não descrevendo a participação de pessoa física que teria atuado em seu nome ou proveito, há de se reconhecer a inviabilidade de instauração da persecução criminal in iudicio, com o conseqüente trancamento do processo penal, em virtude da inépcia da peça acusatória (CPP, art. 395,1).128

127 STJ, 33 Seção, Pet 11.805/DF, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 10/05/2017, DJe 17/05/2017. 128 STJ, 53 Turma, RMS 20.601/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJU 14/08/2006 p. 304. Na mesma linha: STJ, 5§ Turma, REsp 564.960/SC, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 02/06/2005, DJ 13/06/2005 p. 331; STJ, 5§ Turma, REsp 889.528/SC, Rei. Min. Felix Fischer, j. 17/04/2007, DJ 18/06/2007 p. 303; STF, 1§ Turma, HC 92.921/BA, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19/08/2008, DJe 182 25/09/2008; STJ, 5§ Turma, REsp 989.089/SC, Rei. Min. Arnaldo Esteves

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Em recente e isolado julgado, todavia, a Ia Turma do Supremo concluiu ser perfeitamente possível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão responsável pela prática criminosa. Para a Relatora, Min. Rosa Weber, a tese do STJ no sentido de que a persecução penal dos entes morais somente poderia ocorrer apenas se houvesse, concomitantemente, a descrição e imputação de uma ação humana individual, sem o que não seria admissível a respon­ sabilização da pessoa jurídica, seria incompatível com o art. 225, § 3o, da CF. Ao se condicionar a imputabilidade da pessoa jurídica à da pessoa humana, estar-se-ia quase que a subordinar a responsabilização jurídico-criminal do ente moral à efetiva condenação da pessoa física.129 14.5. Ação penal nos crimes contra a dignidade sexual (Lei n° 13.718/18). Na redação original do Código Penal, os então denominados crimes contra a liberdade sexual e de sedução e corrupção de menores eram crimes de ação penal privada, pelo menos em regra. Com o advento da Lei n. 12.015/09, a regra deixou de ser a ação penal privada e passou a ser a ação penal pública condicionada à representação. Por fim, com o advento da Lei 13.718, em vigor a partir de sua publicação em 25 de setembro de 2018, a nova regra passou a ser a ação penal pública incondicionada. A primeira vista, poder-se-ia concluir então que, doravante, não há mais necessidade de se fazer um estudo detalhado da espécie de ação penal em relação a tais delitos, porquanto todos os crimes contra a dignidade sexual passaram a ser de ação penal pública incondicionada. Ocorre que não se pode perder de vista que essa sucessão de leis no tempo modificando a espécie de ação penal em relação a esses delitos deve ser analisada, quanto ao direito intertem­ poral, sob a ótica do princípio da irretroatividade da lei mais gravosa ou da ultratividade da lei mais benigna (CF, art. 5o, XL). Isso porque, como exposto nos comentários introdutórios deste Título, conquanto prevista no CPP (arts. 24 a 62), a ação penal mantém estreita relação com o direito de punir do Estado, tanto é que o Código Penal também cuida da matéria entre os arts. 100 a 106, do que resulta a conclusão de que há de ser aplicada a lei mais favorável sobre as condições da ação e sobre causas extintivas da punibilidade relacionadas à representação e à ação penal privada. Para exemplificar, basta pensar na Lei n. 12.015/09, que transformou os crimes sexuais, à época, em crimes de ação penal pública condicionada à representação (CP, art. 225, caput, com redação anterior à Lei n. 13.718/18). Fosse o direito de ação considerado de natureza estrita­ mente processual, aplicar-se-ia o art. 2o do CPP, com a regra do princípio da aplicação imediata. Porém, a partir do momento em que se constatam os reflexos que o exercício do direito de ação produz em relação ao ius puniendi, não se pode deixar de aplicar a regra da irretroatividade da lei mais gravosa, ou da retroatividade da lei mais benéfica. Ora, pelo menos enquanto o crime Lima, j. 18/08/2009, DJe 28/09/2009. Ainda em relação à inépcia da peça acusatória, se não observada a dupla imputação: STJ, 6§ Turma, HC 24.239/ES, Rei. Min. Og Fernandes, j. 10/06/2010, DJe 01/07/2010. 129 STF, lâ Turma, RE 548.181/PR, Rei. Min. Rosa Weber, j. 06/08/2013. A partir desse julgado, o STJ modificou sua orientação, para fins de admitir a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambien­ tais independentem ente da responsabilização concom itante da pessoa física que agia em seu nome. A propósito: STJ, Turma, RMS 39.173/BA, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 06/08/2015, DJe 13/08/2015. Ainda que prevaleça o entendimento de que a teoria da dupla imputação não tem lugar no ordenamento jurídico brasileiro, parece-nos inafastável a conclusão de que uma empresa somente poderá figurar no polo passivo de um processo penal quando ficar caracterizado que o crime ambiental foi praticado (1) em seu benefício (2) por decisão do seu representante legal ou do seu órgão colegiado, nos termos do art. 39 da Lei n® 9.605/98, sob pena de admitirmos verdadeira responsabilidade penal objetiva da pessoa jurídica.

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sexual era de ação penal privada, maior era a possibilidade de incidência de causas extintivas da punibilidade, como a decadência, a renúncia, o perdão e a perempção. A partir do momento em que o crime passa a ser de ação penal pública condicionada à representação, não serão mais cabíveis a renúncia, o perdão e a perempção como causas extintivas da punibilidade, subsistindo apenas a possibilidade de decadência do direito de representação. Evidente, portanto, tratar-se, in casu, de lei nova prejudicial ao acusado, logo, irretroativa. O mesmo raciocínio é válido quando se compara a redação do art. 225, caput, do CP, determinada pela Lei n. 12.015/09, com aquela que lhe foi conferida pela Lei n. 13.718/18. Se o crime era de ação penal pública condicionada à representação, pelo menos em regra, ter-se-ia como possível a aplicação da decadência do direito de representação e conseqüente extinção da punibilidade. A partir do momento em que tal delito é transformado em crime de ação penal pública incondicionada, não há mais falar em decadência, porquanto não mais se exige a representação como condição de procedibilidade. Cuida-se, pois, de evidente exemplo de novatio legis in pejus, daí por que a nova regra introduzida pela Lei n. 13.718/18 quanto aos crimes contra a dignidade sexual só deve ser aplicada para os crimes cometidos a partir da sua vigência (25/09/2018), salvo, obviamente, se o delito em questão já era de ação penal pública incondicionada mesmo antes da mudança legislativa em questão. Impõe-se, portanto, o estudo das sucessivas redações do art. 225 do CP - a original, aquela determinada pela Lei n. 12.015/09 e, por fim, a que foi conferida pela Lei n. 13.718/18 -, para que, à luz do direito intertemporal, levando-se em consideração o tempo do crime, seja possível determinar a espécie de ação penal aplicável ao caso concreto. 14.5.1. Redação original do art. 225 do CP (antes da Lei n. 12.015/09). Antes da vigência da Lei n° 12.015/09, a ação penal nos crimes sexuais era, em regra, de iniciativa privada, haja vista a redação original do art. 225, caput, do CP. Essa regra era aplicável inclusive ao crimes sexuais cometidos com violência presumida (CP, revogado art. 224), porquanto não havia nenhuma ressalva nesse sentido. Havia, no entanto, algumas exceções à regra geral: 1) crime cometido contra vítima pobre: a ação penal era pública condicionada à repre­ sentação (CP, art. 225, revogado §1°, I, e revogado §2°). Em regra, a prova da miserabilidade da vítima era feita por simples declaração verbal ou escrita, podendo também resultar da no­ toriedade do fato. Entendia-se como miserabilidade jurídica o fato de a vítima não poder arcar com honorários advocatícios sem se privar de suas necessidades básicas do dia-a-dia. A época, discutiu-se se a ação penal nos crimes sexuais contra vítima pobre permaneceria sendo pública condicionada à representação mesmo quando o ente da federação contasse com Defensoria Pú­ blica devidamente instalada. O Supremo considerou despropositada a construção no sentido de invocar, para a espécie, a norma do art. 68 do CPP e a jurisprudência fixada pela Corte quanto a esse dispositivo - até que viabilizada, em cada Estado, a implementação da Defensoria Pública, o Parquet deteria legitimidade para o ajuizamento de ação civil ex delicto, quando o titular do direito à reparação do dano for pobre -, a fim de converter a ação penal pública condicionada em ação penal privada, que passaria a ter como parte legitimada ativa a Defensoria Pública;130 2) crime cometido com abuso do poder familiar, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador: ação penal pública incondicionada (CP, redação original do art. 225, § Io, II);

130

STF, 2ã Turma, HC 88.143/RJ, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 24/04/2007. Com entendimento semelhante: STF, Tribunal Pleno, HC 92.932/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 05/03/2009.

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3) crime de estupro (ou do antigo atentado violento ao pudor) qualificado pelo re­ sultado lesão corporal grave ou morte: por conta do revogado art. 223, caput, e parágrafo único, do CP, a ação penal era pública incondicionada. Afinal, de acordo com a redação original do art. 225, caput, do CP, nos crimes definidos nos capítulos anteriores, procedia-se mediante queixa. Como o estupro e o atentado violento ao pudor qualificados pela lesão grave ou morte estavam previstos no mesmo capítulo que o art. 225 do CP, entendia-se que a ação penal seria pública incondicionada. Na expressão lesão corporal grave, estavam incluídas as lesões graves e as gravíssimas; 4) crimes de estupro (ou de atentado violento ao pudor) cometidos com violência real: por violência real compreende-se o emprego de força física sobre o corpo da vítima, utilizado como forma de constrangimento para se obter a conjunção carnal ou a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Lesões provocadas ao nível do hímen pela penetração, ou seja, as lesões vagínicas naturais decorrentes da relação sexual, violência moral (ameaça) e violência presumida, não caracterizam violência real. Quanto à espécie de ação penal nesse caso, eis o teor da Súmula n° 608 do STF: “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”. Apesar de a súmula n° 608 do Supremo referir-se apenas ao delito de estupro, seu raciocínio também era aplicado ao crime de atentado violento ao pudor (revogado art. 214 do CP).131 Na visão do Supremo, quando o estupro era praticado com violência real, não se tratava de mero constrangimento ilegal com finalidade específica, mas de delitos efetivamente complexos, ou seja, comprovada a ausência de finalidade específica de conjunção carnal ou ato libidino­ so diverso, restariam, no caso de violência real, duas infrações penais em concurso material: a) constrangimento ilegal e homicídio; b) constrangimento ilegal e lesões corporais; ou ainda c) constrangimento ilegal e vias de fato; assim, só a concorrência do especial fim de agir é que os convertia em crime diverso contra a liberdade sexual.132 Tratando-se de crime complexo, seria aplicável o art. 101 do CP. Por força desse disposi­ tivo, diante de um crime complexo, para que possa se saber a espécie de ação penal, há de se indagar se um dos crimes originários que o compõe é de ação penal pública: se afirmativa a resposta, o crime complexo também será de ação penal pública. Com base nesse dispositivo, o Supremo passou a entender que o estupro, quando praticado com violência real, seria objeto de ação penal pública incondicionada, em razão de ser também de ação pública a persecução dos crimes de lesão corporal (art. 129, CP). Acerca do art. 101 do CP, Cirino dos Santos explica que a ação penal de iniciativa pública poderá ser considerada “extensiva” no chamado crime complexo. Tal situação pode ocorrer num crime de ação penal de iniciativa privada composto de elementos ou circunstâncias típicas que, considerados de forma isolada, constituem crimes de ação penal de iniciativa pública. Como explica o autor, sendo de ação penal de iniciativa pública o crime elementar constitutivo do tipo do crime de ação penal de iniciativa privada, opera-se uma extensão da natureza daquela ação

131

Nessa linha: STJ, 5ã Turma, HC 10.067/MG, Rei. Min. Jorge Scartezzini, j. 08/02/2000, DJ 24/04/2000, p. 62.

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Nesse sentido: STF, 1§ Turma, HC 86.058/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25/10/2005, DJ 09/02/2007. A súmula 608 parte do pressuposto de que o estupro seria exemplo de um crime complexo, premissa esta que se apresenta equivocada, pelo menos para grande parte da doutrina. Crime complexo é aquele que reúne dois ou mais tipos penais. Ora, considerando-se que a conjunção carnal, por si só, sem o emprego de violência, não é crime, não se pode considerar o crime de estupro, em sua modalidade simples, como exemplo de crime complexo. Nesse sentido: GRECO, Rogério. Curso de d ire ito penal: p a rte geral. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2005. p .779.

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(de iniciativa pública), passando a, em termos processuais penais, ser o todo tratado como de ação penal de iniciativa pública.133 Este entendimento de que o estupro cometido com violência real seria crime de ação penal pública incondicionada sequer foi alterado com o advento da Lei dos Juizados Especiais Cri­ minais. Na dicção do Supremo, “o advento da Lei 9.099/95 não alterou a Súmula STF 608, que continua em vigor. O estupro com violência real é processado em ação pública incondicionada. Não importa se a violência é de natureza leve ou grave”.134Aliás, há precedentes dos Tribunais Superiores apontando a pública incondicionada como a espécie de ação penal para o crime de estupro cometido com violência real ainda que a vítima sequer tenha sofrido lesões corporais.135 Se, quanto à violência real, o Supremo entendeu ser aplicável o dispositivo do art. 101 do Código Penal, o mesmo não ocorreu quando a violência empregada fosse a moral, ou seja, quando o crime sexual fosse cometido mediante grave ameaça à pessoa. Nesse caso, apesar de se saber que o crime de ameaça é de ação penal pública condicionada à representação (CP, art. 147, parágrafo único), acabou prevalecendo o entendimento de que a norma do art. 101 do CP não teria aptidão para revogar o quanto disposto no art. 225 do Código Penal. Portanto, se o crime de estupro fosse cometido mediante grave ameaça (v.g., com emprego de arma de fogo), a ação penal seria de iniciativa privada.136 14.5.2. Redação do art. 225 do CP determinada pela Lei n. 12.015/09 (antes da Lei n. 13.718/18). A par das modificações produzidas quanto aos crimes contra a dignidade sexual em espé­ cie, a Lei n° 12.015/09 também produziu profundas alterações na sistemática da ação penal nos crimes sexuais. Eis a então redação do art. 225, caput, e parágrafo único, do Código Penal: “Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável”. Como se percebe, pelo menos à época, a regra, quanto à ação penal, passou a ser a pública condicionada à representação. Não se trata, porém, de uma regra absoluta, porquanto a própria Lei, a doutrina e a jurisprudência apontavam algumas exceções, a seguir enumeradas: a) crimes sexuais contra menor de 18 (dezoito) anos: a redação do então vigente parágrafo único do art. 225 do CP não deixava qualquer dúvida quanto à espécie de ação penal nesse caso, a saber, pública incondicionada; b) crime sexuais contra vulneráveis: há uma aparente contradição entre o art. 225, caput, e o art. 225, parágrafo único, ambos do Código Penal, com redação determinada pela Lei n. 12.015/09

133

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. D ireito penal - pa rte geral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 665.

134

STF, 2§ Turma, HC 82.206/SP, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 22/11/2003.

135

STF, 23 Turma, RHC 117.978/SP, Rei. Min. Dias Toffolí, j. 05/06/2018, DJe 153 31/07/2018. Ainda no sentido da desnecessidade de ocorrência de lesões corporais para a caracterização da violência real nos crimes de estupro, autorizando, assim, a aplicação da súmula n. 608 do STF: STF, 2® Turma, HC 102.683/RS, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 14/12/2010, DJe 24 04/02/2011.

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Interessante destacar que, no âmbito do STJ, houve interpretação no sentido de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados com violência real ou por meio de grave ameaça com emprego de arma de fogo, impossibilitando qualquer reação da vítima, seriam de ação penal pública incondicionada: STJ, 5§ Turma, HC 87.465/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 05/02/2009, DJe 09/03/2009. E ainda: STJ, 5®Turma, HC 31.063/ PE, Rei. Min. Jorge Scartezzini, j. 23/03/2004, DJ 24/05/2004, p. 308.

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO

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(antes da Lei n. 13.718/18). Isso porque o caput do art. 225 dizia que os crimes definidos nos capítulos I (“Dos crimes contra a liberdade sexual) e II (“Dos crimes sexuais contra vulnerável”) do Título VI seriam de ação penal pública condicionada à representação. Portanto, da leitura do art. 225, caput, do CP, com redação determinada pela Lei n. 12.015/09, poder-se-ia concluir que os crimes sexuais contra vulnerável seriam de ação penal pública condicionada à representação. Ocorre que o revogado parágrafo único do art. 225 do CP previa que os crimes contra pessoa vulnerável eram de ação penal pública incondicionada. Para a doutrina, essa antinomia deveria ser resolvida em conformidade com a Constituição Federal, que prevê um tratamento diferenciado para crianças, adolescentes e pessoas portadoras de deficiência física e mental, assegurando-lhes a mais ampla proteção, que é a aquela dada pela ação penal pública incondicionada. Em sentido diverso, a 6a Turma do STJ passou a entender que a ação penal seria pública incondicionada se a vítima fosse permanentemente incapaz de oferecer resistência à prática de atos libidinosos. No entanto, em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos - não sendo considerada pessoa vulnerável -, a ação penal permaneceria condicionada à representação da vítima, da qual não poderia ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii:;137 c) crimes sexuais cometidos com violência real: com a redação então em vigor após o advento da Lei n. 12.015/09 e antes da Lei n. 13.718/18, o art. 225, caput, e parágrafo único, do CP, não faziam qualquer ressalva quanto aos crimes sexuais cometidos com o emprego de violência real. Logo, tais delitos também estavam sujeitos à regra geral vigente à época, qual seja, ação penal pública condicionada à representação. A súmula n° 608 do STF perdera, pois, seu fundamento de validade à luz da Lei n° 12.015/09. Portanto, em se tratando de crime contra a dignidade sexual cometido com o emprego de violência real, a ação penal também seria pública condicionada à representação, salvo se o crime fosse cometido contra menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável;138 d) crime de estupro qualificado pela lesão grave ou morte (CP, art. 213, §§1° e 2o): a Lei n° 12.015/09 nada dispôs quanto à espécie de ação penal nas hipóteses de estupro qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte, do que se poderia concluir, à primeira vista, que tais delitos estariam sujeitos à regra geral então em vigor nos crimes sexuais, a saber, ação penal pública condicionada à representação. A doutrina, todavia, jamais concordou com tal conclusão. A uma porque condicionar o exercício da ação penal à representação em relação a crime de tal gravidade importaria em clara violação ao princípio da proporcionalidade, conferindo proteção deficiente à sociedade.139 A duas porque haveria clara violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, permitindo-se que crime do qual resultou a morte de uma pessoa ficasse sub­ metido à manifestação da vontade de seus sucessores em dar início à persecução criminal. Não por outro motivo, o Procurador-Geral da República propôs ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4.301) a fim de se declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do

137

STJ, 6ã Turma, HC 276.510/RJ, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11/11/2014, DJe 12/12/2014.

138

STJ, 63 Turma, RHC 39.538/RJ, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 08/04/2014, DJe 25/04/2014. No mesmo contexto: STJ, 5^ Turma, REsp 1.227.746/R S, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 0 2 /0 8 /2 0 1 1 , Dje 1 7 /0 8 /2 0 1 1 .

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Quanto ao princípio da proibição da proteção deficiente ou insuficiente, o Min. Gilmar Mendes já teve a opor­ tunidade de asseverar que, "quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental". (STF, Tribunal Pleno, RE 418.376/MS, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 09/02/2006, DJ 23/03/2007).

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caput do art. 225 do Código Penal, na redação que lhe fora conferida pela Lei 12.015/09, para excluir do seu âmbito de incidência os crimes de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, de modo a restaurar, em relação a tais modalidades delituosas, a regra geral da ação penal pública incondicionada (art. 100 do Código Penal e art. 24 do Código de Processo Penal). 14.5.3. Redação do art. 225 do CP determinada pela Lei n. 13.718/18. Como exposto anteriormente, com a entrada em vigor da Lei n. 13.718 no dia 25 de setem­ bro de 2018, o art. 225, caput, do CP, passou a ter a seguinte redação: “Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada”. Revogou-se, ademais, o parágrafo único do art. 225 do mesmo diploma. Da leitura dessa nova redação do art. 225, caput, do CP, podemos extrair algumas conclusões: a) ação penal dos crimes definidos nos Capítulos I e II do Título VI do CP: são todos de ação penal pública incondicionada. Os crimes definidos no Capítulo I (“Dos crimes contra a Liberdade Sexual”) do Título VI (“Dos crimes contra a dignidade sexual”) são o estupro (CP, art. 213), violação sexual mediante fraude (CP, art. 215), importunação sexual (CP, art. 215-A) e assédio sexual (CP, Art. 216-A). Com o advento da Lei n. 13.772, vigente em data de 20/12/2018, foi acrescentado ao Capítulo I o Capítulo I-A (“Da exposição da intimidade sexual”), dentro do qual foi inserido o crime de registro não autorizado de intimidade sexual (art. 216-B), que também se sujeitará à regra geral da ação penal pública incondicionada, não apenas pelo fato de estar inserido no Capítulo /, mas também por não haver previsão legal em sentido diverso. Por sua vez, constam do Capítulo II (“Dos crimes sexuais contra vulnerável”) do referido Título os seguintes crimes: estupro de vulnerável (CP, art. 217-A); corrupção de menores (CP, art. 218); satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (CP, art. 218-A); favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (CP, art. 218-B); divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (CP, art. 218-C); b) ação penal dos crimes definidos nos demais capítulos do Título VI do CP: como o caput do art. 225 do CP refere-se apenas aos crimes definidos nos Capítulos I e l I do Título VI para dizer que se procede em relação a eles mediante ação penal pública incondicionada, poder-se-ia interpretar a contrario sensu que os crimes definidos nos demais capítulos desse Título não estariam sujeitos à mesma regra. No entanto, se procedermos à análise individualizada de cada um desses delitos - mediação para servir a lascívia de outrem (CP, art. 227), favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (CP, art. 228), casa de prostituição (CP, art. 229), rufianismo (CP, art. 230), promoção de migração ilegal (CP, art. 232-A), ato obsceno (CP, art. 233) e escrito ou objeto obsceno (CP, art. 234) -, e até à leitura do Capítulo VII, que versa sobre as disposições gerais aplicáveis aos crimes contra a dignidade sexual previstos no Título VI do CP, perceber-se-á que não há nenhuma ressalva quanto à ação penal, é dizer, não consta nenhum artigo ou parágrafo dispondo que, em relação a tais delitos, “somente se procede mediante queixa” ou “somente se procede mediante representação”. Logo, se considerarmos que o art. 100, caput e § Io, do Código Penal, dispõe que a regra é a ação penal pública incondi­ cionada, salvo quando a lei expressamente a declarar privativa do ofendido, ou quando exigir a representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça, é de se concluir que todos os crimes definidos nos demais capítulos do Título VI do CP também estão sujeitos à regra geral, ou seja, são delitos de ação penal pública incondicionada. Em síntese, podemos dizer que, desde o dia 25 de setembro de 2018, todos os crimes contra a dignidade sexual são de ação penal pública incondicionada. A rigor, sequer haveria necessidade

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de a Lei n. 13.718/08 ter conferido nova redação ao art. 225 do CP. Tecnicamente, seria até mais correto apenas revogá-lo, porquanto, ausente qualquer referência explícita em sentido diverso quanto à espécie de ação penal, ter-se-ia como regra a pública incondicionada, nos exatos termos do art. 100, caput e §1°, do Código Penal. 14.5.4. Quadro comparativo da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual. R edação original d o art. 2 2 5 d o CP

R edação d o art. 225 d o CP

R edação d o art. 2 2 5 d o CP

determ in a d a pela Lei n. 1 2 .0 1 5 /0 9

d eterm in ad a pela Lei n. 1 3 .718

R egra g era l:

ação penal privada, inclusive para os crimes sexuais co­ metidos com a extintiva violência presumida;

Regra geral:

ação penal pública con­ dicionada à representação;

E xceções:

E xceções:

1) Crime contra vítim a pob re, ainda

1) C rim es s e x u a is c o n tr a m e n o r

q u e h o u v e s se D efensoria Pública na

d e 18 an os:

ação penal pública condi­ cionada à representação;

2) Crimes sexu ais contra vulneráveis:

Comarca:

2) Crim e c o m e tid o co m a b u so d o p o d er fam iliar ou da q u a lid a d e d e padrasto, tu to r ou curador:

ação pe­

nal pública incondicionada; 3) Crime d e estu p ro qu alificado pela le sã o grave ou m orte:

ação penal pú­

blica incondicionada; 4) Crime d e estu p r o c o m e tid o com

ação penal pública incondicionada; Regra g e ra l:

ação penal pública incondicionada; para a doutrina, crime de ação penal pública incondicionada; para a Tur­ ma do STJ (HC 276.510), se a incapa­ cidade da vítima fosse permanente, ação penal pública incondicionada; se a incapacidade da vítima fosse transitória, ação penal pública con­ dicionada à representação;

violência real, ainda q u e a vítim a s e ­ qu er tiv e sse sofrido le sõ e s corporais:

ação penal pública incondicionada (súmula n. 608 do STF);

14.5.5. Direito intertemporal. Sem dúvida alguma, o ponto mais polêmico pertinente às sucessivas mudanças da siste­ mática quanto à ação penal nos crimes sexuais diz respeito ao direito intertemporal. Em outras palavras, as consecutivas redações do art. 225 do CP, impondo, como regra geral, primeiro, a ação penal pública condicionada à representação, (Lei n. 12.015/09) e, depois, a ação penal pública incondicionada (Lei n. 13.718/18), têm aplicação retroativa, ou aplicam-se somente aos crimes praticados após sua vigência? E no tocante aos processos em andamento? Teria havido a necessidade de representação por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 12.015/09 para os crimes que até então eram de ação penal pública incondicionada? A resposta a esses questionamentos relacionados ao direito intertemporal passa, invariavel­ mente, pela comparação da espécie de ação penal a que o delito estava submetido sob a égide da redação original do art. 225 do CP e a natureza da ação penal a que passou a ficar sujeito após o advento das Leis 12.015/09 e 13.718/18. Enfim, a despeito da complexidade do assunto, parece-nos possível trabalhar com as seguintes hipóteses à luz do direito intertemporal: a) crime sexual de ação penal privada cometido antes da entrada em vigor da Lei n. 12.015/09 (vigência em 10/08/2009): se o crime sexual estava submetido à regra anterior, ou seja, se era crime de ação penal de iniciativa privada (v.g., estupro com violência presumida), não temos dúvida em afirmar que a disciplina acerca do assunto conferida pelas sucessivas

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mudanças legislativas - primeiro, pela Lei n. 12.015/09, transformando a regra em ação penal pública condicionada à representação e, depois, pela Lei n. 13.718/18, em ação penal pública incondicionada - é mais gravosa. Afinal, enquanto o crime era de ação penal de iniciativa priva­ da, maiores eram as possibilidades de incidência de causas extintivas da punibilidade: renúncia, perdão e perempção, além da decadência, que também se aplica à representação. Logo, se o crime sexual foi cometido antes da vigência da Lei n° 12.015/09 (10 de agosto de 2009), e era crime de ação penal de iniciativa privada, tal espécie de ação penal deve continuar sendo observada, mesmo que o processo ainda não tivesse tido início, já que o novo regramento é mais gravoso, sendo, portanto, irretroativo, nos termos do art. 5o, XL, da Constituição Federal; b) crimes sexuais cometidos contra vítimas pobres à época da vigência da redação original do art. 225 do CP (antes da Lei n. 12.015/09): como exposto anteriormente, tais crimes eram, à época, de ação penal pública condicionada à representação. Com as mudanças produzidas pela Lei n. 12.015/09, nada foi dito quanto à vítima pobre. Dever-se-ia observar então, à época, a regra geral da antiga redação do caput do art. 225 do Código Penal, permanecendo inalterada a natureza da ação penal: pública condicionada à representação. Com a entrada em vigor da Lei n. 13.718 no dia 25 de setembro de 2018, esse delito passou a se sujeitar à regra, qual seja, ação penal pública incondicionada. Porém, essa regra é válida apenas para os crimes cometidos a partir da vigência do referido diploma normativo; c) crimes sexuais cometidos com abuso do poder familiar, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador: antes da Lei n° 12.015/09, eram crimes de ação penal pública incondicionada. A Lei n° 12.015/09 nada disse, expressamente, quanto aos crimes sexuais praticados com abuso do poder familiar. Porém, fez menção expressa aos crimes sexuais praticados contra menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável, hipótese em que a ação penal será pública incondicionada. Como os vulneráveis são, grosso modo, os que estão sob poder familiar ou são tutelados ou curatelados,140 é de se concluir que não houve alterações substanciais na espécie de ação penal, que continua sendo pública incondicionada, inclusive após a entrada em vigor da Lei n. 13.718/18; d) crimes sexuais cometidos com violência real durante a vigência da redação original do art. 225, caput, do CP, cujas denúncias ainda não tinham sido oferecidas por ocasião da vigência da Lei n. 12.015/09: por força do entendimento sumulado do Supremo Tribunal Federal (súmula n° 608), entendia-se que tais crimes eram de ação penal pública incondiciona­ da. Diante do silêncio eloqüente da Lei n° 12.015/09 quanto a tal crime sexual, subentende-se que referido delito estava, desde então, subordinado à regra da antiga redação do caput do art. 225 do CP, ou seja, ação penal pública condicionada à representação. Nessa comparação, fica evidente que o novo regramento da espécie de ação penal é mais favorável para o acusado, já que, ao transformar o crime de estupro praticado com violência real em crime de ação penal pública condicionada à representação, cria nova causa extintiva da punibilidade que pode vir a beneficiar o réu, qual seja, a decadência pelo não exercício do direito de representação no prazo legal de 6 (seis) meses. Cuidando-se de norma processual material mais benéfica, há de retroagir aos fatos ocorridos antes de 10 de agosto de 2009, data da vigência da Lei n° 12.015/09, nos exatos termos do art. 5o, XL, da Constituição Federal. Portanto, se a denúncia quanto ao crime

140

De acordo com o art. 1630 do Código Civil, os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores. O art. 1.728 do CC, por sua vez, dispõe que os filhos menores são postos em tutela com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes, ou em caso de os pais decaírem do poder familiar. Por sua vez, estão sujeitos à curatela aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil, aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade, os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos, os excepcionais sem completo desenvolvimento mental e os pródigos. (CC, art. 1.767).

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL EAÇÃO CIVIL EX DELICTO

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de estupro praticado com violência real ainda não havia sido oferecida quando entrou em vigor a Lei n° 12.015/09, pensamos que a atuação do MP passou a depender de representação, cujo termo decadencial inicial, para os fatos pretéritos, seria o da vigência da Lei n° 12.015/09. Sem embargo desse entendimento majoritário, é oportuno registrar que a Ia Turma do STF tem pre­ cedente em sentido diverso. No caso concreto apreciado pelo referido colegiado, a denúncia pela prática do antigo crime de atentado violento ao pudor (revogado art. 214 do CP) fora realizada em 2012, quando já estava em vigor a Lei 12.015/2009, que alterou o disposto no art. 225 do Código Penal, e mais de cinco anos após a ocorrência do delito. Como o crime fora praticado mediante violência real, a Turma concluiu que deveria ser aplicada a Súmula n. 608 do STF, mesmo após o advento da Lei 12.015/2009. Com base nesse raciocínio, rejeitou a alegação de decadência ao fundamento de que a ação penal seria pública incondicionada.141 Por fim, com a entrada em vigor da Lei n. 13.718, nenhuma alteração deverá haver em relação a esse raciocínio, haja vista tratar-se, a mudança de ação penal pública condicionada à representação para ação penal pública incondicionada, de evidente exemplo de novatio legis in pejus; e) crimes sexuais cometidos com violência real durante a vigência da redação original do art. 225, caput, do CP, cujos processos penais já estivessem em andamento por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 12.015/09: discute-se na doutrina e na jurisprudência se haveria necessidade de se intimar a vítima para oferecer a representação se acaso o processo criminal já estivesse em andamento quando a Lei n. 12.015/09 entrou em vigor (10/08/2009). De um lado, parte da doutrina entende que se a denúncia já havia sido oferecida pelo Ministério Público, tratar-se-ia de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança. Ao contrário da Lei n° 9.099/95, que fez expressa menção à representação como condição de prosseguibilidade para os crimes de lesão corporal leve e culposa (Lei n° 9.099/95, art. 91), a Lei n° 12.015/09 silenciou acerca da necessidade de representação para os processos que já estavam em andamento. Esse silêncio eloqüente significa dizer que a representação jamais poderia ser considerada condição superveniente da ação para os processos criminais referentes a crimes de estupro cometidos com violência real que já estavam em andamento quando da entrada em vigor da Lei n° 12.015/09. Com a devida vênia, queremos crer que o fato de o processo penal já estar em andamento não é empecilho algum à incidência do regramento então introduzido pela Lei n° 12.015/09. Ao transformar o delito de estupro cometido com violência real em crime de ação penal pública condicionada à representação, a Lei n° 12.015/09 assume nítida natureza penal, já que cria, em favor do acusado, nova causa extintiva da punibilidade: a decadência, pelo não exercício do direito de representação no prazo legal de 6 (seis) meses. O fato de a Lei n° 12.015/09 não trazer dispositivo expresso acerca do assunto, como o fez a Lei n° 9.099/95 (art. 91), não pode servir como impedimento para a incidência do novo regramento. Afinal, como o direito de representa­ ção está profundamente vinculado ao direito de punir, uma vez que seu não exercício acarreta a decadência, que é causa de extinção da punibilidade, e como tudo que impeça ou dificulte o ius puniendi se insere no âmbito da lei penal, há de se aplicar a regra do Direito Penal intertemporal, segundo a qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (CF, art. 5o, XL, c/c art. 2o, parágrafo único, do CP). Quanto ao prazo para o oferecimento dessa representação, alguns doutrinadores vinham se se manifestando no sentido da aplicação do mesmo prazo previsto no art. 91 da Lei n° 9.099/95 (30 dias). Mais uma vez, ousamos discordar. Diante do silêncio da Lei

141

STF, lã Turma, HC 125.360/RJ, Rei. Min. Alexandre de Moraes, j. 27/02/2018. A 5® Turma do STJ também tem precedente isolado no sentido de que a ação penal nos crimes contra a dignidade sexual praticados com violência real continuaria sendo pública incondicionada, permanecendo hígida a orientação constante do verbete 608 da Súmula da Suprema Corte, mesmo após o advento da Lei n9 12.015/2009: STJ, 59 Turma, RHC 40.719/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 18/03/2014, DJe 26/03/2014.

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n° 12.015/09, não se pode usar, por analogia, o art. 91 da Lei n° 9.099/95. Referida lei só poderia ser usada, subsidiariamente, se o Código Penal e o Código de Processo Penal nada dispusessem acerca do assunto. Ora, como o Código Penal (art. 103) e o Código de Processo Penal (art. 38) contêm dispositivos expressos acerca do prazo decadencial da representação - 6 (seis) meses pensamos que este é o prazo que deve ser utilizado subsidiariamente, cujo termo inicial será o momento em que o ofendido ou seu representante legal forem intimados para oferecê-la, e não a data da entrada em vigor da Lei n. 12.015/09, porquanto é somente a partir desse momento que se poderá falar em evidente inércia para fms de reconhecimento da decadência.142A despeito de toda essa controvérsia, considerando que não se exige maiores formalismos quanto à represen­ tação, se porventura já constasse dos autos desse processo criminal algum tipo de requerimento para a instauração do inquérito policial, ou até mesmo um exame de corpo de delito feito no curso das investigações, é de rigor a conclusão no sentido de que já havia representação naquele feito, porquanto evidenciado o interesse da vítima no sentido da persecução penal. Nesse caso, poder-se-ia aproveitar essa representação como condição de prosseguibilidade para fms de se dar continuidade ao processo. Por fim, à semelhança da hipótese anterior, é certo concluir que o advento da Lei n. 13.718/18 nenhuma conseqüência trouxe em relação à matéria em apreço, vez que se trata de novatio legis in pejus; f) crimes sexuais de ação penal pública condicionada à representação cometidos du­ rante a vigência da Lei n. 12.015/09: como exposto anteriormente, a regra em relação aos crimes sexuais cometidos sob a égide da Lei n. 12.015/09 era a ação penal pública condicionada à representação, já que havia apenas duas exceções previstas no revogado parágrafo único do art. 225 (vítima menor de 18 anos ou pessoa vulnerável). Com a vigência da Lei n. 13.718/18, a regra passou a ser a ação penal pública incondicionada. É de todo evidente que esse novo regramento não poderá retroagir para abranger crimes cometidos anteriormente, porquanto, ao afastar a representação como condição de procedibilidade para a deflagração da persecução penal, a Lei n. 13.718/18 assume evidente viés gravoso, porquanto suprime a possibilidade de incidência da decadência do direito de representação como causa extintiva da punibilidade. 14.6. Ação penal no crime de invasão de dispositivo informático Projetos de Lei tipificando crimes cibernéticos arrastaram-se no Congresso Nacional durante anos. Ocorre que, em maio de 2012, 36 (trinta e seis) fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann foram subtraídas por cinco agentes. Tais fotos foram disponibilizadas na rede mundial de com­ putadores e, em menos de 5 dias, acessadas mais de 8 milhões de vezes. Os responsáveis pela subtração das fotos foram denunciados pelos crimes de extorsão, difamação e furto, mas não pela invasão de dispositivo informático alheio, porquanto, à época, tal conduta não era tipificada pelo ordenamento pátrio. Com a notoriedade da atriz e a pressão exercida pela mídia, o Congresso Nacional editou a Lei n° 12.737/12, com vigência em 02 de abril de 2013, responsável pela introdução dos arts. 154-A e 154-B ao Código Penal. 142

No sentido de que os processos penais em relação a crimes sexuais praticados mediante violência real deveriam ser suspensos para que as vítimas manifestassem desejo de representar contra o acusado, sendo que a contagem do prazo decadencial de 6 (seis) meses deveria ter início a partir da entrada em vigor da lei nova, isto é, em 10/08/2009: STJ, 59 Turma, REsp 1.227.746/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 02/08/2011, Dje 17/08/2011. Com fun­ damento no princípio da retroatividade da lei posterior mais benéfica (CF, art. 59, XL), a 6ã Turma do STJ concluiu que a retratação da representação oferecida em relação a crime cometido antes da Lei n9 12.015/09, sem que tivesse sido oferecida a denúncia, autoriza o arquivamento do feito por ausência de condição de procedibilidade da ação penal: STJ, 6® Turma, REsp 1.290.077/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 04/02/2014, DJe 31/03/2014.

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Há dois tipos penais diversos: a) art. 154-A, caput, do CP: incrimina a conduta daquele que invade dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Nessa hipótese, o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica, que teve seu dispositivo informático alheio devassado; b) art. 154-A, § Io, do CP: pune a conduta daquele que contribui, mediante produção, oferecimento, distribuição ou difusão de programa de computador para que um terceiro venha a devassar dispositivo infor­ mático alheio, a exemplo do agente que vende softwares, possibilitando a outrem a invasão de computadores alheios. Diversamente da modalidade delituosa anterior, esta figura delituosa do § Io do art. 154 não possui uma vítima determinada, já que se trata de crime de perigo. Especificamente em relação à ação penal, eis o teor do art. 154-B: “Nos crimes definidos no art. 154-A, somente se procede mediante representação, salvo se o crime é cometido contra a administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios ou contra empresas concessionárias de serviços públicos”. À primeira vista, o dispositivo parece não oferecer qualquer controvérsia: em regra, no tocante aos crimes definidos do art. 154-A do CP, a ação penal será pública condicionada à representação. Todavia, nos mesmos moldes do art. 24, § 2o, do CPP, nas hipóteses em que o delito envolver a admi­ nistração pública direta ou indireta, a ação penal será pública incondicionada. O problema, no entanto, diz respeito à ação penal adequada ao crime do art. 154-A, § Io, do CP. Se o art. 154-B for alvo de interpretação gramatical, a conclusão inevitável é a de que o crime subsidiário do § Io do art. 154-A também depende de representação. Ocorre que tal delito é espécie de crime de perigo abstrato, que não possui uma vítima determinada. Ora, se não há vítima, como, então, exigir a representação? Quem poderia oferecê-la? Apesar de o art. 154-B do CP não fazer qualquer ressalva em relação ao crime do art. 154, § Io, do CP, como o fez, por exemplo, em relação aos crimes cometidos contra a administração pública direta ou indireta, parece-nos que, em tal hipótese, a ação penal também será pública incondicionada. Se o crime do art. 154-A, § Io, do CP, não possui vítima determinada, não haveria ninguém para oferecer a representação. Se dissermos, então, que tal crime depende de representação, teríamos que chegar à conclusão (absurda) de que o legislador teria criado um crime cuja persecução penal é impossível. O direito deve ser interpretado de maneira inteligente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, conclusões inconsistentes ou impossíveis. Como nos lembra Carlos Maximiliano,143 “prefira-se a inteligência dos textos que tome viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade”. Por isso, não se pode exigir represen­ tação para a persecução penal de um crime que não possui vítima determinada, hipótese em que deve ser seguida a regra geral do Código Penal (art. 100), ou seja, a ação penal será pública incondicionada. 15. PEÇA ACUSATÓRIA 15.1. Denúncia e queixa-crime A peça acusatória em crimes de ação penal pública (incondicionada e condicionada) é denominada de denúncia, ao passo que, no caso de crimes de ação penal de iniciativa privada (exclusiva, personalíssima ou subsidiária da pública), esse ato vestibular recebe o nomen juris de 143

MAXIMILIANO, Carlos. Herm enêutica e aplicação do Direito. 20a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 203.

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queixa-crime. Apesar de, vulgarmente, qualquer notícia de infração penal à autoridade policial ser chamada de “denúncia” ou “queixa”, sabemos que, tecnicamente, denúncia e queixa-crime são os nomes das peças acusatórias do processo penal, não se confundindo, pois, com a notitia criminis encaminhada por qualquer do povo ou pelo próprio ofendido à autoridade policial. A denúncia pode ser conceituada como o ato processual por meio do qual o Ministério Público se dirige ao Juiz, dando-lhe conhecimento da prática de um fato delituoso e manifes­ tando a vontade de ser aplicada a sanção penal ao culpado. Por outro lado, pode-se definir a queixa-crime como a peça processual em crimes de ação penal de iniciativa privada (exclusiva, personalíssima e subsidiária da pública), subscrita por advogado dotado de procuração com poderes especiais (ou pelo próprio ofendido, caso seja profissional da advocacia), tendo como destinatário o órgão jurisdicional competente, por meio da qual o querelante pede a instauração de processo penal condenatório em face do suposto autor do delito (querelado), a fim de que lhe seja aplicada pena privativa de liberdade ou medida de segurança. Tanto a denúncia quanto a queixa são aduzidas através de petição, que deve ser escrita na língua pátria. Contudo, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, há previsão legal de ofe­ recimento de denúncia ou queixa oral, as quais, logicamente, serão reduzidas a termo, a fim de que o acusado possa ter ciência da imputação formulada (Lei n° 9.099/95, art. 77, caput, e § 3o). Apesar de não ser comum, é perfeitamente possível que se instaure um litisconsórcio ativo entre o Ministério Público e o querelante, cada qual oferecendo sua respectiva peça acusatória. Supondo, assim, a existência de conexão e/ou continência entre crimes de ação penal pública e de ação penal de iniciativa privada, recomendando a existência de um simultaneus processus (CPP, art. 79), o Promotor de Justiça deve oferecer a denúncia quanto ao crime de ação penal pública, cabendo ao querelante o oferecimento de queixa-crime quanto ao delito de ação penal de iniciativa privada. 15.2. Requisitos da peça acusatória De acordo com o art. 41 do CPP, “a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato crimi­ noso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”. Para além dos requisitos aí inseridos - exposição do fato criminoso, qualificação do acusado, classificação do crime e rol de testemunhas, quando necessário -, a doutrina acrescenta outros, tais como o endereçamento da peça acusatória, sua redação em vernáculo, a citação das razões de convicção ou presunção da delinqüência, assim como a subscrição da peça pelo Ministério Público ou pelo advogado do querelante, sem olvidar da procuração com poderes especiais, e do recolhimento de custas, no caso de queixa-crime. Alguns requisitos são de observância obrigatória. É o que ocorre, por exemplo, com a exposição do fato criminoso, a individualização do acusado e a redação da peça em português. Eventual vício quanto a um desses elementos enseja o reconhecimento da inépcia formal da peça acusatória. Outros requisitos, todavia, como o rol de testemunhas, a classificação do crime, a assinatura do promotor ou do advogado, o endereçamento e as razões de convicção, não se revestem de tamanha importância. Há doutrinadores que incluem, dentre os requisitos essenciais da peça acusatória, a formu­ lação de um pedido de condenação. A nosso ver, o pedido de condenação é implícito. Afinal, se o Ministério Público ofereceu denúncia, ou se o ofendido propôs queixa-crime, subentende-se que têm interesse na condenação do acusado. Ademais, como visto ao tratarmos do princípio da obrigatoriedade, nada impede que o Promotor de Justiça, ao final do processo, opine pela

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absolvição do acusado. Portanto, entendemos que o pedido de condenação não é requisito es­ sencial da peça acusatória. 15.2.1. E xp o siçã o do fa to crim inoso co m todas as su a s circu n stâ n cia s

Deve a peça acusatória narrar o fato delituoso detalhadamente, fazendo menção às circuns­ tâncias que o envolvem e que possam influir na sua caracterização, como, por exemplo, aquelas que digam respeito a qualifícadoras, causas de aumento ou diminuição de pena, agravantes, etc. Essa descrição deve ser feita com dados fáticos da realidade, não bastando a simples repetição da descrição típica. Não basta, assim, limitar-se a parte acusadora a dizer que o acusado “sub­ traiu, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, ou que teria “praticado homicídio culposo na direção de veículo automotor”. Há necessidade de que a conduta delituosa seja descrita com todas as suas circunstâncias, apontando-se, então, o que aconteceu, quando, onde, por quem, contra quem, de que forma, por que motivo, com qual finalidade, etc., sendo possível a utilização da técnica de se primeiro narrar o fato e, depois, apontar, por conseqüência, o tipo penal em que o agente está incurso, demonstrando-se o adequado juízo de subsunção a legitimar o exercício da pretensão punitiva. Sobre o assunto, é clássica a lição de João Mendes. Segundo ele, a queixa ou a denúncia é “uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira por que a praticou (quomodo), o lugar onde o praticou (urbi), o tempo (quando). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear as testemunhas e informantes”.144 O fato delituoso narrado na peça acusatória deve estar plenamente identificado como acon­ tecimento histórico por circunstâncias que o delimitem no tempo e no espaço e, portanto, o diferenciem de outro evento da natureza. O acusado e seu defensor precisam ter consciência, com precisão, do fato imputado. Não pode o acusado, em síntese, correr o risco de ter proferido contra si decreto condenatório por fato diferente daquele constante da peça acusatória. Como observa Antônio Scarance Fernandes, para proporcionar a reação do acusado, a ex­ posição do fato pela acusação deve ser clara, precisa e completa. Segundo o autor, “a descrição é clara quando permite verificar no fato os elementos constitutivos do tipo e as circunstâncias que o individualizam; é precisa quando bem determina o fato sem permitir confusão com outro; é circunstanciada quando contempla todas as circunstâncias necessárias para a identificação dos elementos do tipo correspondente ao fato e para individualizar o fato no contexto temporal e espacial em que se manifestou”.145 Mas será que toda peça acusatória deve descrever o exato momento e o lugar em que o crime foi cometido? A resposta a essa indagação passa, obrigatoriamente, pela diferenciação entre os elementos essenciais e os elementos acidentais da peça acusatória: a) elem en tos essenciais: são aqueles necessários para identificar a conduta como fato típico; devem estar presentes na peça acusatória, já que a falta de um deles significa descrição

144 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo crim inal brazileiro. 3a ed. Aum. Rio de Janeiro: Typ. Baptista de Souza, 1920 v. 2. p. 195. 145

FERNANDES, Antônio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 183. Referido autor denomina de criptoim putação a imputação contaminada por grave situação de deficiência na narração do fato imputado, quando não contém os elementos mínimos de sua identificação como crime como às vezes ocorre com a simples alusão aos elementos do tipo abstrato (op. cit. p. 184).

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de fato não criminoso, sendo evidente o prejuízo à defesa, que tem direito a ver o fato delituoso inteiramente exposto em todos os elementos que o compõem. Supondo, assim, a prática de um crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor (Lei n° 9.503/97, art. 302), se o Promotor de Justiça se limitar a dizer que o acusado dirigia seu carro de maneira manifesta­ mente imprudente, a omissão alcançará um dos elementos essenciais para a configuração do crime imputado, já que o acusado não saberá em que teria consistido tal imprudência. Tem-se, portanto, que a ausência de um elemento essencial da peça acusatória é causa de nulidade ab­ soluta, sendo presumido o prejuízo à ampla defesa. Nessa linha de raciocínio, em caso concreto apreciado pelo STJ, concluiu-se pela inépcia da peça acusatória porquanto esta não descrevera a conduta praticada pelo paciente que decorreria de negligência, imprudência ou imperícia, a qual teria ocasionado a produção do resultado naturalístico. Considerou-se não ser típico o fato de o acusado ter perdido o controle da direção e ter, em conseqüência, invadido a contramão. A tipicidade, se houvesse, estaria na causa da perda do controle do veículo. Essa, entretanto, não foi mencionada na peça acusatória, cerceando o direito de defesa e de contraditório, razão pela qual foi reconhecida a inépcia da peça acusatória;146 b) elementos acidentais ou acessórios: também chamados de circunstâncias identificadoras ou individualizadoras, são importantes para estremar o fato delituoso de outro acontecimento histórico e individualizá-lo; são aqueles ligados a circunstâncias de tempo, de espaço, ou até que revelem maiores dados de modos de atuar, cuja ausência nem sempre afeta a reação do acusado. Usando o exemplo acima citado, se o Promotor de Justiça omitir a hora exata em que o crime foi cometido, a falha não incide sobre dado da composição da figura típica, recaindo em aspecto acidental. Portanto, a ausência de um elemento acidental não é causa de nulidade absoluta, mas sim de nulidade relativa, sendo indispensável que o prejuízo à defesa seja comprovado. Logicamente, caso o Promotor tenha conhecimento acerca do lugar, do tempo do crime, e de outros dados acessórios (elementos acidentais), deverá inserir tais informações na peça acusatória. Isso não significa dizer, todavia, que a inserção de tais elementos na peça acusatória seja cogente. Afinal, há situações em que não se sabe o exato momento em que o crime foi cometido, nem tampouco o locus delicti, o que, no entanto, não impede o oferecimento da peça acusatória, desde que os elementos essenciais do referido delito constem da peça acusatória. Além disso, como já dito, o Ministério Público poderá, a todo tempo, antes da sentença final, suprir a peça acusatória, nos termos do art. 569 do CPP. Portanto, supondo que o Promotor não tenha conhecimento da exata data em que o crime foi praticado, pensamos ser possível o ofereci­ mento de denúncia nos seguintes termos: “...em dia incerto entre os meses de agosto e outubro de 2010, em hora não conhecida, Tício adentrou na casa de praia de Mévio, localizada na Rua Afonso Pena, n° 12, na cidade de Vitória/ES, de lá subtraindo duas motocicletas, avaliadas em R$ 6.500,00 (seis mil e quinhentos reais), segundo laudo de avaliação de fls. 56”. E através da narrativa do fato delituoso que se delimita a imputação criminal em juízo. Imputação criminal é a atribuição a alguém da prática de determinada infração penal, fun­ cionando como o ato processual por meio do qual se formula a pretensão penal. Como aduz Badaró, “o objeto do processo penal não é a imputação, mas sim aquilo que foi imputado, ou seja, o objeto dessa imputação”.147 146 STJ, 6â Turma, HC 188.023/ES, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. l 9/9/2011. 147

BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2- ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 73.

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O fato da imputação é que se presta a delimitar a acusação e, assim, serve para a identificação da ação penal, para a verificação da correlação entre acusação e sentença,148 para a efetivação do contraditório e como garantia do exercício da defesa. Entendida, assim, a imputação como a atribuição de fato delituoso a alguém, para que ela esteja presente na denúncia ou queixa, a peça acusatória deve necessariamente conter os seguintes elementos: a) descrição de um fato; b) qualificação jurídico-penal desse fato; c) atribuição desse fato ao acusado. Cuida-se, a adequada imputação do fato delituoso, de requisito essencial da peça acusa­ tória, já que resguarda princípios basilares do processo penal: contraditório, ampla defesa e correlação entre acusação e sentença. Tendo conhecimento com precisão dos limites do fato delituoso a ele imputado, poderá o acusado se contrapor à pretensão acusatória o mais ampla­ mente possível. Lado outro, a escorreita delimitação da imputação também viabiliza a própria aplicação da lei penal, porquanto permite ao órgão jurisdicional dar ao fato narrado a correta e justa correspondência normativa, fazendo o juízo de subsunção do fato imputado à norma penal incriminadora. De maneira diversa da seara cível, a petição inicial do processo penal deve primar pela concisão, para que não se transforme em verdadeiros memoriais, avaliando provas e sugerin­ do jurisprudência a ser adotada. Deve se limitar a apontar os fatos delituosos cometidos pelo autor, deixando para a fase de alegações orais (ou memoriais) a valoração da doutrina e da jurisprudência. Muito se discute quanto à necessidade (ou não) de a peça acusatória descrever as circuns­ tâncias agravantes relativas ao caso concreto. Tendo em conta o teor do art. 385 do CPP, segundo o qual “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada’''’ (nosso grifo), prevalece nos Tribunais o entendimento de que não há necessidade de a peça acusatória fazer menção às circunstâncias agravantes do art. 61 do CP.149 A despeito da posição dos Tribunais Superiores, a doutrina mais moderna tece severas críticas ao dispositivo do art. 385, segunda parte, do CPP. Como observa Badaró, “a finalidade de se exigir que na imputação venham expostas todas as circunstâncias do delito é, justamente, permitir que o réu possa se defender de tais circunstâncias; argumentar e provar que as mesmas não ocorreram; influenciar o convencimento do juiz no sentido de sua inexistência. Admitir a aplicação pura e simples do art. 385, segunda parte, é fazer tabula rasa dos princípios do con­ traditório e da ampla defesa”.150 15.2.2. Q ualificação do acusado

De acordo com o art. 41 do CPP, a peça acusatória também deve conter a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificar o suposto autor do injusto culpável.

148

Discorrendo sobre o princípio da correlação entre acusação e sentença, Frederico Marques afirma que "a acusação determina a amplitude e conteúdo da prestação jurisdicional, pelo que o juiz criminal não pode decidir além e fora do pedido com que o órgão da acusação deduz a pretensão punitiva. Os fatos descritos na denúncia ou queixa delimitam o campo de atuação do poder jurisdicional" (MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Vol. 1. São Paulo: Editora Bookseller, 1997, p. 181).

149

No sentido de que as agravantes, ao contrário das qualificadoras, sequer precisam constar da denúncia para serem reconhecidas pelo Juiz. É suficiente, para que incidam no cálculo da pena, a existência nos autos de elementos que as identifiquem: STF, 2ã Turma, HC 93.211/DF, Rei. Min. Eras Grau, j. 12/02/2008, DJe 74 24/04/2008.

150

BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2- ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 163.

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A qualificação do acusado apresenta-se, portanto, como requisito essencial da peça acusatória, a fim de se saber contra quem será instaurado o processo. Individualiza-se o acusado por meio de seu prenome, nome, apelido, estado civil, naturalidade, data de nascimento, número da carteira de identidade, número do cadastro de pessoa física (CPF), profissão, filiação, residência, etc. Na visão do STJ, a aposição de fotografia do acusado na denúncia viola normas consti­ tucionais, como o direito à honra, à imagem e à dignidade da pessoa humana, sobretudo se já constar dos autos da ação penal a identificação civil e criminal do acusado. Não haveria, assim, necessidade de, novamente, inseri-la na peça acusatória da denúncia.151 O art. 41 do CPP deixa entrever que, não havendo a qualificação completa do acusado, e não sendo possível a sua identificação criminal, a parte acusadora pode apontar os esclarecimentos pelos quais seja possível identificá-lo. Assim, o fato de ser desconhecida a identificação completa do acusado não seria óbice ao oferecimento da peça acusatória, desde que se pudesse mencionar seus traços característicos, permitindo distingui-lo de outras pessoas. Como exemplo, a doutrina cita o homicida do qual não se conhece o nome e nem mesmo seus dados qualificativos, mas que, preso em flagrante, se encontra detido na delegacia local. Nessa hipótese, segundo Marcellus Polastri Lima, como não há dúvidas sobre sua identidade física, será possível o oferecimento de denúncia, mencionando-se seus traços e características, sendo que, uma vez obtida sua qua­ lificação, até mesmo em fase de execução, poderá haver o suprimento.152 Sobre o assunto, o art. 259 do CPP também dispõe que “a impossibilidade de identificação do acusado com o seu verdadeiro nome ou outros qualificativos não retardará a ação penal, quando certa a identidade física. A qualquer tempo, no curso do processo, do julgamento ou da execução da sentença, se for descoberta a sua qualificação, far-se-á a retificação, por termo, nos autos, sem prejuízo da validade dos atos precedentes”. A nosso juízo, tal preceito deve ser interpretado com muita cautela. Em tempos atuais, não se afigura crível que uma denúncia seja oferecida em face de “Tício, branco, alto e magro”, sem quaisquer outros elementos de identificação. Se uma peça acusatória fosse oferecida nesses termos, caberia ao magistrado rejeitá-la de plano (CPP, art. 395,1), já que se trata de indicação vaga de pessoa incerta que impossibilita até mesmo a citação inicial, prejudicando o regular andamento do feito. Nessa linha, aliás, é interessante perceber que a própria reforma processual de 2008 confirma essa tendência de se impedir a instauração de processo penal contra pessoa incerta. Deveras, o mesmo Código que prevê (e continua a prever) ser possível o oferecimento de denúncia contra alguém, valendo-se de esclarecimentos pelos quais se pudesse identificá-lo (art. 41), também previa que seria cabível citação por edital quando incerta a pessoa que tivesse de ser citada (revogado inciso II do art. 363 do CPP). Com a entrada em vigor da Lei n° 11.719/08, essa hipótese de citação por edital foi abolida, do que se infere, a nosso ver, que o legislador não mais autoriza o oferecimento de denúncia contra pessoa incerta. Destarte, caso não seja possível individualizar o acusado, quer por meio de esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, quer por meio de identificação criminal (Lei n° 12.037/09), deve a parte acusadora abster-se de apresentar denúncia ou queixa, pelo menos enquanto tais dados não forem coligidos.

151 STJ, 63 Turma, HC 88.448/DF, Rei. Min. Og Fernandes, j. 06/05/2010, DJe 02/08/2010. 152 M a nual de processo penal. 2? ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 181.

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15.2.3. C lassificação do crim e

A classificação do crime é a indicação do dispositivo legal que descreve o fato criminoso praticado pelo imputado. Não basta a simples menção do nomen juris da figura delituosa (v.g., homicídio simples), pois, sob a mesma denominação, podem aparecer crimes diferentes, como o homicídio previsto no Código Penal e o homicídio previsto no Código Penal Militar. Deve haver, portanto, a indicação do dispositivo legal em cuja pena se encontra incurso o acusado (v.g., CP, art. 121, caput). Não se trata, todavia, de requisito obrigatório, pois prevalece o entendimento de que, no proces­ so penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, pouco importando a classificação que lhes seja atribuída. Quando do recebimento da peça acusatória, entende-se que não se trata do momento adequado para a apreciação do verdadeiro dispositivo legal violado, até mesmo porque o magistrado não fica vinculado à classificação do crime feita na denúncia {narra mihi factum dabo tibi jus). Exatamente por isso, segundo a doutrina majoritária, por ocasião do recebimento da peça acusatória, não deve o juiz alterar a definição jurídica do fato, pois há momentos e formas específicos para se corrigir a classificação legal incorreta (arts. 383, 384, 410 e 569 do CPP).153 15.2.4. R o l de testem u n h a s

Ainda segundo o art. 41 do CPP, a peça acusatória deve conter o rol de testemunhas, quando necessário, valendo ressaltar que o rol deve vir ao final da peça, após o pedido de recebimento, porém antes da data e da assinatura da peça. Como fica evidente, a apresentação do rol de tes­ temunhas não é um requisito essencial. Afinal, há situações em que a prova do fato delituoso é eminentemente documental, sendo desnecessária a oitiva de quaisquer testemunhas (v.g., crimes contra a ordem tributária). Porém, como esse é o momento processual oportuno para a apresen­ tação do rol de testemunhas pela parte acusadora, caso não o faça, haverá preclusão temporal. Recentemente, todavia, a 5a Turma do STJ concluiu que não há qualquer óbice à intimação do Ministério Público para que proceda à juntada do rol de testemunhas mesmo após o ofereci­ mento da denúncia, conquanto o faça antes da citação do acusado e apresentação da resposta à acusação, sem que se possa objetar eventual nulidade absoluta por violação ao sistema acusatório. In casu, é perfeitamente possível a aplicação subsidiária ao processo penal do quanto disposto no art. 321 do novo CPC, que dispõe que, na eventualidade de a petição inicial não preencher os requisitos legais, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento do mérito, o juiz pode determinar que o autor a emende ou a complete no prazo de 15 (quinze) dias, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado, devendo indeferir a petição inicial tão somente quando o vício não for saneado. Na visão daquele colegiado, nosso sistema processual é informado pelo princípio da cooperação, sendo o processo, portanto, um produto da atividade cooperativa triangular entre o juiz e as partes, no qual todos devem buscar a justa aplicação do ordenamento jurídico no caso concreto, não podendo o magistrado se limitar a ser mero fiscal de regras, devendo, ao contrário, quando constatar deficiências postulatórias das partes, indicá-las, precisamente, a fim de evitar delongas desnecessárias e a extinção do processo sem a análise de seu mérito.154 153

Para mais detalhes acerca do momento para eventual desclassificação, remetemos o leitor ao Título referente à Sentença Penal, onde o assunto foi detalhadamente estudado no tópico referente ao princípio da correlação entre acusação e sentença.

154. STJ, 5ã Turma, RHC 37.587/SC, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 16/2/2016, DJe 23/2/2016. Advertimos o leitor para o fato de que há precedente da 6ã Turma do STJ no sentido da impossibilidade de o Juiz determinar a intimação do Parquet para que proceda à inclusão das testemunhas quando verificada a ausência de indicação

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O número máximo de testemunhas a serem arroladas varia de acordo com o procedimento a ser seguido: a) procedimento comum ordinário: 8 (oito) testemunhas (CPP, art. 401, caput); b) procedimento comum sumário: 5 (cinco) testemunhas (CPP, art. 532); c) procedimento sumaríssimo (Lei n° 9.099/95): 3 (três) testemunhas; d) primeira fase do procedimento do júri: 8 (oito) testemunhas (CPP, art. 406, § 3o); e) segunda fase do procedimento do júri: 5 (cinco) testemunhas (CPP, art. 422); f) procedimento da Lei de drogas: 5 (cinco) testemunhas (Lei n° 11.343/06, art. 54, inciso III); g) procedimento ordinário do CPPM: 6 (seis) testemunhas (CPPM, art. 77, alínea “h”).155 Há certa controvérsia na doutrina e na jurisprudência acerca desse número quando o processo versa sobre mais de um delito ou quando há mais de um corréu. Prevalece o entendimento de que, para a acusação, o número é estabelecido de acordo com a quantidade de fatos imputados, independentemente do número de acusados. Para a defesa, toma-se em conta não apenas o nú­ mero de fatos, como também o número de acusados. Exemplificando, se são dois os acusados pela prática de um crime de roubo, cada um deles terá direito a arrolar até 8 (oito) testemunhas, mesmo que possuam o mesmo defensor. Por outro lado, se a um único acusado forem imputados dois fatos delituosos, terá direito a arrolar 8 (oito) testemunhas para cada um deles. A propósito, o STJjá se manifestou no sentido de que “o limite máximo de 8 (oito) teste­ munhas descrito no art. 401, do Código de Processo Penal, deve ser interpretado em consonân­ cia com a norma constitucional que garante a ampla defesa no processo penal (art. 5o, LV, da CF/88). Para cada fato delituoso imputado ao acusado, não só a defesa, mas também a acusação, poderá arrolar até 8 (oito) testemunhas, levando-se em conta o princípio da razoabilidade e proporcionalidade”.156 Nesse número de testemunhas a serem arroladas, não são computadas as testemunhas referidas, as que não prestam compromisso e a pessoa que nada souber que interesse à decisão da causa (CPP, art. 209, § 2o e art. 401, § Io). 15.2.5. E n d ereça m en to da p e ç a acusatória

Conquanto não conste expressamente do art. 41 do CPP, pensamos que a peça acusatória também deve indicar o juiz a quem é dirigida, já que o endereçamento é fundamental para que se possa estabelecer a autoridade judiciária competente. Quando nos referimentos à indicação do juiz a quem é dirigida a peça acusatória, não nos referimos à pessoa física do juiz, mas sim ao órgão jurisdicional com competência para o processo e julgamento do feito. Daí por que a peça acusatória deve ser dirigida ao “Juiz de tal Vara de tal Comarca”, nas hipóteses de compe­ tência da Justiça Estadual, ou ao “Juiz Federal de tal Vara Federal de tal Subseção Judiciária”, no caso da Justiça Federal, etc. O Código de Processo Penal Militar dispõe expressamente que a denúncia deverá conter a designação do juiz a que se dirigir (art. 77, “a”), dispositivo este que pode ser aplicado subsidiariamente ao processo penal comum, nos termos do art. 3o do CPP.

do respectivo rol e do protesto pela produção das provas na denúncia: STJ, 6§ Turma, RHC 45.921/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 16/12/2014, DJe 29/05/2015. 155

No processo penal militar, ao contrário do que ocorre no processo penal comum, é possível a inclusão de outras testemunhas, mesmo após o oferecimento da denúncia. De fato, de acordo com o art. 417, § 4e, do CPPM, quer o Ministério Público, quer a defesa poderão requerer a substituição ou desistência de testemunha arrolada ou indicada, bem como a inclusão de outras, até o núm ero perm itido.

156 STJ, 5ã Turma, HC 55.702/ES, Rei. Min. Honildo Amaral de Mello Castro - Desembargador convocado do TJ/AP -, j. 05/10/2010, DJe 25/10/2010.

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Não se trata de requisito essencial, eis que, na visão dos Tribunais, o erro de endereçamento não invalida a denúncia.'57 15.2.6. Redação em vernáculo A peça acusatória deve ser redigida em português. Apesar de não haver dispositivo ex­ presso nesse sentido constante do CPP, tal requisito pode ser extraído dos arts. 193, 223, 236 e 784, § Io, do CPP, os quais denotam que os atos processuais devem ser praticados na língua portuguesa. De todo modo, o art. 192 do novo CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal, dispõe expressamente que é obrigatório o uso da língua portuguesa em todos os atos e termos do processo. 15.2.7. Razões de convicção ou presunção da delinqüência O Código de Processo Penal Militar possui dispositivo expresso impondo que a denúncia contenha as razões de convicção ou presunção de delinqüência (CPPM, art. 77, “f”). Apesar do silêncio do CPP, pensamos que tal requisito também deve ser observado no processo penal comum. Considerando os gravames produzidos pelo mero oferecimento de uma peça acusa­ tória, não se pode admitir que uma denúncia ou queixa sejam oferecidas desprovidas de lastro probatório que confirme o fato delituoso imputado ao acusado. Essas razões de convicção consistem, pois, na indicação do lastro probatório da peça acu­ satória, apontando-se os depoimentos colhidos em sede investigatória, os laudos periciais rea­ lizados, assim como outros elementos de informação, provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis que tenham servido à formação da opinio delicti do titular da ação penal. A título de exemplo, ao invés de se limitar a dizer que “o acusado desferiu dois tiros contra a vítima”, deverá o Ministério Publico narrar que “o acusado desferiu dois tiros contra a vítima, de acordo com as declarações do ofendido (fls. 45/47) e da testemunha Fulano de tal (fls. 58/60), produzindo as lesões corporais descritas no laudo pericial de fls. 78/80”. A necessidade de se fazer menção às razões de convicção ou presunção da delinqüência é confirmada pela própria reforma processual de 2008. De fato, o próprio CPP passou a prever, dentre as hipóteses de rejeição da peça acusatória, a falta de justa causa para o exercício da ação penal (CPP, art. 395, III). Portanto, essa demonstração das razões de convicção ou presunção da delinqüência tem por escopo formar a convicção do órgão julgador no sentido do recebimento da peça acusatória, apontando a existência de elementos de informação em grau suficiente para permitir um juízo de verossimilhança em tomo da veracidade dos fatos narrados na exordial acusatória. 15.2.8. Peça acusatória subscrita pelo Ministério Público ou pelo advogado do querelante A denúncia deve ser subscrita pelo órgão do Ministério Público que detém atribuições para atuar no caso concreto, do mesmo modo que a queixa-crime deve ser subscrita pelo advogado do querelante, sob pena de se considerar inexistente a peça acusatória. A ausência dessa assinatura, todavia, não ensejará a obrigatória rejeição da peça acusató­ ria ou a nulidade ab initio do processo, caso não haja dúvidas acerca da autenticidade da peça acusatória, ou quando for facilmente identificável aferir quem a elaborou. Pode ocorrer, por exemplo, de o Promotor de Justiça se esquecer de assinar a denúncia, porém a apresentar por meio de uma cota devidamente assinada, afirmando que a denúncia foi elaborada em 3 (três)157

157 STF, 2ã Turma, RHC 60.216/RO, Rei. Min. Cordeiro Guerra, j. 31/08/1982, DJ 24/09/1982.

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laudas impressas, ao mesmo tempo em que requer o arquivamento em relação a outros investi­ gados. Nessa hipótese, a denúncia deve ser regularmente recebida pelo órgão jurisdicional, sem prejuízo de ulterior concessão de vista ao órgão ministerial para que a assine. Por oportuno, convém destacar que, em regra, a denúncia é oferecida acompanhada de uma cota, que pode ser redigida no corpo do processo, mais especificamente no espaço reservado à vista do Ministério Público, ou em petição autônoma, anexada à denúncia. Essa cota é o local oportuno para o órgão ministerial: a) indicar que está oferecendo denúncia; b) requerer eventuais diligências complementares; c) promover o arquivamento em relação a outros fatos delituosos e/ou outros agentes não incluídos na denúncia; d) declinar da atribuição em relação a fatos que devam ser processados perante outro juízo; e) formular eventual requerimento fundamentado de prisão cautelar ou ratificar representação formulada pela autoridade policial; f) oferecer proposta de suspensão condicional do processo, caso o acusado preencha os requisitos do art. 89 da Lei n° 9.099/95, ou, em caso contrário, justificar o não oferecimento da proposta de suspensão. 15.2.9. Procuração da queixa-crime e recolhimento de custas Logicamente, se o ofendido for advogado, a queixa-crime poderá ser oferecida por ele mesmo. Porém, caso não o seja, há de se ficar atento à necessidade de procuração com poderes especiais, não servindo a mera cláusula ad juditia. De aplicação restrita à ação penal de iniciativa privada, o art. 44 do CPP estabelece que a queixa poderá ser dada por procurador com poderes especiais, devendo constar do instrumento do mandato o nome do querelado e a menção do fato criminoso, salvo quando tais esclarecimentos dependerem de diligências que devem ser previamente requeridas no juízo criminal. Em sua redação expressa, o art. 44 do CPP diz nome do querelante. Porém, entende-se que, na verdade, deve fazer menção ao nome do querelado, porquanto o nome do querelante já irá constar ao final da procuração, já que é ele o outorgante do mandato. A finalidade de a procuração conter o nome do querelado e a descrição do fato criminoso é a de fixar eventual responsabilidade por denunciação caluniosa no exercício do direito de queixa. A menção do fato criminoso no instrumento de mandato, exigida pelo art. 44 do Código de Processo Penal (CPP), cumpre-se pela indicação do artigo de lei no qual se baseia a queixa-crime ou pela referência à denominação jurídica do crime. Não há necessidade de se fazer uma síntese dos fatos delituosos.158 Em recente julgado, porém, concluiu a 2a Turma do Supremo que o art. 44 do CPP demanda que conste da procuração o nome do querelado e a menção expressa ao fato criminoso: apesar de não ser necessária a descrição minuciosa ou a referência pormenorizada do fato, deve constar do instrumento de mandato judicial, ao menos, referência individualizadora do evento delituoso e não apenas o nomen iuris. Concluiu-se, ademais, que eventuais deficiências da procuração devem ser supridas antes do decurso do prazo decadencial.159 Se o art. 44 do CPP exige uma procuração com poderes especiais para o oferecimento da queixa-crime, deve ser considerada nula a queixa-crime oferecida por advogado substabelecido com reserva de direitos por procurador que recebera do querelante apenas os poderes da cláusula ad judicia et extra - poderes para o foro em geral -, ainda que ao instrumento de substabelecimento tenha sido acrescido, pelo substabelecente, poderes especiais para a propositura de

158

Nessa linha: STJ, 6ã Turma, REsp 663.934/SP, Rei. Min. Paulo Medina, DJU 27/03/2006 p. 367. Ainda no sentido da desnecessidade de descrição pormenorizada do fato delituoso na procuração outorgada pelo querelante a seu advogado: STJ, 3ã Seção, Rcl 5.478/DF, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 14/9/2011.

159 STF, 2^ Turma, RHC 105.920/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, j. 08/05/2012.

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ação penal privada, porquanto este só pode outorgar os poderes que lhe foram originariamente conferidos.160 Eventuais irregularidades que porventura ocorram na procuração considerar-se-ão sanadas se o querelante também assinar a queixa, já que este estará ratificando tudo aquilo que consta da peça acusatória a partir do momento em que assiná-la em conjunto com seu procurador. Quanto ao limite máximo para a correção de eventual falha constante da procuração da queixa-crime, há posição doutrinária segundo a qual o vício deve ser sanado dentro do prazo decadencial. Prevalece, no entanto, o entendimento de que a correção pode se dar a qualquer momento, mesmo após o decurso do prazo decadencial, já que o defeito da procuração constitui hipótese de ilegitimidade do representante da parte, que, a teor do art. 568 do CPP, pode ser sanada a todo tempo, mediante a ratificação dos atos processuais, sobretudo quando o querelante estiver presente às audiências ou tiver assinado a peça acusatória com seu advogado.161 Há precedente do STJ entendendo que é necessário o reconhecimento da firma do outorgante na procuração com poderes especiais, in verbis: “O art. 38, do CPC (leia-se art. 105 do novo CPC) e o § 2°, do art. 5°, da Lei 8.906/94, prestigiam a atuação do advogado com dispensar o reconhecimento da firma, no instrumento de procuração, do outorgante para a prática de atos processuais em geral. Para a validade, contudo, dos poderes especiais, se contidos no mandato, necessariamente há de ser reconhecida a firma do constituinte”.162 Em relação às custas, o art. 806 do CPP prevê que, ressalvada a hipótese da vítima pobre, nas ações intentadas mediante queixa, nenhum ato ou diligência se realizará, sem que seja de­ positada em cartório a importância das custas. Ademais, nenhum ato requerido no interesse da defesa será realizado, sem o prévio pagamento das custas, salvo se o acusado for pobre (CPP, art. 806, § Io). Por sua vez, quanto aos honorários advocatícios, tem-se admitido sua fixação nas ações de iniciativa privada, obrigando-se o querelante vencido ao pagamento de honorários ao advogado incumbido da defesa do querelado. Tais honorários serão devidos, aliás, inclusive nos casos em que a queixa-crime for rejeitada.163 Quanto ao disposto no art. 804 do CPP - a sentença ou o acórdão, que julgar a ação, qual­ quer incidente ou recurso, condenará nas custas o vencido -, entende-se que, em se tratando de ação penal pública, somente se admite a exigência do pagamento das custas processuais após a condenação, incluindo as despesas com oficial de justiça. Mesmo na ação penal privada, na qual expressamente se exige o depósito antecipado do valor da diligência, há a faculdade de o juiz determinar de ofício inquirição de testemunhas ou outras diligências (arts. 806 e 807 do CPP), tudo em homenagem aos princípios da ampla defesa e da busca da verdade que regem 160

Nessa linha: STJ, 69 Turma, RHC 33.790/SP, Rei. originário Min. Maria Thereza De Assis Moura, Rei. para Acórdão Min. Sebastião Reis Júnior, j. 27/6/2014.

161

Com esse entendimento: STF, 2ã Turma, RHC 65.879/PR, Rei. Min. Célio Borja, j. 15/04/1988, DJ 06/05/1988. Etambém: STF, l 9 Turma, HC 84.397/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 21/09/2004, DJ 12/11/2004 p. 29; STF, 1§ Turma, HC 83.412/GO, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 03/08/2004, DJ 01/10/2004.

162

STJ, 5ã Turma, REsp 616.435/PE , Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 0 4 /0 8 /2 0 0 5 , DJ 0 5 /0 9 /2 0 0 5 , p. 461. Outrora

regulamentada pelo art. 38 do CPC, a previsão legal da procuração geral para o foro passa a constar do art. 105 no novo Código de Processo Civil. 163

Para a 39 Seção do STJ (EREsp 1.218.726/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, j. 22/06/2016, DJe 01/07/2016), é possível condenar o querelante em honorários advocatícios sucumbenciais na hipótese de rejeição da queixa-crime por ausência de justa causa. Outrossim, em relação aos honorários advocatícios, especial atenção deve ser dispensada à súmula vinculante n9 47: "Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza".

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o direito penal e o processo penal. Logo, se, por conta da falta de depósito da taxa referente às diligências para intimação de testemunhas, não for intimada a testemunha arrolada pela defesa, sendo indeferido pedido de sua substituição para que outra testemunha presente seja ouvida em juízo, há de ser reconhecido indevido cerceamento de defesa, com a conseqüente anulação do feito para que seja reaberta a instrução do processo.164 15.3. Prazo para o oferecimento da peça acusatória O prazo para o oferecimento da denúncia consta do art. 46 do CPP: “o prazo para o ofe­ recimento da denúncia, estando o réu preso, será de 5 (cinco) dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do inquérito policial, e de 15 (quinze) dias, se o réu estiver soltou ou afiançado. No último caso, se houver devolução do inquérito policial (art. 16), contar-se-á o prazo da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos”.165 Quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informações ou a representação (CPP, art. 46, § Io). Perceba-se que o art. 46 do CPP silencia quanto ao prazo para o oferecimento da queixa-crime. Isso porque o exercício do direito de ação penal privada está sujeito ao prazo decadencial de 6 (seis) meses, o qual tem início, em regra, no dia em que o ofendido ou seu representante legal tiver conhecimento de quem foi o autor da infração penal (CPP, art. 38). Não obstante, na hipótese de investigado preso em crime de ação penal de iniciativa privada (v.g., prisão em flagrante), não se pode admitir que o ofendido possa demorar 6 (seis) meses para oferecer sua queixa-crime, sob pena de evidente constrangimento ilegal à liberdade de locomoção por excesso de prazo. Portanto, como o próprio CPP admite a interpretação extensiva (art. 3o), forçoso é concluir que se aplica à queixa-crime o mesmo prazo previsto para o oferecimento da denúncia de acusado preso: 5 (cinco) dias. Do que foi dito, pode-se concluir que, estando preso o investigado, o prazo para o ofe­ recimento da denúncia ou da queixa é de 5 (cinco) dias; se o acusado estiver em liberdade, a denúncia deve ser oferecida no prazo de 15 (quinze) dias, estando a queixa sujeita ao prazo decadencial de 6 (seis) meses. Tal qual se dá em relação ao prazo para a conclusão do inquérito policial, também há con­ trovérsia na doutrina quanto à contagem do prazo para o oferecimento da denúncia na hipótese de acusado preso. Parte da doutrina entende que, estando o acusado preso, esse prazo é de na­ tureza material, do que se depreende que o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo, nos termos do art. 10 do CP. Ademais, tal prazo não se prorroga até o primeiro dia útil subsequente. Com a devida vênia, pensamos que se trata de prazo de natureza processual. Não se deve confundir a contagem do prazo da prisão, que deve observar o art. 10 do Código Penal, incluin­ do-se o dia do começo no cômputo do prazo, com a contagem do prazo para o oferecimento da peça acusatória, que tem natureza processual. Conta-se o prazo, pois, a partir do primeiro dia útil após a prisão, nos termos do art. 798, § Io, do CPP, sendo que, caso o prazo termine em sábado, domingo ou feriado, estará automaticamente prorrogado até o primeiro dia útil (CPP, art. 798, § 3o). 164 STJ, 6a Turma, HC 125.883/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 26/04/2011. 165

Há doutrinadores que entendem que o prazo começa a fluir da data efetiva da vista para o promotor, e, assim, não se aplica a regra geral da não consideração do primeiro dia, em vista da norma específica do art. 46 do CPP. Nesse sentido: LIMA, Marcellus Polastri. M a nual de processo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 186.

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Especial atenção deve ser dispensada à legislação especial, que contém dispositivos espe­ cíficos quanto ao prazo para o oferecimento da peça acusatória: a) de acordo com o art. 54 da Lei de Drogas (Lei n° 11.343/06), o Ministério Público tem o prazo de 10 (dez) dias para oferecer denúncia. Como o legislador nada disse acerca da situa­ ção do acusado, entende-se que tal prazo é aplicável tanto para o acusado preso quanto para o acusado solto; b) nos termos do art. 79 do Código de Processo Penal Militar, a denúncia deve ser oferecida dentro do prazo de 5 (cinco) dias, se o acusado estiver preso, contados da data do recebimento dos autos para aquele fim; e, dentro do prazo de 15 (quinze) dias, se o acusado estiver solto. O prazo para o oferecimento da denúncia poderá, por despacho do juiz, ser prorrogado ao do­ bro; ou ao triplo, em caso excepecional e se o acusado não estiver preso (CPPM, art. 79, § Io); c) no caso de crimes contra a economia popular, diz o art. 10, § 2o, da Lei n° 1.521/51, que o prazo para oferecimento da denúncia será de 2 (dois) dias, esteja ou não o acusado preso; d ) nas hipóteses de abuso de autoridade, o art. 13, caput, da Lei n° 4.898/65, a denúncia de­ verá ser oferecida no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, esteja o acusado preso ou em liberdade;

e) o Código Eleitoral prevê o prazo de 10 (dez) dias para o oferecimento da denúncia, esteja o acusado preso ou em liberdade (Lei n° 4.737/65, art. 357, caput); f) a nova Lei de Falências (Lei n° 11.101/05) prevê em seu art. 187, § Io, que o prazo para o oferecimento da denúncia regula-se pelo art. 46 do CPP, salvo se o Ministério Público, estando o réu solto ou afiançado, decidir aguardar a apresentação da exposição circunstanciada de que trata o art. 186 da referida Lei, devendo, em seguida, oferecer a denúncia em 15 (quinze) dias. Como se percebe, se o agente estiver em liberdade, é possível que o órgão ministerial aguarde a apre­ sentação do relatório pelo administrador judicial, apontando as causas e eventuais circunstâncias que conduziram à falência. Apresentado o relatório, terá 15 (quinze) dias para oferecer denúncia. Da inércia do órgão ministerial podem decorrer as seguintes conseqüências: 1) cabimento de ação penal privada subsidiária da pública; 2) perda do subsídio: de acordo com art. 801 do CPP, findos os respectivos prazos, os juizes e os órgãos do Ministério Público, responsáveis pelo retardamento, perderão tantos dias de vencimentos quantos forem os excedidos. Ademais, na contagem do tempo de serviço, para o efeito de promoção e aposentadoria, a perda será do dobro dos dias excedidos. Grande parte da doutrina entende que essa perda de vencimentos prevista no art. 801 do CPP não foi recep­ cionada pela Constituição Federal, diante da garantia da irredutibilidade de subsídio prevista no art. 128, § 5o, I, “c”; 3) no caso de acusado preso, eventual atraso de poucos dias não gera qualquer ilegalidade, já que tem prevalecido a tese de que a contagem do prazo para a conclusão do processo é global, e não individualizada. Assim, mesmo que haja um pequeno excesso nessa fase investigatória, é possível que haja uma compensação na fase processual. Todavia, se restar caracterizado um excesso abusivo, não respaldado pelas circunstâncias do caso concreto (complexidade das in­ vestigações e pluralidade de investigados), impõe-se o relaxamento da prisão, sem prejuízo da continuidade da persecução criminal;166 166

Na dicção do STJ, "a prisão ilegal, que há de ser relaxada pela autoridade judiciária, em cumprimento de dever-poder insculpido no artigo 59, inciso LXV, da Constituição da República, compreende, por certo, aquela que, afora perdurar por prazo superior ao prescrito em lei, ofende de forma manifesta o princípio da razoabilidade. É induvidosa a caracterização de constrangimento ilegal, quando perdura a constrição cautelar por mais de seis

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4) demonstrando-se que a inércia do órgão do Ministério Público ocorreu de maneira do­ losa, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, pode restar configurado, em tese, o crime de prevaricação, previsto no art. 319 do Código Penal; 16. QUESTÕES DIVERSAS 16.1. Denúncia genérica e crimes societários Na hipótese de infrações penais cometidas por mais de um agente, há necessidade de a peça acusatória descrever o quanto possível a conduta delituosa de cada um dos agentes. Ou seja, há necessidade de se individualizar o máximo possível as ações delituosas atribuídas a coautores e partícipes, evitando-se acusações genéricas ou afirmações como, por exemplo, que “os dois acusados, de comum acordo, praticaram o crime”. Dizemos que essa individualização deve ser feita o quanto possível porquanto há situações em que é inviável exigir-se do órgão acusador a narrativa da conduta de cada um dos concorren­ tes. Basta supor, a título de exemplo, um crime de roubo circunstanciado pelo emprego de arma de fogo praticado contra uma agência bancária em que todos os agentes tenham permanecido encapuzados durante toda a trama delituosa, sendo presos em flagrante após o crime. Ora, em uma tal situação, seria inviável exigir que o Ministério Público descrevesse, individualizadamente, a conduta de cada um dos denunciados. Raciocínio semelhante deve ser aplicado aos crimes multitudinários, assim compreendidos aqueles cometidos por influência de uma multidão em tumulto (v.g., saque de caminhão de cerveja tombado em rodovia).167 Especificamente quanto aos chamados crimes societários (ou de gabinete), assim entendidos aqueles praticados por sócios, mandatários, administradores ou responsáveis por uma pessoa jurídica, a jurisprudência entendia, num primeiro momento, ser válido o oferecimento de de­ núncia genérica, ou seja, uma denúncia que não descrevesse, individualizadamente, a conduta de cada um dos denunciados. A denúncia poderia, então, narrar genericamente a participação de cada agente, cuja conduta específica seria apurada no curso do processo, desde que se permitisse o direito de defesa. Assim é que o Supremo já concluiu que “tratando-se de crimes societários, não é inepta a denúncia em razão da mera ausência de indicação individualizada da conduta de cada indiciado. Configura condição de admissibilidade da denúncia em crimes societários a indicação de que os acusados sejam de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. [...] No caso concreto, a denúncia é apta porque comprovou, de plano, que todos os denunciados eram, em igualdade de condições, solidariamente responsáveis pela representação legal da sociedade comercial envolvida”.168 Mais recentemente, no entanto, nota-se que a jurisprudência passou a se inclinar no sentido da impossibilidade de oferecimento de denúncia genérica. De fato, em julgados mais recentes dos Tribunais Superiores, tem-se entendido que, quando se trata de crime societário, a denúncia não pode ser genérica. Ela deve estabelecer o vínculo do administrador ao ato ilícito que lhe

meses, sem oferecimento da denúncia, fazendo-se invocável a razoabilidade". (STJ, 6ã Turma, HC44.604/RN, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 09/12/2005, DJ 06/02/2006 p. 356). 167

Nos casos de autoria coletiva, embora a jurisprudência do STJ não exija a descrição pormenorizada da conduta de cada denunciado, é imprescindível que o órgão acusatório estabeleça a mínima relação entre o denunciado e o delito que lhe é imputado, sob pena de inépcia formal da peça acusatória: STJ, 6ã Turma, HC 187.043/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 22/3/2011.

168 STF, 2§ Turma, HC 85.579/MA, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ 24/06/2005 p. 73.

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está sendo imputado. É necessário que descreva, de forma direta e objetiva, a ação ou omissão do acusado. Do contrário, ofende os requisitos do art. 41 do CPP, os Tratados Internacionais sobre o assunto, além dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. O prin­ cípio da responsabilidade penal adotado pelo sistema jurídico brasileiro é o pessoal (subjetivo). Portanto, a autorização pretoriana de denúncia genérica para os crimes de autoria coletiva não pode servir de escudo retórico para a não descrição mínima da participação de cada agente na conduta delitiva. Uma coisa é a desnecessidade de pormenorizar. Outra é a ausência absoluta de vínculo do fato descrito com a pessoa do denunciado.169 Portanto, reputa-se inepta a denúncia que, ao imputar a sócio a prática dos crimes contra a ordem tributária, limita-se a transcrever trechos dos referidos tipos penais e a mencionar a condição do denunciado de administrador da sociedade empresária que, em tese, teria supri­ mido tributos, sem descrever qual conduta ilícita supostamente cometida pelo acusado haveria contribuído para a consecução do resultado danoso. O simples fato de o acusado ser sócio e administrador da empresa constante da denúncia não pode levar a crer, necessariamente, que ele tivesse participação nos fatos delituosos, a ponto de se ter dispensado ao menos uma sinalização de sua conduta, ainda que breve, sob pena de restar configurada a repudiada responsabilida­ de criminal objetiva. Não se pode admitir que a narrativa criminosa seja resumida à simples condição de acionista, sócio, ou representante legal de uma pessoa jurídica ligada a eventual prática criminosa. Vale dizer, admitir a chamada denúncia genérica nos crimes societários e de autoria coletiva não implica aceitar que a acusação deixe de correlacionar, com o mínimo de concretude, os fatos considerados delituosos com a atividade do acusado. Não se deve admitir que o processo penal se inicie com uma imputação que não pode ser rebatida pelo acusado, em face da indeterminação dos fatos que lhe foram atribuídos, o que, a toda evidência, contraria as bases do sistema acusatório, de cunho constitucional, mormente a garantia insculpida no inciso LV do artigo 5o da Constituição Federal.170 16.1.1. Acusação geral e acusação genérica Devido à controvérsia em tomo da denúncia genérica em crimes societários, Eugênio Pacelli de Oliveira entende ser possível diferenciar a acusação geral da acusação genérica. Segundo o autor, a acusação geral ocorre quando o órgão da acusação imputa a todos, indistintamente, o mesmo fato delituoso, independentemente das funções exercidas por eles na empresa ou sociedade (e, assim, do poder de gerenciamento ou de decisão sobre a matéria). Em tal hipótese, a peça acusatória não deve ser considerada inepta, desde que seja certo e induvidoso o fato a eles atribuído. A questão relativa à efetiva comprovação da conduta de cada um dos agentes é matéria de prova, e não pressuposto de desenvolvimento válido e regular do

169

Nessa linha: STF, 2a Turma, HC 80.549/SP, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 24/08/2001. Na visão do STJ, nos crimes que envolvem sociedades empresárias (nos quais a autoria nem sempre se mostra bem definida), a acusação tem que estabelecer, mesmo que minimamente, a ligação entre a empreitada criminosa e o denunciado. O simples fato de ser sócio, gerente ou administrador não permite a instauração da persecução penal pelos crimes praticados no âmbito da sociedade, se não se comprovar, ainda que mediante elemento a ser aprofundado no decorrer da ação penal, a relação de causa e efeito entre as imputações e a função do denunciado na sociedade, sob pena de acolher indevida responsabilidade penal objetiva. (STJ, 6a Turma, HC 24.239/ES, Rei. Min. Og Fernandes, j. 10/06/2010, DJe 01/07/2010"). E também: STF, 2a Turma, HC 85.327/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 15/08/2006, DJ 20/10/2006; STJ, 6a Turma, HC 31.629/SP, Rei. Min. Haroldo Rodrigues, Desembargador convocado do TJ/CE, j. 11/12/2009, DJe 02/08/2010; STJ, 6a Turma, HC 58.372/PA, Rei. Min. Paulo Medina, DJU 18/12/2006 p. 522; STJ, 5a Turma, HC 171.976/ PA, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 02/12/2010, DJe 13/12/2010; STJ, 6a Turma, HC 218.594/MG, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11/12/2012, DJe 07/08/2013; STF, 2a Turma, Inq. 3.644/AC, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 09/09/2014.

170 STJ, 6a Turma, HC 224.728/PE, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 10/6/2014, DJe 27/06/2014.

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processo. Portanto, cuidando-se de crimes de autoria coletiva, admite-se uma imputação geral aos acusados, reservando-se à fase instrutória a delimitação precisa da conduta de cada um deles.171 Logo, segundo o autor, “quando se diz que todos os sócios de determinada sociedade, no exercício da sua gerência e administração, com poderes de mando e decisão, em data certa, teriam deixado de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previ­ dência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, está perfeitamente delimitado o objeto da questão penal, bem como a respectiva autoria. Não há, em tais situações, qualquer dificuldade para o exercício da defesa ou para a correta capitulação do fato imputado aos agentes”.172 Assim, se for provado que um dos acusados jamais exerceu qualquer função de gerência ou administração na sociedade, ou que desempenhavam funções desprovidas de poder de gerência, o caminho natural será a absolvição, mas não inépcia da peça acusatória. Por outro lado, a acusação genérica ocorre quando a acusação imputa a existência de vá­ rios fatos típicos, genericamente, a todos os integrantes da sociedade, sem que se possa saber, efetivamente, quem teria agido de tal ou qual maneira. Para Pacelli, “nesse caso, e porque na própria peça acusatória estaria declinada a existência de várias condutas diferentes na realiza­ ção do crime (ou crimes), praticadas por vários agentes, sem especificação da correspondência concreta entre uma (conduta) e outro (agente), seria possível constatar a dificuldade tanto para o exercício amplo da defesa quanto para a individualização das penas. A hipótese seria de inépcia da inicial, por ausência de especificação da medida de autoria ou participação, por incerteza quanto à realização dos fatos”.173 16.2. Cumulação de imputações Haverá cumulação de imputações quando constar da denúncia ou da queixa mais de uma imputação. A cumulação será considerada objetiva quando houver a narrativa de dois ou mais fatos delituosos. Será tida por subjetiva quando a imputação for feita a dois ou mais acusados. É perfeitamente possível que, em um mesmo processo, haja cumulações objetivas e subjetivas. Basta imaginar, por exemplo, vários crimes de roubo praticados por uma associação criminosa es­ pecializada no roubo de cargas. Em regra, essa cumulação de imputações é estudada em conjunto com a conexão e com a continência, que determinam a existência de um simultaneus processus. Em regra, a cumulação de imputações ocorre no momento em que a peça acusatória é ofe­ recida. Exemplificando, verificando o órgão do Ministério Público que o agente praticou dois ou mais crimes em concurso material (v.g., estupro e homicídio), deverá oferecer a denúncia imputando ao acusado ambos os fatos delituosos. Pode ser, todavia, que essa cumulação não se dê no momento limiar do processo. A cumulação ulterior pode se dar pela reunião de feitos, quando reconhecida a conexão ou a continência no curso dos processos, ou na hipótese de posterior aditamento da peça acusatória (CPP, art. 569). 16.3. Imputação implícita Se a cumulação de imputações é amplamente admitida pela doutrina e pela jurisprudência, porquanto permite que o acusado possa se defender de todos os fatos delituosos a ele atribuídos,

171 Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, HC 22.265/BA, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. j. 17/12/2002, DJ 17/02/2003 p. 313. 172 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 158. 173

Op. cit. p. 159.

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o mesmo não pode ser dito quanto à imputação implícita, que acarreta evidente prejuízo ao exercício do direito de defesa. De forma clara, o art. 41 do CPP estabelece que a denúncia deve proceder à exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias. Antes da reforma processual de 2008, apesar da crítica da doutrina, o art. 384, caput, do CPP, sugeria a possibilidade de uma imputação implícita. Eis a redação do referido dispositivo: “Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas” (nosso grifo). Com a nova redação conferida ao art. 384, caput, do CPP, pela Lei n° 11.719/08, foi suprimida essa previsão que admitia uma imputação implícita. A nova redação do dispositivo apenas menciona “elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação”. Absolutamente correta a alteração, já que a imputação deve ser clara, precisa e completa. 16.4. Imputação alternativa De acordo com Afrânio Silva Jardim, “diz-se alternativa a imputação quando a peça acusatória vestibular atribui ao réu mais de uma conduta penalmente relevante, asseverando que apenas uma delas efetivamente terá sido praticada pelo imputado, embora todas se apresentem como prováveis, em face da prova do inquérito. Desta forma, fica expresso, na denúncia ou queixa, que a pretensão punitiva se lastreia nesta ou naquela ação narrada”.174 A título de exemplo, suponha-se que determinado indivíduo tenha sido flagrado na cidade de Santos/SP na posse de veículo automotor que fora furtado há alguns dias em São Paulo. Encerradas as investigações policiais, não havendo qualquer outra diligência a ser requisitada pelo dominus litis, suponha-se que persista dúvida razoável sobre qual conduta fora realmente praticada pelo investigado: furto ou receptação. Diante da dúvida acerca de qual delito o agente teria realmente praticado, a denúncia seria oferecida pelo Promotor de Justiça imputando a ele a prática do furto ou de receptação dolosa. Em tal hipótese, o reconhecimento, por parte do magistrado, de uma das condutas descritas na peça acusatória importará, obrigatoriamente, na rejeição da outra conduta. Ainda segundo Afrânio, a imputação alternativa subdivide-se em objetiva e subjetiva. A im­ putação alternativa objetiva refere-se à altematividade quanto aos dados objetivos do fato narra­ do, podendo ser de duas espécies: a) imputação alternativa objetiva ampla: é aquela que incide sobre a ação principal, furto ou receptação; b) imputação alternativa objetiva restrita: é aquela que se refere a uma circunstância qualificadora. Por exemplo, imputa-se ao acusado a prática de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo à subtração da coisa ou mediante escalada. De se turno, a imputação alternativa subjetiva, que diz respeito ao sujeito passivo da impu­ tação, subdivide-se em: a) simples: a altematividade decorre de dúvida sobre a autoria do crime, como ocorre nos exemplos em que os investigados se acusam reciprocamente, sendo contradi­ tórios os elementos de informação colhidos no inquérito (v.g., briga em bares); b) complexa: é aquela que abrange não só o autor do delito, como também a própria infração penal. Suponha-se, por exemplo, situação em que um particular seja preso em flagrante pela suposta prática do crime de corrupção ativa (CP, art. 333), porém persista dúvida quanto à eventual solicitação indevida do funcionário público, o que caracterizaria o crime de corrupção passiva de sua parte (CP, art. 317). Em tal hipótese, segundo aqueles que admitem a imputação alternativa, seria viável que 174 JARDIM, Afrânio Silva. D ireito Processual Penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. p. 149.

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se imputasse altemativamente ao particular o crime de corrupção ativa e ao funcionário público o crime de corrupção passiva. A despeito da construção doutrinária em tomo da imputação alternativa, é bom destacar que a maioria da doutrina se posiciona contrariamente a ela, já que, ainda quando houver compatibili­ dade entre os fatos imputados, seu oferecimento quase sempre acarreta dificuldades ao exercício do direito de defesa. Uma imputação penal alternativa, além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado de expor o fato criminoso com todas as suas circunstâncias, qualifica-se como causa de nulidade absoluta por inviabilizar o exercício da ampla defesa.175 Há, ainda, a subdivisão da imputação alternativa em originária e superveniente. A imputação alternativa originária ocorre quando a altematividade já está contida na própria peça acusatória. Ou seja, na denúncia ou na queixa, os fatos delituosos já são atribuídos de maneira alternativa ao agente (imputação alternativa objetiva ampla originária). A imputação alternativa superveniente era aquela que resultava do aditamento da peça acusatória nos casos de mutatio libelli, prevista na redação original do parágrafo único do art. 384 do CPP, antes das alterações produzidas pela reforma processual de 2008. Dizia o referido dispositivo: “Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas”. Supondo, assim, que determinada pessoa tivesse sido denunciada pela prática de crime de furto, caso surgisse, no curso da instrução processual, prova de que a subtração teria sido cometida com o emprego de violência contra a pessoa, entendia a doutrina que, por força do art. 384, parágrafo único, do CPP (em sua redação original), feito o aditamento pelo Ministério Público, imputando ao acusado de maneira superveniente a prática de crime de roubo, o juiz continuava livre para julgá-lo tanto pela imputação originária (furto), quanto pela imputação superveniente (roubo). Ou seja, o aditamento não substituiria a imputação originária, mas a ela se somaria, de modo alternativo. Tinha-se aí a denominada imputação alternativa superveniente. Se essa imputação alternativa superveniente prevista no antigo parágrafo único do art. 384 do CPP era amplamente admitida pela doutrina e pelos Tribunais, pode-se dizer que, diante das modificações produzidas pela Lei n° 11.719/08, já não há mais falar em denúncia alternativa superveniente. Isso porque, de acordo com a nova redação do art. 384, § 4o, do CPP, havendo aditamento, ficará o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento. Em outras palavras, havendo aditamento da denúncia por força da mutatio libelli, o fato imputado passará a ser exclusivamente o fato superveniente, que substitui o fato originário. Nessa linha, como aduz Gustavo Henrique Badaró, “se o juiz condenar o acusado pelo fato originário, estará proferindo uma sentença extra petita e, consequentemente, viciada pela nulidade absoluta, tal qual ocorre com qualquer sentença que viole a regra da correlação entre acusação e sentença”.176 Imagine-se, por exemplo, que alguém tenha sido denunciado pela prática do crime de peculato culposo (CP, art. 312, § 2o). Posteriormente, no curso da instrução, fica provado que

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Com esse entendimento: GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades no processo penal. I I s ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 92. Na mesma linha: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 1- edição. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010. p. 315.

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BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2- ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 172.

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o funcionário público, que tinha a posse do bem em razão de seu cargo, teria se apropriado dolosamente da res. Feito o aditamento da denúncia para imputar a prática do crime de peculato-apropriação (CP, art. 312, caput), e sendo este aditamento recebido pelo magistrado (CPP, art. 384, § 2o), não restará mais a acusação pelo peculato culposo, que terá sido substituída pela acusação de peculato-apropriação. Nesse contexto, o acusado não poderá ser condenado por peculato culposo, já que o próprio Ministério Público afirmou no aditamento, recebido pelo ma­ gistrado, que houve a apropriação dolosa de bem móvel de que tinha a posse em razão do cargo. Ainda segundo Badaró,177 essa inadmissibilidade de julgamento tanto pelo fato originário quanto pelo fato objeto do aditamento não será aplicável, no entanto, nas situações em que o adi­ tamento não implique substituição dos fatos originários pelos fatos provados no curso da instrução e, supervenientemente, imputados pelo aditamento da denúncia. Isso ocorrerá em duas hipóteses: a) no caso de imputação por um crime simples, com o posterior aditamento da denúncia, para a inclusão de um elemento especializante, permitindo o surgimento de outro delito. Basta imaginar uma denúncia pela prática do crime de roubo simples, com posterior aditamento para incluir a causa de aumento de pena do emprego de arma de fogo (CP, art. 157, §2-A, I, incluído pela Lei n. 13.654/18). Em tal situação, se o juiz, no momento da sentença, entender que não ficou comprovado o emprego de arma de fogo, poderá condenar o acusado pelo crime de roubo simples, porquanto estará realizando apenas uma exclusão parcial do fato, limitando-se a con­ siderar não provados o elemento especializante agregado pelo aditamento;

b) no caso de crime complexo: havendo a imputação originária por um crime simples (v.g., furto), com posterior aditamento para somar a tal imputação outro delito (v.g., lesão corporal), de modo a caracterizar um crime complexo (in casu, o roubo), é possível que o juiz, na sentença, condene o acusado somente pela imputação originariamente imputada (no caso, o furto), caso considere que não restou provada a ocorrência de violência para a prática da subtração.

17. ADITAMENTO À DENÚNCIA Apesar de, na grande maioria dos processos criminais, o objeto do processo permanecer o mesmo desde a imputação até o momento da sentença, é possível que, durante o curso do processo penal, surjam fatos novos dos quais as partes não tinham conhecimento quando do oferecimento da peça acusatória. Basta pensar, por exemplo, na hipótese de eventual confissão judicial do acusado, delatando comparsas que sequer foram investigados durante o inquérito policial; ou, ainda, em instrução processual que revele a prática de outros crimes pelo mesmo denunciado. Emerge, daí, a possibilidade de se proceder ao aditamento da peça acusatória. Mas o que se entende por aditamento? Como esclarece Rangel,178 a palavra aditar deriva do latim additu, particípio passado de addere, que significa acrescentar, adir, adicionar, juntar algo que falta a alguma coisa. Sob o ponto de vista processual, aditar significa acrescentar ou complementar a peça acusatória com fatos, sujeitos ou elementos novos que não constaram, inicialmente, da denúncia ou queixa. Em termos processuais penais, a expressão aditamento também é usada com o significado de mera retificação ou mesmo ratificação, suprimento ou esclarecimento da peça inicial. Exemplificando, suponha-se que determinado indivíduo tenha sido denunciado pela prá­ tica do crime de roubo simples (CP, art. 157, caput). Porém, no curso da instrução processual, 177 Op. cit. p. 173-174. 178

RANGEL, Paulo. D ireito processual penal. 17ã ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 315.

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descobre-se que o crime fora cometido mediante o concurso de outra pessoa, cuja identidade, porém, não foi obtida. Se, ao final do processo, o magistrado estiver plenamente convencido de que o delito fora cometido mediante concurso de duas pessoas, poderá condenar o acusado pela prática do crime de roubo circunstanciado (CP, art. 157, § 2o, II)? Evidentemente que não, sob pena de violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da correlação entre acusação e sentença. Ora, como se entende que, no processo penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados na peça acusatória, se lhe foi imputada originariamente a prática do crime de roubo simples, e se não houve qualquer aditamento à peça acusatória, não pode o juiz querer condená-lo pela prática de um crime de roubo circunstanciado, ainda que tenha ficado provado o concurso de duas ou mais pessoas. Pudesse o juiz fazê-lo, sem prévio aditamento da peça acusatória, estar-se-ia, violando, de uma só vez, os três princípios acima referidos. Afinal, o acusado não teve ciência da imputação de roubo circunstanciado pelo concurso de duas ou mais pessoas, o que caracterizaria violação ao contraditório; não teria tido a possibilidade de se insurgir quanto à imputação de roubo circuns­ tanciado, malferindo a ampla defesa; por fim, ver-se-ia condenado por fato delituoso que não lhe fora imputado, contrariando o princípio da congruência ou correlação entre acusação e sentença. O aditamento da denúncia está relacionado diretamente às hipóteses de conexão e continên­ cia, possibilitando a reunião de feitos que, em tese, tramitariam separadamente. Portanto, se o fato novo surgido durante a instrução processual não guardar relação de conexão ou continência com aquele narrado na peça acusatória, não há por que se cogitar de aditamento da denúncia. Há, sim, de se aplicar o quanto disposto no art. 40 do CPP, ou seja, deve o magistrado remeter os autos ao Ministério Público para que possa, eventualmente, oferecer nova denúncia, dando ensejo à instauração de outro processo criminal perante órgão jurisdicional diverso, se for o caso. O aditamento da denúncia pode ser feito pelo órgão do Ministério Público desde o ofere­ cimento da peça acusatória até o momento imediatamente anterior à prolação da sentença. De fato, como destaca a doutrina, “ao contrário do que ocorre no processo cível, no qual o pedido inicial não pode ser alterado após a citação sem que haja concordância do réu, no processo penal a denúncia nos crimes de ação penal pública pode, a qualquer tempo, antes da sentença final, ser aditada, incluindo-se novos fatos ou agentes, agravando-se ou modificando-se a tipificação”.179 Como dito acima, o Promotor pode aditar a peça acusatória, mas daí não se pode concluir que o Promotor possa permanecer inerte diante da notícia de nova infração penal. Afinal, por força do princípio da obrigatoriedade, o Ministério Público é obrigado a agir diante da presença de elementos de informação quanto à prática de um delito. Na verdade, quando falamos que o Promotor pode aditar a peça acusatória, queremos dizer que o aditamento, em si, não é obriga­ tório, já que existe a possibilidade de o Promotor optar pelo oferecimento de nova denúncia, ao invés de fazer o aditamento. Perceba-se que o que possibilita a reunião dos dois processos é existência de conexão e/ ou continência. Porém, essa reunião dos processos não é obrigatória. Na verdade, a depender do quanto avançado estiver a marcha procedimental do processo relativo à imputação originária, o aditamento pode até se revelar contraproducente. Imagine-se, por exemplo, processo criminal pela prática do crime de roubo relativo a acusado preso. Por ocasião da conclusão de complexa instru­ ção, nota-se o surgimento de elementos probatórios quanto ao crime de receptação da coisa alheia 179

LIMA, Marcellus Polastri. M anual de processo penal. I s ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 192.

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móvel que havia sido objeto do crime de roubo. Em tal exemplo, é fácil perceber que o aditamento à peça acusatória seria completamente contraproducente, porquanto provocaria um retrocesso na marcha procedimental, possibilitando, inclusive, a caracterização de excesso de prazo da prisão cautelar. Em tal situação, em juízo de conveniência a ser feito pelo órgão ministerial, pensamos que o ideal seria o oferecimento de nova denúncia quanto ao crime de receptação, hipótese em que os processos tramitariam separadamente, como, aliás, permite o art. 80, última parte, do CPP. Por fim, convém destacar que a legitimidade para aditar a denúncia é do titular da ação penal pública, não sendo admissível que o assistente da acusação adite denúncia oferecida por órgão do Ministério Público. 17.1. Espécies de aditamento 17.1.1. Quanto ao objeto do aditamento: próprio e impróprio Quanto ao objeto do aditamento, a doutrina o classifica em próprio e impróprio. No aditamento próprio, ocorre o acréscimo de fatos não contidos, inicialmente, na peça acusatória, ou de sujeitos que, apesar de terem concorrido para a prática delituosa, não foram incluídos no polo passivo da denúncia ou queixa, já que, quando de seu oferecimento, não havia elementos de informação quanto ao seu envolvimento. Diante do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, e seu consectário lógico da indisponibilidade (CPP, art. 42), o aditamento só pode ser feito para o fim de acrescer imputação ou alguém ao polo passivo da demanda, não sendo possível, pois, que seja utilizado para retirar imputação ou corréu do polo passivo. O aditamento próprio subdivide-se em: a) próprio real: quando disser respeito a fatos delituosos, aí incluídos novos fatos delituo­ sos, qualificadoras ou causas de aumento de pena. Este, por sua vez, comporta as subespécies real material e real legal: a.l) aditamento próprio real material: é aquele que acrescenta fato à denúncia, quali­ ficando ou agravando o já imputado, com a adição de circunstância não contida na inicial, ou mesmo fato novo que importa imputação de outro ou mais de um crime; a.2) aditamento próprio real legal: é o que se refere ao acréscimo de dispositivos legais, penais ou processuais (substantivo ou adjetivo), alterando, assim, a classificação ou o rito pro­ cessual, mas sem inovar no fato narrado.180 b) próprio pessoal: quando disser respeito à inclusão de coautores e partícipes. Exemplificando, suponha-se que o Ministério Público ofereça denúncia em face de Tício pela suposta prática de crime de furto. No curso do processo penal, surgem elementos probatórios quanto ao envolvimento de Mévio na receptação da coisa alheia móvel. Nessa hipótese, pode o Promotor aditar a peça acusatória para incluir Mévio, imputando-lhe o delito de receptação, o que caracterizaria hipótese de aditamento próprio real, porquanto houve o acréscimo de outro fato delituoso (no caso, receptação), e próprio pessoal, já que houve a inclusão de outro acusado no polo passivo da demanda. De outro lado, entende-se por aditamento impróprio aquele em que, apesar de não se acres­ centar um fato novo ou outro acusado, busca-se corrigir alguma falha na denúncia, seja através de retificação, ratificação, suprimento ou esclarecimento de algum dado narrado originariamente 180

É nesse sentido a lição de Marcellus Polastri Lima (M anua l de processo penal. 23 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 194).

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na peça acusatória. É o que ocorre, por exemplo, na hipótese de equívoco quanto à qualificação do acusado, ou quando, no momento do oferecimento da denúncia, o Promotor não sabia o exato local em que o crime havia sido cometido, vindo a adquirir tal conhecimento no curso do processo. Encontra previsão no art. 569 do CPP, que prevê que as omissões da denúncia poderão ser supridas a todo tempo, antes da sentença final. Aliás, em caso de declaração de incompetência, o próprio CPP prevê a possibilidade de ratificação dos atos processuais anteriormente praticados: “Se, ouvido o Ministério Públi­ co, for aceita a declinatória, o feito será remetido ao juízo competente, onde, ratificados os atos anteriores, o processo prosseguirá” (art. 108, § Io). Como se vê, reconhecida a incom­ petência, e, portanto, a ausência de atribuição do órgão do Ministério Público para oferecer denúncia, tem-se que, pelo menos em regra, deve haver a ratificação da denúncia pelo Pro­ motor Natural, além da ratificação do recebimento da peça acusatória pela autoridade jurisdicional competente. 17.1.2. Quanto à voluntariedade do aditamento: espontâneo e provocado Quanto à voluntariedade, é possível a seguinte classificação do aditamento: a) aditamento espontâneo: ante o princípio da obrigatoriedade e o sistema acusatório, surgindo fatos novos ou notícia quanto ao envolvimento de outros coautores ou partícipes, cuja existência era desconhecida quando do oferecimento da denúncia, deve o Promotor de Justiça proceder ao aditamento. Tem-se aí o que a doutrina denomina de aditamento espontâneo, no sentido de que não há necessidade de o juiz provocar a atuação do órgão ministerial. Deve ocorrer sempre que surgir, durante a instrução processual, prova de elementar ou circunstância não con­ tida na peça acusatória, pouco importando se se trata de imputação mais grave ou menos grave; b) aditamento provocado: no exercício de função anômala de fiscal do princípio da obri­ gatoriedade, verificando a necessidade de se acrescentar algo à peça acusatória, o próprio juiz provoca o Ministério Público a fazê-lo. É o que ocorre nas hipóteses de mutatio libelli quando o órgão do Ministério Público atuante na Ia instância deixa de fazer o aditamento espontâneo. Nesse caso, dispõe o art. 384, § Io, do CPP, que incumbe ao juiz aplicar o art. 28 do CPP.181 O art. 417 do CPP também contempla outra hipótese de aditamento provocado. Segundo esse dispositivo, por ocasião da pronúncia ou impronúncia do acusado, havendo indícios de autoria ou de participação de outras pessoas não incluídas na acusação, deva o juiz determinar o retomo dos autos ao Ministério Público, por 15 (quinze) dias, oportunidade em que poderá aditar a peça acusatória, ou, a depender do caso concreto, optar pelo oferecimento de nova denúncia, com a conseqüente instauração de outro processo, valendo-se do permissivo da separação de processos do art. 80 do CPP. Há quem entenda que o art. 419 do CPP também contempla hipótese de aditamento pro­ vocado, porém de natureza imprópria. De acordo com tal dispositivo, que se refere à desclas­ sificação na primeira fase do procedimento escalonado do júri, quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime não doloso contra a vida, e não for com­ petente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja. Segundo Pollastri, a aplicação desse dispositivo importará verdadeira provocação indireta por parte do juiz, através de decisão deselassificatória em processos que foram originalmente de competência do Tribunal do Júri.

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Para mais detalhes acerca do aditamento nas hipóteses de m u ta tio libelli, remetemos o leitor ao Título referente à Sentença Penal, onde o assunto será detalhadamente estudado no tópico atinente ao princípio da correlação entre acusação e sentença.

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Segundo o autor, “não podem, tanto o juiz que operou a desclassificação, quanto o juiz que se tomou competente, classificar o novo delito a ser imputado, senão em tese ou genericamente na decisão desclassificatória, devendo ser, assim, oferecido aditamento pelo parquet, que importará verdadeira retificação, aduzindo novos fatos ou modificando o especial fim de agir, sendo que, em regra, será imputado delito menos grave em vista da desclassificação perada (v.g., tentativa de homicídio para lesões corporais)”.182 17.2. Interrupção da prescrição Uma das causas interruptivas da prescrição é o recebimento da denúncia ou da queixa (CP, art. 117,1). Mas, e no caso do aditamento da peça acusatória? Haveria, sempre, a interrupção da prescrição? A resposta a essa pergunta passa, obrigatoriamente, pela análise da espécie de aditamento. Em se tratando de aditamento impróprio, como não há nenhuma alteração substancial, forçoso é concluir que o recebimento da denúncia continua funcionando como o único marco interruptivo da prescrição, ressalvadas, obviamente, as demais causas interruptivas previstas no Código Penal.183 Todavia, na hipótese de aditamento próprio real, em que novo fato delituoso é incluído na demanda, a interrupção da prescrição quanto a esse delito dar-se-á na data em que o adita­ mento for recebido pela autoridade judiciária competente. Com efeito, se ao Ministério Público se reserva a possibilidade de oferecer denúncia por este fato novo, e esta, uma vez recebida, interromperia a prescrição, idêntico raciocínio há de ser aplicado ao recebimento do aditamento, o qual também terá o condão de interromper a prescrição. De acordo com o STJ, “não há que se falar em prescrição da pretensão punitiva se não decorreu o lapso de tempo necessário entre a data de proferimento da sentença e a data do aditamento da denúncia, que trouxe fatos novos resultando em modificação na capitulação do delito imputado, inclusive com mudança no rito procedimental, e determinou a inclusão de corréus”.184 Na hipótese de inclusão de coautor ou partícipe (aditamento próprio pessoal), não há falar em interrupção da prescrição. Isso porque a prescrição refere-se ao fato delituoso praticado pelo agente, e não ao agente que o praticou. Na verdade, por força do próprio Código Penal, a interrupção da prescrição por ocasião do recebimento da peça acusatória já produz efeitos relativamente a todos os autores do crime (CP, art. 117, § Io).185 182 LIMA, Marcellus Polastri. M a nual de processo penal. 2ã ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 203. 183 STJ, 5ã Turma, HC 23.493/RS, Rei. Min. Felix Fischer, j. 05/08/2003, DJ15/09/2003 p. 334. No sentido de que o aditamento da denúncia (nova capitulação sem descrição de fato novo) não torna nula a primitiva peça acusa­ tória. Assim, mantém-se o recebimento da denúncia posteriormente aditada como marco da interrupção do prazo prescricional: STJ, 5ã Turma, HC 188.471/ES, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 31/5/2011. 184 STJ, 5§ Turma, REsp 276.841/SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 06/06/2002, DJ 01/07/2002 p. 371. 185 Em sentido diverso, Aury Lopes Jr. entende que não há como deslocar-se o fato-do-autor do autor-do-fato, de modo que o aditamento para incluir um coautor ou partícipe eqüivale a uma denúncia por aquele fato contra aquela pessoa. Segundo o autor, "se não fossem as regras da continência e da conexão, haveria a abertura de um novo processo, com a prescrição correndo até o momento do recebimento dessa (nova) denúncia. Assim, para o corréu que não havia sido acusado, o aditamento marca o seu ingresso no processo e não pode ele ser prejudicado - pelo efeito retroativo do marco interruptivo da prescrição - pelo recebimento de uma denúncia que não era contra ele". Em suma, segundo Aury, quando o aditamento for para inclusão de novo fato, o prazo prescricional desse novo crime somente é interrompido na data em que for recebido o aditamento; quando o aditamento for subjetivo, em relação àquele agente, o prazo prescricional é interrompido quando admitido o aditamento que o incluiu no processo, (op. cit. p. 381).

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17.3. Procedimento do aditamento Até a reforma processual de 2008, nada dizia o Código de Processo Penal quanto ao pro­ cedimento a ser observado quando houvesse o aditamento da peça acusatória pelo Ministério Público. Tal omissão foi suprida pelo advento da Lei n° 11.719/08, que passou a regulamentar o procedimento da mutatio libelli nos parágrafos do art. 384. É bem verdade que o art. 384 do CPP só se refere às hipóteses em que, após o encerramento da instrução probatória, surge prova de elementar ou circunstância da infração penal não contida na acusação (aditamento próprio real). Não trata, pois, das demais hipóteses de aditamento (v.g., aditamento próprio pessoal). Porém, diante do silêncio da lei, pensamos que, por analogia, referido procedimento possa ser usado para as demais hipóteses de aditamento. Para evitarmos repetições desnecessárias, remetemos o leitor ao Título referente à sentença penal. 17.4. Aditamento à queixa-crime Regra geral, eventuais omissões da queixa poderão ser supridas a todo tempo, desde que antes da sentença, tal qual determina o art. 569 do CPP. Limita-se o referido dispositivo ao suprimento de falhas quanto à correta descrição do fato ou da tipificação legal (aditamento impróprio), que não conduzam a uma inovação na acusação. Esse aditamento impróprio da queixa-crime poderá ser feito tanto pelo MP quanto pelo querelante. Raciocínio diferente será aplicável às hipóteses de aditamento próprio. De fato, quanto à possibilidade de aditamento para incluir novos fatos delituosos, coautores e partícipes (adi­ tamento próprio), há de se diferenciar aquele feito pelo Ministério Público daquele feito pelo próprio querelante. Quanto ao aditamento da queixa-crime pelo órgão ministerial, diz o art. 45 do CPP que “a queixa, ainda quando a ação penal for privativa do ofendido, poderá ser aditada pelo Ministério Público, a quem caberá intervir em todos os termos subsequentes do processo”. O dispositivo deixa transparecer, à primeira vista, que o Ministério Público teria ampla legitimidade para proce­ der ao aditamento da queixa-crime. Porém, deve se distinguir as hipóteses de ação penal privada exclusiva e privada personalíssima das hipóteses de ação penal privada subsidiária da pública. Nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e privada personalíssima, como o Ministério Público não é dotado de legitimaíio ad causam, não tem legitimidade para incluir coautores, partícipes e outros fatos delituosos de ação penal de iniciativa privada, podendo aditar a queixa-crime apenas para incluir circunstâncias de tempo, de lugar, modus operandi, etc. Admite-se, portanto, apenas o aditamento impróprio, cui'o prazo é de 3 (três) dias, nos termos do art. 46, § 2o, do CPP. Na ação penal privada subsidiária da pública, como a ação penal, em sua origem, é de natureza pública, conclui-se que o Ministério Público tem ampla legitimidade para proceder ao aditamento, seja para incluir novos fatos delituosos, coautores e partícipes (aditamento próprio), seja para acrescentar elementos acidentais como dados relativos ao local e ao momento em que o crime foi praticado (CPP, art. 29), ou seja, aditamento impróprio. O próprio art. 384, caput, do CPP, ao se referir à mutatio libelli, também admite o aditamen­ to pelo Ministério Público na hipótese de ação penal privada subsidiária da pública, ao dispor que o Parquet deverá aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública. Ora, somente pode haver queixa em ação penal pública quando caracterizada a inércia do órgão do Ministério Público, ou seja, nos casos de ação penal privada subsidiária da pública.

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Raciocínio distinto será aplicável ao aditamento próprio da queixa-crime feito pelo próprio querelante. Na ação penal exclusivamente privada e na ação penal privada persona­ líssima, a maioria da doutrina entende não ser cabível o aditamento do art. 384, caput, do CPP.186 N£0 obstante, a nosso ver, tal qual ocorre com o Ministério Público, o querelante também pode vir a tomar conhecimento de elementares ou circunstâncias apenas no curso da instrução processual, razão pela qual não se pode negar a ele a possibilidade de proceder ao aditamento. Porém, há de se analisar se a omissão do querelante em incluir tais fatos na peça acusatória teria sido voluntária ou involuntária, e se foi observado o prazo decadencial. Afinal de contas, se o querelante tinha consciência quanto a determinado fato, e deliberadamente o omitiu da peça acusatória, forçoso é concluir que teria havido renúncia tácita em relação a ele, e conseqüente extinção da punibilidade. Porém, se a exclusão foi involuntária, há de se admitir a possibilidade de aditamento, desde que observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses, sem prejuízo do ofe­ recimento de nova queixa-crime em relação a esse fato, também observado o prazo decadencial do art. 38 do CPP. Assim, se ainda não ocorreu a decadência, ou se o fato se tomou conhecido do querelante apenas no curso da instmção processual, há de se assegurar a ele a possibilidade de aditar a queixa-crime, com fundamento no art. 569 do CPP, ou oferecer nova queixa-crime; caso não o faça, haverá a extinção da punibilidade.187 18. AÇÃO CIVIL E X DELICTO 18.1. Noções introdutórias Por conta de uma mesma infração penal, cuja prática é atribuída a determinada pessoa, podem ser exercidas duas pretensões distintas: de um lado, a chamada pretensão punitiva, isto é, a pretensão do Estado em impor a pena cominada em lei; do outro lado, a pretensão à reparação do dano que a suposta infração penal possa ter causado à determinada pessoa. Basta supor a prática de um crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor: para além da deflagração da persecução penal, cujo objetivo será, em última análise, a imposição da pena prevista no art. 302 da Lei n° 9.503/97 - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor -, daí também irá sobressair o interesse dos sucessores da vítima em obter a reparação dos danos causados pelo delito. É nesse sentido que o art. 186 do Código Civil preceitua que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Na mesma linha, por força do art. 927 do CC, “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Como se percebe, há uma relação natural e evidente entre a prática de uma infração penal e o possível prejuízo patrimonial que dela pode resultar ao ofendido, facultando-lhe o direito à reparação. Não por outro motivo, ao tratar dos efeitos automáticos da condenação, o próprio Código Penal estabelece que um deles é o de tomar certa a obrigação de indenizar o dano cau­ sado pelo crime (art. 9 1 ,1).

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Nesse sentido: MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 11§ ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 993. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2§ edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 159.

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18.2. Sistemas atinentes à relação entre a ação civil e x delicio e o processo penal São quatro os sistemas que dispõem sobre o relacionamento entre a ação civil para reparação do dano e a ação penal para a punição do autor da infração penal: a) sistema da confusão: na antiguidade, muito antes de o Estado trazer para si a solução dos conflitos intersubjetivos, cabia ao ofendido buscar a reparação do dano e a punição do autor do delito por meio da ação direta sobre o ofensor. Por meio deste sistema, a mesma ação era utilizada para a imposição da pena e para fins de ressarcimento do prejuízo causado pelo delito; b) sistema da solidariedade: neste sistema, há uma cumulação obrigatória de ações dis­ tintas perante o juízo penal, uma de natureza penal, e outra cível, ambas exercidas no mesmo processo, ou seja, apesar de separadas as ações, obrigatoriamente são resolvidas em conjunto e no mesmo processo; c) sistema da livre escolha: caso o interessado queira promover a ação de reparação do dano na seara cível, poderá fazê-lo. Porém, neste caso, face a influência que a sentença penal exerce sobre a civil, incumbe ao juiz cível determinar a paralisação do andamento do processo até a superveniência do julgamento definitivo da demanda penal, evitando-se, assim, decisões contraditórias. De todo modo, a critério do interessado, admite-se a cumulação das duas preten­ sões no processo penal, daí por que se fala em cumulação facultativa, e não obrigatória, como se dá no sistema da solidariedade; d) sistema da independência: por força deste sistema, as duas ações podem ser propostas de maneira independente, uma no juízo cível, outra no âmbito penal. Isso porque, enquanto a ação cível versa sobre questão de direito privado, de natureza patrimonial, a outra versa sobre o interesse do Estado em sujeitar o suposto autor de uma infração penal ao cumprimento da pena cominada em lei. Nosso Código de Processo Penal adota o sistema da independência das instâncias, com certo grau de mitigação. Deveras, apesar de o art. 63 do CPP dispor que, transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros, de onde se poderia inferir a adoção do sistema da solidariedade, o art. 64 do CPP prevê que sem prejuízo do dis­ posto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil, o que acaba por confirmar que o sistema adotado pelo CPP é o da independência, com a peculiaridade de que a sentença penal condenatória já confere à vítima um título executivo judicial. Por conta da reforma processual de 2008 (Lei n° 11.719/08), o parágrafo único do art. 63 do CPP passou a dispor que, transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido. De seu turno, consoante a nova redação do art. 387, IV, do CPP, por ocasião da sentença condenatória, deverá o juiz fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. Como se pode notar, doravante, a própria sentença condenatória passa a funcionar como um título executivo líquido, o que permite que o ofendido ou seus sucessores procedam, de imediato, à execução por quantia certa, sem prejuízo de ulterior liquidação para apuração do dano efetivamente sofrido. Isso não significa dizer que nosso sistema tenha se aproximado do sistema da solidariedade, nem tampouco do da confusão. Com efeito, não há necessidade de cumulação obrigatória, nem

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tampouco facultativa das pretensões perante o juízo penal. Por mais que o juiz criminal possa, desde já, fixar um valor mínimo a título de indenização, não há propriamente uma ação civil cumulada com uma ação penal no juízo criminal, vez que a fixação do valor mínimo a título de indenização é apenas um efeito automático da sentença condenatória, que independe de pedido expresso do Ministério Público ou do ofendido. Continua a vigorar, pois, o sistema da separação das instâncias, vez que é possível a propositura de uma ação civil pela vítima, com o objetivo de obter a reparação do dano causado pelo delito - ação civil ex delicto -, paralelamente à ação penal, proposta, em regra, pelo Ministério Público. Na verdade, por força do regramento constante dos arts. 63 e 64 do CPP, o ofendido tem duas formas alternativas e independentes para buscar o ressarcimento do dano causado pelo delito: 1) Ação de execução e x delicto: com fundamento no art. 63 do CPP, esta ação, de natureza executória, pressupõe a existência de título executivo, consubstanciado na sentença penal con­ denatória com trânsito em julgado (NCPC, art. 515, VI), que toma certa a obrigação de reparar o dano causado pelo delito (CP, art. 9 1 ,1). Apesar de ser muito comum que a doutrina se refira à hipótese do art. 63 do CPP como ação civil ex delicto, isso se dá em virtude da terminologia usada no Título IV do Livro I do CPP (“Da ação civil”). Tecnicamente, porém, só se pode falar em ação civil ex delicto na hipótese prevista no art. 64 do CPP; 2) Ação civil e x delicto: independentemente do oferecimento da peça acusatória em face do suposto autor do fato delituoso, ou da fase em que se encontrar eventual processo penal, o ofendido, seu representante legal ou herdeiros podem promover, no âmbito cível, uma ação de natureza cognitiva, objetivando a formação de um título executivo cível consubstanciado em sentença condenatória cível transitada em julgado, nos exatos termos do art. 64 do CPP. Trata-se, o art. 64 do CPP, de verdadeira ação ordinária de indenização, ajuizada no âmbito cível, que, em sede processual penal, é denominada de ação civil ex delicto. Nesse caso, dispõe o art. 64, parágrafo único, do CPP, que o juiz cível poderá determinar a suspensão do processo a partir do momento em que for intentada a ação penal. A despeito de haver certa controvérsia acerca da obrigatoriedade da suspensão do processo cível, prevalece o entendimento de que se trata de mera faculdade do magistrado, que deve ser utilizada de modo a evitar a ocorrência de decisões contraditórias no âmbito penal e na esfera cível, já que, a depender do fundamento da sentença criminal absolutória, esta poderá fazer coisa julgada no cível. Não há consenso acerca do lapso temporal em que o processo cível pode permanecer suspenso. De um lado, há quem entenda que, por força do art. 313, § 4o, primeira parte, do novo CPC188, o período de suspensão não pode exceder um ano, sendo que, findo esse prazo, o juiz cível deve mandar prosseguir no processo. Em posição diversa, à qual nos filiamos, parte da doutrina sustenta que a referida regra do CPC não pode ser aplicada à hipótese do art. 64, parágrafo único, do CPP, que faz referência expressa ao julgamento definitivo da ação penal, até mesmo porque dificilmente um processo criminal chegará a termo antes do decurso do prazo de um ano. Logo, se o juiz cível vislumbrar a possibilidade de a absolvição criminal vir a produzir reflexos no âmbito cível, deve determinar o sobrestamento do seu processo até que haja o trânsito em julgado da sentença criminal.

