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Portuguese Brazilian Pages [312] Year 2008
Inserção internacional – Formação dos conceitos brasileiros analisa a relação entre o interno e o externo, o Brasil e a ordem internacional. Fá-lo desde a perspectiva dos conceitos elaborados por pensadores e analistas brasileiros. O livro insere o Brasil no campo da teoria das relações internacionais, uma disciplina fundamental para os estudos nessa área.
Aplicabilidade: Este livro pode ser utilizado nas disciplinas: Teorias das Relações Internacionais, Política Externa Brasileira e Análise de Política Externa.
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Inserção Internacional
As teorias das relações internacionais embutem valores, padrões de conduta e interesses de nações ou grupo de nações onde são elaboradas. O jogo de ambições, culturas, interesses econômicos, segurança, ordenamento global, vizinhança são alguns dos fatores analisados e que limitam o alcance explicativo dessas teorias, bem como sua isenção e imparcialidade. Ainda assim, influem sobre a decisão dos governos e outros agentes. O livro agrega ao pensamento internacionalista a contribuição brasileira que, em boa hora, convinha sistematizar.
Amado Luiz Cervo
Inserção Internacional
Inserção Internacional formação dos conceitos brasileiros
Amado Luiz Cervo
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inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros
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inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros
obra apoiada por bolsa de Produtividade em Pesquisa do cnPq
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ISBN 978-85-02-06570-3 CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. C413i Cervo, Amado Luiz Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros / Amado Luiz Cervo. – São Paulo: Saraiva, 2008. Inclui Bibliografia ISBN 978-85-02-06570-3 1. Política internacional - Brasil 2. Brasil - Relações exteriores 3. Brasil - Política econômica. 4. Brasil - Política e governo I. Título.
07-2838.
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Sobre o autor
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Amado Luiz Cervo é professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPq. Possui 16 livros publicados, 33 capítulos de livros e 33 artigos em periódicos especializados. Contribuiu para a modernização dos estudos de Relações Internacionais no Brasil, promovendo, em especial, a história das relações internacionais. Manteve estreita cooperação acadêmica com centros avançados do exterior, indispensável para quem se ocupa com o campo das relações internacionais. Aproximou estudiosos brasileiros, particularmente da Universidade de Brasília, onde trabalha desde 1976, com colegas de outros países, sobretudo argentinos, franceses, portugueses, italianos e alemães. Em reconhecimento por sua contribuição à Instituição e às ciências humanas, a Universidade de Brasília concedeu-lhe o título de Professor Emérito. Contato com o autor: [email protected]
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Prefácio
A política externa do Brasil foi, durante muito tempo, uma espécie de domínio aristocrático, reservado a certos segmentos da elite agrária e da incipiente burocracia. Teve, inegavelmente, sucesso em seu objetivo principal, qual seja garantir a integridade territorial e a legitimidade das fronteiras. Ao mesmo tempo buscava boas perspectivas comerciais na Europa e a segurança na América do Sul (onde o País era um Império entre Repúblicas), particularmente na Bacia do Prata. Com o advento da República, e a paralela emergência da Argentina, a diplomacia brasileira procurou a “aliança não escrita” com os Estados Unidos, barganhando sempre uma posição de autonomia. Mas a Grande Depressão, de 1929, pôs fim ao provincianismo da oligarquia cafeeira e impulsionou a industrialização e a construção de um Estado e de uma nação modernos, com a conseqüente emergência de uma política externa mais ativa, voltada ao apoio ao desenvolvimento. A agenda diplomática de uma sociedade em plena industrialização sofreu profunda alteração, pois o Brasil não poderia permanecer como aliado secundário e regional de uma única potência. Com a Política Externa Inde-
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VIII
Inserção InternacIonal: formação dos conceItos brasIleIros
pendente o País superou sua dimensão regional, diversificando suas parcerias e atingindo todos os continentes. Mudanças de regime, apesar de seguidas por hiatos de liberalismo econômico e alinhamentos subordinados no plano externo, não chegaram a interromper uma linha diplomática que tem sido, predominantemente, de Estado e não de governo. Com uma sutileza instigante, a Casa de Rio Branco manteve com criatividade a defesa de princípios próximos ao ideário de Bandung, que forjou muito antes dessa conferência. Sessenta anos após a crise de 1929, o país encerrava um ciclo de desenvolvimento bem-sucedido, apesar do aprofundamento das desigualdades sociais. Os abalos na estrutura do sistema mundial, com o fim da bipolaridade, obrigaram o Brasil a buscar novas formas de inserção diante da globalização. Com o profissionalismo que caracteriza o Itamaraty, já vinha sendo buscada a aproximação com os vizinhos, paradoxalmente, a última fronteira a ser explorada por nossa diplomacia. Ao mesmo tempo, iniciavam-se com intensidade os estudos acadêmicos de relações internacionais no País, em meio a certa perplexidade quanto ao caminho a seguir. Houve quem pregasse o abandono da rica tradição diplomática brasileira, atitude que começou a refluir no fim da década de 1990. Para tanto, foi fundamental o posicionamento de alguns acadêmicos críticos, como o autor deste livro, que ousaram manter uma oposição construtiva. Ele desenvolveu uma reflexão rica sobre a interação entre a política externa e o Estado-nação na construção do desenvolvimento. Amado Cervo, historiador de formação, conseguiu apreender, ao longo de sua trajetória profissional, o que Pierre Renouvin denominou de forças profundas das relações internacionais do Brasil. Nesse sentido, este livro representa o coroamento de uma carreira dedicada ao estudo da política externa brasileira. Sintetiza o conhecimento empírico acumulado, enriquecido com uma teorização madura que analisa as escolas de pensamento diplomático e estabelece uma periodização, a qual identifica as tendências dominantes e os momentos de exceção. Seu embasamento decorre de um trabalho de mais de trinta anos como professor universitário, quase todo na Universidade de Brasília, sendo o pioneiro acadêmico no estudo das modernas relações internacionais no Brasil. Depois do lançamento de Contato entre civilizações, em 1975, foram dezenas de artigos e livros, dentre os quais destaca-se o clássico manual História da Política Exterior do Brasil, redigido em parceria com Clodoaldo Bueno.
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IX
PrefácIo
Com seu estilo afável, mas extremamente firme em suas convicções, Cervo realizou seus estudos de pós-graduação em Estrasburgo, mas jamais adotou uma visão colonizada, apesar de seu fino viés alsaciano no plano pessoal. Autêntico cavalheiro de fala mansa, Amado Cervo orientou dezenas de teses, formou uma geração de professores e, parcialmente, de diplomatas, criando redes internacionais de pesquisa e desenvolvendo uma intensa atividade editorial e institucional. Seu trabalho, sem dúvida, projetou o Brasil no campo do estudo das relações internacionais, assim como também contribuiu decisivamente para o estabelecimento de uma sólida ligação entre a academia e a diplomacia. Seu universalismo se associou, dialeticamente, a um sentimento de brasilidade, tão necessário nos dias de hoje. Tendo participado por dez anos de um Projeto Integrado de Pesquisa sobre a História das Relações Internacionais, liderado por ele e financiado pelo CNPq, sinto-me honrado pelo convite para prefaciar esta importante obra. Como cientista social, Cervo demonstra que não existe ação política sem ideologia, e que nada é mais ideológico do que a defesa do mercado como panacéia universal. E, nesta obra, fica igualmente claro que não pode haver uma grande diplomacia sem um grande pensamento nacional. Paulo G. Fagundes Vizentini Prof. Titular de Relações Internacionais da UFRGS
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Sumário
introdução .....................................................................................................................1 Parte i – conceitos, transiçÕes e ParadiGmas capítulo 1
no brasil: da teoria à prática ..............................................................7
1.1 diplomacia, política exterior e relações internacionais ...............................................8 1.2 tendências do pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais ..........12 1.2.1 o brasil e a cepal .....................................................................................................14 1.2.2 teorias da dependência e pensamento independentista .................................15 1.2.3 neoliberalismo e globalização ...............................................................................20 1.3 acumulado histórico da diplomacia brasileira .............................................................26
capítulo 2
transições: regime político, governo, partido e ideologia no poder .................................................................................................33
2.1 transições: o problema cognitivo ...................................................................................34 2.2 1889: transição da monarquia à república e interesses de grupo ..........................41 2.3 década de 1930: industrialização e interesses da nação ..........................................43 2.4 Períodos de 1945-47 e 1964-67: redemocratização e regime militar, dois hiatos liberais e interesses ocidentais .................................................................46 2.5 1985: transição sem mudança.........................................................................................50
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XII
Inserção InternacIonal: formação dos conceItos brasIleIros 2.6 a década de 1990: neoliberalismo de versão democrática e interesses globais ...............50 2.7 2003: continuidade democrática, mudança de modelo e interesses sociais .......................53
capítulo 3
Paradigmas da política exterior: liberal-conservador, desenvolvimentista, neoliberal e logístico.................................................. 61
3.1 teorias de relações internacionais: quais e para quê? ...........................................................62 3.2 componentes do conceito paradigmático .................................................................................65 3.3 o paradigma liberal-conservador do século XiX e da Primeira república (1810-1930) .....67 3.4 o paradigma desenvolvimentista entre 1930 e 1989 .................................................................71 3.5 o paradigma normal, também chamado de neoliberal (1990-2002) .......................................76 3.6 o paradigma logístico ....................................................................................................................82
Parte ii – o brasil diante da GlobaliZação e da reGionaliZação capítulo 4
o brasil diante da onU e da omc, das conferências internacionais, de outros órgãos multilaterais globais e do sistema interamericano ......... 93
4.1 multilateralismo ..............................................................................................................................94 4.2 contribuição do brasil à construção do sistema multilateral do pós-guerra ......................95 4.3 a reforma do sistema multilateral: os conceitos dos anos 1950 e a luta das décadas seguintes .........................................................................................................97 4.4 agir por dentro do multilateralismo com objetivos próprios: o propósito na era da globalização ..................................................................................................................................102 4.4.1 evolução dos conceitos .....................................................................................................102 4.4.2 os objetivos próprios ..........................................................................................................105 4.5 o sistema interamericano ...........................................................................................................112 4.6 a idéia brasileira de multilateralismo ........................................................................................113
capítulo 5
segurança, defesa e política exterior ....................................................... 117
5.1 as questões da segurança..........................................................................................................118 5.2 a escola geopolítica brasileira ...................................................................................................119 5.3 Gênese da relação entre segurança e política exterior: 1822-1945 .....................................121 5.4 segurança coletiva sob hegemonia norte-americana, 1945-67 ...........................................128 5.5 o conceito de poder e a nacionalização da segurança, 1967-89 .........................................131 5.6 a Zona de Paz na américa do sul, a segurança multilateralizada e a relevância global do brasil......................................................................................................136 5.6.1 Uma Zona de Paz para a américa do sul ........................................................................137
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XIII
sumárIo 5.6.2 a segurança multilateralizada ..........................................................................................141 5.6.3 Volta ao realismo .................................................................................................................144 5.7 conclusões.....................................................................................................................................148
capítulo 6
o brasil e a formação dos blocos .............................................................. 151
6.1 Globalização e integração...........................................................................................................152 6.2 formação do pensamento integracionista no brasil e na américa do sul ........................153 6.3 a idéia integracionista em marcha ............................................................................................158 6.4 consolidação do mercosul e avaliação de resultados ..........................................................162 6.5 a vocação industrial a preservar ...............................................................................................166 6.6 o brasil e o mercosul diante de outros blocos de fim integracionista ...............................172
capítulo 7
relações intersocietárias: migrações, turismo, cooperação científica .................................................................................. 177
7.1 relações intersocietárias............................................................................................................178 7.2 da imigração à emigração ..........................................................................................................179 7.3 o turismo no brasil .......................................................................................................................183 7.4 da cooperação técnica à cooperação científica ...................................................................187
Parte iii – as relaçÕes reGionais capítulo 8
o brasil e seus vizinhos da américa do sul ............................................. 195
8.1 o olhar sobre a vizinhança ..........................................................................................................196 8.2 bases mentais e culturais das relações do brasil com seus vizinhos ................................197 8.2.1 carências do pensamento cepalino.................................................................................198 8.2.2 Gerência das capacidades de poder ...............................................................................199 8.2.3 emergência do estado logístico........................................................................................200 8.2.4 a idéia de américa do sul .................................................................................................202 8.2.5 o paradigma da cordialidade oficial brasileira ..............................................................204 8.3 Quatro paradigmas de relações entre vizinhos da américa do sul .....................................206 8.3.1 rivalidade .............................................................................................................................207 8.3.2 cooperação e conflito ........................................................................................................208 8.3.3 relações cíclicas ................................................................................................................210 8.3.4 relações em eixo ................................................................................................................211 8.4 aplicabilidade dos paradigmas de relações com a vizinhança ...........................................214
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XIV
Inserção InternacIonal: formação dos conceItos brasIleIros
capítulo 9
brasil e estados Unidos: a parceria estratégica ..................................... 219
9.1 buscando compreender ..............................................................................................................220 9.2 o legado do barão do rio branco ..............................................................................................221 9.3 Parceria estratégica: gênese do conceito ...............................................................................224 9.4 Hegemonia e estruturas hegemônicas .....................................................................................226 9.5 como administrar as relações com os estados Unidos? .......................................................230 9.6 da rivalidade emergente às relações perigosas ....................................................................232 9.7 as relações triangulares .............................................................................................................237
capítulo 10
o brasil e a União européia ...................................................................... 241
10.1 relações de intimidade..............................................................................................................242 10.2 a esfera das relações sociais e culturais ..............................................................................243 10.3 a esfera das relações econômicas e de poder .....................................................................247 10.4 relações entre blocos ...............................................................................................................251 10.5 relações triangulares: estados Unidos, União européia, países emergentes ................256
capítulo 11
as relações com a rússia e o leste europeu ....................................... 261
11.1 transformações na região ........................................................................................................261 11.2 o peso do comunismo ................................................................................................................263 11.3 o peso do neoliberalismo ..........................................................................................................265 11.4 oportunidades da interdependência global ...........................................................................269
capítulo 12
as relações com o Japão, a china, a Índia e o interior asiático ........ 273
12.1 o olhar brasileiro sobre a Ásia .................................................................................................273 12.2 Japão, a parceria estratégica ..................................................................................................276 12.3 china, o futuro ao alcance ........................................................................................................278 12.4 Índia, a distância não percorrida .............................................................................................284 12.5 os tigres asiáticos ......................................................................................................................285
capítulo 13
Próximo oriente e África: oscilações da política brasileira ................ 287
13.1 regiões instáveis, relações instáveis .....................................................................................287 13.2 Próximo oriente: presença, retirada e retorno ......................................................................288 13.3 África subsaariana: atração e distanciamento ....................................................................292
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Introdução
Um conjunto de conceitos, quando entrelaçados pela função de dar compreensão a determinado objeto de estudo na área das ciências humanas, conduz, em nosso entender, à teoria. O sentido desta obra se enquadra nessa perspectiva e tem por objeto as relações internacionais do Brasil. A origem de nossos conceitos advém de duas fontes: em primeiro lugar, uma vasta literatura, em parte referida a cada início de capítulo para orientar o leitor, expõe o resultado de estudos desenvolvidos quer seja no seio de universidades brasileiras e estrangeiras, quer seja em institutos isolados de pesquisa ou individualmente; em segundo lugar, nossa própria obra publicada como resultado de décadas de trabalhos voltados ao tema das relações internacionais do País. Em ambos os casos, tivemos o propósito de expor o conhecimento de modo original e novo, por efeito de seu ordenamento, avaliação e atualização. Mesmo quando voltamos a conceitos próprios, diretamente ou pinçando-os em nossas publicações, a reflexão os depura e lhes dá o acabamento destinado a produzir nova explanação que se aproxime da construção de uma teoria.
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Para a confecção desta obra, além das duas categorias de fontes citadas anteriormente, foram utilizadas as páginas que inúmeras instituições mantêm na Internet. Esse tipo de fonte, embora conduza a textos superficiais quando adotada sem senso crítico ou com exclusividade, revela-se útil ao analista que busca o complemento de sua pesquisa e necessita de documentos oficiais, informações atualizadas acerca dos fatos, análises de conjuntura e artigos de síntese relativos à contemporaneidade dos fatos. Citamos entre os sites mais relevantes o do Ministério das Relações Exteriores, em primeiro lugar, e de algumas universidades, como a Universidade de Brasília, a Universidade de São Paulo, o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e o Centro Brasileiro de Relações Internacionais do Rio de Janeiro. A imprensa periódica, enfim, acrescenta, nesse sentido, outro complemento de informação e de opinião acerca das relações internacionais, que também revelou-se de bom aproveitamento. Este livro apresenta caráter didático, mesmo porque foi concebido a partir da experiência de ensino na Universidade de Brasília e no Instituto Rio Branco, onde oferecemos, entre outras, as disciplinas de História da Política Exterior do Brasil e Política Externa Brasileira, esta última destinada à exposição do conceito, mais do que à narrativa. Dessa experiência didática, que associa pesquisa e ensino, tiramos o método utilizado nesta obra: extrair do conhecimento histórico conceitos explicativos da evolução, sem o que não se pode compreender o presente ou tentar controlar as tendências do futuro. Em razão dessa concepção, a obra que oferecemos ao leitor envolve, em primeiro lugar, o objetivo da aprendizagem de professores e alunos dos cursos de relações internacionais, porém também se preocupa com os profissionais que necessitam desse conhecimento para tomar decisões no exercício de sua profissão. A estrutura do livro compreende três níveis de análise: iniciamos pela exposição dos conceitos-chave das relações internacionais no mundo atual e dos conceitos aplicados à inserção do Brasil nesse cenário; passamos pela análise do modo como o Brasil se conduz diante das dimensões globais das relações internacionais, como o multilateralismo, as tendências da globalização e da integração, a segurança e as relações intersocietárias; e finalizamos pelos eixos de relações regionais do país, a começar pelos vizinhos da América do Sul e Estados Unidos, seguindo por outros eixos de relações com a União Européia, a Rússia, a Ásia e a África.
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Introdução
A hipótese manipulada neste livro, com o intuito de buscar explicação para as relações internacionais do Brasil, coloca em jogo a alternativa da ação estratégica. Diante de modelos de inserção internacional postos à escolha dos dirigentes e dos agentes sociais, a alternância de longo prazo prevalece sobre a continuidade e provoca impactos sucessivos sobre o destino da nação, porém, por vezes, especialmente nos anos recentes, elementos imbricados de diferentes paradigmas de relações internacionais coabitam e os efeitos se entrelaçam. O fato é que o Brasil exibe entre as nações uma experiência singular, que o situa entre cerca de uma dezena de países que perseguem modelo próprio de inserção internacional, porque fazem de si idéia própria do papel a desempenhar no mundo.
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Parte I conceitos, transições e paradigmas
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1 No Brasil: da teoria à prática
LeIturaS recomeNdadaS: BAYLIS, John; SMITH, Steve. The Globalization of World Politics. Oxford: Oxford University Press, 2001. VIGEZZI, Brunello. The British Committee on the Theory of International Politics (1954-1985). The Rediscovery of History. Milano: Unicopli, 2005. WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: uma análise histórica comparada. Brasília: UnB, 2004. DUROSELLE, Jean-Baptiste. Todo império perecerá: teoria das relações internacionais. Brasília: UnB, 2000. SALAH, Tabrizi Ben. Institutions internationales. Paris: Armand Colin, 2005. SMOUTS, Marie-Claude. (Org.). Les nouvelles relations internationales: pratiques et théories. Paris: Sciences Po., 1998. BERNAL-MEZA, Raúl. América Latina en el Mundo. El pensamiento latinoamericano y la teoría de relaciones internacionales. Buenos Aires: Nuevohacer, 2005. MANZUR, Tânia M. P. G. Opinião pública e política exterior nos governos de Jânio Quadros e João Goulart (1961 a 1964). 2000. Tese (Doutorado). Universidade de Brasília, Brasília. CARDOSO, Fernando Henrique. Política externa em tempos de mudança. Brasília: Funag, 1994. LAFER, Celso. Mudam-se os tempos: diplomacia brasileira, 2001-2002. Brasília: Funag, 2002. CERVO, Amado Luiz. (Org.). O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 a nossos dias. Brasília: UnB, 1994. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia
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conceItos, transIções e ParadIgmas brasileira. Porto Alegre: UFRGS, 2004. ALMEIDA, Paulo Roberto de. O estudo das relações internacionais do Brasil. Brasília: Linha Gráfica, 2006. FONSECA Jr., Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais. São Paulo: Paz e Terra, 1998. DUPAS, Gilberto. Hegemonia, Estado e governabilidade. Perplexidades e alternativas no centro e na periferia. São Paulo: Senac, 2002.
1.1 diplomacia, política exterior e relações internacionais Os termos diplomacia, política exterior e relações internacionais correspondem a três dimensões da convivência entre os povos, as quais, ao converterem-se em objetos de análise, dão origem a três conceitos distintos. A especificidade de cada conceito é determinada pelo grau de abrangência que comporta: as relações internacionais correspondem ao conceito mais largo, uma vez que incluem a política exterior, que, em ordem decrescente de abrangência, inclui a diplomacia. A diplomacia compreende a ação externa dos governos expressa em objetivos, valores e padrões de conduta vinculados a uma agenda de compromissos pelos quais se pretende realizar determinados interesses. Essa agenda é, em princípio, determinada muito mais de fora do que de dentro de cada nação. O elevado grau de determinação externa da diplomacia pode ser observado em sua dimensão global, regional e bilateral. O que internacionalistas chamam de governança global, sociedade internacional ou ordem universal constitui, ao mesmo tempo, um conjunto de regras, um cálculo de interesses e um código de valores. Quando uma conferência internacional promove a negociação desses elementos, por exemplo, no campo do meio ambiente, das finanças, do comércio, dos direitos humanos e de outros direitos, da segurança e de outras questões de alcance universal, a agenda não é determinada por esse ou aquele país ou bloco político, mas de forma coletiva, nem sempre como expressão da autonomia decisória nacional. Observa-se, ademais, uma disparidade de peso relativo entre os governos, seja quando estabelecem a agenda internacional da diplomacia, seja quando atingem resultados esperados. Essa disparidade de peso pode ser explicada pelo maior ou menor poder de que dispõe cada Estado ou bloco de Estados que compõem o sistema internacional. Os processos de integração que vêm se multiplicando nas últimas décadas também espelham esse caráter externo da diplomacia, porquanto lidam com os mesmos fatores em dimensão regional, com vistas ao relacionamento dos países que integram um bloco e do conjunto desses com outros blocos ou
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países. Mesmo a esfera da ação diplomática bilateral evidencia a externalidade da diplomacia, na medida que pelo menos dois governos consentem em negociar uma agenda comum. Por sobre a ação diplomática de todos os países e blocos de países, conviria, para a sorte da humanidade, que se estabelecesse o equilíbrio na negociação, envolvendo interesses, valores implícitos e regras comuns. Mas esse equilíbrio não ocorre na prática e os conceitos de política exterior e relações internacionais fornecem explicações para as desigualdades entre potências, ou seja, entre capacidades díspares de influência dos governos no que diz respeito aos resultados da ação diplomática. Antes de 1990, a política exterior gozava de elevada consideração pelos governos e estudiosos, porque, como se supunha, condicionava a margem de manobra de uma diplomacia. Depois disso, inteligências ficaram em dúvida quanto a sua conveniência, especialmente os neoliberais latino-americanos, acadêmicos e dirigentes, que a desejavam enfraquecida ou mesmo banida do processo decisório de Estado e dos currículos nas universidades. A ordem sistêmica provida pela globalização bastava, em seu entender. No início do século XXI, todavia, à sombra do unilateralismo norte-americano, bem como em razão de efeitos nocivos da globalização e estando a integração em baixa como alternativa a esses problemas internacionais, a política exterior recuperou seu lugar de destaque na consideração dos governos e nos estudos acadêmicos. Na verdade, a política exterior não perdera tanto espaço como disciplina acadêmica e prática política na era da globalização. Em países centrais, a literatura a respeito da política exterior não cessa de crescer. Na América Latina, depois das críticas a que o modelo neoliberal esteve exposto, a política exterior recupera seu prestígio. Uma das razões para isso consiste precisamente na conexão entre duas variáveis: a política exterior fornece o conteúdo da diplomacia, sendo responsável por seus erros e acertos. Diplomacia sem política não passa de conduta vazia, movimento sem rumo, ação externa sem estratégia de realização de interesses nacionais e mesmo coletivos. Cabe à política exterior agregar os interesses, os valores e as pretendidas regras do ordenamento global, da integração ou da relação bilateral, isto é, prover o conteúdo da diplomacia desde uma perspectiva interna, quer seja nacional, regional, quer seja universal. A história das políticas exteriores evidencia as diferentes concepções do destino nacional que intelectuais e estadistas propõem a suas nações, com
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maior ou menor aceitação por parte da opinião pública, maior ou menor conversão em prática política. Para além do alcance interno que essas concepções envolvem, o papel do respectivo país sobre o cenário internacional também se desvela por meio delas. O manifest destiny norte-americano, o grand dessein francês e a revolução transnacional soviética são exemplos remotos de desígnios incrustados na política exterior. A Guerra Fria, a globalização e o combate ao terrorismo são exemplos recentes de desígnios transformados em política exterior. No caso do Brasil, em menor escala também em outros países da América Latina, a experiência histórica permite construir o conceito de projeto nacional de desenvolvimento, definido como desígnio nacional e vetor da ação externa. Quando a opinião pública, os estadistas ou os intelectuais concebem o destino da nação, seu projeto e seu papel sobre a arena internacional estão fixando pressupostos da política exterior, e quando os diplomatas moldam sua ação sobre eles, estão cumprindo adequadamente sua função. Na ausência de tais pressupostos, o que também ocorre, por vezes, o processo decisório em política exterior subordina-se a valores, interesses e regras desejados por outros, que não os cidadãos de um determinado país. Nessas condições, a nação permanece em sua infância política e há necessariamente de ser tutelada ou dominada. Uma diplomacia adequada repousa, portanto, sobre a política exterior e dela tira orientação para estabelecer a equalização entre os povos, útil à vida internacional. A evolução dos sistemas de Estado desde tempos remotos até a sociedade internacional atual, segundo Adam Watson, evidencia a importância da cultura nas relações internacionais. Dominantes e dominados organizam-se em determinado sistema por concessões de Estados independentes à autoridade, seja ela hegemonia, domínio ou império, porque aceitam regras comuns e, assim, legitimam a hierarquia do poder. Colonialismo e imperialismo brotam de concessões de povos que se resignam à infância política em nome de valores culturais ou benefícios de aparente estabilidade. A sociedade internacional européia que se expandiu em dimensão global no século XIX em razão da coerência cultural e da superioridade tecnológica conserva até hoje a herança do conflito com outras civilizações. A harmonia entre os povos do planeta requer a convivência de diferenças culturais e a equalização de interesses não coincidentes. Alcançar essa harmonia representa o maior desafio posto à sociedade internacional de nossos dias.
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O conceito de relações internacionais evoca, pois, um fenômeno ainda mais abrangente do que diplomacia e política exterior. As relações internacionais compreendem três categorias de agentes: a diplomacia, o governo com sua política e a sociedade com suas forças. Esses agentes das relações internacionais se relacionam entre si de forma a se poder vislumbrar um esquema de influências recíprocas. Assim, as forças sociais que espelham o grau de desenvolvimento econômico, como a apropriação de conhecimento científico, a inovação tecnológica, a organização empresarial e a concentração de capital, mas que também espelham outros fatores como a geografia, a densidade demográfica, a cultura, a opinião pública e o sentimento nacional, relacionam-se com a política exterior, uma vez que a sociedade organizada pretende alcançar objetivos transnacionais. Por efeito da racionalidade, as forças sociais condicionam, assim, o movimento das diplomacias, na forma de ação ou reação. O processo decisório dos governos equivale a um cálculo estratégico de meios, fins e riscos, no entender de Jean-Baptiste Duroselle. Nele, digerem-se os componentes destes três níveis da realidade: forças sociais que fornecem meios de ação, objetivos externos que correspondem a interesses a realizar e conduta diplomática coerente com os dois anteriores. A decisão em política exterior está relacionada com o grau de organização dessas forças sociais e com sua capacidade de influência sobre os dirigentes. A decisão também depende da psicologia, do caráter e do temperamento do homem de Estado. Ademais, é tributária dos próprios fatos, na medida que um fato apenas ou uma seqüência de fatos produzem, por vezes, impactos sobre a decisão. A gerência das relações internacionais requer, portanto, a abertura do Ministério das Relações Exteriores à sociedade. A reconhecida capacidade gerencial do setor externo por parte do Itamaraty, consideradas a dimensão e a complexidade da sociedade brasileira, é metodologicamente insuficiente em termos pragmáticos. A penetração de agentes, ou seja, de forças sociais, no processo decisório e na negociação, que existe obviamente em determinado grau, contribui para adequá-los aos fins da política exterior. Por exemplo, os interesses do setor siderúrgico brasileiro em relação aos Estados Unidos, onde sofre restrições de mercado, somente serão contemplados se o diplomata ouvir o empresário e seu executivo. O estudante de relações internacionais do Brasil multiplicaria exemplos dessa natureza e
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demonstraria a necessidade de abertura da diplomacia à sociedade para dela tirar inspiração conceitual e decisões práticas em áreas como investimentos, indústria, expansão empresarial, agricultura, meio ambiente, turismo, artesanato, migrações, direitos humanos e outras que a diplomacia tem dificuldades de identificar.
1.2 tendências do pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais O pensamento internacionalista lança raízes longínquas na História. Desde o aparecimento do Estado moderno, no século XVI, as relações internacionais despertam curiosidade e uma estirpe de grandes pensadores, hoje incorporados ao patrimônio intelectual da humanidade, tomou-as como objeto de reflexão ao longo dos séculos. Mesmo correndo o risco de deixar importantes pensadores de fora, não os mencionando aqui, lembramos alguns: Bartolomé de Las Casas e Tomás Morus que escreveram sobre o contato entre civilizações; Nicolò Maquiavel, sobre a arte da guerra; Hugo Grotius, sobre o direito internacional; Emmanuel Kant, sobre a harmonia universal; Leopoldo Von Ranke, sobre a história das relações entre os Estados; Adam Smith e Karl Marx, sobre as relações econômicas internacionais. À época da Segunda Guerra Mundial, esse pensamento internacionalista evoluiu e tornou-se disciplina acadêmica. Alcançou grau mais elevado de abstração e maior alcance explicativo, multiplicando-se as teorias de relações internacionais. Umas brotavam da História, alargando o campo de observação e usando o método indutivo, outras fluíam de pressupostos conceituais e utilizavam o método dedutivo. As teorias mais consistentes são aquelas que sabem gerenciar a relação entre a formulação teórica e a base histórica de observação. Na Inglaterra e, sobretudo, nos Estados Unidos, a teoria das relações internacionais abrigou-se nas universidades e revelou pretensões epistemológicas e práticas ambiciosas: fornecer a explicação-chave para as relações internacionais e inspirar as decisões dos dirigentes. As teorias firmaram-se como corpus de conhecimento nos países que criaram centros de pesquisa e ensino e são até o presente muito úteis, porquanto contribuem para iluminar o campo de estudo das relações internacionais com conceitos que lhe dão compreensão e inteligibilidade. As teorias tendem à abstração, como, aliás, todo conhecimento científico, e adquirem, pela via da generalização, alcance universal. Em vez de
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revelar consistência e realizar os dois objetivos a que se propõe — produzir inteligibilidade e inspirar a decisão —, a pretensão universal constitui uma fraqueza. Os críticos estão convencidos de que não há teoria acabada na área das ciências humanas e sociais que lidam com o comportamento humano, por isso não se furtam em demonstrar a forma contraditória e polêmica com que as teorias vêm evoluindo nas últimas décadas. O estudioso das relações internacionais percebe, contudo, outra limitação. As teorias carregam consigo valores e veiculam interesses das nações cujos intelectuais as concebem, por mais isentas e objetivas que se apresentem. Esse fato não deve ser tomado como deprimente, porém exige leitura crítica das teorias para evitar que acentuem o fenômeno da dependência cultural entre os povos, além de assentar o mundo sobre países que tiram proveito das relações internacionais e outros que são explorados porque se deixam explorar. Em termos comparativos, o Brasil é um país que acumulou sólido pensamento, que não evoluiu, contudo, para a teorização das relações internacionais. Perde para seu vizinho do sul, a Argentina, onde uma literatura mais abundante a tal respeito está disponível. Existe, pois, um consistente pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais que ainda está por ser investigado, organizado e exposto em sua riqueza de filigranas, apesar de uma primeira sistematização elaborada por Raúl Bernal-Meza. As correntes do pensamento brasileiro revelam dois traços em sua evolução recente: a vinculação com teorias latino-americanas de relações internacionais e o problema epistemológico central, o desenvolvimento. Esses dois traços são perceptíveis nas versões com que o pensamento brasileiro, aplicado às relações internacionais, se revestiu em sua trajetória, dos anos 1950 a nossos dias. Examinamos essa evolução em seis fases: a versão da Comissão Permanente para a América Latina da ONU (Cepal) e a teoria do desenvolvimento, a teoria da dependência e o pensamento independentista, o neoliberalismo e a concepção cética da globalização. Havendo centrado seu foco sobre o desafio do desenvolvimento, o pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais será exposto brevemente, porém com o intuito de avaliá-lo como instrumento político propulsor de decisões favoráveis, desfavoráveis ou indiferentes. O leitor perceberá que os pensadores brasileiros, conquanto tenham centrado sua reflexão sobre o desenvolvimento da nação, não coincidiram no modo de conceituá-lo e, logicamente, nos mecanismos de como alcançá-lo.
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1.2.1 o Brasil e a cepal O pensamento de Raúl Prebisch e do grupo que com ele compôs a Cepal, na década de 1950, particularmente Celso Furtado, constitui o ponto de partida de uma teoria latino-americana e brasileira das relações internacionais. Os cepalinos foram originais, mas não de todo. Por um lado, elaboraram uma consistente crítica à teoria clássica de David Ricardo, que preconiza a divisão internacional do trabalho e a especialização dos mercados, substituindo-a pela visão de um mundo dividido em duas metades, o centro e a periferia. Por outro, tiraram inspiração da experiência latino-americana, especialmente a brasileira, concebida pelos estadistas dos anos 1930-40, quando se configurou o paradigma desenvolvimentista de política exterior, como se verá adiante. Sustentavam os cepalinos que as relações internacionais, particularmente o comércio, comportavam mecanismos que reproduziam as condições do subdesenvolvimento, perpetuando-as no tempo, ou seja, convertendo-as em estruturas permanentes. Os conceitos que elaboraram a partir dessa visão dual de mundo apresentavam-se, por um lado, como diagnóstico da realidade, por outro, como base para a estratégia de ação. O acervo do pensamento cepalino conta com conceitos que espelham uma realidade evidenciada pela divisão das estruturas econômicas entre centro e periferia. O comércio internacional favorecia a acumulação de riqueza nos países que exportavam produtos manufaturados e importavam matérias-primas, como também a acumulação de pobreza nos países que faziam o contrário. A divisão entre ricos e pobres, centro e periferia, países desenvolvidos e subdesenvolvidos, manter-se-ia enquanto não fosse quebrada por mecanismos que a desfizessem. Os conceitos cepalinos sugeriam, portanto, aos dirigentes latino-americanos, uma estratégia política de superação da desigualdade entre as nações. A estratégia de ação proposta por eles envolvia o esforço interno das nações no sentido de promover a industrialização como política de Estado, adequando política exterior e ação diplomática para induzir um novo modelo de inserção internacional. Desde sua independência, a sociedade latino-americana havia-se estabelecido na infância social e econômica, contentando-se com formal soberania política, porém aceitando a condição de exportadora de produtos primários e importadora de manufaturados. O pensamento cepalino concebia uma quebra dessa ordem e atribuía ao Estado o papel principal de agente indutor das condições requeridas pelo novo modelo. Para esses intelectuais, estava em jogo a superação do sistema dual mundial, nada menos.
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Celso Furtado agregou o papel das diferenças no domínio tecnológico como elemento constitutivo da configuração dual do mundo. Sua teoria do desenvolvimento avança, pois, para nova etapa do pensamento, fundado em forte análise histórica. O subdesenvolvimento teria se constituído como processo histórico e como outra face do desenvolvimento capitalista, desde que alguns centros de inovação tecnológica, situados na Europa, irradiaram sua dominação sobre países ou regiões atrasadas. Assim, definiram-se as estruturas da organização local e das relações internacionais, de modo a reproduzirem-se mutuamente e a perpetuarem-se de forma dual. Osvaldo Sunkel, por sua vez, aprofundou o conceito de dominação do centro sobre a periferia, ao demonstrar que se tratava de estruturas parciais, complementares, sendo, porém, uma dominante sobre a outra. Nesse sentido, a capacidade de ditar regras ou criar mecanismos de ordenamento internacional cabia a uma das partes, dotada de estruturas hegemônicas. Esse detalhe não foi percebido pelo inglês Adam Watson, todavia o foi pelo italiano Brunello Vigezzi, especialista na contribuição do British Committee on the Theory of International Politics, para quem a sociedade internacional européia do século XIX converteu-se em poderoso instrumento da expansão capitalista sobre a periferia do mundo. Ambos os autores requerem uma nova etapa no pensamento internacionalista, que desabrocharia na América Latina. A fragilidade do pensamento de Prebisch, bem como de Furtado e Sunkel, reside, contudo, em insuficiente análise histórica. A expansão do capitalismo não comporta, a partir do século XIX, a existência de mecanismos de perpetuação da configuração dual, ao contrário, revela a possibilidade prática de rompê-los. Os dirigentes de alguns países perceberam a necessidade de romper com tais estruturas, enquanto outros acomodaram-se na condição periférica. Essa fragilidade explica, contudo, uma nova fase do pensamento brasileiro e latino-americano que representa uma evolução do pensamento cepalino, entretanto, sugere saltar para fora do sistema capitalista com o fim de superar o subdesenvolvimento. Trata-se das teorias da dependência.
1.2.2 teorias da dependência e pensamento independentista Os enfoques da dependência tomaram dois rumos no pensamento brasileiro. Uma primeira vertente, de caráter teórico e conformista, expressou-se por meio das chamadas teorias da dependência desenvolvidas por Teotônio dos Santos e Fernando Henrique Cardoso, entre outros. A outra vertente, de cará-
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ter realista e prático, foi expressa pelo grupo dos independentistas, que incluía intelectuais e diplomatas de pensamento forte, a exemplo de Oswaldo Aranha, Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro. Seus escritos vieram a público nas décadas de 1960 e 1970, porém o segundo grupo prevaleceu, ao inspirar o pensamento e a ação externa dos três chanceleres que ocuparam o Ministério das Relações Exteriores entre 1969 e 1985, Mário Gibson Barboza, Antônio F. Azeredo da Silveira e Ramiro E. Saraiva Guerreiro. Os pensadores de então, agrupados nessas vertentes referidas, foram responsáveis pelo extraordinário sucesso que alcançou o termo dependência entre os internacionalistas latino-americanos. As origens situam-se na análise estruturalista dos economistas da Cepal, mas a evolução epistemológica esteve a cargo de sociólogos, os teóricos da dependência, e de diplomatas, os quais definiram uma estratégia de superação de longo prazo. Para os sociólogos, os componentes do conceito dependência adquirem caráter similar ao que desempenham as leis científicas na elaboração de teorias físicas, biológicas ou naturais. Por isso, foram tais componentes do conceito por eles agrupados e chamados de teoria da dependência. Em síntese, a teoria da dependência e sua relação com o subdesenvolvimento assenta sobre os seguintes pressupostos: a) o subdesenvolvimento se liga a relações de dominação e dependência entre os povos; b) constitui fenômeno histórico mundial inerente às estruturas que se definiram com a evolução do capitalismo; c) comporta o conluio de interesses no centro e na periferia, de modo a favorecer, no interior das sociedades e Estados de ambos os lados, os interesses de segmentos sociais dominantes; d) por essa razão, consciência e cultura são afetadas, como se desenvolvimento e subdesenvolvimento fossem mutuamente necessários e benéficos; e) o subdesenvolvimento impregna também o poder, ou seja, a política e seu processo decisório; f) estabelece-se, enfim, a interdependência dependente, vale dizer, o fato de uns países terem economia e poder condicionados à economia e ao poder de outros países. Por considerarem tais mecanismos inexoráveis, a conclusão lógica dos teóricos da dependência encaminha-se no sentido de propor aos países atrasados a saída do sistema capitalista. Mesmo porque, na época, o capitalismo disputava com o socialismo a organização social interna e a ordem internacional. A crítica às teorias da dependência foi precoce, por isso elas não conheceram o sucesso nos meios acadêmicos brasileiros. Os equívocos que com-
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portam foram identificados, por historiadores, como sendo a manipulação do conhecimento histórico, e por politólogos, que apontaram o fato de que somente é explorado e dominado quem consente. Não existindo estruturas que mantenham o sistema internacional indefinidamente estável. Apesar da crítica, o pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais incorporou contribuições do pensamento cepalino original, como as teorias do desenvolvimento e da dependência. Entre essas contribuições que irão inspirar o pensamento dos independentistas realistas e dos desenvolvimentistas estão a descoberta de formas polarizadas de distribuição de benefícios, a incapacidade de o livre-comércio permitir a modernização da periferia, a existência de sistemas produtivos diferentes no centro e na periferia, a assimetria na inovação tecnológica, os ritmos descompassados de desenvolvimento dos países, o ordenamento espontâneo do mercado mundial segundo regras de benefícios unilaterais. A corrente de caráter realista e prático tomou, nos anos 1960, o rumo do pensamento independentista. Embora dispusessem das contribuições da Cepal, os independentes, liderados por San Tiago Dantas, formularam novas reflexões sobre as relações internacionais do País, em uma fase em que o avanço da industrialização era notável em razão do êxito do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Desenvolvimento e emancipação econômica eram as idéias-chave a serem aplicadas no plano interno; não-intervenção e coexistência pacífica dos regimes capitalista e comunista, no plano externo. Os independentes concebiam, portanto, o descolamento dos Estados Unidos e a diversificação de eixos externos de cooperação para o desenvolvimento, mas insistiam sobre a utilidade do planejamento estratégico do desenvolvimento. No berço dessas idéias, germinava o pensamento universalista, caro a Oswaldo Aranha e a Afonso Arinos, assim como fora a opção americanista valiosa para Raúl Fernandes e João Neves da Fontoura na década anterior. Com efeito, dois discursos, o americanista e o independentista, ambos vinculados à questão central do pensamento brasileiro, o desenvolvimento a promover, radicalizaram-se nos anos 1960, cindindo a opinião pública e o meio político. Os dois campos disputavam o poder com o objetivo de impor seu pensamento e sua ação. Os americanistas cogitavam usar a aliança estratégica com os Estados Unidos e o comprometimento na Guerra Fria com o fim de alimentar o desenvolvimento por meio de capital e empreendimentos norte-americanos. Prolongavam, desse modo, o pensamento de
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Neves da Fontoura. Os independentes pensavam em tomar distância da Guerra Fria e promover um modelo de desenvolvimento menos tributário do capital e da tecnologia de fora. Os americanistas triunfaram em 1964 e mantiveram seu protagonismo político durante o governo de Castelo Branco, ao passo que os independentes influíram sobre o governo de João Goulart e alongaram sua influência sobre o regime militar desde a ascensão de Costa e Silva, em 1967. Os esquemas mentais que se configuram quanto ao modo de gerenciar o processo de desenvolvimento tomam, nos anos 1960, duas formas conflitantes: o desenvolvimento associado às forças do capitalismo e tocado, essencialmente, de fora, e o desenvolvimento autônomo, tocado pelas forças internas da nação. Os nacionalistas centravam-se em torno das idéias de soberania, desideologização da política exterior, proteção das atividades econômicas e do mercado internos, fortalecimento da empresa nacional, desenvolvimento de tecnologias próprias, autonomia de segurança e solidariedade com a periferia, então chamada de Terceiro Mundo. Tiravam, portanto, inspiração do pensamento brasileiro formulado anteriormente. Já os associacionistas cultivavam as idéias de subordinação à vontade dos Estados Unidos com alinhamento político, ideologização da política exterior e envolvimento na Guerra Fria, o domínio do livre mercado sobre o planejamento do desenvolvimento, a entrada de empresas e de tecnologias estrangeiras e a segurança coletiva. Esses acabaram por inspirar, pela via do argumento lógico, os neoliberais dos anos 1990. Essas correntes de pensamento exerceram influência desigual sobre o modelo de desenvolvimento e a política exterior por este requerida, prevalecendo, na segunda metade do século XX, a corrente independentista, derrocada somente à época da globalização do fim do século. Mesmo assim, não convém insistir sobre a divisão do pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais, visto que houve, entre suas vertentes congênitas, a independentista e a associacionista, interpenetração de influências e muito diálogo político a condicionar os efeitos sobre o processo decisório e sobre a formação nacional. Um passeio pelas visões de mundo que essas correntes de pensamento comportam, visão inerente a toda teoria de relações internacionais, permite compreender melhor a simbiose que se forma na inteligência brasileira acerca da inserção internacional do País. Para os cepalinos, o mundo era o mundo
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dual, marcado pela fenda entre ricos e pobres, estes últimos dispostos a recuperar o tempo perdido e a aproximar-se dos primeiros. O mal da desigualdade não havia sido concebido como tal, em sua origem, por doutrinários, políticos e empreendedores, apenas resultava da evolução dos fatores e tinha no livre mercado, aceito pelos pobres, seu instrumento de indução. Domar o mercado tornou-se a chave da solução. O subdesenvolvimento poderia ser superado pela capacidade de que dispunha o Estado de conduzir a sociedade, mediante o planejamento da industrialização, à geração de emprego, à expansão do consumo de massa e ao desenvolvimento tecnológico. Os teóricos da dependência aprofundaram o raciocínio, chegando a conclusões radicalizadas acerca da divisão dual e não vendo solução dentro dos mecanismos do sistema capitalista. Para eles, a cooperação internacional de suas forças, com o fim de debelar o subdesenvolvimento, apenas transferia para outros patamares a dominação e a dependência, perpetuando a pobreza de metade do mundo. O pensamento brasileiro que se firma por contradição na década de 1960, quando as correntes independente e associacionista disputavam o Estado, comporta aquela visão de um mundo dual dos anos 1950, porém capaz de remediar-se desde suas estruturas internas. O dilema consistia em dosar o peso entre fatores externos e internos, com o fim de diminuir a distância entre centro e periferia e eliminá-la ao termo do processo. Em outras palavras, o que estava em jogo era a natureza da relação entre o centro e a periferia. Nesse ponto, a inteligência nacional cindiu-se na tentativa de dosagem dos fatores, inclinando-se uns para o recurso externo, outros para o interno. A idéia de cooperação internacional emergiu, assim, vinculando ambas as correntes de pensamento, porque lhes era comum. Uma visão de mundo cooperativo entre países desenvolvidos e aspirantes irá perpetuar-se como viga mestra do pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais. As derivações lógicas da idéia de cooperação se manifestaram com clareza e foram operacionalizadas pela política ao longo do tempo. Contribuíram para formar o acumulado histórico da diplomacia brasileira as seguintes diretrizes: cooperativa e não-confrontacionista, universalista, pacifista, zelosa pela soberania em razão do papel indutor do Estado e da necessidade de planejar o desenvolvimento. O ponto de equilíbrio da política de desenvolvimento permanecerá como o desafio da inteligência brasileira nas três últimas décadas do século XX. O
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regime militar não inovou, apenas deu ênfase aos fatores internos. Convinha reforçar o núcleo central da economia nacional, composto de empresas, capital e tecnologia, com o fim de conduzir o processo de desenvolvimento ao patamar de auto-sustentação, após a criação das indústrias de transformação, que dependiam cada vez mais de insumos básicos. Convinha manter as derivações lógicas da idéia de cooperação internacional, capazes de dotar de eficiência a política exterior. Ademais, essa economia política contribuía para o reforço do poder, sem o qual nada se alcança sobre a cena internacional. Um pensamento vinculado a essas duas idéias — o núcleo robusto econômico e sua correlação com o reforço do poder — foi elaborado entre os anos 1960 e 1980, não explicitamente pelos militares que ocuparam a Presidência, porém pelos seus três chanceleres, Mário Gibson Barboza, Antônio Azeredo da Silveira e Ramiro Saraiva Guerreiro. A redemocratização dos anos 1980 tampouco trouxe inovação para o pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais do País. O processo de integração que se concebeu ao sul do continente deve ser tomado como um meio a mais, não um fim da política, que permanecia voltada para o desafio do desenvolvimento. A inovação, apesar de derivada de formulações anteriores, porque contaminada pelo legado do passado, virá com a irrupção do pensamento neoliberal a partir de 1990 e com o pensamento cético acerca da globalização.
1.2.3 Neoliberalismo e globalização O neoliberalismo não foi uma invenção da inteligência política brasileira, mas antes uma assunção, devida a quatro influências externas. Em primeiro lugar, a substituição no pensamento econômico do modelo keynesiano de Estado, inerente às concepções cepalinas, pelo modelo liberal, proposto por Friedrich Hayek e Milton Friedman, e operacionalizado na Inglaterra e nos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980. Em segundo lugar, a unificação do mundo sob a égide do sistema capitalista, ocorrida após o fim do socialismo real em 1989. Em terceiro, as experiências monetaristas levadas a termo no Chile e na Argentina, de forma intermitente, desde os anos 1950, porém recentemente concebidas por escolas norte-americanas e propostas aos governos da América Latina com o fim de debelar a crise da dívida externa dos anos 1980. Por fim, a ascensão de governos neoliberais na vizinhança, Chile, Argentina, Peru, Venezuela e México. Assim,
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de repente, o Brasil cepalino e cooperativo, com Estado intervencionista e condutor autônomo da política exterior, percebeu-se isolado. Um trauma que afetaria sua inteligência política. As injunções externas não são suficientes para explicar a gênese do neoliberalismo latino-americano, visto que essa corrente de pensamento aplicado às relações internacionais assenta sobre base histórica local, composta de pensamento e ensaios políticos. Esse fermento local pôs-se em ação quando esteve em jogo o problema crônico da instabilidade monetária e da inflação, talvez decorrente das atribuições econômicas desempenhadas pelo Estado. Duas interpretações acerca das causas e duas estratégias sobre as soluções para o problema da instabilidade monetária afloraram à mente de pensadores e dirigentes. O velho pensamento da Cepal concebia soluções estruturais, como aumento da renda e do consumo, portanto, industrialização e expansão do mercado interno, ao passo que os monetaristas concebiam soluções de choque, mediante manipulação tempestiva da moeda e do mercado, confrontando-se, pois, estratégias de longo prazo e de curto prazo. Ambos tinham em mente a estabilização econômica, porém os neoliberais a restringiam à estabilização monetária. O valor supremo da política deslocase, destarte, do desenvolvimento a promover para a inflação a matar. Mas as derivações dessas duas linhas de ação, agora estando em mira as derivações da estratégia neoliberal, compõem um conjunto de idéias assentado em corpus de observação e conhecimento. O neoliberalismo veio a erigir sua própria visão de mundo e a propor modelo próprio de inserção internacional, no Brasil e em quase todos os países da América Latina. Substituiu a visão estruturalista tradicional e embarcou no paradigma da globalização do fim do século XX. Substituiu a visão dual entre centro e periferia e a idéia de conserto da ordem internacional pela de um mundo unificado pelos fatores transnacionais do capitalismo. O curso profundo desse pensamento abandona, no Brasil, a crítica à economia ricardiana clássica da divisão internacional do trabalho e das vantagens comparativas, e reflete, ademais, o estágio de avanço da competitividade nacional, reivindicando, como benéfico, o livre mercado global. Como expressão mais elaborada desse pensamento no Brasil, convém referir dois intelectuais consistentes, que garantiram sua atuação como dirigentes da nação, Fernando Henrique Cardoso, Ministro de Relações Exteriores e Presidente da República, e Celso Lafer, por duas vezes Ministro de Relações
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Exteriores. Seus textos, que ainda são pertinentes, incluem reflexões de homens de Estado, como também pesquisas e análises que expressam idéias, visões do nacional e do internacional e, sobretudo, um modelo alternativo de inserção internacional. Três requisições essenciais conduzem o pensamento neoliberal: a) eliminar o modelo do Estado desenvolvimentista interventor, julgado perdulário e ineficiente em termos econômicos; b) abrir o mercado e o sistema produtivo à penetração dos fatores externos do capitalismo, considerados suficientes para promover o desenvolvimento à época da globalização; c) ferir o conceito de sociedade com que se ocupava o Estado e promover a oportunidade de indivíduos, o que supunha enorme deslocamento da renda. De certo modo, neoliberalismo e cepalismo encontram-se no propósito de origem, ou seja, transformar a economia e a organização social, utilizando para esse fim as instituições e a lei, porém separam-se ao conduzi-las por outros caminhos, a outras situações. Por isso o neoliberalismo contém uma crítica ao Estado keynesiano do bem-estar, à sua visão cooperativa, todavia controlada de mundo, e ao modo de promover o bem-estar dos indivíduos. Sob sua égide, a desregulação tornou-se mecanismo de ajuste interno e a abertura da economia, estratégia pura e simples de inserção internacional. Embora tenham levado a sociedade latino-americana ao descontentamento, à convulsão social e à derrubada pela via eleitoral de todos os governos de sua inspiração, quando a exclusão social atingiu em 2003, segundo dados da Cepal, cerca de 40% da população da região, os neoliberais consideravam-se, na origem, promotores de novo renascimento, tido como redenção dos problemas econômicos e sociais. As circunstâncias imperantes — expressão usada por Cardoso e Lafer — da interdependência global que constrangiam a mente neoliberal não deixavam alternativa ao processo decisório em política exterior. Tanto mais que acreditavam nesse mundo novo de regras justas, transparentes e benéficas para todos, a serem produzidas pela negociação multilateral, como novo ordenamento do sistema capitalista em todos os domínios das relações internacionais: comércio, finanças, direitos, meio ambiente e segurança. Ressalte-se ainda que acreditavam no efeito sistêmico e benéfico da ação das forças transnacionais que comandavam o curso profundo das relações internacionais à era da globalização. O neoliberalismo reivindicava, ademais, uma revolução na ciência, na política e no pensamento. Assimilou, enfim, o caráter de um fundamentalismo tí-
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pico da era da globalização, ao confundir argumento, raciocínio e ciência com convicção, crença e fé. Dotado de ambições messiânicas, mescladas com atributos de intolerância, o neoliberalismo provocou três reações mentais: o regionalismo aberto, um aggiornamento do pensamento cepalino, o neoestruturalismo, expresso sobretudo pelo mexicano Osvaldo Sunkel, e o pensamento cético acerca da globalização, expresso com vigor por internacionalistas hispano-americanos como Aldo Ferrer, Luciano Tomassini, Mario Rapoport e Raúl Bernal-Meza, bem como pelo brasileiro teórico da dependência, Fernando Henrique Cardoso, conduzido pelos caminhos da incoerência — ou seria da coerência a posteriori? — ao neoliberalismo, e posteriormente à crítica da globalização. Para os jovens economistas da Cepal, o regionalismo aberto constitui o ponto de chegada de uma evolução, além de evidenciar o desejo de adaptação à era da globalização do grupo originalmente ocupado com soluções para o desenvolvimento. Com sua nova proposta, pretendiam os neocepalinos conciliar a interdependência posta em marcha pelos processos de integração da América Latina com a interdependência advinda da liberalização do mercado global. Assim, a integração passa a ser considerada uma espécie de resseguro econômico diante de eventuais ameaças trazidas pela globalização, isto é, pelo curso desenfreado do liberalismo mundial, como crise financeira, comercial ou produtiva. Ao examiná-lo bem de perto, o observador percebe, contudo, que o regionalismo aberto inclina-se mais para o neoliberalismo do que para o estruturalismo cepalino, uma vez que enaltece a abertura econômica, afasta o protecionismo criador de empreendimentos e tecnologias, sugere a adesão aos temas globais e impregna a agenda diplomática, que se movimenta febrilmente com o fim de orientar, por meio de tais pressupostos, a formação dos blocos e a negociação de tratados de comércio. O observador percebe, ademais, que o pensamento cepalino, nessa segunda versão, a exemplo do neoliberal, ainda ignora o fator de impulsão do sistema capitalista, a internacionalização econômica entendida como projeção para fora de negócios nacionais ou regionais, com que se atinge a verdadeira interdependência dos fatores mediante competitividade sistêmica e distribuição equilibrada de benefícios. Tido por referência de regionalismo aberto, o Chile revela precisamente essa condição de país que abandonou a vocação industrial, abriu seu sistema produtivo e de serviços ao empreendimento estrangeiro
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e estabilizou-se na mediocridade do setor primário, aprofundando a dependência estrutural. Os críticos da globalização, entre eles uma fatia do pensamento de Fernando Henrique Cardoso que opôs o conceito de globalização assimétrica ao de globalização benigna avançado pela comunidade epistêmica da Argentina à época de Carlos Menem, concebem modelo alternativo de inserção internacional aos que foram disponibilizados pelos neoliberais e neocepalinos. Ainda sob influência remota do pensamento dual clássico latino-americano, esses intelectuais céticos retornam com suas pesquisas à evolução histórica do capitalismo e repensam a globalização e os fatores do atraso e do desenvolvimento. As assimetrias entre os dois mundos, o desenvolvido e o subdesenvolvido, ter-se-iam imiscuído no processo histórico de evolução do capitalismo quando alguns países se diferenciaram de outros, inicialmente, ao criar e reproduzir suas vantagens comparativas intangíveis (capital, ciência e tecnologia) e combiná-las, a seguir, com o modo como as puseram em jogo ao administrar as relações com os vizinhos e, depois, com o mundo todo. Resolver o problema da relação entre o interno e o entorno, com base nessas vantagens comparativas intangíveis, significa resolver o problema do desenvolvimento. Diferentemente da América Latina que, desde a independência até o advento do processo de industrialização, buscou soluções nas vantagens comparativas naturais, do tipo: solo, subsolo, clima e setor primário. A transnacionalização das empresas e a intensificação dos fluxos financeiros e de seus efeitos universais representam fenômenos recentes, porém a globalização remonta ao século XVI, com as Grandes Navegações e a decorrente ampliação do mundo conhecido, ocorrendo por meio da unificação do mercado, em sua primeira fase, e da inovação tecnológica, desde o século XIX. O pensamento crítico desqualifica a ilusão neoliberal de que a globalização significa fenômeno recente vinculado ao fim da bipolaridade leste-oeste e afasta o consenso entre doutrinários norte-americanos e intelectuais e dirigentes latino-americanos de que a abertura econômica do presente substitui o livre-comércio de outrora como mecanismo de superação do atraso histórico. O pensamento dos críticos latino-americanos acerca da globalização converte-se em pensamento cético, ao rechaçar a visão de mundo e as soluções ao desafio do desenvolvimento concebidas pelos neoliberais. O grau de ceticismo acentua-se quando aqueles pensadores despem o neoliberalismo de
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suas bases conceituais e fixam, ao mesmo tempo, as linhas do próprio argumento: a) os níveis atuais de interdependência econômica de forma alguma carecem de precedentes históricos; b) a transnacionalização econômica não evidencia nova ordem mundial menos centrada no Estado; c) em vez de vítimas passivas, os governos são os arquitetos da globalização; d) a interdependência liberal não traz implícita uma receita de superação das desigualdades entre as nações; e) o realismo dos dirigentes globalistas latino-americanos não passa de ilusão acerca da benignidade da governança global sobre a qual assentam o processo decisório, mesmo porque essa atitude evidencia também o caráter ideológico unificador da globalização, conveniente para pôr em prática uma estratégia impopular. A crítica da globalização e o ceticismo diante do modelo neoliberal de inserção internacional se fazem presentes no Brasil de dois modos: no pensamento acadêmico de alguns grupos de internacionalistas que atuam em universidades de renome e na opinião pública que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República em 2002. Observa-se, portanto, no início do século XXI, uma confluência de pensamento, opinião pública e política exterior. Como são manifestações imbricadas da sociedade, dividem ou aproximam diplomatas, políticos, jornalistas, empresários e acadêmicos. O pensamento prevalecente durante o governo Lula conduz a uma inferência: as estruturas do capitalismo produzem benefícios unilaterais em favor dos mais fortes, como pensavam os cepalinos e os independentes, a menos que se estabeleça a união dos países emergentes, cujos governos, agrupados em coalizões (como o Mercosul), negociam reciprocidades reais nas relações com os países centrais ou travam o avanço da governança global, como pensa Celso Amorim, estrategista das relações internacionais pós-neoliberais. Durante a campanha eleitoral de 2006, cujos resultados estenderiam o governo de Lula por mais quatro anos, as duas vertentes básicas do pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais afloraram mais uma vez e de modo explícito. O embaixador aposentado Rubens Barbosa, porta-voz da oposição, definiu em artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo os conceitos inerentes à política exterior do candidato derrotado, Geraldo Alckmin. Esses conceitos refletem as tendências do pensamento que lança raízes na concepção do desenvolvimento associado e do neoliberalismo: vínculos estreitos com Estados Unidos e Europa e descolamento do mundo dos emergentes, cuja prioridade estabelecida por Lula estaria contaminada pela
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ideologia. O termo ideologia é recorrente no discurso da direita brasileira, quando critica a política exterior do governo Lula ou, quando em campanha política, se opõe a candidatos de percepção nacional de interesses e de visão realista de mundo, entretanto esse discurso traz, de fato, para a opinião pública do presente, os esquemas essencialmente ideológicos da época da Guerra Fria, como o leitor pode observar pela exposição das tendências do pensamento brasileiro. O leitor percebe que o pensamento globalista no Brasil, ao transitar da teoria à prática, também transita do Estado à sociedade, sob as versões de pensamento crítico, cético e logístico. Este último vem sendo incorporado tanto pelo Governo, que se integra às estruturas hegemônicas do capitalismo com o fim de influir na produção das regras do ordenamento multilateral, quanto pela sociedade, por meio da internacionalização de empresas de matriz brasileira que penetram as cadeias produtivas globais e alcançam competitividade sistêmica. Reviver o confronto de visões de mundo, bem como de correntes de pensamento que tendem a se apropriar da opinião eleitoral e do Estado, demonstra que no Brasil, apesar do diálogo político, o pensamento acadêmico, político e diplomático nunca fecha consenso definitivo, ao contrário, faz emergir a riqueza da divergência e das propostas alternativas. Sem impedir a definição de uma prática diplomática de caráter próprio, brasileiro.
