Lulismo: carisma pop e cultura anticrítica
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Copyright desta edição © Hedra 2011 Copyright © Tales Ab’Sáber 1 ª reimpressão revista e corrigida Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Corpo Editorial Adriano Scatolin, Alexandre B. de Souza, Bruno Costa, Caio Gagliardi, Fábio Mantegari, Iuri Pereira, Jorge Sallum, Oliver Tolle, Ricardo Musse, Ricardo Valle Edição Jorge Sallum Coedição Bruno Costa e Iuri Pereira Capa Ronaldo Alves Filho Imagem de capa Lula no X Congresso dos Metalúrgicos (Poços de Caldas, 1979 )/© João Bittar Programação e diagramação em LATEX Bruno Oliveira Assistência editorial Bruno Oliveira Revisão Bruno Costa, Jorge Sallum e Pedro Heise Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L947 Ab’Sáber, Tales Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica. / Tales Ab’Sáber. São Paulo: Hedra, 2011. 90 p. 104 p. ISBN 978-85-7715-261-2 1. Administração pública. 2. Gestão pública. 3. Políticas públicas. 4. Monitoramento de políticas públicas. 5. Avaliação de gestão. 6. Gestão Lula. 7. Lulismo. 8. Carisma pop. 9. Cultura anticrítica. I. Título. II. Política e cultura 2003 – 2010. III. Bittar, João.

Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA HEDRA LTDA . Rua Fradique Coutinho, 1139 (subsolo) 05416 -011 São Paulo SP Brasil +55 11 3097 8304 [email protected] www.hedra.com.br Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica faz um balanço das condições políticas e da natureza do pacto social realizado no governo Lula, que impulsionou a renovação do carisma do líder petista. É também uma avaliação da realização final de seu poder carismático através da expansão global da sua forma em uma nova ordem simbólica, realizada por meio de uma convergência de interesses nos fóruns de indústria cultural e econômicos internacionais, que visavam posicionar o Brasil contemporâneo. Tal movimento histórico é pensado aqui como a emergência de um carisma pop , uma ordem avançada de dominação política, em que a figura do homem público é investida dos poderes próprios da forma mercadoria e seu fetichismo endógeno. Tales Ab’Sáber , psicanalista e ensaísta, é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiæ, professor de Filosofia da Psicanálise da Universidade Federal de São Paulo ( unifesp ), autor de O sonhar restaurado: formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Editora 34, 2005) e A música do tempo infinito (CosacNaify), no prelo. Nota introdutória Este trabalho foi escrito no último instante do governo Lula, no final do ano de 2010. Seu impulso foi o descontentamento do autor com as análises e interpretações que então surgiam, com o que parecia uma incapacidade comum de olhar o fenômeno tanto do ponto de vista do todo , quanto com visada crítica de maior tensão ou corte. Passado algum tempo, e após uma série de discussões em universidades e grupos de estudos sobre o pequeno ensaio, ele me parece restar como um documento de fim de um tempo, como um balanço e como uma interpretação. A posteriori talvez se explique aqui algo dos curiosos teatros ideológicos e imaginários petistas e tucanos durante as eleições presidenciais de 2010, em um tempo histórico no qual a economia e a política reais já há muito haviam se deslocado para outra pista. A natureza particular desta interpretação — seguindo uma tradição crítica presente e esquecida simultaneamente entre nós — está em não dissociar o movimento da cultura do movimento da política, como se tornou tendência mais ou menos dominante no universo de nossas ciências humanas. Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica: Política e cultura 2003–2010

Como imaginar um pensamento crítico hoje que não seja crítica do fetichismo da mercadoria?                  Roberto Schwarz (1994) Lula deu início a seu governo ¹ declarando de modo desafiador e irônico que surpreenderia fundamentalmente tanto a direita quanto a esquerda. Afora o que havia da nova autocomplacência lépida e da velha demagogia comum à política brasileira na frase, de resto dimensões narcísicas do discurso que o político e seu governo jamais aboliram, havia nela também, em seu fundo, uma verdade política explícita forte, que acabou por se confirmar historicamente. O principal da frase não é o seu tom paradoxal e triunfante, a célebre tendência falastrona do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, da qual ele próprio foi autoconsciente, mas a clara referência a fazer uma política que intervenha nos dois polos opostos da vida nacional, o claro desejo de articular os extremos em seu governo, e desde já podemos dizer em seu corpo , de modo que as posições políticas limites acabassem por suspender, rever e inverter os seus próprios critérios, uma a favor da outra. E de fato este projeto foi desenvolvido, consciente ou inconscientemente, de modo determinado e também por golpes de acaso, ao longo de seus dois governos, de seus oito anos. Este foi o paradoxo social e político real do governo Lula. Ele foi expresso em uma dimensão do país, junto à massa de pobres que aderiu pessoalmente ao presidente, como lulismo e em outra face das coisas nacionais como pragmatismo e grande liberdade liberal , tanto para a economia quanto para os velhos e conhecidos bons negócios da fisiologia e do amplo patrimonialismo brasileiro mais tradicional — “a vida privada incrustada na vida pública”, nas palavras de Otávio Paz — renovado agora pelas novas demandas de um capitalismo financeirizado.

O fato de um novo grupo, o do partido do presidente e dos sindicalistas ligados a ele, adentrar o tradicional condomínio do poder não representava problema suficiente para as velhas estruturas de controle político nacional, ainda mais se isto significasse, como acabou por se confirmar, o fim radical da tensão classista e contestatória própria à tradição histórica petista. Tal movimento poderia significar simplesmente, como já foi bem notado, uma circulação de elites paretiana , fundamentalmente conservadora, mas também, em alguma medida, que ainda resta determinar, renovadora. ² Podemos evocar apenas o importante e expressivo fato de, no último ano de seu governo, Lula sustentar pessoalmente , como sempre ocorre em seu modo singular de fazer política, um velho oligarca da política nacional, José Sarney, praticamente um símbolo do arcaísmo político brasileiro, um homem incomum segundo o presidente, ³ então muito combalido por mais uma das inúmeras crises de descontrole, nepotismo e baixa corrupção no Senado brasileiro. Este dado histórico é forte o suficiente para compreendermos a liberalidade e o pragmatismo para com o atraso político do presidente, o seu quase cínico, quase irresponsável e bastante astucioso laissez-faire . Nesta dimensão das coisas Lula apenas confirmou o manejo tradicional brasileiro da vida política, nunca inteiramente expurgada de clientelismo e patrimonialismo desde o longo fim da ditadura militar. E este gesto, longe de ser mera incompetência ou irresponsabilidade histórica comum, tinha valor político certeiro. O fim incondicional da perspectiva de luta de classes do Partido dos Trabalhadores, e sua adesão como partido no poder à tradição política imoral e particularista brasileira, foi o primeiro e muito importante movimento político realizado pelo governo Lula, em sua ativa busca de consenso em todo espectro da vida nacional. Ele teve início nos expurgos sumários à esquerda do partido realizados durante o processo de ascensão ao poder e logo após a primeira vitória em 2003, ⁴ e se completou com a plena decisão conservadora sobre a gestão econômica. Já nos primórdios do governo Lula, Chico de Oliveira chegou a notar em tal movimento — o abandono da tradição de esquerda do partido de esquerda — algo muito mais profundo e real, a criação de uma nova classe, a dos sindicalistas controladores dos grandes fundos de pensão públicos, e que a partir de 2003 tornaram-se também governo. De fato uma nova agregação à velha classe dos controladores do vínculo especial estado–capital entre nós, em uma ascensão ao poder econômico claramente simétrica ao financismo tucano. ⁵ Nesta mesma dimensão das coisas, do modo lulista de gerir a vida pública, a crise do mensalão de junho de 2005, episódio que beirou o fantástico de irresponsabilidade e delinquência política, ⁶ produziu três grandes movimentos no governo lulo-petista, que podemos dizer que teve então um legítimo segundo início: em primeiro lugar, o presidente entrou de vez e definitivamente na gestão de seu próprio governo, deixando finalmente de ser uma espécie de símbolo extático de si mesmo , uma rainha da Inglaterra pau de arara-sindicalista, inimputável, embevecido com o ineditismo do próprio percurso e seu efeito midiático quase universal, que de fato fora até então; em segundo lugar, o pmdb entrou definitivamente para o governo, se tornando a partir de então cada vez mais o fiel da balança do equilíbrio político do governo Lula; e por fim, mas não menos importante, o pt , profundamente abalado e punido na figura do fracasso exemplar de José

Dirceu, ficou imensamente menor do que Lula, que acabou por ser, de modo paradoxal — e amoroso político , a grande e muito interessada fidelidade geral ao grande líder — o grande vitorioso de todo quiproquó. Derrotado de modo profundo o próprio habitus de oposição de seu partido, que chegava ao poder através do corpo transferencial ⁷ — ou seja, ainda amoroso — de Lula, tradição política que caía definitivamente frente à natureza das tramoias bem herdadas de velhos operadores ligados ao psdb de Minas Gerais, ⁸ necessárias para colocá-lo no poder, realizou-se a sua primeira grande mágica política: a dissolução de qualquer oposição real ao próprio governo. ⁹ Todavia, sendo assim o pt um partido crítico de ocasião, a ser desligado ou não quando do interesse do governo, corre-se o risco dele se configurar em uma espécie de partido chantagista , criticamente muito ativo quando os adversários estão no poder e singelamente conservador, na tradição mais pura da desfaçatez local, quando ele próprio se torna governo. ¹⁰ A crítica política se transformaria em blefe, como a direita, aliás, sempre denunciou. Mas retomemos o percurso de Lula rumo a sua hegemonia pessoal na política brasileira. O segundo muito claro e ainda mais fundamental golpe, este de caráter econômico, anunciado em um primeiríssimo momento do processo lulista, simplesmente deixou a oposição à direita do governo, durante anos, rigorosamente sem objeto e sem discurso, para além de sua tradicional e dócil tendência de agregação a todo poder efetivo: Lula entregou inteiramente as grandes balizas macroeconômicas essenciais do país às avaliações e às tensões particulares do mercado financeiro interno e global, liberando o voo de suas corporações, ao autonomizar na prática o Banco Central, realizando assim uma velha demanda neoliberal e peessedebista , além de colocar em sua direção um verdadeiro banqueiro internacional puro sangue, Henrique Meirelles, ex-presidente do Bank Boston , muito bem combinado ao operador político da economia, o ministro petista Antônio Palocci, o redundante Malan de plantão. Assim o governo se apropriou sub-repticiamente da árdua herança econômica tucana. Apenas para lembrarmos exatamente do que estamos falando, na linha de contenção financeira e valorização dos juros — sempre denunciada nos primeiros anos pelo cordial vice-presidente, e superindustrial, José Alencar — em seu primeiríssimo momento o governo Lula simplesmente elevou o superávit primário do país dos 3,75% tucanos para 4,5%… ¹¹ Este golpe, como não poderia deixar de ser, atingiu profundamente as bases ideológicas e práticas da direita local, arduamente acordadas durante os anos 1990 exatamente para manter o pt , e Lula, longe do governo . Através dele, com um gesto de cordialidade que seria retribuído, Lula simplesmente roubou a verdadeira base social tucana , o que teve efeitos políticos durante anos, e até hoje, no desbaratamento de qualquer dimensão de oposição ao governo. Além de finalmente constelar as classes muito pobres em seu projeto político, o que já foi amplamente demonstrado por André Singer, ¹² Lula também cooptou amplamente os muitíssimo ricos , o que não costuma ser dito por ninguém, movimento sem o qual não se pode explicar o grande consenso que gradualmente se criou ao redor do seu nome ao longo de seus anos. Nas vésperas de sua segunda eleição, grandes banqueiros, como, por exemplo, Olavo Setúbal, deixavam claro nos jornais que para eles tanto fazia

a vitória de Lula, ou de seu rival tradicionalmente conservador de então, Geraldo Alckmin. E este foi simplesmente o momento histórico em que o projeto político e econômico peessedebista original deixou de ter razão de existir : “Havia uma grande dúvida se o pt era um partido de esquerda, e o governo Lula acabou sendo um governo extremamente conservador. Hoje em dia, é muito comum as pessoas falarem, inclusive o Lula, que ele encontrou o país quebrado e depois melhorou. Não é que o país estava quebrado. A visão era que o Lula iria levar o país para uma linha socialista. O sistema financeiro estava tensionado, mas, como ele [Lula] ficou conservador, agora está para ganhar novamente a eleição e o mercado está tranquilo. (…) Não tem diferença do ponto de vista do modelo econômico. Eu acho que a eleição do Lula ou do Alckmin é igual.” ¹³ Isenção frente às opções políticas que, de fato, creio que era uma inverdade. Preferia-se Lula. A grande direita econômica se realinhara, ¹⁴ ao longo dos anos lulistas, ao redor de um governo neopopulista de mercado , ¹⁵ que buscava realizar o seu pacto social , que não foi escrito como o de Moncloa , nem explicitado como a concertación pela democracia chilena, mas foi garantido pelo corpo carismático tão especial de Lula. O governo se configurava, de modo estranho mas eficaz, em uma imensa partilha, como um ser bifronte , ornitorrinco que evoluía, “pluripartidário na composição e conectado ao setor privado na formulação estratégica”. ¹⁶ Era verdadeiramente bom um governo a favor de tudo que de fato pacificasse e integrasse as imensas tensões sociais brasileiras tendo como fiador mágico o corpo transferencial de Lula, a radicalidade de seu carisma. E Lula, evidentemente, teve plena noção de seu papel neste processo: bem no final de seu período, no começo de dezembro de 2010, no início de seu último mês no poder, o presidente declarou de modo finalmente desrecalcado, lépido e autocelebratório, como sempre, a blogueiros interessados em política na internet: “Foi preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar capitalista”. ¹⁷ O terceiro elemento muito poderoso na construção do amplo pacto social lulista foi a tão ampla quanto propagandeada política de bolsas sociais, articulada a uma imensa expansão do crédito popular, que, se não realizou a cidadania plena dos pobres de nenhum modo, lhes deu a importante ilusão de pertença social pela via de algum baixo consumo, o que, dado o estado atual adiantado de regressão de mercado das coisas humanas, é o único critério suficiente de realização e felicidade. Muito se falou a respeito deste forte golpe econômico e de engenharia social do governo. ¹⁸ Ao todo, as bolsas sociais brasileiras, que vão de r $ 22 a, no máximo, r $ 200, dependendo dos vários critérios familiares em jogo, jamais ultrapassaram o custo total de 1% do pib . Podemos avaliar bem a natureza perversa da radical exclusão brasileira, mantida constante de modo hierático pelos governos de direita e de centro-direita anteriores, se compararmos o impacto gigantesco de tal transferência mínima com o gasto do governo com os juros da dívida pública, de apropriação privada e de concentração máxima; em 2009, por exemplo, o gasto com juros totalizou apenas 35,7% do orçamento da união… Naquele ano, no auge da diminuição

internacional dos juros, forçada pela crise mundial, o país pagou apenas 5,4% do pib em serviços de juros… ¹⁹ E em 2010, juros e rolagens da dívida consumiram r $ 635 bilhões, a módica parcela de 44,93% do orçamento total da união… ²⁰ Mesmo assim, 35% de brasileiros vivem em famílias que receberam o Bolsa Família, e as bolsas sociais são responsáveis pela redução de um terço da desigualdade, quando medida pelo Índice Gini… Neste sentido, o governo acertou em cheio em uma mágica econômica e social óbvia, uma evidência humana quase brechtiana, mas até então praticamente impensável no Brasil hiperconservador da centro-direita modernizadora; nas palavras de Sergei Soares, economista planejador do ipea , “na medida que um real adicional vale muito mais para um indivíduo à beira da fome do que para um indivíduo rico, a transferência de renda de ricos para pobres, via tributação e transferência, aumenta o bem-estar social total da sociedade”. ²¹ O que não impede que as coisas ainda possam ser vistas pelo seu lado verdadeiramente insólito: “Entre as 12,7 milhões de famílias beneficiárias do Bolsa Família, 7,4 milhões encontram-se na faixa de renda entre r $ 70 e r $ 140 mensais por pessoa da família [ ou seja, menos de 50 e menos de 100 dólares mensais por pessoa da família ]. Destas, 4,4 milhões (35% do total dos beneficiários) superaram a condição de extrema pobreza com o pagamento do benefício. Mas ainda restam 5,3 milhões de miseráveis no país”. ²² Talvez possamos intuir na passagem a radical manipulação do sentido do que se tornaram no Brasil os significantes pobreza, miséria , extrema pobreza , classe média , quando da sua transformação classificatória, para efeito de focalização das políticas públicas de esmola oficial, em classes c e d . Esta transmutação do sentido mais óbvio das palavras, operação política e socialmente interessadíssima, através da qual miséria se tornou pobreza , e pobreza se tornou classe média , no Brasil redemocratizado da maior concentração de renda do mundo econômico significativo, se deu na radical manipulação das categorias estabelecidas na era tecnoneoliberal peessedebista, e foi acolhida pelo pt e seu presidente com a maior satisfação, para o desmantelo final do próprio projeto político tucano por sua plena incorporação pelo partido mais orgânico, mais organizado e mais enraizado da ex-esquerda, capaz de tirar mais resultados sociais da perversa mágica ideológica, da troca da realidade por deslocamento de palavras, em jogo. E, também, de realização do próprio mercado e da produção local, em um novo ciclo de expansão via grande ampliação do crédito que incluía pela primeira vez os muito pobres, mercado que se aquecia, ficando feliz, bem feliz ²³ — como também foi bem feliz a própria cultura soft e popzinha , superficial e quase propagandística, essencialmente de entretenimento, cheia de cantoras malemolentes do período. Lula passou a ser um grande agenciador do desejo geral ao ensaiar um mínimo circulo virtuoso na economia, com uma social democracia mínima , fundada de fato sobre o pacto político bastante estranho que realizou. Assim, certa vez ouvi, no mesmo dia , de um barão banqueiro e da diarista que trabalha em casa a mesma frase singela: “Lula fez muito bem para o Brasil”…