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De acordo com o novo CPC, se o conhecimento do mérito depender de verificação da existência de fato delituoso, o juiz pode determinar a suspensão do processo até que se pronuncie a justiça criminal (art. 315, caput). Se a ação penal não for proposta no prazo de 3 (três) meses, contado da intimação do ato de suspensão, cessará o efeito desse, incumbindo ao juiz cível examinar incidentemente a questão prévia (art. 315, § 1^). Proposta a ação penal, o processo ficará suspenso pelo prazo máximo de 1 (um) ano, ao final do qual aplicar-se-á o disposto na parte final do § l 9 (art. 315, § 29).

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18.3. Efeitos civis da absolvição penal A sentença absolutória não exerce qualquer influência sobre o processo cível, salvo quan­ do reconhece, categoricamente, a inexistência material do fato ou afasta peremptoriamente a autoria ou participação. É nesse sentido o disposto no art. 66 do CPP: “Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, catego­ ricamente, reconhecida a inexistência material do fato”. Em sentido semelhante, segundo o art. 935 do Código Civil, a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Como se percebe, a depender do fundamento, a sentença absolutória poderá (ou não) impedir a propositura da ação civil ex delicto. Daí a importância de analisarmos o art. 386 do CPP, cujos incisos dispõem sobre os fundamentos da sentença absolutória: I - estar provada a inexistência do fato: neste caso, o juiz formou sua convicção no sentido da inocorrência do fato no mundo fenomênico, isto é, o fato não ocorreu no mundo da natureza. Não se trata de falta de provas, ou de um estado de dúvida. Na verdade, há prova nos autos que confirmam peremptoriamente que o fato delituoso imputado ao acusado não ocorreu. Por isso, esse decreto absolutório faz coisa julgada no âmbito cível, nos termos do art. 66 do CPP, c/c art. 935 do CC; II - não haver prova da existência do fato: esta decisão deve ser proferida pelo magis­ trado quando, por ocasião da sentença, persistir dúvida quanto à existência do fato delituoso. Em outras palavras, o fato delituoso pode até ter existido, mas o juiz entende que não há provas suficientes que atestem sua existência. Trata-se, pois, de decisão baseada no in dubio pro reo. Logo, esta sentença absolutória não faz coisa julgada no cível, porquanto não houve o reconhe­ cimento categórico da inexistência do fato delituoso. É possível, pois, que o ofendido busque, no âmbito extrapenal, eventual reparação pelos prejuízos sofridos em virtude da infração penal, valendo-se, para tanto, de outras provas que demonstrem a existência do fato e, consequente­ mente, a obrigação de reparar o dano; III - não constituir o fato infração penal: sempre que o legislador utiliza a expressão “não constituir o fato infração penal”, refere-se à atipicidade da conduta imputada ao agente, seja no plano formal, seja no plano material. Exemplificando, apesar de o dano culposo ser for­ malmente atípico no direito penal comum, isso não significa dizer que não acarrete o dever de indenizar (CC, art. 186). Esta absolvição não repercute no âmbito cível, já que o reconhecimento da atipicidade da conduta em sede processual penal não afasta a possibilidade de reconhecimento de sua ilicitude no âmbito cível, com o conseqüente reconhecimento da obrigação de reparar os danos (CPP, art. 67, III). Parte da doutrina ressalva, todavia, a hipótese de crime culposo: considerando que a culpa se exterioriza por meio da imprudência, negligência ou imperícia, se acaso o indivíduo for absolvido no processo criminal sob o fundamento de ter sido comprovada a ausência de quaisquer das modalidades da culpa, esta absolvição deve refletir no âmbito cível. Soaria contraditório que o juiz criminal reconhecesse a ausência de imprudência, negligência ou imperícia, e o juiz cível, posteriormente, atestasse sua presença;189 IV - estar provado que o acusado não concorreu para a infração penal: nos mesmos moldes que a decisão do inciso I do art. 386, esta decisão absolutória também é baseada em um juízo de certeza, porém, nesse caso, no sentido de que o acusado não concorreu para a 189 Com esse entendimento: AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. 2- ed. São Paulo: Método, 2010. p. 991.

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prática delituosa na condição de autor, coautor ou partícipe. A título de exemplo, é possível que a instrução probatória demonstre que o autor, efetivamente, não poderia ter praticado o fato delituoso, seja porque outro o autor, seja porque faticamente impossível a sua realização, vez que comprovada sua localização, temporal e espacial, em local diverso do crime. Como se trata de decisão absolutória baseada em um juízo de certeza, que reconhece categoricamente que o acusado não concorreu para o cometimento do delito, esta absolvição faz coisa julgada no cível. Ora, se o juiz atestou estar provado que o acusado não concorreu para a infração penal, conclui-se que tal questão foi decidida no âmbito criminal, inviabilizando a propositura de ação indenizatória no cível; V - não existir prova de ter o acusado concorrido para a infração penal: cuida-se de decisão baseada na existência de dúvida razoável acerca da autoria, coautoria ou participação. A título de exemplo, em processo penal no qual seja imputada ao acusado a execução de um crime patrimonial, se a defesa apresentar um álibi e o Ministério Público não conseguir provar a contento que o acusado encontrava-se efetivamente no local do crime, deve o magistrado absolver o acusado com fundamento no art. 386, V, do CPP. Ao contrário do inciso anterior, em que se reconhece categoricamente que o acusado não concorreu para a infração penal e, por isso, repercute no cível, a hipótese do inciso V do art. 386 do CPP não faz coisa julgada no cível, porquanto baseada na existência de dúvida razoável;190 VI - existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o acusado de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § Io do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência: havendo certeza (ou mesmo fundada dúvida) sobre a existência de causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade, incumbe ao juiz absolver o acusado. Quanto aos reflexos civis da sentença absolutória proferida com base no art. 386, VI, do CPP, há de se ficar atento às diversas possibilidades: a) provada a existência de causa excludente da ilicitude real: a decisão absolutória fará coisa julgada no cível, mas desde que o ofendido tenha dado causa à excludente. Sobre o assunto, o art. 65 do CPP dispõe que faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Por exemplo, na legítima defesa, se o ofendido deu início à agressão injusta, o acusado absolvido no processo penal com fundamento no art. 25 do CP não se sujeitará à ação civil. Raciocínio semelhante será aplicado ao estado de necessidade defensivo, se o ofendido tiver provocado a situação de perigo atual, ou se, nos casos de estrito cumprimento do dever legal ou de exercício regular de direito, a vítima tiver sido a responsável pelas respectivas justificantes. Todavia, se o fato praticado ao amparo da excludente da ilicitude tiver atingido terceiro inocente ou se o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito não tiverem sido desencadeados pela pessoa ofendida, mas por um terceiro (v.g., estado de necessidade agressivo), a vítima não fica impedida de buscar no cível, em demanda proposta contra o acusado absolvido, a indenização pelos prejuízos sofridos. Nesse caso, o acusado absolvido, uma vez acionado pela vítima, poderá intentar ação regressiva contra o terceiro que deu causa à situação; b) provada a existência de causa excludente da ilicitude putativa e erro na execu­ ção (aberratio ictus)', a absolvição com fundamento na legítima defesa putativa não impede a 190

No sentido de que a absolvição na esfera criminal por insuficiência de provas não interfere na seara da punição administrativa, tendo, porém, repercussão na instância administrativa apenas quando a sentença proferida no juízo criminal negar a existência do fato criminoso ou afastar sua autoria: STJ, 5ã Turma, REsp 1.028.436/SP, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu - Desembargador convocado do TJ/RJ -, j. 15/09/2011, DJe 17/11/2011.

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propositura da ação civil ex delicto, salvo se a repulsa resultar de agressão do próprio ofendido.191 Na mesma linha, se o acusado, em legítima defesa real, atinge terceiro inocente em virtude de erro na execução, também deverá ser absolvido na esfera criminal, o que não afasta sua res­ ponsabilidade na esfera civil. Nesse caso, poderá promover ação regressiva contra aquele que deu ensejo à excludente de ilicitude, nos termos do art. 930, parágrafo único, do Código Civil; c) provada a existência de causa excludente da culpabilidade: eventual absolvição do acusado com base no reconhecimento categórico de causa exculpante (v.g., erro de proibição, coação moral irresistível, obediência hierárquica, inexigibilidade de conduta diversa, embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior) não faz coisa julgada no âmbito cível; d) fundada dúvida acerca de causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade: como se trata de decisão absolutória baseada na regra probatória do in dubio pro reo, não tem ela o condão de impedir que o acusado absolvido seja acionado civilmente; VII - não existir prova suficiente para a condenação: como se demanda um juízo de certeza para a prolação de um decreto condenatório, caso persista uma dúvida razoável por oca­ sião da prolação da sentença, o caminho a ser adotado pelo magistrado penal é a absolvição do acusado. Mais uma vez, como se trata de decisão baseada no in dubio pro reo, esta absolvição não gera qualquer repercussão na seara cível, daí por que é plenamente possível que a vítima ingresse com ação ordinária de indenização em face do acusado. Ainda em relação aos efeitos cíveis de possíveis decisões proferidas em sede processual penal, há de se ficar atento às seguintes hipóteses: a) sentença absolutória imprópria: é aquela que, reconhecendo a prática de conduta típica e ilícita pelo inimputável do art. 26, caput, do CP, a ele impõe o cumprimento de medida de segurança, nos termos do art. 386, parágrafo único, III, do CPP. Nesse caso, é dominante o entendimento no sentido de que, por mais que haja a imposição de internação ou de tratamento ambulatorial, como tal sentença não tem natureza condenatória, é incapaz de gerar o dever de reparação do dano, além de não funcionar como título executivo. Isso, todavia, não impede o ajuizamento de ação civil contra a pessoa a quem competia a guarda do inimputável, em que se buscará provar a negligência relativa a esse dever (CC, art. 932, II); b) sentença absolutória proferida pelo Tribunal do Júri: diante do sigilo das votações e da adoção do sistema da íntima convicção inerente ao Tribunal do Júri, afigura-se impossível precisar o exato motivo que deu ensejo à decisão dos jurados. Logo, é de se concluir que even­ tual sentença absolutória não deve fazer coisa julgada no cível. Aliás, ainda que o acusado seja absolvido em virtude dos quesitos pertinentes à materialidade ou autoria, tal decisum não deve repercutir no cível, porquanto não se pode estabelecer com exatidão se a decisão dos jurados se baseou na dúvida (in dubio pro reo), situação em que não faria coisa julgada no cível, ou em um juízo de certeza acerca da inexistência do crime ou de negativa de autoria. Destarte, diante da dúvida, já que impossível definir o grau de convicção que levou os jurados a absolver o acusado, o ideal é concluir que uma sentença absolutória no Júri não fará coisa julgada no cível, não permitindo, assim, a aplicação do art. 935 do Código Civil; c) arquivamento do inquérito policial: pelo menos em regra, não faz coisa julgada no âmbito cível. Acerca do assunto, o art. 67, inciso I, do CPP, dispõe expressamente que a decisão de arquivamento do inquérito ou das peças de informação não impede a propositura da ação civil.

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No sentido de que a legítima defesa putativa não exclui a responsabilidade civil pelos danos que dela decorrem: STJ, 33 Turma, REsp 513.891/RJ, Rei. Min. Ari Pargendler, j. 20/03/2007, DJ 16/04/2007, p. 181.

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Logo, diante do reconhecimento da atipicidade do fato delituoso (v.g., insignificância), incumbe ao titular da ação penal pública promover o arquivamento da peça investigatória, o que, todavia, não impede que o interessado busque, no cível, eventual indenização decorrente de ilícito civil; d) transação penal: apesar de haver certa controvérsia quanto à natureza da sentença que homologa o acordo de transação penal nos Juizados - condenatória ou homologatória - , esta decisão não repercute no âmbito cível, vez que o art. 76, § 6o, da Lei n° 9.099/95, dispõe ex­ pressamente que a imposição imediata de pena restritiva de direitos ou de multa não terá efeitos civis, cabendo ao interessado propor a ação cabível no juízo cível; e) extinção da punibilidade em virtude da morte do agente: na hipótese de morte de acusado anteriormente condenado por sentença irrecorrível, é certo que o dever de indenizar pode ser exercido inclusive contra o espólio ou contra os herdeiros, desde que observados os limites do patrimônio transferido. Como se trata de efeito extrapenal da condenação, não há falar em violação ao princípio da pessoalidade da pena (CF, art. 5o, XLV). Evidentemente, caso o óbito do acusado tenha ocorrido antes do trânsito em julgado, restarão prejudicados todos os efeitos que poderiam resultar de uma possível sentença condenatória, dentre eles a obrigação de reparar o dano causado pelo delito; f) anistia: tem o condão de extinguir todos os efeitos penais decorrentes da prática do crime, sejam eles principais, sejam eles secundários, mas não acarreta qualquer repercussão em relação aos efeitos extrapenais. Logo, se concedida após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, nada impede que o título obtido pelo ofendido seja executado perante o juízo cível; g) graça e indulto: nos mesmos moldes que a anistia, também têm natureza jurídica de causas extintivas da punibilidade (CP, art. 107, II). Porém, ao contrário daquela, que é concedida pelo Congresso Nacional (CF, art. 48, VIII), a graça e o indulto só podem ser concedidas pelo Presidente da República, que pode delegar essa atribuição a Ministro de Estado ou a outras auto­ ridades (CF, art. 84, XII, e parágrafo único). Apesar de funcionarem como formas de indulgência soberana, diferenciam-se pelo fato de que a graça é, em regra, individual e solicitada, ao passo que o indulto é coletivo e espontâneo.192Especificamente em relação aos reflexos cíveis, preva­ lece o entendimento de que repercutem apenas em relação ao cumprimento da pena, subsistindo todos os efeitos penais secundários e extrapenais, como a obrigação de reparar o dano. Logo, nada impede a execução da sentença condenatória irrecorrível no âmbito cível; h) extinção da punibilidade em virtude da prescrição: caso a extinção da punibilidade se dê em virtude da prescrição da pretensão punitiva abstrata, retroativa, ou intercorrente, não haverá, consequentemente, o trânsito em julgado de sentença condenatória. Por isso, não será possível a execução civil ex delicio. Isso, no entanto, não impede o ajuizamento de eventual ação civil ex delicio, nos exatos termos do art. 67, II, do CPP. Por outro lado, o reconhecimento da prescrição da pretensão executória prejudica apenas a aplicação da pena, permanecendo intactos os efeitos penais secundários e os efeitos extrapenais da sentença condenatória com trânsito em julgado, inclusive a obrigação de reparar o dano causado pelo delito. i) perdão judicial: trata-se de causa extintiva da punibilidade que permite que o juiz dei­ xe de aplicar a pena em hipóteses expressamente previstas em lei, a despeito da existência de fato típico, ilícito e culpável (v.g., perdão judicial no crime de homicídio culposo previsto no art. 121, § 5o, do CP). Há certa controvérsia quanto à natureza jurídica da decisão concessiva

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De acordo com a súm ula n2 5 3 5 do STJ, a prática de falta grave não interrompe o prazo para fim de comutação de pena ou indulto.

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do perdão judicial: se compreendida como espécie de sentença condenatória,193 à exceção do cumprimento da pena, subsistem todos os demais efeitos penais secundários e extrapenais, ge­ rando, pois, a obrigação de reparar o dano; reconhecida sua natureza declaratória, esta decisão não produz qualquer efeito, penal ou extrapenal. Nesse sentido, de acordo com a súmula n° 18 do STJ, “a sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório”; j) abolitio criminis: de acordo com o art. 2o, parágrafo único, do CP, ninguém será punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Como o dispositivo faz menção apenas à cessação dos efeitos penais da sentença condenatória, prevalece o entendimento de que a sentença penal condenatória transitada em julgado, mesmo que atingida pela abolitio criminis, funciona como título executivo judicial. 18.4. Obrigação de indenizar o dano causado pelo delito como efeito genérico da sentença condenatória.194 Consoante o art. 91, inciso I, do Código Penal, um dos efeitos da condenação é tomar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo delito. Cuida-se de efeito extrapenal obrigatório (ou genérico), aplicável por força de lei, independentemente de expressa declaração por parte da autoridade jurisdicional, uma vez que é inerente à condenação, qualquer que seja a pena imposta (privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa). Na verdade, a única condição para o implemento deste efeito é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e, evidentemente, a constatação de que o delito tenha efetivamente gerado um dano a ser indenizado em favor de determinada pessoa. Afinal, há delitos que não acarretam qualquer prejuízo ao ofendido, daí por que seria inviável a incidência desse efeito (v.g., porte ilegal de arma de fogo). Destarte, com o trânsito em julgado da sentença condenatória, esta decisão passa a valer como título executivo judicial, nos termos do art. 515, VI, do novo CPC, cuja execução pode ser promovida, no juízo cível, dentro do prazo prescricional de 3 anos, consoante disposto no art. 206, § 3o, V, do Código Civil, que disciplina a prescrição da pretensão de reparação civil, não distinguindo tratar-se de reparação obtida a partir de ação executória ou cognitiva.195 Isso significa dizer que, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o acu­ sado estará obrigado a reparar o prejuízo causado pelo delito, não podendo se esquivar desta obrigação. Tal conclusão está em perfeita harmonia com o art. 935 do Código Civil, que dispõe que a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Ora, se foi proferido um decreto condenatório no âmbito penal, a conclusão a que se chega é a de que o magistrado atingiu um juízo de certeza quanto à existência do crime e à autoria do fato delituoso. Em outras palavras, a existência do fato e a respectiva autoria são

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Há precedente bem antigo do Supremo no sentido de que a concessão do perdão judicial impede a aplicação dos efeitos principais da condenação, mas subsistem os efeitos secundários: STF, 1§ Turma, RE 104.977/SP, Rei. Min. Rafael Mayer, j. 04/02/1986, DJ 23/05/1986.

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Para detalhes acerca dos demais efeitos da sentença condenatória, e de modo a evitarmos repetições desne­ cessárias, remetemos o leitor ao título pertinente à sentença penal.

195. O prazo prescricional para o ajuizamento da ação civil ex delicto a que se refere o art. 64 do CPP também é de 3 (três) anos, nos termos do art. 206, § 3B, V, do CC. Todavia, este prazo só começará a fluir a partir do trânsito em julgado da sentença penal, nos termos do art. 200 do Código Civil: "Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva".

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questões que foram decididas no juízo penal. Logo, não há necessidade de nova discussão no âmbito cível. Há certa discussão quanto à possibilidade de sentença condenatória irrecorrível originária do Tribunal do Júri valer como título executivo judicial idôneo para fins de ajuizamento da execução a que se refere o art. 63 do CPP. Sem embargo de entendimento em sentido contrário, parece-nos que, com o trânsito em julgado de condenação operada pelo Júri popular, não há qualquer óbice à execução no âmbito cível, haja vista que não há qualquer ressalva nos disposi­ tivos legais referentes ao assunto: CP, art. 91,1; CPP, art. 63, caput; (art. 515, VI, do novo CPC). Logo, a despeito de os jurados não serem obrigados a fundamentar seu convencimento, visto que vigora, quanto a eles, o sistema da íntima convicção, subsiste a possibilidade de execução de sentença condenatória irrecorrível emanada do Tribunal Popular. A legitimação para promover a execução deste título judicial recai sobre o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros (CPP, art. 63, caput). Quando o titular do direito à repa­ ração do dano for pobre, dispõe o art. 68 do CPP que a execução da sentença condenatória ou a ação civil poderão ser promovidas, a seu requerimento, pelo Ministério Público, que atuará como verdadeiro substituto processual. Com o advento da Constituição Federal, outorgando ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput), e à Defensoria Pública a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (CF, art. 134), houve forte discussão quanto à recepção do art. 68 do CPP, já que, ao promover a ação civil ex delicto em favor de vítima pobre, o Ministério Pú­ blico estaria agindo em nome próprio na defesa de interesse alheio, de natureza patrimonial e, portanto, disponível. Chamado a se pronunciar a respeito do assunto, o Supremo entendeu que o dispositivo seria dotado de inconstitucionalidade progressiva (ou temporária), ou seja, de modo a viabilizar o direito à assistência jurídica e judiciária dos necessitados, assegurado pela Constituição Federal de 1988 (art. 5o, LXXIV), enquanto não houvesse a criação de Defensoria Pública na Comarca ou no Estado, subsistiria, temporariamente, a legitimidade do Ministério Público para a ação de ressarcimento e de execução prevista no art. 68 do CPP, sendo irrelevante o fato de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento.196 Noutro giro, somente pode figurar como legitimado passivo dessa execução civil lastreada na sentença condenatória irrecorrível aquele que figurou como acusado no processo penal. Esse dever de indenizar também pode ser exercido contra os herdeiros do acusado condenado por sentença irrecorrível, desde que observados os limites do patrimônio transferido. Como se trata de efeito extrapenal da condenação, não há falar em violação ao princípio da pessoalidade da pena (CF, art. 5o, XLV). Na hipótese de a vítima pretender buscar o ressarcimento contra eventual responsável civil (CC, art. 932), e não diretamente em face do acusado, deve ingressar

196 STF, Tribunal Pleno, RE 135.328/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 29/06/1994, DJ 20/04/2001. Em sentido semelhante: STF, lã Turma, RE 147.776/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 19/05/1998, DJ 19/06/1998, p. 136; STJ, 4§ Turma, REsp 219.815/SP, Rei. Min. Carlos Fernando Mathias - Juiz Federal convocado do TRF/1§ -, j. 11/11/2008, DJe 24/11/2008. Reconhecendo a legitimação extraordinária do Ministério Público para promover, como substituto processual, a ação de indenização ex delicto em favor do necessitado quando, embora existente no Estado, os serviços da Defensoria Pública não se mostrarem suficientes para a efetiva defesa da vítima carente: STJ, 4§ Turma, AgRg no Ag 509.967/GO, Rei. Min. Barros Monteiro, j. 12/12/2005, DJ 20/03/2006 p. 276.

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com ação de conhecimento no juízo cível, já que os efeitos da coisa julgada penal não podem prejudicar terceiros que não interviram no feito criminal, sob pena de violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa. De mais a mais, como a autoridade da coisa julgada atinge apenas quem foi parte no processo, é de todo evidente que o terceiro que não pôde fazer valer suas alegações, não produziu provas nem influenciou diretamente o provimento final, não pode ser atingido pela res iudicata.197 Vejamos um exemplo: o motorista de uma empresa provoca um acidente de trânsito, cau­ sando a morte de uma pessoa a título culposo. O Ministério Público oferece denúncia apenas em face do referido motorista, deixando de incluir o proprietário da empresa no polo passivo da demanda, porquanto não demonstrada, de sua parte, qualquer imprudência, negligência ou imperícia. Caso o motorista seja condenado, a execução da sentença condenatória com trânsito em julgado somente poderá ser promovida contra ele, jamais contra o proprietário da empresa. É bem verdade que o proprietário da empresa pode até ser responsabilizado no âmbito cível, seja com fundamento em sua culpa in elegendo, seja com base em eventual responsabilidade objetiva do empregador, porém, para tanto, será necessário o ajuizamento de ação autônoma na seara cível. Nesta ação, o empregador poderá voltar a discutir tudo o que restou decidido na sentença penal, inclusive quanto à existência do crime e à própria autoria delitiva, que, no primeiro processo, geraram o dever de reparar o dano.198 Na hipótese de condenado por sentença transitada em julgado lograr êxito em ulterior revisão criminal, quer para fins de absolvição, quer para o reconhecimento da nulidade do processo, haverá a conseqüente rescisão do título executivo judicial anteriormente obtido pela vítima (art. 515, VI, do novo CPC). Nesse caso, se o cumprimento da sentença ainda não se tiver iniciado, a execução não poderá ser deflagrada, haja vista a ausência de título executivo (art. 783 do novo CPC). Caso o cumprimento da sentença já esteja em andamento, também não será possível sua continuação, tese esta que poderá ser arguida em impugnação ou mediante a chamada exceção de pré-executividade. Por fim, caso a sentença já tenha sido cumprida, deve ser feito pedido de indenização contra o Estado, pedido este que pode ser formulado no bojo da própria revisão criminal, ex vi do art. 630, caput, do CPP.199 Por fim, convém destacar que a execução e/ou liquidação devem ser processadas no âmbito cível, conclusão que pode ser extraída a partir da própria localização topográfica do art. 63 do CPP, inserido no título “Da ação civil”. Nosso sistema processual penal sempre se orien­ tou no sentido de que a condenação proferida no juízo criminal vale como título judicial a ser executado na seara cível (CPP, art. 63, c/c art. 515, VI, do novo CPC). Na mesma linha, o art. 630, § Io, do CPP, que cuida da revisão criminal, dispõe que, reconhecido o direito à indenização do autor, a liquidação deve se dar no juízo cível. Até mesmo a Lei dos Juizados Especiais Criminais destaca que a composição dos danos civis, uma vez homologada em juí­ zo, tem eficácia de título judicial, a ser executado no juízo civil competente (Lei n° 9.099/95,

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Eis aí mais uma diferença entre a execução ex delicto (CPP, art. 63) e a ação civil ex delicto (CPP, art. 64): enquanto aquela pode ser ajuizada tão somente em detrimento do acusado condenado na sentença penal transitada em julgado, esta pode ser intentada não apenas contra o suposto autor do fato delituoso, como também em face do responsável civil, nos termos do art. 932 do Código Civil.

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Nesse contexto: BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2012. p. 140.

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Há quem entenda que, nesse caso, incumbe ao executado que já pagou o valor exigido recobrar o montante por ação de repetição de indébito, hipótese em que o credor originário poderá demonstrar que, não obstante a eliminação do título penal, a indenização era devida, vez que presente algum dos pressupostos (ilícito civil) que ensejam responsabilidade civil para manter as conseqüências da execução havida. Nesse sentido: AVENA. Op. cit. p. 333.

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art. 74, caput). A propósito, o art. 516, inciso III, do novo CPC, dispõe expressamente que o cumprimento da sentença efetuar-se-á perante o juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória. 18.4.1. Q uantificação do m o n ta n te a ser ind en iza d o ao o fen d id o

A despeito de a sentença condenatória transitada em julgado reconhecer o an debeatur (CP, art. 91,1), ou seja, a obrigação de indenizar, resta ainda definir o quantum debeatur, é dizer, o valor da indenização devida. Pelo menos até a reforma processual de 2008, a vítima ou seus sucessores, independen­ temente do ajuizamento de uma ação ordinária de conhecimento, eram obrigados a promover a liquidação por artigos, para que, somente então, pudessem proceder à execução por quantia certa. Isso porque, à época, a sentença penal condenatória funcionava apenas como um título executivo judicial ilíquido, o que inviabilizava o imediato ajuizamento da execução por quantia certa. Nesta liquidação, apesar de não ser mais possível rediscutir a lide ou modificar a sentença que a julgou, era necessária a produção de provas acerca do valor do dano existente. Essa sistemática é mantida pelo novo Código de Processo Civil. Deveras, de acordo com o art. 509, inciso II, do novo CPC, quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á a sua liquidação, a requerimento do credor ou devedor, pelo procedimento comum, quando houver necessidade de alegar e provar fato novo. Na liquidação será vedado discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou (art. 509, § 4o, do novo CPC). Na liquidação pelo procedimento comum, o juiz determinará a intimação do requerido, na pessoa de seu advogado ou da sociedade de advogados a que estiver vinculado, para, querendo, apresentar contestação no prazo de 15 (quinze) dias, observando-se, a seguir, no que couber, o disposto no Livro I da Parte Especial do novo Código de Processo Civil (art. 511 do novo CPC). A liquidação poderá ser realizada na pendência de recurso, processando-se em autos apartados no juízo de origem, cumprindo ao liquidante instruir o pedido com cópias das peças processuais pertinentes (art. 512 do novo CPC). Com o advento da Lei n° 11.719/08, é possível que, na própria sentença condenatória, ocorra a fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido (CPP, art. 387, IV).200 Por ter natureza processual, esta regra estabelecida pelo art. 387, IV, do CPP, aplica-se aos processos em andamento. Afinal, tal norma modificou apenas o momento em que deve ser fixado o mencionado valor, daí por que é aplicável imediatamente às sentenças proferidas após a entrada em vigor da Lei n° 11.719/08.201

200 A fixação de um quantum determinado pelo próprio juiz criminal a título de indenização em favor da vítima não é novidade em nosso ordenamento jurídico. Com efeito, mesmo antes da reforma processual de 2008, o Código de Trânsito Brasileiro já cuidava expressamente da matéria, ao dispor sobre a chamada multa reparatória, a ser paga em favor do ofendido (Lei n9 9.503/97, art. 297). Esta multa reparatória não funciona como penalidade de natureza criminal, mas sim como verdadeira antecipação da indenização pelo dano causado pelo delito. Tanto é verdade que o art. 297, § 32, da Lei ns 9.503/97 permite o abatimento da multa reparatória do valor da indeni­ zação civil. Na mesma linha, por força da Lei n9 9.714/98, nosso Código Penal passou a regulamentar a prestação pecuniária em favor da vítima (art. 45, § l 9). De seu turno, a Lei dos crimes ambientais preceitua que a sentença penal condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido ou pelo meio ambiente (Lei n9 9.605/98, art. 20, caput). 201

STJ, 6ã Turma, REsp 1.176.708/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 12/06/2012, DJe 20/06/2012. Estranhamente, todavia, sob o argumento de que se trata de norma híbrida - de direito material e processual -, mais gravosa ao acusado, logo, irretroativa, a 59 Turma do STJ tem precedentes no sentido de que a regra do art. 387, IV, do CPP,

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Esta importante mudança permite que, doravante, o ofendido não mais seja obrigado a promover a liquidação para apuração do quantum debeatur, podendo promover, de imedia­ to, no âmbito cível, a execução do montante arbitrado na sentença condenatória transitada em julgado. No entanto, esse valor fixado pelo juiz criminal na sentença condenatória não é definitivo para a vítima. Isso porque, de acordo com o art. 63, parágrafo único, do CPP, transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do art. 387, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido. A título de exemplo, suponha-se que, em sentença condenatória referente à prática de homicídio culposo, tenha o juiz fixado o montante de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) como indenização mínima em favor dos sucessores do ofendido. Com o trânsito em julgado desta decisão, os interessados poderão promover, de imediato, no âmbito cível, a execução deste valor, sem a necessidade de anterior procedimento de liquidação. Concomitantemente, caso os sucessores entendam que este quantum ficara aquém do prejuízo efetivamente causado, poderão promover, também no juízo cível, liquidação por artigos da sentença condenatória transitada em julgado. Supondo que o prejuízo total apurado na liquidação cível irrecorrível seja de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), poderão os sucessores ingressar com nova ação de execução ex delicto, limitada, todavia, à diferença entre o valor fixado na sentença conde­ natória irrecorrível a título de indenização mínima e o quantum total apurado na liquidação civil, a exemplo do que prevê o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n° 9.503/97, art. 297, § 3o) e o Código Penal (art. 45, § Io). Logo, restará aos sucessores a execução da quantia restante de R$ 30.000,00 (trinta mil reais). Como se percebe, o mesmo título executivo ju­ dicial representado pela sentença condenatória com trânsito em julgado poderá dar ensejo, simultaneamente, à execução de valor líquido e outro ilíquido, devendo apenas esta última passar por prévia liquidação. Esta fixação do valor mínimo de indenização também deve constar de eventual sentença condenatória proferida pelo Tribunal do Júri. Por mais difícil que seja a quantificação do pre­ juízo causado à vítima, um valor mínimo a título de indenização pode ser arbitrado pelo juiz presidente, levando-se em conta, por exemplo, as despesas hospitalares custeadas pela vítima em virtude de um crime de tentativa de homicídio. A propósito, ao tratar dos requisitos da sentença condenatória no Júri, o art. 492, inciso I, “d”, do CPP, dispõe que, no caso de condenação, deverá o juiz observar as demais disposições do art. 387 do CPP, dentre as quais se encontra a fixação do valor mínimo a título de indenização - inciso IV. Trata-se, o art. 387, IV, do CPP, de requisito obrigatório da sentença penal condenatória, desde que a imputação constante da peça acusatória se refira à infração penal da qual tenha decorrido alguma espécie de prejuízo para o ofendido. Com efeito, se a infração penal não pro­ duziu qualquer prejuízo a uma vítima determinada (v.g., crimes de perigo), revela-se inviável a aplicação do referido dispositivo legal. Em situações excepcionais, caso o magistrado não tenha elementos suficientes para fixação desse montante, sequer em seu mínimo legal, poderá deixar de fazê-lo, devendo constar da sentença condenatória fundamentação expressa quanto aos motivos

aplica-se somente aos delitos praticados depois da vigência da Lei 11.719/2008: STJ, 5a Turma, REsp 1.193.083/ RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 20/08/2013, DJe 27/08/2013; STJ, Turma, REsp 1.206.635/RS, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 02/10/2012, DJe 09/10/2012. Também há precedente do Plenário do Supremo no sentido de que a fixação do valor mínimo para reparação dos danos causados pelo delito nos termos do art. 387, inciso IV, do CPP, só pode ocorrer em relação aos crimes cometidos após a vigência da Lei n^ 11.719/08 (22/08/2008): STF, Pleno, Rvc 5.437, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 17/12/2014.

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que o impossibilitaram de fixar o valor mínimo a título de indenização (v.g., complexidade da causa, ausência de provas em relação ao dano, entre outros). Como observa a doutrina, a menção a um “valor mínimo” e a possibilidade de se buscar, no âmbito cível, a complementação deste montante, não significam dizer que o juiz deva ar­ bitrar um valor meramente simbólico, como efeito da sentença condenatória por ele proferida. Na verdade, incumbe ao juiz averiguar o alcance do prejuízo causado ao ofendido para, a partir daí, arbitrar um valor que mais se aproxime do devido, propiciando, assim, uma reparação que seja satisfatória e que, ao mesmo tempo, desestimule a propositura de liquidação no cível, com toda demora e dissabores que lhe são peculiares.202 Para que esse montante seja fixado pelo juiz criminal, devem constar dos autos elementos probatórios comprovando o prejuízo sofrido pela vítima e a relação desse dano com a conduta imputada ao acusado na peça acusatória. O próprio art. 387, IV, do CPP, faz menção à fixação do valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. Por isso, ganha em importância a habilitação do ofendido como assistente da acusação, haja vista ser ele o principal interessado em municiar o juiz com elementos capazes de autorizar a quantificação da indenização que lhe é devida. Isso porque, com o processo penal em curso, não há como negar que a preocupação precípua do Ministério Público será com a prova do fato delituoso, autoria, nexo causai e elemento subjetivo. É evidente que, em se tratando de um crime patrimonial, também interessa ao Parquet a comprovação do prejuízo causado à vítima, até mesmo para fins de possível aplicação do princípio da insignificância. Todavia, em crimes não patrimoniais, como, por exemplo, crimes contra a vida, é muito provável que o Ministério Público não investigue com extrema profundidade o valor correto do prejuízo causado pela infração penal. Daí a crescente importância da intervenção da vítima no processo penal. Afinal, se a questão de índole pecuniária já pode ser resolvida no âmbito criminal, quanto melhor para o ofendido, que tem nítido interesse em municiar o juiz de elementos probatórios que permi­ tam, desde já, a fixação de valor mínimo a ser pago a título de reparação, livrando-se, assim, da necessidade de promover ulterior liquidação para apuração do dano efetivamente sofrido. Isso não significa dizer que a fixação desse valor mínimo somente será possível com a habilitação do assistente da acusação. De modo algum. Diante dos termos peremptórios do art. 387, IV, do CPP, fica evidente que, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido, o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração deve ser fixado na sentença condenatória, independentemente da habilitação do ofendido. Logo, em fiel observância a um dos escopos da reforma processual de 2008 - valorização da vítima -, caso o ofendido não tenha se habilitado como assistente, não fica o juiz proibido de se valer de sua iniciativa probatória (CPP, art. 156, II) para trazer aos autos elementos capazes de comprovar o prejuízo causado à vítima. Em outras palavras, apesar de o objetivo precípuo da instrução probatória continuar sendo a prova quanto ao fato delituoso imputado ao acusado na denúncia (ou na queixa), isso não impede que a busca da verdade também seja utilizada objetivando a colhei­ ta de elementos probatórios que permitam ao juiz aferir, ainda que parcialmente, o valor do prejuízo causado à vítima. A fixação desse valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração independe de pedido explícito, sem que se possa arguir eventual violação aos princípios do contraditório,

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GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às reform as do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 315.

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da ampla defesa e da inércia da jurisdição. Ora, mesmo antes do advento da Lei n° 11.719/08, que deu nova redação ao art. 387, IV, do CPP, o Código Penal já preceituava em seu art. 91,1, que é efeito automático de toda e qualquer sentença penal condenatória transitada em julgado sujeitar o condenado à obrigação de reparar o dano causado pelo delito. Por isso, não é neces­ sário que conste da peça acusatória tal pedido, vez que se trata de efeito genérico e automático da condenação. Aplica-se, pois, o mesmo raciocínio ao art. 387, IV, do CPP: a fixação do valor mínimo da indenização é aí colocada como parte integrante da sentença condenatória. Trata-se de efeito automático da sentença condenatória, que só não deve ser fixado pelo juiz em duas hipóteses: a) infração penal da qual não resulte prejuízo à vítima determinada; b) não compro­ vação dos prejuízos sofridos pelo ofendido.203 Em síntese, se o acusado já sabe, de antemão, que um dos efeitos da sentença condenatória transitada em julgado é a obrigação de reparar o dano causado pelo delito, e que, com a nova redação do art. 387, IV, do CPP, o título que antes era ilíquido agora passou a ser líquido, cabe a ele, no curso da instrução probatória, independentemente da formação de um incidente volta­ do especificamente à fixação desse valor, produzir as provas que reputa necessárias para tentar convencer o juiz de que, na hipótese de ser condenado, não há qualquer dano a ser indenizado. O contraditório e a ampla defesa também poderão ser exercidos pelo acusado através de even­ tual apelação. De fato, na hipótese de ser proferida sentença condenatória, com a fixação do valor mínimo de indenização, caso o acusado não concorde com o montante arbitrado pelo juiz criminal, poderá interpor uma apelação, visando à modificação da sentença.204 Em fiel observância à garantia da razoável duração do processo, o ideal é que a fixação do valor mínimo referente à indenização dos danos causados pelo delito seja objeto de capítulo próprio da sentença penal condenatória. Nesse caso, na hipótese de o condenado e a vítima en­ tenderem ser indevido o montante arbitrado pelo juiz criminal, poderão recorrer apenas contra este capítulo da sentença. Isso significa dizer que, transitando em julgado o capítulo da sentença que versa sobre a pena, será possível a expedição imediata de guia definitiva da execução, com o subsequente início do cumprimento da pena. Lado outro, caso o capítulo referente à condena­ ção seja impugnado em eventual recurso de apelação, não será possível a imediata execução do quantum fixado pelo juiz a título de indenização. Isso porque a execução desse montante está condicionado ao trânsito em julgado da sentença condenatória. 18.4.2. N a tu reza do dano cuja indenização m ín im a p o d e ser fix a d a n a sen ten ça co ndenatória

Há certa controvérsia na doutrina quanto à natureza do dano cuja indenização mínima pode ser fixada pelo juiz criminal com fundamento no art. 387, IV, do CPP.

203

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Como se pronunciou o STJ, inexistindo nos autos elementos que permitam a fixação do valor, mesmo que mínimo, para reparação dos danos causados pela infração, o pedido de indenização civil não pode prosperar, sob pena de cerceamento de defesa: STJ, 6ã Turma, REsp 1.176.708/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 12/06/2012, DJe 20/06/2012. Com entendimento diverso, todavia, há precedentes da 5ã Turma do STJ no sentido de que, para fins de fixação na sentença do valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, com base no art. 387, IV, do CPP, é necessário pedido expresso do ofendido ou do Ministério Público e a concessão de oportunidade de exercício do contraditório pelo réu: STJ, 5ã Turma, REsp 1.193.083/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 20/08/2013, DJe 27/08/2013; STJ, 5® Turma, REsp 1.248.490/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 08/05/2012, DJe 21/05/2012; STJ, 53 Turma, REsp 1.185.542/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 14/04/2011, DJe 16/05/2011. Na mesma linha: MENDONÇA, Andrey Borges. Nova reform a do Código de Processo Penal: com entada a rtigo São Paulo: Método, 2008. p. 240. Em sentido diverso, a 10ã Câmara Criminal do TJ/SP afastou a indenização fixada em sentença condenatória sob o argumento de que não houve pedido do Ministério Público ou dos ofendidos nesse sentido, não tendo sido produzida qualquer prova referente ao prejuízo sofrido pela vítima: TJSP, Apelação 99009095383-7, j. 15/10/2009.

p o r artigo.

TÍTULO 3 • AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO

Evidentemente, em se tratando de dano de natureza material, assim compreendidas as per­ das que atingem o patrimônio corpóreo de uma pessoa, não há dúvidas quanto à possibilidade de fixação pelo juízo penal do quantum devido a título de indenização. Afinal, grosso modo, o valor do prejuízo patrimonial suportado pela vítima pode ser facilmente mensurado e quanti­ ficado pelo juízo penal. Logo, em um processo relativo à prática de furto consumado, resta ao magistrado fixar o montante da indenização de acordo com o valor da res furtiva constante do laudo de avaliação. Diante da ausência de qualquer ressalva quanto ao tipo de dano ou prejuízo que pode ser ressarcido à vitima na sentença penal, há quem entenda que não é possível a fixação do dano moral pelo juízo criminal, uma vez que se trata de valor que necessita de um grande aprofunda­ mento das provas, o que poderia acarretar indevida dilação do feito, contrariando a garantia da razoável duração do processo. Parte da doutrina também entende ser inviável a fixação de lucros cessantes pelo juízo criminal. É nesse sentido a lição de Arthur da Motta Trigueiros Neto. Para o autor, como o art. 387, IV, do CPP, faz menção àfixação do valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido, depreende-se que o CPP está tratando especificamente dos danos emergentes (espécie de danos materiais), exatamente por determinar a sua fixação correspondente aos prejuízos suportados pela vítima.205 A nosso ver, como o referido dispositivo legal faz menção genérica aos danos causados pela infração, sem estabelecer qualquer restrição quanto à espécie, depreende-se que a lei não quis restringir a reparação apenas aos danos patrimoniais. De mais a mais, não se pode perder de vista que um dos escopos da reforma processual de 2008 foi exatamente o de resgatar a importância da vítima no processo penal. Por isso mesmo, visando afastar o longo caminho de liquidação da sentença penal condenatória, que antes era obrigatório, passou o art. 387, IV, do CPP, a prever que o magistrado penal já possa fixar na sentença condenatória um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido e efetivamente provados no curso do processo penal. Se esta fixação visa antecipar, ao menos em parte, o valor que seria apurado em ulterior liquidação de sentença no juízo cível, na qual toda e qualquer espécie de dano poderia ser objeto de quantificação, não há por que se negar ao juiz criminal a possibi­ lidade de quantificá-los, desde já, na própria sentença condenatória. Evidentemente, por ocasião dessa fixação, o juiz criminal deve ter a cautela de verificar se isso não irá ampliar por demais a atividade probatória acerca do dano causado pelo delito, evitando-se, assim, um possível desvio procedimental, o que poderia subverter a correta condução do processo penal para a solução da pretensão punitiva. Portanto, para além dos danos patrimoniais, aí incluídos os danos emergentes (ou positivos) e os lucros cessantes (ou negativos), parece-nos possível a fixação de valor mínimo para reparação dos danos morais e estéticos, mas desde que haja elementos probatórios que permitam a fixação desse valor.206A propósito, convém lembrar que, no âmbito cível, é firme a jurisprudência no sentido de ser lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral (súmula n° 387 do STJ). Especificamente em relação à possibilidade de fixação de danos morais na sentença, eis

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TRIGUEIROS NETO, Arthur da M otta. C o m e n tá r io s à s r e c e n te s r e f o r m a s d o C ó d ig o d e P r o c e s s o P e n a l e le g is la ç ã o extravagante correlata. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 146-147.

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Consoante nos ensina Flávio Tartuce (D ireito civil, v. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil. São Paulo: Editora Método, 2011, p. 410-434), em sentido próprio, o dano moral causa na pessoa dor, tristeza, amargura, sofrimento, angústia e depressão, ao passo que, em sentido impróprio, constitui qualquer lesão aos direitos da personalidade, como, por exemplo, à liberdade, à opção sexual, etc. Por sua vez, os danos estéticos estão pre­ sentes, em regra, quando a pessoa sofre feridas, cicatrizes, cortes superficiais ou profundos em sua pele, lesão ou perda de órgãos internos ou externos do corpo, aleijões, amputações, entre outras anomalias que atingem a própria dignidade humana.

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o teor do enunciado n° 16 do Io Fórum Nacional dos Juizes Federais Criminais (FONACRIM): “O valor mínimo para reparação dos danos causados pelo crime pode abranger danos morais”. A propósito, em recente julgado a 6a Turma do STJ207 concluiu que o juiz, ao proferir sentença penal condenatória, no momento de fixar o valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração (art. 387, IV, do CPP), pode, sentindo-se apto diante de um caso concreto, quantificar, ao menos o mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, desde que fundamente essa opção. Conquanto o CPP faça referência tão somente à apuração do dano efetivamente sofrido, não se pode perder de vista o escopo da própria alteração legislativa: promover maior eficácia ao direito da vítima em ver ressarcido o dano sofrido. Assim, considerando que a nor­ ma não limitou nem regulamentou como será quantificado o valor mínimo para a indenização e considerando que a legislação penal sempre priorizou o ressarcimento da vítima em relação aos prejuízos sofridos, o juiz que se sentir apto, diante de um caso concreto, a quantificar, ao menos o mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, não poderá ser impedido de o fazer. Na mesma linha, em recente decisão proferida no REsp 1.643.051/MS, processado sob o rito dos recursos repetitivos, a 3a Seção do STJ concluiu que, nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória. Concluiu-se que o pedido expresso por parte do Ministério Público ou da ofendida, na exordial acusatória, é, de fato, suficiente, ainda que desprovido de indicação do seu quantum, de sorte a permitir ao juízo sentenciante fixar o valor mínimo a título de reparação pelos danos morais, sem prejuízo, evi­ dentemente, de que a pessoa interessada promova, no juízo cível, pedido complementar, onde, então, será necessário produzir prova para a demonstração do valor dos danos sofridos. Quanto à questão probatória, entendeu-se que é importante destacar que no âmbito da reparação dos danos morais, a Lei Maria da Penha, complementada pela reforma do Código de Processo Penal através da Lei n. 11.719/2008, passou a permitir que o juízo único - o criminal - possa decidir sobre um montante que, relacionado à dor, ao sofrimento, à humilhação da vítima, de difícil mensuração, deriva da própria prática criminosa experimentada. Assim, não há razoabilidade na exigência de instrução probatória acerca do dano psíquico, do grau de humilhação, da diminuição da autoestima, etc, se a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e menosprezo ao valor da mulher como pessoa e à sua própria dignidade. O que se há de exigir como prova, mediante o respeito às regras do devido processo penal - notadamente as que derivam dos princípios do contraditório e da ampla defesa -, é a própria imputação crimino­ sa - sob a regra, decorrente da presunção de inocência, de que o onus probandi é integralmente do órgão de acusação porque, uma vez demonstrada a agressão à mulher, os danos psíquicos dela resultantes são evidentes e nem têm mesmo como ser demonstrados. Diante desse quadro, a simples relevância de haver pedido expresso na denúncia, a fim de garantir o exercício do con­ traditório e da ampla defesa, seria bastante para que o Juiz sentenciante, a partir dos elementos de prova que o levaram à condenação, fixasse o valor mínimo a título de reparação dos danos morais causados pela infração perpetrada, não sendo exigível produção de prova específica para aferição da profundidade e/ou extensão do dano. O merecimento à indenização é ínsito à própria condição de vítima de violência doméstica e familiar. O dano, pois, é in re ipsa.m *208 207. REsp 1.585.684/DF, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 09/08/2016, DJe 24/8/2016. 208

STJ, 33 Seção, REsp 1.643.051/MS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 28/02/2018, DJe 08/03/2018. No julga­ mento da Ação Penal n. 996/DF (Rei. Min. Edson Fachin, j. 29/05/2018), referente a parlamentar federal que foi condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de capitais, a despeito da fixação de danos materiais, a 23 Turma do STF indeferiu pedido de danos m orais coletivos.

TÍTULO 4

COMPETÊNCIA CRIMINAL CAPÍTULO I

^ "C/119AMENTAIS E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS 1. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA A vida em sociedade produz inevitáveis conflitos de interesses. Na grande maioria das ve­ zes, esses conflitos são solucionados pelas próprias partes em litígio, seja através de transações, seja por meio de renúncias e outras formas de auto composição. Ocorre que, vedada que está a autotutela (salvo em hipóteses excepcionais, como a legítima defesa, estado de necessidade e até mesmo nos casos de prisão em flagrante), caso haja resistência de uma das partes à pretensão da outra, surge a necessidade de que o Estado, através do processo, resolva esse conflito de interesses opostos, dando a cada um o que é seu e reintegrando a ordem e a paz no meio social. Desse importante mister se desincumbe o Estado por meio da jurisdição, poder-dever reflexo de sua soberania, por meio do qual, substituindo-se à vontade das partes, coativamente age em prol da segurança jurídica e da ordem social. No âmbito específico da jurisdição penal, cogita-se da resolução de um conflito intersubjetivo de interesses: por um lado, na intenção punitiva do Estado, inerente ao ius puniendi; por outro, no direito de liberdade do cidadão. Esses dois interesses traduzem, na realidade, o con­ teúdo da causa penal, que deve se limitar à verificação da materialidade de fato típico, ilícito e culpável, à determinação da respectiva autoria, e à incidência, ou não àquele, da norma penal material incriminadora.1 Como função estatal exercida precipuamente pelo Poder Judiciário, caracteriza-se a jurisdi­ ção pela aplicação do direito objetivo a um caso concreto. Como função estatal que é, a jurisdição é una (princípio da unidade da jurisdição), o que, no entanto, não significa dizer que um mesmo juiz possa processar e julgar todas as causas. Com efeito, nem todos os juizes podem julgar todas as causas, razão pela qual motivos de ordem prática obrigam o Estado a distribuir esse poder de julgar entre vários juizes e Tribunais. Dessa forma, cada órgão jurisdicional somente pode aplicar o direito objetivo dentro dos limites que lhe foram conferidos nessa distribuição. Essa distri­ buição, que autoriza e limita o exercício do poder de julgar no caso concreto, é a competência. Compreende-se a competência, por conseguinte, como a medida e o limite da jurisdição, dentro dos quais o órgão jurisdicional poderá aplicar o direito objetivo ao caso concreto. Na dicção de Vicente Greco Filho, a competência é “o poder de fazer atuar a jurisdição que tem um 1

TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal (estudo sistemático). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 51-52.

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órgão jurisdicional diante de um caso concreto. Decorre esse poder de uma delimitação prévia, constitucional e legal, estabelecida segundo critérios de especialização da justiça, distribuição territorial e divisão de serviço. A exigência dessa distribuição decorre da evidente impossibilidade de um juiz único decidir toda a massa de lides existente no universo e, também, da necessidade de que as lides sejam decididas pelo órgão jurisdicional adequado, mais apto a melhor resolvê-las”.2 2. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL O princípio do juiz natural deve ser compreendido como o direito que cada cidadão tem de saber, previamente, a autoridade que irá processar e julgá-lo caso venha a praticar uma conduta definida como infração penal pelo ordenamento jurídico. Juiz natural, ou juiz legal, dentre ou­ tras denominações, é aquele constituído antes do fato delituoso a ser julgado, mediante regras taxativas de competência estabelecidas pela lei. Visa assegurar que as partes sejam julgadas por um juiz imparcial e independente. Afinal, a necessidade de um terceiro imparcial é a razão de ser da própria existência do processo, enquanto forma de heterocomposição de conflitos, sendo inviável conceber a existência de um processo em que a decisão do feito fique a cargo de um terceiro interessado em beneficiar ou prejudicar uma das partes. Aliás, segundo o art. 8.1 do Pacto de São José da Costa Rica, todo acusado tem direito a ser julgado por um juiz independente e imparcial. Cuida-se de princípio fundamental do processo penal, instituído em prol de quem se acha submetido a um processo, impedindo o julgamento da causa por juiz ou tribunal cuja competência não esteja, previamente ao cometimento do fato delituoso, definida na Constituição Federal, valendo, assim, pelo menos para a doutrina, a regra do tempus criminis regit iudicem. Na dic­ ção do Min. Celso de Mello, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal.3 Apesar do princípio do juiz natural não constar da Constituição Federal expressamente com essas palavras, não há como negar sua sedes materiae na própria Carta Magna. O inciso XXXVII do art. 5o da Magna Carta preceitua que não haverá juízo ou tribunal de exceção. Lado outro, e de modo complementar, estabelece o art. 5o, inciso LIII, da CF, que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Não são estes, todavia, os únicos disposi­ tivos constitucionais que versam sobre o referido princípio. Com efeito, não se pode olvidar do disposto no art. 5o, XXXVIII, da CF, que estabelece ser o Tribunal do júri o juiz natural para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, assim como todas as hipóteses de foro por prerrogativa de função previstas na Constituição Federal (v.g., competência do Supremo Tribunal Federal para o processo e julgamento de parlamentares federais em relação à prática de crimes comuns). A Convenção Americana sobre Direitos Humanos também prevê que toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (art. 8o, n° 1, do Dec. 678/92). O mesmo ocorre com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado

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M a n u a l de processo penal. 7-

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STF, 2§ Turma, Rei. Min. Celso de Mello, HC 81.963/RS, DJ 28/10/2004.

ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 133.

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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pela Assembléia Geral da ONU, em Nova Iorque, em 16 de dezembro de 1996, prevendo o referido princípio em seus arts. 9.3 e 14. Do inciso XXXVII do art. 5o da Constituição Federal extrai-se a vedação aos juízos ou tribunais de exceção. Mas o que se deve entender por juízo ou tribunal de exceção? Juízo ou tribunal de exceção é aquele juízo instituído após a prática do delito com o objetivo específico de julgá-lo. Contrapõe-se, portanto, o juiz de exceção ao juiz natural, que pertence ao Judiciário e está revestido de garantias que lhe permitem exercer seu mister com objetividade, imparciali­ dade e independência. Conquanto seja vedada sua criação na Constituição Federal, há inúmeros exemplos de tribunais de exceção no plano internacional, notabilizando-se os tribunais instituídos para o julgamento dos crimes de guerra praticados na ex-Iugoslávia, Ruanda, Camboja, etc. Daí a importância da criação do Tribunal Penal Internacional em Roma, evitando-se arguição de violação ao princípio do juiz natural, na medida em que se tem um Tribunal previamente criado para o julgamento de crimes contra a humanidade, de genocídio, de guerra e de agressão. Da vedação aos juízos ou tribunais de exceção não se pode concluir que exista qualquer impedimento à criação de justiças especializadas ou de varas especializadas. Em relação a tais justiças, não se dá a criação de órgãos para julgar, de maneira excepcional, determinadas pes­ soas ou matérias. Ocorre, sim, simples atribuição a órgãos jurisdicionais inseridos na estrutura judiciária fixada na Constituição de competência para o julgamento de matérias específicas, com o objetivo de melhor atuar a norma substancial. Como anota Antônio Scarance Fernandes, embora dúplice a garantia do juiz natural (CF, art. 5o, XXXVII, LIII), manifestada com a proibição de tribunais extraordinários e com o im­ pedimento à subtração da causa ao tribunal competente, a expressão ampla dessas garantias desdobra-se em três regras de proteção: 1) só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição; 2) ninguém pode ser julgado por órgão instituído após o fato; 3) entre os juizes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja.4 Certas questões relacionadas ao princípio do juiz natural têm gerado intensa controvérsia doutrinária e jurisprudencial, razão pela qual merecem ser analisadas separadamente. Vejamo-las, em seguida. 2.1. Lei processual que altera regras de competência Um primeiro questionamento que pode surgir acerca do princípio do juiz natural diz res­ peito à entrada em vigor de lei que altere a competência e sua aplicação imediata aos processos em andamento. A despeito de posições doutrinárias em sentido diverso,5tem prevalecido na jurisprudência o entendimento de que a modificação da competência criminal, decorrente de lei que a altere em

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Processo penal constitucional. 3ã ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 127. Com entendimento semelhante: CUNHA, Leonardo José Carneiro. Jurisdição e competência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 65. Não por outro motivo, concluiu o STJ que a designação de magistrado para julgar determinada ação penal viola o princípio do juiz natural: STJ, 6§ Turma, HC 161.877/PI, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP -, j. 10/05/2011, DJe 15/06/2011.

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Ao tratar da modificação da competência, antes atribuída à Justiça ordinária, e posteriormente transferida a tribunais especializados por dispositivos constitucionais, Ada Pellegrini Grinover (2000; p. 52) não vê como não estender a garantia do juiz natural à irretroatividade da competência constitucional, de modo que a fixação desta só poderia reger os casos futuros. Na mesma linha, Tourinho Filho, ao comentar a atribuição ao Júri dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, ainda que usando armamento militar (Lei n- 9.299/96),

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razão da matéria, não viola o princípio do juiz natural, dado que, na Constituição Federal, esse primado não tem o mesmo alcance daquele previsto em constituições de países estrangeiros, que exigem seja o julgamento realizado por juízo competente estabelecido em lei anterior aos fatos, tanto que o inciso LIII do art. 5o da Carta Magna somente assegurou o processo e julgamento frente a autoridade competente, sem exigir deva o juízo ser pré-constituído ao delito a ser julgado. Para a jurisprudência, norma que altera competência tem natureza genuinamente proces­ sual. Logo, aplica-se a ela o princípio da aplicação imediata, constante do art. 2o do CPP: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Pela regra aí plasmada do tempus regit actum, entrando em vigor uma norma processual penal, tem esta aplicação imediata, o que, no entanto, não significa dizer que os atos processuais anteriormente praticados sejam inválidos. Afinal, foram praticados de acordo com a lei então vigente. Em se tratando de lei processual que venha a alterar regras de competência (v.g., a Lei n° 9.299/96 passou a considerar crime comum o homicídio doloso cometido por militar contra civil, ainda que praticado em serviço), tem prevalecido na jurisprudência o entendimento de que essa norma deve ter aplicação imediata aos processos em andamento, salvo se já houver sentença relativa ao mérito, hipótese em que o processo deve seguir na jurisdição em que ela foi prolatada, ressalvada a hipótese de supressão do Tribunal que deveria julgar o recurso,6 Em virtude do silêncio do Código de Processo Penal acerca do assunto, admite-se a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, que dispõe sobre a perpetuado jurisdictionis em seu art. 87: “determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia”. Em sen­ tido semelhante, consoante disposto no art. 43 do novo CPC, “determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta”. Como se percebe, pelo menos em regra, o processo ser concluído perante o juiz em que teve início, salvo em três situações: a) extinção do órgão judiciário - é o que ocorreu com os extintos tribunais de alçada (EC n° 45/04, art. 4o); b) alteração da competência em razão da matéria - é exatamente o que produziu a Lei n° 9.299/96, ao suprimir da Justiça Militar a competência para processar e julgar homicídio doloso praticado por militar contra civil; c) alteração da competência hierárquica - imaginando-se cidadão processado perante juiz de Ia instância que seja diplomado deputado federal, a competência passará automaticamente para o Supremo Tribunal Federal.7 Portanto, em regra, pode-se afirmar que norma processual que altera a competência tem aplicação imediata, daí não emergindo qualquer violação ao princípio do juiz natural. No en­ tanto, caso já haja sentença de mérito à época da alteração da competência de Justiça, ter-se-á

assevera que a competência da Justiça Militar, porque fixada ante focto, não podia ter sido deslocada para a Justiça Comum (Processo penal. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 70). Portanto, em matéria de competência penal, no lugar do cânone tem pus re g it actum deve valer a regra oposta: tempus crim inis re g it iudicem. 6

STF - HC 76.510/SP - 2^ Turma - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 15/05/1998 p. 44. Na mesma linha: STF - HC 78.320/SP - I s Turma - Rei. Min. Sydney Sanches - DJ 28/05/1999. No mesmo contexto: STJ, 5- Turma, HC 20.158/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 06/10/2003 p. 289.

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No sentido da possibilidade de aplicação subsidiária do art. 87 do CPC (art. 43 do novo CPC) no processo penal: STF - RHC 83.008/RJ - 2§ Turma - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 27/06/2003 p. 55. E ainda: STF - HC 89.849/ MG - l ã Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 16/02/2007 p. 49.

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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prorrogação automática e superveniente da competência da Justiça anterior, de modo que a atividade jurisdicional recursal posterior há de se basear na competência já disposta, firmada pela sentença de mérito proferida. Não obstante, como adverte Roberto Luis Luchi Demo, muita atenção deve ser dispensada ao verdadeiro conteúdo dessa norma que alterou a competência.8 E isso porque, caso a norma de alteração de competência traga, em seu bojo, certa carga penal, e essa carga for prejudicial ao acusado (lex gravior), aí não se pode falar em aplicação imediata para fins de alteração da competência, na medida em que esse raciocínio poderia implicar em retroatividade da lei penal em prejuízo do acusado, contrariando o disposto no art. 5o, XL, da Constituição Federal. Isso ocorreu quando da entrada em vigor da Lei n° 9.605/98, que tipificou algumas condutas ante­ riormente previstas como contravenções penais (e, portanto, de competência da Justiça Estadual) como crimes ambientais, com pena mais grave: tendo as condutas narradas na denúncia ocorrido na vigência da Lei n° 4.177/65, que as tipificava como contravenções penais, não se pode fazer retroagir a Lei n° 9.605/98, que as remete para o juízo federal.9 2.2. Convocação de Juizes de Io grau de jurisdição para substituição de Desembargadores Outro ponto relacionado ao princípio do juiz natural que tem gerado certa controvérsia diz respeito à convocação de juizes de Io grau de jurisdição para substituir desembargadores junto aos Tribunais, porquanto tem sido razoavelmente comum que, quando um desembargador se afasta por período superior a 30 (trinta) dias, em razão de licença ou outro motivo, proceda o Tribunal à convocação de juizes de Ia instância. Inicialmente, importa analisarmos se há previsão legal para essa substituição de desem­ bargadores, o que de fato ocorre. De acordo com o art. 118 da Lei Complementar n° 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), com redação dada pela Lei Complementar n° 54/86, em caso de vaga ou afastamento, por prazo superior a 30 (trinta) dias, de membro dos Tribunais Superiores, dos Tribunais Regionais, dos Tribunais de Justiça, poderão ser convocados Juizes, em Substituição, escolhidos por decisão da maioria absoluta do Tribunal respectivo, ou, se houver, de seu Órgão Especial. De acordo com o § Io do referido dispositivo, a convocação far-se-á mediante sorteio público dentre os Juizes da Comarca da Capital para os Tribunais de Justiça dos Estados (inciso III) e dentre os Juizes de Direito do Distrito Federal, para o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (inciso IV). No âmbito da Justiça Federal, em caráter excepcional e quando o acúmulo de serviço o exigir,o art. 4o da Lei n° 9.788/99 também autoriza os Tribunais Regionais Federais a convocar Juizes Federais para auxiliar em Segundo Grau, nos termos da Resolução n° 51, de 31 de março de 2009, do Conselho da Justiça Federal. Há dispositivos legais semelhantes nos Regimentos Internos do Supremo (arts. 40 e 41) e do Superior Tribunal de Justiça (art. 56). Para que essa convocação seja considerada válida, sem qualquer ofensa ao princípio do juiz natural, é indispensável que haja a prefixação de qual será o juiz convocado, segundo critérios objetivos predeterminados. Daí por que, ao apreciar o Habeas Corpus n° 126.390/SP, a 5a Turma do STJ concedeu a ordem para anular julgamento de apelação proferido por Tribunal a quo feito

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Competência penal o rig in á ria : um a perspectiva ju risp ru d e n cia l crítica.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

p. 118. 9

"Tendo as condutas narradas na denúncia ocorrido na vigência da Lei 4.177/65, que as tipificava como contra­ venções penais, não se pode fazer retroagir a Lei 9605/98, que as remete para o juízo federal. Irretroatividade da lei mais gravosa. Conflito conhecido, declarando-se a competência do juízo comum estadual, o suscitado". (STJ - CC 22.893/RJ Seção - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 26/04/1999 p. 43).

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com inobservância das diretrizes da LC estadual n° 646/1990, que não permite convocar juizes de primeiro grau num sistema de voluntariado, para formar novas câmaras criminais mesmo diante de inúmeros recursos pendentes de julgamento.10 Discute-se na jurisprudência acerca da possibilidade de fixação desses critérios objetivos por intermédio dos Regimentos Internos dos Tribunais. Há precedente isolado do Supremo no sentido de que a convocação de juizes de Io grau para substituir desembargadores está subordinada ao princípio da reserva legal absoluta, impedindo o tratamento do tema por meio de Regimentos Internos.11Posteriormente, no entanto, ao apreciar Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em face do art. 27 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que permitia que o juiz de Io grau em substituição fosse indicado pelo desembargador substituído, a Suprema Corte concluiu que os Regimentos Internos dos Tribunais de Justiça podem dispor a respeito da convocação de juizes para substituição de desembargadores, em caso de vaga ou afastamento, por prazo superior a trinta dias, observado o disposto no art. 118 da LOMAN, Lei Complementar 35/79 ("redação dada pela Lei Complementar 54/86). Daí por que foi declarada a inconstitucio­ nalidade da norma regimental que estabelecia que o substituído poderia indicar seu substituto.12 Se o art. 118 da LOMAN determina que a substituição deve se dar mediante singela con­ vocação de juizes, escolhidos por decisão da maioria absoluta do Tribunal ou, se houver, de seu Órgão Especial, afastados quaisquer critérios subjetivos, não se pode considerar válido dispo­ sitivo de Regimento Interno que permita ao Desembargador substituído indicar seu substituto para efeito de recrutamento. Em síntese, os Regimentos Internos dos Tribunais podem explicitar os meios para a convocação de juizes de Io grau para substituir desembargadores, desde que obedecidos os limites estabelecidos na Lei Complementar n° 35/79. Nesse caso, não há falar em violação ao princípio do juiz natural. Como o órgão competente para o julgamento da causa é o tribunal, e não o relator designado, não há, no ato de designação do juiz convocado, nenhum traço de discricionariedade capaz de comprometer a imparcialidade da decisão proferida pelo colegiado competente.13 Quanto à possibilidade de realização de julgamento por turma ou câmara de Tribunal com­ posta, em sua maioria, por juizes convocados, é dominante o entendimento no sentido de que se trata de decisão plenamente válida, desde que a convocação tenha sido feita na forma prevista em lei. Ora, é de todo incongruente limitar o poder decisório dos juizes convocados. Ademais, entendimento em sentido contrário levaria a problemas insolúveis, como no caso em que, numa câmara ou turma composta majoritariamente por desembargadores, estes divergissem, e o voto do juiz convocado decidisse a questão. Para o Supremo, a convocação de juizes de Io grau para atuar em julgamentos levados a efeito por Tribunais não ofende o princípio do juiz natural. Entre outros argumentos, consi­ dera-se que: a) a Constituição Federal assegura o direito à razoável duração do processo; b) a convocação de juizes está de acordo com o princípio do juiz natural, consubstanciado na estrita prevalência de um julgamento imparcial e isonômico para as partes, por meio de juizes toga­ dos, independentes e regularmente investidos em seus cargos; c) a integração dos juizes de Io grau nas câmaras se dá de forma aleatória, sendo os recursos distribuídos livremente entre eles,

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STJ, 5^ Turma, HC 126.390/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, julgado em 14/05/2009; STJ, 3§ Seção, HC 108.425/SP, Rei. Min. Og Fernandes - Dje 12/11/2008.

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STF, I® Turma, HC 69.601/SP, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 18/12/1992.

12

STF, Pleno, ADI 1.481/ES, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 04/06/2004.

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STF, 15 Turma, HC 86.889/SP, Rei. Min. Menezes Direito, DJe 026 14/02/2008.

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sendo que as convocações são feitas por ato oficial, prévio e público, não havendo se falar em nomeação ad hoc, daí por que tais magistrados não podem ser considerados juizes de exceção; d) ad argumentandum tantum, ainda que se considerasse que o princípio do juiz natural tivesse sido violado, haver-se-ia de se proceder a uma necessária ponderação de valores, contrastando o referido postulado com o da segurança jurídica - diante da possibilidade de se anular dezenas de milhares de decisões criminais, a maioria das quais já transitada em julgado, no sopesamento de normas com densidade axiológica equivalente, haveria de prevalecer o postulado da segu­ rança jurídica.14 Se a convocação de juizes de Io grau para substituir desembargadores em feitos ordinários tem sido admitida pelo STF e pelo STJ, especial atenção deve ser dispensada às ações penais de competência originária dos Tribunais. Em caso concreto apreciado pelo STJ relativo a julgamento de membro do Ministério Público, dos 30 membros componentes do Tribunal de Justiça da Bahia, apenas 23 votaram na sessão de julgamento, sendo 16 votos proferidos por desembargadores e 7 por juizes convocados. Como o próprio Regimento Interno daquele Tribunal estabelece a com­ petência do Tribunal Pleno para processar e julgar, originariamente, membros do MP nos crimes comuns, observando-se a presença de pelo menos dois terços de seus membros na sessão de julgamento, estão excluídos da sessão de julgamento aqueles que não são membros do Tribunal, ou seja, os juizes de primeiro grau convocados. Logo, não eram esses magistrados convocados os juizes naturais para o julgamento da referida ação penal, porquanto o membro do MP fazia jus ao direito de ser julgado por, pelo menos, dois terços dos integrantes do tribunal, isto é, por, no mínimo, 20 desembargadores. Daí por que se concluiu pela anulação do julgamento da ação penal originária, determinando-se a realização de outro pelo Tribunal Pleno composto de, pelo menos, dois terços dos desembargadores efetivos daquele Tribunal.15 3. ESPÉCIES DE COMPETÊNCIA Tradicionalmente, a doutrina costuma distribuir a competência considerando quatro aspectos diferentes: 1) ratione materiae: é aquela estabelecida em virtude da natureza da infração penal pra­ ticada (CPP, art. 69, III). É o que ocorre, por exemplo, com a competência da Justiça Militar para julgar crimes militares, da Justiça Eleitoral para julgar crimes eleitorais, do Tribunal do Júri para processar e julgar crimes dolosos contra a vida, etc.16 2) ratione funcionae: em regra, a doutrina prefere utilizar a expressão ratione personae. Todavia, queremos crer que essa espécie de competência, relativa aos casos de foro por prerro­ gativa de função, de modo algum guarda qualquer relação com a pessoa do acusado, mas sim com as funções por ele desempenhadas. Daí acharmos mais adequada a utilização da expressão ratione funcionae, que leva em consideração as funções desempenhadas pelo agente como critério para a fixação de competência (CPP, art. 69, inciso VII). Exemplos: deputados federais

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STF, Pleno, HC 96.821/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 08/04/2010. Ainda no sentido de serem válidos os julgamentos realizados pelos tribunais com juizes convocados, mesmo que estes sejam maioria na sua composi­ ção: STF, Pleno, RE 597.133/RS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, 17.11.2010; STF, 1®Turma, HC 101.473/SP, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 16/02/2016.

15

STJ, 65 Turma, HC 88.739/BA, Rei. Min. Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE), j. 15/06/2010.

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Para o STJ, "estabelecendo a Lei de Organização Judiciária local que cabe ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri processar os feitos de sua competência, mesmo antes do ajuizamento da ação penal, é nulo o processo, por crime doloso contra a vida - mesmo que em contexto de violência doméstica - que corre perante o Juizado Especial Criminal." (STJ - HC 121.214/DF - 6ã Turma - Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJe 08/06/2009).

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e senadores são julgados pelo Supremo Tribunal Federal (CF, 102, I, “b”); Governadores de Estado e Desembargadores são julgados perante o Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105,1, “a”); Juizes de Direito e Promotores de Justiça dos Estados são processados e julgados perante o respectivo Tribunal de Justiça, salvo em relação a crimes eleitorais (CF, art. 96, III). 3) ratione loci: uma vez delimitada a competência de Justiça, importa delimitarmos em qual comarca (no âmbito da Justiça Estadual) ou subseção Judiciária (no âmbito da Justiça Federal) será processado e julgado o agente. Daí a fixação da competência territorial, seja pelo lugar da infração, seja pelo domicílio ou residência do réu (CPP, art. 6 9 ,1 e II). 4) Competência funcional: é a distribuição feita pela lei entre diversos juizes da mesma instância ou de instâncias diversas para, num mesmo processo, ou em um segmento ou fase do seu desenvolvimento, praticar determinados atos.17Nesse caso, a competência é fixada confor­ me a função que cada um dos vários órgãos jurisdicionais exerce em um processo. São três as espécies de competência funcional: 4.1) Competência funcional por fase do processo: de acordo com a fase do processo, um órgão jurisdicional diferente exerce a competência. A título de exemplo, é o que acontece no procedimento bifásico do Tribunal do Júri: enquanto o juiz sumariante exerce sua competência na Ia fase (iudicium accusationis), podendo prolatar as decisões de pronúncia, impronúncia, absolvição sumária e desclassificação, o Juiz-Presidente do Tribunal do Júri exerce sua compe­ tência na 2a fase (iudicium causae), prolatando sentença condenatória ou absolutória, a depender do veredicto dos jurados. Outro exemplo seria a competência outorgada ao juiz do processo e ao juízo das execuções (arts. 65 e 66 da LEP); 4.2) Competência funcional por objeto do juízo: cada órgão jurisdicional exerce a com­ petência sobre determinadas questões a serem decididas no processo, como ocorre em juízos colegiados heterogêneos. E o que ocorre na sentença do Tribunal do Júri. Ao Conselho de Sentença compete o julgamento da existência do fato delituoso e de sua autoria, por meio de respostas aos quesitos formulados, enquanto ao juiz-presidente compete prolatar a sentença condenatória ou absolutória, de acordo com o decidido pelos jurados, fazendo a dosimetria da pena, além de decidir questões de direito que possam surgir ao longo da sessão de julgamento, tais como arguições de nulidades, suspeição, etc. Outra hipótese de divisão de competência pelo objeto do juízo é a do reconhecimento de questão prejudicial que leve à suspensão do processo penal para se aguardar a sentença de juízo cível (CPP, arts. 92 e 93); 4.3) Competência funcional por grau de jurisdição: divide a competência entre órgãos jurisdicionais superiores e inferiores. A lei, em razão da natureza do processo, distribui as causas entre órgãos judiciários que são escalonados em graus. Em tal hipótese, a competência pode ser originária (competência por prerrogativa de função) ou em razão de recurso (princípio do duplo grau de jurisdição). Por isso, um juiz de primeiro grau não pode rescindir acórdão de instância superior, mesmo na hipótese de existência de nulidade absoluta, sob pena de violação das normas processuais penais e constitucionais relativas à divisão de competência.18 A competência funcional ainda pode ser subdividida em: a) competência funcional ho­ rizontal: quando não há hierarquia entre os vários órgãos jurisdicionais, tal como ocorre, em regra, nos casos de competência funcional por fase do processo e por objeto do juízo; b) compe­ tência funcional vertical (ou hierárquica): quando há hierarquia jurisdicional entre os órgãos,

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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol. 2. 31â ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 239.

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STF, 2ã Turma, HC 110.358/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 12/06/2012.

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verificando-se por graus de jurisdição, cujo melhor exemplo seria a competência funcional por grau de jurisdição. 4. COMPETÊNCIA ABSOLUTA E RELATIVA Apesar de não haver expressa disposição legal acerca do assunto, doutrina e jurisprudência são uníssonas em dividir as espécies de competência em absoluta e relativa. 4.1. Quanto à natureza do interesse Denomina-se absoluta a hipótese de fixação de competência que tem origem em norma constitucional, apresentando como seu fundamento o interesse público na correta e adequada distribuição de Justiça. Como é o interesse público que determina a criação dessa regra de com­ petência, essa espécie de competência é indisponível às partes e se impõe com força cogente ao juiz. Logo, não admite modificações, cuidando-se de uma competência improrrogável, imodificável. A propósito, consoante disposto no art. 62 do novo CPC, a competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função é inderrogável por convenção das partes. Caso um juiz absolutamente incompetente decida determinada causa, até que sua incompe­ tência seja declarada, essa sentença não será considerada inexistente, mas sim dotada de nulidade absoluta, dependendo de pronunciamento judicial para ser desconstituída.19 Com efeito, diversamente do que sucede no direito privado, a nulidade dos atos processuais não é automática, ficando seu reconhecimento condicionado a um pronunciamento judicial, reti­ rando a eficácia do ato praticado irregularmente. Tanto é verdade essa assertiva que, no campo processual civil, a sentença de mérito proferida por juiz absolutamente incompetente consiste em motivo ensejador da ação rescisória (NCPC, art. 966, II, in fine), produzindo efeitos até que efetivamente rescindida. Se a incompetência absoluta produz uma nulidade absoluta, convém destacar as principais características dessa espécie de nulidade: a) pode ser arguida a qualquer momento, enquanto não houver o trânsito em julgado da decisão. Em se tratando de sentença condenatória ou absolutória imprópria, as nulidades absolu­ tas podem ser arguidas mesmo após o trânsito em julgado,20 na medida em que, nessa hipótese, há instrumentos processuais aptos a fazê-lo, como a revisão criminal e o habeas corpus, que somente podem ser ajuizados em favor do condenado. De se ver, então, que o único limite ao reconhecimento da incompetência absoluta refere-se à coisa julgada pro reo, diante da vedação constitucional da reformatio pro societate (revisão da sentença absolutória por iniciativa do Estado). De mais a mais, a própria Convenção Americana de Direitos Humanos preceitua que “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos” (Dec. 678/92, art. 8o, n° 4). Logo, sentença absolutória proferida por juízo incompetente é capaz de transitar em julgado e produzir seus efeitos regulares, dentre eles o de impedir novo processo pela mesma imputação. b) o prejuízo é presumido. Se a competência absoluta tem origem em norma constitucio­ nal, conclui-se que a incompetência absoluta resultará, inevitavelmente, em atentado a preceito constitucional, do que deriva o prejuízo, imprescindível para a declaração de uma nulidade 19

Em sede penal, atribui-se plena eficácia à coisa julgada, ainda quando produzida em juízo incompetente, ou mesmo à que falte jurisdição: STJ, Turma, HC 18.078/RJ, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 24/06/2002 p. 345.

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Admitindo a impetração de habeas corpus contra decisão condenatória transitada em julgado, por ser mais célere e benéfico ao paciente, além de sua impetração estar autorizada no art. 648, VI, do CPP: STF, 2^ Turma, HC 146.327/RS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 27/02/2018.

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(pas de nullité sans grief). Destarte, reconhecida a incompetência absoluta, deve o processo ser anulado ab initio. São exemplos de competências absolutas: 1) competência em razão da matéria (ex: com­ petência da Justiça Federal, Militar, Eleitoral, Estadual, etc.); 2) competência por prerrogativa de função; 3) competência funcional. Lado outro, tem-se como relativa a hipótese de fixação de competência pelas regras infraconstitucionais que atende ao interesse preponderante das partes, seja para facilitar ao autor o acesso ao Judiciário, seja para propiciar ao réu melhores oportunidades de defesa. Mesmo em se tratando de hipótese de competência relativa, sempre haverá, em certa medida, algum interesse público - não por outro motivo, no processo penal, até mesmo a incompetência relativa pode ser declarada de oficio. Todavia, terá caráter preponderante o interesse das partes, em função de, em regra, atribuir-se a elas o ônus da prova de suas alegações (CPP, art. 156, caput). Exatamente por esse motivo, essa espécie de competência admite prorrogação, ou seja, caso não seja invocada no momento oportuno, um juízo que abstratamente seria incompeten­ te para processar e julgar um feito passará a ter competência para julgá-lo no caso concreto. Eventual inobservância a uma regra de competência relativa poderá dar ensejo, no máximo, se comprovado prejuízo, a uma nulidade relativa, cujas principais características são: a) deve ser arguida oportuno tempore - em se tratando de incompetência relativa, no momento da resposta à acusação (CPP, art. 396-A, com redação dada pela Lei n° 11.719/08) -, sob pena de preclusão; b) o prejuízo deve ser comprovado.21 São exemplos de competências relativas: 1) Competência territorial, seja pelo lugar da infração, seja pelo domicílio ou residência do réu; 2) Competência por prevenção22 - vide sú­ mula n° 706 do STF: “É relativa a nulidade decorrente da inobservância da competência penal por prevenção; 3) Competência por distribuição; 4) Competência por conexão ou continência. 4.2. Quanto à arguição da incompetência A exceção de incompetência está prevista no art. 95, inciso II, do CPP. De acordo com o art. 108 do CPP, poderá ser oposta, verbalmente ou por escrito, no prazo de defesa. Esse prazo de defesa a que se refere o art. 108 do CPP, antes das alterações trazidas pela Lei n° 11.719/08, era o prazo para o oferecimento da defesa prévia, a qual era apresentada em até 3 (três) dias após o interroga­ tório (antiga redação do art. 395 do CPP). Com as alterações do procedimento comum ordinário, a exceção de incompetência deve ser oposta no prazo da resposta à acusação - 10 dias - a qual é oferecida logo após a citação pessoal ou por hora certa do acusado (CPP, art. 396-A, caput). De maneira diferente ao que ocorre no processo civil, a exceção de incompetência pode veicular tanto a incompetência absoluta quanto a relativa. Ademais, nos termos do art. I ll do CPP, as exceções serão processadas em autos apartados e não suspenderão, em regra, o andamento da ação penal. Como a incompetência absoluta e a relativa podem ser conhecidas até mesmo de ofício pelo juiz, o fato de a parte arguir a incompetência sem o fazê-lo por meio da oposição de uma exceção, quer o faça no bojo da resposta à acusação (CPP, art. 396-A), quer o faça em sede de

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No sentido de que a violação das regras de competência territorial e, portanto, relativa, é sanável e, caso não seja alegada no prazo oportuno, considera-se prorrogada em virtude da preclusão: STF, 2a Turma, HC 98.205 AgR/RJ, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 24/11/2009, DJe 232 10/12/2009. Na mesma linha: STF, ia Turma, HC 95.139/ SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 23/09/2008, DJe 84 07/05/2009.

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No sentido de que é relativa a incompetência resultante de violação às regras legais da prevenção: STF - HC 81.134/RS - 1- Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - Dje 096 05/09/2007; STF, Pleno, HC 69.599/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27/08/1993.

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memoriais (CPP, art. 403, § 3o), não impede que o magistrado conheça e aprecie a preliminar. De fato, apesar de o Código de Processo Penal valer-se do termo exceções em seu art. 95, o faz de maneira incorreta, na medida em que exceção (em sentido estrito) é a defesa que só pode ser conhecida se for alegada pela parte, tal como ocorre, no processo civil, em relação à incompetência relativa e à suspeição. Na verdade, todas as preliminares dispostas no art. 95 do CPP (suspeição, incompetência de juízo, litispendência, ilegitimidade de parte e coisa julgada) podem ser conhecidas de ofício pelo juiz como objeção, ou seja, independentemente de provo­ cação ou pedido das partes. Diversamente do que se dá no processo civil, no processo penal o juiz pode declarar de ofício tanto a incompetência absoluta quanto a relativa. Entende-se que o magistrado dispõe de competência para delimitar sua própria competência (Kompetenz-Kompetenz da doutrina cons­ titucional alemã), pouco importando se qualificada como absoluta ou relativa. Como o art. 109 do CPP não faz qualquer distinção quanto à espécie de incompetência (absoluta ou relativa), não cabe ao intérprete fazê-lo (ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus). A súmula n° 33 do STJ - “a incompetência relativa não pode ser declarada de ofício” não se aplica ao processo penal. Apesar de ser esse o entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, em alguns julgados isolados, o STJ vem reconhecendo (estranhamente) que a incompetência relativa não pode ser declarada de oficio pelo juiz nem mesmo no processo penal.23 Cuida-se de entendimento absolutamente equivocado. Na verdade, o STJ parece desconhecer sua própria jurisprudência. Isso porque a súmula n° 33 foi editada sob a ótica do processo civil. Deveras, quando se pesquisa a própria criação da súmula n° 33 do STJ, percebe-se que todos os precedentes que deram origem ao referido preceito sumular estão relacionados ao processo civil.24 No processo civil, onde estão em jogo, em regra, direitos individuais disponíveis, nada mais lógico do que não se permitir ao juiz o reconhecimento de ofício da incompetência relativa (art. 337, § 5o, do novo CPC). Porém, no processo penal, em que a competência territorial é geralmente determinada pelo local da consumação do delito, acima do interesse das partes se encontra o interesse público na busca da verdade: onde se deram os fatos é mais provável que se consigam provas idôneas que os reconstituam mais fielmente no espírito do juiz. Evidente, portanto, que o juiz criminal não irá permanecer inerte diante do oferecimento de denúncia, por exemplo, perante o juízo de Santa Maria/RS quanto a crime cometido em Rio Branco/AC. Por isso, mitiga-se, no processo penal, a diferença entre competência absoluta e relativa: mesmo esta pode ser examinada de ofício pelo juiz (CPP, art. 109), o que não acontece no cível.25 Essa apreciação da competência pelo magistrado deve anteceder a análise de todas as demais questões processuais e de mérito. Na verdade, como ressalta Leonardo José Carneiro da Cunha,26 a única questão que antecede a análise da competência é a imparcialidade: cabe ao juiz verificar, primeiramente, se é impedido ou suspeito. Caso seja, deverá reconhecer sua parcialidade, remetendo os autos ao seu substituto, que deve examinar a competência do órgão. 23

STJ, 5§ Turma, HC 95.722/BA, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 01/12/2009, DJe 01/02/2010; STJ, 5§ Turma, HC 51.101/GO, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 02/05/2006, DJ 29/05/2006 p. 277.

24

STJ, lã Seção, CC 1.506/DF, Rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 13/11/1990, DJ 19/08/1991; STJ, 1§ Seção, CC 1.519/SP, Rei. Min. limar Galvão, j. 13/11/1990, DJ 08/04/1991 p. 3.862; STJ, 2ã Seção, CC 1.589/RN, Rei. Min. Waldemar Zveiter, j. 27/02/1991, DJ 01/04/1991 p. 3.413; STJ, 1§ Seção, CC 1.496/SP, Rei. Min. Helio Mosimann, j. 13/11/1990, DJ 17/12/1990.

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Nesse sentido: Ada Pellegrini Grinover e t allí. As nulidades no processo penal. 6ã ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 43-44.

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Op. cit. p. 133.

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Assentada a imparcialidade do juiz, a este cumpre examinar a competência. Não havendo com­ petência, não deverá examinar mais nenhuma questão, determinando a imediata remessa dos autos ao juízo competente. Mas até que momento pode o juiz reconhecer de oficio sua incompetência? Evidentemente, em se tratando de incompetência absoluta, causadora de nulidade absoluta, pode esta ser reco­ nhecida de ofício enquanto o magistrado exercer jurisdição em relação à pretensão punitiva em questão. Ao juízo que já prolatou a sentença, não cabe mais investigar sua competência. Afinal, uma vez proferida a sentença, o magistrado não mais pode alterá-la, como dispõe o art. 463 do Código de Processo Civil (art. 494 do novo CPC), nem mesmo para declarar sua incompetência absoluta. Caberá à parte alegar a incompetência no âmbito recursal. Cuidando-se de incompetência relativa, sempre prevaleceu o entendimento de que o juiz poderia declinar de ofício de sua incompetência relativa até o momento da sentença, pois, uma vez proferida sua decisão, teria esgotado sua jurisdição no caso concreto. No entanto, diante da inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal pela Lei n° 11.719/08, o tema está a merecer nova análise. Com a nova redação do art. 399, § 2o, do CPP, o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Ora, imaginando-se que o juiz pudesse reconhecer de ofício sua incompetência relativa até o momento da sentença, caso assim o fizesse, remetendo os autos ao juízo competente após toda a instrução processual, este magistrado teria que renovar toda a instrução processual, a fim de que fosse respeitado o princípio da identidade física do juiz. Destarte, queremos crer que, a partir da inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal, o reconhecimento de ofício da incompetência relativa somente pode ocorrer até o início da instrução processual. Iniciada a instrução, haveria preclusão da matéria, inclusive para o magistrado. Reconhecida a incompetência absoluta ou relativa de ofício pelo juiz, o juiz recipiente, ou seja, aquele que receber os autos, não está obrigado a acatar a decisão judicial anterior. Se entender que a competência para o processo e julgamento da causa é do mesmo juízo que declinou da competência, poderá suscitar um conflito negativo de competência, nos termos do art. 114,1, c/c art. 115, III, ambos do CPR Caso conclua que a competência é de um outro juízo, também pode reconhecer sua incompetência de ofício, remetendo os autos a esse terceiro juízo. Se, no entanto, o juízo recipiente aceitar a competência, o processo retomará seu curso normal, devendo o magistrado ficar atento à necessidade de prolação de atos decisórios em substituição àqueles cuja nulidade foi reconhecida em face da incompetência (v.g., recebimento da peça acusatória). Caso o juiz decline de ofício de sua competência, ambas as partes estão legitimadas a recorrer. A via impugnativa adequada será o recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, II, do CPP.27 Por outro lado, é possível que o juiz rejeite eventual arguição de declinação de competência formulado pelo órgão Ministerial. Exemplificando, suponha-se que o órgão do MP Estadual entenda que não tem atribuição para oficiar em um determinado caso concreto, requerendo a remessa dos autos à Justiça Federal. O Juiz Estadual, todavia, discorda da manifestação minis­ terial, entendendo que possui competência para o processo e julgamento da infração penal em questão. Como esse magistrado não pode obrigar o órgão ministerial a oferecer denúncia, sob

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Em tese, as partes adversas no processo são concorrentemente legitimadas para recorrer contra a decisão do órgão jurisdicional perante o qual ajuizada a demanda, que, de ofício, decline de sua competência para conhecer dela: STF - AO 813 AgR/CE - Tribunal Pleno - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 31/08/2001).

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pena de indevida violação ao princípio da independência funcional (CF, art. 127, § Io), deve receber a manifestação do Parquet como se de arquivamento se tratasse (arquivamento indireto). Na medida em que não cabe recurso em sentido estrito contra essa decisão com fundamento no art. 581, II, do CPP, pois o juiz não está se declarando incompetente, mas sim competente, cabe ao magistrado aplicar por analogia o disposto no art. 28 do CPP, procedendo à remessa dos autos ao órgão de controle revisional no âmbito do respectivo Ministério Público (Procurador-Geral de Justiça nos Estados e Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal - art. 62 da Lei Complementar n° 75/93). Daí falar-se em pedido indireto de arquivamento, ou de arquivamento indireto. No âmbito da Justiça Militar da União, aplica-se raciocínio distinto. Explica-se: na Justiça Comum, caso o juiz se limitasse a rejeitar o pedido de declinação de competência formulado pelo órgão ministerial, deixando de aplicar por analogia o disposto no art. 28 do CPP, o inquérito policial permaneceria paralisado, na medida em que não há previsão legal de recurso contra essa decisão - acreditamos ser possível a interposição de correição parcial, na medida em que, em última análise, essa decisão judicial não deixa de ser um ato tumultuário, caracterizando error in procedendo ao deixar de aplicar o art. 28 do CPP. Em se tratando de processo em curso perante a Justiça Militar da União, entretanto, não se afigura necessária a remessa dos autos ao Procurador-Geral da Justiça Militar da União, na medida em que há previsão legal de recurso contra a decisão do Juiz Federal da Justiça Militar que rejeita arguição de incompetência. Dispõe o art. 146 do CPPM: O órgão do Ministério Pú­ blico poderá alegar a incompetência do juízo, antes de oferecer a denúncia. A arguição será apreciada pelo auditor, em primeira instância; e, no Superior Tribunal Militar, pelo relator, em se tratando de processo originário. Em ambos os casos, se rejeitada a arguição, poderá, pelo órgão do Ministério Público, ser impetrado recurso, nos próprios autos, para aquele TribunaF. Perceba-se que, ao contrário do que ocorre no processo penal comum, há previsão legal de recurso contra a decisão que rejeita a arguição de incompetência da Justiça Militar da União, recurso este a ser apreciado pelo Superior Tribunal Militar.28 Caso o STM dê provimento a esse Recurso inominado, procederá à remessa dos autos à Justiça competente; negado provimento ao recurso, determinará o retomo dos autos à primeira instância. Nessa hipótese, queremos crer que o mesmo órgão ministerial que pugnou pela declinação da competência não está obrigado a oficiar, sob pena de indevida mácula à garantia da independência funcional (CF, art. 127, § Io). Afinal, se o Promotor da Justiça Militar da União manifestou-se anteriormente pela in­ competência da Justiça Castrense, não se pode querer obrigá-lo a atuar em feito em relação ao qual já concluiu não possuir atribuições. Afigura-se indispensável, portanto, a intervenção do Procurador-Geral da Justiça Militar da União, a fim de que haja, então, a designação de outro membro do Parquet Militar para atuar no caso. 4.3. Quanto ao reconhecimento da incompetência no juízo a d q u em Em relação ao reconhecimento da incompetência no juízo ad quem, é certo dizer que, na hipótese do conhecimento da matéria ser devolvido ao Tribunal em virtude da irresignação da acusação ou da defesa (v.g., preliminar de apelação pleiteando o reconhecimento da incom­ petência), é plenamente possível que o Tribunal declare a incompetência absoluta ou relativa, 28

No âmbito da Justiça Militar dos Estados, não caberá ao Superior Tribunal Militar o julgamento desse recurso, mas sim ao Tribunal de Justiça Militar, nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, ou ao Tribu­ nal de Justiça, nos demais Estados da Federação. Nesse sentido: STF - CC 7.086/SC - Tribunal Pleno - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 27/10/2000).

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lembrando que, em relação a esta, sua arguição deve ter sido feita oportunamente na Ia instância, sob pena de já ter se operado a preclusão. Vigora, assim, a regra do tantum devolutum quantum appellatum, ou seja, tendo em conta que as partes se insurgiram quanto à incompetência, é plenamente possível que o juízo ad quem aprecie a matéria. Na verdade, a controvérsia gira em tomo da possibilidade de o Tribunal reconhecer ex officio a incompetência absoluta ao apreciar determinado recurso. Fazemos menção apenas à incompetência absoluta porque, diante do silêncio das partes quanto à incompetência relativa, operou-se a preclusão, inviabilizando o seu reconhecimento pelo Tribunal. Vejamos um exemplo: suponha-se que um crime de competência da Justiça Federal (“v.g., moeda falsa) tenha sido processado e julgado na Ia instância por um juiz estadual, em clara e evidente afronta ao princípio do juiz natural. Proferida sentença absolutória pelo juiz estadual, o Ministério Público interpõe uma apelação pleiteando apenas a condenação do acusado, porém deixa de requerer o reconhecimento da incompetência absoluta. Com os autos tramitando perante o Juízo ad quem, o Tribunal chega à conclusão de que a Justiça Estadual não tem competência para processar e julgar o referido delito, o que, na verdade, acaba por prejudicar a própria apre­ ciação do mérito recursal. Nesse caso, indaga-se: considerando que o conhecimento da matéria não foi devolvido ao juízo ad quem pela apelação ministerial, seria possível que o Tribunal reconhecesse ex officio a incompetência absoluta? Sobre o questionamento, especial atenção deve ser dispensada à súmula n° 160 do STF, segundo a qual é nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício. Por força desse preceito sumular, há quem entenda que a incompetência absoluta e a incompetência relativa só podem ser reconhecidas pelo juízo ad quem nas hipóteses em que o conhecimento da matéria for ex­ pressamente devolvido ao Tribunal em face de recurso interposto pela acusação ou nos casos de recurso de ofício. Logo, à exceção dessas hipóteses, não seria dado ao Tribunal conhecer de ofício da incompetência, sob pena de causar indevido prejuízo ao acusado.29 Com a devida vênia, o fato de o Tribunal pronunciar-se de ofício acerca da incompetência absoluta não acarreta qualquer prejuízo ao acusado, desde que observado, perante o novo juízo para o qual o processo for remetido, o princípio da non reformatio in pejus indireta. Por força desse princípio, previsto no art. 617, caput, c/c art. 626, parágrafo único, ambos do CPP, se a sentença impugnada for anulada em recurso exclusivo da defesa (ou ex officio pelo Tribunal), o juiz que vier a proferir nova decisão em substituição à anulada ficará vinculado ao máximo da pena imposta no primeiro decisum, não podendo agravar a situação do acusado. Destarte, o juiz que vier a proferir nova decisão, em substituição àquela anulada em razão da incompetência absoluta, está limitado e adstrito ao máximo da pena imposta na sentença anterior, não podendo piorar a situação do acusado, sob pena de incorrer em inadmissível reformatio in pejus indireta. Como se percebe, ainda que o conhecimento da incompetência absoluta não tenha sido de­ volvido ao Tribunal, a anulação ex officio da sentença pelo juízo ad quem não estaria acolhendo nulidade contra o acusado, mas sim a seu favor, sobretudo se considerarmos que um dos marcos interruptivos da prescrição - publicação da sentença condenatória - estaria sendo anulado. Como visto anteriormente, trata-se, a incompetência absoluta, de hipótese caracterizadora de nulidade absoluta, que pode ser conhecida mesmo após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, em grau de revisão criminal. Logo, o juízo ad quem pode reconhecer de ofício tal nulidade absoluta e decretar a ineficácia da sentença, devolvendo os autos do processo 29

STF, Pleno, HC 80.263/SP, Rei. Min. limar Galvão, DJ 27/06/2003.

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ao juízo competente, para que este prolate nova sentença, observando-se, porém, a vedação da reformatio in pejus indireta. Parte da doutrina entende não ser razoável que o juiz natural, cuja competência decorre da própria Constituição, possa estar subordinado aos limites da pena fixados em decisão absoluta­ mente nula, ainda que tal nulidade somente tenha sido conhecida a partir de recurso da defesa. Nesse contexto, Pacelli sustenta não ser possível falar-se em vedação da reformatio in pejus indireta, sob pena de fazer-se prevalecer regra legislativa de natureza ordinária (CPP, art. 617) sobre princípio de fonte constitucional.30 A despeito dessa posição, prevalece o entendimento de que, seja na hipótese de recurso exclusivo da defesa em face de sentença condenatória, seja na hipótese de reconhecimento ex officio da incompetência absoluta, é inadmissível que se imponha pena mais grave ao acusado, ainda que o decreto condenatório seja anulado por incompetência absoluta do juízo, em obser­ vância ao princípio ne reformatio in pejus. Não se admite a imposição de efeitos mais gravosos ao acusado do que aqueles que subsistiriam com o trânsito em julgado caso não tivesse recorrido. Entender-se o contrário consubstancia violação frontal à proibição da reformatio in pejus. Assim, essa sentença, apesar de ter sua nulidade declarada pelo juízo ad quem, continua produzindo um efeito jurídico, qual seja, o de estabelecer o limite máximo de pena a ser eventualmente imposta ao acusado na nova sentença prolatada pelo juízo competente.31 Nessa linha, como se manifestou o STJ, há precedentes nos dois sentidos. Uns afirmam que, por se tratar de nulidade absoluta, passível, portanto, de ser reconhecida a qualquer tempo, até mesmo de ofício, não haveria proibição quanto ao agravamento da situação do acusado em eventual condenação pelo juízo competente. Outros, contrariamente, dizem ser impossível que o juiz natural da causa imponha pena mais grave ao acusado, ainda que o decreto condenatório seja anulado por incompetência absoluta do juízo, sob pena de reformatio in pejus indireta. Apesar do dissenso, prevalece a posição no sentido de que a nova condenação deve limitar-se, como teto, à pena estabelecida pela primeira decisão. Impõe-se, assim, que a nova condenação pelo Juiz natural da causa não exceda o quantum de pena anteriormente fixado, em observância ao princípio ne reformatio in pejus?2 4.4. Quanto às conseqüências da incompetência absoluta e relativa

No que diz respeito às conseqüências da incompetência, apesar de entendimento doutrinário minoritário no sentido de que a incompetência absoluta tem o condão de implicar a inexistência do processo,33 dispõe o art. 567 do CPP que “a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quandofor declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente”. 30 31

32

33

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. l l ã ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 700. Com esse entendimento: STF - RHC 72.175/SP - Tribunal Pleno - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 18/08/2000. Na mesma linha: STJ - RHC 20.337/PB - 59 Turma - Relatora Ministra Laurita Vaz - Dje 04/05/2009. Em sentido contrário: "Segundo o entendimento já consolidado nesta Corte, sendo decretada a nulidade do processo por incompetência absoluta do Juízo, que pode ser reconhecida em qualquer tempo e grau de jurisdição, o novo decisum a ser proferido pelo Órgão judicante competente não está adstrito ao entendimento firmado no julgado anterior. Violação ao princípio ne re form atio in pejus indireta que não se reconhece". (STJ - HC 54.254/SP - 5Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 01/08/2006 p. 489). STJ, 6ã Turma, HC n9 105.384/SP, Rei. Min. Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE), j. 06/10/2009, DJe 03/11/2009. Portanto, se há apenas recurso da defesa, a sentença penal exarada por juiz incompetente tem o efeito de vincular o juízo competente em relação ao quantum da pena (non re fo rm a tio in pejus). Anote-se que o art. 617 do CPP não estabelece ressalva quanto aos casos de anulação do processo, ainda que por incompetência absoluta: STJ, 5a Turma, HC 114.729/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 21/10/2010. GRINOVER, Ada Pellegrini, e t alii. Op. cit. p. 41-59.

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Diante da redação do dispositivo em questão, prevalece o entendimento de que os atos praticados por juízo incompetente são atos nulos e não inexistentes, já que, em última análise, foram proferidos por juiz regularmente investido de jurisdição. Nessa linha, de acordo com o Supremo, os atos praticados por órgão jurisdicional constitucionalmente incompetente são atos nulos e não inexistentes, já que proferidos por juiz regularmente investido de jurisdição, que, como se sabe, é una. Assim, a nulidade decorrente de sentença prolatada com vício de incom­ petência de juízo precisa ser declarada e, embora não possua o alcance das decisões válidas, pode produzir efeitos.34 Só seria possível falar-se em inexistência jurídica do processo caso este se desenvolvesse perante pessoa que, por não estar investido no cargo judiciário, ou por já estar dele desvincula­ do, não seria considerado órgão dotado de jurisdição. Na hipótese desse não-juiz prolatar uma decisão, ainda que absolutória, desse ato não resultará nenhum efeito jurídico. Como sublinha Maria Lúcia Karam, “inexistindo uma real intervenção de um órgão estatal em situação que só aparentemente era um processo, não haveria violação do princípio do ne bis in idem na propositura de nova ação penal em que se deduzisse pretensão punitiva fundada no mesmo fato, pois, com esta nova ação penal, não se estaria renovando a persecução penal, que simplesmente não se concretizara na situação anterior”.35 O reconhecimento da incompetência no processo penal não acarreta a extinção do pro­ cesso. Como dispõe o art. 567 do CPP, a declaração da incompetência acarretará apenas a remessa dos autos ao órgão competente, salvo se o magistrado concluir pela incompetência da Justiça Brasileira, no plano internacional, quando então deverá extinguir o processo. Em regra, a incompetência é reconhecida por uma decisão interlocutória, consistindo em questão dilatória, por não implicar a extinção do processo, mas sim a remessa dos autos ao juízo competente.36 Mas qual a conseqüência do reconhecimento da incompetência? Haveria a anulação dos atos decisórios e probatórios? Ou somente os atos decisórios devem ser reputados nulos? Grande parte da doutrina entende que o art. 567 do CPP, ao se referir à anulação exclusiva dos atos decisórios, aplica-se apenas às hipóteses de incompetência relativa, na medida em que, nas hipóteses de incompetência absoluta, ter-se-ia a anulação dos atos decisórios e também dos atos probatórios.37 Não obstante o entendimento doutrinário, a jurisprudência sempre entendeu que, na esteira do que dispõe o Código de Processo Civil, em seu art. 113, § 2o {declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente), — consoante disposto no art. 64, § 4o, do novo CPC, salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente, até que outra seja pro­ ferida, se for o caso, pelo juízo competente -, mesmo para os casos de incompetência absoluta no processo penal, somente os atos decisórios seriam anulados, sendo possível, por conseguinte, a ratificação dos atos não-decisórios.38 34

STF - HC 80.263/SP - Tribunal Pleno - Rei. Min. limar Galvão - DJ 27/06/2003.

35

Competência no processo penal.

36

CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo José. Op. cit. p. 133.

37

Nesse sentido: LOPES JR., Aury. D ireito processual penal e sua conform idade constitucional. Vol. I. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris: 2008. p. 457.

38

STF - HC n9 71.278/PR, Rei. Min. Néri da Silveira, 2a Turma, julgado em 31.10.1994, DJ de 27.09.1996 e RHC n9 72.962/GO, Rei. Min. Maurício Corrêa, 2a Turma, julgado em 12.09.1995, DJ de 20.10.1995. No âmbito do STJ:

4a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 75-76.

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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Para além disso, a partir do julgamento do HC n° 83.006/SP, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir a possibilidade de ratificação pelo juízo competente inclusive quanto aos atos decisórios. Na dicção do Supremo, tanto a denúncia quanto o seu recebimento emanados de autoridades incompetentes rationae materiae são ratificáveis no juízo competente.39 Como se percebe, prevalece nos Tribunais o entendimento de que os atos probatórios não devem ser anulados no caso de reconhecimento de incompetência, sendo possível que até mesmo os atos decisórios sejam ratificados perante o juízo competente. A questão, a nosso ver, está a merecer nova reflexão por parte da jurisprudência a partir da inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal - vide nova redação dada ao art. 399, § 2o, do CPP, por força da Lei n° 11.719/08 (o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença). Ora, se doravante o juiz que presidir a instrução deve proferir a sentença, como se pode, então, admitir que a prova colhida perante juízo incompetente seja reaproveitada perante seu juízo natural? A nosso juízo, portanto, uma vez reconhecida a incompetência absoluta ou relativa, há de ser reconhecida a nulidade dos atos probatórios, renovando-se a instrução perante o juiz natural da causa, em fiel observância ao princípio da identidade física do juiz. O recebimento da denúncia ou da queixa por juízo incompetente não tem o condão de inter­ romper o curso do prazo prescricional (CP, art. 117,1), o que somente ocorrerá quando se der a ratificação da referida decisão pelo juízo competente, observada a compatibilidade procedimental. De fato, quando efetuado por órgão judiciário absolutamente incompetente, o recebimento da denúncia não se reveste de eficácia interruptiva da prescrição penal, eis que decisão nula não pode gerar a conseqüência jurídica a que se refere o art. 117,1, do Código Penal.40 Quanto ao oferecimento de nova denúncia perante o juízo competente, prevalece nos Tribu­ nais o entendimento de que não se faz necessário o oferecimento de nova peça acusatória pelo órgão do Ministério Público com atribuições para a demanda, bastando que o Parquet ratifique a peça acusatória anteriormente oferecida, com eventual aditamento que se fizer necessário (CPP, art. 569). A título de exemplo, se uma denúncia inicialmente apresentada pelo Ministério Público Estadual perante Juiz estadual for, posteriormente, ratificada pelo Ministério Público Federal, perante Juiz Federal, não há falar em eventual nulidade da sentença condenatória proferida pela Justiça Federal, sob alegação de invalidade da ratificação da denúncia. Nessa ratificação, não há necessidade de o Ministério Público competente reproduzir os termos da denúncia apresentada pelo Ministério Público incompetente, bastando que a eles se reporte.41

39

HC 37.641/MG - 6a Turma - Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa - DJ 07/11/2005 p. 388; HC 18.537/SP - 6a Turma - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 27/05/2002 p. 201. No sentido de que, reconhecida a incompetência absoluta, hão de ser declarados nulos apenas os atos decisórios proferidos pelo juízo incompetente, deixando a cargo do juízo competente a decisão quanto à anulação, ou não, dos demais atos do processo: STF, I a Turma, HC 121.189/PR, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 19/08/2014. STF —HC 83.006/SP —Tribunal Pleno —Rei. Min. Ellen Gracie - DJ 29/08/2003. No mesmo contexto: STF - HC 88.262/SP - 2a Turma - Rei. Min. Gilmar Mendes - DJ 30/03/2007. E também: STF - RE 464.894 AgR/PI - 2a Turma - Rei. Min. Eros Grau - Dje 152 14/08/2008.

40

STF - Inq. 1544 QO/PI - Tribunal Pleno - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 14/12/2001. E ainda: STJ - REsp 819.168/ PE - 5a Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 05/02/2007 p. 356; STJ - HC 10.449/SP - 5a Turma - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 20/03/2000 p. 84; STF, 2a Turma, HC 104.907/PE, Rei. Min. Celso de Mello, 10/05/2011.

41

STF - HC 70541/SP - I a Turma - Rei. Min. Sydney Sanches - DJ 18/03/1994. No sentido de que o reconhecimento da incompetência absoluta da Justiça Federal também acarreta a invalidação da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal: STF, I a Turma, HC 109.893/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 13/12/2011, DJe 043 29/02/2012.

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Na mesma linha, não é possível o processamento e julgamento no STJ de denúncia originariamente apresentada pelo Ministério Público estadual na Justiça estadual, posteriormente encaminhada à referida corte superior, se a exordial não for ratificada pelo Procurador-Geral da República ou por um dos Subprocuradores-Gerais da República, que fazem parte do Mi­ nistério Público Federal, órgão que tem legitimidade para atuar perante o STJ, nos termos dos arts. 47, § Io, e 66 da LC n° 35/1979, dos arts. 61 e 62 do RISTJ, e em respeito ao princípio do promotor natural.42 Em se tratando de órgãos do Parquet pertencentes ao mesmo Ministério Público (ex: Promo­ tores de Justiça do mesmo Estado da Federação, Procuradores da República, etc.), e de mesmo grau funcional, sequer se faz necessária a ratificação da peça acusatória, em virtude do princípio da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público (CF, art. 127, § l 0).43 Caso não haja a ratificação da peça acusatória anteriormente oferecida, nem tampouco a apresentação de nova denúncia pelo órgão ministerial, ter-se-á a inexistência do processo, haja vista a ausência de demanda, verdadeiro pressuposto processual de existência da relação pro­ cessual. A propósito, assim se manifestou a Suprema Corte, porém reconhecendo a nulidade do processo: “Uma vez reconhecida a competência da Justiça Estadual para julgar o feito, cabia a ratificação da denúncia pelo Ministério Público local ou o oferecimento de nova peça, o que, no caso, não ocorreu. Não se pode acatar o argumento do acórdão impugnado no sentido de que houve ratificação implícita da peça acusatória. Habeas corpus deferido para anular o processo a partir da denúncia, inclusive”.44 4.5. Quanto à coisa julgada nos casos de incompetência absoluta e relativa Questão que pode apresentar alguma complexidade está relacionada ao trânsito em julgado de sentença condenatória ou absolutória proferida por juiz incompetente. Em se tratando de juízo relativamente incompetente, o trânsito em julgado do decisum não apresenta maiores problemas, pois, com a prorrogação da competência, seja pela não arguição das partes oportuno tempore, seja pela não manifestação de ofício pelo juiz, não há falar em sentença proferida por juízo incompetente. Assim, não será cabível habeas corpus nem tampouco revisão criminal. Lado outro, caso a decisão tenha sido proferida por juízo absolutamente incompetente, é importante saber, a priori, se se trata de decisão absolutória, ou de decisão condenatória ou absolutória imprópria. Decisão absolutória ou extintiva da punibilidade, ainda que prolatada com suposto vício de competência, é capaz de transitar em julgado e produzir efeitos, impedindo que o acusado seja novamente processado pela mesma imputação perante a justiça competente. De fato, nas hipó­ teses de sentença absolutória ou declaratória extintiva da punibilidade, ainda que proferida por juízo incompetente, como essa decisão não é tida por inexistente, mas sim como nula, e como o ordenamento jurídico não admite revisão criminal pro societate, não será possível que o acusado seja novamente processado perante o juízo competente, sob pena de violação ao princípio do ne bis in idem, o qual impede que alguém seja processado duas vezes pela mesma imputação. Esse princípio, calha lembrar, restou consagrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos: o 42

Nesse contexto: STJ, Corte Especial, Apn 689/BA, Rei. Min. Eliana Calmon, j. 17/12/2012, DJe 15/03/2013.

43

STF - HC 85.137/MT - 1§ Turma - Rei. Min. Cezar Peluso - DJ 28/10/2005.

44

STF - HC 77.024/SC - 1® Turma - Rei. Min. limar Galvão - DJ 21/08/1998. Na mesma linha: STF - HC 68.269/ DF - is Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 09/08/1991.

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acusado absolvido por sentença passada emjulgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos (Dec. 678/92, art. 8o, n° 4).45 Noutra banda, em se tratando de sentença condenatória ou absolutória imprópria proferida por juízo absolutamente incompetente, é importante lembrar que, enquanto essa nulidade abso­ luta não for declarada como tal, esse ato processual é apto a produzir seus efeitos regulares, tais como a expedição e o cumprimento de mandado de prisão. Como adverte Vicente Greco Filho, 0 ato processual, uma vez praticado, ainda que de forma defeituosa, desde que existente, passa a produzir efeitos e os produzirá até que seja declarado inválido. Não é correto, pois, em matéria de direito processual, dizer que ato nulo não produz efeitos. Produz, sim, até que seja declarado como tal, oportunidade em que serão desfeitos os seus efeitos pelo mesmo ato declaratório. Podemos chamar esse princípio de princípio da permanência da eficácia dos atos processuais e pode assim ser resumido: o ato processual, desde que existente, ainda que defeituoso, produz os efeitos que a lei prevê para aquele tipo de ato, e os produzirá até que haja outro ato que declare aquele defeito e a ineficácia dos efeitos.46 Logo, como a sentença condenatória ou absolutória imprópria com trânsito em julgado proferida por juízo absolutamente incompetente é dotada de nulidade absoluta, a desconstituição da coisa julgada material depende do ajuizamento de revisão criminal ou da interposição de habeas corpus, lembrando que, no caso do remédio constitucional, seu cabimento estará condi­ cionado à demonstração da presença de risco atual ou iminente de constrangimento à liberdade de locomoção do condenado. 4.6. Quadro sinóptico dos regimes jurídicos das regras de incompetência absoluta e relativa |

1

COMPETÊNCIA ABSOLUTA

i

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COMPETÊNCIA RELATIVA

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Regra de competência criada com base no interesse j Regra de competência criada com base no interesse pre- i .. .. i . . . í ponderante das partes. público. A regra de competência absoluta não pode ser modifica­ da, ou seja, cuida-se de competência improrrogável ou imodificável. Nesse sentido: art. 62 do novo CPC.

A regra de competência relativa pode ser modificada, ou seja, cuida-se de competência prorrogável ou derrogável.

Incompetência absoluta é causa de nulidade absoluta: a) pode ser arguida a qualquer momento, mesmo após o trânsito em julgado (após a formação da coisa julgada somente pode ser arguida em favor do acusado, por meio de revisão criminal ou habeas corpus ); b) o prejuízo é presumido.

Incompetência relativa é causa de, no máximo, nulida­ de relativa: a) deve ser arguida no momento oportuno (resposta à acusação - CPP, art. 396-A), sob pena de preclusão; b) o prejuízo deve ser comprovado.

Pode ser reconhecida ex officio pelo magistrado, enquan­ to não esgotada sua jurisdição pela prolação da sentença.

Pode ser reconhecida ex officio pelo magistrado, porém somente até o início da instrução processual, em virtude da adoção do princípio da identidade física do juiz (CPP, art. 399, § 29). Não se aplica ao processo penal a súmula n9 33 do STJ.

Pode ser arguida por meio de exceção de incompetência. Porém, como o magistrado pode conhecê-la de ofício, nada impede que a parte aborde a incompetência ab­ soluta de outra forma.

Pode ser arguida por meio de exceção de incompetência. Porém, como o magistrado pode conhecê-la de ofício, nada impede que a parte aborde a incompetência relativa de outra forma.

45

Nessa linha: STF - HC 86.606/MS - I s Turma - Relatora Ministra Cármen Lúcia - DJE-072 - DJ 03/08/2007 p. 86.

46

Op. cit. p. 286.

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COMPETÊNCIA ABSOLUTA

COMPETÊNCIA RELATIVA

Se a competência absoluta não admite modificações, a conexão e a continência, que são causas modificativas da competência, não podem alterar uma regra de com­ petência absoluta.

Como a competência relativa admite modificações, a co­ nexão e a continência podem funcionar como critérios modificativos da competência, tornando competente para o caso concreto juiz que não o seria sem elas. Nesse sentido: art. 54 do novo CPC.

Exemplos: ra tio n e m ateriae, ra tione fun cionae e com­ petência funcional.

Exemplos: ra tio n e loci, competência por distribuição, competência por prevenção (súmula ne 706 do STF), conexão e continência.

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5. FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA CRIMINAL Ao se buscar o juízo competente para processar e julgar determinada infração penal, de­ vemos passar por várias etapas sucessivas, concretizando-se gradativamente o poder de julgar, passando do geral para o particular, do abstrato ao concreto. Supondo, assim, que uma infração penal seja praticada na comarca “X”, devemos nos perguntar, inicialmente, se a infração penal é da competência da Justiça brasileira.47 Poste­ riormente, a partir da análise da natureza da infração penal, busca-se definir a Justiça com­ petente para processar e julgar o delito. Firmada a competência de Justiça, devemo-nos perquirir se o acusado é titular de foro por prerrogativa de função. Depois, caso o acusado não faça jus ao julgamento perante um órgão superior, observa-se a competência territorial (ou de foro). Por fim, chegamos à competência de juízo, determinando-se a vara, câmara ou turma competente. Esse caminho que se percorre quando da fixação da competência pode assim ser sintetizado, parando-se na fase em que a competência estiver determinada ou prosseguindo-se até que seja devidamente fixada: 1) Competência de Justiça: qual é a Justiça competente? Tradicionalmente, a doutrina costuma dividir as Justiças em Especial e Comum. São consideradas Justiças Especiais: a) Justiça Militar (da União e dos Estados); b) Justiça Eleitoral; c) Justiça do Trabalho; d) Justiça Política (crimes de responsabilidade). Da Justiça Comum fazem parte a Justiça Comum Federal48 (geral, júri e juizados) e a Justiça Comum Estadual (geral, júri e juizados). 2) Competência originária: o acusado é titular de foro por prerrogativa de função? O acusado encontra-se no exercício de cargo ou função que o sujeite diretamente a determinado tribunal, perante o qual deva ser oferecida a peça acusatória? 3) Competência de foro ou territorial: qual o foro competente para processar e julgar a infração penal? Qual a comarca (Justiça Estadual), Seção e Subseção Judiciárias (Justiça 47

Antes de analisarmos a própria fixação da competência, impende verificar se a jurisdição brasileira pode co­ nhecer e julgar determinado fato delituoso, o que comumente é denominado competência internacional, no que a competência nacional é denominada competência interna: vide adiante item relativo à competência internacional.

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A Justiça Federal é considerada de natureza comum em virtude de julgar, em regra, crimes comuns e uma ge­ neralidade de causas cíveis que não estão sujeitas à jurisdição especializada. Não obstante, quando comparada sua competência com a da Justiça Estadual, pode-se dizer que a Justiça Federal tem um caráter especial, na medida em que sua competência é prevista de maneira expressa e específica na Constituição Federal (CF, arts. 108 e 109), enquanto que a competência da Justiça Estadual e do Distrito Federal é residual.

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Federal), Circunscrição Judiciária Militar (Justiça Militar da União) ou Zona eleitoral (Justiça Eleitoral) competente? 4) Competência de juízo: qual o juízo competente para processar e julgar a infração penal? Cabe aqui a análise acerca da possível existência de vara especializada para o julgamento do delito, tal como ocorre em relação a drogas, acidentes de trânsito, lavagem de capitais e crimes contra o sistema financeiro, etc. 5) Competência interna ou de juiz: qual o juiz ou órgão intemamente competente? Em regra, havendo juiz titular e juiz substituto em uma mesma vara, a competência é determinada a partir da distribuição. 6) Competência recursal: a qual órgão jurisdicional compete o julgamento de eventual recurso? Em regra, essa competência recursal recai sobre órgão jurisdicional superior. No entan­ to, é possível que a competência recaia sobre o mesmo órgão que prolatou a decisão recorrida (v.g., embargos de declaração). No que toca ao processo penal comum, o art. 69 do CPP estabelece os seguintes critérios de determinação da competência jurisdicional: I - o lugar da infração; II - o domicílio ou resi­ dência do réu; III - a natureza da infração; IV - a distribuição; V - a conexão ou continência; VI - a prevenção; VII - a prerrogativa de função. Lado outro, segundo o art. 85 do CPPM, a competência do juízo militar será determinada: I - de modo geral: a) pelo lugar da infração; b) pela residência ou domicílio do acusado; c) pela prevenção; II - de modo especial, pela sede do lugar de serviço. 6. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL Antes de se proceder à distribuição interna da competência criminal pelos diversos órgãos jurisdicionais, surge a indagação prévia acerca da possibilidade de o poder jurisdicional brasi­ leiro ser, ou não, competente para o exame da pretensão punitiva. Refere-se essa indagação à denominada competência internacional. Quem estabelece os limites internacionais da jurisdição de cada Estado são as normas in­ ternas desse mesmo Estado. Entretanto, como sublinha a doutrina, “o legislador não leva muito longe a jurisdição de seu país, tendo em conta principalmente duas ponderações ditadas pela experiência e pela necessidade de coexistência com outros Estados soberanos: a) a conveniên­ cia (excluem-se os conflitos irrelevantes para o Estado, porque o que lhe interessa, afinal, é a pacificação no seio da sua própria convivência social); b) a viabilidade (excluem-se os casos em que não será possível a imposição do cumprimento da sentença)”.49 No ordenamento pátrio, a competência internacional é definida pelas regras de territoria­ lidade e extraterritorialidade definidas nos arts. 5o a T do Código Penal. De acordo com a regra da territorialidade, é competente a autoridade judiciária brasileira para o processo e julgamento dos crimes cometidos no território nacional (CP, art. 5o, caput). Tem-se como território em sentido estrito o solo, o subsolo, as águas interiores, o mar territo­ rial, a plataforma continental e o espaço aéreo acima de seu território e seu mar territorial (Lei n° 7.565/86 e Lei n° 8.617/93). Considera-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se

49

CINTRA, Antônio Carlos Araújo, DINAMARCO, Cândido Rangel e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do p ro ­ cesso. 24ã ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 165

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encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar (CP, art. 5o, § Io). A mesma extensão ocorre em relação aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no territó­ rio nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil (CP, art. 5o, § 2o). Como adverte Vicente Greco Filho, “considera-se praticada num dos locais acima refe­ ridos, não só no caso de infração que neles ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, mas também se num deles se produziu ou deveria produzir-se o resultado. Com esse critério, adota o nosso sistema a chamada teoria da ubiqüidade (CP, art. 6o), que atribui competência ao Judiciário brasileiro para todas as infrações que, em qualquer das fases do iter criminis, tenham ocorrido no território nacional ou suas extensões. Esse critério é diferente do adotado para definir a competência territorial interna, que está pautada pelo local do resultado”.50 Lado outro, segundo as regras da extraterritorialidade, são da competência do Poder Ju­ diciário brasileiro, embora cometidos no estrangeiro, os crimes (CP, art. 7o, I): a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço; d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domi­ ciliado no Brasil. Da mesma forma, segundo o inciso II do art. T do CP, também ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro os crimes: a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; b) praticados por brasileiro; c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. De acordo com o art. 7o, § Io, do CP, nos casos do inciso I, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro. Por sua vez, de acordo com o art. 7o, § 2o, do CP, nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. Por fim, segundo o art. 7o, § 3o, do CP, a lei bra­ sileira aplica-se também ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as condições previstas no art. 7o, § 2o, do CP, mas desde que não tenha sido pedida ou tenha sido negada a extradição, e desde que haja requisição do Ministro da Justiça. Diversamente do que se dá em relação aos crimes à distância, em que ação e omissão ocorrem no território nacional e o resultado no estrangeiro, ou vice-versa, os crimes cometidos no estrangeiro têm sua ação (ou omissão) e resultado produzidos integralmente no estrangeiro. Mesmo assim, por força do art. 7o do Código Penal, sujeitam-se à lei penal brasileira. Em regra, nesses casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira, e desde que o delito tenha sido praticado inteiramente no exterior, sem que a conduta e o resultado tenham ocorrido no território brasileiro, a competência será da Justiça Comum Estadual, haja vista a inexistência de qualquer hipótese que atraia a competência da Justiça Federal (CF, art. 109). Na verdade, 50

Op. cit. p. 137.

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o simples fato de um crime ter sido praticado no exterior não desloca a competência para a Justiça Federal. Como será ressaltado ao tratarmos do tema competência criminal da Justiça Federal, para que a competência seja federal, dentre tantas hipóteses possíveis, imprescindível se faz que o crime seja cometido em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas (CF, art. 109, IV), ou que o crime, previsto em tratado ou convenção internacional, tenha se iniciado no território nacional, e terminado fora, ou vice-versa (CF, art. 109, V). Não se pode querer confundir a sujeição à jurisdição brasileira, determinada por força da regra da extraterritorialidade do art. T do Código Penal, com a fixação da competência de Justiça, a ser estabelecida por meio da análise das regras constitucionais. 7. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL Com as inúmeras violações de direitos humanos ocorridas a partir das primeiras décadas do século XX, notadamente com as duas grandes guerras mundiais, surgiu a ideia de um ius puniendi em nível global, buscando a instituição de uma moderna Justiça Penal Internacional. Como anota Mazzuoli, essa expressão Justiça Penal Internacional pode ser compreendida como “o aparato jurídico e o conjunto de normas instituídas pelo Direito Internacional, voltados à persecução e à repressão dos crimes perpetrados contra o próprio Direito Internacional, cuja ilicitude está prevista nas normas ou princípios do ordenamento jurídico internacional e cuja gravidade é de tal ordem e de tal dimensão, em decorrência do horror e da barbárie que deter­ minam ou pela vastidão do perigo que provocam no mundo, que passam a interessar a toda a sociedade dos Estados concomitantemente”.51 Um sensível incremento ao movimento de internacionalização e proteção dos direitos hu­ manos teve início com os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio. Por meio do Acordo de Londres, de 8 de agosto de 1945, e em evidente reação às barbáries do Holocausto, foi criado pelas nações vencedoras o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, com o objetivo de processar e julgar os criminosos de guerra do Eixo europeu, acusados de colaboração direta com o regime nazista. Também foi criado o Tribunal Militar Internacional de Tóquio, com a finalidade precípua de julgar os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade perpetrados pelas autoridades políticas e militares do Japão Imperial. Algum tempo depois, em virtude de deliberações do Conselho de Segurança das Nações Unidas, dois tribunais internacionais de caráter não-permanente também foram criados: o primeiro, com sede na Holanda, para julgar as barbáries cometidos no território da antiga Iugoslávia; o segundo, sediado na Tanzânia, para processar e julgar as violações de direitos humanos perpetradas em Ruanda. Várias críticas recaíram sobre esses tribunais, dentre elas a de que tais tribunais teriam sido criados por resoluções do Conselho de Segurança da ONU, e não por tratados internacionais multilaterais, como se deu com o Tribunal Penal Internacional. Outra crítica era no sentido de que a criação desses tribunais após a prática dos fatos delituosos {ex post facto), com o objetivo único e exclusivo de julgá-los, configuraria flagrante violação ao princípio do juiz natural.52 51

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional e o dire ito brasileiro. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. (Coleção direito e ciências afins; v. 3. Coordenação Alice Bianchini, Luiz Flávio Gomes, William Terra de Oliveira), p. 20-21.

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Na visão de Adelino Marcon (op. cit. p. 74), por exemplo, "impuseram condenações aos chefes nazistas por cri­ mes de guerra e contra a humanidade, com fundamento em leis novas com efeitos retroativos, através daquele histórico (mas execrável) 'Julgamento de Nuremberg', que foi um tribunal de exceção instalado pelos vencedores para julgarem os vencidos".