1.3 acumulado histórico da diplomacia brasileira A política exterior do Brasil, em sua evolução, vem agregando princípios e valores à diplomacia, de modo a tornar tais elementos inerentes à sua conduta. Esses padrões de conduta não surgem tempestivamente como subprodutos da História, porém, um após outro, adquirem caráter duradouro e, por vezes, permanente. Não se estendem sobre todo o passado, visto que seu aparecimento e eventual abandono vêm escalonado no tempo. Eles exercem duas funções: em primeiro lugar, dão previsibilidade à ação externa, tanto para observadores brasileiros quanto para estrangeiros, e, em segundo, moldam a conduta externa dos governos, impondo-se à sua sucessão e até mesmo a mudanças de regime político. Resistem ao tempo, portanto, e exibem traços de continuidade inerentes à política exterior, tanto mentais quanto práticos. Contribuem para fazer da política exterior política de Estado ao imprimir-lhe a lógica da racionalidade e ao dar prevalência à continuidade sobre a mudança, à causalidade
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sobre a ruptura. O padrão do acumulado histórico vincula-se, como se verá, ao paradigma da política exterior, em cujo fermento germina, podendo, contudo, preceder ou sobreviver a um determinado paradigma. A reflexão sobre a evolução das relações internacionais do País permite identificar e descrever a origem, a essência e a duração dos padrões de conduta que compõem o acumulado histórico da diplomacia brasileira. A enumeração dos componentes desse acumulado, feita a seguir de forma sucinta, confere ênfase ao presente: a) Autodeterminação, não-intervenção e solução pacífica de controvérsias Nem sempre a diplomacia brasileira orientou-se pelos princípios de autodeterminação, não-intervenção e solução pacífica de controvérsias, como revela a política implementada nas relações com os países da Bacia do Prata nos meados do século XIX. Contudo, esse padrão da ação diplomática vem de longe e carrega, desde sua origem, princípios e valores que influenciam a conduta até o presente. Há várias causas a considerar na origem desse componente do acumulado histórico, que por vezes é designado como pacifismo da política exterior: o legado conceitual do pan-americanismo do século XIX; o pacifismo do barão do Rio Branco; o fato de o Brasil se envolver em duas guerras mundiais engendradas pelos outros; a convivência das diferenças na sociedade brasileira, que sugere a coexistência entre nações de cultura e interesses diferenciados; a valorização da soberania e da individualidade do Estado como sujeito das relações internacionais; a percepção segundo a qual a intervenção, feita sob o manto da civilização a difundir, dos direitos humanos, da democracia ou de outras causas tira, via de regra, a motivação propulsora de interesses nacionais concretos de nações dotadas de maior poder; o fato de o Brasil não dispor de potência estratégica; a valorização teórica do multilateralismo como agente da harmonia universal. Ao reconhecer a ingerência feita em defesa da democracia e dos direitos humanos, os dirigentes brasileiros da década de 1990 hesitaram em manter esse guia de conduta, mas não chegaram ao ponto de comprometê-lo em sua essência. Tanto assim é que ele chega ao presente sob a forma de divergência com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, cujas diplomacias optaram por combater o terrorismo mediante iniciativas de guerra contra outras nações. O regime cubano, a pressão dos Estados Unidos sobre a Venezuela, a nacionalização dos hidrocarbonetos pela Bolívia, apesar de contar com vozes em
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favor do abandono do componente de conduta, não demoveu a diplomacia brasileira do respeito ao princípio em questão. b) Juridicismo Trata-se de um padrão conservador de conduta da diplomacia brasileira, que reforça o anterior. Os tratados foram assimilados como fatores de estabilização das relações internacionais, desde que o Brasil firmou, à época da Independência, cerca de duas dezenas de tratados desiguais com as potências capitalistas de então e desde que, posteriormente, firmou com os vizinhos outros tantos com o fim de garantir o território e a paz. O respeito ao compromisso jurídico internacional, assumido sob as formas de tratado, convenção, protocolo e outras, envolve a soberania e assegura a autodeterminação dos povos. c) Multilateralismo normativo A valorização do multilateralismo pela diplomacia brasileira conheceu dois momentos importantes em sua gênese. O primeiro data dos anos 196070, quando o país empenhou-se na construção da chamada Nova Ordem Econômica Internacional, ao lado do Terceiro Mundo, em confrontação ao esquema bipolar, considerado de interesse das duas superpotências de então, Estados Unidos e União Soviética. O segundo corresponde às expectativas de que a globalização do fim do século XX daria origem a uma ordem internacional, cujas regras transparentes, justas e respeitadas por todos seriam estabelecidas por meio da negociação multilateral. Em razão desse interesse pelo ordenamento multilateral, as legações brasileiras contam entre as presenças mais numerosas e ativas perante as organizações multilaterais existentes desde a Segunda Guerra Mundial até os dias atuais. d) Ação externa cooperativa e não-confrontacionista Esse padrão de conduta da diplomacia comporta dois impulsos decisivos em sua gênese. O primeiro vem da era Vargas (1930-53), quando a cooperação de guerra com os Estados Unidos foi prestada com segundas intenções. Gerou-se, desse modo, a convicção de que a cooperação econômica para promover o desenvolvimento traz ganhos concretos e aconselha submeter a política de segurança a esses mesmos ganhos, portanto, recomendava não confrontar outros países. O segundo vem do governo Kubitschek (1956-61) e da Política Externa Independente (1961-64), sobretudo do chamado Prag-
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matismo Responsável de Geisel (1974-79), quando se preparou e se implementou o salto para além da cooperação entre Brasil e Estados Unidos, até então considerada suficiente como eixo externo promotor do desenvolvimento nacional. Na virada do milênio, a globalização deprime o padrão da cooperação bilateral, enfraquecendo-se as parcerias em favor de laços da interdependência sistêmica, mas sem sacrificar o não-confrontacionismo. e) Parcerias estratégicas O padrão corresponde ao aprofundamento do que foi percebido anteriormente como necessário, em certos casos. A iniciativa compete à diplomacia brasileira, em razão de objetivos e interesses nacionais de primeira importância a serem realizados por meio da ação externa. Pensado por Kubitschek e os independentes, desde que a cooperação com os Estados Unidos revelou-se insuficiente e por vezes nociva, depois diversificado por Geisel, o padrão da parceria estratégica norteia as opções de cooperação externa para o desenvolvimento, não sem refletir uma divisão dos dirigentes e dos diplomatas, alguns dos quais manifestam preferências exclusivas por parceiros do Primeiro Mundo. A mais longa e relevante parceria, Brasil-Estados Unidos, entra em crise nos anos 1970 e a política exterior dirige seu foco para a diversificação. Essa primeira evolução do padrão sofre nova inflexão ao tempo da globalização, quando transita do bilateral ao regional e ao multilateral. Desse modo, as escolhas externas fizeram desfilar o interesse brasileiro por países como Alemanha, Japão, China e Argentina, por regiões como a África subsaariana e o Cone Sul, por blocos como o Mercosul e a Comunidade Andina, por coalizões de países emergentes como o Grupo dos 77, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, o G20, nascido da Conferência da OMC, em Cancun, em 2003, o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) etc. Embora a linguagem diplomática, por vezes, abuse do termo com o fim de engrandecer determinado vínculo externo, a qualificação de parceiro estratégico atribui-se, em princípio, àquele Estado, bloco ou coalizão capaz de aportar elementos substantivos à expansão do comércio exterior, dos investimentos diretos, da organização empresarial, da ciência e da tecnologia. f) Realismo e pragmatismo Os conservadores brasileiros do século XIX já eram realistas, não utópicos, voltados à valorização da vontade sobre o destino. Por isso não acreditaram na
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liga anfictiônica, uma arquitetura supranacional que Bolívar e os pan-americanistas hispano-americanos propunham. O barão do Rio Branco herdou esse padrão de conduta ao orientar as relações do Brasil para os Estados Unidos, a potência hemisférica emergente em condições de tornar-se hegemônica. Mas foi Vargas que conduziu o realismo de conduta ao novo passo de qualidade, o pragmatismo, ao operar em meio às brechas da divisão do mundo em blocos antagônicos e tirar, na medida do possível, proveito de todo lado em favor de seu projeto nacional, a industrialização. O pragmatismo, evolução e estado avançado do realismo, demonstra a prevalência da esperteza diplomática sobre as forças profundas da economia e da sociedade, bem como sobre o processo decisório de outros governos, embora nesses elementos se assente e seja limitado pela escassez de poder disponível. A evolução do realismo ao pragmatismo qualifica, portanto, a conduta externa brasileira, antes mesmo de Geisel haver aplicado o termo à sua política exterior. g) Cordialidade oficial no trato com os vizinhos Esse padrão de conduta da diplomacia brasileira foi concebido ainda no século XIX, pelo visconde do Rio Branco e, no século XX, pelo seu filho, o barão. Convém, pensavam eles, ao Brasil implementar a amizade e os negócios com os vizinhos para manter a convivência e a paz. A cordialidade oficial aconselha conduta regional que não ostente a grandeza nacional e a superioridade econômica e que elimine gestos de prestígio, mas que se guie pela realização dos interesses do Brasil sobre os dos vizinhos, seja pela cooperação seja pela negociação, e fortaleça seu poder internacional, razões que podem momentaneamente quebrar a cordialidade. A quebra não é aconselhável, por tal razão o governo Lula recusou-se a abrir conflito com seus colegas da Argentina e da Bolívia, Néstor Kirchner e Evo Morales, quando interesses do comércio exterior e dos investimentos brasileiros foram afetados. h) Desenvolvimento como vetor Entre 1930 e 1989, a diplomacia brasileira respondeu ao processo de desenvolvimento em curso, incumbindo-se de trazer insumos externos, função que lhe foi explicitamente confiada pelos homens de Estado. Ciência, tecnologia, capitais e empreendimentos de fora complementariam os esforços internos, essa era a filosofia política que presidia tal incumbência. A empolgação da era da globalização, que marcou os governos de Fernando Collor de
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Melo (1990-92) e de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), comprometeu esse padrão de conduta, sacrificando-o, em parte, à crença de que abertura econômica, liberalismo e prevalência do mercado bastariam como elementos indutores do desenvolvimento. Como o papel do Estado prevalecia anteriormente, procurou-se enfraquecê-lo para dar fluxo aos agentes da globalização, todavia a experiência revelou-se de alcance limitado, o desenvolvimento regressou aos poucos à linguagem diplomática e a opinião pública acabou por levar à Presidência, em 2003, o crítico do modelo neoliberal, Luiz Inácio Lula da Silva. Por outras vias e em novas condições de operacionalidade, o padrão de conduta restabeleceu-se e o desenvolvimento, visto com maior grau de interdependência e entrosamento com forças sistêmicas e menor vinculação com o Estado, recuperou sua antiga função de vetor da ação externa. i) Independência de inserção internacional Esse padrão de conduta da diplomacia contamina todos os anteriores como substrato ideológico. O Brasil inclui-se entre uma dezena de países, aproximadamente, cuja vocação os impele a perseguir um modo próprio de inserção internacional. A independência de inserção pressupõe visão própria de mundo, autonomia do processo decisório e formulação própria de política exterior. Os conservadores brasileiros do século XIX, como os desenvolvimentistas do século XX, cultivaram esses valores, enquanto os liberais daquela época e os neoliberais da era da globalização colocaram-nos em segundo plano. A autonomia de inserção figura como padrão de conduta da diplomacia brasileira porque se impõe sobre a longa duração e faz prevalecer o caráter nacional na inevitável simbiose entre o interno e o externo. Ela não elimina os condicionamentos externos, mas sugere dominá-los em proveito próprio, submeter a sorte e as circunstâncias e comandar o destino, em vez de apenas sofrer seus efeitos. A independência de inserção inclui, paradoxalmente, a interdependência real da era pós-neoliberal entre suas variáveis operativas.
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2 transições: regime político, governo, partido e ideologia no poder
LeIturaS recomeNdadaS SARAIVA, José Flávio Sombra. (Org.). Foreign policy and political regime. Brasília: IBRI, 2003 (ver especialmente os textos de Amado Luiz Cervo e Thomas Skidmore sobre a experiência brasileira). COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977. BUENO, Clodoaldo. A república e sua política exterior. Brasília: UnB, 1995. GARCIA, Eugênio Vargas. Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920. Brasília: UnB, 2006. CERVO, Amado Luiz. Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 43, v. 2, p. 5-27, 2000. CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais do Brasil: um balanço da era Cardoso. Revista Brasileira de Política Internacional n. 45, v. 1, p. 5-35, 2002. CORRÊA, Luiz Felipe de Seixas. Política externa e identidade nacional brasileira. Política Externa, v. 9, n. 1, p. 29, 2000. LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. SEITENFUS, Ricardo A. S. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos, 1930-1942. São Paulo: Nacional, 1985. MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões. Relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. STORRS, Keith Larry. Brazil’s Independent Foreign Policy, 1961-1964. Cornell University,
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conceItos, transIções e ParadIgmas PhD Dissertation, 1973. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre: Universidade, 1998. LIGIÉRO, Luiz Fernando. Políticas semelhantes em momentos diferentes: exame e comparação entre Política Externa Independente (1961-1964) e Pragmatismo Responsável (1974-1979). 2000. Tese (Doutorado). Universidade de Brasília, Brasília. PINHEIRO, Letícia. Foreign policy decision-making under the Geisel government. The President, the military and the foreign ministry. 1994. PhD Dissertation. London School of Economics and Political Sciences. ÁVILA, Carlos Federico Domínguez. Opondo-se ao intervencionismo. O Brasil frente ao conflito regional na América Central (19791996). 2003. Tese (Doutorado). Universidade de Brasília, Brasília. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na era dos gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. SEVARES, Julio. Por qué cayó la Argentina: imposición, crisis y reciclaje del orden neoliberal. Buenos Aires: Norma, 2002.
2.1 transições: o problema cognitivo A relação entre regime político e política exterior ocupa reduzido espaço na literatura especializada sobre relações internacionais. Ocupa menos ainda a transição propriamente dita entre regimes, governos, partidos e ideologias. Em boa medida, o fato se deve à contingência de ser essa literatura predominantemente anglo-saxônica e de não ocorrer mudança de regime político na Inglaterra e nos Estados Unidos há séculos. Recentemente, porém, o tema tem atraído o interesse, em razão da disputa pela hegemonia, no contexto da Segunda Guerra Mundial, entre democracias, ditaduras ou regimes totalitários, e durante a segunda metade do século XX, entre comunismo e capitalismo. Ademais, durante a Guerra Fria, os países da América Latina alternaram democracia e regime militar, com desenvoltura. O fim do comunismo no Leste europeu não extinguiu o regime, que sobrevive na China continental. Esses pressupostos históricos são suficientes para formular o problema da relação entre regime político e política exterior. Recente projeto de pesquisa do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, desenvolvido em cooperação com especialistas de relações internacionais de universidades européias e americanas, ampliou o problema cognitivo ao investigar o nexo entre regime político, política exterior e modelo de desenvolvimento. A junção dessa terceira variável parecia a esses especialistas uma requisição lógica: em que medida o regime — democracia, totalitarismo, comunismo, socialismo, ditadura militar — condiciona, para além da política exterior, toda a ação externa dos Estados e o próprio modelo econômico em
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transIções: regIme PolítIco, goVerno, PartIdo e IdeologIa no Poder
sua dimensão externa? No caso do Brasil, devemos indagar se entre o modelo de desenvolvimento e as relações internacionais do país existe nexo de causalidade, ou condicionalidade, com relação à Monarquia, República, Estado Novo, regime militar, democracia, neoliberalismo e ascensão da esquerda. Uma vez que a experiência histórica brasileira é rica e variada, convém, ainda, indagar acerca do nexo entre mudança de governos ou de partidos no poder e as relações internacionais. Como conviria aos norte-americanos analisar, por exemplo, o impacto das distintas visões de mundo de republicanos e democratas sobre as relações internacionais dos Estados Unidos. Os dirigentes políticos, e com eles os intelectuais, são propensos a aceitar como natural a relação entre regime político e política exterior, na suposição de que o primeiro embute na segunda uma conduta ideal. Na realidade, para a História não existe política exterior ideal acoplada à natureza do regime, porquanto a democracia e seu antagônico, o totalitarismo, têm por vezes apresentado condutas assemelhadas. A guerra do Vietnã e a guerra do Iraque, criticadas pela opinião internacional, por juristas internacionais e por moralistas, foram iniciadas e conduzidas pela democracia. As estruturas hegemônicas que perpetuam o subdesenvolvimento e a pobreza de mais de metade da humanidade, no entender do pensamento estruturalista latinoamericano, ergueram-se e produziram efeitos no seio da democracia. Por sua vez, o regime militar no Chile e no Brasil, a título de exemplos, contribuiu para fortalecer a organização liberal da sociedade e a ordem liberal global. O exame do nexo entre regime político e modelo de inserção internacional na experiência brasileira parte da seguinte hipótese: a mudança da política exterior e do “modelo” de inserção internacional ocorre sob a influência de determinados fatores vinculados ou não à sucessão de regimes ou de governos de um mesmo regime. Vale dizer que o regime político exerce influência sobre a política exterior, como também pode não exercer, sendo plausível fazer a mesma afirmação acerca do papel do governo. Com o intuito de verificar essa hipótese, examinamos as diversas mudanças e seus impactos na História do Brasil, dando ênfase ao estudo da transição entre o governo de Fernando Henrique Cardoso para o de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, visto que nesse momento ocorre uma transição ideológica no poder, de correntes ditas de direita para correntes ditas de esquerda. Duas observações iniciais permitem compreender melhor nossa hipótese de trabalho.
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Na experiência brasileira, as mudanças políticas, algumas vezes, não implicaram, de imediato, uma mudança da política exterior. Assim ocorreu com a Revolução de 1930, a implantação do Estado Novo em 1937 e a redemocratização em 1985. Quando se tentou adaptar abruptamente a política exterior à mudança do regime, observou-se, por vezes com certa rapidez, o refluxo de parâmetros anteriores dentro do mesmo regime. Isso ocorreu com a “republicanização” da política exterior em 1889 e a recuperação das tendências da diplomacia imperial pelo barão do Rio Branco em 1902; com a “ocidentalização” ou “americanização” de Eurico Gaspar Dutra em 1945 e o refluxo aos parâmetros nacionalistas da era Vargas (1930-1945) desde 1947; com a “correção de rumos” liberal e ocidentalista de Castelo Branco em 1964 e a recuperação dos princípios da Política Externa Independente (1961-1964) pelo regime militar, desde 1967. Por outro lado, a inserção internacional do Brasil sofreu mudanças de orientação dentro de um mesmo regime político. Durante a chamada República Velha (1889-1930), houve uma inflexão da política exterior quanto à percepção dos interesses a realizar, que se tornam mais universalistas com a gestão do barão do Rio Branco entre 1902 e 1912 do que o eram sob a égide da República jacobina implantada em 1889. Os militares (regime vigente entre 1964 e 1985) deram demonstração evidente de mudança dentro do regime, ao recuperar, entre 1967 e 1985, as tendências introspectivas embutidas no projeto de desenvolvimento dos presidentes Vargas, Kubitschek, Quadros e Goulart (1951-1964). A ascensão de José Sarney em 1985 e a continuidade do regime democrático até nossos dias não impediu uma ruptura em relação a conceitos e orientações da inserção internacional em 1990 e 2003. Essas duas observações permitem concluir que variáveis de médio e longo prazos prevalecem sobre o nexo entre regime político e política exterior? Caso a resposta seja positiva, estaríamos dizendo que existem determinações que exercem maior influência sobre a política exterior e a inserção internacional do país do que a sucessão e a natureza dos regimes, a sucessão de governos ou, ainda, de partidos políticos no poder? Quando o regime é substituído por outro, verifica-se maior substituição de dirigentes do que quando mudam os governos dentro do mesmo regime. Há, porém, variáveis independentes desses fatos que pesam sobre o modelo de inserção internacional. Identidade nacional, identidade cultural, capaci-
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dade de estabelecer consensos internos, grau de racionalidade na gerência das políticas de Estado, existência ou não de projeto nacional, jogo interno conflitivo ou cooperativo dos grupos e das forças sociais, autonomia decisória ou subserviência do homem de Estado, conformismo diante de condicionamentos externos ou vontade nacional são algumas variáveis a serem manipuladas nesse estudo. Convém aplicar ao tema um tratamento que aproxime dois métodos de análise. Primeiro, a análise multicausal das relações internacionais desenvolvida pela escola francesa. Essa análise ganha especificidade se vier associada ao conceito de identidade internacional do Brasil, recentemente elaborado por Celso Lafer com o intuito de explicar continuidade e mudança na política exterior. Ao sugerir o segundo método de análise, remetemos o leitor aos procedimentos da análise paradigmática que aplicamos no Capítulo 3 com o mesmo propósito de esclarecer continuidade e mudança de modelo de inserção internacional. A escola francesa de relações internacionais parece propor o “descolamento” das relações internacionais contemporâneas do regime político, ao conduzir o raciocínio para a identificação e a ponderação de quatro grandes variáveis da vida internacional: as forças, os fins da política, os componentes e o movimento, tanto das forças quanto da diplomacia. Esse modelo de interpretação situa o regime do lado das finalidades da política exterior concebidas pelos homens de Estado. Com efeito, os dirigentes interpretam as forças, sob a forma de percepção de interesses a realizar, e tomam decisões externas, engendrando uma política. O regime tem a ver com o padrão do homem de Estado e também com a dimensão institucional e operacional — instrumentos ou mecanismos de ação — disponíveis para implementar determinada política. Assim, por exemplo, os dirigentes comunistas chineses podem operar externamente por meio de um modelo de inserção interdependente de matriz capitalista. Para o estudo do caso brasileiro, a literatura sugere o conceito de identidade nacional como categoria instrumental de análise adequada para desvendar o jogo da multicausalidade através da História. Ramiro Saraiva Guerreiro examinou em seus escritos o nexo entre identidade nacional e política exterior à época do desenvolvimentismo, ao passo que Lafer estendeu tal análise para a identidade internacional brasileira como categoria explicativa de tendências e de mudanças da política exterior. Seu conceito abriga cinco
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componentes: o legado histórico, o contexto da vizinhança, a inserção assimétrica de potência média, o vetor do desenvolvimento nas finalidades da política exterior e o processo de abertura externa desde 1990. Esses componentes não são, por certo, objeto deste estudo, mas a eles devemos estar atentos, porque à primeira vista minimizam o papel do regime político sobre a política exterior brasileira. De que modo? Seguindo o raciocínio de Guerreiro, já tivemos oportunidade de chamar a atenção sobre a relação estreita entre identidade nacional brasileira, determinada pelo caráter multiétnico e multicultural da sociedade, feita ademais de desigualdades e heterogeneidades socioeconômicas, e o acumulado histórico da diplomacia brasileira: universalista ou contrária aos segregacionismos de qualquer natureza, cooperativa ou não-confrontacionista, pacifista ou orientada pela convivência das diferenças, juridicista ou valorativa da norma do direito e do ato jurídico internacional. Esses parâmetros de conduta sofreram pouco com as mudanças de governos e regimes. Eles espelham a percepção de país satisfeito consigo mesmo, que confere ao exterior um crédito de simpatia e benevolência. Tomemos, a título de exemplo, alguns elementos da identidade nacional, a começar pela cordialidade oficial no trato com os vizinhos. A vizinhança foi importante na gênese da identidade internacional e na condução da política exterior. Mas o caso brasileiro se diferencia de muitos outros, quanto ao papel que o entorno exerce sobre a configuração da identidade. Durante o período da Regência (1831-1840), em que se deu a consolidação do Estado nacional, e durante o Segundo Reinado (1840-1889), a Monarquia brasileira despendeu grande esforço para configurar o território, seja afastando ameaças à sua integridade, seja acordando com os vizinhos as linhas de fronteira. Até por volta de 1860, a imagem de uma vizinhança constituída de Estados mal-administrados contribuiu para gerar a auto-imagem de País provido de instituições civilizadas. A Argentina apenas obteve uma imagem positiva no conceito da opinião esclarecida brasileira após a ascensão de Bartolomeo Mitre, nos anos 1860. Essa visão de si e do outro transferiu-se da diplomacia monárquica à diplomacia republicana e aprofundou-se com a gestão do barão do Rio Branco entre 1902 e 1912. Assim, fortaleceu-se aquele acumulado histórico pela idéia de superioridade de força e de civilização diante dos vizinhos. Os vizinhos, concluía-se, devem ser bem tratados, mesmo porque são pouco relevantes para a vida nacional. É a chamada cordialidade oficial, que
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se cultiva até o presente como parâmetro de conduta da diplomacia brasileira no trato com os vizinhos. Monárquicos e republicanos, presidentes democratas e militares, nacionalistas e liberais ostentaram, com notável continuidade, o discurso e a prática da cordialidade oficial. Houve, por certo, momentos e homens de Estado inclinados a romper com esse padrão de conduta nas relações com a Argentina, como ocorreu por breve período no fim dos anos 1970, com Ernesto Geisel e seu chanceler, Azeredo da Silveira, em razão do contencioso acerca do aproveitamento dos rios da Bacia do Prata. Ou ainda com a diplomacia da obstrução praticada pelos chanceleres brasileiros entre 1945 e 1956, particularmente por João Neves da Fontoura, que via a aproximação com o regime peronista como ameaça aos ganhos que o Brasil auferia das relações especiais com os Estados Unidos. Observamos, pois, que a cordialidade oficial evoluiu como variável independente do regime e dos governos: transitou de uma base explicativa vinculada à imagem e à configuração do território para outra vinculada à percepção de interesses a realizar. Essa última circunstância é recente e diz respeito à criação de ambiente favorável à expansão de negócios brasileiros na América do Sul e à necessidade de realizar consenso regional do gênero pólo de poder com o fim de alcançar resultados de interesse nacional nas negociações multilaterais globais (OMC, ONU, conferências multilaterais). Tomemos outro exemplo, o de potência média com inserção assimétrica na economia internacional. A política exterior do País foi causa da inserção assimétrica do Brasil no mundo, no contexto da evolução da economia capitalista. Contribuiu para engendrar e manter esse tipo de inserção até a Revolução de 1930, característica de país exportador de produtos primários e importador de manufaturados. Desde então, a política exterior inverteu sua função histórica, ao tornar-se instrumento operacional destinado precisamente a eliminar assimetrias e a arrancar a nação da condição de nação dependente e atrasada. A condição de potência média imprimiu à conduta externa traços ambíguos: de subserviência, durante a expansão da sociedade internacional européia sob a égide do capitalismo na primeira metade do século XIX. Já durante a segunda metade do século XIX, as elites conservadoras que dirigiam o país fixaram objetivos externos e alcançaram-nos com notável coerência e racionalidade de conduta. Assim, o país equacionou seu problema de mão-
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de-obra, pondo fim ao tráfico de escravos e atraindo a imigração livre, exerceu uma hegemonia regional sobre os países da Bacia do Prata, enquanto se consolidavam por lá os Estados nacionais, fixou a linha de fronteira pela doutrina do uti possidetis e assegurou a autonomia da política de comércio exterior, que fora sacrificada pelos tratados desiguais firmados com os países capitalistas dominantes à época da Independência. Durante a segunda metade do século XX, a diplomacia brasileira de potência média, enquanto corria atrás de fatores externos de desenvolvimento, como capitais, empresas e tecnologia, buscou liderar o Terceiro Mundo em um movimento de reforma da ordem econômica internacional, confrontando interesses concretos das potências avançadas. Percebemos que o elemento fulcral da identidade nacional emerge no século XX como País em desenvolvimento. Desde o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o desenvolvimento tornou-se o vetor da política exterior, na expressão do chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro. Assegurada a soberania sobre o território, configuradas suas fronteiras, o desenvolvimento desse território tornou-se a terceira função histórica sucessiva da diplomacia brasileira, segundo a interpretação do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa. Entranhada como elemento da identidade nacional. À época da globalização, na passagem do século XX para o XXI, outro conceito aflora na auto-imagem da opinião esclarecida e dos dirigentes: o de potência emergente, não mais de integrante do Terceiro Mundo, mas envolvida e integrada ao movimento das estruturas hegemônicas do capitalismo que se voltam para o controle do ordenamento global. Essa evolução da política exterior e do modelo de inserção internacional tem a ver com regime político, partido, governo e ideologia, mas a tudo isso se sobrepõe, por vezes, como se esses fossem variáveis independentes. O elemento que qualifica esse ou aquele período das relações internacionais vinculadas àquelas variáveis não é a própria variável, mas o interesse motor pelo qual se movem os dirigentes. E sempre houve algum. Na experiência brasileira, por longo tempo, a nação padeceu de certa inércia e não respondeu aos desafios econômicos como ocorreu nos processos que levaram ao desenvolvimento um certo número de países capitalistas. Getúlio Vargas manifestou decepção diante do que considerava covardia da burguesia brasileira. Coube ao Estado colocar a nação no rumo da modernização integrada ao sistema capitalista. Esse processo foi concebido pelos di-
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rigentes brasileiros nos anos 1930 e mantido nas décadas seguintes como um processo com quatro fases a galgar. A primeira, dos anos 1930 a 1950, voltou-se para a implantação de um moderno parque industrial. A segunda, dos anos 1960 e 1970, preocupou-se em dotar a economia de elementos básicos que lhe conferissem o grau possível de autonomia. A terceira, a partir dos anos 1970, destinava-se à aquisição ou domínio de tecnologias avançadas. A quarta, dos anos 1990 a nossos dias, orienta-se pela competitividade sistêmica a atingir e pela interdependência real da era da globalização a estabelecer. Essas fases permearam ações e resultados e não corresponderam, obviamente, a períodos estanques ou dissociados. O que se percebe, contudo, são a continuidade e a racionalidade do processo que se inaugura nos anos 1930, marcado por forte presença do Estado, até a crise de adaptação desse Estado com transferência de responsabilidade às forças sociais que presenciamos na era da globalização. O minguado desempenho das administrações de Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso diante dos objetivos de desenvolvimento exigidos pela opinião pública explica a primeira eleição de um governo de esquerda na História do Brasil, em 2002, disposto à revisão do modelo de desenvolvimento que esvaziara o Estado de seu papel de comando em favor do mercado. Em suma, o papel protagônico do Estado quanto ao modelo de inserção internacional perpassa regimes e governos. Os instrumentos conceituais que expusemos até o momento não nos ajudam a ver influência importante do regime político sobre a política exterior e o modelo de desenvolvimento. Convém, portanto, aprofundar o estudo de casos de mudança antes de tirarmos conclusões sobre o nexo entre as três variáveis: regime político, modelo de desenvolvimento e relações internacionais.
2.2 1889: transição da monarquia à república e interesses de grupo Durante a depressão capitalista dos anos 1930, a América Latina rompeu com o modelo de inserção internacional que se arrastava desde a época de seus processos de independência, no início do século XIX. Durante mais de um século, os dirigentes que se apropriaram do aparato do Estado, plantadores e exportadores de produtos agrícolas ou exploradores de minérios, mantiveram o esquema de portas abertas concebido pelos dirigentes europeus — exportação primária e importação industrial — que garantia vantagens para
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ambos os lados: no centro, a expansão do capitalismo industrial, na periferia, o domínio da sociedade por uma elite social numericamente irrelevante. O Estado aqui servia aos interesses desse grupo socioeconômico hegemônico. Apesar de ser uma monarquia constitucional, o Brasil não se diferenciou das repúblicas latino-americanas quanto ao modelo liberal de inserção internacional que se estendeu do início do século XIX a 1930. Contudo, o longo período de vigência do paradigma liberal-conservador de então sofreu algumas inflexões na História do País. Entre a transferência da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808 e a expiração do Tratado de Comércio com a Inglaterra em 1844, a política exterior foi subordinada ao paradigma de portas abertas com que os países capitalistas europeus impunham à periferia seus interesses e as regras de sua sociedade internacional. Nessa época, o governo brasileiro assinou duas dezenas de tratados desiguais que amarraram o processo decisório e as estruturas da inserção internacional à ordem capitalista, de modo a engendrar a condição de inserção internacional dependente. Um grito de revolta ante essa subordinação dos interesses nacionais e do processo decisório ocorreu nos anos 1840, quando se formulou com certo grau de autonomia o primeiro projeto nacional de industrialização, fracassado aliás, que se manteve, porém, na condução das relações internacionais do País até o fim do regime monárquico. Mas não houve modificação de essência do modelo de inserção. O advento da República, em 1889, induziu a adaptação da política exterior tanto à ascensão de nova elite ao poder quanto à evolução das forças profundas da História. Na esfera externa, os Estados Unidos já representavam o mercado de destino de mais de 70% do café exportado e haveriam de atrair o eixo de relações políticas e comerciais para si. A velha Europa passou a segundo plano. Conjugava-se, portanto, o Brasil com os objetivos regionais dos Estados Unidos, que pretendiam transformar a América Latina em mercado de reserva para seus produtos industriais, já que não partilhavam da divisão de mercados levada a termo pelo colonialismo europeu. Tanto a agenda da Conferência Pan-Americana de 1889 por eles então convocada como a atuação do representante brasileiro em Washington, Salvador de Mendonça, revelam as novas disposições. A República, praticamente imposta, apelou à intervenção norte-americana, cuja esquadra sediada na Baía da Guanabara contribuiu para consolidar o regime. Favores comerciais foram cedidos aos Estados Unidos pelo acordo de 1891, em
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troca de amizade e proteção estratégica, sobre cujos elementos o barão do Rio Branco firmou a relação bilateral. Convertido o eixo de relações internacionais da Europa para os Estados Unidos, exceção feita à dependência financeira de Londres que um empréstimo de consolidação da dívida prolongava, os dirigentes republicanos submeteram o serviço diplomático à disposição central de atrair imigrantes para a lavoura e exportar café, aprofundando verticalmente o modelo anterior por meio da diplomacia da agroexportação, na expressão de Clodoaldo Bueno. A República, portanto, provocou queda de qualidade da política exterior, ao lançar novas raízes de dependência na área econômica (estrutura centro-periferia), financeira, comercial e estratégica. Prolongou o atraso histórico do Brasil, sem trazer inovação de fundo, porquanto essas tendências vinham do regime anterior, que sobre elas exercia certo controle mediante leitura mais complexa do interesse nacional. Do lado do Cone Sul, as relações com a Argentina seguiram em ciclos de tensão e distensão e a ascensão do Chile já havia sido introduzida nos cálculos estratégicos regionais. A República Velha, até 1930, buscará o prestígio externo, que convinha a plantadores e exportadores de produtos agrícolas, mas terá de lidar com três problemas de relações internacionais: o alinhamento político com os Estados Unidos, a dependência financeira de Londres e a expansão das exportações de café.
2.3 década de 1930: Industrialização e interesses da nação As relações internacionais do Brasil não foram afetadas abruptamente pelo triunfo da Revolução de 1930. Seriam, contudo, redefinidas até o advento do governo constitucional de 1934, de forma como nenhuma outra mudança de regime as afetou em toda a História do País. Desde 1929, a crise do capitalismo repercutia diretamente sobre o esquema de comércio que vinha do século XIX, exportações primárias e importações de manufaturados. Por outro lado, e com a mesma capacidade de determinação, as transformações da sociedade brasileira — aumento da população urbana, burguesia nacional incipiente, organização sindical embrionária, demanda de emprego e de produtos industriais, descontentamento militar e intelectual diante do atraso e da dependência secular — explicam a drástica ruptura calculada e segura que se operou na esfera política, tanto no Brasil quanto em outros grandes países latino-americanos.
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O paradigma liberal-conservador de política exterior não combinava com a nova conjuntura externa e interna. O sistema complementar centro-periferia de portas abertas unilaterais, proposto pelo centro e aceito pelos governos latino-americanas, cedeu à formulação de projetos nacionais que imprimiram novo rumo às políticas exteriores dos países da região. Essa nova fase teve como protótipo o Brasil de Getúlio Vargas desde o início da década de 1930, porém generalizou-se com a ascensão de Juan Domingo Perón na Argentina, a nacionalização do petróleo no México e a disposição de quase todos os grandes e pequenos Estados da região de fomentar a expansão de indústrias. Paradoxalmente, a crise do capitalismo mergulhou a América Latina em um processo de modernização rápida, ardentemente desejada pelos novos dirigentes políticos. Na origem dessa mudança, teve menos importância a continuidade ou a quebra dos regimes políticos nos diferente países latinoamericanos do que a mudança do grupo dirigente. As velhas elites oriundas da economia primária perderam poder em favor de lideranças urbanas com visão moderna de interesses e de relações internacionais. A divisão do mundo em blocos antagônicos facilitou a obra desses novos dirigentes, que negociavam sua adesão à guerra dos outros em troca de elementos promotores da indústria, como crédito para exportações, investimentos empresariais, fornecimento de máquinas etc. Até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a América Latina abriu-se à competição internacional, provocando respostas de potências rivais, Alemanha, Itália, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Japão, União Soviética, principalmente, preocupadas em assenhorear-se, por meio de seus empreendimentos, de parte, não somente do mercado de consumo, mas ainda do sistema produtivo local, que se expandia e se diversificava. Alguns elementos caracterizam a mudança de modelo de inserção internacional que se operava desde 1930: a) a inconveniência de prolongar o modelo anterior da agroexportação, que na década de 1920 cultivava o prestígio externo e procurava manter o crédito na praça de Londres e que fora objeto de críticas por parte do movimento tenentista, de intelectuais e do meio político; b) a consciência que a crise do capitalismo despertou de se estar vivenciando uma fase de transição que permitia que o desenvolvimento fosse convertido em objetivo-síntese da política exterior; c) a convicção de se poder utilizar a diplomacia para alcançar resultados, a exemplo dos países de centro, então guiados pela introspecção estratégica e econômica;
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d) a descoberta das condições de eficiência de uma diplomacia voltada para o desenvolvimento: autonomia decisória, ação cooperativa, comércio exterior flexível sem amarras doutrinais, subordinação da segurança aos fins econômicos e a concomitância de boas relações com os grandes e os vizinhos. Esses quatro elementos de observação indicam o grau de profundidade da mudança de inserção internacional que, então, se desejava para o Brasil com o objetivo-síntese de desprender, enfim, a nação dos interesses de um grupo social apenas e lançá-la no rumo da modernização. A política de comércio exterior do Brasil, desde 1935, serve de exemplo concreto de como se operava a mudança. Três princípios orientavam-na: primeiro, tirar proveito da rivalidade entre os blocos antagônicos que dividiam o mundo com o intuito de aumentar a competição interna e o poder de barganha externo; segundo, manter o comércio liberal com os Estados Unidos, levando esse país a decisões que aquele poder de barganha requeria; terceiro, realizar o comércio compensado com Alemanha e Itália, mais adequado à expansão da indústria nacional. A Segunda Guerra Mundial criou mais uma condição favorável aos propósitos do desenvolvimento brasileiro e latino-americano. A solidariedade política continental tornou-se fator preponderante nos cálculos estratégicos do governo de F. Roosevelt dos Estados Unidos, disposto a reforçar a base econômica dos vizinhos do sul, visto que essa melhoria era importante para os esforços de guerra. O Brasil de Vargas soube manipular com grande habilidade essa cooperação bilateral, enquanto a Argentina insistia em sua neutralidade, vista com relutância pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Entre 1930 e 1945, portanto, a América Latina abriu novo caminho, quando os Estados passaram a orientar por outro paradigma suas políticas exteriores. Trata-se de um movimento convergente, embora com intensidade variada entre os diversos governos. A mudança conceitual era pouco perceptível na linguagem diplomática, exceção feita, por exemplo, à mensagem de Vargas à Assembléia Constituinte em 1933, em que interpretava o jogo das diplomacias como jogo econômico egoísta de potências voltadas à realização de interesses nacionais unilaterais. A mudança era mais perceptível nos processos decisórios. Os governos da região pretendiam imitar os grandes países capitalistas e tornarem-se unilaterais na realização de objetivos externos diretamente vinculados a ganhos internos, que eram identificados aos ganhos de desen-
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volvimento, que por sua vez confundiam-se com a expansão da indústria. A industrialização converteu-se, assim, no objetivo-síntese da política exterior, porque das indústrias se esperavam o aumento da riqueza, o provimento de meios de segurança, a abertura de oportunidades de negócios para a burguesia nacional, a expansão do emprego para as massas urbanas e a modernização da sociedade como um todo, no entendimento da elite esclarecida. Transitava-se do interesse de um grupo para o interesse de uma nação. A análise que fazemos das experiências latino-americanas de então coloca em plano bem secundário a capacidade explicativa dos regimes políticos na origem do novo paradigma de inserção internacional. Os Estados da região foram ocupados por novos dirigentes que alijavam do poder as velhas oligarquias da era liberal-conservadora. Esses novos dirigentes iam adaptando a leitura do interesse nacional às demandas de uma sociedade em transformação. Não convinha, em sua avaliação, que se prolongasse a funcionalidade anterior do Estado, posto a serviço do grupo socioeconômico hegemônico e distante da nação, mas reorientá-lo para a realização de interesses gerais e estruturais. Desse modo, podemos identificar entre os componentes do novo paradigma de política exterior, que se iam agregando aos padrões de conduta, alguns elementos conceituais, tais como: a idéia segundo a qual o processo decisório deve nutrir-se de percepções adequadas dos interesses nacionais; a idéia de realizar, pela via da negociação, ganhos recíprocos nas relações internacionais; o objetivo de superar desigualdades entre as nações; e, enfim, uma visão de mundo cooperativa, de realização mútua de interesses entre os povos. No Brasil, a ratio do Estado desenvolvimentista estender-se-á sobre governos e regimes políticos durante sessenta anos, entre 1930 e 1989. Como ocorreu com a longa permanência do paradigma liberal-conservador, o novo paradigma de relações internacionais do Brasil também sofreu inflexões. Examinamos no próximo item sua sobrevivência, conturbada, aliás, por dois abalos do regime.
2.4 Períodos de 1945-47 e 1964-67: redemocratização e regime militar, dois hiatos liberais e interesses ocidentais As mudanças de regime em 1945 e 1964 apresentaram convergência em um ponto: os novos dirigentes não abandonaram a idéia do desenvolvimento nacional como vetor da ação externa, porém passaram a operar na suposição de que o desenvolvimento deveria extrair maior impulso da
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estreita vinculação com as potências do Ocidente do que da vinculação direta ao projeto nacional. O governo de Eurico Gaspar Dutra, no embalo da nova ordem internacional do pós-guerra, cujos parâmetros eram a divisão do mundo em zonas de influência e o liberalismo na área de influência norte-americana, imprimiu orientação própria às relações internacionais, descolando-se de tendências alinhavadas pelo regime de Getúlio Vargas. Sem extrair resultados de interesse nacional, corrigiu logo sua estratégia em 1947 e recuperou aquelas tendências mediante mecanismos de política cambial e medidas de comércio exterior que voltaram a promover a expansão das indústrias e que permitiram a Vargas, de retorno como Presidente eleito em 1950, tocar o projeto nacional na perspectiva anterior. O pensamento político e diplomático brasileiro aplicado às relações internacionais do País tomava, já nos anos 1950, feição própria e, a princípio, independente do regime ou do governo, não tanto do partido. A União Democrática Nacional, UDN, e, depois de 1964, a Aliança Renovadora Nacional, Arena, constituíram-se como partidos políticos de direita, propensos ao liberalismo e àquele estreitamento com os interesses do Ocidente, cuja promoção equiparavam à promoção do interesse nacional. Esses dois partidos se prolongam no Partido da Social Democracia Brasileira, PSDB, e no Partido da Frente Liberal, PFL, à época da globalização da virada do milênio. Mas aquele pensamento, mesmo em sua formulação partidária de direita, liberal e associada, não foi unitário diante do modelo de desenvolvimento a que a política exterior haveria de servir entre 1930 e 1989. Como não se observa hegemonia dos dois grandes partidos da era da globalização sobre o modelo de desenvolvimento. Em um ponto concordaram homens de Estado, intelectuais, diplomatas, militares, políticos e lideranças sociais: a função da política exterior, que era de prover elementos para tocar o projeto nacional de desenvolvimento. Duas correntes cindiram o pensamento político brasileiro quanto ao modelo de desenvolvimento a implementar pelos esforços sociais e do Estado. Essa cisão aprofundou-se nos anos 1960, década da confrontação das correntes da opinião pública brasileira. De um lado, posicionavam-se os defensores do desenvolvimento associado às forças do capitalismo internacional e, de outro, os defensores do desenvolvimento nacional autônomo. Essa divisão não deve ser
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tomada como um confronto radical de visões do interno e das relações exteriores, mas antes como uma questão de dosagem entre liberalismo e protecionismo. Embora as fronteiras entre ambas as correntes de pensamento envolvessem uma zona de larga fusão, tais correntes foram suficientemente distintas e coerentes ao ponto de sugerir duas estratégias de inserção internacional. O desenvolvimento associado — entre cujos representantes figuram, nos anos 1950, João Neves da Fontoura e, na década seguinte, os militares conservadores do grupo Castelo Branco que tomaram o poder em 1964, bem como os chanceleres ocidentalistas Vasco Leitão da Cunha e Juracy Magalhães — envolvia parâmetros de política exterior abrangentes e coesos. Os associacionistas vislumbravam um desenvolvimento impelido de fora pelas forças do capitalismo internacional. As relações especiais com os Estados Unidos, matriz do sistema, seriam valorizadas e postas acima de qualquer outra variável de conduta. De lá, sobretudo, adviriam os fatores essenciais de desenvolvimento, tais como capital, empreendimentos e tecnologia e também influência política e ideológica. Para tanto, as condições internas requeridas seriam um sistema regulatório favorável à penetração desses fatores, por um lado, e, por outro, a aliança nas esferas política, geopolítica e de segurança. A esfera das relações econômicas internacionais fundia-se, pois, com a esfera ideológica e política. Isso significava adesão à doutrina da segurança coletiva, sob hegemonia norte-americana, à época da Guerra Fria. Essas idéias pouco ou nada têm a ver com o regime político. A História revela que foram abraçadas pelo governo militar de Castelo Branco, entre 1964 e 1967, como haviam sido pelo governo democrático de Eurico Gaspar Dutra, entre 1946-47, e que inspiraram o de Fernando Henrique Cardoso, bem mais tarde, na passagem do século. O desenvolvimento independente concebido por pensadores como Araújo Castro, San Tiago Dantas, Hélio Jaguaribe e os militares nacionalistas que substituíram os associacionistas em 1967, entre muitos outros, envolvia diferentes parâmetros de ação externa. Os independentes desejavam um desenvolvimento tocado por forças internas, menos dependente de capital, empresa e tecnologia de matriz externa. As relações com os Estados Unidos perdiam importância e a Guerra Fria também caía nas considerações dos tomadores de decisão. Por outro lado, a segurança desprendia-se do elemento ideológico e coletivo ocidental para vincular-se ao esforço de
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desenvolvimento econômico e tecnológico. A solidariedade com o Terceiro Mundo fluía naturalmente dessa estratégia, não por pressão ideológica mas por comunhão de interesses concretos, e a política exterior levantaria a bandeira da nova ordem econômica internacional. A vizinhança seria vista como área de convergência de interesses, senão mesmo de expansão dos interesses de uma economia nacional cada vez mais robusta. Essas idéias que lançam raízes remotas no tempo inspiram o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, governo da era pós-neoliberal. A década de 1960 assistiu à radicalização dessas duas correntes de pensamento político. Formulou-se a chamada Política Externa Independente, entre 1961 e 1964, ocorreu o golpe militar de 1964, bem como o golpe dentro do golpe de 1967, uma reversão política do regime militar. Pode-se concluir que aquela década foi de avanço conceitual. A transposição à esfera executiva do pensamento dos independentes pelos governos tornou-se mais perceptível e equilibrada, de um ponto de vista operacional, nos anos 1970, à época de Ernesto Geisel, quando a maturação do processo de desenvolvimento permitia prover a decisão de meios econômicos. Entre 1930 e 1989, verificamos que os parâmetros de pensamento dos independentes prevaleceram, embora temperados, na prática, pela influência dos associacionistas. A inteligência política brasileira soube, portanto, administrar com prudência essas duas estratégias externas. O diálogo entre ambas, embora exacerbado por momentos, produziu notável efeito de qualidade: converter a política exterior em política de Estado, acima de regime, governo e partido. O progresso que o Brasil alcançou entre 1930 e 1989 deve muito a essa simbiose feita de equilíbrio de longo prazo entre concepções distintas que tiravam força de uma sociedade complexa e se impunham às contingências do momento. Preservou-se a autonomia decisória, na esfera política, e a criação de um núcleo econômico nacional forte como objetivo econômico. Por ser composto de pensamento político híbrido, o modelo de inserção internacional do Brasil resultou aberto às forças do capitalismo internacional, mas com autonomia de condução. A experiência brasileira diferenciou-se bastante da experiência da Argentina, país no qual as rupturas institucionais, mais numerosas, eram acompanhadas de vontade destrutiva com relação a conceitos e objetivos anteriores. Enquanto lá prevalecia a alternância, aqui prevalecia a continuidade.
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2.5 1985: transição sem mudança A transição do regime militar para o civil, em 1985, afetou superficialmente a política exterior e o modelo de inserção internacional. Nessa década, apareceram as primeiras críticas ao desenvolvimentismo, ao qual atribuíamse desvios e vícios acumulados durante o longo curso anterior, tais como o protecionismo exagerado concedido ao mercado e ao empreendimento interno, a baixa competitividade sistêmica da indústria e dos serviços nacionais, a baixa capacidade de investimento do Estado, a instabilidade monetária e a vulnerabilidade financeira provocada pelo volume da dívida externa. A transição institucional e legal vinha sendo preparada desde 1974, pela chamada abertura política. Por sua vez, a transição do modelo de inserção internacional do País também vinha sendo preparada, como revelam dois fatos significativos: a cooperação bilateral que conduziu ao processo de integração com a criação de um eixo entre o Brasil de José Sarney e a Argentina de Raúl Alfonsín fora lançada pelos regimes militares, mediante entendimentos para exploração dos rios da Bacia do Prata e a cooperação na área nuclear; por outro lado, também perpassou a mudança do regime a tese brasileira acerca da solução dos conflitos na América Central e no Caribe pela superação prévia da miséria popular em oposição à estratégia norte-americana de enquadramento desses conflitos no esquema da Guerra Fria.
2.6 a década de 1990: Neoliberalismo de versão democrática e interesses globais A inovação profunda que se operou no pensamento dos dirigentes brasileiros e na condução do modelo de inserção internacional ocorreu entre 1990 e 2002 e resultou de mudança de governos, não de regime político. Os governos neoliberais, que ascenderam ao poder nos principais Estados da América Latina, apresentaram uma notável convergência de pensamento e de propósitos com relação à inserção internacional de seus países. A mudança na natureza da inserção internacional do Brasil durante a última década do século XX não correspondeu a uma invenção da inteligência política brasileira, como ocorrera na década de 1930, mas a uma adaptação ao consenso regional e aos conselhos dos países centrais. Em nossos estudos sobre as relações internacionais da América Latina, particularmente sobre políticas exteriores comparadas entre Brasil e Argentina, chegamos a elaborar o conceito de Estado normal, em substituição ao conceito de
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Estado desenvolvimentista, com o fim de dar inteligibilidade ao novo paradigma que se espalhava sobre a região. Embora a experiência precoce do novo paradigma tenha sido lançada pelo regime militar de Augusto Pinochet, no Chile, os governos democráticos dos anos 1990 adotaram-no com entusiasmo. O modelo de inserção internacional introduzido nos anos 1930 deveu-se a duas séries de determinações: externamente, a crise do capitalismo afetou a economia primária dos países latino-americanos e levou à conclusão de que não lhes convinha perpetuar a divisão internacional do trabalho estabelecida entre centro e periferia no século anterior; internamente, as transformações sociais requeriam a diversificação das atividades econômicas, particularmente a expansão das indústrias. Assim entenderam os dirigentes políticos de então e por isso inventaram o Estado desenvolvimentista. A irrupção do paradigma normal, também chamado de neoliberal pela literatura, obedeceu, do mesmo modo, a impulsos externos e internos. Externamente, o colapso do socialismo, o triunfo da economia de mercado e a miragem da globalização levaram os dirigentes latino-americanos a considerar que também convinha pôr termo à experiência do Estado desenvolvimentista. Internamente, a crise do endividamento externo da década de 1980 e a recessão econômica foram consideradas conseqüência do paradigma vigente pelos partidários da mudança. Os governos neoliberais consideravam a supremacia do mercado e a retirada do Estado derivações lógicas da democracia. Para esses dirigentes, portanto, havia um nexo entre regime democrático e paradigma político. De fato, a História da América Latina desmente a existência desse nexo. O argumento apenas tornou-se alvissareiro porque exercia forte impacto sobre a opinião e com esse fim foi apropriado pelos dirigentes, que se sentiam à vontade para impor o triunfo do indivíduo e do empreendimento livre sobre o coletivo e o social. Além de haver lançado raízes em experiências precoces do regime militar chileno e argentino, o Estado neoliberal, invenção típica da inteligência política latino-americana dos anos 1990, representou, em perspectiva de efeitos, uma involução. Seu modelo mais acabado correspondeu à experiência do governo de Carlos Saúl Menem (1989-1999) na Argentina, responsável pela falência da nação, consumada com a crise política, econômica e social de 2001. O Estado neoliberal, cujo modelo implantou-se no Brasil durante o governo de Collor de Melo, entre 1990 e 1992, e consolidou-se com o de
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Fernando Henrique Cardoso, durante seus dois mandatos (1994-2002), não significou uma adoção dos parâmetros da globalização pela via da interdependência, como ocorreu, por exemplo, com as relações internacionais de Espanha e Portugal no mesmo período. No Brasil, em razão de abertura econômica indiscriminada, e longe do equilíbrio interno-externo, aprofundaram-se dependências estruturais com relação ao exterior de modo a fazer prevalecer sobre o interesse nacional os interesses carregados pelas forças transnacionais da globalização. A lógica da evolução histórica foi interrompida ao bloquear-se o processo de desenvolvimento anteriormente em marcha. A experiência dos anos 1930, quando a mudança paradigmática provocou o salto de qualidade para a frente, em termos de desenvolvimento nacional, não se repetiu nos anos 1990, sob o signo dos governos neoliberais. Àquela época, o governo tomou as forças internas e externas no estado em que se encontravam e produziu o avanço para novo patamar. Sob o signo neoliberal, os dirigentes introduziram uma estratégia de destruição das forças nacionais, cedendo sua apropriação e controle às forças do capitalismo transnacional. Foram além dos associacionistas anteriores que concebiam o equilíbrio de benefícios nas relações internacionais por meio da cooperação. Com efeito, sob o aspecto político, o Estado normal revelou-se subserviente ao sacrificar a autonomia da política exterior e erigir o chamado Consenso de Washington, ou seja, os comandos externos do centro do capitalismo, como inspiração do processo decisório. A noção de interesse nacional esterilizou-se, já que aqueles comandos foram estabelecidos para realizar interesses dos países avançados que se diluíam na globalização. Sob o aspecto econômico, o Estado normal revelou-se destarte destrutivo, primeiro ao empreender a dissolução do núcleo central robusto da economia nacional, em razão da alienação ao exterior que promoveu dos ativos das empresas privatizadas, e, segundo, ao transferir renda ao exterior em volume crescente, seja pela via dos dividendos, seja pela via da especulação financeira. Enfim, sob o aspecto histórico, o Estado normal revelou-se regressivo, ao empurrar para o setor primário o empreendimento nacional, restabelecendo, de certa forma, o paradigma liberal-conservador do século XIX. Esses três traços que identificam efeitos do Estado normal são apontados, para fins de análise, como fulcrais, porém não devem ser tomados de forma intransigente. Fernando Henrique Cardoso, que dominou o pensamento político e a política exterior e fez emergir o paradigma do Estado normal,
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combateu com vontade destrutiva os conceitos e propósitos do Estado desenvolvimentista. Assim mesmo, como era típico de sua inteligência, não foi coerente como seu colega argentino ao implementar os três parâmetros do Estado normal. Cardoso preservou em certa medida a influência de alguns princípios e propósitos da fase anterior e lançou as sementes de outro paradigma de conduta externa, que chamamos de Estado logístico, como se verá no Capítulo 3. Cedeu ao externo, mas também ao interno, e brilhou pela criatividade. Isso porque a essa incoerência foi conduzido pela sociedade, certamente a mais organizada em seus segmentos na região sul-americana, capaz de levar as pressões ao processo decisório e, naquela instância, interessada em dosar o processo de abertura incontrolável desejado pelos dirigentes com a capacidade de adaptação competitiva. Em conferência de 1995 na Universidade de São Paulo, Ronaldo Mota Sardenberg, Secretário de Assuntos Estratégicos, definiu muito bem esse ambíguo pensamento de Cardoso: inserção estratégica é também social, pois que consiste em visão crítica da ordem, capaz de reconhecer, ao mesmo tempo, os requisitos da globalização e do projeto nacional brasileiro.
2.7 2003: continuidade democrática, mudança de modelo e interesses sociais Após algumas tentativas de alcançar a Presidência, o Partido dos Trabalhadores (PT) triunfou em 2003, havendo eleito no ano anterior seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva. Durante a campanha eleitoral, o argumento central com que se convenceu a opinião pública consistiu na crítica ao modelo de Cardoso e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Em seus dois mandatos, Cardoso teria aprofundado a exclusão social no Brasil e a vulnerabilidade externa da nação. Não engendrara a inserção madura no mundo da interdependência global e não promovera o crescimento econômico necessário à expansão do emprego e da renda e à conseqüente absorção dos pobres pela sociedade do bem-estar. A opinião pública respaldou a proposta do candidato do PT de pôr termo à experiência do Estado normal, subserviente, destrutivo e regressivo. Tudo em perfeita sintonia com o regime democrático. A transição de 2003, transição de partido e de ideologia no poder, adquire significado como transição de neoliberalismo híbrido para governo híbrido de esquerda. Reproduz um feitio da evolução do passado brasileiro, no qual prevalece o diálogo entre correntes de pensamento, regimes políticos
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e governos de matizes partidárias. Expressa, assim, o cerne da mudança em política exterior, que no Brasil mais se aproxima à política de Estado do que à política própria de um regime ou governo. A equipe de governo coordenada por Lula abriga, por um lado, idéias anteriores, como a primazia dada à estabilidade monetária sobre o crescimento econômico, daí as metas de contenção da inflação e os juros reais elevados, e, por outro, idéias de quebra de modelo, por meio de programas sociais de deslocamento de renda para os pobres e a recuperação da autonomia decisória na área externa. Algo similar ao que ocorreu na década de 1960, quando independentes e associacionistas disputavam o Estado para realizar suas concepções de desenvolvimento. Com efeito, Cardoso havia conduzido as relações internacionais do Brasil em quatro direções. Deu ênfase ao multilateralismo, dele esperando a construção da governança global que poria fim ao Estado como agente principal das relações internacionais. Essa crença dos neoliberais não tinha por si nenhuma evidência comprovada pela História nos séculos XIX e XX, quando as relações internacionais asseguravam o encaixe estrutural entre centro e periferia, a menos que uma potência da periferia rompesse por determinação própria esse nexo causal. Mas Cardoso e sua equipe de governo acreditavam que a negociação internacional estabeleceria regras justas, transparentes e respeitadas por todos, engendrando ordem perfeita atrás da qual movia-se a diplomacia, isto é, atrás do mundo kantiano da harmonia universal. Desconfiado, porém, Cardoso avançou o processo de integração do Cone Sul, em demonstração de conduta realista com que equilibrar eventuais efeitos nocivos da globalização. Ao lidar com os Estados Unidos, revelou mais uma contradição de movimento, criticando o unilateralismo que criava entraves à governança global e sendo subserviente na área econômica. Enfim, Cardoso orientou-se para a Europa, em cujas relações via maior grau de convergência política e econômica. Os quatro eixos da ação externa de Cardoso, orientados para o Primeiro Mundo, exceto a integração no Cone Sul, resultaram em retiradas e perdas para as relações internacionais do Brasil: o Oriente Médio foi deixado de lado, a África subsaariana também, o próprio Japão e a China conheceram o mesmo desprezo e a Rússia e o Leste europeu, reconvertidos ao capitalismo, não foram redescobertos. Mais graves, porém, para os interesses brasileiros, foram os quatro equívocos estratégicos embutidos na ação externa da era Cardoso: a) o comércio exterior evoluiu de instrumento da política
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de desenvolvimento para variável dependente da estabilidade de preços e reverteu a tendência histórica de produzir saldos favoráveis; b) as relações financeiras internacionais destinadas a suprir o aporte sonegado pelo comércio submeteram-se a dois mecanismos de atração de capitais: juros reais elevados e privatizações com alienação dos ativos nacionais a empreendimentos estrangeiros, mecanismos estes por meio dos quais duas novas vias de transferência de renda foram abertas; c) a dependência empresarial e tecnológica fez-se perceber em setores do sistema produtivo e feriu de morte o setor de serviço na área das comunicações; d) Cardoso tomou, portanto, a abertura econômica como estratégia sem definir uma estratégia de inserção madura no mundo da interdependência global. Por isso qualificamos seu modelo de subserviente, destrutivo e regressivo: encaminhou o desmonte do núcleo central robusto da economia nacional; fez o país evoluir da nacionalização da economia internacional para a desnacionalização da economia nacional e do pensamento cepalino para o consenso neoliberal latino-americano. Cardoso surpreendeu-se com a boa reação da sociedade diante do processo de abertura econômica e política e usou para seu propósito de governo essa adesão que resultava da avaliação dos desvios e vícios do modelo desenvolvimentista, como já se observou. Mas o grau de organização da sociedade, educada para fazer valer interesses de distintos segmentos, resultou em pressão para dosar as medidas de abertura, desejada incondicional e irrestritamente pelos dirigentes, com a capacidade de adaptação, seja do parque industrial, seja do emprego e da renda de operários e empresários, à concorrência de produtos estrangeiros no mercado interno. Os resultados positivos dessa adaptação, que por certo elevou a competitividade sistêmica do conjunto, não impediram, contudo, a deterioração dos indicadores sociais e econômicos e a vulnerabilidade externa, sobretudo o aumento do déficit do comércio e da dívida. A opinião pública que se expressou pelo voto nas eleições de 2002 exigiu uma mudança de modelo. A transição do governo Cardoso, de neoliberalismo híbrido, para o governo Lula, de esquerda híbrida, correspondeu a uma transição da década das ilusões — de divisas, da competitividade sistêmica, das liberdades, da harmonia universal, da governança global benéfica, porém, da exclusão social, dos descontentamentos do povo no Brasil e das convulsões das massas na vizinhança — para o realismo duro das relações internacionais.