De todo modo, pela desmobilização da velha tradição crítica, pelos interesses graúdos bem garantidos, com boas perspectivas de negócios e pelos pobres convencidos de que eram felizes podendo sentir o gosto de uma tv de plasma comprada em trinta meses, não havia por que existir, de modo algum, oposição política ao governo do então presidente, ex-pau de arara, ex-metalúrgico, ex-sindicalista, ex-socialista petista, novo mago do capitalismo periférico, ou semiperiférico. As forças políticas reais, as forças sociais concretas, entraram de acordo em seu nome . Sua aprovação bateu e manteve-se nos oitenta por cento, por meses e meses seguidos, de forma até então desconhecida em democracias, respondendo, de modo desigual mas combinado , a interesses concretos diversos, articulados em seu corpo, garantia que, considerando-se as clivagens ainda muito radicais do país, não deixa de ser uma verdadeira política do absurdo. Lula conseguiu, ao redor de seu talento pessoal para ceder e convencer, unificar o país em uma nova textura de experiência histórica ao redor da ideia real de mercado, ou seja, um mercado que possibilitasse acesso real às suas benesses. Irônica e estrategicamente, para o desespero dos chics entre si tupiniquins e paulistanos, Lula também continuou a sinalizar de maneira simbólica muito nítida abertamente aos pobres, com o seu antigo habitus de classe, em festas juninas, churrascos com futebol e isopores de cerveja na praia privativa da presidência, além do famoso “futebolês” como língua política e metáfora geral, e assim convencendo-os facilmente, oniricamente, pela identificação carismática — o seu corpo transferencial —, que eles não poderiam esperar nenhum ganho social para além dele, que ele, que era um deles — e aí estava a mágica, o segredo e o feitiço — representava o limite social absoluto dos interesses dos pobres no país . Todavia, em termos gramscianos mais clássicos, Lula comandou sobretudo um imenso avanço orgânico do consentimento , de tipo americano , das classes trabalhadoras à gestão de suas existências pelo capitalismo local, tal qual ele próprio se concebe. ²⁴ Este estilo singular do carisma foi cultivado com constância e cuidado, pois o presidente devia reconhecer a sua imensa importância pública e política. Embora simbólico, ele implicava claramente poder real. E foi muito divertido, no período, observarmos a irritação e incompreensão pequenoburguesa, de tendência peessedebista, em relação a essa estratégia poderosa do estilo e do habitus do presidente Lula, inconformismo com o qual ele, bem garantido em sua posição de predomínio, também zombou constantemente. Ele jamais abandonou esta prática corpórea e de linguagem, algo nacionalista, claramente populista, mas também algo modernista…

De fato, trabalhando com o grande dinheiro, sobretudo era necessário falar diretamente aos pobres. Assim, por exemplo, ainda ao final de seu governo ele teve o privilégio, de grande alcance na multiplicação de seu valor de símbolo pop para muitos brasileiros, muito mais do que os tucanos de todas as plumagens podem sequer imaginar, de ser o primeiro Presidente da República a participar oficialmente da festa de encerramento do Campeonato Brasileiro de Futebol… ²⁵ Podemos dizer que apenas ele e Emílio Garrastazu Médici foram presidentes do Brasil que sabiam o que é um impedimento … Um impedimento no jogo de bola, não um impeachment , evidentemente… André Singer, antigo porta-voz oficial de um presidente que simplesmente prescindia de qualquer tipo de porta-voz, sintetizou bem a integridade do projeto, quando escreveu: “Examinado em seu conjunto, as ações governamentais do primeiro mandato vão muito além da simples ‘ajuda’ aos pobres. Sem falar nos programas específicos, o aumento do salário mínimo, o aumento do crédito popular com aumento da formalização do trabalho (o desemprego caiu de 10,5% em dezembro de 2002 para 8,3% em dezembro de 2005) e a transferência de renda, aliados à contenção de preços, sobretudo da cesta básica (e em alguns casos deflação, como decorrência da desoneração fiscal), constituem uma plataforma a fim de traçar uma direção política para os anseios de certa fração de classe. Não apenas porque objetivamente foram capazes de aumentar a capacidade de consumo de milhões de pessoas de baixíssima renda, como atesta o acesso em grande escala à classe c , mas também porque sugerem um caminho a seguir: manutenção da estabilidade com expansão do mercado interno, sobretudo para os setores de baixa renda. Neste sentido, tais ações colocam Lula à frente de um projeto , que é compatível com aspectos de sua biografia.” ²⁶ De minha perspectiva, a leitura abertamente positiva sempre desmobiliza o índice fantástico da acumulação brasileira, que, desde a chegada de Lula ao poder, com todos os movimentos políticos e sociais que implicou, simplesmente parece ter deixado de existir. ²⁷ Pelo menos como significante , como nomeação política, um dos grandes atos pró-direita do governo Lula, se não o maior, foi elidir definitivamente, foracluir como dizem os psicanalistas lacanianos, o significado da concentração da renda brasileira. A ideologia tornou-se simplesmente radical: se a noção não existe em nenhum discurso ou lugar da política, e da consciência crítica, ela não deveria existir no real. Assim, no deslocamento significante e ideológico brasileiro, miséria virou pobreza , pobreza virou classe média , e riqueza , para qualquer efeito político, deixou de existir… Ao final do período histórico, em 2009 e 2010, ainda um dado fantástico, de grande potencial simbólico, entrou em cena: com a falência adiantada, a partir de 2008, do capitalismo financeiro americano e europeu, o Brasil, com o seu governo de esquerda a favor de tudo , se tornou um verdadeiro hype econômico e político global. Pela primeira vez na história deste país, dada a regressão e paralisação geral do sistema da economia internacional, o Brasil, sempre algo avançado e algo regredido nas coisas da civilização, tornou-se “inteiramente contemporâneo” do momento atual do capitalismo

global que, em grande dívida consigo mesmo, não representava mais medida externa para países periféricos como o nosso. ²⁸ Noutras palavras, o capitalismo geral deu um grande passo na direção de sua brasilianização . Deste modo tornou-se necessário que surgisse tanto um novo modelo conservador que desse conta da avançada ruína neoliberal central, quanto promovesse uma injeção de esperança econômica global para a crise mundial, e nada como um muito bem comportado mercado emergente como o brasileiro, satisfeito e integralmente convencido pelo sistema das mercadorias, para reanimar a ideologia mais ampla. A saúde financeira do país, sempre de altíssimo custo na forma de serviço da dívida pública, tornava-se estrategicamente vital, pedra angular de um horizonte possível de recuperação de uma crise global muito radical, que não se via desde 1929. Este também foi o momento da convocação econômica política maior por parte do presidente, que uniu a velha tradição econômica heterodoxa brasileira, de economistas keynesianos em busca de uma crise sistêmica, com o grito de guerra liberal mais próprio do tempo: o governo tanto gastou com satisfação, pois estava salvando o mundo, ao mesmo tempo em que o presidente foi à televisão dizer as palavras mágicas, verdadeiramente encantatórias , para o mais prazeroso sacrifício que o povo brasileiro já realizou: todos devíamos continuar consumindo, se possível carros… Tal movimento generalizado de consumo salvacionista se articulou perfeitamente à campanha de sua candidata à própria sucessão… Tudo isto Lula amarrou em seu amplo pacto, tramado em seu corpo retórico singular, que também tinha um grande potencial simbólico pop para a indústria cultural global, significante advindo do todo, pouco estudado pelos cientistas sociais. Ele virou o cara , antes mesmo de sabermos o destino das coisas, para um Obama em busca de alguma referência para o próprio descarrilamento econômico e social de seu mundo. Como todos sabemos, esta pequena afirmação do presidente dos Estados Unidos, significante mínimo e máximo simultaneamente, teve efeito enorme na acumulação do poder simbólico de um Lula que, desde que chegou ao governo, trabalhou constantemente para tornar-se símbolo , não mais local, mas agora universal . Enfim, liquidando a oposição, mantendo as práticas políticas fisiológicas tradicionais brasileiras, roubando a base social real da direita, promovendo a inserção social de massas pela via estrita do consumo, exercitando seu carisma identificatório e pop com os pobres e com a indústria cultural global e servindo como modelo para o momento avançado da crise do capitalismo central, Lula simplesmente rapou a mesa da política nacional. A eleição relativamente tranquila da até então neófita Dilma Rousseff, sua candidata ad hoc , tirada do bolso do colete, mesmo que tenha encontrado dificuldades em seu percurso, e afinal seria simplesmente absurdo que não encontrasse, é a confirmação maior deste fato. Além, é claro, de sua proverbial estrela : no mesmo período o país descobriu petróleo e foi brindado, não por acaso, pelo mercado do fetichismo universal da mercadoria com uma Copa do Mundo e uma Olimpíada.

Certamente deve haver algum método, se não muito, em tal ordem fantástica das coisas. E aqui começamos a perceber a tautologia do reconhecimento infinito, de fato a vida prolongada da propaganda, que toda mercadoria de ponta sempre tem. Sua estrela , seu corpo carismático e sua habilidade pragmática, macunaímica para alguns, brascubiana para outros, certamente midiática e pós-ética , realizaram, com poucos mortos e feridos — aparentemente sacrificou-se apenas a perspectiva crítica da esquerda, que é a minha — um verdadeiro pacto social a favor, que, enquanto o pt de fato existiu, a direita jamais conseguiu realizar neste país. * * * A interessante e poderosa questão do carisma como instrumento de governo de Lula merece algumas palavras a mais. Evidentemente é um grande mistério político e humano o que faz com que uma pessoa seja alvo do desejo e da confiança de muitas outras, de tantas outras quanto o possível. A singularidade do encontro de forma da personalidade — e algo ainda mais profundo do que esta antiga noção, a intraduzível concepção dos psicanalistas ingleses de self , o princípio poético ordenador do si mesmo —, e o desejo de outro, que lhe delega a posição e a investidura de líder, é um mistério que tentou ser equacionado pela filosofia política clássica, pela retórica helenística, como modo de conceber os efeitos de linguagem operadores deste poder, pelo maquiavelismo renascentista, como retórica material imanente às práticas de governo, pela sociologia moderna, pela psicanálise, pela teoria social crítica… Max Weber, que chamou a atenção para o tópico do carisma como uma das estruturas de dominação clássicas, definiu o seu caráter de excepcionalidade: “o atendimento de todas as necessidades que vão além da rotina diária”. ²⁹ Por excelência, ao contrário da estabilidade cotidiana patriarcal e da normatividade racionalizada da burocracia moderna, o carisma é a qualidade própria da exceção . Ele diz respeito ao líder ungido especialmente para a realização da missão , eleito pelo próprio destino, em um processo cujo fundo último resta essencialmente mítico, em última instância de origem transcendente, divina. Trata-se do pacto da personalidade singular com o dado desejado além do humano , o desejo de divindade no próprio poder encarnado e prático. Sua base política fundamental é a convocação e o convencimento da comunidade de que ele é o escolhido , e não algum outro, para a realização da missão, e, segundo Weber, seu poder se confirma apenas em sua realização. Ou, em termos mais contemporâneos, ele é o cara … Em termos psicanalíticos genéricos, obviamente, é o velho poder mágico paterno diante da criança ainda dependente, e inconsciente dos planos de realidade envolvidos na maturidade humana, que é reativado na honra particular e na mágica convocatória que demanda a grande submissão amorosa do carisma, em um processo desejante intenso, massivamente transferencial, com aquelas bases inconscientes, e tudo o mais de luta de vida, identificação e morte, que o jogo edípico implica. E, em alguma medida, para alguns pensadores, este movimento de legitimação desejante,

subjetivo, da convocação carismática, seria mesmo a base de toda vida política quando representada por pessoas: “Segundo o nosso código moderno de significação privada, as relações entre experiência impessoal e íntima não possuem clareza. Vemos a sociedade mesma como ‘significativa’ somente quando a convertemos num grande sistema psíquico. Podemos compreender que o trabalho de um político é o de elaborar ou executar a legislação, mas esse trabalho não nos interessa, até que percebamos o papel da personalidade na luta política. Um líder político que busca o poder obtém ‘credibilidade’ ou ‘legitimidade’ pelo tipo de homem que é, não pelas ações ou programas que defende. A obsessão para com pessoas, em detrimento de relações sociais mais impessoais, é como um filtro que encobre o entendimento racional da sociedade.” ³⁰ Historicamente estivemos diante do poder intransferível da transferência carismática muito poucas vezes na experiência política brasileira. Nossa tradição é muito mais fortemente autoritária e patriarcal — onde o poder é franqueado ao gesto de força legítimo do proprietário, e não ao convencimento ou à sedução natural — ou autoritária tecnocrática, positivista conservadora, e, diante desta história, o caso Lula é sem dúvida particularmente radical. Antes de Lula, o senso comum histórico indica apenas Getúlio Vargas, como líder revolucionário em 1930 e popular populista em 1951, que parece ter operado o poder também pela via abertamente carismática. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, tinha imenso impacto de personalidade apenas sobre o seu próprio grupo social, bem paulistano, que envolvia dois ou três departamentos de universidade e três ou quatro bairros ricos da cidade… e ainda assim, pela forte presença política de Lula e do pt , sem consenso… De fato o seu imenso amor por si mesmo, bem conhecido e expresso na forma da vaidade, jamais totalizou o amor e a confiança dos brasileiros a seu respeito, brasileiros a quem mais de uma vez o presidente tucano, por sua vez, se referiu como “caipiras”… Podemos circunscrever as várias fases e faces do carisma do político Lula, todas, como necessariamente devem ser, muito bem conhecidas de todos nós. ³¹ Sua transformação histórica evidente, sua particularidade qualitativa em mutação, implica não apenas adaptação superficial a forças sociais e poderes reais, mas guarda vínculos mais profundos com o próprio andamento da política sobre a ordem capitalista mais geral, além de configurar imagem, um instantâneo, do estado atual da ordem capitalista em um país como o Brasil. Em primeiro lugar, creio que caberia o exemplo de sua forma original, de seu imenso impacto na vida cultural e intelectual do país, quando da expansão pública do personagem, da liderança de classe que representou todos os anseios reprimidos de voz e confronto com a ditadura militar , em 1977 e 1978, ao político popular, ainda muito jovem, já alçado à posição de liderança nacional das esquerdas, em 1980. Uma pequena rememoração do valor carismático e de política democrática daquele tempo, do ponto de vista intelectual de esquerda: “Sobretudo na fase inicial, havia um laço entre os intelectuais, os sindicalistas e as lideranças de movimentos populares, que era