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Surgiu daí a necessidade de criação de uma instância penal internacional, de caráter per­ manente e imparcial, instituída para processar e julgar os acusados pela prática dos crimes mais graves que afetassem a comunidade internacional no seu conjunto. Assim é que, em julho de 1998, foi aprovado na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, constituindo um tribunal internacional com jurisdição criminal permanente sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, dotado de personalidade jurídica própria, com sede na Haia (Holanda). No âmbito internacional, o Tribunal Penal Internacional entrou em vigor em data de Io de julho de 2002, data esta que corresponde ao primeiro dia do mês seguinte ao termo do período de 60 dias após a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, nos termos do art. 126, § Io, do Estatuto do Tribunal.53 O governo brasileiro assinou o tratado internacional do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional em 7 de fevereiro de 2000, sendo o mesmo posteriormente aprovado pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n° 112, de 6 de junho de 2002, e promulgado pelo Presidente da República através do Decreto n° 4.388, de 25 de setembro de 2002. A carta de ratificação brasileira foi depositada em data de 20 de junho de 2002, razão pela qual, em virtude da regra constante do art. 126, n° 2, do Dec. 4.388/2002, tem-se que o Estatuto de Roma entrou em vigor no Brasil em data de Io de setembro de 2002. Em 8 de dezembro de 2004, entrou em vigor a Emenda Constitucional n° 45, reconhecendo formalmente a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, por intermédio do acréscimo do § 4o ao art. 5o da Magna Carta, segundo o qual O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. Como observa Mazzuoli, a jurisdição do Tribunal não é estrangeira, mas sim internacio­ nal, podendo afetar todo e qualquer Estado-parte da Organização das Nações Unidas. Não se confunde com a chamada jurisdição universal, que consiste na possibilidade de o Poder Judi­ ciário de determinado país julgar crimes de guerra ou crimes contra a humanidade cometidos em territórios alheios, tal qual ocorre nos casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira admitidos expressamente pelo art. 7o, incisos I e II, do Código Penal.54 Como se percebe pela leitura do art. Io do Decreto n° 4.388/02, o Tribunal Penal Interna­ cional será complementar às jurisdições penais nacionais, sendo chamado a intervir somente se e quando a justiça repressiva interna não funcionar. Adotou-se, pois, o denominado princípio da complementariedade. Daí a observação de Flávia Piovesan, que, após acentuar a responsabilidade primária dos Estados nacionais quanto ao julgamento de transgressões aos direitos humanos, assinala as condições em que se legitima o exercício, sempre em caráter subsidiário, da jurisdição pelo Tribunal Penal Internacional: “Surge o Tribunal Penal Internacional como aparato complemen­ tar às cortes nacionais, com o objetivo de assegurar o fim da impunidade para os mais graves crimes internacionais, considerando que, por vezes, na ocorrência de tais crimes, as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na realização da justiça. Afirma-se, desse modo, a res­ ponsabilidade primária do Estado com relação ao julgamento de violações de direitos humanos, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. Vale dizer, a jurisdição do Tribunal Internacional é adicional e complementar à do Estado, ficando, pois, condicionada à

53

Tribunal Penal Internacional.

Organizadores: Fauzi Hassan Choukr e Kai ambos. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2000. p. 94. 54

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Op. cit. p. 45.

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í 369

incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. O Estado tem, assim, o dever de exer­ cer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. Como enuncia o art. Io do Estatuto de Roma, a jurisdição do Tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à inca­ pacidade ou à omissão do sistema judicial interno. Dessa forma, o Estatuto busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do princípio da complementaridade e do princípio da cooperação.”55 Esse caráter complementar do Tribunal Penal Internacional pode ser extraído do art. 17 do Estatuto. Segundo o referido dispositivo (art. 17, § Io), o Tribunal decidirá sobre a não admissi­ bilidade de um caso se: a) o caso for objeto de inquérito ou de procedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou, não tenha capacidade para o fazer; b) o caso tiver sido objeto de inquérito por um Estado com jurisdição sobre ele e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer; c) a pessoa em causa já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, e não puder ser julgada pelo Tribunal em virtude do disposto no parágrafo 3o do artigo 20; d) o caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal. Por outro lado, segundo o art. 17, § 2o, do Estatuto, a fim de determinar se há ou não vontade de agir num determinado caso, o Tribunal, tendo em consideração as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, verificará a existência de uma ou mais das seguintes circunstâncias: a) o processo ter sido instaurado ou estar pendente ou a decisão ter sido proferida no Estado com o propósito de subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade cri­ minal por crimes da competência do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 5o; b) ter havido demora injustificada no processamento, a qual, dadas as circunstâncias, se mostra incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça; c) o processo não ter sido ou não estar sendo conduzido de maneira independente ou imparcial, e ter estado ou estar sendo conduzido de uma maneira que, dadas as circunstâncias, seja incompatível com a intenção de levar a pessoa em causa perante a justiça. Por fim, de acordo com o art. 17, § 3o, do Estatuto, a fim de determinar se há incapacidade de agir num determinado caso, o Tribunal verificará se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não estará em condições de fazer comparecer o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos necessários ou não estará, por outros motivos, em condições de concluir o processo. Quanto à competência do TPI, dispõe o art. 5o do Estatuto que está restrita aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. Detém o Tribunal competência para o processo e julgamento dos seguintes crimes: a) crime de genocídio; b) crimes contra a humanidade; c) crimes de guerra; d) crime de agressão. Registre-se que o Tribunal somente é dotado de competência em relação aos crimes cometidos após a sua instituição, ou seja, depois de Io de julho de 2002, data em que seu Estatuto entrou em vigor internacional. Ademais, nos termos de seu art. 11, § 2o, se um estado se tomar parte depois da entrada em vigor do Estatuto, o Tribunal só poderá exercer a sua competência em relação a crimes cometidos depois da entrada em vigor do Estatuto relativamente a esse Estado, a menos que este tenha feito uma declaração específica em sentido contrário. Desde a vigência do Estatuto de Roma para o Brasil em Io de setembro de 2002, faz-se necessária a regulamentação dos tipos penais criados pelo Estatuto de Roma e ainda não previstos

55

Direitos Humanos e o D ireito C onstitucional Internacional.

9ã ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 223-224.

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em nosso ordenamento jurídico interno. De fato, com exceção do crime de genocídio, já tipificado em lei própria (Lei n° 2.889/56), os crimes de guerra, contra a humanidade e de agressão ainda não estão previstos em nossa legislação e demandam regulamentação legal. Tendo-se presente a perspectiva da autoria dos crimes submetidos à competência jurisdicional do Tribunal Penal Internacional, convém destacar que o Estatuto de Roma submete à jurisdição dessa Alta Corte judiciária qualquer pessoa que haja incidido na prática de crimes de genocídio, de guerra, contra a humanidade ou de agressão, independentemente de sua qualida­ de oficial (Art. 27). Ao assim dispor, o Estatuto de Roma proclama a absoluta irrelevância da qualidade oficial do autor dos crimes submetidos, por referida convenção multilateral, à esfera de jurisdição e competência do Tribunal Penal Internacional. Isso significa, portanto, em face do que estabelece o Estatuto de Roma em seu Artigo 27, que a condição política de Chefe de Estado não se qualifica como causa excludente da responsabilidade penal do agente nem fator que legitime a redução da pena cominada aos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão.56 Nesse ponto, enquanto parte da doutrina sustenta a tese do caráter absoluto da soberania estatal, parte considerável da doutrina prefere conferir dimensão relativa à noção de soberania do Estado, justificando a cláusula convencional do Estatuto (art. 27) a partir da idéia de prevalência dos direitos humanos, positivada no art. 4o, II, da Magna Carta. Quanto à discussão, Carlos Eduardo Adriano Japiassú pondera que “os crimes de com­ petência do Tribunal Penal Internacional, de maneira geral, são cometidos por indivíduos que exercem determinada função estatal. Desta forma, a regra do Artigo 27 do Estatuto de Roma busca evitar que aqueles se utilizem dos privilégios e das imunidades que lhes são conferidos pelos ordenamentos internos como escudo para impedir a responsabilização em face dos cri­ mes internacionais. Por fim, entende-se que o princípio da prevalência dos direitos humanos, insculpido no Artigo 4o, II, da Constituição Federal, ‘permite implicitamente que haja restrições às imunidades usualmente concedidas a funcionários no exercício de sua atividade funcional em casos de violações a direitos humanos, não colidindo, por conseguinte, com o artigo 27 do Estatuto de Roma’.”57 Do ponto de vista pessoal, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional não alcança pessoas menores de 18 (dezoito) anos (vide art. 26 do Estatuto). Por fim, ressalte-se que o pedido de entrega (‘surrender ’) não se confunde com a demanda extradicional. Com efeito, o próprio Estatuto de Roma estabelece, em seu texto, clara distinção entre os referidos institutos - o da entrega (“surrender”/”remise”) e o da extradição -, fazendo-o, de modo preciso, nos seguintes termos: “Artigo 102 Termos Usados Para os fins do presente Estatuto: a) Por ‘entrega’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal, nos termos do presente Estatuto, b) Por ‘extradição’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado, conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.” Vê-se, daí, que, embora a entrega de determinada pessoa constitua resultado comum a ambos os institutos, considerado o contexto da cooperação internacional na repressão aos delitos, há, dentre outros, um elemento de relevo que os diferencia no plano conceituai, eis que a extradição somente pode ter por autor um Estado soberano, e não organismos internacionais, ainda que revestidos de personalidade jurídica de direito internacional público, como o Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma, Artigo 4o, n° 1). 56

STF - Pet. 4.625/República do Sudão - Rei. Min. Celso de Mello - Informativo n9 554 do STF.

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O D ireito Penal Internacional.

Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2009, p. 115-116.

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Acesso em: 12/12/2017. 96

Com entendimento semelhante: FOUREAUX, Rodrigo. Lei 13.491/17 e a ampliação da competência da Justi­ ça Militar. Disponível em: Acesso em: 12/12/2017.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Logo, como se trata de lei processual que altera regras de competência, a Lei n. 13.491/17 deve ter aplicação imediata aos processos em andamento, salvo se já houver sentença relativa ao mérito, hipótese em que o processo deve seguir na jurisdição em que ela foi prolatada, ressalvada a hipótese de supressão do Tribunal que deveria julgar o recurso.97 Enfim, como se trata de norma processual que altera a competência em razão da matéria, não se pode admitir a perpetuação da competência. Afinal, como preceitua o art. 43 do novo CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal comum e militar, “determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alte­ rarem a competência absoluta,\ Por conseqüência, se o crime praticado por militar em serviço previsto na legislação penal, outrora considerado crime comum, estava em tramitação perante a Justiça Comum (Estadual ou Federal), a entrada em vigor da Lei n. 13.491/17 deverá provocar a imediata remessa do feito à Justiça Militar da União (ou dos Estados). A ressalva a esse deslocamento imediato da competência fica por conta dos feitos nos quais, à época da vigência da Lei n. 13.491/17 (16/10/2017), já havia sentença relativa ao mé­ rito. Nesses casos, o processo deverá continuar tramitando na Justiça de origem, sob pena de violação à competência recursal. Exemplificando, se um crime previsto na Lei de Licitações cometido por militar das Forças Armadas em serviço já contava com sentença relativa ao mérito proferida pela Ia instância da Justiça Federal no dia 16 de outubro de 2017, eventual apelação deverá ser apreciada pelo respectivo Tribunal Regional Federal, jamais pelo Superior Tribunal Militar, sob pena de se admitir que o órgão de 2a instância da Justiça Militar da União funcione como Tribunal de Apelação no âmbito da Justiça Federal. Noutro giro, no caso da Justiça Mi­ litar Estadual, a controvérsia só terá relevância naqueles Estados da Federação que são dotados de Tribunal de Justiça Militar - Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo -, vez que, em relação aos demais Estados, o juízo ad quem é o mesmo para a Justiça Comum Estadual e para a Justiça Militar Estadual, qual seja, o respectivo Tribunal de Justiça. Assim, se já houvesse sen­ tença relativa ao mérito proferida pela Justiça Comum Estadual de Minas Gerais, por exemplo, pela prática de crime de porte ilegal de arma de fogo por militar estadual em serviço, eventual apelação interposta contra a referida decisão deverá ser apreciada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e não pelo Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, sob pena de violação da competência funcional por grau de jurisdição. Esse deslocamento imediato da competência à Justiça Militar (da União ou dos Estados) haverá de ser feito sem prejuízo da observância do princípio da irretroatividade da lex gravior (ou ultratividade da lei penal mais benéfica) pelo Juiz de Direito do Juízo Militar Estadual ou pelos respectivos Conselhos de Justiça. Explica-se: a depender do caso concreto, o tratamento dispensado a determinado fato de­ lituoso, se considerado crime comum, é mais benéfico sob o ponto de vista do direito material do que aquele que lhe é conferido se tratado como crime militar. Tome-se como exemplo o delito de abuso de autoridade previsto na Lei n. 4.898/65, que tem pena privativa de liberdade máxima de 6 (seis) meses (art. 6o, §3°, “b”). Antes da vigência da Lei n. 13.491/17, ainda que o referido delito fosse cometido por militar em serviço, ter-se-ia crime da competência da Justiça Comum (súmula n. 172 do STJ), porquanto referida conduta delituosa não era considerada crime militar pelo fato de não estar prevista no Código Penal Militar. Como crime comum que era na verdade, trata-se de verdadeira infração de menor potencial ofensivo, já que a pena máxima

97

Nesse contexto: STF, ia Turma, HC 78.320/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, j. 02/02/1999, DJ 28/05/1999.

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cominada não é superior a dois anos -, o autor do delito faria jus a inúmeros benefícios, tais como a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95 (v.g., transação penal, sus­ pensão condicional do processo, etc.), substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos na eventualidade de uma condenação, etc. A partir do momento em que tal conduta se transforma em crime militar, o tratamento dispensado pelo Direito Castrense material lhe é bem mais gravoso. Primeiro, porque não se admite a aplicação da Lei dos Juizados aos crimes militares (Lei n. 9.099/95, art. 90-A). Segundo, porque o Código Penal Militar não prevê a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. O que fazer, então, nessas hipóteses? Permitir que um crime militar continue sendo julgado na Justiça Comum? Não parece ser a melhor solução, sob pena de se admitir que uma mudança de competência em razão da matéria, logo, absoluta, não tenha aplicação imediata aos processos em andamento, o que viria de encontro ao princípio do juiz natural. Revela-se mais adequada, portanto, a aplicação imediata do novo regramento acerca da competência, com o conseqüente deslocamento dos feitos para a Justiça Militar, sem prejuízo da aplicação da lex mitior pelo Juiz de Direito do Juízo Militar (ou pelos Conselhos de Justiça). Assim, no exemplo acima narrado, o agente seria julgado pela Justiça Militar. Porém, faria jus a todos os benefícios do direito material acima descritos, respeitando-se, assim, o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Esse deslocamento imediato dos processos em andamento em virtude de mudança de com­ petência absoluta, porém com absoluto respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa pelo novo juízo competente, não é novidade no nosso ordenamento jurídico. Por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 9.299/96, os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares, ainda que em serviço, contra civis, foram deslocados da Justiça Militar para a Justiça Comum. A época, os Tribunais Superiores conferiram à mudança o mesmo regramento acima trabalhado, qual seja a aplicação imediata aos feitos em andamento, salvo se já houvesse sentença relativa ao mérito. Esse deslocamento da competência foi feito, todavia, com fiel observância ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Nos idos de 1995, eventual crime militar de homicídio doloso contra civil, ainda que qualificado, não era considerado hediondo, porquanto o art. 205, §2°, do CPM, não era - e ainda não é - etiquetado como tal pelo art. Io da Lei n. 8.072/90. O crime comum de homicídio qualificado, por sua vez, já era rotulado como hediondo desde o advento da Lei n. 8.930/94. Não obstante a superveniência desse tratamento penal mais gravoso, decorrente de o crime comum de homicídio qualificado se sujeitar aos di­ tames gravosos da Lei n. 8.072/90, esse fato jamais funcionou como óbice à aplicação imediata da Lei n. 9.299/96 para fins de se concluir pela manutenção da competência da Justiça Militar para eventuais crimes de homicídio qualificado cometidos por militares contra civis antes da vigência da Lei n. 9.266/96. Determinou-se, na verdade, a imediata aplicação do referido diploma normativo, com o deslocamento da competência de todos os feitos à Justiça Comum, desde que observado, perante o Tribunal do Júri, o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. Logo, se o homicídio qualificado fora praticado enquanto era crime militar, logo, não hediondo, a superveniência da Lei n. 9.266/96 acarretou o deslocamento da competência para a Justiça Comum, mas ao agente não foram aplicados os ditames gravosos da Lei n. 8.072/90. 1.23.3. (In) constitucionalidade da Lei n. 13.491/17. Durante a tramitação do Projeto de Lei n. 5.768/16, que deu origem à Lei n. 13.491/17, foi apresentado pelo Relator (Dep. Júlio Lopes), no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania, um voto de modo a acrescentar um art. 2o ao referido diploma normativo para que a mudança da competência em questão perdurasse exclusivamente até o dia 31 de dezembro de 2016. Na dicção do Relator, “em virtude da excepcionalidade da realização dos Jogos Olímpicos

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e Paraolímpicos no Rio de Janeiro, as alterações propostas pelo autor se fazem necessárias e meritórias e, para complementar a proposição, incluo na forma de um substitutivo uma cláusula de vigência até 31 de dezembro de 2016”. Por isso, quando aprovado pelo Congresso Nacional, a Lei n. 13.491/17 trazia, em seu bojo, o art. 2o, que tinha a seguinte redação: “Art. 2o. Esta Lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta Lei, retomará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada”. O dispositivo, todavia, acabou sendo vetado pelo Presidente da República Michel Temer, que apresentou suas razões nos seguintes termos: “As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5o, inciso XXXVII, da Constituição”. Exsurge daí a grande controvérsia acerca da Lei n. 13.491/17: seria possível que o Pre­ sidente da República vetasse o art. 2o da Lei n. 13.491/17, transformando uma lei temporária em permanente? A primeira vista, pode-se chegar à conclusão de que o veto apresentado pelo Presidente da República estaria em plena consonância com a Constituição Federal, notadamente com o art. 66, §2°, que prevê que o veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea. Ora, como o art. 2o foi vetado em sua integralidade, e não de maneira parcial, ter-se-ia como válido o veto do Presidente da República. De mais a mais, o veto presidencial ao art. 2o do Projeto de Lei estaria plenamente justificado diante de sua manifesta inconstitucionalidade, porquanto não se pode admitir uma mudança temporária de competência, sob pena de criação de um verdadeiro tribunal de exceção. Com a devida vênia, por mais que tenha havido o veto integral de um artigo, não nos parece possível concluir pela constitucionalidade da Lei n. 13.491/17, sob pena de se admitir que o Presidente da República modifique, por completo, aquilo que fora aprovado pelo Con­ gresso Nacional. Bem ou mal - já dissemos que andou muito mal -, fato é que o Projeto de Lei aprovado pelo Congresso previa uma mudança temporária de competência. Ao vetar o art. 2o, o Presidente da República conferiu a essa mudança uma natureza definitiva, permanente, desnaturando integralmente aquilo que fora aprovado pelo Poder Legislativo. Como observa Rodrigo Foureaux, “mutatis mutandis, é como se tivesse retirado o ‘não’ de um artigo de lei, o que muda completamente o sentido do texto”.98Admitir tamanha ingerência no processo legis­ lativo por parte do Poder Executivo caracteriza, a nosso juízo, evidente violação ao princípio da separação dos poderes (CF, art. 2o). Há de ser reconhecida, portanto, a inconstitucionalidade formal da Lei n. 13.491/17. E nesse sentido, aliás, a lição do próprio Presidente Michel Temer, senão vejamos: “Assim, o fundamento doutrinário que alicerça a concepção de que o veto parcial deve ter maior extensão suporta-se na ideia de que, vetando palavras ou conjunto de palavras, o Chefe do Executivo pode desnaturar o projeto de lei, modificando o seu todo lógico, podendo, ainda, com esse instrumento, legislar. Basta - como se disse - vetar advérbio negativo. Data vênia, não é bom esse fundamento, uma vez que: a) o todo lógico da lei pode desfigurar-se também pelo veto,

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Lei 1 3 .4 9 1 /1 7 e a am pliação da com petência da Justiça M ilita r. Disponível em: Acesso em: 12/12/2017.

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por inteiro, do artigo, do inciso, do item ou da alínea. E até com maiores possibilidades; b) se isto ocorrer - tanto em razão do veto da palavra ou de artigo - o que se verifica é usurpação de competência pelo Executivo, circunstância vedada pelo art. 2o da CF (...)”. (TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22a ed. Malheiros Editores, 2008, p. 143/144). Não obstante a aparente inconstitucionalidade da Lei n. 13.491/17, do que derivaria a conclusão no sentido de que a competência da Justiça Militar não sofreu quaisquer alterações, parece-nos que, por um critério de lealdade com o leitor do nosso Manual, o ideal é comentar o tópico competência da Justiça Militar levando-se em consideração a validade do referido diploma normativo, até mesmo porque a matéria ainda não foi objeto de análise pelos Tribunais Superiores. 1.3. (In) constitucionalidade e (in) convencionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de civis pela prática de crimes militares definidos em lei (ADPF 289). Ao contrário do que ocorre em relação à Justiça Militar Estadual, que só tem competência para julgar os militares dos Estados (CF, art. 125, §4°), o art. 124 da Constituição Federal não faz qualquer ressalva semelhante ao tratar da competência da Justiça Militar da União, daí por que se entende, pelo menos em tese, que esta teria competência para o processo e julgamento de militares e civis. Essa competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes militares praticados por civis, todavia, é objeto de grande controvérsia, que deverá ser dirimida em breve pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n° 289, ajuizada pelo Pro­ curador-Geral da República em agosto de 2013 com o objetivo de dar interpretação conforme a Constituição ao art. 9o, incisos I e III, do Código Penal Militar, para que seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz e para que tais crimes sejam submetidos a julgamento pela Justiça Comum, Federal ou Estadual, nos mesmos mol­ des da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Palamara Iribarne vs. Chile. Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm adotado uma interpretação bastante restritiva no que tange aos crimes militares cometidos por civis, somente entendendo tratar-se de crime militar da competência da Justiça Militar da União em hipóteses excepcionais, e desde que esteja presente o intuito de atingir, de qualquer modo, as Forças Armadas, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado." Nessa linha, na dicção de Maria Lúcia Karam, “o reconhecimento da configuração de crime militar em conduta realizada por quem não tem a qualidade de militar da ativa exige que a afetação de bem jurídico de titularidade das Forças Armadas esteja colocado no âmbito da intenção do agente, assim só se manifestando em hipóteses de crimes dolosos”.99100 A título de exemplo, em caso concreto relativo à imputação de crime militar de lesões corporais culposas praticado por civil contra Oficial do Exército brasileiro, então exercendo a

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No sentido de que o crime que enseja a competência da Justiça Militar, praticado por civil contra militar na situação inscrita no art. 9^, |||, "c", do CPM, é aquele que é marcado pelo intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado, daí por que mero delito de lesão culposa decorrente de acidente de trânsito deva ser julgado pela Justiça Comum: STF - CC 7.040/RS - Tribunal Pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 22/11/1996. Op. cit. p. 27.

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função de escolta de um comboio militar, a Suprema Corte concluiu pela competência da Jus­ tiça Comum, na medida em que a ação delituosa não teria afetado, ainda que potencialmente, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares, que constituem, em essência, nos delitos castrenses, os bens jurídicos penalmente tutelados.101 Exatamente por conta dessa interpretação restritiva quanto à competência da Justiça Militar da União para julgar civis é que o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se mani­ festar no sentido de que o delito de dano culposo, previsto no art. 266 do Código Penal Militar, não pode ter como sujeito ativo um civil. Na visão do Supremo, à vista da excepcionalidade e estreiteza do foro militar no julgamento de civis, o crime de dano culposo só pode ser encarado ratione personae, tendo militar como agente, pois a regra do art. 163 do CP (aplicável aos civis em geral) só concebe o dano doloso.102 Na mesma linha, deliberou recentemente pela aprovação do enunciado da súmula vinculante n. 36, segundo a qual “compete à Justiça Federal Comum processar e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação e de uso de documento falso quando se tratar de falsificação de caderneta de inscrição e registro (CIR) ou de carteira de habilitação de amador (CHA), ainda que expedidas pela Marinha do Brasil”. A competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de civis também é objeto de questionamento à luz do art. 8o, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que assegura a todo e qualquer acusado o direito de ser julgado por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial. Um dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos geralmente citado para fundamentar tal conclusão é o caso Palamara Iríbarne vs. Chile (2005), que diz respeito à responsabilidade internacional do Estado pela censura prévia imposta sobre a publicação de um livro, a apreensão de todo o material relacionado com ele, a detenção arbitrária do autor - à época dos fatos, oficial aposentado da Marinha do Chile - e a falta de um devido processo para apurar os fatos. No julgamento em questão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu, em síntese: “(...) que todos têm o direito de ser julgado por um tribunal competente, independente e imparcial. Em um Estado democrático de direito a jurisdição penal militar deve ter um al­ cance restritivo e excepcional e estar encaminhada à proteção de interesses jurídicos especiais,

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STF - HC 81.963/RS - 2a Turma - Rei. Min. Celso de Mello - Dj 28/10/2004. No sentido da competência da Justiça Comum (e não da Militar) para processar e julgar homicídio culposo imputado a civil (militar da reserva), ainda que ocorrido em local sob administração militar e com vítima militar da ativa: STF - HC 81.161/PE - l ã Turma Rei. Min. Sydney Sanches - DJ 14/12/2001. Com raciocínio semelhante: "Não há que se falar em competência da Justiça Castrense se o acidente de trânsito se deu quando o soldado já havia encerrado a missão de escolta e retornava ao quartel, não se encontrando, assim, no desempenho de função militar (alínea "d" do inciso III do art. 99 do CPM)". (STF - HC 89.592/DF - I a Turma - Rei. Min. Carlos Britto - Dj 26/04/2007).

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STF - HC 67.579 / RJ - 2a Turma - Rei. Min. Francisco Rezek - DJ 19/04/1991. No sentido da incompetência da Justiça Militar da União para processar e julgar civil acusado pela suposta prática do crime de lesão corporal culposa (CPM, art. 210, caput), porquanto ausente intenção de atingir instituição militar: STF, HC 99.671/DF, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 24/11/2009. Determinando a extinção de processo criminal instaurado contra civil pela prática de dano contra o patrimônio castrense, consistente na colisão de veículo automotor com uma viatura militar, já que ausente intenção deliberada de ofensa a bens jurídicos tipicamente associados à estruturação militar ou à função de natureza castrense: STF, HC 105.348/RS, Rei. Min. Ayres Britto, julgado em 19/10/2010. Reconhecendo a competência da Justiça Federal para processar e julgar civis acusados de pichação de edifício residencial pertencente ao Exército Brasileiro (Lei n9 9.605/98, art. 65), porquanto ausente a vontade de se atentar contra as Forças Armadas, tampouco de impedir a continuidade de eventual operação militar ou atividade genuinamente castrense: STF, 2a Turma, HC 100.230/SP, Rei. Min. Ayres Britto, j. 17/08/2010, DJe 179 23/09/2010.

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vinculados com as funções que a lei atribuiu às forças militares. Portanto, só deve julgar militares pela prática de crimes ou faltas que, por sua própria natureza, atentem contra bens jurídicos próprios da ordem militar. (...) Assim, para respeitar o direito a um juiz natural não é suficiente que esteja estabelecido previamente por lei qual o tribunal conhecerá da causa e se lhe outorgue competência. Nesse sentido, as normas penais militares devem estabelecer claramente e sem ambigüidade quem são os militares, únicos sujeitos ativos dos crimes militares (...) A jurisdição penal militar em Estados democráticos, em tempos de paz, tende a se reduzir e inclusive a de­ saparecer, por isso, se um Estado a conservar, esta deve ser mínima e inspirada nos princípios e garantias que regem o direito penal moderno. (...) A Corte tem assinalado que a aplicação da justiça militar deve estar estritamente reservada a militares em serviço ativo, ao observar o caso Cesti Hurtado vs. Peru (...) A Corte considerou que Palamara Iribame, por ser militar aposentado, não revestia a qualidade de militar necessária para ser sujeito ativo de tais delitos e, portanto, não se poderia aplicar referidas normas penais (...) A Corte concluiu que o Estado violou o art. 8.1 da Convenção, em detrimento de Palamara Iribame, por ter sido julgado por tribunais que não tinham competência, e violou a obrigação geral de respeitar e garantir direitos e liberdades disposta no art. 1.1 da Convenção (...) A estrutura organizacional da justiça militar no chile, em tempo de paz, é composta por três instâncias integradas por juizes, fiscais (promotores), auditores e secretários, que são militares em serviço ativo, pertencem a ‘um escalão especial de justiça militar’ e mantêm a sua posição de subordinação e dependência dentro da hierarquia militar. A jurisdição militar é exercida pelos Juízos institucionais, os fiscais, as Cortes Marciais e a Corte Suprema”. (...) A Corte considerou que a estrutura organizacional e composição dos tribunais militares descrita anteriormente supõem que, em geral, seus membros sejam militares em serviço ativo, estejam subordinados hierarquicamente aos superiores, razão por que a imparcialidade e independência do Tribunal eram questionáveis. (...)”. Como se percebe, conquanto a CIDH tenha reconhecido a incompetência da Justiça Militar Chilena para o processo e julgamento de civis no precedente acima citado, daí não se pode con­ cluir que idêntico raciocínio há de ser válido para a realidade brasileira. E de rigor procedermos ao distinguishing. Em primeiro lugar, diversamente do que ocorre no Chile e em outros países da América do Sul (v.g. Peru), em que a jurisdição militar é um órgão administrativo, a Justiça Militar da União no Brasil não está inserida no âmbito das Forças Armadas, mas sim dentro da estrutura do Poder Judiciário (CF, art. 92, VI e VII). Não se trata, pois, de um órgão de justiça administrativa ou uma instituição militar. Em segundo lugar, sob a ótica do art. 124 da Consti­ tuição Federal, compete à Justiça Militar da União julgar os crimes militares definidos em lei, resguardando as Forças Armadas e, por conseqüência, a soberania estatal, a lei e a ordem, pouco importando se o autor do delito é militar ou civil. Se é verdade que a Justiça Militar da União brasileira não é um órgão de justiça administra­ tiva ou uma instituição militar, mas sim civil, eis que composta por órgãos do Poder Judiciário Nacional que não têm vinculação funcional com as Forças Armadas nem tampouco com o Poder Executivo, o que justifica a preservação de sua competência para o julgamento de civis pela prática de crimes militares, também não é menos verdade que, sob a ótica do regramento nor­ mativo em vigor até o advento da Lei n. 13.774/18, esse julgamento estava afeto à competência de um Conselho de Justiça. E dizer, o civil que praticava um crime contra as Forças Armadas (v.g., roubo de um fuzil) era julgado por um órgão colegiado formado pelo então denominado Juiz-Auditor e por mais 4 (quatro) militares da ativa, vinculados ao Poder Executivo, que exerciam a função judicante apenas temporariamente - no caso dos Conselhos Permanentes, por 3 (três) meses -, o que, à evidência, maculava o princípio do juiz natural e as garantias da independência e da imparcialidade objetiva.

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Ora, se considerarmos que a justificativa para a existência dos Conselhos de Justiça, escabinatos consistente em um órgão híbrido, formado pela reunião de um juiz togado civil e quatro militares da ativa, é a de que magistrado civil utiliza de seu conhecimento jurídico e os militares de suas vivências de caserna, mormente com os valores éticos que são próprios da sociedade militar, especialmente a hierarquia e disciplina, bens jurídicos basilares protegidos pelo Direito Penal Militar, é no mínimo estranho sujeitar o civil a julgamento perante tais órgãos colegiados, já que este não está sujeito à hierarquia e à disciplina militares. Portanto, esses princípios não podem justificar que, em tempo de paz, civis possam ser julgados por um conselho majoritariamente militar.103 Enfim, não havia, sob a égide do regramento anterior à Lei n. 13.774/18, nenhuma justi­ ficativa convencional para se admitir que civis fossem julgados por um Conselho de Justiça do qual faziam parte quatro militares da ativa, subordinados ao Poder Executivo, que, por atuarem apenas de maneira temporária como juizes militares, não estavam protegidos pela inamovibilidade, permanecendo sujeitos, ademais, ao comando constante de seus superiores hierárquicos. Aliás, a própria CIDH, a partir do julgamento do Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Peru, fixou o enten­ dimento de que militares em serviço ativo não podem ser julgadores de réus acusados da prática de crimes praticados contra as próprias Forças Armadas de que são membros, porque isso preju­ dicaria a imparcialidade que deve ter o julgador, a ser objetivamente demonstrada, não deixando margem para qualquer dúvida ou desconfiança do jurisdicionado ou da sociedade. Em sentido semelhante, no caso Usón Ramirez vs. Venezuela (2009), a CIDH entendeu que a imparcialidade exige que o juiz se aproxime dos fatos carecendo, de maneira subjetiva, de todo pré-juízo e, da mesma forma, com garantias suficientes de índole objetiva que permitam banir toda dúvida que o jurisdicionado ou comunidade podem ter sobre a ausência de imparcialidade. A imparcialidade do Tribunal implica que seus integrantes não tenham um interesse direto, uma posição formada, uma preferência por alguma das partes e que não se estejam envolvidos na controvérsia. Portanto, em interpretação conforme a CF e a CADH, era crescente a corrente doutrinária que sustentava que o julgamento do acusado civil, perante a Justiça Militar da União, deveria ser realizado monocraticamente pelo então denominado Juiz-Auditor, o qual é um magistrado federal togado, concursado e civil, sem qualquer vinculação com as Forças Armadas, que é a instituição diretamente interessada na solução da causa por ter tido bens jurídicos eventualmente violados pela conduta do acusado. Essa tese acabou sendo acolhida pelo Ministro Gilmar Mendes ao proferir seu voto no HC 112.848, atualmente afetado ao Pleno do Supremo Tribunal Federal. Para o Ministro, era ne­ cessário se dar interpretação conforme a Constituição sem redução de texto às antigas redações dos arts. 16 e 26 da Lei n. 8.457/92, de modo a concluir que o civil deveria ser julgado mono­ craticamente pelo juiz togado - magistrado federal, ingresso na carreira por concurso de provas e títulos - e não mais por um Conselho de Justiça. Na dicção do Ministro, conquanto não haja óbice ao julgamento de civis pela Justiça Militar da União, revela-se pertinente o argumento de que falta independência e imparcialidade aos Conselhos de Justiça. E exatamente nesse cenário que se deve entender a grande novidade introduzida pela Lei n. 13.774/18. De modo a preservar a competência da Justiça Militar da União para o processo e

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É nesse sentido a lição de Luiz Octavio Rabelo Neto. Competência da Justiça M ilita r da União para ju lga m en to de civis: com patibilidade constitucional e com o sistema interam ericano de proteção de direitos humanos. Dis­ ponível em: http// http://stm.jus.br/images/arquivos/publicacoes/revistaJurisprudencia_2016.pdfAcesso em: 21/12/2018

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julgamento de crimes militares praticados por civis à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8o, n. 1), referido diploma normativo alterou a Lei de Organização Judiciária da Justiça Militar da União (Lei n. 8.457/92) de modo a atribuir competência monocrática ao Juiz Federal da Justiça militar para processar e julgar civis nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9o do Código Penal Militar, e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo (art. 30,1-B).104Prova disso, aliás, é a própria justificativa apresentada pelo Superior Tribunal Militar para o Projeto de Lei que deu origem à Lei n. 13.774, senão vejamos: “(...) destaca-se a necessidade do deslocamento da competência do julgamento de civis, até então submetidos ao escabinato dos Conselhos de Justiça, para o Juiz-Auditor: se por um lado é certo que a JMU não julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares defi­ nidos em lei, praticados por civis ou militares; de outro, é certo também que os civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna e, consequentemente, não podem continuar tendo duas condutas julgadas por militares. Assim, passará a julgar os civis que cometerem crime militar”. 1.4. (In) constitucionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes cometidos por ou contra militares no exercício de atribuições sub­ sidiárias das Forças Armadas (ADPF 5.032). Além da destinação à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por ini­ ciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, a Lei Complementar n° 97/99 também outorga às Forças Armadas o cumprimento de atribuições subsidiárias. Segundo o art. 15, § 7o, da Lei Complementar n° 97/99, com redação determinada pela LC n° 136/10, é considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal: a) a atuação do militar nos casos de preparo das forças armadas, assim compreendidas as atividades permanentes de planejamento, organização e articulação, instrução e adestramento, desenvolvimento de doutrina e pesquisas específicas, inteligência e estruturação das Forças Armadas, de sua logística e mobilização (LC 97/99, arts. 13 e 14); b) o emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitu­ cionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz (LC 97/99, art. 15);105 c) atribuições subsidiárias das Forças Armadas, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, de atuação, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando,

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Quanto às questões relacionadas ao direito intertemporal, são válidos aqui os mesmos comentários feitos em relação à Lei n. 13.491/17, para onde remetemos o leitor.

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De acordo com a Lei Complementar n^ 97/99, compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. Essa atuação das Forças Armadas, que deve se dar de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, limitando-se às ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal. Vale asseverar que os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal consideram-se esgotados quando, em de­ terminado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

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dentre outras, as ações de: I - patrulhamento; II - revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e III - prisões em flagrante delito (LC 97/99, art. 16-A); d) como atribuições subsidiárias particulares da Marinha, a implementação e fiscalização do cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas, assim como a cooperação com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, águas interiores e de áreas portuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução (LC 97/99, art. 17, IV e V); e) como atribuição subsidiária do Exército, a cooperação com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução (LC 97/99, art. 17-A, III); f) como atribuições subsidiárias da Aeronáutica, a cooperação com os órgãos federais, quan­ do se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, quanto ao uso do espaço aéreo e de áreas aeroportuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução, assim como a atuação, de maneira contínua e permanente, por meio das ações de controle do espaço aéreo brasileiro, contra todos os tipos de tráfego aéreo ilícito, com ênfase nos envolvidos no tráfico de drogas, armas, munições e passageiros ilegais, agindo em operação combinada com organismos de fiscalização competentes, aos quais caberá a tarefa de agir após a aterragem das aeronaves envolvidas em tráfego aéreo ilícito, podendo, na ausência destes, revistar pessoas, veículos terrestres, embarcações e aeronaves, bem como efetuar prisões em flagrante delito (LC 97/99, art. 18, VI e VII); g) a atuação das Forças Armadas, como atribuição subsidiária geral, na cooperação com o desenvolvimento nacional e a defesa civil, na forma determinada pelo Presidente da República, aí incluída a participação em campanhas institucionais de utilidade pública ou de interesse social (LC 97/99, art. 16); h) a atuação das Forças Armadas, mediante requisição do Tribunal Superior Eleitoral, para garantir a votação e a apuração (Código Eleitoral, art. 23, XIV); Se todas essas atividades são consideradas atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal, eventual crime cometido por ou contra militar no exercício dessas fun­ ções será considerado crime militar para fins de fixação da competência da Justiça Militar da União, nos exatos termos do art. 9o, II, alínea “c”, e do art. 9o, inciso III, alínea “d”, ambos do Código Penal Militar, respectivamente. O tema, todavia, também é alvo de controvérsias. De fato, por meio da ADI 5.032, questiona-se a (in) constitucionalidade da competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento dos crimes praticados por (ou contra) militares federais no exercício dessas atribuições subsidiárias das Forças Armadas - art. 15, §7°, da Lei Complementar n. 97/99. Sem embargo de opiniões em sentido contrário, não nos parece razoável o argumento de que o fato de tais atribuições serem rotuladas como subsidiárias tenha o condão de afastar a competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento dos crimes militares praticados nesses contextos. Em primeiro lugar, porque o art. 142 da Constituição Federal não faz qualquer distinção quanto às atribuições das Forças Armadas, dizendo expressamente que a Marinha, o Exército e a Aeronáutica destinam-se à defesa da Pátria, da garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem.

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Ora, se é constitucional o exercício de atividades de garantia da lei e da ordem e das sub­ sidiárias, previstas na LC 97/99, pelas Forças Armadas, parece não ser uma opção do legislador conferir à Justiça Militar a competência para o julgamento dos crimes cometidos no exercício de ações dessas naturezas, mas a positivação de uma conseqüência evidentemente natural do deferimento pelo constituinte originário de tais misteres à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica. É dizer, ou o ilícito praticado no exercício de determinada função militar a afeta negativamente e pode, por isso, ser reprimido com o direito penal militar, logo, perante a Justiça Militar, ou bem as Forças Armadas nem sequer deveriam desenvolver a função na qual praticado o crime. Revela-se no mínimo incongruente a pretensão de se impugnar apenas a conseqüência processual do suposto problema - a competência da Justiça Militar -, deixando-se de lado, todavia, a sua evidente causa - a atividade militar no campo referido. Quanto ao julgamento da ADI 5.032, o ministro Marco Aurélio (relator) julgou improce­ dente o pedido, por considerar as atividades de garantia da lei e da ordem, embora subsidiárias, atividades de natureza essencialmente militar, haja vista se destinarem à proteção da soberania nacional, mesmo que em tempos de paz. A atuação das Forças Armadas no combate à prática de ilícitos é verificada quando insuficiente a atividade das forças policiais, o que denota sua função de preservação da ordem jurídica e institucional do Estado. O ministro Edson Fachin, por sua vez, julgou procedente o pedido, pois a Constituição Federal teria optado por quadro normativo consoante com uma jurisdição restritiva em relação ao alcance da respectiva competência jurisdicional, devendo apenas os crimes militares próprios serem alcançados pela jurisdição militar. Não caberia ao legislador ordinário ou ao intérprete ampliarem a competência da Justiça Militar. Em seguida, pediu vista o ministro Roberto Barroso.106 1.5. DOS CRIMES MILITARES EM TEMPO DE PAZ 1.5.1. Do conceito de militar para fins de aplicação da lei penal militar. Antes de ingressarmos na análise de cada um dos incisos e alíneas do art. 9o, importa de­ finirmos o conceito de militar para fins de aplicação da lei penal militar. Quando o art. 9o, inciso II, alínea “a” do CPM, usa o termo “militar em situação de atividade”, refere-se ao militar da ativa,107 cujo conceito consta do Estatuto dos Militares. Segundo o art. 3o, § Io, alínea “a”, da Lei n° 6.880/80, compreende-se por militares da ativa: I) os de carreira; II) os incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar inicial, durante os prazos previstos na legislação de que trata do serviço militar, ou durante as prorrogações daqueles prazos; III) os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; IV) os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva;108V) em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas.

106

STF, Pleno, ADI 5.032/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 05/04/2018.

107

De acordo com o art. 69 do Estatuto dos Militares (Lei n9 6.880/80), são equivalentes as expressões 'na ativa', 'da ativa', 'em serviço ativo', 'em serviço na ativa', 'em serviço', 'em atividade' ou 'em atividade militar', conferidas aos militares no desempenho de cargo, comissão, encargo, incumbência ou missão, serviço ou atividade militar ou considerada de natureza militar, nas organizações militares das Forças Armadas, bem como na Presidência da República, na Vice-Presidência da República e nos demais órgãos quando previsto em lei, ou quando incorporados às Forças Armadas. O militar agregado também deve ser tratado como militar da ativa. De acordo com o art. 80 da Lei ne 6.880/80, agregação é a situação na qual o militar da ativa deixa de ocupar vaga na escala hierárquica de seu Corpo, Quadro, Arma ou Serviço, nela permanecendo sem número.

108

Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União para processar e julgar alunos regularmente matri­ culados na Escola de Especialistas da Aeronáutica, já que possuem a graduação de praças especiais, sendo, por

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Como destaca a doutrina, “a condição de militar em situação de atividade, na ativa ou no serviço ativo, inicia-se com a incorporação e deixa de existir com a passagem do militar para a inatividade ou sua exclusão da instituição militar, pelos motivos expressos na lei. Dessa forma, continua no serviço ativo o militar legalmente dispensado do exercício das funções de seu cargo militar, da efetiva prestação do serviço militar, por exemplo, em férias, trânsito, dispensa conce­ dida por superior, em licença, para tratamento da própria saúde ou de familiares, para contrair núpcias, por luto, etc. O militar recolhido ao leito, por motivo de doença, continua em situação de atividade, até que seja excluído do serviço ativo por incapacidade física”.109 Para fins de fixação da competência da Justiça Militar da União, “militar” é aquele definido pelo art. 22 do CPM: “É considerada militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar”. No que tange ao militar brasileiro em missão no estrangeiro (ex: integrante de força militar da ONU) que pratica um crime militar fora do território nacional, aplicar-se-á a lei penal militar brasileira,110 de acordo com o art. 7o do CPM. Lado outro, caso o delito praticado tenha natureza comum, o militar será julgado pela Justiça comum brasileira, nos termos do art. 7o, inciso II, alínea “b”, do Código Penal. Por outro lado, para a Justiça Militar dos Estados, militares são apenas os militares dos Estados, aí compreendidos policiais militares, policiais rodoviários estaduais e bombeiros militares estaduais.111 De uma leitura precipitada do art. 22 do CPM, poder-se-ia concluir que os militares dos Estados não poderiam responder por crimes militares previstos no Código Penal Militar, na me­ dida em que o referido artigo não os elencou na condição de militar. De fato, o art. 22 do Código Penal Militar não faz referência aos militares dos Estados, mas apenas às pessoas incorporadas às Forças Armadas, que são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica - as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares funcionam apenas como forças auxiliares e reserva do Exército (CF, art. 144, § 6o, c/c o art. 4o, inciso II, alíneas “a” e “b”, da Lei n° 6.880/80). Não obstante, não se pode perder de vista que a própria Constituição Federal, em seu art. 42, dispõe que “os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e Territórios”. Logo, para fins de fixação da competência da Justiça Militar Estadual, extrai-se o conceito de militar do art. 42 da Constituição Federal. Portanto, para fins de fixação da competência da Justiça Militar Estadual, somente são considerados militares o policial militar, o policial rodoviário estadual e o bombeiro militar. Mutatis mutandis, da mesma forma que o integrante das Forças Armadas é considerado civil perante a Justiça Militar Estadual, os militares dos Estados também são considerados civis perante a Justiça Militar da União.

isso, considerados militares em situação de atividade: STF, 29 Turma, RHC 80.122/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 06/06/2000. 109

LOBÃO, Célio. D ireito penal m ilitar. 2 9 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 121.

110

Consoante dispõe o art. 91 do Código de Processo Penal Militar, os crimes militares cometidos fora do território nacional serão, de regra, processados em Auditoria da Capital da União, leia-se, perante a l l 9 Circunscrição Judiciária Militar.

111

De acordo com a jurisprudência, ainda que o sujeito ativo e passivo sejam policiais militares e bombeiros mi­ litares de corporações pertencentes a unidades federativas diversas, ter-se-á crime de competência da Justiça Militar do Estado de origem da corporação do sujeito ativo. É nesse sentido o teor da súm ula n9 7 8 d o Superior Tribunal d e Justiça: "Compete à Justiça Militar processar e julgar policial de corporação estadual, ainda que o delito tenha sido praticado em outra unidade federativa".

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Assim, tendo em conta que a Justiça Militar dos Estados só pode julgar os militares dos Estados, compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar soldado das Forças Armadas de folga que comete crime contra policial militar em serviço, ou contra as instituições militares estaduais, na medida em que, perante a Justiça Militar dos Estados, o militar federal se coloca na mesma condição do civil. Nessa linha de raciocínio, ao apreciar conflito de competência relativo a crime de lesões corporais leves cometido por conscritos do Exército, de folga, contra policial militar, fora da área de administração militar, decidiu o Supremo Tribunal Federal tratar-se de crime comum, porquanto o art. 42 da Constituição Federal não autoriza o intérprete a concluir pela equiparação dos integrantes das Polícias Militares Estaduais aos Componentes das Forças Armadas para fins de fixação da competência criminal.112 Por outro lado, na hipótese de crime militar cometido por Policial Militar contra membro das Forças Armadas, há de se reconhecer a competência da Justiça Militar estadual, mormente quando demonstrado que o acusado pretendia menosprezar a vítima, oficial das Forças Armadas, em razão da função por ela ocupada, humilhando-a diante de outros militares federais e estaduais.113 O militar federal que praticar crime militar contra policial militar em serviço somente responderá perante a Justiça Militar da União caso esteja, por ocasião da prática delituosa, igual­ mente em serviço, exercendo atividade de natureza estritamente militar, consoante a destinação constitucional do art. 142. Os militares na inatividade são considerados civis para fins de aplicação da lei penal militar, seja quando estiverem na condição de sujeito ativo, seja quando figurarem como sujeito passivo do crime militar. Por militar na inatividade compreende-se: a) os da reserva remunerada, quando pertençam à reserva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém, sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização; b) os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber remuneração da União; c) os da reserva remunerada, e, excepcionalmente, os reformados, executando tarefa por tempo certo, segundo regulamentação para cada Força Armada.114 Obviamente, os militares na inatividade (da reserva ou reformados) permanecem responsá­ veis criminalmente pelos crimes propriamente ou impropriamente militares que tenham praticado quando ainda eram militares da ativa, levando-se em conta a qualidade que possuíam quando

112

STF - CC 7.051/SP - Tribunal Pleno - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 09/03/2001. Em caso concreto relativo à prática dos delitos de resistência, lesões leves e desacato por sargento do Exército (fora de serviço) contra soldados e cabos da Polícia Militar, também se concluiu pela competência da Justiça Comum Estadual. Em tal situação, não seria possível o julgamento pela Justiça Militar Estadual, na medida em que sua competência não se estende aos integrantes das Forças Armadas nem abrange os civis, ainda que a eles haja sido imputada a suposta prática de crimes militares contra a própria Polícia Militar do Estado ou os agentes que a compõem: STF, 2S Turma, HC 83.003/RS, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 24/04/2008. Por sua vez, o STJ já concluiu que eventual crime de desacato praticado por oficial da reserva em desfavor de policial militar é da competência da Justiça comum (STJ - CC 50.786/MG - 3® Seção - Rei. Min. Laurita Vaz - DJ 16/102/006 p. 289) e que roubo cometido por policial militar fora do exercício da função contra vítima qualificada como soldado do exército, que também não se encontrava no desempenho de seu ofício, deve ser julgado pela Justiça Comum (STJ - HC 40.241/SP - 5a Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 23/05/2005 p. 319).

113

STF, I a Turma, HC 105.844/RS, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 21/06/2011, DJe 158 17/08/2011.

114

Na visão do STJ, "o delito de falso testemunho praticado por militar reformado, em processo da competência da Justiça Militar Estadual, não caracteriza crime contra as instituições militares, por estranho ao elenco do inciso III do artigo 9s do Código Penal Militar". (STJ - CC 55.432/RS - 33 Seção - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 21/08/2006 p. 232).

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do cometimento da conduta típica (tempus delicti). Esse o motivo pelo qual, em caso concreto relativo a ex-policial militar que havia requerido sua exoneração 04 (quatro) meses antes da instauração do inquérito policial militar, concluiu o STJ que a competência da Justiça Militar Estadual deve ser fixada em função da qualidade que o agente apresentava no momento do co­ metimento do fato, não podendo ser alterada posteriormente pela situação fática da exoneração, sob pena de o acusado querer se furtar voluntariamente ao seu juízo natural.115 Destarte, conclui-se que o militar na inatividade, como sujeito ativo ou passivo de infração penal militar, é considerado civil, exceto se convocado para o serviço ativo, ou caso o crime tenha sido cometido quando ainda estava na ativa. Logo, considerando que a Justiça Militar Estadual não tem competência para processar e julgar civis (aí incluído o militar reformado ou da reserva), eventual crime de injúria praticado por policial militar reformado contra militares estaduais deve ser processado e julgado perante a Justiça Comum.116 Porém, é bom ressaltar que, apesar de serem considerados civis para fins de aplicação do art. 9o do CPM, seja em relação aos crimes por eles praticados, seja em relação aos crimes contra eles praticados, o militar da reserva, ou reformado, conserva as responsabilidades e prerrogativas do posto ou graduação, para o efeito da aplicação da lei penal militar, quando pratica ou contra ele é praticado crime militar (art. 13 do CPM). Explica-se: caso um militar da reserva pratique lesões corporais contra um militar reformado, esse crime terá natureza comum, na medida em que ambos são considerados civis para fins de tipificação do crime militar (art. 9odo CPM). Todavia, caso esse militar da reserva pratique esse mesmo delito contra um militar da ativa em um Quartel do Exército, ter-se-á crime militar de lesões corporais (art. 209, caput, c/c art. 9o, inciso III, alínea “b”, ambos do CPM), hipótese em que esse militar da reserva deverá receber tratamento compatível com o posto que ocupava antes de entrar para a reserva, destacando-se, dentre as prerrogativas, o direito do oficial à prisão especial (art. 242, alínea “f ’, do CPPM) e o direito a ser processado e julgado por um Conselho Especial de Justiça, em razão do que dispõe o art. 13 do Código Penal Militar. Em síntese, podemos assim resumir quem é considerado, ou não, militar para efeitos de aplicação da Lei Penal Castrense, pela Justiça Militar da União e pela Justiça Militar Estadual: a) Militar Federal: o militar regularmente incorporado às Forças Armadas é considerado militar para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União. Para esse fim, somente ele é considerado militar; b) Militar federal na inatividade (na reserva ou reformado): considerado civil para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União, ressalvados os crimes cometidos antes de passar para a inatividade; c) Militar Estadual (integrante da Polícia Militar, da Polícia Rodoviária Estadual e do Corpo de Bombeiros Militares): para fins de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União, o militar é considerado civil. Daí por que, em caso concreto relativo à Sargento da Polícia Militar que disparou, culposamente, arma de fogo, causando lesões corporais em Capitão do Exército Brasileiro, dentro de unidade militar federal, o STJ reconheceu ter havido a prática de crime impropriamente militar de lesão corporal, concluindo pela competência da Justiça Militar da União;117

115 STJ - RHC 20.348/SC - 6^ Turma - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - Dje 01/09/2008. 116

STJ, 6ã Turma, HC 125.582/SP, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP -, j. 27/04/2010, DJe 17/05/2010.

117

STJ, 3ã Seção, CC 107.148/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 13/10/2010.

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d) Policial Militar, Policial Rodoviário Estadual ou bombeiro Militar na inatividade (re­ serva ou reformado): considerado civil para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar da União; e) Militar Estadual da ativa (integrante da Polícia Militar, da Polícia Rodoviária Estadual e do Corpo de Bombeiros Militares): é considerado militar para efeito de aplicação da lei penal militar pela Justiça Militar estadual118; f) Militar Estadual na inatividade (na reserva ou reformado): considerado civil. Dessa forma, não estão sujeitos à Justiça Militar estadual, ressalvados os crimes cometidos quando se encontravam no serviço ativo. No que toca à definição de assemelhado, ao qual faz menção o art. 9o do CPM, seu conceito consta do art. 21 do CPM. Em que pese o Código Penal Militar ainda fazer referência a esse ser­ vidor público civil submetido à disciplina militar, essa figura já não existe no Direito brasileiro há mais de 60 (sessenta) anos, visto que o Decreto n° 23.203, de 18/06/47 (art. Io) revogou a alínea b do Decreto n° 23/42 (Regulamento Disciplinar do Exército), de modo a excluir o assemelhado da legislação militar e, consequentemente, não o sujeitando mais à disciplina militar, mas sim ao seu respectivo Estatuto Funcional. Com a entrada em vigor da Lei n° 1.711, de 28 de outubro de 1952, a exclusão foi definitiva, ficando os civis sujeitos ao regime estatutário. Nessa linha, como adverte Célio Lobão, “médico, dentista, enfermeiro, veterinário, intendente, integram hoje os quadros das Forças Armadas como militares e não como assemelhados. Quanto a quaisquer outros funcionários e servidores dos Ministérios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, são servidores públicos civis da União (arts. 39 a 41 e 61, II, a e c, da Constituição), como os que integram os quadros de pessoal dos Ministérios civis. Assim era e, hoje, com muito mais razão, pois são funcionários civis do Ministério da Defesa”.119 1.5.2. Do inciso I do art. 9o do Código Penal Militar. De acordo com o art. 9o, inciso I, do CPM, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes de que trata o Código Penal Militar, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial. Há uma grande quantidade e variedade de crimes militares com fundamento nesse dispositivo. Por exemplo: motim (CPM, art. 149), conspiração (CPM, art. 152), desrespeito a superior (CPM, art. 160), uso indevido de uniforme, distintivo ou insígnia militar por qualquer pessoa (CPM, art. 172), embriaguez em serviço (CPM, art. 202), dormir em serviço (CPM, art. 203), ingresso clandestino (CPM, art. 302), etc. Como o inciso em questão se refere a crimes militares que não estão previstos

118

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Sendo o militar das Forças Armadas considerado civil perante a Justiça Militar Estadual, eventual crime come­ tido por policiais militares em folga contra militares das Forças Armadas também em folga jamais poderá ser considerado crime militar, pois não se trata de crime cometido por militar da ativa contra militar da ativa, na medida em que sujeitos ativo e passivo pertencem a instituições militares diversas. Reiteramos o quanto foi dito: para que o crime seja considerado militar, deve ser cometido por policial militar contra policial militar (ainda que em folga), ou por integrante do Exército contra integrante do Exército (mesmo que fora do serviço). Por tal motivo, e com a devida vênia, somos levados a crer que o STJ laborou em equívoco ao firmar a competência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar crime de lesão corporal praticado por policiais militares em folga contra Soldado do Exército Brasileiro, igualmente de folga e à paisana no dia do crime (STJ - HC 94.277/RS - 5ã Turma - Rei. Min. Jorge Mussi - Dje 28/10/2008). Em outro julgado, também equivocado, rogata máxima vênia, o STJ entendeu que a Justiça Militar da União seria competente para processar e julgar policiais militares que teriam, em tese, cometido crime contra bombeiro militar: STJ, 3^ Seção, CC 62.095/RJ, Rei. Min. Paulo Medina, DJ 02/04/2007 p. 231. D ireito penal m ilitar.

2- ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 105.

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na lei penal comum, ou nela previstos de maneira diversa, para que seja feito o juízo de tipicidade desses crimes militares, não se faz necessária qualquer menção ao art. 9o do Código Penal Militar. De se ver que todos os crimes propriamente militares estão aqui inseridos, pois, em se tratando de infrações específicas e funcionais do militar, só poderiam estar previstos no Código Penal Militar. Daí o motivo da cláusula final do inciso em questão: qualquer que seja o agente, salvo disposição especial. Refere-se essa cláusula final aos crimes propriamente militares, na medida em que estes só podem ter o militar como sujeito ativo. Por outro lado, como deixa entrever o próprio dispositivo, esses crimes a que se refere o inciso I podem ser praticados por qualquer pessoa, tanto por civil quanto por militar. Nesse sentido, tanto se encaixam nesse inciso I crimes propriamente militares como os de deserção, embriaguez em serviço, que só podem ser praticados por militar, quanto crimes cometidos por civis que não estão previstos na lei penal comum, tais como o de uso indevido de uniforme ou de ingresso clandestino. 1.5.3. Do inciso II do art. 9o do Código Penal Militar. Em sua redação original, o inciso II do art. 9o considerava crime militar, em tempo de paz, apenas aqueles previstos no Código Penal Militar, embora também o fossem com igual defi­ nição na lei penal comum. Com a entrada em vigor da Lei n. 13.491/17, objeto de análise dos comentários iniciais a este Capítulo sobre a Competência da Justiça Militar, o inciso II do art. 9o do CPM passou a tratar como crimes militares não apenas aqueles previstos no CPM, mas também os previstos na legislação penal. Enquanto o inciso III do art. 9o do Código Penal Militar versa sobre os crimes militares que podem ser praticados por civis, militares da reserva, ou reformados, o inciso II do art. 9o do CPM tem como sujeito ativo exclusivamente o militar da ativa. a) Do crime militar praticado por militar da ativa contra militar da ativa. Nos termos do art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes previstos no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal, quando praticados por militar da ativa contra militar na mesma situação.120 Em relação a esse crime militar do art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM, questiona-se na doutrina e na jurisprudência se ambos os militares devem estar em serviço para que o crime seja considerado militar. Para a doutrina, “é militar o delito cometido por militar contra militar (alín. a, inc. II), in­ dependentemente da circunstância do lugar do crime, da condição de serviço ou outra qualquer, podendo os sujeitos ativo e passivo pertencerem à mesma ou a Arma diversa. Assim também, no âmbito da Justiça Militar estadual, os sujeitos ativo e passivo podem ser só policiais militares, só bombeiros militares ou integrantes das duas corporações e, até mesmo, de corporações de unidades federativas diversas.”121

120

Importante atentar para dois dispositivos da parte especial do Código Penal Militar que limitam a aplicação do art. 9 - em relação aos crimes de violação de correspondência e de estelionato: a) segundo o disposto no art. 227, § 49, do CPM, salvo o disposto no parágrafo anterior, qualquer dos crimes previstos neste artigo só é considerado militar no caso do art. 9e, ns II, letra "a"; b) o art. 251, § 29, do CPM, dispõe: "Os crimes previstos nos ne I a V do parágrafo anterior são considerados militares somente nos casos do art. 9e, n® II, letras 'a' e 'e'.

121

LOBÃO, Célio. Op. cit. p. 113. Ainda segundo o autor, "com a incorporação de mulheres às Forças Armadas, à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros Militares, surge o problema relativo à competência da Justiça Militar

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Esse militar da ativa pode ou não estar em serviço ou em função de natureza militar. Logo, mesmo que esteja em férias, licença, em momento de lazer dentro ou fora de uma organização militar, mantém sua qualidade de militar da ativa, razão pela qual, caso venha a praticar um delito contra outro militar da ativa, estará caracterizado crime militar com base no art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM. Essa hipótese é também conhecida por inter milites. De fato, da própria comparação da alínea “a” com a alínea “c” (aqui, refere-se o CPM ao militar “em serviço”), ambas do inciso II do art. 9o, depreende-se que, para que o crime seja considerado militar com fundamento no dispositivo em análise, basta que ambos os militares sejam da ativa122 (em contraposição ao militar na inatividade, o qual é considerado civil), pouco importando se esse militar está de férias, licença, etc. Assim, tendo-se em conta que a compe­ tência é fixada com base em critérios objetivos, se um militar comete um delito contra outro militar, ainda que não tenha consciência da condição de militar da vítima, o crime continuará sendo militar, visto que preenchidos os requisitos do art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM.123 Com base nesse dispositivo, ressaltamos, pouco importa o local da infração: independentemente de se tratar de lugar sujeito ou não à administração militar, o crime será considerado militar.124 Suponha-se, assim, que um militar do Exército, em concurso de agentes com um civil, resolva perpetrar um crime contra outro militar do Exército, sendo que nenhum deles estava em serviço e o fato não ocorreu em lugar sujeito à administração militar. Nesse caso, o militar deve ser processado perante a Justiça Militar da União, com fundamento no art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM. A competência para julgar o civil, todavia, recai sobre a Justiça Comum Estadual, haja vista que, apesar de se vislumbrar uma continência por cumulação subjetiva (CPPM, art. 100, alínea “a”), que determinaria a reunião dos processos, a conduta do civil não pode ser para conhecer do delito cometido por um cônjuge ou companheiro contra outro. Se a ocorrência diz respeito à vida em comum, permanecendo nos limites da relação conjugal ou de companheiros, sem reflexos na disciplina e na hierarquia militar, permanecerá no âmbito da jurisdição comum. Tem pertinência com a matéria a decisão da Corte Suprema (HC 58.883), segundo a qual a administração militar não interfere na privacidade do lar conjugal, máxime no relacionamento do casal". 122

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Como já se pronunciou a 3ã Seção do STJ, "militar em situação de atividade quer dizer 'da ativa' e não 'em serviço', em oposição a militar da reserva ou aposentado". (STJ - CC 85.607/SP - 3ã Seção - Rei. Min. Og Fernandes - Dje 08/09/2008).

Para o Supremo, "crime praticado por militar, em situação de atividade, contra militar da mesma situação (homicídio de um cabo da Marinha contra um cabo da mesma Força, ambos da ativa, na residência da vítima, fora de zona militar), mesmo não estando em serviço o militar acusado, é crime militar, na forma do disposto no artigo 9., II, "a", do Cod. Penal Militar. Competência da Justiça Militar. C.F./67, art. 129; C.F./88, art. 124. A Justiça Militar não comporta a inclusão, na sua estrutura, de um júri, para o fim de julgar os crimes dolosos contra a vida". (STF - RE 122.706/RJ - Tribunal Pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 03/04/1992). No sentido da competência da Justiça Militar para julgar crime de dano cometido por militar da ativa contra outro militar na mesma situação, no interior de depósito naval, nos termos do art. 9e, II, "a", do Código Penal Militar: STF, 2- Turma, HC 86.867/PA, Rei. Min. Cezar Peluso, DJ 01/12/2006 p. 100. No sentido da competência da Justiça Militar para processar e julgar crimes de desrespeito a superior e ameaça praticados por militar contra militar, ambos da ativa, mesmo durante o período de folga: Informativo n? 634 do STF, 2ã Turma, HC 107.829/PB, Rei. Min. Ayres Britto, 02/08/2011. 124 Também comunga desse e n tend im ento Denílson Feitoza (op. cit. p. 374), ao a firm a r que o m ilita r da ativa pode ser considerado no CPM como sujeito ativo de um crime impropriamente militar, pelo simples fato de ser militar da ativa, mesmo não estando de serviço, nem atuando em razão da função, por exemplo, estando de licença-médica, de folga, de férias etc. É o caso do inciso II, alínea a, art. 92 do CPM (militar da ativa contra militar da ativa). Por exemplo: um militar, de folga, subtrai, para si, o dinheiro particular de seu colega também militar, de folga (crime impropriamente militar de furto simples - art. 240, caput, c/c art. 99, II, a, do CPM); um militar, de folga, mata, intencionalmente, seu colega também militar, de folga (crime impropriamente militar de homicídio simples - art. 205, caput, c/c art. 9Q, II, a, do CPM). Com entendimento semelhante: ROSSETO, Enio Luiz. Código Penal M ilita r com entado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 109.

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considerada crime militar, pois não se ajusta a nenhuma hipótese do art. 9o do CPM, já que a vítima não estava em serviço e o crime fora cometido fora de lugar sujeito à administração militar. Daí por que se impõe a separação dos processos com fundamento no art. 102, “a”, do CPPM. No sentido de que crime cometido por militar da ativa contra militar da ativa é da compe­ tência da Justiça Militar, pouco importando se ambos estão em serviço, ou se o lugar está sujeito à administração militar, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de asseverar que “os alunos regularmente matriculados em órgão de formação de militares da ativa e da reserva - que possuem, nessa particular condição, a graduação de praças especiais - são considerados milita­ res em situação de atividade, podendo qualificar-se, em conseqüência, como sujeitos ativos de crime militar, submetendo-se, desse modo, quando da prática de ilícitos castrenses, à jurisdição penal da Justiça Militar”.125 Em sentido diverso, todavia, a 3a Seção do STJ já se manifestou no sentido de que, para fins de fixação da competência da Justiça Militar, não basta que o crime seja cometido por militar da ativa contra militar da ativa, sendo indispensável que o militar esteja em efetivo exercício funcional. Em caso concreto de tentativa de homicídio em que autor e vítimas eram policiais militares, concluiu-se pela inexistência de crime militar, porquanto o crime fora cometido fora de situação de atividade e fora de área de administração militar. Assim, na dicção do STJ, se o crime fora cometido fora do exercício do serviço, sem farda, e com motivação completamente alheia à função, a competência para processar e julgá-lo seria da Justiça Comum (Tribunal do Júri).126 Com a devida vênia, para fins de fixação da competência da Justiça Militar, não se pode confundir o crime militar praticado por militar da ativa contra militar da ativa (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “a”), em que o Código exige nada além de que sujeitos ativo e passivo sejam militares em situação de atividade (art. 3o, § Io, alínea “a”, da Lei n° 6.880/80), independente­ mente de estarem ou não em serviço quando da prática do delito, com o crime militar praticado por militar em serviço ou atuando em razão da função contra civil, ainda que fora do lugar sujeito 125

STF - RHC 80.122/SP - 2ã Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 04/08/2000 p. 43. No sentido da competência da Justiça Militar para julgar crime militar doloso contra a vida praticado por militar em situação de atividade contra militar, na mesma situação, ainda que fora do recinto da administração militar, mesmo por razões estra­ nhas ao serviço: STF - CC 7071/RJ - Tribunal Pleno - Rei. Min. Sydney Sanches - DJ 01/08/2003 p. 103. E ainda: STF - CJ-MC 7021/RJ - Tribunal pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 10/08/1995 p. 45.

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STJ - CC 91.267/SP - 3ã Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 22/02/2008 p. 164. Em outro caso, relativo a homicídio culposo praticado por policial militar da ativa contra policial militar da ativa em churrasco fora das instalações castrenses, o STJ também concluiu pela competência da Justiça Comum. Na visão daquela Corte, quando o militar se encontra fora de situação de atividade, entendida como tal sua efetiva atuação funcional, ou seja, nas ocasiões em que age como civil, não há se estender a competência da justiça militar, visto que não há se lhe exigir o mesmo padrão de conduta, de hierarquia e disciplina: STJ - HC 119.813/PR - 63 Turma - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - Dje 02/02/2009. O Supremo Tribunal Fe­ deral também já decidiu que o art. 99, II, "a", do Código Penal Militar não alcança quadro em que militar, em atividade nitidamente civil - participação em festa carnavalesca -, desacata militar em serviço, obstaculizando, mediante violência ou ameaça, ato a consubstanciar dever funcional: STF - RHC 88.122/MG - 1§ Turma - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 13/09/2007. Em sentido semelhante, em caso concreto envolvendo dois militares no qual uma discussão de trânsito evoluiu para uma lesão corporal grave, concluiu a l ã Turma do Supremo tratar-se de crime comum, já que o delito fora praticado em contexto no qual os envolvidos não conheciam a situação funcional de cada qual, já que não estavam uniformizados e dirigiam carros descaracterizados: STF, is Turma, HC 99.541/RJ, Rei. Min. Luiz Fux, j. 10/05/2011, DJe 98 24/05/2011. Em caso concreto no qual um militar, que se encontrava de folga, praticou crime doloso contra a vida de outro militar ao sair de uma roda de samba em uma boate, concluiu o Supremo tratar-se de crime da competência do Tribunal do Júri: STF, ia Turma, HC 110.286/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 14/02/2012, DJe 4 28/03/2012. Com entendimento semelhante: KARAM, Maria Lúcia. Op. cit. p. 24.

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à administração militar (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “c”), o qual, ao contrário do anterior, demanda que o militar pratique o delito no exercício funcional. Outra hipótese que deve ser analisada à luz do disposto no art. 9o, II, “a”, do Código Penal Militar, diz respeito à subtração de folha de cheque de militar da ativa praticada por outro militar da ativa em lugar sujeito à administração militar, com sua posterior utilização para obtenção de vantagem ilícita. Nesses casos de estelionato, tem-se entendido que, se o prejuízo for suportado pelo militar, a competência será da Justiça Militar; todavia, nas hipóteses em que a instituição bancária toma a iniciativa ou é compelida a repor a importância, ardilosamente retirada pelo militar da ativa da conta corrente do lesado, também militar da ativa, sem que nenhum trans­ torno patrimonial seja causado ao correntista, fixar-se-á a competência da Justiça comum, pois a vítima seria a instituição financeira.127 b) Do crime militar cometido por militar da ativa contra civil em lugar sujeito à ad­ ministração militar. De acordo com o art. 9o, inciso II, alínea “b”, do Código Penal Militar, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes previstos no CPM e os previstos na legislação penal, quando praticados por militar em situação de ati­ vidade, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil. Quanto ao sujeito passivo desse crime militar, preceitua o estatuto penal militar que o crime deve ser cometido contra militar da reserva, ou reformado, ou civil. Reiteramos aqui o quanto já foi dito em relação aos militares na inatividade (militares da reserva ou reformados): são considerados civis para fins de aplicação da lei penal militar. Como as alíneas “b”, “c” e “d” do inciso II do art. 9o do CPM referem-se ao militar da reserva, ou reformado, ou civil, como sujeitos passivos desse crime militar, sem explicitar se esse “civil” seria pessoa física ou jurídica, a jurisprudência tem entendido que somente a pessoa física pode ser vítima desse crime militar, excluída, portanto, a pessoa jurídica. Logo, ainda que eventual crime de dano seja praticado por militar da ativa, em lugar sujeito à administração militar, contra o patrimônio de empresa pública, a competência será da Justiça Comum.128 Em síntese, são três os requisitos para fins de configuração do referido crime militar: a) su­ jeito ativo: militar da ativa; b) sujeito passivo: pessoa física (civil); c) crime militar cometido em lugar sujeito à administração militar.129 Com o advento da Lei n. 13.491/17, é de todo irrelevante se esse delito praticado por militar da ativa contra civil em lugar sujeito à administração militar está ou não tipificado no Código

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Concluindo pela competência da Justiça Militar para julgar ação penal por delito de estelionato cometido por militar da ativa em dano de outro militar em igual situação, dentro de unidade militar: STF - HC 86.867/PA - 29 Turma - Rei. Min. Cezar Peluso - DJ 01/12/2006. Com esse entendim ento: STJ - REsp 705.514/DF - 6^ Turma - Rei. Paulo Medina — DJ 19 /06/2006 p. 215. No sentido da competência da Justiça Comum para julgar ato lesivo praticado por militares contra pessoa jurídica de direito privado, ainda que integrada apenas por militares, na medida em que essa pessoa jurídica não se confunde com as pessoas físicas que a integram, nem pode ser tomada como "patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar": STF - HC 57.916/RS - Rei. Min. Moreira Alves - DJ 12/08/1980. Firmando a competência da Justiça Militar para julgar crime de estelionato praticado por militar, utilizando-se do nome da instituição militar, da sua função de militar da aeronáutica e na própria Seção de Aviação Civil, com base nas alíneas b e c do inciso II do artigo 99 do Código Penal Militar: STJ - CC 79.482/MG - 3ã Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 17/09/2007 p. 207.

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Penal Militar. Afinal, a Justiça Militar teve sua competência ampliada para o julgamento de crimes previstos na legislação penal, aí incluída não apenas o Código Penal Comum, mas também os delitos previstos na legislação extravagante. Exemplificando, caso um Oficial-médico das Forças Armadas provoque um aborto em uma gestante civil, sem o seu consentimento, no interior de hospital militar, tal delito passou a ser considerado crime militar por força da Lei n. 13.491/17, por mais que o estatuto penal castrense não preveja os crimes de aborto no título que versa sobre os crimes contra a pessoa. Por conseqüência, o agente deverá ser denunciado perante a Justiça Militar da União pela prática do crime do art. 125 do CP, c/c art. 9o, II, alínea “b”, do CPM. Por lugar sujeito à administração militar compreende-se o espaço físico no qual as Forças Armadas, as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares desenvolvem suas atividades profissionais, como quartéis, aeronaves e navios militares ou mercantes em serviço militar, for­ talezas, estabelecimentos de ensino militar, campos de prova ou de treinamento. Abrange tanto o local pertencente ao patrimônio das instituições militares, como também aquele sob sua admi­ nistração por disposição legal. Este local pode ser imóvel ou móvel (v.g., aeronave, embarcação). A vila militar, local destinado à moradia dos servidores das Forças Armadas, cujas unidades habitacionais são denominadas de próprios nacionais residenciais (PNR), é considerada lugar sujeito à administração militar, porém somente no tocante às áreas comuns. A residência do militar, mesmo que localizada em vila militar, não tem sido considerada como lugar sujeito à administração militar, na medida em que a administração militar não interfere na privacidade do domicílio, não detendo o poder de penetrar no interior das casas cedidas a oficiais e praças (PNR), salvo em caso de flagrante delito ou mediante circunstanciada autorização judicial, por força do inciso XI do art. 5o da Constituição Federal. Portanto, caso um militar da ativa pratique um crime contra sua esposa dentro de um PNR, a competência será da Justiça Comum.130 É possível, no entanto, que esse crime praticado no interior da residência em vila militar tenha sido cometido por militar da ativa contra militar da ativa, o que caracterizaria crime mi­ litar, não com fundamento na alínea “b”, mas sim com base na alínea “a” do inciso II do art. 9o do CPM.131 Nesse caso, caracterizada hipótese de violência doméstica de militar da ativa contra militar da ativa (Lei n. 11.340/06, arts. 5o e 7o), é perfeitamente possível a aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha pela Justiça Militar, haja vista a possibilidade de utilização do poder geral de cautela no processo penal (NCPC, art. 297, c/c art. 3o do CPPM).132 Se a residência do militar no interior de uma vila militar não é considerada “lugar sujeito à administração militar”, idêntico raciocínio vem sendo feito pelos Tribunais Superiores em relação às instalações de entidades privadas no interior de uma organização militar. Em caso

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Em caso concreto apreciado pelo Supremo, concluiu-se que, embora o militar tenha matado sua mulher no interior da casa em que ambos residiam, situada em zona sob a administração militar, a Justiça Comum seria competente para julgar o crime, porque a aludida administração não interfere na privacidade do lar conjugal, máxime no relacionamento do casal, do qual resultou o delito: STF, 1® Turma, HC 58.883/RJ, Rei. Min. Soares Munoz, DJ 09/10/1981.

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Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União para o julgamento de suposto crime militar de ameaça praticado por um Sargento do Exército contra sua mulher, também sargento, no interior de uma unidade resi­ dencial militar, nos termos do art. 99, II, alínea "a", do CPM: STF, l ã Turma, HC 125.836/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 03/03/2015.

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Admitindo a utilização do poder geral de cautela (NCPC, art. 297) no processo penal comum: STF - HC 94.147/ RJ - 29 Turma - Relatora Ministra Ellen Gracie - Dje-107 12/06/2008. Etambém: HC 86.758/PR - l 9 Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - j. 02/05/2006 - DJ p. 22, 01/09/2006.

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concreto referente à prática de crime sexual praticado por militar da Marinha contra menor de catorze anos no interior de complexo naval onde o militar ministrava aulas de karatê para garotos, concluiu o Supremo tratar-se de crime de natureza comum: a uma, porque o fato teria ocorrido no exercício de atividade estranha à função militar; a duas, porque o local em que o crime fora cometido seria uma associação civil de direito privado - na visão da 2a Turma do STF, a simples circunstância de a Marinha haver disponibilizado instalações para a referida entidade não transformaria esta em “lugar sujeito à administração militar”, sendo inviável equiparar-se clube social a organização militar.133 Outro fato que produz certa controvérsia diz respeito aos crimes de roubo/furto ocorridos em agências bancárias e/ou caixas eletrônicos situados no interior de organizações militares. Em primeiro lugar, é importante asseverar que, apesar de situados no interior de unidades mi­ litares, o espaço físico ocupado pelas instituições financeiras não está sujeito à administração militar. De mais a mais, mesmo que se entendesse que se trata de lugar sujeito à administração militar, foi visto anteriormente que o sujeito passivo do crime militar das alíneas “b”, “c” e “d” do inciso II do art. 9o do CPM somente pode ser pessoa física, excluída, portanto, a pessoa jurídica. Ora, tratando-se de crime contra o patrimônio de instituições financeiras, deve o crime ser considerado de natureza comum, de competência da Justiça Estadual, salvo se a instituição financeira for a Caixa Econômica Federal, quando a competência será da Justiça Federal, por se tratar de empresa pública federal (CF, art. 109, inciso IV). A nosso ver, pouco importa que os agentes tenham ingressado por área militar, violando a segurança feita por militares, eis que, nesse caso, o ingresso clandestino teria se dado como crime-meio para a prática do delito-fim (crime patrimonial), sendo por ele absorvido com base no princípio da consunção. Por fim, ainda em relação ao lugar sujeito à administração militar, importante recordar que o Superior Tribunal Militar e as auditorias militares fazem parte da estrutura do Poder Ju­ diciário, não estando sujeitos, portanto, à administração militar. Logo, eventual crime cometido por militar nas dependências do Superior Tribunal Militar será considerado crime comum.134 c) Do crime militar praticado por militar em serviço, ou atuando em razão da fun­ ção, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra civil. Segundo o disposto no art. 9o, inciso II, alínea “c”, do Código Penal Militar, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, considera-se crime militar, em tempo de paz, os crimes previstos no CPM e os previstos na legislação penal, quando praticados por militar em serviço ou atuando em razão dafunção, em comissão de natureza militar, ou emformatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil. Militar em serviço não se confunde com militar da ativa. Como exposto anteriormente, militar da ativa são os de carreira, os incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar inicial, os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados e os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva.

133

STF, 25 Turma, HC 95.471/MS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 15/05/2012.

134

Com esse entendimento: STJ - CC 52.174/DF - 35 Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 04/10/2007 p. 167. No sentido de que eventual crime de uso de artefato incendiário contra edifício sede da Justiça Militar da União deve ser processado e julgado perante a Justiça Federal, e não perante a Justiça Militar da União, por­ quanto se trata de crime praticado em detrimento de órgão do Poder Judiciário da União, logo, que não integra o patrimônio militar nem está subordinado à administração castrense: STJ, 35 Seção, CC 137.378/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11/3/2015, DJe 14/4/2015.

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Já o militar em serviço deve ser compreendido como aquele “que se encontra exercendo função do cargo militar, permanente ou temporário, decorrente de lei, decreto, regulamento, ato, portaria, instrução, ordem verbal ou escrita de autoridade militar competente”.135 Conclui-se, pois, a despeito do silêncio do art. 9o, inciso II, alínea “c”, que somente poderá estar em serviço ou atuando em razão da função o militar da ativa, já que o militar na inatividade não mais exerce qualquer função pertinente ao militar. Para a configuração do crime militar com base na alínea em questão, é fundamental que o delito seja praticado enquanto o militar está em serviço ou atuando em razão da função, que lhe é atribuída mediante escala. Deve existir o denominado nexo funcional, sob pena de configuração de crime comum. Logo, eventuais ilícitos penais praticados por militares que não estavam em serviço, não executavam missão militar e que agiam por motivos pessoais, particulares, em local não sujeito à administração militar, devem ser processados e julgados pela Justiça Comum.136 Para que seja reconhecida a competência da Justiça Castrense, é indispensável que o militar esteja em serviço. Portanto, o simples fato de o delito ter sido facilitado em virtude de sua con­ dição de militar não autoriza o reconhecimento de crime militar. Por isso, se o militar estiver de folga e subtrair objetos do interior de uma caminhonete apreendida que se encontrava no pátio de uma delegacia de polícia, lugar que não está sujeito à administração militar, não há falar em crime da competência da Justiça Militar, pouco importando o fato de a conduta delitiva ter sido facilitada em razão da particular condição de policial militar.137 Ainda em relação à tipificação desse crime militar, há de ser dispensada especial atenção ao sujeito ativo do delito - se militar das Forças Armadas ou das Polícias Militares -, já que, a depender do militar em questão, a distinção das funções por ele exercidas é de fundamental importância para que se possa se saber se ele estava (ou não) em serviço, ou atuando em razão da função, no momento da prática delituosa. Quanto aos militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sabe-se que, à exceção de suas atribuições subsidiárias previstas na Lei Complementar n° 97/99, que já foram objeto de análise, e das hipóteses de garantia da lei e da ordem (v.g., ocupação do Complexo do Ale­ mão no Rio de Janeiro pelo Exército Brasileiro), não recai sobre as Forças Armadas nenhuma atribuição de policiamento ostensivo. Assim, se, por exemplo, um crime for cometido por um Soldado do Exército contra um civil em plena Avenida Paulista, a conclusão inevitável é de que se trata de crime comum, já que o militar em questão não tem funções de policiamento ostensivo. Logo, por ocasião do crime, não estava no exercício da função. Nessa linha, se determinado militar do Exército, após abandonar seu posto, vier a cometer determinado delito fora de lugar sujeito à administração militar, deverá ocorrer a separação de processos, cabendo à Justiça Militar da União o processo e julgamento do delito de abandono de posto (CPM, art. 195), enquanto a outra infração penal deverá ser julgada pela Justiça Comum, ainda que praticada com arma da corporação, haja vista a revogação da alínea “f ’ do inciso II do art. 9o pela Lei n° 9.299/96.138

135

Lobão, Célio. Op. cit. p. 120.

136

Nessa linha: STF, Pleno, CC 7.120/PA, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 19/12/2002 p. 71. Portanto, a prática de furto por policial militar em serviço que se utiliza desta condição para adentrar a residência da vítima caracteriza crime militar, nos termos do art. 95, II, do Código Penal Militar: STJ, 65 Turma, HC 113.384/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 31/05/2011, DJe 08/06/2011.

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STJ, 3^ Seção, CC 115.597/MG, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 14/03/2012.

138

STF, 25 Turma, HC 91.658/RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 21/05/2009.

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Por outro lado, na hipótese de o sujeito ativo do delito ser um Policial Militar, não se pode perder de vista que à polícia militar cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, nos termos do art. 144, § 5o, da Constituição Federal. Portanto, se, no exercício dessa função de policiamento ostensivo, eventual delito vier a ser praticado pelo Policial Militar contra civil, ainda que fora de lugar sujeito à administração militar, há de se reconhecer a existência de crime militar, nos termos do art. 9o, II, alínea “c”, do CPM. Destarte, não há falar em incompe­ tência da Justiça Militar se, à época do crime, o sujeito ativo era soldado da Polícia Militar e, no momento da prática delituosa, se identificou como tal, fazendo uso de arma da corporação e, embora não estivesse fardado, estava acompanhado de outros militares devidamente fardados e em situação que denotava estarem todos em atividade.139 Na mesma linha, se, a despeito da licença prêmio em gozo, um Policial Militar arguir sua condição castrense para exigir, em razão da função, vantagem indevida, há de se reconhecer a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento do delito de concussão, nos termos do art. 9o, II, “c”, do CPM. No mesmo contexto, se um policial militar, embora sem farda, se vale da sua condição castrense para exigir, em razão da função, vantagem indevida, comete o crime militar de concussão (CPM, art. 305, c/c art. 9o, II, “c”), daí por que a competência para o processo e julgamento também deve recair sobre a Justiça Militar.140 Por tais motivos, pensamos que laborou em equívoco a 2a Turma do Supremo ao apreciar o HC 109.150. O caso concreto referia-se à prática dos crimes de extorsão mediante seqüestro, com resultado morte, ocultação de cadáver e quadrilha armada, praticados por policiais milita­ res que estavam em serviço, comprovado por escalas de trabalho. Estranhamente, o Supremo concluiu que a competência seria da Justiça Comum, devido à não configuração de nenhuma das hipóteses do art. 9o, inciso II, do CPM, porquanto os delitos foram perpetrados: contra civil; na rua; em horário de serviço, porém em atividade estranha as suas funções (extorsão mediante seqüestro, com resultado morte); em situação distinta de período de manobras ou exercício; e, por fim, sem que afetasse o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar.141 Ora, considerando que à Polícia Militar cabe a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, nos termos do art. 144, § 5o, da Constituição Federal, e tendo em conta que tais militares estavam em serviço por ocasião da prática delituosa, não há como se afastar a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento dos crimes, sob pena de se negar vigência à alínea “c” do inciso II do art. 9o do CPM. Superada essa análise pertinente ao sujeito ativo, convém destacar que o crime militar do art. 9o, II, “b”, do CPM, não se confunde com aquele constante da alínea “c” do inciso II do art. 9o, também do CPM. Para a configuração daquele crime militar, basta que o mesmo seja cometido por militar da ativa contra civil em lugar sujeito à administração militar, pouco importando se o militar ao cometê-lo estava ou não em serviço. Assim, mesmo que um Soldado do Exército esteja em gozo de licença médica, caso o crime seja cometido em lugar sujeito à administração militar, estará caracterizado o crime militar da alínea “b” do inciso II do art. 9o do CPM. Já no crime militar da alínea “c” do inciso II do art. 9o, como o delito pode ser praticado ainda que fora de lugar sujeito à administração militar, é indispensável analisar se o militar estava em serviço (ou não) quando da prática delituosa. 139

STJ, 5ã Turma, HC 80.461/MS, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 19/08/2009, DJe 21/09/2009.

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STJ, 52 Turma, HC 146.769/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 25/11/2010, DJe 13/12/2010. E ainda: STJ, 32 Seção, CC 115.356/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/10/2011, DJe 09/11/2011.

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STF, 22 Turma, HC 109.150/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, 20/09/2011.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Um caso concreto ocorrido no interior de São Paulo em que tivemos a oportunidade de atuar como Promotor da Justiça Militar da União bem demonstra a importância dessa distinção. Dois militares do Exército brasileiro, portando armamento militar, abordaram quatro civis, dentre eles uma mulher, dando início a uma revista pessoal. Durante a revista, um dos militares teria supostamente praticado atentado violento ao pudor contra uma das vítimas. Se referida conduta tivesse sido praticada em lugar sujeito à administração militar, ter-se-ia crime militar (CPM, art. 233, c/c art. 9o, II, “b”), pouco importando se os agentes estavam ou não em serviço quando da abordagem feita aos civis. Ocorre que o delito não foi praticado em lugar sujeito à administração militar, mas sim num determinado parque no qual Militares do Exército estavam acampados para a realização de um exercício militar - o simples fato de um ‘parque’ ser palco de exercício militar não o transforma em lugar sujeito à administração militar. Restou comprovado, ademais, que a abordagem feita pelos militares não fazia parte do exercício militar, tendo sido executada quando estavam de folga, aproveitando-se do armamento militar, ou seja, os soldados não estavam em serviço, nem tampouco atuando em razão da função quando do cometimento do crime. Na verdade, os militares se aproveitaram de seu período de descanso para, usando armamento da corporação, praticar delitos em lugar não sujeito à administração militar, o que, por si só, não transforma a conduta em crime militar. Há de se lembrar, nesse sentido, que a alínea “f ’ do art. 9o, inciso II, do Código Penal Militar, foi revogada pela Lei n° 9.299/96. Portanto, o simples fato de o delito ser praticado com armamento militar não transforma o ilícito em crime militar. Com base nesse raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que o delito sob análise não se enquadrava em nenhuma das hipóteses definidas no art. 9o do CPM, fixando a competência da Justiça Comum Estadual para o processo e julgamento do feito.142 De acordo com o dispositivo em análise (CPM, art. 9o, II, “c”), é fundamental que o crime militar seja praticado quando o militar está em serviço ou atuando em razão da função. Como a lei não exige que essa função seja militar, mesmo que o policial militar e o bombeiro militar estejam em serviço de policiamento ostensivo e de trânsito, ou no exercício de função policial civil, eventual crime por eles cometido será considerado crime militar. Encontra-se superado, portanto, o enunciado da súmula 297 do Supremo Tribunal Federal / ‘Oficiais e praças das milícias dos Estados, no exercício de função policial civil, não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a Justiça comum para julgar os crimes cometidos por ou contra eles”/ Como já se manifestou o próprio Supremo, “mesmo nas hipóteses em que entre as atividades do policial militar estejam aquelas pertinentes ao policiamento civil, os desvios de condutas decorrentes de suas atribuições específicas e associadas à atividade militar, que caracterizem crime, perpetradas contra civil ou a ordem administrativa castrense, constituem-se em crimes militares, ainda que ocorridos fora do lugar sujeito à administração militar (CPM, artigo 9o, II, “c” e “e”). Nesses casos a competência para processar e julgar o agente público é da Justiça Militar. Enunciado da Súmula/STF 297 há muito tempo superado”.143

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Nessa trilha: STJ, 3a Seção, CC 100.545/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Dje 01/07/2009.

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STF, Pleno, HC 82.142/MS, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 12/09/2003. No sentido da competência da Justiça Militar Estadual para julgar crime militar praticado por policial militar, ainda que em função de policiamento civil, porquanto superada a súmula 297 do STF: STF - HC 69.571/PB - I a Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 25/09/1992. O STJ também tem precedentes no sentido de que o enunciado sumular n9 297 do STF encontra-se superado, pois vai contra a nova ordem constitucional, especialmente em se considerando o disposto no art. 144, § 59, da atual CF, que é claro ao atribuir às polícias militares, e não à civil, a função de policiamento osten­ sivo, existindo inclusive proposta para a reformulação do referido verbete sumular desde o ano de 1978, dada a Emenda Constitucional n9 7/77. Nessa linha: STJ, 5a Turma, HC 114.825/PR, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 29/09/2009, DJe 09/11/2009. Situação diferente ocorrerá caso o militar encontre-se no exercício da função de delegado de polícia, tendo o Supremo decidido tratar-se de crime da competência da Justiça Comum, porquanto o policial

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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Se o Código Penal Militar considera crime militar aquele praticado por militar em serviço contra civil, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, também não há falar em aplicação irrestrita da súmula n° 6 do STJ (“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade”/ Tal súmula teve origem com a entrada em vigor da Lei n° 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), que se deu em 23 de janeiro de 1998. Aos olhos do Superior Tribunal de Justiça, diante da vigência do Código de Trânsito, caso a pretensão punitiva estivesse fundada em alegada prática de homicídio culposo ou lesão corporal culposa na direção de veículos, não poderia ser reconhecida a configuração de crime militar, nem mesmo quando se tratasse de viatura militar, sendo o sujeito ativo militar da ativa em serviço. Com a devida vênia, se a alínea “c” do inciso II do art. 9o do CPM preceitua que é crime militar aquele cometido por militar em serviço ou atuando em razão da função, ainda que fora de lugar sujeito à administração militar, contra civil, pouco importa que a vítima do acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar em serviço seja civil: o crime será considerado militar. Se os delitos de homicídio culposo e lesão corporal culposa estão expressamente pre­ vistos no CPM, hão de funcionar os arts. 206 e 210 do Estatuto Penal Militar, combinados com o art. 9o, inciso II, alínea “c”, também do CPM, como norma especial em relação ao Código de Trânsito Brasileiro.144Aliás, em julgado posterior à edição da Súmula n° 6, o próprio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que compete à Justiça Militar Estadual pro­ cessar e julgar o delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura da Polícia Militar, quando o autor for policial militar, em serviço, e as vítimas forem civis e policiais militares, em situação de atividade.145 De todo modo, com o advento da Lei n. 13.491/17, a controvérsia em tomo da súmula n. 6 do STJ parece ter chegado ao fim, porquanto a Justiça Militar passou a ter competência para o julgamento dos crimes previstos na legislação penal, dentre eles exatamente aqueles previstos no Código de Trânsito Brasileiro, pouco importando se a vítima é civil ou militar. Ainda em relação ao conceito de militar em serviço, Jorge César de Assis adverte que policiais militares, por terem o dever de agir, ao interferirem em ocorrência policial, na hipótese de flagrante delito, mesmo utilizando arma particular, estariam na situação de terem-se colocado em serviço. Assim, se o policial militar, ao interferir em ocorrência policial cumprindo normas e deveres profissionais, envolve-se em alguma prática delituosa, esta será considerada de natureza militar, mesmo que o militar esteja de folga, em trajes civis e usando arma própria.146 De fato, segundo o art. 301 do Código de Processo Penal, têm os policiais militares o dever de prender quem quer que seja encontrado em situação de flagrante delito. O art. 144, inciso V, da Constituição Federal, preceitua que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida militar teria se afastado do exercício do cargo para exercer função de natureza civil: STF - RE 92.793/SC - ÍA Turma - Rei. Min. Cunha Peixoto - DJ 18/12/1981. 144

Com entendimento semelhante: FEITOZA. Op. cit. p. 384. Na mesma linha: ROSSETO, Enio Luiz. Código Penal São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 113. STJ, 3» Seção, CC 34.749/RS, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 18/11/2002 p. 156. Etambém: STF, 1§ Turma, RE 135.195/ DF, Rei. Min. Octávio Gallotti, DJ 13/09/1991. Ainda no sentido da competência da Justiça Militar para processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura militar e civil: STF, 2^ Turma, RE 146.816/ SP, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 03/05/2002.

m ilita r comentado.

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Op. cit. p. 40. A propósito do dever funcional de intervir para garantir a ordem pública, a Portaria CORREGPM-1/01/01 da PMESP determina ser dever do policial militar "atuar onde estiver, mesmo não estando em serviço, para preservar a ordem pública ou prestar socorro".

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para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através de diversos órgãos, dentre eles as polícias militares. Destarte, mesmo que o policial militar esteja fora do horário de serviço e do exercício de suas funções, e em trajes civis, deverá responder perante a Justiça Militar Estadual por eventual crime militar que venha a praticar ao interferir numa ocorrência de caráter policial fora do estabelecimento militar, haja vista que tal delito terá sido praticado por militar atuando em razão da função (art. 9o, inciso II, alínea “c”, do CPM).147 A situação será diversa em se tratando de militares das Forças Armadas. E isso porque, em relação a eles, as funções de polícia judiciária e administrativa estão restritas às infrações penais militares, não abrangendo as infrações penais comuns. Cuidando-se de crime militar, seja ele praticado por civil ou por militar, o militar das Forças Armadas tem o dever de efetuar a prisão em flagrante, ex vi do art. 243 do CPPM. Todavia, em se tratando de crime comum, o integrante das Forças Armadas age como qualquer do povo (CPP, art. 301, caput), razão pela qual se cometer eventual delito quando da prisão em flagrante desse agente, esse ilícito não poderá ser considerado militar com fundamento na alínea “c” do inciso II do art. 9o, haja vista encontrar-se fora do exercício de suas funções. d) Do crime militar praticado por militar durante o período de manobras ou exercício, contra civil. O art. 9o, inciso II, alínea “d”, do CPM, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, considera crime militar aquele previsto no Código Penal Militar e na legislação penal, quando praticado por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil. Novamente, perceba-se que o Código Penal Militar refere-se ao militar da ativa que se encontra no exercício da função, seja durante o período de manobra, seja durante a realização de um exercício militar. Em ambas as hipóteses, e independentemente de onde ocorrer o delito, havendo nexo funcional entre a prática delituosa e as funções desempenhadas pelo agente, estará caracterizado o crime militar com base nessa alínea. Segundo a doutrina, “o conceito de formatura abrange os desfiles militares, os treinamen­ tos para esses desfiles, etc. Manobra compreende qualquer movimentação da unidade militar, destinada ao treinamento, a ocupar posições durante estado de sítio, de defesa, perturbação de ordem pública, etc. Exercício é atividade destinada ao preparo físico do militar, ao treinamento militar da tropa, incluindo a utilização de aparelhamento bélico, etc.”148 e) Do crime militar cometido por militar da ativa contra o patrimônio sob a adminis­ tração militar, ou a ordem administrativa militar. Consoante dispõe o art. 9o, inciso II, alínea “e”, do CPM, com redação dada pela Lei n. 13.491/17, considera-se crime militar, em tempo de paz, os crimes previstos no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal, quando praticados por militar em situação de atividade contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar. 147

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Em caso concreto apreciado pelo Supremo, em que policiais Militares, cumprindo suas jornadas de trabalho, em viatura militar, intervieram em incidente de rua e, ao o fazerem, cometeram crime, concluiu-se pela competência da Justiça Militar, entendendo-se que o simples fato de a intervenção no incidente ter se dado em área territorial fora dos limites em que deviam exercer o policiamento não afastaria o caráter de "estarem em serviço". De fato, não se há de pretender que um policial veja uma ocorrência que mereça urgente intervenção nas proximidades de onde se encontre e não adote qualquer providência. Adotando-a há de considerar que assim procedeu em serviço: STF, 2â Turma, RHC 60.278/SP, Rei. Min. Aldir Passarinho, DJ 15/04/1983. LOBÃO, Célio. Op. Cit. p. 124.

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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Como o Código Penal Militar refere-se ao patrimônio sob a administração militar, não é necessário que o bem pertença ao patrimônio militar, sendo suficiente que esteja, legalmente, sob essa administração, como, v.g., veículos e máquinas de propriedade de pessoas físicas ou jurídicas cedidos ou locados para determinados fins.149 Com efeito, o dispositivo em questão alude a “patri­ mônio sob a administração militar” e não a patrimônio de que as entidades militares sejam titulares da propriedade pela singela razão de que elas não têm patrimônio próprio, que é do Estado, que o coloca sob a administração das entidades militares para que estas possam exercer as suas atribuições. Este o motivo pelo qual o STF manteve a competência da Justiça Militar para processar e julgar capelão militar denunciado pela suposta prática do crime de apropriação indébita (CPM, art. 248, caput, c/c art. 250) de valores recolhidos de fiéis e não repassados à Cúria Militar. Em que pese a defesa sustentar a atipicidade da conduta, porquanto o acusado teria se apropriado de quantias pertencentes à igreja, que não dizem respeito à Administração Militar, a Suprema Corte reiterou o entendimento de que o tipo penal em questão não exigiria que a coisa alheia móvel fosse de pro­ priedade da Administração Pública.150Em sentido semelhante, a 3a Seção do STJ também entendeu que compete à Justiça Militar da União processar e julgar Coronel do Exército Brasileiro que, na qualidade de Diretor de Hospital, teria se apropriado de montantes de dinheiro remetidos pelo Fundo de Saúde do Exército (FUSEx) para o pagamento de despesas médicas efetuadas pela instituição.151 Para que o crime seja considerado militar, é indispensável que o objeto esteja sob a adminis­ tração militar. Portanto, se a coisa, originariamente militar, por qualquer meio, deixa de estar sob a administração militar, ou passa a pertencer a militares, como patrimônio individual, o crime, desde que tenha sido cometido fora da área sob a administração militar, será processado e julgado pela Justiça comum. A título de exemplo, em determinado caso concreto, foram subtraídas de um próprio nacional residencial (PNR) barras de metal utilizadas para armação de barracas de camping do Exército brasileiro. Ocorre que esse material tinha sido anteriormente descarregado e desafetado pelo Exército. Logo, tais objetos já não estavam mais sob a administração militar quando da prática do delito. Somando-se a isso o fato de o delito não ter sido praticado em lugar sujeito à administração militar, na medida em que o PNR não pode ser considerado como tal, chega-se à conclusão de que se trata de crime comum de furto. Por sua vez, por crimes militares contra a ordem administrativa militar compreendem-se as infrações que atingem a organização, a existência e a finalidade das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar. A título de exemplo, ao apreciar o HC 110.233/AM, a Ia Turma do STF concluiu pela competência da Justiça Militar para processar e julgar crime de falsidade ideológica consubstanciado na conduta de militar que teria atestado, falsamente, a re­ gularidade técnica para navegação de embarcações civis, porquanto tal delito teria sido praticado em detrimento da fé pública militar. Deveria incidir, portanto, o art. 9o, II, alínea “e”, do CPM.152 f) Do revogado crime militar praticado por militar da ativa que, embora não estando em serviço, usasse arma da corporação para a prática de ato ilegal. Quando da entrada em vigor do Código Penal Militar, a alínea “f ’ do inciso II do art. 9o do CPM possuía a seguinte redação: “por militar em situação de atividade ou assemelhado que,

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Veja-se o exemplo dado por Denílson Feitoza (op. cit. p. 375): "um policial militar, em serviço, atendendo uma ocorrência policial, recebe e arrecada um veículo automotor que havia sido furtado. Tendo a detenção desse objeto particular em razão do cargo, no percurso para a delegacia de polícia o policial militar se apodera do dinheiro do lesado".

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Informativo n? 546 do STF: RHC 96.814/PA, Rei. Min. Eros Grau, 12/05/2009.

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STJ - CC 48.014/RS - 3§ Seção - DJ 08/06/05 p. 148.

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STF, 1^ Turma, HC 110.233/AM, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 10/10/2017.

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embora não estando em serviço, use armamento de propriedade militar ou qualquer material bélico, sob guarda, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal”. O crime era considerado militar pelo simples fato de ser praticado por um militar com uma arma da corporação. Duas súmulas estavam relacionadas a esse crime militar. De acordo com a súmula 199 do extinto Tribunal Federal de Recursos, “compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os crimes cometidos por policial militar, mediante uso de arma da corporação, mesmo que se encontre no exercício de policiamento civil”. De modo semelhante, eis o teor da súmula 47 do STJ: “Compete à Justiça Militar processar e julgar crime cometido por militar contra civil, com emprego de arma pertencente à corporação, mesmo não estando em serviço”. Tratava-se de hipótese que ensejava fundadas críticas à competência da Justiça Militar. Nada justificava, por exemplo, que fosse considerado militar um crime de estupro somente porque um policial militar, ao cometê-lo, tivesse usado arma da corporação para ameaçar a vítima. Nenhuma razão encontrava-se para configurar crime militar a conduta do militar das Forças Armadas que, em sua casa, fora do serviço, viesse a matar sua esposa com tiros de arma recebida de sua corporação. Em data de 8 de agosto de 1996, entrou em vigor a Lei n° 9.299. A par de alterar a redação do art. 82 do Código de Processo Penal Militar, referida lei também revogou a alínea “f ’ do art. 9o do inciso II do Código Penal Militar, tendo também acrescentado um parágrafo único ao art. 9o. Diante da revogação da alínea “f ’ do inciso II do art. 9o do CPM, crimes cometidos por militares que não estiverem em serviço com arma da corporação não são mais considerados crimes militares, salvo, obviamente, se o militar da ativa se encontrar em uma das situações constantes do inciso II do art. 9o do CPM. Encontra-se superado, por conseguinte, o entendimento constante das súmulas anteriormente citadas (súmula 199 do extinto TFR e súmula 47 do STJ). Em julgado relacionado ao tema, pertinente à prática dos crimes de crimes de abandono de local de serviço e roubo circunstanciado pelo emprego de arma (CPM, artigos 195 e 242, § 2o, respectivamente), pelo fato de o militar haver largado o posto para o qual escalado e, fardado, valendo-se de arma da corporação, roubar automóvel de civil, entendeu a Ia Turma do STF que a simples circunstância de o acusado estar em horário de serviço, na ocasião do cometimento do delito, não significaria que estivesse exercendo atividade militar. Aduziu-se que também não se poderia cogitar da competência da justiça militar em decorrência da utilização de armamento de propriedade militar (CPM, art. 9o, II, f), ante a revogação desse dispositivo pela Lei 9.299/96.153 1.5.4. Do inciso III do art. 9o do CPM. O art. 9o, inciso III, do Código Penal Militar, versa sobre os crimes militares cometidos por militar da reserva, ou reformado, ou por civis. Como exposto nos comentários introdutórios deste Capítulo acerca da Lei n. 13.491/17, esses crimes militares cometidos por civis abrangem não apenas aqueles previstos no CPM, mas também os previstos na legislação penal. Como o inciso III do art. 9odo CPM tem como sujeito ativo tão somente o civil (reiteramos que, para fins de aplicação da lei penal militar, o militar da reserva ou reformado é considerado civil), forçoso é concluir que o dispositivo referido tem aplicação exclusiva na Justiça Militar da União, na medida em que, de acordo com a própria Constituição Federal, a Justiça Militar Estadual só tem competência para processar e julgar os militares dos Estados (CF, art. 125, § 4o). Logo, se um civil cometer um crime contra as instituições militares estaduais (v.g., furto de

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STF - HC 90.729/SP -

Turma - Rei. Min. Sepúlveda Pertence - DJ 26/04/2007.

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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armamento de um Policial Militar), deverá ser processado e julgado perante a Justiça Comum Estadual. Nessa linha, aliás, dispõe a súmula 53 do STJ que compete à Justiça Comum Estadual processar ejulgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais. Por­ tanto, diante da limitação constitucional imposta à Justiça Militar dos Estados, quando fizermos alusão ao civil como sujeito ativo de crime militar, estaremos nos referindo aos crimes militares cometidos por civis contra as Forças Armadas, os quais deverão ser processados e julgados pela Justiça Militar da União.154 Como exposto anteriormente, essa competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes militares praticados por civis é objeto de análise no julgamento daADPF n. 289. De todo modo, como não há, pelo menos por ora, qualquer decisão do STF com eficácia erga omnes e efeito vinculante nesse sentido, é possível afirmar que, tendo como sujeito ativo o civil, serão considerados delitos militares os crimes de que tratam os incisos I e II do art. 9o do CPM, desde que atendidas as circunstâncias do inciso III, valendo ressalvar que civis deverão ser julgados monocraticamente pelo Juiz Federal da Justiça Militar, nos termos do art. 3 0 ,1-B, da Lei n. 8.457/92, incluído pela Lei n. 13.774/18. a) Do crime militar praticado por civil contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar. Nos exatos termos do art. 9o, inciso III, alínea “a”, do CPM, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, quando praticados contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar.155 Novamente, o CPM faz menção ao patrimônio sob a administração militar. Como dito acima, não é necessário que o bem pertença ao patrimônio militar, sendo suficiente que esteja, legalmente, sob essa administração. Com efeito, o dispositivo em questão alude a patrimônio sob a administração militar e não a patrimônio de que as entidades militares sejam titulares da propriedade, pela singela razão de que elas não têm patrimônio próprio, que é do Estado, que o coloca sob a administração das entidades militares para que estas possam exercer as suas atribui­ ções. Por isso, v.g., o furto de material sob a administração militar federal é crime militar, apesar de esse material não ser de propriedade do ente militar de que foi subtraído, mas sim da União.156 Um dos exemplos mais comuns de crime praticado por civil contra o patrimônio sob a admi­ nistração militar das Forças Armadas é o de estelionato. O civil, objetivando continuar a usufruir do pagamento de pensionista das Forças Armadas, mesmo após seu falecimento, induz ou mantém a

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Em relação à constitucionalidade de a Justiça Militar da União processar e julgar civis, o Supremo Tribunal Fe­ deral editou a súmula 298 em 13 de dezembro de 1963: "O legislador ordinário só pode sujeitar civis à Justiça Militar, em tempo de paz, nos crimes contra a segurança externa do País ou as instituições militares". Diante do teor do art. 125, § 49, da CF, diríamos que somente a Justiça Militar da União pode processar e julgar civis. De mais a mais, quanto aos crimes contra a segurança externa do país, essa súmula está ultrapassada, na medida em que à Justiça Federal compete processar e julgar os crimes políticos previstos na Lei n9 7.170/83, nos exatos termos do art. 109, IV, da CF.

Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União com base no art. 99, III, alínea "a", do CPM, para o processo e julgamento de crime de furto praticado por civil, ocorrido em lugar sujeito à administração militar, envolvendo res fu rtiv a - uma pistola taurus 9mm - na posse de Soldado da Aeronáutica em serviço e sob ad­ ministração das Forças Armadas: STJ, 3â Seção, CC 145.721/SP, Rei. Min. Joel llan Paciornik, j. 22/02/2018, DJe 02/03/2018. 156 STF - HC 79.792/PA - l 9 Turma - Rei. Min. Moreira Alves - DJ 03/03/2000.

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administração militar em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, a fim de que o pagamento não seja cessado. Nesse caso, estará caracterizado o crime militar de estelionato (art. 251, caput, c/c art. 9o, III, “a”, ambos do CPM), na medida em que o delito atenta contra o patrimônio sob a administração militar.157Nesse caso, revela-se indevida a incidência da causa de aumento de pena prevista no § 3o do mesmo dispositivo (“a pena é agravada, se o crime é cometido em detri­ mento da administração militar”).158De fato, em relação ao civil, só haverá crime de estelionato se a vítima for a administração militar - combinação do tipo da parte especial (art. 251, caput, do CPM) com o tipo indireto do art. 9o, inciso III, alínea “a”, do CPM. Logo, crime cometido em detrimento da administração militar é uma elementar do crime militar de estelionato praticado por civil, mos­ trando-se inviável a incidência da causa de aumento de pena, sob pena de verdadeiro bis in idem}59 Ao contrário do que foi visto anteriormente quanto à interpretação restritiva dos Tribunais Superiores em tomo da competência da Justiça Militar da União para processar e julgar civis, nessa hipótese de crimes militares praticados por civil contra o patrimônio sob a administração militar (CPM, art. 9o, III, “a”), tem prevalecido a regra de que a competência deve ser fixada com base em critérios objetivos, pouco importando o elemento subjetivo do agente. Logo, cometido crime militar por civil contra o patrimônio sob a administração militar das Forças Armadas, estará fixada a competência da Justiça Militar da União, pouco importando se o agente agiu dolosa ou culposamente.160 Daí o motivo pelo qual a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu habeas corpus impetrado em favor de denunciado pela suposta prática do crime de receptação culposa (CPM, art. 255), consistente na aquisição de cabos e fios elétricos pertencentes a esta­ belecimento militar da União. Entendeu-se que, não obstante o delito haver sido praticado por civil, a Justiça Militar da União seria a competente para o processamento do feito, tendo em conta tratar-se de crime militar impróprio, uma vez que somente está tipificado no CPM e que o bem encontrava-se sob administração militar. Ressaltou-se, também, não influir na definição da competência o fato de o paciente ter agido com dolo ou culpa e não haver de se cogitar da competência da Justiça Penal Estadual para tal hipótese.161 Por sua vez, por crimes militares contra a ordem administrativa militar compreendem-se as infrações que atingem a organização, a existência e a finalidade das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar. Eis a razão pela qual, ao apreciar conflito de competência relativo a crime de falsificação de documento militar por civil, o qual foi utilizado perante órgão sujeito à administração militar, concluiu o STJ tratar-se de crime militar.162 157

Nesse sentido: STF - HC 84.735/PR - 1§ Turma - Rei. Min. Eros Grau - DJ 03/06/2005.

158 Apesar de o art. 251, § 3-, do CPM, não dispor acerca do quantum de agravação, dispõe o art. 73 do Código Penal Militar que "quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem mencionar o quantum , deve o juiz fixá-lo entre 1/5 (um quinto) e 1/3 (um terço), guardados os limites da pena cominada ao crime". 159

No sentido de que o § 39 do art. 251 do Código Penal Militar se aplica ao militar da ativa, embora não se aplique ao civil nem ao militar inativo (reformado/reserva), já que, quanto a estes, só há crime de estelionato militar se a vítima for a administração militar: STF - HC 85.167/SP - 2§ Turma - Rei. Min. Joaquim Barbosa - DJ 02/02/2007 p. 159.

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Recentemente, porém, o Ministro Luiz Fux deferiu pedido de medida liminar em habeas corpus para suspender processo em andamento na Justiça Militar da União pela prática do crime de estelionato, em virtude de suposta movi­ mentação de conta corrente de pensionista do Exército após seu falecimento. Nas palavras do Relator, a jurisprudência do Supremo - inspirada na tendência mundial de restringir ou, sob viés radical, de suprimir a competência castrense para julgar civis em tempo de paz - vem evoluindo no sentido de sujeitar à competência da Justiça Militar somente os civis cujas condutas violem bens jurídicos tipicamente associados à função castrense, tais como a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem: STF, Medida Liminar no HC 114.559, DJe 18317/09/2012.

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STF - HC 86.430/SP - 2^ Turma - Rei. Min. Gilmar Mendes - DJ 16/12/2005.

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STJ, 3ã Seção, CC 37.893/RJ, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 16/08/2004 p. 131. No sentido da competência da Justiça Militar da União para processar e julgar a falsificação de atestado médico praticado por funcionário

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b) Do crime militar praticado por civil em lugar sujeito à administração militar contra militar da ativa. Na dicção do art. 9o, inciso III, alínea “b”, do Código Penal Militar, “consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, quando cometidos em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo”. Ao contrário do crime militar do art. 9o, III, “a”, do CPM, que demanda que a infração seja praticada contra o patrimônio sob a administração militar, pouco importando o local, a tipificação do crime militar do art. 9o, III, “b”, do CPM, exige que o crime seja praticado por civil contra militar da ativa em lugar sujeito à administração militar, conceito este que foi objeto de análise nos comentários à alínea “b” do inciso II do art. 9o do CPM. Por isso, pensamos que andou mal o STJ ao apreciar o Conflito de Competência n° 115.311/PA. O caso concreto referia-se a furto de bem móvel (aparelho de som) pertencente a militar praticado por civil nas dependências de local sob a administração do Exército Brasileiro. Concluiu o STJ que a competência seria da Justiça Comum, visto que o bem furtado não faria parte do patrimônio público sob administra­ ção militar, daí por que não estaria presente nenhuma das hipóteses previstas no art. 9o, I e III, do CPM.163 Ora, ao contrário da alínea “a” do inciso III do art. 9o, a alínea “b” não exige que o crime seja cometido contra o patrimônio sob a administração militar. Na verdade, exige-se apenas que o crime militar cometido por civil contra militar da ativa seja praticado em lugar sujeito à administração militar, exatamente o que aconteceu no caso concreto. O teor do art. 9o, III, “b”, do CPM, deve ser analisado com cautela. Apesar de a alínea referir-se ao crime militar praticado por civil, quando cometido em lugar sujeito à administração militar, contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo, há de se ter em mente que tais funcionários não são considerados mili­ tares, mas sim funcionários públicos federais. Logo, eventual crime contra eles cometido não será considerado crime militar. Será, sim, considerado crime comum, de competência da Justiça Federal, haja vista tratar-se de crime praticado em detrimento de serviços ou interesses da União (CF, art. 109, inciso IV), nos exatos termos da súmula 147 do STJ (“Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função ”). Em caso concreto envolvendo o oferecimento de vantagem indevida por civil a servidor da Justiça Militar da União com o intuito de que deixasse de praticar ato de ofício (citação), entendeu a 3a Seção do STJ que a competência seria da Justiça Militar. Na visão do STJ, para fins de caracterização do crime militar previsto no art. 9o, III, “b”, do CPM, não haveria ne­ cessidade de o crime ser praticado em lugar sujeito à administração militar, desde que o crime fosse cometido por civil contra funcionário da Justiça Militar no exercício de função inerente civil de instituição militar com a finalidade de abonar faltas injustificadas ao serviço em organização militar do Exército, na medida em que referido delito afeta a ordem administrativa militar: STJ - CC 31.735/RJ - 3§ Seção - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 11/09/2002 p. 272. 163

STJ, 3®Seção, CC 115.311/PA, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/03/2011. Estranhamente, a I s Turma do STF também concluiu pela competência da Justiça Comum para processar e julgar ofensas difa­ matórias praticadas por civil contra odontólogo militar em lugar sujeito à administração militar, sob o argumento de que as ofensas ficaram restritas à esfera pessoal da vítima de modo a macular somente a honra subjetiva desta: STF, 1§ Turma, HC 116.870/CE, Rei. Min. Rosa Weber, j. 22/10/2013.

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ao seu cargo. Logo, concluiu o STJ que, como o fato delituoso fora praticado contra funcionário da Justiça Militar, analista judiciário que cumpria mandado de citação, estariam presentes as hipóteses do art. 9o, III, “b”, do CPM, parte final, atraindo a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento do feito, nos termos do art. 124 da CF.164Mais uma vez, somos levados a acreditar que a 3a Seção do STJ laborou em equívoco. É bem verdade que o art. 9o, III, “b”, do CPM, faz menção ao crime cometido por civil em lugar sujeito à administração militar contra funcionário da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo. Porém, não se pode perder de vista que tal dispositivo há de ser lido à luz da Constituição Federal de 1988, que outorga à Justiça Federal a competência para o processo e julgamento de crimes cometidos em detrimento de bens, serviços ou interesses da União (CF, art. 109, IV). Ora, se se trata de crime de corrupção ativa praticado por civil em desfavor de analista judiciário, funcionário público federal integrante do Poder Judiciário da União, é evidente que o crime atenta contra interesse da União, daí por que a competência para o processo e julgamento do feito recai sobre a Justiça Federal, e não sobre a Justiça Militar, como equivocadamente concluiu o STJ. O art. 82, inciso II, do Código de Processo Penal Militar, também deve ser interpretado com extrema cautela. De acordo com esse dispositivo, o foro militar seria especial, e, exceto nos crimes doloso contra a vida praticados contra civil, a ele estariam sujeitos, em tempo de paz, nos crimes funcionais contra a administração militar ou contra a administração da Justiça Militar, os auditores, os membros do Ministério Público, os advogados de ofício e os funcio­ nários da Justiça Militar. Ora, diante da Constituição Federal de 1988, há de se concluir que tal dispositivo também não foi recepcionado. De fato, se os Juízes-Auditores a que se refere o dispositivo são consi­ derados “Juizes da União”, na medida em que pertencem ao Poder Judiciário da União, não poderão ser julgados perante a Justiça Militar, mas sim perante o respectivo Tribunal Regional Federal, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, nos exatos termos do art. 108, inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal. Por sua vez, os membros do Ministério Público Militar, integrantes que são do Ministério Público da União, deverão ser julgados: a) membros que atuam na Ia instância - Promotores de Justiça Militar e Procuradores da Justiça Militar - devem ser julgados perante o respectivo Tribunal Regional Federal, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, de acordo com o art. 108,1, alínea “a”, da Constituição Federal; b) membros que atuam perante o Superior Tribunal Militar - Subprocuradores-gerais e Procurador-Geral do Ministério Público Militar - serão julgados perante o Superior Tribunal de Justiça; nos termos do art. 105, inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal. O advogado de ofício a que se refere o art. 82, inciso II, do CPPM, já existia desde o antigo Código de Justiça Militar (Dec.-lei 925/1938), segundo o qual o Advogado de Ofício era nomeado mediante concurso público, incumbindo-lhe funcionar, obrigatoriamente, como defensor das praças, na Justiça Militar, embora não fosse vedada a constituição de advogado. Com a Constituição de 1988 (art; 134) e a edição da Lei Complementar n° 80/94 (art. 138), os advogados de ofício que fizeram |a opção tiveram o cargo transformado em Defensor Público da União. Destarte, como os Defensores Públicos Federais não são dotados de foro por prerrogativa de função, sendo considerados funcionários públicos federais, deverão ser processados e julgados perante a Justiça Federal (CF, art. 109, inciso IV, c/c a súmula 147 do STJ). Por conseguinte, inobstante os dizeres da alínea “b” do inciso III do art. 9o do CPM, tendo-se em mente que a figura do assemelhado já não existe mais, considerando-se, ademais, que crimes 164

STJ, 3- Seção, CC 88.600/RJ, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 14/09/2011, DJe 29/09/2011.

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cometidos contra funcionários de Ministério Militar ou da Justiça Militar são de competência da Justiça Federal, pensamos que a alínea em questão pode ser sintetizada como o crime militar praticado por civil contra militar da ativa em lugar sujeito à administração militar. Em julgado relacionado ao crime militar em análise, concluiu o STJ que, em se tratando de crime de desacato praticado por civil em lugar sujeito à administração militar e contra militar no regular exercício de suas funções, impõe-se o reconhecimento da Justiça Castrense para processar e julgar o feito, nos exatos termos do art. 9o, III, “b”, do CPM.165 De se notar que se esse mesmo delito de desacato tivesse sido praticado contra um policial militar, em razão de sua função, no interior de um quartel da Polícia Militar, não seria crime militar, mas sim crime comum de desacato do art. 331 do CP, a ser processado e julgado perante a justiça comum, na medida em que a Justiça Militar Estadual não tem competência para julgar civis (CF, art. 125, § 4o). c) Do crime militar praticado por civil contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras. De acordo com o art. 9o, inciso III, alínea “c”, do Código Penal Militar, consideram-se crimes militares, em tempo de paz, os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreen­ didos no inciso I, como os do inciso II, quando cometidos contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras,166 Na lição de Ayrton Oliveira Pinto, “formatura é o deslocamento marcial, cadenciado ou não, de tropa militar, devidamente comandada. Período de prontidão é um estado de alerta, em que as tropas estão prontas para operações. Vigilância e observação, sob o ponto de vista jurídico, se con­ fundem, traduzindo um estado de espreita, de constante observação. Exploração é o reconhecimento de um terreno, o seu balizamento para a passagem das tropas. Acampamento é o estacionamento temporário das tropas, que se abrigam em barracas, diferenciando-se do acantonamento, que é o estacionamento das tropas, também em caráter temporário, mas aproveitando-se de instalações adrede existentes. O bivaque, que a lei não diz expressamente, mas que se compreende entre o acampamento e o acantonamento, é o estacionamento temporário de tropas com o aproveitamento das condições naturais do terreno, como abrigo, tais como árvores e outras cobertas”.167 Aqui, como adverte Célio Lobão, “os requisitos a serem considerados são formatura, pron­ tidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobra, dos quais o militar encontra-se participando, efetivamente, no momento do crime. Todos eles dizem respeito à preparação da tropa, para cumprimento da destinação constitucional, e às atri­ buições legais, incluindo-se a prontidão que é uma situação de alerta, durante o estado de defesa, de sítio (arts. 136 e 137 da Constituição), ou em situações especiais de calamidade, sinistro de grandes proporções, comoção interna, visita de chefe de governo estrangeiro, etc.”.168

165 166

STJ - CC 32.135/RJ - 3^ Seção - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 04/08/2003 p. 220. Nas palavras de Jorge Alberto Romeiro, "acantonamento é a área de alojamento da tropa em local construído. Difere do acampamento, que é o local de estacionamento da tropa, em barracas, no campo, e criou a expressão castrense usada para designar o direito penal militar. Do latim castrensis, derivado de castra, oram = acam­ pamento. Vocábulo esse do qual se originaram, ainda, castrametação, arte bélica de escolher o local para o acampamento, e castro, castelo fortificado, para defesa militar" (op. cit. p. 84).

167

Elementos de D ireito Penal M ilitar.

168

Op. cit. p. 139.

Apex, 1975. p. 57.

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d) Do crime militar praticado por civil, ainda que fora do lugar sujeito à administra­ ção militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior. Quanto ao presente crime militar, assim como em relação aos demais crimes militares praticados por civis, tem havido séria controvérsia quanto ao conceito de “função de natureza militar”.169 Como exposto no item 1.4, tem prevalecido o entendimento jurispradencial de que essa função de natureza militar a que se refere a alínea “d” do inciso III do art. 9o do CPM deve estar relacionada às atribuições precípuas das Forças Armadas, cujos contornos estão bem delineados pelo art. 142 da Carta Magna. Assim, eventual crime praticado contra militar que se encontre no exercício de uma função subsidiária das Forças Armadas não seria considerado crime militar. Não por outro motivo, em caso concreto relativo a civis denunciados por crimes de resistência e desacato praticados contra militares no desempenho de funções de polícia naval, entendeu-se não haver crime militar, mas sim crime comum de competência da Justiça Federal (CF, art. 109, IV). Sendo o policiamento naval atribuição, não obstante privativa da Marinha de Guerra, de caráter subsidiário, por força de lei, não seria possível, por sua índole, caracterizar essa atividade como função de natureza militar, na medida em que seu exercício também pode ser cometido a servidores não militares da Marinha de Guerra.170 Com a devida vênia, quando a Constituição Federal e a legislação ordinária atribuem às Forças Armadas suas atribuições, de modo algum diferenciam entre atribuições primárias e subsidiárias. Destarte, se o militar encontra-se no exercício de função legalmente a ele atribuída - compreendendo-se função militar como o exercício das obrigações inerentes ao cargo militar (Estatuto dos Militares - art. 23 da Lei n° 6.880/80) -, não conseguimos visualizar a razão desse crime não ser considerado militar. Perceba-se que a própria Constituição Federal, em seu art. 142, coloca em posição de igualdade as atribuições principais (defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais) e as secundárias (garantia da lei e da ordem).171

169

Para parte da doutrina, "a função de natureza militar distingue-se de outro serviço do qual é incumbido o militar, serviço esse que não é próprio de integrante de organização militar, conquanto seja indispensável ao funcio­ namento, à manutenção, à própria existência da corporação castrense. Assim sendo, encontra-se em serviço o militar que realiza a limpeza, a manutenção do estabelecimento militar, a aquisição de gêneros alimentícios e de outros bens, preparo de refeições, recuperação e manutenção dos meios de transporte militares, além de outras atribuições dessa espécie. A distinção entre função de natureza militar e serviço assume relevância porque somente a primeira ingressa como requisito suficiente para classificar, como militar, o delito praticado pelo civil contra militar, em conformidade com a alínea d, l ã parte, do inciso III, c/c o inciso II, 2ã parte, tudo do art. 95. Realmente, não é militar o delito cometido pelo civil contra militar em serviço que não se ajusta ao conceito de função de natureza militar, nem ao de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem. Nesse sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Federal que não considerou como função de natureza militar o serviço de policiamento de trânsito, executado por militares do Exército, próximo ao Palácio Duque de Caxias, no Rio, o que se aplica aos militares de outras armas nessa mesma função". (LOBÃO, Célio. Op. cit. p. 145).

170

STF - HC 68.928/PA - 2§ Turma - Rei. Min. Néri da Silveira - DJ 19/12/1991. Assim, como a atividade de policiamento naval, desenvolvida por militar, por ser subsidiária, administrativa, não tem o condão de atrair a incidência do disposto na alínea "d" do inciso III do artigo 92 do Código Penal Militar. A competência da Justiça Militar pressupõe, na visão do Supremo, prática contra militar em função que lhe seja própria: STF - CC 7.030/ SC - Tribunal Pleno - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 31/05/1996.

171

Segundo Lobão, a função de natureza militar é o conjunto de atribuições conferidas, por disposição legal ou por determinação de autoridade competente, ao militar federal ou ao militar estadual, na condição de integrante de corporação militarizada. Essa atribuição, segundo o autor, não se restringe à atividade bélica contra agressões estrangeiras em caso de guerra externa e, por outro lado, defesa das instituições democráticas, mas também as

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

Registre-se que o próprio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se mani­ festar nesse sentido, em julgado relativo ao naufrágio do Bateau Mouche no Rio de Janeiro. Versava o caso concreto acerca de corrupção ativa praticada por civil, com o fim de obter do sargento encarregado do policiamento naval a liberação da lancha que estaria conduzindo passageiros acima de sua capacidade. Ora, se considerássemos que esse militar estaria no exercício de uma atribuição de caráter subsidiário da Marinha, a competência, na linha do entendimento anterior, deveria ser da Justiça Federal. No entanto, como se admitir que o rece­ bimento de vantagem indevida por um Sargento da Marinha não atente contra as instituições militares, de modo a atrair a competência para a Justiça Militar da União? De modo acertado, a nosso ver, a Io Turma do Supremo Tribunal Federal concluiu tratar-se de crime militar de competência da Justiça Militar da União.172 No mesmo contexto, em caso concreto em que um civil descumpriu ordem de soldado do exército em serviço externo de policiamento de trânsito defronte a quartel, concluiu a Ia Turma do STF competir à Justiça Militar da União o processo e julgamento do delito de desobediência (CPM, art. 301), nos termos do art. 9o, III, alínea “d”, do Código Penal Militar.173 Ainda em relação à função de natureza militar, não se pode perder de vista que, além da destinação à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, a Lei Complementar n° 97/99 também outorga às Forças Armadas o cumprimento de atribuições subsidiárias, cujo conhecimento é importante para fins de fixação da competência da Justiça Militar. Se as atividades listadas no art. 15, § 7o, da LC 97/99, com redação dada pela LC 136/10, são consideradas atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal, eventual crime cometido por civil contra militar no exercício de tais funções deveria ser considerado crime militar para fins de fixação da competência da Justiça Militar da União, nos exatos termos do art. 9o, III, alínea “d”, do Código Penal Militar. No entanto, parece caminhar em sentido diverso o entendimento dos Tribunais Superiores. Em caso concreto envolvendo civil que teria desacatado militar no contexto de atividade de poli­ ciamento ostensivo em virtude do processo de ocupação e pacificação de comunidades cariocas em ambiente estranho ao da Administração Castrense, concluiu a 2a Turma do STF recair sobre a Justiça Federal a competência para processar e julgar o feito. Sopesou-se que a mencionada atividade seria de índole eminentemente civil, porquanto envolveria típica natureza de seguran­ ça pública, a afastar o ilícito penal questionado da esfera da justiça castrense. Pontuou-se que instauraria - por se tratar de agente público da União - a competência da justiça federal comum (CF, art. 109, IV). Constatou-se que o Supremo, ao defrontar-se com situação assemelhada, não considerara a atividade de policiamento ostensivo função de natureza militar.174 denominadas atribuições subsidiárias, entre elas, o exercício da polícia naval, aérea e a de fronteira, a segurança de personalidades estrangeiras, atividades pertinentes à prestação do serviço militar, além de outras, que podem ser exercidas, igualmente, por civis. (op. cit. p. 143). 172

STF - RE 121.124/RJ - I a Turma - Rei. Min. Octavio Gallotti - DJ 08/06/1990). Reconhecendo a competência da Justiça Militar da União para processar e julgar ação penal promovida contra civil que cometeu crime de desacato contra m ilita r da M arinha do Brasil em atividade de patrulham ento naval, porquanto se trata de crime

praticado contra militar no exercício de funções que lhe foram legalmente atribuídas, sendo de todo irrelevante qualquer indagação quanto à natureza primária ou subsidiária de tal função: STJ, 3a Seção, CC 130.996/PA, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 12/2/2014. 173

STF, 1§ Turma, HC 115.671/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 13/08/2013.