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A correção de rumos da ação externa empreendida por Lula comporta três linhas de frente: a) tirar a política exterior das ilusões da harmonia kantiana e de divisas e orientá-la para a conquista da reciprocidade real nas relações internacionais, ou seja, a transição do multilateralismo utópico para o multilateralismo de reciprocidade entre países centrais e emergentes; b) o enfrentamento das dependências estruturais — financeira, empresarial e tecnológica — com o fim de atenuá-las; c) a idéia de reforçar a América do Sul como pólo de poder e plataforma política e econômica de realização de interesses brasileiros. Por meio dessa estratégia, que contempla, enfim, a expansão dos empreendimentos brasileiros no exterior, cogita o governo do PT aproximar-se da interdependência real da era da globalização. Em seu primeiro mandato, Lula alcançou resultados concretos de sua correção de rumos. O multilateralismo passou pela maior transformação conceitual, ao despir-se da utopia, tornar-se realista e colocar em jogo a reciprocidade dos interesses a realizar nas negociações comerciais. Por isso, na esfera política, sua diplomacia contribuiu positivamente para a criação de coalizões ao sul entre países emergentes que bloquearam as negociações comerciais sem reciprocidade entre o norte e o sul, desde a Conferência ministerial da OMC em Cancun, em 2003. É nesse momento que o Brasil de Lula emerge como poder global, porque passa a determinar, ao lado das estruturas hegemônicas, o ritmo e a natureza das regras e do regime do comércio internacional. As negociações para criação da Alca e da zona de livre-comércio entre o Mercosul e a União Européia foram travadas, pelas mesmas razões, visto que, como as primeiras e do modo como estas se faziam, não atendiam ao interesse estrutural do Brasil de preservar sua vocação industrial de fundo empresarial e tecnológico. Nas negociações multilaterais, a global e a regional, verifica-se, com efeito, o embate entre as estruturas hegemônicas do velho capitalismo que agiam para perpetuar interesses de potências acostumadas a definir as regras do ordenamento global em seu proveito desde a criação do Gatt no imediato pós-guerra até Cancun, por um lado e, por outro, a disposição do Brasil em envolver-se nas relações internacionais como agente à part entière, ao lado de países emergentes, como África do Sul, Índia e China. Os países emergentes tomaram, de modo muito esperto, os subsídios e o protecionismo agrícolas dos países do norte, condenado pela opinião, como pretexto para negar maior abertura de seus mercados e sistemas produtivos a produtos
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industriais e serviços. Ou as regras da governança global seriam válidas e produziriam efeitos benéficos para todos os países que integravam a economia de mercado da era da globalização ou deixariam de reger o ordenamento das relações internacionais. Essa visão estratégica equivale ao eixo de ação da diplomacia de Lula. No fundo, a transição do governo Cardoso para o governo Lula evidencia o outro patamar em que se vai fixando a relação entre a ação externa brasileira e o papel das estruturas hegemônicas na configuração do ordenamento global: de passiva ou subserviente, passando pela dúvida, ao envolvimento com o poder global. Na esfera econômica, resultados concretos são alcançados da mesma forma. Lula se despe da auréola de estadista e intelectual que abrilhantava a figura de seu predecessor e não deixa de brincar com sua imagem de caixeiro viajante. Aciona sua diplomacia pelo mundo com o fim de abrir mais mercados, sem restrições políticas ou geográficas. A balança do comércio exterior recupera a tradição de produzir grandes saldos. Com isso, a dívida externa entra em declínio, interrompendo o ciclo desastroso de aumento exponencial da fase anterior. Enquanto atenua-se a vulnerabilidade financeira, a expansão de empresas brasileiras, sobretudo nos países vizinhos, indica que a real interdependência adquire maior visibilidade. O sistema produtivo e os serviços de matriz nacional inserem-se gradualmente em cadeias globais, sentindo-se os empresários estimulados pela visão realista da globalização implementada pelo Presidente-operário. Esses resultados positivos na esfera política e econômica não escondem fragilidades da ação externa. Algumas considerações sobre o tema das fragilidades são inevitáveis. Embora o governo de Lula pareça agradar aos Estados Unidos durante o segundo mandato de George W. Bush, sobretudo na sua função de bombeiro a apaziguar conflitos e descontentamentos na América do Sul, a autonomia decisória externa do Brasil, que se opôs à intervenção norte-americana no Iraque e bloqueou a formação da Alca, incomoda os Estados Unidos a ponto de ameaçar a pretensão a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Essa dimensão, por meio da qual a diplomacia de Lula pretende avançar para agente global também na esfera geopolítica, ainda se trilha como caminho inconcluso, apesar da criação do G4 (Brasil, Índia, Japão e Alemanha), uma iniciativa conjugada de pretendentes ao assento permanente.
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Os cinco membros permanentes do Conselho bem como parcela da opinião nacional vêem como desmesurada essa pretensão, visto não dispor o País de potência estratégica correspondente à parcela de poder pretendido. Uma segunda dimensão de fragilidade externa advém do desgaste da imagem de Lula, promotor do combate à pobreza e líder mundial da esquerda responsável, segundo juízo de meios políticos em vários países. A imagem positiva emerge da ação contra a fome. Com efeito, Lula embala o Consenso de Monterrey, cuja Declaração do Milênio, firmada por 189 países, estabelece metas para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza. Ele próprio ou sua diplomacia se fizeram presentes nos foros de Davos, no G8 e nas Nações Unidas, aliciando líderes para criação de mecanismos de financiamento de programas, a exemplo dos programas brasileiros de combate à fome. Em 20 de setembro de 2004, líderes mundiais lhe deram ouvidos e firmaram uma Declaração de apoio, na ausência de Bush, visto que Lula propõe combater o terrorismo pelo combate à fome, não pela guerra. Assim, Lula desponta como líder de um novo Bandung, nas palavras de Jean Ziegler, relator da ONU para o direito à alimentação. Contudo, a imagem positiva é afetada interna e externamente pela continuidade da política monetária, que mantém juros reais e superávits fiscais elevados, aumentando a dívida pública, freando o ritmo do crescimento econômico e fazendo com que a ação social, em vez de solução de modelo, como se havia prometido durante a campanha eleitoral, se transformasse em solução conjuntural. Uma massa de quarenta milhões de brasileiros pobres é beneficiada por ajuda financeira direta, é bem verdade, mas não acede à sociedade do bem-estar e à dignidade humana, acesso que somente emprego e renda própria facultam. Assim, a ausência de crescimento econômico não somente faz com que o país perca posições no ranking das economias nacionais, mas ainda não faz avançar a inclusão social. Tudo isso não desanima o Presidente em sua luta global pelo combate à fome, ele não esmorece, ao contrário, volta a insistir sobre o tema em foros multilaterais e reuniões políticas restritas, depois de reeleito para o segundo mandato. A dura realidade lhe dá razão: na Ásia, por exemplo, apesar do espetáculo do crescimento que fascina o mundo na primeira década do século XXI, quase dois bilhões de pessoas, cerca de 60% da população, vivem na miséria, com problemas críticos de saúde, educação e alimentação. O que leva Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, a concluir:
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a globalização como processo faz países ricos, mas preserva massas e bolsões de pobreza. Uma terceira fragilidade externa consiste no baixo desempenho de certos eixos de relações regionais, a exemplo do que ocorrera com Cardoso com outros sacrifícios e perdas: esmoreceu a política européia que era uma das vigas regionais do Brasil, enfraqueceu-se a parceria com os Estados Unidos e abalou-se a parceria com a Argentina, esteio do Mercosul. As mudanças praticadas pelo governo Lula para a política exterior não decorrem, em suma, do regime político. Em certa medida, devem-se ao partido e à sua ideologia de esquerda, que redistribui renda com senso social, mas ao mesmo tempo promove a internacionalização econômica e o envolvimento com as estruturas hegemônicas do capitalismo.
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3 Paradigmas da política exterior: liberal-conservador, desenvolvimentista, neoliberal e logístico
LeIturaS recomeNdadaS SARAIVA. José Flávio Sombra. (Org.). História das relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Saraiva, 2007. CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2007. CERVO, Amado Luiz. Política exterior e relações internacionais do Brasil: enfoque paradigmático. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 46 (2), p. 5-25, 2003. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: UnB, 2006. CERVO, Amado Luiz; RAPOPORT, Mario. (Orgs.). História do Cone Sul. Rio de Janeiro: Revan, 1998. CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Unesp, 2004. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. (Org.). Argentina: visões brasileiras. Brasília: IPRI, 2000. SENARCLENS, Pierre de; ARIFFIN, Yhoan. La politique internationale. Théories et enjeux contemporains. Paris: Armand Colin, 2006. BADIE, Bertrand. L’impuissance de la puissance. Essai sur les nouvelles relations internationals. Paris: Fayard, 2004. BULL, Hedley; WATSON, Adam. (Orgs.). L’espansione della società internazionale. Milano: Jaca Book, 1994. (Longa apresentação de Brunello Vigezzi, p. XI-XCVIII.). LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização no Brasil (1808-1930). São Paulo: Difel, 1978. FREITAS, Caio de. George Canning e o Brasil. São Paulo: Nacional, 1958. 2 v. ALMEIDA, Paulo
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3.1 teorias de relações internacionais: quais e para quê? As três vertentes matriciais que alimentam o campo da teoria das relações internacionais no século XX — realismo, liberalismo e estruturalismo — embrulham-se em sua evolução no debate interparadigmático — neo-realismo, neoliberalismo — e acabam por inspirar correntes que se ocupam com o mundo da globalização. Racionalistas focam particularmente a segurança global, refletivistas se dispersam sobre variados temas da política internacional e construtivistas sociais ensaiam um liame entre ambos. Quanto mais teoria das relações internacionais alojadas no cérebro do dirigente, melhor sua intuição e sua decisão, confessa o chanceler Celso Amorim, que foi professor da matéria na Universidade de Brasília. Sem negar tal pressuposto acerca do papel das teorias, tanto para prover conhecimento acerca das relações internacionais quanto para tornar a decisão mais acertada, a dispersão e a contradição entre elas são tais que deixam perplexo o estudante esperto ante sua consistência e utilidade. Tomemos três exemplos de teorias oriundas da produção intelectual, depois convertidas em política exterior pelo grupo que se constituiu em torno do presidente George W. Bush: choque de civilizações, estabilidade hegemônica e ação preventiva de segurança. Após o 11 de setembro de 2001, não convinha, com efeito, repensar o campo das relações internacionais? O choque de civilizações sugeria a guerra no Afeganistão e no Iraque, a estabilidade hegemônica sugeria o unilateralismo norte-americano aplicado ao
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ParadIgmas da PolítIca eXterIor: lIberal-conserVador, desenVolVImentIsta, neolIberal e logístIco
ordenamento global em vez da ordem oriunda do debate multilateral entre as nações, enfim, o ataque preventivo foi tomado como licença para matar, a partir de suposição, mesmo que infundada, de perigo para a própria segurança em algum outro país do mundo. Se, tomadas individualmente, as três teorias exercem forte impacto sobre a política exterior dos Estados Unidos, seu potencial de influência se multiplica quando agem de modo associado sobre o processo decisório do grupo dirigente. Por duas razões, as teorias devem ser tomadas com senso crítico: porque são epistemologicamente insuficientes e porque fundam decisões que veiculam interesses, valores, visão de mundo e capacidades de quem as concebe, sempre em benefício próprio. Tomar a teoria com senso crítico se faz necessário à explicação das relações internacionais e à decisão, visto que toda teoria soma seis etapas quando efetivamente tomada em sua trajetória, da gênese à conseqüência: 1) visão própria de mundo; 2) cultura, ou seja, princípios e valores do próprio meio; 3) interesse nacional ou de bloco; 4) processo decisório, ou seja, uma política exterior; 5) ação externa coerente; 6) resultados internos e internacionais de função desigual. Pelos itens dois e três, percebe-se que as teorias são nacionais ou regionais e essa percepção revela a incoerência em lhe atribuir alcance explicativo universal na esfera mental e o perigo em adotar teorias como fonte de inspiração política. As teorias norte-americanas, as mais elaboradas e consistentes, tomadas de forma acrítica pelo pensamento acadêmico, ou político, induzem o apoio à ordem sistêmica de mundo feita de interesses, valores e resultados que favorecem a manutenção da hegemonia norte-americana, mesmo que esta esmague, pelo método com que se implementa ou pelos resultados, interesses e valores de outras nações. A postura crítica diante dessas teorias de matriz norte-americana permite, pela lógica, modificar a ordem e orientá-la para a equalização de elementos oriundos das diversas identidades nacionais, regionais, civilizatórias, econômicas e de segurança. O presente capítulo amplia, pois, o campo de análise dos anteriores com o intuito de integrar a informação acerca da política exterior e das relações internacionais do Brasil em conceitos gerais que chamamos de paradigmas. Esse procedimento faz lembrar o uso do ideal-tipo weberiano, porém tende à construção da teoria, como deixamos perceber em outros textos que já publicamos.
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A literatura especializada amiúde considera a teoria das relações internacionais uma disciplina acadêmica anglo-saxônica, essencialmente norte-americana. Contudo, observamos que, no presente, ela expande-se em centros de estudo de todo o mundo. Nossas livrarias exibem manuais que expõem escolas de pensamento ou correntes de interpretação oriundas de grupos localizados nos mais diversos países. Em muitas universidades, particularmente no Brasil, ainda se confere lugar privilegiado aos autores norte-americanos. A influência que deriva sobre a opinião e o modo de ver o tema, salutar por um lado, visto haver se desenvolvido nos Estados Unidos a reflexão mais consistente sobre as relações internacionais desde a Segunda Guerra Mundial, por outro, comporta riscos pedagógicos. A teoria das relações internacionais tem por objeto a guerra e a paz, a produção e a distribuição entre os povos dos recursos econômicos e, ademais, a confecção institucional de normas que estabelecem a ordem internacional. Em nosso mundo, as teorias disponíveis são colocadas à prova do ceticismo, por não mais prescreverem reações a certos desafios, como a identificação clara do inimigo e do aliado, a diferenciação do interesse entre países ricos e emergentes e a inexistência de uma ordem capaz de enfrentar esses desafios. A visão de dentro inerente à teoria a torna, por vezes, epistemologicamente inadequada para explicar as relações internacionais de outro país e, ainda, ao informar o processo decisório, pode ser politicamente nociva. Na era da globalização, o mundo está muito longe de haver equalizado entre países e civilizações visões de mundo, valores e interesses que informam o ordenamento interdependente. Essas considerações fazem pensar na conveniência para cada país de destilar teorias alheias e de partir para construções teóricas que sejam epistemologicamente adequadas e socialmente úteis. A América Latina dispõe delas, como se observou no Capítulo 1. Duas versões do pensamento latino-americano aplicado às relações internacionais estão disponíveis: a que expõe pesquisadores voltados para a dimensão regional das relações internacionais e a que se elaborou dentro dos gabinetes dos formuladores de políticas. Neste capítulo, expomos, pois, conceitos, isto é, uma reflexão acerca da política exterior e das relações internacionais do Brasil com o objetivo de lhes conferir inteligibilidade orgânica e fornecer, ao mesmo tempo, critérios de avaliação de resultados.
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3.2 componentes do conceito paradigmático O paradigma, em ciências humanas e sociais, equivale a uma explanação compreensiva do real. O uso que dele fazem as ciências exatas e naturais é diferente. Nessas últimas, o paradigma articula em uma teoria uma série de leis científicas que estabelecem, em princípio, relações necessárias e invariáveis de causa e efeito. Quando uma lei é rejeitada pela experiência, o paradigma cai. Nas ciências humanas, o paradigma também desempenha a superior função de organizar a matéria que é objeto de observação, porém não apresenta a mesma rigidez científica. Esse tipo de análise, nas ciências humanas, restringe-se à função de dar inteligibilidade ao objeto, iluminá-lo por meio do conceito, dar compreensão orgânica ao complexo mundo da vida humana. Em razão dessa versatilidade e flexibilidade, não deve o leitor exigir do paradigma o encaixe de todas as variáveis, dependentes, independentes ou intervenientes, na explanação de um tema de estudo. A análise paradigmática que ora aplicamos a nosso objeto de estudo, as relações internacionais do Brasil, corresponde, antes de tudo, a um método. Temos por fim a construção de conceitos pela via da observação empírica. A história constitui o campo de observação, o laboratório de experiências sobre as quais nos inclinamos. Coletamos as experiências históricas, da Independência a nossos dias, em três níveis, o diplomático, o político e o das relações internacionais, já que nosso método pressupõe a articulação dessas três instâncias da base empírica de observação. Assim conduzida, a análise paradigmática envolve, com efeito, determinados pressupostos. Em primeiro plano, por trás do paradigma, verificamos a existência da idéia de nação que o povo — ou seus dirigentes — faz de si mesmo e a visão que projeta do mundo, bem como o modo como percebe a relação entre esses dois elementos. Esse pressuposto nos leva ao conjunto de valores cultivados, ou seja, à identidade cultural, que condiciona os desígnios duradouros da política exterior. O paradigma comporta uma cosmovisão, a imagem que determinada formulação conceitual projeta dos outros povos, nações ou do mundo todo. Em segundo plano, o paradigma inclui a percepção de interesses. A leitura que os dirigentes fazem dos interesses nacionais — sociais, políticos, de segurança, econômicos, culturais — modifica-se com a mudança do paradigma.
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Em terceiro plano, o paradigma envolve a elaboração política. Nesse sentido, condiciona tendências de médio ou longo prazos, como também explica suas rupturas. Ou seja, envolve o modo de relacionar o interno ao externo e a manipulação da informação para estabelecer o cálculo estratégico e orientar a decisão. A análise paradigmática converge, enfim, para dois tipos de resultados. Dela se espera, por um lado, o efeito cognitivo, uma vez que o paradigma organiza a matéria, sempre complexa, difusa e disparatada quando se trata do comportamento humano, conferindo-lhe o grau possível de inteligibilidade orgânica. Existe, por outro, o efeito operacional. O paradigma inclui determinado modo de proceder, no caso, de fazer política exterior ou de controlar as relações internacionais. A análise paradigmática há de colher as determinações internas e os condicionamentos externos, os fins da política, o peso da idéia de nação a construir e da cosmovisão. Tomado como referencial, como se fosse uma espécie de tabela de indicadores, o paradigma vigente permite avaliar o desempenho dos dirigentes e da sociedade organizada. O conceito paradigmático pressupõe a longa duração, porque sobre ela se aplica naturalmente, não servindo à análise de conjunturas, a não ser a reverso, na medida que essas conjunturas de tempo curto nele encontrem sua localização cognitiva e operacional. Os países abrigam sempre suas políticas exteriores e seu modelo de inserção internacional dentro de paradigmas. Com a simples finalidade de ilustrar o conceito, lembramos alguns exemplos, cujo grau de elaboração não cabe discutir aqui. A União Soviética esteve sob a tentação de mover-se seja em função da revolução transnacional seja em função do interesse concreto nacional. Os Estados Unidos descobriram seu manifest destiny, como a França de De Gaulle, seu grand dessein. Durante a segunda metade do século XX, observamos os paradigmas da Guerra Fria e da coexistência pacífica. O Japão, após a Segunda Guerra Mundial, situou-se sob o guarda-chuva nuclear norte-americano e construiu sua potência com base na cooperação econômica regional e na internacionalização de suas empresas. A China transitou da relação especial com a União Soviética para o confronto, a teoria dos três mundos, dos dois mundos e, enfim, para a realização de interesses concretos de seu desenvolvimento. A Argentina de Juan Domingo Perón avançou sua Terceira Posição. Quando orientações externas dessa abrangência e natureza são pesquisadas, utilizando-se o método aqui proposto, podem se converter conceitualmente em paradigmas de política exterior e relações internacionais dos respectivos países
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ou grupos de países. Com o objetivo de elaborar conceitos claros e de poder compará-los entre si, selecionamos para o estudo de cada paradigma idênticas questões formuladas em cada caso, como se fossem critérios de definição. A construção de conceitos paradigmáticos resulta de quatro problemas postos à pesquisa: a) origem, ou seja, a multicausalidade interna e externa que se localiza em sua gênese e é necessária para compreender sua formação; b) continuidade e falência, isto é, fatores que perduram ou preparam a transição para novo paradigma; c) bloco mental, composto pelos parâmetros ideologia e política próprios do paradigma; d) enfim, bloco duro, composto pelos parâmetros percepção dos interesses nacionais, relações econômicas internacionais e impactos sobre a formação nacional, elementos estes que também são próprios do paradigma. A distinção entre os dois primeiros e os dois últimos conjuntos de componentes é relevante para articular os elementos de observação e produzir o resultado abstrato sob a forma de conceitos, cuja variedade imbricada acerca do objeto tende à teoria. As relações internacionais do Brasil deram origem a quatro paradigmas: o liberal-conservador, que perpassa o século XIX e se estende a 1930; o desenvolvimentista, entre 1930 e 1989; o normal ou neoliberal e o logístico, sendo que os três últimos coabitam, embora com prevalências diferenciadas e descompassadas, e integram o modelo brasileiro de inserção internacional de 1990 a nossos dias. Identificamos e descrevemos essas experiências à luz dos pressupostos metodológicos e epistemológicos que definimos anteriormente. Observamos, previamente, ademais, que apenas o segundo paradigma centra-se no Estado como agente principal das relações internacionais do País, ao passo que os outros três, embora mantenham o Estado como referência permanente, revelam a força de agentes econômicos e sociais.
3.3 o paradigma liberal-conservador do século XIX e da Primeira república (1810-1930) Os estudos de Adam Watson, Hedley Bull e de outros integrantes da escola inglesa de relações internacionais acerca da sociedade internacional européia do início do século XIX e do sistema internacional dela decorrente, como também a crítica ao conceito de sociedade internacional feita por Brunello Vigezzi, constituem adequado ponto de partida para entender o secular paradigma liberal-conservador implementado pelos países da América Latina depois de suas independências.
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Pela primeira vez na História, um sistema internacional de escala global estendeu-se sobre o planeta desde o centro propulsor europeu. A sociedade internacional européia vinha sendo erguida na esfera política, desde o Congresso de Vestefália, de 1648, homogeneizando instituições, mas foi a superioridade econômica dos europeus, advinda da revolução industrial, do progresso técnico e da expansão comercial, que acabou por transformar seus componentes — valores, interesses e padrões de conduta — em sistema internacional universal, que abriga regras implícitas ou explícitas de comércio, fluxos financeiros, empreendimentos, diplomacia, tutela ou dominação. Por essa razão, o sistema internacional vigente no século XIX, feito de regras de conduta padronizadas, converteu-se em poderoso instrumento de expansão dos interesses das potências capitalistas européias. Os europeus impuseram à periferia do capitalismo, à América Latina, ao Império Otomano e ao continente asiático, em primeiro momento, à África subsaariana ao final do século, a conduta diplomática, o modo de fazer comércio, de organizar a produção e até mesmo de criar instituições políticas e sociais. Eram os tratados bilaterais de então o instrumento desse ordenamento jurídico, político e econômico. O Brasil firmou com as potências capitalistas dezenove desses tratados, entre 1810 e 1828. Essa capacidade de produzir regras para o mundo era reservada às estruturas hegemônicas do capitalismo, que haviam previamente vinculado e unido países europeus de nível assemelhado de desenvolvimento. Os cepalinos da América Latina não perceberam essa forma de gerar poder global porque não trabalhavam com o conceito de sociedade internacional indutora de ordenamento global. O conteúdo essencial do modelo de relações internacionais definido pelos europeus era a chamada política das portas abertas. A periferia não tinha opção quando firmava tratados: abria seu mercado aos manufaturados europeus e tinha suas atividades de expansão das manufaturas bloqueadas, querendo ou não. O liberalismo europeu continha apenas uma face, para fora. Os países europeus somente aceitarão o liberalismo para dentro quando puderem operar suas vantagens comparativas intangíveis, como o conhecimento, a tecnologia e a organização empresarial. A economia ricardiana, da prevalência do livre-comércio, primeiro na periferia e depois no centro, induziu, desse modo, a divisão internacional do trabalho, na qual a periferia, como a América Latina, voltava-se para relações em que prevaleciam as vantagens comparativas de tipo natural. Centro e periferia submeteram-se, como evidencia
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a pesquisa dos latino-americanos desde 1950, a funções complementares que reproduziriam simultaneamente as condições de desenvolvimento e de subdesenvolvimento. Os negociadores brasileiros dos tratados da época da Independência cogitaram fazer valer os direitos dos plantadores e exportadores de produtos primários, açúcar e café, por exemplo, mas nem mesmo esses foram aceitos pelos negociadores europeus, cujos governos limitavam o liberalismo e davam preferência aos produtos oriundos das respectivas colônias. A reserva do mercado agrícola europeu não é uma invenção de hoje. Os brasileiros cederam, portando, o mercado de manufaturados e bloquearam a modernização capitalista interna em troca de nada. O grupo socialmente hegemônico iria beneficiar-se, com o tempo, desse esquema de intercâmbio, quando a diplomacia brasileira, nas décadas seguintes e a duras penas, abriu mercados, especialmente o norteamericano, para os produtos da agroexportação. Sem isso, o afã de consumo de manufaturados por parte dos proprietários de terra, apesar das baixas tarifas de importação fixadas pelos tratados, dificilmente seria satisfeito. A ideologia que os dirigentes brasileiros esposaram no século XIX era o liberalismo de matriz européia. Esse liberalismo estendia-se à construção das instituições políticas do Estado monárquico e, depois, do republicano, como à organização da sociedade, exceção feita ao regime da escravidão. O liberalismo determinava o modo de se organizar a produção, de se fazer o comércio e de se portar com o exterior, nos domínios das finanças e do comércio. A ideologia liberal está presente, sobretudo, à época da Regência (1831-1840) quando se moldam as instituições do Estado nacional e se trava a grande polêmica em torno da centralização e da descentralização do poder. Está presente na década de 1840, ao expirarem os tratados desiguais da época da Independência, quando se trava outro debate acirrado entre liberais e protecionistas em torno da política alfandegária e de comércio exterior. A ideologia liberal está presente, enfim, e prevalece durante a segunda metade do século XIX e durante a Primeira República na mentalidade do grupo social que detinha o poder econômico e configurava o político. Não foi por certo a escassez de liberalismo que manteve o Brasil na condição de país subdesenvolvido durante um século e meio, embora os neoliberais do fim do século XX e do presente escondam o fato. As manifestações políticas da ideologia liberal-conservadora foram coerentes, sem deixar, contudo, de exibir algumas surpresas. A face liberal explica a
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assinatura dos tratados desiguais e, depois deles, a política aduaneira, ou seja, o fato de estabelecer-se o Brasil na condição periférica de modo permanente. A face conservadora explica o malogrado projeto de industrialização dos anos 1840, a determinação de exercer um certo controle sobre o subsistema platino de relações internacionais e a negociação firme das fronteiras do território nacional. Subserviência e soberania temperavam a política exterior e o modelo de inserção internacional do País na vigência do paradigma liberalconservador, com inclinação prevalecente da primeira tendência na esfera econômica e da segunda na esfera política e geopolítica. O bloco duro das relações internacionais do país, da Independência a 1930, inclui, segundo a metodologia aqui aplicada, a percepção dos interesses nacionais, as relações econômicas internacionais e os impactos sobre a formação nacional. Os liberais-conservadores brasileiros procediam à leitura do interesse nacional, evocando um conceito de sociedade simples, composta fundamentalmente de dois segmentos: os grandes proprietários de terras e donos do poder, de um lado, o resto da sociedade, de outro, fossem escravos, exescravos, trabalhadores livres, imigrantes. Uma sociedade estabilizada em sua infância, feita de plantadores e exportadores de café, açúcar e outros pequenos produtos da terra, que a nada mais aspirava, nas amargas palavras do senador da Monarquia, Sales Torres Homem. Aqueles dirigentes confundiam, logicamente, o interesse nacional com os próprios interesses, ou seja, os do grupo socioeconômico hegemônico: dispor de mão-de-obra, exportar os frutos da lavoura e importar bens de consumo diversificados. A diplomacia da agroexportação, conceito elaborado por Clodoaldo Bueno, não explica toda a política exterior do Brasil, mas retrata a essência da funcionalidade do Estado na área externa. Tendo sido apropriado pelas elites sociais, o Estado manobrava o processo decisório em política exterior voltado àquela leitura restrita do interesse nacional que faziam os dirigentes. Compreendemos, assim, o esquema de relações econômicas internacionais a que se submeteu o Brasil durante bem mais de um século: exportações primárias e importações industriais, prestígio externo como convinha a oligarquias de dominação interna e crédito na praça de Londres para enfrentar eventuais problemas de balanço de pagamentos. Os impactos sobre a formação nacional são bem conhecidos de nossos historiadores: ilusão de modernidade em ilhas urbanas de consumo ou fazendas interioranas e atraso econômico da nação.
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Os analistas da Cepal elaboraram conceitos acerca do acoplamento dependente centro-periferia que alimentava simultaneamente o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, como se fossem verso e reverso de idênticos mecanismos. Houve, contudo, no Brasil, homens de Estado e mentes esclarecidas que, desde a época da Independência, protestavam contra o modelo de inserção internacional que mantinha o País à margem do progresso capitalista. A historiadora Nícia Vilela Luz retratou a luta pela industrialização. Foi intermitente e inglória essa luta, como mostram o projeto de D. João VI em 1808, a reação do Parlamento aos tratados desiguais desde 1827, o livrinho de Nicolau de Araújo Vergueiro sobre a fábrica de ferro de Ipanema, escrito em 1828, a irrupção do pensamento industrialista nos anos 1840, o debate entre industrialistas e liberais radicais por ocasião da votação da Lei Aduaneira, enfim, a revolta de intelectuais, tenentistas, modernistas e outros na década de 1920.
3.4 o paradigma desenvolvimentista entre 1930 e 1989 Durante os anos da depressão capitalista e no contexto da Segunda Guerra Mundial, a América Latina revelou extraordinário dinamismo econômico que colocou grandes países como o Brasil, o México e a Argentina em direção do mundo moderno. Pressões externas e internas agiam como elementos propulsores da transformação. No caso do Brasil, as pressões que incidiam de fora foram a queda de importações e exportações devido à crise econômica dos anos 1930 nos países de centro de comando capitalista, a disputa pelo mercado e pelo sistema produtivo internos por parte das potências capitalistas, a divisão do mundo em blocos e a política norte-americana de boa vizinhança de Franklin D. Roosevelt. Por dentro, assistia-se ao despertar de novas forças que requeriam a modernização. A depressão, enquanto encaminhou os países capitalistas avançados para o regresso ao protecionismo e às soluções nacionalistas, orientou a América Latina para o processo de modernização. Os impulsos internos rumo à modernização advinham especialmente dos que criticavam a dependência e o atraso histórico e das demandas de uma sociedade que se havia transformado. Massas urbanas a requerer emprego e renda, burguesia nacional ávida por oportunidades de negócios, militares à procura de meios com que prover a segurança, intelectuais e políticos de mentalidade revolucionária. Manobrar em meio à divisão do mundo em
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blocos foi uma possibilidade concreta que perceberam os novos dirigentes, conduzidos ao poder por eleições, como no México e na Argentina, ou por uma revolução, como a de 1930 no Brasil. As condições para a gênese de novo paradigma de relações internacionais estavam assentadas. Os dirigentes rompem com a diplomacia da agroexportação baseada na doutrina européia de mercado e conferem nova funcionalidade ao Estado, contando com o apoio do pensamento diplomático, da imprensa e da opinião pública. A mudança paradigmática dos anos 1930-40 ocorreu como se fosse um movimento latino-americano. Traços comuns a diversos países da região fornecem os componentes teóricos do novo modelo de inserção internacional: a) acionar a diplomacia econômica nas negociações externas; b) promover a indústria de modo a satisfazer as demandas da sociedade; c) transitar da subserviência à autonomia decisória com o fim de realizar ganhos recíprocos nas relações internacionais; d) implementar projeto nacional de desenvolvimento assertivo tendo em vista superar desigualdades entre nações; e) cimentar o todo pelo nacionalismo econômico, imitando a conduta das grandes potências. O paradigma em construção apresenta, em suma, um perfil caracterizado por três noções de origem: a) consciência da transição; b) desenvolvimento como vetor da política exterior; c) realismo de conduta. E confere nova funcionalidade ao setor externo, inventando o modelo de inserção internacional à luz de três outras noções de fim: a) realizar interesses de uma sociedade complexa; b) conceber o desenvolvimento como expansão da indústria; c) prover de eficiência a política exterior mediante autonomia decisória, cooperação externa, política de comércio exterior flexível e não doutrinária, subordinação da política de segurança, isto é, da guerra e da paz, aos fins econômicos e negociação simultânea com os grandes e os vizinhos. O grau de pureza à gênese do paradigma, assim definido, não é o mesmo para os grandes países latino-americanos, sendo a experiência brasileira a que dele mais se aproxima. Embora tenham sido lançados e definidos com bastante clareza durante a depressão capitalista e a Segunda Guerra Mundial, os parâmetros do paradigma desenvolvimentista seriam depurados e aperfeiçoados nas décadas seguintes, consolidando-se, assim, como modelo de inserção internacional para o Brasil por um período de sessenta anos. Expomos, a seguir, essa evolução para a maturidade.
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O bloco mental do paradigma desenvolvimentista compõe-se de uma variável ideológica e outra política. Irrompeu, por certo, na América Latina, e com maior força no Brasil, a ideologia desenvolvimentista, que penetrou a opinião pública, a vida política e os estudos socioeconômicos, entre os anos 1950 e 1980. Os homens de Estado mais contaminados por essa ideologia foram Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel. Entre os intelectuais construtores do desenvolvimentismo figuram latino-americanos de variadas procedências: Raúl Prebisch, Celso Furtado, Aldo Ferrer, Helio Jaguaribe, Roberto Lavagna, Mario Rapoport, Osvaldo Sunkel, Paulo Vizentini, Raúl Bernal-Meza. A vertente desenvolvimentista desse pensamento latino evoluiu, desde as formulações do grupo da Cepal, que elaborou nos anos 1950 uma teoria originalmente inspirada na prática política de Vargas entre 1930 e 1945. Dos conceitos originais de Prebisch — centro-periferia, indústria, mercado interno, renda salarial, deterioração dos termos de troca — à teoria do desenvolvimento de Celso Furtado, que insiste sobre o componente da desigualdade tecnológica, a vertente chega aos enfoques dependentistas dos anos 1960 e 1970 com Theotonio dos Santos, Rui Mauro Marini, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, que aprofundam o estudo da relação entre dominação e dependência, por meio da análise estrutural. Tudo será referido ao conceito de poder nas relações internacionais e à estratégia de conduzir-se por vantagens comparativas naturais (América Latina) ou intangíveis (países desenvolvidos). A teoria latino-americana das relações internacionais exposta por BernalMeza comporta, em nosso entender, como elementos ideológicos, além do desenvolvimentismo acima conceituado, o liberalismo e o ocidentalismo, bem como a cultura da democracia. Os regimes militares revelaram, de certo modo, uma crise de fortalecimento desses elementos. A variável política do bloco mental que compõe o paradigma sob análise volta-se para a superação da assimetria capitalista pela promoção do desenvolvimento e pressupõe a autonomia decisória, sem a qual nada se alcança nessa via. Durante décadas, a ideologia desenvolvimentista fez a unanimidade no Brasil, mas não fez o entendimento político. Dividiram-se dirigentes e intelectuais brasileiros, como também as correntes de opinião pública, em torno do modelo de desenvolvimento a implementar. O desenvolvimento associado às forças externas do capitalismo, de estreitos vínculos políticos, geopolíticos e
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econômicos com a matriz do sistema, os Estados Unidos, tido por recomendável por Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), Castelo Branco (1964-1967), Fernando Collor de Melo (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (19942002). O desenvolvimento autônomo, tocado essencialmente pelas forças da nação, criador de autonomia política e de forte núcleo econômico, tido por recomendável por Getúlio Vargas, João Goulart, Ernesto Geisel. Uma síntese das duas perspectivas é levada à frente por Luiz Inácio Lula da Silva, desde 2003. Essas estratégias, na verdade, não abriram guerra entre si, como ocorreu na Argentina, entre radicais e justicialistas, ao contrário, proveram, pelo diálogo e pela interpenetração, um modelo misto de desenvolvimento, fechado e aberto em doses equilibradas. Racional e de fôlego no tempo longo. Concluída a definição dos parâmetros mentais do paradigma desenvolvimentista, resta-nos examinar os parâmetros do bloco duro: leitura do interesse nacional, relações econômicas externas e impactos sobre a formação nacional. A leitura dos interesses nacionais dos desenvolvimentistas — autoridades, profissionais e intelectuais — opera por meio do conceito de sociedade complexa, em transformação, rumo ao progresso econômico. Essa nova leitura deixa para trás o conceito de sociedade simples, composta de apenas dois estratos, que comandava as decisões de liberais-conservadores no passado. Desde a era Vargas, consignou-se ao Estado satisfazer necessidades de empresários, industriais, agricultores, operários, camponeses, militares e outros segmentos. Implementa-se, portanto, o conceito de interesse nacional múltiplo, cabendo à diplomacia, nas relações exteriores e tendo em mente o superior destino da nação, equacionar a soma de interesses segmentados, cujas exigências, por vezes, colidem. Sob o signo desenvolvimentista, substitui-se o vetor da abertura do mercado por outro conceito operativo destinado a balancear a funcionalidade do Estado, solicitado externamente pelo conservadorismo liberal e internamente pela ruptura a produzir sobre o atraso histórico. A busca do desenvolvimento tornou-se vetor da política exterior. A acepção do desenvolvimento, conceito sociológico complexo, por abranger o econômico e o social, restringiu-se, na mente dos tomadores de decisão, de modo a contemplar essencialmente duas variáveis: a industrialização e o crescimento econômico. A industrialização, porque por meio dela julgava-se preencher as demandas da sociedade complexa, empurrando o conjunto em direção à
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modernidade do capitalismo. O elevado ritmo de crescimento, porque por meio dele recuperar-se-ia o atraso histórico. A política exterior destinava-se a preencher requisitos desse desenvolvimento assim concebido, trazendo de fora três insumos em apoio aos esforços internos: capital complementar à poupança nacional, ciência e tecnologia e mercados externos, com que transitar da substituição de importações à substituição de exportações. O paradigma articula em seus propósitos efeitos em três fases sucessivas, de forma não muito rígida, porém suficientemente diferenciadas: a fase de implantação de uma grande indústria de transformação em associação com o empreendimento estrangeiro, obra dos anos 1950 e 1960, a fase de implantação da indústria de base, consolidada nos anos 1970, a partir de empreendimentos do Estado, e a fase de inovação tecnológica em alguns setores de ponta, iniciada nos anos 1970 pelos setores de atividade, tanto o público quanto o privado, e continuada nas décadas a seguir. Não obstante haver desencadeado permanente polêmica acerca do grau de abertura no longo prazo, a estratégia de desenvolvimento entendeu a abertura, tanto do sistema produtivo quando do mercado de consumo, como variável decisória funcional: maior ou menor grau de abertura a empreendimentos ou produtos externos eram dosados pelo impacto que produziriam sobre o desenvolvimento em si. Assim, poderia convir maior proteção a um setor de atividades, a determinado segmento do mercado, bem como ao conjunto do sistema produtivo com o fim de induzir sua expansão pelo empreendimento nacional ou estrangeiro. A ideologia liberal era subjacente, porém não contaminava a política desenvolvimentista à maneira de um fundamentalismo, como fará sob o signo do paradigma neoliberal do fim do século. A política de comércio exterior lidou ao longo das décadas com a questão cambial e por vezes submeteu-se tecnicamente aos déficits do balanço de pagamentos. Mas inovou conceitualmente, por triunfo dos diplomatas que a controlavam, sobre os economistas que a concebiam, e transitou, já na década de 1960, da substituição de importações à substituição de exportações. Essa mudança era parte do desenvolvimento, pensava a diplomacia, porquanto um país atrasado não acede à condição de país avançado sem superar a fase de exportações primárias e importações industriais e poder competir nos mercados globais de produtos manufaturados. Os impactos do paradigma desenvolvimentista sobre a formação nacional foram de natureza a romper com o modelo de dependência acoplada
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à dicotomia centro-periferia, descrito pelo pensamento estruturalista de matriz cepalina. Tiveram razão, portanto, os pensadores estruturalistas que sugeriam mecanismos de superação de assimetrias internacionais navegando no próprio sistema capitalista, contra os teóricos da dependência que sugeriam saltar fora do sistema para atingir os mesmos resultados. A política industrial, coerente, contínua e subsidiada pela política de comércio exterior, colheu os maiores frutos do paradigma ao longo de seus sessenta anos de vigência. Praticamente todo o desenvolvimento alcançado deveu-se à industrialização acelerada que situou o país entre as oito maiores economias capitalistas. Embora em declínio na mente de dirigentes da era Lula, o desenvolvimentismo ainda encontra adeptos que sonham em tocar a nação por meio de ações do Estado nos campos do investimento, fiscal, aduaneiro e de planejamento estratégico, contrariando outra filosofia política inerente aos acordos de comércio que não toleram mais esse papel do Estado nos países emergentes.
3.5 o paradigma normal, também chamado de neoliberal (1990-2002) A regras que as estruturas hegemônicas do capitalismo estabeleceram no século XIX foram aceitas pelos dirigentes brasileiros e explicam o atraso histórico do País até 1930. Tomou-se, então, consciência de que deveriam ser domadas internamente, mediante autonomia decisória em política exterior e projeto nacional de desenvolvimento, caso o País contemplasse outro destino, que não apenas de uma economia primária agroexportadora. Ao termo do século XX, entretanto, após a fase desenvolvimentista, as mesmas regras fixadas pelas estruturas hegemônicas do capitalismo voltaram a ser aceitas, de modo passivo, como no século anterior. Os dois anos, 1930 e 1990, arvoram-se símbolos de ruptura paradigmática das relações internacionais do Brasil, em movimento contrário. O paradigma do Estado normal foi, por excelência, invenção da inteligência política latino-americana. Irrompeu com tamanha força, coerência e convergência regional entre os países, que nada se lhe compara em outras partes do mundo. As origens não se situam apenas no exterior, como asseveram dirigentes, intelectuais e opinião conservadora: a miragem de uma globalização benigna e as recomendações do centro do capitalismo. Uma vertente do pensamento latino-americano esteve subjacente e sobreviveu à prevalência
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do estruturalismo cepalino, aflorando ao final do século XX e fornecendo a outra face da base mental do paradigma normal. Desde os anos 1950, com efeito, registravam-se experiências monetaristas de governo, efêmeras sempre, caracterizadas por estratégia alheia aos pressupostos das políticas desenvolvimentistas. De fato, os dirigentes latinoamericanos vinham enfrentando um desafio crônico que se arrastava como se fosse um vírus do modelo: a instabilidade econômica, causada por desequilíbrios como o fiscal, do balanço de pagamentos e a inflação. Os estruturalistas entendiam que haveria de se buscar solução para prover a estabilidade econômica com medidas de longo prazo, tais como equilíbrio entre produção e consumo, gastos públicos e receita pública, ao passo que os monetaristas estavam inclinados ao tratamento de choque. Em 1989-90, elegeram-se presidentes neoliberais em todos os grandes Estados da América Latina e os monetaristas, de formação norte-americana em sua grande maioria, alojaram-se nos postos decisórios. Tratamentos de choque, de corte neoliberal, são aplicados pelos governos de Augusto Pinochet, no Chile, Carlos Saúl Menem, na Argentina, Alberto Fujimori, no Peru, Carlos Andrés Pérez, na Venezuela, Fernando Collor de Melo, no Brasil, e Carlos Salinas de Gortari, no México. Triunfa, pois, o monetarismo sobre o estruturalismo, no pensamento e na práxis. Os detentores desse chamado pensamento único partem em guerra contra a estratégia de indução do desenvolvimento pela via assertiva das iniciativas de Estado. Assim como antes se havia operado uma redução do conceito de desenvolvimento para o de expansão industrial e crescimento econômico, operou-se agora outra redução da funcionalidade do Estado, de indutor do desenvolvimento para expectador do mercado. Para os monetaristas, consigna-se ao Estado a função de prover a estabilidade econômica, logo reduzida à estabilidade monetária, e ao mercado a função de prover tudo o mais, sobretudo o próprio desenvolvimento. A corrente de pensamento monetarista de matriz neoliberal reforça-se quando a Cepal faz autocrítica. Ela adapta seu pensamento, cedendo às circunstâncias, ditas então imperantes, e formulando a doutrina do regionalismo aberto, uma versão mais inclinada para o lado do neoliberalismo do que do estruturalismo. Experiências neoliberais hispano-americanas precederam a brasileira, mesmo porque o Brasil avançara mais que todos os outros países da região pelo caminho do desenvolvimento e nos parâmetros tradicionais, precisamente em razão de
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sua persistência, havendo implantado moderno parque industrial e criado uma agropecuária competitiva. Saltar desse paradigma histórico que tão concretos e profícuos efeitos assegurara, para outro, não era uma decisão estratégica fácil de tomar. Mas o exemplo provocativo da vizinhança aguçou os mentores de mudança e o governo brasileiro acabou por aceitar a tendência da moda. As determinações externas constituem outro fator explicativo para a gênese do Estado normal. Com efeito, o endividamento latino-americano dos anos 1980, cujo aumento deveu-se a desequilíbrios anteriores do balanço de pagamentos e à elevação das taxas de juro durante os dois mandatos do presidente norte-americano Ronald Reagan, reforçou a histórica condição de esmoleiros internacionais que ostentavam os países da região. A busca desenfreada de recursos externos abriu uma porta pela qual aqueles comandos das estruturas hegemônicas do capitalismo passariam. Um consenso estabeleceu-se, não apenas o denominado Consenso de Washington, resumido em dez pontos pelo economista John Williamson, mas o consenso entre o pensamento norte-americano de governo, de universidades de renome, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e o pensamento latino-americano expresso por grupos de intelectuais, como a comunidade epistêmica Argentina, e pelos dirigentes regionais, cujas mentes com os primeiros se conformavam. Haveria-se de seguir as instruções do centro capitalista ou ficar sem empréstimos de salvação. O conjunto dessas instruções sugeria três dimensões de uma nova abertura — daí o sucesso desse termo na linguagem latino-americana: dos mercados de consumo, dos mercados de valores e do sistema produtivo e de serviços. Para realizar essa mudança de modelo, as táticas vinham anexas ao conjunto de instruções: eliminar o Estado empresário, privatizar os empreendimentos estatais, realizar superávit primário, proteger o capital e o empreendimento estrangeiros e adaptar as instituições e a legislação de modo a produzir esse novo marco regulatório. Ser normal, na feliz expressão de Domingo Cavallo, Ministro de Relações Exteriores do governo de Menem, significa dar cumprimento a esse conjunto de instruções. Ser normal converte-se na aspiração de praticamente todos os governos latino-americanos a partir de 1989-90: nosotros queremos ser normales. Competem, aliás, entre si esses governos no intuito de exibir o afã de ser normal e seqüestrar a benevolência do centro de comando capitalista, aplicando tratamentos de choque, como mudança de moeda, confisco de poupança, congelamento de contas bancárias, congelamento de preços, paridade monetária com o dólar, diminuição tempestiva das tarifas alfandegárias.
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De um ponto de vista ideológico e também político, nenhum país revelou mais coerência e consistência do que a Argentina na adoção do novo paradigma. O aparecimento de uma comunidade epistêmica, composta de intelectuais, jornalistas, diplomatas, empresários, legisladores e dirigentes estabeleceu vigoroso consenso interno e causou profunda impressão nos países vizinhos, enfraquecendo no Brasil as resistências à mudança de paradigma. A experiência argentina, posta em marcha em 1989, constitui, portanto, mais um fator explicativo da origem do paradigma normal no Brasil. Após o efêmero governo de Fernando Collor de Melo, ortodoxo na aplicação das medidas sugeridas pelo conjunto de instruções do centro, o pensamento e a prática política de Fernando Henrique Cardoso nortearam a nova fase. Seus numerosos escritos evidenciam o impacto das circunstâncias que o elevaram à condição de teórico brasileiro do pensamento neoliberal. Seus conceitos de mudança, implacável estratégia sem alternativa, e de circunstâncias imperantes, mecanismos de causalidade necessária, transformados em padrão de conduta do Estado, introduziram a era Cardoso, que se estendeu de 1993 a 2002, embora nela possamos incluir o governo do primeiro Fernando, de 1990 a 1992. Denominamos, assim, era Cardoso esse longo período que se estende entre 1990 e 2002. Entendida a origem do Estado normal, examinemos seus parâmetros, iniciando pelos que compõem o bloco mental. O pensamento neoliberal reformulou a economia política clássica e a keynesiana, alçando-se em nova doutrina econômica e política exposta por alguns economistas, dentre os quais Milton Friedman. Os neoliberais sugeriam um choque de mercado para reanimar o cambaleante e pouco eficiente capitalismo da época da Guerra Fria. Margaret Thatcher e Ronald Reagan deram-lhes ouvido. Desencadeava-se, desse modo, nova onda, que tomou vulto com o fim da União Soviética e o colapso do socialismo real. Penetrou a América Latina pela via do pensamento monetarista e do regionalismo aberto da Cepal. Os neocepalinos propunham uma simbiose, combinando abertura ampla da economia, requerida pela globalização, com integração bilateral ou regional, feita de preferências comerciais e de maneira a controlar eventuais efeitos negativos da abertura. Essas circunstâncias não explicam de todo o substrato ideológico do paradigma normal, a invenção latino-americana. Isso porque, em sua base, viceja, para além da ideologia, uma crença. O neoliberalismo transformou-se na
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América Latina em mais um fundamentalismo típico do fim do século XX, quando aparentemente o conflito ideológico amainava em todo o mundo. Misto de crença, fé e utopia, esse fundamentalismo pouco carregava de ciência em seu bojo. O pensamento de Cardoso e sua equipe — “mudam-se os tempos”, “tempos de mudança”, expressões estampadas em títulos de livros por eles publicados — está mais para o catecismo e a igreja do que para o manual e a academia. Seus textos e sua prática política revelam, com efeito, a fé em fórmulas convencionais do credo neoliberal, fé, sobretudo, no império do mercado como indutor do desenvolvimento. Converter o substrato ideológico e religioso do paradigma normal em padrões de comportamento político exigia, contudo, boa dose de racionalidade, de que não careciam os homens de Estado brasileiros da era Cardoso. O elo estabeleceu-se, pois, da doutrina à política, da ideologia à política e da crença à política. O que para a mais elementar análise crítica é um enigma, para os estrategistas normais é coerência. Adotar, por exemplo, a abertura econômica como estratégia, sem nenhuma estratégia de inserção adequada no mundo da interdependência real. Sacrificar a autonomia decisória aos comandos do centro capitalista, simplesmente porque suas instruções erigiam o império do mercado. O bloco duro do paradigma normal — percepção dos interesses nacionais, relações econômicas internacionais e impactos sobre a formação nacional — reserva outras surpresas ao analista. Os dirigentes normais esterilizam, de pronto, duas idéias-chave do paradigma desenvolvimentista: as idéias de interesse nacional e de projeto nacional de desenvolvimento. Pedro Malan, Ministro da Fazenda da era Cardoso, declarou que um país como o Brasil não poderia sonhar com projeto nacional, algo reservado apenas a grandes potências. No mundo da globalização, entendiam aqueles dirigentes, interesses nacionais se diluem na ordem tecida pelo ordenamento multilateral das relações internacionais e pelo curso sistêmico das forças do capitalismo, a chamada governança global. Política exterior torna-se conceito fora de moda, algo espúrio, mero ornamento da ação do Estado, visto que reflete vontade nacional na busca de interesses concretos. Durante a era Cardoso, trocava-se amiúde o Ministro das Relações Exteriores ou mantinha-se por vários anos quem não manifestasse vontade forte ou pensamento próprio.
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As relações econômicas internacionais do Brasil promovidas pelos estrategistas normais não levaram a termo, porém encaminharam a destruição do patrimônio nacional construído em sessenta anos de esforços. Os mecanismos de privatização das empresas públicas, exigida pelo centro de comando capitalista, foram além das instruções recebidas, ao dar preferência ao capital e às empresas estrangeiros. A abertura do mercado financeiro e dos bancos adaptou-se, porém, àquelas instruções, que garantiam o livre fluxo de capitais especulativos. A especulação e a alienação de ativos de empresas privatizadas ou de empresas privadas vendidas ao exterior abriram, naturalmente, duas novas vias de transferência de renda ao centro, que se somaram à tradicional via dos serviços da dívida externa. A renda do País passou a migrar para fora também pela via dos dividendos e do movimento de capitais. Os normais não pensaram em remédios de equilíbrio para tais mecanismos, a não ser a busca desenfreada de capitais com que enfrentar o déficit das contas. Viviam da ilusão de divisas, ao mesmo tempo que dilapidavam o patrimônio nacional. Ironicamente, as experiências neoliberais do Brasil e de outros países vizinhos, em vez de trazer solução para o déficit das contas nacionais como se propunha, agravaram-no. Sem projeto de desenvolvimento e sem recursos, a era Cardoso, era dos normais, provocou a estagnação da economia brasileira e interrompeu um ciclo de sessenta anos de desenvolvimento caracterizado pelas mais elevadas taxas de crescimento entre os países do mundo capitalista. Os impactos do Estado normal sobre a formação nacional são percebidos de três maneiras, uma positiva e duas negativas. O choque da abertura despertou empresários brasileiros dos setores público e privado, acomodados que andavam ao abrigo de um protecionismo exacerbado a que havia conduzido o paradigma anterior. O mercado interno, amplo e reservado, lhes bastava antes. Com a abertura, para fazer face à inundação de produtos estrangeiros, foram forçados a modernizar suas plantas e métodos. A resposta foi positiva e, desse modo, o choque da abertura contribuiu para elevar a produtividade sistêmica da economia brasileira — indústria, agricultura e serviços — e galgar mais um degrau rumo à modernização. Esse efeito positivo, diferente do que ocorreu nos países da América do Sul, exceto no Chile, tira explicação do grau de organização da sociedade brasileira, empresários, operários, industriais, agricultores e comerciantes. A sociedade organizada reagiu ao ímpeto neoliberal dos dirigentes e sobre eles exerceu pressão suficiente para dosar o ritmo e as dimensões da abertura à capacidade
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de adaptação dos segmentos sociais. O resultado verificou-se por meio de surpreendente elevação da produtividade sistêmica da economia brasileira. Os impactos negativos se concretizam, por um lado, com o aprofundamento de dependências estruturais e, por outro, com o regresso histórico. Dando razão aos estruturalistas latino-americanos que assentavam planos de ação sobre objetivos de longo prazo, os normais, com seus choques de mercado, fizeram ressurgir dependências que os primeiros haviam identificado e combatido. Dependências financeira, empresarial e tecnológica, promovidas novamente, elevaram a vulnerabilidade externa do País a níveis críticos: dívida, enfraquecimento empresarial e fechamento de centros de pesquisa e inovação. Ao empurrar, ademais, a economia de matriz nacional para o setor primário, onde a mantiveram, os liberais-conservadores da Independência a 1930, empurravam a nação, de certo modo, de volta ao século XIX. O paradigma do Estado normal, em suma, foi o caminho aberto pela inteligência política latino-americana nos anos 1990. Todos os governos se dispuseram a trilhá-lo a galope, mas não o fizeram no mesmo ritmo e com a mesma coerência. Em toda parte, o paradigma revelava seus três parâmetros essenciais: subserviência na esfera política, destruição na esfera econômica e regresso do ponto de vista estrutural e histórico. Dentre os grandes Estados da região, a Argentina de Carlos Saúl Menem (1989-1999) pode ser tomada como protótipo de aplicação desses parâmetros, enquanto o Brasil de Cardoso manifesta hesitações quanto ao ritmo e à coerência a adotar diante do novo modelo de inserção internacional e organização interna. A coexistência paradigmática, embora pareça paradoxal ao analista, caracteriza a era Cardoso, mesmo porque o homem que a preside revela incoerências teóricas e hesitações operacionais como traços de sua personalidade. Cardoso oferece, com efeito, o espetáculo da dança dos paradigmas: o desenvolvimentista que ele se compraz em ferir gravemente sem matar, o normal que emerge de forma prevalecente e o logístico que se ensaia como outra via.