impressionante. Eu tenho o caderno das primeiras grandes reuniões, dos cursos que foram organizados, em que eu anotava até a respiração de cada um. Com aqueles operários e aquelas lideranças eu aprendi a pensar, a ver a política a partir deles, e eles diziam o mesmo de nós.” ³² Esta poderosa imantação democrática que reunia trabalhadores de ponta da indústria nacional, intelectuais universitários de esquerda e lideranças de movimentos populares, com o apoio da ala esquerda da Igreja Católica, ligada aos movimentos populares, era um projeto de crítica ao presente político arcaico do último momento histórico da grande ditadura de 1964 — exatamente o movimento conservador radical que rompeu de modo mais ou menos definitivo este tipo de pacto político interclasses em sua origem nos anos 1960 ³³ — e uma tentativa de configuração de uma prática possível de socialismo democrático brasileira. Simultaneamente, toda esta energia social, concentrada e em busca de ação real na forma de um partido político, convergia para o subterrâneo mas constante investimento de desejo na figura mediadora do líder, desde sempre transformado consensualmente em grande líder . Os operários sindicalistas com quem a importante intelectual de esquerda aprendia a pensar , e também ensinava, e de quem ela “anotava até a respiração”, em uma impressionante imagem do respeito e também da operação silenciosa profunda de algo que já pode ser pensado como operação carismática, estavam plenamente integrados na imagem de sua liderança humana maior: de fato, Lula condensava e deslocava grande parte da energia social do amplo movimento para a composição de si como figura e força política, o que era tanto um desejo pessoal quanto coletivo, para o sonho de sua liderança universal no Brasil, em nome daqueles valores e daquelas práticas democráticas e progressistas, ainda de sinal socialista. Lula não representava , como todos sempre o soubemos, a liderança da facção operária e sindical do novo, amplo e de esquerda Partido dos Trabalhadores; ele, desde o início e sempre, foi a liderança esperançosa de todos nós , com alguns traços messiânicos, embora muito esmaecidos, da tradição imaginária dos revolucionários de esquerda. Desde o início, o desejo inconsciente que o colocava naquela posição já aspirava e sonhava que ele se tornasse o líder de todos os brasileiros , na renovada tradição política de esquerda, e não apenas um tradicional operador de interesses de uma facção de classe, como classicamente costumam ser os demagogos brasileiros. As elites envolvidas em tal processo também contavam, mesmo que inconscientemente, com a mobilização do poder carismático de Lula como modo eficaz de atingir o poder. Lula lá . Seu primeiro imaginário carismático, objeto da transferência do grupo político heterogêneo e socialmente significativo que o sustentava, foi o do bom selvagem civilizado e civilizador, antiburguês garantido por estrutura de classe, que portava o conhecimento prático, social e econômico perdido para a esquerda teórica encastelada na Universidade, o trabalhador popular com integridade para demandar justiça, e cuja demanda em si mesma já era o próprio ato de justiça, o do revolucionário político hábil e superior do imaginário universal da esquerda — de Blanqui, Lenin, Che, Fidel — com seus ecos messiânicos de longuíssima duração que alcançavam o fundador

do espírito de todos eles, Jesus Cristo. Lula era o trabalhador urbano articulado e portador da verdade, que havia sido calado por Paulo Martins e pelo golpe militar em uma famosa cena de Terra em transe , de Glauber Rocha, e que desrecalcava finalmente a própria voz histórica. Mas, apesar do intenso discurso antielitista e de convocação populista das massas pobres em abstrato, Lula sempre se colocou no espaço público de modo relativamente soft , agregador, mediador, cordial, de modo a merecer pessoalmente, no próprio trato quase individual com cada um, o imenso desejo político coletivo a ele delegado e nele condensado. Apesar da política radical de diferenciação do Partido dos Trabalhadores das práticas conservadoras e patrimonialistas próprias da tradição política muito imperfeita brasileira, Lula sempre circulou, com grande desenvoltura, em uma ampla gama de relações e ligações pessoais, em uma política do próprio cacife muito mais inclusiva do que a de seu partido. Lula foi, durante muito tempo, o herói das classes médias críticas que tinham resistência ao processo de negociação franco e cínico de uma outra fração de sua própria classe com os poderes emergentes e continuados advindos da ditadura militar brasileira. Ele e seu partido representavam um teatro relativamente bem comportado de luta de classes e uma alternativa, em construção, entre crítica, modernizadora e moralizante, ao pacto continuado e interessado de conciliação com as forças arcaicas e conservadoras brasileiras, que grande parte dos partidos antiditadura, agora transformados em novos centros conservadores no processo de redemocratização brasileiro, realizou. Por isso, quando o psdb — partido de elite financista e universitária, em geral paulistana, mas também mineira, egresso do pmdb degradado pela imensa conciliação da Nova República, sem nenhum enraizamento no Estado ou em movimentos sociais concretos — tentou um passo político que parecia ser a única salvação para a possibilidade do partido chegar ao poder de fato, com o plebiscito do parlamentarismo em 1991, todos os petistas do amplo arco de classes originário do partido de esquerda, sem exceção, fomos taxativos sobre a necessidade de manutenção do arcaico e desequilibrado presidencialismo brasileiro: para além dos argumentos políticos do presidencialismo como força integradora nacional, todos visávamos a eleição triunfante e certa de Lula em 1993, nosso líder transformador que a história, e o impeachment de Collor, em parte movido pelo pt nas ruas, havia redimido e escolhido. Votávamos no presidencialismo mais por Lula, por um governo sob a sua liderança, do que pelo país. O político, e sua ampla gama de apoio político renovador, das classes médias em busca de racionalidade e reparação social para o horror autoritário e desigual brasileiro, foram derrotados por três vezes através de manobras muito eficazes da poderosa direita brasileira: pelo pacto arcaico e midiático total das forças conservadoras que elegeu Collor em 1989, ³⁴ e pelo pacto econômico tecnocrático das forças conservadoras que elegeu Fernando Henrique Cardoso em 1993 e 1997. Apenas em 2002, em sua quarta tentativa de se eleger, após o grande desgaste de todas as forças tradicionais em manter o país funcionando com seu tradicional desequilíbrio social, e após um grande desbaste ideológico de seu próprio partido, com a

aceitação pelo núcleo partidário da regra do jogo do capitalismo globalizado e financeirizado, Lula finalmente chegou ao governo. Neste momento sua operação simbólica carismática, talvez como necessariamente devesse ocorrer, mudou de orientação, alterando sua composição de classes , como André Singer explicou bem. Como já dissemos, Lula pareceu governar simultaneamente para os muito ricos e para os muito pobres . A sua classe média de sustentação original, modernizante e radical para a ordem de acomodações e as estratégias de conciliação brasileira com o pior, foi suavemente deixada de lado. E o grupo organizado e orgânico de sindicalistas, que o sustentavam como aparelho de enraizamento e tutela social eficaz junto às bases populares, foi muito bem premiado com uma imensa máquina de ascensão social, com a ocupação de cargos de Estado. Max Weber insiste no elemento antigo do carisma puro, no qual “em sua subestrutura econômica, como em tudo o mais, o domínio carismático é o oposto mesmo do domínio burocrático”. ³⁵ De fato, o lance significativo, o golpe de espírito e a delícia do carisma, como diziam os antigos franceses, ou o seu gozo , como dizem os mais modernos, está no ponto mesmo em que o gesto do líder parece escapar, em grande parte, em uma prestidigitação pessoal e coletiva simultânea, a toda mediação de norma pública e racional. Lula concentrou este tipo de idioma carismático na lógica identificatória do habitus de classe com os pobres, e no simplório teatro imaginário e ilusório, esquizoparanoide, o seu teatrinho de fantoches de luta de classes, que não enganava ninguém, da luta entre o seu povo brasileiro e as elites deste país . ³⁶ Mas seu sistema de poder pessoal, articulado com o teatro de sua linguagem e corpo, foi bem mais longe do que esta face, ou esfera, de seu carisma. Penso que, para efeito e operação política interna, o seu carisma se desdobrou em três esferas diferentes, operando modos diferentes em cada um destes espaços e para cada um destes públicos políticos. Agora sua política não era bifronte , pluripartidária na composição e conectada ao setor privado na formulação estratégica, como indicou bem Luiz Otávio Cavalcanti, ela era de três faces , os três círculos principais de seu carisma. Se Weber insiste na antinomia do carisma com as formas de dominação patriarcal e burocrática, a situação histórica brasileira e lulista parece simplesmente desdenhar da teoria clássica. Porque, como todos vimos, Lula se articulou e se tornou liderança carismática para as classes ditas c e d do país, ou seja, os muitíssimo pobres; mas também para os senhores da política nacional, patrimonialista, clientelista e ainda em grande parte de controle patriarcal de rincões ainda não inteiramente modernizados do país; e, ainda, compôs com a sua própria burocracia, o seu próprio estrato técnico político superior, que convocou e protegeu no poder. Para os pobres, Lula era uma espécie de igual , deslocado na direção do poder social. Seu corpo simbólico deveria ser contínuo ao deles, ele representava os seus interesses no governo, e em algum momento ele chegou a dar sinais disto com a metáfora do pai, muito arcaica, de ecos getulistas muito remotos. Para a política fisiológica e de apropriação patrimonialista brasileira e suas estruturas históricas de enraizamento no Estado, Lula também foi um igual , um líder e uma garantia plena de liberdade e impunidade pragmática, o que permitiu a entrada do seu grupo

particular de classe para o clube do clientelismo brasileiro, os antigos proletários sindicalistas, agora novos gerentes da máquina pública, em um processo feliz e franco de aburguesamento. ³⁷ E, para uma elite técnica modernizante e de interesse social mais amplo no desenvolvimento do país, ele foi o líder político que garantiu as condições de trabalho em grandes e generosos gestos de delegação. Foi o célebre “nosso guia”, nas palavras de Celso Amorim, bem destacadas por Elio Gaspari, ou “o grande líder”, nas palavras de Dilma Rousseff. ³⁸ A nova ordem política de Lula e do pt no poder, muito diferente das coisas de sua origem, ecoava as velhas palavras de trinta anos antes, mas agora girando em falso, com conteúdos completamente diferentes, do grande líder original que muitos inventamos e investimos para a sua chegada ao poder. As três frentes políticas de seu modo de governar se converteram em três fontes heterogêneas de carisma: 1. o líder popular benevolente; 2. o recémchegado patriarca dos patriarcas da tradição política brasileira, benevolente em um nível político perigoso, e 3. o generoso e relativamente pouco exigente chefe de equipe burocrática modernizadora das bases do capitalismo local. O ornitorrinco carismático parece ser mesmo único. Cada um destes círculos de poder realimentou e insuflou o outro em sua própria fé no líder que a todos articula em seu corpo linguageiro único. Mas tais antinomias não são, de nenhum modo, de resto zero, ao final das contas. Assim: “Lula poderia ter terminado seu governo em melhor companhia. O fato de [ após a posse de Dilma Rousseff ] Sarney tê-lo acompanhado no avião de Brasília até em casa foi de um oportunismo patético, mas também algo muito simbólico. Tão patético e simbólico quanto Lula, já ‘ex’, num palanque em S. Bernardo ao lado de Sarney, praguejando pela enésima vez contra ‘as elites deste país’. O velho remanescente da ditadura que deu posse a Dilma no Congresso era prestigiado horas mais tarde no abc por Lula, o maior líder popular da história. Este é o Brasil.” ³⁹ A sensibilidade crítica ainda racional e integrada do jornalista parece localizar um último momento de transe — em uma cena ainda típica do famoso filme — no espaço simbólico Brasil, agora o momento limite mesmo do período lulo-petista, em uma daquelas imagens síntese da história e quase oníricas, que condensam em si o irreconciliável, ou melhor, a má conciliação. Apenas uma ordem profundamente irracional, operando praticamente por não integrações ativas, verdadeiras dissociações da realidade que submetem o outro à instabilidade e ao absurdo, pode funcionar no modo deste verdadeiro ato perverso da ideologia . Cada um destes círculos de política e carisma do mundo de Lula teve o seu próprio peso e sua própria massa. A imensa base de apoio popular liberou a operação mais leve e técnica do pequeno mas ativo círculo burocrático político — até mesmo para políticas estranhas, como o incondicional apoio ao Irã dado pelo Brasil —, enquanto o pesado e envenenado meio de campo político institucional, em que o líder histórico das esquerdas modernizadas operou como um mero político qualquer de extração tradicional brasileira, foi o ponto de ancoragem e de risco de todo o processo.

A duplicidade contraditória destas várias faces é também operação de manipulação e redução de uma parte do público político, dos cidadãos, à verdadeira regressão de um ego não totalmente integrado. * * * Dos muitos modos que podemos conceber as coisas da vida, depois de um muito longo descompasso econômico e simbólico, que ainda remetia a experiência brasileira à nossa origem descentrada mas bem articulada com a modernidade ocidental mais geral, podemos dizer que nos últimos vinte anos o Brasil entrou, ao que tudo indica, de modo mais ou menos definitivo, para o momento presente do processo de globalização capitalista da economia e da cultura . Não que em algum momento não tivéssemos feito parte do presente da modernidade capitalista , do grande sistema político econômico histórico do mercado, que também desde suas origens mais remotas sempre se expressou como mercado mundial , ⁴⁰ incluindo-nos aí de modo forte, como sabemos, no princípio, exatamente como parte do mercado e de nenhum modo como nação autônoma. Muito pelo contrário, sempre estivemos presentes no momento atual do capitalismo . Apenas, como é sabido, fazíamos parte do processo de emergência e desenvolvimento da modernidade desde um outro lugar, uma outra posição que não o próprio presente significante da modernidade central, por exemplo, no caso brasileiro, o lugar de pelo menos trezentos anos de escravidão global, e não, seguindo o mesmo parâmetro, o de cidadania e de contratos com sua solução de compromisso instável entre as classes sociais, própria ao centro histórico do processo. ⁴¹ Por incrível que possa parecer, segundo alguns parâmetros sociais e econômicos bem fortes, para alguns historiadores esta última dimensão das coisas modernas só se estabeleceu de fato como forma social forte no Brasil depois de 1930. ⁴² A emergência de um mercado industrial de consumo interno de massas é algo que se dá entre nós apenas a partir dos anos 1950 e 1960… ⁴³ É historicamente muito recente, enfim, em um processo que se dá mais fortemente a partir dos dados modernizantes e do estabelecimento da indústria cultural global local entre nós, pela via da televisão aberta ao instantâneo do satélite, e sua cultura rapidamente modernizada, a partir dos anos 1970, a experiência significante da plena integração e da atualização do país no exato momento do presente do sistema da mercadoria global, e sua fantasmagoria própria, o seu sonho ideológico, a nossa participação imaginária, ou real, no centro da experiência histórica contemporânea , em uma consciência muito próxima ao seu próprio significante. Na história deste amplo movimento, no percurso histórico mais recente rumo à meta da atualização modernizante do país, mais uma das nossas tão tradicionais atualizações periódicas, não foi o internacionalismo abstrato e técnico do governo Fernando Henrique Cardoso que significou o passo definitivo. Seu governo — travado pelo elitismo de muito pouco interesse pela inserção de massas locais — não conseguiu integrar o próprio espaço social nacional em seu próprio movimento ideológico, bastante particular, rumo ao global. Foi, na prática, a produção simultaneamente popular e

cosmopolita do governo Lula, em seu gesto de ator para dentro e para fora , com seu amplíssimo e bem realizado pacto social a favor, que também incluía o polo de medida externa das coisas brasileiras tanto quanto a inserção das massas locais na mais ampla cultura geral de gozo e de consumo do presente , criando novas soluções de compromisso ideológicas para a economia e para a subjetivação, que o Brasil foi reconhecido universalmente, pelo Outro e por si mesmo, como verdadeiro global player . E este movimento ideológico não é de pouca monta, trata-se da transmutação profunda de um estatuto simbólico de longa duração. ⁴⁴ Pela primeira vez, o espelho invertido do capitalismo universal posicionou o Brasil no centro das suas coisas, não em termos de desenvolvimento social e humano, noções profundamente abaladas por todo o circuito da vida capitalista contemporânea, também praticamente irrelevantes, dado o adiantado da hora das violências naturalizadas e catástrofes de toda ordem no capitalismo plenamente universalizado, mas como fronteira econômica fundamental para uma nova rodada de crescimento geral, dada a verdadeiramente radical bancarrota central. Evidentemente a alteração deste significante político, o Brasil deixava de ser sub , ou emergente , tornando-se mercado central vital , a partir da verdadeira regressão catastrófica do próprio mundo central, alterava o estatuto tradicional de toda a vida simbólica local. Países podem passar por estes ciclos de mutação rápida de seu estatuto no mundo da geopolítica econômica e simbólica global: apenas no último meio século podemos lembrar a ascensão meteórica dos Estados Unidos à posição de superpotência quase imperial a partir do pós-guerra, a derrocada e a reorganização menor da União Soviética e da Rússia, o estouro industrial do Japão nos anos 1970 e 1980, e sua paralização nos anos 1990, a decolada brutal da China a partir dos anos 2000, a gradual estabilidade e lenta decadência europeia, apesar do mercado comum, por muitos considerado impensável até o seu advento… O Brasil também poderia encontrar o seu momento histórico de emergir na cena significante do presente universal . Nos últimos anos do governo Lula todos observamos uma saraivada contínua, uma nova munição ideológica midiática, de notícias e de discursos internacionais sobre o país, sobre o governo e sobre o presidente — por exemplo, mais de uma vez no semanário americano Newsweek , mas também no New York Times ; no New York Times mas também, mais de uma vez, na vanguarda neoliberal radical de The Economist ; na Economist mas também no Financial Times ; no Financial Times mas também no El País ; no El País mas também no Le Monde … — em que nossa história econômica e social recente ocupava sempre um lugar de destaque, quando não muitas e muitas capas plenamente a favor. Talvez o auge de tal movimento, do redesenho do país pela indústria cultural econômica e política global, tenha sido a famosa capa, que por sua vez virou notícia no Brasil e no mundo, da Economist de novembro de 2009, “Brazil Takes Off”, “o Brasil decola”, com o famigerado Cristo Redentor decolando rumo aos céus como um foguete, em uma espécie de imagem neotropicalista, agora de visada surpreendentemente invertida, internacional brega, muito apropriada ao jogo de popular e avançado do lulismo para fora, do lulismo pop .