174

STF, 2a Turma, HC 112.936/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, j. 05/02/2013, DJe 93 16/05/2013. De se lembrar que encontra-se em trâmite no STF a ADI 5.032, que tem como objetivo precípuo a declaração da inconstitucionalidade do art. 15, § 7a, da LC 97/99, que inseriu na competência da Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos no exercício das atribuições subsidiárias das Forças Armadas.

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1.5.5. Dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, a) Lei n. 9.299/96 Dentre outras alterações, a Lei n° 9.299/96 acrescentou um parágrafo único ao art. 9o do Código Penal Militar, segundo o qual “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”. Pela mesma lei foi acrescentado o § 2o ao art. 82 do CPPM, determinando que, quanto a tais crimes, a Justiça Militar deva encaminhar os autos do inquérito policial militar à justiça comum.175 Parte minoritária da doutrina entende que o dispositivo seria dotado de flagrante inconstitucionalidade, pelos seguintes motivos: a) a Constituição enuncia que compete à Justiça Militar Federal e estadual julgar os crimes militares definidos em lei (art. 124 e 125, § 4o); b) os crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra civil, em local sob administração militar, ou em serviço, são crimes militares (art. 205, c/c o art. 9o, II); c) a lei ordinária não pode suprimir a competência da Justiça Militar para processar e julgar os delitos militares definidos em lei, inclusive os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, nas circunstâncias expressas nas alíneas b a d do inciso II do art. 9o. Parece caminhar nessa direção o Superior Tribunal Militar, órgão de 2a instância no âmbito da Justiça Militar da União, que vem declarando incidenter tantum a inconstitucionalidade da Lei n° 9.299/96 no que tange à inserção do parágrafo único ao art. 9o do Código Penal Militar, para continuar considerando como crime militar o delito de homicídio doloso praticado por militar das Forças Armadas em serviço contra civil.176 Em que pese tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça pacificaram a questão em tomo da constitucionalidade do referido dispositivo, deli­ berando pela manutenção da competência do Tribunal do júri para processar e julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis. Se o parágrafo único do art. 9o do CPM dispunha, à época, que os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da Justiça Comum, e tendo em conta que este parágrafo único fora inserido no artigo do Código Penal Militar que define os crimes militares em tempo de paz (art. 9o), é de se concluir que os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil foram implicitamente excluídos do rol dos crimes considerados como militares pelo CPM. Tal entendimento é corroborado pelo fato de o art. 82 do CPPM também ter sido modificado pela Lei n° 9.299/96, passando a excetuar do foro militar, que é especial, as pessoas a ele sujeitas quando se tratar de crime doloso contra a vida em que a vítima seja civil, e estabelecendo-se que nesses crimes a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum.177 À época, portanto, crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra civil, inde­ pendentemente de o militar estar ou não em serviço, deveriam ser invariavelmente processados e julgados perante o Tribunal do Júri. Em se tratando de militares dos Estados, a competência seria do Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Comum Estadual; cuidando-se de militares das Forças Armadas, de Tribunal do Júri Federal. Quanto à Justiça Militar estadual, tal competência

175

O § 2Qdo art. 82 do CPPM foi objeto da ADI 1.494/DF: o STF negou a liminar, porque o IPM não impede a ins­ tauração paralela de inquérito policial pela Polícia Civil. Ocorre que esta ADI não teve seguimento, porquanto foi reconhecida a ilegitimidade da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil.

176

STM, RC n^ 6.449-0/RJ, DJ 22/04/1998.

177

Nesse sentido: STF - RE 260.404/MG - Tribunal Pleno - Rei. Min. Moreira Alves - DJ 21/11/2003. Na mesma linha: STJ - HC 102.227/ES - 5ã Turma - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - Dje 19/12/2008.

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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encontra acolhida na própria Constituição Federal, na medida em que o art. 125, § 4o, da Carta Magna, com redação dada pela Emenda Constitucional n° 45/04, ressalva expressamente a competência do Tribunal do Júri quando a vítima for civil. Como a competência, em regra, é fixada com base em critérios objetivos, independentemente da análise do elemento subjetivo do agente, nas hipóteses de aberratio ictus, deve ser levada em consideração a pessoa sobre a qual recaiu a conduta, pouco importando quem seja a chamada “vítima virtual”. Como se sabe, no erro na execução, previsto no art. 73 do Código Penal, o agente quer atingir uma pessoa, porém, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, vem a atingir pessoa diversa. Nesse caso, para fins penais, responde como se tivesse atingido a pessoa que pretendia ofender. Para fins de fixação da competência, todavia, importa a vítima real. Por conseguinte, se um militar da ativa, com animus necandi, efetua disparos de arma de fogo contra outro militar da ativa, porém acaba matando um civil por erro na execução, deve responder perante o Tribunal do Júri, e não perante a Justiça Militar.178 Ao Tribunal do Júri compete apenas o processo e julgamento de crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil. Logo, na hipótese de troca de tiros entre policiais militares em serviço e foragido da Justiça que, após resistir à ordem de recaptura, for alvejado, deve ser reconhecida a competência da Justiça Militar para processar e julgar eventual crime de lesão corporal, desde que evidenciada a ausência de animus necandi por parte dos militares.179 Na visão da 3a Seção do STJ, havendo dúvidas sobre a existência do elemento subjetivo do crime de homicídio, deverá tramitar na Justiça Comum - e não na Justiça Militar - o processo que apure a suposta prática do crime cometido, em tempo de paz, por militar contra civil. Para se eliminar a eventual dúvida quanto ao elemento subjetivo da conduta, de modo a afirmar se o agente militar agiu com dolo ou culpa, é necessário o exame aprofundado de todo o conjunto probatório, a ser coletado durante a instrução criminal, observados o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Dessa forma, o feito deve tramitar na Justiça Comum, pois, nessa situação, prevalece o princípio do in dubio pro societate, o que leva o julgamento para o Tribunal do Júri, caso seja admitida a acusação em eventual pronúncia. No entanto, se o juiz se convencer de que não houve crime doloso contra a vida, remeterá os autos à Justiça Militar, em conformidade com o disposto no art. 419 do CPP.180 A despeito das alterações produzidas pela Lei n° 9.299/96, não se pode concluir que, à época, a Justiça Militar não mais teria competência para processar e julgar crimes dolosos contra a vida. Subsistia a competência da Justiça Castrense para processar e julgar os seguintes crimes dolosos contra a vida: 1. Homicídio doloso cometido por militar da ativa contra militar da ativa (art. 205, caput, c/c art. 9o, inciso II, alínea “a”, ambos do CPM): por isso, em caso concreto relativo a homicídio doloso praticado por policiais militares em situação de atividade contra militar de folga, concluiu a 3a Seção do STJ que o homicídio praticado contra o PM deveria ser julgado pela Justiça Militar Estadual, ao passo que o delito perpetrado contra a civil deveria ser processado perante o Tribunal do Júri.181 Em sentido diverso, todavia, ao apreciar o Conflito de competência

178

Com esse entendimento: STJ, 3ã Seção, CC 27.368/SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 27/11/2000 p. 123.

179

STJ, 3ã Seção, CC 120.201/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 25/04/2012.

180

Nesse sentido: STJ, 33 Seção, CC 129.497/MG, Rei. Min. Ericson Maranho - Desembargador convocado do TJ/ SP -, j. 08/10/2014.

181

STJ, 3^ Seção, CC 96.330/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 22/04/2009.

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n° 91.267, a 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça concluiu que crime doloso contra a vida cometido por militar fora do exercício do serviço, sem farda, e com motivação completamente alheia à função, contra outro militar, deve ser julgado pela Justiça Comum Estadual (Tribunal do Júri), porquanto tal conduta não se enquadra nas hipótese do artigo 9o do CPM.182 Com a devida vênia, para fins de fixação da competência da Justiça Militar, não se pode confundir o crime militar praticado por militar da ativa contra militar da ativa (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “a”), em que o Código exige nada além de que sujeito ativo e passivo como militares em situação de atividade (art. 3o, § Io, alínea “a”, da Lei n° 6.880/80), independentemente de estarem ou não em serviço quando da prática do delito, com o crime militar praticado por militar em serviço ou atuando em razão da função contra civil, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar (CPM, art. 9o, inciso II, alínea “c”), o qual, ao contrário do anterior, demanda que o militar pratique o delito no exercício funcional. Portanto, se o crime de homicídio doloso foi cometido por militar da ativa (PM) contra outro militar da ativa (PM), pouco importa se o delito foi cometido fora do exercício do serviço e com motivação alheia à função: a competência será da Justiça Militar, ex vi do art. 9o, inciso II, alínea “a”, do CPM; 2. Homicídio doloso cometido por civil contra militar das Forças Armadas em serviço (art. 205, caput, c/c art. 9o, inciso III, alíneas “b”, “c”, ou “d”): ao apreciar habeas corpus rela­ tivo a homicídio qualificado praticado por civil contra militar da Força Aérea Brasileira, que se encontrava de sentinela em posto de vila militar, concluiu a Suprema Corte tratar-se de crime militar, haja vista ter sido praticado por civil contra militar em função de natureza militar no desempenho de serviço de vigilância (CPM, art. 9o, inciso III, “d”), estando presentes 4 (quatro) elementos de conexão militar do fato: a) a condição funcional da vítima, militar da aeronáutica; b) o exercício de atividade fundamentalmente militar pela vítima, serviço de vigilância; c) o local do crime, vila militar sujeita à administração militar e d) o móvel do crime, roubo de arma da Força Aérea Brasileira - FAB.183 Esse raciocínio só é válido quando o sujeito passivo for militar federal, pois, caso a vítima desse homicídio doloso praticado por civil seja um policial militar em serviço, a competência será do Tribunal do Júri, na medida em que a Justiça Militar Estadual não tem competência para processar e julgar civis (CF, art. 125, § 4o). Se o militar da reserva ou reformado também é considerado civil para fins de aplicação da lei penal militar, dever-se-ia concluir que eventual crime de homicídio doloso praticado por militar da ativa em serviço contra esse militar em situação de inatividade também deveria ser julgado por um Tribunal do Júri, em fiel observância ao quanto disposto no art. 9o, parágrafo único, do CPM. Estranhamente, todavia, concluiu a 5a Turma do STJ ser a Justiça Militar o juiz natural para o processo e julgamento de homicídio praticado por militar da ativa em serviço contra militar reformado, nos termos do art. 9o, II, “c”, do CPM, pois o fato de a vítima do delito ser militar reformado, por si só, não teria o condão de afastar a competência da Justiça especia­ lizada. Na visão do STJ, ao dispor que são da competência da Justiça Comum os crimes nele previstos quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, o parágrafo único do art. 9o do CPM não teria excluído da competência da Justiça Militar o julgamento dos ilícitos praticados nas circunstâncias especiais descritas nos incisos I, II e III do referido artigo.184

182

STJ - CC 91.267/SP - 3§ Seção - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJ 22/02/2008 p. 164.

183

Ajurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de ser constitucional o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de militar em serviço pela justiça castrense, sem a submissão destes crimes ao Tribunal do Júri, nos termos do o art. 95, inc. Ill, "d", do Código Penal Militar: STF, 1^ Turma, HC 91.003/BA, Rei. Min. Cármen Lúcia, Dje 072 02/08/2007.

184

STJ, 5a Turma, HC 173.131/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 06/12/2012, DJe 15/02/2013.

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b. Desclassificação da imputação de homicídio doloso pelo Juiz Sumariante. Como é cediço, ao final da primeira fase do procedimento bifásico do Tribunal do Júri, ao juiz sumariante é dado adotar uma das seguintes decisões: pronúncia, impronúncia, absolvição sumária e desclassificação. Imaginando-se que um militar esteja sendo processado pela suposta prática de homicídio doloso contra civil, caso o juiz sumariante conclua pela não-existência de crime doloso contra a vida, deve remeter os autos à auditoria militar. Questiona-se, todavia, se o juízo militar estaria vinculado à decisão proferida pelo juiz sumariante. Essa discussão foi levada ao Superior Tribunal de Justiça, o qual decidiu que a desclassificação para homicídio culposo pelo juiz sumariante de modo algum vincularia o juízo militar, que poderia suscitar conflito de competência para apreciação da questão.185 De todo modo, é importante frisar que essa desclassificação pelo juiz sumariante somente será possível quando o juiz sumariante estiver plenamente convencido de que não se trata de crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil. Logo, se, ao final da Ia fase do procedimento do júri, subsistir dúvida em relação ao elemento subjetivo do agente {animus necandi), e, por conseqüência, indefinição quanto à competência para o processo e julgamento do feito - em se tratando de tentativa de homicídio doloso praticado por policial militar contra civil, competência da Justiça Comum; na hipótese de lesão corporal, competência da Justiça Militar -, deve o processo tramitar no juízo comum por força do princípio in dubio pro societate, porquanto o acusado somente pode ser subtraído de seu juiz natural mediante prova inequívoca. Assim, diante da ausência de prova inconteste e tranqüila sobre a falta do animus necandi, há que declarar competente o juízo de direito do Tribunal do Júri.186 c) Desclassificação pelos jurados para crime não doloso contra a vida e competência para o julgamento do crime militar. O que acontece se os jurados, ao votarem, procederem à desclassificação da imputação de homicídio doloso, concluindo, v.g., pela existência do crime de lesões corporais seguidas de morte praticado por militar em serviço contra civil? Nessa hipótese, não será possível a aplicação da regra do art. 492, § Io, Ia parte, do CPP, segundo a qual “se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida”. De fato, somente os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil serão processados e julgados perante o Tribunal do Júri. Se os jurados concluíram não se tratar de crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil, depreende-se que tal crime deixa de ser considerado crime comum, retomando à condição de crime militar, razão pela qual não pode ser julgado pelo Juiz-Presidente do Tribunal do Júri. Não se afigura possível a prorrogação da competência nessa hipótese, pois se trata de competência absoluta em razão da matéria, logo, inderrogável. Portanto, se esse crime de lesões corporais seguidas de morte tiver sido praticado por militar em serviço ou atuando em razão da função - crime militar nos exatos termos do art. 209, § 3o, in fine, c/c art. 9o, inciso II, “c”, ambos do CPM -, compete ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri determinar a remessa dos autos à Justiça Militar, a quem compete processar e julgar o referido crime militar.187 d) Tiro de abate e a competência da Justiça Militar da União para o seu julgamento (Lei n. 12.432/11). 185

STJ, 35 Seção, CC 35.294/SP, Rei. Min. Paulo Gallotti, DJ 18/04/2005 p. 211.

186

STJ, 35 Seção, CC 113.020/RS, Rei. Min. Og Fernandes, j. 23/03/2011.

187

É essa a posição do Supremo: STF, Pleno, RHC 80.718/RS, Rei. Min. limar Galvão, DJ 01Q/08/2003 p. 106.

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De modo a coibir o tráfico de drogas na região amazônica, coube ao Ministério da Aeronáu­ tica, atual Comando da Aeronáutica, a tarefa de desenvolver o Sistema dé Vigilância da Amazônia (SIVAM), planejado e implantado com o propósito de estabelecer uma nova ordem na região, permitindo que voos clandestinos passassem a ser registrados, possibilitando a interceptação pelas aeronaves da Força Aérea. No entanto, diante da possibilidade de descumprimento das de­ terminações estabelecidas pelas aeronaves militares, havia a necessidade de implementação legal de uma medida coercitiva. Daí por que foi criado o denominado tiro de abate (ou destruição). Com as modificações produzidas pela Lei n° 9.614/98, passou â constar do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) que a aeronave poderá ser detida por autoridades ae­ ronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos: I - Se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim; II - se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional; III - para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis; IV - para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21); V - para averiguação de ilícito. Segundo o art. 303, § Io, do referido Código, a autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe for indicado. Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após au­ torização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada (ÇBA, art. 303, § 2o). Por sua vez, segundo o art. 303, § 3o, a autoridade mencionada no § Io responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório. Em 2004, foi editado o Decreto n° 5.144, regulamentando os §§ Io, 2o e 3o do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, estabelecendo os procedimentos a serem seguidos com rela­ ção às aeronaves suspeitas, levando em conta que estas podem representar ameaça à segurança pública. Para fins de aplicação da legislação que trata da medida de destruição, é considerada aeronave suspeita de tráfico de substância entorpecentes e drogas afins aquela que: I - adentrar o território nacional, sem Plano de voo aprovado, oriunda de regiões reconhecidamente fontes de produção ou distribuição de drogas ilícitas; ou II - omitir aos órgãos de controle de tráfego aéreo informações necessárias à sua identificação, ou não cumprir determinações destes mesmos órgãos, se estiver cumprindo rota presumivelmente utilizada para distribuição de drogas ilícitas (Dec. 5.144/2004, art. 2o). Especificamente quanto à competência para o processo e julgamento do tiro de abate, o parágrafo único do art. 9o do Código Penal Militar foi alterado pela Lei n° 12.432/11, e passou a ter a seguinte redação: “Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvd quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei n° 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáuticd‘\ e) Lei n. 13.491/17. A competência para o processo e julgamento de crimes dolosos qontra a vida cometidos por militares contra civis foi novamente alterada, desta vez pela Lei n. 13.491/17. O art. 9o, §1°, do CPM, passou a ter a seguinte redação: “Os crimes de que trata este artigo, quando do­ losos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri”. Mantém-se, grosso modo, a regra já trabalhada por ocasião da entrada em vigor da Lei n. 9.299/96. A novidade fica por conta do art. 9o, §2°, do CPM, incluído pela Lei n. 13.491/17, que prevê a competência da Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes

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dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis se praticados em um dos contextos ali elencados. Importante perceber que o art. 9o, §2°, do CPM, incluído pela Lei n. 13.491/17, outorga essa competência para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis exclusivamente à Justiça Militar da União. E nem poderia ser diferente, sob pena de manifesta inconstitucionalidade. Afinal, ao tratar da competência da Justiça Militar Estadual, a própria Constituição Federal já ressalva a competência do Júri quando a vítima for civil (art. 125, §4°). Por isso, o novel dispositivo do CPM faz referência apenas à Justiça Militar da União e aos militares das Forças Armadas. Aliás, mesmo que um crime doloso contra a vida de civil seja cometido em coautoria por um militar do Exército e outro da Polícia Militar em serviço - como, por exemplo, durante uma atuação conjunta da Força Nacional de Segurança a separação dos feitos será de rigor. Aquele será julgado pela Justiça Militar da União; este, pelo Tribunal do Júri. A uma porque a Constituição Federal é explícita ao ressalvar a competência do júri em relação aos militares estaduais. A duas porque o art. 9o, §2°, do CPM, incluído pela Lei n. 13.491/17, é categórico ao conferir essa competência apenas em relação aos militares das Forças Armadas. :

A outorga dessa nova competência à Justiça Militar da União para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis não se revela incompatível com a competência constitucional do Júri. Por mais que a Constituição Federal atribua ao Tribunal do Júri a competência para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”), essa mesma Constituição também que dispõe que compete à Justiça Militar da União o julgamento dos crimes militares definidos em lei (art. 124, caput). Logo, por força do princípio da especialidade, se a Lei n. 13.491/17 optou por outorgar essa competência à Justiça Castrense Federal, não há falar em inconstitucionalidade por tal motivo. De mais a mais, como exposto anteriormente, diversamente do que ocorre em relação à Justiça Militar Estadual (CF, art. 125, §4°), ao tratar da competência da Justiça Militar da União, a Constituição Federal não faz nenhuma ressalva quanto à competência do júri quando a vítima for civil. A Lei n. 13.491/17 não instituiu um Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Militar da União. Na verdade, se o crime doloso contra a vida cometido por militar das Forças Armadas contra civil for cometido num dos contextos elencados nos incisos do §2° do art. 9o do CPM, tal delito continuará sendo julgado por um Conselho de Justiça (Permanente ou Especial). A nosso juízo, nada impede a criação de um Tribunal do Júri Militar. Porém, para tanto, há necessidade de al­ teração legislativa. Afinal de contas, é a própria Constituição Federal que reconhece a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei (art. 5o, XXXVIII). Diversamente da Justiça Estadual (CPP, arts. 406 a 497) e da Justiça Federal (art. 4o do Dec. Lei n. 253/67), a organização do Júri no âmbito da Justiça Militar não foi objeto de organização pela Lei n. 13.491/17. Logo, não se pode concluir que a outorga de competência para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida tenha o condão de suprir tal lacuna. Vejamos, então, os contextos em que esses crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis deverão ser julgados pela Justiça Militar da União: I - cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da Repú­ blica ou pelo Ministro de Estado da Defesa: a título de exemplo, podemos citar a utilização das Forças Armadas para atividades de defesa civil, como, por exemplo, distribuição de alimentos e remédios em algumã região que passou por calamidade pública (Decreto n. 895/93, art. 10, II, III e X); utilização das Forças Armadas em obras de construção civil (v.g., transposição do Rio São Francisco, duplicação da BR-101, etc.);

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II - crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas contra civis praticados no contexto de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante: cuida-se de hipótese que pode ocorrer na rotina de serviço de qualquer instituição militar, como, por exemplo, a sentinela de um quartel da Aeronáu­ tica que comete homicídio doloso contra um civil que tentava ingressar na organização militar; III- atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: a) Lei n. 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica): o denominado tiro de abate já foi objeto de análise; b) Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999: este diploma normativo, que foi objeto de análise nos comentários ao art. 9o, inciso II, alínea “c”, do CPM, versa sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Sem dúvida alguma, a hipótese mais comum de emprego das Forças Armadas prevista na LC 97/99 (art. 15, §§2°, 3o, 4o, 5o e 6o) é a garantia da lei e da ordem.188 Tome-se como exemplo a recente utilização do Exército na comunidade da Rocinha, autorizada pelo Decreto de 28 de julho de 2017, cujo art. Io dispõe: “Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em apoio às ações do Plano Nacional de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro, no período de 28 de julho a 31 de dezembro de 2017”. A LC 97/99 (art. 16-A) também confere às Forças Armadas, como atribuições subsidiárias, a atuação, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, contra delitos transfronteiriços e ambientais, por meio de ações de patrulhamento, revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves, prisões em flagrante delito, etc. Nesses casos, na eventualidade de um militar das Forças Armadas cometer um crime doloso contra a vida de civil, a competência será da Justiça Militar Federal; c) Decreto-Lei n. 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar: na eventualidade de um militar das Forças Armadas estar no exercício de funções previstas no Código de Processo Penal Militar, como, por exemplo, no exercício de atribuições de polícia judiciária militar (v.g., cumprimento de um mandado de busca domiciliar), e cometer um crime doloso contra a vida de civil, tal fato deverá ser julgado pela Justiça Militar da União; d) Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral: é extremamente comum o emprego das Forças Armadas para garantir a segurança do processo eleitoral. A propósito, o Código Eleitoral dispõe em seu art. 23, XIV, que compete, privativamente, ao Tribunal Superior Eleitoral requisitar a força federal necessária ao cumprimento da lei, de suas próprias decisões ou das decisões dos Tribunais Regionais que o solicitarem, e para garantir a votação e a apuração. A título de exemplo, o Decreto de 24 de julho de 2017 do Presidente da República autorizou o emprego das Forças Armadas para a garantia da votação e da apuração das eleições suplementares no Estado do Amazonas (art. Io). Por conseguinte, se um militar das Forças Armadas praticar um crime doloso contra a vida de civil no exercício dessas funções, deverá ser processado e julgado pela Justiça Militar da União.

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Caso antigo atinente a crime doloso contra a vida cometido por militar das Forças Armadas no exercício da garantia da lei e da ordem contra civil diz respeito ao episódio ocorrido no Rio de Janeiro nos idos de 2008, em que 11 (onze) militares do Exército teriam sido supostamente responsáveis pela entrega de 3 (três) moradores do Morro da Providência a traficantes de uma facção rival, do morro da Mineira, onde foram torturados e assassinados.

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1.5.6. Dos crimes militares praticados em tempo de guerra. De acordo com o art. 10 do Código Penal Militar, consideram-se crimes militares, em tempo de guerra: I - os especialmente previstos neste Código para o tempo de guerra. Da análise da Parte Especial do estatuto penal castrense, percebe-se que o CPM é dividido em dois livros: a) Livro I - Dos crimes militares em tempo de paz; b) Livro II —Dos crimes militares em tempo de guerra. Nesse Livro II, temos os crimes previstos para o tempo de guerra, tais como os de traição, previsto no art. 355 (“Tomar o nacional armas contra o Brasil ou Estado aliado, ou prestar serviço nas forças armadas de nação em guerra contra o Brasil”), ou o de covardia (CPM, art. 363. “Subtrair-se ou tentar subtrair-se o militar, por temor, em presença do inimigo, ao cumprimento do dever militar”); II - os crimes militares previstos para o tempo de paz; III - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum ou especial, quando praticados, qualquer que seja o agente: a) em território nacional, ou estrangeiro, militarmente ocupado; b) em qualquer lugar, se comprometem ou podem compro­ meter a preparação, a eficiência ou as operações militares ou, de qualquer outra forma, atentam contra a segurança externa do País ou podem expô-la a perigo; IV - os crimes definidos na lei penal comum ou especial, embora não previstos neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em território estrangeiro, militarmente ocupado. 2. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA ELEITORAL A Carta Magna não estabelece a competência da Justiça Eleitoral, remetendo o assunto à lei complementar. Dispõe, nesse sentido, o art. 121, caput, da Constituição Federal, que lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juizes de direito e das juntas eleitorais. Embora editado como lei ordinária, o Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65) foi recepcionado pela Constituição Federal como lei complementar, mas tão somente no que tange à organização judiciária e competência eleitorais, tal qual prevê a Carta Magna (CF, art. 121, caput). Portanto, no tocante à definição dos crimes eleitorais, as normas postas no Código Eleitoral mantêm o status de lei ordinária. A competência criminal da Justiça Eleitoral é fixada em razão da matéria, cabendo a ela o processo e julgamento dos crimes eleitorais. Mas o que se deve entender por crimes eleitorais? Como adverte a doutrina, somente são crimes eleitorais os previstos no Código Eleitoral (v.g., crimes contra a honra, praticados durante a propaganda eleitoral189) e os que a lei, eventual e expressamente, defina como eleitorais.190 Todos eles referem-se a atentados ao processo elei­ toral, que vai do alistamento do eleitor (ex: falsificação de título de eleitor para fins eleitorais - art. 348 do Código Eleitoral191) até a diplomação dos eleitos. Crime que não esteja no Código Eleitoral ou que não tenha a expressão definição legal como eleitoral, salvo o caso de conexão, jamais será de competência da Justiça Eleitoral.192

189 Os crimes contra a honra prescritos no Código Eleitoral exigem finalidade eleitoral para que restem configurados. Sendo o eventual crime contra a honra praticado fora do período de propaganda eleitoral, resta afastada a figura típica especial do Código Eleitoral e subsiste o tipo penal previsto no Código Penal: STJ - CC 79.872/BA - 3^ Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJ 25/10/2007 p. 123. 190 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit. p. 142. 191 STJ - CC 26.105/PA - 3^ Seção - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 27/08/2001 p. 221. 192

No escólio de José Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal. Vol. I, Campinas, Bookseller, 1997. p. 200), crime eleitoral é toda ação tendente a impedir a livre e genuína manifestação da vontade popular nas eleições políticas. [...] Há os crimes eleitorais chamados específicos ou puros, que somente podem ser praticados

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A motivação política ou mesmo eleitoral não é suficiente para defmir a competência da Justiça Especial de que estamos tratando. Da mesma forma, a existência de campanha eleitoral é irrelevante, pois, de per si, não é suficiente para caracterizar os crimes eleitorais à falta de tipificação legal no Código Eleitoral ou em leis eleitorais extravagantes. Assim, por exemplo, a prática de um homicídio, ainda que no período que antecede as eleições, e mesmo que por motivos político-eleitorais, será julgado pelo Júri comum, porquanto tal delito não é elencado como crime eleitoral. Ao discorrer sobre a organização dos crimes eleitorais, Joel José Cândido apresenta a se­ guinte classificação: a) crimes contra a organização administrativa da Justiça Eleitoral: arts. 305 e 306; arts. 310e311;art. 318e 340 do CE; b) crimes contra os serviços da Justiça Eleitoral: arts. 289 a 293; art. 296; arts. 303 e 304; arts. 341 a 347 do CE; art. 11 da Lei n° 6.091/74; art. 45, §§ 9° e 11, art. 47, § 4°, art. 68, § 2°, art. 71, § 3°, art. 114, parágrafo único e art. 120, § 5°, todos do Código Eleitoral; c) crimes contra a fé pública eleitoral: arts. 313 a 316; arts. 348 a 354 do CE; art. 15 da Lei n° 6.996/82 e art. 174, § 3°, do Código Eleitoral; d) crimes contra a propaganda eleitoral: arts. 322 a 337 do CE; e) crimes contra o sigilo e o exercício do voto: art. 295; arts. 297 a 302; arts. 307 a 309; art. 317; art. 339 do CE; art. 5° da Lei n° 7.021/82; art. 129, parágrafo único e art. 135, § 5°, do Código Eleitoral; f) crimes contra os partidos politicos: arts. 319 a 321; art. 338 do CE e art. 25 da LC 64/90.193 A simples existência, no Código Eleitoral, de descrição formal de conduta típica não se traduz, incontinenti, em crime eleitoral, sendo necessário, também, que se configure o conteúdo material do crime. Sob o aspecto material, deve a conduta atentar contra a liberdade de exercício dos direitos políticos, vulnerando a regularidade do processo eleitoral e a legitimidade da vontade popular. Ou seja, a par da existência do tipo penal eleitoral específico, faz-se necessária, para sua configuração, a existência de violação do bem jurídico que a norma visa tutelar, intrinsecamente ligado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, à regularidade do processo eleitoral e à preservação do modelo democrático. Exemplificando, ainda que conste do Código Eleitoral o crime de destruição de título eleitoral de terceiro (“Art. 339. Destruir, suprimir ou ocultar uma contendo votos, ou documentos relativos à eleição”), se restar evidenciado que a conduta fora perpetrada sem guardar qualquer vinculação com pleitos eleitorais, tendo, na verdade, o intuito exclusivo de impedir a identificação pessoal, não há falar em crime da competência da Justiça Eleitoral.194 Havendo infrações conexas de competência da Justiça Estadual, a Justiça Eleitoral exercerá força atrativa, nos exatos termos do dispositivo constante do art. 78, inciso IV, do CPP, c/c o art. 35, inciso II, do Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65).195 Questiona-se se essa força atrativa da Justiça Eleitoral também seria extensiva aos crimes federais e militares. Apesar de haver julgado antigo da Suprema Corte afirmando a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes eleitorais e também as infraçõès conexas, ainda que de

na esfera eleitoral e cuja existência depende do processo eleitoral, e os crimes eleitorais acidentais, que estão previstos, para além da legislação eleitoral, também na legislação comum (exemplo: ps crimes contra a honra que, previstos também no Código Penal, são de competência da Justiça Eleitoral quando praticados na propaganda eleitoral ou visando fins eleitorais)". 193

D ireito e leito ral brasileiro. 7~

194

A propósito: STJ, 3^ Seção, CC 127.101/RS, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 11/2/2015, DJe 20/2/2015.

ed. Bauru: Edipro, 1998.

195. Reconhecendo a competência da Justiça Eleitoral para o processo e julgamento de crimes eleitorais e dos crimes a eles conexos - no caso concreto, corrupção passiva e lavagem de capitais: STF, 2^ Turma, Pet 7.319/DF, Rei. Min. Edson Fachin, j. 27/03/2018.

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competência da Justiça Federal,196somos levados a acreditar que, na medida em que a competên­ cia da Justiça Federal vem preestabelecida na própria Constituição Federal, não pode ser colocada em segundo plano por força da conexão e da continência, normas de alteração da competência previstas na lei processual penal. Afinal, é a lei processual que deve ser interpretada por meio da constituição, e não o; contrário. Há precedente do Superior Tribunal de Justiça corroborando essa posição: “A conexão e a continência entre crime eleitoral e crime da competência da Justiça Federal não importa unidade de processo e julgamento”.197Mutatis mutandis, a Justiça Eleitoral também não exercerá fórça atrativa em relação a eventuais crimes militares que estejam ligados a um crime eleitoral por força da conexão ou da continência, na medida em que a competência da Justiça Militar também foi ressalvada pela Constituição Federal. Também se discute na doutrina a competência para processar e julgar crime de homicídio doloso conexo a crime eleitoral. Para Suzana de Camargo Gomes, “havendo conexão entre crimes eleitorais e crimes dolosos contra a vida, o julgamento de todos eles está afeto à Justiça Eleitoral, e não ao Tribunal do Juri. (...) Nesses casos, não há que se cogitar nem mesmo a hipótese da criação de um Tribunal do Júri de natureza eleitoral, posto que não previsto na lei que define a organização dessa instituição, nem tampouco na justiça eleitoral. E que não autoriza a lei a constituição de Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Eleitoral, não havendo, destarte, que se falar possa o juiz Eleitoral realizar a condução e presidência do processo afeto ao tribunal popular, pois, se assim fosse, estaria sendo desrespeitado o art. 5o, XXXVIII, da CF, que determina tenha a instituição do júri a organização que a lei lhe conferir”.198 Uma segunda corrente (majoritária) sustenta que os crimes eleitorais devem ser julgados pela Justiça Eleitoral, respeitando-se a previsão constitucional, o que, no entanto, não afeta a competência do Tribunál do Júri para julgar o crime doloso contra a vida, haja vista não ser este um crime tipicamente éleitoral. Como ambas as competências estão previstas na Constituição Federal - a da Justiça Eleitoral para o processo e julgamento dos crimes eleitorais e a do Tribunal do Júri para o processó e julgamento dos crimes dolosos contra a vida (CF, art. 5o, XXXVIII, “d”) - somente a separàção dos processos será capaz de garantir o respeito à competência es­ tabelecida pela Constituição Federal para ambas as situações. De modo algum seria possível admitir-se que a conexão, norma de alteração de competência prevista na lei processual penal, pudesse afastar a competência constitucional do júri e da Justiça Eleitoral.199 Superada esta questão, convém ressaltar que, ao contrário da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, da Justiça Militar e da Justiça Estadual, a Justiça Eleitoral não dispõe de um corpo próprio e permanente de magistrados, razão pela qual são utilizados os magistrados da Justiça Federal e da Justiça Estadual (Lei n° 4.737/65, arts. 25 e 32, respectivamente), por períodos predeterminados. Logo, caso um crime seja cometido contra esse juiz de direito investido de jurisdição eleitoral, sobressai a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito, a não ser que se trate de um crime eleitoral (v.g., crime contra a honra durante a propaganda 196 STF, Pleno, CC 7.033/SP, Rei. Min Sydney Sanches, DJ 29/11/1996. 197 STJ, 33 Seção, CC 19.478/PR, Rei. Min. Fontes de Alencar, DJ 04/02/2002. E ainda: STJ, 3§ Seção, CC 107.913/ MT, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 24/10/2012, DJe 31/10/2012; STJ, 3§ Seção, CC 39.357/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 09/06/2004, DJ 02/08/2004 p. 297. Ainda no sentido de que, havendo conexão entre um crime eleitoral e outro de cohipetência da Justiça Federal, outra opção não restará, senão a tramitação separada dos processos, respeitando-se, assim, ambas as competências fixadas na Constituição Federal: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Piérpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais - comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/12. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 248. 198 199

Crimes eleitorais. São Paulo: RT, 1997. p. 59. Comungam desse entendimento Guilherme de Souza Nucci (op. cit. p. 259) e Denílson Feitoza (op. cit. p. 347).

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eleitoral). De fato, a competência criminal da Justiça Eleitoral se restringe ao processo e julga­ mento dos crimes tipicamente eleitorais. O crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em preservar a própria administração, daí sobressaindo a competência da Justiça Federal para o julgamento do delito.200 Ademais, como não há um ramo do Ministério Público Eleitoral, os membros do Ministério Público que atuam na Justiça Eleitoral são investidos temporariamente na função eleitoral por um determinado período, sendo escolhidos entre membros do Ministério Público dos Estados que atuam na primeira instância e entre membros do Ministério Público Federal nas demais instâncias (Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunal Superior Eleitoral). 3. COMPETÊNCIA C R I M I N A L DA JUSTIÇA DO TRABALHO Até o advento da Emenda Constitucional n° 45/2004, a Justiça do Trabalho não tinha qual­ quer competência no âmbito criminal. Assim, caso uma prisão civil de depositário infiel fosse decretada por um juiz do trabalho, em execução de sentença trabalhista, eventual habeas corpus deveria ser processado e julgado pelo respectivo Tribunal Regional Federal, nos termos do art. 108,1, “a”, da Constituição Federal.201 Com a EC n° 45/04, houve uma alteração do art. 114 da Constituição Federal, atribuindo à Justiça do Trabalho, dentre outras, a competência para processar e julgar os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição (art. 114, inciso IV). Destarte, a partir da entrada em vigor da EC n° 45/2004, se o ato questionado envolver matéria sujeita à jurisdição trabalhista, e figurando o juiz do trabalho como autoridade coatora, à própria Justiça do Trabalho (in casu, ao respectivo Tribunal Regional do Trabalho) caberá o julgamento do habeas corpus. E bom lembrar que um juiz de direito também pode exercer competência trabalhista, ex vi do art. 112 da Constituição Federal. Logo, da mesma forma que o habeas corpus contra juiz do trabalho está afeto ao respectivo Tribunal Regional do Trabalho, a este Tribunal também caberá o julgamento do writ, se, e somente se, o ato questionado do juiz de direito estiver relacionado ao exercício de competência da Justiça do Trabalho. Importante perceber que nem todo habeas corpus em que figure como autoridade coatora um Juiz do Trabalho deverá ser processado e julgado pela Justiça do Trabalho. Suponha-se, por exemplo, que um juiz do trabalho seja o responsável pelo constrangimento à liberdade de locomoção de alguém, valendo-se tão somente de sua condição genérica de autoridade pública, sem que o ato guarde qualquer relação com o exercício da jurisdição trabalhista. Ora, nessa hipótese, não há falar em competência da Justiça do Trabalho para julgar o writ, devendo este ser encaminhado ao respectivo Tribunal Regional Federal, a quem compete processar e julgar, originariamente, os juizes do Trabalho da área de sua jurisdição, nos termos do art. 108, inciso I, “a”, da Constituição Federal. Não obstante a ampliação da competência da Justiça do Trabalho por meio da Emenda Constitucional n° 45/04, inclusive atribuindo-lhe competência para processar e julgar habeas corpus quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição, daí não se pode concluir que a Justiça do Trabalho teria competência criminal genérica para processar e julgar delitos, como, por exemplo, o crime de redução a condição análoga à de escravo (CP, art. 149).

200

Nessa linha: STJ - CC 45.552/RO - 3^ Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJU 27/11/2006 p. 246.

201 Com esse entendimento: STF, Pleno, CC 6.979/DF, Rei. Min. limar Galvão, DJ 26/02/1993.

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Tal questão acabou sendo levada ao Supremo Tribunal Federal, na medida em que al­ guns juizes do Trabalho começaram a processar e julgar infrações penais praticadas contra a organização do trabalho, a partir do oferecimento de denúncias por Procuradores do Trabalho. Concluiu-se que o disposto no art. 114, incisos I, IV e IX, da Constituição Federal, com redação dada pela EC n° 45/04, não atribuiu competência criminal genérica à Justiça do Trabalho para processar e julgar ações penais.202 Em sua fundamentação, entendeu a Suprema Corte que um elemento histórico, conquanto de valor exegético relativo, poderia ser lembrado de modo a infirmar que a EC n° 45/04 tenha outorgado à Justiça do Trabalho competência ampla para julgamento de matéria criminal: durante o trâmite da PEC n° 29/00, da qual se originou a EC n° 45/04, foi sugerida a inserção no art. 114 da Constituição Federal de regra tendente a cometer à Justiça do Trabalho compe­ tência para o julgamento de infrações penais praticadas contra a organização do trabalho ou contra a administração da própria Justiça do Trabalho. Rejeitada pelo constituinte derivado, essa proposta não foi inserida na Constituição Federal. De mais a mais, ao prever a compe­ tência da Justiça do Trabalho para o processo e julgamento de ações oriundas da relação de trabalho, o art. 114,1, da Carta Magna, não compreende a outorga de jurisdição sobre matéria penal, mormente se considerarmos que, quando a legislação constitucional e infraconstitucional aludem, na distribuição de competências, a ações, sem o qualificativo de penais ou criminais, a interpretação sempre excluiu de seu alcance teórico as ações que tenham caráter penal ou criminal. Conclui o Supremo, afinal, pelo deferimento de pedido liminar para, com efeito ex tune, dar interpretação conforme à Constituição Federal aos incisos I, IV e IX do seu art. 114 no sentido de que neles a Constituição não atribuiu, por si sós, competência criminal genérica à Justiça do Trabalho. Entendeu-se, como visto acima, que seria incompatível com as garantias constitucio­ nais da legalidade e do juiz natural inferir-se, por meio de interpretação arbitrária e expansiva, competência criminal genérica da Justiça do Trabalho, aos termos do art. 114,1, IV e IX da CF.203 4. COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA FEDERAL 4.1. Considerações iniciais Segundo o disposto no art. 106 da Carta Magna, são órgãos da Justiça Federal os Tribunais Regionais Federais e os Juizes Federais. Na verdade, a despeito do art. 106 da Constituição Federal, são órgãos da Justiça Comum Federal os Tribunais Regionais Federais, os Juizes Fede­ rais, o Tribunal do Júri Federal e, por força do parágrafo único do art. 98 da CF, também foram criados pela Lei n° 10.259/01 os Juizados Especiais Criminais. O Conselho da Justiça Federal não funciona como órgão da Justiça Federal. Como deixa entrever a própria Constituição Federal, funciona o Conselho junto ao Superior Tribunal de Justiça, cabendo-lhe exercer a supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, como órgão central do sistema e com poderes correicionais, cujas decisões terão caráter vinculante (CF, art. 105, parágrafo único, II).

202

STF - ADI 3.684 MC/DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Cezar Peluso - Dje 072 02/08/2007.

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Com o mesmo entendimento do Supremo, o STJ também concluiu que a EC ns 45/04 não atribuiu à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais, tais como as do delito previsto no art. 203 do CP, pois se estaria a violar o princípio do juiz natural: STJ, 3§ Seção, CC 59.978/RS, Rei. Min. Laurita Vaz, DJ 07/05/2007 p. 275.

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Para fins de divisão judiciária da competência territorial da Justi ça Federal, o território brasileiro foi dividido em cinco regiões, sendo que há um Tribunal Re gional Federal para cada uma delas. Cada uma dessas Regiões é integrada por várias Seções Judiciárias. Cada Estado e o Distrito Federal correspondem a uma Seção Judiciária. Por seu turno cada Seção Judiciária é subdividida em subseções judiciárias, correspondentes a parcelas do território de um Estado da Federação. A subseção funciona como uma grande comarca, abrang endo vários municípios e até mesmo várias comarcas. O Tribunal Regional Federal da Ia Região, cuja sede fica em Brasília, compreende o Distrito Federal, bem como os Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Maranhão, Pará, Amazonas, Rondônia, Amapá, Roraima, Acre, Bahia, Piauí e Tocantins. O Tribunal Regional Federal da 2a Região, com sede no Rio de Janeiro, abrange os Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. O Tribunal Regional Federal da 3a Região, cuja sede fica em São Paiilo, abrange os Estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. O Tribunal Regional Federal da 4a Região, com sede em Porto Alegre, compreende os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Por fim, o Tribunal Regional Federal da 5a Região, com sede em Recife, abrange os Estados de Pernambuco, Alagoas, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe.)204 De acordo com o art. 108 da Carta Magna, compete aos Tribunais Regionais Federais: I - pro­ cessar e julgar, originariamente: a) os juizes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; b) as revisões cri­ minais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juizes federais da região; c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal; e) os conflitos de competência entre juizes federais vinculados ao Tribunal; II - julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juizes federais e pelos juizes estaduais no exercício da competência federal da área de $ua jurisdição. A competência da Justiça Federal, que será detalhadamente estudada na seqüência, consta do art. 109 da Carta Magna. As questões criminais estão especialmente previstas nos incisos IV, V, VI, VII, IX e X do art. 109. Por sua vez, os incisos VIII e XI referem-se tanto à matéria criminal quanto à cível. Explica-se: quando a Constituição Federal utiliza a expressão “causas”, refere-se à matéria cível (incisos I, II e III do art. 109); quando se vale da expressão “crimes”, obviamente, refere-se à matéria criminal (incisos IV, V, VI, IX e X do art. 109); quando a Magna Carta não faz qualquer referência a “causas”, “crimes” ou “matéria criminal”, significa estar se referindo tanto à matéria cível quanto à matéria criminal, tal qual ocorre no inciso VII (o mandado de segurança pode versar sobre matéria cível ou criminal) e no inciso IX (disputa sobre direitos indígenas). A exceção à regra fica por conta do inciso V-A, do art. 109, inserido pela Emenda Constitucional n° 45/04, que, apesar de ter utilizado a expreessão “causas”, abrange tanto as cíveis quanto as criminais.

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No dia 06 de junho de 2013, foi promulgada a Emenda Constitucional n9 73, que acrescenta o § 11 ao art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com a seguinte redação: "São criados, ainda, os seguintes Tribunais Regionais Federais: o da 6® Região, com sede em Curitiba, Estado do Paraná, e jurisdição nos Esta­ dos do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul; o da 79 Região, com sede em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, e jurisdição no Estado de Minas Gerais; o da 8§ Região, com sede em Salvador, Estado da Bahia, e jurisdição nos Estados da Bahia e Sergipe; e o da 99 Região, com sede em Manaus, Estado do Amazonas, e jurisdição nos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima". De acordo com o art. 2 - da referida Emenda Constitucional, esses novos Tribunais Regionais Federais deveriam ser instalados no prazo de 6 (seis) meses, a contar da promulgação da referida Emenda. Não obstante, por força de decisão monocrática proferida pelo Min. Joaquim Barbosa nos autos da ADI n9 5.017, foi deferida medida cautelar paia suspender os efeitos da EC 73/2013. O feito encontra-se concluso ao relator desde o dia 07 de janeiro de 2015. Pesquisa em: 23/01/2015.

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4.2. Atribuições de polícia investigativa da Polícia Federal Antes de ingressamíos na análise propriamente dita da competência criminal da Justiça Fede­ ral, impende dissiparmos, desde já, erro bastante comum, qual seja, o de se acreditar que há uma relação de absoluta congruência entre as atribuições de polícia investigativa da Polícia Federal e as hipóteses de competência criminal da Justiça Federal. Na verdade, as atribuições investigatórias da Polícia Federal são bèm mais amplas que a competência criminal da Justiça Federal. Ao tratar da Polícia Federal, a própria Constituição Federal (art. 144, § Io, inciso I) deixa expresso que, além da átribuição de apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas - o que, grosso modo, corresponde à competência da Justiça Federal -, deve também apurar outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniformè, segundo se dispuser em lei, além da prevenção e repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho.205 Como se percebe, nêm sempre os crimes investigados pela Polícia Federal serão processados e julgados pela Justiça Federal (v.g., roubo de cargas, tráfico interestadual de drogas, etc.). Nesse caso, independentementè da possibilidade de que esses delitos também sejam investigados pelos órgãos de segurança pública estaduais,206 se acaso a investigação tiver curso perante a Polícia Federal, uma vez concluído o inquérito policial, deverão ser os autos remetidos à Justiça Estadual. De todo modo, como o inquérito policial funciona como um procedimento administrativo de caráter meramente informativo, ainda que elementos de informação quanto a crime de com­ petência da Justiça Federal tenham sido colhidos em inquérito policial presidido pela Polícia Civil, ou que um crime de competência da Justiça Estadual tenha sido investigado pela Polícia Federal em desacordo cóm a Lei n° 10.446/02, tal vício não terá o condão de macular o processo criminal a que o procedimento investigatório der origem.207 4.3. Crimes políticos e infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções penais e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral (CF, Art. 109, inciso IV) 4.3.1. Crimes políticos Os crimes políticos estão previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei n° 7.170/83), caracte­ rizando-se pela lesão ou; exposição a perigo de lesão: a) da integridade territorial e da soberania nacional; b) do regime representativo e democrático, da Federação e do Estado de Direito; c) da pessoa dos Chefes dos Poderes da União.208 Como já se pronunciou o STJ, "(...) as atribuições da Polícia Federal e a competência da Justiça Federal, ambas previstas na Constituição da República (arts. 108,109 e 144, § l 9), não se confundem, razão pela qual não há falar que a investigação que deu origem à ação penal foi realizada por autoridade absolutamente incompetente. As atribuições da Polícia Federai não se restringem a apurar infrações em detrimento de bens, serviços e interesses da União, sendo possível a apuração de infrações em prol da Justiça estadual". (STJ, 6® Turma, RFIC 50.011/PE, Rei. Min. Sebastião ReiS Júnior, j. 25/11/2014, DJe 16/12/2014). 206 Evidenciada a ocorrência de conexão entre delitos apurados em inquéritos policiais em trâmite nas polícias esta­ dual e federal, é possívèl a reunião dos procedimentos investigatórios, aplicando-se subsidiariamente os artigos 76, incisos II e III, e 79, ambos do Código de Processo Penal. Nessa linha: STJ - RHC 10.763/SP - 5ã Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ Í7/08/2001 p. 351.

205

207

Com esse entendimento: STF - RHC 85.286/SP - 2- Turma - Rei. Min. Joaquim Barbosa - DJ 24/03/2006 p. 55).

208

Nessa linha: FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 2ã ed. São Paulo: RT, 1987, p. 195.

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Como alguns dos delitos previstos na Lei de Segurança Nacional também estão previstos no Código Penal, no Código Penal Militar, ou na legislação especial, tal como o do art. 29 (“Matar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal”), é imprescindível, para a caracterização do crime político, a presença de motivação política e a lesão real ou potencial aos bens juridicamente tutelados. Subsume-se, pois, inconcebível a configuração de crime contra a segurança nacional e a ordem política e social quando ausente o elemento subjetivo que se traduz no dolo específico: motivação política e objetivos do agente. Por conseqüência, se não restar evidenciada a motivação política ou a intenção de lesar ou ex-por a perigo de lesão a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, e a pessoa dos Chefes dos Poderes da União, não há falar em crime político.209 Como a Carta Magna atribui à Justiça Federal a competência para processar e julgar os crimes políticos, forçoso é concluir que o art. 30, caput, da Lei n° 7.170/83 (“Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes previstos nesta Lei, com observância das normas estabelecidas no Código de Processo Penal Militar, no que não colidirem com disposição desta Lei, ressalvada a competência originária do Supremo Tribunal Federal nos casos previstos na Constituição”) não foi recepcionado pela Constituição Federal.210 Na hipótese de julgamento de crime político por juiz federal, convém lembrar que não cabe recurso de apelação contra eventual sentença absolutória ou condenatória, a ser julgada pelo respectivo Tribunal Regional Federal. O recurso cabível, na verdade, é o recurso ordinário constitucional, de competência do Supremo Tribunal Federal, que, nesse caso, funcionará como segunda e última instância, verdadeiro Tribunal de Apelação, a teor do art. 102, inciso II, “b”, da Constituição Federal. 4.3.2. Crimes contra a União A União é entidade federativa autônoma em relação aos Estados-membros e municípios, constituindo pessoa jurídica de Direito Público Interno, cabendo-lhe exercer as atribuições da soberania do Estado brasileiro. Não se confunde com o Estado Federal, pessoa jurídica de Direito Internacional formado pelo conjunto de União, Estados-membros, Distrito Federal e municípios.211 Esse conceito amplo de “União” trazido pelo Direito Constitucional não deve ser utilizado para fins de fixação da competência criminal. De fato, o próprio art. 109, inciso IV, ao distin­ guir “União” de “autarquias federais” e “empresas públicas federais”, acaba por diferenciar a administração direta da indireta. Logo, para fins de fixação de competência criminal da Justiça Federal, devemos compreender “União” apenas como os órgãos da administração pública federal direta, tais como ministérios, secretarias, conselhos, coordenadorias, inspetorias, departamen­ tos, etc. Portanto, não se pode confundir o termo “União” constante do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, enquanto administração federal direta, com as entidades da administração federal indireta ali enumeradas, quais sejam as autarquias federais (aqui também incluídas as fundações públicas federais) e as empresas públicas federais. Logo, quando um crime for praticado em detrimento de órgão que integra a União, seja ele pertencente à estrutura do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, a competência será da

209. Nesse sentido: STF; Pleno, RC 1.472/MG, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 25/05/2016; STF, Pleno, RHC segundo 1.468/ RJ, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 16/08/2000 p. 88. 210 STJ, 3ã Seção, CC 21.735/MS, DJ 15/06/1998, p. 10, Rei. Min. José Dantas. 211

Nessa linha: MORAES, Alexandre. D ireito Constitucional. 9ã ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 258.

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Justiça Federal. Assim é que, ao apreciar conflito de competência relativo a processo criminal em que se apurava furto de bens operacionais, no caso dormentes de linha férrea, antes pertencentes à Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), concluiu o STJ tratar-se de crime da competência da Justiça Federal, na medida em que a Lei n° 11.483/07 transferiu para a União os bens imóveis e para o Departamento Nacional de Inffaestrutura de Transporte (DNIT) os bens moveis e imóveis operacionais da extinta RFFSA.212 Para fins de fixação da competência da Justiça Federal com base no art. 109, IV, da Consti­ tuição Federal, essa lesão aos bens, serviços e interesses da União deve ser direta. Caso contrário, a competência será da Justiça Estadual. Portanto, compete à Justiça Estadual - e não à Justiça Federal - processar e julgar tentativa de estelionato consistente em tentar receber, mediante fraude, em agência do Banco do Brasil, valores relativos a precatório federal creditado em fa­ vor de particular. Embora, no exemplo, se tenha buscado resgatar precatório federal, se não há prejuízo em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, a competência para processar e julgar a causa é da Justiça Estadual. O eventual prejuízo causado pelo delito praticado por quem visava resgatar precatório federal seria suportado pelo particular titular do crédito. Ademais, ainda que a conduta delituosa tivesse se consumado, e o dano fosse suportado pelo Banco do Brasil, seria mantida a competência da Justiça Estadual, por se tratar de sociedade de economia mista, a teor da Súmula 42 do STJ.213 4.3.3. Crimes contra autarquias federais Segundo o Decreto-lei 200, autarquia é o serviço autônomo, criado por lei, com personali­ dade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada. Podemos conceituar autarquia, pois, como a pessoa jurídica de direito público, integrante da Administração Indireta, criada por lei para desempenhar funções que, despidas de caráter econômico, sejam próprias e típicas do Estado. Há certo consenso doutrinário quanto às suas características: a) criação por lei; b) personalidade jurídica pública; c) capacidade de autoadministração; d) especialização dos fins ou atividades; e) sujeição a controle ou tutela.214 Como exemplos de autarquias vinculadas à União Federal, podemos enumerar: o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); a Comissão Nacional de Energia Nuclear; o Banco Central do Brasil; a Comissão de Valores Mobiliários; o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); o Departamento Nacional de Obras contra as Secas; o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), sucessor do DNER - Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, etc. A fim de que seja fixada a competência da Justiça Federal, afigura-se indispensável que, da conduta delituosa, resulte prejuízo direto a bens, serviços ou interesse de autarquia federal. Não por outro motivo, de acordo com o entendimento pretoriano, compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, q u a n d o n ã o o c o r r e n te le s ã o à a u t a r q u ia f e d e r a l (súmula n° 107 do STJ). Logo, ausente lesão a bens, serviços ou interesses de autarquia federal, não há falar em crime da competência da Justiça Federal. Por isso, compete à Justiça Estadual 212 STJ, 3ã Seção, CC 101.444/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 23/06/2010, DJe 30/06/2010. 213

Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 133.187/DF, Rei. Min. Ribeiro Dantas, j. 14/10/2015, DJe 22/10/2015.

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Dl PIETRO, Maria Sylvia Zanella. D ireito adm inistrativo. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 354.

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o processo e julgamento de crime de estelionato cometido mediante a contratação fraudulenta de empréstimo consignado em folha de pagamento de proventos do INSS.215 4.3.4. Crimes contra empresas públicas federais Empresas públicas federais são pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Admi­ nistração Indireta da União, criadas por autorização legal, sob qualquer forma jurídica adequada a sua natureza, para que o Governo exerça atividades gerais de caráter econômico ou, em certas situações, execute a prestação de serviços públicos. De acordo com a doutrina, apresentam as seguintes características: a) criação e extinção por lei; b) personalidade jurídica de direito privado; c) sujeição ao controle estatal; d) derrogação parcial do regime de direito privado por normas de direito público; e) vinculação aos fins definidos na lei instituidora; f) desempenho de atividade de natureza econômica.216 I São exemplos de empresas públicas federais a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT); a FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos; a Casa da Moeda do Brasil; a Caixa Econômica Federal (CEF); o BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social;217 o SERPRO - Serviço Federal de Processamento de Dados, etc. Quanto à Caixa Econômica Federal como sujeito passivo de crimés patrimoniais, importa analisarmos hipóteses de fraudes eletrônicas. Imagine-se um agente que se utilize de fraude via internet (v.g., TROJAN) para subtrair valores da conta corrente de titularidade de correntista da CEF. Nesse caso, deverá responder pelo crime de furto qualificado pela fraude (CP, art. 155, § 4o, inciso II), que não se confunde com o delito de estelionato: naquele, á fraude é utilizada para burlar a vigilância da vítima, para lhe tirar a atenção; neste, a fraude objetiva obter consentimento da vítima, iludi-la para que entregue voluntariamente o bem. Quanto à competência criminal, à primeira vista, poder-se-ia pensar em crime de competência da Justiça Estadual, na medida em que o sujeito passivo seria a pessoa física titular da conta corrente. Ocprre que, como a fraude foi usada para burlar o sistema de proteção e vigilância do banco sobre os valores mantidos sob sua guarda - os valores transferidos mediante dados digitais, apesar de não tangíveis, não deixam de ser dinheiro -, quem suportará o prejuízo financeiro é a instituição bancária, que se vê obrigada a restituir ao titular da conta a quantia indevidamente levantada, figurando o correntista como mero prejudicado.218 Logo, se essa instituição financeira é a Caixa Econômica Federal, 215

STJ, CC 100.725/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 28/04/2010. Em caso corjcreto apreciado pelo STJ, em que sociedade empresária apresentou à Receita Federal falsas guias de DARF para comprovar o pagamento de receitas federais, tendo o acusado feito novo recolhimento dos tributos, ente;ndeu-se que não teria havido qualquer lesão à Receita Federal que pudesse impor a competência da Justiça Federal, nos moldes da súmula 107 do STJ, daí por que foi fixada a competência da Justiça Estadual: STJ, CC 110.529/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 09/06/2010.

216

Dl PIETRO, Maria Sylvia Zanella. D ireito adm inistrativo. 12a ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 370.

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O fato de licitação estadual envolver recursos repassados ao Estado-Membro pelo BNDES por meio de empréstimo bancário (mútuo feneratício) não atrai a competência da Justiça Federal para processar e julgar crimes relaciona­ dos a suposto superfaturamento na licitação. Ora, se houve superfaturamento na licitação estadual, o prejuízo recairá sobre o erário estadual - e não o federal -, uma vez que, não obstante a fraude, o contrato de mútuo feneratício entre o Estado-Membro e o BNDES permanecerá válido, fazendo com que a empresa pública federal receba de volta, em qualquer circunstância, o valor emprestado ao ente federativo. Dessa maneira, o fato em análise não atrai a competência da Justiça Federal, incidindo, na hipótese, m utatís mutandis, a ra tio essendi da Súmula 209 do STJ, segundo a qual "compete à justiça estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal". Com esse entendimento: STJ, Turma, RHC 42.595-MT, Rei. Min. Felix Fischer, j. 16/12/2014, DJe 2/2/2015.

218 Sujeito passivo não se confunde com prejudicado. Embora, de regra, coincidam na mesma pessoa, as condições de sujeito passivo e prejudicado podem recair em pessoas distintas. Sujeito passivo é o titular do bem jurídico

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

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não há dúvida quanto à competência da Justiça Federal. No tocante à competência territorial, como o delito de furto consuma-se no momento em que o bem é subtraído da vítima, ao sair da esfera de sua disponibilid ade, a competência territorial da Justiça Federal será determinada em face do local onde mant ida a conta corrente da qual foram subtraídos os valores, leia-se, lugar da conta corrente sacada Lado outro, acerca da competência para o processo e julgamento de crime de roubo em casa lotérica, entende o Superior Tribunal de Justiça que a competência recai sobre a Justiça Estadual, na medida em que a casa lotérica tem natureza jurídica de pessoa jurídica de direito privado permissionária cie serviço público, o que não atrai a competência da Justiça Federal, em virtude da inexistência de infração penal praticada em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, autarquias fed'erais e empresas públicas federais.* 220 No tocante à infração penal praticada em detrimento de agência da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, o Superior Tribunal de Justiça tem fundamentado suas decisões na cons­ tatação da exploração direta da atividade pelo ente da administração indireta federal - caso em que a competência seria da Justiça Federal, nos termos do artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal - ou se objeto de franquia, isto é, a exploração do serviço por particulares - quando então se verificaria a competência da Justiça Estadual.221 Em se tratando de crime praticado em detrimento de Agência de Correios Comunitária operada mediante convênio, prevalece o entendimento de que sejtrata de feito da competência da Justiça Federal, haja vista o interesse público no funcionamento do serviço postal por parte da empresa pública federal - EBCT.222 Compete à Justiça Estadual - e não à Justiça Federal - processar e julgar ação penal na qual se apurem infrações penais decorrentes da tentativa de abertura de conta corrente mediante a apresentação de docuihento falso em agência do Banco do Brasil (BB) localizada nas depen­ dências de agência da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT) que funcione como Banco Postal. Apesar de a EBCT ser uma empresa pública federal, ela presta serviços relativos ao Banco Postal, em todo o território nacional, como correspondente bancário de instituições financeiras contratantes* às quais cabe a inteira responsabilidade pelos serviços prestados pela empresa contratada. Ora, se cabe à instituição financeira contratante dos serviços (no caso, o BB) a responsabilidade! pelos serviços bancários disponibilizados pela EBCT a seus clientes e usuários, eventual lesão decorrente da abertura de conta corrente por meio da utilização de documento falso atingiria o patrimônio e os serviços da instituição financeira contratante, e

protegido, e, nesse caso, o lesado. Prejudicado é qualquer pessoa que, em razão do fato delituoso, sofre prejuízo ou dano material ou moral. Essa distinção não é uma questão meramente acadêmica, despicienda de interesse prático, como pode parecer à primeira vista. Na verdade, o sujeito passivo, além do direito de representar contra o sujeito ativo, pode habilitar-se como assistente do Ministério Público no processso criminal em crimes de ação penal pública (CPP, art. 268) ou oferecer queixa-crime nos delitos de ação penal privada (CPP, art. 30), tendo, ademais, o direito à reparação ex delicto, ao passo que ao prejudicado resta tão somente a possibilidade de buscar a reparação do dano na esfera cível. 219 STJ, 3§ Seção, CC 67.343/GO, Rei. Ministra Laurita Vaz, DJ 11/12/2007 p. 170. 220 Informativo ne 402 do STJ: 3ã Seção, CC 100.740/PB, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/08/2009. 221

STJ, 6ã Turma, HC 39.200/SP, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 19/12/2005 p. 475. No sentido da competência da Justiça Estadual para processar roubo qualificado perpetrado em agência dos Correios, se os valores subtraí­ dos forem de exclusiva propriedade do Banco Postal (convênio entre o Bradesco e a EBCT), na medida em que o prejuízo é dirigido ao franqueado, sem que haja qualquer lesão a bens, serviços, ou interesses da União: STJ, HC 96.684/BA, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 05/08/2010.

222

STJ, 3- Seção, CC 122.596/SC, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 08/08/2012.

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não os da EBCT. Tanto é assim que, caso a empreitada delituosa tivesse tido êxito, os prejuízos decorrentes da abertura de conta corrente na agência do Banco Postal seriam suportados pela instituição financeira contratante. Desse modo, não há lesão apta a justificar a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação penal.223 4.3.5. Crimes contra fundações públicas federais Fundação pública federal é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes (Decreto-Lei n° 200/67). Para fins de determinação de competência criminal, conquanto o art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, faça menção tão somente às autarquias federais e às empresas públicas federais, entende o Supremo Tribunal Federal que as fundações públicas federais são espécie do gênero autarquia federal, atraindo, portanto, a competência criminal da Justiça Federal. Ima­ ginando-se, assim, um crime cometido em detrimento de bem da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), ter-se-á fixada a competência da Justiça Federal, haja vista tratar-se de entidade de direito público mantida por recursos orçamentários oficiais da União e por ela instituída.224 4.3.6. Crimes contra entidades de fiscalização profissional Com relação aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, firmou-se, ini­ cialmente, entendimento jurisprudential pela fixação da competência da Justiça Federal, uma vez que tais conselhos teriam natureza autárquica federal.22526 No entanto, com a entrada em vigor da Lei n° 9.649/98, essa natureza lhes foi retirada, es­ tabelecendo o art. 58 da referida lei que tais conselhos passariam a ser dotados de personalidade jurídica de direito privado, salvo em relação à Ordem dos Advogados do Brasil (art. 58, § 9o). A partir daí, portanto, se um crime fosse cometido em detrimento de uma dessas entidades de fiscalização profissional, a competência seria da Justiça Estadual; todavia, se o delito afetasse o serviço público federal delegado, a competência continuaria sendo da Justiça Federal, pois, como anota Roberto da Silva Oliveira, “muito embora a entidade tenha assumido feição privada, o serviço por ela prestado é público, havendo interesse direto da União, tanto que a referida lei manteve a competência da Justiça Federal para apreciar as controvérsias que envolvam os Conselhos de Fiscalização de profissões regulamentadas, quando no exercício dos serviços a eles delegados (art. 58, § 8o, da Lei n° 9.649/98)”.220 Ocorre que, não obstante a alteração da personalidade jurídica dessas entidades pela Lei n° 9.649/98, os Tribunais Superiores continuaram entendendo que, especificamente na área criminal, a Justiça Federal continuava competente para apreciar e julgar os crimes praticados em detrimento de Conselhos Regionais de Fiscalização de Profissões.227 223 STJ, 33 Seção, CC 129.804/PB, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 28/10/2015, DJe 6/11/2015. 224 STF, 2§ Turma, RE 215.741/SE, Rei. Min. Maurício Corrêa, j. 30/03/1999, DJ 04/06/1999. 225

No sentido da competência da Justiça Federal para julgar o delito do art. 205 do Código Penal ("exercer ativi­ dade com infração de decisão administrativa"), por se tratar de crime, senão contra a organização do trabalho propriamente dita (art. 109, inc. VI, da C.F.), ao menos em detrimento de interesses de autarquia federal, como é o Conselho Regional de Medicina, que impusera ao acusado a proibição de exercer a profissão (CF, art. 109, IV): STF - I® Turma - HC 74.826/SP - Rei. Min. Sydney Sanches - DJ 29/08/1997 p. 216.

226

Competência crim inal da Justiça Federal.

227

Para o STJ, "a falsificação de autenticação mecânica em guias de recolhimento relativas à Anotação de Respon­ sabilidade Técnica - ART, causa lesão a interesse do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 79.

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Pondo um fim à celeuma, o Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na ADI 1.717, reconheceu a natureza autárquica federal dos conselhos de fiscalização profissional, suspen­ dendo, assim, a execução e aplicabilidade do art. 58 da Lei n° 9.649/98, por entender que não seria possível, em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5o, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais. Após a decisão do Pretório Excelso, o art. 59 da Lei n° 10.683/2003 revogou a Lei n° 9.649/98. Temos que hoje, então, eventual crime que afete diretamente bens, serviços ou interesse de Conselho de fiscalização profissional será de competência da Justiça Federal. A contrario sensu, se o crime não for praticado contra o conselho profissional, mas sim contra um profissional que o integre, a competência será da Justiça Estadual.228 4.3.7. Crimes contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) No julgamento da ADI 3026, o STF manifestou entendimento segundo o qual a OAB não se sujeitaria aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta, não podendo ser considerada uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem, segundo o STF, seria um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas exis­ tentes no direito brasileiro, não estando incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como “autarquias especiais” para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas “agências”. Assim, por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não estaria sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada, sendo que essa não-vinculação seria formal e materialmente necessária. Destarte, a Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional.229 Por se ocupar de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucional­ mente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça, o Supremo Tribunal Federal afastou a sujeição da OAB ao regime das autarquias no tocante à vinculação à Administração, daí por que incabível a exigência de concurso público, sem, todavia, ter a Suprema Corte afastado prerrogativas e privilégios, dentre eles exatamente o da competência perante a Justiça Federal. Em que pese o teor da referida decisão, permanece inalterada a competência criminal da Justiça Federal para processar e julgar infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da Ordem dos Advogados do Brasil, sobretudo quando tal delito estiver relacionado à finalidade da OAB de promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a

- CREA. O CREA, como órgão fiscalizador do exercício profissional, possui a natureza jurídica de autarquia federal, nos termos da Lei n9 5194/66, sendo, portanto, da competência da Justiça Federal o julgamento da causa, ex vi do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal". (STJ - CC 43.623/PR - Rei. Ministra Laurita Vaz - DJ 11/10/2004 p. 233). 228 Como decidiu o STJ, na hipótese de médicos serem enganados e lesados utilizando-se de dados constantes de sítio eletrônico mantido pelo Conselho Regional de Medicina, o seu interesse na identificação e punição dos estelionatários seria genérico e reflexo. Logo, verificado que a autarquia federal não foi ludibriada nem sofreu prejuízos, pois enganados foram os médicos que acreditaram nas promessas fraudulentas e lesadas foram essas mesmas pessoas, resta afastada a competência da Justiça Federal: STJ - CC 61.121/SP - 3a Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJ 06/08/2007 p. 463. Na mesma linha: Informativo n9 402 do STJ, CC 101.020/PR, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/08/2009. 229

Rei. Min. Eros Grau - DJ 29/09/2006.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil (Lei n° 8.906/94, art. 44, inciso II).230 Portanto, conclui-se que o julgamento da ADI n° 3.026 pelo Supre mo Tribunal não afastou a competência da Justiça Federal para processar e julgar os feitos que versem sobre lesão a bens, serviços ou interesses da Ordem dos Advogados do Brasil. Exemplifi cando, cuidando-se de exercício habitual da advocacia em desacordo com determinação oriu:nda da OAB, no desempenho de sua função institucional de fiscalizar a profissão de advogado, não se pode afastar a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito do art. 205 do CP.231 4.3.8. Crimes contra sociedades de economia mista, concessionárias e permissionárias de serviço público federal Interpretando-se a contrario sensu o art. 109, inciso IV, da Carta Magna, conclui-se que infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse de sociedade de eco­ nomia mista não serão julgadas pela Justiça Federal. Compreende-se por sociedade de economia mista a pessoa jurídica de direito privado, integrante da administração indireta do Estado, criada por autorização legal, sob a forma de sociedade anônima, cujo controle acionário pertença ao Poder Público, tendo por objetivo, como regra, a exploração de atividades gerais de caráter econômico e, em algumas ocasiões, a prestação de serviços públicos.232 No plano federal, podemos citar como exemplos de sociedades de economia mista o Banco do Brasil S.A.; o Banco da Amazônia S.A, o Instituto de Resseguros do Brasil; a PETROBRÁS - Petróleo Brasileiro S.A, etc. Portanto, eventual crime cometido em detrimento de uma socie­ dade de economia mista deve ser julgado perante a Justiça Estadual, ainda que esta sociedade conte com a participação da União. Nesse contexto, eis o teor da Súmula n° 42 do STJ: “Com­ pete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento”. Na mesma linha, dispõe a súmula 556 do STF: “É competente a justiça comum para julgar as causas em que é parte a sociedade de economia mista”. A evidência, se o delito cometido contra a sociedade de economia mista estiver, de alguma forma, relacionado a serviços por concessão, autorização ou delegação da União ou se houver indícios de desvio das verbas federais por ela recebidas e sujeitas à prestação de contas perante o órgão federal, não há como se afastar a competência da Justiça Federal.233 Também são de competência da Justiça Estadual crimes cometidos contra concessionárias ou permissionárias de serviço público federal, salvo, obviamente, se resultar lesão a bens, servi­ ços, ou interesse da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.234Assim, se 230

Para o STJ, "verificado que o ilícito, em tese, foi praticado com a utilização de inscrição da Ordem dos Advogados do Brasil, cancelada por determinação do seu Conselho Federal, deve ser fixada a competência da Justiça Federal para a instrução e julgamento do feito". (STJ - CC 44.304/SP - 3- Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 26/03/2007 p. 196). No sentido de que compete à Justiça Federal processar delito de falsificação de carteira da OAB: STJ, CC 33.198/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 25.03.2002. Na megma linha, porém no tocante à falsificação de carteira de estagiário da OAB: STJ, CC 10.998/MG, Rei. Min. Edson! Vidigal, DJ 04/09/1995.

231

Nessa linha: TRF4, ACR 2003.72.04.008987-0, Oitava Turma, Relator Luiz Ferhando Wowk Penteado, D.E. 14/01/2009.

232

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 439.

233

STF, ia Turma, RE 614.115 AgR/PA, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 16/09/2014.

234 STJ - RHC 19.202/SC - 5§ Turma - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - Dje 08/09/2008. STJ - CC 40.865/PB - 3§ Seção - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 19/04/2004 p. 152.

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um indivíduo, na cidade de São Paulo, resolver praticar um delito de dano contra um telefônico público pertencente à concessionária de serviço público de telefonia, não há falar em crime de competência da Justiça Fèderal, nem mesmo por suposta violação ao serviço de telecomunicações (CF, art. 21, XI), uma vejz que não se pode admitir que um delito de dano individualizado a um telefone público produzá lesão a interesse direto e imediato da União. Ora, nas concessões de serviço público, os bens jpertencem à própria empresa concessionária, que explora o serviço em nome próprio, com seu jpatrimônio e por sua conta e risco. Portanto, sem a demonstração de prejuízo em desfavor de ibens ou interesses da União, não se justifica a competência da Justiça Federal.235 Por sua vez, em se (ratando de crime de concussão praticado por administrador ou médico de hospital privado credenciado ao SUS (Sistema Único de Saúde), prevalece o entendimento de que a competência seria da Justiça Estadual, haja vista a presença de interesse particular do médico em obter vantagem indevida, produzindo tão somente interesse reflexo por parte da União, o que, de per si, não atrai a competência da Justiça Federal.236 4.3.9. Bens, serviços ou interesse da União, das autarquias federais (fundações públicas federais) e das empresas públicas federais Analisados os conceitos de União, de autarquias federais e de empresas públicas federais, cabe agora discorrer sobre a pedra de toque da competência da Justiça Federal, composta pela trilogia de bens, serviços ou interesses, uma vez que é indispensável que o crime afete, dire­ tamente, pelo menos um destes valores jurídicos. Oportuna, aliás, é a lição de Vladimir Souza Carvalho, segundo o qual “essa tricotomia é de significado simples, se definido por si só, dada a força com que cada termo encerra, embora, às vezes, se entrelacem, visto se confundirem ou serem sinônimos uns do$ outros. A infração, atingindo um desses requisitos, vulnera os outros, visto ser difícil delimitar a esfera do bem, do serviço e a do interesse, de forma que um não interfira na outra. O bem é serviço e se constitui em interesse. O serviço é bem e veste o traje do interesse. O interesse é bem e é serviço”.237 Por “bens” da União, de suas entidades autárquicas, ou das empresas públicas, deve-se com­ preender o seu respective! patrimônio, cuja identificação é possível por ser necessariamente objeto de registro e cadastraménto particularizado perante a própria administração. Especificamente em relação à União, nãõ se pode perder de vista o quanto disposto no art. 20 da Constituição Federal, que elenca diversos bens a ela pertencentes. Somente para citar alguns exemplos do dia-a-dia da Justiça Federal: eventual subtração de computadores incorporados ao patrimônio do Ministério da Justiça deve ser julgada pela Justiça Federal, haja vista a lesão a bem da União; se uma fraude for cometida em desfavor do Instituto Nacional do Seguro Social, gerando o pagamento indevido de benefício previdenciário, ter-se-á se crime de estelionato em detrimento de autarquia federal de competência da Justiça Federal; por fim, caso um delito de roubo seja praticado em detrimento de uma agência da Caixa Econômica Federal, a competência será da Justiça Federal, por se tratar de empresa pública federal.238

235

STJ - CC 37.751/DF - 3§ Seção - Rei. Min. Paulo Medina - DJ 16/06/2003 p. 259.

236 STF - RE 429.171/RS -1 ^ Turma - Rei. Min. Carlos Britto - DJ 11/02/2005 p. 13. E ainda: STJ - CC 29.304/RS - 3^ Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 12/03/2001 p. 87. 3§ ed. Curitiba: Editora Juruá, 1998. p. 316.

237

Competência da Justiça Federal.

238

No sentido da competência da Justiça Federal para julgar tentativa de efetuar saque, mediante documento falso, de conta de correntista da Caixa Econômica Federal, porquanto a instituição financeira federal teria que devolver.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Atualmente, não há territórios federais, na medida em que os de Roraima e do Amapá foram transformados em Estados, ao passo que o de Fernando de Noronha foi extinto e incorporado ao Estado de Pernambuco (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, arts. 14 e 15). Se forem criados novos Territórios Federais, passarão eles a integrar a União (CF, art. 18, § 2o), daí por que os crimes contra eles praticados serão de competência da Justiça Federal. No entanto, os crimes de competência estadual que forem praticados nas áreas geográficas dos Territórios Federais serão de competência da Justiça do Distrito Federal e Territórios, nos exatos termos do que dispõe o art. 33, caput, da Carta Magna, c/c a Lei n° 8.185/91 (Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal e Territórios). Evidentemente, esses bens são aqueles relacionados institucionalmente às entidades públi­ cas mencionadas na norma do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, razão pela qual não se pode concluir pela competência da Justiça Federal pelo simples fato do bem ser pertencente a um funcionário público federal. Eis o motivo pelo qual o STJ concluiu pela competência da Justiça Estadual para julgar delitos praticados por membros do MST em uma fazenda particular de propriedade da família do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso.* 239 Ainda com base na leitura do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal, decidiu o Supe­ rior Tribunal de Justiça que compete à Justiça estadual processar e julgar crimes de estelionato e falsificação de documento particular praticado em detrimento de consulado estrangeiro, sem prejuízo para a União, autarquias federais ou empresas públicas federais. Com efeito, o consulado é apenas uma representação de Estado estrangeiro dentro do território nacional, não se podendo falar em prejuízo de bens, serviços ou interesse da União. Portanto, o fato de competir à União a manutenção de relações diplomáticas com Estados estrangeiros - do que derivam as relações consulares - não tem o condão de atrair a competência da Justiça Federal.240 Embora organizado e mantido pela União (art. 21, XIII, da CF), o MPDFT não é órgão de tal ente federativo, pois compõe a estrutura orgânica do Distrito Federal, que é equiparado aos estados membros. Por isso, eventual crime de peculato cometido contra o MPDFT deve ser processado e julgado pelo TJDFT, e não pela Justiça Federal.241 Quanto aos crimes praticados em detrimento de bens tombados, entende-se que se o bem subtraído pelo agente foi tombado pelo patrimônio histórico nacional, decorre inequívoco inte­ resse da União, e a conseqüente competência da Justiça Federal. Portanto, considerando que o objetivo do tombamento é a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, cabendo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a sua manutenção e vigilância, conclui-se pela competência da Justiça Federal.242Por outro lado, se se trata de furto e receptação de bens tombados por estado-membro ou por município, não há falar em interesse da União.243

em razão do contrato de depósito, o numerário ao particular caso sofresse prejuízo indevido: STJ - CC 22.842/ RJ - 3® Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 26/03/2007 p. 192. 239 STJ - CC 36.617/DF - 3§ Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 22/04/2003 p. 195. 240

CC 45.650-SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/3/2007. Também compete à Justiça Esta­ dual - e não à Justiça Federal - processar e julgar supostos crimes de violação de domicílio, de dano e de cárcere privado - este, em tese, praticado contra agente consular - cometidos por particulares no contexto de invasão a consulado estrangeiro: STJ, 3ã Seção, AgRg no CC 133.092/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 23/4/2014.

241

STJ, 3ã Seção, CC 122.369/DF, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira - Desembargadora convocada do TJ/PE -, j. 24/10/2012.

242

Nessa linha: STJ, 3ã Seção, CC 106.413/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 14/10/2009, DJe 09/11/2009. Etambém: TRF1, ACR 2002.38.00.042489-7/MG - 4 ã Turma - Rei. Desembargador Federal Mário César Ribeiro - DJ 13/11/2008.

243 STJ - CC 56.102/SP - 3§ Seção - Relatora Ministra Laurita Vaz - DJU 23/10/2006 p. 256.

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Em relação ao desvio de verbas públicas oriundas de convênios firmados pela União com os municípios, entendem os Tribunais Superiores que se a verba já estiver incorporada ao patrimô­ nio municipal, a competência será da Justiça Estadual, porquanto não haveria ofensa a interesse federal. Lado outro, se a verba ainda estiver sujeita à prestação de contas perante órgão federal, a competência será da Justiça Federal.244 O extinto Tribunal Federal de Recursos chegou a editar súmula a respeito do assunto, nos seguintes termos: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar Prefeito Municipal acusado de desvio de verba recebida em razão de convênio firmado com a União Federal” (Sú­ mula n° 133 do extinto TFR). O STJ também possui duas súmulas acerca do tema. A súmula de n° 208 preceitua que “Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal. Por sua vez, de acordo com a súmula n° 209 do STJ, “compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal”. Por isso, o desvio de verbas oriundas do FUNDEF - Fundo de Manutenção e Desenvolvi­ mento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério - deve ser processado e julgado pela Justiça Federal. Isso porque, segundo o art. 212, caput, da Constituição Federal, cabe à União aplicar, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Este interesse da União frente à sua missão constitucional na coordenação de ações relativas ao direito fundamental da educação acaba por atrair o controle a ser exercido pelo TCU (CF, art. 71) e, por conseqüência, fixar a competência da Justiça Federal para julgar a malversação de verbas decorrentes do FUNDEF, ainda que não haja complementação por parte da União.245 No mesmo contexto, compete à Justiça Federal processar e julgar as ações penais relativas a desvio de verbas originárias do Sistema Único de Saúde (SUS), independentemente de se tratar de valores repassados aos Estados ou Municípios por meio da modalidade de transferên­ cia “fundo a fundo” ou mediante realização de convênio. Isso porque há interesse da União na regularidade do repasse e na correta aplicação desses recursos, que, conforme o art. 33, § 4o, da

244

Nessa linha: STF - RE 464.621/RN - 2ã Turma - Rei. Min. Ellen Gracie - Dje-222 20/11/2008. Concluindo pela competência da Justiça Federal para o julgamento de agente público estadual acusado da prática do delito pre­ visto no artigo 89, da Lei 8.666/93, por dispensa indevida de licitação, para construção de complexo prisional, mediante emprego de verba oriunda de convênio entre a União e o Estado, cuja fiscalização competia ao TCU, pela presença do interesse da União na realização do objeto do convênio: STJ - RHC 14.870/GO - 6ã Turma Rei. Min. Paulo Medina - DJU 25/09/2006 p. 310. No sentido da competência da Justiça Federal para processar e julgar processo penal no qual se discute o desvio de recursos provenientes do Fundo de Manutenção e de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef): Informativo n^ 649 do STF, 2^ Turma, HC 100.772/GO, Rei. Min. Gilmar Mendes, 22/11/2011. Na medida em que o sistema de repasse de re­ cursos constante do programa de resposta aos desastres e reconstrução (art. 51 da Lei ne 11.775/2008, revogado pela Lei n^ 12.340/2010) deriva de termo de compromisso assinado entre os entes federados e o Ministério da Integração Nacional, tendo como fim específico o de socorrer a população desabrigada devido a situações de calamidade pública, estando sujeito à verificação e fiscalização do Governo Federal, tem -se como presente

o interesse da União e a conseqüente competência da Justiça Federal para a apuração de possíveis crimes de peculato e receptação: STJ, 3- Seção, CC 114.566/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 13/12/2010. Ante o cumprimento integral do convênio firmado pela União, se o dinheiro remanescente não estiver mais sujeito a qualquer fiscalização pelo TCU, nem tampouco se destinar a custeio de serviço ou atividade de competência da União, recai sobre a Justiça Estadual a competência para o processo e julgamento do feito: STF, HC 89.523, Rei. Min. Carlos Britto, j. 25/11/2008. 245 STJ, 3§ Seção, CC 119.305/SP, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu - Desembargador convocado do TJ/RJ -, j. 08/02/2012, DJe 23/02/2012.

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Lei 8.080/1990, estão sujeitos à fiscalização federal, por meio do Ministério da Saúde e de seu sistema de auditoria. De mais a mais, o fato de os Estados e Municípios terem autonomia para gerenciar a verba destinada ao SUS não elide a necessidade de prestação de contas ao TCU, tampouco exclui o interesse da União na regularidade do repasse e na correta aplicação desses i recursos.246 A expressão “serviços” está relacionada à finalidade da União, de suas entidades autárqui­ cas ou empresas públicas, ou seja, ao serviço público prestado pela respectiva entidade federal. Quanto ao vocábulo “interesse”, a fim de justificar a competência da Justiça Federal, deve ele ser particular, específico, direto; caso contrário, em se tratando de interesse genérico, remoto, não imediato, a competência será da Justiça Estadual.247 Justifica-se, assim, a competência da Justiça Federal para processar e julgar o delito de contrabando (CP, art. 334-A) e o crime de descaminho (CP, art. 334, caput), ainda que inexistentes indícios de transnacionalidade da conduta, já que ambos os delitos tutelam precipuamente interesse da União, que é a quem compete privativamente definir os produtos de ingresso proibido no país, além de exercer a fiscalização aduaneira è de fronteira (CF, arts. 21, XXII e 22, VII). Por isso, em caso concreto envolvendo a prática do crime previsto no art. 334, §1°, IV, do Código Penal - no caso concreto, a venda em uma barraca de comércio informal de mercadoria estrangeira (cigarros), permitida pela ANVISA, desacompanhada de nota fiscal e sem comprovação de pagamento de imposto de importação -, concluiu o STJ tratar-se de delito da competência da Justiça Federal, a despeito de não haver quaisquer indí­ cios de que o acusado teria participado da importação da mercadoria deliberado dos tributos de importação, porquanto se trata, o descaminho, de delito que tutela prioritariamente interesses da União (ordem tributária).248 Na mesma linha, compete à justiça estadual o julgamento de ação penal em que se apure crime de esbulho possessório efetuado em terra de propriedade do Incra na hipótese em que a conduta delitiva não tenha representado ameaça à titularidade do imóvel e em que os únicos prejudicados tenham sido aqueles que tiveram suas residências invadidas.249 Reiteramos: a presença de interesse genérico ou indeterminado nao atrai, de per si, a competência da Justiça Federal250. Por isso, ao apreciar caso concreto rela fionado à sonegação de correspondência em portaria de condomínio residencial (CP, art. 151, § l c, inciso I), decidiu o STJ que, a despeito de envolver o caso discussão sobre existir ou não dever por parte dos Correios, empresa pública, na entrega de correspondência no domicílio dos moradores ou na Portaria, fato

246

Nessa linha: STJ, 3§ Seção, AgRg no CC 122.555/RJ, Rei. Min. Og Fernandes, j. 14/08/2013, DJe 20/08/2013.

247 OLIVEIRA, Roberto da Silva. Op. cit. p. 70. 248

STJ, 3â Seção, CC 159.680/MG, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 08/08/2018, DJe 20/08/2018. Em sentido semelhante, porém em relação ao crime de contrabando: STJ, 3ã Seção, CC 160.748/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/09/2018, DJe 04/10/2018. Quanto aos crimes em comento, não se pode perder de vista o teor da Súmula ns 238 do extinto Tribunal Federai de Recursos: "A saída de veículo furtado para o exterior não configura o crime de descaminho ou contrabando, competindo à Justiça Comum Estadual o processo e julgamento dos delitos dela decorrentes".

249

STJ, 3ã Seção, CC 121.150/PR, Rei. Min. Alderita Ramos de Oliveira - Desembargadora convocada do TJ/PE, j. 04/02/2013, DJe 20/02/2013.

250

No sentido de que a ofensa indireta, genérica ou reflexa praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas federais, não atrai a competência da Justiça Federal com base no art. 109, IV, da CF/88: STJ, 3§ Seção, CC 147.393/RO, Rei. Min. Reynaldo Soa res da Fonseca, j. 14/09/2016, DJe 20/09/2016; STJ, 5®Turma, RHC 066.784/RS, Rei. Min. Felix Fischer, j. 21/06/2016, DJe 01/08/2016.

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é que não é apontado qualquer dano aos Correios, a indicar lesão a bens, serviços ou interesses da União, mas tão somente aos particulares, afasta-se a competência da Justiça Federal.251 Do mesmo modo, õ simples fato de o Ministério da Saúde exercer as funções de órgão central do Sistema Nacional de Transplante (art. 4o do Dec. n° 2.268/1997) não significa dizer que o crime de remoção de tecidos e órgãos previsto no art. 14 da Lei n° 9.434/97 seja de com­ petência da Justiça Federal.252 Na mesma linha, compete à Justiça Estadual - e não à Justiça Federal - processar e julgar suposto crime de perigo de desastre ferroviário qualificado pelo resultado lesão corporal e morte (art. 260, IV, § 2o, c/c art. 263 do CP) ocorrido por ocasião de descarrilamento de trem em malha ferroviária da União, porquanto o bem jurídico tutelado pelo referido delito é a incolumidade pública, consubstanciada na segurança dos meios de comunicação e transporte, protegendo-se, indiretamente, a vida e a integridade física das pessoas vítimas do desastre. Como o sujeito passivo do delito é a coletividade em geral e, de forma indireta, as pessoas que, eventualmente, sofram lesões corporais ou morte, e não a União propriamente dita, não há falar em crime da competência da Justiça Federal.253 Também compete à Justiça Estadual processar e julgar a suposta prática de delito de falsidade ideológica praticado contra Junta Comercial. O art. 6o da Lei 8.934/1994 prescreve que as Juntas Comerciais subord:inam-se administrativamente ao governo da unidade federativa de sua jurisdição e, tecnicamenfe, ao Departamento Nacional de Registro do Comércio, órgão federal, Logo, se não houver ofen sa direta a bens, serviços ou interesses da União, deve ser reconhecida a competência da Justiça Estadual.254 Alguns exemplos de serviços” ou “interesses” da União, a fim de justificar a competência da Justiça Federal, podeiip. ser extraídos a partir da análise de hipóteses de competências administrativas da União elencadas no art. 21 da Constituição Federal, tais como: a) emitir moeda: por força do art. 21, inciso VII, da CF, compete à Justiça Federal processar e julgar o delito de moeda falsa (CP, art. 289). Ora, se à Casa da Moeda do Brasil compete emitir moeda, não há como refutar que a falsificação de moeda acarrete lesão a interesse direto da União. Para a caracterização do crime de moeda falsa, é necessário que o papel moeda ou a moed a metálica adulterados tenham potencialidade de enganar o homem médio. A falsificação grosseira, facilmente perceptível e incapaz de iludir terceiros, não pode ser objeto material do art. 289 do CP. Porém, pode ser que, no caso concreto, essa moeda grosseiramente falsificada seja idônea a enganar determinada pessoa, subsistindo, então, a possibilidade de responsabilização criminal pelo delito de estelionato, de competência da Justiça Estadual. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 73, segundo a qual a utilização de papel moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da Justiça Estadual.255 Quanto à moeda falsa estrangeira, trata-se de crime praticado em detrimento do Banco Central do Brasil, autarquia federal que tem a atribuição de ser depositário das reservas oficiais de ouro e moeda estrangeira, atuando também

251

STJ - CC 95.877/SP - 3ã Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - Dje 20/02/2009.

252

Informativo n9 400 do STJ. CC 103.599/MG, Rei. Min. Nilson Naves, julgado em 24/6/2009.

253

Nesse contexto: STJ, 69 Turma, RHC 50.054-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 4/11/2014.

254 STJ, 39 Seção, CC 130.516/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 26/2/2014. 255

Segundo o STJ, "a boa qualidade do falso, grosseira apenas do ponto de vista estritamente técnico, assim atestada em laudo pericial, é capaz de tipificar, em tese, o crime de moeda falsa". (STJ - CC 79.889/PE - 3® Seção - Rel. Ministra Jane Silva - Dje 04/08/2008).

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para regular o funcionamento do mercado cambial. Logo, também nessa hipótese firmar-se-á a competência da Justiça Federal. b) manter o serviço postai e o correio aéreo nacional: face o disposto no inciso X do art. 21 da CF/88, os crimes contra o serviço postal, previstos na Lei n° 6.538/78, são de competência criminal federal, além de que são praticados em detrimento de serviço da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), que é empresa pública federal. Também é de competência federal se comprovado que o réu, valendo-se de suas funções de carteiro, apropriou-se indevidamente de bens e valores confiados ao serviço postal, impondo-se a sanção do art. 312 do CP, que absorve a do delito previsto no art. 40 da Lei n° 6.538/78. c) explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações: em virtude do inciso XI do art. 21 da Constituição Federal, compete à Justiça Federal processar e julgar o delito de desenvolvimento clandestino de telecomunicações (estação de radiodifusão clandestina), previsto no art. 183 da Lei n° 9.472/97 (Lei Geral das Telecomunicações), assim como o crime previsto no art. 70 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n° 4.117/62).256 A conduta de transmitir sinal de internet, via rádio, de forma clandestina, também configura, em tese, o delito previsto no art. 183 da Lei n° 9.472/1997 (desenvolvimento clandestino de ati­ vidade de telecomunicações), de competência da Justiça Federal, uma vez que se trata de serviço cuja exploração é atribuída à União, ainda que se reconheça possível prejuízo a ser suportado pela empresa de telefonia.257 Todavia, a simples utilização de linhas telefônicas clonadas não configura o delito de desenvolvimento clandestino de telecomunicações.258 No mesmo contexto, a conduta de clonar telefones celulares, qual seja, reprogramar um aparelho de telefonia celular com número de linha e ESN de outro aparelho, deve ser processada e julgada perante a Justiça Comum Estadual. Isso porque tal conduta não se subsume ao tipo penal do art. 183 da Lei n° 9.472/1997, uma vez que não há o desenvolvimento clandestino de atividades de telecomunicação, mas apenas a utilização de linha preexistente e pertencente a outro usuário, com a finalidade de obter vantagem patrimonial indevida, às custas dele e das concessionárias de telefonia móvel que exploram legalmente o serviço, tendo a obrigação de ressarcir os clientes nas hipóteses da referida fraude, inexistindo quaisquer prejuízos em detri­ mento de bens, serviços ou interesses da União a ensejar a competência da Justiça Federal.259 Como a competência da Justiça Federal demanda a presença de interesse direto e imediato da União, in casu, ao serviço de telecomunicações, entendem os Tribunais que compete à Justiça Estadual processar e julgar ação penal relativa à eventual prática de ilícito consistente na recepção clandestina de sinal de TV a cabo, tendo em vista a ausência de ofensa direta a bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.260 256

De acordo com a súmula n. 606 do STJ, "não se aplica o princípio da insignificância a casos de transmissão clandestina de sinal de internet via radiofreqüência, que caracteriza o fato típico previsto no art. 183 da Lei n. 9.472/97". Em sentido diverso, a l ã Turma do Supremo Tribunal Federal tem precedente (HC 127.978/PB, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/10/2017, DJe 276 30/11/2017) no sentido de que a oferta de serviço de internet não é passível de ser enquadrada como atividade clandestina de telecomunicações à luz do art. 183 da Lei n. 9.472/97. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao nosso livro de Legislação Criminal Especial Comentada, onde fazemos um estudo detalhado do crime de desenvolvimento clandestino de telecomunicações previsto no art. 183 da Lei n. 9.472/97.

257

Nesse sentido: STJ, 3â Seção, AgRg no CC 111.056/SP, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 25/08/2010.

258 STJ, 33 Seção, CC 50.638/MG, Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - DJ 30/04/2007 p. 280. 259 STJ, 3a Seção, CC 113.443/SP, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 28/9/2011. 260 STJ, 33 Seção, CC 34.690/PR, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 01/07/2002 p. 211. A propósito da ligação clandestina de sinal de TV a cabo, convém destacar que, em recente julgado, a 2a Turma do Supremo declarou a atipicidade

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Por outro lado, o simples fato do delito de incitação ao crime (CP, art. 286) ou o de apo­ logia ao crime (CP, art. 287) ser praticado em programa de televisão não atrai a competência da Justiça Federal.261 Ainda quanto a eventual interesse da União, entende o STJ que compete à Justiça Estadual Comum julgar e processar suposto delito de interceptação telefônica sem autorização judicial, pois não se evidencia ofensa a bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias, ou em­ presas públicas262. 4.3.10. Crimes previstos no Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826/03) Quando da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826/03), surgiu discussão na doutrina quanto à competência para processar e julgar os delitos ali previstos. Isso porque a referida lei instituiu o Sistema Nacional de Armas (SINARM) no âmbito do Ministé­ rio da Justiça e da Polícia Federal, com circunscrição em todo o território nacional (art. Io), ao qual, dentre outras atribuições, compete identificar as características e a propriedade de armas de fogo, mediante cadastro; cadastrar as armas de fogo produzidas, importadas e vendidas no país; cadastrar as autorizações de porte de arma de fogo e as renovações expedidas pela Polícia Federal, etc. Além disso, segundo a referida lei, compete à Polícia Federal, com prévia auto­ rização do SINARM, expedir o certificado de registro de arma de fogo, o qual autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicí­ lio, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa (art. 5o), assim como a autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido (art. 10). A primeira vista, poder-se-ia pensar que todos os delitos previstos no Estatuto do Desar­ mamento passariam a ser de competência da Justiça Federal, uma vez que afetariam interesses de órgãos pertencentes à estrutura da União. No entanto, o bem jurídico tutelado pelas citadas normas não é o regular funcionamento ou atuação da Administração Pública Federal, mas sim a incolumidade pública, ou seja, a garantia e preservação do estado de segurança, integridade corporal, vida, saúde e patrimônio dos cidadãos indefinidamente considerados contra possíveis atos que os exponham a perigo. Logo, o simples fato de se tratar de porte de arma de fogo não evidencia, por si só, a competência da Justiça Federalj. Como o objeto jurídico protegido pela Lei n° 10.826/03 é a incolumidade de toda a sociedade, vítima em potencial do uso irregular das armas de fogo, não havendo qualquer violação direta aos interesses da União, a despeito de ser o SINARM um ente federal, há de se concluir, pela competência da Justiça Estadual para julgar, em regra, os crimes previstos na Lei n° 10.826/03.263 Destarte, tem-se que, em regra, a competência para processar e julgar os delitos previstos no Estatuto do Desarmamento será da Justiça Estadual, ainda que a arma de fogo seja de uso privativo ou restrito, pois, nesse caso, não se vislumbra nenhum interesse da União, capaz de despertar a competência da Justiça Federal, salvo na hipótese do tráfico internacional de armas (Lei n° 10.826/03, art. 18), hipótese em que a competência será da Justiça Federal, nos exatos termos do art. 109, V, da Constituição Federal, haja vista tratar-se de crime previsto em tratado

dessa conduta. Entendeu-se que o objeto do referido crime não seria "energia". Logo, considerando a inadmis­ sibilidade da analogia in m alam partem em Direito Penal, tal conduta não poderia ser tipificada como o crime do art. 155, § 3?, do CP: STF, 2a Turma, HC 97.261/RS, Rei. Min. Joaquim Barbosa, 12/04/2011. 261 STF, 13 Turma, RE 166.943/PR, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 04/09/95. 262 STJ - CC 98.890/SP - 3a Seção - Rei. Ministra Maria Thereza de Assis Moura - Dje 20/02/2009. 263

STJ - HC 57.348/RJ - 5a Turma - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 01/08/2006 p. 502.

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ou convenção internacional, caracterizado pela intemacionalidade territorial do resultado rela­ tivamente à conduta delituosa.264 Portanto, ainda que o agente seja militar das Forças Armadas, guardando arma de origem estrangeira e de uso restrito no interior de quartel, a competência será da Justiça Estadual. Nesse caso, referido delito não poderá ser julgado pela Justiça Militar porquanto não está previsto no Código Penal Militar. Logo, não se tratando de crime militar, nem tampouco havendo lesão a interesse direto da União, a competência para julgá-lo será da Justiça Comum Estadual.265 4.3.11. Crimes contra a Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar da União A Justiça Federal, a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar da União não são pessoas jurídicas, mas sim integrantes da pessoa jurídica de direito público interno que é a União, como partes do Poder Judiciário da União. Portanto, eventual delito contra elas praticado é cometido, em última análise, em detrimento do serviço jurisdicional da União, justificando a competência da Justiça Federal com base no art. 109, inciso IV, da CF/;88.266 Assim, eventual comportamento delituoso de quem usa documênto falso, em qualquer processo judiciário federal, faz surgir situação de potencialidade danosa, apta a comprometer a integridade, a segurança, confiabilidade, a regularidade e a legitimidade de um dos serviços essenciais prestados pela União Federal, qual seja o serviço de administração da Justiça, justi­ ficando, pois, a competência da Justiça Federal.267 Nessa ordem, ao apreciar conflito de competência relacionado a crime comum praticado contra juiz eleitoral, concluiu o STJ que, como a competência criminal da Justiça Eleitoral se restringe ao processo e julgamento dos crimes tipicamente eleitorais, eventual crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em preservar a própria administração, atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal.268 Quanto aos crimes contra a Justiça do Trabalho, diz a súmula 200 do extinto Tribunal Federal de Recursos que compete à Justiça Federal processar e julgar o crime de falsificação ou de uso de documento perante a Justiça do Trabalho. No mesmo sentido é p teor da súmula n° 165 do STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de falso testemunho cometido no processo trabalhista. Quanto a esta última súmula, ousaríamos fazer úm pequeno acréscimo: Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de falso testemunho cometido perante a Justiça Federal/do Trabalho/Eleitoral/Militar da União.269.

264

No sentido da competência da Justiça Estadual para processar e julgar o crime de depósito e venda de munições, ainda que de uso privativo ou restrito: TRF4, ACR 2004.71.10.002861-3, Sétima Turma, Relator Néfi Cordeiro, D.E. 10/09/2008. Em sentido semelhante: STJ, 3^ Seção, CC 44.129/RJ, Rei. Min. Pgulo Medina, DJ 3/11/04; STJ, 5ã Turma, HC 79.264/PR, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 03/11/2008.

265

STJ - CC 28.251/RJ - 3^ Seção - Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa - DJ 05/10/2005 p. 160.

266

No sentido de que crime de uso de artefato incendiário contra edifício sede da Justiça Militar da União deve ser processado e julgado perante a Justiça Federal, e não perante a Justiça Militar ida União, porquanto se trata de crime praticado em detrimento de órgão do Poder Judiciário da União, logo, cjue não integra o patrimônio militar nem está subordinado à administração castrense: STJ, 3§ Seção, CC 137.378/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11/3/2015, DJe 14/4/2015.

267 STF - RHC 79.331/RJ - 2§ Turma - Rei. Min. Celso de Mello - DJ 29/10/1999. No sehtido de que o uso de cartões de ponto ideologicamente falsos nos autos de reclamação trabalhista deve ser protessado e julgado pela Justiça Federal: STJ, RHC 23.500/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 05/05/2011. 268 STJ - CC 45.552/RO - 3^ Seção - Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima - DJU 27/11/2006 p. 246. 269

No sentido da competência da Justiça Federal para processar e julgar crime de falso testemunho praticado em detrimento da administração da Justiça Eleitoral, na medida em que a circunstância de ocorrer o falso depoimento

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Com base nesse en endimento, em caso concreto pertinente ao crime de patrocínio infiel (CP, art. 355) em reclam atória trabalhista, concluiu o Supremo que o delito deveria ser julgado perante a Justiça Federa , haja vista que o bem jurídico tutelado pelo referido dispositivo seria a Administração da Justi ça, in casu, uma Justiça “da União”.*270 Do mesmo modo, ameaça de morte proferida em audi ncia na Justiça do Trabalho/Eleitoral/Militar da União, guardando estreita relação com a caus a em discussão, sugere a capitulação do delito de coação no curso do processo (CP, art. 344) com a conseqüente competência da Justiça Federal.271 4.3.12. Crime praticado contra funcionário público federal Em regra, crime praticado contra funcionário público federal, em razão do exercício de sua função, afeta o serviço público federal, atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal. Lamentável exemplo a ser lembrado é exatamente o do homicídio de três auditores fis­ cais do Ministério do Trabalho, além do motorista que os conduzia, na cidade de Unaí, noroeste de Minas Gerais, hipótese em que restou firmada a competência do Tribunal do Júri Federal, regulado pelo Decreto-lei 253/1967. Acerca do tema, o extinto Tribunal Federal de Recursos chegou a editar a súmula n° 98, segundo a qual compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra ser­ vidor público federal, no exercício de suas funções com estas relacionados. Com redação quase idêntica é a súmula n° 147 do STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contrafuncionário público federal, quando relacionados com o exercício da função. Da leitura das duas súmulas, conclui-se que a condição da vítima de funcionário público federal na ativa, por si só não desloca a competência para a Justiça Federal, sendo indispensável que haja relação entre a infração penal e as funções exercidas pelo funcionário público federal (propter officium), a fim de que seja atraída a competência da Justiça Federal. Por isso, eventual crime de roubo praticado contra carteiro da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos no exercício de sua função atrai a competência da Justiça Federal, pouco importando que os bens subtraídos pertençam a particulares.272 Caracterizado o interesse direto da União, a competência da Justiça Federal será firmada não apenas quando a vítima do crime for funcionário público federal. Com efeito, em caso concreto referente a homicídio praticado por quadrilha com o intuito de impedir investigações desenvolvidas pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão do Ministério da Justiça, entendeu o STJ que a infração penal teria maculado serviços e interesses da União, razão pela qual concluiu-se pela fixação da competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do feito.273 Nos termos da súmula n° 147 do STJ, também recai sobre a Justiça Federal a competência para processar e julgar crime de latrocínio no qual tenha havido troca de tiros com policiais rodoviários federais que, embora não estivessem em serviço de patrulhamento ostensivo, foram obrigados a agir (CP, art. 13, § 2o, “a”) para reprimir assalto a instituição bancária privada. Ora, em processo eleitoral não estabelece vínculo de conexão para atrair a competência da Justiça Eleitoral: STJ - CC B5.885/SE - 3ã Seção - Rei. Min. Vicente Leal - DJ 09/12/2002 p. 282. 270 STF, 2ã Turma, RE 328.168/SP, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 14/06/2002 p. 159. 271 STJ - CC 33.265/RJ - 3^ Seção - Rei. Min. Paulo Gallotti - DJ 14/04/2003 p. 177. 272 STJ, 6- Turma, HC 8.856/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 23/08/1999 p. 151. E ainda: STJ, 5^ Turma, HC 210.416/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 06/12/2011, DJe 19/12/2011. 273

STJ, 6§ Turma, HC 57.189/DF, Rei. Min. Og Fernandes, j. 16/12/2010.

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por mais que os policiais rodoviários federais não estivessem em serviço de patralhamento os­ tensivo, possuem, como agentes policiais, o dever legal de prender em flagrante quem estiver praticando crime, nos termos do art. 301 do CPP. Logo, se os policiais tinham a obrigação de agir para reprimir a prática criminosa, conclui-se que agiram no exercício de suas funções, o que, de per si, atrai a competência da Justiça Federal.274 Obviamente, se o crime for praticado contra funcionário público federal quando este já estiver aposentado, a competência será da Justiça Estadual.275 Se o servidor público for estadual, mas se encontrar no exercício de função pública federal delegada, a competência para processar e julgar o delito será da Justiça Federal. Por isso, eventual delito de desacato cometido contra juiz estadual investido da jurisdição eleitoral deve ser processado e julgado pela Justiça Federal, na medida em que atenta contra interesse da União.276 A ofensa a honra de dirigente sindical não se traduz em interesse da União de modo a justi­ ficar a competência da Justiça Federal, haja vista não ser ele considerado funcionário público.277 Por sua vez, em caso concreto relacionado a crime de desobediência de ordem judicial emanada de Juiz Estadual de reintegração de posse supostamente praticado por funcionário público federal do INCRA, decidiu a 3a Seção do STJ tratar-se de crime de competência da Justiça Federal, na medida em que o agente se valeu de sua condição de servidor do INCRA para dar credibilidade às suas ações, utilizando-se de sua função de Gerente Operacional do referido Órgão Estatal na Região, restando patente que a União tem interesse na causa, pois exige de seus servidores que obedeçam a estrita legalidade no exercício de suas funções.278 Apesar de o Poder Judiciário do Distrito Federal ser mantido pela União, eventual crime cometido contra servidores públicos ou magistrados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios são de competência da Justiça Comum do Distrito Federal, e não da Justiça Fede­ ral.279 Na mesma linha, a competência para processar e julgar crimes praticados contra a honra de Promotor de Justiça do Distrito Federal no exercício de suas funções é da Justiça comum do DF, não sendo aplicável a súmula n° 147 do STJ.280 Como a competência é sempre fixada com base em critérios objetivos, independentemente da análise do elemento subjetivo do agente, nas hipóteses de aberratio ictus, deve ser levada em consideração a pessoa sobre a qual recaiu a conduta, independentemente da chamada “vítima virtual”. Como se sabe, no erro na execução, previsto no art. 73 do Código Penal, o agente quer atingir uma pessoa, porém, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, vem a atingir pessoa diversa. Nesse caso, para fins penais, responde como se tivesse atingido a pessoa que pretendia ofender. Sendo assim, se o agente quer matar um funcionário público federal, contudo, mata uma outra pessoa por erro na execução, deve responder perante um Tribunal do Júri na Justiça Estadual. Agora, se queria matar alguém e acaba produzindo a morte de um funcioná­ rio público federal (aberratio ictus), deve responder pelo delito perante um Tribunal do Júri

274

Nesse sentido: STJ, 5ã Turma, HC 309.914/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 7/4/2015, DJe 15/4/2015.

275

STJ - CC 88.262/SE - 3^ Seção - Dje 17/10/2008.

276 STJ - HC 18.078/RJ - 6? Turma - Rei. Min. Hamilton Carvalhido 6ã Turma - DJ 24/06/2002 p. 345. 277 STJ - CC 46.461/SP - 3§ Seção - Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa - DJ 05/10/2005 p. 160. 278 STJ - CC 97.679/RO - 3§ Seção - Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho - Dje 19/12/2008. 279 STJ - CC 29.229/DF - 3^ Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 23/10/2000 p. 105. 280 STJ, 3- Seção, CC 119.484/DF, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 25/04/2012.

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Federal.281 Tal questão chegou a ser enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, porém em uma hipótese em que um militar queria matar outro militar - aí o crime seria de competência da Justiça Militar porém, por erro na execução, veio a atingir um civil. Restou fixada a com­ petência da Justiça Comum.282 Perceba-se que o art. 109, IV, da Constituição Federal, traz ressalva expressa à competên­ cia da Justiça Militar. Daí por que, em caso concreto ocorrido em lugar sujeito à administração militar, em que militar do Exército da ativa imputou falsamente fato definido como crime a funcionário público federal, concluiu o STJ tratar-se de crime de competência da Justiça Militar da União.283 4.3.13. Crime praticado por funcionário público federal Crime praticado por funcionário público federal quando relacionado com o exercício da função também deve ser processado e julgado pela Justiça Federal. A respeito do assunto, eis o teor da súmula n° 254 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os delitos praticados por funcionário público federal, no exercício de suas funções e com estas relacionados”.284 Perceba-se que o simples fato de o delito ser praticado por funcionário público federal não atrai a competência da Justiça Federal, sendo indispensável analisar se o crime guarda relação com as funções desempenhadas pelo agente. Assim, por exemplo, caso um funcionário público federal pratique um delito de estelionato fora de suas atribuições funcionais e sem prejuízo a bem, serviço ou interesse da União, deverá o crime ser julgado pela Justiça Estadual.285 Por outro lado, evidenciado o nexo funcional do crime praticado pelo funcionário público federal, ter-se-á crime de competência da Justiça Federal. Nessa linha, decidiu a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal que o Júri Federal é competente para julgar Patrulheiro da Polícia Rodoviária Federal que comete homicídio no desempenho de suas funções. Nesse caso o in­ teresse da Administração Pública Federal é evidenciado pelo exercício da atividade estatal no momento do crime.286 Aliás, em caso concreto apreciado pelo STJ, entendeu-se que ofende diretamente interesse da União Federal, atraindo a competência da Justiça Federal (art. 109, IV da CF), a conduta de Policiais Federais que, mesmo fora do exercício funcional, mas vestindo a farda, portando o

281

Roberto Luis Luchi Demo (Competência penal originária: uma perspectiva jurisprudencial crítica. São Paulo: MaIheiros Editores, 2005. p. 162) e Fernando de Almeida Pedroso (Competência penal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 28) posicionam-se em sentido diverso.

282

"Ainda que tenha ocorrido a aberratio ictus, o militar, na intenção de cometer o crime contra colega da corpora­ ção, outro militar, na verdade, acabou praticando-o contra uma vítima civil, tal fato não afasta a competência do juízo comum. Conflito conhecido, declarando-se a competência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o suscitado". (STJ - CC 27.368/SP - 3® Seção - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - DJ 27/11/2000 p. 123).

283 STJ, 3ã Seção, CC 106.623/DF, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 28/10/2009. 284

No sen tido da com petência da Justiça Federal para julgar crime com etid o por en genheiros florestais credenciados

pelo IBAMA, no exercício de função pública, considerados funcionários públicos por equiparação (CP, art. 327, § 15); STJ - HC 47.364/SC - 6* Turma - Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa - DJ 04/09/2006 p. 331. 285 TRF4, ACR 96.04.03231-3, Segunda Turma, Relator Edgard Antônio Lippmann Júnior, DJ 18/12/1996. Nos mesmos moldes: STF - HC 92.346/SP - 2- Turma - Rei. Min. Eros Grau - Dje 031 21/02/2008. Não obstante, a 5®Turma do STJ concluiu recentemente que compete à Justiça Federal o julgamento de delitos cometidos por policiais federais que estejam fora do exercício de suas funções, mas utilizem farda, distintivo, identidade, arma e viatura da corporação: Informativo ne 457 do STJ, 53Turma, REsp 1.102.270/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 23/11/2010. 286 STF, 2§ Turma, HC 79.044/RJ Rei. Min. Nelson Jobim - DJ 30/06/2000 p. 40.

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distintivo da corporação, as identidades e as armas e no uso de viatura oficial da DPF, praticam crimes contra pessoas alheias à Administração Pública.287 Da mesma forma que esse crime praticado por funcionário público da União é da com­ petência da Justiça Federal, caso o crime seja cometido por funcionário de empresa pública federal ou de autarquia federal, presente o nexo funcional, estará justificada a competência da Justiça Federal. Com base nesse entendimento, decidiu a 3a Seção do STJ que compete à Justiça Federal processar e julgar crime no qual empregado da Caixa Econômica Federal, em tese, teria, no exercício de suas funções, discriminado pessoa idosa que aguardava atendimento bancário, conduta que se subsume ao delito previsto no art. 96 da Lei n° 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).288 De acordo com a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal, compete à Justiça do Distrito Federal e Territórios, e não à Justiça Federal, processar e julgar delito s in officio de falsidade ideológica e corrupção passiva supostamente praticados por oficial de justiça do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, no desempenho de suas funç ões. Afastou a Suprema Corte o argumento de que, como o Poder Judiciário do DF seria mantiido pela União, a competência seria da Justiça Federal, asseverando-se que o Poder Judiciário di strital deve ter o mesmo tratamento da Justiça local.289 O crime de tráfico de influência previsto no art. 332 do Código Penal será de competência da Justiça Federal sempre que o funcionário público objeto da suposta influência qualificar-se como federal, mesmo que não haja prejuízo imediato à União, uma vez que o bem jurídico tutelado é o prestígio da Administração Pública.290 No mesmo contexto, não compete à Justiça Federal o julgamento de crime de estelionato praticado por réu que se atribui falsa condição de servidor público federal se, no caso, nenhum bem da União foi atingido, não se prestando ao deslocamento da competência a afetação de prestígio, honradez ou bom nome da Administração.291 4.3.14. Tribunal do Júri Federal O Tribunal do Júri não é um órgão jurisdicional exclusivo da Justiça Estadual, funcionando também na Justiça Federal. O Tribunal do Júri que funciona na Justiça Federal está disciplinado no Dec. Lei n° 253, de 28 de fevereiro de 1967. Segundo seu art. 4o, "‘nos crimes de competência da Justiça Federal, que devem ser julgados pelo tribunal do júri, obsèrvar-se-á o disposto na legislação processual, cabendo a sua presidência ao juiz a que competir o processamento da respectiva ação penal”. De acordo com a jurisprudência, esse dispositivo foi recepcionado pela Constituição Vi­ gente, mesmo porque, quando faz menção à competência da Justiça Federal, emprega o termo crime, genericamente falando, portanto, não podem ficar de fora os crimes dolosos contra a vida. Como um crime doloso contra a vida pode ser praticado em detrimento de um bem, serviço ou interesse da União, de suas autarquias ou empresas públicas federais (v.g., crime de homicídio doloso praticado contra funcionário público federal em razão das funções), assim como a bordo de navios ou aeronaves (CF, art. 109, inciso IX), ou, ainda, em conexão com outro crime de

287 STJ, 5^ Turma, REsp 1.102.270/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 23/11/2010, DJe 06/12/2010. 288

Informativo n^ 398 do STJ - CC 97.995/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, julgado em 10/6/2009.

289

HC 93.019. Rei. Min. Celso de Mello. Informativo ne 531 do STF.

290 STF - HC 80.877/PA - 2§ Turma - Rei. Min. Maurício Corrêa - DJ 16/11/2001 p. 7. 291 TRF4, HC 90.04.20828-3, Segunda Turma, Relator Osvaldo Moacir Alvarez, DJ 31/12/1990.

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competência da Justiça Federal (Súmula 122 do STJ), fixar-se-á, nessas hipóteses, a competência de um Tribunal do Júri Federal para processar e julgar tais delitos. À evidência, em relação a crime doloso contra vida praticado contra funcionário público federal, a questão está pacificada na jurisprudência desde a edição da súmula 98 do TFR e da súmula 147 do STJ. Como visto anteriormente, para a fixação da competência da Justiça Fede­ ral, afigura-se indispensável o nexo entre o crime doloso contra a vida do funcionário público federal e o exercício da função pública.292 Pelos mesmos fundamentos, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos demais Tribunais Regionais Federais, também compete ao Júri Federal o julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados pelos funcionários públicos federais no exercício da função - Súmula 254 do TFR.293 4.3.15. Crimes contra o meio ambiente Segundo o art. Io da Lei n° 5.197/67, “os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”. A partir da leitura desse dispositivo, e a despeito da Constituição Federal não dispor que a fauna silvestre seja propriedade da União, consolidou-se o “entendimento de que o vocábulo Estado se encontrava no sentido de pessoa jurídica de direito internacional, e não no de estado-membro, razão pela qual se referia ao Estado brasileiro, e, por conseguinte, a fauna silvestre seria propriedade da União.”294 Firmou-se, assim, ehtendimento jurisprudencial no sentido de que a competência para processar e julgar crimes ambientais contra a fauna silvestre seria da Justiça Federal, sendo, então, editada a súmula ri° 91 do STJ: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra a fauna”. A época, as infrações penais relativas à fauna ictiológica (pesca) somente permaneceram perante a Justiça Estadual por se tratar de contravenção penal. Não obstante o teor do art. Io da Lei n° 5.197/67, fato é que a própria Constituição Federal estabelece a competência) comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para preservar as florestas, a fauna e a flora (CF/88, art. 23, inciso VII). Dispõe também a Carta Magna que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público - veja-se que não há qualquer distinção quanto ao ente federado, União, Estados, Distrito Federal e Municípios - e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (CF/88, art. 225, caput), incumbindo ao Poder Público proteger a fauna e a flora, sendo vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (CF/88, art. 225, § Io, inciso VII). Por outro lado, a nova Lei Ambiental (Lei n° 9.605/98) não reproduziu o disposto no art. Io da Lei n° 5.197/67, sendo que o proposto

292

Para o TRF da 4^ Regiãoj é irrelevante a circunstância de não estar a vítima em serviço no momento do fato, porquanto evidenciado nos autos que o crime foi relacionado ao exercício da função pública, motivado por vin­ gança dos réus contra o policial federal em face da prisão em flagrante por ele efetuada anteriormente: TRF4, EIRSE 2005.71.00.027062-5, Segunda Seção, Relator Élcio Pinheiro de Castro, DJ 23/08/2006.

293

No sentido da competência do Júri Federal para julgar Patrulheiro da Polícia Rodoviária Federal que comete homi­ cídio no desempenho de suas funções: STF, 2- Turma, HC 79.044/RJ, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 30/06/2000 p. 40. Em sentido semelhante: STJ - CC 19.140/RJ - 3ã Seção —Rei. Min. Fernando Gonçalves —DJ 03/08/1998 p. 74.

294

PACHECO, Denílson Feitoza. Op. cit. p. 399.

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no parágrafo único do art. 26 da Lei n° 9.605/98, que passaria a prever a competência privativa da Justiça Federal, foi vetado e o veto mantido. Disso decorreu a alteração do antigo entendimento jurisprudencial, resultando inclusive no cancelamento da súmula n° 91 do STJ em 08 de novembro de 2000. Portanto, em sendo a proteção ao meio ambiente matéria de competência comum da União, dos Estados e dos Municípios, e inexistindo, quanto aos crimes ambientais, dispositivo constitucional ou legal expresso sobre qual a Justiça competente para o seu julgamento, tem-se que, em regra, o pro­ cesso e o julgamento dos crimes ambientais é de competência da Justiça Comum Estadual, salvo se praticados em detrimento de bens, serviços e interesse da União, ou de suas autarquias e empresas públicas.295 Essa tendência dos Tribunais Superiores de restringir a competência da Justiça Federal para o julgamento de crimes ambientais pode ser aferida a partir de julgados segundo os quais a circunstância de o IBAMA, no desempenho de suas atribuições de preservação, conservação, fiscalização e controle dos recurso naturais renováveis, haver sido o responsável pela apuração da infração ambiental, não determina, por si só, a competência da Justiça Federal para processar e julgar a respectiva ação penal. Assim, o fato de o IBAMA ser responsável pela fiscalização de áreas e pela expedição de autorização de desmatamento não indica, por si só, que exista interesse direto da Autarquia, se o crime é cometido em terra particular e, principalmente, fora de Unidade de Conservação da Natureza (Lei n° 9.985/00).296 Recentemente, todavia, ao apreciar caso concreto pertinente à apreensão em cativeiro de animais da fauna exótica (um babuíno e sete tigres-de-bengala) sem nenhuma marcação ou comprovação de origem, em desacordo com instrução normativa do IBAMA, autarquia federal responsável pela autorização de ingresso e posse de animais exóticos no país, decidiu a 3a Seção do Superior Tribunal de Justiça que uma vez que o ingresso de espécimes exóticas no País está condicionado à autorização do IBAMA, firma-se a competência da Justiça Federal, haja vista a existência de interesse de autarquia federal.297 Daí a importância de se saber o local em que esse crime ambiental foi praticado, eis que, se cometido no interior de bens da União, ou de suas entidades autárquicas ou fúndacionais, a competência será da Justiça Federal. Na verdade, como ressalta Roberto Luis Luchi Demo, em relação aos crimes contra a fauna, “ao contrário do que se poderia deduzir num primeiro momento, não são os animais o sujeito passivo dos delitos faunísticos, muito embora sejam eles que suportam a violência física ou psíquica. Os animais jamais serão sujeitos de delitos. Figuram sempre no âmbito do Direito Penal como objeto material da conduta criminosa. Sujeito passivo é o proprietário (no sentido laico da palavra) do território onde se encontra o animal mesmo”.298 Vejamos, então, alguns exemplos de crimes ambientais, apontando-se a competência cri­ minal para julgá-los: 295

Se, à época do crime, o local onde o delito teria sido praticado pertencia a determinado município, tem-se que a competência será da Justiça Comum Estadual. Se, posteriormente, esse local passa a fazer parte de Parque Nacional, administrativo pelo IBAMA, responsável por sua manutenção e preservação, estará configurado inte­ resse da União, atraindo a competência para a Justiça Federal. Assim, mesmo que o processo já estivesse em andamento perante a Justiça Estadual, como houve uma alteração da competência em razão da matéria, não é possível a aplicação da regra da perpetuação de competência do art. 87 do CPC (art. 43 do novo CPC). Com esse entendimento: STJ, 3a Seção, CC 88.013/SC, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 10/03/2008 p. 1.

296 STJ - REsp 480.411/TO - 5ã Turma - Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca - Publicação: DJ 13/10/2003 p. 416. 297 STJ - CC 96.853/RS - 3§ Seção - Rei. Min. Og Fernandes - DJe 17/10/2008. 298

Competência penal originária (uma perspectiva jurisprudencial crítica). São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 154.

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a) o crime de extração ilegal de recursos minerais (substâncias minerais ou minérios), antes previsto no art. 21 da Lei n° 7.805/89, e ora no art. 55 da Lei n° 9.605/98, é de competência da Justiça Federal, ainda que perpetrado em propriedade particular, pois os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são bens da União, nos termos do art. 20, IX, da Constituição Federal, constituindo propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento (CF/88, art. 176, caput) f 99 b) crime de pesca do camarão no período de defeso no mar territorial é da competência da Justiça Federal, já que o mar territorial é bem da União, nos termos do art. 20, inciso VI, da Constituição Federal;29300 c) crime ambiental de destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente (Lei n° 9.605/98, art. 38, caput) cometido no interior de unidade de conservação da União é crime de competência da Justiça Federal;301 d) Crime ambiental cometido em propriedade particular no entorno de unidade de conser­ vação não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal, já que tais áreas não se enquadram na definição de Unidade de Conservação, nos exatos termos dispostos na Lei n° 9.985/00, a qual regulamenta o art. 225, § Io, I, II, III e IV da Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza;302 e) crime de pesca proibida praticado em rio que faz a divisa entre dois estados: competência da Justiça Federal, eis que, segundo o art. 20, inciso III, da Constituição Federal, são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais.303 Por esse motivo, o 299

No sentido da competência da Justiça Federai para processar e julgar suposto crime de extração de cascalho, bem da União, sem autorização do órgão ambiental em área particular (fazenda): STJ, 3a Seção, CC 116.447/MT, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 25/05/2011. Com raciocínio semelhante, porém relativo a infrações penais contra a ordem econômica, os crimes do art. 2e, caput, e do art. 22, § 12, da Lei ne 8.176/91, também são de competência da Justiça Federal: "constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo"; "incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo". Para o Supremo, o art. 2q da Lei 8.176/91 e o art. 55 da Lei 9.605/98 tutelam bens jurídicos distintos, porquanto o primeiro tem por objetivo resguardar o patrimônio da União e o segundo o meio ambiente. Portanto, o art. 55 da Lei ne 9.605/98 não revogou o art. 2e da Lei nB8.176/91: STF, HC 89.878/SP, Rei. Min. Eros Grau, julgado em 20/04/2010.

300 TRF4, RSE 2007.72.00.013252-5, Sétima Turma, Relator Gerson Luiz Rocha, D.E. 21/01/2009. 301

Informativo n2 398 do STJ, 3ã Seção, CC 80.905/RJ, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 10/6/2009. Ainda segundo o STJ, cuidando-se de possível venda de animais silvestres, caçados em Reserva Particular de Patrimônio Natural - declarada área de interesse público, segundo a Lei ne 9.985/00 - evidencia-se situação excepcional indicativa da existência de interesse da União, a ensejar a competência da Justiça Federal: STJ - CC 35.476/PB - 3ã Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 07/10/2002 p. 170. No mesmo contexto, se o crime contra o meio ambiente (v.g., pesca sem autorização mediante petrechos proibidos) for praticado em área adjacente à unidade de conser­ vação federal, vislumbra-se prejuízo à União, autarquia ou empresa pública federais a ponto de determinar a competência da Justiça Federal para seu processo e julgamento. STJ, 3ã Seção, CC 115.282/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 08/06/2011.

302 TRF4, ACR 2005.71.00.022340-4, Oitava Turma, Relator p/ Acórdão Luiz Fernando Wowk Penteado, D.E. 14/01/2009. 303

No sentido da competência da Justiça Federal para julgar atos de pesca amadorísta a menos de 1500 metros da jusante da Usina Hidrelétrica Lucas Nogueira Garcez, local proibido durante o período da piracema, utilizando-se de uma tarrafa de nylon de uso proibido para pesca amadora, na medida em que referida usina está localizada no município de Salto Grande/SP, no Rio Paranapanema, que corre em território paulista e paranaense: TRF3, ACR 2002.61.25.001404-8, Rei. Desembargador Federal Cotrim Guimarães, DJ 12/03/2009.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

Supremo fixou a competência da Justiça Federal para processar e julgar ação penal em que se apura crime ambiental praticado em rio que atravessa o Estado de Alagoas. Asseverou-se pouco importar que se tivesse chegado ao comprometimento de açude, córregos e riachos locais, de­ vendo prevalecer a circunstância de o dano apontado haver ocorrido em rio - o qual banha dois Estados - membros - que, pelo teor do inciso III do art. 20 da CF, consubstancia bem da União;304 f) manutenção em cativeiro de espécies em extinção é crime dê competência da Justiça Federal. A teor do disposto no art. 54 da Lei 9.985/2000, cabe ao IBAMA, autarquia federal, autorizar a captura de exemplares de espécies ameaçadas de extinção destinada a programas de criação em cativeiro ou formação de coleções científicas. Assim, compete à Justiça Federal, dado o manifesto interesse do IBAMA, o processamento e julgamento de ação penal cujo objeto é a suposta prática de crime ambiental que envolve animais em perigo de extinção;305 i

g) compete à Justiça Estadual o processo e julgamento de feito qúe objetive à apuração de possível crime ambiental, consistente na extração de areia sem a devida autorização do órgão competente, quando perpetrado em propriedade particular;306 h) compete à Justiça Estadual processar e julgar o delito previsto no art. 60 da Lei n° 9.605/98, consistente na realização de obras ou serviços potencialmente poluidores sem licença ou autorização do órgão ambiental competente, perpetrado em terras particulares;307

i) quanto aos crimes ambientais relacionados com organismos geneticamente modificados (transgênicos), a exemplo do cultivo de soja transgênica em desacordo com a legislação vigente, conduta delituosa outrora prevista no art. 13, inciso V, da Lei n° 8.974/95 - a Lei n° 8.974/95 foi revogada pela Lei n° 11.105/05, que passou a dispor sobre tais crimes entre os arts. 24 a 29 -, cuida-se de crime da competência da Justiça Federal. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) - Órgão diretamente ligado à Presidência da República, destinado a assessorar o governo na elaboração e implementação da Política Nacional de Biossegurança - é a responsável pela autorização do plantio de soja transgênica em território nacional. Portanto, diante do interesse da União no controle e regulamentação do manejo de sementes de soja transgênica, no caso de liberação, no meio ambiente, de organismo géneticamente modificado (sementes de soja transgênica) em desacordo com as normas estabelecidas pelo Órgão compe­ tente, estará caracterizada a hipótese do art. 109, IV, da Carta Magna, justificando a competência da Justiça Federal para o feito;308 j) compete à Justiça Federal o processo e julgamento de crime apibiental referente à par­ celamento irregular de solo urbano (“grilagem de terras”) em terras dá União, eis que evidente prévio esbulho sobre bem da União.309 k) ainda segundo o entendimento jurisprudencial, há situações específicas que justificam a competência da Justiça Federal, como as seguintes: delito envolvendo espécies ameaçadas de extinção, em termos oficiais; conduta envolvendo ato de contrabando de animais silvestres, peles e couros de anfíbios ou répteis para o exterior; introdução ilegal de espécie exótica no país; pesca

304 STF - RE 454.740/AL, Rei. Min. Marco Aurélio, 28/04/2009. 305

STJ - CC 37.137/MG - 3a Seção - Rei. Min. Felix Fischer - DJ 14/04/2003 p. 178).:

306 STJ - AgRg no CC 30.932/SP - 3ã Seção - Rei. Ministra Laurita Vaz - DJ 05/05/2003 p. 217. 307 STJ - CC 28.279/MG - 3® Seção - Rei. Min. Felix Fischer - DJ 05/06/2000 p. 114.