3.6 o paradigma logístico Como observamos no início do parágrafo anterior, as experiências neoliberais tomaram impulso na América Latina no início dos anos 1990, quando uma onda de presidentes eleitos as adotou como modelo de governo. Na virada do milênio, outra onda de presidentes democráticos, oriundos em geral de meios sociais desfavorecidos e ditos de esquerda, baniu sob pressão
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da opinião pública aquele modelo regional, sem, contudo, perfazer depois uma unidade de práxis. Chile e Brasil, países chamados de esquerda responsável por meios de imprensa, guardam heranças do neoliberalismo, como responsabilidade fiscal, estabilidade monetária, estímulo aos investimentos estrangeiros e abertura dos mercados. Os dois, por coincidência, haviam temperado a experiência neoliberal com outro paradigma de relações internacionais, que chamamos de logístico, em dose capaz de atenuar efeitos do neoliberalismo nas esferas da vida política, econômica e social. Estudiosos, como o professor Ha-Joon Chang, orientavam a atenção dos incautos, em universidades dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina, para uma teoria de relações internacionais à base de História, cujo argumento central consistia em desqualificar a lição dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento: não façam como eu fiz, façam o que eu mando. No passado, os primeiros empreenderam uma estratégia de desenvolvimento que desaconselham ou tentam impedir que os países atrasados adotem no presente. Em essência, essa estratégia consistiu em dosar o liberalismo às etapas do desenvolvimento agrícola, industrial e tecnológico e à salvaguarda de interesses nacionais. Para esses estudiosos, os estrategistas neoliberais latino-americanos haviam se acomodado à lição de quem subiu e chutou a escada. A introdução do paradigma logístico durante a era Cardoso não foi além de um ensaio. Mas o paradigma firma-se em termos operacionais durante a era Lula de modo que a experiência permite conceituá-lo e, quando escassa, a reflexão completa o raciocínio. Antes de tudo, a atenção se volta para explicações que se encontram na origem do modelo logístico de inserção internacional que se mescla em seu curso com os outros dois, o desenvolvimentista e o neoliberal. Esse esforço chega a três considerações. Em primeiro lugar, o malogro das experiências neoliberais latino-americanas fazia-se prever desde o impulso inicial. Seus críticos não eram tão numerosos quanto seus apologistas, na imprensa, nos meios acadêmicos, no meio político e entre os intelectuais, porém nunca deixaram de fazer ouvir sua voz. Se não convenciam, ao menos suscitavam dúvidas quanto ao acerto da nova estratégia de ação. O malogro foi confirmado, doze anos depois, por estudos que avaliaram os resultados das experiências. Relatórios da Cepal revelam que 43% da população latino-americana, cerca de 280 milhões, vive em níveis de pobreza em 2003, em demonstração de que os indicadores eco-
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nômicos e sociais haviam-se deteriorado. Na passagem do milênio, a opinião pública derrubava, pela via eleitoral, os governos de perfil neoliberal. Por outro lado, durante a fase de experiências neoliberais, os políticos jogavam à opinião pública apreciações contraditórias acerca da globalização, o conceito de globalização benigna, formulado pela comunidade epistêmica que assessorou o governo de Menem, e de globalização assimétrica, uma consistente teoria elaborada pelo eclético Fernando Henrique Cardoso, que a divulgava em escritos, entrevistas e discursos. Em segundo lugar, percebiam os dirigentes brasileiros que seus colegas do centro não procediam do mesmo modo, ou seja, não aplicavam em sua gestão pública os preceitos que passavam à periferia latino-americana. O intrigante exemplo de comportamento político observado tanto nas decisões internas quanto nos foros multilaterais, onde se construía o ordenamento econômico global, levantava dúvidas quanto ao acerto de se aplicar o conjunto das instruções neoliberais. Os dirigentes do centro pregavam abertura e liberalismo à outrance como receita para superar a crise da América Latina, porém se negavam a implementá-los, movidos pela defesa de seus interesses estratégicos de longo prazo. Por que não imitar aquele tipo de comportamento dos poderosos? Uma terceira explicação para a introdução do paradigma logístico reside na sobrevivência do pensamento crítico no Brasil e em toda a América Latina. Com efeito, esse pensamento crítico, embora de reconhecimento tardio, era explícito e consistente. Atualmente, em visão retrospectiva, deve-se considerar inadequado o termo pensamento único aplicado aos neoliberais. Na Argentina, o pensamento crítico confrontava a comunidade epistêmica nas universidades, na imprensa e nas livrarias e contava com analistas e intelectuais de peso como Aldo Ferrer, Mario Rapoport, Roberto Lavagna e Raúl Bernal-Meza. No Brasil, entre outras manifestações do pensamento crítico, duas alçaram mais sua voz. Dentro do Itamaraty, o modelo normal de inserção internacional implementado pelo governo Cardoso não recolhia a unanimidade do pensamento diplomático. Alguns expoentes embaixadores do quadro, a exemplo de Rubens Ricupero, Celso Amorim, Luiz Augusto Souto Maior e Samuel Pinheiro Guimarães, lançavam dúvidas acerca do acerto das decisões na área externa. Enquanto dirigiu o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty, Pinheiro Guimarães promoveu inúmeros encontros, reunindo estudiosos e empresários, e lançou séries de livros que evidenciavam
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a crítica ao paradigma que impregnava o processo decisório em relações internacionais. Sua crítica pessoal fazia-se tão contundente que lhe custou a demissão do cargo. Na academia, por outro lado, um grupo de estudiosos das relações internacionais da Universidade de Brasília, recentemente denominado Escola de Brasília, por Bernal-Meza, difundia severas interpretações em seminários, salas de aula, livros e por meio da Revista Brasileira de Política Internacional. Desenvolvemos nossos estudos pessoais nesse ambiente estimulante, no qual o pensamento crítico de Luiz Alberto Moniz Bandeira, José Flávio Sombra Saraiva, Argemiro Procópio Filho, Antônio Carlos Moraes Lessa e Antônio Augusto Cançado Trindade era cotejado com diferentes versões expostas por Alcides Costa Vaz, Estêvão Chaves de Rezende Martins, Antônio Jorge Ramalho da Rocha, Carlos Roberto Pio da Costa Filho e Eduardo Viola. Em outras universidades, céticos ou críticos também vinham a público com publicações, a exemplo de Paulo Gilberto Fagundes Vizentini e Paulo Nogueira Batista Jr. Os céticos ou críticos não postulavam o simples retorno ao paradigma desenvolvimentista, embora disso fossem acusados pelos neoliberais da equipe assessora de Cardoso que os qualificavam de saudosistas e neoburros. Julgavam necessário, contudo, no estádio de desenvolvimento em que se havia alçado a nação, transitar do paradigma desenvolvimentista ao logístico, sem tomar o caminho normal, mergulhando na subserviência, destruição e regresso. Esclarecida a gênese do modelo logístico de relações internacionais, é chegado o momento de recorrer aos dois componentes do bloco mental, ideologia e política, com o objetivo de identificar e descrever seus parâmetros. A ideologia subjacente ao paradigma do Estado logístico associa um elemento externo, o liberalismo, a outro interno, o desenvolvimentismo. Funde a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano. Admite, portanto, operar na ordem do sistema ocidental, recentemente globalizado. Na esfera política, o paradigma logístico, como experiência brasileira e latino-americana, comprova uma criatividade ainda maior. Recupera a autonomia decisória da política exterior sacrificada pelos normais e adentra pelo mundo da interdependência, implementando um modelo de inserção pós-desenvolvimentista. Seu escopo final, a superação de assimetrias entre
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as nações, ou seja, elevar o patamar nacional ao nível das nações avançadas. Diferencia-se do paradigma desenvolvimentista, com o qual pode conviver em certa dose, ao transferir à sociedade as responsabilidades do Estado empresário. Diferencia-se do normal, consignando ao Estado não apenas a função de prover a estabilidade econômica, mas a de secundar a sociedade na realização de seus interesses. Limita a prevalência absoluta do Estado que caracterizava o primeiro e elimina do segundo a crença anticientífica no poder ilimitado do mercado de prover tudo o mais. Por fim, o Estado logístico imita o comportamento das nações avançadas, particularmente dos Estados Unidos, tido como protótipo do modelo. A política exterior volta-se à realização de interesses nacionais diversificados: dos agricultores, combatendo subsídios e protecionismo, porque convém à competitividade do agronegócio brasileiro; dos empresários, amparando a concentração empresarial e o desenvolvimento tecnológico; dos operários, defendendo seu emprego e seu salário; dos consumidores, ampliando seu acesso à sociedade do bem-estar. A percepção dos interesses brasileiros pelos dirigentes logísticos equivale à percepção de interesses de uma sociedade avançada. Nesse ponto reside sua peculiaridade, porquanto os liberais-conservadores percebiam os interesses nacionais como se coincidissem com os de uma sociedade atrasada e inserida na divisão internacional do trabalho, os desenvolvimentistas os percebiam como sendo de uma sociedade em fase intermediária de transformação. Já os logísticos consideram necessários, possíveis e convenientes os remédios de equilíbrio que estabelecem a interdependência real. Desprezam o argumento da dependência estrutural e concebem uma estratégia de relações internacionais, cuja ação se agrega naturalmente à das estruturas hegemônicas do capitalismo, como se dele, enfim, o País fizesse parte por inteiro. No campo das relações econômicas internacionais, o comportamento logístico se depara, inicialmente, com o desafio de remover entulhos operacionais acumulados pela estratégia do liberalismo radical: atenuar a dependência tecnológica e financeira, promovendo a inovação produtiva e a saída da condição de esmoleiro internacional. E, com isso, restringir a vulnerabilidade externa. O desafio criativo consiste em reforçar o núcleo econômico duro nacional, de modo a alçá-lo em termos comparativos ao núcleo forte de nações avançadas e a abrir o caminho à sua internacionalização. Com efeito, o paradigma desenvolvimentista havia nacionalizado a economia internacional, reunindo,
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porém, ao termo de sessenta anos, as três condições para internacionalizar certos setores de atividade: grande mercado, disponibilidade de capital e competitividade empresarial. Não fosse a hecatombe normal que se abateu sobre o núcleo forte de matriz nacional, a lógica poderia haver triunfado e o Brasil transitado do paradigma desenvolvimentista para o logístico, desde 1990. Como vimos, o reforço do núcleo duro nacional supõe, no padrão logístico, o repasse de responsabilidades do Estado empresário à sociedade. Não repugna aos dirigentes, contudo, o empreendimento estatal, conquanto eleve seu desempenho ao nível de competitividade sistêmica global. Mas o foco do paradigma consiste, precisamente, em dar apoio logístico aos empreendimentos, o público e o privado, de preferência o privado, com o fim de robustecê-lo em termos comparativos internacionais. Assim procedem os governos dos países centrais — Estados Unidos, Europa e Japão, a título de exemplos — protegendo empresas, tecnologia e capitais de matriz nacional, estimulando seu fortalecimento interno e sua expansão global, zelando pelo emprego e pelo bom salário dos trabalhadores, ampliando o bem-estar do consumidor. Sob o auspício de tais diretrizes, a expansão para fora da economia brasileira, condição necessária para se atingir a interdependência real no mundo da globalização no entender dos logísticos, opera-se de dois modos: pela agregação dos empreendimentos nacionais às cadeias produtivas internacionais e por investimentos diretos no exterior, a começar pela vizinhança. O comportamento do Estado logístico, como se percebe, descola-se da teoria estruturalista e se aproxima dos requisitos da teoria realista das relações internacionais. Supõe concluída a fase desenvolvimentista, centrada no interno, e projeta a internacionalização econômica. Põe em marcha dois componentes de conduta advogados pelos realistas: a construção de meios de poder e sua utilização para fazer valer vantagens comparativas, não mais naturais, mas intangíveis, como ciência, tecnologia e capacidade empresarial. Os impactos do paradigma logístico sobre a formação nacional, durante a era Cardoso, não foram desprezíveis, embora situem-se mais do lado da prospectiva do que da vida real. Criaram-se expectativas de viabilidade de grandes empreendimentos nacionais, nas áreas de mineração e siderurgia, energia, indústria aeronáutica, tecnologia espacial e nuclear, indústria alimentícia e outras. Vislumbrou-se, ademais, a possibilidade da transição do paradigma desenvolvimentista ao logístico, sugerida pela racionalidade histórica. Realizavam-se, em certa dose, expectativas de ingresso na sociedade
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madura do sistema capitalista, induzidas pelo comportamento dos grandes que se procurava imitar. Sonhava-se com o nivelamento pelo alto do bem-estar social e do desenvolvimento econômico. Iniciava-se a internacionalização econômica, sobretudo pela vizinhança, concebida, enfim, como remédio aos desequilíbrios estruturais. De modo mais concreto, assim como o paradigma normal encaminhara a destruição do patrimônio nacional, a convivência com o logístico elevou a competitividade da economia brasileira e criou condições de harmonização de estruturas hegemônicas do capitalismo com interesses dos países emergentes na disputa de influências acerca do ordenamento internacional da era da globalização. Nesse particular, o paradigma logístico repõe em marcha a visão dual de mundo dos cepalinos ortodoxos, porém o faz mediante adaptação da política exterior à interdependência global do século XXI. Os dirigentes do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, inaugurado em 2003, contemplam estratégias de inserção internacional acionadas pelos governos anteriores, com maior ou menor apoio social, entretanto, aperfeiçoam o desempenho do paradigma logístico de relações internacionais. Esse governo acedeu ao poder pela via eleitoral, com base em campanha que convenceu a opinião pública da necessidade de mudar o modelo de relações internacionais, que denominamos de paradigma normal. Mantém deste a valoração da estabilidade monetária acima do crescimento, juros altos, carga tributária excessiva, câmbio valorizado e carência de investimentos em infraestrutura. Por isso ostenta ritmo lento de crescimento que impede ganhos mais visíveis na área externa. Lula é tão logístico quanto Cardoso era neoliberal: non troppo. O governo Lula se afasta da fé na capacidade do livre mercado de prover por si o desenvolvimento. Avança em várias esferas: na América do Sul, rumo à integração produtiva pela infra-estrutura, energia e investimentos brasileiros; na esfera global, forjando coalizões que reforçam o Brasil como ator global e permitem bloquear as estruturas hegemônicas em sua determinação arcaica de reservar para si a função de estabelecer as regras do ordenamento global a seu favor; com Índia, Rússia, China e África do Sul, rumo à cooperação para o despertar das grandes baleias adormecidas; com a Argentina, para não perder o sócio, porque não se admite perder nenhum sócio. O País cresce, desse modo, como poder global, embora o ritmo fraco seja determinado pelo baixo crescimento. Grandes superávits no comércio
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exterior, diminuição da dívida externa que Cardoso aumentara em cem por cento e aumento dos investimentos estrangeiros no Brasil e brasileiros no exterior são outros resultados. A internacionalização econômica representa um campo de grande êxito da logística internacional de Lula, em razão do ritmo forte que ostenta e da segurança que a reverso imprime à economia nacional. No início do segundo mandato, cerca de três dezenas de empresas brasileiras haviam implantado aproximadamente cento e vinte fábricas no exterior. A prática contínua e crescente da internacionalização corresponde à mudança mental introduzida pelo novo paradigma, com apoio do empresariado. Estados Unidos, Argentina, China e Bolívia (antes de Evo Morales) são alguns destinos preferenciais da nova geração de empresários que toma o Estado como estrategista, não mais como motorista, não considera a globalização nem boa nem má, mas uma oportunidade de negócios. Segundo relatório da Unctad, o Brasil ocupa o sexto lugar entre os países emergentes como investidor direto no exterior, havendo suas empresas carreado para fora mais de setenta bilhões de dólares até fins de 2005. Ao iniciar seu segundo mandato, Lula governa um país que beira os cem bilhões de dólares de investimentos externos, liderados por Petrobras, Vale do Rio Doce e Gerdau, que se situam entre as cinqüenta maiores empresas do mundo em investimentos diretos no exterior. Negócios pequenos e grandes investimentos caracterizam a internacionalização das empresas brasileiras, entre eles a compra da canadense Inco pela Vale em 2007, por soma próxima aos vinte bilhões de dólares. Outra linha de ação externa logística do governo Lula é sua opção estratégica pelos países emergentes. Por certo, estes não formam um bloco e são menos unidos do que Europa e Estados Unidos, todavia a História reserva a eles a hegemonia do século XXI, como reservara a do século XIX à Europa e a do século XX aos Estados Unidos. Com efeito, os países emergentes reúnem no início do século XXI mais de cinqüenta por cento da população, do comércio internacional, do consumo e das finanças do mundo. E ostentam ritmo de crescimento duas vezes superior à Europa e aos Estados Unidos. O futuro lhes pertence, diria o barão do Rio Branco, se vivo fosse, aconselhando o Brasil a orientar sua política exterior, suas parcerias e seus objetivos de modo prioritário para essa área do planeta, com o mesmo senso realista que fundou a proveitosa parceria com os Estados Unidos no início do século XX.
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Em conclusão, observamos que se estabelece, com base no estudo das origens, dos componentes mentais, operacionais e materiais e, enfim, dos impactos sobre a formação nacional, a distinção entre quatro paradigmas de relações internacionais do Brasil e sua sucessão ou coabitação. Esse esforço de reflexão conduz à invenção de conceitos e a sua articulação em uma teoria paradigmática das relações internacionais do País. Os estudos de relações internacionais haverão de checar a consistência dessa explanação compreensiva, alargando, como convém, o campo de observação empírica sobre o qual se assenta. As relações internacionais do Brasil constituem um laboratório de experiências ricas e variadas. Agregam correntes fortes de pensamento e estratégias de ação criativas. Que sejam iluminadas por conceitos e teorias elaborados nos centros de estudo do norte desenvolvido, não de modo a reproduzi-los no ensino e nos manuais de forma a espelhar inferioridade cultural, muito menos de maneira a operacionalizá-los na esfera dirigente de forma a sobrepor interesses alheios pela via da subserviência política. A globalização requer do estudo e do comportamento político que se destile o conhecimento alheio na química do pensamento brasileiro e latino-americano com o fim de fazer avançar o conhecimento dessa realidade e de implementar estratégias de ação que conduzam à equalização entre os povos de interesses e responsabilidades nas relações internacionais.
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LeIturaS recomeNdadaS SANTOS, Norma Breda dos. A dimensão multilateral da política externa brasileira. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 45 (2), 2002, p. 26-45. ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Brasil e o multilateralismo econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. (Org.). Crescimento, modernização e política externa. Sessenta Anos de Política Externa Brasileira. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1996. v. I. ALVES, José Augusto Lindgren. Relações internacionais e temas sociais: a Década das Conferências. Brasília: IBRI, 2001. DUPAS, Gilberto. Hegemonia, Estado e governabilidade: perplexidades e alternativas no centro e na periferia. São Paulo: Senac, 2002. LAFER, Celso. Comércio, desarmamento, direitos humanos. São Paulo: Paz e Terra, 1999. BRASIL–MRE. A palavra do Brasil nas Nações Unidas. Brasília: Funag, 1995. FONSECA, Gelson. O Brasil no Conselho de Segurança. Brasília: Funag: 2002. OEA. Síntese de uma gestão: José Clemente Baena Soares. Washington, 1994. GIRAULT, René et alii. La loi des géants, 1941-1964. Paris: Masson, 1993. GILPIN, Robert. A economia política das relações internacionais. Brasília: UnB, 2002.
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4.1 multilateralismo O multilateralismo integra há décadas a política externa brasileira como uma de suas linhas prioritárias de ação. Tanto o multilateralismo econômico, no seio do sistema Bretton Woods e de sua evolução, quanto o político, no da ONU, como ainda, em menor escala, o regional, no seio do sistema interamericano. O envolvimento intenso na ação multilateral global e regional perpassa o tempo e encontra no presente três razões a seu favor: expectativas criadas acerca de seu alcance para realizar interesses do desenvolvimento e das relações internacionais do país; padrão de qualidade da política multilateral formulada pelos governos brasileiros; e experiência contínua da diplomacia nos órgãos multilaterais. O estudo do multilateralismo brasileiro sugere o aprofundamento de algumas questões correspondentes aos rumos que ele tomou desde a Segunda Guerra Mundial, com o fim de avaliar seus resultados em função dos objetivos e da qualidade da ação externa nessa área. Com efeito, as fases do multilateralismo brasileiro mostram que houve objetivos e resultados distintos ligados às expectativas criadas a seu respeito. Quatro fases recentes nessa frente de ação externa o comprovam: em primeiro lugar, a contribuição do Brasil à construção do sistema internacional do pós-guerra, entre 1944 e 1949; em segundo, o esforço despendido para reformar a ordem internacional, dos anos 1960 aos 1980; em terceiro, a perspectiva de atuar no sistema em vez de reformá-lo, que se vislumbra entre 1990 e 2002; enfim, o objetivo de estabelecer a reciprocidade entre estruturas hegemônicas e países emergentes, de 2003 ao presente. Essas quatro fases da política multilateral revelam que não houve, no pensamento e na prática dos dirigentes brasileiros, apreciação uniforme nem linearidade de conduta acerca do alcance do multilateral e da política a seguir. Prevalece, por certo, ao longo do tempo, a avaliação positiva, ou seja, a idéia de ordenamento universal necessário e conveniente, porém, esse modo de ver o multilateralismo foi afetado pela percepção de que dois desvios comprometeram sua utilidade para o País. Por um lado, a bipolaridade submeteu o multilateralismo a seu jogo desde o fim dos anos 1940, com a divisão ideológica e o combate ao comunismo, sem que tal ascendência trouxesse vantagens ao desenvolvimento, como ocorrera com a divisão do mundo em blocos antagônicos no contexto da Segunda Guerra Mundial. A reação da inteligência política brasileira a essa frustração diante dos resultados do mul-
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tilateralismo foi a assunção da visão cepalina do mundo dual, centro-periferia, e a adoção de estratégia externa concebida para produzir efeitos fora do ordenamento sistêmico global inerente à Guerra Fria. O segundo desvio foi percebido quando se constatou que efeitos assimétricos de distribuição de benefícios estavam sendo promovidos pelo ordenamento global em construção desde o fim da bipolaridade. Nesse contexto, a reação veio sob a forma de crítica à chamada globalização assimétrica formulada pelo próprio Fernando Henrique Cardoso e, depois, no embalo da vitória eleitoral da oposição, por meio da nova estratégia de ação multilateral durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com o fim de realizar a reciprocidade real nas relações internacionais.
4.2 contribuição do Brasil à construção do sistema multilateral do pós-guerra Os estudos de Gerson Moura sobre a transição do primeiro governo de Getúlio Vargas para o governo de Eurico Gaspar Dutra descrevem o ambiente político criado no Brasil após a Segunda Guerra Mundial. A colaboração de guerra e a aliança militar com os Estados Unidos, sobretudo a vitória alcançada pela democracia face ao totalitarismo, haviam produzido o sentimento de que a nação dispunha de um capital político de grande envergadura. Esse sentimento impregnou a diplomacia que não soube evitar seu superdimensionamento. Um erro de cálculo dessa natureza se verifica, por vezes, entre potências médias ou pequenas, que fazem de si uma idéia desmesurada do próprio papel no cenário internacional e fogem, então, do realismo de conduta. Por aquela época, três governos latino-americanos exibiam ambições desmedidas, pondo em descompasso a capacidade de poder sobre o cenário internacional e a auto-imagem: a crença de que o Brasil tornara-se indispensável aos Estados Unidos na fixação dos parâmetros da nova ordem global do pós-guerra; de que a Argentina de Juan Domingo Perón e sua Tercera Posición iriam consertar de pronto essa mesma ordem logo depois de definida; de que a Venezuela de Pérez Jiménez com sua presunção de superioridade advinda da riqueza do petróleo iria comandar o sistema interamericano. Alguns diplomatas brasileiros acreditavam, então, que o Brasil seria consultado sobre as grandes questões internacionais e que sua palavra exerceria capacidade de determinação sobre o traçado da nova ordem do pós-guerra. Da mesma forma como o governo de Carlos Saúl Menem supôs que as re-
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lações estreitas entre Argentina e Estados Unidos, à época da globalização, colocasse Washington em situação de ter que consultar previamente Buenos Aires antes de tomar qualquer decisão acerca da América Latina. A avaliação ilusória da própria importância, no primeiro caso, não levou em conta a realidade caracterizada pelo rumo que tomaram a atenção e os interesses norte-americanos em favor do reerguimento político e econômico da Europa e da construção dos sistemas de aliança, com o fim de conter a expansão do comunismo, bem como em favor da hegemonia econômica que os Estados Unidos pretendiam estabelecer sobre a área de influência ocidental. O governo de Eurico Gaspar Dutra operava, pois, à base de convicções equivocadas. O resultado foi curioso: evidenciou, por um lado, grande ativismo da diplomacia brasileira nas negociações para criação do Gatt, do FMI e do Banco Mundial, órgãos responsáveis pelo novo ordenamento econômico, da ONU e de seu Conselho de Segurança, órgãos responsáveis pelo novo ordenamento político, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), órgãos responsáveis pelo novo ordenamento geopolítico e estratégico; por outro, demonstrou a adesão brasileira às teses norte-americanas, como se elas coincidissem com a arquitetura do mundo desejada por um país em desenvolvimento que já perseguia objetivos próprios em sua ação externa. As duas vertentes da ordem concebida pela inteligência norte-americana, as fronteiras ideológicas entre as áreas de influência americana e soviética e o liberalismo ilimitado na área ocidental, não eram, por certo, parâmetros de interesse para o Brasil, a não ser como variáveis dependentes de outros componentes da ordem internacional. Pelo combate ao comunismo, os Estados Unidos requeriam a eliminação da autonomia decisória em política exterior e o alinhamento ideológico. Pelo liberalismo ilimitado, pleiteavam o mercado de consumo de seus produtos manufaturados, mais do que o sistema produtivo para seus empreendimentos. Estavam, conseqüentemente, em jogo tanto a possibilidade para o Brasil de operar em meio à divisão do mundo em blocos, abrindo oportunidades de realização de interesses próprios, quanto o projeto de industrialização. Esses dois traços haviam caracterizado, precisamente, a política exterior no contexto da Segunda Guerra: extrair insumos para a industrialização do lado das democracias e das potências totalitárias, movendo-se com autonomia de escolha até o momento em que a opção por um ou outro lado não pudesse mais ser adiada.
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A contribuição da diplomacia brasileira à construção da ordem internacional do pós-guerra revelou um lado prático, outro ideológico. As instituições criadas, então, atuariam em função de objetivos claros e segundo regras coerentes a tais fins, visando, a termo, garantir, no jogo das relações internacionais, estabilidade e realização de interesses presumivelmente de todas as nações. Elas evitariam, portanto, os efeitos nocivos da anarquia sobre o sistema internacional. Mas o apoio cedido à ordem de concepção norte-americana endossava seus dois traços ideológicos: o combate ao comunismo e o liberalismo da área ocidental. Desse modo, se contribuiu para implantá-la no imediato pós-guerra, frustrou as expectativas da política exterior do Brasil, que no fundo não exerceu influência específica em sua gênese e não auferiu benefícios relevantes em seu curso. O multilateralismo brasileiro embarcou, portanto, em sua primeira aventura, no imediato pós-guerra. Não convém considerar um erro suas intenções — contribuir para criar instituições e definir regras da ordem internacional e garantir por meio delas a previsibilidade dos negócios e a paz entre as nações —, mas sim o fato de não prever que regras e instituições daquela natureza poderiam favorecer a uns mais que a outros, longe da reciprocidade das relações internacionais. Se o capital político acumulado pela cooperação de guerra fosse acionado com realismo, estaria aconselhando à diplomacia brasileira o posto permanente no Conselho de Segurança ou o ingresso na Otan. Nessas posições estaria em condições de realizar melhor os interesses nacionais do que de dentro da OEA e do Tiar, órgãos de segunda classe no quadro institucional de então. Expectativas frustradas surgem, contudo, quando se avalia corretamente uma linha de ação externa e se toma consciência de seus equívocos. Por essa boa razão, desde 1947, sobretudo durante a década de 1950, tanto o liberalismo ilimitado quanto o combate ao comunismo frustraram as expectativas brasileiras acerca da capacidade de o sistema internacional vir a prover os interesses do desenvolvimento.
4.3 a reforma do sistema multilateral: os conceitos dos anos 1950 e a luta das décadas seguintes Espalhou-se pelo mundo, nos flancos das duas superpotências, URSS e Estados Unidos, a avaliação das inconveniências da ordem erigida pelo multilateralismo do imediato pós-guerra, sob a égide da bipolaridade, da pressão
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ideológica, do comunismo rígido na zona soviética e do liberalismo ilimitado na zona americana. A década de 1950 assistiu ao protesto político e à formulação de conceitos alternativos, as duas décadas seguintes ocuparam-se com a reforma do sistema internacional decorrente de manifestações políticas que se repetiam no seio das instituições criadas e que refletiam, além do protesto, visões alternativas de mundo. A diplomacia brasileira, mais uma vez, emprestou ao multilateral o melhor de suas forças. Não esteve isolada em sua forte determinação reformista, bem ao contrário, revelou seu senso prático, ao integrar a frente dos povos atrasados e imitar a própria Europa em seu esforço de correção de rumos do sistema internacional. As origens do multilateralismo reformista situam-se nos anos 1950: inconformismo de lideranças políticas dentro do bloco soviético, do qual o cisma da Iugoslávia foi exemplo; versão européia do inconformismo e gênese do Mercado Comum Europeu; enfim, protesto da periferia e organização de uma frente de povos em desenvolvimento. Forças de confrontação à ordem vigente despertaram na periferia. A Conferência de Bandung, na Indonésia, reuniu, em 1955, 29 países (23 asiáticos e 6 africanos) que manifestaram sua discordância diante do colonialismo, da divisão do mundo em zonas de influência e das vicissitudes da Guerra Fria. Essa vertente acabou dando origem ao Movimento dos Povos Não Alinhados. Em 1957, seis países europeus firmaram os tratados de Roma que criavam a Comunidade Européia de Energia Atômica e o Mercado Comum Europeu. O Mercado Comum Europeu corresponde ao primeiro conserto da ordem e produziu efeitos imediatos, psicológicos e financeiros, porém de largo alcance, imposto à ordem econômica do Ocidente. O liberalismo ilimitado desejado pelos Estados Unidos abrangia comércio, empreendimentos e capitais, todavia centrava-se no livre-comércio de bens de consumo, uma vez que a superioridade produtiva norte-americana e os interesses nacionais a ela atrelados sugeriam essa prioridade na concepção do liberalismo. A criação do Mercado Comum Europeu equivalia a duro golpe a essa tendência histórica, em teoria e na prática. A concorrência se deslocava do mercado de consumo para o sistema produtivo, provocando a expansão das empresas multinacionais. Se um país desejasse ter parte em mercados de consumo de outros países não mais haveria de mirar para o livre-comércio como mecanismo propulsor, mas era induzido a neles investir. Essa transformação do capitalismo garantiu a continuidade do Plano Marshall por meio do deslocamento
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de capitais norte-americanos para a Europa e, depois, de capitais europeus para os Estados Unidos, sempre com o fim de produzir no outro lado o que para lá anteriormente seguira pela via do comércio. A mesma transformação salvou, por sua vez, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek no Brasil, para o qual chegaram os investimentos europeus, seguidos pelos americanos, para tocar a industrialização. A essa altura, a América Latina contava com o pensamento e as estratégias propostos pela Cepal, que inspiravam os projetos nacionais de desenvolvimento à base da industrialização e do protecionismo do mercado, algo assemelhado aos desígnios dos europeus. Um novo concerto entre as nações era esperado. As duas superpotências assistiam com vivo interesse à reação dos flancos do sistema contra os parâmetros da ordem que haviam traçado e percebiam que a lei dos gigantes, impositiva e conservadora, não viera para triunfar sem dificuldades e retoques. O reformismo europeu apresenta então dois aspectos: a passividade na esfera política, ou seja, a retirada de cena internacional, uma vez que a Europa fala de uma só voz, porém muda, e transfere aos dois grandes a responsabilidade de formular e implementar políticas exteriores, mormente na área da segurança; o ativismo na esfera econômica, ou seja, depois de vencer a fase difícil da reconstrução do pós-guerra, voltar-se sobre si e consolidar o núcleo econômico duro, servindo-se da cooperação e da integração regional. O reformismo dos povos atrasados enveredou por caminhos distintos. O neutralismo face aos blocos esteve na gênese do movimento e ostentou vontade de autonomia decisória em política internacional. Por outro lado, erguia-se o Terceiro Mundo contra a ordem econômica, reivindicando a cooperação do Norte para o desenvolvimento. Os instrumentos aos quais recorreu o Terceiro Mundo, com o fim do provocar a reforma do sistema internacional, eram as mesmas instituições criadas no imediato pós-guerra, a ONU e o Gatt. No seio da ONU, em 1964, reuniu-se pela primeira vez a Unctad, Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, cujo objetivo era desmascarar o liberalismo teórico do comércio internacional pregado pelo Gatt e favorável aos países ricos, como haviam demonstrado os estudos da Cepal. A Unctad tomará forma institucional, tornando-se regular e periódica. No mesmo ano de 1964, uma reforma do estatuto do Gatt liberou os países em desenvolvimento do princípio da reciprocidade no comércio internacional, facultando-lhes a proteção necessária à implantação de suas indústrias. Ao
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ensejo dos debates que se travavam em Genebra acerca do desarmamento, desde os anos 1960, países em desenvolvimento como o Brasil firmaram sua posição, reivindicando o desarmamento das grandes potências e a utilização dos recursos poupados em favor do desenvolvimento, ademais, se recusaram a firmar o Tratado de Não Proliferação Nuclear, de 1968, que criava dificuldades de transferência ou de desenvolvimento próprio da tecnologia nuclear pelos países em desenvolvimento. O tema do desenvolvimento impregnou, portanto, nos anos 1960, a agenda das instituições multilaterais que compunham o sistema internacional do pós-guerra e deu origem a uma campanha em prol da reforma da ordem internacional que colocasse em seu centro a promoção do desenvolvimento. O número de países que acedia à ONU, em razão da descolonização, crescia rapidamente e os gigantes que haviam estabelecido um ordenamento global por si e para si eram surpreendidos pela nova conjuntura. A ONU instituiu a Década do Desenvolvimento, uma após outra. O Movimento dos Não Alinhados contaminou-se, contudo, pela ideologia da Guerra Fria e por isso o Brasil o deixou de lado e integrou o Grupo dos 77, voltado a questões práticas da economia internacional. O objetivo-síntese dessa frente de povos atrasados era o de substituir, mediante a negociação multilateral, a ordem do pós-guerra pela Nova Ordem Econômica Internacional (Noei). Um objetivo desmesurado à luz do realismo das relações internacionais, terreno em que triunfam, via de regra, os interesses das potências que dispõem de meios de poder com que secundar decisões políticas ou diplomáticas. Com efeito, o triunfo dos atrasados foi aparente e efêmero. As conferências da ONU chegaram a aprovar cerca de setenta documentos que definiam com clareza, de um ponto de vista conceitual, os parâmetros da Noei. No embalo dessa onda, a diplomacia brasileira movimentou-se, convertendo o País em líder terceiro-mundista. O chanceler Azeredo da Silveira expressou esse protagonismo e suas expectativas de reforma do sistema internacional ao propor à Assembléia Geral da ONU e a outros foros multilaterais, nos meados dos anos 1970, um acordo geral entre o Norte e o Sul, que equacionasse os interesses e os temas em debate e formalizasse as regras da cooperação internacional entre ricos e pobres. Os resultados do esforço para construção da Noei foram curiosos, segundo avaliação da chancelaria brasileira, a qual, em conseqüência disso, fará algumas correções de rumo em sua ação multilateral. Além do Sistema Geral
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de Preferências, uma concessão de acesso privilegiado e sem reciprocidade aos mercados do Norte de produtos oriundos dos países em desenvolvimento, e da modificação do estatuto do Gatt, permitindo a esses países recorrer ao protecionismo para implantar indústrias, a nenhum outro resultado concreto conduziu a Noei. Como esses ganhos eram pequenos, quando comparados com os conceitos elaborados de modo coletivo no seio da ONU em resposta às expectativas do Sul, julgou-se que o multilateralismo escondia o embuste da hipocrisia, merecedor de desconfiança, no mínimo de cuidados. Assim, pela primeira vez, emerge entre os países em desenvolvimento a idéia de cooperação Sul-Sul, em contrapartida à sonegação de equilíbrio nas relações internacionais por parte dos países avançados. Por outro lado, a política exterior do Brasil reforçou a ação de cooperação bilateral como método de conduta, uma vez que o multilateralismo global, comercial e financeiro havia conduzido a frustrações práticas. À luz do tempo recente, essa segunda aventura do multilateralismo brasileiro leva a duas conclusões. Primeiro, a lição da hipocrisia do sistema internacional foi esquecida ao termo do século XX, assistindo-se ao retorno da idéia formulada no imediato pós-guerra, segundo a qual, em quaisquer circunstâncias, o multilateralismo produz harmonia e conciliação de interesses nas relações internacionais. Essa idéia tende a se arraigar na política exterior do Brasil ao longo do tempo e explica o empenho que a diplomacia dedica ao multilateralismo. Ela comporta uma dose de idealismo, porquanto as grandes potências manifestam, via de regra, propensão ao unilateralismo, com o objetivo de impor la loi des géants, segundo o conceito de René Girault. O aspecto idealista do multilateralismo brasileiro ressurge, de tempos em tempos. Com a abertura do fim do século XX, por exemplo, transforma-se em crença e ultrapassa as evidências científicas ao impregnar a opinião pública e o processo decisório. Para os interesses brasileiros, esquecer que os gigantes agem por si e para si criou condições favoráveis à implantação de uma globalização assimétrica no País. Segundo, os esforços de reforma ensinam outra lição, desta vez positiva: a evolução do multilateralismo brasileiro para a maturidade, alcançada quando esse multilateralismo se integra à ação das estruturas hegemônicas do capitalismo e age desde dentro, como se dele fosse parte, com o intento de colocar em pé de igualdade países emergentes e avançados nas negociações que conduzem à construção da ordem internacional.
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4.4 agir por dentro do multilateralismo com objetivos próprios: o propósito na era da globalização 4.4.1 evolução dos conceitos O multilateralismo recrudesce para se tornar hegemônico em sua capacidade de determinação sobre a política exterior brasileira nos anos 1980. Durante os governos de matiz neoliberal da década de 1990, essa evolução introduz uma modificação de essência. A diplomacia brasileira abandona, então, o propósito de reformar o ordenamento global e revela outra atitude: atuar em seu seio, fazendo valer os interesses nacionais. Essa mudança de atitude advinha da convicção implementada pelos homens de Estado brasileiros de que o mundo da interdependência global faria brotar de seu âmago um ordenamento feito de regras justas, transparentes e benéficas para todos, a disciplinar a conduta externa dos governos e de outros agentes das relações internacionais. Como se o mundo estivesse adentrando uma nova era, um Renascimento como o do século XVI. Essa convicção injeta na política multilateral uma dose de idealismo, própria de governos neoliberais, entretanto em determinado momento se percebe que pode ultrapassar o idealismo e atingir o nível da fé, longe da racionalidade. Os críticos do neoliberalismo e da globalização, que se mantinham atentos no seio da sociedade, desconfiavam nos anos 1990 desse renascimento e percebiam que a política exterior evoluía perigosamente para o âmbito da fé. Consideravam que o País transitava de uma utopia a outra, da ordem de efeitos benéficos para todos, erigida no imediato pós-guerra, à base de liberalismo ilimitado e de fronteiras ideológicas, para a ordem da globalização, também erigida à base de liberalismo ilimitado inerente à doutrina clássica acerca do mercado. Os críticos percebiam que se tratava, em ambas as fases, de regimes internacionais benéficos e nocivos ao mesmo tempo, cujos ardis cabia aos países emergentes identificar e dominar para realizar seus interesses no seio do sistema capitalista. Assim como havia sucedido nas fases anteriores das relações internacionais do Brasil, a ordem da globalização reservava surpresa e exigia avaliação. O próprio Cardoso reconheceu que o unilateralismo norte-americano comprometia as regras do ordenamento global. Também afirmou: cumprimos as regras, porém os ganhos ficaram do outro lado! Analistas latino-americanos da globalização, entre os quais Mario Rapoport, Aldo Ferrer, Luciano Tomassini, Raúl Bernal-Meza, além dos brasileiros, acrescentavam outras dúvidas:
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o Estado não definhava como supunham os neoliberais, ao contrário, fazia-se presente no cerne da ordem da globalização como seu arquiteto, sendo as regras do centro capitalista propostas à periferia e aos países emergentes sem reciprocidade real. Por outro lado, vários pesquisadores descreviam a deterioração dos indicadores sociais e econômicos da América Latina na virada do milênio, em conseqüência da adoção passiva das práticas neoliberais. Apesar de exibir pensamento contraditório, coube a Cardoso puxar para o Brasil da era da globalização o multilateralismo kantiano que correspondia à visão de um mundo harmonioso e padronizado, cujo ordenamento brotaria da negociação. Mas sua visão de mundo revelou-se uma utopia. Sem utopia por certo não vivem os indivíduos nem as sociedades, no entanto com ela podem ser levados à perdição. A opinião pública percebeu o risco a que o destino nacional submeteu-se e substituiu, no Brasil, como ocorria em quase todos os países vizinhos, os governos neoliberais por governos de esquerda, quando se iniciava o século XXI. A diplomacia de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, opera com outro conceito de ação multilateral, que transita da ênfase obediência às regras do ordenamento global à ênfase ser parte ativa da produção de regras, isto é, das estruturas hegemônicas do capitalismo. Em suma, novas atitudes caracterizam a ação multilateral brasileira durante o governo Lula. Uma situa-se do lado da continuidade: tanto em teoria quanto na prática o multilateralismo permanece entre os valores mais eminentes da política exterior, na suposição de que o ordenamento global em seu conjunto produz os melhores benefícios para as relações internacionais. Outra atitude também lança raízes no passado, porém representa inovação conceitual e operacional: não mais confrontar ou reformar, tampouco submeter-se de modo passivo, mas penetrar a ação das estruturas hegemônicas do capitalismo de modo a ser parte do jogo de reciprocidades internacionais, do comando e dos benefícios. Essas novas atitudes diante do multilateralismo motivam a ação externa em duas esferas: a da construção de meios e a da realização de fins, tidas por necessárias para substituir o idealismo kantiano pelo realismo expresso na busca da reciprocidade real das relações de interdependência. Na esfera da criação de meios de poder, o multilateralismo implementa o desígnio de contribuir para a configuração do mundo multipolar, feito de alguns centros de poder capazes de neutralizar o unilateralismo norte-americano, tido por nocivo, na medida que se orienta para a realização exclusiva de
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interesses norte-americanos. Esses centros de poder fariam girar em torno de si a vizinhança: os Estados Unidos na América do Norte, a União Européia na Europa, a Rússia na Eurásia, China, Índia e Japão no Oriente, o Brasil na área do Atlântico Sul ocidental. Fazer emergir o mundo multipolar, o desígnio da política exterior brasileira, esconde ademais o propósito de ferir as arcaicas estruturas hegemônicas do capitalismo que articulava a tríade Estados Unidos, Europa e Japão no afã de reservar para si os benefícios da ordem internacional. Assim pensa Samuel Pinheiro Guimarães, o Secretário Geral do Itamaraty com influência na formulação teórica da política exterior. De outro ângulo, especialmente no entender do pensamento político conservador, o propósito de contribuir para configuração do mundo multipolar revela desproporção entre ação de tamanha envergadura e os meios de poder de que dispõe o Brasil. Por isso o pensamento conservador prossegue aconselhando a subserviência e divide a opinião com o pensamento nacionalista da era Lula, mais ambicioso e realista, visto que recupera a vontade nacional e se conforma às ambições do País de exercer um grande papel nas relações internacionais. Como já se observou, o pensamento político de Fernando Henrique Cardoso estendeu-se pela fase de transição que descrevemos. O multilateralismo brasileiro incorpora, por essa razão, uma feição kantiana, de crença na harmonia universal e de ação destinada a estabelecê-la. Acompanha, aliás, a onda da globalização que envolve os órgãos multilaterais por inteiro. Do Gatt, transformado em OMC, esperam-se regras de liberalização e de impulso ao comércio internacional. Do Conselho de Segurança esperam-se regras que garantam a segurança global, disciplinando intervenções e o combate ao terrorismo. Conferências internacionais voltam-se para outras dimensões do ordenamento global que se constrói, como o trato do meio ambiente, adequando-o ao chamado desenvolvimento sustentável, os direitos humanos, sociais, da criança, da cidadania, das mulheres e das minorias. A ONU estimula a produção de regras do ordenamento global em todos os domínios das relações internacionais e mesmo da organização interna das sociedades nos anos 1990, que Lindgren Alves apropriadamente chamou de Década das Conferências. Por trás dessa onda multilateralista escondia-se nos anos 1990 a filosofia política segundo a qual democracia e o livre mercado preparavam-se para um casamento ideal. A efervescência do multilateralismo no fim do século XX penetrou a inteligência brasileira tradicionalmente voltada para sua valorização. Nesse
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contexto de globalização, a política exterior do Brasil poderia aprofundar uma ou outra versão multilateral que manifestara anteriormente: construtiva, como ao tempo da implantação da ordem do pós-guerra; reformista ou confrontacionista, como nas décadas seguintes. Fez, contudo, uma terceira opção: agir no seio da ordem. Ao tornar-se prioritário, o multilateralismo porá em segundo plano as relações bilaterais que eram anteriormente o eixo de ação por meio da qual se movia a política externa brasileira. O multilateralismo abala, desse modo, as relações internacionais do Brasil, deprimindo o conceito de relações bilaterais, posto em prática mediante acordos bilaterais ou regionais de comércio e parcerias estratégicas com os Estados Unidos, a Europa e a Argentina, entre outros. A globalização, seja o governo brasileiro neoliberal ou logístico, embala as relações internacionais do País, fazendo minguar o bilateral e o regional, como se dela adviessem soluções para os desafios internos de qualquer natureza. O elemento cultural a impregnar essa perspectiva das relações internacionais do Brasil vem identificado por Celso Amorim, Ministro de Relações Exteriores e professor de Teoria das Relações Internacionais da Universidade de Brasília, como antagonismo entre bilateral e multilateral, o primeiro indutor de ordem egoísta, introspectiva e complicada, o segundo indutor de harmonização de interesses. O avanço em direção ao descolamento das estratégias anteriores e ao alinhamento assertivo às forças da globalização recebeu dois impulsos: o primeiro veio da política, pela via da prevalência do multilateralismo desde os anos 1980, contaminado pelo neoliberalismo dos anos 1990; o segundo impulso veio como passo qualitativo das forças econômicas nacionais, o paradigma logístico de relações internacionais, ensaio dos anos 1990 que se consolida no início do século XXI. A expansão da economia brasileira tende a integrar as forças da globalização, em ritmo razoável, tanto nos domínios do comércio internacional e das finanças quanto no domínio empresarial e tecnológico: expansão sistêmica, a exemplo dos países capitalistas avançados. Essa transição foi apoiada pela estabilidade política e monetária.
4.4.2 os objetivos próprios Foram intensos os esforços da diplomacia brasileira no Gatt e na OMC, desde 1995, com o fim de negociar regras para o comércio internacional, que se deparava com problemas cruciais. Os países avançados exigiam a abertura
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dos mercados emergentes para seus produtos e serviços de avançada tecnologia bem como a garantia de investimentos para expansão de suas empresas. Mas não estavam dispostos a ceder seus próprios mercados de produtos agrícolas e mesmo industriais à reciprocidade das trocas, eliminando subsídios e entraves nas fronteiras. Na medida que os países emergentes — denominação que o velho Terceiro Mundo assume em conseqüência da formação de uma elite de países ao Sul — tomavam consciência de que as regras tendiam a perpetuar benefícios unilaterais de estruturas hegemônicas dos países capitalistas do velho centro, as negociações comerciais tornavam-se mais difíceis. Gatt e OMC nasceram de uma tradição histórica: cabia aos países centrais estabelecer as regras do comércio internacional entre si, sendo a periferia um anexo irrelevante, sem direito de expressão. Por outro lado, a Década das Conferências tinha por fim agregar à ordem econômica regulada pela OMC os parâmetros da dimensão social, jurídica e política. Estaria desse modo em vias de construção a nova ordem da globalização mediante a negociação multilateral, a dos ricos entre si substituída pela dos ricos e emergentes entre si? De fato, as regras do ordenamento negociado destinavam-se a produzir nova sociedade internacional, derivada da governança global, que muitos autores e dirigentes abraçavam com entusiasmo. Por tal razão, a diplomacia de Cardoso admitia que o modelo tradicional de desenvolvimento brasileiro erodia-se no seio do novo modelo econômico proposto ao mundo pelo multilateralismo. Todavia, ainda se cultivavam utopias distantes do realismo: em vez da intervenção do Estado na economia, a prevalência do mercado. No lugar do ordenamento nacional, a conformação de instituições e leis internas à governança global. Na esfera da criação de meios, durante os mandatos de Lula, o multilateralismo volta-se para a formação de coalizões ao Sul, mas estas se destinam também à realização de seus fins. Apesar de sobrevalorizar o multilateralismo, dando continuidade a uma tradição brasileira que vinha, como ficou claro anteriormente, do imediato pós-guerra, a nova fase concebida e implementada pelo governo Lula assemelha-se, em seus efeitos, ao unilateralismo norte-americano. No início do século XXI, Brasil e Estados Unidos contribuem para o declínio do multilateralismo no que concerne a seu alcance prático para produção do ordenamento global. Isso porque agem com políticas destinadas a realizar fins incompatíveis: no primeiro caso, estabelecer a reciprocidade real na interdependência global; no segundo, manter as vantagens unilaterais das estruturas hegemônicas do primitivo centro capitalista.
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Com efeito, movida por essa base conceitual, a diplomacia de Lula contribui de modo assertivo para as negociações multilaterais comerciais que se desenrolavam em três setores do multilateralismo: na OMC, para criação da Alca e, enfim, da zona de livre-comércio entre Mercosul e União Européia. Contudo, se nessas três dimensões não se alcança a reciprocidade real em razão da força de comando das estruturas hegemônicas, melhor paralisar a criação de regras a fluir do multilateralismo, calcula a diplomacia brasileira, que age de modo febril com o objetivo de aproximar os países emergentes e reuni-los em torno de idêntico propósito. Durante a reunião da OMC no balneário mexicano de Cancun, em 2003, a diplomacia brasileira exerceu liderança suficiente para articular com outros países emergentes sua grande coalizão anti-hegemônica, o G20, grupo de países integrados pelos de maior peso da América do Sul, África e Ásia. Índia, África do Sul e Brasil se articulam no seio do Ibas desde 2003. Em 2005, instituiu-se formalmente a Casa, Comunidade Sul-americana de Nações, com o objetivo de fortalecer o regionalismo na América do Sul e estancar o projeto norte-americano de livre-comércio hemisférico, estabeleceu-se a aliança estratégica entre Argentina, Brasil e Venezuela e a primeira Cúpula América do Sul-Países Árabes reuniu, em Brasília, 33 delegações. Com esses e outros esforços similares destinados a criar coalizões antihegemônicas ao sul, não pretende a diplomacia brasileira parar a construção de regras do ordenamento global. Bem ao contrário, prestigiando o multilateralismo em crise, apenas busca conformá-lo à filosofia política de equalizar benefícios nas relações internacionais. Recupera o propósito de estabelecer ganhos reais entre as duas partes do mundo, aquelas que nos anos 1950 os cepalinos designavam de centro e periferia. Desde Cancun, a diplomacia brasileira tenta influir na substância das regras, que devem ser definidas pelos dois pólos, o centro e os emergentes, para realizar os interesses de ambos. O G20 nasceu com a força da representatividade do segundo pólo, em posição de equilíbrio com o primeiro, portanto, nasceu com legitimidade ética. No sistema mundial de comércio, o objetivo do Brasil consiste precisamente na interlocução entre os dois pólos de poder, a partir do princípio segundo o qual o ordenamento multilateral do comércio é por todos os títulos superior em qualidade ao ordenamento bilateral. Quando se adentra pelo século XXI, a reciprocidade real da era da globalização significa a participação efetiva do Norte e do Sul no comércio mun-
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dial, em condições operacionais igualitárias, tanto para produtos agrícolas quanto industriais e serviços de elevada tecnologia. Curiosamente, não são os países emergentes que reivindicam o protecionismo, como nas décadas que se seguiram à ordem implantada no imediato pós-guerra, mas os países ricos que o praticam, com seus subsídios agrícolas e entraves múltiplos à entrada em seus mercados de produtos agrícolas e industriais provenientes do Sul. Tudo isso, distante do livre-comércio proposto pelo centro, que não o pratica, como receita aos países emergentes. Em termos comparativos globais, a transferência de posições quanto ao protecionismo e ao liberalismo que se observa entre países ricos e emergentes no início do século XXI revela a existência de um mundo que não mais se qualifica pela divisão entre centro e periferia. Os países emergentes exibem competitividade sistêmica global superior no agronegócio e em alguns setores da indústria em relação aos Estados Unidos, à Europa e ao Japão, pelo fato de disporem de tecnologia de ponta em suas fábricas, de matérias-primas e de trabalho a custo mais baixo. Nessas condições, a velha política de portas abertas com que os países capitalistas de centro estenderam sua dominação sobre a periferia durante o século XIX e a primeira metade do século XX volta-se, no início do século XXI, contra eles, agora responsáveis pelo malogro das negociações multilaterais que pretendem fazer avançar a prática do livre-comércio. O papel de ator global na OMC exercido pelo Brasil após Cancun, por certo, evidencia a capacidade de influir sobre o estatuto do comércio internacional, por meio do G20, como também demonstra essa mesma capacidade de influir sobre a segurança internacional o G4, feito de Japão, Índia, Alemanha e Brasil, e o G3-Ibas sobre a cooperação internacional ao Sul. O impulso veio de tendências anteriores a Lula, porém houve inovação de estilo e de metas durante seu governo. Em primeiro lugar, o pressuposto segundo o qual não sendo o Brasil uma grande potência internacional necessita de uma grande política internacional. Assim como o mundo espelha desproporções de poder e de potenciais, a política exterior deve realizar interesses nacionais de uma sociedade também caracterizada por desproporções internas, algo que a situa ao nível dos grandes centros de poder e de potencial, aproximando-a de sociedades miseráveis. Em segundo lugar, a disposição de não repetir os conformismos da era Cardoso, ou seja, não dar ouvidos ao conselho dos ricos que insinua aos países emergentes: façam o que eu mando, não façam o que eu faço.
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Os objetivos do multilateralismo brasileiro tomam forma concreta na ação empreendida durante a rodada Doha da OMC e na política de comércio exterior. Em fins de 2004, o governo denominou de nova geografia comercial seu propósito de estimular os fluxos entre os países do Sul, não em detrimento dos que existiam entre o Brasil e o Norte, como erradamente alardeava a imprensa de direita, mas com o fim de abrir para as exportações mercados que já absorviam mais de 50% do comércio internacional e favorecer pelo consumo as populações mais pobres do planeta. A nova geografia comercial revelou-se extraordinário mecanismo propulsor do comércio. Em 2005, as exportações se aproximavam de cento e vinte bilhões de dólares e o saldo da balança de cinqüenta bilhões, consolidando uma tendência de ascensão dos fluxos e dos superávits. Nesse momento, as tarifas médias do Brasil situavam-se em 10,7%, bem abaixo da média dos países filiados a OMC, que era de 15,1%. Por que fazer mais concessões enquanto os países do Norte não diminuíssem subsídios e entraves à entrada de produtos agrícolas, área de negócios em que o Sul exibia produtividade superior? Por que prosseguir sem reciprocidade realizando os interesses do Norte que exigia maior abertura para produtos industriais e serviços? Que praticava, aliás, o protecionismo também na esfera do comércio de produtos industriais? Corrigir tamanho insulto às regras do comércio internacional foi eleito novo propósito da diplomacia brasileira durante a Conferência de Cancun de 2003, no seio da rodada Doha. Esta sucedeu à rodada Uruguai que estabeleceu, em 1994, a OMC e, em 2001, na reunião ministerial do Catar, recebeu o mandato de liberalizar o comércio internacional. O grupo de exportadores agrícolas, entre os quais Brasil, Argentina, Chile, China, Índia, Paquistão, Tailândia, Indonésia, África do Sul, Egito e outros, formou, então, o G20, que introduziu o multipolar nas negociações comerciais, doravante destinadas a realizar a reciprocidade de benefícios nas trocas. Do contrário, não avançariam. Além do choque de interesses, a dificuldade para corrigir o ordenamento comercial advém do sistema decisório, feito na OMC por consenso e não por votação, uma vez que os grandes não admitiriam que os pequenos traçassem as regras do comércio internacional segundo a praxe da votação majoritária. Como não eram acostumados a partilhar com os países emergentes o poder de definir as regras do comércio internacional e como eram acostumados a traçá-las em benefício próprio, sem ceder, os países ricos do Norte sur-
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preenderam-se com a atitude dos países do Sul e as negociações da rodada Doha, que deveriam terminar em 2006, foram travadas durante anos e adiadas, enfim. Reuniões ministeriais sucederam-se, também reuniões preparatórias entre Estados Unidos, União Européia e G20, todavia sem resultados até o início de 2007. O malogro das negociações comerciais na OMC representa, no início do século XXI, duro golpe à ordem internacional de definição multilateral, precisamente quando o paradigma do Estado neoliberal é ferido de morte na América Latina e o reforço do Estado nacional se observa em todo o mundo como fenômeno que sucedeu à onda ideológica da globalização. Apesar de a União Européia manter sua política agrícola, como se algo sagrado fosse, a prática norte-americana de concluir tratados bilaterais de livre-comércio surge como principal elemento obstrutor das negociações multilaterais de comércio, segundo o especialista Jagdish Bhagwati. Incômodas negociações na sede da OMC em Genebra se multiplicam com o fim de resolver contenciosos criados por infração de regras já firmadas, visto que, apesar de infratores, aos países do Norte repugna ceder. Aproveitando-se da crise do multilateralismo provocada pelo egoísmo das nações, a diplomacia brasileira anuncia que também o País não aumentaria sua oferta nas áreas industrial e de serviços enquanto o Norte não endossasse soluções para a questão agrícola. Essa conduta se inspira na eqüidade a ser estabelecida nas negociações multilaterais, em substituição à obediência e ao ingrediente doutrinal que afetavam as negociações conduzidas pelos governos brasileiros anteriores a 2003. As duras negociações no seio da rodada Doha envolvem também a chantagem e o sentimentalismo, ricos e emergentes querendo sensibilizar corações e obter adesões. Mas avançam, por certo, em qualidade, quando vinculam comércio internacional a outros fins a que o multilateralismo deve servir, como o desenvolvimento, o meio ambiente, a pobreza. E também quando superam a utopia e o fundamentalismo dos que pregam nas universidades e fora dela o livre-comércio como solução pura e simples para todos os problemas. Para os negociadores da OMC multipolar do século XXI, a teoria do livre-comércio deve ser apreciada pelos resultados concretos e não como um bem em si. Duas observações permitem, enfim, compreender melhor a política brasileira de comércio exterior, seja em escala multilateral, seja em escala bila-
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teral ou regional. Essa política parte do pressuposto segundo o qual o ordenamento global, a aposta na OMC, convém aos interesses nacionais mais que outros mecanismos, sejam eles estabelecidos no seio da integração regional, sejam na esfera de acordos bilaterais de comércio. Apesar de as expectativas não se realizarem em âmbito multilateral, põem-se em quarentena os esforços para aprofundar o livre-comércio entre blocos a que pertence o Brasil, como entre Mercosul e União Européia, e uma relutância se mantém para firmar acordos bilaterais desse tipo, particularmente com os países ricos. Com efeito, estes impõem exigências tão profundas para firmá-los que modificam a organização social e o sistema legal do país, afetam a soberania, tolhem o controle do modelo de desenvolvimento e ferem interesses vitais de segmentos da sociedade. A política brasileira de comércio exterior segue os padrões de países similares da América do Sul, Argentina e Venezuela, que desejam preservar sua vocação industrial, e difere da política de países menores, como Chile, Colômbia, Peru, Equador e Uruguai, que se mostram satisfeitos com sua vocação de países primários e por isso perseguem o acordo de livre-comércio com os Estados Unidos, mediante o qual sua situação de dependência estrutural se perpetua. Essa diferença de políticas de comércio exterior entre os países da América do Sul resulta da diferença de modelos de desenvolvimento. Contudo, um grande país como a Índia, de compromisso com o sistema multilateral de comércio como o Brasil, inclui em sua estratégia externa acordos regionais e bilaterais de comércio, enquanto a rodada Doha não for destravada. Essa alternativa não vem sendo contemplada no presente pela diplomacia de Lula. Além da área comercial, a ação multilateral brasileira à época de Lula também imprimiu outra orientação externa na esfera política e geopolítica. Reconduzido à chancelaria, Celso Amorim deu impulso à idéia que lhe era cara desde a Presidência de Itamar Franco (1992-94), quando ocupou pela primeira vez a pasta do exterior: a reforma da ONU e a candidatura brasileira ao assento permanente no Conselho de Segurança. A necessidade de reforma, argumenta, resulta da inevitabilidade de adaptar o sistema ONU de 1945 às transformações de mais de meio século e torná-lo mais representativo, transparente e legítimo, o objetivo do assento se dá pelas mesmas razões. Ademais, o Conselho de Segurança influi em outros órgãos do sistema ONU, onde o Brasil tem interesses concretos a defender, como
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no Conselho Econômico e Social e em órgãos e conferências permanentes ou regulares voltados para desarmamento, meio ambiente, pesquisa nuclear e outros fins. Ser parte das estruturas hegemônicas do capitalismo e atuar na conformação das regras por meio da negociação multilateral corresponde à filosofia política do multilateralismo brasileiro pós-neoliberal. Seu objetivo consiste em distribuir responsabilidades entre as nações com o fim de estabelecer a reciprocidade real na distribuição dos benefícios da globalização, tanto na esfera comercial, quanto financeira, política e geopolítica. Resultados são esperados dessa ação multilateral tanto quanto a guerra e a paz, mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável e combate à pobreza. Como tais desafios não podem ser equacionados pelos Estados-nações, requerem cooperação internacional e sistema multilateral forte, porém, como ambos se apresentam, são insuficientes. Especialmente em razão do unilateralismo dos Estados Unidos, que agem com o peso de sua hegemonia na área da segurança e do meio ambiente à revelia da ONU e do Protocolo de Kyoto, ratificado em 2005 por outros 161 países. Daí a necessidade das reformas, enquanto a governança global prosseguir refletindo a distribuição desigual do poder e a ineficiência das instituições multilaterais, a começar pela ONU e pela OMC.