Ainda nos últimos dias do governo, tal constelação simbólica de política midiática pop, em um trabalho contínuo de mais de dois anos consecutivos, chegava a sua configuração máxima: “Os ‘60 minutes’, da cbs , dedicou no domingo longa reportagem ao Brasil, ‘a próxima superpotência econômica do mundo?’ Quase sem restrições o repórter Steve Kroft se concentra no Rio e vai a Brasília para entrevistar Lula. Antes de começar, relata décadas de problemas econômicos, terminando ‘no maior pacote de resgate da história do fmi ’ [ a grande bancarrota tucana da sobrevalorização do câmbio de 1998 ]: ‘E então este homem entrou no gabinete presidencial. Conhecido como Lula, é um exmetalúrgico com educação até a quarta série e doutorado em carisma. Está para deixar o cargo com aprovação de 77% e muito crédito pela transformação do país.’ O programa ecoou pela cobertura financeira, com o ‘Business Insider’ dizendo que ‘explicou por que os investidores estão loucos pelo Brasil’, mas chega ‘um pouco tarde para o público americano’. A ‘Forbes’ afirmou que, na verdade, ‘muitos americanos já estão atentos ao Brasil há algum tempo’ — e que a questão agora é se está ficando quente demais.” ⁴⁵ Tal amplo investimento midiático, evidentemente sempre interessado, posicionava o Brasil como verdadeiro espaço de circulação universal, como consumidor e como produtor, do mercado comum, e da cultura comum, internacionalizada do presente. ⁴⁶ Estas matérias saldavam a adesão econômica plena do país aos critérios globais da economia e do padrão de democracia contemporâneo, o efeito Lula de pacificação social e de crescimento econômico, e criavam também, por sua vez, a nova superficial e edificante simbólica do mais jovem país pop no mundo, com seu presidente que tocava algo do fetichismo universal, o novo “lulinha paz e amor” global. Este velho espaço ideológico da vida simbólica internacional , meio desejado, meio manipulado, a meio caminho perpétuo de se tornar finalmente real para nós, com a nossa proverbial distância destas coisas, funcionava, agora, não apenas para a velha e tradicional distinção de modernosos ou da elite privilegiada, em sua consciência feliz de playboy da cultura, ou consciência autoritária de magnata do dinheiro — de Oswald de Andrade a “Odete Roitman” ⁴⁷ — mas também, pela primeira vez, como uma cultura “universalizada” para o próprio e mais amplo consumo interno, para a integração de todas as classes no baixo prazer de pertencimento ao momento contemporâneo da mercadoria universal. A imagem final de fim do governo dos aeroportos brasileiros meio transformados em rodoviárias, para o desespero bem radical da parcela mais autoritária e retrógrada da classe média e dos endinheirados, é mais uma imagem interna clara de tal novo internacionalismo de massas brasileiro. O fato é que, tendo feito os ajustes macroeconômicos demandados pelo centro do processo capitalista — pela regulação dos anos 1990 da realidade geopolítica global do já hoje esquecido Consenso de Washington —, e neste mesmo movimento tendo aberto seu mercado interno ao investimento financeirizado internacional, tendendo a um movimento rápido rumo à financeirização da própria economia, o Brasil atravessou quatro governos democraticamente eleitos, dois de fhc e dois de Lula, ou seja, dezesseis

anos, mantendo as bases deste exato pacto econômico global de gestão da economia local, com seus imensos ganhos centrais na forma dos juros e da entrada e saída livres de capitais especulativos. Como já foi dito, esta façanha significou, no mínimo, na prosaica política interna nacional, a extinção da vocação de esquerda do Partido dos Trabalhadores, o que também sempre foi liminarmente comemorado no grande movimento celebratório dos mercados, do dinheiro e da cultura, em todas as matérias tão interessadas no país. Podemos dizer que a democracia brasileira contemporânea, dos últimos vinte anos, simplesmente entrou em fase ideológica e real com a lógica global da administração e exploração dos espaços nacionais, além de assumir para si definitivamente a total responsabilidade pelo brutal e secular déficit social, desresponsabilizando em qualquer dimensão a acumulação perversa de parcelas significativas da renda nacional. Além disto (aliás, o governo Lula completou exemplarmente esta tarefa) as massas de pobres — conhecidos agora como classes c e d , exatamente o conceito com que opera o mercado quando quer direcionar a sua propaganda — deste espaço nacional particular foram simplesmente lançadas na luta pela vida no pleno e plenamente fetichista mercado internacional das mercadorias, e desde a abertura dos portos, estabanada mas contínua, de Collor e fhc , o Brasil atualizou constantemente a sua consciência desejante para o último gadget do mercado tecnológico global, carro, celular ou tablet , qualquer objeto que seja do desejo universal. Além deste movimento fundamentalmente estrutural, que oferecia à consciência da economia política global um novo mercado aberto, ajustado macroeconomicamente a favor do capitalismo financeiro contemporâneo e uma nova democracia de massas eficaz, cujas oscilações e variações no poder não questionavam mais a total hegemonia da forma capitalista global do presente por estas bandas, aceitando o seu pleno lugar nela, e determinado por ela, apesar e também por causa de toda a nossa curiosa nova independência diplomática, o Brasil ganhou no mesmo período dois grandes trunfos econômicos no tabuleiro da economia política, e da economia cultural , global: com a entrada dos grandes mercados orientais no consumo global titânico de commodities , a velha tradição de produção de mercadorias de pouco valor agregado e tecnológico brasileira virou a balança a favor do país, e ferro, aço, laranja, carne e soja, entre outros — fala-se em doze commodities de mercado global fundamentais — jamais foram tão valorizados. De 2003 a 2010, o preço do minério de ferro no mercado internacional, do qual o Brasil é o segundo maior produtor, subiu mais de quinhentos por cento, o da carne dobrou, o café e a laranja triplicaram… Apenas no último ano do governo Lula o minério de ferro teve alta de 80%… ⁴⁸ O atraso científico que nunca permitiu a produção de bens de alto valor tecnológico por estas bandas jogava, no novo contexto histórico, a favor do país, que ganhava agora mais do que nunca com a velha produção primária. Evidentemente, como reza a tradição, a entrada desta grande riqueza de trocas globais não se expressou em desenvolvimento social significativo das próprias comunidades produtoras ou detentoras geográficas destas mercadorias primárias globais. O Maranhão, por exemplo, por onde passa e escoa pelo porto de São Luís o minério de ferro do Brasil, continua sendo um estado simplesmente miserável: tais novos

valores eram imediatamente contabilizados nos balanços e nos jogos abstratos, financeiros, do capitalismo contemporâneo, passando a ser cacife para as novas apostas globais de suas corporações oligopolizadas. Outro dado fundamental, realmente muito importante, e talvez o principal, para uma avaliação positiva do país pelo olhar de grande irmão da cultura midiática internacional, de nosso risco e nosso lugar no mundo , foi a final entrada em cena das reservas de petróleo brasileiras, no auge de uma grande crise internacional de energia, crise que simplesmente já chegara a mobilizar uma nova guerra imperial. Para qualquer estudioso da simbólica da cultura capitalista contemporânea e seus efeitos em uma velha realidade nacional, como a nossa, pode-se facilmente verificar como foi no exato momento em que o Brasil anunciou a negociação futura dos grandes campos de petróleo do seu pré-sal — que devem triplicar ou quintuplicar a produção de petróleo do país, permitindo a entrada do Brasil na opep ⁴⁹ — três anos antes do término do governo Lula, que a imagem global positiva do país, e sua inserção como membro efetivo dos valores e das benesses do capitalismo de hoje, se universalizou . O Brasil simplesmente passou a ter acesso , na esperança garantida do Brasil dar acesso . De fato, o capitalismo mais geral encontrava nova válvula de escape para prosseguir crescendo por mais alguns anos, agora, certamente, via Brasil. No momento em que a democracia periférica ajustada ao mercado global, sem discutir de nenhum modo o custo humano do movimento, anunciou o seu futuro de negócios e enriquecimento, como detentor estratégico de petróleo — talvez na última fase histórica da atual matriz energética — o Brasil explodiu no circuito da propaganda global como um hype , uma verdadeira moda, certamente econômica, mas também simbólica , do presente esgarçado das coisas capitalistas. Este foi um dos poderosos movimentos de conquista de pontos simbólicos, de acumulação de ativos políticos de imagem , muito próprio do governo Lula. Acredito que o resultado interno de tais grandes movimentos, bem capitalizados pelo governo de plantão, foi a equalização do espaço cultural local com a consciência das coisas do mercado e do poder global. Noutras palavras, as práticas sociais do todo de nossa vida local se integraram no espírito próprio do mercado global e do capitalismo contemporâneo. O sistema mais geral das práticas subjetivantes de mercado e da vida onírica e encantada, espetacular, da mercadoria, passou a totalizar e integrar algo que pode se aproximar da totalidade da vida simbólica local, em seu momento presente, de um modo talvez inédito, se considerarmos a inserção de praticamente toda a sociedade brasileira, como sujeito no processo. O mercado interno, a cultura e o grande mercado global, de coisas e de cultura industriais, passaram a funcionar em uma mesma e unificada fase, garantindo o pleno acesso subjetivante da sociedade brasileira, integrada nesta prática, mesmo que apenas de modo desejante, no grande consumo. Este foi também um dos movimentos ciclópicos sociais espetaculares, modernizantes ao seu modo, que acabaram por levar à quase hegemonia lulista na ainda arcaica e particularista, e quase provinciana, política local: o

Brasil tornava-se agente do presente ideológico da história do capitalismo, emergente que de fato emergia no centro do processo histórico, para a surpresa de todos que sempre fomos, e que em grande medida continuamos sendo, de fato, periféricos. O que quero dizer é que, a partir deste momento histórico, que é uma época, Caio Prado Jr. simplesmente não poderia mais definir o Brasil em apenas uma palavra: um país muito atrasado … * * * A cultura do governo Lula foi a da universalização do consumo, com a criação profunda de seu novo sujeito pós-moderno, sujeito do consumo, ⁵⁰ de agentes econômicos liberados para o vínculo com a mercadoria em seu primeiro nível de acesso, e não com a cidadania plena, e não abstrata, ou com o conhecimento livre ou crítico. Uma dimensão da subjetivação passou a ser a da transmissão direta do eu ao sonho e ao desejo do mercado. Enquanto os pobres, as classes c e d , tinham acesso à carne, e não mais ao velho frango do plano real, à televisão de modelo novo para terem uma boa imagem da quinquilharia tradicional da indústria cultural que devem desejar e ao primeiro computador, com a explosão de informação e mobilidade no espaço hiperespetacular e extremamente superficial da internet, a classe b explodia de comprar grandes carros e jipes suv s, emulando a mania grosseira, narcísica e bélica norte-americana, exatamente no momento histórico em que os próprios americanos não podiam mais sustentar os seus maus hábitos. Enquanto os verdadeiramente ricos, com suas Daslus, Tânias Bulhões, ⁵¹ Oscar Freires, Shoppings Iguatemi, Trancosos, helicópteros e apartamentos de 3 milhões de dólares, tiveram a cultura do consumo conspícuo radicalmente liberada no país. Eles podiam consumir absolutamente tudo, e sem limites, de modo fundamentalmente sem culpa, e na coisa mesma da circulação do dinheiro tornavam-se os novos sujeitos do novo espírito absoluto . A importante ausência significante da crítica e do constrangimento de esquerda aos felizes neoburgueses de massa de todos os matizes, com grande parte das facções de classes à esquerda do processo mais preocupadas com a sua própria inserção orgânica nos novos negócios de Estado, a sua própria capitalização primitiva no “novo” capitalismo de laços brasileiro, ⁵² o seu aburguesamento urgente, pela primeira vez na história contemporânea deste país liberou a nova consciência autossuficiente da elite endinheirada, que se equalizava ao mundo ilimitado das benesses do dinheiro, com sua subjetivação anti-humanista, que podia chegar a beirar a perversão industrial de si a si , como o modo norte-americano de ser do dinheiro e para o dinheiro deixou bem claro. ⁵³ A verdadeira obra tucana, neoliberal, de submissão total do espaço público ao mercado e ao império do espetacular — ou fantasmagórico, como dizia Walter Benjamin — da mercadoria, finalmente se completara e pt e psdb eram, nesta dimensão das coisas, duas faces da moeda de um mesmo e único processo histórico. De fato, esta radical expansão da mercadoria sobre a cultura é o grande movimento, agora incluindo o desejo de consumo das classes pobres do Brasil, da era Lula. ⁵⁴ Uma observadora honesta e

sensível, a atriz Fernanda Torres, que vive mesmo no interior da tensão que vai se tornando radical entre mercadoria e cultura, pôde apanhar e descrever tal movimento radical com espantosa precisão: “A recente estabilidade econômica possibilitou o milagre da distribuição de renda. O aumento do poder aquisitivo dos que ganham entre três e dez salários mínimos salvou o Brasil da crise de 2009 e continua prometendo. Nenhuma revolução heroica deu voz ao povo; foi o crédito e a Bolsa Família. A classe c se transformou no Eldorado das grandes redes de tv , das poderosas agências de propaganda, do comércio varejista, dos bancos e de todas as demais forças geradoras de riqueza. Desvendar os seus anseios é o sonho de qualquer ceo com especialização em Harvard no momento. O cacife dessa nova classe média se multiplicou por sete nos últimos anos e, hoje, se equipara aos da classe a e b juntas. As duas últimas abrigam o pessoal com bala na carteira para sonhar com o mercado de luxo. Já é possível, sem sair de São Paulo, fazer fila para adquirir sua bolsa de r $ 30 mil, vestir alta costura prêt-à-porter , harmonizar o vinho com a refeição e viver em ambientes paginados. Antunes Filho considera uma tragédia a proliferação dos cadernos de culinária, moda e decoração. Jorge Mautner deu uma boa explicação para o fenômeno: até pouco tempo somente a nobreza e os reis tinham direito a tais requintes. A democratização do luxo se transformou na febre dos que têm direito à mais-valia. Em um mundo que substituiu a ideologia pela economia, não importa quanto dinheiro você tem no bolso, manda aquele que pode e deseja gastar, seja no crediário miúdo ou nas grandes tacadas dos cartões platinum . O resto é silêncio. Tanto os que se endividam por um sapato Louboutin quanto os que o fazem pelo primeiro carro ou geladeira geram dividendos, aumentam o pib e puxam as estatísticas mercadológicas para cima. Ambos alimentam a ciranda produtiva e estão perdoados. Quem se posicionou à margem deste rio de satisfação, arrisco dizer, foi o intelecto. O intelecto e seu imperdoável defeito de não ser consumista. Lembro-me do choque que levei quando percebi que a primeira página do caderno de cultura do jornal seria definitivamente ocupada por anúncios de meninas lânguidas e contorcidas em campanhas de estilo. A manchete podia se referir a um artista radical da Sibéria, mas a foto era de uma modelo adolescente de boca carnuda vestindo um jeans rasgado da Chanel. Algo assim seria impensável na minha adolescência. Há vinte anos, a cultura servia de ponteiro; hoje, ela anda à mercê dos acontecimentos. Somente as manifestações de massa fazem sentido porque se justificam como mercado. Erudição é um crime.” ⁵⁵ Em 1970 Roberto Schwarz, no exílio, escrevia que, de sua perspectiva, a ditadura militar controlara e congelara o país ao longo dos anos 1960, mas não conseguira criar um modelo próprio e eficaz para a cultura conservadora, autoritária e modernizante simultaneamente, que representava. O crítico não via, então, boas perspectivas para a tomada do espaço da cultura por uma lógica do poder mercantil: “o país está igual, onde Goulart o deixara, agitável como nunca”. “A mesma permanência talvez valha para a cultura cujas molas profundas são difíceis de trocar. De fato, a curto prazo a opressão policial nada pode além de paralisar, pois não se fabrica um passado novo de um dia para o outro. Que chance têm os militares de tornarem ideologicamente ativas as