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308

STJ - CC 41.301/RS - 3a Seção - Rei. Min. Gilson Dipp - DJ 17/05/2004 p. 104.

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309

Informativo ng 150 do STJ: CC 35.744/DF, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 9/10/2002. No mesmo sentido: STF - HC 84.103/DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 06/08/2004 p. 20.

TÍTULO 4 • COMPETÊNCIA CRIMINAL

predatória no mar territorial; crime contra a fauna perpetrado em parques nacionais, reservas ecológicas ou áreas suje itas ao domínio eminente da Nação; além da conduta que ultrapassa os limites de um único estado ou as fronteiras do país;310 caráter transnacional que envolva animais silvestres, ameaçados de 1) crime ambiental extinção e espécimes ex

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1. CONCEITO DE PRISÃO E SEU FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL A palavra “prisão” origina-se do latim prensione, que vem de prehensione (prehensio, onis), que significa prender. Nossa legislação não a utiliza de modo preciso. De fato, o termo “prisão” é encontrado indicando a pena privativa de liberdade (detenção, reclusão, prisão sim­ ples), a captura em decorrência de mandado judicial ou flagrante delito, ou, ainda, a custódia,

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De acordo com o art. 126 da LEP, "o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena". Essa atividade laborativa pode ser desempenhada extramuros. A propósito, eis o teor da súmula 562 do STJ: "É possível a remição de parte do tempo de execução da pena quando o condenado, em regime fechado ou semiaberto, desempenha atividade laborativa, ainda que extramuros". Para a 6ã Turma do STJ, o reeducando tem direito à remição de sua pena pela atividade musical realizada em coral. Como resultado de uma interpretação analógica in bonam partem da norma prevista no art. 126 da LEP, firmou-se o entendimento de que é possível remir a pena com base em ativi­ dades que não estejam expressas no texto legal, desde que aptas a incentivar o aprimoramento do reeducando, afastando-o do ócio e da prática de delitos. A propósito, confira-se: STJ, 6ã Turma, REsp 1.666.637/ES, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/09/2017, DJe 09/10/2017. Sob o argumento de que a remição da pena exige a efetiva realização de atividade laborai ou estudo por parte do reeducando, há precedentes da 1- Turma do STF negando a possibilidade de reconhecimento da remição ficta ou virtual da pena, nas hipóteses em que o Estado não proporciona atividade laborai ou educacional aos internos do sistema penitenciário a fim de obterem a remição da pena. A propósito: STF, P Turma, HC 124.520/RO, Rei. Min. Roberto Barroso, j. 29/05/2018.

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Com entendimento semelhante, referindo-se à possibilidade de acréscimo de regulamentação legal que previsse uma espécie de remição relativa, permitindo o desconto parcial do tempo final de pena se a cautelar for distinta da prisão, sob pena de a jurisprudência, com base no princípio da igualdade, ser obrigada a construir um caminho alternativo: BOTTINI, Pierpaolo. As reform as no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reform a. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 486.

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

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consistente no recolhimento de alguém ao cárcere, e, por fim, o próprio estabelecimento em que o preso fica segregado (CF, art. 5o, inciso LXVI; CPP, art. 288, caput). No sentido que mais interessa ao direito processual penal, prisão deve ser compreendida como a privação da liberdade de locomoção, com o recolhimento da pessoa humana ao cárce­ re, seja em virtude de flagrante delito, ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, seja em face de transgressão militar ou por força de crime propriamente militar, definidos em lei (CF, art. 5o, LXI). 2. ESPÉCIES DE PRISÃO No ordenamento jurídico pátrio há, fundamentalmente, 3 (três) espécies de prisão: a) prisão extrapenal: tem como subespécies a prisão civil e a prisão militar; b) prisão penal, também conhecida como prisão pena ou pena: é aquela que decorre de sentença condenatória com trânsito em julgado. De se notar, todavia, que os Tribunais Su­ periores passaram a admitir a execução provisória da pena tão logo seja proferido um acórdão condenatório por Tribunal de 2a instância (STF, HC 126.292);65 c) prisão cautelar, provisória, processual ou sem pena: tem como subespécies a prisão em flagrante,66 a prisão preventiva e a prisão temporária. Com a reforma de 2008 (Lei n° 11.689/08 e Lei n° 11.719/08), foram expressamente extintas as prisões decorrentes de pronúncia e de sentença condenatória recorrível, outrora previstas como espécies autônomas de prisão cautelar. A Lei n° 12.403/11, que alterou o título IX do Livro I do CPP, reitera esse entendimento. A nova redação do art. 283, caput, do CPP passa a dispor que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Como se percebe, o dispositivo indica as espécies de prisão admitidas no âmbito criminal: a prisão em flagrante, a prisão temporária, a prisão preventiva, espécies de prisão cautelar, e a prisão decorrente de sentença penal condenatória com trânsito em julgado, chamada pela doutrina de prisão penal.67 3. PRISÃO EXTRAPENAL 3.1. Prisão civil 3.1.1. Prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel Prisão civil é aquela decretada para fins de compelir alguém ao cumprimento de um de­ ver civil. Pelo menos de acordo com a Constituição Federal, a decretação dessa prisão civil seria possível em duas hipóteses: no caso do responsável pelo inadimplemento voluntário e

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Para mais detalhes acerca da execução provisória da pena, remetemos o leitor ao capítulo introdutório deste livro, mais especificamente aos comentários ao princípio da presunção de inocência.

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Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. O tema será abordado mais adiante.

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Corrente minoritária da doutrina também insere dentre as espécies de prisão cautelar a prisão para condução coercitiva de partes processuais, testemunhas, peritos ou outros que se recusem, sem justo motivo, a compa­ recer perante a autoridade judicial ou policial. Com a devida vênia, não enxergamos aí espécies autônomas de prisão cautelar, mas apenas medidas coercitivas decretadas durante o curso da persecução penal objetivando a apuração do fato delituoso.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

inescusável de obrigação alimentícia,68 e também nas hipóteses do depositário infiel (art. 5o, LXVII). Importante notar que a prisão civil por dívida não decorre diretamente do art. 5o, LXVII, da Constituição Federal, mas sim da legislação infraconstitucional. Na verdade, o preceito constitucional em questão apenas autoriza a possibilidade de previsão legal de prisão civil nas duas hipóteses citadas.69 Em que pese o teor da Carta Magna, possibilitando a prisão civil do devedor de alimentos e a do depositário infiel, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporada ao ordenamento pátrio por meio do Decreto n° 678, de 6 de no­ vembro de 1992, estabelece em seu art. 7o, § 7o, que “ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”. Como o Pacto de São José da Costa Rica ressalva apenas a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos, passou-se a se questionar se a prisão civil do depositário infiel ainda teria lugar no ordenamento pátrio. Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido de que a prisão civil do devedor fiduciante, nas condições em que prevista pelo DL n° 911/69 (Art. 4o), revestia-se de plena legitimidade constitucional, além de não transgredir o sistema de proteção instituído pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Entendia a Suprema Corte que os tratados internacionais, necessariamente subordinados à autoridade da Constituição da República, não podiam legitimar interpretações que restringissem a eficácia jurídica das normas constitucionais. A possibilidade jurídica de o Congresso Nacional instituir a prisão civil no caso de infidelidade depositária teria fundamento na própria Constituição Federal (art. 5o, LXVII).70 Recentemente, todavia, houve uma mudança de orientação do Supremo Tribunal Federal quanto ao status normativo de tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento pá­ trio, o que, consequentemente, afetou a validade da prisão civil do depositário infiel. A partir do julgamento do RE n° 466.343/SP, o Supremo passou a entender que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que toma inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou poste­ rior ao ato de ratificação. Portanto, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre

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O fundamento da obrigação alimentícia é o dever da família, e, em especial, dos pais, de promover a manutenção dos filhos menores, assegurando-lhes, juntamente com a sociedade e o Estado, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (CF, art. 227). Como adverte Nelson Nery Junior, "a decretação da prisão civil do devedor de alimentos, permitida pela CF 52, LXVII, é meio coercitivo de forma a obrigá-lo a adimplir a obrigação. Somente será legítima a decretação da prisão civil por dívida de alimentos se o responsável inadimplir voluntária e inescusavelmente a obrigação. Caso seja escusável ou involuntário o inadimplemento, não poderá ser decretada a prisão". (Código de Processo Civil Comentado. 4® ed. rev. ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 1180). A prisão do devedor de prestação alimentícia está prevista no Código de Processo Civil (art. 733, § l 9 e § 32 - art. 528, §§ 39 a 79, do novo CPC). Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos provisionais, caso o devedor não efetue o pagamento, ou não se escuse do adimplemento da obrigação, o juiz deverá decretar a prisão pelo prazo de 1 a 3 meses, podendo ser suspenso o cumprimento da ordem no caso de pagamento da prestação alimentícia. Na visão dos Tribunais, a prisão civil do devedor de alimentos tem que ser aplicada a situações nas quais, de fato, sirva de estímulo para o cumprimento da obrigação. Logo, demonstrada a impossibilidade de o alimentante solver o débito, não se justifica a decretação de sua prisão, porquanto o inadimplemento não teria sido voluntário e inescusável. Nessa linha: STF, HC 106.709/RS, Rei. Min. Gilmar Mendes, 21/06/2011.

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Com entendimento semelhante: NOVELINO, Marcelo. D ireito constitucional. 49 ed. São Paulo: Método, 2010. p. 426.

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STF, Pleno, HC 72.131/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ 019/08/2003 p. 103. E ainda: STF, Pleno, HC 81.319/GO, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 19/08/2005 p. 186.

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

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Direitos Humanos (art. 7o, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. Ressaltou-se, assim, que o Pacto de São José da Costa Rica não implicaria a derrogação da Constituição Federal, mas resultaria no afastamento do arcabouço normativo das regras comuns alusivas ao depósito.71 Inicialmente, o raciocínio desenvolvido pelo Supremo no RE 466.343/SP limitou-se ao reconhecimento da invalidade da prisão civil do alienante fiduciário, e não das demais hipóteses de depositário infiel.72 Posteriormente, no entanto, a Suprema Corte concluiu pelo afastamento de toda e qualquer prisão civil do depositário infiel, seja nas hipóteses de alienação fiduciária, seja nas hipóteses de depósito judicial. Com a introdução do Pacto de São José da Costa Rica no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel.73 Seguindo esse raciocínio, o Supremo Tribunal Federal averbou expressamente a revogação da Súmula 619 do STF.74Além disso, a fim de por fim à controvérsia em tomo da prisão civil do depositário infiel, o plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou, no dia 16 de dezembro de 2009, a edição da súmula vinculante n° 25, com o seguinte teor: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. No mesmo caminho, o STJ editou a súmula n° 419, que dispõe: “Descabe a prisão civil do depositário judicial infiel”. Logo, subentende-se que deixaram de ter validade as súmulas 304 e 305 do STJ.75 Hoje, portanto, não há mais espaço para a decretação da prisão civil do depositário infiel, seja nos casos de alienação fiduciária, seja em contratos de depósito, ou, ainda, nos casos de depósito judicial, na medida em que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cujo status normativo supralegal a coloca abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna, produ­ ziu a invalidade das normas infraconstitucionais que dispunham sobre tal espécie de prisão civil. 3.1.2. Prisão do falido O revogado Decreto-Lei n° 7.661/45 (antiga Lei de Falências) previa a denominada prisão do falido em seu art. 35 e parágrafo único; a prisão do devedor, no art. 60, § Io; e a do síndico no art. 69, § 5o. Quanto ao tema, já havia posição firmada nos Tribunais Superiores segundo a qual essa espécie de prisão não havia sido recepcionada pela Constituição Federal, porque em confronto com a disposição constante do art. 5o, inciso LXVII, da Constituição Federal. É esse, aliás, o teor da Súmula n° 280 do Superior Tribunal de Justiça: “O art. 35 do Decreto-Lei n° 7.661, de 1945, que estabelece a prisão administrativa, foi revogado pelos incisos LXI e LXVII do art. 5oda Constituição Federal de 1988”.76 A nova lei de falência (Lei n° 11.101 /05) deixou de admitir a prisão nas hipóteses acima men­ cionadas, dispondo em seu art. 99 que “A sentença que decretar afalência do devedor, dentre outras

71

STF, Pleno, RE 466.343/SP, Rei. Min. Cezar Peluso, Dje 104 04/06/2009. Na mesma linha: STF, 2® Turma, HC 90.172/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ 17/08/2007 p. 91.

72

STF, l 9 Turma, HC 92.541/PR, Rei. Min. Menezes Direito, Dje 074 24/04/2008. No mesmo sentido, confira-se: STF, lã Turma, HC 92.257/SP, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJe 065 11/04/2008; STF, l 9 Turma, RHC 90.759/ MG, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 22/06/2007 p. 41.

73

STF, Pleno, HC 87.585/TO, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 118 25/06/2009.

74

STF, Pleno, HC 92.566/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 104 04/06/2009.

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Apesar de o STJ ainda não ter cancelado formalmente as súmulas acima referidas, depois do julgamento do RE 466.343/SP, a própria Corte Especial do STJ já vem trilhando o mesmo caminho da Suprema Corte, como se denota do teor do Informativo n9 418 do STJ: REsp 914.253/SP, Rei. Min. Luiz Fux, julgado em 02/12/2009.

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A propósito: STF, 1- Turma, RHC 76.741/MG, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 22/05/1998 p. 32.

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determinações (...) VII—determinará as diligências necessárias para salvaguardar os interesses das partes envolvidas, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores quando requerida com fundamento em provas da prática de crimes definidos nesta Lei”. Como se percebe, pela nova lei de falência, a prisão do falido ou dos administradores deixa de ser considerada espécie de prisão administrativa ou civil para ser considerada espécie de prisão preventiva, ficando sua decretação sujeita à observância dos pressupostos e requisitos estabelecidos entre os arts. 311 e 315 do CPP. Em que pese a nova lei de falências prever a decretação de prisão preventiva, já vem sur­ gindo certa controvérsia na doutrina acerca da constitucionalidade do dispositivo constante do art. 99, inciso VII, da Lei n° 11.101/05, haja vista permitir que a prisão preventiva seja decretada pelo juiz falimentar, portanto, por um juiz cível, e não por um juiz criminal. De um lado, parte da doutrina considera ser possível a decretação da prisão preventiva pelo juiz da falência, mesmo não sendo ele o juiz com competência criminal. Nessa linha de raciocínio, para Denílson Feitoza, cuida-se de autoridade competente para a decretação da referida prisão cautelar, em fiel observância ao princípio do juiz natural. Eventual argumento de que se trata de juiz cível decretando prisão processual penal não deve prosperar, pois a Lei n° 11.101/05 prevê que, quanto à prisão preventiva por crimes previstos na Lei, o juiz da falência tem competência criminal.77 A nosso ver, o art. 99, inciso VII, da Lei n° 11.101/05, é incompatível com o art. 5o, incisos LXI e LXVII, da Constituição Federal, porquanto permite que, no cível, o juiz determine a prisão preventiva do falido como efeito da sentença que decreta a falência, sem que haja ação penal, pois esta será oferecida no juízo criminal e não perante o Juízo de falência (Lei n° 11.101/05, art. 187, caput). Tendo em conta que a prisão preventiva é espécie de prisão cautelar que visa assegurar a eficácia das investigações ou do processo criminal, não se pode admitir que essa medida cautelar seja decretada por autoridade judiciária desprovida de competência criminal para processar e julgar os crimes falimentares supostamente praticados pelo falido ou pelo administrador. Portanto, pensamos que subsiste a possibilidade de decretação da prisão preven­ tiva, mas desde que decretada pela autoridade judiciária competente para processar e julgar os crimes falimentares.78 3.2. Prisão administrativa A prisão administrativa pode ser conceituada como espécie de prisão decretada por autori­ dade administrativa com o objetivo de compelir alguém a cumprir um dever de direito público. Com a superveniência da Constituição de 1988, e a previsão de que ninguém será preso sem prévia autorização judicial, ressalvadas as hipóteses de flagrante delito, transgressão militar e crime propriamente militar (CF, art. 5o, LXI), surgiu intensa controvérsia quanto à subsistência dessa espécie de prisão no ordenamento pátrio. Inicialmente, cabe lembrar que, nas hipóteses de Estado de Defesa (CF, art. 136, § 3o) e de Estado de Sítio (CF, art. 139, incisos I e II), autoridades não judiciárias poderão decretar restrições à liberdade de locomoção independentemente de prévia autorização judicial. A exceção desses momentos de anormalidade, antes do advento da Lei n° 12.403/11, parte da doutrina entendia que, mesmo após a Constituição de 1988, ainda seria possível a prisão administrativa, desde que decretada por uma autoridade judiciária. 77

D ireito processual penal: teoria, crítica e práxis.

78

Nesse contexto: RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 17a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 785.

6a ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2009. p. 877.

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

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Segundo essa posição doutrinária, a prisão administrativa (CPP, antiga redação do art. 319) teria cabimento contra remissos ou omissos em entrar para os cofres públicos com os dinheiros a seu cargo, a fim de compeli-los a que o fizessem,79 contra estrangeiro desertor de navio de guerra ou mercante, surto em porto nacional,80 contra estrangeiro ou brasileiro naturalizado, nos procedimentos relativos à deportação, expulsão e extradição, quando a lei a admitisse (Lei n° 6.815/80, arts. 61, 69 e 81). Todas essas prisões não podiam decorrer de mera dívida civil, pois a Constituição Federal estabelece que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (art. 5o, LXVII). No entanto, caso a conduta seja prevista como infração penal, é cabível a prisão penal por dívidas, decorrente de sentença penal condenatória transitada em julgado, assim como a prisão cautelar, desde que presentes os requisitos legais. Com a devida vênia, sempre pensamos que, diante da Constituição de 1988, e à exceção das hipóteses do Estado de Defesa e do Estado de Sítio, não havia mais espaço para a prisão administrativa no ordenamento pátrio. Se a Carta Magna determina que, pelo menos em regra, a prisão de alguém depende de prévia autorização judicial, não se pode argumentar no sentido da subsistência da prisão administrativa. A hipótese do inciso II do art. 319 do CPP somente pode ocorrer no curso de processo de extradição, mas desde que comprovada a necessidade da medida cautelar para salvaguardar a eficácia do procedimento extradicional. Portanto, no ordenamento pátrio, não há qualquer prisão administrativa, a não ser nos casos de prisão disciplinar, que serão estudadas a seguir. Logo após a entrada em vigor da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal posicio­ nou-se pela não recepção da prisão administrativa. Para a Suprema Corte, por força do disposto no inciso LXI do art. 5o da Carta Magna, deixou de ser permitida a prisão administrativa.81 Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, pensamos que a discussão em tomo da subsis­ tência da denominada prisão administrativa chega ao fim. Isso porque o Capítulo V do Título IX do Livro I do CPP, que versava sobre a prisão administrativa, doravante passa a tratar das outras medidas cautelares. Além disso, os arts. 319 e 320 do CPP, que dispunham sobre a prisão administrativa, agora passarão a dispor sobre medidas cautelares de natureza pessoal distintas da prisão cautelar. Se não bastasse o fim do Capítulo do CPP que versava sobre a prisão administrativa, a nova redação conferida ao art. 283 do CPP não faz menção à prisão administrativa, limitando-se a dizer que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de 79

Explica FEITOZA que tal hipótese trata da "responsabilidade por alcance, que é a denominação dada para a apro­ priação de bens públicos. Remisso é o que retarda a entrega de bens públicos e omisso é o que não entrega os bens públicos. A finalidade da prisão administrativa é compelir o remisso ou omisso à entrega do bem público. No caso, é semelhante à finalidade das prisões civis. Se o remisso ou omisso é um funcionário público que se apropriou do bem público em razão da função, obviamente não se trata de dívida civil, mas de crime, e, assim, as três espécies de prisão são possíveis: a prisão penal, a prisão processual penal e a prisão administrativa. No caso da prisão administrativa, a autoridade administrativa deverá requerer a decretação da prisão administrativa à autoridade judiciária. Seria, por exemplo, o caso das várias hipóteses de peculato do art. 312 do CP. Mas, se for uma hipótese como a da apropriação indébita previdenciária do art. 168-A do CP, trata-se de dívida, para a qual é incabível a prisão civil ou a administrativa. Restariam a prisão penal e a prisão processual penal, que, contudo, possuem requisitos muito mais restritos para sua decretação" (op. cit. p. 875).

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Ainda segundo FEITOZA, a prisão administrativa deverá ser requerida pelo cônsul do país a que pertença o navio. A prisão dos desertores não poderá durar mais de 3 (três) meses e será comunicada aos cônsules. Entretanto, se está demonstrado que os desertores se apresentarão espontaneamente, não haverá necessidade cautelar para sua decretação (op. cit. p. 875).

81

STF, 1- Turma, RHC 66.905/PR, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 10/02/1989 p. 383.

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sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. 3.2.1. Prisão do estrangeiro para fins de extradição, expulsão e deportação O inciso LXI do art. 5o da Constituição Federal prevê que, à exceção dos casos de flagrante delito, transgressões militares e crimes propriamente militares definidos em lei, a privação da liberdade de locomoção só poderá ocorrer mediante ordem escrita efundamentada de autoridade judiciária competente. Por conseqüência, sempre se entendeu que o dispositivo legal do revogado Estatuto do Estrangeiro que, em sua redação original, atribuía ao Ministro da Justiça o poder de decretar a prisão do estrangeiro para fins de extradição (revogada Lei n. 6.815/80, art. 81) não havia sido recepcionado pela Carta Magna. Na verdade, levando-se em consideração que recai sobre o Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar, originariamente, a extradição solicitada por estado estrangeiro (art. 102,1, g, da CF), é de se concluir que tal prisão só poderá ser decretada pelo respectivo Ministro Relator daquela Corte.82 Com a entrada em vigor da Lei n° 12.878 em data de 05 de novembro de 2013, esse enten­ dimento doutrinário e jurisprudencial acabou sendo positivado pelo legislador. Por força da nova redação conferida ao art. 82, caput, da revogada Lei n° 6.815/80, o Estado interessado na extradição poderia, em caso de urgência e antes da formalização do pedido de extradição, ou conjuntamente com este, requerer a prisão cautelar do extraditando por via diplomática ou, quando previsto em tratado, ao Ministério da Justiça, que, após exame da presença dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos nesta Lei ou em Tratado, representaria ao Supremo Tribunal Federal}3 Antigamente, era firme o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que essa prisão do estrangeiro era verdadeiro requisito de procedibilidade da ação extradicional. Sua importância estava relacionada ao fato de que seria impossível para o país que pretende julgar um criminoso apresentar pedido de extradição para um determinado Estado onde o procurado foi localizado, mas, logo após, este fugir para outro país. Também de nada adiantaria conceder um pedido de extradição, mas, na hora de entregar o estrangeiro ao Estado requerente, não estar com ele em mãos. A propósito, basta atentar para o quanto disposto no art. 84 da revogada Lei n° 6.815/80, que dispunha que, efetivada a prisão do extraditando com base em ordem do Ministro da Justiça, tal prisão perduraria até o julgamento final do STF, não sendo admitida a liberdade vigiada,84 a prisão domiciliar, nem tampouco a prisão albergue. Assim, à exceção da prisão decretada antes da formalização do pedido de extradição, que teria eficácia temporal limitada de 90 (noventa) dias, aquela decretada a partir do ajuizamento da ação de extradição passiva deveria durar todo o processo extradicional. Nesse contexto, eventual excesso de prazo ocorrido em relação à prisão cautelar do extraditando ficaria descaracterizado pelo início da ação de extradição passiva, uma vez que o súdito estrangeiro deveria ficar obrigatoriamente à disposição do STF até o julgamento final.85

82

Com esse entendimento: STF, Pleno, HC 73.256/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, DJ 13/12/1996.

83

Reconhecendo a legitimidade da Interpol para apresentar pedido de prisão preventiva para fins de extradição ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 82, § 2-, do Estatuto do Estrangeiro (Lei n9 6.815/80), com redação determinada pela Lei n9 12.878/13: STF, 29 Turma, PPE 732 QO/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 11/11/2014.

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A súmula 2 do STF ("Concede-se liberdade vigiada ao extraditando que estiver preso por prazo superior a ses­ senta dias") já não tem mais eficácia, desde a revogação, pelo Decreto-lei n9 941/69 (art. 95, § l 9), do art. 99 do Decreto-lei n9 394/38, sob cuja égide foi editado o preceito sumular em questão.

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Nesse sentido: MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 59 ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 353. Na mesma linha: STF, Pleno, HC 81.709/DF, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 31/05/2002; STF,

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Com o passar dos anos, todavia, esse entendimento foi sendo mitigado pelo próprio Su­ premo, que há anos admite que o extraditando seja posto em liberdade quando não houver nos autos risco processual ou à coletividade pelo fato em si da liberdade do agente. O STF vem considerando que a prisão do extraditando não é uma condição sine qua non do processo de extradição, estando sua decretação condicionada à observância dos requisitos para a decretação da prisão preventiva, constantes do art. 312 do CPP. Por isso, tal medida já vem sendo chamada de prisão preventiva para fins de extradição (PPE). Na dicção da Suprema Corte, apesar da ne­ cessidade das devidas cautelas em casos de relaxamento ou de concessão de liberdade provisória, era desproporcional o tratamento que vinha sendo dado ao instituto. Na prisão preventiva para extradição (PPE), também se impõe a observância dos requisitos do art. 312 do CPP, sob pena de expor o extraditando à situação de desigualdade em relação aos nacionais que respondem a processos criminais no Brasil. A PPE deve ser analisada caso a caso, e a ela deve ser atribuído limite temporal, compatível com o princípio da proporcionalidade.86 Com a entrada em vigor da Lei de Migração (Lei n. 13.445/17) e conseqüente revogação do Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/80), parece não haver mais qualquer dúvida acerca da natureza dessa prisão do estrangeiro para fins de extradição. Trata-se de verdadeira prisão cautelar, que jamais poderá ser decretada de maneira automática como mera conseqüência do ajuizamento da ação de extradição passiva, devendo ser utilizada apenas quando estritamente necessária, e desde que presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis previstos no art. 312 do CPP. Enfim, independentemente do momento em que a prisão cautelar for pleiteada pelo Estado estrangeiro - antes da formalização do pedido de extradição ou em conjunto com este -, sua decretação jamais deverá ser compreendida como conseqüência lógica e inexorável da formalização do pedido de extradição. Deveras, consoante disposto em seu art. 84, em caso de urgência, o Estado interessado na extradição poderá, previamente ou conjuntamente com a formalização do pedido extradicional, requerer, por via diplomática ou por meio de autoridade central do Poder Executivo, prisão cautelar com o objetivo de assegurar a executoriedade da medida de extradição que, após exame da presença dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos nesta Lei ou em tratado, deverá representar à autoridade judicial competente, ouvido previamente o Ministério Público Federal. Esse pedido de prisão cautelar poderá ser transmitido à autoridade competente para extradição no Brasil por meio de canal estabelecido com o ponto focal da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) no País, devidamente instruído com a documen­ tação comprobatória da existência de ordem de prisão proferida por Estado estrangeiro, e, em caso de ausência de tratado, com a promessa de reciprocidade recebida por via diplomática. Na ausência de disposição específica em tratado, o Estado estrangeiro deverá formalizar o pedido de extradição no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data em que tiver sido cientificado da prisão do extraditando. Caso o pedido de extradição não seja apresentado nesse prazo, o extraditando deverá ser posto em liberdade, não se admitindo novo pedido de prisão cautelar pelo mesmo fato sem que a extradição tenha sido devidamente requerida. A prisão cautelar poderá ser prorrogada até o julgamento final da autoridade judiciária competente quanto à legalidade do pedido de extradição.

Pleno, HC 71.402/RJ, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 23/09/1994. 86

STF, Pleno, HC 91.657/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJe 047 13/03/2008. Precedentes citados no referido julga­ do: Ext. n9 1008/Colômbia, Rei. DJ 17.8.2007; Ext 791/Portugal, Rei. Min. Celso de Mello, DJ de 23.10.2000; AC ne 70/RS, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 12.3.2004; Ext - QO. n9 1054/EUA, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ de 14.9.2007. Na mesma linha: STF, Ext. 1.254 QO/Romênia, Rei. Min. Ayres Britto, 06/09/2011.

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Confirmando a ideia de que a prisão do estrangeiro não é mais uma condição sine qua non do processo extradicional, a novel Lei de Migração também prevê que o Supremo Tribunal Federal, ouvido o Ministério Público, poderá autorizar prisão albergue ou domiciliar ou deter­ minar que o extraditando responda ao processo de extradição em liberdade, com retenção do documento de viagem ou outras medidas cautelares necessárias, até o julgamento da extradição ou a entrega do extraditando, se pertinente, considerando a situação administrativa migratória, os antecedentes do extraditando e as circunstâncias do caso (art. 86). Diversamente do Estatuto do Estrangeiro (revogada Lei n. 6.815/80, arts. 61 e 69), a Lei de Migração nada dispõe acerca da possibilidade de ser decretada a prisão cautelar nos casos de deportação (medida decorrente de procedimento administrativo que consiste na retirada compulsória de pessoa que se encontre em situação migratória irregular em território nacional) e expulsão (medida administrativa de retirada compulsória de migrante ou visitante do território nacional, conjugada com o impedimento de reingresso por prazo determinado). 3.3. Prisão militar 3.3.1. Da prisão militar em virtude de transgressão disciplinar De acordo com a Constituição Federal (art. 142, caput), as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Por sua vez, consoante dispõe o art. 42, caput, da Constituição de 1988, os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Como se percebe, a própria Carta Magna realça a importância da hierarquia e da disciplina, na medida em que estas funcionam como a base institucional das Forças Armadas, das Polícias Militares e do Corpos de Bombeiros. Consoante dispõe o art. 14 do Estatuto dos Militares (Lei n° 6.880/80), “a hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade. Disciplina é a rigorosa ob­ servância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo per­ feito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo”. Como importante instrumento coercitivo de tutela da hierarquia e da disciplina no âmbito das Forças Armadas, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, ao dispor sobre a prisão, a Constituição Federal estabelece em seu art. 5o, inciso LXI, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (nosso gri­ fo). Da leitura do referido dispositivo depreende-se que, além das hipóteses de prisão decretada por ordem fundamentada de autoridade judiciária competente e de flagrante delito, também é possível a prisão nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar. Impõe-se, portanto, estabelecer o que se entende por transgressão militar e crime propriamente militar.87

87

Tal conceito será trabalhado no próximo tópico.

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

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De acordo com o Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto n° 4.346, de 26 de agosto de 2002), transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos es­ tatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar88 e o decoro da classe. Essas transgressões disciplinares estão listadas no anexo I do referido Regulamento.89 A depender da espécie de transgressão disciplinar, levando-se em consideração também a pessoa do transgressor, as causas que a determinaram, a natureza dos fatos ou atos que a en­ volveram, assim como as conseqüências que dela possam advir, os militares estão sujeitos às seguintes punições disciplinares, em ordem de gravidade crescente: a) advertência: é a forma mais branda de punir, consistindo em admoestação feita verbal­ mente ao transgressor, em caráter reservado ou ostensivo; b) impedimento disciplinar: é a obrigação de o transgressor não se afastar da Organização Militar, sem prejuízo de qualquer serviço que lhe competir dentro da unidade em que serve; c) repreensão: é a censura enérgica ao transgressor, feita por escrito e publicada em bo­ letim interno; d) detenção disciplinar: é o cerceamento da liberdade do punido disciplinarmente, o qual deve permanecer no alojamento da subunidade a que pertencer ou em local que lhe for deter­ minado pela autoridade que aplicar a punição disciplinar; e) prisão disciplinar: consiste na obrigação de o punido disciplinarmente permanecer em local próprio e designado para tal; f) licenciamento e a exclusão a bem da disciplina: consistem no afastamento, ex officio, do militar das fileiras do Exército, conforme prescrito no Estatuto dos Militares. Ainda segundo o Estatuto dos Militares, as penas disciplinares de impedimento, detenção ou prisão não podem ultrapassar 30 (trinta) dias (Lei n° 6.880/80, art. 47, § Io). 3.3.2. Da prisão militar em virtude de crime propriamente militar Apesar de o Código Penal Militar não estabelecer qualquer distinção dos crimes em pro­ priamente e impropriamente militares, a doutrina se viu obrigada a realizar essa diferenciação. Isso porque a Constituição Federal, em seu art. 5o, inciso LXI, estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Por sua vez, o Código Penal comum também faz menção aos crimes militares próprios em seu art. 64, inciso II, deixando de considerá-los para fins de reincidência. Por razões óbvias, a norma constitucional em análise, ao permitir a prisão no caso de transgressões militares ou crimes propriamente militares, independentemente da situação de

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Considera-se pundonor militar o dever de o militar pautar a sua conduta como a de um profissional correto. Exige dele, em qualquer ocasião, alto padrão de comportamento ético que refletirá no seu desempenho perante a Instituição a que serve e no grau de respeito que lhe é devido (Decreto n9 4.346/2002, art. 69, II).

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O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica está previsto no Decreto n9 76.322, de 22 de setembro de 1975. O Decreto n9 88.545, de 26 de julho de 1983, versa sobre o regulamento Disciplinar da Marinha. De seu turno, o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo está inserido na Lei Complementar n9 893, de 09 de março de 2001.

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flagrância ou de ordem fundamentada da autoridade judiciária competente, tem como destina­ tários exclusivos os militares, ou seja, somente o militar está autorizado a prender e somente o militar está sujeito à referida prisão. O civil, por conseguinte, só pode ser preso em flagrante delito ou mediante decisão judicial. Como visto no título atinente à competência criminal, crime propriamente militar é aquele que só pode ser praticado por militar, pois consiste na violação de deveres restritos, que lhe são próprios, sendo identificado por dois elementos: a qualidade do agente (militar) e a natureza da conduta (prática funcional). Diz respeito particularmente à vida militar, considerada no conjunto da qualidade funcional do agente, da materialidade especial da infração e da natureza peculiar do objeto danificado, que deve ser o serviço, a disciplina, a administração ou a economia mili­ tar. A título de exemplo, podemos citar os delitos de deserção (CPM, art. 187), embriaguez em serviço (CPM, art. 202), dormir em serviço (CPM, art. 203), etc.90 Apreendido esse conceito, convém destacar que, por força do art. 5o, LXI, da Constituição Federal, independentemente de o agente estar ou não em situação de flagrância, ou de prévia autorização judicial, é possível a prisão do militar nas hipóteses de transgressão militar ou de crime propriamente militar. É o que acontece, v.g., na hipótese do crime de deserção (CPM, art. 187), em que se apresenta possível a prisão na medida em que se trata de crime propriamente militar. Assim, a prisão do desertor pode ser efetuada a qualquer tempo, desde que não tenha ocorrido a prescrição nos termos do art. 132 do CPM.91 Costuma-se acreditar (equivocadamente) que a prisão do desertor seria possível por se tratar de crime permanente.92 Logo, considerando-se que, nas infrações permanentes, considera-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência (CPPM, art. 244, parágrafo único), a prisão do desertor seria possível por estar ele em situação de flagrância. A nosso ver, trata-se de raciocínio equivocado.93 O crime de deserção (ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de 8 dias) não é crime permanente. Crime permanente é aquele cuja consumação, pela natureza do bem jurídico ofendido, pode protrair-se no tempo, detendo o agente o poder de fazer cessar o estado antijurídico por ele realizado. Como se vê, uma das principais características do crime permanente consiste em o agente poder fazer cessar a perturbação do bem jurídico a qualquer momento. Ele possui o domínio do fato, da conduta e do resultado. Ora, no crime de deserção, decorrido o prazo de ausência de 8 (oito) dias, o delito já está consumado. Após esse prazo, a manutenção da situação de permanência já não depende mais da vontade do próprio agente, tal como acontece em crimes permanentes como o de se­ qüestro, em que a vítima pode ser libertada, desde que o agente que a privou da liberdade atue nesse sentido. Ao contrário, no caso de deserção, o retomo à situação anterior foge à alçada do agente, que já não tem mais o domínio do fato para fazer cessar a prática do delito. Portanto, afigura-se possível a prisão do desertor não por se tratar de prisão em flagrante em relação a crime permanente, mas sim por se tratar de crime propriamente militar. Como já

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Para mais detalhes acerca do conceito de crimes militares, remetemos o leitor ao título relativo à competência criminal.

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CPM. Art. 132. No crime de deserção, embora decorrido o prazo da prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de 45 (quarenta e cinco) anos, e, se oficial, a de 60 (sessenta).

92

No sentido de que o crime de deserção tem natureza permanente: STF, I s Turma, HC 112.005/RS, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 10/02/2015.

93

No sentido de que o crime de deserção é de natureza permanente: STF, 2§ Turma, HC 112.511/PE, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/10/2012.

T ÍT U L O 6 • D A S M E D ID A S C A U T E L A R E S D E N A T U R E Z A P E S S O A L

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se manifestaram os Tribunais Superiores, não há qualquer ilegalidade na prisão imediata do militar desertor que se apresenta voluntariamente e/ou é capturado (CPPM, art. 452). Sendo a deserção um crime definido em lei como de natureza propriamente militar, a custódia daquele que comete o delito capitulado no artigo 187 do CPM, tão-somente baseada no Termo de De­ serção, independentemente de ordem escrita de autoridade judiciária, está consentânea com o que dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 5o, inciso LXI.94 Nessa linha, segundo a 2a Turma da Suprema Corte, “a prática do crime de deserção quando o paciente ainda ostentava a qualidade de militar autoriza a instauração de instrução provisória de deserção, assim como a prisão do desertor, independentemente de ordem judicial (art. 5o, LXI, da Constituição). A exclusão do desertor do serviço militar obsta apenas o ajuizamento da ação penal (CPPM, art. 457, § 3o), que não se confunde com a instauração de instrução provisória de deserção. Ademais, mesmo a ação penal poderá ser ajuizada após a recaptura ou apresentação espontânea do paciente, quando então este será reincluído nas forças armadas, salvo se consi­ derado inapto depois de submetido à inspeção de saúde (CPPM, art. 457, § l 0)”.95 Não negamos que a prisão do militar por transgressão disciplinar seja uma espécie de prisão extrapenal, na medida em que é imposta por uma autoridade administrativa militar, independen­ temente de autorização judicial, seja a priori, seja a posteriori. No entanto, no tocante à prisão do militar por crime propriamente militar, conquanto sua captura seja possível em um primeiro momento sem autorização judicial (e, portanto, um simples ato administrativo), uma vez efetivada a captura do militar, deve a autoridade judiciária militar ser comunicada acerca da prisão, a fim de que delibere sobre a necessidade (ou não) da manutenção da prisão do militar. Assemelha-se, nesse ponto, a prisão do militar por crime propriamente militar, à prisão em flagrante. Nessa linha de raciocínio, ao julgar o HC 89.645 (Rei. Min. Gilmar Mendes), a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu que, mesmo na Justiça Castrense, para que a liberdade dos cidadãos seja legitimamente restringida, é necessário que o órgão judicial competente se pronuncie de modo expresso e fundamentado quanto à presença de uma das hipóteses que au­ torizam a prisão preventiva, nos termos do art. 312 do CPP (na verdade, as hipóteses de prisão preventiva no Código de Processo Penal Militar estão listadas no art. 255), indicando elementos concretos aptos a justificar a constrição cautelar do direito fundamental da liberdade de loco­ moção (art. 5o, inciso XV, da CF/88).96 4. PRISÃO PENAL (C A R C E R A D P O E N A M ) A prisão penal, prisão-pena ou career ad poenam, é aquela que resulta de sentença condenatória com trânsito em julgado que impôs o cumprimento de pena privativa de liberdade, ou, de acordo com a nova orientação dos Tribunais Superiores (STF, HC 126.292), é aquela que resulta de acórdão condenatório recorrível proferido por Tribunal de 2a instância. Só pode ser aplicada após um devido processo penal no qual tenham sido respeitadas todas as garantias e direitos do cidadão. Além de expressar a satisfação da pretensão punitiva ou a realização do Direito Penal objetivo, caracteriza-se pela definitividade.

94

STM, HC ne 2005.01.033994-9/DF, Rei. Min. Flávio de Oliveira Lencastre, DJ 23/03/2005. Em sentido semelhante, porém sem especificar que o crime de deserção é crime propriamente militar: STF, l ã Turma, HC 84.330/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ 27/08/2004 p. 71.

95

STF, 2- Turma, HC 94.367/RJ, Rei. Min. Joaquim Barbosa, DJe 025 05/02/2009.

96

No mesmo contexto: STF, 2- Turma, RHC 105.776/PA, Rei. Min. Celso de Mello, j. 22/05/2012. Para mais detalhes acerca da liberdade provisória no processo penal militar, vide abaixo item pertinente ao assunto.

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Conquanto sua utilização venha sendo reduzida ao mínimo necessário, é um mal necessário do qual ainda não podemos prescindir, conforme salienta Alberto Silva Franco: “Enquanto a dogmática penal mais criativa não oferecer nenhum substitutivo válido para a pena privativa de liberdade, e enquanto a prisão, embora já considerada um ‘mal necessário’, não sofrer total esvaziamento, o regime penitenciário, com toda a sua problemática, não poderá ser descartado.”97 5. PRISÃO CAUTELAR ( C A R C E R A D C U S T O D IA M ) Prisão cautelar {career ad custodiam) é aquela decretada antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória com o objetivo de assegurar a eficácia das investigações ou do processo criminal. Em um Estado que consagra o princípio da presunção de não culpabilidade, o ideal seria que a privação da liberdade de locomoção do imputado somente fosse possível por força de uma prisão penal, ou seja, após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.98 Todavia, entre o momento da prática do delito e a obtenção do provimento jurisdicional definitivo, há sempre o risco de que certas situações comprometam a atuação jurisdicional ou afetem profundamente a eficácia e utilidade do julgado. Daí o caráter imperioso da adoção de medidas eautelares, a fim de se atenuar esse risco. Como aponta Antônio Scarance Fernandes, são providências urgentes, através das quais se tenta evitar que a decisão da causa, ao ser pro­ ferida, não mais satisfaça o direito da parte, atingindo-se, assim, a finalidade instrumental do processo, consistente em uma prestação jurisdicional justa.99 A prisão cautelar deve estar obrigatoriamente comprometida com a instrumentalização do processo criminal. Trata-se de medida de natureza excepcional, que não pode ser utilizada como cumprimento antecipado de pena, na medida em que o juízo que se faz, para sua decretação, não é de culpabilidade, mas sim de periculosidade. Tendo em conta a função cautelar que lhe é inerente - atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal - a prisão cautelar também não pode ser decretada para dar satisfa­ ção à sociedade, à opinião pública ou à mídia, sob pena de se desvirtuar sua natureza instrumental. Infelizmente, não é isso o que se vê no dia a dia forense, em que há uma massificação das prisões eautelares, a despeito do elevado custo que representam. Como bem ressaltam Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró, “infelizmente as prisões eautelares acabaram sendo in­ seridas na dinâmica da urgência, desempenhando um relevantíssimo efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da prisão imediata acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção de eficiência do aparelho repressor estatal e da própria justiça. Com isso, o que foi concebido para ser excepcional toma-se um instrumento de uso comum e ordinário, desnaturando-o completamente. Nessa teratológica alquimia, sepulta-se a legitimidade das prisões eautelares, quadro esse agravado pela duração excessiva”.100

97

Temas de direito penal: breves anotações sobre a Lei n? 7.209/84.

98

FERRAJOLI, Luigi. D ireito e razão. Teoria do Garantism o Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, tradução de Fauzi Hassan Choukr. 2002, pp. 446 e 449.

São Paulo: Saraiva, 1986. p. 121/122.

99

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3? ed. rev., atual, e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 297. Na mesma linha, como bem observa Pedro Aragoneses (Instituciones de derecho procesal penal. Madri: Rubi, 1981. p. 258), "o grande problema das medidas eautelares consiste em que, se não adotada, corre-se o risco da impunidade; se adotada, corre-se o perigo da injustiça".

100 D ireito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55. Na mesma linha é a lição de Rogério Schietti Machado Cruz: "o certo é que está havendo um cada vez mais freqüente deslocamento

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Enquanto a prisão penal (“career adpoenam”) objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, a prisão cautelar (“career ad custodiam ”) destina-se única e exclusivamente a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. Como toda medida cautelar, tem por objetivo imediato a proteção dos meios ou dos resultados do processo, ser­ vindo como instrumento do instrumento, de modo a assegurar o bom êxito tanto do processo de conhecimento quanto do processo de execução. Logo, a prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada pelo Poder Público como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito. Isso significa que a prisão cautelar não pode ser utilizada com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento ao princípio da presunção de inocência. Louváveis, nesse sentido, as modificações produzidas no CPP pela Lei n° 12.403/11. Segundo a nova redação conferida ao art. 282, § 6o, do CPP, a prisão preventiva somente será determinada quando não for possível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319). Nos mesmos moldes, de acordo com o art. 310, II, do CPP, o juiz somente decretará a prisão preventiva nas hipóteses dos arts. 312 e 313 deste Código, quando as medidas cautelares arroladas no art. 319 deste Código, adotadas de forma isolada ou cumulada, se revelarem inadequadas ou insuficientes. De acordo com a doutrina majoritária, a prisão cautelar apresenta-se entre nós sob três modalidades: a) prisão em flagrante;101 b) prisão preventiva; c) prisão temporária. A nosso juízo, desde o advento da Constituição de 1988, e a consagração expressa do princípio da presunção de não culpabilidade, a prisão decorrente de pronúncia e a decorrente de sentença condenatória recorrível não mais podiam ser consideradas espécies autônomas de prisão cautelar. Diante do disposto no art. 5o, inciso LVIÍ, não seria possível que uma ordem legislativa, subtraindo da apreciação do Poder Judiciário a análise da necessidade da segrega­ ção cautelar diante dos elementos do caso concreto, determinasse o recolhimento de alguém à prisão como efeito automático da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível. Referidas prisões já não podiam mais, de per si, legitimar uma custódia cautelar. Deviam, sob pena de constrangimento ilegal, cingir-se fundamentadamente à órbita do art. 312 do CPP. Estar-se-ia, portanto, diante de uma prisão preventiva, e não mais de uma prisão decorrente de pronúncia ou de sentença condenatória recorrível. Independentemente da discussão em tomo da subsistência (ou não) da prisão decorrente de pronúncia e de sentença condenatória em face do advento da Carta Magna, certo é que a reforma processual de 2008 aboliu tais prisões, pelo menos como modalidades autônomas de prisão cautelar. A Lei n° 11.689/08 (referente ao novo procedimento do júri) afastou a prisão automática do antigo art. 408, §§ 2o e 3o, passando a dispor em seu art. 413, § 3o, que o juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código. Além disso, segundo a nova redação do art. 492,1, “e”, do CPP, ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri, em caso de condenação, caberá determinar o recolhimento ou permanência do acusado na prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva. Por outro lado, com a Lei n° 11.719/08, restou revogado o art. 594 do Código de Processo Penal, constando do art. 387, § Io, do CPP, que o juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção da resposta penal para as prisões cautelares, ao invés do que seria mais natural, para a sentença condenatória (Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 2/3). 101

Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. Voltaremos a tratar do assunto mais adiante.

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ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta. Seguindo a mesma trilha, com as modificações produzidas no CPP pela Lei n° 12.403/11, o art. 283 do CPP passou a dispor que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem descrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. 6. MOMENTO DA PRISÃO De acordo com o art. 283, § 2o, do CPP (antigo caput do art. 283), a prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabili­ dade do domicílio. Assim, ainda que a pessoa esteja durante o casamento, em núpcias, durante festividades natalinas ou religiosas, final de semana, etc., não há qualquer impedimento para o cumprimento da prisão, já que a regra é que a prisão pode ser levada a efeito em qualquer dia e a qualquer hora. Porém, há importantes restrições, a saber: 6.1. Inviolabilidade do domicílio O tema foi objeto de análise no título atinente às provas, mais precisamente no tópico “10.4.1. Busca domiciliar”, para onde remetemos o leitor. 6.2. Conceito de dia O tema também já foi trabalhado no título atinente às provas, mais especificamente no tópico “10.4.1. Busca domiciliar”, para onde remetemos o leitor. 6.3. Cláusula de reserva de jurisdição A possibilidade de invasão domiciliar, durante o dia, está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, a qual, conforme observa J.J. Gomes Canotilho,102 importa em “submeter à esfera única de decisão dos magistrados a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de verdadeira discriminação material de competência jurisdicional fixada no texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se hajam eventual­ mente atribuído poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, como ocorre com as Comissões Parlamentares de Inquérito. Logo, por expressa previsão constitucional, compete exclusivamente aos órgãos do Poder Judiciário, com total exclusão de qualquer outro órgão estatal, a prática de determinadas restri­ ções a direitos e garantias individuais: a) violação ao domicílio durante o dia (CF, art. 5o, inciso XI); b) prisão, salvo nas hipóteses de flagrante delito (CF, art. 5o, inciso LXI); c) interceptação telefônica (CF, art. 5o, inciso XII); d) afastamento de sigilo de processos jurisdicionais. Se a violação do domicílio está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, forçoso é concluir que não foi recepcionada pela Constituição Federal a parte final do art. 176, caput, do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual a busca domiciliar poderá ser ordenada pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes, ou determinada pela autoridade policial militar. 102

D ireito constitucional e teoria da Constituição.

Coimbra: Almedina, 1998, p. 580 e 586.

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6.4. Momento da prisão e Código Eleitoral Ao lado da inviolabilidade do domicílio, outra limitação ao momento da prisão está prevista no Código Eleitoral. De acordo com o art. 236, caput, e § Io, da Lei n° 4.737/1965, nenhuma autoridade pode­ rá, desde cinco dias antes e até 48 horas depois do encerramento da eleição, prender ou deter qualquer eleitor, salvo em flagrante delito (v.g., “boca de uma”) ou em virtude de sentença cri­ minal condenatória por crime inafiançável com trânsito em julgado, ou, ainda, por desrespeito a salvo-conduto. Quanto à esta última hipótese, é bom destacar que a violação a salvo-conduto (ordem concedida em habeas corpus preventivo), por si só, já pode constituir infração penal (e, daí, hipótese de flagrante delito), seja por abuso de autoridade, seja por constrangimento ilegal. Outrossim, em se tratando de candidatos, esse prazo é de quinze dias antes das eleições. Por sua vez, os membros das mesas receptoras e os fiscais de partido, durante o exercício de suas funções, não poderão ser detidos ou presos, salvo o caso de flagrante delito. O Código Eleitoral não se refere à prisão temporária, o que é por demais óbvio, na medida em que a lei que instituiu a prisão temporária - Lei n° 7.960/89 - é posterior à vigência do Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65). Assim, considerando que a prisão temporária é uma espécie de prisão cautelar, pensamos que o preceito do art. 236 do Código Eleitoral também se aplica a ela.103 Ainda em relação ao preceito do art. 236 do Código Eleitoral, na medida em que a finali­ dade do dispositivo do Código Eleitoral é a preservação do direito ao voto, afigura-se ilegítima sua aplicação quando não estiver caracterizado o fim ao qual se destina. Nessa linha, segundo Fábio Ramazzini Bechara, “no caso do estrangeiro residente no país ou ainda daquele que está com a prisão preventiva decretada e é surpreendido tentando embarcar no aeroporto para o exterior, não se vislumbra a finalidade da lei eleitoral, não sendo vedada, portanto, a privação da liberdade aquém das hipóteses legalmente autorizadas”.104 7. IMUNIDADES PRISIONAIS Em regra, toda e qualquer pessoa pode ser presa. No entanto, há exceções. 7.1. Presidente da República e Governadores de Estado O Presidente da República, nas infrações comuns, enquanto não sobrevier sentença conde­ natória, não estará sujeito à prisão (CF, art. 86, § 3o). Como se vê, não cabe contra o Presidente da República nenhuma prisão cautelar. Ademais, por força do disposto no art. 86, § 4o, da Constituição Federal, enquanto vigente o mandato, o Presidente da República não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de sua função (fatos praticados antes ou durante o mandato). Trata-se da cláusula da irrespon­ sabilidade relativa, que não protege o Presidente da República quanto aos ilícitos praticados no exercício da função ou em razão dela, assim como não exclui sua responsabilização civil, administrativa ou tributária. Extinto ou perdido o mandato, o Presidente da República poderá ser criminalmente processado pelo fato criminoso estranho ao exercício da função, ainda que praticado antes ou durante a investidura. Discute-se na doutrina se essa imunidade seria extensiva a Governadores de Estado. A nosso ver, a regra do art. 86, § 3o, da Constituição Federal, é de aplicação exclusiva do Presidente da 103

Nesse

104

BECHARA, Fábio Ramazzini. Breves notas acerca da prisão, in Síntese Jornal. São Paulo: IOB Publicações Jurídicas Ltda., ano 08, ne 94, dezembro de 2004, p. 6.

sentido: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Op. cit. p. 461.

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República, e não pode ser estendida aos chefes do Executivo Estadual e municipal, mesmo que por via de Constituição Estadual ou Lei Orgânica Municipal. A propósito, no julgamento da ADI 1.026, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do art. 86 da Constituição do Estado de Sergipe, que reproduzia a disciplina contida nos §§ 3o e 4o do art. 86 da Constituição Federal, a fim de que fossem eles aplicáveis ao Governador do mesmo Estado. Considerou-se que tal disciplina aplica-se exclusivamente ao Presidente da República, não servindo de modelo para os Estados.105 No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, porém, até bem pouco tempo atrás, havia entendimento em sentido contrário, segundo o qual, em razão do princípio da simetria, nas in­ frações comuns, governadores não estariam sujeitos à prisão enquanto não sobreviesse sentença condenatória.106 Recentemente, todavia, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no curso de inqué­ rito instaurado contra o então Governador do Distrito Federal J.R.A., diante da tentativa deste de frustrar a instrução criminal mediante corrupção de testemunha e falsidade ideológica de documento privado, deliberou pela decretação de sua prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública e na conveniência da instrução criminal. Entendeu a Corte Especial do STJ que os Governadores dos Estados e do Distrito Federal não gozam de imunidade à prisão cautelar, prerrogativa extraordinária garantida somente ao Presidente da República, na qualidade de Chefe de Estado (reserva de competência da União Federal). Ademais, concluiu que a apreciação do pedido de prisão preventiva pelo STJ independe de prévia autorização da Câmara Distrital, tendo em vista a natureza cautelar da prisão preventiva, bem como o suposto envolvimento de membros da Casa Legislativa no esquema de corrupção.107 A prisão preventiva do Governador do Distrito Federal foi confirmada pelo Supremo Tribu­ nal Federal, que entendeu presente de forma clara a prática de atos com o escopo de obstruir a justiça, atraindo a incidência do disposto no art. 312 do CPP, a revelar a possibilidade de prisão preventiva, admitida pela Carta da República no art. 5o, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV e LXVI, em virtude da necessidade de preservar-se não só a regular instrução criminal, no caso retratada nos autos do inquérito, mas também a ordem pública ante a atuação profícua de instituições, como a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário.108 7.2. Imunidade diplomática Chefes de governo estrangeiro ou de Estado estrangeiro, suas famílias e membros das comitivas, embaixadores e suas famílias, funcionários estrangeiros do corpo diplomático e suas família, assim como funcionários de organizações internacionais em serviço (ONU, OEA, etc.) gozam de imunidade diplomática, que consiste na prerrogativa de responder no seu país de origem pelo delito praticado no Brasil (Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo Decreto Legislativo 103/1964, e promulgada pelo Decreto n° 56.435, de 08/06/1965).

105 STF - ADI 1.026/SE - Tribunal Pleno - Rei. Min. limar Galvão - DJ 18/10/2002 p. 26. Nos mesmos moldes: STF - ADI 1.022/RJ - Tribunal Pleno - Rei. p/ Acórdão: Min. Celso de Mello - DJ 17/11/95 p. 39.202. 106 STJ - Corte Especial - HC 2.271/PB - Rei. Min. José Cândido de Carvalho Filho - Julgamento 09/12/93 - Publi­ cação: DJ 05/09/94. No mesmo sentido posiciona-se Fernando da Costa Tourinho Filho (Op. cit. p. 712). 107 STJ, Corte Especial, Inq. 650/DF, Rei. Min. Fernando Gonçalves, j. 11/02/2010, DJe 15/04/2010. 108 STF, Tribunal Pleno, HC 102.732, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 04/03/2010, DJe 081 06/05/2010. Posteriormente, por entender que o ex-Governador não tinha mais condições de interferir na coleta de provas, a Corte Especial do STJ deferiu o pedido de revogação de sua prisão preventiva, sob o argumento de que não havia mais elementos para que subsistisse a prisão preventiva: Informativo ns 430 do STJ, Corte Especial, QO na APn 622/DF, Rei. Min. Fernando Gonçalves, julgada em 12/04/2010.

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Em virtude disso, tais pessoas não podem ser presas e nem julgadas pela autoridade do país onde exercem suas funções, seja qual for o crime praticado (CPP, art. Io, inciso I). Em caso de falecimento de um diplomata, os membros de sua família “continuarão no gozo dos privi­ légios e imunidades a que têm direito, até a expiração de um prazo razoável que lhes permita deixar o território do Estado acreditado” (art. 39, § 3o, da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas). Admite-se renúncia expressa à garantia da imunidade pelo Estado acreditante, ou seja, aquele que envia o Chefe de Estado ou representante. Tal imunidade não é extensiva aos empregados particulares dos agentes diplomáticos. Importante salientar que essa imunidade dos integrantes de corpo diplomático dos Estados estrangeiros é pela via da imunidade de jurisdição cognitiva, isto é, imunidade ao processo de conhecimento, ou pela imunidade àjurisdição executiva, referente ao cumprimento da pena. Am­ bas as imunidades derivam, ordinariamente, do básico princípio “comitas gentium”, consagrado pela prática consuetudinária internacional e assentado em premissas teóricas e em concepções políticas que, fundadas na essencial igualdade entre as soberanias estatais, legitima o reconhe­ cimento de “par in parem non habet imperium vel judicium”, conforme entende a doutrina do Direito Internacional Público. Pelo menos em tese, é possível que o Estado estrangeiro renuncie a ambas as imunidades, ou apenas à de jurisdição cognitiva, mantendo, todavia, a competência para o cumprimento de eventual pena criminal imposta ao agente diplomático. Quando isso ocorrer, leia-se, renúncia apenas à imunidade de jurisdição, reservando-se a imunidade de execução, não se revela adequada a imposição de medidas cautelares no sentido de proibir o agente diplomático de se ausentar do país sem autorização judicial. In casu, por mais que o agente possa ser processado no Brasil e eventualmente condenado, a execução da pena obrigatoriamente deverá se dar no país de origem. Carece de razoabilidade, portanto, qualquer fundamentação cautelar no sentido de se assegurar a aplicação da lei penal, porquanto a execução de eventual pena não é atribuição da jurisdição brasileira. Raciocínio diverso é válido, todavia, para as cautelares decretadas com outras fina­ lidades que não a de assegurar a aplicação da lei penal, como, por exemplo, por conveniência da instrução cirminal, que são passíveis de decretação, porquanto diretamente relacionadas à própria atividade de cognição desenvolvida no processo de conhecimento cuja competência foi transferida às autoridades brasileiras.109 Quanto ao cônsul, este só goza de imunidade em relação aos crimes funcionais (Convenção de Viena, de 1963, sobre Relações Consulares, Decreto n° 61.078, de 26/07/1967). Além disso, a prisão só é admitida na hipótese de crime grave e desde que haja decisão da autoridade com­ petente. Por crime grave, o STF concluiu que basta que se trate de crime apenado com reclusão, ainda que cabível o benefício da suspensão condicional do processo. Não por outro motivo, ao apreciar habeas corpus referente a crime de pedofilia supostamente praticado pelo Cônsul de Israel no Rio de Janeiro, posicionou-se a Suprema Corte pela inexistência de obstáculo à prisão preventiva, nos termos do art. 41 da Convenção de Viena, pois os fatos imputados ao paciente não guardavam pertinência com o desempenho das funções consulares.110 De se lembrar que, segundo o art. 45.1 da Convenção de Viena sobre relações consulares, é possível a renúncia, pelo Estado, às imunidades do agente consular. Por isso, no julgamen­ to de habeas corpus perante o STJ, referente a crimes de descaminho e falsidade ideológica supostamente praticados pelo Cônsul-Geral de El Salvador no exercício da função, diante da 109

Nesse sentido: STJ, 63 Turma, RHC 87.825/ES, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 05/12/2017, DJe 14/12/2017.

110

STF, l ã Turma, HC 81.158/RJ, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ 19/12/2002.

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renúncia feita pelo Estado estrangeiro, concluiu-se pela possibilidade de prosseguimento da persecução penal.115 Vale ressaltar que essa imunidade não impede que as autoridades policiais investiguem o delito praticado, colhendo as informações necessárias referentes à autoria e materialidade do ilícito, que deverão ser encaminhadas às autoridades do país de origem do agente. Com efeito, o fato de o crime ser praticado por alguém que goze de imunidade diplomática não significa que nada possa ser feito. Supondo, assim, que um embaixador seja surpreendido desferindo tiros contra uma pessoa, sua captura poderá ser efetuada, de modo a se evitar a consumação do delito. Só que, uma vez obstada a prática do delito, o auto de prisão em flagrante delito não poderá ser lavrado. A ocorrência, porém, será registrada para o efeito de se enviar provas ao seu país de origem. 7.3. Senadores, deputados federais, estaduais ou distritais Senadores, deputados federais, estaduais ou distritais,1 112 desde a expedição do diploma, não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. É a chamada freedom from arrest. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão (CF, art. 53, § 2o, c/c art. 27, § Io). Segundo precedente antigo do Supremo Tribunal Federal, congressistas só poderiam sofrer prisão provisória ou cautelar numa única e singular hipótese: situação de flagrância em crime inafiançável. Logo, não poderiam ser objeto de prisão temporária, nem tampouco de prisão pre­ ventiva. Como se trata de prerrogativa de caráter institucional, inerente ao Poder Legislativo, não se reconhece ao congressista a faculdade de a ela renunciar. Por outro lado, dentro do contexto normativo delineado pela Constituição, a garantia da imunidade parlamentar não obsta a execução de penas privativas de liberdade definitivamente impostas ao membro do Congresso Nacional.113 A despeito desse precedente antigo, em julgamento relativo à Operação “Dominó”, deflagrada no Estado de Rondônia, a IaTurma do STF entendeu que o caso concreto não comportaria interpre­ tação literal da regra proibitiva da prisão de parlamentar (CF, art. 53, §§ 2o e 3o), e sim solução que conduzisse à aplicação efetiva e eficaz de todo o sistema constitucional. Aduziu-se que a situação evidenciaria absoluta anomalia institucional, jurídica e ética, uma vez que praticamente a totalidade dos membros da Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia estaria indiciada ou denunciada por crimes relacionados à mencionada organização criminosa, que se ramificaria por vários órgãos estatais. Assim, tendo em conta essa conjuntura, considerou-se que os pares do deputado estadual não disporiam de autonomia suficiente para decidir sobre a sua prisão, porquanto ele seria o su­ posto chefe dessa organização. Em conseqüência, salientou-se que aplicar o pretendido dispositivo constitucional, na espécie, conduziria a resultado oposto ao buscado pelo ordenamento jurídico. Entendeu-se, pois, que à excepcionalidade do quadro haveria de corresponder à excepcionalidade

111 STJ, 6ã Turma, HC 149.481/DF, Rei. Min. Haroldo Rodrigues - Desembargador convocado do TJ/CE DJe 16/11/2010. 112

j. 19/10/2010,

Na visão do Supremo, "com o advento da Constituição de 1988 (art. 27, § l 9), que tornou aplicáveis, sem restri­ ções, aos membros das Assembléias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal, as normas sobre imunidades parlamentares dos integrantes do Congresso Nacional, ficou superada a tese da Súmula 3/STF ("A imunidade concedida a Deputados Estaduais é restrita à Justiça do Estado"), que tem por suporte necessário que o re­ conhecimento aos deputados estaduais das imunidades dos congressistas não derivava necessariamente da Constituição Federal, mas decorreria de decisão autônoma do constituinte local". (STF, Pleno, RE 456.679/DF, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 07/04/2006 p. 16).

113 STF, Pleno, Inq. 510/DF, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 19/04/1991 p. 4.581.

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da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras constitucionais, sob pena de se prestigiar regra de exceção que culminasse na impunidade dos parlamentares.114 A matéria voltou a ser apreciada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, in casu, pela 2a Turma, por ocasião da decretação da prisão do Senador “D. do A”. Reiterou-se o entendimento de que não se pode fazer uma leitura seca da regra proibitiva da prisão de parlamentar, tal qual disposta no art. 53, § 2o, da Constituição Federal, para fins de se concluir que parlamentares fede­ rais, estaduais ou distritais, só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável. Na verdade, o referido dispositivo constitucional deve ser interpretado no seguinte sentido: a) a Constituição garante a imunidade relativa dos parlamentares e a Constituição proíbe a impunidade absoluta de quem quer que seja; b) a regra limitadora do processamento de parlamentar e a proibitiva de sua prisão são garantias do cidadão, do eleitor para a autonomia do órgão legiferante e da liber­ dade do eleito para representar, conforme prometera, e cumprir os compromissos assumidos no pleito. Não configuram, portanto, direito personalíssimo do parlamentar, mas prerrogativa que lhe advém da condição de membro do poder que precisa ser preservado para que também seja preservado o órgão parlamentar em sua autonomia, a fim de que ali se cumpram as atribuições que lhe foram constitucionalmente cometidas. Logo, a norma constitucional que cuida da imu­ nidade prisional do parlamentar não pode ser tomada em sua literalidade, menos ainda excluída do sistema constitucional, como se apenas aquela regra existisse, sem qualquer vinculação com os princípios que a determinam e com os fins a que ela se destina. A Constituição não diferencia o parlamentar para privilegiá-lo. Distingue-o e toma-o imune ao processo judicial e até mesmo à prisão para que os princípios do Estado Democrático da República sejam cumpridos; jamais para que eles sejam desvirtuados. Afinal, o que se garante é a imunidade, não a impunidade. Essa é incompatível com a Democracia, com a República e com o próprio princípio do Estado de Direito. Imunidade é a prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio. E esse, sabe-se, é mais uma agressão aos princípios constitucionais, ênfase dada ao da igualdade de todos na lei. Con­ siderando, pois, a excepcionalidade do quadro em questão, concluiu o Supremo pelo cabimento da prisão preventiva do referido Senador, já que a regra do art. 53, § 2o, pode ser relativizada em situações de completa anomalia institucional. Por isso, a 2a Turma do Supremo referendou a decretação da prisão preventiva do referido Senador pelo Ministro Relator, fundamentada não apenas em indícios de autoria e prova da existência de diversos crimes (v.g., lavagem de capitais, crimes contra a administração pública, organização criminosa, etc.), mas também nos pressu­ postos da conveniência da instrução criminal - suposto pagamento de R$ 50.000,00 mensais a família de pretenso colaborador para que este não firmasse acordo de colaboração premiada na “Operação Lava Jato” -, garantia de aplicação da lei penal - havia um plano para a fuga deste colaborador se acaso fosse agraciado com um habeas corpus - e garantia da ordem pública cooptação de colaborador, promessa de intercessão política junto aos Ministros do Supremo em favor da liberdade do pretenso colaborador, obtenção de documentos judiciais sigilosos, etc.115 Merece especial atenção a súmula 4 do STF, segundo a qual “não perde a imunidade parlamentar o congressista nomeado Ministro de Estado”. Referida súmula foi cancelada pela

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Para a Suprema Corte, "a Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia, composta de vinte e quatro deputados, dos quais vinte e três estão indiciados em diversos inquéritos, afirma situação excepcional e, por isso, não se há de aplicar a regra constitucional do art. 53, § 29, da Constituição da República, de forma isolada e insujeita aos princípios fundamentais do sistema jurídico vigente". (STF - HC n9 89.417/RO - l ã Turma - Relatora Ministra Cármen Lúcia - DJ 15/12/2006 p. 96). 115 STF, 2a Turma, AC 4.036 Referendo-MC/DF, Rei. Min. Teori Zavascki, j. 25/11/2015.

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Suprema Corte quando do julgamento do Inquérito n° 104.116 Logo, tratando-se de deputado licenciado à época do fato para o exercício de outro cargo na Administração Pública, não há que se falar na inviolabilidade ou imunidade processual, mesmo que venha a reassumir o mandato posteriormente após a prática do fato delituoso.117 Ressaltamos, mais uma vez, que a impossibilidade de se prender em flagrante os membros do Congresso Nacional por crimes afiançáveis não significa que nada possa ser feito quando colhidos em situação de flagrância. Nesse caso, seja a autoridade policial, seja qualquer do povo, poderá adotar medidas no sentido de interromper a atividade ilícita, registrando a ocorrência, mas não será lavrado o auto de prisão em flagrante, nem tampouco ocorrerá o recolhimento ao cárcere. Na hipótese de prisão em flagrante por crime inafiançável, a autoridade que presidir o auto deve encaminhá-lo à casa respectiva, que, no exercício de função anômala, pelo voto aberto da maioria de seus membros (maioria absoluta: 257 deputados ou 41 senadores), deve deliberar sobre a prisão, mantendo ou não o congressista preso. Vale ressaltar que vereadores, ao contrário do que ocorre com parlamentares federais, esta­ duais118ou distritais, não gozam de incoercibilidade pessoal relativa (freedomfrom arrest), embora sejam detentores da chamada imunidade material em relação às palavras, opiniões e votos que proferirem no exercício do mandato e na circunscrição do município (CF, art. 29, VIII) e possuam, em alguns Estados da Federação, prerrogativa de foro assegurada na respectiva Constituição.119 7.4. Magistrados e membros do Ministério Público De acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35/79), são prerrogativas do Magistrado não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial com­ petente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do Magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (art. 33, inciso II). Além disso, quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do Magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou Órgão Especial competente para o julgamento, a fim de que se prossiga na investigação (LC 35/79, art. 33, parágrafo único). Por sua vez, nos exatos termos da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n° 8.625/93), constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público ser preso somente por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de vinte e quatro horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao Procurador-Geral de Justiça (art. 40, inciso III). Ademais, quando, no curso de investigação, houver indício da prática de infração penal por parte do membro do Ministério Público, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá imediatamente, sob pena de

116 STF-Tribunal Pleno-Inq. 104-Rei. Min. Djaci Falcão-j. 26/08/81 - DJ02/10/81. 117

"Não assiste a prerrogativa da imunidade processual ao Deputado estadual, licenciado, à época do fato, para o exercício do cargo de Secretário de Estado (cfr. Inq. 104, RTJ 99/487), mesmo havendo, após, reassumido o desempenho do mandato (cfr. Inq. 105, RTJ 99/487)". (STF - HC 78.093/AM - l ã Turma - Rei. Min. Octavio Galloti - DJ 16/04/1999 p. 6).

118 Segundo Tales Castelo Branco, as imunidades dos deputados estaduais "não se limitam ao território do Estado, pois, se assim não fosse, ficariam os parlamentares estaduais sujeitos às pressões do governo federal e sem condições de exercer com amplitude e independência o mandado popular". (Da prisão em flag rante. 5§ ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 161). 119

Com esse entendimento: STF, 1- Turma, HC 94.059/RJ, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 107 13/06/2008. Na mesma linha: STJ, 5^ Turma, HC 106.642/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 04/08/2008.

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responsabilidade, os respectivos autos ao Procurador-Geral de Justiça, a quem competirá dar prosseguimento à apuração (Lei n° 8.625/93, art. 41, parágrafo único). Como se percebe pela leitura dos dispositivos legais, no tocante à prisão em flagrante, há expressa restrição quanto aos crimes afiançáveis. Essa ressalva quanto à prisão em flagrante por crimes afiançáveis não significa, no entanto, que essas autoridades estejam penalmente isentas por eles. Apesar de não ser possível a prisão em flagrante em crimes afiançáveis, a ocorrência deve ser registrada, e posteriormente encaminhada à Presidência do Tribunal a que estiver vinculado o juiz, ou ao respectivo Procurador-Geral, em se tratando de membros do Ministério Público. No caso de flagrante de crime inafiançável, afigura-se possível a captura do Magistrado ou do membro do Ministério Público, porém o auto de prisão em flagrante não pode ser presidido por delegado de polícia. Ora, como a apuração de ilícitos supostamente praticados por Magis­ trados ou membros do Ministério Público deve ser feita pelo Presidente do Tribunal ou pelo Procurador-Geral, não há como se pretender que o auto de prisão em flagrante não seja lavrado por essas mesmas autoridades. Afinal de contas, no auto de prisão em flagrante delito, já se está a praticar ato de polícia judiciária consistente na colheita de elementos de informação contra o suposto autor do delito. Nessa linha, veja-se o enunciado n° 6 da 2a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF: “Não cabe à autoridade policial instaurar inquérito para investigar conduta delituosa de membro do Ministério Público da União. Este trabalho investigatório é instaurado, tem curso, e é concluído no âmbito do Ministério Público Federal”. E bom ressaltar que o fato de a prisão-captura ter sido feita pela autoridade policial não significa, necessariamente, que ocorrerá a lavratura do auto de prisão em flagrante pelo Presidente do Tribunal ou pelo Procurador-Geral. Afinal, cabe a esta autoridade um juízo de valoração das condições objetivas da flagrância e verificação da razoabilidade probatória dos indícios colhidos, a fim de determinar a medida extrema de constrição da liberdade. Ao contrário de senadores, deputados federais, estaduais ou distritais, em relação aos quais o Supremo entende que, pelo menos em regra, a Constituição Federal somente autoriza a prisão em flagrante de crime inafiançável (CF, art. 53, § 2o), excluindo-se, assim, a incidência de qualquer outra modalidade cautelar prisional, magistrados e membros do Ministério Público, apesar de não estarem sujeitos à prisão em flagrante por crime afiançável, estão sujeitos à prisão temporária e/ ou preventiva. Basta perceber que as próprias Leis Orgânicas fazem menção à possibilidade de prisão mediante ordem judicial escrita (art. 40, inciso III, da Lei n° 8.625/93, art. 18, inciso II, alínea “d”, da Lei Complementar n° 75/93, e art. 33, inciso II, da Lei Complementar n° 35/79). 7.5. Advogados Por motivo ligado ao exercício da profissão, advogados somente poderão ser presos em flagrante em caso de crime inafiançável, assegurada, nesse caso, a presença de representante da OAB para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB (Lei n° 8.906/94, art. 7o, § 3o). Portanto, se o delito em virtude do qual o advogado foi preso em flagrante estiver relacionado ao exercício da profissão, sua prisão somente será possível se o delito for inafiançável, assegurada a presença de representante da OAB quando da lavratura do respectivo auto. Interpretando-se a contrario sensu o referido dispositivo, conclui-se que, por motivo ligado ao exercício da profissão, advogados não poderão ser presos em flagrante pela prática de crimes afiançáveis. Ademais, caso a prisão em flagrante ocorra por motivos estranhos ao exercício da advocacia, a prisão poderá ser realizada normalmente, independentemente da natureza do delito - afiançável ou inafiançável -, com a ressalva de que subsiste a obrigatoriedade de comunicação expressa à seccional da OAB.

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Apesar de não ser possível a prisão em flagrante de advogado pela prática do delito de desacato ligado ao exercício da profissão, seja por se tratar de infração de menor potencial ofensivo, seja por se tratar de crime afiançável, isso não significa dizer que o advogado não possa ser responsabilizado criminalmente pelo referido delito. Como se sabe, é possível que o advogado responda pelo crime de desacato, delito este que foi eliminado do âmbito de sua imunidade material ou penal (vide ADI 1.127-8/DF).120 7.6. Menores de 18 anos Há de se diferenciar a situação da criança (até doze anos de idade incompletos) e a do adolescente, com idade entre doze e dezoito anos. Cuidando-se de criança, não é possível a privação de sua liberdade em razão da prática de ato infracional (Lei n° 8.069/90, art. 101, § Io, com redação dada pela Lei n° 12.010/2009). Logo, caso uma criança seja, por exemplo, surpreendida em situação de flagrância de conduta prevista como crime ou contravenção penal (Lei n° 8.069/90, art. 103), deve ser apresentada ao Conselho Tutelar ou à Justiça da Infância e da Juventude, para fins de aplicação da medida de proteção que se reputar adequada, nos termos dos arts. 101, 105 e 136, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por outro lado, nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (Lei n° 8.069/90, art. 106, caput). Como se percebe, no caso de adolescentes, é possível que ocorra sua apreensão (não se deve usar o termo prisão) em duas situações: flagrante de ato infracional e nos casos de internação provisória. Antes da sentença definitiva, a internação pode ser determinada pelo prazo máximo de 45 (quarenta e cinco) dias. A decisão deve ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida. A internação, decretada ou mantida pela autoridade judiciária, não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional. Inexistindo na comarca entidade com as características definidas no art. 123 da Lei n° 8.069/90, o adolescente deverá ser imediatamente transferido para a localidade mais próxima. Sendo impossível a pronta transferência, o adolescente aguardará sua remoção em repartição policial, desde que em seção isolada dos adultos e com instalações apropriadas, não podendo ultrapassar o prazo máximo de 5 (cinco) dias, sob pena de responsabilidade. Quanto aos inimputáveis em razão de doença mental, sua prisão é plenamente possível. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao tópico pertinente às medidas cautelares diversas da prisão, especificamente no item pertinente à internação provisória (CPP, art. 319, VII). 8. PRISÃO E EMPREGO DE FORÇA De acordo com o art. 284 do CPP, não será permitido o emprego de força, salvo a indis­ pensável no caso de resistência ou tentativa de fuga do preso. Nos mesmos moldes, dispõe o art. 234, caput, do CPPM, que o emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por 2 (duas) testemunhas. Trata-se, o emprego de força, de medida de natureza excepcional, devendo o agente limitar seu emprego àquilo que for indispensável para vencer a resistência ativa do preso ou sua tentativa de fuga. 120

Informativo n- 436 do Supremo Tribunal Federal: HC 88164/MG, Rei. Min. Celso de Mello, 15.8.2006.

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Assim agindo, não há falar em conduta ilícita por parte do responsável pela prisão, eis que sua ação está acobertada pelo estrito cumprimento do dever legal (agente público) ou pelo exercício regular de direito (particular), podendo, a depender do caso concreto, caracterizar inclusive legítima defesa. De modo algum, todavia, autoriza-se o emprego de violência extrema, consubstanciada na morte do preso, como ainda sói ocorrer em hipóteses de tentativas de fuga com uso de veículos automotores. Obviamente, na hipótese de resistência ativa por parte do preso, com a prática de agressão injusta em face do responsável pela prisão, pode este agir amparado pela legítima defesa, desde que se socorra dos meios necessários de maneira moderada e proporcional (CP, art. 25). Nessa linha, com o objetivo de regulamentar o uso de força pelos agentes de segurança pú­ blica, foi editada a Portaria Interministerial n° 4.226, de 31 de dezembro de 2010, conjuntamente pelo Ministro da Justiça e o Ministro Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. No anexo I da referida portaria, a diretriz n° 3 afirma que os agentes de segu­ rança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave. Tal portaria ainda prevê que não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros. De modo semelhante, dispõe que não é legítimo o uso de armas de fogo contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, a não ser que o ato represente um risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros (diretriz n° 5). Ademais, a diretriz n° 7 afirma que o ato de apontar arma de fogo contra pessoas durante os procedimentos de abordagem não deverá ser uma prática rotineira e indiscriminada. 8.1. Instrumentos de menor potencial ofensivo (ou não letais) Com o objetivo de resguardar a integridade física de toda e qualquer pessoa - presa ou em liberdade - sujeita ao uso da força por agentes de segurança pública, evitando seu emprego de maneira irracional, foi editada a Lei n° 13.060, com vigência em data de 23 de dezembro de 2014. Referida Lei disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo, assim con­ siderados aqueles projetados especificamente para, com baixa probabilidade de causar mortes ou lesões permanentes, conter, debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas, a exemplo de armas de choque, como a “taser”, spray de pimenta, gás lacrimogêneo, balas de borracha, etc. Por força da Lei n° 13.060/14, os órgãos de segurança pública, quais sejam, a Polícia Fe­ deral, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis, as Polícias Militares, os Corpos de Bombeiros Militares e as Guardas Municipais, deverão priorizar a uti­ lização desses instrumentos não letais, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos princípios da legalidade, necessidade, razoabilidade e proporcionalidade. De mais a mais, consoante disposto no art. 2o, parágrafo único, da referida Lei, não é legítimo o uso de arma de fogo: a) contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros; b) contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros. 9. MANDADO DE PRISÃO A exceção dos casos de flagrante delito, transgressão militar e crime propriamente militar, a Carta Magna (art. 5o, LXI) demanda ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente para que alguém seja preso. Por isso, não se pode fechar os olhos para a importância

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do mandado de prisão, instrumento que materializa a ordem de prisão escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Tamanha é a sua importância que o próprio art. 288 do CPP estabelece que ninguém será recolhido à prisão, sem que seja exibido o mandado ao respectivo diretor ou carcereiro, a quem será entregue cópia assinada pelo executor ou apresentada a guia expedida pela autoridade competente, devendo ser passado recibo da entrega do preso, com declaração de dia e hora. Dispõe o art. 285 do CPP que a autoridade que ordenar a prisão fará expedir o respectivo mandado, observados os seguintes requisitos: a) ser lavrado pelo escrivão e assinado pela autoridade competente: nada impede que o mandado seja lavrado por um escrevente ou por um funcionário da justiça. O que é indispensável é a assinatura da autoridade judiciária competente, elemento essencial à existência do mandado de prisão. Cuida-se de pressuposto de validade que comprova a autenticidade da ordem emanada. Sem a assinatura do juiz, o mandado jamais prestará para prender, pois a desconformidade com o modelo legal é tão intensa que se pode falar em inexistência do ato; b) designar a pessoa que tiver de ser presa, por seu nome, alcunha ou sinais característicos: de maneira semelhante ao que ocorre na denúncia (CPP, art. 41), não são necessários todos os dados referentes à qualificação da pessoa que tiver de ser presa (RG, filiação, alcunha, sexo, cor da pele, data de nascimento, naturalidade, endereço residencial). No entanto, diante dos freqüentes casos de homônimos, deve-se buscar individualizá-la da melhor maneira possível, a fim de se evitar abusos e/ou erros; c) mencionará a infração penal que motivar a prisão: impõe-se, aqui, uma interpretação extensiva, eis que a lei disse menos do que queria dizer. Isso porque, em se tratando de prisão civil do devedor de alimentos, não há infração penal. Destarte, o dispositivo em questão deve ser lido: mencionará a infração penal ou o motivo legal que der ensejo à prisão; d) declarará o valor da fiança arbitrada, quando afiançável a infração: tendo em conta que a Constituição Federal preceitua que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança, do mandado deve constar o valor da fiança se a infração for afiançável, sob pena, inclusive, de restar caracterizado o delito de abuso de autoridade previsto no art. 4o, alínea “e”, da Lei n° 4.898/65. O conceito de infrações afiançáveis deve ser feito a partir de uma interpretação a contrario sensu dos arts. 323 e 324 do CPP; e) será dirigido a quem tiver qualidade para dar-lhe execução: quem tem atribuição para fazer cumprir o mandado de prisão é o oficial de justiça, a autoridade policial ou seus agentes. Particulares ou funcionários públicos de outras categorias não detêm autorização para efetuar o cumprimento de mandado de prisão, nem mesmo por delegação. Além dos requisitos constantes do art. 285, outros são apontados pela doutrina: a) colocação da comarca, vara e ofício de onde é originário; b) número do processo e/ou do inquérito onde foi proferida a decisão decretando a prisão; c) nome da vítima do crime; d) teor da decisão que deu origem à ordem de prisão (preventiva, temporária, etc.); e) data da decisão; f) data do trânsito em julgado (quando for o caso); g) pena aplicada (quando for o caso); h) prazo de validade do mandado, que eqüivale ao lapso prescricional.121 É indispensável que o mandado de prisão seja passado em duplicata, estando ambas as cópias assinadas pela autoridade judiciária. O dispositivo em questão atende ao preceito do art.

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NUCCl. Op. cit. p. 546.

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5°, inciso LXIV, da Constituição Federal, segundo o qual o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial, o qual, obviamente, também abrange a autoridade judiciária responsável pela privação da liberdade de locomoção do preso. Não menos importante é a especificação do dia, hora e lugar em que a diligência foi cumprida, sobretudo para fins de contagem do tempo de prisão. Afinal, por força da detração, computa-se, na pena privativa de liberdade, o tempo de prisão provisória no Brasil ou no estrangeiro (CP, art. 42). Da entrega do mandado de prisão deve o capturado passar recibo no outro exemplar, re­ tomando aos autos em seguida. Se acaso o preso se recuse a passar recibo, duas testemunhas deverão assinar o outro mandado. São as denominadas testemunhas instmmentárias ou fedatárias. De acordo com o disposto no art. 287, caput, do CPP, cuja redação não foi modificada pela Lei n° 12.403/11, em se tratando de infração inafiançável, se o executor não estiver, no momento da captura, com o mandado de prisão, poderá dar voz de prisão ao capturando, devendo, neste caso, apresentar o preso imediatamente à autoridade judiciária responsável pela expedição do mandado, ou também ao juiz corregedor da polícia judiciária ou plantonista, a fim de verificar a legalidade da prisão.122 Com raciocínio semelhante, antes do advento da Lei n° 12.403/11, o art. 299 do CPP tam­ bém dizia que, na hipótese de infração inafiançável, a captura podia ser requistada, à vista de mandado judicial, por via telefônica, tomadas pela autoridade, a quem se fizesse a requisição, as precauções necessárias para averiguar a autenticidade desta. Perceba-se que ambos os dis­ positivos legais autorizavam a efetivação da prisão sem a exibição do mandado de prisão {sine mandado ad capiendum) apenas em relação às infrações inafiançáveis. Ocorre que a Lei n° 12.403/11 deu nova redação ao art. 299 do CPP, que passou a dispor: “A captura poderá ser requisitada, à vista de mandado judicial, por qualquer meio de comuni­ cação, tomadas pela autoridade, a quem se fizer a requisição, as precauções necessárias para averiguar a autenticidade desta”. Perceba-se que, ao contrário da antiga redação, o novo art. 299 do CPP não restringiu sua aplicação às infrações inafiançáveis, daí por que também pode ser aplicado aos crimes afiançáveis. Diante dessa nova redação do art. 299 do CPP, autorizando a captura sem a exibição imediata do mandado de prisão, independentemente da natureza da infração penal (afiançável ou inafiançável), forçoso é concluir que o art. 287 do CPP foi objeto de revogação parcial tácita, devendo doravante ser lido nos seguintes termos: “A falta de exibi­ ção do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado.” Evidentemente, na hipótese de infração afiançável, uma vez efetuada a captura e recolhido o valor da fiança, deverá o agente ser colocado em liberdade provisória. Tais dispositivos legais são plenamente compatíveis com a Constituição Federal, pois não se referem à efetivação de prisão sem mandado judicial, mas sim à prisão sem a imediata exibição do mandado existente. Ou seja, houve a expedição prévia de um mandado judicial, mas ele não está fisicamente disponível, pois o executor não se encontra com a cópia dele. Outra hipótese de prisão que pode ser realizada sem a exibição imediata do mandado de prisão {s in e m a n d a d o a d c a p ie n d u m ) é aquela prevista no art. 684, c a p u t, do Código de Processo 122

Parte minoritária da doutrina entende que o art. 287 do CPP não foi recepcionado pela Constituição Federal. Isso porque, de acordo com o art. 59, LXI, da CF, à exceção das hipóteses ali mencionadas, ninguém será preso senão mediante ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Nessa linha, segundo Pacelli (op. cit. p. 436), para quem a exibição do mandado é requisito indispensável para a efetivação da prisão, a desnecessidade de exibição do mandado em infrações inafiançáveis poderia dar ensejo a abusos e atuações contrárias ao direito por parte das autoridades policiais.

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Penal, segundo o qual a recaptura do réu evadido não depende de prévia ordem judicial e poderá ser efetuada por qualquer pessoa. Também não há necessidade de ordem judicial, nem tampouco de mandado de prisão nas seguintes hipóteses: a) prisão em flagrante; b) transgressões militares e crimes propriamente militares (art. 5o, LXI, CR); c) durante o Estado de Defesa (art. 136, § 3o, CR); d) durante o Estado de Sítio (art. 139, CR). À exceção dessas hipóteses, em que sequer é necessária prévia autorização judicial, não se admite, em hipótese alguma, inclusive sob pena de restar caracterizado abuso de autoridade (Lei n° 4.898/65, art. 4o, “a”), a efetivação de prisão sem mandado, cuja expedição seja levada a efeito pelo juiz tão somente após a captura. Enquanto o art. 287 dispõe sobre a possibilidade de se efetuar a captura sem a imediata exibição do mandado, o art. 288 estabelece a obrigatoriedade de exibição do mandado ao diretor ou carcereiro, certificando-se este, assim, que não está recolhendo ao cárcere pessoa que não tenha contra si ordem judicial de prisão. Por fim, convém destacar que o mandado de prisão autoriza apenas a efetivação da captura do agente. Logo, se o capturando se esconder em sua residência, sua captura não mais poderá ser efetuada sem mandado judicial de busca específico, que deverá trazer expressa autorização para a entrada no domicílio. Nesse sentido, o art. 243, § Io, do CPP, dispõe que, havendo ordem de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca e apreensão. 9.1. Cumprimento do mandado de prisão Se o capturando estiver no território nacional, porém em local diverso da jurisdição da autoridade judicial que expediu o mandado, poderá ser deprecada a sua prisão. Da precatória deve constar o inteiro teor do mandado, nos termos do parágrafo único do art. 285 do CPP. No entanto, nada impede que o juízo deprecante também envie duas vias originais do mandado de prisão, a fim de que uma delas seja entregue ao preso, nos termos do art. 286 do CPP. Em ambas as hipóteses, essa precatória deve observar o disposto no art. 354 do CPP, no que for aplicável.123 Diante da possibilidade de que o trâmite burocrático da expedição da precatória a que se refere o caput do art. 289 possibilite a fuga do capturando, o § Io do art. 289 do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, passa a dispor que, havendo urgência, poderá o juiz requisitar a prisão por qualquer meio de comunicação, do qual deverá constar o motivo da prisão, bem como o valor da fiança se arbitrada. Nesse ponto, é importante perceber a mudança produzida pela Lei n° 12.403/11. Antes das alterações do CPP, o parágrafo único do art. 289 dizia que, havendo urgência, o juiz poderia requisitar a prisão por telegrama, do qual deveria constar o motivo da prisão, bem como, se afiançável a infração, o valor da fiança, sendo que, no original levado à agência telegráfica, deveria ser autenticada a firma do juiz, o que se mencionaria no telegrama. Em hipótese de in­ terpretação progressiva, a jurisprudência já vinha admitindo também a utilização do fax, devendo a autoridade receptora da ordem certificar sua origem.124

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Ao juízo deprecado compete unicamente cumprir a determinação emanada pelo deprecante, não podendo, por exemplo, declarar extinta a punibilidade, se identificá-la. Tal decisão é da competência do juiz condutor do processo. Na mesma linha, se a precatória for expedida por juiz federal para cumprimento em comarca onde exerça jurisdição unicamente juiz estadual, este não poderá recusar-se a cumpri-la. A recusa da diligência só pode ser fundamentada na ausência dos requisitos legais da carta precatória ou dúvida sobre sua autenticidade. No sentido de que o juízo deprecado não é o condutor do processo principal, mas o executor dos atos deprecados, incumbindo-lhe, se for o caso, apenas a recusa da precatória, se configurada alguma das hipóteses previstas no art. 209 do CPC (art. 267 do novo CPC): STJ, 3a Seção, CC 81.892/DF, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 12/12/2007, DJ 01/02/2008.

124 STJ, 5§ Turma, HC 53.666/PR, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 05/11/2007 p. 298.

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Ainda em relação à possibilidade de alguém, estando fora do distrito da culpa, ser preso e mantido na prisão em face de informações constantes de sistema virtual de dados, sem que tivesse havido prévia expedição de carta precatória (CPP, art. 289), o Supremo Tribunal Federal também já vinha entendendo, mesmo antes da inserção do art. 289-A pela Lei n° 12.403/11, que a não expedição de precatória acarreta mera irregularidade administrativa, perfeitamente sanável.125 Com a finalidade de desburocratizar a comunicação por precatória ou a requisição de captura, a nova redação do § Io do art. 289 do CPP permite que, havendo urgência, possa o juiz requisitar a prisão por qualquer meio de comunicação, do qual deverá constar o motivo da prisão, bem como o valor da fiança se arbitrada. Em complemento, o § 2o do art. 289 do CPP determina que a autoridade a quem se fizer a requisição tomará as precauções necessárias para averiguar a autenticidade da comunicação. Uma vez efetuada a prisão em outra comarca, o juiz processante deverá providenciar a remoção do preso no prazo máximo de 30 (trinta) dias, contados da efetivação da medida (CPP, art. 289, § 3o). Destarte, no caso de prisão efetivada por meio de carta precatória, o responsável por providenciar a remoção do preso é o juiz processante, ou seja, aquele que solicitou a prisão, tendo, para tanto, o prazo máximo de 30 (trinta) dias, contados da data da prisão. Nada disse a lei quanto às conseqüências decorrentes da inobservância desse prazo. Aliás, durante a tramitação legislativa do projeto de lei que deu origem à Lei n° 12.403/11, chegou a ser incluída na parte final do dispositivo a seguinte conseqüência em caso de descumprimento do prazo: “sob pena de a autoridade requisitada ou deprecada colocá-lo em liberdade independen­ temente de qualquer formalidade”. Ocorre que, durante a tramitação do projeto, essa parte final acabou sendo suprimida. Logo, pensamos que a inobservância do prazo de 30 (trinta) dias para as providências pertinentes à remoção do preso não autoriza, de per si, o relaxamento da prisão. O art. 299 do CPP caminha no mesmo sentido, permitindo que, à vista de mandado judicial, a captura seja requisitada por qualquer meio de comunicação, tomadas pela autoridade, a quem se fizer a requisição, as precauções necessárias para averiguar a autenticidade desta. Perceba-se que, de maneira distinta à antiga redação, o novo art. 299 do CPP não estabelece qualquer distinção quanto à natureza da infração penal, se afiançável ou se inafiançável. Como se percebe, na esteira da Lei n° 11.900/09, que passou a dispor sobre a videconferência no ordenamento pátrio, as mudanças visam possibilitar a utilização dos meios eletrônicos de comunicação no processo penal, imprimindo maior celeridade e dinamismo à troca de informa­ ções, notadamente no tocante ao cumprimento de mandados de prisão. Na mesma linha de raciocínio, o art. 289-A foi inserido no bojo do Código de Processo Penal com a finalidade de otimizar o sistema de comunicação e de troca de informações entre autoridades policiais e judiciais. Isso porque, atualmente, a existência de mandado de prisão contra determinada pessoa costuma constar apenas dos registros da própria unidade federativa que o expediu, o que dificulta sobremaneira o seu cumprimento quando o agente foge para outro Estado. Segundo o novel art. 289-A, o juiz competente providenciará o imediato registro do mandado de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional da Justiça para essa finalidade. Qualquer agente policial poderá efetuar a prisão determinada no mandado de prisão registrado no Conselho Nacional de Justiça, ainda que fora da competência territorial do juiz que o expediu. Qualquer agente policial poderá efetuar a prisão decretada, ainda que sem registro no Conselho Nacional de Justiça, adotando as precauções necessárias para

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STF, 2§ Turma, HC 85.712/GO, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 03/05/2005, DJ 16/12/2005.

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averiguar a autenticidade do mandado e comunicando ao juiz que a decretou, devendo este providenciar, em seguida, o registro do mandado na forma do caput deste artigo. A prisão será imediatamente comunicada ao juiz do local de cumprimento da medida o qual providenciará a certidão extraída do registro do Conselho Nacional de Justiça e informará ao juízo que a decretou. Caberá ao Conselho Nacional de Justiça regulamentar o registro do mandado de prisão a que se refere esse dispositivo. O objetivo do art. 289-A é unificar, em um só sistema, todos os mandados de prisão expe­ didos no país, possibilitando o seu cumprimento por qualquer agente público em qualquer loca­ lidade do território nacional, evitando, assim, que os limites territoriais das cidades e dos Estados sejam utilizados por pessoas foragidas como ferramentas para a fuga e para a clandestinidade. Em outras palavras, o mandado de prisão registrado no sistema passará a ter executoriedade em todo o território nacional. A nosso ver, o art. 289-A deve ser interpretado de maneira extensiva, abrangendo não só o registro imediato dos mandados de prisão, como também de qualquer outra medida cautelar que tenha sido imposta. Com efeito, imagine-se hipótese em que o magistrado tenha determinado o cumprimento da medida cautelar de proibição de se ausentar da Comarca (CPP, art. 319, IV). Ora, seria válido que essa decisão também fosse incluída no cadastro do Conselho Nacional de Justiça, possibilitando que autoridades policiais ou judiciais de outras comarcas ou de outras unidades federativas tivessem conhecimento das restrições impostas ao agente, auxiliando seu cumprimento e fiscalização. Ante o disposto no art. 299 e, considerando-se a nova redação do art. 289-A, ambos do CPP, forçoso é concluir que houve a revogação tácita do quanto disposto no art. 2o, § 4o, da Lei n° 7.960/89 (Lei da prisão temporária). Ao se referir ao registro do mandado de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, o art. 289-A não fez qualquer restrição à prisão preventiva, daí por que referido mandado também pode ser pertinente à prisão temporária. Destarte, o cumprimento da prisão temporária pode ser levado a efeito mesmo sem a obrigatória exibição do mandado de prisão, desde que haja registro de prévio decreto prisional no Conselho Nacional de Justiça, ou que a autoridade policial adote as precauções necessárias para averiguar a autenticidade da ordem judicial. Esse Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP) criado pela Lei n° 12.403/11 en­ contra-se disciplinado pela Resolução do Conselho Nacional de Justiça n° 137, de 13 de julho de 2011. O BNMP encontra-se disponível na rede mundial de computadores, com acesso às informações a qualquer pessoa, independentemente de prévio cadastramento ou de demonstração de interesse. Nos termos do art. 3o, § 2o, da referida Resolução, são espécies de prisão sujeitas a registro no BNMP: I - temporária; II - preventiva; III - preventiva determinada ou mantida em decisão condenatória recorrível; IV - definitiva; V - para fins de deportação; VI - para fins de extradição; e VII - para fins de expulsão. Com o mandado de prisão em mãos, a autoridade policial pode transmitir a ordem de captura por telefone, devendo o recebedor da ligação adotar as medidas de cautela necessárias para se certificar que a requisição é autêntica (art. 265, § Io, do novo CPC).126 De modo a dar cumprimento ao mandado de prisão expedido pela autoridade judiciária, o art. 297 do CPP autoriza a autoridade policial a extrair cópias do mandado original, em todos os seus termos, adotando-se a cautela de autenticá-los. Há de se lembrar que cada executor

126. STJ, 5- Turma, RHC 15.394/PI, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 01/02/2005 p. 580.

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deverá trazer consigo ao menos duas cópias, fornecendo uma ao preso e mantendo a outra em seu poder, com recibo de entrega, consoante dispõe o art. 286 do CPP. Considera-se efetuada a prisão por mandado quando o executor, identificando-se perante o capturando, apresenta-lhe o mandado, e o intima a acompanhá-lo (CPP, art. 291, caput). Perceba-se que o Código de Processo Penal não prevê uma “voz de prisão” a ser dada ao capturando. Diverge, nesse ponto, do Código de Processo Penal Militar (art. 230), segundo o qual a captura se fará: a) em caso de flagrante, pela simples voz de prisão; b) em caso de mandado, pela entrega ao capturando de uma das vias e conseqüente voz de prisão dada pelo executor que se identificará. O art. 291 do CPP atende, portanto, à garantia constitucional do art. 5o, inciso LXIV, segundo o qual o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Visa o dispositivo do art. 291 do CPP a determinar com precisão o momento em que o capturando por mandado deve ser tido como preso. A importância do preceito diz respeito à contagem de prazo, sejam eles processuais (oferecimento da denúncia, excesso de prazo na formação da culpa, etc.), sejam eles penais (v.g., detração). A partir desse momento em que o indivíduo está preso, afigura-se possível a prática dos crimes de resistência (CP, art. 329), fuga de pessoa preso ou submetida a medida de segurança (CP, art. 351), evasão mediante violência contra pessoa (CP, art. 352), e arrebatamento de preso (CP, art. 353). Além disso, se o preso for vítima de algum crime, incide a circunstância agravante prevista no art. 61, inciso II, “i”, do CP, qual seja, quando o ofendido estava sob a imediata proteção da autoridade, desde que não constitua ou qualifique a infração. Em uma situação de flagrância, ou também nas hipóteses em que se dá cumprimento a um mandado de prisão, se o capturando se puser em fuga, e ultrapassar os limites territoriais de uma comarca, ou até mesmo de um Estado da Federação, nada impede que a autoridade policial dê prosseguimento à perseguição, efetuando a prisão no local em que alcançar o preso, indepen­ dentemente da expedição de precatória, telegrama ou telefonema da autoridade competente.127 Essa possibilidade do executor ultrapassar os limites territoriais da comarca do juízo res­ ponsável pela decretação da prisão está adstrita às hipóteses de perseguição: a) tendo-o avistado, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista; b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço (CPP, art. 290, § Io, “a” e “b”). Nesse caso, o executor deve apresentar o preso à autoridade do local em que se der a cap­ tura. Se houver mandado de prisão, a apresentação à autoridade policial do local é tida como válida, comunicando-se a autoridade judiciária local em seguida. Caso não se tenha o mandado em mãos (art. 299), o preso deve ser apresentado à autoridade judiciária local, a fim de que esta certifique a origem da ordem, conseguindo a cópia do mandado e/ou telegrama com o motivo da prisão de modo a verificar a legalidade da prisão. Em se tratando de situação de flagrância, o auto de flagrante delito será lavrado pela au­ toridade policial do local em que o ocorreu a captura,128 expedindo-se a comunicação da prisão 127

Na hipótese de perseguição que ultrapasse as fronteiras do país, prevalece o entendimento de que a autoridade policial brasileira só poderá ingressar no território estrangeiro se houver autorização por meio de Tratado ou autorização específica. 128 Na dicção do STJ, "não há falar em ilegalidade da prisão em flagrante, decorrente do fato de o respectivo auto ter sido lavrado por autoridade diversa daquela que efetivou a custódia, porquanto a polícia não exerce ato de

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ao juiz local, a fim de que verifique sua legalidade. Nessa hipótese, posteriormente, os autos serão encaminhados ao juízo competente. Se houver dúvida quanto à legitimidade do executor da prisão ou da legalidade do mandado apresentado, o preso poderá ser posto em custódia até que o problema seja resolvido (CPP, art. 289-A, § 5o). Essa custódia a que se refere o § 2o do art. 290 do CPP deve ser compreendida como a manutenção de alguém detido, em local seguro, fora da esfera do executor da captura, até que essa dúvida seja dissipada. Como visto anteriormente, é possível que, no momento da prisão em flagrante ou de prisão preventiva e/ou temporária, não só o capturando, como também terceiros ofereçam resistência, opondo-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a fúncionárío competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio (CP, art. 329). Nesse caso, o próprio Código de Processo Penal autoriza que o executor e as pessoas que o auxiliam usem dos meios necessários para se defender ou vencer a resistência, lavrando-se, em seguida, auto de resistência, subscrito também por duas testemunhas. Essa resistência à prisão pode se dar de forma ativa ou passiva. Por resistência ativa enten­ de-se aquela praticada mediante violência (vis corporalis) ou ameaça (vis compulsiva). Nesse caso, o executor é autorizado a usar a força necessária para vencer a resistência, bem como se defender, usando moderadamente dos meios necessários, sob o amparo da legítima defesa (CPP, art. 284, caput). A depender do caso concreto, o acusado e terceiros que oferecem resistência ativa, mediante violência ou ameaça, poderão ser presos em flagrante pelo crime de resistência (CP, art. 329). Vale lembrar que só há falar no crime de resistência se a violência ou ameaça é dirigida ao funcionário ou a quem lhe esteja prestando auxílio. Assim, se o flagrante for efetua­ do somente pelo particular (flagrante facultativo, art. 301 do CPP), não há falar em crime de resistência, em virtude de manifesta atipicidade, subsistindo, todavia, a possibilidade de eventual crime de lesão corporal e/ou ameaça. Por outro lado, a resistência também pode se dar de forma passiva, quando o capturando empreende fuga, agarra-se a um obstáculo ou queda-se inerte no chão, para não ser preso ou removido de determinado local, autorizando-se o executor a usar dos meios necessários para vencê-la, amparado que estará pelo estrito cumprimento do dever legal. Seja na hipótese de resistência ativa, seja na hipótese de resistência passiva, o executor deve agir de maneira proporcional e moderada, sob pena de responder pelo excesso doloso ou culposo (CP, art. 23, parágrafo único). Na hipótese de prisão por mandado, se o executor constatar que o capturando entrou ou se encontra em alguma casa, deverá intimar o morador a entregá-lo, mediante apresentação da ordem de prisão. Havendo concordância por parte do morador, franqueando o acesso do executor ao domicílio, a prisão poderá ser efetuada durante o dia ou até mesmo durante a noite. Não havendo concordância por parte do morador, diz o art. 293 do Código de Processo Penal que o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, podendo inclusive arrombar as portas. A nosso ver, referido dispositivo merece interpretação conforme o art. 5o, inciso XI, da Constituição Federal, segundo o qual “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. jurisdição, não restando caracterizada a incompetência "racione loci". Min. Fernando Gonçalves, Di 24/05/1999 p. 201).

(STJ, 6ã Turma, RHC 8.342/MG, Rei.

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À vista do preceito em questão, a violação do domicílio durante o dia sem consentimento do morador somente é possível nas seguintes hipóteses: a) flagrante delito; b) desastre; c) para prestar socorro; d) por determinação judicial. Mas não é toda e qualquer autorização judicial que autoriza a violação do domicílio, e sim uma ordem certa e determinada quanto à “casa” a ser invadida. Veja-se, nesse sentido, que o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 243, inciso I, ao se referir aos requisitos do mandado de busca e apreensão, estipula que este deverá indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador. Portanto, mesmo com um mandado de prisão em mãos, o executor não pode invadir casa alheia, devendo guardar todas as saídas de modo a impedir eventual fuga, enquanto providencia a obtenção de mandado específico para aquele domicílio.129 Do contrário, conferir-se-ia à autoridade executora ampla liberdade de escolha e de opções acerca dos locais a serem invadidos e vasculhados, sob a justificativa de que o capturando es­ taria naquele domicílio, esvaziando-se, por demais, a proteção constitucional à inviolabilidade do domicílio.130 Aliás, como dito acima, essa é a inteligência a ser emprestada ao art. 243, § Io, do CPP, que estabelece que, sendo deferida a diligência investigatória, bem assim a captura de alguém, deve constar do mandado de busca a ordem de prisão (“Se houver ordem de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca”). Exatamente por esse motivo, em alguns casos, o juiz, por força de decisão motivada, manda expedir mandado de busca, apreensão e prisão. No que tange ao morador que se recusa a entregar o capturando durante o dia (tendo a autoridade policial em mãos mandado de busca, apreensão e prisão), a ele deve se dar voz de prisão em flagrante pelo crime de favorecimento pessoal (CP, art. 348). Se acaso essa recusa se dê durante a noite, não há falar em favorecimento pessoal, pois o morador se encontra no exercício regular do direito previsto no art. 5o, inciso XI, da Constituição Federal (CP, art. 23, inciso III, 2a parte). As regras quanto à prisão em domicílio previstas no art. 293 do Código de Processo Penal também se aplicam à prisão em flagrante. Nesse caso, como dito anteriormente, a própria Cons­ tituição Federal autoriza a violação do domicílio sem autorização judicial.

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Há quem entenda que o simples mandado de prisão é o quanto basta para que os executores possam adentrar o domicílio, pressupondo ele a autorização judicial para a entrada na casa durante o dia (Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado, cit, 4§ ed., Atlas, p. 342). Sem embargo, segundo Tourinho Filho, como o mandado de prisão não contém essa autorização, que é específica, deve ela ser expedida também. Do contrário a entrada é ilegal, configura o crime de violação de domicílio e ainda sujeita o executor às penas do art. 42 da Lei n9 4.898/65. (Código de Processo Penal Comentado. Vol. 1. 99 ed. rev. aum. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2005. p. 697).

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Perfilha desse entendimento Walter Nunes da Silva Júnior, segundo o qual "não se confunde com autorização judicial, para fins de flexibilização da inviolabilidade do domicílio, a decretação da prisão processual, com a conseqüente expedição do mandado para o seu cumprimento. Do mesmo modo, a expedição de mandado de busca e apreensão não dá poder para a prisão processual. Uma coisa é o juiz determinar a prisão de alguém, outra, totalmente diferente, é autorizar o policial a ter acesso ao interior de uma casa. Quando o magistrado decreta apenas a prisão e manda expedir o respectivo mandado, a ordem é para que, sendo ele encontrado, proceda-se ao seu recolhimento. Caso se queira permitir que a autoridade policial entre na casa para lá efetuar a prisão, o juiz tem, além de fundamentar a decretação da prisão, de justificar a flexibilização do direito funda­ mental à inviolabilidade do domicílio, naturalmente com a exposição dos motivos que o faz crer que se encontra refugiada no local a pessoa contra quem expedido o mandado. Como dois são os direitos fundamentais - direito de liberdade física e à inviolabilidade do domicílio -, a flexibilização, por ordem judicial, tem de ser motivada em relação aos dois aspectos. Por isso mesmo, a autoridade policial, munida apenas do mandado de prisão, não tem autorização judicial para proceder à busca domiciliar. Se a pessoa procurada estiver escondida ou recolhida em uma determinada casa, para que seja efetuada, legalmente, a sua prisão no local, havendo recusa por parte do morador, é preciso que se obtenha a autorização judicial para a invasão" (op. cit. p. 661).

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9.2. Difusão vermelha (red notice)

Outro aspecto importante pertinente ao cumprimento do mandado de prisão diz respeito à possibilidade de prisão de pessoa que se encontra no estrangeiro, ou daqueles que se encontram no território nacional, sendo procurados no estrangeiro. Com o crescente caráter transnacional dos delitos, esse tema ganha cada vez mais impor­ tância. Daí por que a Interpol (Organização Internacional de Polícia Internacional), que é uma polícia internacional formada por várias polícias nacionais interligadas, formando uma rede de auxílio à persecução penal transnacional, criou um instrumento, denominado de difusão ver­ melha, que visa auxiliar as autoridades nacionais no cumprimento desses mandados de prisão. Na dicção da doutrina, as difusões vermelhas (red notices), verdadeiros mandados de cap­ turas internacionais, podem ser conceituadas como “registros utilizados pela Organização de Polícia Internacional (Interpol) para divulgar entre os Estados-membros a existência de mandados de prisão em aberto, expedidos por autoridades competentes nacionais ou por tribunais penais internacionais, no curso de procedimentos criminais”.131 9.2.1. D ifu sã o verm elha a ser execu ta d a n o exterio r

De acordo com a Instrução Normativa n° 01, de 10 de fevereiro de 2010, oriunda da Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça, os juizes criminais brasileiros, ao expedirem mandados de prisão, tendo ciência própria ou por suspeita, referência, indicação, ou declaração de qualquer interessado ou agente público, que a pessoa a ser presa está fora do país, vai sair dele ou pode se encontrar no exterior, devem remeter o instrumento ao Superintendente Regional da Polícia Federal (SR/DPF) do respectivo Estado, a fim de que se providencie sua inclusão no sistema informático da Interpol como uma red notice. Essa me­ dida deve ser adotada apenas nos casos de prisão preventiva ou prisão decorrente de sentença condenatória com trânsito em julgado. Com o mandado em mãos, a Interpol emitirá a notícia de sua existência para todos os 188 (cento e oitenta e oito) países membros da organização internacional, objetivando a localização e eventual captura da pessoa procurada. Caso ocorra o cumprimento da difusão no estrangeiro, caberá ao Brasil enviar a formalização do pedido de extradição do preso. 9.2.2. D ifu sã o verm elha a ser cum prida n o B ra sil

Se, no estrangeiro, a difusão vermelha é suficiente, de per si, para que seja efetivada a prisão da pessoa procurada, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal entende que é indispensável prévia ordem escrita da autoridade judiciária competente brasileira. Logo, estando a pessoa no território nacional, ainda que seu nome conste na Interpol como procurada em razão de difusão vermelha, deve haver prévio pedido de extradição tramitando no Supremo, ocasião em que o Ministro Relator poderá determinar a prisão preventiva para fins de extradição, nos termos do art. 102,1, “g”, da Constituição Federal. Nesse contexto, o Plenário do Supremo já teve a oportunidade de asseverar

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ARAS, Vladimir. A Difusão Vermelha no Brasil. Disponível em http://blogdovladimir.wordpress.com/2010/02/21/a-difusao-vermelha/. Acesso em 13 de maio 2011, apud MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 112. Além das difusões vermelhas, temos as yellow notices (para ajudar a localizar pessoas desaparecidas), blue notices (para coletar informações sobre a identidade de uma pessoa ou atividades em relação a um crime), black notices (para buscar informações sobre corpos não identificados), green notices (para proporcionar informações de natureza criminal sobre pessoas que cometeram delitos e estão propensos a repeti-los em outros países) e w hite notices (localização de bens culturais).

T ÍT U L O 6 • D A S M E D ID A S C A U T E L A R E S D E N A T U R E Z A P E S S O A L

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que, ausente pedido de extradição em tramitação perante o STF, caracteriza constrangimento ilegal à liberdade de locomoção o cumprimento de mandado de prisão expedido por justiça estrangeira contra pessoa residente no Brasil, para cuja execução foi solicitada a cooperação da Interpol, já que tal mandado, por si só, não pode lograr qualquer eficácia no território nacional.132 Esse entendimento acabou sendo consolidado pela Lei n° 12.878/13, que conferiu nova redação aos arts. 80, 81 e 82, do Estatuto do Estrangeiro. Consoante disposto na nova redação do art. 82, § 2o, da Lei n° 6.815/80, o pedido de prisão cautelar do estrangeiro para fins de ex­ tradição poderá ser apresentado ao Ministério da Justiça por meio da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), devidamente instruído com a documentação comprobatória da existência de ordem de prisão proferida por estrangeiro. Após exame da presença dos pressupos­ tos formais de admissibilidade, o Ministro da Justiça deverá representar ao Supremo Tribunal Federal no sentido da decretação da prisão cautelar (Lei n° 6.815/80, art. 82, caput, com redação dada pela Lei n° 12.878/13). Assim, caso um terrorista intemacionalmente procurado, com difusão vermelha já expe­ dida, seja encontrado no território nacional, sua prisão somente poderá ser efetivada se houver pedido oficial de extradição formulado pelo país interessado, o qual será submetido à apreciação do Supremo, para que, somente então, possa ser expedido o mandado de prisão. Enquanto este pedido oficial de extradição não chegar ao Supremo pela via diplomática e enquanto não for decretada a prisão pelo Relator, as autoridades policiais nada poderão fazer, a não ser monitorar a pessoa procurada. Para muitos, essa interpretação do Supremo é incompatível com o princípio geral da coo­ peração, que rege as relações internacionais (CF, art. 4o, IX). Por força do princípio do mútuo reconhecimento das decisões judiciais e objetivando imprimir maior eficácia ao princípio da justiça penal internacional, bastaria que o Supremo interpretasse a parte final do art. 5o, LXI, da Constituição Federal - ninguém será preso senão em flagrante delito ou porde ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente - no sentido de também abranger a autori­ dade judiciária estrangeira. De fato, do mesmo jeito que as autoridades judiciárias estrangeiras cumprem a difusão vermelha oriunda do Brasil, por confiarem que houve a expedição regular desta ordem, com observância da lei e da Constituição Federal, o Brasil também deve confiar na red notice proveniente do exterior. Outrossim, eventuais abusos e ou irregularidades poderão ser analisados pelo Supremo a posteriori, já que a prisão será comunicada imediatamente para fins de eventual homologação. Ademais, se houve a expedição da difusão vermelha por um Estado estrangeiro, é de se presumir que haverá interesse na extradição do agente.133 10. PRISÃO ESPECIAL E SEPARAÇÃO DE PRESOS PROVISÓRIOS Resultado do reconhecimento explícito da péssima situação carcerária vivenciada no Brasil,134 e da própria seletividade do sistema penal, o legislador brasileiro resolve conferir a certos indivíduos o direito à prisão especial, pelo menos até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. 132 STF, Pleno, HC 80.923/5C, Rei. Min. Néri da Silveira, j. 15/08/2011, DJ 21/06/2002 p. 97. Na mesma linha: STF, Pleno, HC 82.686/RS, Rei. Min. Sepulveda Pertence, j. 05/02/2002, DJ 28/03/2003 p. 64. 133

Nessa linha: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 115.

134 "A prisão não intimida nem regenera. Embrutece e perverte. Insensibiliza ou revolta. Descaracteriza e desambienta. Priva de funções. Inverte a natureza. Gera cínicos e hipócritas. A prisão, fábrica e escola de reincidência, habitualidade e profissionalidade, produz e reproduz criminosos". (LYRA, Roberto. Novo D ireito Penal. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1971, v. 3, p. 109).

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Cria-se, por meio da prisão especial, tratamento diferenciado entre um cidadão diplomado e outro analfabeto, violando-se o princípio da isonomia sem qualquer critério lógico e razoável a justificá-lo. Na verdade, se o próprio Estado reconhece que não consegue fornecer condições carcerárias dignas, deveria reservar a todo e qualquer preso provisório, primário e com bons antecedentes, recolhimento em separado daqueles que foram condenados, e, por conseguinte, já possuem mais tempo de vivência no cárcere. Uma ressalva importante deve ser feita em relação àqueles que, em virtude da função exercida antes de serem presos, possam ter sua integridade física e moral ameaçadas quando colocados em convivência com outros presos, tais como juizes, membros do Ministério Público, policiais, defensores, funcionários da Justiça, etc. A eles, sim, deve-se reservar o direito à prisão especial (vide art. 84, § 2o, da Lei de Execução Penal). Nesse caso, há uma razão razoável para o discrimine.135 Mantê-las presas em celas comuns eqüivaleria a instituir, do ponto de vista prático, verdadeira pena de morte. A prisão especial não pode ser considerada modalidade de prisão cautelar. Cuida-se, na verdade, de especial forma de cumprimento da prisão cautelar. Com efeito, segundo o disposto no art. 295 do CPP, só há falar em direito à prisão especial quando o agente estiver sujeito à prisão antes de condenação definitiva. Logo, com o trânsito em julgado, cessa o direito à prisão especial, sendo o condenado submetido ao regime ordinário de cumprimento da pena, ressalvada a hipótese do art. 84, § 2o, da LEP, referente ao preso que, ao tempo do fato, era funcionário da administração criminal, o qual deverá ficar em dependência separada dos demais presos. Não se deve confundir o direito à prisão especial com a separação dos presos provisórios dos que já estiverem definitivamente condenados, prevista no art. 300, caput, do CPP. Segundo o referido dispositivo, com redação dada pela Lei n° 12.403/11, as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da lei de exe­ cução penal. Esse dispositivo visa evitar a promiscuidade resultante da convivência entre presos provisórios e presos que já tenham contra si sentença condenatória com trânsito em julgado. No mesmo sentido é a redação do art. 84, caput, da Lei de Execução Penal, segundo o qual o preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado. Os presos cautelares, por sua vez, ficarão separados de acordo com os seguintes critérios (LEP, art. 84, § Io, com redação dada pela Lei n° 13.167/15): a) acusados pela prática de crimes hediondos ou equiparados; b) acusados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa; c) acusados pela prática de outros crimes ou contravenções diversos dos apontados nas duas alíneas anteriores. De seu turno, os presos condenados ficarão separados de acordo com os seguintes critérios (LEP, art. 84, § 3o, incluído pela Lei n° 13.167/15): a) condenados pela prática de crimes hediondos ou equiparados; b) reincidentes condenados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa; c) primários condenados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça; d) demais condenados pela prática de outros crimes ou contravenções em situação diversa das previstas nas 3 alíneas anteriores. Por fim, a Lei de Execução Penal também determina que o preso que tiver sua integridade física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio (art. 84, § 4o, incluído pela Lei n° 13.167/15). Pode ocorrer de o indivíduo estar preso cautelarmente em prisão especial por conta da prática de determinado crime, quando, então, sobrevêm condenação definitiva à pena privativa

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ã ed. 8ã tir. São Paulo: Malheiros, 2000 .

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de liberdade em razão da prática de outra infração penal. Nesse caso, prevalece o entendimento de que o preso que ostenta condenações criminais com trânsito em julgado deixa de ser tratado como preso provisório, mesmo que tenha contra si outros processos criminais em andamento, perdendo, assim, o direito à prisão especial.136 Tamanhos eram os benefícios aos presos especiais que a Lei n° 5.256, que entrou em vigor no dia 7 de abril de 1967, determinava em seu art. Io que, nas localidades em que não houvesse estabelecimento adequado ao recolhimento dos que tenham direito a prisão especial, o juiz, considerando a gravidade das circunstâncias do crime, ouvido o representante do Ministério Público, poderia autorizar a prisão do réu ou indiciado na própria residência, de onde o mesmo não poderia afastar-se sem prévio consentimento judicial. Somente a violação da obrigação de comparecer aos atos policiais ou judiciais para os quais fosse convocado é que poderia implicar na perda do benefício da prisão domiciliar, devendo o indivíduo ser recolhido a estabelecimento penal, onde permanecesse separado dos demais presos. No entanto, com a entrada em vigor da Lei n° 10.258/01, esse panorama foi alterado. Isso porque, de acordo com os §§ Io e 2o do art. 295 do CPP, acrescentados pela referida lei, a prisão especial consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum e, não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento. Na verdade, o que ocorre na prática é o recolhimento do preso especial a um determinado distrito policial, especificamente destinado a abrigar presos dessa espécie. A inexistência desse local distinto, todavia, não implica em imediata prisão domiciliar, como dispunha o art. Io da Lei n° 5.256/67. Nesse caso, o preso deverá ser colocado no mesmo estabelecimento prisional que os demais presos, porém em cela distinta.137 Destarte, com a entrada em vigor da Lei n° 10.258/01, e diante do disposto no art. 295, § 2o, do CPP, somente na hipótese de inexistência de cela distinta para preso especial é que poderá ocorrer a prisão domiciliar. Nessa última hipótese, por ato de ofício do juiz, a requerimento do MP ou da autoridade policial, o beneficiário da prisão domiciliar poderá ser submetido à vigilância policial, exercida sempre com discrição e sem constrangimento para o réu ou indiciado e sua família (Lei n° 5.256/67, art. 3o). Ademais, a violação de qualquer das condições impostas na conformidade da Lei n° 5.256/67 implicará na perda do benefício da prisão domiciliar, devendo o réu ou indiciado ser recolhido a estabelecimento penal, onde permanecerá separado dos demais presos. A prisão especial pode consistir em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana (CPP, art. 295, § 3o).138 Cumpre lembrar que esse res­ peito à dignidade do preso não é exclusividade do preso especial. Pelo menos de acordo com o que consta do texto da Lei de Execução Penal (art. 88, parágrafo único, da Lei n° 7.210/84), são requisitos básicos da unidade celular em penitenciária a salubridade do ambiente pela con­ corrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana, além de uma área mínima de 6 m2 (seis metros quadrados). Caso seja necessário o traslado do preso especial ao fórum ou à delegacia, dispõe o art. 295, § 4o, do CPP, que seu transporte não pode ser efetuado juntamente com presos que não detenham o mesmo privilégio. 136

Nesse sentido: STJ, 6^ Turma, HC 56.208/PE, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 14/04/2009, DJe 04/05/2009.

137 STJ, 5® Turma, HC 87.933/SP, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/05/2008, DJe 23/06/2008. 138 STJ, 5? Turma, HC 56.160/RN, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 07/05/2007 p. 339.

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Mesmo estando recolhido à prisão especial, o preso tem direito à progressão de regimes. É esse o teor da súmula 717 do Supremo Tribunal Federal: “Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial”. O art. 295 traz um rol exemplificativo dos cidadãos com direito à prisão especial. De acordo com o STF, o art. 295 do CPP comporta interpretação restritiva, não sendo possível estender o benefício excepcional da prisão especial por analogia. Por isso, em caso concreto envolvendo parlamentar estrangeiro, foi indeferida a concessão de prisão especial, já que o art. 295, III, do CPP, faz menção apenas aos membros do Parlamento Nacional739 O art. 295, V, do CPP também assegura prisão especial aos oficiais das Forças Armadas139140 e aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.141 A contrario sensu, aos militares que não forem oficiais das Forças Armadas aplica-se a regra do art. 296, devendo ser custodiados em estabelecimentos militares.142 Por sua vez, de acordo com o parágrafo único do art. 242 do Código de Processo Penal Militar, a prisão de praças especiais e a de graduados atenderá aos respectivos graus de hierarquia. Ademais, com as mudanças produzidas pela Lei n° 12.403/11, o parágrafo único do art. 300 do CPP passou a dispor que o militar preso emflagrante delito, após a lavratura dos procedimentos legais, será recolhido a quartel da instituição a que pertencer, onde ficará preso à disposição das autoridades competentes. Como adverte Og Fernandes, essa regra volta-se não apenas para a prisão em flagrante delito, mas para toda e qualquer medida cautelar privativa de liberdade, aplicando-se aos militares das Forças Armadas, dos Estados e do Distrito Federal.143 O art. 295, X, do CPP, também conferia aos jurados o direito à prisão especial. Apesar de a Lei n° 12.403/11 não ter revogado expressamente o art. 295, X, do CPP, quando se compara o texto antigo do art. 439 do CPP e sua nova redação, fica evidente que o legislador deixou de prever o direito à prisão especial para aquele que tenha exercido a função de jurado. Portanto, diante da nova redação emprestada ao caput do art. 439, queremos crer que o art. 295, X, do CPP foi tacitamente revogado pela Lei n° 12.403/11. Logicamente, para aqueles que já exerceram efetivamente a fiinção de jurado antes do advento da Lei n° 12.403/11, deverá ser respeitado o

139 STF, Pleno, PPE 315 AgR/AU, Rei. Min. Octavio Gallotti, DJ 06/04/01. 140

"Prisão especial ou domiciliar. Militar da reserva não remunerada (R-2). Sendo a prisão especial uma exceção, deve ser sua aplicação interpretada restritivamente, para que o direito não se transforme em privilégio. Assim, quando o inciso V do art. 296 do CPP se refere aos oficiais das forças armadas, está se referindo aos militares da carreira, não os que, atendendo à convocação obrigatória, se preparam, em curto espaço, nos NPOR, ou CPOR, que compõem a reserva não remunerada (R-2). Também não há amparo para a prisão domiciliar". (STJ - RHC 6.759/RS - 6a Turma - Rei. Min. Anselmo Santiago - DJ 10/11/1997 p. 57.844). Nossa observação: o art. 296 foi citado de maneira incorreta, referindo-se o relator, na verdade, ao art. 295 do CPP.

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Enquanto não excluído da força pública, tem o policial militar condenado, ainda que por crime comum, o direito a ser mantido em prisão especial: STJ, 5a Turma, HC 12.173/MG, Rei. Min. Edson Vidigal, DJ 12/06/2000 p. 122. Porém, a superveniência do trânsito em julgado da condenação faz cessar o direito de policial militar ser recolhido em prisão especial: STF, I a Turma, HC 102.020/PB, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23/11/2010, DJe 240 09/12/2010. 142 Como decidiu o STJ, "em hipóteses extremas e atento ao princípio constitucional que assegura a 'integridade física e moral dos presos' (Constituição Federal, artigo 59, inciso XLIX), razão não há para negar, ao praça reformado, a extensão do benefício da prisão especial disposto no artigo 296 da Lei Adjetiva Penal. Ordem concedida para, convolando em definitiva a medida liminar deferida, determinar que o paciente fique custodiado em estabele­ cimento militar até o trânsito em julgado de sua condenação". (STJ, 6a Turma, HC 17.718/GO, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 06/05/2002 p. 320). 143 M edidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - com entários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 76.