4.5 o sistema interamericano O multilateralismo regional, de âmbito hemisférico, expresso pelo sistema interamericano, detém importância secundária na política externa brasileira. Seus suportes institucionais, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), nasceram da solidariedade que selou a união continental durante a Segunda Guerra Mundial, é bem verdade, entretanto se nutriram dos primeiros arroubos da Guerra Fria. Ambos os estatutos refletem em seus termos a canalização da solidariedade continental para o combate ao comunismo. Na apreciação que dele teceu a diplomacia brasileira ao longo da segunda metade do século XX, dois foram os desvios do pan-americanismo: serviu, em primeiro lugar, ao combate ao comunismo, que não representava uma bandeira de luta latino-americana, e, em segundo, à hegemonia hemisférica norte-americana, que se pautava por interesses introspectivos e negligenciava os da vizinhança. Brasileiros e demais latino-americanos
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tentaram por vezes trazer o sistema interamericano para a cooperação regional sob impulso norte-americano. Contudo, esse ideário que se expressou por meio da Operação Pan-americana, concertada em 1958 entre os presidentes do Brasil, Juscelino Kubitschek, e da Argentina, Arturo Frondizi, cedeu diante do ideário da Aliança para o Progresso, concebida em resposta por John Kennedy como versão norte-americana do pan-americanismo, posto logo a serviço da contenção do comunismo e da hegemonia regional. Um regresso. À época dos regimes militares dos anos 1960 e 1970, a OEA apoiava intervenções com o fim de debelar movimentos populares tidos por subversivos. Amadurecia, na sociedade civil, a convicção de que era dominada ideologicamente pelo combate às esquerdas organizadas e pelo apoio a emprestar às ditaduras. A diplomacia brasileira, à diferença da argentina, mesmo durante o regime militar, encheu-se de frustrações diante do sistema interamericano, que não realizava interesses do desenvolvimento, nem sequer os contemplava. Um certo desprezo pelos órgãos multilaterais hemisféricos tomou conta do Itamaraty, que não manifestava interesse pela Secretaria Geral da OEA, cargo ocupado por escolha dos membros. A Guerra das Malvinas, opondo Argentina e Grã-Bretanha, em 1983, levou o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, a optar pela Otan e dirigir seu apoio logístico à ação inglesa no Atlântico Sul. Argumentava-se, então, que o sistema interamericano, especialmente seu braço estratégico, o Tiar, fora sacrificado. E que não servia mais a fim útil algum para os países latinos. Nesse momento de crise, paradoxalmente, a diplomacia brasileira tomou a iniciativa de salvar um sistema hemisférico moribundo. Pela primeira vez, apresentou sua candidatura à Secretaria Geral da OEA, cargo ocupado pelo embaixador Baena Soares, durante dois exercícios, entre 1984 e 1994. Por que salvar o multilateralismo regional, assim mesmo, é uma pergunta que ainda não obteve resposta satisfatória. A não ser que se evoque a percepção dos dirigentes brasileiros de que o multilateralismo, mesmo desprovido de efeitos concretos, convém às relações internacionais, seja para limitar a ameaça de hegemonias, seja para evitar a anarquia que paira sobre elas.
4.6 a idéia brasileira de multilateralismo
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Uma reflexão sistemática acerca da ação multilateral brasileira sugere quatro considerações: 1) A presença brasileira nos órgãos multilaterais de alcance global ou de dimensão regional conta entre as maiores, se comparada à de outros países, situando-se, nas últimas décadas, próximo às cinco delegações mais numerosas do mundo. Essa presença denota, por um lado, a importância que se atribui à negociação multilateral e à sua capacidade de fixar regras de ordenamento das relações internacionais; por outro, destina-se a reforçar o minguado poder de que desfruta o país no cenário internacional. 2) O ordenamento produzido entre a Segunda Guerra Mundial e o fim da Guerra Fria vem sendo avaliado de baixa utilidade por diplomatas e internacionalistas, quando referido aos interesses do desenvolvimento. O ordenamento que corresponde à era da globalização, a governança global em gestação nos órgãos multilaterais entre 1990 e o presente, também é considerado de baixa utilidade, se relacionado à função de estabelecer a reciprocidade real das relações internacionais que o País espera do multilateralismo na esfera econômica e à legitimidade na esfera política e de segurança. A ordem ideal corresponde à ordem multilateral de alcance global, não à regional e menos ainda à bilateral. 3) A atuação brasileira nos órgãos multilaterais revelou-se, ao longo do tempo, coerente com o acumulado histórico da diplomacia, citado em outro capítulo, sobretudo no que diz respeito aos princípios de autodeterminação e não-intervenção e ao vetor do desenvolvimento. As fases dessa atuação trazem, contudo, adaptação natural da política a seguir nos órgãos multilaterais, sob os aspectos conceitual e prático. 4) Não foi linear e sem mudança a atitude brasileira diante do multilateralismo. Oscilou entre idealismo e realismo, subserviência e protagonismo. Pressupostos conceituais desse multilateralismo explicam a oscilação. Sua funcionalidade mais relevante para a vida internacional situa-se do lado econômico. Sob o ângulo da economia política internacional, o multilateralismo brasileiro achegou-se à concepção de que o mercado, curso natural e profundo, não basta como ordenador das relações internacionais, requerendo-se a intervenção do Estado com o fim de domar suas forças e orientá-las para necessidades humanas, tais como desenvolvimento, bem-estar, combate à pobreza, em suma, a eqüidade. Para exercer essas funções nas relações internacionais, o multilateralismo deve dispor de sólido suporte
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institucional e operar de modo a distribuir responsabilidades entre todas as nações, sem o que serão consideradas apenas as necessidades das que detêm maior parcela de poder. Nessas condições, a ação multilateral do Brasil tanto contribuiu para criação de uma sociedade internacional mais justa quanto frustrou expectativas, tanto registrou esforços para reforma da ordem quanto disposição para operar em seu seio. Não se transita de uma fase a outra abruptamente, porquanto arrastam-se sobre o tempo longo pressupostos conceituais contraditórios. Sem dirimir o problema de fundo: que fazer com o multilateralismo?
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LeIturaS recomeNdadaS: BRIGAGÃO, Clóvis; PROENÇA Jr., Domício. (Orgs.). Brasil e o mundo: novas visões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002 (ver capítulo: CERVO, Amado Luiz. “A dimensão da segurança na política exterior do Brasil”. p. 319-362). REBELO, Aldo; FERNANDES, Luís. (Orgs.). Política de defesa para o século XXI. Brasília: Câmara dos Deputados, 2003. DUPAS, Gilberto; VIGEVANI, Tullo. (Orgs.). O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional. São Paulo: Alfa-Ômega, 1999. FREITAS, Jorge Manuel Costa. A escola geopolítica brasileira. Lisboa: Universidade Técnica de Lisboa, 1999. OLIVEIRA, Amâncio Jorge; ONUKI, Janina. Brasil, Mercosul e a segurança regional. Revista Brasileira de Política Internacional, 43-2 (108-129), 2000. OLIVEIRA, Odete Maria de. A integração bilateral Brasil-Argentina: a tecnologia nuclear e o Mercosul. Revista Brasileira de Política Internacional, 41-1 (5-23), 1998. PROENÇA Jr. Domício; DINIZ, Eugênio. Política de defesa no Brasil. Brasília: UnB, 1998. LAFER, Celso. Comércio, desarmamento, direitos humanos. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
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5.1 as questões da segurança A passagem do milênio caracterizou-se por três mudanças no cenário internacional de segurança: o fim da bipolaridade Leste-Oeste simbolizada pela derrubada do muro de Berlim em 1989, uma propensão para a segurança multilateralizada à época da globalização, entre 1990 e 2001, e o refluxo para o unilateralismo norte-americano, a partir da derrubada das torres gêmeas do World Trade Center de Nova York, a 11 de setembro de 2001. Os Estados Unidos, potência hegemônica em torno da qual gira a segurança do mundo e à qual se referem as políticas de defesa dos Estados, condicionam essas três fases de evolução da segurança. A guerra contra o Afeganistão, iniciada, em 2001, com o objetivo de extirpar o regime Talibã, que abrigava a rede terrorista Al-Qaeda obteve o apoio sem entusiasmo da ONU e da Otan, mas essas organizações se recusaram a acompanhar o governo de George W. Bush na guerra que iniciou contra o Iraque, em 2003, na suposição de que o regime de Saddam Hussein também fosse um reduto de terroristas. Entre uma guerra e outra, os Estados Unidos transitaram da propensão à segurança multilateralizada, sob a égide da ONU, ao unilateralismo, feito de visão própria e de iniciativas autônomas, à base da doutrina do ataque preventivo. O Brasil envolveu-se com entusiasmo no que chamamos de segurança multilateralizada, denominação que a maioria dos estrategistas atuais chama de segurança cooperativa, ao ponto de ela exercer influência sobre sua política de defesa. Contudo, assim como não demonstrara entusiasmo pela longa Guerra Fria, tampouco apoiou a estratégia norte-americana de combate ao terrorismo. Guerra Fria e terrorismo foram consideradas preocupações alheias aos objetivos externos brasileiros, visto não afetarem de imediato os interesses nacionais. A inserção internacional de segurança do Brasil esteve visceralmente vinculada à política exterior, até 1989, pela via do chamado projeto nacional que estabelecia objetivos permanentes e supunha o planejamento estratégico; desde 1990, pela via da segurança multilateralizada, quando planejamento e projeto foram proscritos do vocabulário dos dirigentes e a política exterior perdeu autonomia decisória; e no presente, formulando-se questões cruciais acerca da segurança, as quais vão muito além de seu aspecto militar. Ser ou não uma potência, manter ou não uma concepção estratégica como diretriz de Estado, definir ou não objetivos permanentes, dispor ou não de poder com o fim de conferir apoio logístico ao desenvolvimento econômi-
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segurança, defesa e PolítIca eXterIor
co, equipar a política exterior com instrumentos de manobra internacional, entrelaçar defesa, segurança e política exterior, postar-se de forma assertiva diante de simplismos da segurança global como a Guerra Fria e o combate ao terrorismo, livrar o destino nacional de ameaças que o impedem de galgar a condição de País de centro do sistema capitalista, ou seja, livrá-lo de coerções econômicas, políticas, ideológicas e militares por parte dos países de centro, quando eles se sentem ameaçados, eis algumas questões pertinentes à política brasileira de segurança e defesa. Em suma, o que está em jogo por trás da política de segurança e defesa é a permanência do País na situação periférica ou a possibilidade de desempenhar papel relevante nas relações internacionais, na suposição de que apenas diplomacia e economia não bastam. Segurança — um estado ou condição em que se estabelece a nação — está a cargo da nação e de todas as suas forças disponíveis; defesa — um conjunto de meios e ações que compõem a segurança nacional — está a cargo das Forças Armadas, de acordo com a Constituição. Neste estudo, todavia, o objetivo consiste em examinar o nexo entre política exterior, segurança e defesa. Privilegiamos as três inflexões da política de segurança que se estenderam da origem da Guerra Fria ao presente: a) a segurança coletiva decorrente do alinhamento brasileiro ao bloco ocidental durante a Guerra Fria; b) a nacionalização da segurança promovida nos anos 1970 como meta alternativa e c) a segurança multilateralizada, com outro papel regional e global do Brasil, conceitos prevalecentes no pensamento diplomático desde a transição dos anos 1890 para os 1990. Iniciamos, contudo, pela escola geopolítica brasileira com o fim de estabelecer o nexo entre pensamento estratégico e política exterior.
5.2 a escola geopolítica brasileira Os primeiros pensadores geopolíticos brasileiros apareceram nos anos 1920 e 1930, quando escreviam Delgado de Carvalho e Mário Travassos. No contexto da Segunda Guerra Mundial, esses estudos geopolíticos adquirem caráter sistêmico e aparecem novos pensadores como Teixeira de Freitas, Leopoldo Nery da Fonseca e Lysias Rodrigues. Já no clima de Guerra Fria nasceu a Escola Superior de Guerra, com sua conotação doutrinária bem representada por Golbery do Couto e Silva. O regime militar implantado em 1964, calcado no binômio segurança e desenvolvimento, deu origem a uma literatura que focava o Brasil como grande potência, tal o ângulo das análises
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de Therezinha de Castro e Carlos de Meira Mattos. As duas décadas finais do século XX, no embalo da redemocratização e da globalização, bem como da criação de centros de estudos estratégicos em algumas universidades, presenciam o aparecimento de nova safra de pensadores geopolíticos. O que faz dessa linhagem intelectual uma escola, segundo Jorge Manuel Costa Freitas, é seu fio condutor mental, destinado aos dirigentes, voltado para inspiração de estratégias de ação, as quais, com base nos vetores espaço, posição e fronteira, haveriam de firmar o poder nacional e projetar o país no cenário regional e global como grande potência. Além de voluntarista, o pensamento geopolítico brasileiro desenvolveu-se no âmago da cultura ocidental, de matriz política norte-americana e de manipulação de conceitos tais como: defesa da civilização ocidental, combate ao comunismo, bloco ocidental, aliança com os Estados Unidos. A Doutrina da Segurança Nacional, erigida no seio da Escola Superior de Guerra, fundia teoria e práxis, interno e externo, naquela pretensão de conselheira do príncipe. Despertava suspeições nos países vizinhos, seja porque idealizava a construção da potência brasileira, seja, particularmente, porque a cotejava com o papel da Argentina no Cone Sul. Como apreciar esse pensamento, em especial sua relação com o centro do poder nacional e as linhas de força da política exterior? É inegável a influência da escola geopolítica brasileira sobre decisões destinadas à gerência do espaço nacional e regional — estradas, fronteiras, Amazônia, zona franca, corredores de exportação, redistribuição de fatores econômicos, conexões com a infra-estrutura física dos vizinhos, Cone Sul, Atlântico Sul, América do Sul etc. — assim como é inegável a influência sobre a apreciação do papel dos Estados Unidos na vizinhança e do conceito de relação estreita conveniente com a potência hegemônica da área. Em essência, contudo, o permanente que a geopolítica brasileira expressa, por sobre governos e regimes políticos, é a percepção, congênita na sociedade brasileira, do papel relevante a desempenhar pelo País nas relações internacionais. Alguns traços do pensamento geopolítico brasileiro perderam-se por força da crítica ou por obstrução da práxis, que não os contemplavam de forma valorativa ou operativa: a ideologização era incompatível com o universalismo da política exterior, a visão bipolar do mundo carregava preconceitos e restringia o espaço de projeção do País, a aliança com os Estados Unidos, tida como fatalidade pelo pensamento geopolítico do barão do Rio
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Branco e assimilada posteriormente, evidenciava conflito de interesses na fase de desenvolvimento avançado, a visão competitiva de Brasil e Argentina por espaço e influência era incompatível com a integração. Em outros termos, esse pensamento não se revelou capaz de administrar de forma duradoura, como pretendia, o nexo entre segurança, poder, planejamento estratégico, objetivos permanentes e política externa. Não foi capaz de fazer e manter o consenso no seio do pensamento militar ou civil acerca das práticas políticas para além de seu substrato ontológico — um país relevante sobre o cenário internacional. A aproximação com a universidade trouxe flexibilidade à escola geopolítica brasileira. Sem afastar a visão militar acerca da inserção internacional de segurança, os acadêmicos se debruçaram sobre temas novos, como os conceitos expostos pelos diplomatas brasileiros na ONU, as reações brasileiras ante a política norte-americana de combate ao terrorismo, a legitimidade do uso da força, a participação brasileira nas operações de paz da ONU e a vinculação entre segurança e diplomacia. Esse último aspecto, a aproximação entre o pensamento geopolítico tradicional e o pensamento diplomático, provocou o estrondo dos conceitos. Se a defesa corresponde a um serviço do Estado, a diplomacia corresponde a outro. Ambos supõem avaliação de meios, fins e riscos da decisão, visão de mundo, objetivos estratégicos e reações aos condicionamentos estruturais ou momentâneos. Ambos se complementam. Supõem o diálogo entre militares e diplomatas, apesar de os primeiros pretenderem reforçar o poder para servir à segurança, os segundos utilizá-lo como instrumento de manobra nas relações externas do País.
5.3 Gênese da relação entre segurança e política exterior: 1822-1945 Durante o século XIX, os conceitos de sociedade internacional e sistema internacional elaborados pela escola inglesa de relações internacionais são úteis para dar inteligibilidade à questão da segurança brasileira. Com efeito, após a fase napoleônica, erige-se na Europa, desde o Congresso de Viena, de 1815, uma sociedade internacional com forte capacidade e propensão à expansão global. Essa sociedade, feita de regras de conduta a condicionar o comportamento dos Estados e demais agentes internacionais com base em valores e princípios culturais comuns, é mais do que um sistema internacional. Será o lastro e a cobertura desse sistema durante o
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século XIX, denominado de hegemonia coletiva ou concerto europeu. O sistema envolvia, segundo Brunello Vigezzi, uma interação econômica, política e militar entre os Estados e demais agentes que, no entanto, perseguiam interesses próprios. O sistema cria regras, instituições e valores comuns que, em determinado nível de evolução, convertem-se em uma sociedade internacional. Sociedade essa que corresponde, portanto, a um estoque de regras e valores específicos, oriundos da cultura, que tecem uma densa trama de relações, como o sistema europeu, o árabe-islâmico, o mongol, o indiano, o chinês e outros exemplos históricos. Somente a sociedade internacional européia do século XIX deu origem a um sistema internacional de dimensão global. Precisamente porque serviu-se de dois instrumentos propulsores, a Revolução Industrial e a superioridade tecnológica, para promover a expansão do capitalismo europeu. Para os europeus, a América era vista como colônias dependentes da metrópole e, depois das independências, como extensões da “ordem”. O Velho Mundo tirava do sistema vestfaliano o princípio das múltiplas independências, incorporado à sociedade européia, porém temperado pela hegemonia coletiva dos cinco grandes (Inglaterra, França, Rússia, Áustria e Prússia). O Novo Mundo acrescentou-lhe a retórica da descolonização, cuja legitimidade foi aceita. Algo semelhante ocorreu com a África do Sul e a Austrália no século XIX, ao passo que os europeus, em razão de resistências locais, foram levados a impor os ajustes da ordem ao mundo muçulmano e ao continente asiático, à força quando necessário, como no Império Otomano e na China, ou por consentimento, como no Japão. As guerras de independência da América foram, portanto, momentos de crise marginal à construção da ordem internacional do século XIX. Opuseram colônias e metrópoles, entretanto a Independência seria legitimada por uma espécie de alocação funcional sistêmica a que foi destinada a América na expansão do capitalismo. Os Estados Unidos recusaram muito cedo o caráter de vassalos da ordem e desenharam seu destino com autonomia. Mas no Brasil, as regras de inserção dependente foram estabelecidas pela matriz européia da ordem e aceitas pelo governo, engendrando o que já denominamos de “sistema dos tratados”. Os países da América não integraram durante o século XIX a sociedade internacional européia como membros plenos, ou seja, com direito de opinar sobre regras, princípios e instituições, porém como primos associados. De
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todo modo, a questão da segurança, uma variável interveniente na construção da ordem, estava resolvida nas relações entre Europa e América pelo século todo e os conflitos ocasionais restringiram-se a questões de observância das regras, como no caso do tráfico de escravos, das indenizações por perdas, do modo como fazer contratos de comércio e das tarifas de comércio. Um forte pensamento estratégico brasileiro que zelava pela Independência e pela unidade encontrou sua expressão no americanismo de José Bonifácio de Andrade e Silva. O patriarca da Independência temperava o ideal de união continental inerente ao bolivarismo com o realismo da doutrina Monroe. Em vista disso, despachou Correa da Câmara para Buenos Aires em 1822, porque considerava a Argentina peça-chave da segurança continental a erigir. Por essa razão, a diplomacia brasileira buscou também uma aliança com os Estados Unidos. As vitórias sobre as metrópoles, a brasileira de 1823 e a hispano-americana de 1824, eliminaram definitivamente as ameaças européias sobre a Independência. Quando o perigo de uma ação portuguesa contra a nova soberania nacional foi afastado, ainda na década de 1820, a diplomacia brasileira pôde voltar-se para os problemas regionais afetos à segurança, os velhos problemas da rivalidade ibérica e os novos da consolidação dos Estados nacionais. Um caráter particular assumiu a segurança para os estadistas brasileiros da primeira metade do século XIX, o de corresponder ao imperativo de manter a unidade nacional. Dessa forma, adquirem clareza as reações da diplomacia brasileira diante de interferências externas na revolta de Pernambuco em 1824, da incorporação de Chiquitos, pelas autoridades locais de Mato Grosso, e conseqüente disposição de Simón Bolívar de “revolucionar” o Império, bem como diante da decisão de Buenos Aires de anexar, por ato unilateral, a Província Cisplatina em 1825. O desfecho da guerra da Cisplatina, a primeira grande guerra do Brasil independente, evidencia precisamente aquele caráter da segurança, visto que a Banda Oriental não era nem podia ser considerada parte do território nacional. A mediação inglesa foi aceita, porque por meio dela se haveria de costurar a paz de 1828, segundo as regras da sociedade internacional européia e se concederia a independência ao Uruguai. Consolidada a Independência, com a perda da Cisplatina, os objetivos da segurança configuraram-se nos anos 1830 e 1840, para todo o século XIX, em duas frentes: conjurar as ameaças à integridade territorial que vinham do Prata e assegurar o legado territorial da época da Independência.
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A lição da perda da Cisplatina provocou um equívoco na política de segurança, que se remediou sem evitar graves riscos. Com efeito, desde 1828, o isolacionismo foi eleito como conduta diante das convulsões políticas do Uruguai e da Argentina e diante das pretensões — expansionistas, no entender dos estadistas do Rio de Janeiro — do governador de Buenos Aires, Manuel Rosas. Essa neutralidade brasileira somente era temperada pela disposição, aliás malograda, de negociar o tratado definitivo de paz acerca do Uruguai, previsto pela convenção preliminar de 1828. A política de segurança do Brasil, no século XIX, enfrentaria a zona de pressão do Prata em duas frentes de ação: a externa compreendia a geopolítica de defesa das independências regionais sobre a qual firmaria o status de maior potência relativa; a interna, mediante o reforço da ação diplomática, que viria secundado pelo recurso à força como tática de última instância, a ser acionada quando a diplomacia falhasse na realização das metas previstas. Essa estratégia contaminou o Estado brasileiro em seu conjunto, porém resultou da visão de homens de forte têmpera política como o marquês do Paraná, o visconde do Uruguai, o visconde do Rio Branco e o barão de Cotegipe. Envolveu os traços de racionalidade e continuidade, típicos do Estado conservador brasileiro da era monárquica. Para realizar os objetivos da segurança, o Estado brasileiro foi levado a estabelecer um certo controle sobre o Prata, entre 1851 e 1876. As ações por meio das quais exerceu tal controle foram tanto de ordem diplomática quanto econômica e militar: compor alianças regionais aproveitando as desavenças políticas locais, utilizar empréstimos públicos e investimentos privados para apoiar governos aliados, fixar regras de comércio e navegação, fomentar o liberalismo com os partidos e governantes locais, submeter os pequenos Estados por acordos consentidos ou impostos e utilizar a força para dobrar governos, afastar partidos do poder ou eliminar caudilhos que representavam ameaças concretas. Entre a eliminação de Oribe e Rosas do cenário platino em 1851-52 e a desocupação militar do Paraguai pelas tropas brasileiras em 1876 estabeleceu-se uma hegemonia regional brasileira, comprometida pela ascensão da República argentina como potência regional após o triunfo de Mitre nos anos 1860. Houve, portanto, um papel protagônico do Brasil, nos meados do século XIX, na configuração do subsistema platino de relações internacionais, exercido com grande autonomia face à pressão das grandes potências de
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então, particularmente a Inglaterra. Essa conclusão prevalece na historiografia regional, apesar de terem surgido décadas antes das interpretações de sociólogos que se tornaram famosos com suas teorias da dependência, que não resistem à análise histórica. A posse territorial correspondeu à segunda dimensão da segurança no século XIX. Também essa dimensão foi alçada como meta da diplomacia apenas nos meados do século, conjuntamente com a disposição de afastar os perigos advindos do Sul. A política brasileira de limites assentou-se na convicção da legitimidade do legado português, adotou a doutrina do uti possidetis como fundamento e a negociação diplomática bilateral como tática operacional. Nessa frente, o êxito não foi tão pleno como no da segurança regional, haja vista que o barão do Rio Branco terá de complementar a ação da diplomacia imperial, fixando boa parte dos limites que ainda não haviam sido definidos. Assim mesmo, a configuração do corpo da pátria, o território nacional, correspondeu a uma tarefa diplomática, não militar, sem despertar grandes preocupações ou envolver grandes riscos em termos de segurança. A defesa da Amazônia integrou a política de limites, mas na década de 1850 exigiu do governo cuidados especiais, em virtude de haver um plano norte-americano de ocupação da área, concebido como vazão para a crise da economia escravista algodoeira dos estados agrários do sul pelo tenente da marinha ianque Matthew Maury, e apoiado com arrogância pelo ministro William Trousdale, no Rio de Janeiro. Diferente da estratégia assertiva de ação que garantiu o controle do Prata, a segurança da Amazônia assentou em estratégia defensiva que envolveu a protelação da abertura do rio à navegação internacional, a criação de uma companhia brasileira de navegação e comércio (Companhia Mauá), a fortificação da foz e intensa ação diplomática para com os ribeirinhos superiores, aos quais se oferecia o direito de navegação em troca do tratado de limites, e o governo e a opinião pública dos Estados Unidos, com o fim de desmoralizar a campanha de Maury. Os sucessos da política de segurança ao Sul e ao Norte e a inexistência de efetivas ameaças por parte da sociedade internacional européia fortaleceram, ao longo do século XIX, o sentimento de nação satisfeita e até mesmo invulnerável. Esse sentimento, todavia, foi estremecido pelo advento do capitalismoimperialismo do fim do século. Aliás, as relações com a Argentina, desde a recomposição da Tríplice Aliança e a desocupação do Paraguai pelas tropas
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brasileiras, em 1876, enveredaram por um ciclo de alternâncias de tensão e distensão. Esse ambiente externo, ao lado de interesses comerciais de primeira grandeza, empurrou a República para os braços dos Estados Unidos, em termos de concepções de segurança. Durante sua gestão (1902-1912), o barão do Rio Branco deu continuidade à subordinação da segurança nacional à hegemonia dos Estados Unidos, aceita como se fizesse parte da ordem natural das coisas. Mais do que os estadistas que fundaram a República, Rio Branco alçou as preocupações com a segurança ao nível mais elevado de sua atuação diplomática. Em seu horizonte descortinavam-se os conflitos da nova partilha colonial, da ascensão de novas potências como Estados Unidos, Rússia e Japão, da luta entre grandes potências por hegemonia e da acentuada rivalidade econômica. Diante desse cenário sombrio, sua reação foi conservadora. Aliás, de um ponto de vista político, o patrono da diplomacia brasileira pautouse por evidente conformismo. Não percebeu o papel da diplomacia como alavanca do desenvolvimento nacional e conformou-se diante do domínio das oligarquias sobre o Estado. Angustiado com a perspectiva de conflito generalizado que as disputas interimperialistas delineavam, não pensou em construir potência estratégica nacional, porque, enfim, fascinado com a ascensão dos Estados Unidos ao nível de maior potência hegemônica mundial do futuro, pensou em subordinar a segurança nacional ao país do Norte. Aprofundar essa linha de análise do conformismo de Rio Branco pode levar à hipótese de que o barão carecia de criatividade política. Contudo, há evidências de que se verifica esse conformismo na substância de sua política exterior, não na forma. E mesmo na substância, observa-se que essa característica não se aplica à visão e às iniciativas regionais. A aliança com os Estados Unidos, por exemplo, foi erguida com finalidades práticas. Era pragmática e voltada à solução de problemas concretos de segurança na esfera regional. Porque sabia que contava com apoio político e diplomático norte-americano, Rio Branco foi audacioso na eliminação de um câncer imperialista no coração da América do Sul, mediante a anexação do Acre, e utilizou o mesmo apoio para solução de pendências lindeiras ainda existentes. A confiança na aliança não escrita que engendrou com o governo dos Estados Unidos permitiu-lhe conduzir com alto perfil suas relações regionais, particularmente com a Argentina, ao ponto de forjar o conceito de América do Sul como unidade estratégica a preservar das ameaças e
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iniciativas imperialistas, mesmo norte-americanas. A América do Sul, para Rio Branco, deveria ficar fora da ingerência das grandes potências quanto ao controle da segurança, que sobre ela exerceria uma liderança brasileira com assentimento tácito dos Estados Unidos. Uma mescla, portanto, de autonomia e subordinação. A participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial decorreu em grande medida da subordinação da segurança nacional aos interesses da segurança norte-americana. Embora o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães tenha induzido a pressão da opinião sobre o governo, era clara a disposição dos sucessores de Rio Branco de “marchar ao compasso da diplomacia norte-americana”, segundo Clodoaldo Bueno. Ao término da guerra, além de obter os louros da vitória, o Brasil foi premiado por sua boa conduta, sendo suas representações elevadas ao nível de embaixada pelos governos de Inglaterra, Itália e França. A sedução do prestígio contaminou então o horizonte diplomático. Ao tomar parte nas conferências de paz com importante legação chefiada por Epitácio Pessoa, o governo brasileiro, titular de nação satisfeita e sem problemas de segurança, concebeu um papel internacional bem acima de seus meios. Foi para tanto estimulado pela recusa dos Estados Unidos em aderir à Liga das Nações, que, então, se instalava em Genebra. O Brasil procurou preencher o vazio deixado pela ausência norte-americana, sem para tanto dispor de qualquer mandado, e, não o conseguindo, aventurou-se como líder da América Latina, missão que os vizinhos também fizeram saber que não lhe haviam confiado em Genebra. Durante o entreguerras, portanto, a segurança nacional enveredou pelo caminho do divertimento político e resultou, como era de se esperar face ao realismo dos fatos, no fiasco de 1926, quando o Brasil julgou por bem haver chegado o momento de se retirar da Liga, que lhe negara o assento de membro permanente no Conselho. No contexto da Segunda Guerra Mundial, a segurança nacional foi vista de forma distinta pelo governo de Getúlio Vargas. Os riscos de envolvimento brasileiro na conflagração eram muito mais concretos e seus efeitos presumivelmente mais graves do que aqueles da Primeira. Não se forjou, entretanto, na época, um plano estratégico, como ocorreu nos meados do século XIX para conjurar os perigos do Sul e garantir as posses territoriais. A menos que se considere a segurança como variável dependente do desenvolvimento uma doutrina nacional.
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Nessa época, com efeito, a segurança foi concebida como variável dependente dos superiores objetivos do desenvolvimento, concebido, então, como expansão industrial. Tudo indicava que ela acabaria por repousar sobre a aliança com os Estados Unidos, porém, essa decisão foi protelada ao momento mais longínquo possível, tendo em vista auferir benefícios concretos de desenvolvimento da diplomacia pendular entre as democracias e os regimes totalitários. Depois de feita a opção pelos aliados contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), em janeiro de 1942, ainda assim, o esforço de guerra, ao lado dos Estados Unidos, destinar-se-ia a preencher requisitos de desenvolvimento, como a obtenção de créditos e de mercados para promover as exportações, a ampliação do parque industrial e a realização, em especial, do grandioso projeto siderúrgico. De acordo com o pensamento de Vargas e dos militares que o assessoravam, a segurança passava pela industrialização e esta pela implantação da grande siderurgia. O provimento de armas, o treinamento e os ganhos políticos que o envolvimento na guerra dos outros viria propiciar eram tomados como elementos acessórios da segurança nacional, cuja construção estava posta a cargo do desenvolvimento. Somente ele poderia provê-la de meios, como armas e munições, uma força aérea e uma moderna marinha de guerra.
5.4 Segurança coletiva sob hegemonia norte-americana, 1945-67 O dilema que a segurança formulou à política exterior durante a segunda metade do século XX foi o de construir ou não meios de potência, ou seja, de defesa e dissuasão. A condição de País satisfeito consigo mesmo, e conseqüentemente pacifista, não foi sacrificada à busca de prestígio durante o entreguerras e ao envolvimento nas duas conflagrações mundiais, a guerra dos outros. Construir ou não meios de potência constituíam alternativas de difícil cálculo político que o processo decisório haveria de contemplar, mais cedo ou mais tarde, sobretudo quando o País acelerava seu desenvolvimento industrial. Os constrangimentos da segurança coletiva no contexto da Guerra Fria, a percepção do congelamento nocivo do poder mundial em mãos de poucas potências e a miragem de uma ordem internacional norteada pela utopia kantiana farão a diplomacia brasileira oscilar entre aquelas alternativas durante a segunda metade do século XX. A ordem que regeria as relações internacionais em substituição ao sistema de hegemonia coletiva dos europeus que vinha do século XIX estava em
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gestação na inteligência política americana durante a Segunda Guerra Mundial. Foi implantada entre 1945 e 1949, caracterizando-se pelos seguintes parâmetros: a) fronteiras ideológicas e zonas de influência; b) liberalismo ilimitado na zona de influência americana; c) envolvimento dos países nos sistemas regionais de aliança das duas superpotências. Essa ordem rígida e simples que esterilizou o pensamento político não deixava opções às potências médias e pequenas. Durante décadas, o mundo terá que se adaptar a suas vertentes ou ensaiar alguma autonomia, propondo o terceiro bloco. A Argentina de Juan Domingo Perón foi pioneira nessa tentativa, ao formular a doutrina da Terceira Posição. Os países do Terceiro Mundo deram o primeiro grito de independência diante da divisão bipolar durante a Conferência de Bandung, em 1955, que deu origem ao grupo de países integrados no Movimento dos Não Alinhados. Mais tarde, o Grupo dos 77 tomaria a frente dos povos atrasados para dialogar com o Norte desenvolvido. Deng Xiao Ping propunha nos anos 1970 a teoria dos três mundos e a união das potências médias e pequenas contra as superpotências. Essas tentativas de agrupamento minaram por certo a consistência da ordem bipolar, mas não afetaram seus parâmetros, os quais, aliás, revitalizaram-se durante a Segunda Guerra Fria nos anos 1980. A América Latina, particularmente o Brasil, estava sob avassaladora presença norte-americana no imediato pós-guerra, tanto do ponto de vista político quanto econômico e cultural. Cedeu a construção do sistema interamericano, composto pela organização política regional, a OEA, e pela aliança militar, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). Os Estados Unidos forjaram, desse modo, a base do poder que logo estenderiam à Europa, Oriente Próximo e Ásia, consagrando sua hegemonia sobre o chamado mundo livre. Durante a Guerra Fria, a pax americana impôs de forma radical seus dois comandos sobre a América Latina: o livre fluxo dos capitais norte-americanos sobre o qual ela se assentaria e o combate ao comunismo. A segurança adquiriu a forma coletiva ao conjugar, por meio das organizações regionais, essas duas opções, uma econômica e outra militar, a dupla face dos interesses veiculados pela política exterior norte-americana. As interpretações da historiografia convergem, contudo, sobre a hipótese de haver a América Latina cedido aos interesses norte-americanos sem barganhar. Tanto é que os recursos que esperava dessa subserviência para promover seu desenvolvimento fo-
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ram canalizados para regiões onde a pax americana corria maior risco, como a Europa Ocidental, o Oriente Próximo e o Extremo Oriente. A política exterior do Brasil, entre 1945 e 1967, incorporou os parâmetros da segurança coletiva. Durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, alimentou ilusões infundadas, como a do capital político — o Brasil receberia tratamento privilegiado em razão da cooperação de guerra com os Estados Unidos — e da ilusão de divisas — o liberalismo econômico atrairia investimentos. Durante seu segundo governo, Vargas acariciou a aliança norte-americana na expectativa de provocar investimentos como fizera com pleno êxito durante a guerra. Juscelino Kubitschek implementou sua política exterior com elevada carga ideológica, o chamado ocidentalismo, também em busca da cooperação norte-americana, que esperava alcançar de forma coletiva com a Operação Pan-Americana. Jânio Quadros e João Goulart, cansados de esperar, avançaram uma proposta de autonomia face aos blocos, a Política Externa Independente. Pela primeira vez, desde o início da Guerra Fria, um novo conceito impregnou o processo de formulação da política exterior. A Política Externa Independente tirava raízes do nacionalismo de Vargas e do desenvolvimentismo de Kubitschek, porém comportava um elemento conceitual novo, a autonomia decisória face à divisão bipolar. Em outros termos, a política exterior haveria de ouvir em primeiro lugar os interesses nacionais do desenvolvimento e da segurança. Essa diretriz não implicava confronto direto com a ordem bipolar, apenas sua redução a segundo plano nas considerações estratégicas. A correção de rumos imposta à diplomacia brasileira por Castelo Branco, em 1964, reverteu o processo de autonomia assim concebido. De forma anacrônica e obsoleta, revitalizou os parâmetros da dependência econômica e do combate ao comunismo que haviam balizado a ordem internacional concebida para realizar interesses norte-americanos pelo mundo. Castelo Branco pretendeu até mesmo reformar a OEA com o fim de canalizar a ação norteamericana e lhe dar maior eficiência no combate ao comunismo. Assessorado pelo grupo de “americanistas” (Vasco Leitão da Cunha e depois Juracy Magalhães, na chancelaria, Roberto Campos e Otávio Gouvea de Bulhões, nos ministérios econômicos), atribuiu ao setor externo duas funções: repor as relações com os Estados Unidos de modo a viabilizar a associação dos capitais, mercados e tecnologias e alinhar a política de segurança à estratégia da
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segurança coletiva no contexto da Guerra Fria. Rompeu com Cuba, promoveu as sanções da OEA contra o regime de Fidel Castro e chamou o comando da intervenção militar coletiva na República Dominicana em 1965. Os anos 1960 deram lugar, portanto, à emergência de duas propostas de política exterior de elevada consistência ideológica: a que zelava pela autonomia dos interesses nacionais e a que os alinhava aos interesses da hegemonia norte-americana. O hiato Castelo Branco não passou, contudo, de um momento efêmero da política exterior. Seu sucessor, Artur da Costa e Silva, recuperaria em 1967 as tendências inerentes à Política Externa Independente. Essa nova inflexão consolidou o desenvolvimentismo como paradigma de política exterior, uma orientação a prevalecer até 1989, e repôs a segurança como variável dependente, não mais da cobertura norte-americana, mas da base econômica, suficientemente robusta para prover-lhe os meios.
5.5 o conceito de poder e a nacionalização da segurança, 1967-89 Assim como a correção de rumos de Castelo Branco compreendia uma catarse de princípios inerentes à Política Externa Independente e uma proposta positiva, a nova correção de rumos impressa à política exterior por Costa e Silva, em 1967, condenou as diretrizes de seu predecessor e avançou nova proposta positiva. No que diz respeito à política de segurança, foi rechaçado explicitamente o conceito de segurança coletiva, porque não servia como instrumento de superação das desigualdades entre as nações. A bipolaridade também recebia críticas como parâmetro obsoleto de política exterior, ao tempo em que a divisão Norte-Sul sugeria outro ordenamento global. A própria interdependência econômica, militar e política era vista como antiquada em um mundo no qual as políticas exteriores se voltavam para realização de interesses nacionais. Há contradições no modo de associar a política exterior à questão da segurança durante essa fase do regime militar. Respirando o ambiente da Guerra Fria, a doutrina da segurança nacional concebida por geopolíticos vinculados à Escola Superior de Guerra introduziu a noção de inimigo interno, identificado com o subversivo, e sobre ele despejou o equipamento da ditadura. Ademais, os militares desenvolveram uma diplomacia paralela na América do Sul, associando-se a elites orgânicas de direita e à ação de órgãos norte-americanos que fomentavam golpes de Estado, quando os governos representativos não conseguiam combater os movimentos sociais de esquer-
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da. Essas contradições entre o Itamaraty e as Forças Armadas assemelham-se àquelas que se verificavam entre a conduta do Departamento de Estado, de um lado, da CIA e do Pentágono, de outro, durante a Guerra Fria. Ao ensaiar um curso autônomo, pela primeira vez na história, os dirigentes brasileiros hesitaram diante de escolhas conceituais e de táticas operacionais na passagem da década de 1960 para 1970. Como e por que desvincular-se da dependência econômica e militar norte-americana? Como desideologizar a política exterior e por que depreciar o ocidentalismo? Sobretudo, como criar um núcleo de poder nacional? Aliás, qual o conceito e qual a política de poder a ser implementada? O pressuposto da política de segurança, entre 1967 e 1989, consistia em reconhecer a necessidade de poder para alcançar resultados de política exterior. Mais uma vez, vinha à tona a vocação nacional de desempenhar um papel relevante sobre o cenário internacional. Mas o modo como robustecer o poder nacional deu lugar a estratégias políticas distintas. Três fases sucederam-se, as quais, embora comportassem iniciativas permeáveis, permitem identificar o traço próprio de cada uma. Costa e Silva, ao desvincular o poder nacional da dependência norte-americana, não lhe conferiu autonomia, porquanto vinculou seu reforço à aliança com a frente dos povos atrasados. Emílio Médici apostou em uma noção prospectiva de poder, que resultaria do acelerado ritmo de crescimento econômico. Com seu senso realista, Ernesto Geisel dimensionou o poder ao estoque disponível de meios psicológicos e materiais da nação. Nessa engenharia política brasileira em torno do conceito de poder, as considerações em jogo manipulavam duas variáveis práticas, uma externa e outra interna. Do lado de fora, a percepção segundo a qual a distribuição do poder mundial estava congelada para manter a distribuição desigual da segurança e da riqueza, sendo, portanto, uma distribuição claramente nociva aos fins do desenvolvimento. Do lado de dentro, a percepção segundo a qual um país em desenvolvimento como o Brasil necessitaria de parcela maior do poder mundial para atender às necessidades do crescimento econômico, já que sua entrada em cena afetaria os interesses das potências avançadas. É curioso observar como essas percepções se mantêm apesar da mudança do regime político e da sucessão dos governos, desde os anos 1970 até nossos dias, sem, contudo, induzir idênticas decisões na área da segurança. A busca de poder pelo governo brasileiro enveredou historicamente pela estratégia da associação. Desde Rio Branco, mas, sobretudo, com Vargas e
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Kubitschek, a aproximação aos Estados Unidos foi eleita como opção quase exclusiva de constituição de um poder nacional, porém associado. A conjuntura de crise dessa tendência, aquela que cria o vazio político e precede a nova fase, verificou-se durante o governo de Médici, mas foi Geisel que inovou, firmando o novo conceito de poder e a nova política de segurança. Percebe-se que o centro de poder navega sem compromisso com alguns parâmetros da escola geopolítica brasileira. O raciocínio era simples: as potências avançadas zelavam pelo congelamento do poder (cujo símbolo era o Tratado de Não Proliferação Nuclear, proposto aos outros em 1968), porque isso comportava uma espécie de reserva sobre as tecnologias sensíveis, cuja apropriação foi estabelecida pelos dirigentes brasileiros como o último estágio do desenvolvimento econômico a ser alcançado. Ao submeter-se, o Brasil teria seu processo de desenvolvimento bloqueado em um padrão intermediário. A nacionalização da segurança proveria o desenvolvimento de meios de superação da dependência estrutural, ao agregar-lhe o domínio de tecnologias de ponta que o sistema internacional sonegava em nome da segurança. Percebe-se, pois, que as motivações que se localizam na origem dessa nova fase da política brasileira de segurança foram, ao mesmo tempo, psicológicas e econômicas. O poder não era o fim, mas um meio para se atingir as metas do desenvolvimento. A transição do paradigma da segurança coletiva para a nacional não obedeceu a razões de equilíbrio de poder, nem global nem regional. Em outros termos, a geopolítica da escola não determinava a política de segurança, como muitas vezes se afirmou acerca do regime militar como um todo. A diplomacia se impunha à caserna. O pensamento precursor da Escola Superior de Guerra, vinculado à segurança coletiva e à geopolítica regional, não prevalecia sobre o processo decisório em política exterior. Tanto é que os meios para robustecer o poder nacional, na fase de transição da segurança coletiva para a nacional, eram dispersos e respondiam a uma base doutrinal distinta. O poder haveria de assentar-se sobre a legitimidade da política exterior desenvolvimentista, a legitimidade do acumulado histórico que determinava seus padrões de conduta, o apoio ao diálogo Norte-Sul, forte presença nos órgãos multilaterais e, sobretudo, a busca de apoio, senão mesmo do consenso, dos segmentos esclarecidos da opinião interna. A nacionalização da segurança não rompeu, portanto, com o acumulado histórico da diplomacia brasileira: pacifista, não confrontacionista, coopera-
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tiva, zelosa pelos princípios de autodeterminação e não-intervenção, de respeito aos tratados e de regulamentação multilateral global do ordenamento financeiro, comercial e estratégico, de tal sorte a atender aos interesses dos povos emergentes. Enquanto esse ordenamento não vinha, pensava-se entre 1967 e 1989, por que não operar por meio das regras do jogo? Na prática, supunha-se então, a nacionalização da segurança viria suprir a política exterior de poder, como condição, e de certos meios vitais de desenvolvimento que em vão fora incumbida de prover, como resultado. A esfera regional, à qual as análises atribuem de ordinário grande importância na gênese das políticas de segurança do País, não foi determinante, em nosso entender. O que dissemos anteriormente sobrepõe-se à força causal da esfera regional, especialmente o Cone Sul. É bem verdade que a conjuntura crítica nessa área pode ser verificada durante o exercício de Azeredo da Silveira na chancelaria, entre 1974 e 1979. Ele abandonou a cordialidade oficial e criou o vazio político no relacionamento com a Argentina, ao romper, nos últimos dias de seu mandato, as negociações acerca do aproveitamento dos rios. Contudo, esse modo de fazer diplomacia nada tinha de original ou específico. Era estratégico e global. A Argentina condicionava os grandes projetos brasileiros de produção de energia à consulta prévia. Um comportamento equivalente ao das grandes potências que sonegavam acesso à tecnologia. Para os estadistas brasileiros da época, o interesse nacional do desenvolvimento era absoluto e incondicional, nenhuma potência tinha o direito de cerceá-lo. Esse princípio norteou a negociação com a Argentina. A questão nuclear, que mais adiante se analisa, tampouco representou em nosso entender o nó górdio da nacionalização da segurança. Tinham consciência os dirigentes brasileiros do avanço maior da Argentina na pesquisa e procuraram alcançá-la. Quando a perspectiva de domínio completo do ciclo nuclear apresentou-se a ambos, nos anos 1970, os militares tomaram a dianteira do processo de aproximação e entendimento para evitar o desvio armamentista. Há indícios de que seu papel sobrepôs-se ao das chancelarias, ainda presas a rivalidades históricas de cunho geopolítico ou simplesmente político em suas visões acerca da segurança regional. Dispondo dessa base de observação, podemos avançar em nosso argumento com o objetivo de explicar o que entendemos por nacionalização da segurança.
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No seio do processo decisório em política exterior, nacionalizar a segurança significava atenuar a vulnerabilidade e a dependência externas. O ritmo das decisões que induziram o novo paradigma foi lento e gradual. O impulso inicial veio da percepção brasileira acerca da perversidade política que o Tratado de Não Proliferação Nuclear escondia: impedir o acesso dos países emergentes à tecnologia nuclear, considerada indispensável ao desenvolvimento em razão de suas aplicações pacíficas. Por isso, o governo Costa e Silva, ainda em 1967, deixou claro que a segurança coletiva anexa à ordem bipolar que as superpotências desejavam cristalizar não mais serviria de referência para a política exterior do Brasil. Seu governo não compareceu naquele ano a uma reunião da OEA convocada pela Venezuela para discutir segurança coletiva. A diplomacia brasileira estabeleceu condições para adesão ao Tratado, definiu uma política nuclear e outra de desarmamento que perduraram até os anos 1990. O conceito de segurança foi acoplado ao de desenvolvimento como variável dependente, não como veleidade do regime militar, mas como reflexo dos interesses nacionais. Tanto assim que se negociava o Tratado do México, em 1968, com o objetivo de proscrever as armas nucleares na América Latina. Esse impulso inicial obedecia à densa formulação doutrinal e denotava a prevalência do pensamento diplomático sobre o geopolítico nas opções estratégicas. Desde 1971, a doutrina da segurança coletiva vinculada às fronteiras ideológicas cedeu à da segurança econômica coletiva no discurso e na ação das legações brasileiras, que contavam entre as mais expressivas do mundo, perante os órgãos multilaterais de negociação. A segurança econômica coletiva inspirava o diálogo Norte-Sul e a luta pelo estabelecimento da Nova Ordem Econômica Internacional. A gestão de Azeredo da Silveira, entre 1974 e 1979, foi marcada pela confiança inicial. Tanto é que propôs na ONU, em 1975 — e reiterou algumas vezes sua proposta na própria instituição e em outros órgãos de negociação multilateral — o Acordo Geral, ou Acordão, um tratado global Norte-Sul. Como não se deu ouvidos ao pensamento brasileiro, este reflui para a descrença na possibilidade de mudança da ordem pela via da negociação multilateral. Foi precisamente o malogro dos esforços da diplomacia brasileira nessa frente de batalha que determinou novos passos no caminho da nacionalização da segurança, agora na frente de ação interna. A esse respeito, escrevemos em nosso livro História da Política Exterior do Brasil:
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Quatro momentos foram decisivos para a nacionalização definitiva da segurança: a) definição de uma política de exportação de material bélico (Geisel, 1974), porque o mercado externo tornaria viável a produção em escala de armas portáteis, munição, aviões, tanques e carros de combate, com o que se pretendia eliminar a dependência e ampliar a segurança; b) o Acordo Nuclear firmado com a República Federal da Alemanha, aos 27 de junho de 1975, porque permitia transferência e absorção progressiva da tecnologia nuclear; c) a denúncia, em 1977, do Acordo Militar com os Estados Unidos (1952) e dos demais acordos a ele vinculados, porque marcava o fim de uma aliança que vinha da Segunda Guerra Mundial e liberava o armamento brasileiro de uma dependência obsoleta e prejudicial ao desenvolvimento tecnológico; d) desenvolvimento de um programa nuclear paralelo, conjugando, a partir de 1979, projetos integrados de pesquisa, implementados pelo Exército, Marinha e Aeronáutica. A nacionalização da segurança, vinculada às metas do II Plano Nacional de Desenvolvimento, além de tornar o País quase auto-suficiente no provimento de meios de dissuasão e defesa, contribuiu para apropriação de tecnologias avançadas nas áreas nuclear, aeronáutica, eletrônica e industrial. Estava mais para a economia política do que para a geopolítica. Assim como Robert Gilpin afirmou que a pax americana era indissociável dos investimentos norteamericanos no mundo, podemos dizer que a nacionalização da segurança no Brasil era indissociável de seu projeto de desenvolvimento. Ao transmitir o poder a seu sucessor, a 15 de março de 1979, Geisel concluiu: “Somos hoje uma nação que se projeta mais e mais no cenário mundial, amadurecida e responsável, gozando de sólida credibilidade internacional e dia a dia menos vulnerável a pressões quaisquer que venham do exterior”.
5.6 a Zona de Paz na américa do Sul, a segurança multilateralizada e a relevância global do Brasil A década de 1980, quando ocorreu a transição do regime militar para o civil, coincidiu com mudanças pouco relevantes para a política de segurança, entretanto preparou uma nova fase cuja clareza tornou-se perceptível na era de Fernando Henrique Cardoso, mais adiante. Naquela década, as diretrizes de nacionalização foram mantidas e proveram resultados de desenvolvimento e de atenuação da vulnerabilidade externa conforme o previsto. A mensuração de tais resultados certamente evidencia limites impostos pela crise da dí-
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vida externa e pela desaceleração do crescimento econômico. Por outro lado, o Acordo Tripartite, de 1979, entre Brasil, Argentina e Paraguai, pondo fim ao contencioso sobre o aproveitamento dos rios da Bacia do Prata, e o Acordo de Cooperação Nuclear, do ano seguinte, entre os dois primeiros, pondo termo à corrida armamentista, criaram novo ambiente em que a questão da segurança será apreciada no contexto regional. O colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria em 1989-90 correspondem ao terceiro elemento, o de dimensão global, na origem de novo conceito brasileiro de segurança. Em suma, a política brasileira de segurança sofre três impulsos nos anos 1980 — interno, regional e global — que lhe imprimem outra direção. Nossa análise da simbiose entre política exterior e segurança identifica quatro variáveis intervenientes como componentes da política brasileira de segurança de 1990 a nossos dias. Elas prosseguem evidenciando o papel do pensamento diplomático sobre o geopolítico na gênese de estratégias de ação: a) o peso da integração regional e o projeto de uma Zona de Paz no Cone Sul, extensiva à América do Sul, como mecanismo de exclusão da área da ação e da pressão das grandes potências por segurança global; b) a diplomacia de ilusão kantiana posta em marcha pela chancelaria na esfera da segurança global; c) abandono e recuperação da herança conceitual dos anos 1970; d) abandono e recuperação da ambição global por meio da reforma da ONU e do assento permanente em seu Conselho de Segurança.
5.6.1 uma Zona de Paz para a américa do Sul O delineamento da Zona de Paz regional contou com o protagonismo brasileiro nos anos 1980, argentino nos 1990 e novamente brasileiro no início do século XXI. Ergueu-se tal plano de segurança regional sobre os escombros da Guerra das Malvinas. Com efeito, a inoperância do Tiar como mecanismo de solução regional de conflitos e a humilhação da derrota argentina levaram a diplomacia brasileira a duas iniciativas: pleitear a Secretaria Geral da OEA, posto no qual colocou, em 1984, o embaixador Baena Soares, e apresentar à ONU a proposta de criação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, aprovada em 1986. Assim foram contaminados os dois organismos multilaterais com a filosofia do projeto brasileiro de uma zona de paz. O espaço de controle regional da segurança não se configuraria, contudo, sem que a confiança e a colaboração entre Brasil e Argentina fossem estabelecidas como padrão permanente de relacionamento bilateral. Sobretudo, porque os dois
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países alcançaram nos meados da década o domínio completo da tecnologia nuclear, pondo-se sobre a mesa a decisão de fabricar ou não a bomba. As relações históricas entre Brasil e Argentina, no que diz respeito às visões acerca da segurança regional, assentavam sobre a tolerância brasileira diante do soberbo discurso portenho, na suposição de que alardeava intenções sem respaldo material. Ademais, depois que o Paraguai diluiu-se como trunfo estratégico brasileiro, o Chile o substituiu. Não era necessário preocupar-se com a Argentina, talvez apenas obstruir seus projetos e interesses regionais, como fizeram os chanceleres conservadores brasileiros entre 1945 e 1955, João Neves da Fontoura, Raul Fernandes e Vicente Rao. As relações especiais com os Estados Unidos, parceiro estratégico do Brasil, também explicam essa autoconfiança. O pensamento geopolítico, lá e aqui, alimentava essa visão conflitiva pelo domínio do espaço, que se derramava, por vezes, sobre as condutas diplomáticas. A pesquisa nuclear, porém, tornou esse esquema histórico obsoleto. A Argentina foi pioneira na América Latina em matéria de pesquisa nuclear. O impulso veio dos decretos de Perón de junho de 1950, que criaram a Comissão Nacional de Energia Atômica e a Junta de Investigações Científicas das Forças Armadas. A primeira destinava-se a promover a pesquisa e suas aplicações econômicas, a segunda a acompanhar possíveis impactos sobre a segurança. Embora a Universidade de São Paulo já se ocupasse com a pesquisa, o impulso brasileiro adveio nos anos 1950 em reação às iniciativas argentinas. Vários laboratórios foram criados, com apoio do novo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico, atual CNPq. Os militares argentinos deram prioridade a seu projeto nuclear e mantiveram o avanço sobre o conhecimento que se desenvolvia no Brasil. Em ambos os países, a pesquisa nuclear desdobrou-se, nos anos 1970, em duas esferas, uma civil e outra militar. A Argentina tentava conduzir seu projeto de modo autônomo, ao passo que o Brasil buscou a cooperação da Alemanha, por meio de acordo firmado em 1975, mesmo porque lhe convinha recuperar o atraso. Os dois países dispunham de boas jazidas de urânio natural, projetaram a construção de usinas nucleares para produção de energia elétrica (seis, a Argentina, e oito, o Brasil), ambos deram alguns passos nessa via e viram seu projeto civil redundar em fiasco operacional. Festejaram, enfim, o êxito de seu projeto militar: a Argentina alcançou o domínio tecnológico em 1983, o Brasil em 1985, numa demonstração de eficiente desempenho com que se dotaram de capacitação para ter a bomba e para a construção do submarino nuclear.
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Se o sucesso nuclear deu-se na área militar, a lógica sugere que as preocupações de segurança estavam por trás, mais do que a funcionalidade desenvolvimentista. As políticas de segurança parecem confirmar tal hipótese. Com efeito, percebe-se desde os anos 1970, nas casernas, o dilema crucial: agregar a tecnologia nuclear à defesa e à dissuasão ou afastá-la por entendimento bilateral. Os generais argentinos, ao que tudo indica no momento, tomaram a iniciativa de procurar seus colegas de farda do outro lado com o objetivo de afastar a corrida nuclear das políticas de segurança. Papel de destaque tiveram, nesse sentido, na década de 1970, o general argentino Juan Guglialmelli e, nos anos 1980, os generais liberais argentinos. O general presidente brasileiro João Figueiredo (1979-85) correspondeu. As primeiras medidas de confiança foram acertadas. As medidas de confiança mútua na área nuclear converteram-se na mais importante variável da segurança regional nos anos 1980. O ambiente foi criado pelo Acordo Tripartite Itaipu-Corpus, de 1979, que tolheu à corrida nuclear o caráter de ameaça e abriu os programas à avaliação de potencial. O passo inicial adviria logo depois, a 17 de maio de 1980, quando se firmou o Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento e Aplicação dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear. Se os governos militares andaram à frente das chancelarias, ainda imbuídas de rivalidades históricas, foram as chancelarias dos regimes civis, desde meados da década de 1980, que os substituíram. Com a redemocratização, os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney deram operacionalidade ao propósito de retirar a tecnologia nuclear da corrida armamentista e agregá-la ao processo de integração. Em fins de 1985, criou-se um grupo de trabalho conjunto presidido pelos dois chanceleres com a finalidade de engendrar a cooperação nuclear para fins pacíficos. Esse mecanismo será responsável por uma série de medidas nos anos seguintes, em virtude dos protocolos de 1986, que o reforçavam no bojo do Programa de Integração e Cooperação Econômica. O deslocamento da grande negociação da esfera militar para a civil, ao ensejo da redemocratização, talvez não tenha sido uma opção adequada do ponto de vista político. Os militares haviam iniciado os entendimentos e sua retirada do comando da negociação resultou em tímidos efeitos durante a segunda metade dos anos 1980, apesar do Tratado de Integração Brasil-Argentina, de 1988. A segunda administração civil de ambos os países acelerou a colaboração nuclear desde 1990, no embalo do processo de integração que criou o
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Mercosul pelo Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991. Em 1990, delineou-se o sistema de fiscalização mútua por meio do Sistema Comum de Contabilidade e Controle. Em 1991, firmou-se o Acordo para Uso Exclusivamente Pacífico da Energia Nuclear e criou-se a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares. Por um lado, previam-se a liberdade de pesquisa e os benefícios das aplicações econômicas, por outro, um regime de salvaguardas e a entrada em vigor do Tratado de Tlatelolco que determina a proscrição das armas nucleares na América Latina. Desse modo, os entendimentos entre Brasil e Argentina, ao termo de uma década de negociação, derramavam-se sobre a América Latina e sobre as agências mundiais. As salvaguardas foram consagradas pelo chamado Acordo Quadripartite, entre Brasil, Argentina, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares e a Agência Internacional de Energia Atômica. Instituiu-se um sistema único e original de salvaguardas sem similar entre outros países no mundo. Por outro lado, em 1994, o Tratado de Tlatelolco entrava em vigência, com adesão de países-chave da América Latina, entre os quais Brasil, Argentina, Chile e Cuba. As medidas de confiança mútua abriram, portanto, o caminho para a construção da Zona de Paz da América do Sul. Essa tendência da segurança regional recebeu surpreendente impulso de outra natureza durante o primeiro mandato de Carlos Saúl Menem (198994). O presidente argentino adotou a política de desmonte da segurança nacional, deprimindo enormemente o papel das Forças Armadas, tanto política quanto operacionalmente, ao reduzir seus efetivos e seu orçamento, ao desativar os grandes projetos estratégicos e ao transferir para a chancelaria a responsabilidade de zelar pela segurança. Desativou conflitos com vizinhos, como o Chile e a Inglaterra, e procurou influir sobre o Brasil, para que enveredasse sua política de segurança na direção de idêntico desmonte. Fernando Collor de Melo deixou-se seduzir pelo encanto da paz que parecia poder lançar raízes institucionalizadas no seio do processo de integração. Ante olhares desconfortáveis de generais brasileiros, jogou uma pá de cal dentro do poço que se havia cavado na serra do Cachimbo para o primeiro teste nuclear. A nacionalização da segurança, consoante o pensamento político dos anos 1970, cedeu. A indústria bélica entrou em crise e os grandes projetos estratégicos também, embora sem a política radical de desativação que lhes sugeria Menem.