suas posições? Os pró-americanos que estão no poder, nenhuma; a subordinação não inspira o canto, e mesmo se conseguem dar uma solução de momento à economia, é ao preço de não transformarem o país socialmente; nestas condições de miséria numerosa e visível, a ideologia do consumo será sempre um escárnio.” ⁵⁶ A passagem simplesmente demonstra como o poder de convocação radical do gozo imaginário individual, e seu descomprometimento, imanente ao império espetacular da mercadoria, como regulador da cultura — que começaria a acelerar suas artes e manhas por aqui exatamente a partir de 1970, com o advento da televisão universal — era praticamente impensável, e provavelmente desconhecido, pela esquerda brasileira, até mesmo a que dispunha de uma teoria crítica. ⁵⁷ No entanto, a cultura de consumo urbana que se estabeleceu fortemente a partir de 1970, gradualmente conquistou e modulou a consciência geral, permitindo a retirada do poder de predomínio direto pela força da ordem capitalista por aqui e estabilizando a vida social nos termos de uma existência de mercado, de sujeitos econômicos, com ou sem renda, voltados essencialmente para o ato de consumo. ⁵⁸ Do mundo de Roberto Schwarz, em 1970, ao de Fernanda Torres, em 2010, quarenta anos se passaram, e, diante do massacre contemporâneo do consumo como cultura as tensões políticas e estéticas do trabalho do campo cultural, muito ao contrário dos anos 1960, se tornaram dóceis e positivas, se não irrelevantes. Na época, Roberto Schwarz ainda anotou, espantado, a emergência de artistas que concebiam a técnica moderna e o emergente mercado de massas como plenos aliados, em um tipo de confusão e comprometimento “novos”, que não pertenciam em absoluto aos problemas negativos da arte moderna de até então. Ele anotou com muita precisão a emergência, ainda tênue embora escandalosa, de um novo pacto estético e político, entre “vanguarda e conformismo”. ⁵⁹ Hoje, a julgar pela avaliação perfeita de Torres, o conformismo, sob a forma da confirmação de tudo pelo desrecalque radical do consumo, se tornou a vanguarda: o consumismo de ponta é a verdadeira vanguarda cultural da época. * * * Acredito que seria provavelmente ingênuo e muito conservador, diante de tal quadro, discutirmos o princípio e o espírito desta cultura pela velha compartimentalização das artes e das práticas, uma vez que nenhum discurso, em nenhum ponto da cultura chegou a se contrapor minimamente ao movimento totalitário da vida para a mercadoria e o seu encanto, quando não a maioria apenas o confirmava, aspirando simplesmente ao seu próprio lugar, se possível de algum destaque, no mercado das coisas humanas. Como Fernanda Torres percebeu perfeitamente, o que não é consumo de massa é silêncio em nosso mundo. Diante do massacre da cultura industrial voltada para o consumo, a cultura de ponta voltou a ser mero objeto de culto, objeto do interesse quase obsessivo de grupos particulares e fragmentários. Tais grupos terminam por reencenar com a grande cultura o jogo ideológico de sua própria distinção, pelo culto, obsessivo e autoprotetor, de seus frágeis e impotentes objetos culturais e de arte, sejam

eles quais forem: Bossa Nova ou Cinema Marginal, Literatura Moderna, Chico Buarque ou arte contemporânea, Jean-Luc Godard, Machado de Assis, Hélio Oiticica, Volpi, ou, ainda, Romulo Fróes, que seja… No fim das contas, para voltarem a ser significantes, relevantes no mundo, tais objetos subjetivos dos cultos entre si serão sempre reenviados ao espaço da cultura do espetáculo e do entretenimento, ⁶⁰ que pode perfeitamente funcionar como engodo imaginário de massas, esfera que qualifica muito pouco seus sujeitos e não checa em nada o estatuto das violências de seu mundo. Nesta passagem, do culto de elite ao espetáculo equalizado de massas, o capital cultural se transformará em capital real, em renda, para alguns intermediários do novo estatuto do consumo cultural. ⁶¹ O grande impulso moderno do impacto crítico da cultura pública e política, que buscava não menos do que checar a totalidade da vida concreta com a cultura, tão desejado pelo espírito ao longo dos séculos xix e xx , foi pacificado na forma do objeto de satisfação do filisteu cultural , reduzido a uma espécie de bichos de estimação do consumidor universal, que busca a própria distinção no jogo universal da sociedade de classes. ⁶² É esta a condição da cultura, estrutural como dizia o pensamento marxista dos anos 1960, quando o capital, com a sua sociedade de classes naturalizada, se torna a força hegemônica única e maior da existência humana. E, exatamente nesta direção, o artista plástico Raul Mourão acertou em cheio, como grande obra do tempo e símbolo da época, ao criar um pequeno boneco de pelúcia com expressões de monstrinho, com os modos contraditórios do presidente, um brinquedo infantil, e também obra de arte, o Lulinha paz e amor … Trata-se da obra-prima da época. Nunca se falou tanto de cultura e nunca a relação entre a cultura e a vida foi tão anódina. Poderíamos fazer como a crítica no passado, e falarmos da classicização da literatura contemporânea, por um lado, em um bonito movimento que tende ao estéril, e da perda do mínimo fôlego de um estranho e mais do que retardatário beatniquismo — “um pouco devasso, um pouco prostituído” — ainda advindo dos anos 1980, por outro. Poderíamos falar do cinema mediano para baixo, que encontrou o seu ajuste ao mercado dos bons negócios das leis de incentivo, de modo em geral condescendente com a vida rebaixada das classes médias, sem exigências, pautadas pelo horrorosamente simplista imaginário televisivo, ou falarmos da cultura audiovisual tão empobrecida da televisão. Talvez o teatro semiprofissional, semibrechtiano e semimarginal da Companhia do Latão, da Companhia do Feijão, dos Sátiros, do Tablado de Arruar e de muitos outros grupos semelhantes, pudesse indicar alguma forma e força de resistência à coisa toda, com sua tentativa legítima de coordenar um movimento social e urbano através da arte, embora os resultados sejam os da resistência da existência estrita de seus realizadores; uma vez que a música das cantoras e neossambistas — de jovens garotas bonitinhas ligeiramente fashion que a julgar por sua música nunca foram tristes, nunca tomaram um porre, ou levaram um tapa na cara — certamente se tornou simplesmente world , popzinha , erótica de propaganda, e, mais uma vez, como tudo, muito feliz. Ou seja, praticamente kitsch . Um kitsch do Brasil para o mundo.

Uma espécie de neomacumba tropicalista soft , para turista ver, exatamente como funciona, por exemplo, a celebrada e problemática pintura de uma Beatriz Milhazes, sobre a qual tivemos de ler dezenas e dezenas de vezes em jornais e revistas que vendeu um quadro com a sua estamparia de vestido hippie da Praça da República por um milhão de dólares… ou, ainda, o barroco de carne de plástico empacotado e pintura de azulejos de uma Adriana Varejão… De fato, as artes plásticas de bibelôs da época foram muito bem capturadas pela propaganda do colecionismo barato de classe média de revistas de cultura muito baixas, que transformam todo dia e sempre Picasso e Kafka em belas almas para o vazio de seu mercado sem discriminação, o seu mundo de afetação sem exigências de rigor crítico, o seu deserto, o pequeno mercado das vaidades e da exibição pessoal, dos mesmos que descobriram tardiamente a “cultura” do vinho nos trópicos. Também as artes plásticas “maiores” foram bem capturadas pelo verdadeiro show do colecionismo do grande capital, com seus novos parques de diversões enormes, em estilo de Disneylândia cult para todos, no pacto final selado entre cultura e entretenimento, sentido das coisas e do dinheiro, que deveria mais constranger do que siderar os artistas locais, loucos pelo salto mortal no capital global que nunca chega para eles. Enfim, todos aspiram a ser Salvador Dalí. Este foi o período em que também se redescobriu a forma ensaio no país, desde que, evidentemente, ela fale de objetos que tenham mais de cinquenta anos de existência, de valor histórico garantido, coisas como Bossa Nova, Nelson Cavaquinho, Volpi, Samuel Beckett ou Hélio Oiticica… Dada a verdadeira e espetacular regressão do universo da imprensa entre nós, o mundo dos chics entre si da cultura se viu obrigado a criar espaços de alguma reflexão cuidadosa — descontando-se evidentemente a grosseria geral do novo ensaísmo à direita —, sob o pleno risco de chegarmos a não ter mais nenhuma cultura intelectual entre nós. É assim que um novo tipo de artista, indie , como o poderoso músico Romulo Fróes, por exemplo, com seu novo tropicalismo negativo , forte e sensível, só poderia ser redondamente ignorado, como de fato o foi, porque, apesar de sua força enigmática e não alinhada que indica um mundo sem centro fixo, quando não em constante queda, negativa, para o próprio entendimento de sua realidade, e exatamente por isso, ele deveria simples e basicamente não ser ouvido. Exatamente o mesmo também aconteceu com os interessantes e possivelmente importantes filmes, mas que já passaram e já não aconteceram — como costuma sempre ocorrer com o cinema feito por aqui que não seja êmulo direto de comédias televisivas de reconhecimento mais do que imediato — como foram Contra todos (2004), de Roberto Moreira, Corpo (2008), de Rossana Foglia e Rubens Rewald, A concepção (2005) de José Eduardo Belmonte, O baixio das bestas (2006) de Cláudio Assis, e Os famosos e os duendes da morte de Esmir Filho (2009), sendo que, nesta linhagem de filmes sérios e bons sobre a inconsistência e a doença do espaço público e da cultura entre nós, apenas Linha de passe de Walter Salles e Daniela Thomas e Viajo porque preciso, volto porque te amo de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes foram minimamente vistos, provavelmente pelo prestigioso nome de seus autores, sem falarmos na potência inventiva

cada vez mais livre de Eduardo Coutinho, que, infelizmente, entre nós, é o único que tem o direito de exercitar a liberdade a pleno vapor — considerando as honradíssimas exceções do cinema mínimo e muito vivo de Beto Brant e do cinema inteligente de João Moreira Salles. Um único fenômeno importante da cultura ocorreu nos últimos dez anos, cultura que só se compreende como grande circulação de dinheiro e de massas ao redor de seus discursos necessariamente espetaculares, necessariamente produtores de mais dinheiro e de mais cultura de massa: a estabilização e ampliação do interesse pelo favela movie do neobanguebangue carioca do tráfico de drogas e da sua guerra de ocupação do território, o espelho fraturado central de uma sociedade, ali onde não lhe é possível ocultar-se a si própria: do rico e sempre pop Cidade de Deus aos verdadeiramente populares Tropa de elite i e ii . De fato, o grande horizonte de valor da cultura no período se deu ao redor dos novos titânicos movimentos de troca de meios , da televisão aberta para a tv a cabo, com sua programação constante de enlatados requentados; do jornal impresso, da televisão em geral, da indústria musical e do cinema, para a internet, com sua cultura generalizada rápida de informação de superfície, celebridade gonzo e seus imensos supermercados online , e, no final das contas, se completando com suas universais redes sociais , mistura de espaço público conservador, em que a opinião se confunde com a fofoca, com a prática da autopropaganda constante, com a dissolução desejada da esfera da intimidade na exibição de si ao escrutínio permanente do todo, enfim, um reality show universal no lugar do espaço público. Assim a internet vai gradualmente se tornando infinitamente mais poderosa do que todos os demais meios: ela é simultaneamente discurso, passagem do fluxo constante da imagem e da cultura fetichista descompromissada, como necessariamente deve ser, e também é o novo espaço da compra, o novo espaço do mercado, da circulação e da realização do capital. Como o próprio Lula, é de longe o meio mais próximo do verdadeiro espírito do tempo. E de nada adianta chorarmos o leite derramado , como ainda fizeram alguns imensos artistas do passado, como Chico Buarque em Carioca , Caetano Veloso em Zii Zie , Cildo Meireles em seu Abajur , e mesmo os Racionais mc , em seu balanço 1001 trutas 1001 tretas . É apenas muito impressionante, para quem ainda é capaz de se impressionar, em um misto de beleza e de tristeza, como a complexidade e o interesse comprometido das canções de Chico Buarque dos últimos anos, que continuam sendo canções, se transmutaram praticamente em música erudita , frente ao panorama atual das rádios pop e da música eletrônica para o grande consumo de diversão dos jovens, ricos e pobres, bem empobrecidos do tempo. Dado a irrelevância geral do campo da vida simbólica frente aos movimentos que transformaram toda qualidade em quantidade celebrada de dinheiro, creio que podemos com alguma propriedade operar outro tipo de crítica da cultura. * * *

Podemos conceber a cultura como um espaço de recusas e de defesas, de desejos e de reiterações, que por vezes, em alguns movimentos coletivos muito nítidos, estatisticamente relevantes, coordenados, mas interessantemente imperceptíveis ao espírito corrente, se deixa entrever em seu fundo mais verdadeiro. Com alguma sorte torna-se visível um tipo de curto-circuito do comportamento coletivo que pode ser avaliado claramente de modo quase psicanalítico, de uma psicanálise dialética, e que faz revelar o fundo mais significativo das posições políticas e estéticas em jogo no espírito das massas. Bem como deixa entrever a natureza de suas recusas, muito ao contrário do aplainado sistema dos conteúdos de superfície da cultura em geral, mera acumulação de mercadorias culturais em abstrato. Vou trabalhar também diretamente com o campo da vida da mercadoria, e não, neste momento, com a obsoleta vida dos criadores e pensadores. Aqui estamos na situação extrema que Adorno anotou certa vez: “a única comunicação intelectual entre o sistema objetivo e a experiência subjetiva é a explosão que separa radicalmente as duas, para iluminar por alguns segundos, através de sua chama, a figura assim formada.” ⁶³ Assim, na última semana de novembro de 2010 — a um mês do término do governo Lula —, tivemos uma boa medida de nossa nova presença no circuito mundial de cultura, e das mercadorias culturais, e mais, do nosso modo de lidarmos com esta condição, talvez síntese do espírito cultural da era lulista. No mesmo dia, tivemos em São Paulo, no maior estádio da cidade, como não poderia deixar de ser, o show blockbuster e hiperespetacular do ex-Beatle e artista pop hoje absolutamente comercial, Paul McCartney, uma das mais puras mercadorias de si mesmo e da própria imagem conhecida, com seus célebres e maravilhosos standards musicais universais; e também, no mesmo dia, em um teatro do circuito cultural da cidade bem próximo ao estádio, tivemos o show do pai do rock underground , realista e negativo, o precursor maior da estética punk , ainda no final dos anos de 1960, o poeta do rock Lou Reed. E mais ainda. Na mesma semana passaram e tocaram em São Paulo o guitarrista, de fato o guitar heroe , de rock-pop-jazz-kitsch , Jeff Beck, que tocou em uma grande casa de espetáculos de Moema, e a cantora de triphop , parceira do celebre DJ Tricky do final dos anos 1990, Martina TopleyBird, que cantou em uma boate do baixo Augusta. E, no fim da mesma semana, foi a vez do mestre inventor do free jazz norte-americano Ornette Coleman passar por aqui… Cada um destes músicos ocupa lugares simbólicos diferentes na história da música popular dos últimos cinquenta anos, e mesmo na emergência e na estruturação histórica do espaço de cultura globalizada pela gestão musical do pop, próprio da nossa época. No entanto, o encontro de todos eles na mesma semana na cidade de São Paulo só pode significar que, de fato, o Brasil é hoje um dos centros do mundo multicêntrico da indústria cultural, e do capital, global. Como é bem sabido, Paul McCartney foi um verdadeiro inventor da relação superficial encantada e apaixonada das massas com seus ídolos, ao mesmo tempo que participou da experiência musical, estética, e, ao seu modo, política, mais fecunda da década explosiva, estética e política, dos jovens gênios dos anos 1960. Como não nos cansamos de repetir para nós mesmos,