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direito à prisão especial, em fiel observância ao art. 5o, XXXVI, da Constituição Federal, que assegura que a lei não prejudicará o direito adquirido.144 Além das hipóteses listadas no art. 295 do CPP, leis especiais também contemplam outros cidadãos com o benefício da prisão especial: 1) Lei n° 2.860/56: dirigentes de entidades sindicais de todos os graus e representativas de empregados, empregadores, profissionais liberais, agentes e trabalhadores autônomos; 2) Lei n° 3.313/57: servidores do departamento federal de segurança pública com exercício de atividade estritamente policial; 3) Lei n° 3.988/61: pilotos de aeronaves mercantes nacionais;145 4) Lei n° 4.878/65: policiais civis da União e do Distrito Federal; 5) Lei n° 5.350/67: funcionário da polícia civil dos Estados e Territórios; 6) Lei n° 5.606/70: oficiais da marinha mercante; 7) Lei n° 7.102/83: vigilantes e transportadores de valores; 8) Lei n° 7.172/83: professores de Io e 2o graus; 9) Lei n° 8.069/90: conselheiro tutelar. Por fim, convém ressaltar que a Lei n° 9.807/99, que estabeleceu normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, prevê que serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual e efetiva. Dentre tais medidas, estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o colabo­ rador será custodiado em dependência separada dos demais presos (Lei n° 9.807/99, art. 15, § Io). 10.1. Prisão de índios O art. 231 da Constituição Federal assegura aos índios o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Por sua vez, o Estatuto do índio (Lei n° 6.001/73) assevera que as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado (art. 56, parágrafo único). Considerando que a prisão penal do índio deve ser cumprida em regime especial de semi­ liberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado, entende-se que a prisão cautelar também deve se adequar a esse regramento, sob pena de a medida cautelar aplicada durante o curso do processo se revelar mais gravosa que aquela que, possivelmente, será aplicada com o trânsito em julgado de sentença condenatória, violando o princípio da homogeneidade. Em caso concreto apreciado pelo STJ, admitiu-se o cumprimento da custódia cautelar em regime especial de semiliberdade no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios (FUNAI) mais próximo da habitação do condenado, nos termos do art. 56, parágrafo único, da Lei n° 6.001/73. Na dicção do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, “para preservar os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas, bem como conferir segurança àquele que vive à margem da sociedade, admite-se a possibilidade de a custódia do índio se dar em unidade da FUNAI, órgão estatal de proteção ao índio, desde que tal órgão administrativo possua condições de receber o réu”.146

144

Na mesma linha, segundo Badaró, com a nova redação do art. 439 do CPP, quem exerce a função de jurados deixa de ter o direito à prisão especial, em caso de crime comum, até o julgamento definitivo: Medidas cautelares no processo penai: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 300.

145

STJ, 5â Turma, RHC 1.916/SP, Rei. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ 08/06/92 p. 8.624.

146 STJ, 5§ Turma, HC 124.622/PE, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 08/09/2009, DJe 13/10/2009. No mesmo contexto: STJ, 5§ Turma, HC 55.792/BA, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 29/06/2006, DJ 21/08/2006 p. 267.

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Ainda em relação à prisão do índio, convém destacar que, na hipótese de não ser ele aculturado e não compreender o idioma nacional, é fundamental a presença de intérprete em seu interrogatório. Todavia, tratando-se de índio plenamente integrado, capaz de compreender completamente o português, toma-se dispensável a nomeação de intérprete. Como já se pro­ nunciou o Supremo, tratando-se de índio alfabetizado, eleitor e integrado à civilização, falando fluentemente a língua portuguesa, não se faz mister a presença de intérprete.147 Outrossim, na hipótese de índios não integrados, entende-se que, por força do art. 231 da Constituição Federal e do Estatuto do índio (Lei n° 6.001/73), que assegura aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados verdadeiro regime tutelar (art. 7o), deve haver a comunicação à FUNAI, órgão que exerce a tutela do índio em nome da União. De todo modo, é bom destacar que, na visão do Supremo, a tutela que a Constituição Federal cometeu à União Federal no art. 231 é de natureza civil, e não criminal, consoante arts. 7o e 8o da Lei n° 6.001/73 e art. 4o, parágrafo único, do Código Civil. Logo, não haveria necessidade de comunicação à FUNAI.148 11. S A L A D E E S T A D O -M A IO R

Os conceitos de sala de Estado-Maior e de prisão especial não se confundem e a prerro­ gativa de recolhimento naquela não se reduz à prisão especial de que trata o art. 295 do CPP. Se por Estado-Maior se entende o grupo de oficiais que assessoram o Comandante de uma organização militar (Exército, Marinha, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar), sala de Estado-Maior é o compartimento de qualquer unidade militar que, ainda que potencial­ mente, possa ser por eles utilizado para exercer suas funções. Destarte, enquanto uma “cela” tem como finalidade típica o aprisionamento de alguém e, em razão disso, possui grades, em regra, uma “sala” apenas ocasionalmente é destinada para esse fim, além de oferecer instalações e comodidades condignas, isto é, condições adequadas de higiene e segurança. Compreende-se a sala de Estado-Maior, portanto, como uma sala e não cela, instalada no Comando das Forças Armadas ou de outras instituições militares, configurando tipo heterodoxo de prisão, eis que destituída de grades ou de portas fechadas pelo lado de fora.149 O direito à sala de Estado-Maior somente se refere às hipóteses de prisão cautelar, asse­ melhando-se, assim, à prisão especial, cujo direito também cessa com o trânsito em julgado da sentença condenatória.150 No entanto, membros do Ministério Público da União (LC n° 75/93, art. 18, inciso II, “e”), integrantes da Polícia Civil do Distrito Federal e da União (Lei n° 4.878/65, art. 40, § 3o) e presos que, ao tempo do fato, eram funcionários da administração da Justiça Criminal (LEP, art. 84, § 2o, c/c o art. 106, § 3o) terão direito à cela separada dos demais presos, mesmo du­ rante a execução da prisão definitiva. Apesar de não existir dispositivo específico para o juiz, compreende-se que o magistrado estaria inserido no permissivo do art. 84, § 2o, da LEP, por tratar-se de funcionário da Justiça Criminal. Tais dispositivos visam preservar a integridade

147 STF,

Turma, HC 79.530/PA, Rei. Min. limar Galvão, j. 16/12/1999, DJ 25/02/2000, p. 53.

148 STF, I® Turma, HC 79.530/PA, Rei. Min. limar Galvão, j. 16/12/1999, DJ 25/02/2000, p. 53. 149 STF, Pleno, Rcl 4.535/ES, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15/06/2007 p. 21. Nos mesmos moldes: STF, 1®Turma, HC 91.089/SP, Rei. Min. Carlos Britto, DJ 19/10/2007 p. 46; STF, Pleno, Rcl 4.713/SC, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 041 07/03/08. 150 STF - HC-AgR 82.850/SP - 2^ Turma - Rei. Min. Gilmar Mendes - DJ 28/09/2007 p. 65).

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física e moral do preso (CF, art. 5o, inciso XLIX), evitando que esse condenado permaneça no meio de presos que possam nutrir sentimentos de vingança contra o funcionário ou ex-funcio­ nário da Justiça Criminal151. Fazem jus à sala de Estado-Maior: 1) Membros do Ministério Público (Lei n° 8.625/93, art. 40, V; Lei Complementar n° 75/93, art. 18, II, “e”); 2) Membros do Poder Judiciário (LC 35/79, art. 33); 3) Membros da Defensoria Pública (LC 80/94, arts. 44, inciso III, e 128, inciso III); 4) Advogados: de acordo com o Estatuto da OAB (Lei n° 8.906/94, art. T , V), ao advogado assiste o direito de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado-Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão domiciliar. Importante destacar que, no julgamento da ADIN 1.1278, o Supremo declarou a inconstitucionalidade da expressão ‘assim reconhecidas pela OAB Perceba-se que, por conta do disposto no art. 7o, V, in fine, da Lei n° 8.906/94, a ausência de sala de Estado-Maior implica no recolhimento domiciliar do advogado, benefício este que não foi estendido aos membros da magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública. A jurisprudência firmada pelo Plenário e pelas duas Turmas do Supremo é no sentido de se garantir a prisão cautelar aos profissionais da advocacia, devidamente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, em sala de Estado-Maior e, não sendo possível ou não existindo depen­ dências definidas como tal, conceder a eles o direito de prisão domiciliar.152. No entanto, o próprio Supremo Tribunal Federal tem considerado válida, a depender das circunstâncias do caso concreto, a manutenção de profissionais da advocacia em penitenciária que possua celas individuais, com condições regulares de higiene e instalações que impeçam o contato do paciente com presos comuns. Não seria razoável interpretar a prerrogativa conferida aos advogados como passível de inviabilizar a própria custódia.153 Na hipótese de o advogado já ter sido condenado em 2a instância, não há falar em direito à sala de estado-maior, haja vista a nova orientação jurisprudencial do STF acerca da constitucionalidade da execução provisória de acórdão condenatório proferido em segundo grau. Afinal, ainda que não transitada em julgado a condenação do advogado, tal prisão não mais se revestiria de natureza cautelar, mas sim das características de verdadeira prisão-pena.154 Quanto aos jornalistas, dispunha o art. 66 da Lei n° 5.250/67 (Lei de Imprensa) que o jornalista profissional não poderia ser detido nem recolhido preso antes de sentença transitada 151

Embora os funcionários da Administração Criminal possuam direito à prisão especial mesmo após o trânsito em julgado da condenação, a execução de suas penas dar-se-á em estabelecimento penal sujeito ao mesmo sistema disciplinar e carcerário de outros presos com o mesmo regime prisional, em dependência isolada dos demais reclusos, a teor do disposto no § 22 do art. 22 do art. 84 da Lei n9 7.210/84". (STJ - REsp 744.857/RN - 5§ Turma - Relatora Ministra Laurita Vaz - DJ 06/02/2006 p. 304).

152 STF, 15 Turma, HC 91.150/SP, Rei. Min. Menezes Direito, DJ 31/10/2007 p. 91. 153 STF, 2§ Turma, HC 93.391/RJ, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 15/04/2008, DJe 83 08/05/2008. Ainda no sentido da possibilidade de prisão de advogado em local diverso das dependências do comando das forças armadas ou auxiliares, desde que apresentadas condições condignas para o encarcerado: STF, 29 Turma, Rcl 23.567/SP, Rei. Min. Cármen Lúcia, j. 07/06/2016, DJe 124 15/06/2016. Logicamente, se o advogado estiver suspenso dos qua­ dros da OAB, não fará jus ao recolhimento provisório em sala de Estado-Maior. Nesse contexto: STJ, 69 Turma, HC 368.393/MG, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 20/09/2016, DJe 30/09/2016. 154 STF, 22 Turma, Rcl 25.111 AgR/PR, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 16/05/2017.

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MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Lima

em julgado; em qualquer caso, somente em sala decente, arejada e onde encontre todas as co­ modidades. A pena de prisão de jornalistas, por sua vez, devia ser cumprida em estabelecimento distinto dos que são destinados a réus de crime comum e sem sujeição a qualquer regime pe­ nitenciário ou carcerário. Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental n° 130, julgou procedente o pedido ali formulado para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.250/67. Destarte, jornalistas deixaram de ter direito à sala de Estado-Maior, subsistindo, todavia, o direito à prisão especial, mas desde que o jornalista seja diplomado por qualquer das faculdades superiores da República (CPP, art. 295, VII).155

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1. D A O B S E R V Â N C IA D O S D IR E IT O S F U N D A M E N T A IS N O E ST A D O D E D IR E IT O

A prisão cautelar e a imposição de outras medidas cautelares de natureza pessoal põem em evidência uma enorme tensão no processo penal, pois, ao mesmo tempo em que o Estado se vale de instrumento extremamente gravoso para assegurar a eficácia da persecução penal - privação absoluta ou relativa da liberdade de locomoção antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória -, deve também preservar o indispensável respeito a direitos e liberdades individuais que tão caro custaram para serem reconhecidos e que, em verdade, condicionam a legitimidade da atuação do próprio aparato estatal em um Estado Democrático de Direito. Na medida em que a liberdade de locomoção do cidadão funciona como um dos dogmas do Estado de Direito, é intuitivo que a própria Constituição Federal estabeleça certas regras fundamentais a fim de impedir prisões ilegais ou arbitrárias. Afinal de contas, qualquer restrição à liberdade de locomoção é medida de natureza excepcional, cuja adoção deve estar sempre condicionada a parâmetros de estrita legalidade. É a boa aplicação (ou não) desses direitos e garantias que permite, assim, avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir a civilização da barbárie. Afinal, a proteção do cidadão no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária.156 Por isso, antes de se adentrar na análise propriamente dita de cada uma das prisões caute­ lares e das demais medidas cautelares de natureza pessoal, impõe-se minuciosa análise desses direitos e garantias atinentes à liberdade de locomoção. 155 Vale lembrar que, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal, a exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo- 0 qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § I 9, da Constituição. (STF, Pleno, RE 511.961/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJe 213 12/11/2009). 156

Nessa linha: STF, 2^ Turma, HC 91.386/BA, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJe 088 15/05/2008.

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

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Esses direitos e garantias individuais estão previstos na Constituição Federal, nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário e na legislação processual penal. É indispensável que o agente seja cientificado quanto ao seu conteúdo quando da efeti­ vação de sua prisão. De fato, segundo o próprio inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal, o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. Na mesma esteira, o art. 2o, § 6o, da Lei da prisão temporária (Lei n° 7.960/89), cujo preceito, a nosso ver, é aplicável às demais modalidades de prisão cautelar, dispõe que, efetuada a prisão, a autoridade policial informará o preso dos direitos previstos no art. 5o da Constituição Federal. Com previsão semelhante, o art. 289-A, § 4o, inserido no CPP pela Lei n° 12.403/11, também prevê que o preso será informado de seus direitos, nos termos do inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, será comunicado à Defensoria Pública. 2. D O R E S P E IT O À IN T E G R ID A D E F ÍS IC A E M O R A L D O P R E S O

De acordo com o art. 5o, inciso XLIX, da Constituição Federal, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Ao proclamar o respeito à integridade física e moral dos presos, a Carta Magna garante ao preso a conservação de todos os direitos fundamentais reco­ nhecidos à pessoa livre, à exceção, é claro, daqueles que sejam incompatíveis com a condição peculiar de uma pessoa presa, tais como a liberdade de locomoção (CF, art. 5o, XV), o livre exercício de qualquer profissão (CF, art. 5o, XIII), a inviolabilidade domiciliar em relação à cela (CF, art. 5o, XI) e o exercício dos direitos políticos (CF, art. 15, III). Não obstante, mantém o preso os demais diretos e garantias fundamentais, tais como o respeito à integridade física e moral (CF, art. 5o, III, V, X e LXIV), à liberdade religiosa (CF, art. 5o, VI), ao direito de propriedade (CF, art. 5o, XXII), e, em especial, aos direitos à vida e à dignidade humana.157 Não por outro motivo, o Superior Tribunal de Justiça acabou por reconhecer que presos não podem ficar custodiados em contêiner, in verbis: “Se se usa contêiner como cela, trata-se de uso inadequado, ilegítimo e ilegal. (...) Caso, pois, de prisão inadequada e desonrante; desu­ mana também. Não se combate a violência do crime com a violência da prisão. Habeas corpus deferido, substituindo-se a prisão em contêiner por prisão domiciliar, com extensão a tantos quantos - homens e mulheres - estejam presos nas mesmas condições”.158 Dispondo a Constituição Federal que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (art. 5o, XLIX), e que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5o, III), não se pode afastar a responsabilização criminal das autoridades em caso de atentado à integridade corporal do preso, seja pelo delito de lesão corporal (CP, art. 129), abuso de autoridade (Lei n° 4.898/65, art. 3o, “i”), seja pelo próprio delito de tortura, tipificado no art. Io, § Io, da Lei n° 9.455/97. Aliás, em caso concreto relativo a cidadão preso que se debatia contra as grades, agredia outros detentos e proferia impropérios contra os policiais, que foi algemado e agredido por policial civil com vários golpes de cassetete, sofrendo lesões corporais graves, concluiu o STJ estar tipificado o delito de tortura previsto no art. Io, § Io, da Lei n° 9.455/97. Essa modalidade de tortura, ao contrário das demais, não exige especial fim de agir por parte do agente para configurar-se, bastando o dolo de praticar a conduta descrita no tipo objetivo.159 157

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil: interpretada e legislação constitucional. 5a ed. São Paulo: Atlas, 2005. 338. 158 STJ, 6a Turma, HC 142.513/ES, Rei. Min. Nilson Naves, j. 23/03/2010, DJe 10/05/2010. 159 STJ, 5a Turma, REsp 856.706/AC, Rei. Min. Felix Fischer, j. 06/05/2010, DJe 28/06/2010.

MANUAL DE PROCESSO PENAL - Renato Brasileiro de Uma

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A fim de se resguardar a integridade física e moral do preso, é indispensável que toda e qualquer pessoa presa seja submetida a exame de corpo de delito, seja no momento da captura, seja no momento da soltura. A sujeição do preso a exame de corpo de delito visa documentar seu estado de saúde durante o período em que ficou sob a custódia do Estado. De mais a mais, como é extremamente comum que presos se insurjam quanto ao comportamento da autoridade policial, alegando que sofreram agressões, tortura ou sevícias físicas durante o período de en­ carceramento, a realização do exame pericial resguarda a própria autoridade policial contra tais questionamentos. É nessa linha, aliás, o teor do art. 2o, §3°, da Lei da Prisão Temporária (Lei n. 7.960/89). Apesar de o dispositivo deixar transparecer que o juiz poderá determinar que o preso seja submetido a exame de corpo de delito, não se trata de preceito de aplicação facultativa. Na verdade, a autoridade policial, independentemente de prévia autorização judicial, deve submeter o preso a exame de corpo de delito. O dever de zelar pela integridade física e moral do preso foi reiterado pelo Plenário do STF no julgamento do RE 580.252, quando reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado do Mato Grosso do Sul, obrigando-o a indenizar um detento no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais), em virtude dos danos, inclusive morais, que comprovadamente lhe foram causados em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento. Para a Corte, o Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto ali permanecerem detidas, sendo seu dever mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir os danos que daí decorrerem. Concluiu-se que a criação de subterfúgios teóricos — como a separação dos Poderes, a reserva do possível e a natureza coletiva dos danos sofridos — para afastar a responsabilidade estatal pelas calamitosas condições da carceragem afronta não apenas o sentido do art. 37, § 6o, da CF, mas também determina o esvaziamento de inúmeras cláusulas constitucionais e convencionais. Também se revela-se indevida a invocação seletiva de razões de Estado para negar, especificamente a determinada categoria de sujeitos, o direito à integridade física e moral. Acolher essas razões é o mesmo que recusar aos detentos os mecanismos de reparação judicial dos danos sofridos, deixando-os descobertos de qualquer proteção estatal, em condição de vulnerabilidade juridicamente desastrosa. E dupla negativa: do direito e da jurisdição.160 2.1. Respeito

à

integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia

A questão relativa ao respeito à integridade moral do preso ganha importância em sede do estudo da prisão cautelar quando se verifica a crescente importância dada pela mídia às mazelas do processo penal. Com efeito, hoje em dia, não são raras as prisões cautelares acompanhadas ao vivo pela imprensa que, coincidentemente, está sempre presente no lugar e hora marcados para registrar tudo. Tais imagens, depois, são exploradas à exaustão nos telejomais pelos doutrinadores do direito penal e processual penal, o que é feito a título de informar a população. Sob os holofotes da mídia, é colocada em segundo plano a finalidade de toda e qualquer prisão cautelar, qual seja, a de assegurar a eficácia da persecução penal. Passam as prisões cautelares, outrossim, a desempenhar um efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantâ­ nea,161 exercendo uma função absolutamente incoerente e proscrita para um instrumento legiti­ mado por sua feição cautelar. 160 STF, Pleno, RE 580.252/MS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 16/02/2017. 161

LOPES JR. Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. D ireito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55.

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

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Não olvidamos a importância da liberdade de expressão, compreendida como a possibi­ lidade de difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões, mediante a palavra escrita ou qualquer outro meio de reprodução. No entanto, se aos órgãos de informação é assegurada a maior liberdade possível em sua atuação, também se lhes impõe o dever de não violar princípios basilares do processo penal, substituindo o devido processo legal previsto na Constituição por um julgamento sem processo, paralelo e informal, mediante os meios de comunicação. Oportuna, nesse sentido, a lição sempre abalizada do Min. Marco Aurélio: “(...) Ninguém desconhece a necessidade de adoção de rigor no campo da definição de responsabilidade, mor­ mente quando em jogo interesses públicos da maior envergadura. No levantamento de dados, no acompanhamento dos fatos, no esclarecimento da população, importante é o papel exercido pela imprensa. Todavia, há de se fazer presente advertência de Joaquim Falcão, veiculada sob o título A imprensa e a justiça, no Jornal O Globo, de 06.06.93: 'Ser o que não se é, é errado. Imprensa não é justiça. Esta relação é um remendo. Um desvio institucional. Jornal não é fórum. Repórter não é juiz. Nem editor é desembargador. E quando, por acaso, acreditam ser, transformam a dignidade da informação na arrogância da autoridade que não têm. Não raramente, hoje, alguns jornais, ao divulgarem a denúncia alheia, acusam sem apurar. Processam sem ouvir. Colocam o réu, sem defesa, na prisão da opinião pública. Enfim, condenam sem julgar'.”162 Especificamente em relação à divulgação da imagem de pessoas presas, o que se vê no dia a dia é uma crescente degradação da imagem e da honra produzida pelos meios de comunicação de massa com a conivência das autoridades estatais, por meio da reprodução da imagem do preso sem que haja prévia autorização do preso, nem tampouco um fim social na sua exibição. Utilizam sua imagem, pois, como produto da notícia, a fim de saciar a curiosidade do povo. Os programas sensacionalistas do rádio e da televisão saciam curiosidades perversas extraindo sua matéria-prima da miséria de cidadãos humildes que aparecem algemados e exibidos como verdadeiros troféus.163 Queremos crer, com base na lição de Ana Lúcia Menezes Vieira,164que a reprodução pública da imagem de pessoas envolvidas em crimes deve ser vedada se ela resulta de modo antissocial, aflitivo ou degradante, a não ser que haja autorização do titular da imagem, ou se necessária à administração da justiça - exemplo seria o retrato falado ou a própria fotografia, para fins investigativos. Ora, como dito acima, a condição de cidadão preso não lhe retira o direito ao respeito à integridade moral e à dignidade.165 Seus direitos personalíssimos devem ser tutelados de forma mais eficaz, não só por jornalistas, como também por autoridades policiais e membros do Mi­ nistério Público, que devem se abster de exibir presos à mídia. E isso não só para preservar os direitos personalíssimos do preso, como também para evitar que inocentes sejam identificados indevidamente como autores de delitos. Infelizmente, não são poucos os exemplos de pessoas que são exibidas à mídia como sus­ peitas da prática de delitos, mas cuja inocência é posteriormente reconhecida. O célebre episódio da “Escola Base” é um dos mais emblemáticos casos de assassinato moral de inocentes, na

162 STF - HC - Liminar - Rei. Marco Aurélio - j. 14.06.2000 - Revista Síntese 3/141. 163 Nesse sentido: BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.156. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 156. 164 VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 153. 165

SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ã ed. São Paulo: Editora Revista dos Tri­ bunais, 2004. p. 181.

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M A N U A L DE PROCESSO PENA L

- Renato Brasileiro de Lima

dicção de Vieira. Os responsáveis pela referida escola foram dados pela mídia como autores de abusos sexuais contra crianças de classe média. A escola foi alvo de depredação, seus proprie­ tários tiveram que abandonar os empregos, e também não podiam sair às ruas, porque corriam o risco de sofrer agressões em público, na medida em que a imprensa divulgava suas fotos. O inquérito policial, no entanto, acabou sendo arquivado por falta de elementos de informação que evidenciassem a prática dos crimes sexuais. Outro caso recente é o denominado crime do Bar Bodega: em uma choperia em Moema, bairro nobre na cidade de São Paulo, dois jovens da classe média paulistana foram assassinados no dia 10 de agosto de 1996. Pressionada pela comoção social que o delito gerou, a polícia apresentou cinco jovens negros e pobres, moradores da periferia, como os responsáveis pelos homicídios. Como anota Eduardo Araújo Silva, “expostos à imprensa como animais bravios, algemados e com placas dependuradas em seus corpos, indicando números, foram fotografados, filmados e entrevistados por dezenas de repórteres de rádio, tevês, jornais e revistas”.166 Pouco tempo depois, porém, foram postos em liberdade, pois o Ministério Público não encontrou elementos de informações suficientes para oferecer denúncia. Na verdade, foram identificados indicativos de que teriam confessado a prática do delito mediante tortura. Além desses dois episódios, comumente nos referimos em sala de aula a um caso ocorri­ do em novembro de 2006, no bairro de Perdizes, localizado na cidade de São Paulo, relativo a um casal de idosos que foi encontrado morto a facadas dentro de sua residência. A Polícia apressou-se em apontar o filho do casal como suspeito de ter praticado o duplo homicídio, já que, inicialmente, não foram encontrados sinais de arrombamento nem de sangue na residên­ cia. Como conseqüência do açodamento da Polícia, e da imediata divulgação feita pela mídia, que induziram uma pré-convicção de culpa do filho do casal, a casa em que a família residia foi pichada com a palavra assassino, em referência ao filho do casal, que também passou a ser hostilizado pelos moradores do bairro. Posteriormente, no entanto, a mesma Polícia encontrou manchas de sangue na casa ao lado, além de pegadas na parte de dentro da residência onde ocorreu o crime, confirmando uma rota de fuga usada pelo verdadeiro autor do delito. Dois dias depois, o criminoso apresentou-se à Polícia, sendo com ele apreendida a faca utilizada no crime. Difícil expressar o prejuízo causado ao filho do casal: além de perder seus pais, em um crime bárbaro e cruel, foi apontado pelas autoridades policiais como suposto autor do delito, sendo, então, submetido ao tradicional linchamento midiático, e transformado, aos olhos da população, em culpado. Por mais que a mídia se apressasse depois em desfazer o equívoco, já era tarde demais: a violência já estava consumada. Apesar de a legislação brasileira não possuir normas infraconstitucionais específicas regu­ lamentando a publicidade das investigações e dos atos judiciais de modo a preservar os direitos personalíssimos do preso (CF, art. 5o, incisos X e XLIX), é possível encontrar alguma normatização do assunto através de Portarias e Regulamentos dos próprios órgãos policiais. A título de exemplo, o art. 11 da Portaria n° 18 da Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo dispõe que as autoridades policiais devem zelar pela preservação dos direitos à imagem, ao nome, à privacidade e à intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas em razão da prática de infração penal ou a sua disposição na condição de vítimas, a fim de que a elas e a seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes da exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância objeto de apuração. Após orientadas sobre seus direitos constitucionais, tais pessoas somente serão fotografadas, entrevistadas ou terão suas 166 SILVA, Eduardo Araújo. O papel da imprensa no caso do Bar Bodega. Isto é, 4 dez. 1996, p. 151. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 169.

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imagens por qualquer meio registradas, se expressamente o consentirem mediante manifestação explícita de vontade, por escrito ou por termo devidamente assinado.167 2.2. Respeito à integridade física e moral do preso e uso de algemas Durante anos, silenciou o Código de Processo Penal acerca do uso de algemas no momento da prisão, limitando-se a Lei de Execução Penal a dispor que o emprego de algemas seria dis­ ciplinado por decreto federal (LEP, art. 199), que entrou em vigor tão somente em data de 27 de setembro de 2016 (Decreto n. 8.858/2016).168 Só mais recentemente é que o CPP passou a prever, no âmbito do procedimento do júri, que não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos pre­ sentes (CPP, art. 474, § 3o, com redação dada pela Lei n° 11.689/08). Ademais, segundo o art. 478, inciso I, do CPP, durante os debates, as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficie ou prejudique o acusado. Não obstante o silêncio do Código de Processo Penal ao longo dos anos, é forçoso convir que a Constituição Federal assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (CF, art. 5o, inciso XLIX). Ademais, admitindo a lei processual penal a aplicação analógica, por força do art. 3o, caput, do CPP, mesmo antes das alterações produzidas pela Lei n° 11.689/08, já de­ veria incidir no processo penal comum o art. 234, § Io, do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual o emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso. Em face da lacuna legal referente ao uso de algemas quando do momento da prisão, mesmo antes da reforma processual de 2008, o Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado no sentido de que o uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nas seguintes hipóteses: a) com a finalidade de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer; b) com a finalidade de evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo.169 Seguindo a mesma linha de raciocínio, ao julgar o FIC 91.952, referente a cidadão que perma­ necera algemado durante toda a sessão do Júri, entendeu a Suprema Corte que o uso das algemas, no caso, estaria em confronto com a ordem juridico-constitucional, tendo em conta que não havia, no caso, uma justificativa socialmente aceitável para submeter o acusado à humilhação de perma­ necer durante horas algemado, quando do julgamento no Tribunal do Júri, não tendo sido, ademais, 167

Publicada no DOE de 27 de novembro de 1998.

168

De acordo com o art. I 9 do referido Decreto, o emprego de algemas terá como diretrizes: I - o inciso ill do caput do art. 19 e o inciso III do caput do art. 59 da Constituição, que dispõem sobre a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante; II a Resolução n. 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok); III - o Pacto de San José da Costa Fica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade. Dispõe, ademais, que é vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada (art. 39).

169 STF, l 9 Turma, FIC 89.429/RO, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 02/02/2007 p. 114.

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apontado um único dado concreto, relativo ao perfil do acusado, que estivesse a exigir, em prol da segurança, a permanência com algemas. Aduziu-se que manter o acusado algemado em audiên­ cia, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, implicaria colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior. Acrescentou-se que, em razão de o julgamento no Júri ser procedido por pessoas leigas que tiram ilações diversas do contexto observado, a permanência do réu algemado indicaria, à primeira vista, que se estaria a tratar de criminoso de alta periculosidade, o que acarretaria desequilíbrio no julgamento, por estarem os jurados influenciados.170 Apesar de não nos parecer que estivessem presentes os pressupostos constitucionais para a edição de súmula vinculante (CF, art. 103-A, caput), como conseqüência do referido julgamento foi aprovado pelo Supremo Tribunal Federal o Enunciado da Súmula Vinculante n° 11, que dispõe: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.171 Da leitura da súmula vinculante n° 11 do STF, depreende-se que, sendo necessária a utiliza­ ção de algemas, seja para prevenir, impedir ou dificultar a fuga do capturando, seja para evitar agressão do preso contra policiais, contra terceiros ou contra si mesmo, será indispensável a lavratura de auto de utilização de algemas pela autoridade competente. O ideal é que esse auto de utilização de algemas seja lavrado tão logo efetuada a captura do agente, nos mesmos moldes em que se lavra o chamado auto de resistência. De mais a mais, a nosso juízo, nada impede que a menção à situação fática que legitimou o uso de algemas seja feita no bojo do próprio auto de prisão em flagrante delito. No entanto, caso isso não seja possível (v.g., hipótese em que o capturando tenha que ser transportado para outra cidade), nada impede que essa justificativa seja lavrada quando da chegada do indivíduo à delegacia de polícia.172 2.2.1. Vedação ao uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres du­ rante a fase de puerpério imediato O Brasil é signatário do Pacto sobre as Regras Mínimas da ONU para Tratamento da Mulher Presa, conhecido como Regras de Bangkok. Consoante disposto na regra n. 24 do referido Tra­ tado, “instrumentos de contenção jamais deverão ser usados em mulheres em trabalho de parto, durante o parto e nem no período imediatamente posterior”. Atendendo às Regras de Bangkok, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária decidiu “considerar defeso utilizar algemas ou outros meios de contenção em presas parturientes, definitivas ou provisórias, no momento em que se encontrem em intervenção cirúrgica para realizar o parto ou se estejam em trabalho de parto natural, e no período de repouso subsequente ao parto” (Resolução n. 3, de Io de julho de 2012, art. 3o). Não obstante os diplomas normativos em questão, o uso de algemas em mulheres grávidas ainda era uma rotina no país. De acordo com um estudo realizado pela 170 STF, HC 91.952/SP, Tribunal Pleno, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe 241 18/12/2008. 171

Na visão da l ã Turma do STF (Rcl. 7.116/PE, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/05/2016), a apresentação de custo­ diado algemado à imprensa pelas autoridades policiais não afronta a súmula vinculante n9 11. Em caso concreto em que, por ocasião de sua transferência para presídio em outra unidade da Federação, o ex-Governador do Rio de Janeiro S. C. F. foi exibido às câmeras de televisão algemado por pés e mãos, a despeito de sua aparente passividade, a 2- Turma do STF (HC 152.720/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 10/04/2018) reputou haver evidente afronta à súmula vinculante n. 11, concluindo, assim, que o uso infundado de algemas seria, por si só, causa suficiente para invalidar a referida transferência.

172

Nesse sentido: STJ - HC 138.349/MG - 69 Turma - Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/ SP - Dje 07/12/2009.

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Fundação Oswaldo Cruz com base em dados obtidos num censo nacional realizado entre agosto de 2012 e janeiro de 2014, mais de um terço das mulheres presas grávidas relataram o uso de algemas na internação para o parto. Daí a origem da Lei n. 13.434/17 e a inclusão do parágrafo único do art. 292 do CPP. De acordo com o novel dispositivo, a mulher não deve permanecer algemada em três hipóteses: a) durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a reali­ zação do parto; b) durante o trabalho de parto; c) durante o período de puerpério imediato,173 2.3. Caso Damião Ximenes Lopes Cuida-se da primeira condenação internacional do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em data de Io de outubro de 1999, Damião Ximenes Lopes foi internado numa clínica psiquiátrica na cidade de Sobral/CE. Ao chegar à referida clínica no dia 04/10/99 para uma visita, a mãe de Damião deparou-se com seu filho sangrando, com a roupa rasgada, sujo, cheirando a excremento, mãos amarradas para trás, com dificuldade para respirar, agonizante, com hematomas, gritando e pedindo socorro. Dirigiu-se, de imediato, ao médico. Pouco tempo depois Damião veio a óbito, sem ser assistido por qualquer médico, já que a clínica não dispunha de nenhum profissional de saúde. Seu corpo apresentava diversas marcas de tortura, os punhos estavam dilacerados e roxos, suas mãos perfuradas, com sinais de unhas, e uma parte de seu nariz estava machucada. Não obstante, os médicos atestaram causa mortis indeterminada.174 No dia 4 de julho de 2006, a CIDH reconheceu, por unanimidade, a responsabilidade parcial do Estado brasileiro pela violação: a) do direito à vida (CADH, art. 4o); b) da integridade física (CADH, art. 5o); c) das garantias judiciais (CADH, art. 8o); d) da proteção judicial (CADH, art. 25). A Corte apontou que o Brasil falhou em seus deveres de respeito, prevenção e proteção aos direitos humanos. Fez menção, ademais, à demora do Poder Judiciário, porquanto, seis anos após o oferecimento da peça acusatória, sequer havia uma sentença de primeira instância. Por conse­ qüência, a Corte dispôs: a) ser dever do Estado garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos surta seus devidos efeitos; b) que o teor da decisão deveria ser publicado no prazo de seis meses no Diário Oficial; c) ser dever do Estado continuar a desenvolver programas de formação e capacitação profissional para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental; d) que o Estado pague, em dinheiro, para a família da vítima, no prazo de um ano, a título de indenização por danos materiais e imateriais, nos termos do art. 63.1 da CADH, a quantia de US$ 146.000,00, além do pagamento de todas as despesas que estes tenham realizado nos processos na Justiça Brasileira e no exterior. Determinou, ainda, no prazo de um ano, que o Brasil apresentasse à Corte um relatório sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento. 3. DA COMUNICAÇÃO IMEDIATA DA PRISÃO AO JUIZ COMPETENTE E AO MINISTÉRIO PÚBLICO De acordo com o art. 5o, inciso LXII, da Constituição Federal, a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. 173

Segundo a doutrina - FRANÇA, Genival Veloso de. M edicina legal. 109 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015. P. 687 - compreende-se por puerpério o período de tempo compreendido entre o desprendimento da placenta até o retomo do organismo materno às condições anteriores à gestação. Puerpério im ediato , por sua vez, compreende esse estado do l 9 ao 109 dia após o parto.

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Na visão da l 9 Turma do STF (Rcl. 7.116/PE, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/05/2016), a apresentação de custodiado algemado à imprensa pelas autoridades policiais não afronta a súmula vinculante n9 11.

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Como se percebe pela leitura do dispositivo, a Carta Magna estabelece que a prisão de qualquer pessoa será comunicada imediatamente ao juiz competente, sem se referir à espécie de prisão. Logo, toda e qualquer prisão deve ser comunicada à autoridade judiciária, seja ela preventiva, temporária, ou flagrante. A questão, todavia, assume especial relevância quando do estudo da prisão em flagrante, haja vista que tal modalidade de prisão independe de prévia autorização judicial. Com a entrada em vigor da Lei n° 11.449/07, o art. 306, caput, do CPP passou a prever que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada”. O art. 306, § Io, do CPP, em acréscimo, estabelecia que “dentro em 24 (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”. Antes de qualquer coisa, é de bom alvitre destacar que a comunicação imediata da prisão de toda e qualquer pessoa ao juiz competente não se confunde com o posterior encaminhamento do auto de prisão em flagrante. São coisas distintas, em momentos diferentes. Uma coisa é a imediata comunicação da prisão à autoridade judiciária. Como a própria Cons­ tituição Federal dispõe em seu art. 5o, LXII, tal comunicação deve ser imediata, ou seja, tão logo haja o cerceamento à liberdade de locomoção, o juiz competente deve ser comunicado acerca da prisão. Outra coisa é a posterior remessa do auto de prisão em flagrante delito, em até 24 (vinte e quatro) horas depois da captura. A comunicação imediata informa a autoridade judiciária de que há uma pessoa que está detida sem que haja prévia autorização judicial, possibilitando que o magistrado, a partir de então, passe a controlar os passos da autoridade policial, até mesmo no que toca à conclusão do auto de prisão em flagrante no prazo legal de 24 (vinte e quatro) horas.175 A Constituição Federal (art. 5o, LXII) dispõe que a prisão de qualquer pessoa será comu­ nicada ao juiz competente. Logo, como a Constituição não faz qualquer menção à necessidade de que essa prisão seja mantida, conclui-se que, mesmo que a autoridade policial conceda ao preso liberdade provisória com fiança (CPP, art. 322), essa comunicação deve ser feita. Afinal, em última análise, houve cerceamento da liberdade de locomoção. Ademais, o afiançado fica submetido ao cumprimento de certas condições e, caso o flagrante seja anulado pelo juiz, tais obrigações deixarão de existir, com a conseqüente devolução do valor dado em garantia.176 Além da comunicação ao juiz competente, é bom lembrar que, consoante o art. 10 da Lei Complementar n° 75/93, que dispõe sobre o Ministério Público da União, impõe-se à autoridade policial o dever de comunicação imediata ao Ministério Público competente da prisão de toda e qualquer pessoa, com indicação do lugar onde se encontre o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão. Obviamente que o dispositivo em destaque refere-se apenas à prisão em flagrante, devendo se entender por cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão o auto de prisão em flagrante delito. Essa norma, em face do disposto no art. 80 da Lei n° 8.625/93, também se aplica ao Ministério Público Estadual. Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, essa obrigatoriedade de comunicação da prisão ao Ministério Público passou a constar expressamente do caput do art. 306 do CPP.

175

Comungam do mesmo entendimento: Walter Nunes da Silva Júnior (op. cit. p. 889/890) e Aury Lopes Jr. (op. cit. p. 53).

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Nesse sentido: GONÇALVES, Daniela Cristina Rios (Prisão em flag rante. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p. 103).

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Resta saber, então, quais são as conseqüências da ausência dessa comunicação do flagrante à autoridade judiciária ou ao órgão do Ministério Público. Já foi dito que a não comunicação caracteriza o delito de abuso de autoridade, nos exatos termos do art. 4o, alínea “c”, da Lei n° 4.898/65. Mas e em relação ao indivíduo que fora preso e cuja prisão não foi comunicada ao juiz? Será que a ausência dessa comunicação acarreta o obrigatório relaxamento da prisão? Ou será que se trata de mera irregularidade, sem o condão de determinar o relaxamento da prisão? Há julgados antigos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, se­ gundo os quais a ausência de comunicação da prisão à autoridade judiciária não teria o condão de excluir a legalidade da prisão, gerando tão somente responsabilidade funcional e criminal por parte da autoridade que presidiu o auto de prisão em flagrante.177 Com a devida vênia, pensamos que a ausência de comunicação do flagrante à autoridade judiciária configura grave violação a preceito constitucional (CF, art. 5o, LXII), o qual foi co­ locado na Carta Magna visando à preservação do status libertatis do indivíduo, determinando que toda e qualquer prisão seja comunicada à autoridade judiciária, a fim de que o magistrado possa verificar sua legalidade (para fins de eventual relaxamento), ou analisar o cabimento de liberdade provisória, com ou sem fiança. Não custa lembrar que estamos falando da prisão em flagrante, espécie de restrição à liberdade de locomoção que independe de prévia autorização judicial. Dizer que a não comunicação da prisão é mera irregularidade significa dizer que a inobservância de preceito constitucional é de todo irrelevante, tomando letra morta importante garantia constitucional.178 Temos, portanto, que a ausência da comunicação da prisão em flagrante importa em violação à garantia constitucional, gerando a perda da força coercitiva do auto de prisão, e o conseqüente relaxamento da prisão. Portanto, o auto de prisão em flagrante continuará valendo, mas tão somente como peça informativa.179 No entanto, como será visto abaixo, eventual relaxamento da prisão em flagrante por conta da ausência de comunicação à autoridade judiciária não impede a imposição de medidas cautelares de natureza pessoal, inclusive a própria prisão preventiva, desde que presentes seus pressupostos legais. 4. DA COMUNICAÇÃO IMEDIATA DA PRISÃO À FAMÍLIA DO PRESO OU À PESSOA POR ELE INDICADA A comunicação imediata da prisão de qualquer pessoa ao juiz competente e aos familia­ res ou à pessoa indicada pelo preso, prevista no art. 5o, LXII, da Carta Magna, consiste em verdadeira garantia de liberdade, pois dela dependem outras garantias expressamente previstas no texto constitucional, como a análise da ocorrência ou não das hipóteses permissivas para a prisão (art. 5o, LXI), a possibilidade de relaxamento por sua ilegalidade (art. 5o, LXV), ou, nos casos de legalidade, se possível for, a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança (art. 5o, LXVI).

177 STF - RHC 64.152/PR - 2^ Turma - Rei. Min. Aldir Passarinho - DJ 29/08/1986 p. 15.186; STF - RHC 62.187/GO —2- Turma - Rei. Min. Aldir Passarinho - DJ 08/03/1985 - p. 2.599; STJ - HC 28.575/BA —5- Turma - Rei. Min. Felix Fischer - DJ 28/10/2003 p. 321; STJ - RHC 4.274/RJ - 6§ Turma - Rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - DJ 20/03/1995 p. 6.145. 178

BRANCO, Tales Castelo. Da prisão em flagrante. 53 ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001.

179 TRF1 - RHC 2002.38.00.019498-5/MG - 4^ Turma - Rei. Desembargador Federal Hilton Queiroz - DJ 04/10/2002 p. 122. E também: TRF1 - RCHC 2001.33.00.006872-1/BA - 4ã Turma - Rei. Desembargador Federal Hilton Queiroz - DJ 05/09/2001 p. 123).

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Especificamente no tocante à obrigação de comunicação da prisão à família do preso ou à pessoa por ele indicada, sua razão de ser está relacionada a dois objetivos: primeiro, certificar familiares acerca da localização do preso; segundo, permitir que o preso obtenha de seus fami­ liares a assistência e o apoio de que necessita. Obviamente, caso o preso não indique a pessoa a quem deva ser comunicada sua prisão, não há como a autoridade policial dar cumprimento ao preceito constitucional do art. 5o, LXII, sendo inviável qualquer alegação de ilegalidade da prisão. Como já teve a oportunidade de se manifestar o STJ, “a Constituição da República visa a resguardar o status libertatis, ensejando a pessoas de confiança do preso o conhecimento do fato, a fim de, diante de qualquer ilegalidade, ser afrontado o vício jurídico. A participação imediata do juiz competente é impostergável. A comunicação à família ou à pessoa pelo preso indicada configura direito público subjetivo. A interpretação, porém, deve ser finalística. Pode ocorrer que o preso não tenha interesse, ou mesmo não deseje que tal aconteça. Urge respeito a sua intimidade. Se terceira pessoa, ainda que estranha à família ou pelo preso indicada, intervier, e de modo eficaz, compensar a ausência de alguém do rol constitucional, suprida estará a situação jurídica. Exemplificativamente, a presença de defensor”.180 E qual é a conseqüência da inobservância desse preceito constitucional? Ora, como dito acima, a observância de todas as formalidades no momento da prisão de alguém é de extrema relevância, porque constituem meio de tutela da liberdade. Sua inobservância configura constrangimento ilegal, sanável por meio de habeas corpus objetivando o rela­ xamento da prisão. Por fim, resta esclarecer que, se do auto de prisão em flagrante constar menção à observân­ cia das garantias constitucionais acima mencionadas, incumbe ao preso o ônus de demonstrar o descumprimento dos preceitos constitucionais.181 5. DO DIREITO AO SILÊNCIO (N E M O T E N E T U R S E D E T E G E R E ) O direito ao silêncio, previsto na Carta Magna como direito de permanecer calado, apresenta-se como uma das decorrências do nemo tenetur se detegere, segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. O princípio do nemo tenetur se detegere foi abordado com profundidade no título introdutório deste livro, para onde remetemos o leitor. 6. DA ASSISTÊNCIA DE ADVOGADO AO PRESO Em seu art. 5o, inciso LXIII, in fine, a Constituição Federal assegura ao preso a assistência da família e de advogado. Não obstante o preceito constitucional, é certo dizer que, pelo menos até bem pouco tempo atrás, o que se via no dia a dia forense era a não concessão de assistência jurídica ao sujeito preso em flagrante delito, nem mesmo para que a defesa técnica pudesse pleitear o relaxamento da

180 STJ, 6ã Turma, RHC 1.526/RJ, Rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 25/11/1991 p. 17.084. Ainda segundo o STJ, "em se tratando de prisão em flagrante de estrangeiros acusados de associação para a prática de crime de tráfico internacional de substâncias entorpecentes e roubo de aeronave, que residem na Colômbia onde tem famílias, a autoridade policial não está obrigada a comunicar a ocorrência aos familiares. Basta-lhe assegurar o direito de comunicação. Por outro lado, há nos autos notas assegurando-lhes os direitos constitucionais de assistência da família e de advogado". (STJ - RHC 3.894/PA - 52 Turma - Rei. Min. Jesus Costa Lima - DJ 12/09/1994 p. 23.775). 181 STJ, 62 Turma, HC 8.690/GO, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 07/06/1999 p. 133.

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prisão ou a concessão de liberdade provisória. Restava ao preso, na prática, aguardar a conclusão do inquérito policial, remessa dos autos a juízo para, se acaso fosse denunciado, pudesse, enfim, contar com o auxílio de defensor, o que, não raramente, demorava meses, na medida em que esse primeiro contato preso-defensor somente seria possível quando da apresentação da resposta à acusação (CPP, art. 396-A), ou por ocasião da realização da audiência una de instrução e julga­ mento (CPP, art. 400, caput). Em outras palavras, o preceito constitucional do art. 5o, inciso LXIII, ficava limitado à mera indagação ao acusado se ele desejava comunicar sua prisão a advogado, e a um papel por ele assinado segundo o qual as garantias constitucionais teriam sido observadas. É nesse cenário que se insere a importância da Lei n° 11.449/07, ao inserir no § Io do art. 306 do CPP o dever da autoridade policial de comunicar à Defensoria Pública, no prazo de vinte e quatro horas, a prisão de toda pessoa que não informe o nome de seu advogado, remetendo cópias de todos os termos de depoimentos tomados na oportunidade da lavratura do auto de prisão em flagrante. Na esteira da Lei n° 11.449/07, por força da Lei Complementar n° 132, de 07 de outubro de 2009, passou a constar, dentre as funções institucionais da Defensoria Públi­ ca, dentre outras, a de acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado (LC n° 80/94, art. 4o, inciso XIV). O dispositivo em questão objetiva suprir antiga omissão do legislador brasileiro em prover a grande clientela da Justiça Criminal de assistência jurídica no momento da prisão em flagrante. Deveras, não há como fechar os olhos para o tratamento desigual e odioso que sempre imperou (e continua imperando) na Justiça Criminal entre o acusado preso, que detém condições econômicas para constituir advogado, e o acusado preso menos afortunado, que, vez por outra, acabava ficando preso de maneira indevida simplesmente por não ter a assistência de profissional da advocacia para solicitar o relaxamento de sua prisão e/ou a concessão de liberdade provisória. Esse tratamento diferenciado entre pobres e ricos perante o Poder Judiciário faz ressurgir o que asseverou, há muito tempo, Ovídio, segundo o qual curapauperibus clausa est (o Tribunal está fechado para os pobres). Como se vê, o dispositivo vem parcialmente ao encontro do art. 7o, número 6, da Con­ venção Americana sobre Direitos Humanos, incorporada ao ordenamento pátrio por meio do Decreto n° 678/92, segundo o qual toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, afim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais [...] ”. Sem dúvida alguma, a imediata comunicação à Defensoria Pública assegura que eventual pedido de relaxamento da prisão ou de liberdade provisória seja levado ao conhecimento da autoridade judiciária, que deverá se manifestar fundamentadamente quanto à necessidade (ou não) da sub­ sistência da medida constritiva. Um primeiro questionamento a ser produzido em virtude do § Io do art. 306 do Código de Processo Penal diz respeito ao procedimento a ser adotado nas localidades em que não houver Defensoria Pública. Como é cediço, lamentavelmente, tanto as Defensorias dos Estados quanto a Defensoria Pública da União têm sido vítimas do descaso do Poder público, que, além de não criar cargos em número compatível com a demanda, não fornece estrutura material e pessoal adequada ao desempenho de tão importante mister - a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (CF, art. 5o, LXXIV, c/c art. 134, caput). Indaga-se, então, o que fazer em um município que não seja dotado de Defensoria Pública?182

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De acordo com reportagem do Correio Braziliense, publicada em 12/08/2008, da jornalista Érica Montenegro, apenas 40% das comarcas são dotadas de Defensoria Pública.

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Acreditamos que a solução passa, obrigatoriamente, pela aplicação antecipada do art. 263 do Código de Processo Penal já no momento da prisão, e não, como acontecia antes, somente na fase judicial. Em outras palavras, ao receber cópia do auto de prisão em flagrante (CPP, art. 306, § Io, Ia parte), deve a autoridade judiciária nomear imediatamente um advogado dativo em favor do acusado. Outra indagação que o § Io do art. 306 do Código de Processo Penal irá produzir é evidente: qual será a conseqüência da ausência de comunicação à Defensoria Pública? Já podemos antever posição doutrinária muito semelhante àquela relativa à ausência de comunicação da prisão à autoridade judiciária, segundo o qual essa omissão configuraria mera irregularidade, que não enseja ilegalidade de modo a afastar a força coercitiva da prisão em flagrante. Somos obrigados a discordar novamente, sob pena de negarmos qualquer força coercitiva ao inciso LXIII do art. 5o da Carta Magna. Ora, a comunicação da prisão em flagrante à Defensoria Pública traduz-se em requisito de legalidade dessa modalidade de prisão cautelar. Ausente essa comunicação, a força coercitiva do auto de prisão em flagrante delito desaparece, devendo a prisão ser relaxada imediatamente,183o que, no entanto, não impede a decretação da prisão preventiva, caso presentes os pressupostos legais do art. 312 do CPP. Conquanto o § Io do art. 306 esteja localizado no Capítulo II do Título IX do Livro I do Código de Processo Penal - ‘Da prisão em flagrante’ -, entendemos que nada impede sua aplicação por analogia às demais espécies de prisão cautelar (preventiva e temporária), bem como no processo penal militar. Nessas hipóteses, uma vez preso o suspeito, cópia do mandado de prisão deve ser remetida à Defensoria Pública, sob pena de ilegalidade do cerceamento à liberdade de locomoção. Nessa linha, ao dispor sobre registro de mandados de prisão em banco de dados manti­ do pelo Conselho Nacional de Justiça, a Lei n° 12.403/11 passou a prever que “o preso será informado de seus direitos, nos termos do inciso LXIII do art. 5o da Constituição Federal e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, será comunicado à Defensoria Pública” (CPP, art. 289-A, § 4o). Perceba-se que esse preceito está inserido em dispositivo que cuida do cumprimento de mandados de prisão. Logo, tendo em conta que essa prisão determinada pelo juiz só pode ser a preventiva ou temporária, depreende-se que, por conta das alterações produzidas pela Lei n° 12.403/11, a comunicação à Defensoria Pública passou a ser obrigatória em relação a toda e qualquer espécie de prisão cautelar, caso o preso não informe o nome de seu advogado. Por fim, vale lembrar que o art. 36,1, “b”, da Convenção de Viena sobre relações consulares de 1963 (promulgada no Brasil pelo Decreto n° 61.078/67) assevera a necessidade de comunicar à autoridade consular respectiva em caso de prisão de estrangeiro, caso este solicite. A finalidade do dispositivo é permitir que o preso estrangeiro tenha um auxílio necessário do órgão consular, visando compensar não apenas a barreira da língua, como também a defasagem decorrente do desconhecimento do ordenamento jurídico daquele país e de seus direitos.184

183 Segundo Ada Pellegrini Grinover e t alii, "trata-se portanto de providência indeclinável e o seu não atendimento deve levar ao reconhecimento da nulidade absoluta - com a conseqüente ilegalidade da prisão uma vez que estará afetado o próprio direito de defesa". (As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 272). No sentido de que o atraso da comunicação da prisão em flagrante à Defensoria Pública é causa de mera irregularidade: STJ, 5^ Turma, RHC 25.633/SP, Rei. Min. Félix Fischer, j. 13/08/2009, DJe 14/09/2009. 184 STF, Pleno, Ext. 1.126, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 22/10/2009, DJe 11/12/2009.

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7. DO DIREITO DO PRESO À IDENTIFICAÇÃO DOS RESPONSÁVEIS POR SUA PRISÃO OU POR SEU INTERROGATÓRIO POLICIAL De acordo com o art. 5o, inciso LXIV, da Constituição Federal, o preso tem direito à identi­ ficação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Dispositivo semelhante é encontrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7o, § 4o). No caso da prisão em flagrante, tal direito se toma efetivo por meio da entrega da nota de culpa ao preso. Consiste a nota de culpa em instrumento de caráter informativo, dirigido ao preso, que lhe comunica o motivo da prisão, o nome da autoridade que lavrou o auto, da pessoa que o prendeu (condutor) e o das testemunhas, tomando efetiva a garantia constitucional prevista no art. 5o, inciso LXIV, além de assegurar o direito de resguardo da liberdade do preso contra eventuais abusos e o exercício da ampla defesa. A necessidade da entrega da nota de culpa limita-se às hipóteses de prisão em flagrante, porquanto, nas demais espécies de prisão cautelar (preventiva e temporária), a concretização do preceito do art. 5o, LXIV, da CF, ocorre com a entrega ao preso de cópia do mandado expedido, do qual já constam as informações imprescindíveis à defesa. Em outras palavras, enquanto nos casos de prisão em flagrante é a nota de culpa que fun­ ciona como o instmmento que materializa o direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão, em se tratando de prisão preventiva e/ou temporária, esse direito é concretizado por meio da cópia do mandado de prisão, que deve ser entregue ao preso. Em se tratando de prisão em flagrante delito, segundo o art. 306, § 2o, do CPP, com redação dada pela Lei n° 12.403/11, em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas. Esse prazo de 24 (vinte e quatro) horas é con­ tado a partir do momento da captura, e não da lavratura do auto de prisão em flagrante delito.185 Caso o preso não saiba, não possa, ou não queira assinar, duas testemunhas assinarão o recibo pelo preso, atestando a entrega do documento (testemunhas instrumentárias). A nota de culpa de modo algum importa em confissão, nem tampouco que o preso esteja aceitando as acusações que lhe foram feitas quando de sua prisão. A ausência de entrega da nota de culpa, ou a ausência de entrega de cópia do mandado de prisão, maculam a prisão com grave vício de ilegalidade, autorizando seu relaxamento. De fato, se considerarmos que a ausência de entrega é causa de mera irregularidade, afasta-se o caráter coercitivo do art. 5o, LXIV, tomando ineficaz o preceito que assegura ao preso o direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial.186 Novamente, não podemos concordar com posicionamento doutrinário e/ou jurispmdencial segundo o qual o desrespeito ao direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão seria mera irregularidade, inidôneo, portanto, para afetar a força coercitiva da prisão.187 Cuidando-se a prisão de inequívoco gravame à liberdade de locomoção, a observância das formalidades previstas na Constituição e no Código de Processo Penal são essenciais à validade do ato, devendo se emprestar máxima efetividade ao preceito do art. 5o, inciso LXIV, da Consti­ tuição Federal. Deveras, como observa Barroso, por força do princípio da efetividade, também designado por princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, deve se dar preferência, nos 185

Perfilha do mesmo entendimento Tourinho Filho (op. cit. p. 722).

186 STF, I s Turma, HC 77.042/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/06/1998 p. 3. 187

STJ, 5§ Turma, RHC 21.532/PR, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 12/11/2007 p. 239. Eainda: STJ, 5a Turma, HC 60.666/ SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 10/09/2007 p. 254; STJ, 6ã Turma, RHC 20.625/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 21/05/2007 p. 616; STJ, 5^ Turma, RHC 7.890/RJ, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 16/11/1998 p. 106; STJ, 6^ Turma, RHC 7.122/PA, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 30/03/1998 p. 140.

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problemas constitucionais, aos pontos de vista que levem as normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias de cada caso. No caso de dúvidas, deve se dar preponderância à interpre­ tação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais.188 8. DO RELAXAMENTO DA PRISÃO ILEGAL Segundo o art. 5o, LXV, da Constituição Federal, “a prisão ilegal será imediatamente rela­ xada pela autoridade judiciária.” Firma o dispositivo constitucional o direito subjetivo de todo e qualquer cidadão de ter restabelecida sua liberdade de locomoção caso sua prisão tenha sido levada a efeito fora dos balizamentos legais. Esse vício, que macula a custódia de ilegal, pode se apresentar desde a origem do ato de constrição à liberdade de locomoção ou mesmo no curso de sua incidência: em ambas as hipóteses, deve ser reconhecida a ilegalidade da prisão, com seu conseqüente relaxamento.189 Relaxar a prisão significa reconhecer a ilegalidade da restrição da liberdade imposta a alguém, não se restringindo à hipótese de flagrante delito. Conquanto o relaxamento seja mais comum nas hipóteses de prisão em flagrante delito, dirige-se contra todas as modalidades de prisão, desde que tenham sido levadas a efeito sem a observância das formalidades legais. Assim, a título de exemplo, deve ser relaxada a prisão nos casos de flagrante preparado ou forjado; lavratura do auto de prisão em flagrante sem a observância das formalidades legais; prisão preventiva decretada por juiz incompetente; prisão automática ou obrigatória para apelar ou em virtude de decisão de pronúncia; prisão preventiva sem fundamentação; prisão preventiva com excesso de prazo; prisão temporária além do prazo preestabelecido ou em relação a delito que não a comporte. O relaxamento da prisão ilegal não tem natureza de medida cautelar, nem tampouco de medida de contracautela, funcionando, na verdade, como garantia do réu em face do constrangi­ mento ilegal à liberdade de locomoção decorrente de prisão ilegal. Como observa Garcez Ramos, “o relaxamento da prisão em flagrante, por ser providência que não apresenta as características da cautelaridade (não é baseada na aparência nem é temporária), nem da antecipação de tutela (não tem referibilidade com o direito material que se discute no processo principal), pode ser definido como uma medida de urgência fundada no poder de polícia da autoridade judiciária. Como se trata de um poder propenso à defesa da ordem jurídica e, na hipótese, à proteção do direito constitucional de liberdade de ir e vir, que só pode ser coarctado com base em título legítimo, o juiz protege-a de ofício ou a requerimento das partes, na primeira ocasião em que a prisão preventiva aparentar ilegalidade”.190 Reconhecida a ilegalidade da prisão, e deferido o relaxamento da constrição, o agente não fica sujeito ao cumprimento de deveres e obrigações. Permanece o agente livre de quaisquer ônus ou restrições de direito. Trata-se de liberdade plena, diferenciando-se, portanto, das hipóteses de liberdade provisória com vinculação.191 188 Interpretação e aplicação da Constituição: fundam entos de uma dogm ática constitucional transform adora. 6^ ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 246. Na mesma linha, vide: NOVELINO, Marcelo. D ireito constitucional. 4^ ed. São Paulo: Método, 2010. p. 180. 189

Nessa linha: SAMPAIO JÚNIOR, José Herval; CALDAS NETO, Pedro Rodrigues. M a nual de prisão e soltura sob a São Paulo: Editora Método, 2007. p. 319.

ótica constitucional: do utrina e jurisprudência.

190

RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte/MG: Editora Del Rey, 1998. p. 406.

191 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Regimes constitucionais da liberdade provisória. 2ã ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 85. Para mais detalhes acerca das diferenças entre relaxamento da prisão, liberdade provisória e revogação da prisão cautelar, vide abaixo item e quadro comparativo pertinente ao assunto.

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Todavia, se presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, é perfeitamente possível a imposição de medidas cautelares de natureza pessoal. A propósito, os tribunais têm, reiteradamente, reconhecido a ilegalidade da prisão, com o seu conseqüente relaxamento, porém submetido o imputado ao cumprimento de certas obrigações, como denota o julgado a seguir transcrito: “A instrução criminal deve ser concluída em prazo razoável, nos exatos termos do art. 5o, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. O excesso de prazo na ultimação do processo-crime enseja o relaxamento da prisão cautelar. Ordem concedida para reconhecer o excesso de prazo e determinar o relaxamento da prisão do paciente, expedindo alvará de soltura clausulado, para que compareça a todos os atos do processo, sob pena de revogação da liberdade” (nosso grifo).192 Ainda em relação ao art. 5o, LXV, da Constituição Federal, há de se ressaltar que, enquanto alguns dispositivos legais, de duvidosa constitucionalidade, vedam a concessão da liberdade provisória, o relaxamento da prisão é cabível em relação a todo e qualquer delito. Prova disso, aliás, é a súmula n° 697 do STF: “a proibição da liberdade provisória nos processos por crimes hediondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo”.193 Por fim, enquanto a liberdade provisória com fiança pode ser concedida tanto pela autoridade policial quanto pela autoridade judiciária, o relaxamento da prisão só pode ser determinado pela autoridade judiciária, haja vista o teor expresso do art. 5o, inciso LXV, da CF, segundo o qual “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (nosso grifo). Há doutrinadores que entendem que a leitura a contrario sensu do art. 304 do CPP auto­ riza a conclusão de que a autoridade policial pode relaxar a prisão em flagrante do conduzido. Assim, se das respostas do condutor e das testemunhas não resultar fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade policial não poderá recolhê-lo à prisão, devendo determinar sua ime­ diata soltura, sem prejuízo da instauração de inquérito policial ou lavratura de simples boletim de ocorrência. Ter-se-ia aí, para parte da doutrina, a possibilidade de relaxamento da prisão em flagrante pela própria autoridade policial.194 Com a devida vênia, não se cuida propriamente de relaxamento da prisão em flagrante. Isso porque, como ato complexo que é, a prisão em flagrante somente estará aperfeiçoada após a captura, condução coercitiva, lavratura do auto e recolhimento à prisão, sendo inviável falar-se em relaxamento da prisão em flagrante se todas essas fases ainda não foram efetivadas. Ademais, a própria Constituição Federal, ao se referir ao relaxamento da prisão ilegal, deixa claro que somente a autoridade judiciária tem competência para fazê-lo (CF, art. 5, LXV). Enxergamos, pois, no art. 304, § Io, do CPP, não uma hipótese de relaxamento da prisão em flagrante, mas sim situação em que a autoridade competente deixa de ratificar a voz de prisão em flagrante dada pelo condutor por entender que não há fundada suspeita contra o conduzido. Ainda em relação ao relaxamento da prisão, convém destacar que, além do art. 5o, inciso LXV, da Constituição Federal, o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 649, autoriza a concessão ex officio do habeas corpus, com fundamento na ilegalidade da coação, constando do art. 648 do CPP rol exemplificativo de hipóteses em que a coação à liberdade de locomoção deve ser considerada ilegal: a) quando não houver justa causa; b) quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; c) quando quem ordenar a coação não tiver competência

192

STJ,

Turma, HC 69.382/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 08/10/2007 p. 371.

193 STJ, 5ã Turma, Edcl no HC 74.623/SP, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora Convocada do TJ/MG, DJ 10/12/2007 p. 404. 194 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit. p. 304-305. E ainda: PEREIRA, Maurício Henrique Guimarães. Habeas corpus e polícia judiciá ria. Tortura, crime m ilitar, habeas corpus. Justiça penal - críticas e sugestões. Vol. 5. Coordenação Jaques de Camargo Penteado. São Paulo: RT, 1997 p. 233-234.

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para fazê-lo; d) quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; e) quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei autoriza; f) quando o processo for manifestamente nulo; g) quando extinta a punibilidade. Dentre as causas mais comuns que ensejam o relaxamento da prisão, podemos citar, a título de exemplo: 1) prisão por fato atípico; 2) inobservância dos requisitos essenciais ao mandado de prisão (CPP, art. 285, parágrafo único); 3) inexistência da situação de flagrância (CPP, art. 302); 4) prisão em flagrante daquele que se apresenta espontaneamente à autoridade policial; 5) inobservância das formalidades legais e constitucionais no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante; 6) falta de laudo de constatação da natureza da substância entorpecente (Lei n° 11.343/06, art. 50, § Io); 7) ausência de requerimento da vítima em se tratando de prisão em flagrante por crime de ação penal privada; 8) ausência de representação do ofendido, no caso de crime de ação penal pública condicionada à representação; 9) não entrega de nota de culpa ao preso no prazo de 24 (vinte e quatro) horas após a prisão; 10) não comunicação imediata da prisão à autoridade judiciária competente; 11) não encaminhamento de cópia do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, quanto o autuado não informa o nome de seu advogado; 12) prisão preventiva desprovida de fundamentação ou em relação a crime que não autoriza sua decretação; 13) excesso de prazo da prisão preventiva; 14) inobservância dos pressupostos que autorizam a prisão preventiva: prova da materialidade e indícios suficientes de autoria (CPP, art. 312, caput); 15) prisão preventiva decretada em crime não listado no rol do art. 313 do CPP; 16) prisão temporária decretada em relação a crime que não comporte a medida; 17) prisão temporária em curso por prazo superior àquele previsto em lei. 9. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (OU DE APRESENTAÇÃO) A audiência de custódia é objeto do Projeto de Lei do Senado Federal de n° 554/2011, cujo objetivo é alterar a redação do § Io do art. 306 do CPP, que passaria a dispor: “No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz com­ petente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”. Após apresentação de relatório pelo Senador João Capiberibe, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal (CDH) emitiu parecer favorável ao PLS, aprovando, contudo, um substitutivo com a seguinte redação: “Art. 306 (...)§ Io. No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2o. Na audiência de custódia de que trata o § Io, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos do art. 310. § 3o. A oitiva a que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusi­ vamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 4o. A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5o. A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3o, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código”.

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Apesar de tal projeto ainda não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional, o Conselho Nacional de Justiça e diversos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais já vêm adotando resoluções e provimentos com o objetivo de implementá-la, porquanto se trata de garantia convencional decorrente da própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92), dotada de status normativo supralegal, cujo art. 7o, § 5o, dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”.195 É o caso, por exemplo, do Estado de São Paulo. O Provimento Conjunto n° 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo e da Corregedoria Geral da Justiça, de 27 de janeiro de 2015, determina a apresentação da pes­ soa detida em flagrante delito até 24 (vinte e quatro) horas após a sua prisão para participar de audiência de custódia (art. Io). Para o Supremo Tribunal Federal, a regulamentação das audiências de custódia por meio de Resoluções e Provimentos dos Tribunais de Justiça (ou dos Tribunais Regionais Federais) não importa violação aos princípios da legalidade e da reserva de lei federal em matéria processual penal (CF, art. 5o, II, e art. 2 2 ,1, respectivamente). Por isso, o Plenário do STF julgou impro­ cedente pedido formulado em Ação direta ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL) em face do Provimento Conjunto n° 03/2015 do TJ/SP. Para o Supremo, não teria havido, por parte dos referidos provimentos, nenhuma extrapolação daquilo que já constaria da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7o, § 5o), dotada de status normativo supralegal, e do próprio CPP, numa interpretação teleológica de seus dispositivos, como, por exemplo, o art. 656, que dispõe que, recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, poderá determinar que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar.196 Grosso modo, a audiência de custódia pode ser conceituada como a realização de uma au­ diência sem demora após a prisão penal, em flagrante, preventiva ou temporária, permitindo o contato imediato do preso com o juiz, com um defensor (público, dativo ou constituído) e com o Ministério Público.197 Em prática em inúmeros países, dentre eles Peru, Argentina e Chile, a audiência de custódia tem 2 (dois) objetivos precípuos: 1) coibir eventuais excessos como torturas e/ou maus tratos; 2) no caso específico da prisão em flagrante, conferir ao juiz uma ferramenta mais eficaz para fins de convalidação judicial (CPP, art. 310), é dizer, para ter mais subsídios quanto à medida a ser adotada - relaxamento da prisão ilegal, decretação da prisão preventiva (ou temporária), ou imposição isolada ou cumulativa das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 310,1, II e III), sem prejuízo de possível substituição da prisão preventiva pela domiciliar, se acaso presentes os pressupostos do art. 318 do CPP. A realização desta audiência de custódia também visa à diminuição da superpopulação car­ cerária. Afinal, em contraposição à simples leitura de um auto de prisão em flagrante, o contato

195. Aliás, no julgamento do Habeas Corpus n9 119.095/MG (STF, 29 Turma, j. 26/11/2013, DJe 70 08/04/2014), o Min. Relator Gilmar Mendes frisou que o Supremo deveria exigir, especialmente em tráfico de drogas, a observância da apresentação do preso ao juiz, como previsto na Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos. 196. STF, Pleno, ADI 5.240/SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 20/08/2015. 197. Como de costume, a vítima segue ao largo das mudanças produzidas no processo penal. Nenhum provimento referente à audiência de custódia prevê a possibilidade de o ofendido acompanhar o referido ato. Sem embargo desse silêncio, não há qualquer óbice à presença da vítima na referida audiência. Com efeito, a depender do caso concreto, sua participação pode se revelar de fundamental importância para a decretação de eventuais medidas cautelares. A título de exemplo, basta supor hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando a oitiva da vítima de imediato na própria audiência de custódia pode fornecer ao juiz elementos capazes de subsidiar a adoção de medidas protetivas de urgência, nos termos dos arts. 18 a 24 da Lei n9 11.340/06.

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mais próximo com o preso proporcionado pela realização da audiência de custódia permite elevar o nível de cientificidade da autoridade judiciária, que terá melhores condições para fazer a triagem daqueles flagranteados que efetivamente devem ser mantidos presos. Há grande controvérsia acerca do prazo para a realização da audiência de custódia. O Pacto de São José da Costa Rica não determina a apresentação “imediata” da pessoa presa, mas, sim, que a pessoa presa seja conduzida “sem demora” à presença de um juiz. Conforme precedentes de Cortes Internacionais de Direitos Humanos, “sem demora” pode ser considerado “poucos dias”, a ser analisado caso a caso, e não 24 horas improrrogáveis, como consta, por exemplo, do provimento conjunto n° 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e da Corregedoria Geral de Justiça.198 Aliás, curiosamente, quiçá por reconhecer a existência de um crônico quadro de fragilidade institucional, o mesmo provimento que prevê a realização da audiência de custódia em até 24 (vinte e quatro) horas dispõe que a implantação da referida audiência no Estado de São Paulo será gradativa e obedecerá ao cronograma de afetação dos distritos policiais aos juízos competentes (art. 2o). No cenário do possível, do exeqüível, do realizável, enfim, por reconhecer que o prazo de 24 (vinte e quatro) horas não é factível, partilhamos do entendimento no sentido de que a audiência de custódia deve ser realizada num prazo mais compatível com a realidade brasilei­ ra, qual seja, em até 72 (setenta e duas) horas. A propósito, no dia 20 de novembro de 2014, a Corregedoria do Estado do Maranhão estipulou a audiência de custódia na Capital São Luís, estabelecendo o prazo de 48 (quarenta e oito) horas, contadas da comunicação da prisão, e não da captura propriamente dita (Provimento n° 21/2014 da CGMA). Como se percebe, o desafio para o Congresso Nacional, por ocasião da análise do Projeto de Lei n° 554/2011 do Senado Federal, é pensar em um prazo não tão exíguo que inviabilize a realização da audiência de custódia e nem tão elástico que acabe por comprometer a finalidade da mesma.199 Não obstante, no julgamento de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 347) em que se discute a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucio­ nal” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro - violação generalizada de direitos 198. A fixação do prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da audiência de custódia está diretamente rela­ cionada à tentativa de se coibir eventuais maus-tratos contra o preso. Em julho de 2014, a Human Rights Watch enviou comunicação às autoridades brasileiras (PRESI/CNMP ne 523/2014) manifestando suas preocupações em relação à prática recorrente de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante por policiais, agentes penitenciários e agentes do sistema socioeducativo do Brasil. Restou constatado que espancamentos, ameaças de agressões físicas e de violência sexual, choques elétricos, sufocamentos com sacos plásticos e violência sexual ocorrem justamente nas primeiras 24 (vinte e quatro) horas da custódia policial, geralmente com o objetivo de extrair informações ou confissões dos presos ou castigá-los por supostos atos criminosos. 199. Para que se tenha uma ideia das dificuldades de realização da audiência de custódia em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura, basta atentar para o fato de que, no 29 trimestre de 2012, houve um total de 8.108 pri­ sões em flagrantes apenas na cidade de São Paulo, o que representa uma média diária superior a 90 prisões por dia, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Sou da Paz ("O impacto da Lei das Cautelares nas prisões em flagrante na cidade de São Paulo"). Como se percebe, fixado o lapso temporal de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da referida audiência, todas essas pessoas teriam que ser transportadas das mais diversas unidades policiais e carcerárias do município para os fóruns criminais em um curtíssimo espaço de tempo. Ante a logística necessária para a escolta dos autuados pela polícia às audiências, parece-nos que esse prazo de 24 (vinte e quatro) horas é absolutamente inexequível. Por tais motivos, preferimos concluir que o prazo máximo de 72 (setenta e duas) horas é mais compatível com a realidade brasileira, até mesmo para não transformar ato de tamanha importância numa verdadeira audiência de custódia drive trhu. De todo modo, para que não haja prejuízo em relação a eventual desaparecimento de vestígios ou marcas de tortura, seria obrigatória a realização, pela autoridade policial, de exame de corpo de delito no prazo de 24 (vinte e quatro) horas da efetivação da prisão em flagrante.

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fundamentais dos presos inseridos no sistema prisional brasileiro no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das au­ toridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades -, em virtude do qual as penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios teriam sido convertidas em penas cruéis e desumanas, o Plenário do Supremo Tribunal deferiu medida cautelar para determinar que juizes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão.200 Lavrado o auto de prisão em flagrante pela autoridade policial, o preso será conduzido, sem demora, à presença do juiz. Durante a realização da audiência de custódia, a autoridade judiciária deverá: a) cientificar o preso de seu direito de permanecer em silêncio; b) perguntar ao preso se foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de se consultar com advogado, o de ser visto por médi­ co e o de comunicar-se com seus familiares; c) indagar o preso sobre as circunstâncias de sua prisão e sobre as condições do estabelecimento onde se encontra detido; d) fazer consignar em ata quaisquer protestos, queixas ou observações relacionadas com os procedimentos policiais ou administrativos ou com as condições de sua custódia; e) tomar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades; f) comunicar ao Ministério Público possíveis ilegalidades; g) abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal, sem prejuízo de mandar consignar as declarações que o preso desejar fazer espontanea­ mente: como se percebe, é vedada a inquirição do preso sobre o mérito da imputação. Portanto, não devem ser admitidas perguntas que antecipem instrução própria de eventual processo de conhecimento. Afinal, em um sistema acusatório que visa preservar a imparcialidade do ma­ gistrado, ter-se-ia ressuscitada a figura do juiz inquisidor se o juiz se aproveitasse da audiência de custódia para assumir iniciativa acusatória incompatível com a sua função de garante das regras do jogo. Para além desses questionamentos, o juiz também deve formular perguntas so­ bre residência, atividade, e outras necessárias, de modo a ter melhores condições para avaliar a situação econômica do preso para fins de concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, cumulada (ou não) com as cautelares diversas da prisão.201 A nosso juízo, se presente uma das hipóteses listadas nos diversos incisos do § 2o do art. 185 do CPP, é perfeitamente possível que esta apresentação ocorra por meio de sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que seja possível constatar a plena observância dos direitos fundamentais do preso.

200. STF, Pleno, ADPF 347 MC/DF, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/09/2015. Com vigência a partir do dia l 9 de fevereiro de 2016, o Conselho Nacional de Justiça aprovou, em data de 15 de dezembro de 2015, a Resolução n9 213, regulamentando a implantação da audiência de custódia em todo o território nacional, fixando o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para apresentação do preso, salvo por situações excepcionais devidamente justificadas. Consta expressamente do art. I 9 da referida Resolução que a comunicação da prisão em flagrante à autoridade judicial por meio do encaminhamento do auto de prisão em flagrante não supre a apresentação pessoal do flagranteado efetivada por meio da audiência de custódia. 201. Por mais que a oitiva do preso durante a audiência de custódia deva ser registrada em autos apartados, parece-nos perfeitamente possível a utilização das informações por ele reveladas a título de prova, nos termos do art. 155, caput, do CPP. Ora, se os elementos de informação produzidos no bojo do inquérito policial, aí incluído o próprio interrogatório policial, podem ser usados para a formação da convicção do magistrado, desde que não exclusivamente, como se pode cogitar em descartar o termo da audiência de custódia, produzido na presença do Juiz, do Promotor de Justiça e do Defensor?

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Nesse caso, o preso e a autoridade judiciária deverão estar, preferencial e simultaneamente, em estabelecimentos sob administração do Poder Judiciário, assegurando-se a presença, na localidade onde se encontrar o preso, de defensor constituído, publico ou dativo, à semelhança do que ocorre no interrogatório judicial por videoconferência (CPP, art. 185, § 5o). Levando-se em conta que a audiência de custódia geralmente será presidida por um juiz de plantão, parece-nos que eventual decisão por ele proferida nos termos do art. 310 do CPP não terá o condão de acarretar a fixação da competência por prevenção. O art. 83 do CPP, que versa sobre a competência por prevenção, deve ser compreendido em conjunto com o art. 75, parágrafo único, do CPP, ou seja, só se pode cogitar de prevenção da competência quando a decisão, que a determinaria, tenha sido precedida de distribuição, por isso que não previnem a competência decisões de juiz de plantão, nem as facultadas, em caso de urgência, a qualquer dos juizes criminais do foro. Portanto, concluída a realização da audiência de custódia, enfim, após o fim do plantão, o feito deve ser objeto de regular distribuição. Por fim, resta saber quais serão as conseqüências decorrentes da não realização da audiência de custódia em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão. Em síntese, diante da carência de magistrados, membros do Ministério Público, Defensores Públicos e até mesmo de advogados em diversas comarcas Brasil afora, será que os Tribunais terão a coragem de dizer que se trata, o prazo de 24 (vinte e quatro) horas, de prazo próprio, cujo descumprimento implica o reconheci­ mento da ilegalidade da prisão, autorizando, por conseqüência, o relaxamento da prisão? Ou se, na verdade, valendo-se da premissa de que a contagem para o excesso de prazo na formação da culpa é global, e não individualizado, acabará prevalecendo a tese de que eventual excesso na apresentação do preso para fins de realização da audiência de custódia pode ser compensando durante o curso do processo judicial, transformando-se, assim, o referido prazo, em mais um prazo impróprio constante do CPP, funcionando como mero balizador para os operadores do Direito, mas cuja inobservância não gera qualquer sanção?202 Em conclusão, convém ressaltar que a audiência de custódia envolve apenas juízo pre­ liminar acerca da legitimidade da prisão preventiva, da necessidade de sua manutenção, da possibilidade de seu relaxamento ou de sua substituição por medidas alternativas. Logo, ainda que o magistrado responsável pela referida audiência venha a reconhecer a atipicidade de de­ terminada conduta para fins de determinar o relaxamento da prisão em flagrante, essa decisão não pode ser equiparada a uma decisão de mérito para efeito de coisa julgada. A propósito, em importante precedente do STF, referente a caso concreto em que 18 pessoas foram presas em flagrante com base nos crimes de associação criminosa (CP, art. 288) e corrupção de menores (Lei n. 8.069/90, art. 244-B), tendo o magistrado de plantão deliberado pelo relaxamento da prisão em virtude da atipicidade da conduta, a Ia Turma concluiu que tal magistrado não teria competência para determinar o arquivamento dos autos, porquanto sua atuação estaria limitada à regularidade da prisão, logo, incapaz de produzir coisa julgada.203

202

Para a 5§ Turma do STJ (RHC 85.101/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/08/2017, DJe 21/08/2017), não se vislum­ bra ilegalidade quando não realizada a audiência de custódia, uma vez que eventual nulidade do flagrante fica superada com a superveniência do decreto de prisão preventiva.

203

STF, 1- Turma, HC 157.306/SP, Rei. Min. Luiz Fux, j. 25/09/2018.

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1. CONCEITO DE PRISÃO EM FLAGRANTE A expressão ‘flagrante’ deriva do latim \flagrare ’(queimar), e ‘flagrans’, [flagrantis ’(ar­ dente, brilhante, resplandecente), que, no léxico, significa acalorado, evidente, notório, visível, manifesto. Em linguagem jurídica, flagrante seria uma característica do delito, é a infração que está queimando, ou seja, que está sendo cometida ou acabou de sê-lo, autorizando-se a prisão do agente mesmo sem autorização judicial em virtude da certeza visual do crime. Funciona, pois, como mecanismo de autodefesa da própria sociedade. Compreendido o conceito de flagrante delito, pode-se definir a prisão em flagrante como uma medida de autodefesa da sociedade, consubstanciada na privação da liberdade de locomoção daquele que é surpreendido em situação de flagrância, a ser executada indepen­ dentemente de prévia autorização judicial (CF, art. 5o, LXI). A expressão ‘delito ’ abrange não só a prática de crime, como também a de contravenção. Nesse caso, todavia, tratando-se de infração de menor potencial ofensivo, não se procede à lavratura de Auto de Prisão em Flagrante, mas sim de Termo Circunstanciado de Ocorrência, caso o agente assuma o com­ promisso de comparecer ao Juizado ou a ele compareça imediatamente (Lei n° 9.099/95, art. 69, parágrafo único). 2. FUNÇÕES DA PRISÃO EM FLAGRANTE A prisão em flagrante tem as seguintes funções: a) evitar a fuga do infrator; b) auxiliar na colheita de elementos informativos: persecuções penais deflagradas a partir de um auto de prisão em flagrante costumam ter mais êxito na colheita de elementos de infor­ mação, auxiliando o dominus litis na comprovação do fato delituoso em juízo; c) impedir a consumação do delito, no caso em que a infração está sendo praticada (CPP, art. 302, inciso I), ou de seu exaurimento, nas demais situações (CPP, art. 302, incisos II, III e IV); d) preservar a integridade física do preso, diante da comoção que alguns crimes provocam na população, evitando-se, assim, possível linchamento. No sistema concebido originalmente pelo Código de Processo Penal de 1941, a prisão em flagrante tinha não apenas essas funções, como igualmente a de servir de medida acautelatória. Desse modo, quem era preso em flagrante, desde que não se livrasse solto, não fosse admissível a fiança, ou não tivesse sua conduta justificada por alguma excludente da ilicitude, deveria, apenas por esse motivo, permanecer preso durante todo o processo. O flagrante, por si só, era fundamento suficiente para que o indivíduo permanecesse recolhido à prisão ao longo de todo o processo, sem que houvesse necessidade de se motivar o encarceramento à luz de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Com a inserção do parágrafo único ao art. 310 do CPP pela Lei n° 6.416, de 24 de maio de 1977, a prisão em flagrante deixou de ser motivo para que a pessoa permanecesse presa ao longo de todo o processo, pois, ao receber cópia do auto de prisão em flagrante, passou a ser obriga­ ção do magistrado examinar não só a legalidade da medida, para fins de eventual relaxamento,

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como também verificar a presença de algum dos motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.204 Agora, com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, fica patente que a prisão em flagrante, por si só, não mais autoriza que o agente permaneça preso ao longo de todo o processo. Afinal, segundo a nova redação do art. 310 do CPP, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liber­ dade provisória, com ou sem fiança. 3. FASES DA PRISÃO EM FLAGRANTE Inicialmente, a prisão em flagrante funciona como mero ato administrativo, dispensando-se autorização judicial. Exige apenas a aparência da tipicidade, não se exigindo nenhuma valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade. Na sistemática do CPP, o flagrante se divide em quatro momentos distintos: captura, condução coercitiva, lavratura do auto de prisão em flagrante e recolhimento à prisão. No primeiro momento, o agente encontrado em situação de flagrância (CPP, art. 302) é capturado, de forma a evitar que continue a praticar o ato delituoso. A captura tem por função precípua resguardar a ordem pública, fazendo cessar a lesão que estava sendo cometida ao bem jurídico pelo impedimento da conduta ilícita. Após a captura, o agente será conduzido coercitivamente à presença da autoridade policial para que sejam adotadas as providências legais. De seu turno, a lavratura é a elaboração do auto de prisão em flagrante, no qual são documentados os elementos sensíveis existentes no momento da infração. Este ato tem como objetivo precípuo auxiliar na manutenção dos elementos de prova da infração que se acabou de cometer. Por fim, a detenção é a manutenção do agente no cárcere, que não será necessária nas hipóteses em que for cabível a concessão de fiança pela autoridade policial, ou seja, infrações penais cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322, com redação dada pela Lei n° 12.403/11). Ao preso, depois, deve ser entregue nota de culpa, em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura. Posteriormente, a prisão em flagrante converte-se em ato judicial, a partir do momento em que a autoridade judiciária é comunicada da detenção do agente, a fim de analisar sua legalidade, para fins de relaxamento, necessidade de conversão em prisão preventiva, ou acerca do cabimento de liberdade provisória, com ou sem fiança. De mais a mais, com o advento da Lei n° 11.449/07, e objetivando assegurar ao preso a assistência de advogado (CF, art. 5o, LXIII), caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral do auto de prisão em flagrante também deve ser encaminhada à Defensoria Pública (CPP, art. 306, § Io). Essa análise da prisão em flagrante em fases é de extrema relevância. Em um primeiro momento, em virtude de certos dispositivos legais, segundo os quais se estabelece que não se imporá prisão em flagrante: a) Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança (Lei n° 9.099/95, art. 69, parágrafo único);

204 Como será visto com mais detalhes ao tratarmos da liberdade provisória, essa liberdade provisória sem fiança outrora prevista no art. 310, parágrafo único, do CPP, cabível quando o juiz verificasse a inocorrência das hipó­ teses que autorizam a prisão preventiva, foi revogada pela Lei n9 12.403/11.

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b) Tratando-se da conduta de porte de drogas para consumo pessoal, ou posse de planta tóxica para extração de droga com o escopo de consumo pessoal, não se imporá prisão em fla­ grante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente, ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários (Lei n° 11.343/06, art. 48, § 2o).

Conquanto a lei use a expressão não se imporá prisão em flagrante, deve-se entender que é perfeitamente possível a captura e a condução coercitiva do agente, estando vedada somente a lavratura do auto de prisão em flagrante e o subsequente recolhimento ao cárcere. Em tais hipóteses, caso o capturado assuma o compromisso de comparecer ao Juizado ou a ele compa­ reça imediatamente, não será lavrado o auto de prisão em flagrante, mas tão somente o termo circunstanciado, com sua imediata liberação.205 Se, todavia, o agente se recusar a comparecer imediatamente ao Juizado ou a assumir o compromisso de a ele comparecer, deve a autoridade policial proceder à lavratura do auto de prisão em flagrante, o que também não significa que o agente permanecerá preso, porquanto é possível que lhe seja concedida liberdade provisória com fiança pelo próprio delegado de polícia, caso a infração seja punida com pena máxima não superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11). O Código de Trânsito Brasileiro também tem dispositivo semelhante aos acima citados. Segundo o art. 301, caput, da Lei n° 9.503/97, ao condutor de veículo, nos casos de acidentes de trânsito de que resulte vítima, não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, se prestar pronto e integral socorro àquela. Outro aspecto relevante decorrente dessa divisão da prisão em flagrante em fases diz respeito à autoridade coatora para fins de impetração de habeas corpus. Enquanto a prisão em flagran­ te for um ato administrativo, a autoridade coatora é o delegado de polícia,206 razão pela qual eventual habeas corpus deve ser impetrado perante um juiz de Io grau. No entanto, a partir do momento em que o juiz é comunicado da prisão em flagrante, quedando-se inerte, seja quanto ao relaxamento da prisão ilegal, seja quanto à concessão da liberdade provisória, transforma-se em autoridade coatora, devendo o habeas corpus ser dirigido ao respectivo Tribunal.207 4. NATUREZA JURÍDICA DA PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO Diversamente da prisão preventiva e da prisão temporária, a prisão em flagrante independe de prévia autorização judicial, estando sua efetivação limitada à presença de uma das situações de flagrância descritas no art. 302 do CPP. Como dito acima, quando da elaboração do Código de Processo Penal, a prisão em flagran­ te, por si só, era fundamento suficiente para que o acusado permanecesse preso durante todo o processo, salvo se o delito fosse afiançável ou nas hipóteses em que o acusado livrava-se solto (antiga redação do art. 321 do CPP). Esse sistema, todavia, sofreu profunda modificação com a Lei n° 6.416/77, que inseriu um parágrafo único ao art. 310 do Código de Processo Penal, segundo o qual se o juiz verificasse, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipó­ teses que autorizam a prisão preventiva, deveria conceder ao capturado liberdade provisória sem fiança, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação. 205

STJ - 5ã T. HC 19.071 - Rei. Felix Fischer - j. 19.02.2002 - JSTJ e TRF-LEX 156/354).

206 STJ, 53 Turma, HC 60.243/GO, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 12/03/2007 p. 276. 207

STJ, 53 Turma, HC 40.455/RJ, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 04/04/2005 p. 334.

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Diante da antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP, não mais se justificava que alguém permanecesse preso em flagrante durante todo o processo. Em outras palavras, para que alguém ficasse preso, afigurava-se imprescindível a presença de um dos fundamentos para a prisão preventiva. Logo, se o agente permanecesse preso, não estaria preso por causa do flagrante, mas sim em virtude da conversão de sua prisão em flagrante em preventiva. Portanto, mesmo antes das alterações produzidas pela Lei n° 12.403/11, a homologação do auto de prisão em flagrante já não era suficiente, por si só, para que o capturado pudesse permanecer sob custódia, sendo necessária, para tanto, a decretação de sua prisão preventiva com base na presença dos pressupostos dos arts. 312 e 313 do CPP. No entanto, somos obrigados a ressaltar que, pelo menos antes da entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, ainda prevalecia na jurisprudência o entendimento de que a prisão em flagrante era modalidade autônoma de custódia provisória, sendo capaz de justificar, de per si, a manutenção do indivíduo sob cárcere, independentemente de sua conversão em preventiva no momento subsequente à homologação do respectivo auto. Costumava-se citar, como fundamento legal dessa corrente, o preceito do art. 334 do CPP que permite que a fiança seja prestada em qual­ quer termo do processo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. Como a fiança só podia ser concedida àquele que foi preso em flagrante, e considerando que o art. 334 permite sua prestação em qualquer fase do processo, enquanto não houver o trânsito em julgado da condenação, concluía-se que o indivíduo preso em flagrante podia permanecer preso por conta do flagrante até esse momento. Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, fica patente que a prisão em flagrante, por si só, não mais autoriza que o agente permaneça preso ao longo de todo o processo. Afinal, segundo a nova redação do art. 310 do CPP, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liber­ dade provisória, com ou sem fiança. Se a prisão em flagrante já não é mais capaz de justificar, por si só, a subsistência da pri­ são do agente, cuja necessidade deve ser aferida à luz da presença de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, discute-se na doutrina acerca de sua verdadeira natureza j uri dica: medida de caráter precautelar, ato administrativo, e, portanto, espécie de prisão administrativa, ou prisão cautelar? Sem embargo de opiniões em sentido contrário, pensamos que a prisão em flagrante tem caráter precautelar. Não se trata de uma medida cautelar de natureza pessoal, mas sim precautelar, porquanto não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas objetiva colocar o capturado à disposição do juiz para que adote uma verdadeira medida cautelar: a conversão em prisão preventiva (ou temporária), ou a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada ou não com as medidas cautelares diversas da prisão.208 Esse entendimento, quanto a sua natureza jurídica de medida precautelar, ganha reforço com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, que passa a prever que, recebido o auto de pri­ são em flagrante, e verificada sua legalidade, terá o juiz duas opções: converter a prisão em

208

No sentido de que a prisão em flagrante não é uma medida cautelar, mas sim pré-cautelar: GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luís. Prisão e m edidas cautelares: com entários à Lei 12.403, de 4 de m aio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 89. E ainda: LOPES JR., Aury. Op. cit. p. 63.

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flagrante em preventiva, a qual é espécie de medida cautelar, ou conceder liberdade provisória com ou sem fiança, impondo as medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP, observados os critérios do art. 282. Fica patente, assim, que a prisão em flagrante coloca o preso à disposição do juiz para a adoção de uma medida cautelar, daí por que deve ser considerada como medida de natureza precautelar. Em outra linha, há doutrinadores que entendem que a natureza jurídica da prisão em flagrante é de ato administrativo tão somente, não possuindo natureza jurisdicional, sendo in­ viável querer situá-la como medida processual acautelatória com a qual se determina a prisão de alguém. Com esse entendimento, Walter Nunes da Silva Júnior sustenta que “o que ocorre com a prisão em flagrante é, tão somente, a detenção do agente, a fim de que o juiz, posterior­ mente, decida se a pessoa deve ser levada, ou não, à prisão. Com isso, se quer dizer que não há, propriamente, uma prisão em flagrante como espécie de medida acautelatória processual penal. O flagrante delito se constitui e justifica apenas a detenção, cabendo ao juiz, após a análise por meio da leitura do auto de prisão em flagrante, definir se a prisão preventiva deve, ou não, ser decretada”.209 Prevalece, todavia, o entendimento de que a prisão em flagrante é espécie de prisão caute­ lar, ao lado da prisão preventiva e temporária. Perfilha desse entendimento Tourinho Filho, que inclui a prisão em flagrante entre as prisões cautelares de natureza processual.210 Há, ainda, o entendimento de José Frederico Marques, para quem a prisão de natureza cau­ telar subdivide-se em duas espécies: prisão penal cautelar administrativa e prisão penal cautelar processual, dependendo da autoridade que a decreta. A prisão penal cautelar administrativa é aquela decretada ainda na fase pré-processual, pelo Delegado de Polícia, em razão de investigado apanhado em flagrante delito. Tal prisão, entretanto, muito embora tenha inicialmente natureza administrativa, toma-se posteriormente de natureza processual, pois projeta conseqüências na relação processual que se estabelece no juízo penal. Por sua vez, a prisão penal cautelar pro­ cessual é aquela decretada pelo juiz e se destina a tutelar os meios e fins do processo penal de conhecimento, de modo a assegurar a eficácia da decisão a ser prolatada ao final e possibilitar a normalidade da instrução probatória e da ordem pública e econômica.211 5. SUJEITO ATIVO DA PRISÃO EM FLAGRANTE Sujeito ativo da prisão em flagrante é aquele que efetua a prisão do cidadão encontrado em uma das situações de flagrância previstas no art. 302 do CPP. Pode ser qualquer pessoa, integrante ou não da força policial, inclusive a própria vítima. Não se confunde com o condutor, que é a pessoa que apresenta o preso à autoridade que presidirá a lavratura do auto, nem sempre correspondendo àquele que efetuou a prisão. 5.1. Flagrante facultativo Extrai-se do art. 301 do CPP que qualquer do povo poderá prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Percebe-se, pois, que o particular (inclusive a própria vítima)

209

Op. cit. p. 880.

210 Processo Penal. 3 I s ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 464. Denílson Feitoza (D ireito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6- ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2009. P. 840) e Mirabete (Processo Penal. 18ã ed. rev. e atual, até 31 de dezembro de 2005. São Paulo: Atlas, 2006. p. 374) também entendem que a prisão em flagrante é espécie de prisão cautelar. 211 Elementos de direito processual penal. 2ã ed. rev. e atual. Campinas: Millennium, 2000. p. 25.

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tem a faculdade de prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Para o particular, portanto, a prisão em flagrante configura exercício regular de direito. 5.2. Flagrante obrigatório, compulsório ou coercitivo Também se extrai do art. 301 do CPP que as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. A autoridade policial e seus agentes têm, portanto, o dever de efetuar a prisão em flagrante, não tendo discricionariedade sobre a conveniência ou não de efetivá-la. A prisão em flagrante, para as autoridades policiais e seus agentes, configura estrito cumprimento do dever legal.212 O art. 301 do CPP não faz qualquer distinção entre polícia ostensiva (Polícia Militar, Polícia Rodoviária e Ferroviária Federal) e polícia judiciária (Polícia Civil e Polícia Federal), razão pela qual se aplica a ambas o dever de efetuar a prisão em flagrante. Tendo a autoridade policial o dever de agir, sua omissão pode inclusive estabelecer respon­ sabilidade criminal, seja pelo delito de prevaricação - desde que comprovado que assim agiu para satisfazer interesse ou sentimento pessoal ~,213 seja pelo próprio delito praticado pelo agente em situação de flagrância, se podia agir para evitar sua consumação (CP, art. 13, § 2o, “a”). Ressalte-se que a lei faz menção apenas à autoridade policial, o que afasta as demais auto­ ridades como o juiz e o promotor, os quais, como qualquer outro cidadão, só terão a faculdade de prender o agente em flagrante delito. Essa obrigação de prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito que recai sobre a autoridade policial é mitigada nos casos de ação controlada, flagrante prorrogado ou retardado, espécies de flagrante a serem estudadas mais adiante. 6. SUJEITO PASSIVO DO FLAGRANTE Pelo menos em regra, qualquer pessoa pode ser presa em flagrante. Fíá exceções, que já foram abordadas anteriormente ao tratarmos das imunidades prisionais. 7. ESPÉCIES DE FLAGRANTE As hipóteses que autorizam a prisão em flagrante de determinada pessoa estão previstas nos incisos I, II, III e IV do art. 302 do Código de Processo Penal. Cuida-se de rol taxativo, modelando e qualificando situações de flagrância, de modo a afastar eventual violência ao direito constitucional de locomoção. Esse rol, por conseguinte, não comporta o emprego de analogia, nem tampouco de interpretação extensiva, evidenciando-se constrangimento ilegal à liberdade de locomoção caso o agente se veja preso em flagrante em situação fática que não se amolde às hipóteses previstas no art. 302, quando, então, será cabível o relaxamento da prisão (CF, art. 5o, LXV). 212

Deve a autoridade policial efetuar a prisão durante as 24 horas do dia: "A situação de trabalho do policial civil o remete ao porte permanente de arma, já que considerado por lei constante mente atrelado aos seus deveres funcionais" (TJSP, HC 342.778-3, Jaú, 6^ C., rei. Barbosa Pereira, 19/04/2001, v.u., JUBI 60/01). A Portaria CORREGPM-1/01/01 da PMESP determina ser dever do policial militar "atuar onde estiver, mesmo não estando em serviço, para preservar a ordem pública ou prestar socorro".

213

Para o Supremo, "o simples fato de não se haver lavrado auto de prisão em flagrante, formalizando-se tão-so­ mente o boletim de ocorrência, longe fica de configurar o crime de prevaricação que, à luz do disposto no artigo 319 do Código Penal, pressupõe ato omissivo ou comissivo voltado a satisfazer interesse ou sentimento próprio. Inexistente o dolo específico, cumpre o arquivamento de processo instaurado". (STF, 1- Turma, HC 84.948/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ 18/03/2005 p. 63).

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Pela leitura dos incisos do art. 302 do Código de Processo Penal, percebe-se que há uma relação decrescente de imediatidade. Nas palavras de Paulo Rangel, “tem início com o fogo ardendo (está cometendo a infração penal - inciso I), passa para uma diminuição da chama (acaba de cometê-la - inciso II), depois para a perseguição direcionada pela fumaça deixada pela infração penal (inciso III) e, por último, termina com o encontro das cinzas ocasionadas pela infração penal (é encontrado logo depois - inciso IV)”.214 7.1. Flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro Entende-se em flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro, o agente que é surpreendido co­ metendo uma infração penal ou quando acaba de cometê-la (CPP, art. 302, incisos I e II). A expressão “acaba de cometê-la” deve ser interpretada de forma restritiva, no sentido de absoluta imediatidade (sem qualquer intervalo de tempo). Em outras palavras, o agente é encontrado imediatamente após cometer a infração penal, sem que tenha conseguido se afastar da vítima e do lugar do delito. Assim, caso o agente seja surpreendido no momento em que está praticando o verbo núcleo do tipo penal (ex: subtraindo coisa alheia móvel), sua prisão em flagrante poderá ser efetuada. Ainda que, posteriormente, seja reconhecida a atipicidade material de sua conduta (v.g., por força do princípio da insignificância), isso não tem o condão de afastar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, porquanto a análise que se faz, no momento da captura do agente, res­ tringe-se à análise da tipicidade formal.215 7.2. Flagrante impróprio, imperfeito, irreal ou quase-flagrante O flagrante impróprio, também chamado de imperfeito, irreal ou quase-flagrante, ocorre quando o agente é perseguido logo após cometer a infração penal, em situação que faça presumir ser ele o autor do ilícito (CPP, art. 302, inciso III). Exige o flagrante impróprio a conjugação de 3 (três) fatores: a) perseguição (requisito de atividade); b) logo após o cometimento da infração penal (requisito temporal); c) situação que faça presumir a autoria (requisito circunstancial). Impõe-se, inicialmente, verificar o significado da expressão logo após. Por logo após com­ preende-se o lapso temporal que permeia entre o acionamento da autoridade policial, seu comparecimento ao local e colheita de elementos necessários para que dê início à perseguição do autor.216 Por isso, tem-se entendido que não importa se a perseguição é iniciada por pessoas que estavam no local ou pela polícia, acionada por meio de ligação telefônica. Nessa esteira, como se pronunciou o STJ, “a seqüência cronológica dos fatos demonstram a ocorrência da hipótese de prisão em flagrante prevista no art. 302, inciso III, do Código de Processo Penal, denominada pela doutrina e jurisprudência de flagrante impróprio, ou quase-flagrante. Hipótese em que a polícia foi acionada às 05:00 horas, logo após a prática, em tese, do delito, saindo à procura do veículo utilizado pelo paciente, de propriedade de seu irmão, logrando êxito em localizá-lo por volta das 07:00 horas do mesmo dia, em frente à casa de sua mãe, onde o paciente se encontrava dormindo. Do momento em que fora acionada até a efetiva localização do paciente, a Polícia levou cerca de 02 (duas) horas, não havendo dúvidas de que a situação flagrancial se encontra caracterizada, notadamente porque foram encontrados 214

RANGEL, Paulo. D ireito Processual Penal. 10§ ed. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2005. p. 620.

215

STJ, 5§ Turma, HC 154.949/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 03/08/2010, DJe 23/08/2010.

216 STJ, 5§ Turma, HC 83.895/CE, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 05/11/2007 p. 328; STJ, 5â Turma, HC 24.510/MG, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 02/06/2003 p. 310; STJ, 5®Turma, HC 8.303/ SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 16/08/99 p. 78.

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os brincos da vítima no interior do veículo utilizado para a prática da suposta infração penal, fazendo presumir que, se infração houve, o paciente seria o autor”.217 Em se tratando de crimes contra menores de idade (v.g., estupro de vulnerável do art. 217A, caput, do CP), há julgados do Superior Tribunal de Justiça conferindo maior elasticidade à expressão logo após. Entende o Egrégio Tribunal que, tratando-se de quase-flagrante ou flagrante impróprio relativo a fato contra menor, o tempo a ser considerado medeia entre a ciência do fato pelo seu representante e as providências legais que este venha a adotar para a perseguição do paciente. Havendo perseguição ao ofensor, por policiais, logo após terem sido informados do fato pela mãe da vítima, caracterizado estará o estado de quase-flagrância, pouco importando se a prisão ocorreu somente poucas horas depois. Evidentemente, se não houve a perseguição logo após o delito, não é admissível a prisão no outro dia, mesmo que no momento da prisão já se soubesse quem era o autor do delito.218 Como a lei não define o que se entende por ‘perseguido, logo após’, aplica-se, por analo­ gia, o disposto no art. 290, § Io, alíneas “a” e “b”, do CPP, segundo os quais entende-se que há perseguição quando: a) tendo a autoridade, o ofendido ou qualquer pessoa avistado o agente, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista; b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço. Vale lembrar que, nessas hipóteses de perseguição, a prisão pode ser efetuada em qualquer local onde o capturando for encontrado, ainda que em outro Estado da federação, em sua casa ou em casa alheia (CPP, art. 290, caput, c/c art. 293, caput, c/c art. 294, caput). O importante, no quase-flagrante, é que a perseguição tenha início logo após o cometimento do fato delituoso, podendo perdurar por várias horas, desde que seja ininterrupta e contínua, sem qualquer solução de continuidade. Carece de fundamento legal, portanto, a regra popular segundo a qual a prisão em flagrante só pode ser levada a efeito em até 24 (vinte e quatro) horas após o cometimento do crime. Isso porque, nos casos de flagrante impróprio, desde que a per­ seguição seja ininterrupta e tenha tido início logo após a prática do delito, é cabível a prisão em flagrante mesmo após o decurso desse lapso temporal. Ex: acusado que estava sendo medicado em emergência de hospital, em razão de tiros que o atingiram quando perseguido pela Polícia, logo após o fato, ocasião em que foi preso.219 7.3. Flagrante presumido, ficto ou assimilado No flagrante presumido, ficto ou assimilado, o agente é preso logo depois de cometer a infração, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da

217 STJ, 5^ Turma, HC 55.559/GO, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 29/05/2006 p. 284. Com entendimento semelhante: STJ, 5§ Turma, HC 126.980/GO, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 06/08/2009, DJe 08/09/2009. 218 STJ, 53 Turma, HC 3.496/DF, Rei. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ 25/09/1995 p. 31.114. Na mesma linha: "Cuidan­ do-se de violência sexual perpetrada contra menor, pode-se entender como logo após o tempo que medeia entre a prática do delito, a ciência do fato pelo representante legal da menor, as prementes medidas que este venha a adotar para a perseguição do agente, a breve apuração dos fatos e da identidade do autor e o efetivo início da perseguição. A seu turno, perseguição é fato definido normativamente (CPP, art. 290, § 1Q) e se deve operar de maneira incessante. In casu, demonstrando que a perseguição empreendida pela Polícia Judiciária, após as medidas adotadas pela representante da vítima, tão logo tomou conhecimento do que se passara, foi incessante e ininterrupta até a localização, o reconhecimento e a prisão em flagrante delito do paciente como autor do fato criminoso, configurada está a ocorrência do quase-flagrante ou flagrante impróprio nos moldes da lei (CPP, art. 302, III)" (TJBA - 23 Câm. Crim. HC 14.810-2/99 - Rei. Benito A. de Figueiredo - j. 24.02.2000 - RT 778/632). 219

Nessa linha: STJ, 53 Turma, HC 66.616/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 25/06/2007 p. 264.

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infração (CPP, art. 302, IV). Nesse caso, a lei não exige que haja perseguição, bastando que a pessoa seja encontrada logo depois da prática do ilícito com coisas que traduzam um veemente indício da autoria ou participação no crime. Ex: agentes encontrados algumas horas depois do crime em circunstâncias suspeitas, aptas a autorizar a presunção de serem os autores do delito, por estarem na posse do automóvel e dos objetos da vítima, além do fato de tentarem fugir, ao perceberem a presença de viatura policial.220 Segundo parte da doutrina, a expressão logo depois constante do inciso IV não indica prazo certo, devendo ser compreendida com maior elasticidade que logo após (inciso III). Deve ser interpretada com temperamento, todavia, a fim de não se desvirtuar a própria prisão em flagrante. Com a devida vênia, pensamos que a expressão logo depois (CPP, art. 302, IV) não é diferente de logo após (CPP, art. 302, III), significando ambas uma relação de imediatidade entre o início da perseguição, no flagrante impróprio, e o encontro do acusado, no flagrante presumido. Na verdade, a única diferença é que, no art. 302, III, há perseguição, enquanto que, no art. 302, IV, o que ocorre é o encontro do agente com objetos que façam presumir ser ele o autor da infração. Caso o agente seja encontrado com objetos que façam presumir ser ele o autor da infração, porém algum tempo após a prática do delito, deve a autoridade policial deixar de dar voz de prisão em flagrante, sem prejuízo, no entanto, da lavratura de boletim de ocorrência e posterior instauração de inquérito policial. 7.4. Flagrante preparado, provocado, crime de ensaio, delito de experiência ou delito putativo por obra do agente provocador Ocorre quando alguém (particular ou autoridade policial), de forma insidiosa, instiga o agente à prática do delito com o objetivo de prendê-lo em flagrante, ao mesmo tempo em que adota todas as providências para que o delito não se consume. Como adverte a doutrina, nessa hipótese de flagrante o suposto autor do delito não passa de um protagonista inconsciente de uma comédia, cooperando para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores, ou da simulação da exterioridade de um crime. Exemplificando, suponha-se que, após prender o traficante de uma pequena cidade, e com ele apreender seu computador pessoal no qual consta um cronograma de distribuição de drogas, a autoridade policial passe a efetuar ligações aos usuários, simulando uma venda de droga. Os usuários comparecem, então, ao local marcado, efetuando o pagamento pela aquisição da droga. Alguns minutos depois, são presos por agentes policias que se encontravam à paisana, sendo responsabilizados pela prática do crime do art. 28 da Lei n° 11.343/06. Nesse caso, estará caracterizado o flagrante preparado, como espécie de crime impossível, em face da ineficácia absoluta dos meios empregados. Logo, diante da ausência de vontade livre e espontânea dos autores e da ocorrência de crime impossível (CP, art. 17), a conduta deve ser considerada atípica221. Cuidando-se de flagrante preparado, e, por conseguinte, ilegal, pois alguém se vê preso em face de conduta atípica, afigura-se cabível o relaxamento da prisão pela autoridade judiciária competente (CF, art. 5o, inciso LXV).

220 STJ, 6a Turma, REsp 147.839, Rei. Hamilton Carvalhido, j. 01.03.2001, RT 794/572. Com entendimento semelhante: STJ, 5a Turma, HC 75.114/MT, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 01/10/2007 p. 317. 221

Reconhecendo a existência de flagrante preparado e, consequentemente, a atipicidade da conduta, em caso concreto no qual um indivíduo fora induzido pela Polícia a cometer o crime de tráfico de drogas: STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 262.294/SP, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 21/11/2017, DJe 01/12/2017.

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Acerca do flagrante preparado, confira-se o teor da Súmula n° 145 do Supremo Tribunal Federal: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia toma impossível a sua consumação”. A leitura da súmula fornece os dois requisitos do flagrante preparado: preparação e não consumação do delito. Logo, mesmo que o agente tenha sido induzido à prática do delito, porém operando-se a consumação do ilícito, haverá crime e a prisão será considerada legal. Para Pacelli, “não existe real diferença entre o flagrante preparado e o flagrante esperado, no que respeita à eficiência da atuação policial para o fim de impedir a consumação do delito. Duzentos policiais postados para impedir um crime provocado por terceiro (o agente provocador) têm a mesma eficácia ou eficiência que outros duzentos policiais igualmente postados para impedir a prática de um crime esperado. Assim, de duas, uma: ou se aceita ambas as hipóteses como de flagrante válido, como nos parece mais acertado, ou as duas devem ser igualmente recusadas, por coerência na respectiva fundamentação”.222 A jurisprudência, no entanto, não estabelece qualquer distinção entre flagrante preparado ou provocado, concluindo que a prisão será considerada ilegal quando restar caracterizada a indução à prática delituosa por parte do denominado agente provocador, aliada à ineficácia absoluta dos meios empregados pelo agente para se atingir a consumação do ilícito.223 7.5. Flagrante esperado Nessa espécie de flagrante, não há qualquer atividade de induzimento, instigação ou provo­ cação. Valendo-se de investigação anterior, sem a utilização de um agente provocador, a autori­ dade policial ou terceiro limita-se a aguardar o momento do cometimento do delito para efetuar a prisão em flagrante, respondendo o agente pelo crime praticado na modalidade consumada, ou, a depender do caso, tentada. Tratando-se de flagrante legal, não há falar em relaxamento da prisão nos casos de flagrante esperado, funcionando a liberdade provisória com ou sem fiança como medida de contracautela.224 A propósito, como já se manifestou o STJ, não se deve confundir flagrante preparado com esperado - em que a atividade policial é apenas de alerta, sem instigar qualquer mecanismo causai da infração. A “campana” realizada pelos policiais a espera dos fatos não se amolda à figura do flagrante preparado, porquanto não houve a instigação e tampouco a preparação do ato, mas apenas o exercício pelos milicianos de vigilância na conduta do agente criminoso tão-somente à espera da prática da infração penal.225 Em sentido um pouco diverso, Rogério Greco entende que é possível que uma hipótese de flagrante esperado transforme-se em crime impossível, caso a autoridade policial adote um esquema infalível de proteção ao bem jurídico, de tal forma que o crime jamais possa se con­ sumar (CP, art. 17, caput). Segundo o referido autor, se o agente, analisando o caso concreto, estimulado ou não a praticar o crime, não tinha como alcançar a sua consumação porque dele soubera com antecedência a autoridade policial e preparou tudo de modo a evitá-la, não podemos atribuir-lhe o conatus. Não importa se o flagrante é preparado ou esperado.226 222

Op. cit. p. 444.

223

STJ - HC 81.020/SP - 5®Turma - Rei. Min. Felix Fischer - Dje 14/04/2008.

224 STF, 2® Turma, HC 78.250/RJ, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 26/02/1999 p. 3. E ainda: STF, 1§ Turma, HC 76.397/ RJ, Rei. Min. limar Galvão, DJ 27/02/1998 p. 3. Verifica-se o flagrante esperado na hipótese em que policiais, após obterem, por meio de interceptação telefônica judicialmente autorizada, informações de que associação criminosa armada pretende realizar roubo em estabelecimento industrial, conseguem, por meio de ação tempestiva, evitar a consumação da empreitada criminosa: STJ, 5ã Turma, HC 84.141/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 18/02/2008 p. 48. 225

STJ, 53 Turma, HC 40.436/PR, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 02/05/2006 p. 343.

226

Curso de D ireito Penal.

5ã ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. p. 328.

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Em que pese o referido posicionamento doutrinário, a jurisprudência reluta em aceitar a hipótese de crime impossível no flagrante esperado. E isso porque a simples presença de sistemas de vigilância, ou monitoramento por policiais, não tomam o agente absolutamente incapaz de consumar o delito. Ter-se-ia, portanto, ineficácia relativa do meio empregado, e não absoluta, como exige o Código Penal para a caracterização do crime impossível (CP, art. 17, caput). Daí por que, em caso concreto no qual o agente, no momento da subtração, estava sendo observado pelo sistema interno de segurança, com posterior prisão em flagrante, concluiu o STJ que a simples presença de sistema permanente de vigilância, ou de ter sido o acusado acompanhado por vigia enquanto tentava subtrair o bem, não toma o agente completamente incapaz de consu­ mar o delito. Logo, não há que se afastar a punição, a ponto de reconhecer o crime impossível pela ineficácia absoluta dos meios empregados. Diante da possibilidade, ainda que mínima, de consumação do delito, não há falar em crime impossível.227 7.5.1. Venda simulada de droga Muito se discute acerca do flagrante no caso de drogas: preparado ou esperado? A nosso juízo, tudo depende do caso concreto. A título de exemplo, imagine-se a hipótese em que uma autoridade policial, fazendo-se passar por usuário de drogas, dirige-se à determinada praça onde tem conhecimento que determinada pessoa esteja vendendo drogas. Com a intenção de confirmar que o traficante traz consigo subs­ tância entorpecente, solicita a este determinada quantidade de droga, efetuando a prisão no exato momento em que a droga lhe é entregue. Com o vendedor são apreendidos inúmeros papelotes de cocaína e maconha, além da pequena porção supostamente vendida à autoridade policial. Nessa hipótese, dúvidas não restam quanto à configuração do flagrante preparado em rela­ ção ao verbo ‘vender’. Afinal de contas, ao mesmo tempo em que a autoridade policial induziu o agente à venda da droga, adotou todas as precauções para que tal venda não se consumasse. Entretanto, há que se lembrar que o tipo penal do art. 33 da Lei n° 11.343/06 é exemplo de tipo misto alternativo, ou seja, tipo penal que descreve crimes de ação múltipla ou de conteúdo variado ou plurinuclear.228

227 STJ, 6§ Turma, HC 89.530/SP, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ11/02/2008 p. 1. Na visão da 3ã Seção do STJ, a existência de sistema de segurança ou de vigilância eletrônica não torna impossível, por si só, o crime de furto cometido no interior de estabelecimento comercial. À luz do art. 17 do CP, há que se distinguir a insuficiência do m eio (inidoneidade relativa) - deficiência de forças para alcançar o fim delituoso e determinada por razões de qualidade, quantidade, ou de modo - da ausência com pleta de poten­ cialidade causai (inidoneidade absoluta), observando-se que a primeira (diferentemente da segunda) não torna absolutamente impossível o resultado que consuma o delito, pois o fortuito pode suprir a insuficiência do meio empregado. No caso de furto praticado no interior de estabelecimento comercial guarnecido por mecanismo de vigilância e de segurança, embora os sistemas eletrônicos de vigilância tenham por objetivo evitar a ocorrência de furtos, sua eficiência apenas minimiza as perdas dos comerciantes, visto que não impedem, de modo absoluto, a ocorrência de subtrações no interior de estabelecimentos comerciais. Ora, não se pode afirmar, em um juízo normativo de perigo potencial, que o equipamento funcionará normalmente, que haverá vigilante a observar todas as câmeras durante todo o tempo, que as devidas providências de abordagem do agente serão adotadas após a constatação do ilícito etc. Sendo assim, se a ineficácia do meio ocorrer apenas de forma relativa, não é possível o reconhecimento do instituto do crime impossível previsto no art. 17 do CP. A propósito: STJ, 3ã Seção, REsp 1.385.621-MG, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 27/5/2015, DJe 2/6/2015. É exatamente nesse sentido o enunciado da súmula n® 567 do STJ: "Sistema de vigilância realizado por monitoramento eletrônico ou por existência de segurança no interior do estabelecimento comercial, por si só, não torna impossível a configuração do crime de furto". Em sentido semelhante: STF, l ã Turma, HC 111.278/MG, Rei. Min. Luís Roberto Barroso, j. 10/04/2018. 228 STJ, 5§ Turma, HC 12.269/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 14/08/2000 p. 185).

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M A N U A L D E P R O C E S S O P E N A L - Renato Brasileiro de Lim a

Assim, apesar de o agente ter sido induzido a vender a droga, venda esta que caracterizaria hipótese de flagrante preparado, como o crime de tráfico de drogas (Lei n° 11.343/06, art. 33, caput) não se configura apenas com o ato de venda de substância entorpecente, afigura-se possível que o agente responda pelo crime de tráfico, nas modalidades de ‘trazer consigo’, ‘guardar’229, ‘oferecer’, ‘ter em depósito’230, etc. Em outras palavras, não se dá voz de prisão em flagrante pelo delito preparado, mas sim pelo outro, descoberto em razão deste.231 Portanto, considerando-se que o delito de tráfico de entorpecente consuma-se com a prática de qualquer uma das dezoito ações identificadas no núcleo do tipo (Lei n° 11.343/06, art. 33, caput), algumas de natureza permanente, quando qualquer uma delas for preexistente à atuação policial, estará legitimada a prisão em flagrante, sem que se possa falar em flagrante forjado ou preparado. Toma-se descabida, assim, a aplicação da súmula n° 145 do Supremo, a fim de ser reconhecido o crime impossível.232 Nesses casos de venda simulada de drogas, é importante que seja demonstrado que a posse da droga preexistia à aquisição pela autoridade policial: “Não há crime na operação preparada de venda de droga, quando não preexiste sua posse pelo acusado. Fica descaracterizado o delito para o réu que tão só dele participou em conluio com policiais, visando a repressão ao narcotráfico”.233 De fato, se restar demonstrado que somente a quantidade vendida à autoridade policial estava com o agente, há de se concluir pela presença de crime impossível, pois não há crime anterior pelo qual ele possa responder. Ex: o agente policial induz ou instiga o acusado a fomecer-lhe a droga que, no momento, não a possuía. Porém, saindo do local, e retomando minutos depois apenas com a quantidade de entorpecente pedida pelo policial, ocorre a prisão em flagrante.234 Nesses casos de drogas, é importante lembrar que, para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante, e estabelecimento da materialidade da infração penal, é indispensável a presença de laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea (Lei n° 11.343/06, art. 50, § Io). 7.6. Flagrante prorrogado, protelado, retardado ou diferido: ação controlada e entrega vigiada A ação controlada consiste no retardamento da intervenção policial, que deve ocorrer no momento mais oportuno do ponto de vista da investigação criminal ou da colheita de provas. Também conhecida como flagrante prorrogado, retardado ou diferido, vem prevista na Lei de Drogas, na Lei de Lavagem de Capitais e na nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13).235

229 STF: "Inocorre flagrante preparado em sede de crime permanente, porquanto o crime preexiste à ação do agente provocador; assim, o policial que comparece ao local e mostra-se interessado na aquisição do entorpecente não induz os acusados à prática do delito, pois o fato de manter guardada a droga destinada ao consumo de terceiros já constitui o crime; portanto, a atuação do agente provocador caracteriza mero exaurimento". (RT 740/539). 230

STJ, 5®Turma, HC 17.454/SP, Rei. Min. Felix Fischer, DJ10/06/2002 p. 232. Etambém: STF, P Turma, HC 81.970-2, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 28.06.2002; STJ, 5STurma, RHC 17.698/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 06/08/2007 p. 537.

231 STF, lã Turma, HC 72.824/SP, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 17/05/1996 p. 16.324. 232 STJ, 5ã Turma, RHC 20.283/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 04/06/2007 p. 378. 233 STF, 2- Turma, HC 70.235/RS, Rei. Min. Paulo Brossard, j. 08/03/94, DJ 06/05/1994. E também: STJ, 6® Turma, HC 17.483/GO, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 04/02/2002 p. 568. 234

RT 707/293.

235 A ação controlada foi objeto de estudo no Título atinente às provas, item n5 13, para onde remetemos o leitor.

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7.7. Flagrante forjado, fabricado, maquinado ou urdido Nesta espécie de flagrante totalmente artificial, policiais ou particulares criam provas de um crime inexistente, a fim de ‘legitimar’ (falsamente) uma prisão em flagrante.236 Imagine-se o exemplo em que alguém coloca certa porção de substância entorpecente no veículo de determinada pessoa, para que posteriormente lhe dê voz de prisão em flagrante pelo crime de tráfico ou porte de drogas para consumo pessoal. Nesse caso, a par da inexistência do delito, responde a autoridade policial criminalmente pelo delito de abuso de autoridade (Lei n° 4.898/65, art. 3o, “a”), caso o delito seja praticado em razão de suas funções, ao passo que o particular pode responder pelo crime de denunciação caluniosa (CP, art. 339). 8. PRISÃO EM FLAGRANTE NAS VÁRIAS ESPÉCIES DE CRIMES 8.1. Prisão em flagrante em crime permanente Crime permanente é aquele cuja consumação, pela natureza do bem jurídico ofendido, pode protrair-se no tempo, detendo o agente o poder de fazer cessar o estado antijurídico por ele realizado, ou seja, é o delito cuja consumação se prolonga no tempo.237 Enquanto não cessar a permanência, o agente encontra-se em situação de flagrância, ense­ jando, assim, a efetivação de sua prisão em flagrante, independentemente de prévia autorização judicial. Nos exatos termos do art. 303 do CPP, “nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”.238 Daí a importância de se saber se determinado delito é ou não permanente. Vejamos alguns exemplos de crimes permanentes: a) seqüestro e cárcere privado (CP, art. 148); b) redução à condição análoga de escravo (CP, art. 149);239 c) extorsão mediante seqüestro (CP, art. 159, caput, e parágrafos); d) receptação, nas modalidades de transportar, ocultar, ter em depósito (CP, art. 18O);240 e) ocultação de cadáver (CP, art. 211, caput);241 f) quadrilha ou bando (CP, antiga reda­ ção do art. 288);242 g) associação para o tráfico de drogas (Lei n° 11.343/06, art. 35): permite a prisão em flagrante delito durante cada momento em que subsistir vínculo associativo entre os consortes;243 h) ocultação de bens, direitos e valores (Lei n° 9.613/98, art. Io); i) evasão de divi­ sas, nas modalidades de manutenção de depósitos não informados no exterior (Lei n° 7.492/86, art. 22, parágrafo único); j) tráfico de drogas (Lei n° 11.343/06, art. 33, caput), em algumas modalidades como guardar, trazer consigo, transportar, ter em depósito, etc.244

236

Nessa linha: STF, 1®Turma, HC 74.510/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, DJ 22/11/1996 p. 45.690. Não é flagrante forjado aquele resultante de diligências policiais após denúncia anônima sobre tráfico de entorpecentes: STF, 13 Turma, HC 74.195/SP, Rei. Min. Sydney Sanches, DJ 13/09/1996 p. 33.235.

237 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5ã ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 146-147. 238 STJ, S- Turma, HC 17.618, Rei. Fernando Gonçalves, j. 25/09/2001, DJU 15/10/2001. 239 STJ, 5ã Turma, HC 33.484/PA, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 13/12/2004 p. 387. 240 STJ, 5®Turma, HC 91.703/MG, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 26/11/2007 p. 227

241 TJSP: "Prisão. Flagrante. Relaxamento. Inadmissibilidade. Ocultação de cadáver. Réu preso quatro dias após o fato. Irrelevância. Crime de natureza permanente. Ordem denegada" (JTJ 156/343). 242 STF, 2.- Turma, HC 74.127/RJ, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 13/06/1997 p. 26.693. 243 STJ, 6- Turma, HC 140.207/SC, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 03/09/2009, DJe 21/09/2009. 244

No sentido da legalidade da prisão em flagrante de indivíduo cultivando cannabis sativa em sua horta particular, por se tratar de crime permanente: STJ, 5§ Turma, HC 11.222/MG, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 27/11/2000 p. 175.

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Em todos esses crimes permanentes, em relação aos quais a prisão em flagrante é possível a qualquer momento, enquanto não cessar a permanência, a Constituição Federal autoriza a vio­ lação ao domicílio mesmo sem prévia autorização judicial (art. 5o, XI).245Assim, supondo-se um delito de tráfico de drogas, na modalidade “ter em depósito”, delito de natureza permanente, no qual a consumação se prolonga no tempo e, consequentemente, persiste o estado de flagrância, admite-se, ainda que em período noturno, e sem autorização judicial, o ingresso da Polícia na casa em que está sendo praticado tal crime, com a conseqüente prisão em flagrante dos agentes e apreensão do material relativo à prática criminosa.246 \

8.2. Prisão em flagrante em crime habitual O crime habitual é aquele que demanda a prática reiterada de determinada conduta, por exemplo, rufianismo (CP, art. 230), exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica (CP, art. 282). Crime habitual não se confunde com habitualidade criminosa. Enquanto no crime habitual o delito é único, figurando a habitualidade como elementar do tipo, na habitualidade criminosa há pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma característica do agente, e não da infração penal. No crime habitual a prática de um ato isolado não gera tipicidade, ao passo que, na habitualidade criminosa, tem-se uma seqüência de atos típicos que demonstram um estilo de vida do autor.247 Há divergências quanto à possibilidade de prisão em flagrante em crime habitual. Parte da doutrina não a admite, sob o fundamento de que tal delito somente se aperfeiçoa com a reite­ ração da conduta, o que não seria passível de verificação em um ato isolado, que é a prisão em flagrante. E essa, entre outros, a posição de Fernando da Costa Tourinho Filho.248 Com a devida vênia, pensamos que não se pode estabelecer uma vedação absoluta à prisão em flagrante em crimes habituais. Na verdade, a possibilidade de efetivação da prisão em fla­ grante em crimes habituais deve estar diretamente ligada à comprovação, no ato, da reiteração da prática delituosa pelo agente.249 A título de exemplo, imagine-se a hipótese em que a polícia, após ligação anônima, compa­ rece a determinado consultório onde um falso médico é encontrado prestando serviços médicos a clientes ludibriados. Lá chegando, depara-se com uma estrutura completa de um consultório médico - secretária atendendo ao telefone, inúmeros clientes aguardando atendimento, docu­ mentação comprobatória de inúmeras consultas já realizadas, além de um atendimento médico realizado pelo agente naquele exato momento. Ora, em uma tal situação, não haveria como negar a certeza visual do crime, autorizando-se, portanto, a prisão em flagrante.250

245

STF, 2^ Turma, HC 84.772/MG, Relatora Ministra Ellen Gracie, Dj 12/11/2004 p. 41.

246 STJ, 63 Turma, HC 21.392, Rei. Vicente Leal, j. 22.10.2002, DJU 18.11.2002, p. 296. No mesmo sentido: STJ, 53 Turma, HC 35.642/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 07/03/2005 p. 293. 247 STF, 13 Turma, HC 72.848/SP, Rei. Min. limar Galvão, DJU 24/11/1995. 248 Op. cit. p. 479. Na mesma linha: CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 63 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 225. No mesmo sentido é a posição de Paulo Rangel (op. cit. p. 624) e de Tourinho Filho (op. cit. p. 479). MARQUES, José Frederico Marques, ". (Tratado de Direito Penal, vol. II. Bookseller, 1997. p. 89). 249

No sentido de que o caráter habitual do crime de casa de prostituição não,impede a efetuação de prisão em flagrante; STF, RHC 46.115/SP, Rei. Min. Amaral Santos - DJ 26/09/1969. Ainda no sentido da possibilidade de prisão em flagrante em crimes habituais: STF, Pleno, HC 36.723, Rei. Min. Nelson Hungria, DJ 05/09/1960 p. 975; STJ, 53 Turma, HC 42.995/RJ, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 24/10/2005 p. 354.

250

É essa a posição de Julio Fabbrini Mirabete (Processo Penal. 18a ed. rev. e atual, até 31 de dezembro de 2005. São Paulo: Atlas, 2006. p. 378) e de Marcellus Polastri Lima (op. cit. p. 344).