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O presidente Fernando Henrique Cardoso, que dominou o cenário brasileiro na década de 1990, não afinou seu pensamento com o de Menem em termos de segurança, a não ser quanto ao princípio, a construção da Zona de Paz na América do Sul. Ademais, durante a segunda metade da década de 1990, a política de segurança faria ressurgir divergências conceituais. Enquanto Menem concebia o projeto comum como estratégia de deslocamento da segurança sub-regional para responsabilidade da potência hegemônica, os Estados Unidos, Cardoso o concebia em termos contrários: de exclusão da ingerência norte-americana nas soluções de segurança requeridas regionalmente. Enquanto Menem buscou canalizar a influência e o poder norte-americanos sobre a área, em vã e fútil pretensão de substituir o Brasil nesse papel histórico, Cardoso concebia a segurança diluída em seu conceito de América do Sul, uma unidade política, econômica e estratégica em condições de controle do próprio destino. Essas divergências pesavam sobre a configuração da segurança e o perfil da Zona de Paz da América do Sul. Diante da América do Sul, a diplomacia brasileira agiu em duas frentes: na área do Cone Sul, pela construção de medidas de confiança com a Argentina, na expectativa de alicerçar sobre o Mercosul uma projeção ampliada à América do Sul em condições de contrabalançar a hegemonia norte-americana; na área da América do Sul, onde se apresenta com credibilidade de país pacífico e pacificador. Por isso não aceitou a adesão da Argentina à Otan, nem a criação de instituições hemisféricas de segurança, muito menos o confinamento das Forças Armadas no combate ao narcotráfico, como sugeriu o governo dos Estados Unidos em 1995.
5.6.2 a segurança multilateralizada Entre 1948 e 2001, o Brasil participou de 27 missões de paz da ONU, militares ou civis. Quando assumiu pela sétima vez o assento não permanente no Conselho de Segurança, em 1993, havia participado recentemente de sete missões de paz. Durante a Assembléia Geral do ano seguinte lançou a candidatura ao posto permanente. A participação em missões de paz prosseguiria, elevando-se a apreciação perante o Conselho, que o incumbiu, em 2004, do comando da força no Haiti. Aceitou esse mandato com a ambição de ascender ao posto permanente no Conselho e reforçou sua campanha com os cinco membros permanentes e no seio de coalizões e consensos que sua diplomacia articulava, especialmente o G4 (Alemanha, Japão, Índia e
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Brasil), voltado à discussão da reforma da ONU desde 2005, e sugerindo a presença desses quatro países em um Conselho de Segurança ampliado e representativo de governos e massas populacionais que ainda nada diziam sobre a segurança global. O objetivo de ocupar o posto permanente vinha acoplado ao de tornar a segurança da era da globalização uma responsabilidade coletiva, com regras similares às que as Conferências especializadas da ONU e outros órgãos de negociação estabeleciam nas esferas do meio ambiente, direitos humanos, comércio, finanças e desenvolvimento sustentável. Um conceito novo para a diplomacia brasileira, a segurança multilateralizada, acabou se impondo durante a era Cardoso. Em 1995, temporariamente abriu-se mão da candidatura ao posto permanente em favor da reforma do Conselho, que lhe conferisse a legitimidade de representação ampliada para determinar os parâmetros e implementar a política de segurança global. Sem a ONU, as ações de força contra Estados ou governos, sob qualquer argumento que os Estados Unidos, junto com a Inglaterra ou mesmo a Otan, tomassem, não teriam legitimidade, na avaliação brasileira. O ordenamento da ONU proveria o mundo de segurança, afora isso deveriam ser mantidos os princípios de autodeterminação e não-intervenção. Até mesmo os novos conceitos, como dever de ingerência e boa vontade, invocados pelas grandes potências em iniciativas unilaterais de segurança, eram vistos pela diplomacia brasileira como roupagem nova de velhas táticas discriminatórias contra países fracos. A tese brasileira sobre a segurança global nos anos 1990 assenta sobre a visão kantiana da paz universal a brotar do controle democrático do Conselho de Segurança. Além de Cardoso, os chanceleres Celso Amorim, Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer desenvolveram esse argumento, segundo o qual o multilateral deve induzir o ordenamento mundial da segurança, mediante medidas de confiança de alcance universal. Esse mundo ideal dispensaria, ademais, o guarda-chuva regional dos Estados Unidos, também a aliança, aquela que viesse brotar da Zona de Paz da América do Sul, e a potência militar nacional, concebida pela inteligência brasileira dos anos 1970. A ilusão kantiana de segurança multilateralizada, distante do realismo político e do unilateralismo norte-americano, permeava a visão brasileira de segurança até o início do segundo mandato de Cardoso e provocou dois efeitos: a adesão do Brasil a todos os atos de desarmamento exigidos pelas grandes potências e o início do desmonte, ao estilo argentino, da segurança nacional. Rompeu-se,
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destarte, com a doutrina que fez da segurança variável dependente do desenvolvimento em voga desde a década de 1970 e criou-se o vazio político do lado nacional. Além das medidas de confiança mútua já referidas, que eram de desarmamento, tomadas no âmbito da cooperação nuclear com a Argentina, o governo brasileiro assinou, em 1993, a Convenção sobre Armas Químicas e a Convenção para a Proibição das Armas Biológicas. Em 1994, adotou as diretrizes do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, na expectativa de ser agraciado pelos países avançados com tecnologia para construção de veículos lançadores de satélites e do submarino com propulsão nuclear. No mesmo ano, aderiu ao Tratado de Tlatelolco, que proscreve armas nucleares na América Latina, na expectativa de poder influir sobre a Conferência de Desarmamento de Genebra e provocar o fim de todos os testes nucleares no mundo. O ponto de chegada dessa tendência adviria com a adesão ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 1998. Lampreia chamou a si a responsabilidade de produzir e veicular os argumentos que respaldavam a decisão do governo Cardoso. Reconheceu que, por razões políticas e tecnológicas, o Brasil se recusara a firmá-lo durante trinta anos. O Tratado impunha obrigações aos países não nucleares e cerceava seu desenvolvimento, enquanto deixava os nucleares em liberdade, essa era a tese tradicional, lembrada por Lampreia. Os argumentos em favor da mudança, ou seja, da adesão ao Tratado, invocados pelo chanceler, comportam, a olhos críticos, certos equívocos. A redemocratização do início dos anos 1990 e a nova relação com a Argentina aconselhavam a adesão, para alguns. Para outros, um país democrático não é necessariamente um país desnuclearizado e as medidas de confiança com a Argentina tinham desfecho lógico e suficiente na adesão ao Tratado de Tlatelolco. A mudança da ordem bipolar para multipolar provocou conseqüências sobre o regime de não proliferação, acrescentou o chanceler. A própria chancelaria descartou esse argumento em outros textos. Sem a adesão, o acesso do Brasil a tecnologias sensíveis seria obstruído, prosseguia. Nada comprova essa relação, mesmo porque a adesão não propiciou esse acesso e o Brasil tinha condições de desenvolver essas tecnologias em parceria com países de política exterior independente, como a China. A Constituição Brasileira, também invocada, não exigia a adesão, pois os novos regimes eram suficientes para assegurar a não proliferação no país.
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Em suma, “entender a mudança dos tempos”, alegação de Lampreia em defesa da adesão, cabia também no pensamento dos que a ela se opunham, alegando aquela subserviência erigida nos anos 1990 pela América Latina como base do paradigma de relações exteriores que chamamos de Estado normal. No mesmo ano de 1998, quando se consumou a adesão, Índia e Paquistão explodiram suas bombas, o que tolheu eventual prestígio conferido ao TNP sobre o cenário internacional pelo Brasil. Apesar de haver recolhido 185 adesões, o sucesso do TNP frustrou, ademais, as expectativas históricas da diplomacia brasileira, no entender de Celso Lafer, pelo fato de não haver afetado os arsenais das potências nuclearizadas e de não haver rendido dividendos para a paz, exigências sempre reiteradas pelo governo brasileiro nas negociações que se processavam no seio da Conferência do Desarmamento.
5.6.3 Volta ao realismo Ao que parece, três razões pesaram sobre a correção da ilusão kantiana da chancelaria em matéria de política de segurança, que havia orientado a política brasileira para o desmonte da segurança nacional e para a subserviência externa. Em primeiro lugar, visões não convergentes entre argentinos e brasileiros no tocante ao delineamento da Zona de Paz da América do Sul, em particular a respeito do papel da Otan e da representação no Conselho de Segurança da ONU. Em segundo lugar, as frustrações observadas na vigência do ordenamento multilateral para a segurança global, que ficaram óbvias nas diversas intervenções e guerras levadas a termo desde 1990 pelos Estados Unidos e seus aliados. Em terceiro lugar, indícios ou intenções de intervenção norteamericana para controlar a segurança da América do Sul, como no caso da Amazônia, da guerrilha colombiana, do combate ao narcotráfico, de conflitos de fronteira como aquele que eclodiu entre Equador e Peru, de criação de uma base militar no Paraguai. Diante dessas contingências, convinha repensar a questão da segurança, e não se frustrou o governo de Cardoso dessa responsabilidade. Transitou da utopia ao realismo, ao compensar a subserviência em aderir às exigências de manter o país desarmado com a recuperação de diretrizes históricas da política nacional de segurança. Como sempre, na política brasileira, as tendências, mesmo contraditórias, permanecem subjacentes, quando inovações ofuscam o legado histórico e
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suscitam desconfianças. Do curso profundo e silencioso, ressurge o novo. O Itamaraty dividiu-se, na década de 1990, diante do paradigma do Estado normal e de seus parâmetros de subserviência, destruição e regresso. Embaixadores experientes manifestaram seu ceticismo, igualmente, diante das inovações na área da segurança, uma atitude logicamente compreensível. Assim, entendem-se as palavras do chanceler Celso Amorim, ditas em 1993, diante da XLVIII Assembléia Geral da ONU, quando anunciou que o Brasil, ao assinar os instrumentos de renúncia às armas de destruição em massa, “não renuncia a seus direitos de manter, em harmonia com seus vizinhos e parceiros, uma adequada e legítima capacidade de defesa”. Desde o início dessa década, o Itamaraty chamou a si a responsabilidade de definir a política de segurança, subtraindo das Forças Armadas uma incumbência que haviam exercido no passado. Subordinou-a logo à sua estratégia de relações exteriores: de um país pacifista, cooperativo, particularmente com os vizinhos, e defensor de soluções multilaterais para todos os temas globais. Em especial, a política de segurança haveria de subordinar-se ao processo de integração regional, tanto como reforço indispensável a seu sucesso quanto ao robustecimento do poder requerido para agir no mundo da interdependência econômica global. Um dos dilemas enfrentados por essa modificação da política de segurança dizia respeito à autonomia decisória: aderir aos instrumentos internacionais mundiais de desarmamento significava deprimi-la, por isso, na esfera regional, convinha preservá-la. Ou seja, não sacrificá-la à construção da Zona de Paz na América do Sul, tampouco institucionalizá-la, mesmo que fosse no âmbito da OEA. Uma mescla de realismo e idealismo, pela qual o papel de liderança na América do Sul e de empurra dos Estados Unidos para fora da área entrava no cálculo de meios, fins e riscos. Como escreveu o embaixador Souto Maior, se os Estados Unidos auto-outorgaram-se um direito de ingerência que exerciam em defesa de seus interesses globais, mesmo alheios à segurança, “os riscos de tal ambigüidade para os países periféricos, entre os quais o Brasil, são evidentes”. Outros exemplos de autonomia nacional nos anos 1990, ou seja, de realismo político, influíam na reflexão dos dirigentes brasileiros: as explosões nucleares francesas, o projeto norte-americano de um escudo antimíssil, o projeto Theater Missile Defense do Japão, como também, depois do 11 de setembro de 2001, o modo como os Estados Unidos acoplaram a seus interesses a ação global de combate ao novo inimigo, o terrorismo.
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A evidência mais concreta da recuperação do realismo da política brasileira de segurança na era Cardoso foi o documento Política de Defesa Nacional, que seu governo levou a público em 1996. Esse passo equivalia a uma espécie de fusão da tendência kantiana do Itamaraty com a tendência realista dos militares. Não se trata de ver incoerências entre as visões de diplomatas e militares, porém a possibilidade de prevalecer uma sobre outra. Talvez nem isso tenha ocorrido, visto que a permeabilidade das influências fez do documento uma obra-prima de ambigüidade política. O documento estabelece uma política de defesa dissuasória, defensiva, descartando a guerra de conquista. Realça o papel da diplomacia para solução de conflitos, entretanto institui a capacidade militar suficiente para gerar efeitos dissuasórios. A segurança subordina-se às boas relações com os vizinhos e ao êxito material do processo de integração regional. Mas seus fins são o suporte que confere à soberania, à integridade territorial e à unidade, bem como ao patrimônio e aos interesses nacionais. Desvincula-se do conceito de poder elaborado à época do regime militar e vincula-se à sociedade. Erige a prevalência do civil, no entanto preserva a capacidade de dissuasão das Forças Armadas. O documento é vago como tudo foi em política exterior na era Cardoso e mais voltado para a organização da defesa do que para a conceituação da segurança. Não está clara nesse documento a conexão histórica que a diplomacia fez entre segurança e desenvolvimento, mas não está descartada. Ela é inerente ao objetivo de construir a Zona de Paz da América do Sul com a finalidade de criar condições propícias ao desenvolvimento regional. Como conseqüência do documento de 1996, Cardoso criou em 1998 o Ministério da Defesa, fundindo nele os três ministérios militares, então dissolvidos, e confiou-o a um civil. A colaboração entre militares, civis e diplomatas expressa a nova versão da política brasileira de segurança e a torna, ipso facto, mais complexa. A ação militar não se apresenta como ação paralela ou substitutiva da ação diplomática, mas não está clara a perspectiva de usar a força para realizar interesses da política externa, como se fazia nos meados do século XIX. De qualquer modo, o governo de Cardoso, após haver avançado nesse sentido, afastou a hipótese de desarmar a nação e desmontar seu sistema de segurança, como fez Menem na Argentina. Os grandes projetos estratégicos abandonados pelo país vizinho foram preservados na área espacial, aeronáutica e nuclear. A volta ao realismo se estende pelo século XXI. No que tange à geopolítica global, o conceito brasileiro de segurança multilateralizada difere da
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cooperativa, modelo proposto por teóricos norte-americanos que concebem um substituto à chamada segurança coletiva da época da Guerra Fria. A segurança cooperativa comporta variáveis que repugnam ao acervo político e cultural brasileiro, por se tratar de uma proposta avançada para legitimar os novos interesses dos Estados Unidos, como a guerra preventiva e a restrição ao armamento alheio, porém inclui outros elementos inerentes ao conceito de segurança multilateralizada, como as idéias de transparência, confiança mútua e decisão a cargo da ONU. Contudo, se utópica for a segurança multilateralizada de acepção brasileira, ambígua será a segurança cooperativa de acepção norte-americana, porque vinculada a políticas exteriores que andam à mercê de governos, partidos e líderes. Espanha e Itália, por exemplo, amargaram dissabores e arrependimento por terem cooperado na invasão do Iraque pelas tropas anglo-norte-americanas. Em suma, missões de paz da ONU e intervenções unilaterais mesclam-se com a ambigüidade política, por isso a diplomacia de Lula se mantém atenta, desconfiada e oportunista. Regride a sábias orientações anteriores: colocar a segurança em segundo plano, subordinando-a a interesses econômicos e tecnológicos e recobrar um papel geopolítico que atenda a interesses brasileiros derivados, na suposição de que direito internacional, harmonia e paz permanecem no horizonte ideal, mas sucumbem freqüentemente a interesses e poder reais. A missão no Haiti soma esses cálculos: por meio dela a ação brasileira promove o bem-estar e o desenvolvimento, usa a cooperação técnica e o próprio futebol, incorpora a filosofia política da ONU, mas persegue status internacional e tem no horizonte outros fins, como o próprio Conselho de Segurança. Segurança subordinada, redescoberta do realismo. No século XXI, os países emergentes orientam sua política de segurança para fins distintos dos países do Norte: as ameaças, coerções pontuais que exigem atenção e ação rápida, e os riscos, coerções de longo prazo que requerem planejamento estratégico, são distintos de um e outro lado. E distante ainda permanece o terreno onde Norte e Sul possam se encontrar, dialogar e se entender. Quanto à segurança hemisférica, a divergência se estabelece quando a pressão norte-americana pelo combate ao terrorismo e por ações preventivas penetra os temas debatidos pela OEA, no âmbito do Tiar ou da América do Sul: missões de paz, segurança energética, segurança humana. Hesita-se em aprofundar o quadro institucional de segurança hemisférica que poderia contaminar
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os temas, como também em militarizar o Mercosul após a adesão da Venezuela ao bloco. Hesita-se em vincular combate ao terrorismo, ao estilo europeu ou norte-americano, e combate ao tráfico de drogas, comércio ilegal de armas ou guerrilha colombiana. Um lastro geopolítico está disponível na América do Sul, feito especialmente das medidas de confiança mútua entre Brasil e Argentina, mesmo que os dois relancem seus programas nucleares para fins energéticos, e do substrato ideológico da Zona de Paz da América do Sul, lastro esse suficientemente dotado para fazer face ao rearmamento recente de certos Estados, como Venezuela e Chile, bem como à tentação de outros Estados de se pôr a serviço de conceitos e da presença norte-americanos. Apesar de desafios e divergências na América do Sul, não se vislumbra nem a necessidade nem a possibilidade de uma agenda de segurança hemisférica, porquanto as divergências com os Estados Unidos, que promovem o choque de civilização, o unilateralismo e o aliciamento de terceiros Estados à própria visão de segurança, revelam-se incompatíveis com a filosofia política sul-americana. A segurança cooperativa dos teóricos americanos, precisamente porque derivada de outros valores, objetivos e métodos, não se concilia com a segurança multilateralizada, o conceito diplomático brasileiro proposto para suceder externamente à segurança coletiva e internamente à segurança nacional da época da Guerra Fria.
5.7 conclusões A experiência brasileira e a dimensão comparativa que o País alcançou na comunidade das nações sugerem algumas conclusões tendo em vista harmonizar os parâmetros da política exterior com a política de segurança e realizar os desígnios nacionais: 1. Convém preservar o acumulado histórico da diplomacia brasileira de um país pacifista e cooperativo que se confirmou como padrão de conduta há um século e meio. 2. A esse legado histórico convém acrescentar o realismo político, que também foi confirmado como padrão de conduta, pelo menos desde a gestão de Rio Branco no início do século XX. O realismo ensina que o poder e a potência estratégica são usados, de rotina, pelos governos de todos os tempos, com a finalidade de secundar seus interesses econômicos. Convém, portanto, manter a tendência das últimas décadas da política exterior do Brasil de reforçar a associação entre política de segurança e desenvolvimento, de modo a extrair daquela meios para que esse ocorra.
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3. A conjunção dessas duas diretrizes induz o equilíbrio entre a tendência multilateralista dos diplomatas e a tendência realista dos militares no delineamento da política de segurança. Sem aproximar os dois segmentos do processo decisório, a legitimidade democrática das instituições é cerceada. 4. Uma Argentina forte permanece na mira do Brasil como aliada estratégica regional. Mas o enfraquecimento da Argentina aconselha ao Brasil assumir sem constrangimento um papel assertivo de liderança na América do Sul, com a finalidade de estimular o desenvolvimento, evitar dependências estruturais nocivas e afastar da área a pressão das grandes potências para o controle da segurança regional. 5. Esses fins da política de segurança pressupõem que se dê continuidade à configuração de um núcleo de poder nacional, composto de duas variáveis: a colaboração entre diplomatas, militares e acadêmicos na formulação e implementação da política de segurança e a colaboração entre cientistas, industriais e militares na produção de meios de dissuasão e defesa, tanto convencionais quanto aqueles que resultem dos projetos estratégicos em curso, que conferem ao País uma capacitação similar à de potências militares.
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6.1 Globalização e integração Ao fim da era bipolar e da Guerra Fria acentuam-se duas tendências em torno das quais se organiza o mundo e fluem as relações internacionais: por um lado, a globalização exerce função de convergência entre as nações, à base do capitalismo como ordem, do liberalismo como ideologia e da superioridade estratégica norte-americana como segurança; por outro, a formação de blocos de nações limita o alcance global dessa convergência em curso. Se a periferia embala a globalização por meio da abertura, um modelo de relações internacionais que se orienta por seus três elementos, os processos de integração a contêm, como se revelassem um instinto de defesa dos povos ante seus efeitos de risco. A globalização encantou os dirigentes latino-americanos dos anos 1990, a ponto de erigir-se o neoliberalismo de Estado como expressão ideológica e adaptada da doutrina liberal clássica. Os dirigentes, a equipe assessora dos governos e a maior parte da opinião pública adotaram de corpo e alma a nova visão de mundo, que realizava a convergência mundial em torno dos processos produtivos e do consumo, das liberdades de comércio e de fluxos de capital. Intelectuais de todo o mundo produziram estudos em quantidade imensa, evidenciando esses benefícios da globalização, um nivelamento pelo alto, um renascimento para todos os povos. A unanimidade dos espíritos não foi alcançada, todavia, em parte alguma, porque o pensamento cético imiscuiu-se na literatura especializada, manifestações da opinião e movimentos de protesto de massa indicavam que a globalização contribuía, de modo sutil, para aprofundar desigualdades entre indivíduos e povos, semeando ricos e pobres, indivíduos e nações. Para compreender as experiências do mundo recente, sejam os modelos neoliberais sejam as iniciativas de integração, é necessário penetrar esse choque de idéias, de oportunidades e de políticas. E avaliar resultados. A política exterior do Brasil reflete, precisamente, o dilema de opção entre o multilateralismo universal indutor da ordem do capitalismo e a integração regional
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como elemento de controle de efeitos. A mais sólida e longa experiência de integração com a qual envolveu-se profundamente o Brasil, o Mercosul, espelha esse dilema de função diante das forças da globalização: em sua gênese, entre os doze protocolos de 1986 firmados entre Brasil e Argentina e o Tratado de Assunção, de 1991, o processo de integração do Sul orientouse simplesmente pelos objetivos do desenvolvimento visto como etapa do processo histórico; entre esse Tratado e o fim dos governos neoliberais, em 2002, desviou-se para o objetivo comercialista; desde Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, em 2003, tende a tornar-se integração macroeconômica, com ênfase produtiva.
6.2 Formação do pensamento integracionista no Brasil e na américa do Sul O propósito de integrar um bloco ou de formar seu bloco em circunstância alguma pode ser tomado como decisão própria de determinado país. Necessariamente, depende do pensamento e da vontade política de outros Estados, das imagens que fazem um do outro, da natureza das relações bilaterais e regionais, do escopo que se pretende realizar no interior do bloco e em escala global. Relações em eixo entre dois países protagônicos, como no caso da União Européia e do Mercosul, situaram-se na gênese dos processos de integração e condicionaram sua evolução, aflorando para o campo da teoria das relações internacionais como novo elemento sistêmico. Desse modo, faz-se necessário identificar, antes de tudo, os condicionamentos externos do pensamento integracionista brasileiro, aqueles fatores que de fora influíram sobre sua origem, configuração e expressão presente. Depois disso feito, é mister identificar os impulsos internos e qualificar a visão brasileira da integração. Não se pode negar que se estabeleceu uma miragem no pensamento diplomático brasileiro em torno da ordem internacional. Em três fases, a ordem internacional foi vista como benéfica em sua gênese e inútil ou nociva em seu termo. A ordem do imediato pós-guerra, feita de liberalismo na área de influência americana e de fronteiras ideológicas, a cuja construção o governo brasileiro de então contribuiu com entusiasmo, explica, por exemplo, a reação desse governo diante da negociação do Tratado de Roma, em 1957, que criaria o Mercado Comum Europeu. Nesse momento de entusiasmo diante da ordem liberal, o aparecimento do primeiro bloco econômico do
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pós-guerra era visto como uma espécie de heresia doutrinal. Logo depois, porém, e ao longo da década de 1960, constatando-se que a ordem frustrava as expectativas de que daria impulso ao desenvolvimento, ela mesma tornou-se o alvo das críticas. A Nova Ordem Econômica Internacional, definida conceitualmente pelas resoluções da ONU nos anos 1960 e 1970, também recolheu de início o entusiasmo e a contribuição da diplomacia brasileira e, ao termo, apenas a constatação de que concretizou a hipocrisia das nações avançadas que a endossaram e depois a descartaram. A governança global que expressou o ordenamento da era da globalização também transitou por esses dois momentos na percepção dos dirigentes brasileiros, o entusiasmo e a decepção, ao observar-se que afetava negativamente os indicadores econômicos e sociais do Brasil e não contribuía para o nivelamento das nações pelo alto como esperavam os neoliberais. Esse entendimento da ordem pressupõe e evidencia a capacidade da diplomacia de avaliar resultados, um requisito de qualidade da boa política. Essas observações mostram que o idealismo do pensamento brasileiro acerca da ordem internacional, aquele conjunto de princípios, valores e regras aplicáveis a todas as nações, revelou-se de fôlego curto, porque chocou-se com o realismo da política exterior: a ordem internacional é um ideal, cujo alcance é cerceado pela prática política dos Estados. A criação da sociedade internacional permanece no horizonte da utopia, visto que as nações orientam sua ação externa por percepções introspectivas de interesse. Quando se agrupam em blocos, o fazem porque no seio deles a mobilidade e a gestão do interesse tornam-se mais exeqüíveis. O nível universalista da ordem internacional mantém a reflexão no terreno elevado da filosofia política e aponta, portanto, condicionamentos externos do pensamento integracionista brasileiro. Outras duas dimensões desse pensamento, a regional e a nacional, também condicionam sua gênese e evolução. A reflexão sobre condicionamentos internos e regionais traz esse mesmo pensamento ao rés-do-chão, visto que evoca o nexo entre ele e a identidade nacional. Os condicionamentos internos e regionais apresentam-se, grosso modo, como obstáculos a superar no caminho da integração. Enumeramos, a seguir, esses condicionamentos internos e regionais: a) Rivalidades. Observamos na América do Sul rivalidades entre grandes e entre pequenos que pesam sobre o subsistema regional de relações internacionais. As rivalidades têm origem no nacionalismo e são
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alimentadas pela auto-imagem, pelo temor do outro, pelo culto do passado e do destino próprio, bem como por fatores conjunturais, freqüentemente, o triangular, na medida que a rivalidade de um com o outro repercute nas relações com terceiros vizinhos. A diplomacia de obstrução dos interesses do outro na vizinhança é acionada de forma intermitente pelos governos e compromete as possibilidades da cooperação entre países. b) Ambições desmesuradas. O sentimento nacional, por vezes, alimenta a empáfia que corresponde ao desequilíbrio entre a base de sustentação, o autoconceito e a ação externa. A Argentina de Perón com seu justicialismo, sua cooperação regional e sua política exterior de Terceira Posição via-se como artífice de nova ordem mundial. Nessa mesma década de 1950, a Venezuela de Pérez Jiménez, com a riqueza do petróleo, pretendia conduzir o processo de desenvolvimento regional, assim como Rômulo Betancourt exibiria depois um conceito de superioridade modelar com sua democracia. Nos anos 1970, o Brasil-potência ostentava uma auto-suficiência singular que se esparramava com ares de superioridade. No século XXI, a revolução bolivariana de Hugo Chávez é vista por vizinhos como proposta de utopia. Esses exemplos não esgotam, por certo, as manifestações de ambições desmesuradas que condicionam as relações regionais na América do Sul. c) Internalização dos conceitos cepalinos. O pensamento cepalino erigido em torno de conceitos como indústria, emprego, proteção, mercado interno, auto-suficiência, expressou-se em práticas políticas que constrangiam eventual processo de integração. Visto que se destinava a inspirar políticas de Estado dirigidas ao desenvolvimento, inspirou uma forte vertente de pensamento estribado em percepção nacional de interesses a promover. d) Atitudes diante dos Estados Unidos. Durante décadas, o Brasil implementou um esquema de relações com os Estados Unidos, a parceria estratégica, que desaconselhava, na avaliação de dirigentes, a integração regional, na suposição de que viesse colocar em risco os ganhos da relação bilateral especial. Quando um Estado buscava adaptar-se à política norte-americana para a América Latina recorria a medidas de servilismo político ou geopolítico, um equívoco de cálculo, visto que os norte-americanos apenas requisitavam livre fluxo de capitais e de em-
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preendimentos privados. Esse equívoco de cálculo, contudo, era mal visto à luz da autonomia decisória e da soberania, valores prezados pela identidade cultural latino-americana. Quando o Brasil atingiu nível de desenvolvimento mais avançado, com a competição e a concorrência estabelecendo-se nas relações bilaterais e em terceiros mercados, alguns Estados grandes e pequenos pretendiam substituí-lo na busca da relação especial com a potência hegemônica da área americana, que consideravam de maior benefício do que a integração regional. Em suma, o modo positivo de avaliar as relações com os Estados Unidos não contribui para o avanço do pensamento integracionista, todavia houve períodos em que governos avaliavam-nas como sendo nocivas e, nessas circunstâncias, produziam outro efeito. e) Atitudes diante do Brasil. Esquerda e nacionalismo percebem, por vezes, a integração como oportunidade de estender a hegemonia brasileira sobre a região. A evolução dessa linha de pensamento é reforçada ao se evocar a relação bilateral especial entre Brasil e Estados Unidos. Uma teoria do subimperialismo desabrochou em seu seio e se apresenta, eventualmente, à manipulação de governos, inclusive na busca daquela relação direta com os Estados Unidos. Com a abertura e o neoliberalismo do fim do século XX, as reações negativas arcaicas e os temores diante do Brasil perdem consistência, mas avança nova percepção de relações assimétricas que o processo de integração parece perpetuar. f) Diplomacia distante da sociedade. Embora os líderes políticos tenham papel relevante na gênese dos processos de integração, estes somente vingam quando as forças das sociedades — intelectuais, empresários, agricultores, opinião pública etc. — envolvem-se diretamente. Nem sempre diplomacia e sociedade marcham conectadas. O volume de publicações, a quantidade de colóquios e o número de projetos de cooperação entre universidades e outras instituições da sociedade marcam as relações entre Brasil e Argentina, indicando aumento exponencial desde o Tratado de Assunção, de 1991, que criou o Mercosul. As diplomacias envolvem-se nesse esforço de criar consciência em torno da integração, um papel que formadores de opinião exercem com eficiência nos dois lados. Não se pode dizer o mesmo de outros segmentos da sociedade, chamados devagar e aos poucos a tomar parte no processo e
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também acerca de relações entre Brasil e outros países que se pretende agregar ao processo de integração sul-americano. Esses condicionamentos do pensamento integracionista brasileiro — universais, regionais e nacionais — apresentam-se em sua maior parte como obstáculos a conjurar para o êxito da integração. Correspondem a fenômenos concretos de alcance prático que não impediram, todavia, a marcha da idéia de integração. Concebeu-se e tomou rumo recentemente a integração latino-americana, em uma primeira fase, na instância sul-americana. Projetou-se e encaminhou-se a formação de blocos de países, pela via de agrupamentos regionais e pela integração hemisférica. Cogitou-se, enfim, a integração interblocos. É mister inclinar-se, contudo, sobre outra categoria de condicionamentos do pensamento integracionista que deriva da avaliação da globalização a partir das experiências do fim do século XX, avaliação expressa nos países latino-americanos pela opinião pública e pelas eleições democráticas no início do século XXI. Essa categoria não emerge de raízes geográficas como os condicionamentos já examinados, porquanto supera essa dimensão de origem e situa-se na mente humana. Com efeito, a globalização empolgou os dirigentes e a opinião, de um lado, no entanto, de outro, o malogro de sua versão regional, o neoliberalismo, provocou crises de natureza financeira, econômica, especialmente comercial, social, com impacto sensível sobre a opinião pública e o exercício da democracia. Um após outro ou simultaneamente, Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Argentina, Venezuela e outros países passaram por convulsões. A estabilidade mantinha-se apenas no Chile e para ele voltavam-se olhares desconfiados. Nessas condições, o pensamento político acerca do processo de integração modificou-se. Quatro foram os efeitos mentais provocados pela globalização e pelo malogro neoliberal sobre o propósito de tocar a integração como projeto político. Designamos as expressões representativas dessas quatro apreciações que envolvem saídas de crise, em uma ou outra delas encaixando-se cada país que aqui não é nominalmente referido: a) o México toma distância, fazendo sua opção pelos Estados Unidos e reforçando, a reverso, a idéia de América do Sul como sub-região; b) o Chile torna-se país comercialista, primeiro tentando moldar uma relação especial mediante tratado de livrecomércio com os Estados Unidos, depois buscando mercados para seus produtos primários mediante acordos de livre-comércio com inúmeros países do mundo; c) a Argentina volta-se para si mesma, procurando desde dentro
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as saídas para a falência da nação, de modo a subordinar a essa opção introspectiva outras estratégias de reerguimento; d) o Brasil defende sua vocação industrial e sua agricultura como se fossem vacas sagradas, porém age com o objetivo de estabelecer mais liberdade de comércio em escala global e aciona sua diplomacia, antes de tudo, para negociações multilaterais em órgãos responsáveis por decisões acerca do ordenamento mundial nessa esfera. Essas quatro estratégias de ação denotam visões do papel do comércio mundial que afetam diretamente o entendimento acerca dos processos de formação de blocos, que têm no comércio sua alma. As estratégias parecem, à primeira vista, deprimir a idéia de integração, seja para preservar a autonomia nacional de ação, seja porque o liberalismo do comércio mundial dispensa o bloco, a menos que a integração desempenhe função do lado econômico estrutural, da cultura e da cidadania, para além do comércio. Ora, esse conceito complexo de integração para o desenvolvimento jaz no subconsciente político latino-americano. Concebido nos anos 1980 e afastado durante as experiências neoliberais, volta ao cenário político no início do século XXI, quando a Venezuela, com os recursos do petróleo, confere ânimo e viabilidade à chamada integração produtiva. A integração latino-ameiricana toma novo impulso, sendo a integração produtiva reposta em marcha, a começar pelos grandes projetos de infra-estrutura. Por sobre todas essas considerações acerca da integração na América do Sul, imiscui-se, entretanto, o argumento levantado por Alan S. Milward e seus colaboradores no estudo que fizeram sobre a integração européia como processo histórico. Uma visão desvirtuada desse viés foi alardeada como benéfica e inevitável, justificando o sacrifício de parcelas da soberania, quando, de fato, as nações se voltam para a integração para fazer face a desafios que não alcançam superar isoladamente. O nacional e soberano age como propulsor, não necessitando ser sacrificado a instituições integracionistas, apenas porque se toma a integração como bem em si. Tal descoberta no âmbito da integração européia faz repensar também a gênese e a gerência da integração entre os Estados latino-americanos.
6.3 a idéia integracionista em marcha O paradigma desenvolvimentista de política exterior influiu durante décadas sobre o pensamento integracionista brasileiro e latino-americano. Como esse modelo conferia ao Estado o papel de arrastar as sociedades para
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o desenvolvimento, é natural que a integração, vista como meio, tenha sido concebida por homens de Estado em vez de corresponder a uma aspiração das sociedades. A idéia integracionista avançou em duas fases: a fase Cepal-Alalc (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe — Associação Latino-Americana de Livre Comércio), anterior à integração do Cone Sul, e a fase AladiMercosul (Associação Latino-Americana de Integração — Mercado Comum do Sul), marcada por impulsos decisivos de integração no Cone Sul. O pan-americanismo lançou a semente da idéia de integração no início do século XIX, mas declinou como movimento hemisférico ao adquirir expressão essencialmente geopolítica. Durante a Conferência Pan-Americana de Washington, em 1889-90, o governo dos Estados Unidos pretendeu convertê-lo em pan-americanismo econômico, como revela a agenda preparada para os debates e as decisões a tomar sobre temas como comércio, comunicações, moeda e arbitramento. Uma tentativa malograda de criar um zollverein e impor, pela negociação, a superioridade da economia industrial norte-americana sobre o hemisfério, como faziam os europeus que repartiam entre si os mercados da África e da Ásia por meio do colonialismo, sem negociação. Durante os anos 1930 e 1940, convinha aos Estados Unidos gerenciar a solidariedade continental em favor do bloco das democracias e, nesse sentido, o pan-americanismo foi relembrado e acionado. Mas ainda não se conseguia fazê-lo evoluir de político a econômico. Após a guerra, esse trôpego pan-americanismo sucumbe ante a negligência norte-americana pela América Latina na esfera econômica e a disposição da potência hegemônica da área em combater o comunismo. Os latinos refluem sobre si, criam a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), no seio da ONU, e, mais tarde, o Sistema Econômico Latino-americano (SELA). Dos anos 1940 aos anos 1990, o pan-americanismo entrou em fase de hibernação de longo prazo, ressurgindo no fim do século XX, com a mesma proposta do fim do século XIX: por meio da Associação de Livre Comércio das Américas (Alca), gerar o bloco econômico hemisférico. Até o presente, contudo, não demonstrou força suficiente nesse intento. A proposta de criação de um bloco econômico e político reunindo Argentina, Brasil e Chile, o ABC, concebida no início do século XX, deu os primeiros passos durante o governo de Juan Domingo Perón, mas não resistiu às hesitações de Getúlio Varas e à obstrução que lhe fazia o Itamaraty, a cargo
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de João Neves da Fontoura. Juscelino Kubitschek articulou a Operação PanAmericana, em 1958, diretamente com seu colega argentino, Arturo Frondizi, à margem do Itamaraty, então avesso à idéia de integração, em razão dos cálculos que fazia acerca dos ganhos da relação especial com os Estados Unidos, que se temia perder, caso ela vingasse. A iniciativa brasileiro-argentina não visava a integração propriamente dita, porém a cooperação de capitais e empreendimentos norte-americanos para promover o desenvolvimento industrial da América Latina. Embora tenha se instalado o Comitê dos 21, reunindo representantes de todos os governos do continente, a OPA também malogrou, por não ser uma iniciativa norte-americana, e foi substituída pela Aliança para o Progresso, subordinada a objetivos ideológicos. Desse modo, o caminho da integração hemisférica enchia-se de entulhos e parecia aos dirigentes latinos que convinha mais uma vez refluir à sua área. Em 1960, criava-se a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), um corretivo ao caráter introspectivo do pensamento cepalino, que no fundo considerava a integração regional necessária ao desenvolvimento. Os Acordos de Uruguaiana, firmados em 1961, pelos presidentes Jânio Quadros e Arturo Frondizi, expressavam, contudo, a mais genuína idéia de integração, um ensaio como que profético, no dizer de Carlos Eduardo Vidigal, ao que sucederia décadas mais tarde. Não se furtaram os dirigentes do Cone Sul em agregar a idéia de infra-estrutura física à projetada integração, como elemento propulsor. Assim, firmou-se entre os governos de Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil, em 1968, o Tratado da Bacia do Prata, que resultou em iniciativas concretas para ampliar os transportes e conectar projetos voltados ao aproveitamento dos rios. Dez anos depois, o Tratado de Cooperação Amazônica reunia oito países do norte da América do Sul com os mesmos objetivos. Formava-se, ademais, a Comunidade Andina, o primeiro bloco de países criado na América do Sul com o objetivo de realizar a integração em seu âmbito regional. A idéia integracionista tomou corpo, em sua segunda fase, quando impulsos decisivos sucederam-se no Cone Sul, na passagem dos anos 1970 aos anos 1980. Sobre o eixo das relações entre Brasil e Argentina, pensado e preparado anteriormente, formar-se-ia o bloco regional de maior consistência na América Latina. A Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), criada em 1980, em conseqüência de transformação da ineficiente Alalc, marca esse momento de passagem de uma fase a outra da idéia integracionis-
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ta. Outros fatores da época também se somaram aos impulsos decisivos que o processo de integração acolheu. O eixo Brasil-Argentina, entendido como convergência e complementação política e econômica e base gravitacional da integração regional é reforçado ainda nessa fase de regimes militares, demonstrando que não foram apenas os estadistas democratas que viabilizaram o entendimento bilateral. Em 1979, logo no início da administração do general João Batista Figueiredo, Brasil e Argentina firmam com o Paraguai o Acordo Tripartite que pôs fim à desgastante rivalidade em torno do aproveitamento para fins energéticos dos rios da Bacia do Prata. A conclusão da hidrelétrica de Itaipu, então a maior do mundo, estava assegurada e o projeto de Corpus, na Argentina, tecnicamente definido. No ano seguinte, em 1980, os generais presidentes deram o segundo passo decisivo para a criação de condições favoráveis à integração: o Acordo de Cooperação Nuclear entre Brasil e Argentina. Esse, ao encerrar a corrida nuclear, punha fim a outra árdua rivalidade de possíveis efeitos desastrosos para ambos os lados. É mister insistir sobre a capacidade de determinação desses dois acontecimentos sobre o processo de integração, que a literatura freqüentemente silencia para creditá-lo erroneamente à redemocratização dos meados da década de 1980. Ao equacionar o contencioso hidrelétrico e o tema nuclear, Brasil e Argentina estavam chamando a si um entendimento capaz de gerar profunda confiança mútua a converter operacionalmente, em medidas bilaterais ou regionais, uma interpenetração envolvendo o âmago dos Estados. A idéia de integração resultava, pela lógica, o ponto de chegada dessa convergência. Em 1986, Brasil e Argentina firmaram doze protocolos de cooperação, acoplando seus projetos de desenvolvimento em todos os setores afetos ao sistema produtivo. Esses protocolos refletem a filosofia política da época, o desenvolvimentismo, porque punham a integração a serviço dos sistemas produtivos, que reforçaria, de preferência, o incremento do comércio. A idéia de integração macroeconômica que esteve em mente no início do processo será sacrificada à experiência liberal comercialista no início dos anos 1990. O Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento de 1988, último ato bilateral imbuído de passada filosofia política, precedeu o aparecimento dos regimes neoliberais, Carlos Saúl Menem na Argentina e Fernando Collor de Melo no Brasil. Firmou-se, destarte, o Tratado de Assunção, de
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1991, que criou o bloco do Cone Sul, reunindo Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai sob a égide do regionalismo aberto da Cepal, expressão liberal do novo pensamento integracionista em voga na América Latina. No momento que o Mercosul vinha ao mundo, operava-se, pois, a transição da integração macroeconômica para a integração comercialista. Esses impulsos decisivos do processo de integração do Cone Sul não esgotam a explicação acerca de sua origem. Além dessas determinações internas e regionais, a pressão global para formação de blocos era intensa, visto que eles se constituíam em toda parte em razão daquela necessária prudência ante os riscos da globalização. O Mercosul foi mais uma formação concomitante de bloco, porém mais sujeita que outras à filosofia do neoliberalismo. O fato de ser impelido em sua gênese e evolução por idéias-chave distintas, tais como desenvolvimento, infra-estrutura, macroeconomia, comércio, confere ao bloco instabilidade, perda de rumo, reorientação. Crise e renascimento são termos amplamente referidos pelos analistas de sua formação, observadores de união aduaneira, zona de livre-comércio e mercado comum, não sabendo bem de quê. Além disso, a associação nasceu sob o signo neoliberal, impelida por empresas transnacionais, longe dos sonhos de desenvolvimento autônomo e solidário de seus idealizadores. Daí as fraturas, as crises de identidade, as assimetrias, as paralisações, os renascimentos. A crise do neoliberalismo acentuou disparidades em razão do retrocesso competitivo argentino e da reação positiva da economia brasileira à abertura dos anos 1990. O Mercosul difere da Alca porque corresponde a processo de integração sub-regional e difere da União Européia porque as classes dominantes não formam consenso de alcance global.
6.4 consolidação do mercosul e avaliação de resultados O processo de integração do Cone Sul suscitou expectativas muito positivas, porque trouxe de sua fase embrionária, entre os protocolos de 1986 e o Tratado de 1991, o impulso filosófico do desenvolvimentismo e embarcou, depois, nas esperanças que a globalização vinha despertando desde 1989-90. Independentemente de se haver voltado para a interpenetração de fatores econômicos ou para a mera expansão dos mercados de consumo entre seus membros, a experiência de integração do Cone Sul será conceituada e avaliada em sua amplitude com o intuito de identificar seus parâmetros genéticos, forças e fragilidades, êxitos e malogros. Por meio de tais variáveis, buscamos
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expor ao leitor e aos dirigentes os componentes do conceito mercosulino de integração para, então, avaliar seus caminhos, possibilidades e limites, evitando conclusões emotivas, doutrinais ou apressadas, por vezes, levadas a público por uma literatura enorme ou por manifestações de autoridades. Uma primeira observação se impõe, nesse sentido. O processo de integração comporta três fases: a embrionária e produtiva, entre 1986 e 1991; a liberal e comercialista, entre 1991 e 2002; e a fase de maturação da interdependência, de 2003 ao presente. Buscamos, em um primeiro momento, a identificação dos parâmetros do processo e seus resultados na fase intermediária que se prolonga ao início do século XXI, para depois examinar os rumos da consolidação. Reunimos em seis aspectos os êxitos do Mercosul como experiência de integração: a) Empatia das inteligências. O fenômeno diz respeito à convergência do pensamento argentino e brasileiro, em menor escala dos outros dois países, Uruguai e Paraguai. Intelectuais, diplomatas e dirigentes reagiram ao processo afinando o modo de pensar e influindo, por óbvio, sobre a opinião pública e a decisão de Estado, visto que o pensamento equivale a uma força profunda que move a História. O grande número de colóquios, encontros, seminários e debates que reuniam pensadores do Cone Sul, sobretudo brasileiros e argentinos, resultava em dezenas de publicações de atos, revistas e livros e indicava que o Mercosul empolgava o segmento pensante das sociedades. Uma avaliação do perfil do pensamento leva à conclusão de que se realizou a empatia das inteligências por meio da adesão comum ao processo, objeto de avaliações que enalteciam os benefícios coletivos. b) Zona de Paz. As medidas de confiança mútua a que aludimos em capítulo anterior evoluíram para um impressionante sistema de confiança mútua, erodindo-se a corrida nuclear e a tradicional rivalidade entre Brasil e Argentina. As causas geopolíticas de tensões foram identificadas e eliminadas. As Forças Armadas, reduzidas em contingente e capacidade operacional, não criaram empecilhos à Zona de Paz, uma nova página nas relações de segurança no Cone Sul, aberta no bojo da integração. c) Integração comercialista. A expansão do comércio intrazona, que se multiplicou por cinco nessa fase intermediária, não corresponde a des-
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vio de comércio mas a resultado inerente a qualquer bloco bem-sucedido, que entrelaça as sociedades pelo consumo. d) Sujeito de direito internacional. Em virtude do protocolo de Ouro Preto, o Mercosul tornou-se, em 1994, sujeito de direito internacional, habilitando-se a negociar em bloco com outros parceiros. Esse reforço foi determinante para a negociação da zona de livre-comércio com a União Européia e para negociações com outros blocos e países, segundo o esquema 4 + 1. e) Imagem externa. Antes de a formação de blocos e demais manifestações do multilateralismo entrarem em crise no início do século XXI, o Mercosul produziu no mundo todo uma imagem muito positiva, acima de sua própria realidade, imagem essa que apenas os dirigentes norte-americanos tentaram deprimir. Enquanto durou, a união política que produzia a imagem era elemento de força nas negociações internacionais. f) América do Sul. O Mercosul alavancou a idéia de unidade política, econômica e de segurança da América do Sul, cara ao governo brasileiro. Se esses foram os êxitos da fase de montagem do Mercosul, por mera coincidência matemática, também identificamos seis fragilidades inerentes a esse processo de integração, que evidenciam seus limites e indicam que o Mercosul pode avançar ou declinar, dependendo do controle que exercerem sobre seu curso dirigentes e sociedades. As fragilidades do processo de integração coexistem ao lado dos êxitos descritos, relativos à fase intermediária. Enquanto esses reforçavam-no, aquelas o colocavam em risco: a) Visões de mundo e políticas exteriores não convergentes. A comunidade epistêmica argentina que assessorou o governo Menem operava com o conceito de globalização benigna e estava disposta a aprofundar sem limites a subserviência política, a destruição do patrimônio empresarial e tecnológico nacional e o regresso do país à economia primária em nome da abertura indiscriminada. Cardoso, no Brasil, operava com o conceito de globalização assimétrica e estava inclinado a controlar aqueles três efeitos nocivos da abertura neoliberal, embora essa também lhe servisse de inspiração. As relações com os Estados Unidos, de íntima subserviência argentina, eram vistas no Brasil pelo ângulo da rivalidade dos interesses. A gestão da Zona de Paz haveria de
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permanecer sob a égide mercosulina, na visão brasileira, mas segundo o pensamento dos epistêmicos argentinos, pelo viés da potência norteamericana. Como a convergência de visões de mundo e de políticas exteriores representa pressuposto de um processo de integração, em não se realizando essa convergência entre os membros do Mercosul, o processo sofria de uma fragilidade congênita. b) Ausência de coordenação macroeconômica. O neoliberalismo em moda no Mercosul sacrificou a coordenação macroeconômica do processo, concebida em sua fase embrionária. Como a sociedade brasileira, por meio de suas associações — de agricultores, industriais, empresários, comerciantes, exportadores, operários — exerceu pressão sobre o processo decisório de modo a dosar a abertura pela capacidade de adaptação de seus diversos segmentos, a competitividade sistêmica do País elevou-se e as assimetrias entre os membros do bloco econômico iam se agravando no curso do processo, uma vez que os demais membros do bloco não adequaram o grau de abertura à adaptação das forças econômicas e sociais internas. Políticas fiscais, monetárias, industriais, cambiais eram levadas à execução de modo nacional, não integrado. c) Comércio conflitivo. O comércio intrazona revelou-se o núcleo forte da integração, porém refletia um fluxo que dissimulava a fuga da integração macroeconômica. A tarifa externa comum parecia suficiente para compor o bloco e submeter a si qualquer outro escopo. Quando o volume da produção e as diferenças de produtividade apareceram entre os membros, medidas unilaterais de proteção dos mercados nacionais foram introduzidas, disseminando contenciosos de comércio. d) Integração assimétrica. O objetivo de atenuar, quiçá nivelar diferenças sociais, regionais ou nacionais, nas esferas da educação, da renda, do domínio tecnológico e do bem-estar não esteve ausente dos propósitos dos Estados e não deixou de motivar e envolver instituições e grupos em iniciativas comuns. Todavia, penetrou apenas superficialmente o planejamento da integração. À diferença da União Européia, o Mercosul orientou-se pelo objetivo de erigir um bloco político ligado pelo comércio, não uma sociedade de países que zela pela simetria de seus povos. e) Incompatibilidade monetária e cambial. Argentina e Brasil mantiveram suas moedas sobrevalorizadas, de um lado pela lei da conversibilidade entre o peso e o dólar, de outro por artifícios da política cambial.
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Mas a convergência não se verificava. Quando o Brasil desvalorizou sua moeda em 1999, a festa acabou, preparando a crise do comércio intrazona, que se agravou desde o fim da paridade argentina, em 2001. f) União sem instituições comunitárias. O Mercado Comum do Sul, Mercosul, é contraditório em seus termos ao não criar instituições comunitárias. Enfraquece a negociação internacional e entre os membros por recusar limites à soberania dos Estados, por desvincular essa negociação dos processos decisórios nacionais e exigir, depois, enorme esforço de internalização de acordos e normas aprovadas pelos grupos técnicos intergovernamentais.
6.5 a vocação industrial a preservar Passada a fase intermediária dos anos 1990, coincidente com as experiências neoliberais latino-americanas e com os desatinos mundiais da primeira fase da globalização, o processo de integração do Cone Sul toma o caminho da maturidade requerida pela interdependência real em curso nas relações internacionais do século XXI. A virada para essa terceira fase teve início com a crise em que foram envolvidos os dois membros mais relevantes do grupo por efeito das fragilidades do processo. A crise cambial brasileira de 1999 simbolizada pela desvalorização do real e a complexa crise argentina de 2001-2002 — cambial, econômica, social e institucional — introduziram um período de hibernação do Mercosul, que sugeria avaliação. Analistas e dirigentes concordavam. As fragilidades do processo, anteriormente descritas, claras na área econômica em razão do baixo nível de interpenetração de fatores, faziam com que seus efeitos prevalecessem sobre os êxitos alcançados, os quais, por sua vez, eram claros na área política, bastando nesse sentido referir a união que nenhum país-membro deixava de valorizar e a construção da Zona de Paz, conveniente por todos os ângulos. Em outras palavras, a hibernação do Mercosul resultava tanto das crises conjunturais quanto da inconsistência estrutural do projeto. A evolução do Mercosul para a maturidade ocorre no início do século XXI e inclui aspectos que serão tratados a seguir: consolidação institucional e jurídica; consolidação das relações intrazonais; ampliação para a América do Sul; enfim, relações com outros blocos e países. O período coincide com a tendência de declínio da globalização de base ideológica — prevalência do mercado e enfraquecimento do Estado — e de propulsão norte-ameri-
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cana, porém coincide com outras tendências, como a ascensão dos países emergentes ao protagonismo internacional, o enfraquecimento do multilateralismo em todas as dimensões de seu ordenamento, o retorno a soluções nacionais para os desafios do crescimento econômico, enfim, um período de reforço do Estado e de enfraquecimento dos blocos. Uma situação interna a superar e um movimento externo a acompanhar, nessas condições agem os membros do bloco depois da era neoliberal. Sente-se premência para consolidação jurídica do Mercosul quando se percebe o nexo entre escassez institucional com baixa internalização de normas e desconfianças mútuas entre governos, bem como desconfiança de investidores privados. A fraqueza do direito do Mercosul afeta sua capacidade de negociação interna e internacional, sendo ademais fonte de conflitos. Atentos ao fato, os presidentes das cortes supremas dos países do Cone Sul avançam, então, em relação ao chamado protocolo de Olivos, de 2002, e instituem um foro permanente com o fim de criar facilidades para a aplicação das normas pelos poderes judiciários. A Comissão Parlamentar Conjunta, também insuficiente, aconselha o Conselho do Mercado Comum do Sul a aprovar a criação do Parlamento do Mercosul, inaugurado em Brasília em 2006, para estabelecer-se depois em Montevidéu. Sua função primeira não coincide com a função legislativa clássica, a elaboração de normas legais, mas com a de facilitar a aplicação de normas, então calculadas em cerca de 1.600 decisões e acordos ainda não incorporados pelos países do bloco. Mas o Parlamento, ao lado do Foro Consultivo Econômico e Social e da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul, amplia a participação da sociedade civil no processo de integração. Depois da primeira legislatura, cujos membros são apontados pelos respectivos parlamentos nacionais, faz-se eleição direta dos dezoito deputados de cada país. A consolidação das relações entre os países-membros no seio do processo de integração enfrenta grandes desafios após as crises que marcaram o fim da era neoliberal. Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner convergem, desde 2003, no propósito de examinar determinados parâmetros estruturais herdados de seus antecessores que induziam a integração assimétrica. Na frente interna, esses governos coincidem nos propósitos de atenuar as dependências financeira, empresarial e tecnológica com relação às estruturas hegemônicas do capitalismo, de reforçar o núcleo econômico duro nacional e recuperar a vocação industrial do país; na frente externa,
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visam trazer para o mundo real o multilateralismo utópico da fase anterior. Apesar dessas coincidências que aproximam os dois Estados quanto à estratégia de conserto dos efeitos nocivos da fase anterior, observam-se divergências em duas questões de fundo, quando se trata de superar as fragilidades do Mercosul. A Argentina de Kirchner insiste por todos os modos em recuperar a integração produtiva por meio da coordenação de políticas macroeconômicas, mesmo porque esse era o pensamento de seu ministro da economia, Roberto Lavagna, que fora negociador da fase embrionária do processo de integração, quando aquela filosofia política presidia o processo. A coordenação destinar-se-ia a realizar o objetivo argentino de superar assimetrias industriais de produção e produtividade e a espalhar as fábricas por todos os países-membros do bloco. E, para dobrar a vontade brasileira, o governo de Kirchner promovia acertos forçados entre empresários de ambos os lados com o fim de limitar a importação de geladeiras, máquinas de lavar, televisores, têxteis, calçados etc., enquanto ameaçava recorrer a salvaguardas comerciais e eliminar de vez, caso necessário, o livre-comércio intrazona. De outro lado, o Brasil de Lula, confortavelmente instalado em sua superioridade produtiva e competitiva, relutava em atender à reivindicação dos argentinos por simetria industrial e comercial, pois não se descobriam mecanismos adequados para se chegar à equalização dos benefícios da integração. Além desse contencioso em torno de medidas destinadas a introduzir a simetria no projeto de integração, outro terreno afasta Kirchner de Lula. Para o primeiro, a superação da assimetria mercosulina vem como prioridade da decisão política; para o segundo, a integração da América do Sul, vista como terreno contíguo e adequado da expansão dos negócios brasileiros assume a prioridade. Um deseja aprofundar o Mercosul e realizar em seu seio os objetivos da recuperação econômica, outro, utilizá-lo para promover interesses regionais e globais, tanto econômicos quanto políticos. O processo de integração assentado sobre o eixo Brasil-Argentina entra em fase de hibernação no início do século XXI, quando espelhava o contencioso estrutural descrito. Essa crise do pensamento integracionista no Brasil e na Argentina pouco tem de original, se relacionada ao marasmo com que a política integracionista se move em todo o mundo e à crise do pensamento globalista. Com feito, o contencioso estrutural mercosulino aflora no momento que a formação de blocos e o multilateralismo, as duas tendências
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de produção da ordem global em marcha veloz desde 1990, assumem ritmo lento. A globalização, tendência ante a qual a integração erigia-se como barreira protetora, cai em descrédito no pensamento político que se manifesta em negociações multilaterais desde a Conferência da OMC de 2003, em Cancun. Essas novas condições das relações internacionais modificam a atitude do Brasil diante da formação de seu bloco, como também diante das relações interblocos. A idéia de fortalecer a infra-estrutura física vem da primeira reunião de cúpula da América do Sul realizada em Brasília, em 2000, quando se aventou um plano de dez anos, chamado IIRSA (Plano de ação para a integração da infra-estrutura regional na América do Sul). Integração física, calculava-se, deve preceder a econômica. Reuniões técnicas detalham os projetos, elaborados conjuntamente por comitês político, técnico e financeiro, sendo o último integrado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pela Corporación Andina de Fomento (CAF) e pelo Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata). Não sem tempo, pensam os construtores do Mercosul em aprofundar o processo, recuperando idéias que o haviam nutrido em sua gênese. Com efeito, em meio aos conflitos comerciais da terceira fase e à indignação da opinião pública argentina diante da invasão de manufaturados brasileiros, o fundador brasileiro do Mercosul, senador José Sarney, lamenta, em 2004, o desvio da integração para o exclusivismo comercial à época de Menem e Collor de Melo: “foi por água abaixo a visão da integração política, cultural, física e uma comunidade de nações...”. Em seu entender, os contenciosos comerciais não deveriam afetar a integração, mas passar a um mecanismo de solução de controvérsia. O ministro Celso Amorim, por sua vez, condena tanto as ameaças argentinas de retaliações quanto setores brasileiros do comércio que, isoladamente, tendem a absorver o Mercosul. Os ministros responsáveis pela área econômica, o argentino Roberto Lavagna e o brasileiro Luiz Fernando Furlan, anunciam negociações para um acordo de cunho desenvolvimentista com o objetivo de superar a crise comercial. Foi necessário sentir efeitos da fragilidade do processo para iniciar um avanço de fundo. Para o governo brasileiro, a crise do Mercosul encontraria solução fora das lamúrias e do pessimismo, no aprofundamento do processo. Uma cúpula reuniu em Ouro Preto, em dezembro de 2004, doze presidentes para comemorar os dez anos do Protocolo firmado nessa cidade mineira. A cúpula represen-
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ta significativo avanço integracionista. Instituíram-se na ocasião o Fundo para Convergência Estrutural e o Fórum Empresarial do Mercosul. Produziram-se incentivos à criação de empresas mercosulinas e ao trânsito de cidadãos. Concluíram-se os termos de acordos com Índia e União Aduaneira da África Austral. Colômbia, Equador e Venezuela uniram-se como membros associados, como já eram Chile, Bolívia e Peru. Lançava-se a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), como projeto estratégico que visa a cooperação política, energética e de infra-estrutura. Desse modo, o Mercosul se descola da crise neoliberal e adentra a fase realista, sob impulso das esquerdas que haviam ganho as eleições na maioria dos países da América do Sul. Essa nova esquerda realista coteja o realismo do próprio presidente norte-americano, George W. Bush, que com ela se propõe colaborar para neutralizar o antiamericanismo então a cargo da Venezuela de Hugo Chávez. Como assimetrias não se superam conjunturalmente ou a curto prazo, no ano mesmo de sua posse, 2005, o novo presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, eleva a voz dos argentinos, unindo-se ao governo paraguaio para reclamar do processo de integração, que não ouve os dois pequenos, não permite acesso deles ao mercado ampliado e não leva em conta assimetrias que os afastam dos dois grandes. Disparidades entre países, contraposição de vocação industrial, a primária e a financeira, essas críticas afetam o processo de integração, o qual, em vez de falir, como avaliam os pessimistas, busca soluções de superação, apoiadas em intenções políticas, mais do que em medidas de impacto econômico. Com isso, os exportadores brasileiros interpretam o adiamento do livre-comércio entre os dois sócios como vontade de Roberto Lavagna de esfriar o Mercosul, enquanto ele afirma que livre-comércio obstrui o impulso de reindustrialização da Argentina. Na comemoração dos quinze anos do Mercosul, em 2006, não há festa, em meio a atritos entre Argentina e Uruguai sobre fábricas de celulose nas margens do rio fronteiriço, atritos comerciais entre Brasil e Argentina e queixas de Uruguai e Paraguai, os quais ameaçam assinar em separado acordos de comércio com terceiros. Nesses quinze anos, o comércio ascende de oito para trinta e quatro bilhões de dólares, mas a união aduaneira não se efetiva, destarte, segundo avaliação dos governos, o bloco chega à encruzilhada: ou promove profundo aperfeiçoamento do ordenamento jurídico e institucional, o que implica certa perda de soberania, ou fica estagnado e pode até retroceder comercialmente.