e também não nos é permitido esquecer por um segundo, ele foi o gênio musical, melódico e harmônico que compunha a mescla única e no limite do revolucionário dos trabalhos dos Beatles, e desde o fim — necessário ao mito — do grupo, foi, dentre os quatro músicos, o artista que melhor soube manejar a sua carreira comercial, com uma infindável coleção de canções tão pregnantes quanto anódinas, tão bonitinhas quanto ordinárias, tão gostosinhas quanto basicamente esquecíveis. Depois de ser o autor das verdadeiras obras-primas de todas as dimensões imagináveis dos Beatles, em uma potência de conteúdo e forma que só se explica pela potência de forma histórica de sua época – e de suas próprias canções sobretudo fáceis dos últimos trinta anos –, McCartney se tornou o gênio anódino do espírito festivo ordinário, comum, de nosso tempo, uma nova modalidade de “moda perpétua” e de moralidade descompromissada. Um monumento pop em uma de suas facetas mais fundamentais: superficial, encantador, descomprometido e universal. Sob qualquer aspecto, um artista quase inimputável. Exatamente como muitos políticos gostariam de ser, mas pouquíssimos o conseguiram… A sua modalidade de fetichismo da mercadoria é o universal inconsequente e normativamente feliz, comumente maníaco, de alta qualidade, mas que, de fato, simplesmente engana e elide a discussão de toda qualidade. Trata-se do mais puro espírito da própria e melhor aparição da coisa no mercado, o seu encantamento no momento do acesso universal ao seu consumo. Lou Reed, por seu lado, é o enfant terrible do rock de todos os tempos, bem como o seu típico artista hiperconsciente; o que McCartney também foi um dia, mas estratégica e economicamente esqueceu . Poeta do Velvet Underground no final da década de 1960, e depois artista solo essencialmente poeta, foi a partir de sua visão das coisas — tocada por Bob Dylan, que por sua vez foi tocado por Johnny Cash — que o rock se abriu ao mundo da rua, aos pobres diabos, aos desgraçados e excluídos, aos tormentos e às contradições de toda ordem, do sexual sem redenção, das drogas de toda natureza, sobretudo as pesadas, do amor como angústia e como desencontro e do novo narcisismo jovem, mortífero. Reed sempre cantou do ponto de vista da vida sem destino e enfeitiçada dos jovens pobres dos grandes centros urbanos sob a nova genealogia pop, que tentam se equilibrar na tênue ilusão da existência contracultural, a mesma que, desde o trabalho do seu Velvet, foi nomeada de underground , ou seja, subterrânea, ctônica, marginal, negativa, boêmia e irredimível. Trata-se de um mestre do decadentismo de massas. O som áspero e estranho, circular, hipnótico e impessoal, ao mesmo tempo que portador de uma verdadeira lírica materialista e moderna advinda da experiência jovem de não integração na vida administrada geral, sem esperança e sem ilusão, exasperante e enfeitiçado, do Velvet Underground e de Lou Reed, é a base mais profunda do polo negativo do rock’n’roll , do nome daquilo que não se deixa capturar na experiência de massa, do que fala dos que não falam, e até mesmo daquilo que não fala, em relação ao significante luminoso e espetacular advindo da autocelebração do mundo, a plena integridade do mundo a favor e espetacular do capitalismo avançado.

Reed antecipa em tudo, inclusive na postura de assumir a verdade do seu lugar no mundo como verdade estética bruta, a revolução que se daria dez anos depois de seus primeiros trabalhos, que foi a música e a vida sobre a ação de classes, vital e mortal, do punk rock . Cada um dos dois artistas, Reed e McCartney, representa algo na luta significante do presente, e congrega um tipo de tribo e de experiência coletiva, na vida do sujeito atomizado, mas bem orientado pelo circuito espetacular de hoje — linha de transmissão . Eu quero apenas comentar o modo como os públicos e os fãs paulistanos e brasileiros dos dois músicos se comportaram em relação aos seus ídolos, já plenas mercadorias universais da indústria cultural. Em um verdadeiro movimento de massas, em pinça , os dois grupos de fãs acabaram por convergir inconscientemente, como era possível se esperar, na direção do desejo de um único tipo de espaço estético e político do presente. É certo que na aparência os fãs dos dois artistas são e representam coisas bastante diferentes no mundo da vida. McCartney é o ícone universal da integração na experiência pop. O seu esperanto , como Fernando de Barros e Silva anotou no dia de sua apresentação. O homem e o som que todos, em todos os tempos, lugares e gerações amam amar. Sua comunicação é universal e extensa, no espaço e nos tempos existenciais de seus infinitos fãs. Corresponde à equalização própria da ideia do clássico , que sempre faz apagar as marcas e rugosidades históricas específicas, do objeto e do sujeito, e fala à ideia de uma natureza humana universal. Se não acreditamos nela, fala do ponto de vista de um conjunto de ideias poderosas do presente que tem a força de simular e impor a todos a ilusão de uma universalidade da experiência humana. Evidentemente, ocupando de modo tautológico, e algo brutal, todas as revistas, todos os jornais e televisões disponíveis e ao mesmo tempo… Em época de desvarios pós-modernos, de capricho, irresponsabilidade e incoerência programáticas, do elogio constante do poder e do dinheiro, é o mundo fácil e superficialmente belo do pop massivo do Beatle mais bonito, correspondente à integridade e à universalidade da mercadoria, que é capaz de nos devolver a experiência e o valor do universal. Assim, a experiência do show de McCartney foi a da universalidade da congregação das gerações, classes, amigos e inimigos reais, todos unidos em algum lugar virtual imaginário ao sul do equador para cantar “She loves you”, “Yesterday”, “Hey Jude”, “My love”, “Live and let die”, “Silly love song” e “All you need is love”. Todos estes estranhos humanos concentrados no ponto unificado pelo artista: de que todos precisam de amor. Sessenta mil pessoas em um dia — entre elas, segundo lemos nos jornais, José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso, Eike Batista e Kaká, José Serra e a família do presidente Lula… —, e ainda mais sessenta mil pessoas em um outro dia, cantaram, se embalaram, acenderam os isqueiros e os celulares, para o sonho unificador do Beatle mais bonito, que já é um senhor… Festa pop do tipo total, do tipo carnaval, do tipo celebração religiosa de massa, verdadeira competição do pop, religião laica, com a religião materialista e tele-marqueteira de hoje, que também enche os estádios, do Beatle bonzinho e de Jesus Cristo… Uma festa universal do gozo do reconhecimento no próprio signo do universal da melhor mercadoria.

A face luminosa, e o verdadeiro resto iluminista, da mercadoria. Enquanto isto, a alguns quilômetros dali, Lou Reed tentava fazer o seu show no teatro do sesc de Pinheiros. Estranhamente, ao contrário do seu parceiro superpop, o show do artista Reed aconteceu e não aconteceu: ao tentar refazer no palco e com a tecnologia de hoje o seu disco de experimentação e free rock de 1974, Metal Machine Music , Reed viu o seu público fiel , composto de culturetes, modernetes e modernosos brasileiros, abandonar sistematicamente o teatro, praticamente desde o primeiro minuto de show, até deixá-lo quase sozinho. A debandada do espetáculo parece ter sido grande: diz-se que no meio do show, que teve seus ingressos esgotados em apenas duas horas algumas semanas antes, somente a metade da plateia estava cheia, e, ao fim do espetáculo, falou-se em cerca de cem pessoas, em um teatro em que cabiam mil. O público abandonou o seu ídolo, deixando-o praticamente falando sozinho. ⁶⁴ englishReed não tocou “All tomorrow parties”, “Femme fatale”, “Heroin”, “Walk on the wild side”, “Vicious”… Não investiu em seu reconhecimento imediato e nas glórias de sua juventude, ele que já é um senhor… E, sendo assim, simplesmente não foi reconhecido , mesmo sendo de fato ele. Talvez não seja difícil percebermos que o público moderno e de vanguarda de Reed era o mesmo público conservador e mais formatado de Paul McCartney: como os amantes do ex-Beatle, ele desejava também apenas aquilo que já conhecia, bem como o aceno kitsch das congregações grupais no falso universal pop. Reed, como verdadeiro artista, não deu o óbvio ao seu público, e o seu público, como a verdadeira experiência de massa da época preconiza, reconhecendo apenas a marca universal da mercadoria, deu o seu óbvio ao artista , a sua recusa em entrar em contato com o outro e o seu desprezo. Tudo indica que a arte de Reed, no episódio, foi a de derrubar a máscara do reconhecimento imediato, que visa rebaixar toda diferença e distância, de algum modo demonstrando a seu próprio público que o artista e seus fãs não são feitos da mesma matéria e nem habitam os mesmos compromissos. Como na canção “Vicious” o público não suportou o outro, o próprio artista: When I watch you come, baby I just wanna run — far away You’re not the kind of person ’round I wanna stay ! When I see you walkin’ down the street I step on your hands and I mangle your feet You’re not the kind of person that I want to meet ⁶⁵

O público de Reed era , em espírito e na natureza, e muito ao contrário do que se imagina, exatamente o mesmo de Paul McCartney : ele estava movido e marcado pelo mesmo signo do reconhecimento do fetichismo universal do que já foi reconhecido, e como tal controla a todos. ⁶⁶ Este pequeno episódio, formação do inconsciente individual naquilo em que ele se confunde com o coletivo, dando notícia do espírito das massas, grandioso no movimento claro das consciências e das inconsciências, ocorrido em uma noite qualquer de diversão em São Paulo, no Brasil, nos fala muito do estatuto da cultura e da sua relação com a política de nosso tempo. Talvez fale mais do que muitas das obras culturais e artísticas da época, simplesmente desprezíveis, como o trabalho artístico de Reed foi simplesmente desprezado. Como o ídolo pop, Lula articulou os efeitos de crescimento e excitação de sua grande distribuição de dinheiro a todos como uma mágica pessoal, advinda de sua personalidade, e se tornou uma espécie de novo equivalente geral da economia política, ele mesmo equivalente ao equivalente geral, o dinheiro. O texto global midiático edificante e de celebração do país, de fato de celebração do mercado em expansão do país, também foi atraído pelo corpo do político, como uma quarta face de seu carisma, o carisma midiático pop , próprio da indústria cultural, da lógica do espetáculo. Como político imantado pelo deslocamento do fetichismo da mercadoria sobre si próprio , o seu carisma pop, Lula tendeu a escapar de modo não mediado a todo controle público, ou avaliação crítica. Em correspondência com a mercadoria universal do sentido, Lula não queria ser John Malkovich, e muitíssimo menos Lou Reed. Nenhuma ordem de negatividade sobre a história. Lula queria, e em alguma medida conseguiu, ser Paul McCartney… Assim como todo o seu público político, eleitores ou consumidores, tanto faz, não quer nada com o Lou Reed da crítica ou da desconstrução das certezas programadas para o todo, ou com qualquer ordem de pensamento crítico entre nós, o que certamente não é boa notícia para a vida do espírito, seja ela intelectual, seja artística. Como já foi dito na origem histórica deste processo “a homogeneidade cultural prepara a homogeneidade política”. Até segunda ordem estamos em uma situação muito difícil, em que cabe de fato perguntar qual é o sentido da noção de crítica em um mundo que se forma cotidianamente de modo radicalmente anticrítico . Como alguém já disse com precisão, o que não for consumo, que silencie , o que leva a crer que, nesta ordem concreta das coisas, como há muito já foi intuído, arte e pensamento estão mortos . São todos, praticamente todos, de todas as classes e idades, felizes, universalmente congregados e identificados, felizes e bons. Fãs brasileiros de Paul McCartney. São Paulo, entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011. 1 Uma versão muitíssimo reduzida deste trabalho foi publicada no Estado de S. Paulo , em 25 de setembro de 2010, a uma semana do primeiro turno da eleição de Dilma Rousseff.

2 Ver a análise de Cláudio Gonçalves Couto, “Uma política pós-ética”, Revista Cult , nº 148, Julho de 2010. 3 Em junho de 2009, no auge da crise dos atos secretos do Senado presidido por José Sarney, todos envolvendo privilégios e nepotismo — crise que levou à anulação de 663 atos secretos —, Lula declarou a jornalistas, em uma viagem à Ásia: “Penso que o presidente José Sarney já tem história suficiente no Brasil para não ser tratado como um homem comum.” 4 Em 14 de dezembro de 2003, o pt que completava um ano de governo federal expulsou, por representarem oposição ao modo de então do governo receber o ideário econômico neoliberal, os deputados federais Heloísa Helena, João Fontes, Luciana Genro e João Batista Araújo. Em 2005, o deputado federal Chico Alencar deixou o partido. 5 “A estrutura de classes também foi truncada ou modificada: as capas mais altas do antigo proletariado converteram-se, em parte, no que Robert Reich chamou de ‘analistas simbólicos’: são administradores de fundos de previdência complementar, oriundos das antigas empresas estatais, dos quais o mais poderoso é o Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, ainda estatal; fazem parte de conselhos de administração, como o do bnds , a título de representante dos trabalhadores. (…) É isso que explica recentes convergências pragmáticas entre o pt eo psdb , o aparente paradoxo de que o governo de Lula realiza o programa de fhc , radicalizando-o: não se trata de equívoco, nem de tomada de empréstimo de programa, mas de uma verdadeira nova classe social, que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do

psdb , e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do pt . (…) Há uma rigorosa simetria entre os núcleos dirigentes do pt e do psdb , no arco político, e o conjunto dos dois lados simétricos é a nova classe.” Francisco de Oliveira, “O ornitorrinco”, em Crítica à razão dualista, o ornitorrinco , São Paulo: Boitempo, 2003, pp. 146, 147. 6 O Supremo Tribunal Federal abriu processo contra 38 acusados, entre eles o tesoureiro nacional do pt , Delúbio Soares — que admitiu publicamente ter operado politicamente com dinheiro não contabilizado —, o presidente do partido, deputado José Genoíno, e a liderança petista e chefe da Casa Civil lulista, deputado José Dirceu, que passaram a responder pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, formação de quadrilha e corrupção passiva e ativa. 7 Por corpo tranferencial, um modo de redefinir com a psicanálise as potências humanas presentes no carisma, entendo os elementos poéticos e históricos que compõem uma poética pessoal, um self político, que produz efeitos de transferência sobre um determinado público político. Tranferência, como se sabe, é uma das formações do inconsciente mais fundamentais do sistema teórico clínico freudiano, e diz respeito, essencialmente, à atualização dramática no presente de uma relação humana de elementos inconscientes cuja vigência e estatuto principal são passados, infantis e esquecidos. 8 Antes de operar o esquema petista na eleição de Lula, os sócios publicitários Marcos Valério e Rogério Lanza Tolentino desenvolveram esquema semelhante em Minas Gerais, envolvendo também o Banco Rural, de Kátia Rabelo, o banco bmg

, de Ricardo Annes Guimarães, e várias empresas públicas, para o benefício do senador Eduardo Azeredo, então presidente nacional do psdb . Nenhum tucano de alta plumagem jamais se manifestou sobre a crise ética criminosa envolvendo o presidente de seu partido. 9 Paulo Arantes, em sua posição crítica de esquerda não comprometida com o processo, foi o único no período que apontou em um conjunto de textos notáveis a dissolvência do ethos de esquerda do pt e seu destino de novo agregado no sistema de conciliação conservadora brasileiro. Ver a seção v de Extinção (Rio de Janeiro: Boitempo, 2007). Sobre a guinada ao centro do pt , ver a história interna recente do partido descrita por André Singer em “A segunda alma do Partido dos Trabalhadores”; Novos Estudos Cebrap , nº 88, novembro de 2010. 10 A respeito da estrutural natureza a favor , e construtiva, do pensamento do contra da esquerda brasileira, e da vida intelectual de esquerda,ver a análise de Paulo Eduardo Arantes, a partir de Antonio Candido e Roberto Schwarz, na seção “Intelectuais do contra, porém a favor”, de seu ensaio “Ajuste Intelectual”, em Desorganizando o consenso , organização de Fernando Haddad, Rio de Janeiro: Vozes, Editora Fundação Perseu Abramo, 1998 . 11 Para avaliar o impacto de tal ação no pensamento brasileiro à esquerda do governo, ver Paulo Eduardo Arantes, “Beijando a Cruz”, onde se lê: “No primeiro mês de governo, não por acaso, falou-se muito em esquizofrenia a propósito do desencontro sabido: discurso enfático à esquerda, e muita energia no encaminhamento de políticas ortodoxas. (…) O que pensar? A boa pergunta neste caso talvez seja a mais rasa de todas: afinal, o que fez a cabeça do núcleo duro do governo? Não se trata de simples adesão a tal ou qual doutrina, isso é mera consequência. Trata-se, a rigor, de um ritual . Isso mesmo, algo como uma prática material muito próxima da gesticulação religiosa. E, de fato, tudo se passa como se nos defrontássemos com uma verdadeira conversão à ‘religião da vida cotidiana’, como Marx se referia à liturgia requerida pelo serviço do Capital.” Zero à esquerda , São Paulo, Conrad, 2004, pp. 302 e 303.