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8.3. Prisão em flagrante em crime de ação penal privada e em crime de ação penal pública condicionada Como o art. 301 não distingue entre crime de ação penal pública e crime de ação penal privada, referindo-se ao sujeito passivo do flagrante como '‘quem quer que seja encontrado em flagrante delito’, nada impede a prisão em flagrante em relação a crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada. Ocorre que, em se tratando de crime de ação penal pública condicionada à representação (ou à requisição do Ministro da Justiça), ou de ação penal privada, a instauração do inquérito policial e a própria persecução penal estão condicionadas à manifestação de vontade do ofendido (ou do Ministro da Justiça). De fato, o inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado (CPP, art. 5o, § 4o), ao passo que, nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la (CPP, art. 5o, § 5o). Portanto, em relação a tais delitos, afigura-se possível a captura e a condução coercitiva daquele que for encontrado em situação de flagrância, fazendo-se cessar a agressão com o escopo de manter a paz e a tranqüilidade social. No entanto, a lavratura do auto de prisão em flagrante estará condicionada à manifestação do ofendido ou de seu representante legal. Se a vítima não puder imediatamente ir à delegacia para se manifestar, por ter sido conduzida ao hospital ou por qualquer motivo relevante, poderá fazê-lo no prazo de entrega da nota de culpa (24 horas). Não há necessidade de qualquer formalismo nessa manifestação de vontade, bastando estar evidenciada a intenção da vítima de que o autor do delito seja responsabilizado criminalmente. Assim, caso a vítima tenha comunicado o fato à autoridade policial e presenciado a lavratura do auto de prisão em flagrante, tem-se como demonstrado inequivocamente o seu interesse em que se promova a responsabilidade penal do agente.251 Caso a vítima não emita autorização, deve a autoridade policial liberar o ofensor, sem ne­ nhuma formalidade, documentando o ocorrido em boletim de ocorrência, para efeitos de praxe. 8.4. Prisão em flagrante em crimes formais Crime formal ou de consumação antecipada é aquele que prevê um resultado naturalístico, que, no entanto, não precisa ocorrer para que se opere a consumação da infração penal. A título de exemplo, a mera exigência de vantagem indevida no crime de concussão (CP, art. 316, caput) já é suficiente para sua consumação, configurando o recebimento mero exaurimento do delito. A prisão em flagrante é perfeitamente possível em crimes formais. No entanto, deve ser efetivada enquanto o agente estiver em situação de flagrância, e não no momento do exaurimento do delito. Logo, voltando-se ao exemplo do crime de concussão, a conduta que autoriza a prisão em flagrante é a exigência de vantagem indevida pelo funcionário público, e não o seu recebi­ mento uma semana depois. Destarte, se o agente for preso quando estava recebendo a vantagem indevida, ter-se-á uma prisão ilegal, caso esta seja efetuada em relação ao crime de concussão, autorizando-se o relaxamento. Isso, no entanto, não significa dizer que o agente não será respon­ sabilizado pelo delito. Não se pode confundir a existência do crime, que efetivamente ocorreu, com a prisão em flagrante, que somente seria possível no momento da exigência da vantagem indevida. E nem se diga, em relação ao exemplo, que teria ocorrido flagrante preparado, e, por

251

STJ, 5ã Turma, RHC 8.680/MG, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 04/10/1999 p. 63.

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conseqüência, crime impossível. Com efeito, não houve qualquer induzimento ou instigação à prática do delito, que se consumou com a mera exigência do funcionário público.252 Como dito acima, caso a prisão em flagrante seja efetuada pelo crime de concussão (CP, art. 316) quando o agente está recebendo a vantagem indevida, ter-se-á flagrante ilegal, pois ninguém pode ser preso quando do exaurimento do delito —lembre-se que o verbo núcleo do tipo penal de concussão é exigir. No entanto, caso a autoridade policial conclua que o delito praticado tenha sido o de corrupção passiva (CP, art. 317) na modalidade de receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem indevida, em razão da função pública, deve a prisão em flagrante ser considerada legal, na medida em que o agente fora preso quando estava recebendo vantagem indevida, caracterizando hipótese de flagrante próprio, nos termos do art. 302,1, do CPP. 8.5. Prisão em flagrante em crime continuado (flagrante fracionado) Na hipótese de continuidade delitiva, temos, indubitavelmente, várias condutas, simboli­ zando várias infrações. Contudo, por uma ficção jurídica, irá haver, na sentença, a aplicação da pena de um só crime, exasperada de um sexto a dois terços, na hipótese do art. 71, caput, do Código Penal. Como existem várias ações independentes, irá incidir, isoladamente, a possibilidade de se efetuar a prisão em flagrante por cada uma delas, ou seja, na medida em que os delitos que compõem o crime continuado guardam, em termos fáticos, autonomia entre si, cada um deles autoriza, de forma independente no tocante aos demais, a efetivação da prisão, desde que presente uma das hipóteses do art. 302 do CPP. É o que se denomina de flagrante fracionado. 9. FLAGRANTE E APRESENTAÇÃO ESPONTÂNEA DO AGENTE Pela própria leitura a contrario sensu da antiga redação do art. 317 do CPP, doutrina e jurisprudência eram uníssonas em afirmar que se o agente se apresentasse espontaneamente à autoridade policial, que não o perseguia, não era possível sua prisão em flagrante, o que, todavia, não impedia a decretação de sua prisão preventiva, caso presentes seus pressupostos. O dispo­ sitivo era claro ao afirmar que a apresentação espontânea não impedia a decretação da prisão preventiva. Logo, era inviável a prisão em flagrante, o que, no entanto, não significava dizer que haveria impunidade, pois é óbvio que a autoridade policial deveria instaurar o respectivo inquérito policial.253 Ainda em relação à apresentação espontânea, especial atenção deve ser dispensada à antiga redação do art. 318 do CPP, segundo o qual não teria efeito suspensivo a apelação de sentença absolutória quando o acusado se apresentasse espontaneamente à prisão, confessando crime de autoria ignorada ou imputado a outrem. Com a redação dada ao art. 596 do CPP pela Lei n° 5.941/73, o art. 318 foi tacitamente revogado, pois a apelação que ataca a sentença absolutória

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No sentido de que, no crime de concussão, a situação de flagrante delito configura-se pela exigência - e não pela entrega - da vantagem indevida, já que se trata, o crime do art. 316 do CP, de crime formal, que se consuma com a exigência da vantagem indevida, funcionando eventual entrega do exigido como mero exaurimento do crime previamente consumado: STJ, 5ã Turma, HC 266.460/ES, Rei. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 11/6/2015, DJe 17/6/2015. Sob a mesma ótica: STF, l ã Turma, HC 80.033/BA, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/05/2000 p. 15; STF, lã Turma, HC 72.168/RS, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 09/06/1995 p. 17.232; STF, 1§ Turma, RHC 48.438/RJ, Rei. Min. Djaci Falcão, DJ 19/02/1971. 253 STF, 2- Turma, RHC 61.442/MT, Rei. Min. Francisco Rezek, DJ 10/02/1984 p. 11.016. E também: STF, 1§ Turma, RHC 58.568/ES, Rei. Min. Xavier de Albuquerque, DJ 13/02/1981 p. 752; STJ, 5§ Turma, HC 30.527/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 22/03/2004 p. 335; STJ, 6®Turma, HC 7.828/RJ, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 17/02/1999 p. 166; STF, 1§ Turma, HC 87.425/PE, Rei. Min. Eros Grau, j. 14/03/2006, DJ 05/05/2006.

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nunca terá efeito suspensivo. Subsiste a confissão, portanto, tão somente como circunstância atenuante genérica (CP, art. 65, inciso III, “d”). Com o advento da Lei n° 12.403/11, percebe-se que o Capítulo IV, que tratava da apre­ sentação espontânea do acusado, doravante passará a dispor sobre a prisão domiciliar, objeto de nosso estudo mais abaixo. Não obstante tal modificação, queremos crer que a apresentação espontânea continua figurando como causa impeditiva da prisão em flagrante. Afinal, não tem cabimento prender em flagrante o agente que se entrega à polícia, que não o perseguia, e confessa o crime. De mais a mais, quando o agente se apresenta espontaneamente, não haverá flagrante próprio, impróprio, nem tampouco presumido (CPP, art. 302,1, II, III e IV), desautorizando sua prisão em flagrante. Obviamente, caso o juiz entenda que estão presentes os pressupostos dos art. 312e313do CPP, nada impede a decretação da prisão preventiva pela autoridade judiciária competente, caso se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP.254 10. LAVRATURA DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO Efetuada a prisão em flagrante delito do agente, é indispensável que se proceda a sua documen­ tação, o que será feito por meio da lavratura do auto de prisão em flagrante delito (CPP, art. 304). Cuida-se, o auto de prisão em flagrante delito, de instrumento em que estão documentados os fatos que revelam a legalidade e a regularidade da restrição excepcional do direito de liberdade, funcionando, ademais, como uma das modalidades de notitia criminis (de cognição coercitiva), e, portanto, como peça inicial do inquérito policial. Todas as formalidades legais devem ser observadas quando de sua lavratura, seja no tocante à efetivação dos direitos constitucionais do preso em flagrante, seja em relação à documentação que deve ser feita, sob pena de a prisão ser considerada ilegal, do que deriva seu relaxamento. Tal ilegalidade, todavia, só atinge a prisão em flagrante, não contaminando o processo, uma vez que os vícios constantes do inquérito policial não tem o condão de macular a ação penal a que der origem. Ademais, como visto anteriormente, o relaxamento da prisão em flagrante por força da inobservância das formalidades legais não impede que o juiz decrete a prisão preventiva ou a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, desde que preenchidos seus pressupostos. No caso de crime relacionado a drogas, a lavratura do auto de prisão em flagrante está condicionada à presença de laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea (Lei n° 11.343/06, art. 50, § Io). No âmbito processual penal militar, se o auto de prisão em flagrante delito for, por si só, su­ ficiente para a elucidação do fato e sua autoria, o próprio auto constituirá o inquérito, dispensando outras diligências, salvo o exame de corpo de delito no crime que deixa vestígios, a identificação da coisa e a sua avaliação, quando o seu valor influir na aplicação da pena (CPPM, art. 27). Quanto ao teor do revogado art. 531 do CPP, segundo o qual o processo das contravenções penais poderia ter início com o auto de prisão em flagrante delito, já se entendia, desde o adven­ to da Constituição Federal de 1988, que atribuiu ao Ministério Público a função de promover, privativamente, a ação penal pública (art. 129, inciso I), que o referido dispositivo do CPP não 254

Na mesma linha: MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 156. Em sentido diverso, apontando que, doravante, a apresentação espontânea não mais impede a prisão em flagrante: MACIEL, Silvio. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. Coordenação: Luiz Flávio Gomes e Ivan Luís Marques. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 161.

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havia sido recepcionado. Em boa hora, portanto, o dispositivo acabou sendo revogado pela Lei n° 11.719/08. Em regra, o auto de prisão em flagrante deve ser lavrado por escrito. Porém, a nosso ver, é plenamente possível que as oitivas realizadas por ocasião da lavratura do APF sejam filmadas, independentemente de consentimento dos envolvidos. A uma, porque tal gravação reproduzirá com maior fidelidade as informações prestadas pela vítima, pelas testemunhas e pelo próprio preso, evitando, ademais, futuras alegações de constrangimentos físicos e/ou morais praticados pela autoridade policial. Em segundo lugar, porque o art. 405, § Io, do CPP, autoriza que o re­ gistro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas seja feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual. 10.1. Autoridade com atribuições para a lavratura do auto de prisão em flagrante Em regra, a atribuição para a lavratura do auto de prisão em flagrante é da autoridade poli­ cial no exercício das funções de polícia investigativa do local em que se der a captura do agente, o que, no entanto, não afasta a atribuição de outra autoridade administrativa a quem, por lei, é cometido o mesmo mister (CPP, art. 4o, parágrafo único), como, por exemplo, agentes florestais. Nessa linha, de acordo com a súmula 397 do Supremo Tribunal Federal, “o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito”. No âmbito militar, esta atribuição recai sobre o comandante, oficial de dia, de serviço ou de quarto, ou autoridade correspondente, tal qual dispõe o art. 245, caput, do CPPM. Apesar de o art. 304 do CPP fazer menção à apresentação do preso à autoridade competente, a não observância das normas administrativas que disciplinam a divisão de atribuições entre as diversas autoridades policiais não acarreta o reconhecimento de nulidade, não só porque tais autoridades não exercem jurisdição, sendo descabido falar em incompetência, como também por força do art. 564,1, CPP, que se refere à incompetência do juiz como causa de invalidade do ato irregularmente praticado.255 Por força da Constituição Federal, apresentado o preso à autoridade competente, esta de­ verá: a) comunicar a prisão e o local onde se encontre imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 5o, inciso LXII); b) informar ao preso seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado (art. 5o, inciso LXIII); c) identificar ao preso os responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial (art. 5o, inciso LXIV). E comum que a autoridade policial, de modo a documentar os atos acima referidos, determine a lavratura de uma certidão de direitos constitucionais, juntando-a aos autos.256 Na medida em que a prisão em flagrante dispensa prévia autorização judicial, as forma­ lidades estabelecidas pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal devem ser rigorosamente observadas, sob pena de, não o sendo, acarretar a ilegalidade da prisão e seu conseqüente relaxamento (CF, art. 5o, inciso LXV). Não se pode perder de vista que a prisão em flagrante é uma medida de caráter excepcional que, embora permitida pela Constituição

255

Nesse sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE, Antônio Fernandes; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 6ã ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 224.

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Remetemos o leitor ao tópico pertinente aos direitos e garantias constitucionais atinentes à liberdade de locomoção.

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Federal, amplia o poder estatal em detrimento do direito de locomoção, sem que haja prévio controle jurisdicional acerca da medida constritiva. Daí a necessária e obrigatória observância das formalidades legais impostas pela Constituição Federal e pela legislação processual penal: trata-se de requisitos ad solemnitatem, cuja razão de ser se encontra na excepcionalidade do poder conferido à referida autoridade.257 Em regra, o auto de prisão em flagrante deve ser lavrado pelo escrivão, na presença do Delegado de Polícia. Na falta ou impedimento do escrivão, permite a lei que a autoridade designe qualquer pessoa para tal função, desde que preste o compromisso legal anteriormente (CPP, art. 305, caput). Quando a infração penal é cometida contra a autoridade competente para a lavratura do auto de prisão em flagrante, ou em sua presença, estando ela no exercício de suas funções, a própria autoridade pode figurar como condutora. Essa permissão somente se refere às pessoas que podem presidir inquéritos ou ações penais (autoridade policial e juiz), e não à qualquer autoridade, mesmo sendo ela presidente de comissão parlamentar de inquérito.258 Quanto à possibilidade de o magistrado lavrar o auto, o art. 307 do Código de Processo Penal deixa entrever que o juiz também pode lavrar o flagrante (... remetido imediatamente ao juiz a quem couber tomar conhecimento do fato delituoso, se não for a autoridade que houver presidido o auto). Indispensável, nessa hipótese, que a infração tenha sido praticada na presença da autoridade, quando no exercício de suas funções, ou cometida contra ela própria, quando estava no exercício de suas funções. A nosso juízo, em relação ao magistrado, esse dispositivo do art. 307 do CPP não foi recepcionado pela Constituição Federal. Isso porque a Carta Magna adotou o sistema acusatório, do que deriva a conclusão de que o juiz não deve participar da colheita de elementos informativos na fase investigatória. Dada a voz de prisão pela própria autoridade, do auto constará a narração do fato, a oitiva de duas testemunhas e do preso, nessa ordem. Em seguida, o auto deve ser encaminhado à au­ toridade judiciária competente. Como dito acima, parte da doutrina entende que nada impede que o próprio magistrado seja a autoridade competente para a lavratura do auto. Nesse caso, obviamente, não há falar em comunicação à autoridade judiciária, pois ele próprio já conferiu legalidade à prisão, transformando-se em autoridade coatora para fins de cabimento de habeas corpus, motivo pelo qual eventual impugnação deverá ser encaminhada ao respectivo tribunal. Caso a autuação seja presidida pelo juiz, não poderá ele exercer jurisdição no processo resultante da prática do crime, haja vista o impedimento constante do art. 252, inciso II e IV, do CPP, devendo remeter os autos ao seu substituto legal. 10.2. Condutor e testemunhas A primeira pessoa a ser ouvida quando da lavratura do auto de prisão em flagrante é o condutor, que pode ser tanto uma autoridade, como também um particular, responsável pela condução do capturado à autoridade. Não é necessário que tenha presenciado a prática do É essa a lição de PIMENTA BUENO (Anotações aos apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1959, p. 86, apud Romeu Pires de Campos Barros. Processo Penal Cautelar, Rio de Janeiro: Forense: 1982. p. 127). 258 A propósito: "Nulidade do auto de prisão em flagrante lavrado por determinação do Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, dado que não se consignou qual a declaração falsa feita pelo depoente e a razão pela qual assim a considerou a Comissão. Auto de prisão em flagrante lavrado por quem não preenche a condições de autoridade (art. 307 do CPP)". (STF - HC 73.035/DF - Tribunal Pleno - Rei. Min. Carlos Velloso - DJ 19/12/1996 p. 51.766).

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delito, nem tampouco a prisão, pois o preso pode ter sido entregue a ele. Após sua oitiva, deve o presidente do auto de prisão em flagrante proceder à oitiva de duas testemunhas que tenham presenciado o fato. A oitiva do ofendido não é obrigatória, o que, no entanto, não impede sua realização. Por construção jurisprudencial, desde que o condutor tenha presenciado o fato delituoso, vem-se admitindo que seja ouvido como se fosse testemunha. Assim, bastaria apenas mais uma testemunha.259 A ausência de testemunhas que tenham presenciado o fato delituoso não impede a lavratura do auto de prisão em flagrante. Nessa hipótese, além do condutor, duas testemunhas que tenham presenciado a apresentação do preso à autoridade deverão ser ouvidas (CPP, art. 304, § 2o). A jurisprudência vem admitindo que policiais sirvam como testemunhas no auto de prisão em flagrante delito.260 Não se deve confundir as testemunhas que presenciaram o fato delituoso, nem tampouco as que acompanharam a apresentação do preso à autoridade com as testemunhas a que se refere o § 3o do art. 304 do CPP. Essas testemunhas, denominadas de fedatárias ou instrumentárias, que não são testemunhas de um fato, mas sim de um ato, serão chamadas a assinar o auto quando o preso se recusar a assiná-lo, não souber ou não puder fazê-lo, exigindo a lei que tenham ouvido a leitura do interrogatório na presença do conduzido. A finalidade é confirmar que as declarações ali colhidas foram efetivamente prestadas pelo preso.261 10.3. Interrogatório do preso262 Após a oitiva do condutor e das testemunhas, deve a autoridade competente proceder à realização do interrogatório do preso. Conquanto o Código de Processo Penal se refira em seu art. 304, caput, ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, tecnicamente ainda não há falar em acusado, haja vista não existir peça acusatória imputando-lhe a prática de fato delituoso. Deve o presidente do auto assegurar ao preso a possibilidade de que seja ouvido. No entanto, é possível que este permaneça calado, fazendo uso de seu direito ao silêncio (art. 5o, LXIII, da Constituição Federal), desdobramento do princípio do nemo tenetur se detegere. Deve se asse­ gurar ao preso, ademais, a assistência da família e de advogado, assim como a possibilidade de comunicar a prisão à família ou à pessoa por ele indicada (CF, art. 5o, LXII, LXIII).263 Por razões óbvias, se não for possível a realização do interrogatório do preso, porque este se encontra hospitalizado, embriagado ou impossibilitado por qualquer razão de se manifestar, isso não acarreta a ilegalidade do auto de prisão em flagrante.264 259

STJ, 6- Turma, RHC 7.610/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 24/08/1998 p. 106.

260 STJ, 5a Turma, HC 58.127/SP, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 17/12/2007 p. 234. No mesmo sentido: STJ, 6a Turma, HC 45.653/PR, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 13/03/2006 p. 380. E ainda: STJ, 5a Turma, HC 27.269/DF, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 25/08/2003 p. 342. 261

STJ, 5a Turma, RHC 1.454/ES, Rei. Min. Jesús Costa Lima, DJ 21/10/1991 p. 14.751.

262

Quanto à obrigatoriedade da presença de defensor por ocasião do interrogatório do flagranteado, remetemos o leitor ao capítulo atinente à investigação preliminar, mais precisamente ao item 9.5. ("Oitiva do indiciado").

263 Vide acima item pertinente aos direitos e garantias constitucionais relativas à prisão cautelar. 264

Não invalida a prisão em flagrante a audiência do conduzido, no leito do hospital, subsequentemente a lavratura do auto na delegacia, quando impossibilitado de ser interrogado: STF, I a Turma, RHC 62,855/SP, Rei. Min. Rafael Mayer, DJ 19/04/1985 p. 15.456.

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Caso o preso seja estrangeiro e não compreenda o idioma nacional, é imprescindível a no­ meação de um intérprete, nos termos do art. 193, c/c arts. 275 a 281 do CPP. O intérprete, que é equiparado ao perito (CPP, art. 281), deve ser pessoa capaz de compreender e transmitir ao preso, assim como dele receber, as informações essenciais para que possa entender a situação e se defender. Trata-se de garantia fundamental, já que, na hipótese de o preso não compreender o idioma e não conseguir se comunicar, ficam prejudicados seus direitos constitucionais. Se o preso estrangeiro entender o português, notadamente quando se trata de língua semelhante ao espanhol, não há necessidade de nomeação de intérprete. Noutro giro, caso não seja possível a nomeação de intérprete capaz de falar a língua original do estrangeiro, é perfeitamente possível a nomeação de intérprete que fale língua que o preso conheça.265 No tocante à prisão em flagrante de advogado, é bom lembrar que, segundo o art. 7o, IV, da Lei n° 8.906/94, é direito do advogado ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB. Perceba-se que a presença de representante da OAB somente será necessária quando o crime praticado pelo advogado guardar certo liame com o exercício de sua profissão. Não havendo qualquer liame, basta a comunicação expressa à seccional da OAB.266 Discute-se na doutrina quanto à necessidade de que o preso menor de 21 (vinte e um) e maior de 18 (dezoito) anos seja ouvido na presença de curador (CPP, art. 15, caput). A nosso ver, a presença do curador é desnecessária, haja vista que a menoridade civil cessa aos 18 (dezoito) anos completos, de acordo com o art. 5o do Novo Código Civil, dispositivo este que derrogou os arts. 15, 262, e 564, III, “c”, última parte, do CPP. Aliás, o próprio art. 194 do CPP, que previa a realização do interrogatório na fase judicial com a presença de curador, foi revogado pela Lei n° 10.792/03. Todavia, para aqueles autores que entendem que os silvícolas são relativamente incapazes e também necessitam de curador para acompanhá-los durante a fase investigativa e processual, sob pena de nulidade, assim como para aqueles que entendem ser necessária a nomeação de curador aos acusados que sofrem de perturbações mentais se não tiverem representante legal ou se os interesses deste colidirem com os daqueles, com fundamento na lei processual civil (NCPC, art. 72, I), a figura do curador ainda permanece obrigatória. Aliás, caso a autoridade que preside a lavratura do auto de prisão em flagrante delito perceba que o preso revela sinais de alienação mental, deve representar ao juiz pela instauração de incidente de insanidade mental, nos termos do art. 149, § Io, do CPP. Por ocasião da lavratura do APF devem ser colhidas informações sobre a existência de filhos do flagranteado, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa (CPP, art. 304, § 4o, incluído pelo Marco Civil da Primeira Infância). O objetivo da Lei n° 13.257/16 foi conferir ao magistrado informações mais completas acerca da pessoa presa para fins de possível concessão de prisão domiciliar (CPP, art. 318, III, V, e VI). 265

Em caso concreto referente a cidadão alemão, já radicado no Brasil há mais de 3 (três) anos e meio, que falava o português, concluiu o STJ não haver necessidade de nomeação de intérprete: STJ, 6^ Turma, RHC 4.582/RJ, Rei. Min. Adhemar Maciel, j. 19/09/1995, DJ 27/11/1995 p. 40.928. No sentido de que, na falta de intérprete do idioma do interrogado estrangeiro, é possível que o ato seja feito em língua a ele acessível - no caso concreto, tratava-se de cidadão austríaco, que falava alemão, mas entendida o inglês -, permitindo-lhe entender os fatos, ter ciência de sua situação e fornecer respostas: STJ, 6ã Turma, RHC 7.229/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, j. 19/03/1998, DJ 06/04/1998 p. 164. 266 TRF4, HC 1999.04.01.135923-3, Turma de Férias, Relator Silvia Maria Gonçalves Goraieb, DJ 16/02/2000.

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M A N U A L D E P R O C E S S O P E N A L - Renato Brasileiro de L im a

10.4. Fracionamento do auto de prisão em flagrante delito Com a entrada em vigor da Lei n° 11.113/05, houve o fracionamento do auto de prisão em flagrante delito. Antes da entrada em vigor da referida lei, o auto era uma peça única, inteiriça, de texto corrido, composta pelo depoimento do condutor, das testemunhas e do conduzido, que só assinavam o auto após a oitiva de todos os envolvidos. Em outras palavras, imaginando-se a hipótese de um policial militar como condutor, isso significava que ele deveria permanecer na Delegacia até o final da lavratura do auto, aguardando a oitiva das testemunhas e de todos os presos, quando, então, poderia assinar o auto e retomar às suas atividades rotineiras. Essa permanência do condutor até o final da lavratura do auto era causa de inequívocos prejuízos à segurança pública, retirando o policial de sua atividade funcional por tempo bastante considerável. É compreendendo o cenário anterior que se visualiza a importância da Lei n° 11.113/05, que fracionou o auto de prisão em flagrante delito. Atualmente, o presidente do auto deve ouvir o condutor, colhendo sua assinatura desde logo, e lhe entregando cópia do termo e recibo de entrega do preso. Isso significa que, após sua oitiva, o condutor estará livre para retomar ao exercício da sua função. Da mesma forma se procederá quanto à oitiva das testemunhas, que não mais precisarão aguardar o término do auto para o assinarem. Ao final, a autoridade policial determina ao escrivão que autue todos os documentos em uma capa, incluindo o auto de prisão em flagrante, a nota de culpa, laudo de constatação da natureza da substância (no caso de drogas), ofício de comunicação da prisão em flagrante ao juiz e ao Ministério Público, termo de ciência das garantias constitucionais entregue ao preso, ofício de comunicação da prisão à defensoria pública, caso o autuado não possua advogado, etc., remetendo-os ao juiz competente. 10.5. Prazo para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito Não há dispositivo legal expresso quanto ao prazo para a lavratura do auto de prisão em flagrante. Entretanto, em virtude do disposto nos §§ Io e 2o do art. 306, segundo os quais o auto de prisão em flagrante será encaminhado ao juiz competente e a nota de culpa será entregue ao preso dentro em 24 (vinte e quatro) horas depois da prisão, subentende-se que esse é o prazo máximo de que dispõe a autoridade para formalizá-lo.267 10.6. Relaxamento da prisão em flagrante pela autoridade policial (auto de prisão em flagrante negativo) De acordo com o disposto no caput do art. 304 do CPP, cabe à autoridade policial ouvir o condutor, as testemunhas que o acompanharem e, finalmente, interrogar o preso. Se de todo o apurado obtiver, na linguagem do parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, fundada suspeita contra o conduzido, ou seja, se os fatos narrados constituírem infração penal, constando ele­ mentos que indiquem que o conduzido provavelmente é o seu autor, e se a situação em que o conduzido foi encontrado configurar uma das hipóteses de flagrante admitidas na legislação, deverá a autoridade policial determinar seu recolhimento à prisão. Caso contrário, se das respostas do condutor e das testemunhas não resultar fundada suspeita contra o conduzido, interpretando-se a contrario sensu o art. 304, § Io, do CPP, a autoridade policial não poderá recolhê-lo à prisão, devendo determinar sua imediata soltura, sem prejuízo da instauração de inquérito policial ou lavratura de simples boletim de ocorrência.268 267

STF, 25 Turma, RHC 60.649/SC, Rei. Min. Cordeiro Guerra, DJ 25/03/1983 p. 3.464.

268

De modo semelhante, segundo o art. 246 do CPPM, se das respostas resultarem fundadas suspeitas contra a pes­ soa conduzida, a autoridade mandará recolhê-la à prisão, procedendo-se, imediatamente, se for o caso, a exame

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Tem-se aí, para parte da doutrina, a possibilidade de relaxamento da prisão em flagrante pela própria autoridade policial (auto de prisão em flagrante negativo).269Assim, o Delegado de Polícia pode e deve relaxar a prisão em flagrante, com fulcro no art. 304, § Io, interpretado a contrario sensu, correspondente ao primeiro contraste de legalidade obrigatório quando não estiverem presentes algumas condições somente passíveis de verificação ao final da formalização do auto, como, por exemplo, o convencimento, pela prova testemunhai colhida, de que o preso não é o autor do delito.270 A nosso ver, não se trata propriamente de relaxamento da prisão em flagrante. A uma porque, como ato complexo que é, a prisão em flagrante somente estará aperfeiçoada após a captura, condução coercitiva, lavratura do auto e recolhimento à prisão, sendo inviável falar-se em relaxamento da prisão em flagrante se todas essas fases ainda não foram cumpridas. Ademais, a própria Constituição Federal, ao se referir ao relaxamento da prisão ilegal, deixa claro que somente a autoridade judiciária tem competência para fazê-lo (CF, art. 5, LXV). Enxergamos, pois, no art. 304, § Io, do CPP, não uma hipótese de relaxamento da prisão em flagrante, mas sim situação em que a autoridade competente deixa de ratificar a voz de prisão em flagrante dada pelo condutor por entender que não há fundada suspeita contra o conduzido. 10.7. Recolhimento à prisão Após a lavratura do auto de prisão em flagrante, o presidente do auto mandará recolher o conduzido à prisão, salvo nas hipóteses em que for cabível a concessão de liberdade provisória com fiança pela autoridade policial, ou seja, nos casos de infração cuja pena máxima não seja superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322, com redação dada pela Lei n° 12.403/11). A título de exemplo, imagine-se a hipótese de um homicídio culposo (CP, art. 121, § 3o), cuja pena é de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Nesse caso, as três primeiras fases da prisão em flagrante ocorrerão normalmente: 1) captura; 2) condução coercitiva; 3) lavratura do auto de prisão em flagrante. Ocorre que, como a infração é punida com pena máxima não superior a 4 (quatro) anos, ao invés de recolher o conduzido à prisão (quarto e último ato da fase administrativa da prisão em flagrante), deve a autoridade policial conceder-lhe liberdade provisória com fiança, ex vi do art. 322 do CPP. Caso não seja efetuado o recolhimento da fiança, a colocação do pre­ so em liberdade passa a depender de autorização judicial, nos termos do art. 310, III, do CPP. 10.8. Remessa do auto à autoridade competente Como visto no art. 290, caput, do CPP, em regra, a autoridade competente para a lavratura do auto de prisão em flagrante é aquela que exerce suas funções no local em que foi efetuada a prisão, e não a do local em que se deu a consumação da infração penal. Caso não haja autori­ dade no lugar em que se tiver efetuado a prisão, o conduzido será apresentado à do lugar mais próximo (CPP, art. 308), entendendo-se por lugar mais próximo aquele a que mais rapidamente

de corpo de delito, à busca e apreensão dos instrumentos do crime e a qualquer outra diligência necessária ao seu esclarecimento. Por sua vez, de acordo com o art. 247, § 22, do CPPM, se, ao contrário da hipótese prevista no art. 246, a autoridade militar ou judiciária verificar a manifesta inexistência de infração penal militar ou a não participação da pessoa conduzida, relaxará a prisão. Em se tratando de infração penal comum, remeterá o preso à autoridade civil competente. Segundo Rodrigo Foureaux (Justiça Militar - aspectos gerais e controversos. São Paulo: Editora Fiúza, 2012, p. 463), no âmbito da Polícia Militar de Minas Gerais, a expressão "Auto de Prisão em Flagrante Negativo" passou a ser denominada de "Auto de Apresentação de Militar Conduzido". 269 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 32 volume. 3 P ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 421. 270

Habeas corpus e polícia judiciária. Tortura, crime militar, habeas corpus. Justiça penal - críticas e sugestões. Vol. 5. Coordenação Jaques de Camargo Penteado. São Paulo: RT, 1997 p. 233-234.

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se consiga chegar. Vale ressaltar, todavia, que, o fato de o auto ter sido lavrado por autoridade diversa daquela que efetivou a custódia, por si só, não toma a prisão em flagrante ilegal.271 Não se deve confundir a autoridade com atribuição para a lavratura do auto - a do local em que se der a captura -, com a autoridade judiciária com competência territorial para processar e julgar o feito. Lembre-se que, em regra, fixa-se a competência territorial pelo local da consu­ mação da infração penal (CPP, art. 70, caput), subsidiariamente, pelo domicílio ou residência do réu (CPP, art. 72, caput). Caso a autoridade competente para a lavratura do auto não tenha atribuições para os de­ mais atos do inquérito, deverá remeter o auto à autoridade que o seja. Veja-se, que, tratando-se de crime de competência da Justiça Federal, não haverá qualquer nulidade a macular o auto se porventura vier a ser lavrado por autoridade policial estadual. Como já dito acima, o inquérito é mera peça informativa, sendo que os vícios nele existentes não têm o condão de macular o processo penal a que der ensejo.272 Por fim, conquanto o art. 304, § Io, do CPP, refira-se a “processo”, no sentido de que a autoridade policial poderia prosseguir nos atos processuais, vale lembrar que, diante da Cons­ tituição Federal de 1988 e a adoção do sistema acusatório (CF, art. 129, inciso I), deixaram de existir os chamados processos judicialiformes pela prática de contravenções e crimes culposos de trânsito, que eram iniciados por portaria ou flagrante delito. 10.9. Remessa do auto de prisão em flagrante delito à autoridade judiciária A nova redação conferida ao art. 306, § Io, do CPP, dispõe que, em até 24 (vinte e quatro horas) após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas. Como visto anteriormente, ao tratarmos da comunicação imediata da prisão ao juiz competente, não se deve confundir a obrigatoriedade de imediata comunicação com a ulterior remessa do auto, que deve se dar em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura do agente. 10.10. Remessa do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública, se o autuado não informar o nome de seu advogado De acordo com o art. 306, § Io, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 11.449/07, e mantida pela Lei n° 12.403/11, em até 24 h (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. 10.11. Nota de culpa Em se tratando de prisão em flagrante delito, segundo o art. 306, § 2o, do CPP, em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será entregue ao preso, mediante recibo, a

271

STJ, 6a Turma, RHC 8.342/MG, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJ 24/05/1999 p. 201. Com sentido semelhante: STJ, 5a Turma, HC 30.236/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 22/03/2004 p. 335.

272 STF: "O fato de o Promotor de Justiça que ofereceu a denúncia contra os Pacientes ter acompanhado a lavra­ tura do auto de prisão em flagrante e demais atos processuais não induz à qualquer ilegalidade ou nulidade do inquérito e da conseqüente ação penal promovida, o que, aliás, é perfeitamente justificável em razão do que disposto no art. 129, inc. VII, da Constituição da República". (STF, I a Turma, HC 89.746/SC, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 09/02/2007 p. 30).

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nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas. Esse prazo de 24 (vinte e quatro) horas é contado a partir do momento da captura, e não da lavratura do auto de prisão em flagrante delito.273 Caso o preso não saiba, não possa ou não queira assinar, duas testemunhas assinarão o recibo pelo preso, atestando a entrega do documento (testemunhas instrumentárias). A nota de culpa de modo algum importa em confissão, nem tampouco que o preso esteja aceitando as acusações que lhe foram feitas quando de sua prisão.274 11. CONVALIDAÇÃO JUDICIAL DA PRISÃO EM FLAGRANTE Uma vez comunicada a autoridade judiciária acerca da prisão em flagrante, com o rece­ bimento do auto acompanhado de todas as oitivas colhidas, o que deve fazer o magistrado? Ao longo dos anos, a jurisprudência majoritária sempre entendeu que, ao receber a comu­ nicação do flagrante, a autoridade judiciária não estaria obrigada a fundamentar a manutenção da prisão cautelar do agente. Se acaso deliberasse pelo relaxamento da prisão, aí sim a decisão deveria ser motivada. Portanto, quando da comunicação da prisão em flagrante, competia ao Juiz apenas verificar a existência de situação de flagrância e a devida observância das forma­ lidades legais, estando obrigado a apresentar fundamentação apenas se fosse determinado o relaxamento da prisão.275 Não obstante o entendimento pretoriano, sempre entendemos que, se a própria Constituição Federal determina que ‘a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária’ (CF, art. 5o, inciso LXV) e que ‘ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança’ (CF, art. 5o, LXVI), ao receber a comunicação da prisão em flagrante, e a fim de se assegurar a necessária e inafastável apreciação judicial sobre os pressupostos da privação cautelar do direito à liberdade de locomoção, deveria o magistrado não só se manifestar quanto à (i) legalidade da prisão em flagrante, como também acerca da necessidade (ou não) de manutenção da prisão do agente, se acaso presentes os pressupostos da prisão preventiva. Como, na prática, grande parte dos juizes se limitava a analisar apenas a legalidade do auto de prisão em flagrante, deixando para apreciar eventual pedido de liberdade provisória apenas quando houvesse pedido formulado pela defesa - não por outro motivo, inseriu-se a obrigatoriedade de comunicação da prisão à Defensoria Pública, caso o autuado não informasse o nome de seu advogado (CPP, art. 306, § Io, in fine) -, ou por ocasião da audiência una de instrução e julgamento, procedeu bem a Lei n° 12.403/11 ao conferir nova redação ao art. 310 do CPP, obrigando o magistrado a aferir a necessidade (ou não) da manutenção da prisão do agente preso em flagrante. Segundo a nova redação do art. 310 do CPP, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem 273

Com esse entendimento: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit. p. 722.

274

Para mais detalhes acerca da nota de culpa e da remessa dos autos à Defensoria Pública, remetemos o leitor ao item pertinente às garantias constitucionais relativas à liberdade de locomoção.

275

STJ, 6ã Turma, RHC 5.650/RS, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 01/09/1997 p. 40.884; TRF1, 3® Turma, HC 2002.01. 00.030272-2/MA, Rei. Desembargador Federal Cândido Ribeiro, DJ 18/10/2002 p. 41. Etambém: TRF1, 3§ Turma, HC 2004.01.00.036314-8/PA, Rei. Desembargador Federal Tourinho Neto, DJ 17/09/2004 p. 32; STJ, Turma, RHC 10.080/MG, Rei. Min. Edson Vidigal, DJ 25/09/2000 p. 114.

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inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liber­ dade provisória, com ou sem fiança. Vejamos, separadamente, cada uma dessas possibilidades. 11.1. Relaxamento da prisão em flagrante ilegal O primeiro passo do magistrado, ao receber o auto de prisão em flagrante delito, diz respeito à análise da legalidade da medida constritiva. Essa análise passa pela verificação da regularidade da prisão em flagrante, seja pela presença dos requisitos materiais, seja pela presença dos re­ quisitos formais, a saber: a) se o auto de prisão em flagrante noticia a prática de infração penal; b) se o agente capturado estava em uma das situações legais que autoriza o flagrante, elencadas no art. 302 do CPP; c) se foram observadas as formalidades estabelecidas pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal, realizando-se um exame ad solemnitatem do auto, ou seja, analisando-se se está formalmente em ordem, sem vícios formais; d) se o uso de algemas foi feito nos termos preconizados pela súmula vinculante n° 11 do STF. Assim, verificada a ilegalidade da prisão em flagrante, deve o magistrado determinar seu relaxamento.276 Verificando o magistrado a presença de ordem ou execução de medida privativa de liber­ dade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder, também deve encaminhar ao órgão do Ministério Público as peças comprobatórias da ilegalidade, a fim de promover a responsabilização criminal do funcionário, nos termos do art. 4o, “a”, e “c”, da Lei n° 4.898/65. Além disso, vale lembrar que também configura abuso de autoridade deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada (Lei n° 4.898/65, art. 4o, “d”). O relaxamento da prisão em flagrante não impede, entretanto, a decretação da prisão pre­ ventiva e/ou temporária, nem tampouco a decretação das medidas cautelares diversas da prisão, desde que presente seus requisitos legais. Não se pode confundir o juízo de legalidade da prisão em flagrante com o juízo de necessidade das medidas cautelares. O que não se pode admitir, todavia, é o relaxamento da prisão em flagrante, porque ilegal, e a subsequente e automática decretação de eventual prisão preventiva. Esta modalidade de prisão cautelar somente se afigura possível quando presentes ofumus comissi delicti, consubstanciado na prova da materialidade e indícios de autoria, e o periculum libertatis - garantia da ordem pública, da ordem econômica, da aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal -, e desde que se revelem inade­ quadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão listadas no art. 319 do CPP.277 Por fim, convém destacar que eventual vício no momento da prisão em flagrante só tem o condão de repercutir na legalidade da medida restritiva, não gerando nulidade do processo penal subsequente, nem tampouco servindo como óbice à formação da opinio delicti, ressalva­ da, logicamente, a hipótese de provas obtidas por meios ilícitos por ocasião da referida prisão. 11.2. Conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária) De acordo com a nova redação do art. 310, II, do CPP, verificada a legalidade da prisão em flagrante, o juiz poderá fundamentadamente converter a prisão em flagrante em preventiva,

276 Como adverte Tourinho Filho (op. cit. p. 496), relaxada a prisão em flagrante, descabe o recurso ex officio refe­ rido no art. 574, I, do CPP, uma vez que, nessa hipótese, o Juiz não está concedendo habeas corpus de ofício. Remetido o auto de prisão em flagrante a juízo, o preso fica à sua disposição, e, assim, não tem sentido possa o Magistrado conceder habeas corpus contra si próprio. 277 STF, 1§ Turma, HC 77.042/RJ, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/06/1998 p. 3. E também: STF, 2§ Turma, RHC ne o 61.442/MT, Rei. Min. Francisco Rezek, DJU de 10.02.84. Ou ainda: STJ, Turma, HC 30.527/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 22/03/2004 p. 335; STJ, 6^ Turma, RHC 3.429/RJ, Rei. Min. Pedro Acioli, DJ 16/05/1994 p. 11.787.

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quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, hipótese em que deverá ser expedido um mandado de prisão.278 O art. 310, II, do CPP, está em perfeita harmonia com o disposto a respeito da liberdade provisória no art. 321, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, segundo o qual, ausen­ tes os pressupostos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 do CPP. Em face do art. 310, inciso II, do CPP, a prisão em flagrante deixa de ser motivo para que alguém permaneça preso durante todo o processo, o que se afigura correto, porquanto a finalidade cautelar do flagrante, no tocante a seu caráter processual, esgota-se precisamente na sua função probatória. Para que o acusado possa permanecer preso, para além da evidência da prova do crime e de indícios de autoria (fumus comissi delicti), decorrentes da prisão em flagrante delito em si, deve-se acrescentar outra e nova fundamentação, confirmando a imprescindibilidade da constrição à liberdade de locomoção a partir da presença do suporte fático e normativo autorizadores da prisão preventiva (periculum libertatis). Deve o magistrado, por conseguinte, ao receber cópia do auto de prisão em flagrante, examinar não só a legalidade da medida - para fins de eventual relaxamento da prisão como também se há algum motivo que justifica a decretação da prisão preventiva à luz dos arts. 312 e 313 do CPP. Cabe ao juiz, nesse momento, questionar-se acerca da existência de alguma hipótese que autorize a prisão preventiva do acusado: garantia da ordem pública, garantia da ordem eco­ nômica, garantia de aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal. Em síntese, após analisar os aspectos relacionados à legalidade da prisão em flagrante, relaxando-a em caso de ilegalidade, deve o juiz se questionar: se o agente estivesse em liberdade, seria caso de decretação da sua prisão preventiva? As medidas cautelares diversas da prisão são adequadas e suficientes para assegurar a eficácia do processo ou será necessária a decretação do cárcere ad custodiam? Se o juiz entender que, no caso concreto, existe uma hipótese que autoriza a prisão pre­ ventiva do acusado, e que as medidas cautelares diversas da prisão revelam-se inadequadas ou insuficientes, deve converter a prisão em flagrante em prisão preventiva.279 Mas a quem compete o ônus de demonstrar a necessidade da manutenção da prisão do agente preso em flagrante? A nosso ver, da mesma forma que se exige do Estado a demonstração da presença do suporte fático e de direito justificadores da prisão preventiva em relação ao acusado que esteja solto, também se impõe ao Estado o ônus da prova da necessidade da manutenção da prisão na hipótese do art. 310, inciso II, do CPP, sob pena de se estabelecer indevida presunção de necessidade da custódia cautelar daquele que foi preso em flagrante, violando a regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência. Daí a necessidade de uma mudança de postura do papel da autoridade policial por ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, que não pode mais se limitar ao mero registro da prisão em flagrante e subsequente remessa do APF à autoridade judiciária. Verificando a autoridade policial que há elementos concretos que recomendam a manutenção da prisão do agente, incumbe a

278

No sentido de que a prisão preventiva só pode ser decretada se houver fundamentação demonstrando a insufi­ ciência ou inadequação das medidas cautelares diversas da prisão: STJ, 5ã Turma, HC 219.101/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 10/04/2012.

279

Nesse sentido: STJ, 5ã Turma, RHC 21.278/DF, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 15/10/2007 p. 299.

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ela arregimentar, de imediato, o maior número de informações nessse sentido, auxiliando o trabalho do magistrado no momento da conversão da prisão em flagrante em preventiva. A título de exemplo, em caso concreto do qual tivemos conhecimento, ao efetuar a prisão em flagrante de determinado agente pela prática do crime de estupro, a autoridade policial verificou que 02 (dois) outros crimes sexuais tinham sido praticados em circunstâncias semelhantes na mesma localidade. Dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas que dispõe para remeter o APF à autoridade judiciária, o delegado conseguiu que as vítimas dos outros 02 (dois) crimes sexuais fossem à delegacia e fizessem o reconhecimento pessoal do preso. Com tais informações em mãos, procedeu à remessa do APF ao juízo competente, ao mesmo tempo em que representou no sentido da decretação da preventiva. Nesse caso, diante da excelência do trabalho da autoridade policial, terá o magistrado substrato fático e jurídico para proceder à conversão do flagrante em preventiva. Leitura apressada do art. 310, inciso II, do CPP, com redação dada pela Lei n° 12.403/11, pode levar à conclusão (equivocada) de que o magistrado pode converter a prisão em flagrante em prisão preventiva de ofício, independentemente de provocação do titular da ação penal. Ora, ao tratarmos do procedimento para a decretação das medidas cautelares, vimos que não é possível que o juiz determine de ofício a imposição de medidas cautelares de natureza pessoal, aí incluída a prisão, durante a fase pré-processual, mas somente na fase processual, sob pena de evidente violação ao sistema acusatório. Destoa das funções do magistrado exercer qualquer atividade de ofício na fase investigatória que possa caracterizar uma colaboração à acusação. O que se reserva ao magistrado, na fase investigatória, é atuar somente quando for provocado, tutelando liberdades fundamentais como a inviolabilidade domiciliar, a vida privada e a intimidade, assim como a liberdade de locomoção. Portanto, o art. 310, inciso II, do CPP, deve ser interpretado sistematicamente com o art. 306, caput, do CPP, que inseriu no CPP a comunicação da prisão em flagrante ao Ministério Público, e com o arts. 282, § 2o, e 311, que preveem que, na fase investigatória, ao juiz só é dado decretar uma medida cautelar se for provocado nesse sentido. Enfim, a conclusão a que se chega é a de que o Ministério Público deve se apresentar em juízo para reivindicar a decretação da prisão preventiva (ou temporária), caso entenda necessária a manutenção da privação da liberdade do acusado, ou, ainda, no sentido da imposição de medida cautelar diversa da prisão. Em síntese, para que seja possível a conversão da prisão em flagrante em preventiva nos termos do art. 310, inciso II, do CPP, que não pode ocorrer de ofício, sob pena de violação ao sistema acusatório, é indispensável prévia representação da autoridade policial, referendada pelo Parquet, ou requerimento do Ministério Público ou do ofendido - neste caso, apenas nos crimes de ação penal privada.280 Outro aspecto importante a ser analisado quanto ao art. 310, inciso II, do CPP, diz respeito à necessidade de observância do art. 313 do CPP por ocasião da conversão da prisão em flagrante em

280

Nessa linha, Og Fernandes observa que, embora a lei não preveja, nessa etapa, a vista dos autos pelo Ministério Público, a providência parece decorrer da própria natureza das medidas cautelares e em face das atribuições do pa rque t no sistema acusatório. Não custa lembrar que o órgão ministerial deverá ter recebido a comunicação da prisão em flagrante, conforme dispõe o caput do art. 306, o que permitirá requerer ao juiz as medidas que entender adequadas, independentemente de vista promovida pelo julgador. (M edidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - com entários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 89). Em sentido diverso, reconhecendo a legalidade da conversão da prisão em flagrante em preventiva de ofício pelo juiz, mesmo sem prévia provocação da autoridade policial ou do Ministério Público: STJ, 5ã Turma, HC 280.980/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 18/02/2014, DJe 07/03/2014; STJ, 53 Turma, HC 281.756/PA, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 15/05/2014, Dje 22/05/2014.

TÍTULO 6 • DAS MEDIDAS CAUTELARES DE NATUREZA PESSOAL

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preventiva. Corrente minoritária sustenta que é possível a conversão em preventiva independente­ mente da observância do art. 313 do CPP, já que o art. 310, inciso II, do mesmo Código, faz menção apenas à presença dos requisitos constantes do art. 312. Trabalha-se, assim, com uma interpretação gramatical do art. 310, II, do CPP. Logo, segundo essa corrente, em se tratando de crime de furto simples, cuja pena é de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, caso um agente primário tenha sido preso em flagrante, e o juiz entenda que sua prisão é necessária para impedir a prática de novos delitos (garantia da ordem pública), poderá converter a prisão em flagrante em preventiva, pouco importan­ do o fato de o delito não preencher nenhuma das hipóteses de admissibilidade do art. 313 do CPP. A nosso juízo, tal posição revela-se completamente absurda. Em primeiro lugar porque não se pode admitir que o ordenamento jurídico passe a contar com diversas espécies de prisão preventiva, uma condicionada à observância do art. 313 do CPP, e outra não. Segundo, não se pode admitir que a sorte (ou azar) de uma pessoa no processo penal esteja condicionada ao simples fato dela ter sido presa em flagrante ou não. Com efeito, a se admitir a corrente anterior, o agente detido em situação de flagrância poderia ter sua prisão convertida em preventiva, independentemente da observância do art. 313. Porém, caso tivesse conseguido fugir, evitando o flagrante, sua preventiva não poderia ser decretada. Qual o critério lógico e razoável capaz de justificar tal discriminação? Não conseguimos encontrar. Terceiro, é sabido que a interpretação gramatical é a pior interpretação possível. Deve-se buscar, sempre, uma interpretação sistemática. Revela inviável, pois, querer concluir que o art. 313 não precisa ser observado por ocasião da conversão pelo simples fato de o inciso II do art. 310 do CPP não fazer menção a ele. De modo semelhante ao art. 310, II, do CPP, ao se referir à decretação da prisão preventiva do acusado citado por edital que não compareceu nem constituiu advogado, o art. 366 do CPP também faz menção apenas ao disposto no art. 312. Não obstante, ninguém jamais ousou dizer que, por conta disso, o art. 313 do CPP não precisaria estar presente. Por tais motivos, não há como negar que a conversão em preventiva só será possível se, para além da comprovação dofumus boni iuris e do periculum in mora (CPP, art. 312), também restar preenchida uma das hipóteses de admissibilidade do art. 313 do CPP.281 Superada essa análise, é oportuno destacar que, apesar de o art. 310, inciso II, do CPP, fazer menção apenas à conversão da prisão em flagrante em preventiva, parece-nos ser plenamente possível a conversão em prisão temporária (Lei n° 7.960/89), desde que haja requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial nesse sentido. Com efeito, se o art. 310, II, do CPP, autoriza a conversão do flagrante em preventiva, não há razão lógica para não se autorizar, por meio de analogia, a mesma conversão para a temporária. Afinal, onde impera a mesma razão, impera o mesmo direito. Considerando a vocação da prisão temporária para assegurar a eficácia das investigações, é plenamente possível a conversão da prisão em flagrante em temporária, desde que preenchidos os seguintes requisitos: a) demonstrada a imprescindibilidade da prisão do agente para assegurar as investigações; b) a infração penal deve ser crime hediondo ou equiparado (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o) ou um dos crimes listados no art. Io, III, da Lei n° 7.960/89; c) requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial postulando a conversão do flagrante em temporária; d) demonstração da inadequação ou insuficiência das medidas cautelares diversas da prisão. Por fim, não se revela possível advogar a tese de que a conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária) seria obrigatória em relação aos crimes que não admitem a concessão 281

Andrey Borges de Mendonça comunga de entendimento semelhante: Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 214.

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de liberdade provisória. A uma porque não há prisão cautelar obrigatória, sob pena de patente violação à regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência. Em segundo lugar, até mesmo em relação ao crime de tráfico de drogas, tem sido considerada inconstitucional a vedação em abstrato da concessão de liberdade provisória (STF, HC 104.339, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 10/05/2012). Logo, não se pode admitir a conversão automática da prisão em flagrante em preventiva, por meio de simples remissão ao óbice à liberdade provisória contido no art. 44 da Lei 11.343/2006. Afinal, a garantia da fundamentação a que se refere a Constituição Federal (art. 5o, LXI, c/c art. 93, IX) importa o dever judicante da real ou efetiva demonstração de que a segregação atende aos requisitos dos arts. 312e313 do CPP.282 Destarte, ante a declaração incidental da inconstitucionalidade da expressão “e liberdade pro­ visória” constante do art. 44 da Lei 11.343/06 pelo Plenário do Supremo, conclui-se que, mesmo para o crime de tráfico de drogas, a conversão do flagrante está condicionada à apreciação funda­ mentada dos pressupostos que autorizam a prisão preventiva e/ou temporária. Logo, não é dado ao juiz indeferir o pedido de liberdade provisória e proceder à automática conversão do flagrante fazendo mera alusão à referida vedação legal, sem a indicação de elementos concretos e individua­ lizados, aptos a justificar a necessidade da constrição da liberdade de locomoção do flagranteado. 11.3. Concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada (ou não) com as medidas cautelares diversas da prisão Ao receber o auto de prisão em flagrante, verificada a legalidade da medida, se o juiz con­ cluir que não há necessidade de conversão do flagrante em preventiva (ou temporária), deverá, fundamentadamente, conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (CPP, art. 310, III). Como visto acima, se o juiz verificar a ilegalidade da prisão em flagrante, deverá rela­ xá-la, o que, no entanto, não impede a decretação da prisão preventiva, desde que presentes seus pressupostos legais. Todavia, caso a prisão em flagrante seja legal, e desde que ausentes os pressupostos que autorizam a prisão preventiva, deverá o juiz conceder ao preso liberdade provisória, com ou sem fiança. Mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, grande parte da doutrina já se manifestava no sentido da obrigatória análise, por parte do juiz, acerca do cabimento da liberdade provisória, com ou sem fiança, sobretudo diante da antiga redação do art. 310, parágrafo único, do CPP, que previa o cabimento de liberdade provisória sem fiança quando o juiz verificasse a inocorrência das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.283 No entanto, como posto acima, sempre prevaleceu o entendimento pretoriano no sentido de que, por ocasião da comunicação do flagrante, a autoridade judiciária não estaria obrigada a fundamentar a manutenção da prisão cautelar do agente. Daí a grande importância da nova redação do art. 310, inciso III, do CPP, que estabelece expressamente que, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, caso não seja hipótese de relaxamento da prisão, e desde que ausentes os pressupostos que autorizam a prisão preventiva.

282 283

Para mais detalhes acerca da inconstitucionalidade da expressão "e liberdade provisória", constante do caput do art. 44 da Lei n2 11.343/06, remetemos o leitor ao tópico atinente à liberdade provisória proibida. É essa também a posição de Antônio Scarance Fernandes (Processo penal constitucional. 3® ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 304) e de Afrânio Silva Jardim (Direito processual penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Edi­ tora Forense, 2002. p. 253). Na mesma linha: ROCHA, Luiz Otávio de Oliveira; BAZ, Marco Antônio Garcia (Fiança crim inal e liberdade provisória. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 83); GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 227.

T ÍT U L O 6 • D A S M E D ID A S C A U T E L A R E S D E N A T U R E Z A P E S S O A L

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O novel dispositivo põe fim a decisões em que o magistrado se limitava a dizer: “flagrante formalmente em ordem - aguarde-se a vinda dos autos principais”, permitindo que alguém per­ manecesse preso pelo simples fato de ter sido preso em flagrante, independentemente da análise da necessidade de manutenção do cárcere ad custodiam, o que importava em violação à regra que obriga o juiz a fundamentar a necessidade da prisão cautelar (CF, art. 5o, LXI, c/c art. 93, IX). Como visto acima - princípio da jurisdicionalidade -, toda espécie de prisão de natureza cautelar está submetida à apreciação do Poder Judiciário, seja previamente, seja pela necessidade de imediata convalidação da prisão em flagrante, devendo o magistrado indicar de maneira fun­ damentada, com base em elementos concretos existentes nos autos, a necessidade da manutenção da segregação cautelar, inclusive com apreciação do cabimento da liberdade provisória. Destarte, diante da nova redação do art. 310, inciso III, do CPP, inexistindo os requisitos que autorizam a prisão preventiva, deve o juiz conceder liberdade provisória ao preso, com ou sem fiança. Leitura apressada do art. 310, inciso III, do CPP, pode levar o intérprete à conclusão de que somente seria possível a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, o que não é verdade. Isso porque tal dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o art. 321 do CPP, o qual prevê que, ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP e observados os critérios constantes do art. 282. Como se percebe, com o advento da Lei n° 12.403/11, a liberdade provisória já não se restringe mais àquela anteriormente concedida: com ou sem fiança. Para além da concessão (ou não) da fiança, é plenamente possível que o juiz aplique isolada ou cumulativamente as medidas cautelares diversas da prisão, desde que evidenciada sua necessidade para neutralizar uma das situações de perigo listadas no art. 282,1, do CPP. Supondo, assim, funcionário público flagrado na prática do crime de concussão, ao juiz é permitido conceder liberdade provisória com fiança, impondo, cumulativamente, a suspensão do exercício da função pública, nos termos do art. 319, VI, c/c art. 282, I, do CPP, desde que evidenciado que a manutenção do agente no exercício funcional daria ensejo à reiteração delituosa.

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1.7

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1. CONCEITO DE PRISÃO PREVENTIVA Cuida-se de espécie de prisão cautelar decretada pela autoridade judiciária competente, me­ diante representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, em qualquer fase das investigações ou do processo criminal (nesta hipótese, também pode ser decretada de ofício pelo magistrado), sempre que estiverem preenchidos os requisitos legais (CPP, art. 313) e ocorrerem os motivos autorizadores listados no art. 312 do CPP, e desde que se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319). Na redação original do Código de Processo Penal, era possível se falar em uma prisão preventiva obrigatória e outra facultativa. Isso porque, embora o Código não usasse as referidas expressões, segundo a redação original do art. 312 do CPP, a prisão preventiva seria decretada nos crimes a que fosse cominada pena de reclusão por tempo igual ou superior a dez anos. Logo, nessas hipóteses, tinha-se espécie de prisão preventiva obrigatória. A expressão prisão preventiva facultativa era usada em contraposição à preventiva compulsória, sendo cabível quando, além de prova da materialidade e indícios de autoria, estivessem presentes outros pressupostos. Com

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a extinção da prisão preventiva obrigatória pela Lei n° 5.349/67, que deu nova redação ao art. 312 do CPP, não há mais falar em prisão preventiva obrigatória nem facultativa. A prisão preventiva não se confunde com a prisão temporária, pelos seguintes motivos: a) a prisão temporária só pode ser decretada durante a fase pré-processual (Lei n° 7.960/89, art. Io, incisos I, II e III); a prisão preventiva pode ser decretada tanto durante a fase de inves­ tigação policial quanto durante o processo (CPP, art. 311);

b) a prisão temporária não pode ser decretada de ofício (Lei n° 7.960/89, art. 2o); durante a instrução processual, é cabível a decretação da prisão preventiva de ofício pelo magistrado (CPP, art. 311); c) a prisão temporária só é cabível em relação a um rol taxativo de delitos, listados no art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89, e no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90 (crimes hediondos e equiparados); não há um rol taxativo de delitos em relação aos quais seja cabível a decretação da prisão preventiva, bastando, para tanto, o preenchimento dos pressupostos constantes do art. 313 do CPP; d) a prisão temporária possui prazo pré-determinado: 5 (cinco) dias, prorrogáveis por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade (Lei n° 7.960/89, art. 2o); 30 (trinta) dias, prorrogáveis por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade, em se tratando de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o), findo o qual o preso será colocado imediatamente em liberdade, independentemente da expedição de alvará de soltura pelo juiz, salvo se tiver sido decretada sua prisão preventiva. De seu turno, a prisão preventiva não tem prazo pré-determinado.284 2. DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DURANTE A FASE PRELIMINAR DE INVESTIGAÇÕES De acordo com a nova redação do art. 311, caput, do CPP, a prisão preventiva pode ser decretada em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal. Com o advento da Lei n° 7.960/89, que versa sobre a prisão temporária, pensamos que, pelo menos em relação aos delitos constantes do art. Io, inciso III, da referida lei, bem como no tocante aos crimes hediondos e equiparados (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o), somente será pos­ sível a decretação da prisão temporária na fase preliminar de investigações, à qual não poderá se somar a prisão preventiva, pelo menos durante essa fase. Portanto, em relação a tais delitos, não se afigura possível a aplicação da temporária seguida de preventiva, exclusivamente durante a fase investigatória. Ora, se em relação a tais delitos foi criada uma modalidade de prisão cautelar com o esco­ po específico de tutelar as investigações, não faz sentido que a prisão preventiva também seja decretada na fase preliminar. Logo, se a prisão temporária tiver sido decretada pelo magistrado pelo prazo de 60 (sessenta) dias para auxiliar nas investigações de um crime hediondo, não faz sentido que, findo esse prazo, seja decretada a prisão preventiva, concedendo-se à autoridade policial mais 10 (dez) dias para finalizar o inquérito. Portanto, se a autoridade policial não con­ seguir concluir as investigações no prazo máximo previsto para a prisão temporária, o indivíduo deve ser posto em liberdade, sem prejuízo da continuidade da apuração do fato delituoso. No entanto, uma vez expirado o prazo da prisão temporária, e oferecida denúncia ou queixa, nada

284 Vide abaixo item relativo à duração da prisão preventiva e excesso de prazo para a form açã o da culpa.

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impede que o magistrado, ao receber a peça acusatória, converta a prisão temporária em preven­ tiva, medida esta que deverá perdurar durante o processo enquanto subsistir sua necessidade.285 Isso não significa dizer que a Lei da prisão temporária (Lei n° 7.960/89) tenha afastado a possibilidade de decretação da prisão preventiva na fase investigatória. Na verdade, subsiste a possibilidade de prisão preventiva na fase pré-processual em relação aos delitos que não auto­ rizam a decretação da prisão temporária, desde que preenchidos os pressupostos do art. 313 do CPP e verificada sua imperiosa necessidade. Imagine-se uma hipótese de estelionato em conti­ nuidade delitiva,286 praticado contra inúmeras vítimas por agente com maus antecedentes, que demonstre a intenção de se evadir do distrito da culpa. Nesse caso, como não é cabível a prisão temporária, apresenta-se viável a decretação da prisão preventiva durante o inquérito policial. Sendo o inquérito policial peça dispensável ao oferecimento da peça acusatória, desde que a justa causa necessária à deflagração do processo esteja respaldada por outros elementos de convicção (CPP, art. 39, § 5o), não é obrigatória a existência de inquérito policial em andamen­ to para a decretação da prisão preventiva, mas sim que haja uma investigação preliminar que demonstre a imprescindibilidade da prisão preventiva do investigado para melhor apuração do fato delituoso. Assim, além do cabimento da prisão preventiva durante o curso de um inquérito policial, também o será diante de outros procedimentos investigatórios, tais como comissões parlamentares de inquérito, inquéritos civis ou procedimentos investigatórios criminais presididos pelo órgão do Ministério Público. Uma última questão merece ser analisada acerca da prisão preventiva decretada no curso das investigações: a obrigatoriedade do oferecimento da peça acusatória. Parte majoritária da doutrina entende que, havendo elementos para a segregação cautelar do agente (prova da mate­ rialidade e indícios de autoria), também há elementos para o oferecimento da peça acusatória, sendo inviável, por conseguinte, a devolução dos autos do inquérito policial à autoridade policial para realização de diligências complementares. Apesar de ser esse o entendimento que prevalece na doutrina, comungamos de entendimento diverso. Explica-se: se presentes os requisitos legais do art. 312 do CPP, a prisão preventiva deve ser decretada. Porém, mesmo após a decretação da preventiva, caso subsista a necessidade de realização de diligência imprescindível para a formação da opinio delicti, os autos podem retomar à autoridade policial. No entanto, o prazo total para a conclusão do processo, que começa a contar a partir da prisão, estará correndo, o que pode dar ensejo a eventual excesso de prazo, autorizando o relaxamento da prisão.287

285

Na mesma linha: Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi (Prisão tem porária: análise e perspectivas de um a rele itura ga rantista da Lei n s 7.960, de 21 de dezembro de 1989. São Paulo: Quartier Latin, 2009J e Guilherme de Souza Nucci [Tribunal do Júri. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 57).

286 A título de exemplo, a regra da continuidade delitiva é aplicável ao estelionato previdenciário (art. 171, § 39, do CP) praticado por aquele que, após a morte do beneficiário, passa a receber mensalmente o benefício em seu lugar, mediante a utilização do cartão magnético do falecido. Nessa situação, não se verifica a ocorrência de crim e único, pois a fraude é praticada reiteradam ente, to d o s os m e ses, a cada utilização do cartão m agnético

do beneficiário já falecido. Assim, configurada a reiteração criminosa nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução, tem incidência a regra da continuidade delitiva prevista no art. 71 do CP. A hipótese, ressalte-se, difere dos casos em que o estelionato é praticado pelo próprio beneficiário e daqueles em que o não beneficiário insere dados falsos no sistema do INSS visando beneficiar outrem; pois, segundo a jurisprudência do STJ e do STF, nessas situações o crime deve ser considerado único, de modo a impedir o reconhecimento da continuidade delitiva. Nesse contexto: STJ, 6§ Turma, REsp 1.282.118/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 26/02/2013, DJe 12/03/2013. 287

Denilson Feitoza comunga do mesmo entendimento (op. cit. p. 860).

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3. DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DURANTE O CURSO DO PROCES­ SO CRIMINAL De acordo com antiga redação do caput do art. 311, determinada pela Lei n° 5.349/67, a prisão preventiva podia ser decretada em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal. Antes das alterações trazidas pela Lei n° 11.689/08 e 11.719/08, a instrução criminal era compreendida como o período entre o recebimento da peça acusatória e a fase do art. 499 do CPP (diligências), no procedimento comum, ou até a inquirição de testemunhas, no procedi­ mento do júri (CPP, art. 406, caput). Com as alterações produzidas pela reforma processual de 2008, a instrução criminal no procedimento comum ordinário tem início com o recebimento da peça acusatória (CPP, art. 396) e vai até a audiência una de instrução e julgamento (CPP, art. 400, caput), salvo se houver requerimento de diligências cuja necessidade tenha se originado de circunstâncias ou fatos apurados na instrução (CPP, art. 402, caput), quando, então, a instrução encerrar-se-á com a realização da diligência. Quanto ao procedimento comum sumário, pelo menos de acordo com o art. 534 do CPP, não é possível requerimento de diligências, razão pela qual a instrução criminal se encerra na própria audiência una de instrução e julgamento. Por sua vez, no tocante à primeira fase do procedimento do júri, a instrução vai até a audiência de instrução (CPP, art. 411, caput). Como o art. 311 do CPP, em sua redação anterior, dispunha que a prisão preventiva somente seria cabível durante o curso do inquérito policial ou da instrução criminal, poder-se-ia pensar, à primeira vista, que a prisão preventiva não seria cabível após o encerramento da instrução criminal. No entanto, com a superveniência da Constituição Federal de 1988 e a consagração expressa do princípio da presunção de não culpabilidade, já não havia mais espaço para uma prisão provisória como efeito automático de sentença condenatória recorrível (CPP, art. 393, in­ ciso I) ou da pronúncia (vide antiga redação do art. 408, §§ Io e 2o, do CPP). Em outras palavras, se o acusado permanecera solto durante o processo, devia permanecer em liberdade quando da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível, salvo se surgisse alguma hipótese que auto­ rizasse sua prisão preventiva. Por outro lado, tendo o acusado permanecido preso ao longo da instrução, devia permanecer preso, salvo se desaparecesse o motivo que autorizava sua prisão preventiva, quando então devia ser posto em liberdade. Obviamente, para que o agente fosse mantido preso, devia o magistrado fundamentar a necessidade da manutenção de sua segregação. Se assim o era, e se a decretação de tais prisões tinha que se dar com fundamento no art. 312 do CPP, estávamos diante de uma hipótese de prisão preventiva decretada após o encerramento da instrução criminal, e não de uma espécie de prisão cautelar autônoma. Desde a Constitui­ ção de 1988, a prisão decorrente de pronúncia e a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível já não podiam mais, de per si, legitimar uma custódia cautelar. Deviam, sob pena de constrangimento ilegal, cingir-se, fundamentadamente, à órbita do art. 312 do CPP.288 Como bem ressaltava Pacelli em momento anterior à vigência da Lei n° 12.403/11, haverá quem diga, em relação à possibilidade de decretação de prisão por ocasião de sentença condena­ tória recorrível quando demonstrados os pressupostos listados no art. 312 do CPP, que a prisão preventiva somente pode ser decretada até o final da instrução criminal. Dessa forma, faltaria previsão legal para a prisão. Ocorre que a previsão de decretação da prisão preventiva até o final da instrução criminal, tal qual prevista na antiga redação do art. 311, caput, do CPP, tinha firmes propósitos e coerência lógica, ao tempo da elaboração do Código de Processo Penal. De 288 STJ, 58 Turma, HC 48.090/MS, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 14/03/2006, DJ 03/04/2006, p. 380.

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fato, como adverte o autor, “não havia a menor necessidade de se prever a prisão preventiva para além dessa fase, pela simples razão de que, após a instrução, a só superveniência da sentença condenatória já implicava o recolhimento à prisão, nos termos da redação primitiva do Código de Processo Penal. A prisão, àquele tempo, era, pois, conseqüência automática da condenação em primeiro grau”.289 Como, hoje, a prisão não surge mais como efeito simples e automático da sentença condenatória ou da pronúncia, nada impede, portanto, que a prisão preventiva seja decretada mesmo após o encerramento da instrução criminal. Com as alterações trazidas pelas leis que alteraram o procedimento comum e o procedi­ mento do júri, pôs-se fim a tal controvérsia, restando inequívoca a possibilidade de decretação da prisão preventiva mesmo após o encerramento da instrução criminal, já que o recolhimento à prisão não mais subsiste como efeito automático da pronúncia ou da sentença condenatória recorrível, mesmo que o acusado não seja primário e não tenha bons antecedentes. De fato, com a nova redação dada ao art. 413, § 3o, do CPP, pela Lei n° 11.689/08, quando da pronúncia, o juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação, ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código. Por sua vez, segundo o art. 387, § Io, do CPP, o juiz, ao proferir sentença condenatória, decidirá fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimen­ to da apelação que vier a ser interposta. Em relação ao Tribunal do Júri, o Juiz-presidente, ao proferir sentença condenatória, mandará o acusado recolher-se ou recomenda-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva (CPP, art. 492,1, “e”). Daí se entende o porquê da nova redação do art. 311 do CPP, segundo a qual a prisão preventiva será cabível em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal. Hoje, portanto, não há mais dúvidas: a prisão preventiva pode ser decretada em qualquer fase da persecução penal, seja na fase investigatória, seja no curso do processo criminal. 3.1. Concessão antecipada de benefícios prisionais ao preso cautelar

Sendo necessária a manutenção ou a decretação da prisão do acusado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, em virtude da presença de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, nada impede a concessão antecipada dos benefícios da execução penal. De fato, supondo que já tenha se operado o trânsito em julgado da sentença condenatória para o Ministério Público, mas ainda pendente recurso da defesa, é certo que, por força do princípio da non reformatio in pejus, a pena imposta ao acusado não poderá ser agravada (CPP, art. 617, in fine). Logo, estando o cidadão submetido à prisão cautelar, justificada pela presença dos requisitos dos arts. 312 e 313 do CPP, afigura-se possível a incidência de institutos como a progressão de regime e outros incidentes da execução. Em outras palavras, a vedação à execução provisória da pena decorrente do princípio da presunção de não culpabilidade não impede a antecipação cautelar dos benefícios da execução penal definitiva ao preso processual.290 289

Curso de processo penol.

9ã ed. Rio de Janeiro/RJ: Editora Lumen Juris, 2008. p. 431.

290. A execução provisória da pena não se confunde com a concessão antecipada de benefícios prisionais ao preso cautelar. Naquela, não estão presentes os requisitos para a prisão cautelar. A prisão penal do indivíduo, decorrente de acórdão condenatório proferido por Tribunal de 2^ instância (STF, HC 126.292), surge, assim, como verdadeira antecipação da pena, em flagrante contrariedade, a nosso juízo, ao princípio da presunção de inocência. Na antecipação dos benefícios, o cidadão está submetido à prisão cautelar, justificada pela existência dos requisitos do art. 312 do CPP, e, como há privação de liberdade, seria possível a incidência de institutos como a progressão de regime e outros incidentes da execução. Com entendimento semelhante: BOTTINI, Pierpaolo.As reform as no

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De se ver que a própria Lei de Execução Penal estende seus benefícios aos presos provisórios (Lei n° 7.210/84, art. 2o, parágrafo único), sendo que a detração prevista no art. 42 do Código Penal permite que o tempo de prisão provisória seja descontado do tempo de cumprimento de pena. Nessa linha, de acordo com a Súmula 716 do STF, admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. A súmula 717 do STF, por sua vez, preceitua que não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.291 4. INICIATIVA PARA A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA De acordo com antiga redação do art. 311 do CPP, a prisão preventiva podia ser decretada pelo juiz, de ofício, ou mediante requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial. Consoante a nova redação do art. 311 do CPP, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de oficio, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do quere­ lante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. Em se tratando de processo da competência originária dos Tribunais, a competência é do Relator, nos termos do art. 2o, parágrafo único, da Lei n° 8.038/90, porque a ele são outorgadas as atribuições que a legislação processual confere aos juizes singulares. 4.1. Decretação da prisão preventiva pelo juiz de ofício De acordo com a nova redação do art. 311 do CPP, em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de oficio, se no curso da ação penal, ou mediante requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. Ao dispor que a prisão preventiva poderá ser decretada de ofício, se no curso da ação penal, conclui-se, a contrario sensu, que referida medida cautelar não poderá ser decretada de ofício na fase investigatória. Todavia, uma vez provocada a jurisdição por denúncia do Ministério Público ou queixa-crime do particular ofendido, a autoridade judiciária competente passa a deter poderes inerentes à própria jurisdição penal, podendo, assim, decretar a prisão preventiva de ofício caso verifique que a supressão da liberdade do denunciado seja necessária para preservar a prova, o resultado do processo ou a própria segurança da sociedade. 4.2. Legitimidade para o requerimento de decretação da prisão preventiva Durante a fase investigatória, a prisão preventiva pode ser decretada a partir de represen­ tação da autoridade policial, assim como em face de requerimento do Ministério Público ou do ofendido. Durante o curso do processo criminal, a decretação da prisão preventiva pode se dar de ofício, como também em virtude de requerimento do Parquet, do querelante ou do assistente.292

processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reform a. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 468. Na mesma linha: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. Op. cit. p. 318.

2008.

291. Acerca da antecipação de benefícios prisionais ao preso cautelar, vide Resolução n^ 19/2006 do Conselho Nacional de Justiça. 292

Para mais detalhes acerca da legitimidade para o requerimento da decretação da prisão preventiva, remete­ mos o leitor ao capítulo introdutório, onde abordamos o procedimento atinente à decretação das medidas cautelares.

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5. PRESSUPOSTOS

Como toda e qualquer medida cautelar, a prisão preventiva também está condicionada à presença concomitante do fumus boni iuris, aqui denominado de fumus comissi delicti, e do periculum in mora (periculum libertatis). Com a entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, para além da demonstração do fumus co­ missi delicti, consubstanciado pela prova da materialidade e indícios suficientes de autoria ou de participação, e do periculum libertatis (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou garantia de aplicação da lei penal), também passa a ser necessária a demonstração da ineficácia ou da impossibilidade de aplicação de qualquer das medidas cautelares diversas da prisão. Nesse sentido, o art. 282, § 6o, do CPP, estabelece que a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar. Na mesma linha, o art. 310, inciso II, do CPP, autoriza a conversão da prisão em flagrante em preventiva, quando pre­ sentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão. Pode-se dizer, então, que o novo sistema de medidas cautelares pessoas trazido pela Lei n° 12.403/11 evidencia que as medidas cautelares diversas da prisão são preferíveis em relação à prisão preventiva, dentro da ótica de que sempre se deve privilegiar os meios menos gravosos e restritivos de direitos fundamentais. Tem-se aí, na dicção de Badaró, a característica da preferibilidade das medidas cautelares diversas da prisão, da qual decorre a conseqüência de que, diante da necessidade da tutela cautelar, a primeira opção deverá ser sempre uma das medidas previstas nos arts. 319 e 320. Por outro lado, como reverso da moeda, a prisão preventiva passa a funcionar como a extrema ratio, somente podendo ser determinada quando todas as outras medidas alternativas se mostrarem inadequadas.293 Portanto, o magistrado só poderá decretar a prisão preventiva quando não existirem outras medidas menos invasivas ao direito de liberdade do acusado por meio das quais também seja possível alcançar os mesmos resultados desejados pela prisão cautelar. 5.1. Fumus comissi delicti

Ofumus comissi delicti, indispensável para a decretação da prisão preventiva, vem previsto na parte final do art. 312 do CPP: prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. É indispensável, portanto, que o juiz verifique que a conduta supostamente praticada pelo agente é típica, ilícita e culpável, apontando as provas em que se apoia sua convicção. No tocante à materialidade, como denota a expressão prova da existência do crime constante do art. 312 do CPP, exige-se um juízo de certeza quando da decretação da prisão preventiva. No caso de crimes que deixam vestígios, não há falar em indispensabilidade do exame de corpo de delito para a decretação da prisão preventiva. Na verdade, como é cediço, o laudo pericial pode ser juntado durante o curso do processo, salvo nas hipóteses de drogas (laudo de constatação da natureza da droga - art. 50, § Io, da Lei n° 11.343/06) e crimes contra a propriedade imaterial (CPP, art. 525), em que o exame de corpo de delito assume condição de verdadeira condição específica de procedibilidade. No que tange à autoria, entretanto, exige o Código a presença de indício suficiente de auto­ ria. Como é cediço, a palavra indício possui dois significados. Ora é usada no sentido de prova 293

BADARÓ, Gustavo Henrique. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - com entários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 223.

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indireta, tal qual preceitua o art. 239 do CPP, ora é usada no sentido de uma prova semiplena, ou seja, aquela com menor valor persuasivo.294 É exatamente neste último sentido que a palavra indício é usada no art. 312 do CPP, da mesma forma que ocorre no art. 126 e no art. 413 do CPP. Como sublinha Antônio Magalhães Gomes Filho, indício suficiente é aquele que autoriza “um prognóstico de um julgamento positivo sobre a autoria ou a participação”.295 Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal concluiu que, para a decretação da prisão preven­ tiva, faz-se necessário a verificação de indícios de autoria, locução na qual indício não tem o sentido específico de prova indireta - e eventualmente conclusivo - que lhe dá a lei (CPP, art. 239), mas, sim, o de indicação, começo de prova ou prova incompleta.296 Por conseguinte, quanto à materialidade delitiva, é necessário que haja prova, isto é, certeza de que o fato existiu, sendo, neste ponto, uma exceção ao regime normal das medidas cautelares, na medida em que, para a caracterização do fumus boni iuris, há determinados fatos sobre os quais o juiz deve ter certeza, não bastando a mera probabilidade. Já no tocante à autoria delitiva, não se exige que o juiz tenha certeza desta, bastando que haja elementos probatórios que permi­ tam afirmar a existência de indício suficiente, isto é, probabilidade de autoria, no momento da decisão, sendo a expressão “indício” utilizada no sentido de prova semiplena.297 5.2. Periculum libertatis O periculum libertatis, indispensável para a segregação preventiva, está consubstanciado em um dos fundamentos do art. 312 do CPP: a) garantia da ordem pública; b) garantia da ordem econômica; c) garantia de aplicação da lei penal; d) conveniência da instrução criminal. Por força do novo parágrafo único do art. 312 do CPP, a prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (CPP, art. 282, § 4o). Para que a prisão preventiva seja decretada, não é necessária a presença concomitante de todos esses fundamentos. Basta a presença de um único destes para que o decreto prisional seja expedido. Logicamente, caso esteja presente mais de um fundamento (v.g., garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal), deve o magistrado fazer menção a cada um deles por ocasião da fundamentação da decisão, conferindo ainda mais legitimidade à determinação judicial. Assim o fazendo, na eventualidade de impetração de habeas corpus, ainda que o juízo ad quem reconheça a inexistência de um dos fundamentos, a prisão preventiva poderá ser mantida. Em síntese, pode-se dizer que, no caminho para a decretação de uma prisão preventiva, cabe ao magistrado, inicialmente, verificar o tipo penal cuja prática é atribuída ao agente, aferindo, a partir do art. 313 do CPP, se o crime em questão admite a decretação da prisão preventiva. Num segundo momento, incumbe ao magistrado analisar se há elementos que apontem no sentido da presença simultânea de prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria (fumus

294

Não se pode confundir o indício, que é sempre um dado objetivo, em qualquer de suas acepções (prova indireta ou prova semiplena), com a simples suspeita, que não passa de um estado de ânimo. O indício é constituído por um fato demonstrado que autoriza a indução sobre outro fato ou, pelo menos, constitui um elemento de menor valor; a suspeita é uma pura intuição, que pode gerar desconfiança, dúvida, mas também conduzir a engano.

295 A m otivação das decisões penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 223. 296 STF, Pleno, RHC 83.179/PE, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 22/08/2003 p. 22. 297

Comunga deste entendimento Gustavo Badaró. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 424.

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comissi delicti). O último passo é aferir a presença do periculum libertatis, compreendido como o perigo concreto que a permanência do suspeito em liberdade acarreta para a investigação criminal, para o processo penal, para a efetividade do direito penal ou para a segurança social. Logicamente, esses fatos que justificam a prisão preventiva devem ser contemporâneos à decisão que a decreta.298 5.2.1. Garantia da ordem pública A expressão “garantia da ordem pública” é extremamente vaga e indeterminada, gerando controvérsias na doutrina e na jurisprudência quanto ao seu real significado. Há pelo menos 3 (três) correntes acerca do assunto. Para uma primeira corrente (minoritária), a prisão preventiva decretada com fundamento na garantia da ordem pública não é dotada de fundamentação cautelar, figurando como inequívoca modalidade de cumprimento antecipado de pena. Para os adeptos dessa primeira corrente, medi­ das cautelares de natureza pessoal só podem ser aplicadas para garantir a realização do processo ou de seus efeitos (finalidade endoprocessual), e nunca para proteger outros interesses, como o de evitar a prática de novas infrações penais (finalidade extraprocessual). Entre outros, é esta a posição sustentada por Odone Sanguiné, segundo o qual “a prisão preventiva para garantia da ordem pública (ou, ainda, o clamor público) acaba sendo utilizada com uma função de prevenção geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à segurança da sociedade, porém deste modo se está desvirtuando por completo o verdadeiro sentido e natureza da prisão provisória ao atribuir-lhe funções de prevenção que de nenhuma maneira está chamada a cumprir”.299 Para uma segunda corrente, de caráter restritivo, que empresta natureza cautelar à prisão preventiva decretada com base na garantia da ordem pública, entende-se garantia da ordem pública como risco considerável de reiteração de ações delituosas por parte do acusado, caso permaneça em liberdade, seja porque se trata de pessoa propensa à prática delituosa, seja porque, se solto, teria os mesmos estímulos relacionados com o delito cometido, inclusive pela possibilidade de voltar ao convívio com os parceiros do crime. Acertadamente, essa corrente, que é a majoritária, sustenta que a prisão preventiva poderá ser decretada com o objetivo de resguardar a sociedade da reiteração de crimes em virtude da periculosidade do agente. O caráter cautelar é preservado, pois a prisão tem o objetivo de assegurar o resultado útil do processo, de modo a impedir que o réu possa continuar a cometer delitos, resguardando o princípio da prevenção geral. Há, de fato, evidente perigo social decorrente da demora em se aguardar o provimento jurisdicional definitivo, eis que, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, o agente já poderá ter cometido diversas infrações penais. Como adverte Scarance Fernandes, “se com a sentença e a pena privativa de liberdade pretende-se, além de outros 298

299

No sentido de que os fatos que justificam a prisão preventiva devem ser contemporâneos à decisão que a de­ creta: STJ, Turma, HC 214.921/PA, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 17/03/2015, DJe 25/03/2015; STJ, 6§ Turma, HC 119.533/ES, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 27/05/2014, DJe 10/06/2014. "A ín co n stitu cio n a lid a d e do clam or público c o m o fu n d a m e n to da prisão preventiva". In: Revista de Estudos

Criminais, n^ 10, p. 114/115. Em sentido semelhante: TOURINHO FILHO (op. cit. p. 530); GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. Op. cit. p. 66-67; PRADO, Geraldo. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - comentários à Lei 12.403, de 04/05/2011. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 120. A prevenção geral significa que a pena deve ser um estímulo a que as demais pessoas não pratiquem qualquer delito, servindo como exemplo aos demais membros da coletividade. A prevenção especial, por sua vez, visa reeducar o agente, com o intuito de compeli-lo a não mais delinquir. Por fim, a pena visa punir o agente e retribuir-lhe o mal que causou à sociedade.

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objetivos, proteger a sociedade, impedindo o acusado de continuar a cometer delitos, esse objetivo seria acautelado por meio da prisão preventiva”.300 No caso de prisão preventiva com base na garantia da ordem pública, faz-se um juízo de periculosidade do agente (e não de culpabilidade), que, em caso positivo, demonstra a necessi­ dade de sua retirada cautelar do convívio social. Embora não tenham o condão de exasperar a pena-base no momento da dosimetria da pena, inquéritos policiais e processos em andamento são elementos aptos a demonstrar eventual reiteração delitiva, fundamento suficiente para a decretação da prisão preventiva.301 Portanto, de acordo com essa corrente, a prisão preventiva poderá ser decretada com fun­ damento na garantia da ordem pública sempre que dados concretos - não se pode presumir a periculosidade do agente a partir de meras ilações, conjecturas desprovidas de base empírica concreta - demonstrarem que, se o agente permanecer solto, voltará a delinquir. As mudanças produzidas pela Lei n° 12.403/11 vêm ao encontro dessa segunda corrente, porquanto, segundo a nova redação do art. 282,1, as medidas cautelares poderão ser adotadas não só para tutelar a aplicação da lei penal e a investigação ou instrução criminal, como também para evitar a prática de infrações penais. Essa segunda corrente acerca do conceito de garantia da ordem pública sempre prevaleceu nos Tribunais Superiores. A título de exemplo, em caso concreto apreciado pelo STJ, concluiu-se estar perfeitamente justificada a necessidade de garantia da ordem pública em razão da pericu­ losidade concreta do paciente, denunciado como mandante de cinco homicídios qualificados consumados e seis tentados, cometidos por ocasião da invasão da residência das vítimas durante a madrugada, utilizando-se de metralhadoras, bem como de armamento de grosso calibre, tudo isso motivado por sentimento de vingança e disputa por poder dentro da organização criminosa voltada ao tráfico ilícito de drogas.302 Compreendendo-se garantia da ordem pública como expressão sinônima de periculosidade do agente, não é possível a decretação da prisão preventiva em virtude da gravidade em abstrato do delito, porquanto a gravidade da infração pela sua natureza, de per si, é uma circunstância inerente ao delito. Assim, a simples assertiva de que se trata de autor de crime de homicídio cometido mediante disparo de arma de fogo não é suficiente, por si só, para justificar a custódia cautelar. Todavia, demonstrada a gravidade em concreto do delito, seja pelo modo de agir, seja pela condição subjetiva do agente, afigura-se possível a decretação da prisão preventiva, já que demonstrada sua periculosidade, pondo em risco a ordem pública. 300 Processo penal constitucional. Op. cit. p. 302. 301

Nesse contexto: STJ, 5a Turma, RHC 055.365/CE, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 17/03/2015, DJe 06/04/2015; STJ, 6a Turma, RHC 052.402/BA, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 18/12/2014, DJe 05/02/2015.

302

STJ, 6a Turma, HC 85.922/SP, Rei. Min. Paulo Gallotti, Informativo ne 354 do STJ (28 de abril a 9 de maio de 2008). Na mesma trilha: STJ - HC 52.745/SP - 6a Turma - Rei. Min. Paulo Gallotti - DJ 09/04/2007 p. 270; STJ - HC 119.115/ RJ - 5a Turma - Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho - Dje 11/05/2009; STF - HC 89.266/GO - I a Turma - Rei. Min. Ricardo Lewandowski - DJ 29/06/2007 p. 58. E também: STF - HC 88.196/MS - I a Turma - Rei. Min. Marco Aurélio - DJ 18/05/2007 p. 82; STF - HC 86.002/RJ - 2a Turma - Rei. Min. Gilmar Mendes - DJ 03/02/2006 p. 88; STF - HC 88.608/RN - 2a Turma - Rei. Min. Joaquim Barbosa - DJ 06/11/2006 p. 51. Ambas as Turmas Criminais do STJ têm precedentes no sentido de que a prisão cautelar pode ser decretada para garantia da ordem pública potencialmente ofendida, especialmente nos casos de: reiteração delitiva, participação em organizações cri­ minosas, gravidade em concreto da conduta, periculosidade social do agente, ou pelas circunstâncias em que praticado o delito (modus operandi). A propósito: STJ, 6a Turma, HC 311.909/CE, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 10/03/2015, DJe 16/03/2015; STJ, 5a Turma, RHC 053.944/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 10/03/2015, DJe 19/03/2015.

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É por isso que a Suprema Corte tem censurado decisões que fundamentam a privação cautelar da liberdade no reconhecimento de fatos que se subsumem à própria descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica do tipo penal. Os elementos próprios à tipologia bem como as circunstâncias da prática delituosa não são suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta. Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito daquela Corte, ainda que o delito imputado ao acusado seja legalmente classificado como crime hediondo. Afinal, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5o, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do acusado, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada. Também não será possível a decretação da prisão preventiva em virtude da repercussão da infração ou do clamor social provocado pelo crime, isoladamente considerados. Tais argu­ mentos, de per si, não são justificativas para a tutela penal cautelar. Afirmações a respeito da gravidade do delito trazem aspectos já subsumidos ao próprio tipo penal, ou seja, aspectos como a gravidade em abstrato do delito, o clamor social provocado pelo delito, ou a necessidade de segregação cautelar do agente como forma de se acautelar o meio social devem permanecer alheios à avaliação dos pressupostos da prisão preventiva, mormente para garantia da ordem pública, pois desprovidos de propósito cautelar. Nessas hipóteses de clamor público e repercussão social do fato delituoso, não se vislumbra periculum Ubertatis, eis que a prisão preventiva não seria decretada em virtude da necessidade do processo, mas simplesmente em virtude da gravidade abstrata do delito, satisfazendo aos anseios da população e da mídia. Não custa lembrar: o poder judiciário está sujeito à lei e, sobretudo, ao direito, e não à opinião da maioria, facilmente manipulada pela mídia.303 Não por outro motivo, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que não constituem funda­ mentos idôneos, por si sós, à prisão preventiva: a) o chamado clamor público provocado pelo fato atribuído ao réu, mormente quando confundido, como é freqüente, com a sua repercussão nos veículos de comunicação de massa;304 b) a consideração de que, interrogado, o acusado não haja demonstrado interesse em cola­ borar com a Justiça; ao indiciado não cabe o ônus de cooperar de qualquer modo com a apuração dos fatos que o possam incriminar - que é todo dos organismos estatais da repressão penal;

303

STF - HC 87.041/PA - l 9 Turma - Rei. Min. Cezar Peluso - DJ 24/11/2006 p. 76. E também: STF - HC 91.616/ RS - 13 Turma - Rei. Min. Carlos Britto - DJ 07/12/2007, p. 59; STF - HC 92.368/MG - 29 Turma - Rei. Min. Eras Grau - DJE 70 - 18/04/2008; STF - HC n9 84.662/BA, Rei. Min. Eras Grau, l 9 Turma, unânime, DJ 22.10.2004; STJ - HC 84.683/SP - 59 Turma - Relatora Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG - DJ 05/11/2007 p. 332; STJ - 5 9 Turma - HC 51.100/PB- Rei. Min. Gilson Dipp-Julgamento: 11/04/2006-Publicação: DJ 08/05/06, p. 257. No mesmo sentido, o Supremo tem reiteradamente reconhecido como ilegais as prisões preventivas decretadas, por exemplo, com base na gravidade abstrata do delito (HC 90.858/SP, Primeira Turma, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 21/06/2007; HC 90.162/RJ, Primeira Turma, Rei. Min. Carlos Britto, DJU de 28/06/2007); na periculosidade presumida do agente (HC 90.471/PA, Segunda Turma, Rei. Min. Cezar Peluso, DJU de 13/09/2007); no clamor social decorrente da prática da conduta delituosa (HC 84.311/SP, Segunda Turma, Rei. Min. Cezar Peluso, DJU de 06/06/2007) ou, ainda, na afirmação genérica de que a prisão é necessária para acautelar o meio social (HC 86.748/RJ, Segunda Turma, Rei. Min. Cezar Peluso, DJU de 06/06/2007).

304

Como bem adverte Rogério Schietti Machado Cruz, "semelhante sentimento, saliente-se, é fortemente influen­ ciado por setores da mídia e da política, que deliberadamente infundem na população uma contínua sensação de terror e de insegurança, campo fértil para afirmar a idéia do encarceramento como panaceia para os problemas da criminalidade urbana. O le itm o tiv dos políticos de plantão, dos criminólogos da corte e das mídias prontas a explorar o medo do crime violento passa, como refere WACQUANT (2001, p. 75), a ser 'lock'em up and throw away the key' (tranque-os e jogue fora a chave)", (op. cit. p. 12).

M A N U A L D E P R O C E S S O P E N A L - Renato Brasileiro de U m a

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c) a afirmação a ser o acusado capaz de interferir nas provas e influir em testemunhas, quando despida de qualquer base empírica; d) o subtrair-se o acusado, escondendo-se, ao cumprimento de decreto anterior ilegal de prisão processual.305 Vale lembrar que somente a prisão penal pode ter finalidade de prevenção geral - positiva ou negativa - (intimidação e integração do ordenamento jurídico), ou prevenção especial - po­ sitiva ou negativa - (ressocialização e inocuização), sendo vedado que a medida cautelar assuma tais encargos. Como assevera Luiz Flávio Gomes, “o juiz que decreta uma prisão cautelar para intimidar outras pessoas, para servir de exemplo, está absolutamente equivocado e, pior, não está demonstrando o caráter instrumental da providência acautelatória.”306 Essa linha de pensamento, segundo a qual o clamor público, por si só, não autoriza a prisão preventiva, foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal em caso de repercussão nacio­ nal, no qual o jornalista P.N. fora acusado de matar sua namorada, também jornalista. Nas palavras do Min. Celso de Mello, a prisão preventiva, que não deve ser confundida com a prisão penal, pois não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas sim atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal, não pode ser decre­ tada com base no estado de comoção social e de eventual indignação popular, isoladamente considerados. Também não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação da segregação cautelar, a alegação de que o acusado, por dispor de privilegiada condição econômico-financeira, deveria ser mantido na prisão, em nome da credibilidade das instituições e da preservação da ordem pública.307 Lado outro, também não se pode dizer que o clamor público no sentido da população revoltar-se contra o suspeito e querer linchá-lo autorize a decretação de sua prisão preventiva. Ora, o Estado tem a obrigação de garantir a integridade física e mental do acusado. Segregá-lo, cautelarmente, a fim de assegurar sua integridade física e mental, significa o completo desvirtuamento da tutela cautelar, em evidente desvio de finalidade. Significa o reconhecimento da incompetência dos poderes constituídos, colocando sobre os ombros do suspeito todo o ônus da desídia do Estado em manter a ordem e a paz no seio da sociedade.308 Para a 3a Seção do STJ, a prática de ato infracional durante a adolescência pode servir de fundamento para a decretação de prisão preventiva, desde que observados os seguintes critérios: a) a particular gravidade concreta do ato infracional, não bastando mencionar sua equivalência a crime abstratamente considerado grave; b) a distância temporal entre o ato infracional e o crime que deu origem ao processo (ou inquérito policial) no qual se deve decidir sobre a decretação da prisão preventiva; e c) a comprovação desse ato infracional anterior, de sorte a não pairar dúvidas sobre o reconhecimento judicial de sua ocorrência. Ora, se uma pessoa, recém ingressa na maioridade penal, comete crime grave e possui histórico de atos infracionais também graves, indicadores de seu comportamento violento, como desconsiderar tais dados para a avaliação judicial sobre a sua periculosidade? Enfim, os registros sobre o passado de uma pessoa, seja ela quem for, não podem ser desconsiderados para fins cautelares. Se os atos infracionais não servem, por óbvio, como antecedentes penais e muito menos para firmar reincidência (porque

305

STF - HC 79.781/SP - 1§ Turma - Rei. Min. Sepulveda Pertence - DJ 09/06/2000 p. 22.

306

Estado constitucional de direito e a nova pirâm ide jurídica.

307

STF - HC 80.719/SP - 2a- Turma - Rei. Min. Celso de Melo - DJ 28/09/2001 p. 37.

308 JTJ 153/321.

São Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 198.

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tais conceitos implicam a ideia de “crime” anterior), não podem ser ignorados para aferir o risco que a sociedade corre com a liberdade plena do acusado.309 Por fim, para uma terceira corrente, com caráter ampliativo, a prisão preventiva com base na garantia da ordem pública pode ser decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinquir, e também nos casos em que o cárcere ad custodiam for necessário para acautelar o meio social, garantindo a credibilidade da justiça em crimes que provoquem clamor público?10 Entre os adeptos dessa terceira corrente, Fernando Capez assevera que “a brutalidade do delito provoca comoção no meio social, gerando sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação jurisdicional, de tal forma que, havendo fumus boni iuris, não convém aguardar-se até o trânsito em julgado para só então prender o indivíduo”.311 Trilhando esse raciocínio, em julgados recentes, o Ministro Gilmar Mendes tem destacado as seguintes circunstâncias principais quanto ao requisito da garantia da ordem pública: 1) a necessidade de resguardar a integridade física ou psíquica do paciente ou de terceiros; 2) o obje­ tivo de impedir a reiteração das práticas criminosas, desde que lastreado em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto de custódia cautelar; 3) associada aos dois elementos anteriores, para assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial do poder judi­ ciário, no sentido da adoção tempestiva de medidas adequadas, eficazes e fundamentadas quanto à visibilidade e transparência da implementação de políticas públicas de persecução criminal e desde que diretamente relacionadas com a adoção tempestiva de medidas adequadas e eficazes associadas à base empírica concreta que tenha ensejado a custódia cautelar.312 Uma última observação deve ser feita: independentemente da corrente que se queira ado­ tar, comprovada a periculosidade do agente com base em dados concretos, ou na eventualidade da presença de outra hipótese que autorize a prisão preventiva (garantia da ordem econômica, garantia de aplicação da lei penal ou conveniência da instrução criminal), condições pessoais favoráveis como bons antecedentes, primariedade, profissão definida e residência fixa não im­ pedem a decretação de sua prisão preventiva.313 5.2.2. G arantia da ordem econôm ica

O pressuposto da garantia da ordem econômica foi inserido no Código de Processo Penal pelo art. 86 da Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994 (Lei antitruste), tendo sido mantido no caput do art. 312 pela Lei n° 12.403/11. O conceito de garantia da ordem econômica assemelha-se ao de garantia da ordem pública, porém relacionado a crimes contra a ordem econômica, ou seja, possibilita a prisão do agente caso

309. Nesse contexto: STJ, 3® Seção, RHC 63.855/MG, Rei. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 11/05/2016, DJe 13/06/2016. Na mesma linha: STJ, 53 Turma, RHC 47.671/MS, Rei. Min. Gurgel de Faria, j. 18/12/2014, DJe 02/02/2015. Em sentido diverso: STJ, 6§ Turma, HC 338.936/SP, Rei. Min. Nefi Cordeiro, j. 17/12/2015, DJe 5/2/2016. 310 Informativo n9 397 do STJ - HC 120.167/PR - 5- Turma - Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 04/06/2009. No sentido de que a garantia da ordem pública abrange também a promoção daquelas providências de resguardo à integridade das instituições, à sua credibilidade social e ao aumento da confiança da população nos mecanismos oficiais de repressão às diversas formas de delinqüência: STJ, 5ã Turma, RHC 26.308/DF, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 08/09/2009, DJe 19/10/2009. 311

Curso de processo penal.

312

STF, 23 Turma, HC 89.090/GO, Rei. Min. Gilmar Mendes, DJ 05/10/2007 p. 38.

163 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 279.

313 STJ, 63 Turma, RHC 21.989/CE, Rei. Min. Carlos Fernando Mathias, j. 06/12/2007, DJ 19/12/2007.

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haja risco de reiteração delituosa em relação a infrações penais que perturbem o livre exercício de qualquer atividade econômica, com abuso do poder econômico, objetivando a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros (CF, art. 173, § 4o). Na mesma linha, de acordo com o art. 36 da Lei n° 12.529/11, constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante.314 Esses crimes que atentam contra a ordem econômica estão previstos na Lei n° 1.521/51 (crimes contra a economia popular), Lei n° 7.134/83 (crimes de aplicação ilegal de créditos, fi­ nanciamentos e incentivos fiscais), Lei n° 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional), Lei n° 8.078/90 (crimes previstos no Código de Defesa do Consumidor), Lei n° 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo), Lei n° 8.176/91 (crimes contra a ordem econômica), Lei n° 9.279/96 (crimes em matéria de propriedade industrial) e Lei n° 9.613/98 (crimes de lavagem de capitais). Importante ficar atento ao art. 30 da Lei n° 7.492/86, segundo o qual a prisão preventiva do acusado da prática de crime contra o sistema financeiro nacional, sem prejuízo do disposto no art. 312 do CPP, poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada. A primeira vista, pode-se concluir que, em se tratando de crimes contra o sistema financeiro nacional, a magnitude da lesão causada é fundamento suficiente e autônomo para a decretação da prisão preventiva. No entanto, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, tal prisão pre­ ventiva funda-se não somente na magnitude da lesão causada, mas também na necessidade de se resguardar a credibilidade das instituições públicas. Em outras palavras, nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, a magnitude da lesão causada, por si só, não autoriza a prisão preventiva - deve estar conjugada com um dos pressupostos do art. 312 do CPP.315 Uma observação final deve ser feita quanto à prisão preventiva decretada com base na garantia da ordem econômica: não olvidamos a importância da privação cautelar da liberdade de locomoção de agentes envolvidos com organizações criminosas e/ou com crimes contra a ordem econômica. Todavia, não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que a prisão cautelar de um ou mais agentes terá o condão de pôr fim às práticas delituosas. Um dos meios mais eficientes para o combate aos crimes contra a ordem econômica passa pela recuperação de ativos ilícitos, sendo imperiosa a criação de uma nova cultura, uma nova mentalidade, que, sem deixar de lado as prisões cautelares, passe a dar maior importância às medidas cautelares de natureza patrimonial e ao confisco dos valores espúrios. Em crimes contra a ordem econômica, a prisão de um e/ou mais integrantes da organização não a destruirá, sendo certo que outro agente fatalmente irá ocupar seu lugar. No entanto, se o braço financeiro da organização for atingido, toma-se possível seu enfraquecimento ou até mesmo sua destmição. Assim, para atacar o poder financeiro da criminalidade organizada, é imprescindível uma eficiente

314

Na visão do Supremo, "a garantia da ordem econômica autoriza a custódia cautelar, se as atividades ilícitas do grupo criminoso a que, supostamente, pertence o paciente repercutem negativamente no comércio lícito e, portanto, alcançam um indeterminando contingente de trabalhadores e comerciantes honestos. Vulneração do princípio constitucional da livre concorrência." (STF, 1- Turma, HC 91.285/SP, Rei. Min. Carlos Britto, DJe 074 25/04/2008).

315

STF, Pleno, HC 80.717, Rei. Min. Ellen Grade, j. 13/06/2001, DJ 05/03/2004. Etambém: STJ, 6§ Turma, HC 14.270/ SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, j. 12/12/2000, DJ 19/03/2001, p. 142.

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colaboração nacional e internacional na identificação de fundos patrimoniais ilegais, no confisco de bens e na adequação das legislações dos países soberanos sobre essa criminalidade.316 5.2.3. G arantia de aplicação da lei p e n a l

A prisão preventiva com base na garantia de aplicação da lei penal deve ser decretada quando o agente demonstrar que pretende fugir do distrito da culpa, inviabilizando a futura execução da pena. Sob pena de evidente violação ao princípio da presunção de inocência, não se pode pre­ sumir a fuga do agente simplesmente em virtude de sua condição socioeconômica favorável. Meras ilações ou conjecturas desprovidas de base empírica concreta não autorizam a decretação da prisão do agente com base nesse pressuposto. O juiz só está autorizado a decretar a prisão preventiva com base em elementos concretos constantes dos autos que confirmem, de maneira insofismável, que o agente pretende se subtrair à ação da justiça.317 Além disso, diante da regra probatória que deriva do princípio da presunção de não culpabi­ lidade, não é do réu o ônus de assegurar que não pretende fugir, mas sim da acusação e do juízo o de demonstrar, à vista dos fatos concretos, ainda que indiciários - e não de vagas suposições - haver motivos para temer a fuga às conseqüências da condenação eventual. Os tribunais têm analisado essa intenção de se subtrair à aplicação da lei penal com certo temperamento. Assim, uma ausência momentânea, seja para evitar uma prisão em flagrante, seja para evitar uma prisão decretada arbitrariamente, não caracteriza a hipótese de garantia de aplicação da lei penal. Além disso, não pode justificar uma ordem de prisão a fuga posterior à sua decretação, cuja validade se contesta em juízo: do contrário, seria impor ao acusado, para questioná-la, o ônus de submeter-se à prisão processual que entende ser ilegal ou abusiva.318 Com base nesse entendimento, o STJ já concluiu que a fuga do distrito da culpa, diante de decreto prisional marcado pela carência de fundamentação, não corporifica, por si só, o risco para aplicação da lei penal, mas, antes, exercício regular de direito: legítima oposição ao arbítrio estatal.319 O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também já teve a oportunidade de asseverar que a mera evasão do distrito da culpa - seja para evitar a configuração do estado de flagrância, seja, ainda, para questionar a legalidade e/ou validade da própria decisão de custódia cautelar - não

316 SCARTEZZINI, Cid Flaquer. A situação do Brasil quanto à lavagem de dinheiro sujo. Inform ativo Jurídico da Biblio­ teca M inistro Oscar Saraiva, Brasília, v. 16, ne 2, p. 1-87, jul/dez. 2004, p. 15. 317

Para o Supremo, "a simples afirmação de que os pacientes carecem de domicílio certo e conhecido não tem a força de lastrear a segregação provisória para assegurar eventual aplicação da lei penal". (STF, l ã Turma, HC 91.616/RS, Rei. Min. Carlos Britto, DJ 07/12/2007 p. 59). E também: STF, 1§ Turma, HC 91.334/PA, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 17/08/2007 p. 59; STJ, 5ã Turma, HC 88.313/RS, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 25/02/2008 p. 344; STF, 1§ Turma, HC 90.967/PR, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 26/10/2007 p. 63; STF, 2§ Turma, HC 91.971/AC, Rei. Min. Eros Grau, DJe 31 22/02/2008; STF, ia Turma, HC 90.265/AL, DJ 31/08/2007 p. 36; STJ, 5^ Turma, HC 88.101/SP, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 10/03/2008 p. 1; STJ, 5ã Turma, HC 97.520/RJ, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 07/04/2008 p. 1. No sentido de que a simples mudança, para o exterior, de domicílio ou residência de indiciado, com a devida comunicação à autoridade competente, não justifica, por si só, a prisão preventiva: STF, 2ã Turma, HC 102.460/SP, Rei. Min. Ayres Britto, j. 23/11/2010.

318 STJ, 5- Turma, HC 80.269/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ 05/11/2007 p. 317. 319

STJ, 6ã Turma, HC 91.083/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 10/03/2008 p. 1. STF, l 3 Turma, HC 84.470/MG, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 24/08/2004, DJ 08/10/2004.

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basta, só por si, para justificar a decretação ou manutenção da medida excepcional de privação da liberdade do indiciado ou do réu.320 Se é verdade, então, que a simples fuga para se evitar a prisão em flagrante ou para impugnar decisão constritiva tida por ilegal não autorizam, de per si, a decretação da prisão preventiva, também é verdade que, demonstrada inequívoca intenção do agente de se furtar à aplicação da lei penal, em situações em que comprovada sua fuga em momento anterior à expedição de decreto prisional, haverá causa idônea a justificar sua segregação cautelar com base na garantia da aplicação da lei penal.321 Acerca da prisão preventiva decretada com base na garantia de aplicação da lei penal, oportuno relembrar rumoroso caso concreto relativo ao cidadão S.A.C., natural da Itália, acusado da prática de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, notadamente de gestão fraudulenta e temerária, respectivamente, das instituições financeiras MARKA S/A e FONTECIDAM S/A, bem como o auxílio prestado pelo BACEN a ambas, indevidamente, de que resultou, segundo laudos periciais oficiais, um prejuízo público da órbita de 1.574.805.000,00 (um bilhão, qui­ nhentos e setenta e quatro milhões, oitocentos e cinco mil reais). Após obter decisão da Suprema Corte suspendendo, em sede liminar (FÍC 80.288/RJ), os efeitos de mandado de prisão contra ele decretado, o cidadão S.A.C. viajou para a Itália, país que, à semelhança do Brasil, não extradita seus nacionais. Posteriormente, por concluir que o acusado não demonstrara sua intenção de retomar ao Brasil, e, por conseqüência, manter-se alheio à ação penal, o Juízo da 6a Vara Fede­ ral houve por bem decretar nova prisão preventiva do acusado, fazendo-o mais uma vez sob o fundamento da garantia da ordem econômica. Assim é que, em 15 de setembro de 2007, S.A.C. acabou sendo preso quando se encontrava no principado de Mônaco. Impugnada a decisão que decretara sua prisão preventiva, concluiu-se que a manutenção de sua prisão era medida de rigor em face da efetiva fuga do agente, o qual, logo após a decisão que, em sede de liminar, suspendera a eficácia do mandado de prisão, viajou às pressas para a Itália, lá permanecendo sem qualquer intenção de retomar. A magnitude da lesão causada, desde que aliada aos demais requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, é fator capaz de influenciar na decisão que examina o pedido de prisão preventiva do acusado: inteligência do artigo 30 da Lei 7.492/1986.322 5.23.1. P risão de estrangeiros e g a rantia de aplicação da lei p e n a l Enfoque especial está a merecer a situação do estrangeiro que comete crime no território na­ cional. De início, cumpre firmar que o fato de o suposto autor do delito ostentar a condição jurídica de estrangeiro não lhe inibe, só por si, o acesso aos instrumentos processuais de tutela da liberdade, nem lhe subtrai, por tais razões, o direito de ver respeitadas, pelo Poder Público, as prerrogativas de ordem jurídica e as garantias de índole constitucional que o ordenamento positivo brasileiro confere e assegura a qualquer pessoa que sofra persecução penal instaurada pelo Estado. Logo, pelo simples fato de o acusado ser estrangeiro, não se pode estabelecer uma presunção absoluta de fuga. Assim, caso o estrangeiro se encontre em situação regular no país, com residência fixa, além de desenvolver atividade lícita, não se afigurará necessária sua prisão com base na garantia

320 STF, 23 Turma, HC 89.501/GO, Rei. Min. Celso de Mello, DJ 16/03/2007 p. 43. No mesmo sentido: STF, HC 91741/ PE, rei. orig. Min. Ellen Gracie, rei. p/ o acórdão Min. Eros Grau, 3.6.2008. 321

STF, 2®Turma, HC 101.206/MG, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 17/08/2010, DJe 173 16/09/2010.

322 STJ, 33 Seção, HC 111.111/DF, Rei. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), Dje 17/02/2009.

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de aplicação da lei penal.323 Por outro lado, em se tratando de estrangeiro em situação irregular no País, sem residência fixa, nem tampouco no exercício de atividade lícita, afigura-se lícita a decretação de sua prisão preventiva.324 Recentemente, no entanto, com a crescente celebração de acordos de assistência judiciária em matéria criminal pelo governo brasileiro, os Tribunais Superiores têm optado pela não de­ cretação da prisão preventiva com base na garantia de aplicação da lei penal, sobretudo quando o agente demonstrar que possui residência certa no país de origem.325 Acerca desses acordos de assistência judiciária, Walter Nunes da Silva Júnior assevera que, “a par da cooperação jurídica internacional com a qual um país pede que o outro, tendo em conta decisão dada pela sua justiça, acate e determine o cumprimento do que nela restou determinado, no âmbito internacional tem-se admitido a chamada cooperação direta, hipótese na qual o país, tendo interesse na realização de uma diligência ou que seja determinada uma medida coercitiva em território alheio, solicita ao país estrangeiro o patrocínio dessa pretensão perante os órgãos jurisdicionais nacionais. A diferença é que, na assistência direta, ao invés de o Estado requerente solicitar que seja cumprida, no território alheio, a decisão dada pela sua justiça, ele pede que o Governo do Estado requerido patrocine, em seu nome, perante o seu Poder Judiciário, que este determine a realização da audiência ou proceda à diligência solicitada. Nesse caso, a cooperação jurídica internacional se faz perante a jurisdição de primeira instância, apresentando-se, assim, como forma difusa e descentralizada de enfrentar a questão”.326 Por isso, em caso concreto apreciado pelo Supremo, entendeu-se que, prevendo o Tratado celebrado entre o Brasil e a Espanha a troca de presos, inexiste óbice ao retomo do acusado ao país de origem. Conforme versado no referido tratado, inserido na ordem jurídica nacional mediante o Decreto n° 2.576/98, mostra-se possível executar na Espanha eventual título condenatório formalizado pelo Judiciário pátrio.327 Destarte, conclui-se que a condição jurídica de não nacional e a circunstância de o réu estrangeiro não possuir domicílio em nosso país não legitimam a adoção de qualquer tratamen­ to arbitrário ou discriminatório, mormente se houver acordo de assistência judiciária entre o

323

STF, 12 Turma, HC 93.134/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 036 29/02/2008.

324 STJ, 52 Turma, HC 86.112/MA, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 10/03/2008 p. 1. 325

Na dicção do STJ, "os fundamentos de que houve a fuga do paciente estrangeiro e de que seria necessário, por isso, o resguardo da aplicação da lei penal não justificam a medida extrema, pois ele logrou comprovar que possui residência fixa no país de sua nacionalidade (Paraguai) e que o interrogatório foi perfeitamente viabilizado mediante o cumprimento de rogatória remetida ao endereço que informou ao juízo". (Informativo ne 417 do STJ - 62 Turma - HC 87.752/PR, Rei. Min. Og Fernandes, julgado em 24/11/2009).

326

Op. cit. p. 365.

327

STF, 12 Turma, HC 91.690/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, DJe-018 01/02/2008. Na mesma linha: STF, I a Turma, HC 91.444/RJ, Rei. Min. Menezes Direito, DJe 078 02/05/2008. No julgamento do HC 2006.01.00.043351-1 (Rei. Desembargador Federal Cândido Ribeiro - DJ 12/01/2007, p. 17), relativo ao acidente aéreo envolvendo o jato 'legacy' e o boeing da gol, do qual resultou a morte de 154 (cento e cinqüenta e quatro) pessoas, entendeu o Tribunal Regional Federal da l ã Região não estar demonstrada a cautelaridade da retenção dos passaportes dos pilotos americanos, in verbis: "(...) A condição de estrangeiros, por si só, não se justifica para a restrição à liberdade de locomoção, eis que a Constituição Federal não faz distinção entre brasileiros e estrangeiros. Ademais, não obstante a natureza do delito não permitir a custódia cautelar, foi demonstrado que possuem família e trabalho regular no seu país, estando há mais de 60 (sessenta) dias retidos sem que tenham prestado depoimento ou mesmo sido indiciados, a configurar constrangimento ilegal. Existência de acordo de assistência judiciária entre Brasil e Estados Unidos em matéria penal, a permitir apoio durante a tramitação do inquérito e eventual ação penal. Ordem que se concede em parte para determinar a restituição dos passaportes dos pacientes no prazo de 72 (setenta e duas) horas".

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Brasil e o país de origem do acusado em matéria penal, a permitir apoio durante a tramitação do inquérito e de eventual processo criminal. 5.2.4. C onveniên cia da instrução crim in a l

A prisão preventiva decretada com base na conveniência da instrução criminal visa impedir que o agente perturbe ou impeça a produção de provas. Tutela-se, com tal prisão, a livre produ­ ção probatória, impedindo que o agente comprometa de qualquer maneira a busca da verdade. Assim, havendo indícios de intimidação ou aliciamento de testemunhas ou peritos, de supressão ou alteração de provas ou documentos, ou de qualquer tentativa de turbar a apuração dos fatos e o andamento da persecução criminal, será legítima a adoção da prisão preventiva com base na conveniência da instrução criminal.328 Apesar de o legislador usar a expressão “conveniência da instrução criminal”, a medida cautelar não pode ser decretada com base em mera conveniência. Sua decretação está condicio­ nada, sim, à necessidade ou indispensabilidade da medida a fim de possibilitar o bom andamento da instrução criminal. Levando-se em conta que o interrogatório é considerado meio de defesa, a ausência do acusado ao interrogatório não autoriza, por si só, a decretação da prisão preventiva com base na conveniência da instrução criminal. O direito de audiência, que se materializa através do interrogatório, desdobramento da autodefesa, é renunciável, o que significa que o acusado pode abrir mão do direito de formar a convicção do juiz quanto a sua versão sobre os fatos, sem que isso importe em risco à aplicação da lei penal e/ou à conveniência da instrução criminal.329 Na verdade, embora o acusado não possa obstruir a atividade probatória, não se admite que sua prisão seja decretada com o objetivo de obrigá-lo a contribuir para a apuração do fato delituoso. Afinal, por força do princípio do nemo tenetur se detegere, o acusado não está obrigado a contribuir ativamente com a produção de prova que possa incriminá-lo. Ao decretar a prisão preventiva com base nessa hipótese, deve o juiz ter sempre em mente o princípio da proporcionalidade, notadamente em seu segundo subprincípio, qual seja, o da necessidade, devendo se questionar se não existe outra medida cautelar menos gravosa que a prisão preventiva. De fato, se uma busca e apreensão for idônea a atingir o objetivo desejado, não se faz necessária uma prisão preventiva; se a condução coercitiva do acusado para o reco­ nhecimento pessoal for apta a alcançar o fim almejado, não se afigura correto escolher medida mais gravosa consubstanciada na privação da liberdade de locomoção do acusado; se a proibição de manter contato com pessoa determinada ou a monitoração eletrônica (CPP, art. 319, III e IX, respectivamente) se revelarem adequadas e idôneas para assegurar a eficácia da investigação ou da instrução criminal, deve o magistrado evitar a decretação do cárcere ad custodiam. 328

Na dicção do STJ, "o fato de o paciente haver ameaçado o corréu delator, intimidando-o com o nítido propó­ sito de alterar as suas declarações perante a autoridade judicial, constitui motivação idônea à decretação da prisão preventiva para a conveniência da instrução criminal". (STJ, Turma, HC 75.492/RS, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/12/2007 p. 404). E também: STF, I s Turma, HC 92.839/SP, Rei. Min. Menezes Direito, DJe 070 18/04/2008; STJ, 5^ Turma, REsp 909.021/RN, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 17/03/2008 p. 1; STJ, 5§ Turma, HC 84.241/PE, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora Convocada do TJ/MG, DJ 12/11/2007 p. 263; STJ, 5ã Turma, RHC 20.500/RJ, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/12/2007 p. 398.

329

Informativo n9 402 do STJ, 6â Turma, HC 115.881/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 13/08/2009. Na visão do Supremo, "a prisão cautelar da paciente se apoia, exclusivamente, no conteúdo de entrevista concedida a programa de televisão. Entrevista pela qual a paciente, com o legítimo propósito de autodefesa, narrou sua própria versão aos fatos criminosos a ela mesma imputados. A análise dos autos evidencia ilegítimo cerceio à liberdade de locomoção da paciente". (STF, P Turma, HC 95.116/SC, Rei. Min. Carlos Britto, DJe 43 05/03/2009).

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A prisão preventiva decretada com base na conveniência da instrução criminal subsiste enquanto persistir a instrução processual. Em outras palavras, uma vez encerrada a instrução processual (ou até mesmo ouvida a testemunha que estava sendo ameaçada), deve o juiz revogar a prisão preventiva decretada com base nessa hipótese, de acordo com o art. 316, caput, c/c art. 282, § 5o, ambos do Código de Processo Penal. Relembre-se que, em se tratando de processo criminal da competência do Júri, a prisão preventiva decretada com base na conveniência da instrução criminal pode perdurar até o julgamento em plenário, já que as testemunhas ameaçadas pelo acusado poderão vir a ser chamadas para depor em plenário.330 5.2.5. Descumprimento de q u a lq u e r das obrigações im p o sta s p o r fo r ç a de o u tra s m ed id a s cautelares

Por ocasião do estudo do procedimento para a aplicação das medidas cautelares de nature­ za pessoal, notadamente no tópico pertinente ao descumprimento injustificado das obrigações inerentes às medidas cautelares, fizemos detida análise do art. 282, § 4o, e do art. 312, parágrafo único, ambos do CPP. De modo a se evitar repetições desnecessárias, remetemos o leitor ao referido tópico. 6. HIPÓTESES DE ADMISSIBILIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA

Presentes os pressupostos do art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva poderá ser decretada em relação aos crimes listados no art. 313 do CPP. Na hipótese de inadmissibilidade da decretação da prisão preventiva, porquanto não preen­ chidos os requisitos do art. 313, incisos I, II e III, e parágrafo único, do CPP, nada impede a decretação de medida cautelar diversa da prisão pela autoridade judiciária, desde que à infração penal seja cominada pena privativa de liberdade, isolada, cumulativa ou altemativamente (CPP, art. 283, § Io). Aliás, no tocante à possibilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão em relação às infrações de menor potencial ofensivo, confira-se o teor do Enunciado n° 121 do XXX FONAJE, realizado em São Paulo entre 16 e 18 de novembro de 2011: “As medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP e suas conseqüências, à exceção da fiança, são aplicáveis às infrações de menor potencial ofensivo para as quais a lei cominar em tese pena privativa de liberdade”. 6.1. Crimes dolosos punidos com pena máxima superior a 4 (quatro) anos Nos termos do art. 312 do CPP, será admitida a decretação da prisão preventiva nos cri­ mes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 313,1). Logo, independentemente da natureza da pena, reclusão ou detenção, será cabível a decretação da prisão preventiva quando a pena máxima cominada ao delito for superior a 4 (quatro) anos. O dispositivo guarda pertinência com o quantum de pena fixado como limite para a subs­ tituição da p en a privativa de liberdade por restritiva de direitos e p ara o início do cum prim ento

da pena em regime aberto. Com efeito, segundo o art. 44, inciso I, do Código Penal, pelo menos em regra, será cabível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando for aplicada pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa. Por sua vez, de acordo com o art. 33, § 2o, 330

Com esse entendimento: STJ, 5ã Turma, HC 177.774/DF, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 07/10/2010.

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alínea “c”, do CP, o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. Atento ao princípio da proporcionalidade, o dispositivo visa evitar que o mal causado durante o processo seja desproporcional àquele que, possivelmente, poderá ser infligido ao acusado quando de seu término. Ou seja, ao decretar a prisão preventiva, deve o juiz fazer um prognóstico se, ao término do processo, ao réu poderá ser aplicada pena privativa de liberdade. Assim, se o juiz, ab initio, percebe que o crime cometido pelo agente terá sua pena privativa de liberdade convertida em restritiva de direitos, não faz sentido que decrete uma prisão preventiva. Impõe-se, pois, a observância da homogeneidade ou proporcionalidade entre a prisão preventiva a ser decretada e eventual condenação a ser proferida.331 Perceba-se que o critério fixado pelo legislador no art. 313, inciso I, do CPP, leva em con­ sideração a pena máxima prevista para o crime doloso, que deve ser superior a 4 (quatro) anos. Tendo em conta que, pelo menos em regra, o cabimento da prisão preventiva será determinado a partir do quantum de pena máxima cominada ao delito, há de se dispensar especial atenção às hipóteses de concursos de crimes, qualificadoras, causas de aumento e de diminuição de pena, agravantes e atenuantes. Nos casos de concursos de crimes, deve ser levado em consideração o quantum resultante da somatória das penas nas hipóteses de concurso material (CP, art. 69) e de concurso formal impróprio (CP, art. 70, in fine), assim como a majoração resultante do concurso formal próprio (CP, art. 70, Ia parte) e do crime continuado (CP, art. 71). Não se pode confundir a determinação do cabimento da prisão preventiva (CPP, art. 313,1) com a contagem da prescrição, que incide sobre cada delito isoladamente, nos termos do art. 119 do Código Penal.332 Raciocínio semelhante já vem sendo aplicado pelos Tribunais Superiores em relação à sus­ pensão condicional do processo, com a diferença, todavia, de que o art. 89 da Lei n° 9.099/95 leva em consideração a pena mínima de 1 (um) ano, e não a pena máxima superior a 4 (quatro) anos, como o faz o art. 313, inciso I, do CPP, na hora de admitir a decretação da prisão preventiva. De fato, de acordo com a súmula 723 do Supremo Tribunal Federal, “não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de 1/6 (um sexto) for superior a 1 (um) ano”. Nos mesmos moldes, a súmula 243 do STJ preconiza que “o benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de 1 (um) ano”. Da mesma forma que ocorre com as hipóteses de concurso de crimes, as qualificadoras também devem ser levadas em consideração na hora de se aferir o cabimento da prisão pre­ ventiva. Supondo, assim, a prática do crime de abandono de incapaz qualificado pelo resultado lesão corporal de natureza grave (CP, art. 133, § Io), será admissível a decretação da prisão preventiva, porquanto a pena cominada para a figura qualificada em questão é de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos. 331

No sentido de que não se justifica a manutenção de prisão preventiva de acusado preso em infração que admite fiança, sobretudo quando a pena privativa de liberdade em tese projetada não for superior a 4 anos: STJ, 6§ Turma, HC 59.009/SP, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 03/09/2007 p. 228.

332 Ao aplicar a nova redação do art. 313,1, do CPP, alterado pela Lei 12.403/2011, a 2§ Turma do Supremo concedeu habeas corpus para cassar decreto de prisão preventiva em face de suposta prática dos delitos de resistência (CP, art. 329) e de desacato (CP, art. 331), ambos com pena máxima abstratamente cominada de 2 anos de detenção: STF, HC 107.617/ES, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 23/08/2011.

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Em se tratando de causas de aumento e de diminuição de pena, deve-se atentar para o fato de que, nos termos do art. 313, inciso I, do CPP, o cabimento da prisão preventiva é aferido com base no máximo da pena cominada ao delito. Logo, em se tratando de causas de aumento de pena, leva-se em consideração o quantum que mais aumente a pena; quando se tratar de causa de diminuição de pena, utiliza-se o quantum que menos diminua a pena. Raciocínio distinto será aplicável nas hipóteses de agravantes e atenuantes. Estas não são levadas em consideração quando da análise do cabimento da prisão preventiva. Isso porque não há critério legal predeterminado de majoração ou diminuição da pena em virtude de sua incidência. 6.2. Investigado ou acusado condenado por outro crime doloso em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no art. 64, inciso I, do Código Penal Nos termos do art. 312 do CPP, também será admitida a decretação da prisão preventiva se o investigado ou acusado tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Código Penal (CPP, art. 313, II). Perceba-se que, independentemente de o crime ser punido com reclusão ou detenção - onde a lei não distingue, não é dado ao intérprete fazê-lo -, a prisão preventiva poderá ser decreta­ da se o acusado for reincidente em crime doloso, salvo se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação, de acordo com o art. 64, inciso I, da nova Parte Geral do Código Penal, ou, ainda, se na condenação anterior o réu tiver sido beneficiado pelo instituto do perdão judicial, hipótese em que a sentença não pode ser considerada para fins de reincidência (CP, art. 120). Como se pode notar, não basta que o acusado seja reincidente. Na verdade, o legislador exige que esta reincidência seja específica em crime doloso, hipótese em que sua prisão pre­ ventiva poderá ser decretada independentemente da quantidade de pena cominada ao delito. De se lembrar que, em recente julgado (Plenário, RE 453.000/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 04/04/2013), o Plenário do Supremo concluiu ser constitucional a aplicação da reincidência, não só como agravante da pena (CP, art. 61, inciso I), mas também como fator impeditivo para a concessão de diversos benefícios, sem que se possa objetar a configuração de bis in idem. Logo, não há falar em inconstitucionalidade do art. 313, II, do CPP, por permitir a prisão preventiva do reincidente específico em crime doloso, independentemente do quantum de pena cominado ao segundo delito doloso por ele cometido. 6.3. Quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das me­ didas protetivas de urgência Nos termos do art. 312 do CPP, também será admitida a decretação da prisão preventiva se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Referindo-se o art. 313, III, do CPP, aos crimes praticados nesse contexto, não há campo para interpretação diversa da literal, razão pela qual não se admite a preventiva quando se tratar de contravenção penal.333 333

No sentido de que a prática de contravenção penal no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mu­ lher, in casu, puxões de cabelo e torção de braço que não geraram lesão corporal, e discussão no interior de um veículo, não é motivo idôneo para justificar a prisão preventiva do réu, mesmo diante do descumprimento de

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A primeira vista, pode-se pensar que, nessa hipótese, a prisão preventiva seria cabível tanto em relação a crimes dolosos quanto em face de crimes culposos, já que o inciso III do art. 313, diversamente dos dois incisos anteriores, não estabelece qualquer distinção, referindo-se apenas à prática de crime. Não obstante, se o inciso III do art. 313 pressupõe a prática de crime envol­ vendo violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, é evidente que referido crime só pode ter sido praticado dolosamente. Afinal, se se trata de violência de gênero, deve ficar evidenciada a consciência e a vontade do agente de atingir uma das vítimas vulneráveis ali enumeradas, assim como sua intenção dolosa de violar as medidas protetivas de urgência, o que não resta caracterizado nas hipóteses de crimes culposos. A vítima desse crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar que autoriza a decretação da prisão preventiva não é apenas a mulher, mas também a criança, o adolescente, o idoso, o enfermo ou pessoa com deficiência, valendo ressaltar que, nestas últimas cinco hipóte­ ses, pouco importa se se trata de pessoa do sexo masculino ou feminino. O conceito de criança e de adolescente pode ser extraído do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo o art. 2o da Lei n° 8.069/90, considera-se criança a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade. Idoso, por sua vez, é a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos (Lei n° 10.741/03, art. Io). Pessoa com defi­ ciência é aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 2o do Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei n° 13.146/15). Por sua vez, por violência doméstica e familiar contra tais pessoas compreende-se qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as es­ poradicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (Lei n° 11.340/06, art. 50).334 Como a redação do inciso IIII do art. 313 não faz distinção quanto à natureza da pena do crime doloso, deve-se entender que, independentemente da quantidade de pena cominada ao delito, pouco importando, ademais, se punido com reclusão ou detenção, a prisão preventiva pode ser adotada como medida de ultima ratio no sentido de compelir o agente à observância das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, mas desde que presente um dos fundamentos que autorizam a prisão preventiva (CPP, art. 312).335 Essas medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor estão listadas no art. 22 da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06), podendo ser aplicadas em conjunto ou separadamente: a) suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competen­ te; b) afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; c) proibição de

medidas protetivas de urgência, já que o art. 313, III, do CPP, faz referência apenas a crimes: STJ, 6- Turma, HC 437.535/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 26/06/2018, DJe 02/08/2018. 334

Para mais detalhes acerca do art. 52 da Lei Maria da Penha (Lei nQ 11.340/06), remetemos o leitor ao Título referente à competência criminal, onde fizemos amplo estudo da competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

335

Nessa linha: STJ, 55 Turma, HC 132.379/BA, Rei. Min. Laurita Vaz, Dje 15/06/2009.