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No fundo, os quinze anos do Mercosul arrastam conseqüências estruturais da fase neoliberal intermediária. Não tem razão Roberto Lavagna ao responsabilizar o bloco pela assimetria industrial com o Brasil. A desindustrialização da Argentina e sua desqualificação competitiva ocorreu em razão de haver adotado durante o governo de Menem o paradigma normal com coerência e abrangência, ao passo que o Brasil soube temperar a abertura econômica, associando àquele paradigma regressivo o comportamento de Estado logístico. Os pequenos, Paraguai e Uruguai, tampouco reagiram positivamente aos estímulos da globalização. Essas correspondem às verdadeiras causas do agravamento das assimetrias. Para a boa economia política, as opções do Mercosul prosseguem sendo opções clássicas: atrair investimentos diretos mediante harmonização de políticas industrias, criação de um ambiente de concorrência estável e diminuição da burocracia que emperra os negócios. Os governos se movem precisamente para fortalecer o Mercosul industrial, quando implantam o Mecanismo de Adaptação Competitiva, Integração Produtiva e Expansão Equilibrada e Dinâmica do Comércio (MAC), criam o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul e decidem que, a partir de 2007, o comércio Brasil-Argentina se faz em moeda local. O economista Paulo Nogueira Batista Jr. destaca que na maior parte da América do Sul “instalou-se, ou começou a instalar-se, um saudável ceticismo em relação a conselhos externos e supostos consensos econômicos internacionais”. Por isso, o avanço gradual da integração no Mercosul e dele com o resto da América do Sul retoma sempre impulso do eixo entre o Brasil e a Argentina, os dois países que contemplam a vocação industrial como inelutável. Depois de um período de desentendimentos, quando se avança da administração da crise ao aprofundamento da integração, Kirchner e Lula se aproximam. O primeiro ameniza o método com que enfrentava dificuldades internas e externas, método segundo o qual a dureza no trato dos outros paga, e o segundo manifesta disposição de enfrentar os desafios das assimetrias. Outros fatores também concorrem para o restabelecimento do eixo bilateral, como a entrada da Venezuela no bloco, como membro pleno em 2006, e eventual perda da direção do processo para o recém-chegado, o vigoroso rearmamento chileno e venezuelano, enfim o relance dos programas nucleares de Brasil e Argentina para fins energéticos criando expectativas de cooperação. A Argentina achega-se à idéia brasileira de um projeto desenvol-
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vimentista para a América do Sul, abrindo-se novas perspectivas de cooperação bilateral e regional, até mesmo na área da indústria militar.
6.6 o Brasil e o mercosul diante de outros blocos de fim integracionista As negociações integracionistas em andamento na virada do milênio abrem vasto leque de relações do Mercosul com outros blocos e países. Isso em razão de manter-se o princípio de conduta pelos quatro membros do bloco, de não negociar em separado acordos de comércio com terceiros. Os principais movimentos de expansão do Mercosul orientam-se para a adesão de novos membros plenos, a criação da área de livre-comércio hemisférica e a assinatura de acordos com outros blocos, particularmente a União Européia. O bloco do Cone Sul, no qual insere-se o Brasil de modo visceral, achega-se com o tempo a todos os quadrantes do globo: com a Comunidade Andina busca a conformação da unidade política, econômica e de segurança da América do Sul; com o hemisfério, persegue a conformação da Área de Livre Comércio das Américas, Alca; com a União Européia, tendo em vista a conformação de outra zona de livre-comércio em concorrência com a anterior; enfim, com o Conselho de Cooperação do Golfo, que reúne seis países árabes de peso, com o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) e o Bric, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia e China, volta-se para conformar outras zonas de livre-comércio. Apesar de esforços diplomáticos e de alguns resultados de pouco efeito concreto, observa-se que a crise da integração como fenômeno global, bem expressa pela paralisação das negociações com vistas à criação da Alca, pela rejeição da Constituição Européia por parte de importantes países e pela estratégia norte-americana de ferir de morte a integração por meio de acordos bilaterais de comércio, vem travando as negociações entre os blocos mais importantes do mundo, entretanto, sem impedir que o movimento siga seu curso como tendência das relações internacionais na primeira década do século XXI. Na América do Sul, novo impulso ao sopro integracionista vem da Venezuela. A ideologia bolivariana, de forte apelo integracionista, conjuga-se com grandes recursos advindos da exportação do petróleo, unindo vontade política e meios de ação. Quando a ocasião se apresenta, como a posse do presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, e a cúpula de chefes de Estado e
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de Governo de trinta e três países árabes e sul-americanos realizada em Brasília em 2005, os presidentes dos três países mais relevantes da região, Néstor Kirchner da Argentina, Luiz Inácio Lula da Silva do Brasil e Hugo Chávez da Venezuela, realizam encontros paralelos. A tríade concebe nessas ocasiões um eixo estratégico de ação regional vinculando os três grandes em projeto comum de integração sul-americana, um conserto tardio ao exclusivo eixo condutor argentino-brasileiro que ofuscou o potencial da Venezuela durante duas décadas. A entrada da Venezuela no processo de integração regional como membro pleno do Mercosul ocorre da forma mais adequada ao impulso corretivo de assimetrias regionais. Com efeito, acolhendo proposta venezuelana, os três presidentes em seus freqüentes encontros paralelos conversam acerca de projetos de infra-estrutura, como o gasoduto da América do Sul, a estender-se da Venezuela à Patagônia, e de grandes empreendimentos regionais, como a criação da Petrosul, para coordenar a cooperação na área energética, da Telesul, na área das comunicações, e do Bancosul, na área financeira. Sem o impulso venezuelano, a Comunidade Sul-Americana de Nações — Casa — não nasceria. Lançada sem entusiasmo em reunião de cúpula de doze países em 2004, sua concepção, contudo, se projeta para além de simples área de livre-comércio, porquanto absorve valores, soberania dos Estados, boa convivência, projetos produtivos e o sonho de Bolívar. Seu maior atributo consiste na formação do eixo triplo entre os três grandes países da região, que configuram uma aliança estratégica sul-americana para investimentos conjuntos nas áreas de energia, infra-estrutura e projetos sociais. A Casa coloca o Mercosul no eixo do desenvolvimento. Desde a primeira cúpula dessa associação em 2005, salienta-se a orientação para a cooperação energética e da infra-estrutura, com projetos de integração ambiciosos e concretos. Chávez exibe seu protagonismo, amparado em recursos advindos da exportação de petróleo e na revolução bolivariana. Não se aceita fixar uma data para o início da Área de Livre Comércio Sul-Americana, porém o governo de Lula percebe que as boas relações com a América do Sul resultam em 90% de aumento das exportações brasileiras destinadas à área em apenas dois anos e mantém sua admiração pelo líder venezuelano, por sua simpatia pessoal e pelos seus grandiosos projetos. A adesão plena da Venezuela ao Mercosul em 2006 amplia o bloco como força política, substância econômica e oportunidade comercial: 250 milhões de habitantes, 76% do PIB da América do Sul,
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comércio exterior superior a 300 bilhões de dólares. O novo membro vê seu intento de militarizar o bloco ruir ante a resistência de Brasil e Argentina, ademais dispõe de quatro anos para adotar o acervo normativo e o livre-comércio, de oito em se tratando de materiais sensíveis. Com a adesão da Venezuela, espera-se um salto na integração produtiva na América do Sul, em contraposição à integração comercialista que presidiu a formação do Mercosul. A começar pela integração energética, que conquista espaço na diplomacia brasileira com a criação de um departamento de coordenação estratégica no Itamaraty, interessado não somente no gasoduto do sul, mas nos biocombustíveis também. Tendo a Casa como respaldo institucional do Mercosul ampliado, seus membros encaminham por consenso a convergência política e os mecanismos comerciais, de integração física e energética de que resulte o fortalecimento dos blocos, Comunidade Andina de Nações (CAN) e Mercosul. Os desafios são discutidos em conjunto e não são poucos nem de pequena monta: temas ambientais entre Argentina e Uruguai, assimetrias macroeconômicas entre as economias, preço do gás entre Argentina e Chile e entre Brasil e Bolívia, entraves ao livre-comércio entre todos. Trezentos milhões de dólares destinados a minorar assimetrias econômicas são postos à disposição do Fundo para Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul, com aporte principal do Brasil. As exportações brasileiras para a América do Sul exibem o melhor perfil qualitativo se comparadas a todas as outras direções: 80% de produtos industriais sobre 50% encaminhados a outros destinos. Esse perfil evidencia o acerto da política integracionista regional, no entanto, esbarra na iniciativa norte-americana de firmar tratados bilaterais de livre-comércio com países pequenos da América do Sul. A integração produtiva, de base industrial, desejada pelo Mercosul ampliado, coloca em choque duas filosofias políticas, a desenvolvimentista contra a dependentista. Com efeito, o Trade Promotion Authority, mandato do Congresso norte-americano ao Executivo, aprovado em 2002, com o fim de proteger 520 itens do agronegócio e bens industriais americanos, para cuja negociação a autorização do Congresso se faz necessária, se impede a formação da Alca em favor dos países de vocação industrial, submete os países de filosofia arcaica aos acordos bilaterais. O projeto da Alca, lançado em 1994, fracassou em razão de oposição que à área de livre-comércio hemisférica fazem, na América do Sul e nos Estados Unidos, empresários, governos e opinião popular. O projeto tende à
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preeminência empresarial e comercial dos Estados Unidos sobre a América Latina, no entender dos governos do Mercosul. Enquanto co-presidente das negociações, o governo Lula estabelece as seguintes premissas: a) houve desvirtuamento do projeto inicial quando a filosofia do livre-comércio converteu-se em panacéia para os problemas do desenvolvimento e abandonou-se a dimensão social, da infra-estrutura e do financiamento em favor do egoísmo protecionista; b) como desejada por alguns governos, a conformação da área compromete o desenvolvimento brasileiro, daí a necessidade de se levar em conta na negociação temas de interesse dos países; c) convém ao Mercosul negociar com os Estados Unidos de modo a equilibrar ganhos estruturais, deslocando para a OMC decisões referentes a subsídios e protecionismo agrícola, serviços e investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais, já que os Estados Unidos não abrem mão de vantagens unilaterais nesses temas, quando seu governo negocia acordos de comércio. Em suma, Lula e seu ministro Celso Amorim vêem na Alca um perigo para as estruturas do desenvolvimento brasileiro e dificuldades em negociações pontuais entre os trinta e quatro países americanos. Uma visão objetiva e correta, que passa pelo alto dos interesses de alguns segmentos da economia brasileira que da Alca se beneficiariam em detrimento do conjunto da sociedade e pelo alto da opinião de direita, sempre propensa a concessões sem reciprocidade. Assim postas as posições dos dois co-presidentes das negociações, não surpreende que a IV Cúpula das América realizada em Mar del Plata, a 6 de novembro de 2005, tenha sido genérica e sem objetivos concretos, adiando para futuro incerto a criação da Alca. O outro grande negócio em perspectiva, a Área de Livre-comércio Mercosul-União Européia, tampouco concretizou-se durante o primeiro mandato de Lula. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) conclui que as ofertas de ambos os lados produziriam em 2004 ganhos comerciais 47% superiores para os europeus. Por outro lado, a imagem da União Européia como modelo a seguir na integração sul-americana se desgasta, arrefecendo o interesse pelo negócio. Com efeito, a ampliação do bloco europeu conduz à montagem de uma arquitetura institucional muito complexa, incapaz de gerenciar os conflitos de interesse entre os países-membros. Tanto lá como aqui, a integração apresenta-se como movimento inacabado. As cúpulas União Européia-América Latina e Caribe, que abrigam a cúpula União Européia-Mercosul, regulares desde 1999, ensinam que a integração
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não é paliativo econômico nem fusão cultural, tampouco sonho de alguns dirigentes, porém resulta da vontade política de associar esses fatores a outros para enfrentar diferentes problemas de cada grupo de países. A diplomacia brasileira cultiva, por força da tradição, o multilateralismo e a integração, como meios essenciais de realização de interesses dos mais diversos segmentos da sociedade. Também observa o vôo unilateral dos grandes Estados sobre o cenário internacional e os frutos que colhe. Ante a crise do início do século XXI, atinente tanto ao multilateral quanto à integração, não cogita como alternativa excludente qualquer estratégia de ação externa: unilateralismo, multilateralismo, integração. A primeira, porque não dispõe de meios para impor vontade e interesses próprios. A segunda, porque esteve a serviço das estruturas hegemônicas do capitalismo e não acolheu com reciprocidade os interesses brasileiros de potência emergente. A terceira, porque vai pouco além de uma tábua de salvação diante de eventuais riscos da globalização. Essa visão de mundo molda, internamente, a conduta internacional do Brasil, de país que dispõe de modelos eloqüentes a seguir, contudo, se compraz em controlar o próprio destino. Aos interesses de um país da envergadura do Brasil, parece convir, com efeito, uma estratégia externa variada e complementar, que realize, no início do século XXI, por exemplo, a simbiose do unilateralismo, do integracionismo e do multilateralismo. Mirando-se no exemplo de Estados Unidos, China, Índia e Rússia, países unilateralistas, também multilateralistas e integracionistas, ma non troppo. Elaborar uma teoria do equilíbrio dos três modelos de ação externa, a serem ponderados à base da conjuntura, das tendências e não da ideologia, surge como desafio à reflexão sobre a política exterior brasileira.
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LeIturaS recomeNdadaS: SARAIVA, José Flávio Sombra; CERVO, Amado Luiz. (Orgs.). O crescimento das relações internacionais do Brasil. Brasília: IBRI, 2005 (ver os capítulos de SILVA, Dinair Andrade da. “O Brasil nas migrações internacionais”; MELLO, Maria Thereza Negrão de. “Turismo e indústria cultural no Brasil”; CANTO, Isabel. “O Brasil e a evolução da colaboração científica internacional”). LEITE, Sidney Ferreira. O filme que não passou: Estados Unidos e Brasil na política da boa vizinhança — a diplomacia através do cinema. 1998. Tese (Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo. ÁLVAREZ, Gabriel O. (Org.). Indústrias culturais no Mercosul. Brasília: IBRI, 2003. SCHWARTZMAN, Simon. Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2001. CERVO, Amado Luiz. Socializando o desenvolvimento; uma história da cooperação técnica internacional do Brasil. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 37, v. 1, p. 37-63, 1994.
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7.1 relações intersocietárias A economia internacional move no mundo de hoje três elementos: o trabalho, o turismo e a pesquisa científica; além daqueles outros três que compõem a economia clássica e são citados em nossos manuais: o mercado, o capital e o empreendimento. São elementos que passam, contudo, por uma transformação de essência nas relações internacionais do século XX. As migrações das últimas décadas correspondem mais à migração do trabalho do que ao escopo de instalar a si e aos descendentes em outro país onde se pretende recomeçar a vida, como ocorria anteriormente. O turismo, novo fenômeno de massa, aproxima os povos ao mesmo tempo que introduz nas economias nacionais montantes de recursos tão volumosos para algumas nações quanto desiguais para outras. E a pesquisa científica, pelas interconexões que estabelece no seio das universidades e dos institutos especializados, faz transitar a relação do colonialismo acadêmico que se verificava há algumas décadas com os projetos igualitários entre países desenvolvidos e emergentes. Tomamos esses três domínios das relações internacionais como domínios de relações intersocietárias, porquanto, apesar de envolverem instituições, governos e empresas privadas, estabelecem nexo forte entre massas humanas e, por vezes, se desenrolam por força e em direção que fogem ao controle organizado. Representam fatores que, alinhando-se a outros fatores tradicionais, tornam-se recentemente muito importantes para o emprego, a geração de renda e o desenvolvimento econômico, por isso chamam a atenção da sociedade e dos governos. No caso do Brasil, país tão emaranhado à economia internacional por meio do capital, do empreendimento e do mercado, esses novos laços intersocietários põem as elites pensantes em contatos internacionais corriqueiros por meio da cooperação científica e afetam o dia-a-dia de milhões de indivíduos que lidam com o turismo ou que se mudam para outro país. Entre os anos 1950 e 1980, de país de imigrantes, o Brasil tornou-se país de emigrantes. A transição reflete o desempenho desigual das economias de países provedores e receptores de excedente de trabalho. Séculos de imigração haviam agregado à sociedade brasileira a contribuição étnica e cultural de outros povos, de modo a moldar a natureza do ser brasileiro. A imigração não transformou apenas a dimensão antropológica da vida nacional, também gostos, consumo, produção, enfim, a organização social e a economia também se viram afetados por ela. Ao tornar-se país de emigrantes, essas transformações do perfil brasileiro dão lugar a novo fenômeno financeiro, o
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provimento de recursos para o balanço de pagamentos pela via de remessas vindas do exterior que a exportação de trabalho alimenta, e o novo cuidado, o das necessidades das comunidades brasileiras no exterior com que a diplomacia irá se ocupar. Carregando bagagem biológica e cultural que brota de raízes cravadas em diversificadas formações humanas assentadas pelo mundo — na África e na Ásia, nos países árabes, na Europa, na América anglo-saxônica e hispânica — o brasileiro se vê, em certo sentido, como cidadão do mundo e aprecia a viagem. Assim mesmo, a balança do turismo tende a ser deficitária no País, mesmo irrelevante, se comparada a países de renda per capita mais elevada e de elevada capacidade de atração, como França, Itália e Estados Unidos, porém a evolução recente do turismo faz do signo Brasil, que se vende como produto no exterior, um fator capaz de alimentar o emprego e a renda de uma parcela crescente da população. No presente, negligenciar esse benefício seria um desatino. Há quem pense que a diplomacia comercial brasileira, que tantos ganhos acrescenta à receita do comércio, mais resultados financeiros alcançaria convertendo-se em diplomacia do turismo. Pesquisadores e professores do Norte deram uma contribuição decisiva à criação da moderna universidade no Brasil. Seja porque aqui vieram no momento de sua fundação ou para viabilizar cursos de pós-graduação, seja porque milhares de brasileiros buscam capacitação em cursos de doutorado no exterior. A relação entre o centro e a periferia do conhecimento evoluiu de paternalista e dominante, no início, para neocolonial em fase de transição, atingindo em projetos atuais o caráter igualitário, pelo menos na mente de acadêmicos brasileiros que já se desvencilharam do complexo de inferioridade cultural, mas ainda não em acadêmicos do centro capitalista, que prosseguem, em boa medida, imbuídos do sentimento oposto, ou seja, o complexo de superioridade cultural. Transmitir ou dar conhecimento, pesquisar ou produzi-lo conjuntamente, eis o jogo de papéis diferenciados a exercer ou superar.
7.2 da imigração à emigração O último pique da imigração para o Brasil ocorreu durante a década de 1950 em razão das dificuldades de reconstrução na Europa e no Japão do pós-guerra e da fase de industrialização acelerada no Brasil. Para cá aportavam portugueses, italianos, espanhóis e japoneses. O crescimento acelerado dos anos 1970 ainda atraiu imigrantes de países vizinhos, principalmente
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argentinos, chilenos e uruguaios. Já o primeiro pique da emigração de brasileiros ocorreu na década de 1980, por causa da crise da dívida externa, da inflação e da estagnação econômica. As estatísticas das migrações refletem, portanto, o processo de desenvolvimento como um todo, de tal sorte que o movimento anda ao compasso do nível de bem-estar da sociedade. A trajetória do Brasil, na segunda metade do século XX, passa por duas fases bem conhecidas: evoluiu de um país de crescimento acelerado, com grande geração de emprego e renda, para outro de estagnação econômica e frustração social. O marco da transição fixa-se em 1980, ano que simboliza a passagem de décadas de crescimento para décadas de estagnação. Não mais se observa aquele ímpeto para a frente, não mais apareceram estadistas de têmpera em condições de contagiar a sociedade. Daí a transição do movimento migratório. Assim como a imigração contribuiu no passado para configurar novo perfil da sociedade, a emigração reflete seu perfil de sociedade desigual e inerte no presente, segundo expressão de Dinair Andrade da Silva. Um Brasil pobre e desigual forçou a emigração de trabalhadores em busca de melhores condições de vida. Durante a década de 1990, a globalização recessiva do Brasil manteve elevado o fluxo de emigrantes. Entre 1991 e 1996 a emigração de brasileiros passou de 330.000 para 600.000 com destino aos Estados Unidos, de 150.000 para 200.000 com destino ao Japão. Itália, Alemanha, Portugal, Inglaterra e Espanha abrigavam, em 1996, cerca de 150.000. Somente o Paraguai recebera mais de 350.000. O total de emigrantes brasileiros, de então, atingia um milhão e meio. Dez anos depois, no início de 2005, segundo estimativas do Itamaraty, o número de emigrantes havia dobrado e três milhões de brasileiros viviam no exterior. O Congresso investigava, então, a rota para os Estados Unidos, na qual atuavam “coiotes” de fronteira e uma quadrilha composta por políticos, fazendeiros e policiais com o fim de recrutar emigrantes clandestinos no Brasil. Essa contravenção movimentava cerca de cem milhões de dólares por ano, ao mesmo tempo que, no exterior, viviam na ilegalidade, aproximadamente, um milhão de brasileiros. Emigração, sintoma de pobreza, mescla-se com o crime, sintoma de degenerescência moral. Interessado nas transferências financeiras desses brasileiros residentes no exterior para seus familiares no Brasil, o Banco Central exibe fluxo financeiro crescente e cada vez mais relevante para as contas externas do País: as remessas somam 1,4 bilhão de dólares em 1998; 2,558 bilhões em 2005. A
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estimativa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) alcança então seis bilhões de dólares de remessas ao Brasil. A diferença se explica pelo fato de o Banco Central computar apenas as remessas legalizadas. De todo modo, o montante das remessas de emigrantes vai muito além de um bilhão de dólares, soma resultante de lucros e dividendos que empresas brasileiras realizam em 2004 com seus 54,9 bilhões de dólares investidos no exterior. Nessas circunstâncias, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal ampliam seus serviços nos países que abrigam colônias de emigrantes brasileiros, com o fim de legalizar e facilitar o fluxo de remessas. Os emigrantes brasileiros para países do hemisfério norte, oriundos da classe média, dedicam-se às atividades urbanas, ao passo que a emigração de fronteira, oriunda do campo, volta-se para as atividades agrícolas em países vizinhos do Sul. Os que compõem a chamada “fuga de cérebros”, sendo reduzidos em número, adaptam-se com maior desenvoltura no exterior. Três dezenas de países abrigam comunidades com mais de mil brasileiros, porém estes se concentram em grande número, por ordem decrescente, nos Estados Unidos, Paraguai, Japão e Europa. Formou-se nos Estados Unidos a maior comunidade de brasileiros no exterior. Dedicam-se, grosso modo, ao trabalho braçal nas indústrias e na construção, bem como aos serviços domésticos e ao comércio. Dão-se bem, auferindo renda per capita mais elevada que a de imigrantes hispano-americanos, talvez porque ostentem nível de formação superior. Nos países limítrofes ao Brasil, os emigrantes brasileiros de fronteira, com experiência de origem na atividade agrícola do sul, tornam-se trabalhadores rurais, proprietários de terra, criadores, garimpeiros, comerciantes, pequenos e, por vezes, grandes empresários. Como os emigrados para os Estados Unidos, esses últimos também cultivam os vínculos com familiares no Brasil. O Paraguai se destaca entre todos os vizinhos, com cerca de 80% de todos os emigrantes brasileiros de fronteira. A terceira maior comunidade de emigrados brasileiros estabeleceu-se no Japão, mas poucos adquirem a cidadania, que lhes é sonegada, embora descendam de antigos imigrantes japoneses no Brasil. Esses dekasseguis sujeitam-se a necessidades e à rígida legislação para se beneficiarem de elevado rendimento, realizarem sua poupança e poderem regressar. Na Europa, os brasileiros se dispersam, em razão das facilidades de aquisição da cidadania, por Itália e Alemanha, e pelos direitos comuns, por Portu-
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gal, países esses que facilitam sua legalização. Vão também para a Inglaterra em busca de oportunidades de trabalho, vivendo como clandestinos. Em toda parte, sofrem com a rigidez da lei que se aplica a estrangeiros, se é que não padecem também diante da presunção social que desclassifica o “estranho no ninho”. Além dos constrangimentos da legislação e da opinião das pessoas das localidades onde se instalam, os brasileiros submetem-se a constrangimentos do trabalho, que desconhece por completo direitos de cidadania de que goza o capital em todo o mundo, como se este fosse o único cidadão global. A tendência, contudo, na era da globalização, em razão das facilidades dos transportes e das comunicações, como também em razão das desigualdades entre as nações, é de ver o fluxo humano aumentar do sul para o norte e de envolver cada vez mais a lei e os governos em seu controle e monitoramento. A diplomacia brasileira manifesta cuidados com os brasileiros residentes no exterior. O Itamaraty põe à disposição de todos eles seus serviços consulares. Em meados da década de 1990, quando a emigração tornou-se fenômeno de massa, esses serviços passaram por uma adaptação com o objetivo de estender a assistência consular a todos os brasileiros emigrados e de atender a necessidades específicas detectadas no seio das comunidades no exterior. A emigração de massa levanta para os governos, além das questões citadas, outras que não dizem respeito, em princípio, aos emigrantes em busca de trabalho, mas que podem, eventualmente, afetá-los. Para além do emprego e da renda que se procura, as migrações internacionais abrigam, na passagem do milênio, o tráfico de armas, de drogas, a clandestinidade e a ilegalidade, prejudicando a imagem do país de origem e impondo constrangimentos políticos. Tornam-se, destarte, preocupações das políticas exteriores, não apenas de órgãos técnicos consulares que prestam a assistência de rotina. São, com efeito, da alçada da política exterior problemas de determinada natureza. Como são tratadas as comunidades de trabalhadores do ponto de vista dos direitos humanos e da cidadania? Como agem as autoridades diante de legalizados, de indocumentados, de clandestinos, presos por tráfico, por situação ilegal ou simplesmente por truculência dos serviços de segurança dos países receptores? Enfim, como tais problemas afetam as relações bilaterais entre governos? Tanto na sede do Ministério das Relações Exteriores em Brasília, como nas embaixadas e nos consulados no exterior, órgãos que já existiam adaptaram-se à nova realidade e criaram-se outros com o objetivo de
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avaliar situações, identificar necessidades, levar assistência a grupos e indivíduos e zelar pela proteção que possam receber de autoridades locais. Todo esforço despendido pelo Itamaraty em modernizar seus serviços em favor dos emigrantes brasileiros é conveniente, porém paliativo. Lida com efeitos, não com causas: na década de 1980, vivenciavam-se a crise da dívida, a recessão e a queda de renda dos trabalhadores no Brasil; no decorrer da década de 1990, ocorriam o enfraquecimento da economia nacional, em razão da alienação de suas empresas, a estagnação econômica e a falta de trabalho para jovens que se formavam nas universidades e nas escolas de segundo grau; durante a primeira década do século XXI, verifica-se a persistência de políticas que elegem como valor supremo a estabilidade monetária em detrimento do crescimento econômico e da geração de empregos. Eis as causas reais da transformação que fazem do Brasil um país de emigrantes. Enquanto essas causas de fundo macroeconômico e de responsabilidade da sociedade e dos governos não tiverem solução, como tinham no passado por meio do projeto nacional de desenvolvimento, presume-se que a emigração prossiga e se amplie, a imagem do Brasil se deteriore, os constrangimentos políticos se agravem e os serviços de assistência no exterior se tornem ofegantes.
7.3 o turismo no Brasil Em países desenvolvidos, o turismo corresponde a uma das fontes de receita nacional de primeira ordem, ao lado das exportações, dos rendimentos de capitais aplicados no exterior e da rentabilidade de empresas operando do lado de fora. Nos países em processo de desenvolvimento, como o Brasil, o turismo representa fonte importante, porém muito inferior. Segundo dados da Embratur, Empresa Brasileira de Turismo, em 1984, vieram ao Brasil 1,85 milhão de turistas estrangeiros, cinco milhões em 2000 e 4,1 milhões em 2003, diminuição devida à crise social argentina. A receita também decresceu nessas últimas datas, de 4,2 para 3,4 bilhões de dólares, todavia elevou-se, em 2005, para 3,86 bilhões de dólares, consoante dados do Banco Central. O turismo doméstico ainda representa o maior movimento de viajantes pelo Brasil, 13,8 milhões em 1984, 38,2 em 2000. Desde a Segunda Guerra Mundial, como revela recente estudo de Maria Thereza Negrão de Mello, os países se esforçam para expandir a indústria sem chaminés, à qual soma-se hoje a indústria cultural. Um conjunto de bens e serviços ligados ao espaço nacional age de modo a transformá-lo em signo,
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este signo em produto e o produto em consumo. O signo Brasil configurouse nos anos 1920-30, mas o produto Brasil somente realizou seu salto de qualidade na virada do milênio e a passagem do produto Brasil ao consumo global de massa ainda está por vir. Viajar, a negócio, por curiosidade ou simplesmente lazer, permanece o móbil intencional dos indivíduos e a força propulsora do turismo. A capacidade de atração de um país se mede pela capacidade de gerência desse móbil intencional. Na era da globalização, dos pacotes de viagem, dos preços baixos, dos itinerários alternativos, enfim, do encurtamento do mundo, gerenciar o produto turismo requer constante adaptação operacional, bem como movimentação de bens e serviços complementares. Não basta ao espaço turístico ser signo, importa que o signo se reproduza na fotografia do instante, na lembrança do ambiente ou do negócio, no souvenir da loja, na saudade do bar, do gosto pelo prato, no encanto da música, do espetáculo, do contato humano e, assim, realimente o espaço com novo fluxo turístico. Durante a primeira metade do século XX, o Rio de Janeiro apropriou-se do signo Brasil. Sua gênese resulta de iniciativas que incluíram a cidade no roteiro turístico internacional: nos anos 1920, com a inauguração do hotel Copacabana Palace e do Touring Club do Brasil; na década seguinte, a inauguração da estátua do Cristo Redentor e o início dos desfiles de carnaval; no início dos anos 1940, as visitas de Walt Disney e Orson Welles, embaixadores da política de boa vizinhança do presidente Roosevelt. Exótica, sensual e sedutora, a cidade maravilhosa expandia seu charme pelo mundo, utilizando o cinema, na malandragem de um Zé Carioca, criação de Disney, ou de uma Carmen Miranda, personagem utilizada por Welles e pelo governo dos Estados Unidos, assim como a personagem de história em quadrinhos, em seu intento de fomentar e gerenciar a solidariedade continental; utilizando suas belezas naturais, montanhas e praias, e suas belezas humanas, o samba e a dança. No fim do século XX, contudo, ao mergulhar na insegurança, apesar de ainda exercer capacidade de atração relevante, o Rio de Janeiro perdia seu encanto: em 1988, recebeu 800 mil estrangeiros, em 1991 apenas 400 mil. Essa queda reflete movimento inverso ao crescente fluxo de turismo no mundo. No presente, o Rio de Janeiro não se confunde mais com o signo Brasil a mover a intencionalidade turística global ou nacional. Aquele signo se fragmenta em outros espaços, ao norte e ao sul, revelando, a bem da so-
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ciedade, capacidade de reação e adaptação aos ganhos e desafios do grande negócio chamado turismo. Atualmente, vem se criando um novo destino de turismo ao se oferecer e expandir serviços qualificados, preços adequados e infra-estrutura. Quando essas condições se realizam, o novo roteiro passa a integrar a rede e transforma o produto em consumo ou a capacidade de atração em visita. No Brasil, entre 1995 e 2002, agregaram-se duzentos e cinqüenta novos roteiros aos cinqüenta que eram utilizados. Essa expansão abriu espaço para o turismo ecológico, o rural, a pesca, o santuário religioso, não descuidando a chegada dos viajantes de terceira idade. As cidades da costa atlântica e a praia gerenciam da melhor forma o potencial turístico. Dentre as cidades mais visitadas por estrangeiros nos primeiros anos do século XXI figura o Rio de Janeiro, com mais de 30%, vindo em segundo lugar São Paulo, em razão do turismo de negócios, depois Salvador, Fortaleza, Recife, Foz do Iguaçu e outras que atraem, cada qual, cerca de 5% do total de visitantes. Os viajantes se deslocam cada vez mais ao longo da costa, em busca do repouso e da praia, como em Santa Catarina. Mas a grande cidade apresenta vantagens para segmentos específicos do turismo, como o evento internacional, associado ao turismo de negócios ou à cooperação científica. No início de seu governo, Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Plano Nacional do Turismo, particularmente voltado para esse segmento, que atraiu, em 2004, treze eventos, gerando receita de 50 milhões de dólares. Apesar dessa pluralidade de atração e de consumo, muito longe está o País de esgotar o signo Brasil e de se aproximar do desempenho dos países do Norte. Estado e sociedade compartilham responsabilidades na promoção do turismo, de forma equilibrada e complementar. Ao Estado cabe prover condições logísticas favoráveis, porém ao privado cabe operacionalizar o produto Brasil. Essa associação supõe a conexão entre o nacional e o internacional, sem o que não se alcançam resultados de expansão. Ademais, ao lado doméstico cabe realizar outras condições que no Brasil, freqüentemente, obstruem a expansão, como: companhias aéreas e redes hoteleiras competitivas em nível sistêmico global, estradas, sinalização, sustentabilidade dos ambientes ecológicos, limpeza e segurança públicas. Como se percebe, o turismo coloca em jogo um conjunto de fatores que interagem e determinam também o nível de bem-estar da nação. Qualquer falha grave pode comprometer o sistema como um todo.
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Outra conexão é relevante, aquela existente entre turismo e indústria cultural. O sistema de valores que a cultura compõe se difunde por meio da mensagem artístico-cultural. Em suas mais diversas versões, a mensagem artístico-cultural integra o impulso intencional que se localiza na origem da viagem. Mas o processo produtivo transforma esse sistema rapidamente, em razão da inovação tecnológica. Do teatro ao cinema, à telenovela, do concerto ao cassete, ao CD, DVD, iPod etc. A transformação conduz à massificação do consumo. Desse modo, a produção cultural acede à economia de escala sem descolar-se do processo social, raiz de sua identidade. A indústria cultural fomenta o turismo, porém reflete desigualdades tecnológicas entre as nações. Observações dessa natureza formuladas por Celso Furtado (ver o livro organizado por Álvarez) chamam a atenção dos responsáveis pelos parâmetros da política cultural em âmbito nacional. Elas resultam ainda mais incisivas quando se mira o espaço turístico de um bloco, como o Mercosul. A indústria cultural, no presente, compõe variável importante dos processos de integração em curso no mundo. No Mercosul, segundo José Flávio Sombra Saraiva, a configuração da identidade cultural transnacional por sobre a integração meramente comercialista age como se fosse alternativa concreta para consolidação de seu sistema produtivo, afeta a capacidade de negociação intra e extrabloco e amplia a empresa e o emprego de seus membros. Tudo nos conduz à conclusão de que a indústria cultural atinge o signo de determinado país, o signo Brasil, por exemplo, de determinado bloco, o Mercosul, por exemplo, modificando o potencial turístico. Se, para alguns teóricos, a indústria cultural corresponde a poderoso instrumento ideológico a serviço de determinadas identidades, para um país como o Brasil agrega-se ao processo de desenvolvimento como um de seus instrumentos. Por volta de 2000, correspondia a 1% do PIB e absorvia menos de um milhão de trabalhadores. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, responsável pela classificação dos componentes do PIB, inclui nas indústrias culturais produção, distribuição e projeção de filmes, fitas e vídeos, bem como as empresas que operam os setores de rádio e televisão. Exclui, por exemplo, o setor gráfico, ou seja, livros e revistas, e não inclui determinados segmentos de atividades como as empresas vinculadas às atividades recreativas, culturais e desportivas. A balança do comércio de bens e serviços culturais, incluindo livros, músicas e direitos autorais, revelava, então, um déficit superior a meio bilhão de dólares.
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Ao considerarem-se, em suma, os componentes da indústria cultural, ainda sem classificação clara capaz de produzir perfil adequado para o caso brasileiro, percebe-se a amplitude do bloco de produtos e serviços que mexem com a estética e o intelecto: livros, revistas, jornais, cinema e vídeo, televisão e rádio, indústria fonográfica, Internet. Esse conjunto vincula-se à identidade cultural do País, mas depende da organização empresarial e do nível de apropriação da tecnologia. Afeta o emprego e a renda. Condiciona a natureza e o alcance do signo Brasil e, por meio dele, a capacidade de atração turística do País. O produto Brasil vem se aperfeiçoando nos últimos anos e os indicadores revelam que o turismo está em fase de contribuir para a geração de renda interna e para a expansão da receita externa como ramo crescente de atividades. Na medida que incorpora a cultura ao signo Brasil, especialmente se o faz por via de inovação tecnológica, presta outro serviço à humanidade: espalhar o perfil plural, multiétnico e multicultural sobre um mundo de uniformização global, em boa dose perversa, ou de fundamentalismos de todo gênero, também nocivos à convivência humana. Como se observou anteriormente, a diplomacia brasileira vem reagindo aos problemas e aos ganhos da emigração, protegendo os direitos dos emigrados que, de fora, alimentam com seu trabalho as famílias e o balanço de pagamentos. Mas ainda não despertou para a grandeza do negócio que o turismo representa no mundo atual. Assim como a emigração traduz a imagem de País pobre e insuficiente, o turismo também carrega a imagem do País multicultural, aberto, alegre e satisfeito consigo mesmo. Converter, de algum modo, consulados e embaixadas em agências de turismo não parece desproporcional aos benefícios esperados.
7.4 da cooperação técnica à cooperação científica Entre os anos 1960 e o início da década de 1990, a sociedade brasileira conectou-se com países desenvolvidos por meio de aproximadamente mil e trezentos projetos de cooperação técnica internacional, que envolveram três centenas de agências nacionais ou estrangeiras. Essa atividade foi incorporada à política exterior do Brasil, conduzida, então, pelo paradigma desenvolvimentista, como variável dependente. A cooperação técnica produzia efeitos coletivos, atingindo massas populacionais em dimensão ampla e exercia, conseqüentemente, função corretiva ao modelo de desenvolvimento que se
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conduzia e que concentrava riqueza. Consertava o modelo, esparramando pela sociedade seus efeitos. Socializava o desenvolvimento. Uma experiência de alcance tão vasto como aquela que estava em curso no Brasil influía sobre a mutação do conceito de cooperação técnica internacional. A ONU o entendera, até os anos 1960, como ajuda ou assistência e, desde então, entenderá como promoção de capacitação para o desenvolvimento sustentável. Essa mutação refletia, precisamente, a intencionalidade da política exterior do Brasil, à qual repugnava ajuda e assistência vindas de fora. Ao tempo que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) absorvia esse avanço conceitual e operacional, organizou-se no Brasil, em 1969, o Sistema Nacional de Cooperação Técnica, com base política no Departamento de Cooperação Científica, Técnica e Tecnológica (DCT) do Itamaray, e operacional na Secretaria de Cooperação Econômica e Técnica Internacional (Subin), vinculada à Presidência da República. Também envolviam-se com o sistema a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Apenas em 1987 criou-se a Agência Brasileira de Cooperação, com sede no Itamaraty, extinguindo-se a Divisão de Cooperação Técnica, que era parte do DCT, e a Subin. O período mais fecundo da cooperação técnica recebida pelo Brasil situase entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1980 e foi impulsionado tanto por meio de projetos do PNUD quanto de projetos bilaterais com um seleto elenco de países (Alemanha, França, Japão, Canadá, Itália e Grã-Bretanha). Técnicos e peritos da melhor inteligência mundial sentiam-se atraídos pelas condições favoráveis oferecidas pelo Brasil, o impulso do desenvolvimentismo que a todos contaminava, a segurança quanto ao êxito dos projetos e a extensão de seus benefícios à sociedade. A cooperação voltava-se para atividades diversas, como treinamento de pessoal, pesquisa, produção, produtividade, conservação e embalagem de alimentos, e dava suporte ao desenvolvimento em quase todos os seus setores: indústria, comunicação, desenvolvimento regional, agricultura, mineração, alimentação, gerência, universidade. A colaboração entre as inteligências estrangeira e nacional resultava na socialização do desenvolvimento em três dimensões: capacitação pessoal, difusão do bem-estar social e avanço de setores estratégicos, particularmente as engenharias, as telecomunicações e as indústrias de base. O sucesso da experiência fez avançar o País, durante os anos 1980, de receptor
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a prestador de cooperação técnica, quando demandas faziam chegar projetos hispano-americanos e africanos. A bem-sucedida experiência brasileira de cooperação técnica internacional inseriu-se no processo de desenvolvimento nacional, cujo epicentro foram os anos 1970. Tinha objetivos próprios, que eram os resultados concretos e específicos a produzir, servindo apenas secundariamente à difusão de boa imagem no exterior e ao reforço de vínculos com países desenvolvidos e do Terceiro Mundo. Por meio dela, a nação extraiu da inteligência internacional conhecimentos, técnicas e tecnologia. Nas relações internacionais, as fronteiras entre cooperação técnica, econômica, científica e tecnológica são tênues, contudo, perceptíveis, visto que seus mecanismos são diferenciados, embora por vezes pareçam imbricados. Quando aplicado, o conhecimento científico torna-se inovação tecnológica e, nessa condição, propriedade de empresas que se espalham pelo mundo, dispostas a protegê-la e explorá-la, perseguindo interesses econômicos. Esse nível da cooperação empresarial se eleva acima das atividades conceituadas como cooperação técnica propriamente dita. A universidade, por meio da pesquisa e da produção de conhecimento científico, abre aos países desenvolvidos e em desenvolvimento sua capacidade específica de cooperação, que também aproxima povos de níveis diferenciados. O Brasil não deixou de recorrer à cooperação acadêmica e nela viu uma esfera superior à cooperação técnica, devido ao fim a que se destinava, dado que poderia agregar outros requisitos ao processo de capacitação para o desenvolvimento e burlar, de certo modo, o rígido esquema vigente de relações econômicas internacionais subordinadas aos interesses do mercado. A cooperação científica que se operou entre universidades dos países do centro desenvolvido e universidades brasileiras também evoluiu. Inicialmente assistencial, tornou-se neocolonial, feita de parcerias, porém, em determinado momento, avançada, ou seja, apta a produzir conhecimento. Esses três atributos foram aplicados por Isabel Canto em sua análise da experiência histórica recente. A transformação de qualidade da ciência brasileira e a conquista da maturidade científica estiveram, portanto, atreladas à cooperação acadêmica internacional. O aparecimento tardio da universidade brasileira, relativamente a outros países do hemisfério, todavia a consistência do projeto de desenvolvimento posto em marcha por Vargas e implementado por governos posteriores suge-
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riam a cooperação acadêmica como mecanismo de aceleração científica. A criação da Universidade de São Paulo, em 1934, envolveu a participação de cientistas sociais franceses e pesquisadores italianos e alemães nas ciências exatas e naturais. Quando se criou a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1948, pensava-se, precisamente, em ampliar essa articulação com o exterior. O impulso à cooperação acadêmica internacional seria notável desde a implantação de duas agências financiadoras nos anos 1950, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPq. O regime militar deu continuidade às iniciativas de reforço da universidade, cuja atuação integrava o projeto de desenvolvimento como suporte indispensável. Para criar condições favoráveis às atividades de pesquisa nas universidades públicas, as agências de fomento foram instruídas a dotá-las de massa crítica, enviando estudantes ao exterior para cursos de pós-graduação e estimulando a vinda de professores ao Brasil. O laço entre educação superior, ciência e desenvolvimento econômico robusteceu-se desde a década de 1960. O financiamento de bolsas no exterior atendia a necessidades estratégicas do planejamento econômico e contaria, além das duas agências federais, com a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo — Fapesp. A partir dos anos 1970, aparecem programas que estabelecem parcerias bilaterais ou multilaterais destinadas à formação dirigida de doutores, em ordem decrescente, realizada nos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Alemanha, Espanha e Canadá, com prioridade também decrescente para ciências exatas e da terra, biológicas, engenharias, ciências da saúde, agrárias, sociais aplicadas, humanas e letras. Apenas a Capes, depois de manter cerca de quatro mil bolsas de doutorado no exterior durante décadas, ainda custeia duas mil e cem em 2006. Os esforços conjugados dessas agências dotaram as universidades brasileiras de docentes e pesquisadores em número suficiente para formar seus próprios quadros e aproximar, no presente, o padrão de qualidade institucional com suas matrizes no exterior. A colaboração vincula, pois, universidades do Norte e do Brasil, estabelecendo uma cooperação científica horizontal destinada à formação de recursos humanos, porém institucionalmente dependente. Embora não se extinga esse modelo tradicional, outro adviria por meio da execução de projetos de pesquisa conjunta com aqueles países, viáveis em razão do
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planejamento da cooperação e regulados por acordos formais. Ingressa-se, destarte, em uma etapa mais avançada, rumo à cooperação igualitária que tende à simetria intelectual. Aproximadamente 20% dos acadêmicos brasileiros interagem com parceiros do exterior por período superior a três anos, ao termo do século XX. Em conclusão, percebe-se como a cooperação acadêmica internacional do Brasil evoluiu de assistencial a neocolonial, desta à simetria, de individual a institucional, sem que os modelos se excluíssem, entretanto com efeitos sobre a modernização da universidade brasileira, que atinge, no século XXI, níveis de desempenho comparável aos países do centro desenvolvido em vários domínios do conhecimento científico. A formação da comunidade científica brasileira deu-se por impulsos próprios que foram, todavia, turbinados em ambiente de contatos intersocietários.
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8 o Brasil e seus vizinhos da américa do Sul
LeIturaS recomeNdadaS: CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2007. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Mercosul, 1870-2003). Rio de Janeiro: Revan, 2003. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Estado nacional e política internacional na América Latina. São Paulo: Ensaio, 1995. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. (Org.). Relações Internacionais: visões do Brasil e da América Latina. Brasília: IBRI, 2003. MADRID, Eduardo. Argentina-Brasil: La suma del sur. Buenos Aires: Caiar Bleu, 2003. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. (Org.). Argentina: visões brasileiras. Brasília: IPRI, 2000. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Venezuela: visões brasileiras. Brasília: IPRI, 2003. ARAÚJO, Heloisa Vilhena de. (Org.). Os países da Comunidade Andina. Brasília, IPRI-FUNAG, 2004. 2 v. BERNAL-MEZA, Raúl. América Latina en el Mundo. Buenos Aires: Grupo Editor Laitnoamericano, 2005. CERVO, Amado Luiz; DÖPCKE, Wolfgang. Relações internacionais dos países americanos; vertentes da História. Brasília: Linha Gráfica, 1994. CERVO, Amado Luiz; RAPOPORT, Mario. (Orgs.). História do Cone Sul. Rio de Janeiro: Revan, 1998 (Traduzido para o espanhol: El Cono Sur: una historia común. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
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as relações regIonaIs 2001). FERRER, Aldo. El capitalismo argentino. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1998. FERRER, Aldo. Hechos y ficciones de la globalización. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1997. SCENNA, Miguel Angel. Argentina-Brasil: cuatro siglos de rivalidad. Buenos Aires: La Bastilla, 1975. MIRANDA, Raquel C. de C. P. M. de. As relações em eixo franco-alemãs e as relações em eixo argentino-brasileiras: gênese dos processos de integração. 2005. Tese (Doutorado). Brasília: Universidade de Brasília. COUTO, Leandro Freitas. O horizonte regional do Brasil e a construção da América do Sul (1990-2005). 2006. Dissertação (Mestrado). Brasília: Universidade de Brasília. VALDÉS, Eduardo Devés. Desde la Cepal al neoliberalismo, 1950-1990. In: El pensamiento latinoamericano en el siglo XX. Buenos Aires: Biblos, 2003. t. II. BORON, Atilio A. Estado, capitalismo y democracia en América Latina. Buenos Aires: FLACSO, 2003. LLADÓS, J. M.; GUIMARÃES, S. P. Perspectivas Brasil e Argentina. Brasília: IPRI, s.d. 2 v. FRIGERIO, Alejandro; RIBEIRO, Gustavo Lins. (Orgs.). Argentinos e brasileiros: encontros, imagens e estereótipos. Petrópolis: Vozes, 2002. HARNECKER, Marta. La izquierda después de Seattle. Madrid: Siglo Veinteuno, 2002.
8.1 o olhar sobre a vizinhança A idéia de que o Brasil, desde sua Independência, voltou-se para o Atlântico e deu as costas a seus vizinhos da América do Sul conta com respaldo nos estudos disponíveis sobre suas relações regionais. Uma vasta bibliografia sobre as relações internacionais dos países da América Latina vem relacionada nas leituras recomendadas para este capítulo, bem como para o Capítulo 6, relativo à formação dos blocos. Este capítulo se destina a identificar e avaliar as correntes de interpretação desenvolvidas pelos estudos acerca das relações entre o Brasil e seus vizinhos da América do Sul, mais precisamente, recolher os conceitos formulados ou utilizados pelos estudiosos e integrá-los à nossa própria análise das relações regionais. O levantamento dos temas focalizados por essa literatura leva à constatação de que há muita desigualdade no trato das relações entre os países da região. O Cone Sul concentra a maior parte dos estudos, referentes às relações regionais ou bilaterais, ao passo que os países andinos carecem de atenção, tanto sob o ângulo das formações nacionais quanto das relações bilaterais e regionais. O Cone Sul, em especial as relações entre Brasil e Argentina, atraía o interesse de estudiosos já no século XIX, porém esse interesse levou à efervescência dos espíritos desde a gênese do processo de integração na década de 1980. Uma vista sobre a literatura revela que a região conta de forma desproporcional com a maior parte das publicações, das dissertações de
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mestrado e das teses de doutorado. A empatia argentino-brasileira das inteligências, fenômeno que já definimos nesta obra, é perceptível no elevado número de encontros que reunia pesquisadores, empresários, diplomatas e acadêmicos de ambos os países ou da região. Tal intercâmbio revelou-se fecundo para a produção de conhecimento, uma vez que envolveu universidades e instituições diversas, incluindo agências de fomento à pesquisa. O volume de publicações aumentou de forma exponencial em conseqüência da curiosidade e do interesse manifesto pelo outro. A ênfase no Cone Sul equivale, inversamente, à carência de estudos brasileiros sobre os países da Comunidade Andina, apesar dos esforços despendidos nos últimos anos pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty. Em pequena medida, porém, nesse contexto de escassez, a Venezuela, grande parceiro potencial do Brasil ao norte, é uma exceção. Embora conste entre seus objetivos, o Tratado de Cooperação Amazônica, de 1978, não moveu a comunidade acadêmica para o estudo dessa região, de seus países, como a Colômbia, a Bolívia, o Peru e o Equador, menos ainda dos pequenos países, como o Suriname e a Guiana. Para elaborar conceitos que dêem inteligibilidade às relações do Brasil com seus vizinhos, faz-se mister avaliar esse estoque de conhecimentos disponíveis e agregar-lhes a indispensável reflexão. Não são apenas resultados cognitivos que se procuram, mas também formular questões práticas que envolvem o processo decisório e as políticas exteriores. Quais são os pressupostos mentais que condicionam as atitudes dos povos e dos governos quando contemplam as relações com os vizinhos? Que visões do outro ou imagens se formam e que padrões de comportamento sugerem? Aplicamos neste exercício voltado ao estudo das relações com os vizinhos o método de análise que se revelou útil para elaboração dos conceitos paradigmáticos sobre a política exterior do Brasil, expostos no Capítulo 3.
8.2 Bases mentais e culturais das relações do Brasil com seus vizinhos A política exterior e as relações do Brasil com os vizinhos da América do Sul vêm sendo condicionadas por algumas idéias que se modificam com o tempo, como se modificam as linhas de ação. As mentes evoluem, também a prática política, mas existe um nexo entre ambas, como se verá a seguir. Chamamos de pressupostos mentais a um conjunto de idéias que presidem
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as apreciações e as imagens acerca dos vizinhos e condicionam a conduta dos governos a seu respeito.
8.2.1 carências do pensamento cepalino Já se observou neste livro quanto foi construtivo o pensamento da Cepal, ao inspirar as políticas de industrialização, expansão do emprego e da renda do trabalhador, do consumo interno e da substituição de importações, tudo a se fazer com o objetivo de superar dependências estruturais entre países do centro desenvolvido e da periferia em desenvolvimento. Certas carências desse pensamento agiram, todavia, de modo a obstruir possibilidades intrínsecas ao processo de desenvolvimento, tanto no que diz respeito às relações internacionais, em geral, quanto entre os países da América do Sul. Os economistas da Cepal não permitiram que os dirigentes brasileiros e latino-americanos percebessem com clareza que o comércio de substituição de importações devesse ser tomado como fase inicial, prévia e momentânea, a ser superada pela substituição de exportações primárias por exportações com maior valor agregado. Por tal razão, os países da América Latina, que tiraram do pensamento cepalino inspiração para seus planos de desenvolvimento, voltaram-se sobre si mesmos, fecharam-se e não promoveram o comércio entre si, durante décadas. A Associação Latino-Americana de Livre Comércio — Alalc, criada em 1960, não empolgou as sociedades e os dirigentes, por isso não produziu efeitos. A voz do Brasil, quando a diplomacia brasileira pretendeu fazer a transição para o segundo modelo de comércio exterior, após a fase de industrialização promovida por Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek no momento em que aparecia a Alalc, soava rouca e sem alcance para seus vizinhos. Esses, cuja industrialização ainda era embrionária, mantinham o modelo substitutivo de importações. Em suma, o pensamento da Cepal propunha um modelo de desenvolvimento introspectivo que criava obstáculo conceitual ao incremento do comércio entre os países da América Latina e, por tal razão, contribuía para mantê-los afastados uns dos outros, em densidade de relações regionais baixa. Quando as experiências neoliberais dos anos 1990 se estenderam aos países da América Latina, a Cepal adaptou seu pensamento por meio do conceito de regionalismo aberto. Sugeria-lhes, então, que abrissem seus mercados, sistemas produtivos e de serviço, porém firmassem acordos regionais de integração com o fim de precaver-se contra possíveis efeitos nocivos de uma
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abertura indiscriminada. Um jogo de equilíbrio entre abertura, desenvolvimento introspectivo, regionalização. Essa proposta, contudo, pendia mais para o neoliberalismo do que para o fortalecimento das economias nacionais por meio da integração produtiva que pusesse a seu serviço a liberalização e a expansão do comércio regional. Pendia para fora do espaço latino-americano, sendo o externo visto como fonte de insumos para o progresso. Tomando-se em consideração as políticas exteriores e as relações regionais em seu todo, a maior carência do pensamento cepalino como fonte de inspiração para decisões práticas situa-se em outra esfera. Os economistas da Cepal não formularam proposta alguma relativa à internacionalização das economias nacionais dos países da região pela via da expansão de seus fatores produtivos internos, empresas e serviços, sobre a vizinhança. Por essa ou por outras razões, os governos se furtaram historicamente a incluir essa expansão entre suas estratégias regionais até o aparecimento do Estado logístico, que não tirou inspiração do pensamento cepalino, como adiante se verá. O processo de desenvolvimento, sem internacionalização econômica para fora, a começar naturalmente pela vizinhança, carrega uma insuficiência congênita, que prossegue como fator de manutenção do atraso regional relativamente aos países de centro, no contexto da evolução do capitalismo.
8.2.2 Gerência das capacidades de poder O pesquisador argentino Aldo Ferrer torna explícito esse pressuposto mental e político das relações entre os países da América Latina. Em seus estudos sobre a evolução do capitalismo, atribui papel importante à gerência das capacidades de poder, especialmente quando busca explicações para as relações internacionais dos países da América Latina e para seu nível comparado de desenvolvimento. Algumas nações, futuras nações de centro, criam, no seio do sistema capitalista, núcleos de conhecimento, com auxílio da ciência moderna, e depois aplicam esse conhecimento ao processo produtivo por meio de simbiose chamada inovação tecnológica. Esse avanço diferencia umas de outras nações. As vantagens comparativas entre as nações pendem para o desequilíbrio na evolução do capitalismo, quando muitas nações — o chamado mundo subdesenvolvido ou periferia — não acompanham o progresso tecnológico do centro desenvolvido. Tal descompasso mede a distância entre desenvolvimento e atraso.
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Um fosso separa as nações que permanecem voltadas para o uso de vantagens comparativas naturais, como o solo, o clima, os recursos naturais, todo o setor primário da economia, de outras, que agregam o uso de suas vantagens comparativas intangíveis, o conhecimento e a inovação. O mais importante, para Ferrer, reside na demonstração de se poder resolver o problema do desenvolvimento apenas quando se faz uso de vantagens comparativas intangíveis. A América Latina, desde o período colonial até os anos 193040, ancorou sua economia sobre vantagens comparativas naturais e por isso permaneceu subdesenvolvida. No seio do sistema capitalista, o desafio do desenvolvimento somente encontra solução quando uma nação, depois de criar seu núcleo de conhecimento e de tecnologia, é capaz de gerenciar tais vantagens comparativas intangíveis nas relações, primeiro com a vizinhança, depois em âmbito geográfico ampliado. Somente nessa fase a nação aciona suas capacidades de poder nas relações internacionais, de modo a operar em meio ao contraste das sociedades nacionais: estruturas de produção assimétricas, dominação, dependência, poder político e estratégico, níveis de renda e consumo, de bem-estar, estoque de capital. Com efeito, esses elementos se distribuem entre as nações pelo critério das desigualdades determinado pelo ritmo de criação de capacidades de poder. O enfoque realista do conceito de gerência das capacidades de poder leva à conclusão segundo a qual, no sistema capitalista, as relações internacionais são conduzidas pelo jogo dos interesses, não pelo da boa vontade ou caridade. As relações de um país com a vizinhança condicionam, pois, as possibilidades do desenvolvimento, acelerando-o quando incorporam em seus cálculos estratégicos vantagens comparativas intangíveis que dão impulso criador às capacidades de poder. Quando o Brasil realiza o objetivo de fazer da América do Sul plataforma de expansão de suas empresas está gerenciando suas capacidades de poder. O mesmo se conclui quando seu governo resiste à implantação da Alca segundo modelo que fortalece sem reciprocidade real as capacidades de poder dos Estados Unidos e obstrui, seja a vocação industrial do Brasil, seja a expansão de seus negócios sobre a vizinhança.
8.2.3 emergência do estado logístico Como já se observou no Capítulo 3, o aparecimento do Estado desenvolvimentista deve-se a padrões de conduta dos países da América Latina, definidos nos anos 1930 e aperfeiçoados posteriormente. Mas a inteligência
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política dos dirigentes da América Latina também inventou o Estado normal ou neoliberal e aplicou, nos anos 1990, os novos parâmetros de conduta com maior coerência, relativamente a qualquer outra região do planeta. O malogro das experiências neoliberais é de todos os povos da região bem conhecido na área econômica e social, porém, pela força do contraste, em seu seio germinou o Estado logístico, por certo como importação do centro desenvolvido, pela via da imitação ou reprodução de conduta. Se alguns países se anteciparam e aprofundaram o modelo neoliberal, como Argentina, Bolívia, Peru e Equador, outros introduziram uma alternativa de controle e inauguraram o modelo logístico, como Chile e Brasil. Em toda parte, o Estado minguou, ao retirar-se da atividade econômica, em princípio confiada ao mercado. Apenas alguns Estados mais espertos chamam a si a responsabilidade de dar suporte e apoio logístico às forças organizadas da sociedade na realização de seus interesses, acompanhando a nação no fortalecimento de sua posição diante do mundo. Três requisitos da conduta logística modificam as relações do Brasil com seus vizinhos nos anos recentes e contribuem para a realização de suas capacidades de poder. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que a interdependência real à época da globalização supõe a incorporação das vantagens comparativas intangíveis à gerência das relações exteriores. Em segundo lugar, o encaminhamento da integração regional de modo a promover as capacidades de poder, tanto próprias quanto dos membros do bloco em construção. Em terceiro lugar, a conversão da América do Sul em plataforma de expansão dos negócios brasileiros de maneira a alavancar o processo de internacionalização para fora da economia nacional. O primeiro e o terceiro requisitos são mais perceptíveis na ação externa porque decorrem de visão de dentro, que se nutre dos interesses nacionais e, simultaneamente, os alimenta. O segundo é menos presente na estratégia regional do Brasil. A conduta logística da política exterior e das relações do Brasil com seus vizinhos não corresponde, como vemos, a exigências do pensamento cepalino. Supõe, ademais, o envolvimento da economia e da sociedade. O governo de Fernando Henrique Cardoso deu os primeiros passos por esse caminho, criando condições mentais e políticas favoráveis (Cúpula dos Países da América do Sul, Programa de Integração da Infra-Estrutura — IIRSA) e apoiando investimentos brasileiros na redondeza. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva manifesta maior determinação em apoiar a expansão das empresas
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brasileiras nos países da América do Sul, seja pela aquisição de empresas locais, seja pela associação ou por outras modalidades de investimento direto. Com esse avanço, no que diz respeito ao modelo de Estado, o País ultrapassa a época do Estado empresário e interventor e alcança aquela em que a sociedade anda por si, entretanto, conta com orientação e apoio, visto que na América do Sul ao governo ainda cabe, apesar do papel do mercado, criar condições para estabelecer a real interdependência em razão dos métodos com que os países centrais fazem política internacional. Em vista de sua superioridade econômica e tecnológica e não apenas geográfica e populacional, o trato conferido pelo Brasil a seus vizinhos pode resultar, em conseqüência e por exigências da conduta logística, no aprofundamento das assimetrias regionais. Para limitar e quiçá superar esses e outros efeitos inconvenientes à boa convivência, o governo brasileiro considera oportuno temperar sua conduta pelo paradigma da cordialidade oficial, que constitui sólido pressuposto mental da política regional do Brasil, de origem remota e forte impacto sobre o processo decisório. A cordialidade oficial germinou por trás da idéia de América do Sul.