12 “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, André Singer, Novos Estudos Cebrap , nº 85, Novembro de 2009. 13 Olavo Setúbal, entrevista a Guilherme Barros, Folha de S. Paulo , 13 de Agosto de 2006. 14 Uma outra opinião, bastante expressiva, no meio do percurso histórico do presidente, nesta mesma direção, a do megaempreiteiro Emílio Odebrecht: “Eu considero que, hoje, vivemos realmente um ciclo de crescimento sustentado. As bases, os fundamentos da economia nos dão essa conscientização de que isso é uma realidade. (…) Nós quebramos um tabu enorme, que era a chegada de um presidente da esquerda e, mais ainda, um líder dos trabalhadores, e esse tabu não existe mais. O investidor estrangeiro sempre perguntava como se comportaria o Brasil com um presidente com esse perfil de esquerda, com essa ideologia, e veja o que aconteceu. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para o nosso país, sem dúvida nenhuma. O investidor estrangeiro viu que os contratos foram preservados, que a linha ideológica, ao contrário, é até mais rígida, em determinados aspectos, do que a dos anteriores. O Brasil tem mais consistência e inspira outro nível de confiança ao investidor. Essa quebra de tabu tranquilizou os investimentos, e o que se viu é que esse governo não tem nada de esquerda. O presidente Lula não tem nada de esquerda, nunca foi de esquerda.” Folha de S. Paulo , 27 de Janeiro de 2008. 15 A pensadora hiperconservadora norte-americana Deirdre McCloskey, em sua apologia da classe dominante no processo de criação do mundo contemporâneo, falou em populismo racional para descrever a ação de Lula; ver Bourgeois dignity , de Deirdre McCloskey, University of Chicago Press, 2010, p. 74. 16 Nos termos de Luiz Otávio Cavalcante em O que é o governo Lula , São Paulo: Landy, 2003. 17 Em Carta Capital , 1º de dezembro de 2010. No entanto, nem sempre as coisas foram assim: ver as dinâmicas radicalmente democráticas e de caráter socialista expressas nos documentos de fundação do Partido dos Trabalhadores, a “Carta de princípios” de 1º de maio de 1979, e a “Declaração política” de 13 de outubro de 1979. Em Pra que pt

– Origem, projeto e consolidação do Partido dos Trabalhadores , de Moacir Gadotti e Otaviano Pereira, São Paulo: Cortez, 1989, pp. 33 e 43. 18 Ver o balanço do impacto social e político das bolsas sociais em André Singer, “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, op. cit. 19 Ver a esse respeito o debate no Congresso Nacional do deputado Ivan Valente, do psol , com o ministro Guido Mantega, em psolsp.org.br. 20 Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, divida-auditoriacidada.org.br . Os dados totais sobre o orçamento geral da união em 2010 podem ser consultados em camara.gov.br . 21 Nos “Programas de transferência de renda”, entrevista à Revista ihu online , nº 333, Instituto Humanistas Unisinos, 14 de Junho de 2010. 22 Folha de S. Paulo , 11 de dezembro de 2010. O comentário em itálico é meu. 23 “Classe c já compra quase a metade dos eletrônicos”, era a manchete principal da Folha de S. Paulo de 15 de dezembro de 2010. Segundo o jornal, a partir de dados do ibge , no início do governo Lula a classe dita c

fazia 27% das compras de produtos eletrônicos do país, e ao final do governo ela seria responsável por 45% das vendas… Além disto, em 2002 as classes a e b consumiam 55% dos produtos eletrônicos; já em 2010 este índice passou a 37%, enquanto as classes c, d e e somadas atingiam 63% do total… Mesmo as classes d e e passaram de um gasto total de 3,1 bilhões de reais com eletrônicos em 2002 para 8,2 bilhões em 2010… Os dados são impressionantes e demonstram o maior acerto do governo na dinamização e aumento real de acesso ao mercado interno do país. 24 Ver A. Gramsci, Americanismo e Fordismo , São Paulo: Hedra, 2008. 25 Ou ainda o verdadeiramente maravilhoso discurso, do mesmo dia 6 de dezembro de 2010 da festa de encerramento do Campeonato Brasileiro, proferido para prefeitos, em Brasília: “Eu digo sempre que quando eu trabalhava na fábrica eu tinha horário para entrar, horário para sair, o fim de semana era meu e eu ainda podia tomar umas cana, no almoço… Aqui [ na presidência ] eu não tenho hora pra entrar, não tenho hora pra sair…E ainda não posso tomar as cana!… É duro…” Sem dúvida o carisma de Lula, que lhe permitiu dizer o indizível, produziu um ganho no registro retórico do poder entre nós, algo popular, democrático e modernista. 26 André Singer, op. cit. 27

Um outro exemplo bastante expressivo de discurso a favor — e os discursos parecem ser apenas a favor ou contra , brancos ou pretos, fla ou flu , de modo a abandonar o desejo isento e teórico de conhecimento — é o de Wanderley Guilherme de Santos, para quem “no poder o ex-operário realizou a maior ruptura nos últimos oitenta anos da República”, ruptura grandiosa cujo cerne pode ser resumido em “crescimento econômico, inflação sob controle, expansão do emprego e redução das desigualdades sociais são metas compatíveis, sim, entre si e com a democracia, desde que o governante adote políticas em harmonia com a agenda preferencial do povo”, e completa “do povo de Lula”. “Lula e sua herança”, em Carta Capital , 19 de janeiro de 2011. 28 Um exemplo: “‘The Economist’ e ‘Financial Times’ deram que, às vésperas do fórum de Davos, a consultoria Edelman divulgou novo Barômetro da Confiança, sua pesquisa com ‘5.000 indivíduos educados, ricos e beminformados de 23 países’. Nos destaques a confiança dos americanos nas empresas privadas caiu ‘fortemente’ em um ano, de 54% para 46%. Caiu também a confiança no governo, de 46% para 40%. Por outro lado, a revista aponta ‘níveis marcadamente altos de confiança nos governos do Brasil, 85% neste ano contra 39% em 2010, e na China, 88% contra 74%’. E no Brasil a confiança nas empresas privadas aumentou para 81%, contra 62% em 2010.” Folha de S. Paulo , Toda Mídia, 26 de janeiro de 2011. 29 “Sociologia da autoridade carismática”, em Ensaios de sociologia , Rio de Janeiro: Guanabara, 1982, p. 283. 30 Richard Sennett, O declínio do homem público , São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 17. 31 Nossa pouca cultura letrada política não nos ofereceu nenhum retrato do semblante carismático de Lula durante o seu longo percurso histórico, como, por exemplo, a fascinante avaliação de J-J. Weiss a respeito de Blanqui, recuperada por Walter Benjamin em “Paris do segundo império”. Sem dúvida, e de longe, os dois melhores trabalhos existentes sobre Lula, e suas personalidades, são os filmes abc da greve (1979–1990), de Leon Hirszman, e Entreatos (2004) de João Moreira Salles, que pegam no ar da história a fisionomia dos dois momentos principais de Lula, o da ascensão do líder popular e, vinte e cinco anos depois, o do ajuste simbólico do político que chegava ao poder. 32

E prossegue: “Esse laço se perdeu”. A entrevista de Marilena Chauí a outros intelectuais de esquerda em 2009 é bastante clara do mal-estar deixado até então pelo pragmatismo muito ambivalente, pós-ético, do governo Lula em parte de sua base histórica de apoio, e em um certo “bom mocismo” moral de classe média, que preponderou em relação ao partido após a catástrofe política de 2005. Como se sabe, Marilena rompeu com a grande imprensa durante o governo Lula, em um episódio político sintomático que poderia ser analisado, e esta entrevista, antes do término do segundo mandato, dada a uma revista universitária de esquerda, vocaliza praticamente ao final do governo um grande mal-estar a respeito do “afastamento das bases políticas populares” e da criação de um discurso unificado petista, quase de propaganda, que serve para tudo e para nada, mas que mantém o núcleo duro do poder partidário no governo isolado do mundo da vida. Os enormes efeitos de propaganda e de inserção social para o consumo que acabariam por confirmar o governo petista na última hora histórica são de fato um poderoso elemento político novo, mais afeito à propaganda e ao fetichismo do que as velhas alianças democráticas do partido, que encantaram os intelectuais de classe média. Entrevista a Marilena Chauí, Margem Esquerda , nº 13, 2009. 33 Ver a respeito da dissociação radical do vínculo entre as classes sociais realizada pelo regime de 1964, “Cultura e Política 1964–69”, de Roberto Schwarz, em O pai de família e outros estudos , São Paulo: Paz e Terra, 1992. 34 A histórica edição manipulatória do debate final entre Lula e Collor feita pelo Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão a poucos dias da eleição foi apenas o ápice de um processo de terrorismo e imensa manipulação que foi aquela eleição de algo do pior social que existe no Brasil. Acredito que as bases políticas do impeachment de Collor, apenas dois anos após sua eleição, devam recuar até a ilegitimidade e a verdadeira falsificação de sua eleição pela direita irresponsável brasileira em 1989, em mais uma história não contada do passado de violências brasileiras. 35 Op. cit. , p. 285. 36 A expressão e o modo do carisma de Lula junto aos pobres se aproxima de fato muito mais do jogo de desnudamento e aparência reconhecido por Sennett para o carisma de massas contemporâneo do que das velhas estruturas míticas weberianas: “Quando o carisma perdeu seu sentido religioso, deixou de ser uma força civilizadora. (…) A simples revelação dos impulsos interiores de uma pessoa tornava-se empolgante; se uma pessoa podia se revelar em público e ainda controlar o processo de autodemonstração ela era empolgante. Eis o carisma secular: um striptease psíquico. O fato da revelação é o que incita; nada de claro ou de concreto é

revelado. Aqueles que caem sobre o encanto de uma personalidade poderosa tornam-se passivos, esquecendo-se de suas próprias necessidades quando são empolgados. O líder carismático, deste modo, consegue controlar a sua plateia, mais plenamente e de modo mais mistificador do que a antiga e civilizadora mágica da Igreja. (…) De fato, é preciso que o próprio líder não tenha nenhuma qualidade titânica, ou satânica, para ser carismático. Pode ser caloroso, familiar e doce; pode ser sofisticado e afável. Mas ele aglutinará e cegará as pessoas de modo tão seguro quanto uma figura demoníaca, se puder centralizar a atenção delas na questão de seus gostos, daquilo que a sua mulher está vestindo em público, do seu amor pelos cães. Jantará com uma família comum e suscitará um enorme interesse no público; no dia seguinte, promulgará uma lei que devastará os trabalhadores do país, e esta notícia passará desapercebida diante do jantar. Jogará golfe com um ator popular, e com isso passará desapercebido o fato de que ele acaba de cortar a pensão de milhões de cidadãos. Aquilo que surgiu da política da personalidade iniciada no século passado foi o carisma enquanto uma força de estabilização da vida política comum. O líder carismático é um agente através do qual a política pode entrar num ritmo regular, evitando pontos embaraçosos ou questões divisórias de ideologia. Esta é a forma do carisma secular. Não é dramático, não é extremo, mas é, ao seu próprio modo, quase obsceno”. O carisma secular de Sennett, enraizado na banalidade e no senso comum, com seu poder de estabilizar a dramaticidade da política, dando-lhe uma natureza de excitação cotidiana é, interessantemente, o oposto do carisma clássico de Max Weber, voltado para a ação de exceção e a missão limite do líder carismático. Ver “O carisma se torna incivilizado”, em O Declínio do homem público , op. cit. , pp. 319 e 320. 37 O novo patrimonialismo petista com o aparelhamento político econômico do Estado, que levou a um rápido enriquecimento parte dos companheiros sindicalistas ligados ao poder — a “nova classe” de Chico de Oliveira — foi política constante e altamente eficaz para o predomínio de Lula sobre o partido, bem cooptado e muito bem alimentado pelo boom dos novos cargos públicos. “Estudo realizado pela ocde (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que o Poder Executivo brasileiro dispõe de número exagerado de cargos de livre nomeação em comparação com outros países. São 22 mil, cerca do dobro dos existentes nos Estados Unidos. Para estas vagas não há critérios transparentes de escolha, tampouco descrição de funções e avaliação dos nomeados. (…) Para agravar a situação, foi aprovada nos últimos dias do governo de Luiz Inácio Lula da Silva uma lei que aumenta a oferta de cargos em conselhos de administração de empresas estatais. (…) Levantamento da Folha mostrou que as despesas com o pagamento de conselheiros (são cerca de 240 em 40 empresas) chegam a r

$ 9 milhões por ano — valor que não inclui desembolso com passagens e hospedagens. Agora, graças à nova lei, serão criadas vagas para representantes de funcionários. Com um detalhe: se o acionista majoritário (em geral a União) perder a maioria, devido à entrada do novo membro, poderá aumentar os assentos para restituir a relação favorável.” “Cargos e mais cargos”, Folha de S. Paulo , 11 de janeiro de 2011. Quanto à família do presidente, seu filho fez negócios milionários, sem lastro técnico algum, com uma empresa de telefonia que foi beneficiada em lei diretamente pelo governo. Concordo com o jornal quando vê neste movimento irracional de apropriação da renda pública por um grupo e um partido, para o enriquecimento pessoal de seus membros, “uma das heranças ruinosas do Lulismo”. 38 Expressões como estas, “nosso guia”, “grande líder”, expressam e criam o poder carismático em um mesmo movimento. Elas são formas políticas de relação com a liderança e com o espaço público, buscam reverberar em algum ponto social para além da mera submissão e bajulação de seus enunciadores. São, enfim, da ordem da propaganda, que visa aumentar o próprio poder na medida em que se aumenta o poder da liderança. Vejamos uma associação surpreendente a respeito deste tipo de movimento simbólico, de longa duração histórica: “[ o partido intelectual brasileiro ] alcança o seu primeiro apogeu com a ilustração outorgada do período joanino, quando, na observação de um perito nestes assuntos, era difícil distinguir a gratidão sincera da adulação da parte de homens cultos cujos sonhos pareciam ser realizados pelo lado mais inesperado (surpresa precursora de uma outra, o espetáculo desconcertante da periferia um século e meio depois, industrializando-se sob o patrocínio do imperialismo em pessoa, é claro que por sócios minoritários interpostos)”. Ver “Intelectuais do contra, porém a favor”, em “Ajuste intelectual”, de Paulo Eduardo Arantes, op. cit. , p. 36. 39 Fernando de Barros e Silva, “Mulher meia-oito”, Folha de S. Paulo , 3 de janeiro de 2011. 40 “Considero o sistema da economia burguesa nesta ordem: capital , propriedade fundiária , trabalho assalariado ; Estado , comércio exterior , mercado mundial .” Karl Marx, “Para a crítica da economia política”, em Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos , São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 133. Para ver o lugar originário do Brasil no grande período mercantilista e de acumulação primitiva do capital global, que coincidiu com a origem do espaço histórico colonial americano, ver Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777–1808) de Fernando A. Novais, São Paulo: Hucitec, 1979. 41