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determinadas condutas, entre as quais a aproximação da ofendida, de seus familiares e das teste­ munhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor, o contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação, e a frequentação de determi­ nados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; d) restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; e) prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Se tais medidas não surtirem o efeito almejado, a prisão preventiva pode ser usada como soldado de reserva, a fim de se evitar reiteração de violência doméstica e familiar contra a mulher. Aqui reside uma aparente contradição do inciso III do art. 313 do CPP, com redação dada pela Lei n° 12.403/11. As medidas protetivas de urgência a que se refere o inciso III estão previstas na Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06), a qual dispõe apenas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher. Como, então, explicar-se o teor do inciso III do art. 313 do CPP, que faz menção à garantia da execução dessas medidas protetivas de urgência quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência? Na verdade, mesmo antes do advento da Lei n° 12.403/11, apesar de a Lei n° 11.340/06 ter por objeto apenas a violência doméstica e familiar contra a mulher, as medidas protetivas nela previstas já vinham sendo utilizadas por meio de analogia em toda e qualquer hipótese de violência de gênero, ou seja, desde que presente situação de hipossuficiência física e/ou econô­ mica. Assim, mesmo que a violência doméstica e familiar fosse praticada, por exemplo, contra uma criança do sexo masculino, tais medidas protetivas de urgência já vinham sendo aplicadas cautelarmente, seja por meio de analogia, seja com fundamento no poder geral de cautela. Daí o porque do inciso III do art. 313 do CPP ter acrescentado a violência doméstica e familiar contra crianças, adolescentes, idosos, enfermos ou pessoas com deficiência, já que também se afigura possível a adoção das medidas protetivas de urgência listadas na Lei Maria da Penha em face dessas situações de vulnerabilidade. Leitura isolada do inciso III do art. 313 do CPP pode levar à conclusão de que o descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, por si só, pode dar ensejo à decretação da prisão preventiva do acusado. Não seria necessário, assim, que se demonstrasse a presença da garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e garantia de aplicação da lei penal.336 A nosso ver, o inciso III deve ser lido em conjunto com o teor do caput do art. 313 do CPP, que expressamente faz menção aos termos do art. 312 do Código. Ora, se o caput do art. 313 faz menção aos termos do art. 312 do CPP, significa dizer que, mesmo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, a decretação da prisão preventiva também está condicionada à demonstração da necessidade da imposição da custódia para garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.337 336

Deixamos de inserir o pressuposto da garantia da ordem econômica por não ser aplicável aos casos de violência

doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência. 337

No sentido de que o descumprimento das medidas protetivas de urgência não autoriza, de pe r si, a prisão pre­ ventiva, cuja decretação está condicionada ao preenchimento dos pressupostos do art. 312 do CPP: STJ - HC 100.512/MT - 6â Turma - Rei. Min. Paulo Gallotti - Dje 23/06/2008. Na mesma linha: STJ - HC 123.804/MG - 5ã Turma - Rei. Min. Felix Fischer - Dje 27/04/2009. No sentido de que, inexistindo o descumprimento das medidas protetivas de urgência, não se justifica a custódia cautelar, já que não haveria demonstração de que a permanência do agressor em liberdade importaria em risco à ordem pública: STJ, 6®Turma, HC 151.174/MG, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 20/04/2010, DJe 10/05/2010.

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Outro ponto que merece destaque quanto ao inciso III do art. 313 diz respeito à compati­ bilidade da decretação da prisão preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência e o princípio constitucional esculpido no art. 5o, inciso LXVII, que autoriza a prisão civil apenas para as hipóteses de dívida de alimentos ou depositário infiel.338 Explica-se: como várias das medidas protetivas de urgência possuem, inequivocamente, caráter civil, ao se de­ cretar a prisão preventiva do agressor como forma de garantir sua execução, estar-se-ia criando uma nova hipótese de prisão civil, o que não seria permitido pela Constituição Federal. Por isso, se o descumprimento de uma medida protetiva de urgência estiver relacionado à prática de determinado delito (v.g., lesão corporal, tentativa de homicídio), será possível a decretação da preventiva. Todavia, se ao agente for atribuído tão somente o descumprimento da medida protetiva de urgência (v.g., inobservância da determinação de afastamento do lar), não será pos­ sível a decretação do career ad custodiam, sob pena de se instalar uma nova e inconstitucional modalidade de prisão civil. Para as hipóteses não penais de desobediência, a própria Lei Maria da Penha prevê a possibilidade de o juiz se valer da tutela específica (art. 22, § 4o), cujo objetivo é conferir efetividade à decisão que tenha por objeto obrigação de fazer.339 6.4. Dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou não fornecimento de elementos suficientes para seu esclarecimento Por força do art. 313, parágrafo único, do CPP, acrescentado pela Lei n° 12.403/11, a prisão preventiva também será admitida quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manu­ tenção da medida. Para que o Estado possa deflagrar a persecução penal, é indispensável que se saiba contra quem será instaurado o processo. Individualiza-se a pessoa por meio de seu prenome, nome, apelido, estado civil, naturalidade, data de nascimento, número da carteira de identidade, número do cadastro de pessoa física (CPF), profissão, filiação, residência, etc. Portanto, havendo dúvi­ da sobre a identidade civil da pessoa, ou caso esta não forneça elementos suficientes para seu esclarecimento, a prisão preventiva poderá ser decretada para assegurar a aplicação da lei penal ou a conveniência da instrução criminal, evitando-se, ademais, possíveis erros judiciários, por conta da instauração de processos criminais contra eventuais homônimos do autor do delito.340 Diversamente dos incisos do art. 313 do CPP, seu parágrafo único nada diz quanto à na­ tureza da infração penal. Portanto, quando a prisão preventiva for necessária para esclarecer dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, a prisão preventiva poderá ser decretada em relação a crimes dolosos e culposos, pouco importando o quantum de pena a eles cominado.341

338

Lembre-se que, a partir da decisão do Supremo no RE 466.343, somente subsiste a prisão civil no ordenamento pátrio nos casos de dívida alimentar, haja vista o status supralegal conferido aos tratados internacionais de direitos humanos. Para mais detalhes acerca do assunto, vide acima tópico relativo à prisão civil.

339

É nesse sentido a lição de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto. Op. cit. p. 82.

340 Admitindo a prisão preventiva de indivíduo que se utilizava de vários CPF's e identidades diversas: STJ - HC 103.523/PR - 6a Turma - Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura - DJe 02/03/2009. 341 Com o entendimento de que, na hipótese do art. 313, parágrafo único, do CPP, a prisão preventiva também pode ser decretada em relação a crimes culposos, pouco importando a pena cominada ao delito: PRADO, Geraldo. Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas - com entários à Lei 12.403, de 04/05/2011.

Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 148.

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O parágrafo único do art. 313 do CPP deve ser interpretado em cotejo com a possibilidade de obtenção da identificação do indiciado por meio da identificação criminal. Em outras palavras, mesmo diante da dúvida sobre a identidade civil da pessoa, da recusa do indiciado em fornecer ou indicar elementos para esclarecer sua identidade, caso a identificação criminal efetuada por meio do processo datiloscópico e fotográfico seja capaz de sanar a dúvida quanto a sua verdadeira identidade, não se faz necessária a decretação de sua prisão preventiva.342 Logo, se o indivíduo não fornecer ou não indicar elementos para esclarecer sua identidade, sendo tal omissão suprida pela identificação criminal, não se justifica a decretação de sua prisão preventiva. Reiteramos aqui o quanto foi dito acerca do princípio da proporcionalidade, em seu subprincípio da necessidade, no sentido de que, dentre as medidas aptas a atingir o fim almejado, deve o juiz escolher a que menor gravame cause ao imputado. Desde a vigência da Lei n° 10.054/00, uma das hipóteses que autorizava a identificação criminal se dava quando o indiciado ou acusado não comprovasse, em 48 (quarenta e oito) horas, sua identificação civil (Lei n° 10.054/00, art. 3o, inciso VI, revogado pela Lei n° 12.037/09). Ora, se a Lei autorizava a identificação criminal nessa hipótese, não se justifica a adoção de meio mais gravoso. A nova lei de identificação criminal também permite a identificação criminal caso o indivíduo não se identifique civilmente (Lei n° 12.037/09, art. Io, c/c art. 2o). A custódia cautelar sob o argumento de que se destina a conhecer a identidade do indiciado só pode ser aceitável, portanto, no caso de fracasso das diligências policiais que devem ocorrer previamente e, mesmo assim, o tempo limite de cárcere deve ser o estritamente necessário para se obter sua identificação. O próprio art. 313, parágrafo único, in fine, do CPP, confirma esse raciocínio, ao dispor que o preso deve ser colocado imediatamente em liberdade após a identi­ ficação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. Uma última questão merece ser analisada: segundo o parágrafo único do art. 313 do CPP, a prisão preventiva poderá ser decretada quando, havendo dúvida sobre a identidade civil da pessoa, esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la. Certamente, haverá quem diga que referido dispositivo seria incompatível com o direito que assiste ao acusado de não produzir prova contra si mesmo {nemo tenetur se detegere), porquanto a prisão preventiva do agente poderia ser decretada caso ele não fornecesse elementos para esclarecer sua identidade. A nosso ver, é certo que o direito ao silêncio não abrange o direito de falsear a verdade quanto à identidade pessoal. Para o Supremo, aliás, tipifica o crime de falsa identidade o fato de o agente, ao ser preso, identificar-se com nome falso, com o objetivo de esconder seus maus an­ tecedentes.343A propósito, eis o teor da súmula n° 522 do STJ: “A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa”. Em conclusão, ousando inovar em relação ao entendimento consolidado da doutrina, pa­ rece-nos que o art. 313, parágrafo único, do CPP, não é espécie de prisão preventiva. Funciona, na verdade, como verdadeira condução coercitiva do investigado (acusado) para fins de inves­ tigação criminal. Deveras, como exposto nos comentários ao interrogatório judicial (Item “2.4. Condução coercitiva”), por meio da medida cautelar prevista no art. 313, parágrafo único, do CPP, o indivíduo é privado de sua liberdade de locomoção pelo lapso temporal estritamente necessário para que seja identificado, após o que o próprio dispositivo legal determina que seja 342 343

Na mesma linha: LOPES JRVAury (op. cit. p. 101). Para mais detalhes acerca da identificação criminal, vide título atinente à investigação preliminar. STF, 23 Turma, HC 72.377/SP, Rei. Min. Carlos Velloso, DJ 30/06/1995 p. 271. Etambém: STF, 1§ Turma, RE 561.704, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 64 02/04/2009.

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colocado em liberdade. Logo, sem embargo de o próprio dispositivo fazer uso do termo prisão preventiva, cuida-se de mandado de condução coercitiva. 7. PRISÃO PREVENTIVA E EXCLUDENTES DE ILICITUDE E DE CULPABILIDADE Comparando-se a nova redação do art. 314 do CPP com a antiga, verifica-se que não houve grandes alterações, a não ser pela adequação do texto do CPP à nova redação do Código Penal, determinada pela entrada em vigor da Lei n° 7.209/84, que deslocou as causas excludentes da ilicitude do art. 19 para o art. 23, incisos I, II e III. Não se admite a decretação da prisão preventiva quando o juiz verificar das provas colhidas nos autos que o agente praticou o crime acobertado por uma causa excludente da ilicitude, ou seja, em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e no exer­ cício regular de direito. Não faz sentido a decretação da prisão preventiva se o juiz já visualiza futura e provável absolvição do agente com fundamento no art. 386, inciso VI, do CPP (com redação dada pela Lei n° 11.690/08). Por analogia, a doutrina estende a aplicação do art. 314 às justificantes previstas na Parte Especial do Código Penal e em leis especiais (CP, arts. 128, I e II, 142, I, II e III, 146, § 3o, 150, § 3o, I e II, etc.). Mas e em relação às causas excludentes da culpabilidade? Seria possível aplicarmos o art. 314 do CPP a elas? Ressalvada a hipótese de inimputabilidade do art. 26, caput, do Código Penal, o art. 314 do CPP também é aplicável quando o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato acobertado por uma causa excludente da culpabilidade, como obediência hierárquica, coação moral irresistível, inexigibilidade de conduta diversa, etc. Ora, se o próprio Código de Processo Penal autoriza a absolvição sumária do agente quando o juiz verificar a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade (CPP, art. 397, II), seria de todo desarrazoado permitir-se a decretação da prisão preventiva em tal situação. Ademais, admitindo a legislação processual penal comum o emprego da analogia (CPP, art. 3o, caput), afigura-se perfeitamente possível a aplicação subsidiária do art. 258 do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual a prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar, pelas provas constantes dos autos, ter o agente praticado o fato nas condições dos arts. 35 (erro de direito), 38 (coação moral irresistível e obediência hierárquica), observado o disposto no art. 40 (coação física ou material), e dos arts. 39 (estado de necessidade como excludente da culpabilidade) e 42 (excludentes de ilicitude), do Código Penal Militar. Portanto, seja diante de causas excludentes da ilicitude, seja nas hipóteses de excludentes da culpabilidade (v.g., coação moral irresistível, inexigibilidade de conduta diversa), a prisão preventiva não poderá ser decretada. Importante ressalva, todavia, deve ser feita quanto ao inimputável do art. 26, caput, do Código Penal, cuja condição de periculosidade pode ensejar a privação de sua liberdade.344

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Para mais detalhes acerca do inimputável do art. 26, caput, do CP, remetemos o leitor ao tópico pertinente às medidas cautelares diversas da prisão, onde trataremos da internação provisória prevista no art. 319, VII, do CPP.

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8. DURAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA E EXCESSO DE PRAZO NA FORMA­ ÇÃO DA CULPA 8.1. Noções introdutórias Segundo notícia divulgada pelo site da Folha de São Paulo em 26 de julho de 2009,345 o Conselho Nacional de Justiça teria descoberto o que considerava ser, à época, um dos casos mais graves da história do Judiciário no país: o lavrador V. R. A., com 42 anos, teria passado quase 11 (onze) anos preso no Espírito Santo sem nunca ter sido julgado. Acusado de ter praticado um homicídio em 1998, V. R. A. teria passado por quatro presídios e não teve direito de sair da prisão nem mesmo para o enterro da mãe, em 2007. O lamentável caso confirma um dos maiores problemas da prisão preventiva no ordenamento pátrio: sua indeterminação temporal. Impera, no processo penal comum brasileiro, absoluta indeterminação acerca do prazo de duração da prisão preventiva, que passa a assumir contornos de verdadeira pena antecipada. Isso porque, ao contrário da prisão temporária, que possui prazo prefixado, o Código de Pro­ cesso Penal não prevê prazo determinado para a duração da prisão preventiva. Assim, a prisão preventiva, cuja natureza cautelar deveria revelar a característica da provisoriedade, acaba por assumir caráter de verdadeira prisão definitiva. Uma exceção a essa indeterminação estaria prevista no art. 390 do Código de Processo Penal Militar, que estabelece o prazo de 50 (cinqüenta) dias para a conclusão da instrução criminal quando o acusado estiver preso. Em sentido semelhante, o art. 22, parágrafo único, da nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13), dispõe que a instrução criminal deverá ser encerrada em prazo razoável, o qual não poderá exceder a 120 (cento e vinte) dias quando o réu estiver preso, prorrogáveis em até igual período, por decisão fundamentada, devidamente motivada pela complexidade da causa ou por fato procrastinatório atribuível ao réu. Ao longo dos anos, em virtude dessa indeterminação do prazo da custódia preventiva, diversos abusos foram cometidos, em patente violação à natureza provisória da prisão cau­ telar, que se via transformada, mediante subversão dos fins que a legitimam, em inaceitável antecipação executória da própria sanção penal, violando não só o princípio da presunção de inocência, como também o direito à razoável duração do processo, previsto expressamente na Constituição Federal (art. 5o, LXXVIII) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 7o, § 5o). No Brasil, por se entender que a ausência de fixação de prazo certo para a duração da pri­ são preventiva deixava o acusado inteiramente à mercê do Estado, consolidou-se entendimento jurisprudencial segundo o qual, se o acusado estivesse preso, o processo penal na Ia instância deveria estar concluído no prazo de 81 (oitenta e um) dias, sob pena de restar caracterizado o denominado excesso de prazo na formação da culpa, hipótese de constrangimento ilegal à liber­ dade de locomoção a autorizar o relaxamento da prisão (CPP, art. 648, inciso II), sem prejuízo, obviamente, da continuação do processo. De fato, se a duração da prisão cautelar exceder um prazo razoável, toma-se ilegal, porquanto viola a garantia constitucional da razoável duração do processo. Se a prisão é ilegal, deve ser objeto de relaxamento, já que a Constituição Federal prevê que toda prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária, sem prejuízo, todavia, da continuidade do processo.

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Notícia obtida em - acesso em 09 de janeiro de 2010.

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Esse prazo de 81 (oitenta e um) dias foi fixado em leading case do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em consideração aos prazos legais fixados para a prática de atos processuais no antigo procedimento comum ordinário dos crimes punidos com reclusão, em se tratando de acu­ sado preso, decorrendo da soma do prazo de todos os atos da persecução penal, desde o início do inquérito policial ou da segregação do acusado, até a prolação da sentença, sem que fossem levados em consideração nessa contagem os prazos para a movimentação cartorária. Confira-se tais prazos: 1) Inquérito: 10 (dez) dias (CPP, art. 10, caput)', 2) Denúncia: 5 (cinco) dias (CPP, art. 46, caput); 3) Defesa Prévia: 3 (três) dias (CPP, antiga redação do art. 395, caput); 4) Inquirição de testemunhas: 20 (vinte) dias (CPP, antiga redação art. 401, caput)', 5) Requerimento de diligên­ cias: 2 (dois) dias (CPP, revogado art. 499, caput); 6) Despacho do requerimento de diligências: 10 (dez) dias (CPP, revogado art. 499, c/c art. 800, § 3o); 7) Alegações das partes: 6 (seis) dias (CPP, revogado art. 500, caput); 8) Diligências ex officio: 5 (cinco) dias (CPP, revogado art. 502, c/c art. 800, inciso II); 9) Sentença: 20 (vinte) dias (CPP, revogado art. 502, c/c art. 800, § 3o). Como se percebe pela leitura dos próprios dispositivos legais de onde esse prazo de 81 (oitenta e um) dias foi extraído, inicialmente, esse prazo era computado desde o momento da prisão até o da sentença de Io grau. Posteriormente, no entanto, adotou-se o entendimento de que esse prazo de 81 (oitenta e um) dias - que tem início com a prisão do acusado - não seria até a prolação da sentença, mas sim até o final da instrução criminal, entendendo-se por essa, no antigo procedimento comum ordinário dos crimes punidos com reclusão, a fase do revogado art. 499 do CPP, reservada a diligências complementares. Por isso, o STJ editou a súmula n° 52: “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”. Esse encurtamento do termo final (da decisão final para o término da instrução criminal), consolidado pela súmula n° 52 do STJ, também contaminou a legislação especial. De fato, na redação original da revogada Lei n° 9.034/95, dizia o art. 8o: “O prazo máximo da prisão proces­ sual, nos crimes previstos nesta Lei, será de cento e oitenta dias”. Posteriormente, todavia, com a Lei n° 9.303, de 13 de julho de 1999, o referido artigo passou a ter a seguinte redação: “O prazo para encerramento da instrução criminal, nos processos por crime de que trata esta Lei, será de 81 (oitenta e um) dias, quando o réu estiver preso, e de 120 (cento e vinte) dias, quando solto”. Para parte da doutrina, esse encurtamento do termo final, ou seja, a adoção de um termo a quo anterior ao julgamento em primeiro grau, seria incompatível com o direito ao processo penal em prazo razoável, assegurado pelo art. 5o, inc. LXXVIII, da Carta Magna. Afinal, o direito à razoável duração do processo não pode ficar circunscrito ao direito à razoável duração da instrução, na medida em que o término da instrução não põe fim ao processo.346 Por se tratar da somatória de prazos específicos, isto é, estipulados para a prática de atos processuais isolados, havia entendimento minoritário segundo o qual o excesso de prazo estaria caracterizado pelo descumprimento de qualquer um deles. Em outras palavras, a contagem seria feita de modo isolado e não globalmente.347 No entanto, sempre prevaleceu o entendimento de que a contagem seria global, a sig­ nificar, portanto, que o prazo de 81 (oitenta e um) dias deveria ser observado até o final da instrução criminal, ou seja, até a fase do art. 499 do CPP. Assim, eventual excesso no momento

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LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. D ireito ao processo penal no prazo razoável. 2ã ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 108.

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STF, 2a- Turma, HC 78.978/PI, Rei. Min. Nelson Jobim, DJ 13/10/2000 p. 10.

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do oferecimento da denúncia poderia ser compensado ao longo da instrução processual. Nesse sentido, aliás, o Superior Tribunal de Justiça editou duas súmulas: a) Súmula n° 21: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo na instrução”; b) Súmula n° 52: “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”.348 8.2. Leis 11.689/08 e 11.719/08 e novo prazo para a conclusão do processo quando o acu­ sado estiver preso Com o novo procedimento comum ordinário (Lei n° 11.719/08), aplicável quando o crime tiver sanção máxima igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade (CPP, art. 394, § Io, inciso I), a contagem do prazo para o encerramento do processo criminal quando o acusado estiver preso foi sensivelmente alterada, podendo variar entre 95 (noventa e cinco) e 190 (cento e noventa) dias. É bom esclarecer que, de modo semelhante ao que se dava com a construção pretoriana da contagem do prazo de 81 (oitenta e um) dias, não levamos em consi­ deração os prazos relativos à movimentação cartorária. Sem dúvida alguma, para fins de contagem desse prazo, o termo inicial deve ser a data do início da prisão do agente, pouco importando se se trata de prisão em flagrante, preventiva ou temporária, bem como se houve modificação da natureza da prisão (v.g., prisão temporária decretada na fase investigatória, sendo convertida em preventiva na fase judicial). Vejamos, então, cada um desses prazos, separadamente: 1) Inquérito Policial: 10 (dez) dias (CPP, art. 10, caput). De acordo com o art. 66 da Lei n° 5.010/66, na Justiça Federal, quando o indiciado estiver preso, o prazo para a conclusão do inquérito policial será de 15 (quinze) dias, podendo ser prorrogado por mais 15 (quinze). Logo, no âmbito da Justiça Federal, o prazo para a conclusão do inquérito pode chegar a 30 (trinta) dias. Por outro lado, em se tratando de crimes hediondos e equiparados, a prisão temporária pode ser decretada por 30 dias, prazo esse que é prorrogável por igual período em caso de ex­ trema e comprovada necessidade (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o). Limitamo-nos a tratar da prisão temporária em relação a crimes hediondos e equiparados, porquanto, nas demais hipóteses da Lei n° 7.960/89, o prazo máximo da prisão temporária é idêntico àquele estabelecido para a conclusão do inquérito, ou seja, 10 (dez) dias. Surge, então, a questão de se saber se o prazo da prisão temporária em crimes hediondos e equiparados deve (ou não) ser levado em consideração para o cômputo do prazo para o encerramento do processo. Parte da doutrina entende que o prazo da prisão temporária não deve ser levado em consi­ deração para o cômputo do prazo para o encerramento do processo. Isso porque se trata, a prisão temporária, de espécie de prisão cabível para determinados delitos, mais gravemente apenados, do que se depreende um grau maior de dificuldade na apuração dos delitos.349 A nosso ver, o prazo da prisão temporária, sobretudo em se tratando de crimes hediondos, não pode ser deixado de lado no cômputo do prazo para o encerramento do processo. Caso

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STF, lã Turma, HC 91.973/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 55 28/03/2008. E também HCs 82.056-QO e 69.448, Ministro Celso de Mello; HC 80.776, Ministro limar Galvão; HC 81.729, Ministro Maurício Corrêa; HCs 83.090 e 82.902, Ministra Ellen Gracie; HC 86.753, Ministra Cármem Lúcia; HC 88.292, Ministro Eros Grau; RHC 84.994, Ministro Gilmar Mendes; e HCs 85.292-AgR e 90.258. (STF, l 3 Turma, HC 90.407/MG, Rei. Min. Carlos Britto, DJe 65 11/04/2008). Ou ainda: STF, l 3 Turma, HC 90.809/PE, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 55 28/03/2008).

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É nesse sentido a lição de Pacelli: Curso de Processo Penal. I I 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 464/465. Denilson Feitoza comunga do mesmo entendimento (op. cit. p. 880).

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tenha sido decretada a prisão temporária por 60 (sessenta) dias com o objetivo de se acautelar as investigações em crimes hediondos e equiparados, o prazo de 10 (dez) dias para a conclusão do inquérito do art. 10 do CPP deve ser automaticamente substituído pelo prazo previsto na lei dos crimes hediondos, quando, então, o prazo para a conclusão da fase investigatória será de 60 (sessenta) dias. Respeitadas opiniões em sentido contrário, não há fundamento para a não inclusão do prazo de 60 (sessenta) dias de prisão temporária em crimes hediondos e equiparados no cômputo do prazo de encerramento do processo. Diante da inserção do direito à razoável duração do processo no bojo da Constituição Federal, que abrange não somente o processo propriamente dito, mas também a fase preliminar de investigações, não se pode admitir que alguém possa permanecer preso por até 60 (sessenta) dias, e que tal prazo não seja levado em consideração para o cômputo do prazo para o encerramento do processo. Deve-se ter em mente que o Código de Processo Penal é anterior à Lei da Prisão Temporária: daí o próprio art. 10 do CPP, ao falar do prazo de 10 (dez) dias para a conclusão do inquérito de investigado preso, mencionar tão somente a prisão em flagrante e a prisão preventiva. Logo, o art. 10 do CPP deve ser lido em cotejo com o prazo de prisão temporária previsto no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90, ou seja, em se tratando de inquérito para investigação de crimes hediondos e equiparados, o prazo para a conclusão do procedimento investigatório poderá ser de até 60 (sessenta) dias. Portanto, para fins de contagem do prazo para o encerramento do processo, ao invés de se contar apenas 10 (dez) dias para a conclusão do inquérito, o prazo a ser levado em consideração é o de 60 (sessenta) dias, caso tenha havido decretação da prisão temporária com base no prazo máximo previsto no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90. Do que foi dito, denota-se que não há um prazo único e inflexível para o encerramento do processo. Cada caso é um caso, podendo o prazo variar de acordo com suas peculiaridades. No âmbito da Justiça Estadual, o prazo para a conclusão das investigações será de 10 (dez) dias, pelo menos em regra, nos termos do art. 10 do CPP; na Justiça Federal, esse prazo pode chegar a 30 (trinta) dias, por força do art. 66 da Lei n° 5.010/66; caso tenha sido decretada a prisão temporária pelo prazo máximo em relação a crimes hediondos, o prazo para o encerramento da fase investigatória pode ser de até 60 (sessenta) dias. 2) Oferecimento da peça acusatória: 5 (cinco) dias (CPP, art. 46, caput); 3) Recebimento da peça acusatória: 5 dias (CPP, 396, caput, c/c art. 800, inciso II). 4) Resposta à acusação por escrito: 10 (dez) dias (CPP, art. 396, caput). Caso a resposta não seja apresentada no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, deve o juiz nomear defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos, hipótese em que deverão ser acrescidos mais 10 (dez) dias (CPP, art. 396-A, § 2o); 5) Eventual vista à acusação, caso a defesa tenha juntados documentos dos quais o MP ou o querelante não tinham ciência: após a apresentação da resposta à acusação pela defesa, pode surgir a necessidade de se ouvir a acusação acerca de fatos e provas novas, em fiel obser­ vância ao princípio do contraditório, hipótese em que deve ser acrescido ao cômputo do prazo o interstício de 5 (cinco) dias (CPP, art. 409, aplicável subsidiariamente ao procedimento comum); 6) Análise da resposta à acusação apresentada pelo acusado e decisão fundamentada rejeitando eventual pedido de absolvição sumária: 5 (cinco) dias (CPP, art. 397, c/c art. 800, inciso II). No cômputo do prazo para o encerramento do processo, parte da doutrina não tem levado em consideração o prazo de 5 (cinco) dias para o recebimento da peça acusatória, nem tampouco o prazo de 5 (cinco) dias para análise da resposta à acusação apresentada pelo acusado,

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com eventual rejeição de pedido de absolvição sumária.350 Com a devida vênia, pensamos que tais prazos não podem ser desprezados na contagem do prazo, sobretudo por estarmos diante de importantes decisões jurisdicionais, que demandam a concessão de lapso temporal ao magis­ trado para que, de maneira fundamentada, possa analisar o recebimento (ou a rejeição) da peça acusatória, bem como eventual pedido de absolvição sumária. Negar a concessão de prazo ao magistrado para proferir tais decisões é querer equipará-las a meros despachos de movimentação cartorária, quiçá feitos pelos próprios funcionários do cartório, com o que, evidentemente, não se pode concordar. 7) Designação de audiência una de instrução e julgamento: deve ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias (CPP, art. 400, caput). No caso do procedimento comum sumário, a audiência de instrução e julgamento dar-se-á no prazo máximo de 30 dias (CPP, art. 531, caput)', 8) Substituição das alegações orais por memoriais: caso tenha sido determinada a rea­ lização de diligências consideradas imprescindíveis para o julgamento da causa (CPP, art. 404, parágrafo único), bem como nas hipóteses de complexidade do caso ou pluralidade de acusados, deverá o juiz conceder à cada parte o prazo de 5 (cinco) dias sucessivamente para a apresentação de memoriais, tendo, nessa hipótese, o prazo de 10 (dez) dias para proferir a sentença (CPP, art. 403, § 3o). Ressalte-se, no entanto, que esse prazo de 10 (dez) dias para proferir sentença pode ser duplicado, chegando a 20 (vinte) dias, desde que o juiz declare justo motivo (CPP, art. 800, § 3o). Como se percebe pela somatória dos prazos acima discriminados, o prazo mínimo para o encerramento do processo é de 95 (noventa e cinco) dias. Porém, a depender das peculiaridades do caso concreto, esse prazo pode chegar a 190 (cento e noventa) dias. De fato, na hipótese de crimes hediondos, a prisão temporária pode ter sido decretada por 60 (sessenta) dias; some-se a isso o prazo para o oferecimento (+ 5 dias) e recebimento da peça acusatória (+ 5 dias); suponha-se que, citado para apresentar a resposta à acusação (+10 dias), o acusado não tenha constituído defensor, hipótese em que o juiz será obrigado a nomear advogado dativo para oferecê-la (+ 10 dias); apresentada a resposta à acusação com documentos dos quais a acusação não tinha ciência, o Ministério Público deve ter vista dos autos (+ 5 dias), com subsequente análise, por parte do magistrado, de eventual pedido de absolvição sumária (+ 5 dias); por fim, apesar de o art. 400, caput, do CPP, prever que a audiência de instrução e julgamento deva ser realizada no prazo máximo de 60 dias, é possível que, por conta da complexidade do caso, ou em virtude da realização de diligências, haja a concessão às partes de prazo para apresentação de memoriais (+10 dias), hipótese em que a sentença pode ser proferida em até 20 dias, perfazendo, assim, um total de 190 (cento e noventa) dias. Quanto à Ia fase do procedimento do Tribunal do Júri (judicium accusationis), o prazo pode variar entre 100 (cem) e 120 (cento e vinte) dias, na Justiça Estadual e Federal, respectiva­ mente. É bem verdade que o art. 412 do CPP, com redação determinada pela Lei n° 11.689/08, determina que o procedimento será concluído no prazo máximo de 90 (noventa) dias. Todavia, não se pode olvidar que o dispositivo refere-se ao prazo para o encerramento do procedimento. Logo, não se pode esquecer que a este prazo de 90 (noventa) dias, referente ao encerramento do procedimento judicial, deve ser acrescido o prazo relativo às investigações: + 10 (dez) dias na Justiça Estadual (CPP, art. 10); + 15 (quinze) dias, prorrogáveis por outro tanto, na Justiça Federal (Lei n° 5.010/66, art. 66); ou, ainda, + 60 (sessenta) dias, caso tenha sido decretada a prisão temporária em seu prazo máximo para crimes hediondos e equiparados.

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É a posição de Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró. D ireito ao processo penal no prazo razoável. 2 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 146.

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Quanto à 2a fase do procedimento do júri (judicium causae), diante da ausência de prazo ex­ presso em lei para o julgamento em plenário do acusado já pronunciado, pode-se estabelecer uma presunção relativa de excesso de prazo caso o julgamento não seja realizado no prazo de 6 (seis) meses contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia, aplicando-se aí o prazo previsto para o desaforamento (CPP, art. 428, caput, com redação determinada pela Lei n° 11.689/08).351 8.3. Natureza do prazo para o encerramento do processo e princípio da proporcionalidade Com o incremento da criminalidade no país, e a crescente e conseqüente complexidade dos processos criminais, consolidou-se perante os Tribunais Superiores o entendimento de que o prazo para a conclusão da instrução processual de réu preso não tem natureza absoluta, podendo ser dilatado com fundamento no princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade), seja em virtude da complexidade da causa, seja em face da pluralidade de réus envolvidos no fato delituoso. Portanto, não é o simples somatório aritmético dos prazos abstratamente previstos na lei processual penal que servirá de balizamento para fins de delimitação do excesso de prazo na formação da culpa. Dependendo da natureza do delito e das diligências necessárias no curso do processo, é possível, então, que eventual dilação do feito seja considerada justificada. Assim, segundo o entendimento pretoriano, “aplica-se o princípio da razoabilidade para justificar o excesso de prazo, caso haja regular tramitação do feito, com eventual retardamento no julgamento do paciente causado pela complexidade do processo, decorrente da pluralidade de acusados (onze), do desmembramento do feito em relação aos pacientes, bem como pela necessidade de expedição de diversas cartas precatórias para o interrogatório dos réus. Justifica-se eventual dilação de prazo para a conclusão da instrução processual, quando a demora não é provocada pelo Juízo ou pelo Ministério Público, mas sim decorrente de incidentes do feito e devido à observância de trâmites processuais sabidamente complexos”.352 8.4. Hipóteses que autorizam o reconhecimento do excesso de prazo Como dito acima, na visão dos Tribunais, o prazo para o encerramento do processo não tem natureza peremptória, subsistindo apenas como referencial para verificação do excesso, de sorte que sua superação não implica necessariamente em constrangimento ilegal, podendo ser excedido com base em juízo de razoabilidade. Diante dessa natureza relativa do prazo para o encerramento do processo, indaga-se: quando restará caracterizado o excesso de prazo, autorizando-se o relaxamento da prisão? No plano internacional, a Comissão Européia de Direitos Humanos, para facilitar a deter­ minação do prazo razoável, fixou inicialmente a regra dos sete critérios no caso Neumeister:353 351

Para Nucci (Tribunal do Júri, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 78/79), não está se defendendo a fixação do prazo de seis meses, mas apenas se busca fornecer um exemplo do que seria a procura pelo razoável.

352 STJ, 5^ Turma, HC 91.982/CE, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 17/12/2007 p. 285. No âmbito do Supremo Tribunal Federal; STF, 13 Turma, HC 92.202/RS, Rei. Min. Carlos Britto, DJe 65 11/04/2008; STF, 23 Turma, HC 92.483/PE, Rei. Min. Eros Grau, DJe 31 22/02/2008; STF, 23 Turma, HC 91.430/ PA, Rei. Min. Eros Grau, DJe 31 22/02/2008. Com base no princípio da razoabilidade, a 69 Turma do STJ deixou de reconhecer o excesso de prazo na formação da culpa, em virtude da complexidade da causa e do comporta­ mento das partes: no curso da instrução em processo criminal relativo a dezesseis acusados, foram inquiridas 16 (dezesseis) testemunhas da acusação e 113 (cento e treze) da defesa, com expedição de 17 (dezessete) cartas precatórias e pedido de oitiva de 04 (quatro) residentes no exterior. (STJ, 63 Turma, HC 138.654/GO, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP -, julgado em 14/09/2010). 353

Neste caso, cuja sentença é de 27/07/1968, a Corte afirmou que "em uma sociedade democrática, o fato de manter um homem durante mais de vinte anos na incerteza, na inquietude, na angústia do que será dele, com

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I) A efetiva duração da detenção; II) A duração da prisão preventiva em relação à natureza da infração, grau da pena cominada que se possa prever para o suspeito, e o sistema legal de abatimento da prisão no cumprimento da pena que no caso venha a ser imposta; III) Os efeitos materiais, morais e de outra natureza que a detenção produz no detido quando ultrapassarem as normas conseqüências da mesma; IV) A conduta do acusado: a) teria ele contribuído para retardar ou ativar a instrução ou os debates? b) teria retardado o procedimento em conseqüência da apresentação de pedidos de liberdade provisória, de apelações ou de outros recursos? c) pediu sua liberdade mediante fiança ou oferecendo outras garantias para assegurar o comparecimento em juízo? V) As dificuldades da instrução do caso (a complexidade dos fatos ou do número de testemunhas e acusados, necessidade de produzir provas no estrangeiro); VI) A forma em que se desenvolveu a instrução; VII) A atuação das autoridades judiciais. Essa regra dos sete critérios, todavia, foi posteriormente abandonada, passando o Tribunal Europeu de Direitos Humanos a levar em conta apenas 3 (três) critérios: 1) a complexidade do caso; 2) o comportamento da parte; 3) o comportamento das autoridades judiciárias. No Brasil, tem-se considerado que o excesso de prazo na formação da culpa é medida de todo excepcional e somente estará caracterizado nas seguintes hipóteses: 1) mora processual decorrente de diligências suscitadas exclusivamente pela atuação da acusação: a título de exemplo, por conta das inúmeras interceptações telefônicas em anda­ mento, tem havido grande lentidão na realização de exames periciais para comparação das vozes (espectrograma da voz). Ora, não se pode admitir que o excessivo volume de trabalho pericial sirva como desculpa para a morosidade, gerando dilações indevidas e permitindo que o acusado permaneça preso cautelarmente por prazo irrazoável. Assim é que a Ia Turma do Supremo concluiu que, estando o paciente preso cautelarmente há um ano e seis meses, sem que tenha dado causa ao excesso de prazo, que, no caso, resultou de diligências requeridas pelo Ministério Público e de incidente de suspeição suscitado pelo juiz, estará caracterizado constrangimento ilegal à liberdade de locomoção.354 2) mora processual decorrente da inércia do Poder Judiciário, em afronta ao direito à razoável duração do processo: é óbvio que o excessivo volume de trabalho isenta o magistrado pessoalmente de qualquer responsabilidade, mas não escusa o atraso da prestação jurisdicional. De outro lado, a organização defeituosa da Administração da Justiça, sua carência de pessoal e de material não podem servir como justificativas para a morosidade, afrontando o direito a um processo sem dilações indevidas.355 A propósito, como já se manifestou o Min. Celso de Mello, “o excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário, não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu, traduz situação anômala que compromete a efe­ tividade do processo, pois, além de tomar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dila­ ções indevidas (CF, art. 5o, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento os sofrimentos que se produzirão e sua vida profissional e social, constituem uma clara vulneração do art. 6.1 de que se trata". Eis o teor do art. 6.1 da Convenção Européia de Direitos Humanos: "Toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa e publicamente, em prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela [...]". 354 STF, 1- Turma, HC 85.400/PE, Rei. Min. Eros Grau, DJ 11/03/2005 p. 38. 355

Nessa linha: GOMES, Luiz Flávio. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. Coordenação Luiz Flávio Gomes e Flávia Piovesan. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 244.

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constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei”.356 3) mora processual incompatível com o princípio da razoabilidade, evidenciando-se um excesso abusivo, desarrazoado, desproporcional: nas palavras do Min. Gilmar Mendes, “a demora na instrução e julgamento de ação penal, desde que gritante, abusiva e irrazoável, carac­ teriza o excesso de prazo. Manter uma pessoa presa cautelarmente por mais de dois anos é des­ proporcional e inaceitável, constituindo inadmissível antecipação executória da sanção penal”.357 8.5. Excesso de prazo provocado pela defesa Quando ficar evidenciado que o excesso de prazo foi causado por conta de diligências procrastinatórias da defesa, não há falar em constrangimento ilegal à liberdade de locomoção de modo a autorizar o relaxamento da prisão. Afinal, ninguém pode se beneficiar da sua pró­ pria torpeza. Daí dispor a súmula n° 64 do STJ que não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela Defesa. Com base na súmula n° 64 do STJ, os Tribunais Superiores têm entendido que: a) Não se vislumbra constrangimento ilegal por excesso de prazo se o processo está aguar­ dando o julgamento do recurso em sentido estrito interposto pela defesa, o que justificaria a razoável demora para o encerramento do processo;358 b) Se está pendente apenas a realização de perícia requerida pela defesa, havendo inclusive o Ministério Público e outro corréu apresentado alegações finais, encontra-se encerrada a instrução criminal, incidindo à espécie a Súmula 52/STJ. Logo, se a defesa insiste em exame de razoável complexidade, demandando a expedição de ofícios para diversos Institutos de Criminalística do país, incide à espécie a Súmula 64/STJ;359 c) Não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução provocado concorrentemente pela defesa, ante a necessidade de expedição de precatórias para o interrogatório do acusado e para a oitiva de testemunhas da defesa.360 d) Evidenciando-se que a defesa contribuiu para a demora do julgamento do feito, visto que as testemunhas que arrolou não compareceram à audiência de instrução e julgamento, houve requerimento de oitiva de testemunhas em outra comarca, sem falar no atraso na entrega de instrumento de procuração, não há falar em excesso de prazo na formação da culpa.361 Como visto nos julgados acima referidos, para os Tribunais Superiores, a interposição de recursos por parte da Defesa, a realização de perícias requeridas pelo defensor, e até mesmo a 356

STF, 2ã Turma, HC 91.662/PR, Rei. Min. Celso de Mello, DJe 60 04/04/2008. Na mesma linha: STF, 2ã Turma, HC 86.850/PA, Rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 06/11/2006 p. 50. Etambém: STF, Pleno, HC 85.237/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j. 17/03/2005, DJ 29/04/2005; STJ, 5? Turma, HC 92.444/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, DJe 26/05/2008; STJ, 5a Turma, HC 95.698, Rei. Min. Jorge Mussi, Informativo n® 353 do STJ, 21 a 25 de abril de 2008.

357 STF, 2® Turma, HC n® 86.915/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 21/02/2006, DJ 16/06/2006. E também: STF, 1® Turma, HC 84.931/CE, Rei. Min. Cezar Peluso, DJ 16/12/2005 p. 83; STF, 2® Turma, HC 84.095/GO, Rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 16/12/2005 p. 111. 358 STF, 1®Turma, HC 92.204/PR, Rei. Min. Menezes Direito, DJ 19/12/2007 p. 54. 359

STJ, 5® Turma, HC 88.676/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 07/02/2008 p. 1.

360 STJ, 5®Turma, HC 83.974/RN, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 08/10/2007 p. 347. 361 STJ, 5® Turma, HC 162.936/ES, Rei. Min. Gilson Dipp, julgado em 16/12/2010.

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expedição de cartas precatórias para o interrogatório do acusado e a oitiva de testemunhas da defesa não dão ensejo ao relaxamento da prisão, por se tratar de excesso provocado pela defesa. Sem embargo desse entendimento, parece-nos que da utilização dos meios legais postos à disposição do acusado e de seu defensor não lhes pode resultar qualquer gravame. Ninguém pode sofrer qualquer espécie de punição simplesmente por fazer uso de um recurso previsto em lei, sob pena de obrigarmos a defesa a não recorrer, a não arrolar testemunhas, a fim de que possa arguir eventual excesso de prazo. Impõe-se diferenciar, portanto, o uso normal do direito de defesa, com o exercício das suas faculdades procedimentais decorrentes do pleno contraditório judicial, seja arrolando testemunhas residentes em outra comarca para comprovar eventual álibi, seja interpondo recursos previstos em lei, do uso abusivo do direito de defesa. Em síntese, o regular exercício do direito de defesa não pode servir como óbice ao reconhe­ cimento do excesso de prazo, sob pena de a prisão preventiva do acusado servir como elemento inibidor das faculdades processuais do defensor, causando desequilíbrio incompatível com a paridade de armas inerentes ao devido processo legal. Acreditamos, pois, com a devida vênia, que a súmula n° 64 do STJ deva lida nos seguintes termos: não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado por manobras manifestamente procrastinatórias da defesa que visem à criação de uma dilação indevida. 8.6. Excesso de prazo após a pronúncia ou o encerramento da instrução criminal: mitigação das súmulas 21 e 52 do STJ De acordo com a súmula n° 21 do STJ, “pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal por excesso de prazo na instrução”. Por sua vez, preceitua a súmula n° 52 do STJ que “encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”. Como se percebe pela leitura das duas súmulas, pronunciado o acusado ou encerrada a instrução criminal, já não seria mais possível a caracterização do excesso de prazo. A aplicação irrestrita das duas súmulas pode nos levar a uma conclusão absurda, qual seja, a de que, pronunciado o acusado, ou encerrada a instrução do processo, não haverá mais espaço para a caracterização do excesso de prazo na formação da culpa. Assim, a título de exemplo, pronunciado o réu, pouco importa se seu julgamento em plenário demorar 2 (dois), 3 (três) ou 4 (quatro) anos o acusado permanecerá preso - como se o direito à razoável duração do processo fosse extensivo tão somente até o momento da pronúncia. No mesmo sentido, encerrada a instrução processual, a prolação de sentença pelo magistrado de Ia instância ou até mesmo o julgamento de seu recurso de apelação possa levar anos, permanecendo o acusado preso cautelarmente. Ora, em tais situações, haveria evidente afronta ao disposto no art. 5o, LXXVIII, da Cons­ tituição Federal, se acaso não fosse possível o reconhecimento do excesso de prazo após a pro­ núncia ou o encerramento da instrução. Afinal, a garantia ali inserida é a da razoável duração do processo, sendo certo que o término da instrução ou da primeira fase do procedimento bifásico do júri não põe fim ao processo. A nosso juízo, impõe-se um juízo de ponderação entre os valores constitucionais do exercício do poder-dever de julgar (art. 5o, XXXV) e, de outro, do direito subjetivo à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5o, LXXVIII), sobretudo quando em jogo a liberdade de locomoção. De nada adianta a Constituição declarar o direito à razoável duração do processo se a ele não corresponder o dever estatal de julgar com presteza. Portanto, ainda que pronunciado o acusado ou encerrada a instrução criminal, é possível reco­ nhecer-se o excesso de prazo quando houver uma dilação indevida que não possa ser atribuída a manobras manifestamente procrastinatórias da defesa.

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Nessa linha de raciocínio, tanto a súmula n° 21 do STJ quanto a de n° 52, também do STJ, vêm sendo mitigadas pelos próprios Tribunais Superiores. A Ia Turma do Supremo já teve a oportunidade de asseverar que, “evidenciado que a prisão preventiva do paciente perdura por mais de dois anos e cinco meses, sem que a defesa tenha concorrido para esse excesso de prazo, a decisão pela prejudicialidade da impetração, face à superveniência da sentença de pronúncia, traduz situação expressiva de constrangimento ilegal”.362 Na mesma esteira: “a jurisprudência deste Supremo Tribunal firmou o entendimento segundo o qual o encerramento da instrução criminal afasta a alegação de excesso de prazo. Todavia, aquela inteligência haverá de ser tomada com o temperamento jurídico necessário para atender aos princípios constitucionais e inffaconstitucionais, especialmente quando o caso evidencia flagrante ilegalidade decorrente do excesso de prazo não imputável ao acusado”.363 O Superior Tribunal de Justiça também vem sujeitando as súmulas 21 e 52 a uma releitura, no sentido de que, ainda que encerrada a instrução criminal, é possível reconhecer o excesso de prazo na formação da culpa, especialmente quando o caso evidenciar flagrante ilegalidade decorrente de mora processual não imputável ao acusado. Por isso, em caso concreto no qual o acusado permanecia preso há mais de quatro anos e 10 meses sem que tivesse sido submetido ao Tribunal do Júri, concluiu o STJ que a demora injustificável para a prestação jurisdicional, quando encerrada a instrução criminal, permanecendo o réu preso preventivamente, caracterizava hipótese de constrangimento ilegal, razão pela qual determinou não só a expedição de alvará de soltura como também a imediata realização da sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri.364 8.7. Excesso de prazo e aceleração do julgamento Caracterizado o excesso de prazo na formação da culpa, impõe-se o relaxamento da prisão, que pode ser determinado pelo próprio juiz que preside a instrução processual, ou pelo respectivo Tribunal, seja em face da interposição de habeas corpus, seja de ofício, quando da apreciação de eventual recurso. Em alguns precedentes jurisprudenciais, no entanto, ao invés de se reconhecer o excesso de prazo, com o conseqüente relaxamento da prisão, os Tribunais têm se limitado a determinar a realização imediata do julgamento, de modo semelhante à novel aceleração do julgamento inserida no procedimento do desaforamento por força da Lei n° 11.689/08 (CPP, art. 428, § 20).365 362 STF, 23 Turma, HC 86.980/SP, Rei. Min. Eros Grau, DJ 27/10/2006 p. 63. 363 STF, I a Turma, HC 87.913/PI, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 07/12/2006 p. 52. Reconhecendo o excesso de prazo em virtude do transcurso de praticamente 1 ano entre a sentença e o julgamento da apelação e, ainda, a distribuição dos embargos de infringência, opostos em 20.1.2010, apenas em 8.11.2010, sobretudo por ser a paciente maior de 60 anos e portadora de doença grave (câncer), tendo assegurado, por lei, prioridade na tramitação em todas as instâncias: STF, I a Turma, HC 102.015/SP, Rei. Min. Dias Toffoli, julgado em 09/11/2010. Reconhecendo o excesso de prazo de acusados que, a despeito de terem sido pronunciados, aguardavam o julgamento perante o Tribunal do Júri há mais de 7 (sete) anos: STF, 2® Turma, HC 142.177/RS, Rei. Min. Celso de Mello, j. 06/06/2017, DJe 212 18/09/2017. 364 STJ, 53 Turma, HC 117.466/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 23/03/2010, DJe 26/04/2010. Na mesma trilha: STJ, 6®Turma, RHC 20.566/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 25/06/2007 p. 300). Etambém: "A permanência do pronunciado preso desde 8/3/04 e o seu julgamento pelo Tribunal popular marcado para 4/12/08, ou seja, mais de quatro anos após a sua prisão, configura excesso de prazo para a prestação jurisdi­ cional". (STJ, 53 Turma, HC 53.302/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 10/03/2008 p. 1). Na mesma linha, em relação a indivíduo pronunciado em dezembro de 2005 e que se encontrava preso preventivamente há 3 (três) anos, sem que fosse submetido a julgamento pelo Júri: STJ, 6a Turma, HC 77.469/SP, Rei. Min. Nilson Naves, DJe 28/10/2008. 365 STF, 2a Turma, HC 95.314/SP, Rei. Min. Ellen Gracie, DJe 211 06/11/2008. Na dicção do Supremo, o acusado tem direito à jurisdição em período razoável, daí por que se revela inadmissível que um habeas corpus não seja julgado

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8.8. Relaxamento da prisão por excesso de prazo e decretação de nova prisão De nada adianta o reconhecimento do excesso de prazo na formação da culpa em julga­ mento de habeas corpus, com a conseqüente expedição de alvará de soltura, se o juiz puder decretar nova e automática prisão preventiva do acusado, mantendo seu status quo. Fosse isso possível, haveria clara e evidente afronta ao direito à razoável duração do processo, previsto na Constituição Federal (art. 5o, LXXVIII) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8o, n° 1). Deveras, se a prisão cautelar anterior foi relaxada por excesso de prazo no encerramento do processo, seria expediente arbitrário e desleal restabelecer a deten­ ção por meio de novo mandado de prisão preventiva, pois, assim, ficaria burlada a lei quando reclama, estando preso o acusado, se conclua o processo em prazo menor que o fixado para os processos de réu solto. Portanto, uma vez relaxada a prisão preventiva por excesso de prazo, não pode o juiz decretar nova prisão cautelar, salvo diante de motivo superveniente que a autorize. Essa motivação que autoriza nova prisão cautelar deve ser completamente nova, seja quanto aos argumentos jurídicos, seja quanto aos fatos. Na verdade, como aponta a doutrina, deve-se exigir que essa motivação cautelar nova refira-se a fatos novos posteriores à soltura do réu, ou, quando muito, de fatos que, embora não posteriores à soltura do réu, eram estranhos ao processo penal e completamente desconhecidos do juiz quando da revogação da prisão preventiva.366 8.9. Excesso de prazo e efeito extensivo Se o excesso de prazo não tiver como fundamento argumento de caráter exclusivamente pessoal, surgindo idêntica a situação de corréu, impõe-se um tratamento igualitário, estendendo-se a ordem concedida a todos os acusados, consoante o disposto no art. 580 do CPP. Segundo o referido dispositivo, no caso de concurso de agentes, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.367 8.10. Relaxamento da prisão preventiva e liberdade plena Em se tratando de relaxamento de prisão preventiva ilegal, não é possível, pelo menos em regra, a imposição de qualquer ônus ou restrição de direito em desfavor do libertado. Trata-se de liberdade plena, diferenciando-se, portanto, das hipóteses de liberdade provisória com vinculação. Não é isso, todavia, o que se vê no dia a dia forense. Nesse sentido, confira-se a posição do STJ: “A instrução criminal deve ser concluída em prazo razoável, nos exatos termos do art. 5o, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. O excesso de prazo na ultimação do processo-crime enseja o relaxamento da prisão cautelar. Ordem concedida para reconhecer o excesso de prazo e determinar o relaxamento da prisão do paciente, expedindo alvará de soltura clausulado,/?ara que compareça a todos os atos do processo, sob pena de revogação da liberdade” (nosso grifo).368

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em 02 (dois) anos, pouco importando o fato de o acusado estar preso, ou não: STF, l ã Turma, HC 112.659/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 29/05/2012. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval; CALDAS NETO, Pedro Rodrigues. M anual de prisão e soltura sob a ótica constitucio­ nal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Método, 2007. 430. No sentido de o relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo não impedir a decretação de nova prisão preventiva por outros fundamentos explicitados na sentença condenatória: STF, lã Turma, HC 103.881/MG, Rei. Min. Dias Toffoli, julgado em 31/08/2010. STF, lã Turma, HC 87.132/MG, Rei. Min. Marco Aurélio, DJ 31/10/2007 p. 91. E também: STF, 1§ Turma, HC segunda extensão 87.913/PI, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 23/03/2007 p. 109.

368 STJ, 6- Turma, HC 69.382/BA, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 08/10/2007 p. 371. No sentido da imposição de vinculações como o compromisso de comparecimento a todos os atos do processo e a proibição

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A nosso ver, reconhecida a ilegalidade da prisão, impõe-se seu relaxamento, sem a impo­ sição de quaisquer ônus ao acusado, pelo menos em regra. Porém, como tem sido admitida a utilização do poder geral de cautela no processo penal, é possível que o acusado seja submetido ao cumprimento de algum tipo de obrigação, caso tal medida se apresente necessária para as­ segurar a eficácia das investigações ou do processo criminal. 8.11. Relaxamento da prisão e natureza da infração penal Como será visto com mais detalhes ao tratarmos do tema liberdade provisória proibida, há inúmeros dispositivos constitucionais e legais que vedam a concessão da liberdade provi­ sória com ou sem fiança a certos delitos (v.g., tráfico de drogas - art. 44 da Lei n° 11.343/06). Ainda que se queira sustentar a validade de tais dispositivos legais - o que, como será visto mais adiante, não encontra ressonância na mais moderna jurisprudência do próprio Supremo -, não se pode confundir a vedação da concessão da liberdade provisória com a possibilidade de relaxamento da prisão ilegal. A própria Constituição Federal, ao tratar do relaxamento da prisão ilegal (art. 5o, LXV), não estabelece qualquer restrição quanto à espécie do delito. Portanto, uma vez reconhecida a ilegalidade da prisão, impõe-se seu relaxamento, ainda que o delito praticado pelo agente tenha natureza hedionda. Nesse sentido, eis o teor do enunciado da súmula n° 697 do Supremo Tribunal Federal: a proibição da liberdade provisória nos processos por crimes hediondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo. Não por outro motivo, a 5a Turma do STJ deliberou pela concessão de ordem em habeas corpus para determinar o relaxamento da prisão em relação a acusado pela prática de crime hediondo cujo processo já durava mais de 5 anos sem que a instrução estivesse concluída.369 8.12. Excesso de prazo e investigado ou acusado solto Em regra, restringe-se a análise acerca do excesso de prazo na formação da culpa em relação ao indivíduo preso. E isso porque, tratando-se de acusado preso, apresenta-se o reconhecimento do excesso de prazo como causa de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, autorizando o relaxamento da prisão com fundamento no art. 648, inciso II, do CPP. No entanto, pela própria dicção do texto constitucional (CF, art. 5o, inciso LXXVIII), de­ preende-se que o direito à razoável duração do processo é aplicável tanto ao acusado que está preso quanto àquele que está em liberdade. O problema é que, enquanto o relaxamento da prisão afigura-se como conseqüência da ilegalidade decorrente do excesso de prazo quando o acusado está preso, a legislação processual penal pátria silencia acerca de medidas a serem adotadas em caso de dilação indevida referente a investigações ou processos criminais de acusados que estejam em liberdade. No plano internacional, Daniel R. Pastor apresenta algumas soluções, aplicáveis tanto ao acusado preso quanto ao acusado solto: 1) compensatórias, que podem ser: a) de direito inter­ nacional - com a condenação do Estado infrator, por órgãos internacionais de direitos humanos (como o TEDH), à compensação pelos prejuízos causados ao acusado, que poderá ser em dinheiro de se ausentar do distrito da culpa sem autorização judicial, a despeito de ter sido reconhecido o excesso de prazo. STF, 1? Turma, HC 102.668/PA, Rei. Min. Dias Toffoli, julgado em 05/10/2010. 369 STJ, 5ã Turma, Edcl no HC 74.623/SP, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora Convocada do TJ/MG, DJ 10/12/2007 p. 404. Reconhecendo o excesso de prazo na formação da culpa em caso concreto em que indiví­ duo acusado de tráfico de drogas já estava preso preventivamente há mais de 4 (quatro) anos, sem que sequer tivesse sido designada a audiência de interrogatório: STF, 2a Turma, HC 141.583/RN, Rei. Min. Edson Fachin, j. 19/09/2017.

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ou, ainda, através de indulto ou perdão da pena aplicada (total ou parcial); b ) de direito civil por meio de ressarcimento, indenização ou reparação; c) de direito penal - por meio de redução de pena ou de suspensão de sua execução - no Brasil, seria possível a aplicação, nesse caso, da circunstância atenuante genérica do art. 66 do Código Penal; 2) processuais, que podem ser resumidas na possibilidade de reconhecimento de nulidade do processo ou dos atos processuais posteriores ao cumprimento do prazo razoável; 3) punitivas, traduzidas em sanções disciplinares, administrativas ou penais para os agentes responsáveis pela dilação indevida do processo.370 Não obstante o silêncio da legislação brasileira quanto às conseqüências de eventual dilação indevida referente a persecuções criminais em que o acusado esteja em liberdade, convém destacar que, em pioneiro julgado acerca do assunto, a 5a Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem para determinar o trancamento de inquérito policial em andamento em relação a suspeitos que estavam em liberdade, por entender que, no caso concreto, passados mais de sete anos desde a instauração do inquérito, ainda não teria havido o oferecimento da denúncia contra os pacientes. Nas palavras do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, “é certo que existe jurisprudência, inclusive desta Corte, que afirma inexistir constrangimento ilegal pela simples instauração de Inquérito Policial, mormente quando o investigado está solto, diante da ausência de constrição em sua liberdade de locomoção; entretanto, não se pode admitir que alguém seja objeto de investigação eterna, porque essa situação, por si só, enseja evidente constrangimento, abalo moral e, muitas vezes, econômico e financeiro, principalmente quando se trata de grandes empresas e empresá­ rios e os fatos já foram objeto de Inquérito Policial arquivado a pedido do Parquet Federal”.371 9. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA As prisões cautelares são, invariavelmente, medidas de natureza urgente. A urgência da medida cautelar pleiteada, bem como a sumariedade ou superficialidade da cognição, não po­ dem, entretanto, servir como justificativas para o arbítrio ou qualquer forma de automatismo no tocante a decisões que decretem a segregação cautelar. De fato, nos exatos termos do art. 5o, inciso LXI, da Constituição Federal, ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Por sua vez, o art. 93, inciso IX, da Carta Magna, determina que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Evidente, pois, a necessidade de que todo e qualquer decreto prisional seja devi­ damente fundamentado. Antigamente, entendia-se que a fundamentação das decisões judiciais era apenas uma garantia técnica do processo, com objetivos endoprocessuais: através dela, proporcionava-se às partes o conhecimento necessário para que pudessem impugnar a decisão, permitindo, ademais, que os órgãos jurisdicionais de segundo grau examinassem a legalidade e a justiça da decisão. Destacava-se, assim, apenas a função endoprocessual da motivação. Com o passar do tempo, a garantia da motivação das decisões passou a ser considerada também garantia da própria jurisdição. Afinal de contas, os destinatários da fundamentação não são mais apenas as partes e o juízo ad quem, como também toda a coletividade que, com

370

El plazo razonable em el proceso dei Estado de Derecho: una investigación acerca dei problema de Ia excesiva duración dei proceso penal y sus posibles soluciones. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002. p. 504-540.

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STJ, 5^ Turma, HC 96.666/MA, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 04/09/2008, DJe 22/09/2008.

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a motivação, tem condições de aferir se o magistrado decidiu com imparcialidade a demanda. Muito além de uma garantia individual das partes, a motivação das decisões judiciais funciona como exigência inerente ao próprio exercício da função jurisdicional. Não por outro motivo, a garantia da motivação vem prevista na Constituição Federal no capítulo pertinente ao Poder Judiciário, e não no capítulo dos direitos e garantias individuais, em que se encontra grande parte das garantias processuais. Destarte, sob o enfoque da sociedade, pode-se dizer que a motivação também apresenta uma relevância extraprocessual?12 Funciona, assim, a motivação dos atos jurisdicionais, verdadeira garantia processual de segundo grau, como importante forma de controle das partes sobre a atividade intelectual do juiz, a fim de que verifiquem se este levou em consideração todos os argumentos e provas pro­ duzidas pelas partes, e se teria aplicado de maneira correta o direito objetivo ao caso concreto.3 72373 Especificamente em relação à prisão preventiva, a nova redação do art. 315 do CPP dispõe que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada. Re­ ferido dispositivo vem ao encontro do art. 5o, LXI, e art. 93, IX, ambos da Constituição Federal, no sentido de exigir que toda decisão que decrete, substitua ou denegue a prisão preventiva seja sempre fundamentada. Pela própria excepcionalidade que caracteriza a prisão preventiva, a decisão que a decreta pressupõe inequívoca demonstração da base empírica que justifica a sua necessidade, não bastando apenas aludir-se a qualquer das previsões do art. 312 do Código de Processo Penal. Diante da Carta Magna, não há mais espaço para decisões que se limitem à mera explicita­ ção textual dos requisitos previstos pelo art. 312 do CPP: “... Decreto a prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública”. De fato, a tarefa de interpretação constitucional para a análise da excepcional situação jurídica de constrição da liberdade dos cidadãos exige que a alusão a esses aspectos estejam lastreados em elementos concretos. Meras ilações ou conjectu­ ras desprovidas de base empírica concreta não autorizam a segregação cautelar da liberdade de locomoção. É indispensável que o magistrado aponte, de maneira concreta, as circunstâncias fáticas que apontam no sentido da adoção da medida cautelar, sob pena de manifesta ilegalidade do decreto prisional.374 Caso a decisão proferida pela autoridade judiciária competente não esteja devidamente fundamentada, haverá constrangimento ilegal ensejador de pedido de habeas corpus, pleiteando a cassação da prisão preventiva. Se ao magistrado se impõe o dever de apontar elementos concretos que confirmem a ne­ cessidade da segregação cautelar do acusado, também se lhe impõe o dever de moderação de linguagem. Ao exteriorizar seu convencimento no momento da fundamentação, a utilização de linguagem sóbria por parte do magistrado serve, assim, para demonstrar que não está havendo um julgamento antecipado do acusado. 372

Nesse sentido: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3ã ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 129.

373

Consoante lição de Ferrajoli, a motivação "exprime e ao mesmo tempo garante a natureza cognitiva em vez da natureza potestativa do juízo, vinculando-o, em direito, à estrita legalidade, e, de fato, à prova das hipóteses acusatórias". Ainda segundo o referido autor, "a motivação permite a fundação e o controle das decisões seja de direito, por violação de lei ou defeito de interpretação ou subsunção, seja de fato, por defeito ou insuficiência de provas ou por explicação inadequada do nexo entre convencimento e provas" (Direito e razão: teoria do garantismo penal. 23 ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 573/574).

374 STJ, 6ã Turma, HC 86.113/DF, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 17/03/2008 p. 1. E também: STJ, 5ã Turma, HC 101.827/RJ, Rei. Min. Jorge Mussi, DJe 30/03/2009.

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Havendo mais de um acusado no mesmo processo, a fundamentação deve ser individualiza­ da, considerando-se as condições pessoais de cada um dos acusados na verificação dopericulum libertatis,375 Para a jurisprudência, não se exige fundamentação exaustiva, sendo suficiente que o decreto constritivo, ainda que de forma sucinta, concisa, analise a presença, no caso, dos requisitos legais ensejadores da prisão preventiva.376 Esse dever de fundamentar a decisão que decreta a prisão preventiva é do juiz natural, geralmente de um juiz de Ia instância. Assim, o Tribunal terá competência para decretá-la em nível de segundo grau de jurisdição apenas diante de recurso interposto pela acusação contra a decisão que indeferiu a prisão preventiva (CPP, art. 581, V). Portanto, o chamado indevido reforço de fundamentação não pode substituir a decisão do juiz natural que decreta ou mantém a prisão, que deve subsistir por si só. Não se admite, assim, que o órgão ad quem supra eventual deficiência da fundamentação do juízo a quo por ocasião do julgamento de habeas corpus, nem tampouco que a autoridade coatora complemente a decisão omissa ao prestar informações em pedido de habeas corpus. Nesse contexto, como já se pronunciou o Min. Celso de Mello, “a legalidade da decisão que decreta a prisão cautelar ou que denega liberdade provisória deverá ser aferida em função dos fundamentos que lhe dão suporte, e não em face de eventual reforço advindo dos julgamentos emanados das instâncias judiciárias superiores. A motivação há de ser própria, inerente e contemporânea à decisão que decreta o ato excepcional de privação cautelar da liberdade, pois a ausência ou a deficiência de fundamentação não podem ser supridas a posteriori”.377 De mais a mais, em recurso exclusivo da defesa, também não se afigura possível a de­ cretação da prisão cautelar, de ofício, pelo Tribunal, sob pena de violação ao princípio da ne reformatio in pejus. A teor do art. 316 do Código de Processo Penal, é possível a decretação de prisão preventiva no curso do processo, ainda que esta tenha sido anteriormente revogada, se sobrevierem razões que justifiquem tal medida. Contudo, essa providência - de apreciar as alterações fáticas da situação determinantes da custódia —compete ao juiz da causa, não podendo supri-la o Tribunal de origem em recurso exclusivo da Defesa.378 9.1. Fundamentação p e r relationem Há controvérsias em tomo da possibilidade da adoção da denominada fundamentação per relationem. Fundamentação p e r relationem ou a liu n d e é aquela em que a autoridade judiciária adota como fundamento de sua decisão as alegações contidas na representação da autoridade policial ou no requerimento do órgão do Ministério Público, do querelante ou do assistente. Grande parte da doutrina posiciona-se contrariamente à motivação per relationem, por nela não haver explicitação, por parte do Magistrado, das suas razões de decidir, não bastando o reenvio à justificação contida na manifestação de uma das partes ou, até mesmo, da autoridade 375 Nessa linha: GRINOVER, Ada Pellegrini, e t alii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 274-275. 376 STF, 1- Turma, RHC 89.972/GO, Rei. Min. Cármen Lúcia, DJU de 29/06/2007. 377 STF, 2â Turma, HC 98.862/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 23/06/2009, DJe 200 22/10/2009. Com o mesmo en­ tendimento: STF, 2ã Turma, HC 93.803/RJ, Rei. Min. Eros Grau, DJe 172 12/09/2008; STF, 2§ Turma, HC 93.114/ SP, Rei. Min. Eros Grau, DJe 70 18/04/2008. Tendo em vista que o habeas corpus constitui meio exclusivo de defesa do cidadão, não é lícito ao Tribunal de origem inovar na fundamentação para manter a prisão de natureza provisória: STJ, 6^ Turma, HC 199.533/SP, Rei. Min. Og Fernandes, j. 03/05/2011, DJe 16/05/2011. 378 STJ, 5- Turma, HC 169.412/AL, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 05/08/2010, DJe 13/09/2010.

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policial, o que afetaria até mesmo a própria imparcialidade da decisão, porquanto não é certo que as razões do provimento jurisdicional sejam dadas por uma das partes.379 No entanto, na visão dos Tribunais, tem-se admitido a possibilidade de o juiz adotar como fundamento de sua decisão as alegações da autoridade policial, do Ministério Público ou do querelante, desde que nelas haja argumentos suficientes que autorizem a decretação da prisão preventiva, sendo desnecessária, inclusive, a sua reprodução nos mesmos autos.380 10. REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA De modo a evitarmos repetições desnecessárias, remetemos o leitor ao Capítulo I (“Das premissas fundamentais e aspectos introdutórios”) do Título 6 (“Das medidas cautelares de na­ tureza pessoal”), onde o tema foi abordado no item 5.6 (“Revogabilidade e/ou substitutividade das medidas cautelares”). 11. APRESENTAÇÃO ESPONTÂNEA DO ACUSADO Como visto anteriormente, a apresentação espontânea continua figurando como causa im­ peditiva da prisão em flagrante. Afinal, não tem cabimento prender em flagrante o agente que se entrega à polícia, que não o perseguia, e confessa o crime. Ora, quando o agente se apresenta espontaneamente, não há flagrante próprio, impróprio, nem tampouco presumido (CPP, art. 302, I, II, III e IV), desautorizando sua prisão em flagrante. Obviamente, caso estejam presentes os pressupostos dos arts. 312 e 313 do CPP, nada impede a decretação da prisão preventiva pela autoridade judiciária competente, caso se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP. Nesse contexto, a apresentação espontânea de acusado primário, com bons antecedentes, inclusive com a entrega de passaporte, denota, pelo menos a princípio, que o agente não pre­ tende fugir do distrito da culpa, desautorizando, por conseguinte, eventual decretação de sua segregação cautelar. Obviamente, se o magistrado perceber que o agente utiliza a apresentação espontânea apenas como um subterfúgio para escapar da indispensável segregação cautelar, deve o magistrado decretá-la, apontando os fundamentos que a autorizam.381 No âmbito processual penal militar, comparecendo espontaneamente o indiciado ou acu­ sado, tomar-se-ão por termo as declarações que fizer. Se o comparecimento não se der perante a autoridade judiciária, a esta serão apresentados o termo e o indiciado ou acusado, para que 379

É nesse sentido a lição de Antônio Magalhães Gomes Filho. Op. cit. p. 221.

380

STJ, 5a Turma, HC 29.293/SC, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 10/05/2004 p. 312. No mesmo sentido: STJ, 6ã Turma, HC 31.015/SP, Rei. Min. Paulo Gallotti, j. 19/05/2005, DJ 20/03/2006, p. 355; STJ, 5®Turma, HC 84.262/SP, Relatora Ministra Jane Silva, DJ 22/10/2007 p. 336; STJ, 6®Turma, HC 25.352/SC, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 20/05/2003, DJ 30/06/2003, p. 318. Na mesma linha, entendeu a 1®Turma do Supremo que, muito embora o sucinto decreto de prisão preventiva tivesse adotado como fundamentação o requerimento do Ministério Público, sem, entretanto, transcrevê-lo, a constrição cautelar teria sido baseada em fatos concretos, portanto, em conformidade com o disposto no art. 312 do CPP. (STF, 1§ Turma, HC 102.864/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 03/08/2010, DJe 173 16/09/2010).

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No sentido de que não há necessidade de decretação da prisão cautelar de acusado que se apresenta esponta­ neamente, pouco tempo depois dos fatos, e um dia após o decreto da sua prisão preventiva, demonstrando que pretende colaborar com a administração da justiça, inclusive confessando a prática do crime, e fornecendo a sua versão: STJ, 6ã Turma, HC 71.708/SE, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ 05/11/2007 p. 378). No sentido de que a fuga, como causa justificadora da necessidade da prisão cautelar, deve ser analisada caso a caso, de modo a se afastar a interpretação literal do artigo 317 do Código de Processo Penal, em sua antiga redação: STF, 1§ Turma, HC 87.425/PE, Rei. Min. Eros Grau, j. 14/03/2006, DJ 05/05/2006. E também: STF, HC 85.453/AL, Rei. Min. Eros Grau, DJ 10/06/2005 p. 51.

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delibere acerca da prisão preventiva ou de outra medida que entender cabível (CPPM, art. 262, caput). Com base no art. 3° do CPP, pensamos que o art. 262 do CPPM possa ser aplicado subsidiariamente ao processo penal comum. 12. PRISÃO PREVENTIVA NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR Segundo o art. 254 do Código de Processo Penal Militar, mediante representação da auto­ ridade encarregada do inquérito policial militar ou requerimento do Ministério Público, a prisão preventiva pode ser decretada pelo auditor ou pelo Conselho de Justiça em qualquer fase do inquérito ou do processo, desde que haja prova do fato delituoso e indícios suficientes de autoria. Com as alterações advindas da EC n° 45/04, não se fala mais em Juiz-Auditor na Justiça Militar Estadual, mas sim em Juiz de Direito do Juízo Militar (CF, art. 125, § 5o). Assim, caso a prisão preventiva seja decretada antes do início do processo,382 a competência é do Juiz Federal da Justiça Militar (ou, na Justiça Militar Estadual, do Juiz de Direito do Juízo Militar); caso a prisão preventiva seja decretada durante o curso do processo, a competência será monocrática do Juiz Federal da Justiça Militar da União, em se tratando de crimes militares praticados por civis e por militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo proces­ so, e pelo respectivo Conselho de Justiça, nos crimes militares praticados exclusivamente por militares federais (Lei n. 8.457/92, art. 3 0 ,1-B, incluído pela Lei n. 13.774/18). Com a nova redação do art. 125, § 5o, da Constituição Federal, a competência para processar e julgar crimes militares cometidos contra civis na Justiça Militar Estadual não é mais do Conselho de Justiça, mas sim do juiz de direito, singularmente. Logo, se a prisão preventiva estiver relacio­ nada a crime militar cometido contra civil, a competência para sua decretação na Justiça Militar Estadual é do Juiz de Direito, singularmente, seja na fase pré-processual, seja na fase processual. Na segunda instância, a decretação da prisão preventiva compete ao relator (CPPM, art. 254, parágrafo único). Perceba-se que, na Justiça Militar da União, o órgão jurisdicional que funciona como juízo de 2o grau é o Superior Tribunal Militar (STM), enquanto que, na Justiça Militar Estadual, é o Tribunal de Justiça Militar, nos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, ou o Tribunal de Justiça, nos demais estados da federação. As hipóteses que autorizam a prisão preventiva no âmbito processual penal militar estão lis­ tadas no art. 255 do CPPM: a) garantia da ordem pública; b) conveniência da instrução criminal; c) periculosidade do indiciado ou acusado; d) segurança da aplicação da lei penal; e) exigência da manutenção das normas ou princípios de hierarquia e disciplina militares, quando ficarem ameaçados ou atingidos com a liberdade do indiciado ou acusado.383 Apesar de a Lei n° 12.403/11 ter silenciado acerca da possibilidade de aplicação das medidas cautelares diversas da prisão ao processo penal militar, é perfeitamente possível que tais medidas sejam usadas no âmbito castrense, caso o magistrado entenda que são necessárias para a aplica­ ção da lei penal, para a investigação ou instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais. Isso porque o próprio Código de Processo Penal Militar admite a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal Comum. Além disso, como será visto mais abaixo, nada impede a utilização do denominado poder geral de cautela no processo penal. 382 Segundo o art. 35 do CPPM, o processo inicia-se com o recebimento da denúncia pelo juiz, efetiva-se com a citação do acusado e extingue-se no momento em que a sentença definitiva se torna irrecorrível, quer resolva o mérito, quer não. 383 Admitindo a decretação da prisão preventiva a fim de assegurar a manutenção dos princípios da hierarquia e disciplina militares: STJ, 6ã Turma, HC 95.345/MS, Rei. Min. Jane Silva, DJe 12/05/2008.

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Enquanto o Código de Processo Penal comum dispõe acerca dos crimes que admitem a prisão preventiva (art. 313), o CPPM silencia acerca do assunto. Logo, pelo menos em tese, é cabível a decretação da prisão preventiva em crimes punidos com pena de reclusão ou detenção. Apesar de não haver qualquer restrição expressa no CPPM à decretação da prisão preven­ tiva em relação a crimes culposos, não se pode olvidar do disposto no art. 270, parágrafo único, alínea “a”, do CPPM, que afirma que o indiciado ou acusado livrar-se-á solto no caso de infração culposa, salvo se compreendida entre as previstas no Livro I, Título I, da Parte Especial, do Código Penal Militar - são 3 (três) os crimes ali previstos que admitem a modalidade culposa: consecução de notícia, informação ou documento para fim de espionagem (CPM, art. 143, § 2o), revelação de notícia, informação ou documento, cujo sigilo seja de interesse da segurança externa do Brasil (CPM, art. 144, § 3o) e turbação de objeto ou documento concernente à segurança externa do Brasil (CPM, art. 145, § 2o). Destarte, se o art. 270, parágrafo único, alínea “a”, do CPPM, dispõe que o indivíduo se livra solto em crimes culposos, forçoso é concluir que não cabe prisão preventiva em relação a tais delitos, salvo em relação às infrações culposas que o próprio dispositivo ressalva: art. 143, § 2o, art. 144, § 3o, e art. 145, § 2o, todos do Código Penal Militar. Conforme dispõe o art. 258 do CPPM, a prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar, pelas provas constantes dos autos, ter o agente praticado o fato nas condições dos arts. 35 (erro de direito), 38 (coação moral irresistível e obediência hierárquica), 39 (estado de necessidade excludente da culpabilidade), 40 (coação física ou material) e 42 (excludentes de ilicitude).384 Segundo o art. 516, “h”, do CPPM, caberá recurso em sentido estrito da decisão que de­ cretar, ou não, a prisão preventiva, ou revogá-la. Diferencia-se, portanto, do art. 581, inciso V, do CPP, que só prevê Recurso em sentido estrito contra a decisão que indeferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la. Em que pese tal previsão, acreditamos que, em favor do acusado, apresenta-se o habeas corpus como instrumento muito mais ágil para a tutela da liberdade de locomoção, devendo, por conseguinte, ser usado como substitutivo do recurso em sentido estrito.

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1. ORIGEM A Lei n° 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que instituiu a prisão temporária, foi criada com o objetivo de assegurar a eficácia das investigações criminais quanto a alguns crimes graves. Outra preocupação era acabar com a denominada prisão para averiguações. A propósito, consta da própria Exposição de Motivos da referida Lei que “a prisão só pode ser executada depois

384 Além das tradicionais causas excludentes da ilicitude do Código Penal comum (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito), dispõe o art. 42, parágrafo único, do CPM, que não há crime quando o comandante de navio, aeronave ou praça de guerra, na iminência de perigo ou grave calamidade, compele os subalternos, por meios violentos, a executar serviços e manobras urgentes, para salvar a unidade ou vidas, ou evitar o desânimo, o terror, a desordem, a rendição, a revolta ou o saque.

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da expedição do mandado judicial. Com isso, procura impedir que a representação policial se transforme em simples comunicação ao Poder Judiciário”. Como se vê, o principal objetivo da criação da prisão temporária foi o de pôr fim à fa­ migerada prisão para averiguações, que consiste no arrebatamento de pessoas pelos órgãos de investigação para aferir a vinculação das mesmas a uma infração, ou para investigar a sua vida pregressa, independentemente de situação de flagrância ou de prévia autorização judicial. Essa prisão para averiguação é de todo ilegal, caracterizando manifesto abuso de autoridade. A prisão temporária, portanto, não se confunde com a prisão para averiguações. Como destaca Diaulas Costa Ribeiro, “a prisão temporária é modalidade de prisão para investigação, porque parte de um fato criminoso, delimitado no tempo e no espaço, para uma pessoa certa e determinada. Ao contrário, a prisão para averiguações desenha-se sob um ponto de vista absolu­ tamente diferente, eis que por meio dela as autoridades prendem, aleatoriamente, pessoas, para depois descobrir crimes que não estavam sequer investigando ou para apurar crimes nos quais essas pessoas nem ao menos figuravam como suspeitas, caracterizando o que vulgarmente se conhece como ‘operação arrastão’, realizada em áreas de contingente criminoso e cujo único critério utilizado para limitar o direito de ir e vir é a simples presença nesses locais. Somente após a implementação de uma prisão, neste último sentido discorrido, é que as pessoas serão conduzidas a uma Delegacia e, daí então, se principiará por averiguar eventual envolvimento delas com alguma infração penal, o que é bem diferente de prender para investigar um crime já conhecido e depois de, razoavelmente, consolidada e definida a suspeição de alguém”.385 A Lei n° 7.960/89, que instituiu a prisão temporária, foi resultado da conversão da Medida Provisória n° 111, de 24 de novembro de 1989. Para parte da doutrina, isso macularia a lei com vício formal de inconstitucionalidade, qual seja, a iniciativa da matéria, eis que o Executivo, por meio de Medida Provisória, teria legislado sobre Processo Penal e Direito Penal, matérias que são da competência privativa da União (CF, art. 22, inciso I) e, portanto, deveriam ser tratadas pelo Congresso Nacional. Nessa linha, Alberto Silva Franco assevera que, em matéria de liberdades pessoais, a iniciativa de leis é do Poder Legislativo, não sendo admitido que o Poder Executivo por meio de Medida Provisória se intrometa em área que a ele não é permitido.386 Tais argumentos não foram ignorados pelo Ministro Celso de Mello, quando deferiu a limi­ nar postulada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 162, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil questionando a validade da Medida Provisória n° 111/89. Segundo o Ministro, a proteção constitucional da liberdade tem, no princípio da reserva absoluta de lei - e de lei formal - um de seus instrumentos jurídicos mais importantes. A cláusula da reserva absoluta de Lei confere um inigualável grau de intensidade jurídica à tutela constitucional dispensada à liberdade individual, pois condiciona a legítima imposição de restrições ao status libertatis da pessoa à prévia edição de um ato legislativo em sentido formal. Perante a composição plena da Suprema Corte, todavia, tal tese acabou não prevalecendo, decidindo o Supremo, por maioria de votos (8 a 2), que a ADI resultou prejudicada em virtude da perda do objeto, por considerar que a Lei 7.960/1989 não foi originada da conversão da Medida Provisória 111/1989.387

385

Prisão temporária - Lei n9 7.960, de 21.12.89 - um breve estudo sistemático e comparado. Revista dos Tribunais, n9 707, p. 273, set. 1994.

386

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 4^ ed, Revista dos Tribunais, São Paulo: 2000, p. 357-358. Paulo Rangel comunga do mesmo entendimento: op. cit. p. 667.

387 STF, Pleno, ADI 162/DF, Rei. Min. Moreira Alves, DJ 27/08/1993 p. 1.

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M A N U A L D E P R O C E S S O P E N A L - Renato Brasileiro de Lim a

Posteriormente, sobreveio a Emenda Constitucional n° 32/2001, a qual deu nova redação ao art. 62 da Constituição Federal, impedindo que fato análogo volte a ocorrer, na medida em que foi vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito penal, processual penal e processual civil (CF, art. 62, § Io, inciso I, “b”). 2. CONCEITO DE PRISÃO TEMPORÁRIA Cuida-se de espécie de prisão cautelar decretada pela autoridade judiciária competente durante a fase preliminar de investigações, com prazo preestabelecido de duração, quando a privação da liberdade de locomoção do indivíduo for indispensável para a obtenção de elementos de informação quanto à autoria e materialidade das infrações penais mencionadas no art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89, assim como em relação aos crimes hediondos e equiparados (Lei n° 8.072/90, art. 2o, § 4o), viabilizando a instauração da persecutio criminis in judicio. Como espécie de medida cautelar, visa assegurar a eficácia das investigações - tutela-meio -, para, em momento posterior, fornecer elementos informativos capazes de justificar o oferecimento de uma denúncia, fornecendo justa causa para a instauração de um processo penal, e, enfim, garantir eventual sentença condenatória - tutela-fim.388 3. REQUISITOS De acordo com o art. Io da Lei n° 7.960/89, caberá prisão temporária: I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II - quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legisla­ ção penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2o); b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ Io e 2o); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ Io, 2o e 3o); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ Io e 2o); e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ Io, 2o e 3o); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);389 h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);390 i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § Io); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); 1) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. Io, 2o e 3o da Lei n° 2.889, de Io de outubro de 1956), em qualquer de suas formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);391 o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986); p) crimes previstos na Lei de Terrorismo (incluído pela Lei n° 13.260/16). Diverge a doutrina quanto aos requisitos para a decretação da prisão temporária. São 05 (cinco) as correntes sobre o tema:

388

Nesse contexto: FREITAS, Jayme Walmer. Prisão tem porária. 29 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 102.

389 Vide abaixo comentário acerca da Lei n9 12.015/09, que revogou o art. 214 do Código Penal. 390 Vide abaixo comentário acerca da Lei n9 11.106/05, que revogou o art. 219 do Código Penal. 391 Vide comentário abaixo quanto à revogação da Lei n9 6.368/76 pela Lei n9 11.343/06.

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a) basta a presença de qualquer um dos incisos: tem fundamento em regra básica da herme­ nêutica, segundo a qual incisos não se comunicam com incisos, mas somente com o parágrafo ou com o caput;392 b) é necessária a presença cumulativa dos três incisos; c) além do preenchimento dos três incisos, é necessária a combinação com uma das hipó­ teses que autoriza a prisão preventiva; d) deve o inciso III estar sempre presente, seja combinado com o inciso I, seja combinado com o inciso II; e) sempre serão necessários os incisos I e III. A primeira corrente, segundo a qual basta a presença de qualquer um dos incisos do art. Io, nos conduz a uma interpretação absolutamente descontextualizada da Constituição Federal. Ora, fosse isso possível, onde estaria o fundamento cautelar da prisão temporária? Meras razões de autoria ou participação do indiciado em um dos crimes ali elencados autorizaria a privação cautelar da liberdade do indivíduo? O que dizer, então, quanto à possibilidade de se prender alguém simplesmente por não ter residência fixa? Interpretação nesse sentido atentaria contra o princípio da presunção de inocência, transformando a prisão temporária em inequívoca forma de execução antecipada da pena. Por outro lado, fossem os incisos considerados cumulativamente - segunda corrente -, a prisão temporária praticamente desapareceria do cenário processual. Com efeito, tomar-se-ia muito difícil identificar-se uma situação em que alguém cometesse um dos delitos previstos no inciso III, não possuísse residência fixa ou elementos necessários para esclarecer sua identidade, aliada à imprescindibilidade de sua segregação para as investigações.393 A terceira corrente é sustentada por Vicente Greco Filho. Após analisar os incisos I, II e III, assevera o autor que, aos requisitos cumulados da Lei n° 7.960/89 devem ser acrescidas as hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Segundo ele, “essas hipóteses parecem ser puramente alternativas e destituídas de qualquer outro requisito. Todavia, assim não podem ser interpreta­ das. Apesar de instituírem uma presunção de necessidade da prisão, não teria cabimento a sua decretação se a situação demonstrasse cabalmente o contrário. É preciso, pois, combiná-las entre si e combiná-las com as hipóteses de prisão preventiva, ainda que em sentido inverso, somente para excluir a decretação”.394 De acordo com a quarta corrente (posição majoritária), com o objetivo de consertar a falta de técnica do legislador, somente é possível decretar a prisão temporária quando houver funda­ das razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes listados no inciso III do art. Io, associada à imprescindibilidade da segregação cautelar para a investigação policial ou à situação de ausência de residência certa ou identidade incontroversa.395Tendo em conta tratar-se a prisão

392

É essa a posição de Diaulas Costa Ribeiro, "os incisos representam unidades autônomas entre si, vinculadas ao p receito do parágrafo ou do artigo". (P risã o te m p o r á r ia —Lei n 9 7 . 9 6 0 /8 9 , d e 2 1 .1 2 .8 9 —u m b r e v e e s tu d o

sistemático e comparado. Revista dos Tribunais, n9 707, p. 272, set. 1994). 393

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribu­ nais, 2006. p. 658.

394 Manual de processo penal. 69 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 272/273. 395 SILVA JÚNIOR (2008, p. 837) observa que "a hipótese contemplada no inciso I (imprescindibilidade para as in­ vestigações do inquérito policial) compreende a que é prevista no inciso II (não ter o indiciado residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade), ambos da lei em estudo. Ora, sendo

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temporária de espécie de prisão cautelar, conjugam-se, assim, seus pressupostos: 1) fumus comissi delicti, previsto no inciso III; 2) periculum libertatis, previsto no inciso I ou no inciso II.396 Por fim, a quinta corrente sustenta que serão sempre necessários os incisos I e III, na medida em que o primeiro demonstra a necessidade da prisão {periculum libertatis) para o sucesso da investigação, sendo esta a razão primeira do instituto, e o terceiro demonstra o fumus comissi delicti. É essa, a nosso ver, a posição mais acertada, porquanto a combinação do inciso II com o inciso III não deve autorizar, por si só, a decretação da prisão temporária, na medida em que sempre será necessário se demonstrar a imprescindibilidade da adoção da medida para se asse­ gurar a eficácia das investigações. É possível que determinado agente não tenha residência fixa e que, mesmo assim, sua prisão temporária não seja necessária para o inquérito policial, pois este já se encontra concluído. Nesse caso, poder-se-ia até cogitar da possibilidade de decretação de sua prisão preventiva, seja para garantir a aplicação da lei penal, a ordem pública ou econômica, seja por conta da conveniência da instrução criminal, mas não de decretação da temporária.397 3.1. D a im prescindibilidade da prisão tem porária para as in vestigações

Acerca do primeiro requisito caracterizador do periculum libertatis (inciso I do art. Io da Lei n° 7.960/B9), é indispensável a existência de prévia investigação (não necessariamente de um inquérito policial), apresentando-se a privação cautelar da liberdade de locomoção do indi­ víduo como recurso indispensável para a colheita de elementos de informação quanto à autoria e materialidade da conduta delituosa. Por meio de uma interpretação histórica, poder-se-ia chegar à conclusão de que o inquérito policial é peça indispensável para a decretação da prisão temporária. Explica-se: comparando-se o texto da medida provisória n° 111, de 24 de novembro de 1989, que deu origem à prisão temporária, com o texto definitivo da Lei n° 7.960/89, constata-se que o inciso I da medida provisória estabelecia que a prisão poderia ser decretada quando imprescindível para a ‘investigação criminal’, tendo o texto definitivo da lei, todavia, restringido sua decretação ‘às investigações do inquérito policial’. No entanto, sendo o inquérito policial peça dispensável ao oferecimento da peça acusatória, desde que ajusta causa necessária à deflagração da ação penal esteja respaldada por outros elementos de convicção (CPP, art. 39, § 5o), não sendo a função investigatória uma atribuição exclusiva da Polícia Judiciária (CPP, art. 4o, parágrafo único), queremos crer que a existência de inquérito policial em andamento não é indispensável para a decretação da temporária. Há, sim, necessidade de que haja uma investigação preliminar em curso (v.g., comissão parlamentar de inquérito, procedimento investigatório criminal presidido pelo órgão do Ministério Público, etc.), que demande a prisão do investigado para melhor apuração do fato delituoso.398 Impõe-se, pois, uma interpretação extensiva do art. Io, inciso I, da Lei n° 7.960/89, ade­ quando-o à nova realidade investigatória.399 a prisão temporária medida acautelatória a ser adotada ainda na fase pré-processual, tem-se que ela, para ser decretada, há de ser, necessariamente, imprescindível para as investigações do inquérito policial. Se ela não for necessária, não há por que limitar o direito de liberdade da pessoa". S96

É nesse sentido a posição de Antônio Scarance Fernandes (Op. cit. p. 308). Com raciocínio semelhante, GRINOVER, et alii. As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 278.

397

É essa a posição de Marcellus Polastri Lima (op. cit. p. 358). Na mesma linha, segundo Lanfredi (op. cit. p. 136), o inciso II do art. I 5 não implica nem autoriza, estando sozinho e isolado, o particular e exigido periculum libertatis, se a ele não se associar a reivindicação de um bom termo das investigações criminais.

398 TJSP - 4ã C. - HC 275.316/3 - Rei. Passos de Freitas - JTJ - LEX 217/345. 399

Na mesma linha: Marcellus Polastri Lima (op. cit. p. 355) e também Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi (op. cit. p. 126). Em sentido contrário: SAMPAIO JÚNIOR, José Herval; CALDAS NETO, Pedro Rodrigues. Manual de prisão

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Deve a autoridade requerente demonstrar ao juiz o que faz ser considerado “imprescindível ” o encarceramento do suspeito para elucidar o fato delituoso, como, por exemplo, a ocultação de provas, o aliciamento ou a ameaça às testemunhas, a impossibilidade de se proceder ao re­ conhecimento do acusado por se encontrar em local incerto, etc.400 Ao decretar a prisão temporária, deve o juiz ter sempre em mente o princípio da propor­ cionalidade, notadamente em seu segundo subprincípio, qual seja, o da necessidade, devendo se questionar se não existe outra medida cautelar diversa da prisão menos gravosa. Em outras palavras, se uma busca e apreensão já se apresentar idônea a atingir o objetivo desejado, não se faz necessária uma prisão temporária; se a condução coercitiva do acusado para o reconheci­ mento pessoal já se apresentar apta a alcançar o fim almejado, não se afigura correto escolher medida mais gravosa consubstanciada na privação da liberdade de locomoção do acusado; se uma das medidas cautelares diversas da prisão do art. 319 do CPP já for suficiente para tutelar as investigações, como, por exemplo, a proibição de manter contato com pessoa determinada, ou a suspensão do exercício de função pública, deve o magistrado se abster de decretar a prisão temporária.401 Impõe-se, portanto, interpretar extensivamente o art. 282, § 6o, e o art. 310, II, ambos do CPP, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11, no sentido de que, quando as medidas cautelares diversas da prisão se revelarem adequadas ou suficientes para tutelar as investigações, a prisão temporária não poderá ser decretada. Prestando-se a prisão temporária a resguardar, tão somente, a integridade das investigações, forçoso é concluir que, uma vez recebida a denúncia, não mais subsiste o decreto de prisão temporária, devendo o denunciado ser colocado em liberdade, salvo se sua prisão preventiva for decretada. Prisão temporária, por conseguinte, somente na fase pré-processual. 3.2. Ausência de residência fixa e não fornecimento de elementos necessários ao esclareci­ mento da identidade do indiciado Não ter residência fixa tem sido entendido pela doutrina como sendo a ausência total de um endereço onde possa o indiciado ser localizado.402 De fato, alguém pode perambular sempre pelas mesmas ruas de uma cidade, em um estado de total miserabilidade, sem que isso importe em presunção de fuga. Daí ter concluído a Su­ prema Corte ser ilegal a decretação de prisão cautelar pelo simples fato de o agente não possuir residência fixa, decorrente de sua condição de morador de rua.403

e soltura sob a ótica constitucional: doutrina e jurisprudência.

São Paulo: Editora Método, 2007. p. 150.

400 Admitindo a prisão temporária de indivíduos foragidos que, em liberdade, estariam obstruindo a correta apura­ ção de fatos gravíssimos: TRF 1® R. - 33 T. - HC 1998.01.00.048281-0 - Rei. Osmar Tognolo - DJU 29/09/1998. No sentido de que está caracterizado constrangimento ilegal à liberdade de locomoção se a prisão temporária for determinada tão somente para uma m e lh or apuração do envolvim ento dos suspeitos, sem a demonstração concreta da imprescindibilidade da medida: STJ, 6ã Turma, RHC 20.410/RJ, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 15/10/2009, DJe 09/11/2009. 401 A propósito: "Incabível a prisão temporária de indiciado que possui residência fixa, ainda que em outra unidade da federação, forneceu os elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e já foi submetido a reconhecimento pela vítima. Se imprescindível sua presença aos atos da investigação, poderá, se não atender ao chamado da autoridade, ser determinada sua condução coercitiva, medida menos gravosa do que a prisão" (TJDF, 23 T. HC 2.758-3, Rei. Des. Getúlio Pinheiro, DJU de 22/04/1999). 402

STJ, 53 Turma, RHC 12.658/SP, Rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 28/04/2003 p. 209. E ainda: STJ, 5ã Turma, HC 75.488/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 29/06/2007 p. 683.

403

STF, 23 Turma, HC 97.177, Rei. Min. Cezar Peluso, DJe 191 08/10/2009.

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Conquanto a lei se refira à figura do “indiciado”, como o inquérito policial não é elemento indispensável à decretação da prisão temporária, forçoso é concluir que o indiciamento também não é requisito obrigatório para a decretação da medida cautelar. Na verdade, ao se referir ao “indiciado”, quis a lei demonstrar a necessidade da presença de uma ligação mínima de elementos de informação capazes de vincular alguém à prática de um fato delituoso. Para Tourinho Filho, no caso de não ser a prisão imprescindível às investigações e ter apenas a finalidade de esclarecer a identidade do suspeito, uma simples notificação de comparecimento ao distrito policial para a identificação dactiloscópica é o bastante e assim não tem justificativa prender alguém por 5 (cinco) dias.404 Com efeito, desde a vigência da Lei n° 10.054/00, ora revogada pela Lei n° 12.037/09, não mais se justificava a prisão temporária por 05 (cinco) dias tão somente para a obtenção de ele­ mentos necessários ao esclarecimento da identidade do indiciado. Isso porque, com o advento da Lei n° 10.054/00, uma das hipóteses que autorizava a identificação criminal se dava quando o indiciado ou acusado não comprovasse, em 48 (quarenta e oito) horas, sua identificação civil (Lei n° 10.054/00, art. 3o, inciso VI, revogado pela Lei n° 12.037/09). Ora, se a lei autorizava a identificação criminal nessa hipótese, não se justificava a adoção de meio mais gravoso (prisão temporária por 5 dias), em estrita observância ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo - subprincípio da necessidade. A nova lei de identificação criminal também permite a identifica­ ção criminal caso o indivíduo não se identifique civilmente (Lei n° 12.037/09, art. Io c/c art. 2o). A custódia cautelar sob o argumento de que se destina a conhecer a identidade do indiciado só pode ser aceitável, portanto, no caso de fracasso das diligências policiais que devem ocorrer previamente e, mesmo assim, o tempo limite de cárcere temporário deve ser o estritamente necessário para submeter o indivíduo à identificação criminal, sem que seja necessário cumprir todo o prazo previsto na lei. 3.3. Fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes listados no inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89 e no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90 Prisão temporária decretada em relação a crime que não esteja previsto no rol do inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89, bem como no tocante a crimes hediondos e equiparados (art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90), é completamente ilegal, devendo ser objeto de relaxamento. Assim, será ilegal, por exemplo, a prisão temporária por homicídio culposo, estelionato, apropriação indébita, etc. Antes de verificarmos o rol taxativo de delitos que admitem a prisão temporária, convém analisarmos o significado da expressão fundadas razões, pressuposto inafastável para a segre­ gação temporária. Para Nucci, embora fossem elementos desejáveis, a prova da materialidade e indícios suficien­ tes de autoria não são indispensáveis para a decretação da prisão temporária. Segundo o autor, a prisão temporária substitui, “para melhor, a antiga prisão para averiguação, pois há controle judicial da sua realização e das diligências policiais. No entanto, nem sempre é possível aguardar a forma­ ção da materialidade (prova da existência da infração penal) e a colheita de indícios suficientes de autoria para que se decrete a temporária. Ela é medida urgente, lastreada na conveniência da investigação policial, justamente para, prendendo legalmente um suspeito, conseguir formar, com rapidez, o conjunto probatório referente tanto à materialidade quanto à autoria. Aliás, se fossem

404

Da Prisão e da Liberdade Provisória.

1994, p. 80.

Revista Brasileira de Ciências Criminais, n9 7, julho/setembro, São Paulo:

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exigíveis esses dois requisitos (materialidade e indícios suficientes de autoria), não haveria neces­ sidade da temporária. O delegado representaria pela preventiva, o juiz a decretaria e o promotor já ofereceria denúncia. A prisão temporária tem a função de propiciar a colheita de provas, quando, em crimes graves, não há como atingi-las sem a detenção cautelar do suspeito”.405 Com a devida vênia, não podemos concordar com tal posição. A uma porque a prisão tem­ porária não pode ser decretada em virtude da conveniência da investigação policial para prender um suspeito. Deve sim ser decretada quando a privação cautelar da liberdade de locomoção do investigado figurar como medida indispensável para o bom êxito das investigações. Como pondera com propriedade Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, a prisão temporária “não deve ser utilizada como instrumento para facilitar o trabalho acometido à polícia, se não para viabilizar, imprescindivelmente, o prosseguimento das investigações criminais, no sentido (e abrindo o caminho) da aquisição de provas, que não têm como serem alcançadas estando o indiciado em liberdade, e desde que sejam indispensáveis para a formalização da denúncia”.406 De mais a mais, da própria expressão utilizada pelo legislador no art. Io, III, da Lei n° 7.960/89 - de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal - depreende-se a necessidade de elementos indiciários de autoria ou de participação nos crimes ali enumerados. Em sede de restrição de liberdade pessoal, as fundadas razões de que trata a Lei 7.960/1989, e que bastam para justificar o decreto de prisão temporária, têm que ser algo muito mais coeso e convincente que uma simples suspeita. As fundadas razões têm que estar acompanhadas por dados objetivos que apontem para a conclusão de que o suspeito ou indiciado possa ser autor ou partícipe em um dos crimes ali enumerados e em razão do que é requerida a sua prisão tem­ porária, sendo ilegal e repudiável uma captura destinada a fazer nascer referidos indicativos.407 Em outras palavras, quando da decretação da prisão temporária, deve o juiz concluir, em virtude dos elementos probatórios existentes - essa análise deve ser compatível com o momento em que se requer a prisão temporária, qual seja, logo na fase inicial das investigações - de que é elevada a probabilidade da superveniência de uma denúncia, desenhando-se igualmente viável a pretensão acusatória do órgão ministerial, sendo a constrição cautelar da liberdade de locomoção do agente imprescindível para a eficácia das investigações. Nesse sentido, a 5a Turma do STJ já concluiu que “a determinação da prisão temporária deve ser fundada em fatos concretos que indiquem a sua real necessidade, atendendo-se os termos descritos na lei. Evidenciada a presença de indícios de autoria dos pacientes no delito de atentado violento ao pudor, praticado, em tese, contra três crianças, para o qual é permitida a decretação da custódia provisória, bem como o fato de o paciente se encontrar em lugar incerto e não sabido, necessária se toma a decretação da prisão temporária, tendo em vista a dificuldade de investigação e conclusão do inquérito quando ausente o indiciado”.408 Superada a análise da expressão fundadas razões, passemos à análise do rol dos crimes que comportam prisão temporária. São eles (consumados ou tentados), de acordo com o inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2o): atente-se para o fato de que o homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V, VI e VII), e o homicídio simples, quando praticado em atividade típica de gmpo de extermínio, são considerados hediondos (Lei n° 8.072/90, art. Io, I, com redação determinada pela Lei n° 13.104/15), daí por que, em relação a tais delitos,

405

Op. cit. p. 658/659.

406

Op. cit. p. 137.

407

LANFREDI, Luís Geraldo Sant'Ana. Op. cit. p. 129.

408

STJ, 5§ Turma, RHC 18.004/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 14/11/2005 p. 347.

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a prisão temporária poderá ser decretada pelo prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade; b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ Io e 2o); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ Io, 2o e 3o): com vigência em data de 24 de abril de 2018, a Lei n. 13.654/18 uma nova causa de aumento de pena ao crime de roubo. De acordo com o art. 157, §2°-A, “a pena aumenta-se de 2/3 (dois terços); I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma de fogo; II - se há destruição ou rompimento de obstáculo mediante o emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum. A despeito da criação dessa nova majorante para o crime de roubo, a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei da Prisão Temporária não foram alteradas a fim de se nelas fazer inserir expressamente o art. 157, §2°-A, do CP, do que se poderia concluir que a prisão temporária não seria cabível em relação a tal delito. Com a devida vênia, esse raciocínio não nos parece ser o mais acertado. A Lei n° 13.654/18 não criou um delito autônomo. Na verdade, o §2°-A do art. 157 do CP funciona apenas como um desdobramento do tipo do crime de roubo, uma vez que o legislador apenas definiu um modus operandi do referido delito. Deveras, é pressuposto para o reconhecimento do roubo circunstanciado do §2°-A a prática da ação prevista no caput do art. 157 do CP, razão pela qual não é possível dissociar o crime majorado das circunstâncias a serem sopesadas na figura típica do art. 157. Logo, se a modalidade simples de roubo prevista no caput do art. 157 admite a decretação da prisão temporária, seria absurdo concluirmos que referida espécie de prisão cautelar não seria cabível em relação à figura circunstanciada do §2°-A; d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ Io e 2o): por força da Lei n° 11.923/09, foi acrescido o § 3o ao art. 158 do Código Penal, para tipificar o denominado seqüestro relâmpago (“Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o, respectivamente”). Com base nos mesmos argumentos acima expostos em relação ao §2°-A do art. 157 do CP, reputamos que a prisão temporária também é cabível em relação ao crime do art. 158, §3°, do CP; e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ Io, 2o e 3o); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único): o art. 223, caput, e parágrafo único, do Código Penal, foram revogados pela Lei n° 12.015/09. Quanto à nova figura delituosa do estupro de vulnerável, prevista no art. 217-A do CP, certo é que o legislador não teve o cuidado de fazer inserir o referido delito no rol do art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89. Não obstante, a partir do momento em que a Lei n° 12.015/09 inseriu o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A) no rol dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90, art. Io, inciso VI), admitir-se-á a prisão temporária com fundamento no art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90; g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único): o art. 214 do Código Penal foi revogado pela Lei n° 12.015/09. Isso, no entanto, não significa dizer que teria havido abolitio criminis, já que houve continuidade normativo-típica. Referida conduta delituosa, consubstanciada no constrangimento de alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal, simplesmente migrou do revogado art. 214 para o atual art. 213 do CP; h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único): o crime de rapto (art. 219) foi eliminado do Código Penal pela Lei n° 11.106/05. No entanto, não se pode falar em abolitio criminis, pois não houve descriminalização total da conduta

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(princípio da continuidade normativo-típica), na medida em que o art. 148, § Io, V, do Código Penal, acabou absorvendo a figura típica do antigo art. 219. Assim, como o crime de seqüestro ou cárcere privado (art. Io, inciso III, alínea “b”) comporta prisão temporária, esta ainda pode ser decretada em relação a tal delito;409 i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § Io); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); l) quadrilha ou bando (antiga redação do art. 288): com o advento da Lei n° 12.850/13, o antigo crime de quadrilha ou bando foi substituído pelo delito de associação criminosa, cuja tipi­ ficação demanda apenas a presença de 3 (três) pessoas. Surge, então, o questionamento: a prisão temporária continua sendo cabível em relação a tal delito? Por mais que o legislador não tenha tido o cuidado de proceder à alteração da Lei da Prisão Temporária, se a tipificação do crime de quadrilha ou bando demandava a associação estável e permanente de pelo menos 4 (quatro) pessoas, não se pode negar que tal conduta continua sendo tratada como tipo penal incriminador pelo art. 288, caput, do CP, que, doravante, exige apenas a presença de 3 (três) pessoas. Em termos bem simples, toda quadrilha ou bando composta por 4 (quatro) pessoas já caracterizava uma associação criminosa. Por conseqüência, por força do princípio da continuidade normativo-típica, o art. Io, III, “1”, da Lei n° 7.960/89, continua válido. Todavia, onde se lê “quadrilha ou bando”, deverá se ler, a partir da vigência da Lei n° 12.850/13, “associação criminosa”. Noutro giro, por força da Lei n° 12.720/12, com vigência em 28 de setembro de 2012, foi acrescido ao Código Penal o art. 288-A, que passou a tipificar o crime de constituição de milícia privada. Apesar da tipificação dessa nova modalidade delituosa, a Lei dos crimes hediondos e a Lei da prisão temporária não foram alteradas a fim de se nelas fazer inserir o referido crime. Destarte, por mais absurdo que possa parecer a possibilidade de decretação da prisão temporária apenas em relação ao crime menos grave - associação criminosa -, parece-nos inviável a decretação da prisão temporária em relação à constituição de milícia privada, sob pena de evidente violação ao princípio da legalidade; m) genocídio (arts. Io, 2o e 3o da Lei n° 2.889, de Io de outubro de 1956), em qualquer de suas formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);41041 o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986); p) crimes previstos na Lei de Terrorismo (incluído pela Lei n° 13.260/16):4U como se trata, o delito de terrorismo propriamente dito previsto do art. 2o da Lei n° 13.260/16, de crime equiparado a hediondo, é de se concluir que o prazo da prisão temporária será de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade, nos termos do art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90. Em relação aos demais crimes previstos na Lei Antiterrorismo organização terrorista (art. 3o), preparação de terrorismo (art. 5o) e financiamento ao terrorismo

409

Apesar de o art. 219 do CP ter sido revogado com o advento da Lei ns 11.106/05, a restrição da liberdade com finalidade libidinosa teria passado a figurar entre as possibilidades de qualificação dos crimes de seqüestro ou cárcere privado (CP, art. 148, § I s, V). Portanto, a mera alteração da norma não deveria ser entendida como a b olitio criminis, por ter havido continuidade normativa acerca do tipo penal. Nesse sentido: STF, HC 101.035/ RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, julgado em 26/10/10.

410

Vide comentário abaixo quanto à revogação da Lei n9 6.368/76 pela Lei n9 11.343/06.

411

Para mais detalhes acerca da Lei n9 13.260/16, remetemos o leitor ao nosso livro de Legislação Crim inal Especial (Salvador: Juspodivm, 2017), onde o referido diploma normativo é objeto de detalhado estudo, em conjunto com outras 13 (treze) leis especiais (v.g., hediondos, violência doméstica, organizações criminosas, etc.).

Comentada

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(art. 6o) —, que não podem ser considerados como espécie de terrorismo, logo, equiparados a hediondo, o prazo será de 5 (cinco) dias, também prorrogáveis por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade (Lei n° 7.960/89, art. 2o, caput). Doutrina e jurisprudência consideram que o rol de delitos que autorizam a decretação da prisão temporária é taxativo, caracterizando ofumus comissi delicti. Assim, a prisão temporária só pode ser decretada em relação aos crimes enumerados no inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89.412 Ocorre que, após a vigência da Lei n° 7.960/89, entrou em vigor a lei dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90), que, em seu art. 2o, § 3o (posterior § 4o renumerado pela Lei n° 11.464/07), passou a dispor que a prisão temporária, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. Portanto, a partir da Lei n° 8.072/90, a prisão temporária passou a ser cabível não só em relação aos crimes previstos no inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89, como também em relação aos crimes previstos no caput do art. 2o da Lei n° 8.072/90, quais sejam, os crimes hediondos e equiparados (tortura, tráfico de drogas e terrorismo). Da leitura e comparação entre as Leis n° 7.960/89 e 8.072/90, constata-se: a) a prisão temporária não é admissível em contravenções penais, nem tampouco em crimes culposos; b) a Lei n° 8.072/90 menciona no art. 2o, caput, os crimes hediondos (consumados ou tentados), a prática de tortura e o terrorismo (Lei n° 13.260/16), não constantes do rol do art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89; c) a Lei n° 8.072/90 refere-se ao tráfico ilícito de entorpecentes de forma ampla (art. 2o, caput), enquanto que a Lei n° 7.960/89 (art. Io, III, “n”) menciona expressamente somente o tráfico de drogas previsto no art. 12 da Lei n° 6.368/76. Indaga-se, então, se seria cabível prisão temporária no crime de favorecimento da prosti­ tuição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ Io e 2o)? A primeira vista, pode-se pensar que não, eis que referido delito não consta do rol taxativo do art. Io, inciso III, da Lei n° 7.960/89. No entanto, como o crime do art. 218-B, caput, e §§ Io e 2o, do CP, passou a ser etiquetado como hediondo em virtude da entrada em vigor da Lei n° 12.978 em 22 de maio de 2014 - Lei n° 8.072/90, art. Io, VIII -, não há como negar que, doravante, a prisão temporária também passa a ser cabível em relação a tal delito.413 Outro ponto a ser analisado diz respeito à possibilidade de decretação da prisão temporária no crime de tráfico de drogas. Isso porque, embora referida na Constituição (art. 5o, inciso XLIII), na Lei dos Crimes Hediondos (art. 2o, caput, da Lei n° 8.072/90), a expressão tráfico ilícito de entorpecentes não consta expressamente da Lei n° 11.343/06, na medida em que a nova lei de drogas, assim como a anterior (Lei n° 6.368/76), não traz um crime cujo nomen iuris seja “tráfico de drogas”. 412 Afastando prisão temporária decretada em relação a crime de furto: STJ, 55 Turma, HC 35.557/PR, Rei. Min. Felix Fischer, DJ 20/09/2004 p. 318. 413

De se lembrar que, por força da Lei n9 13.142, com vigência em 07 de julho de 2015, o crime de lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (CP, art. 129, § 2e) e o delito de lesão corporal seguida de morte (CP, art. 129, § 3°) também passaram a ser considerados hediondos, desde que praticados contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até o terceiro grau, em razão dessa condição (Lei ne 8.072/90, art. 19, l-A, incluído pela Lei ne 13.142/15). Trilhando o mesmo caminho, a Lei n. 13.497/17 também conferiu natureza hedionda ao crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei n. 10.826/03 (Lei n. 8.072/90, art. l e, parágrafo único, in fine). Logo, também se admite a decretação da prisão temporária em relação a tais delitos.

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De modo a se determinar qual crime é o de tráfico de drogas, pode-se utilizar como sub­ sídio a interpretação dada pela jurisprudência na aplicação da Lei n° 8.072/90, que, na vigência da Lei n° 6.368/76, sempre entendeu que o tráfico abrangeria as condutas dos artigos 12 e 13. A conduta de associação para o tráfico, então constante do art. 14 da Lei n° 6.368/76, não era crime equiparado a hediondo.414 Na nova lei de drogas (Lei n° 11.343/06), portanto, encontra-se o crime de tráfico de drogas previsto nos artigos 33, caput, e § Io, e 34, excluído desse conceito o art. 35, que traz a figura da associação para fins de tráfico. Insere-se também no conceito de tráfico de drogas, para fins de decretação da prisão tem­ porária, o delito de financiamento ao tráfico, previsto no art. 36 da Lei n° 11.343/06. Antes da Lei n° 11.343/06, aquele que financiasse o tráfico de drogas ou de maquinários responderia pelo mesmo crime que o traficante, em concurso de agentes (CP, art. 29, caput). Com a intenção de punir mais severamente aquele que financia o tráfico, a nova lei de drogas insere as condutas em tipos distintos, trazendo, assim, mais uma exceção pluralista à teoria monista.415 Portanto, apesar de o financiamento estar inserido em dispositivo diverso, somos levados a crer que tal figura também se equipara ao “tráfico de drogas”, sob pena de patente violação ao princípio da proporcionalidade. Dito de outra maneira: a lei não pode levar a interpretações absurdas - se o delito previsto no art. 33 comporta prisão temporária, é inegável que tal atributo também se estende ao delito mais grave, financiamento ao tráfico, sobretudo se levarmos em consideração que, neste, o móvel do agente é a obtenção de bens, direitos e valores com a prática do tráfico de drogas por terceiro. Também se admite prisão temporária em relação ao tipo penal previsto no art. 37 da Lei n° 11.343/06 (“Colaborar, como informante, com grupo, organização, ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput, e § Io, e 34 desta Lei”). Ora, esse informante, que colabora com grupo destinado ao tráfico de drogas, concorre inegavelmente para a prática do tráfico de drogas, dificultando sobremaneira as investigações, razão pela qual sua pri­ são temporária apresenta-se como medida indispensável para o bom êxito da fase investigatória. Todo esse raciocínio acaba sendo corroborado a partir da leitura do art. 44, caput, da Lei de drogas, que, à semelhança das restrições previstas na Lei n° 8.072/90 para os crimes hediondos e equiparados, estabelece uma série de restrições aos crimes previstos nos arts. 33, caput e § Io, e 34 a 37 da Lei 11.343/06, a significar, portanto, que tais delitos seriam equiparados a hediondos, ou seja, ao tráfico de drogas (CF, art. 5o, XLIII). Em outras palavras, se a tais delitos foi esta­ belecida uma série de restrições, algumas delas próprias dos crimes hediondos e equiparados, somos levados a acreditar que, à exceção do art. 35 (associação para fins de tráfico), que jamais foi considerado equiparado a hediondo na vigência da Lei anterior (art. 14 da Lei n° 6.368/76), os delitos citados no art. 44, caput, da Lei n° 11.343/06 (art. 33, caput, e § Io, art. 34, art. 36 e art. 37) são tidos como “tráfico de drogas” para fins de decretação da prisão temporária.416

414

STF, lã Turma, HC 83.017/RJ, Rei. Min. Carlos Britto, DJU 23/04/2004 p. 24. E ainda: STF, 29 Turma, HC 83.656/ AC, Rei. Min. Nelson Jobim, j. 20/04/2004, DJ 28/05/2004.

415

No Código Penal há outros exemplos de exceções pluralistas à teoria monista: arts. 124/126; 317/333; 318/334; 342, § 19/343.

416

Ressalvamos a posição em sentido diverso de NUCCI, segundo o qual se considera tráfico, "logo crime equiparado a hediondo, tanto as figuras descritas no art. 33, como também as previstas nos artigos 34 a 37. Para fim de decretação da prisão temporária, no entanto, somente se leva em conta o art. 33 da Lei n9 11.343/06" (op. cit. p. 660).

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4. DO PROCEDIMENTO A prisão temporária será decretada pelo juiz, em face da representação da autoridade po­ licial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. Da leitura do art. 2o, caput, da Lei n° 7.960/89, depreende-se que a prisão temporária não pode ser decretada de ofício pelo juiz. Preserva-se, assim, o sistema acusatório e o princípio da imparcialidade do juiz. Quando houver representação da autoridade policial, deve o Ministério Público ser obrigato­ riamente ouvido, a fim de que se manifeste quanto à presença dos pressupostos indispensáveis à privação cautelar da liberdade-fum us comissi delicti (inciso III do art. Io) epericulum libertatis (inciso I ou II do art. Io). Na hipótese de uma prisão temporária ser decretada de ofício, ou diante de mera representação policial, sem a obrigatória e prévia manifestação do Ministério Público, ter-se-á manifesto constrangimento ilegal, haja vista ser o Parquet o titular da ação penal públi­ ca, sendo ilógica e arbitrária a adoção da medida cautelar sem que o dominus litis manifeste-se favoravelmente à adoção da medida. Com efeito, basta imaginarmos o quanto inconveniente seria a decretação de uma prisão temporária sem a aquiescência do órgão ministerial, caso o Ministério Público deliberasse posteriormente pelo não oferecimento de denúncia. A representação da autoridade policial ou o requerimento do Ministério Público precisam estar instruídos com indicativos suficientes de autoria ou participação delituosa (fumus comissi delicti), além da necessária comprovação do periculum libertatis, consubstanciado na indispensabilidade da segregação cautelar para assegurar a efetividade da investigação preliminar. A Lei n° 7.960/89 não atribui legitimidade ao querelante para requerer a prisão temporária. Neste ponto, difere da prisão preventiva, que confere legitimidade ao querelante e ao assistente (CPP, art. 311, caput). Na verdade, diante das alterações trazidas pela Lei n° 12.015/09, não mais constam do rol do inciso III do art. Io da Lei n° 7.960/89 e do art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90, quaisquer delitos sujeitos à ação penal de iniciativa privada. Doravante, portanto, pode-se afirmar que a prisão temporária não mais pode ser decretada em relação a crimes de ação penal privada. Se o pedido de prisão temporária formulado pelo Ministério Público for indeferido pelo juiz, o recurso cabível será o Recurso em Sentido Estrito (CPP, art. 581, inciso V). É bem verdade que o dispositivo em questão refere-se à decisão que indeferir o requerimento de prisão preventiva. No entanto, in casu, afigura-se possível interpretação extensiva para também abranger a decisão que indefere o requerimento de temporária, sobretudo se lembrarmos que, quando da entrada em vigor do Código de Processo Penal (Io de janeiro de 1942), somente existiam as prisões em flagrante, preventiva, decorrente de pronúncia e de sentença condenatória recorrível. Pragmaticamente, no entanto, diante do indeferimento do requerimento de prisão temporária formulado pelo Parquet, acreditamos ser bem mais útil e eficaz que o Parquet obtenha novos elementos de informação quanto à autoria e materialidade, formulando novo pedido ao magis­ trado. De fato, optando o Ministério Público pela interposição de um recurso em sentido estrito, a demora no julgamento do recurso traria prejuízo irreparável às investigações, esvaziando por completo a utilidade da medida cautelar caso fosse decretada posteriormente pelo juízo ad quem. Diante do princípio da obrigatoriedade de fundamentação da prisão pela autoridade judiciária competente (CF, art. 5o, LXI, c/c art. 93, IX), a decisão que decreta a prisão temporária deve ser fundamentada, sob pena de nulidade. Daí dispor o art. 2o, § 2o, da Lei n° 7.960/89, que o despacho que decretar a prisão temporária deverá ser fundamentado e prolatado dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contadas a partir do recebimento da representação ou do requerimento.

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Não se permite ao magistrado, nessa decisão (veja-se que a Lei n° 7.960/89 impropriamente refere-se a essa decisão como mero “despacho” em seu art. 2o, § 2o), limitar-se a repetir os termos da lei, no sentido de que “a prisão do indiciado é imprescindível à investigação do inquérito policiar. Como já se manifestou o STJ, “é válido o decreto de prisão temporária que se encontra devidamente fundamentado, ainda que de forma sucinta, demonstrando a necessidade da custódia para as investigações do inquérito policial e em consonância com os indícios de participação do paciente em fato típico e antijurídico previsto na Lei n° 7.960/89”.417 Por se tratar de medida cautelar urgente e imprescindível para as investigações, o art. 5o da Lei n° 7.960/89 prevê que, em todas as comarcas e seções judiciárias, haverá um plantão perma­ nente de 24 (vinte e quatro) horas do Poder Judiciário e do Ministério Público para apreciação dos pedidos de prisão temporária. Além disso, segundo o art. 2o, § 3o, da Lei n° 7.960/89, o Juiz poderá, de ofício, ou a re­ querimento do Ministério Público e do advogado, determinar que o preso lhe seja apresentado, solicitar informações e esclarecimentos da autoridade policial e submetê-lo a exame de corpo de delito. Caso a prisão temporária seja decretada por magistrado durante o plantão judicial, este não estará prevento para a futura ação penal. Agora, se a prisão temporária for decretada fora das situações de plantão, esse magistrado estará prevento.418 5. PRAZO Diversamente da prisão preventiva, que não possui prazo predefmido, o prazo de duração da prisão temporária é de, no máximo, 5 (cinco) dias, prorrogável uma única vez por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade. De acordo com o art. 2o, § 4o, da Lei n° 8.072/90, esse prazo é de, no máximo, 30 dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade, no caso de crimes hediondos, tortura, tráfico de drogas e terrorismo. Essa prorrogação do prazo da prisão temporária não é automática, devendo sua imprescindibilidade ser comprovada com base em elementos colhidos enquanto o acusado estava preso. Na verdade, apenas diligências novas, diversas daquelas inicialmente pensadas pela autoridade policial, podem efetivamente autorizar a prorrogação do prazo da prisão temporária.419 O prazo da custódia temporária só começa a fluir a partir da efetiva prisão do acusado. Ademais, sua contagem deve ser feita à luz do art. 10 do Código Penal, incluindo-se no com­ pute do prazo o dia do começo. Assim, se o agente foi preso no dia 05 (independentemente do horário - às 08 horas ou às 23h e 59min.), deverá ser colocado em liberdade à OOhOOmin hora do dia 10. Como dito antes, o prazo de duração da prisão temporária não começa a fluir a partir do instante em que o juiz a decreta, mas apenas após a captura da pessoa contra quem foi emitida a ordem. Trata-se de prazo limite, ou seja, nada impede que o juiz decrete a prisão temporária por um período menor que o previsto em lei. Ora, quem pode o mais pode o menos. Se o juiz en­ tende que 15 (quinze) dias de prisão temporária são suficientes para auxiliar nas investigações de um crime hediondo, por que seria obrigado a manter o réu preso por mais tempo? Pode-se decretar a temporária por 10 (dez) dias e prorrogá-la por mais 5 (cinco), assim como se afigura

417

STJ, 52 Turma, RHC 8,121/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 15/03/1999 p. 263.

418

STJ, 5§ Turma, RHC 10.630/CE, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 20/08/2001 p. 490.

419

No mesmo contexto: LANFREDI. Op. cit. p. 173.

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viável decretá-la por 5 (cinco) dias, prorrogando-a por mais 15 (quinze), em caso de extrema e comprovada necessidade. Se a prisão temporária tiver sido decretada pelo prazo de 30 (trinta) dias, concluindo a au­ toridade policial, posteriormente, que não há mais necessidade de se manter o indivíduo preso, deve representar à autoridade judiciária competente solicitando a revogação da prisão temporá­ ria. Somente o juiz poderá revogar a prisão temporária, jamais a própria autoridade policial.420 Decorrido o prazo da prisão temporária, o preso deverá ser colocado imediatamente em liberdade, sem necessidade de expedição de alvará de soltura, salvo se houver prorrogação da temporária ou se tiver sido decretada sua prisão preventiva. Relembre-se que a prisão temporá­ ria não pode ser decretada ou mantida após o recebimento da peça acusatória. Portanto, após o decurso do prazo da temporária, deve o inquérito ser remetido à Justiça, oferecendo o Ministério Público a denúncia, ao mesmo tempo em que requer a decretação da prisão preventiva, se acaso necessária.421 Aliás, de acordo com o art. 4o, alínea “i”, da Lei n° 4.898/65, acrescentado pela Lei n° 7.960/89, constitui abuso de autoridade prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.422 Outro ponto que merece destaque diz respeito à possibilidade ou não de contagem do prazo da prisão temporária para o cômputo do termo de encerramento da instrução criminal. Como foi visto ao tratarmos da duração da prisão preventiva e excesso de prazo na formação da culpa, pensamos que o prazo da prisão temporária deve ser levado em consideração para o cômputo do lapso temporal para o encerramento do processo. 6 . DIREITOS E GARANTIAS DO PRESO TEMPORÁRIO

Além dos direitos e garantias constitucionais atinentes a toda e qualquer prisão cautelar, tópico abordado anteriormente, dispõe o art. 3o, caput, da Lei n° 7.960/89, que os presos tem­ porários deverão permanecer, obrigatoriamente, separados dos demais detentos. A realização de exame de corpo de delito também é medida prevista na Lei n° 7.960/89 (art. 2o, § 3o). Trata-se de medida de salutar importância, pois serve para o resguardo do preso e da própria autoridade responsável pela prisão. Tal exame deve ser feito tanto no momento inicial da prisão quanto do seu término, de modo a se afastar eventual arguição de maus-tratos, tortura ou sevícias físicas sofridas durante o período de encarceramento.

420

Em sentido contrário, Carlos Kauffmann entende que a autoridade policial e o Ministério Público também po­ dem determinar a libertação do investigado, caso entendam que não subsiste a necessidade de segregação da liberdade. (Prisão tem porária. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 113/114). Comunga do mesmo entendimento Aury Lopes Jr. (op. cit. p. 123).

421

No sentido de que, uma vez recebida a denúncia não mais subsiste o decreto de prisão temporária, que visa resguardar, tão somente, a integridade das investigações: STJ, 5^ Turma, HC 44.987/BA, Rei. Min. Felix Fischer, j. 02/02/2006, DJ 13/03/2006 p. 341. Em caso concreto apreciado pelo STJ, como o paciente estava preso há mais de seis meses, em razão de prisão temporária, sem a convolação em preventiva ou o oferecimento da denúncia, concluiu-se pela ilegalidade do excesso de prazo: STJ - HC 78.376/SC - 5^ Turma - Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho - DJ 08/10/2007 p. 335.

422

Segundo parte da jurisprudência (RT, 394/267, 405/417), o tipo penal acrescentado à Lei n^ 4.898/65 revogou o art. 350, inciso II, do Código Penal, que tinha basicamente idêntica redação.

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CAPÍTULO VII

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