Como se sabe, esta percepção é a de uma tradição teórica crítica a respeito do país: “Não custa recordarmos pela enésima vez que a via brasileira para o capitalismo moderno não tomou feição clássica, que em trinta anos passamos a bem dizer de uma economia primário-exportadora para uma configuração industrial oligopólica, queimando o impulso societário organizador que os países centrais devem ao longo período de capitalismo competitivo movido a luta de classes. Como este salto à frente carrega consigo uma espécie de Antigo Regime funcional, era natural que nestas condições nos tornássemos um aleijão, menos por deficiência interna do que por sermos de fato a fratura exposta do capitalismo mundial”. Paulo Eduardo Arantes, “Ajuste intelectual”, op. cit. , p. 28. É este aleijão da formação histórica heterodoxa brasileira, ornitorrinco , em outra metáfora, que se trata de atualizar e reformar plasticamente , como numa verdadeira cirurgia plástica social, no momento avançado do Brasil na crise do capitalismo mundial do governo lulo-petista. 42 “A ruptura de 1808 não será tão radical quanto se tem dito e escrito: ainda se movia no oceano o braço brasilianizado do sistema colonial: a rede de importação de mão de obra cativa, o tráfico negreiro. Depois de 1850, o mercado de trabalho nacional continua dependente, nos seus setores dinâmicos, do trato de imigrantes europeus, levantinos e asiáticos. Só nos anos 1930–40 a reprodução ampliada da força de trabalho passa a ocorrer inteiramente no interior do território nacional. Essa é a variável de longue durée que apreende a formação do Brasil nos seus prolongamentos internos e externos: de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterritorializado: o contingente principal da mão de obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional. A história do mercado brasileiro, amanhado pela pilhagem e pelo comércio, é longa, mas a história da nação brasileira, fundada na violência e no consentimento, é curta.” Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes , São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 354 e 355. 43 Ver João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais, “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, em História da vida privada no Brasil, Volume 4, São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 44 Esta é a grande onda ideológica, movida a mercado interno, petróleo e diplomacia, do final do governo Lula. Não é necessário sermos analistas especializados para a enunciarmos, muito pelo contrário. Um brasileiro e homem do mundo como o atacante de futebol Ronaldo Nazário, o Ronaldo Fenômeno, que viveu grande parte de sua vida, por 14 anos, na Europa, chega facilmente à mesma conclusão nas páginas de jornais do fim do período: “Eu estou muito otimista com o Brasil. O país vai continuar no mesmo ritmo de crescimento. Eu fui para a Europa agora e vi o quanto eles estão sofrendo com essa crise econômica. E aí você valoriza o nosso crescimento. O Brasil encontrou o seu espaço, assumiu o seu lugar no mundo”. Em Mônica Bergamo, Folha de S. Paulo , 26 de dezembro de 2010.

Ou ainda um jovem artista da época, o quadrinista francês Patrice Killofer, que esteve no Brasil no final de 2010: “O Brasil me apareceu como uma mensagem de esperança. Senti lá uma grande energia, um otimismo. Um país dos possíveis. Como um mundo em miniatura, que contém todo o planeta, tudo o que faz a terra está presente no Brasil, como uma maquete do mundo que se vai de antemão com alegria. O Ocidente envelhece, a China não é engraçada, os países árabes carregam frustrações demais…”, em O Estado de S. Paulo , 28 de janeiro de 2010. 45 Nelson de Sá, em Toda Mídia, Folha de S. Paulo , 14 de dezembro de 2010. O itálico na passagem citada acima a respeito da bancarrota tucana é meu. Quanto a Lula deixar o cargo com aprovação de 77%, os dados se modificaram: no dia 16 de dezembro de 2010, a última pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Indústria ao ibope registrou nacionalmente 80% de aprovação do governo, 87% de aprovação pessoal do presidente e 81% de índice de confiança na figura do presidente [ sic ], e o último Datafolha indicou o término do governo com 83% de aprovação… Também é bastante importante sempre lembrarmos o que está por trás da euforia americana e do mercado com o Brasil; na mesma coluna do jornal citado, alguns centímetros abaixo podíamos ler: “Um dia após a revelação via Wikileaks do lobby de Chevron e Exxon contra as novas regras do pré-sal, que incluíram conversa com José Serra, o destaque do Brasil no Google News foi que a também americana General Eletric comprou a inglesa Wellstream, de equipamentos para exploração. No Wall Street Journal a sessão de negócios sublinha a importância do Brasil para a ge . No Financial Times , ‘um dos maiores atrativos da Wellstream é sua exposição ao Brasil’, que gera a maior parte dos seus lucros — junto à Petrobras.” 46 Por exemplo, no Toda Mídia da Folha de S. Paulo de 19 de novembro de 2010: “Wall Street Journal: ‘ gm vai investir us

$ 2 bilhões no Brasil’ no ano que vem. É o dobro do que investiu neste ano no ‘quarto mercado de carros do mundo’”, ou “New York Times: ‘mudando seu foco para os mercados emergentes de maior crescimento, a Ford está recuando no Japão, de economia estagnada. Anunciou a venda de sua participação na Mazda e a ‘reestruturação das operações globais, enfatizando particularmente Brasil, China e Índia’”, ou ainda “ bbc :a ocde , Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, chamada ‘clube dos ricos’, prevê dois anos de forte expansão para o Brasil”. De todos os pontos de vista que possamos olhar a figura de Lula, do grande capital ao do pobre das classes c e d brasileiras, o seu carisma pode sempre ser diretamente traduzido em dinheiro. 47 Ver a respeito disso a descrição do tipo em Leite derramado , de Chico Buarque de Holanda — uma obra-prima extemporânea do período —, que faz a sociologia histórica catastrófica da irresponsabilidade e violência de classes brasileira, evoluindo para a bancarrota do presente o tipo de aristocracia do nada já apresentada por Paulo Emílio Sales Gomes em Três mulheres de três ppps . 48 Índices do Fundo Monetário Internacional, em indexmundi.com . “O peso das matérias-primas nas exportações do Brasil praticamente dobrou na última década, saltando de 22,5% no primeiro semestre de 2000 para o recorde de 43,4% ( us $ 38,7 bilhões) em igual período de 2010. O aumento é atribuído à forte demanda da China por commodities , como ferro e soja, que juntas representam 25% de todas as vendas brasileiras ao exterior. Em contrapartida, a participação de bens industrializados nas exportações diminuiu de 74,4% para 54,4%. A alta nas exportações de produtos básicos contribuiu para que o país acumulasse us

$ 255 bilhões em reservas.” “Dobra peso de produto básico nas exportações”, Folha de S. Paulo , 11 de julho de 2010. É muito interessante o modo como o capitalismo “básico” brasileiro se encontrou com o capitalismo global no período. 49 Ver Portal Brasil, brasil.gov.br/matriz-energetica/pre-sal. 50 De fato, mais do que nunca, um sujeito “a-sujeitado”, como dizia Lacan a respeito do sujeito do inconsciente. 51 Lojinhas privê do luxo e do lixo dos muito endinheirados, constantemente envolvidas, no período, em crimes de contrabando, formação de quadrilha e lesão do fisco. A ponto da famigerada Tânia Bulhões conseguir chegar a ser condenada, por estes motivos, pela justiça brasileira, em 2010. A Daslu, de Eliana Tranchesi, também foi processada pelos mesmos crimes, após uma batida espetacular e certeira da Polícia Federal, que, com este movimento, calou fundo o próprio movimento “Cansei” de uma burguesia paulistana entediada e oportunista, que na semana anterior à ação da pf tentara atingir o governo envolvido profundamente no escândalo de corrupção do mensalão. 52 A respeito da noção de capitalismo de laços, de como as direções dos grandes grupos econômicos brasileiros pertencem a pouquíssimas pessoas, e continuam a pertencer mesmo após grandes reestruturações econômicas, compondo um “mundo pequeno”, ver “Mudar tudo para não mudar nada: análise da dinâmica de redes de proprietários no Brasil como ‘mundos pequenos’” de Sergio G. Lazzarini: “Utilizando metodologia de análise de redes se observa que as redes de proprietários no período analisado se comportam como ‘mundos pequenos’: ao mesmo tempo em que existem grupos de proprietários extensivamente ligados uns aos outros, existem alguns poucos atores centrais que acabam por conectar diferentes grupos. Devido à sua posição estratégica na rede, tais proprietários — notadamente, fundos de pensão e o próprio governo — conseguiram explorar oportunidades de participação societária decorrentes da própria reestruturação da economia.” Revista eletrônica da Fundação Getulio Vargas – eaesp , rae

– eletrônica, Vol. 6, nº 1, art. 6, jan/jun 2007. 53 Foi neste ponto de império do fetichismo da mercadoria que foi parar a ética e a estética de si a si do último Foucault. A respeito da perversão industrial de si a si ver “Ruínas do pop”, Tales Ab’Sáber, em Folha de S. Paulo , Mais!, 5 de julho de 2009. 54 O brasileiro é o cidadão nacional que pretende consumir mais tênis de marca , mas está entre os que menos pretendem viajar para o exterior, em 2011; é o que diz uma pesquisa ampla realizada pelo Banco Crédit Suisse, com 13 mil pessoas que ganham até 2 mil dólares em sete economias emergentes — Brasil, Índia, Rússia, China, Egito, Indonésia e Arábia Saudita. Esta é a ordem da cultura entre nós, consumo e marcas, e não viagens, experiência e conhecimento. Ver site bbc Brasil, pesquisa de consumo brasileiros . 55 “Elite”, Fernanda Torres, Folha de S. Paulo, 8 de janeiro de 2011, p. E14. 56 “Cultura e Política 1964–69”, em O pai de família e outros estudos , São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 90. 57 Já em 1994 a avaliação era inteiramente outra, e explicava precisamente o ponto: “Como imaginar um pensamento crítico hoje que não seja crítica do fetichismo da mercadoria? O capitalismo hoje é mais universal do que nos tempos de Marx, mais universal do que nos anos 60, e, entretanto, foi o marxismo que saiu de campo. Ora, a teoria crítica da sociedade contemporânea só tem de ser uma teoria crítica do capital, que é o que está aí”. “Do lado da viravolta”, entrevista de Roberto Schwarz em Desorganizando o consenso , organização Fernando Haddad, Rio de Janeiro: Vozes, Editora Fundação Perseu Abramo, 2008, p. 18. 58 As canções de Caetano Veloso de 1967–68, “Alegria, alegria” e “Superbacana”, indicam precocemente de modo quase erótico o estabelecimento deste novo solo da cultura, o do valor geral da mercadoria para o espírito. Ainda em 1969, os Mutantes fizeram uma interessante e moderna canção, com clima de à bout de souffle , para a Shell, “Algo mais”. 59

Roberto Schwarz, “Notas sobre vanguarda e conformismo”, em O pai de família e outros estudos, idem. 60 Uma avaliação semelhante sobre o destino da cultura universitária rigorosa e crítica, condensada aqui no campo da filosofia, e do que se tornou ser culto, entre nós: “Deste quadro faz parte o disparate: mal-estar na Universidade, relativo ‘à vontade’ na mídia. (…) O referido desmoronamento [ das antigas estruturas modernas de gestão da vida ] (que tem escala mundial), ao mesmo tempo que alterou radicalmente o perfil da demanda, transformou a filosofia em uma espécie de conversa sobre cultura. Sem nunca ter pensado no assunto (nem seria possível), vínhamos nos preparando para a guinada desde a primeira época do estruturalismo francês, quando o repertório filosófico foi ampliado, abarcando linguística, psicanálise, etnologia, nova história, neovanguarda literária etc. (…) Ocorre que nesse meio tempo a eufemística acumulação flexível já havia se encarregado de promover o arabesco intelectual a estilo de vida que se consome, desde que devidamente animado por intermediários qualificados operando no setor. (…) Quem disse que o Iluminismo se transformaria em um engano de massas imaginou muita coisa, mas não que a filosofia enquanto crítica da cultura seria servida por animadores culturais e congêneres. Assim, o mercado que nos fustiga por obsolescência estatal é o mesmo que nos afaga e nos obriga a tirar coelhos da cartola diante de uma plateia embandeirada por banqueiros, ministros e colunáveis”. Paulo Eduardo Arantes, “Ajuste intelectual”, op. cit. , pp. 32 e 33. 61 Ver a análise deste novo movimento de fusão espetacular entre cultura e capital, e seu saldo final simplesmente falso , em “Sofística da assimilação”, de Paulo Eduardo Arantes, em Zero à esquerda , op. cit. , p. 191. 62 Uma crítica dialética rigorosa percebe este movimento de longe: “Devo estar mal informado, mas tenho a impressão de que o momento artístico no Brasil não é de aspirações máximas. Se for verdade, seria um fato ideológico e artístico a meditar, e uma novidade no Brasil, onde de muito tempo para cá sempre houve um artista mirando alto. O que terá acontecido para que hoje não haja ambições equivalentes? O avanço da mercantilização na área da cultura pode explicar alguma coisa. Também a mudança na relação dos intelectuais com o Brasil pobre deve estar pesando. (…) Os recursos da grande arte deste século mordem menos e estão rotinizados. Eu sinto uma insatisfação brutal com a cultura contemporânea. Você vai ao cinema e sai desolado, liga a tv , lê o jornal, é uma coisa pior que a outra. (…) O grau de empulhação na mídia, e aliás também na universidade, é muito alto. Como é que este concentrado de mentiras e de má-fé se deposita dentro das pessoas? Se estas questões fossem examinadas de perto, com um mínimo de acuidade e

franqueza, muita gente ilustre de nosso mundo dito cultural ia ficar com cara de malfeitor.” Roberto Schwarz, “Do lado da viravolta”, op. cit. , pp. 21 e 23. 63 Theodor Adorno, “O ataque de Veblen à cultura”, em Prismas , São Paulo: Ática, 2001, p. 87. 64 Nas palavras de um observador que esteve lá: “Não foi uma noite fácil. Os desavisados saíam às dezenas do teatro do sesc Pinheiros após uns vinte minutos de show. Foram surpreendidos por uma música cheia de distorções, sem melodias, sem padrões, sem canto, assaltos de urros e restos de sons urbanoides, como sirenes e metrô. Como cães metálicos ganindo, a guitarra de Lou Reed e o saxofone de Ulrich Kriger pareciam serras elétricas desgovernadas na noite de São Paulo. (…) Somente na metade do show é que Lou Reed soltou algumas frases soltas (O que você pensa? O que você vê?) sobre uma base que lembrava uma improvisação jazzística, mas um primo bem remoto desta. Com gestos enérgicos com a mão, como um maestro da improbabilidade, Lou ordenava ao outro parceiro da noite, para que castigasse a percussão eletrônica, ou estendesse efeitos. No saguão fora do teatro, a plateia que fugia gargalhava aliviada. ‘Está insuportável’, dizia a educadora Isis de Palma. ‘É um desconforto que dá, é um incômodo’, definia a professora.” Jotabê Medeiros, “Lou Reed maltrata, mas canta Velvet”, O Estado de S. Paulo , 21 de novembro de 2010. englishLou Reed encerrou sua apresentação com a canção “I’ll be your mirror” do Velvet Underground, que diz, “I’ll be your mirror/ Reflect what you are, in case you don’t know”. 65 Em Pass thru fire — the collected lyrics , Lou Reed, Da Capo Press, 2008, p. 118. Uma possível tradução livre: “Quando vejo você vindo baby/ Eu só quero sair correndo, pra bem longe/ Você não é o tipo de gente que eu deseje ficar// Quando vejo você descendo a rua/ piso em suas mãos, caio fora, esmago, lustro, os seus pés/ Você não é o tipo de pessoa que eu queira conhecer”. 66

“O indivíduo que foi marcado pelo pensamento espetacular, empobrecido, mais do que qualquer outro elemento de sua formação , coloca-se de antemão a serviço da ordem estabelecida, embora sua intenção subjetiva possa ser o oposto disso. Nos pontos essenciais ele obedecerá a linguagem do espetáculo, a única que conhece, aquela que lhe ensinaram a falar. Ele pode querer repudiar essa retórica, mas vai usar a sintaxe desta linguagem. Eis um dos aspectos mais importantes do sucesso obtido pela dominação espetacular.” É a percepção precisa de Guy Debord em Comentários sobre a sociedade do espetáculo , Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 191. Advertem-se os curiosos que...