8.2.4 a idéia de américa do Sul A noção de vizinhança evoluiu historicamente no imaginário popular, no conceito geopolítico e nas preocupações da diplomacia brasileira. Para chegar ao que Celso Lafer denominou de componente da identidade internacional do Brasil, a vizinhança sofreu uma restrictio termini. No século XIX, à época do pan-americanismo, todos os americanos eram nossos vizinhos. Depois, à época do pan-latinismo, o conceito de América Latina toma conta do imaginário. Desde o barão do Rio Brando, no início do século XX, o conceito de América do Sul passou a se impor. Na medida que se operava a restrição geográfica do conceito de vizinhança, o regional passou a adquirir peso no pensamento dos brasileiros e na ação externa do governo e da sociedade. Leandro Freitas Couto demonstra, contudo, que foi necessário esperar pelo fim do século XX, depois de 1990, para perceber como o conceito de América do Sul adquire nova e imponente visibilidade. Com efeito, iniciativas brasileiras conferem densidade ao conceito e às relações regionais do Brasil, de forma crescente, durante a última década do século XX. O presidente Itamar Franco lança, em 1993, a idéia de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa) para compensar o Nafta, a zona
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norte-americana, e a Alca, a zona hemisférica. Também é brasileira a idéia de convocar e tornar regular a Cúpula Sul-Americana, desde a primeira, realizada em Brasília no ano 2000. A de 2002 lançou a Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura da América do Sul (IIRSA). A de 2004 lançou a Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), cuja primeira cúpula formal se reuniu em 2005. Outras iniciativas brasileiras também passarão a integrar o projeto de desenvolvimento sul-americano ao qual se pretende associar os vizinhos da América do Sul: assim, o Ministério de Ciência e Tecnologia criou o Prosul, programa voltado ao desenvolvimento científico e tecnológico, e o governo de Luiz Inácio Lula da Silva deu origem ao PSCI, Programa de Substituição Competitiva de Importações, com o fim de promover a integração produtiva. Durante o governo Lula, a América do Sul torna-se prioridade externa. Projetos de integração da infra-estrutura, de integração energética, ampliação do Mercosul mediante adesão de novos membros, o acordo entre Mercosul e Comunidade Andina, o estímulo a investimentos diretos brasileiros, tudo converge para criar o pólo de poder mediante a conformação da unidade política, econômica e de segurança dos países da América do Sul. Por certo, a construção da América do Sul, projeto estratégico brasileiro, revela-se tarefa difícil, a ser ainda mensurada quanto aos resultados. Se existe uma América do Sul política, feita em sua grande maioria de governos de esquerda que criam ambiente regional favorável ao reforço do pólo de poder, existem duas Américas do Sul econômicas, uma liberal e primária, que busca o acordo de livre-comércio com os Estados Unidos, outra industrial e desenvolvimentista, que se volta ao aprofundamento da integração entre os vizinhos. Chile, Colômbia e Equador de um lado, Argentina, Brasil e Venezuela de outro. São parcelas desproporcionais a embalar as relações internacionais e os modelos regionais, por isso, em tais circunstâncias, o projeto brasileiro de América do Sul detém mais chance de vingar. Após o empobrecimento geral provocado pelo neoliberalismo — em 2004, segundo a Cepal, o conjunto latino-americano ainda somava mais de 200 milhões de pobres, 43% da população — a estabilidade monetária e política introduziu longo período de crescimento econômico. Por vários anos, contudo, os países da região ainda se perguntam qual o modelo que substituirá o neoliberalismo dos anos 1990. A indefinição política e a necessidade de superar as crises herdadas fomentou nacionalismos, empáfias políticas, também a in-
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tegração, o retorno do Estado como condutor da sociedade, nacionalizações, populismos, esquerdas vistas como responsáveis ou irresponsáveis. Fortes reivindicações econômicas de empregados e desempregados, de classes sociais e de etnias complicam esse cenário, tornando-o terreno fecundo para idéias incompatíveis de América do Sul, no entanto consistentes e estáveis, como o nacionalismo radical e indigenista de Evo Morales na Bolívia, a revolução bolivariana na Venezuela e o globalismo logístico brasileiro.
8.2.5 o paradigma da cordialidade oficial brasileira A cordialidade oficial entendida como padrão de conduta aplicado ao trato conferido pelo governo a seus vizinhos corresponde a uma invenção do pensamento diplomático brasileiro, cujas raízes foram lançadas em tempos remotos. Com efeito, quem primeiro formulou um pensamento nessa linha foi, em nosso entender, o visconde do Rio Branco. A relevância que suas idéias ostentam advém do fato de haver conduzido a política exterior do Brasil desde meados do século XIX por cerca de vinte anos. O visconde, pai do futuro barão do Rio Branco, preocupava-se em estabelecer o equilíbrio entre estadistas moderados, como o visconde de Abaeté, o marquês de Olinda e o visconde de Sinimbu, e realistas, como o visconde do Uruguai, o marquês de Paraná e o barão de Cotegipe. O primeiro grupo superdimensionava a negociação e a diplomacia ao passo que o segundo colocava a vontade nacional acima do destino e era propenso ao uso da força. Nessa época, em que as intervenções e a presença brasileira no Prata eram uma rotina, cindia-se a opinião quanto ao modo de fazer política. O visconde do Rio Branco formulou pensamento próprio, uma espécie de síntese das correntes em voga. Convinha ao Brasil, pensava, uma política firme, que considerasse os interesses da economia, da definição das fronteiras e da segurança, mas que ascendesse do comércio e do aumento da riqueza a maior grau de civilização para todos os países. O propósito de realizar em comum, agregando boas intenções e boa vontade a iniciativas concretas e provocando o crescimento da civilização em todos os países, em benefício de cada um, constitui o traço central da cordialidade oficial no pensamento do visconde do Rio Branco. Na passagem do século XIX para o XX, o barão do Rio Branco avançou nessa linha de pensamento. A cordialidade haveria de prevalecer no trato diplomático entre os países da América do Sul, tornando-se garantia de paz regional, em meio aos conflitos interimperialistas das grandes potências, os
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quais prenunciavam a primeira conflagração global. O padrão de conduta assenta na percepção da grandeza nacional que por si torna supérfluos sentimentos de rivalidade ou hostilidade por parte de dirigentes brasileiros. O barão, entretanto, não eleva o padrão de qualidade conceitual alcançado por seu pai, visto centrar seu modo de ver as relações com a vizinhança sobre o foco da segurança, não mais sobre aquele da comum civilização a engrandecer nas relações com os vizinhos por meio do aumento da riqueza. A partir de 1930, atinge-se novo patamar na evolução desse pensamento. Quando a diplomacia norte-americana se dispunha a castigar a Argentina em razão de sua neutralidade diante da Segunda Guerra Mundial e da Terceira Posição no contexto da Guerra Fria, Getúlio Vargas, embora aliado dos Estados Unidos, negou-se a fazer parte do jogo, em nome dessa tradição de cordialidade, já então incorporada à diplomacia brasileira. Esse passo revela que a cordialidade oficial pesa sobre as relações bilaterais ou regionais, como também sobre as relações triangulares que envolvam hegemonias externas à área. Apesar de, por vezes, acirrar a emulação e mesmo a rivalidade entre países da América do Sul, o regime militar manteve o padrão de conduta. Rompeu-se a cordialidade oficial por alguns meses apenas, durante o último ano do governo de Ernesto Geisel, quando o chanceler Azeredo da Silveira suspendeu as negociações em curso acerca do aproveitamento energético dos rios da Bacia do Prata e estava disposto a jogar duro contra a Argentina em razão da resistência que oferecia ao projeto brasileiro de Itaipu. Uma nova lição advém dessa crise que criou o vazio político e projetou o paradigma de conduta a outro nível: o superior interesse nacional, quando contrariado em aspecto essencial, autoriza romper com a cordialidade oficial. O governo de João Batista Figueiredo julgou conveniente restabelecê-la de pronto e assim procedeu com o Acordo Tripartite a respeito do aproveitamento dos rios e, logo depois, com um acordo de cooperação nuclear. A cordialidade oficial explica o baixo perfil da diplomacia brasileira com relação aos vizinhos, quase sempre se revelando menor do que é, disposta a suportar gestos grandiloqüentes ou a empáfia permanente de um ou outro governo. Quando assim não se porta, como no Conselho da Liga das Nações durante a década de 1920, reivindicando a representação regional, ou no presente, reivindicando a mesma representação no Conselho de Segurança da ONU, suscita reações hostis dos vizinhos. Assim como dela se espera uma
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reação positiva por parte dos governos vizinhos, a cordialidade oficial também serve para neutralizar manifestações de segmentos da sociedade brasileira que, por vezes, desejam impor com rigidez interesses particulares acima do superior interesse nacional, pelo qual zela a diplomacia, que, em seu cálculo estratégico, acertadamente atribui lugar importante à boa convivência com os vizinhos. Incluímos esse padrão de conduta entre os pressupostos mentais da política regional do Brasil em razão da esfera unilateral em que germina e se modifica. Os conceitos expostos a seguir derivam, por sua vez, de fenômenos da esfera transnacional que envolvem mais de um Estado.
8.3 Quatro paradigmas de relações entre vizinhos da américa do Sul A cordialidade oficial considerada sob o ângulo da construção do conceito bem como da prática tem sua gênese na inteligência política brasileira. Corresponde, por certo, a um pano de fundo de longo alcance da política exterior aplicada ao trato dos vizinhos. Outros conceitos se derramam, contudo, sobre a prática das relações regionais ou bilaterais para cuja elaboração contribuem intelectuais e homens de Estado de diferentes países. Esses outros paradigmas de relações regionais afetam, embora com intensidade variada, a opinião pública e o processo decisório dos governos. Exercem, portanto, capacidade de determinação sobre o rumo dos acontecimentos e constituem categorias explicativas da História. O método de análise paradigmática aplicado ao estudo das relações entre o Brasil e seus vizinhos revela-se, mais uma vez, fecundo em seu intento de contribuir para o avanço da formulação teórica aplicada às relações internacionais no âmbito do subsistema sul-americano. Um balanço da literatura especializada sobre o tema das relações regionais permite identificar quatro padrões conceituais, que são formulações genéricas nem sempre refletidas na conduta dos governos. Ou seja, um paradigma pode pairar como proposta ou aspiração deste ou daquele intelectual, político ou grupo dirigente, como uma espécie de referência ao que fazer, sem comandar a práxis, de forma imperativa. Mesmo porque os paradigmas apresentam entre si aspectos intrínsecos de contradição conceitual e prática. Convém ter em mente duas observações iniciais a respeito desses quatro paradigmas concebidos a partir de vasta literatura latino-americana que descreve e interpreta as relações entre vizinhos. Em primeiro lugar, o peso
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das relações entre o Brasil e a Argentina, tão relevante que explica em boa medida, para além das relações bilaterais, o comportamento dispensado a terceiros por esses dois Estados. E não somente a terceiros próximos, porque também condiciona as atitudes diante da potência hegemônica da área, os Estados Unidos. Em segundo lugar, esses quatro paradigmas colam às relações relativamente recentes, desde algumas décadas até o presente, de modo a definir sua evolução, não somente conceitual, mas também sob o ângulo da conveniência, da consistência e do valor.
8.3.1 rivalidade A inclusão do conceito de rivalidade na tipologia paradigmática acerca das relações regionais no Cone Sul deve muito ao estudo de Miguel Angel Scenna, Argentina-Brasil: cuatro siglos de rivalidad, citado na bibliografia. Inúmeros outros estudiosos também se dedicaram, seja por gosto seja por convicção intelectual, à busca dos elementos da intriga, sempre presentes nas relações internacionais, e com isso deram impulso à construção do paradigma da rivalidade. Esse grupo tende a tomá-la por padrão permanente, a informar a conduta das políticas exteriores. A existência de outros paradigmas demonstra, porém, que tal convicção não se fundamenta no tempo longo. Aliás, Scenna escrevia antes de se desencadearem os processos de integração na América do Sul. Não há como negar evidências segundo as quais, no passado e no presente, fatores de determinação da rivalidade agiram e agem, explicando manifestações reais desse padrão de conduta. O conjunto de estudos sobre a rivalidade enumera fatores de determinação remotos e recentes. Entre os primeiros, são descritos a herança colonial de disputa entre espanhóis e portugueses pelo controle do estuário do rio da Prata, o período de formação e de afirmação dos Estados nacionais após a Independência, a involução da grande à pequena Argentina nessa fase, as independências de partes do vice-reino do Prata e a idéia de reconstruí-lo em nova grande Argentina, e ainda o pensamento geopolítico dos diferentes países que tirou inspiração desse substrato nacionalista. Houve época em que medidas sanitárias tomadas à base da rivalidade e não dos interesses da saúde dos povos dificultavam o comércio, em que disputas para atrair imigrantes colocavam em confronto as diplomacias na Europa, interessadas em exaltar a própria imagem e em denegrir a do outro, em que as tarifas alfandegárias visavam prejudicar e retaliar. Em tempos recentes, a rivalidade derramou-se
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sobre o controle das águas, seja para fins de segurança seja para fins energéticos. Ao longo dos séculos, a corrida armamentista tomou forma na superioridade naval a alcançar sobre o vizinho, posteriormente, na tecnologia nuclear a dominar primeiro. A disputa por hegemonia regional tornou-se outro fator a espelhar visões geopolíticas conflitivas, particularmente quando estava em jogo o destino de pequenos países como Uruguai, Paraguai e Bolívia. Entre as manifestações da rivalidade não basta referir as guerras em que se envolveu o Brasil, como a guerra da Cisplatina entre 1825 e 1828; a chamada “guerra grande” que assolou o Uruguai, contra Juan Manuel Rosas em 1851-52; a da Tríplice Aliança, entre 1864 e 1870 (Guerra do Paraguai). A rivalidade manifestou-se por meio de intensa busca de aliados entre os vizinhos durante esses conflitos e de modo permanente, em tempo de paz; por meio da diplomacia de obstrução de interesses do outro na vizinhança praticada, por exemplo, por João Neves da Fontoura nos anos 1950; por meio de distintas cosmovisões e políticas exteriores não convergentes. Mostrou-se no passado diante de relações com a potência hegemônica, Inglaterra ou Estados Unidos, das duas guerras mundiais, da solidariedade continental, das funções da OEA; recentemente, perante o papel dos Estados Unidos e dos Estados sul-americanos na solução de conflitos internos ou bilaterais, na construção da zona de paz do Cone Sul ou da unidade sul-americana de segurança. A rivalidade estendeu-se aos conceitos de globalização, tida por benigna e benfazeja em seus efeitos pelas elites argentinas durante o governo de Carlos Saúl Menem, por ambivalente e assimétrica pelo governo de Fernando Henrique Cardoso no Brasil. Enfim, aflorou em detrimento dos processos de integração em curso, diante do papel do Estado e das respectivas nações acerca do modo como buscar soluções para os efeitos das crises provocadas na passagem do milênio pelas experiências neoliberais, pela desvalorização do real em 1999 e pela falência da Argentina em 2001-02. Argumentando nessa linha de raciocínio, alguns estudiosos chegam à conclusão de que a rivalidade age como móbil superior das forças históricas e estabelece o padrão de conduta dos governos nas relações entre vizinhos.
8.3.2 cooperação e conflito Outros estudos agregam à rivalidade um segundo elemento, a cooperação, de modo a produzir-lhe equilíbrio. Cooperação e conflito aparecem em títulos de publicações, em artigos de revistas científicas e livros lançados
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no mercado editorial nesses últimos anos como se fossem dois termos de um mesmo estereótipo literário. Os defensores desse paradigma não fazem tabula rasa do anterior, porém agregam o entendimento e a cooperação, também presentes nas relações entre vizinhos. E como os teóricos da rivalidade, voltam-se, então, à busca de fatores e manifestações de entendimento e cooperação para além daqueles da rivalidade. Entre outras manifestações relevantes da cooperação, que supõem o entendimento político, estariam a criação do Estado do Uruguai, em 1828, a eliminação de Rosas e de Solano López por ação de força de alianças regionais, o apoio do Brasil à consolidação do mitrismo e da moderna república Argentina por volta de 1860, o intenso e duradouro comércio bilateral, a aliança política entre Getúlio Vargas e Domingo Perón, a aliança desenvolvimentista entre Jânio Quadros e Arturo Frondizi. Nas décadas recentes, uma sucessão de manifestações estariam, segundo esses estudiosos, fazendo prevalecer a cooperação sobre o conflito, sem, contudo, eliminar o padrão anterior. Ademais, essa cooperação alcançaria outros países e regiões da América do Sul, alçando-se em paradigma regional, ao menos no que diz respeito à política exterior do Brasil. As balizas que escandem o ritmo crescente da cooperação são postas no encontro de Uruguaiana de 1961, entre Quadros e Frondizi, em razão de espelhar a filosofia política de integração econômica; ainda, no Tratado da Bacia do Prata, de 1968, entre os cinco países da região (Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e Bolívia), voltado para a criação de infra-estrutura física; no Tratado de Cooperação Amazônica firmado, em 1978, pelos oito países da região; no Acordo Tripartite, de 1979, entre Argentina, Paraguai e Brasil para aproveitamento hidrelétrico dos rios; no Acordo para Aproveitamento Pacífico da Energia Nuclear firmado, em 1980, entre Brasil e Argentina, ponto de partida de uma série de medidas de confiança mútua; nos doze protocolos de cooperação, de 1986, entre Brasil e Argentina que unificaram a vontade de operar conjuntamente as forças do desenvolvimento econômico; enfim, no Tratado de 1991 que criou o Mercosul e nas iniciativas recentes de configuração de uma comunidade sul-americana de nações. Bom número de analistas aponta para a redemocratização dos meados dos anos 1980 como marco cronológico da transição da rivalidade para a cooperação. Contudo, a ponderação do conjunto de variáveis, como manifestações da rivalidade antes e depois da redemocratização e iniciativas de cooperação
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que espelham entendimento político durante os regimes militares, demonstram a inconsistência do argumento que vincula democracia a cooperação e rivalidade a regime autoritário.
8.3.3 relações cíclicas Em estudos sobre a história da política exterior do Brasil, referimo-nos à existência de um paradigma de relações cíclicas com os vizinhos. A descoberta parte da premissa segundo a qual nem rivalidade nem cooperação teriam se imposto como curso contínuo subjacente aos fatos de modo permanente, ao longo do tempo, porém, alternaram-se em ciclos de prevalência ora de um ora de outro padrão. A alternância seria determinada pela conjunção de fatores de conflito sucedida pela conjunção de fatores de entendimento. Assim, as relações teriam sido marcadas por picos de tensão seguidos por apogeus de distensão, em movimento cíclico. A existência do paradigma cíclico tira explicação não dos fatores genéticos da rivalidade ou da cooperação, como no caso anterior, mas dos fatores de reversão de tendência. Esses fatores agem de modo ambivalente, porquanto revertem o movimento, provocando a mudança, seja no sentido do agravamento da tensão, seja no sentido da distensão. Inúmeros fatores intervenientes dessa natureza podem ser identificados pela capacidade de produzir efeitos em um ou outro sentido. Os movimentos de opinião, por exemplo, tanto acendem o fogo da rivalidade quanto sobre eles despejam água fria. A manifestação de autoridades e estadistas tanto pode aproximar os povos quanto obscurecer seu entendimento. A consciência da convivência necessária entre vizinhos tanto pode conduzir as decisões quanto a consciência do conflito necessário para realizar interesses nacionais por meio da política exterior. Uma reversão de tendência advém da capacidade de persuasão de uma linha de argumentação que evoca os ganhos da cooperação sobre outra que evoca os ganhos do conflito. Pode ocorrer, por exemplo, quando prevalece a cordialidade ou a empáfia nacional como condição psicológica do ambiente político. Também, por reação ante tal condição psicológica do outro, ao atribuir-lhe importância ou desprezo. A reversão de tendência pode advir do declínio ou reforço do Estado como condutor da sociedade, a exemplo do reforço no início do século XXI, que levou à reconsideração dos processos de integração até então entregues ao sopro do mercado por meio da fórmula
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cepalina do regionalismo aberto. A interferência de fatores do centro, como a rivalidade entre os grandes ou a velha tática política divide et impera, determina, por vezes, a reversão de movimento. Assim como os paradigmas anteriores de relações com os vizinhos, o de relações cíclicas também conta a seu favor com boa quantidade de fatores e manifestações. Uma sugestão de pesquisa para jovens e velhos estudantes, capaz de alertar sobre quanto as relações internacionais são complexas e quão longe estão de se enquadrar nesta ou naquela teoria.
8.3.4 relações em eixo Um nível avançado de análise das relações regionais foi alcançado por pesquisadores da Universidade de Brasília e da Universidade de Buenos Aires ou convidados pela Fundação Alexandre de Gusmão do Itamaraty para participar de projetos interinstitucionais. Em pequeno livro de 1987, Luiz Alberto Moniz Bandeira lançou o termo relações em eixo, depois, em três outros, conduziu sua reflexão sobre as relações interamericanas com base nesse conceito. O paradigma das relações em eixo contamina as interpretações de dezenas de livros, individuais ou coletivos, além de artigos publicados em periódicos. Organizamos com Mario Rapoport, da Universidade de Buenos Aires, dois livros sobre as relações no Cone Sul. Em nossos estudos individuais, aplicamos o conceito às relações entre Brasil e Venezuela. Samuel Pinheiro Guimarães, José Maria Lladós, Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Heloisa Vilhena de Araújo reuniram estudos de especialistas em volumes publicados sobre o tema das relações regionais de países-chave como Brasil, Argentina, Venezuela e aqueles da Comunidade Andina. Raquel Miranda, enfim, inclinou-se sobre a gênese dos processos de integração em estudo comparado sobre as relações em eixo entre França e Alemanha e entre Brasil e Argentina, com o fim de levar o conceito ao campo da teoria das relações internacionais. Essa literatura tanto impressiona pelo volume de publicações quanto pela qualidade das análises, em ambos os aspectos superior à literatura consagrada aos três outros paradigmas de relações regionais. A primeira questão que sugere diz respeito aos fundamentos cognitivos desse modelo de interpretação. Os componentes do conceito relações em eixo levam em conta fatores relevantes para as relações entre vizinhos. Eles assentam sobre a tradição de uma relação especial bilateral, não do tipo parceria estratégica entre dominante e dominado, de estruturas assimétricas, como a que se verifica entre
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Brasil e Estados Unidos, mas sobre uma relação especial entre parceiros simétricos. Relações em eixo se estabelecem quando, precisamente, a imagem um do outro corresponde à do parceiro que consigo estabelece uma união co-responsável. Uma esfera de elaboração política comum ultrapassa o caráter de requisito para converter-se em fenômeno espontâneo nas relações bilaterais. Inevitavelmente, o casal que compõe o eixo agrega em seus cálculos a reação dos países vizinhos. Em outros termos, o eixo comporta uma vertente exógena que o transcende porque abarca as relações regionais. Contudo, na gerência das relações regionais, mesmo que coletivas, como aquelas que se observam nos blocos de países integrados, emerge a vontade de potência dos dois, primeiro em âmbito regional, depois em escala global. Na gênese dos processos de integração, argumenta Miranda, o eixo argentino-brasileiro conduz-se prioritariamente pelos interesses econômicos do desenvolvimento, ao passo que o eixo franco-alemão pelos interesses geopolíticos da paz. Não convém, todavia, insistir sobre componentes isolados na origem de relações em eixo entre dois países: elas se estabelecem por motivações e trazem sempre resultados concretos na esfera política, econômica e geopolítica. As relações em eixo entre Brasil e Argentina tiram força de relações especiais históricas. Uma corrente de interpretação arcaica dessas relações estabelece a complementaridade econômica entre um Brasil industrial e uma Argentina primária como móbil da conexão. Além de prejudicial ao projeto político da cada um, esse modo de vê-las não condiz com os interesses das duas sociedades. Desde a época das independências, Brasil e Argentina mantiveram a mais importante parceria, se considerado o volume de comércio bilateral na longa duração, sempre situado entre os primeiros, enquanto outros parceiros ascendiam e declinavam. Mas a base lógica do conceito evolui com as forças sociais, para além dos dois séculos de economia agroexportadora em que ambos os países se estabilizaram, rumo à modernização tocada pelo projeto industrial de ambos. Assim, a complementaridade econômica continua alimentando a relação especial, todavia sem refletir estruturas econômicas assimétricas e sim o móbil comum de apoiar um ao outro na busca do desenvolvimento integral. Relações em eixo reconhecem a necessidade de ajustar a estratégia política à complementação econômica dessa natureza. O conceito se expande, entretanto, na fase de relações bilaterais recentes entre Brasil e Argentina, destinadas a ampliarem-se a ponto de abarcar as
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relações do Brasil com sua vizinhança por inteiro. Do lado da Argentina e do Cone Sul, as relações em eixo são avaliadas como propulsoras do processo de integração, do lado da Venezuela e do Chile, como oportunidade de robustecer outros eixos bilaterais de impactos sobre a respectiva vizinhança, do lado das relações entre Brasil e todos os países da América do Sul, como caminho para operar as vantagens comparativas intangíveis e ampliar as capacidades de poder. Em sua essência, as relações em eixo, no presente, concorrem como proposta de saída para a crise das experiências neoliberais que provocaram a deterioração dos indicadores econômicos e de bem-estar na América do Sul. O retorno a soluções nacionais, nos moldes da conduta dos dirigentes Roberto Lavagna e Néstor Kirchner na Argentina, representa tentativa válida à luz dos efeitos benéficos das experiências desenvolvimentistas do passado, mas esse retorno não é incompatível com o paradigma de relações em eixo, mesmo porque o mundo todo, após o desencanto diante da globalização, recupera o papel condutor do Estado pela via do comportamento logístico. As relações em eixo sugerem, nesse sentido, recuperar a essência política do processo de integração abandonado em razão das diretrizes neoliberais. A ampliação dos mercados, nos anos 1980, era vista nos escritos de Roberto Lavagna como oportunidade de criar o núcleo de conhecimento e inovação por meio da cooperação científica e tecnológica e da associação empresarial e industrial. A reduzida dimensão de mercado não permite, com efeito, que os dois países alcancem essas vantagens comparativas de modo isolado. Por outro lado, a contribuição da América do Sul à configuração do mundo multipolar, objetivo explícito da política exterior do governo Lula, depende da criação do centro de poder regional, que, por sua vez, está condicionado ao processo de integração. Sem os ganhos desse processo não parece viável à América do Sul elevar suas capacidades de poder ao ponto de se constituir pólo mundial. O obstáculo à conceituação e à implementação do paradigma de relações em eixo é posto por intelectuais e dirigentes de tendência globalista, os quais seguem argumentando ou agindo em favor da abertura ilimitada das economias nacionais bem como dos processos de integração às forças do capitalismo transnacional — conhecimento, inovação, capitais e empreendorismo — como condição de realização de ganhos superiores àqueles vislumbrados por intelectuais ou estadistas logísticos de visão sul-americana.
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O modelo de relações em eixo se alça, por sua vez, à esfera da vida política, por meio da qual requisita e firma a autonomia de processo decisório compartilhado pelos Estados da região, cujo escopo reside no fortalecimento das capacidades de poder e do poder de barganha da América do Sul. E com isso contribui para a interdependência entre blocos e nações, mas não aquela das estruturas hegemônicas desejada por globalistas e que tendem a perpetuar assimetrias em benefício de uns e detrimento de outros. Alguns analistas de renome se furtam à distinção entre parceria estratégica e relações em eixo, utilizando um termo em vez de outro para significar a mesma substância. A distinção que fazemos entre ambos decorre da possibilidade de existir parceria estratégica entre países profundamente desiguais, ao passo que relações em eixo se estabelecem entre parceiros de nível próximo de desenvolvimento, unidos por uma visão comum de interesses e objetivos. Nesse sentido, por exemplo, entendemos que Hélio Jaguaribe julgue a existência de relações em eixo necessária à sobrevivência de Brasil e Argentina, visto que, separados, os dois países não conseguiriam elevar o desenvolvimento ao estádio mais avançado. Entendemos que Mario Rapoport atribua às relações em eixo a responsabilidade de forjar visões de mundo convergentes e de evitar disputas por influências regionais. Que José Botafogo Gonçalves e Felix Peña incumbam ao eixo pensar o futuro de si e da região, tendo como escopo o comércio, a integração econômica, a integração energética e a competitividade sistêmica. Que Roberto Russell perceba o eixo como conceito de gênese fundamentalmente brasileira, visto serem Brasil e Argentina sócios em determinados interesses, não amigos unidos pelo pensamento político.
8.4 aplicabilidade dos paradigmas de relações com a vizinhança O método de análise paradigmática conduz à elaboração de conceitos, cuja soma equivale a uma teoria das relações entre o Brasil e seus vizinhos. A primeira finalidade desse exercício produz efeito epistemológico, na medida que amplia o conhecimento das relações regionais e internacionais. Cada conceito paradigmático esconde parcela da verdade, agregando-se a outros sem eliminá-los. Vista em sua pretensão explicativa universal, a teoria das relações internacionais é frágil, feita de incongruências, porém útil ao conhecimento. É nociva somente quando uma formulação reivindica o domínio da verdade. Os conceitos aqui expostos convencem o leitor da perspectiva
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tendenciosa que ostenta o apelo a uma exclusiva interpretação, sobretudo quando equivocada na base histórica, no raciocínio, na manipulação de valores e interesses. A teoria também reveste-se de caráter normativo, que corresponde à sua segunda finalidade. Conselheira do príncipe, tende a apresentar-se como conclusão pronta para indução decisória. Nisso reside o perigo que certas teorias de relações internacionais representam para nações ou blocos de nações. Toda teoria carrega valores e interesses, sempre derivados de seu núcleo formulador. Países ou grupos de países que não desenvolvem suas teorias de relações internacionais estão inclinados a incorporar valores alheios à sua cultura e a sobrepor a seus próprios os interesses de terceiros. Não há teoria que realize os desejos de todos os povos, como não há teoria de alcance explicativo universal, por mais que os globalistas insistam sobre esse argumento. Os conceitos expostos neste capítulo com o objetivo de compreender as relações do Brasil com a vizinhança e de sugerir estratégias de ação — cordialidade oficial, rivalidade, cooperação e conflito, relações cíclicas, relações em eixo — influenciam enormemente as visões dos meios de comunicação e por isso incidem sobre a opinião pública. Certos órgãos de comunicação derivam sua interpretação desse ou daquele conceito e, portanto, estimulam a vigência de um ou outro paradigma de relações regionais. Sabe-se que há órgãos de imprensa que fomentam a rivalidade, outros, a cooperação, sendo outros, ainda, volúveis e, finalmente, existem também aqueles que fazem análise objetiva. Buscar a objetividade significa ser crítico diante de interpretações que evidenciam parcelas da verdade. Aos formadores de opinião, intelectuais e acadêmicos, em primeiro lugar, pertence a responsabilidade de preparar esse espírito crítico, que, no caso presente, revela-se de utilidade para realização dos interesses dos países da América do Sul. O fato é que os paradigmas pesam sobre a opinião e o processo decisório de Estado. Os dirigentes são, via de regra, sensíveis à pressão da opinião, por essa razão os paradigmas condicionam a estratégia de ação dos governos. À luz dos conceitos expostos, uma gama de alternativas é posta sobre a mesa de quem conduz o processo decisório de Estado ou de blocos de países. Conclui-se que as políticas exteriores dos países sul-americanos em relação a seus vizinhos orientam-se pela rivalidade de interesses ou pela cooperação dos agentes econômicos e sociais? Verificam-se mudanças nos padrões de comportamento dos governos? É perceptível uma evolução no sentido da
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aplicabilidade dos quatro modelos, da rivalidade ao equilíbrio com a cooperação, da gerência de crises e oscilações às relações de convivência harmoniosa e benéfica para todos? O conhecimento dos quatro paradigmas regionais permite precisamente essa elevação do padrão de qualidade das relações entre os países da América do Sul que a última pergunta sugere. Conquanto as diplomacias dos países-chave dominem o conhecimento dos distintos padrões postos historicamente em marcha e tenham por escopo orientar-se pelo padrão das relações em eixo. Contudo, padrões arcaicos de conduta, embora pertencentes ao domínio das leviandades políticas, ressurgem por vezes do passado ou pairam no horizonte como espectros a avançar. Os governos não primam sempre por dispor de estadistas em seu topo, preparados para realizar o bem comum. Tampouco a sociedade dispõe permanentemente de pensadores úteis a seus interesses. Fatores e manifestações de padrões de conduta inadequados, a exemplo daqueles que referimos em nossa análise ou inventados ao sabor de circunstâncias, alimentam facilmente a argumentação e suscitam novas correntes de opinião. Por essa razão, riscos de avanços e recuos do padrão de qualidade das relações regionais contam entre as possibilidades permanentes. Uma das falhas das relações regionais do Brasil está no fato de se haver este país voltado com ânsia desmesurada para o Sul e dado as costas ao Norte. A miragem da Argentina com seu nível de instrução, bem-estar e consumo despertou fascinação entre intelectuais, políticos e produtores brasileiros, que para ela se voltaram a ponto de não atribuir importância aos demais vizinhos. José Sarney, entretanto, havia preparado nos anos 1980 dois processos de integração e não seria insensato pressupor que lançasse o do Norte, em torno do eixo entre Brasil e Venezuela, caso viesse a falhar o do Sul. O sucesso da integração do Cone Sul deixou à deriva o processo de integração com o Norte. Os potenciais das duas outras grandes nações da América do Sul são por certo diferentes. Nada existe, entretanto, que sugira fazer de Argentina e Venezuela opções excludentes. O conceito de relações em eixo exposto neste capítulo sugere, precisamente, a complementaridade dessa integração. Sendo o vizinho do Sul um país de grande consumo e de baixa capacidade empresarial, Brasil e Argentina realizariam em próprio proveito interesses específicos em um esquema de relações em eixo com a Venezuela; sendo o
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vizinho do Norte um país de baixo consumo, porém de elevada capacidade empresarial e financeira, os três realizariam em próprio benefício outros interesses específicos, caso acionassem o esquema de relações em eixo. Que dizer, então, das relações entre Brasil e Chile? Enquanto estratégia de relações regionais, as relações em eixo foram consideradas, há décadas, indispensáveis aos interesses de França e Alemanha, apesar de sólida base nacional, tecnológica e econômica. Essa consciência aflora no famoso Tratado do Eliseu, de 1963. Naquele continente, o entendimento e a cooperação entre os dois alavancaram o processo de integração e lhe imprimiram matizes que hoje configuram o bloco europeu como bloco econômico, político, cultural e cidadão. Esse caminho está aberto para a América do Sul como o traçado da boa convivência, à condição de implementar-se o eixo Buenos Aires-Brasília-Caracas, de modo a compartilhar benefícios com todos os vizinhos sul-americanos do Brasil. Uma primeira observação conclusiva acerca da aplicabilidade dos quatro paradigmas diz respeito à crítica que lhe fazem globalistas que opõem voluntarismo e forças do mercado. Na realidade, as forças de mercado jamais tiveram curso impensado e foram, ao longo de toda a História, conduzidas por homens de Estado, representantes da cultura, da opinião e de interesses das sociedades, de visão e vontade própria. Isso se aplica tanto à formação dos blocos na América do Sul, na Europa e em outras regiões, quanto à hegemonia compartilhada entre União Soviética e Estados Unidos e, enfim, ao curso que toma em nossos dias a interdependência global. Outra observação conclusiva, de certa forma peremptória, acerca da aplicabilidade dos paradigmas de relações regionais seria afirmar que são no momento insuficientes. O Brasil não lidera a integração porque não avança projetos de alcance e interesse efetivo para os vizinhos. Hugo Chávez, fazendo valer os recursos do petróleo, toma a dianteira, na percepção de certos governos. Evo Morales nacionaliza o setor de hidrocarbonetos e surpreende a Petrobras e outras empresas brasileiras que lá investem. Nicanor Duarte aproveita para requisitar a revisão de preços da energia gerada em Itaipu. Tabaré Vázquez sonha com acordo de livre-comércio entre Uruguai e Estados Unidos. Nestor Kirchner, enfim, ironiza a liderança procurada, porém vazia do Brasil na região. Lula compensa essa insuficiência brasileira com o capital político que pessoalmente representa perante os vizinhos, entretanto, apenas de simpatia não se fazem consistentes e duradouras relações regionais.
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Parece convir para a vizinhança uma estratégia menos tradicional e de maiores efeitos econômicos e populares. O episódio da nacionalização dos recursos naturais de hidrocarbonetes na Bolívia pelo Decreto Supremo de Evo Morales de 1º de maio de 2006 revela o ponto limite da insuficiência a que nos referimos. A Bolívia já havia nacionalizado a Standard Oil em 1937 e a Gulf em 1969. Nas duas vezes, foram atos tomados por impulso nacionalista ou de esquerda, porém sem mercado e sem investimentos a indústria esmoreceu e as duas nacionalizações foram revertidas. O gasoduto da Bolívia ao Brasil estava na agenda do tratado de 1938, renovado pelos acordos de Roboré de 1958. Geisel o rejeitou, levando em consideração a instabilidade política do vizinho e a suspeita de inexistência de gás em volume suficiente. A construção do gasoduto de 3.000 km foi decidida por Itamar Franco, em 1993, a contragosto, e por insistência de seu chanceler Fernando Henrique Cardoso. Quando o mercado brasileiro absorve 33% das exportações bolivianas e os investimentos brasileiros compõem 18% do PIB boliviano, quando a Petrobras arrecada 24% dos impostos, havendo investido mais de um bilhão e meio de dólares, detendo 46% das reservas de gás, 95% do refino e 23% da distribuição de combustíveis, publica-se o decreto de nacionalização, cujo alcance técnico não é claro, no entanto, cujo desgaste político e efeito psicológico afugentam governos e empresas. A terceira nacionalização boliviana apresenta-se com a legitimidade de ser a primeira democrática e feita para combater a pobreza do povo. Entretanto, os prejuízos da nacionalização não são apenas bolivianos, pois Morales caminha contra as tendências das relações internacionais e regionais, mas sobretudo brasileiros. Como tocar, em tais circunstâncias, o projeto desenvolvimentista da América do Sul, tão caro ao governo Lula? Se as esquerdas ascendem ao poder em quase todos os países, não se configuram como frente política afinada com projeto comum para a América do Sul. Ademais, a esquerda partidária não se articula com a esquerda social de modo a criar consenso interno nos países. Ela toma feição própria em cada caso, de caráter nacional, em função de problemas e desafios que lançam raízes na herança histórica ou no neoliberalismo. A esquerda pouco vai além de um estereótipo político sem conteúdo uniformizador. Se agrega capital político a Lula e cria ambiente de entendimento superficialmente favorável, na prática, visto pulverizar-se em múltiplos matizes, a esquerda sul-americana não confere apoio logístico à criação do pólo regional de poder.
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LeIturaS recomeNdadaS: MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Relações Brasil-Estados Unidos no contexto da globalização. São Paulo, Senac, 1999. 2 v. (reedição de Presença dos Estados no Brasil e Rivalidade Emergente). MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Mercosul, 1870-2003). Rio de Janeiro: Revan, 2003. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos, de Collor a Lula, 1990-2004. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. OLIVEIRA, Marcos Guedes. (Org.). Brasil e EUA no novo milênio. Recife: Universitária, 2004. BURNS, E. Bradford. The unwritten alliance: Rio Branco and Brazilian-American relations. Nova York: Columbia University Press, 1966. BUENO, Clodoaldo. Política Externa da Primeira República: os anos de apogeu — de 1902 a 1918. São Paulo: Paz e Terra, 2003. PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos. Porto Alegre: UFRGS, 2003. SMITH, Peter. Talons of the Eagle; Dynamics of US-Latin American Relations. Oxford: Oxford University Press, 1996. ALMEIDA, Paulo Roberto de; BARBOSA, Rubens Antônio. Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências. São Paulo: Saraiva, 2006.
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9.1 Buscando compreender Pensadores e pesquisadores brasileiros deram origem a duas correntes de interpretação acerca dos Estados Unidos e das relações desse país com o Brasil. De um lado, situam-se aqueles que vêem no país do norte a potência hegemônica do mundo, arauto da cultura anglo-saxônica, da liberdade e da democracia de mercado, modelo de pensamento e ação a ser seguido por países como o Brasil, com o fim de tirar proveito de sua ação externa, portadora de benefício. De outro lado, situam-se os que vêem os Estados Unidos como potência hegemônica imbuída de presunção de superioridade cultural e de invencibilidade, truculenta e agressiva no trato com os outros povos, promotora de regimes autoritários, de cerceamento de liberdades e de aspirações desenvolvimentistas de povos emergentes como o Brasil. As duas correntes de interpretação perpassam tanto o pensamento superficial e ensaísta, expondo opiniões sem fundamento, como impregnam a literatura especializada, opondo apologistas e críticos. Os livros Brasil e EUA no novo milênio e Formação do Império Americano foram recomendados ao leitor como exemplos dessas correntes antagônicas do pensamento brasileiro, expressas pela literatura especializada. Neste capítulo, o método adotado não parte desses pressupostos teóricos e sim dos procedimentos da análise paradigmática que estamos aplicando ao estudo das relações internacionais do Brasil. As relações entre Brasil e Estados Unidos não cabem em conceitos simples do tipo aliança não escrita, alinhamento, dependência ou relações especiais, veiculados ora pelo discurso diplomático ou político, ora pelo acadêmico. O conceito de parceria estratégica definiu-se na literatura internacionalista brasileira recente em razão da natureza das relações com os Estados Unidos assim como de seu peso para a formação nacional, porém esse mesmo conceito já não esgota as interpretações, na medida que outros se formulam, tais como assimetria, convergência, rivalidade emergente, relações perigosas e relações triangulares. Como se fossem paradigmas de relações bilaterais, esses conceitos estabelecem correntes de pensamento que embutem padrões de conduta, que nem sempre teriam sido observados do lado norte-americano, mas que permanecem válidos para classificar modelos da práxis brasileira. As formulações teóricas disponíveis não conferem idêntico peso ou duração a esses esquemas de pensamento e muito menos confirmam ou requerem sua conversão em prática nas relações bilaterais. As interpretações desses paradigmas levam à
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conclusão de que uns teriam prevalecido por curto espaço de tempo ou produzido menor impacto sobre a formação nacional, enquanto outros teriam exercido influência mais profunda e duradoura. Dentre todos os padrões de relações bilaterais, é mister examinar com maior cuidado a parceria estratégica, cujo alcance mental e operacional se sobrepõe aos demais. O conceito de parceria estratégica tornou-se explícito na literatura, curiosamente, quando ele mesmo cedia espaço em favor de outros modelos conceituais de relações que surgiam a cotejá-lo com capacidade de determinação explicativa. Os estudos revelam que durante a década de 1970, quando, no contexto Ocidental, os Estados Unidos perdiam importância em termos de potência econômica e estratégica, no contexto bilateral também perdiam para o Brasil, cuja política exterior entrava em atrito com seu parceiro principal e buscava outros eixos de ação e compensação, com o objetivo de alcançar novas etapas naturais do desenvolvimento econômico. Essa crise da parceria estratégica tira explicações do paradigma desenvolvimentista de relações internacionais, quando outros conceitos gerados do lado brasileiro, no seio deste paradigma, tais como assimetria, competição, rivalidade, relações perigosas, afetam aquela parceria. Neste capítulo, o leitor poderá observar quanto são relevantes para o Brasil as relações com seu principal parceiro histórico, e também quanto são polêmicos os esquemas concebidos por pensadores, pesquisadores, diplomatas e dirigentes a tal respeito. Perceberá que, no início do século XX, um diplomata concebeu essas relações como se devessem ser especiais, porque antevia para os Estados Unidos a condição de potência hegemônica do século e julgava que convinha à realização de interesses brasileiros estabelecer uma estreita aliança política e econômica entre ambos os países. O que ocorreu no início do século XX reproduzir-se-ia na visão brasileira de mundo e no condicionamento das relações internacionais do País a essa visão, caso outro pensador, com capacidade de fazer herdeiros mentais e deixar legado duradouro como o anterior, ousasse, por exemplo, conceber a China como potência hegemônica do século neste início do século XXI e ao Brasil recomendasse a conexão especial com esse país.
9.2 o legado do barão do rio Branco A importância dos Estados Unidos nas relações exteriores do Brasil ocupou lugar privilegiado no pensamento diplomático em razão da influência que sobre ele exerceram o pensamento e a ação do barão do Rio Branco, pa-
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trono da diplomacia brasileira e Ministro de Relações Exteriores entre 1902 e 1912. Sem procurar desmerecer a visão realista de mundo e a prospectiva correta com que o barão interpretava os cenários futuros e estabelecia linhas de ação externa para o Brasil, estudos acadêmicos revelam que o desvio do foco externo da Europa para os Estados Unidos e a construção da nova parceria estavam em curso quando o filho do visconde do Rio Branco assumiu a chancelaria brasileira em 1902, posto em que permaneceu até sua morte, enquanto passaram a seu lado quatro presidentes da República. Duas foram, com efeito, as bases de observação sobre as quais Rio Branco firmou a aproximação do Brasil aos Estados Unidos: uma econômica, outra política. Os chamados tratados desiguais de comércio da época da Independência eram nocivos aos interesses econômicos do Brasil visto que restringiam ou proibiam a entrada de açúcar, café e outros produtos da lavoura nos mercados europeus, então reservados às colônias. A diplomacia brasileira envidou esforços por meio de negociações e missões à Europa, mas não conseguiu demover os governos europeus em seu afã de exigir o cumprimento de regras que somente a eles eram favoráveis, uma vez que abriam o mercado brasileiro a seus manufaturados e fechavam o europeu a produtos agrícolas brasileiros. Para essa situação de desequilíbrio e injustiça começou-se a vislumbrar uma solução, desde os anos 1840, quando os Estados Unidos se voltaram para o consumo do café e tomaram gosto pela nova bebida, cuja produção era exclusivamente brasileira. Por volta de 1870, absorviam cerca de 70% do café exportado pelo Brasil. Às vésperas da proclamação da República em 1889, a economia brasileira girava em torno da receita-exportação de café aos Estados Unidos obtendo: grandes superávits de comércio exterior, tesouro bem nutrido, capacidade de solvência internacional, crédito fácil em Londres, disponibilidade de recursos para tocar a modernização da infra-estrutura, elevada capacidade de atração de imigrantes europeus. O laço econômico de tão profícuos efeitos nacionais aconselhava a aproximação também política à grande potência do norte do continente, que, no imaginário brasileiro, despontava no horizonte das conturbações interimperialistas européias como uma potência jovem e dinâmica. A República, logo que foi instalada, despachou para Washington Salvador de Mendonça, encarregado de negociar um tratado de comércio, mas, sobretudo, de estreitar a relação política. Foi ele o mentor da aliança política, que desejava escrita, mas que se efetivaria informalmente, uma vez que o
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governo norte-americano mantinha sua diretriz de não firmar tratados de alianças políticas ou geopolíticas com terceiros, que viessem a comprometer sua autonomia decisória em política internacional. O barão do Rio Branco deu continuidade a esse impulso de aproximação aos Estados Unidos. Dois elementos do cálculo estratégico que levou em consideração ao consumar a nova parceria eram corretos: os Estados Unidos já se apresentavam como a maior potência industrial do mundo, por isso já eram a potência hegemônica da área hemisférica, e seriam a potência hegemônica global no século XX; ao ponderar-se ganhos e perdas nas relações exteriores, convém sempre marchar com a potência hegemônica da área em vez de passar ao largo de oportunidades que ela vier a criar ou confrontá-la. Em meio a um mundo cujo horizonte fazia-se sombrio em razão dos conflitos interimperialistas e da conflagração que se prenunciava, esses elementos de cálculo fundamentavam bem a política de aproximação aos Estados Unidos, tida por benéfica para a segurança e a economia brasileiras. Dois livros de impacto sobre a criação e a desconstrução de estereótipos de conhecimento foram escritos, o primeiro por Bradford Burns, que difundiu a tese da aliança não escrita estabelecida à época do barão nas relações entre Brasil e Estados Unidos, feita de estreita conexão comercial, política e geopolítica, o segundo por Clodoaldo Bueno, para quem a aliança teria sido apenas desígnio brasileiro, não dos norte-americanos, que apenas miravam o mercado de manufaturados. Com efeito, passou despercebida ao barão, homem orientado em sua visão de mundo sobretudo por preocupações de ordem geopolítica, a falha econômica de sua concepção da aliança. Rio Branco consentia intercambiar ganhos políticos e geopolíticos do lado do Brasil por ganhos econômicos do lado dos Estados Unidos, reproduzindo o erro da diplomacia brasileira da época dos tratados desiguais, quando cedeu aos europeus o mercado e as possibilidades da industrialização em troca do reconhecimento da Independência. Apesar da controvérsia acerca de conceitos aplicáveis às relações entre Brasil e Estados Unidos a que a política exterior de Rio Branco deu ensejo, o patrono da diplomacia brasileira deixou um legado de longo alcance no tempo e de impactos profundos sobre a formação nacional, nem sempre entendido adequadamente por seus sucessores: sob o aspecto da realização de interesses nacionais, convém marchar com os Estados Unidos; sob o aspecto do cálculo estratégico que comanda o processo decisório em política
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exterior, convém ser realista. A forma de como marchar com e atender, ao mesmo tempo, ao realismo da política exterior acerca das relações bilaterais criou um dilema quando essas relações foram referidas de modo concreto e abrangente ao desenvolvimento que se convertia em desígnio nacional. Em que consiste a aliança? Alinhamento incondicional, segundo uns, que confundiam interesses norte-americanos com interesses brasileiros; preservação da autonomia decisória, segundo outros, para os quais esses interesses podem não coincidir, até mesmo conflitar.
9.3 Parceria estratégica: gênese do conceito Durante sessenta anos, entre 1930 e 1989, a política exterior do Brasil foi atrelada ao processo de desenvolvimento nacional, preenchendo requisitos próprios à sua função. Getúlio Vargas entendeu que as relações entre Brasil e Estados Unidos poderiam acelerar a industrialização, por meio de recursos advindos das exportações para o mercado norte-americano, de créditos e de inversões diretas. Negociou com expectativa e obteve êxito na implantação da grande siderurgia em Volta Redonda. Seu sucessor, Eurico Gaspar Dutra, firmou em 1950 o acordo que criou a Comissão Mista de cooperação destinada a financiar projetos de desenvolvimento. Em seu segundo mandato, Vargas tentou por todos os modos obter resultados dessa cooperação. Embora não comovesse os dirigentes norte-americanos, nem os levasse a apoiar oficialmente o desenvolvimento brasileiro, mesmo porque eles se voltavam para a reconstrução da Europa Ocidental e para o combate ao comunismo, o Brasil ocupava, então, o terceiro lugar em investimentos diretos norte-americanos no exterior. O impulso dado à industrialização por Juscelino Kubitschek utilizou ingredientes norte-americanos em grande escala, mas a essa altura empreendimentos e capitais europeus tomavam o caminho do Brasil com o fim de apropriar-se de parcelas do setor produtivo, que se mantinha aberto à penetração estrangeira. Nenhum outro país media-se, contudo, com os Estados Unidos na relação construtiva que os ligava ao desenvolvimento brasileiro e seria insensato pensar em colocar em risco ou sacrificar essa parceria em favor de qualquer outra ação externa, pensava-se no Itamaraty nos anos 1950. Em meados dos anos 1970, durante a administração de Ernesto Geisel, tomou-se consciência de que a parceria estratégica, que tantos frutos havia produzido, entrava em crise de eficiência, quando os Estados Unidos hesi-
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tavam ou se negavam a cooperar para a realização de metas do desenvolvimento em um nível mais avançado, a que o processo histórico conduzira o Brasil. A idéia de que aos Estados Unidos não interessava a industrialização do Brasil tornava-se consciente para alguns que acompanhavam a política exterior norte-americana. Confrontavam-se, então, funções que cada parte entendia de modo distinto quanto ao papel a desempenhar. Os Estados Unidos concebiam o desenvolvimento brasileiro de modo a mantê-lo dependente de sua própria capacidade empresarial e de sua superioridade tecnológica e estabeleciam como meta uma relação de dependência estrutural. O governo brasileiro, por sua vez, concebia o desenvolvimento de forma sustentável, não no sentido que se dará ao termo a partir de 1990, em referência ao modo de explorar recursos naturais, mas no sentido de dotá-lo de qualificativos idênticos ao desenvolvimento dos países centrais. Seja pela cooperação internacional seja pela ação de forças internas, o desenvolvimento se haveria de consolidar apenas quando a nação percorresse todas as suas etapas e realizasse todos os seus atributos. A parceria estratégica entre Brasil e Estados Unidos fora determinante para a formação do parque industrial brasileiro, mas já não servia nos anos 1970 à aquisição ou geração de conhecimento e tecnologia em níveis avançados, como o nuclear, eletrônico, aéreo e espacial. Em nome da segurança e da hegemonia a manter, o governo norte-americano sonegava a cooperação nesses setores sensíveis do desenvolvimento a que aspirava o Brasil. A reação veio de duas formas: buscar novos parceiros relevantes dispostos a cooperar com o que interessasse e mover forças internas em sua consecução. Também duas foram as conseqüências da nova orientação das relações internacionais do Brasil: diversificação de parcerias e perda de peso das relações com os Estados Unidos. Define-se, desse modo, e com base nas relações entre Brasil e Estados Unidos, a essência do conceito de parceria estratégica nas relações internacionais do Brasil. Parceria essa que envolve, por um lado, o elemento da contribuição relevante ao processo de desenvolvimento e, por outro, o elemento da diversificação. Ainda, não tolera a obstrução do processo em nome de interesses unilaterais do outro, mas inclui a idéia de compartilhar interesses. Em suma: quem é capaz de trazer algo substantivo para o desenvolvimento é parceiro estratégico. A idéia de compartilhar interesses é menos explícita no conceito brasileiro de parceria estratégica do que naquele que os diri-
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gentes chineses, por exemplo, implementam em suas relações com outros países, desde que o país asiático se abriu à cooperação internacional: para os chineses, a parceria corresponde a uma troca de ganhos ou benefícios ou não merece entrar em consideração nas iniciativas externas. Imbuída de filosofia dependente em sua gênese, a tradição brasileira admite a reciprocidade de benefícios, porém reivindica maior ganho do que concessão na troca com o parceiro, quando esse se situa em patamar superior de potencialidade. Conviveu, por isso, sem escrúpulos e por décadas, com a condição de esmoleiro internacional. Apenas com parceiros de menor porte ou de nível de desenvolvimento menos avançado se dispõe a realizar o equilíbrio da reciprocidade, quando outros ganhos, por exemplo o reforço da capacidade de negociação internacional, forem previstos. Concebida, pois, como essencial e bilateral, a parceria Brasil-Estados Unidos mantém seu fôlego pelo período de um século. Esteve nos sonhos do barão do Rio Branco, tornou-se efetiva com Vargas e Kubitschek, foi cotejada por outras parcerias desde Geisel para reafirmar-se com Luiz Inácio Lula da Silva e George W. Bush em novembro de 2005. A declaração conjunta da visita que neste ano fez a Brasília o presidente norte-americano reza em seus termos: “aprofundar o diálogo estratégico em curso entre os dois países”, em temas tais como reforma da ONU, promoção da democracia e combate à pobreza, negociações na OMC, comércio bilateral e investimentos, proteção à propriedade intelectual e tecnologia, cooperação bilateral contra crime organizado e terrorismo e envolver nisso tudo as comissões e os grupos de trabalho conjuntos já existentes. “Nos associamos a países com os quais temos valores em comum. O Brasil está no topo da lista”, confirma Clifford M. Sobel, novo embaixador americano chegado a Brasília em agosto de 2006, querendo significar que também do lado dos Estados Unidos a parceria estratégica é preeminente.
9.4 Hegemonia e estruturas hegemônicas A parceria estratégica depende de impulsos oriundos de ambos os lados, uma vez que estabelece ações com o objetivo de realizar uma determinada etapa da formação social dos dois países. Assim, o núcleo duro da economia norte-americana se robustece com os empreendimentos no Brasil, ao mesmo tempo que se expande a industrialização brasileira. A hegemonia pode ser verificada quando a relação se destina à manutenção de estruturas de domi-
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nação e dependência, sendo uma parte ativa e outra passiva. Desse modo, o mercado brasileiro absorve produtos e serviços norte-americanos reforçando a superioridade organizacional e tecnológica alheia, enquanto o núcleo duro nacional estagna em nível inferior. No quadro da evolução do capitalismo, uma nação torna-se hegemônica sobre outras quando age pela diplomacia, pelas alianças que é capaz de concertar ou pelo uso da força, se necessário, para dobrar a vontade do outro e realizar interesses próprios e condicionar a reação alheia ao fortalecimento de sua posição de superioridade. Esse conceito de hegemonia, de viés gramsciano, exerceu grande influência na literatura brasileira e latino-americana, como revelam os enfoques da dependência, quando se voltavam para a interpretação das relações da região com os Estados Unidos. O pensamento estruturalista da Cepal, como já se observou em capítulo anterior, estende, contudo, o conceito de hegemonia, ampliando-o para além da relação entre uma determinada potência capitalista e as demais. O concerto europeu do século XIX, na acepção clássica da historiografia, ou a sociedade internacional européia, na acepção elaborada por Adam Watson e seus colegas da escola inglesa de relações internacionais, foram os instrumentos que alongaram a hegemonia, desde a superioridade de um determinado país, como a Inglaterra, para a superioridade de uma região, como a Europa. Nessa evolução, organizam-se as relações hegemônicas entre o centro e a periferia do mundo sobre a base de estruturas complementares de dominação e dependência entre formações sociais em fase de evolução díspar. Em pequeno livro publicado por ocasião da comemoração do quinto centenário do descobrimento em 2000, Quinhentos anos de periferia, Samuel Pinheiro Guimarães traz para a reflexão esse conceito de estruturas hegemônicas, que amplia a base de observação para além da relação bilateral. O embate entre estruturas hegemônicas e periferia do capitalismo, na contemporaneidade, condiciona as relações internacionais de modo substantivo idêntico ao século XIX, porém de modo formal adaptado. Desloca o interesse da análise da relação bilateral, entre Brasil e Estados Unidos, por exemplo, para as relações internacionais entre regiões. E produz recentemente outro efeito ao contaminar a relação definida por meio do conceito de parceria estratégica. Quando os Estados Unidos, de forma explícita a partir dos anos 1970, sonegam ao Brasil a cooperação em setores estratégicos do desenvolvimento, agradam aos europeus, que irão imitá-los nos anos seguintes, na atitude
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de defesa da desigualdade dos níveis de desenvolvimento entre as nações. Quem melhor expressa tal pensamento, requisita o fosso tecnológico entre o norte e o sul. A frente dos povos atrasados, chamada naquela época de Terceiro Mundo por alguns e de periferia por outros, articulou-se e obteve de Conferências Internacionais, particularmente do sistema ONU, a definição de uma nova ordem econômica internacional, apelidada de Noei, com o objetivo de impedir a ação das estruturas hegemônicas no sentido de tornar permanente a relação de dominação e a inferioridade do desenvolvimento do sul. Por ser o Brasil, na época, o país emergente de curso mais dinâmico e mais avançado no caminho do desenvolvimento, sua diplomacia despendeu grande esforço e tornou-se líder da frente dos povos atrasados. A reação de defesa das estruturas hegemônicas diante da investida do Terceiro Mundo veio por meio da criação do G7, em operação até o presente, um consórcio do centro do capitalismo, destinado a articular as forças dos países mais avançados à margem dessas conferências internacionais e do sistema ONU, no qual a representatividade global é mais ampla e o processo decisório mais democrático. O G7 tem por objetivo avalizar as regras dos regimes internacionais de comércio, finanças, empreendimentos e segurança estabelecidos pelo ordenamento multilateral, conquanto forem de interesse das estruturas hegemônicas, e criar obstáculos à sua modificação e vigência, quando forem contrários a tais interesses. Em nova demonstração aos povos em vias de desenvolvimento de que a boa vontade não governa as relações internacionais, porém os interesses. Como tendências de fundo não se extinguem facilmente, mas se adaptam e revelam nova dinâmica, a frente dos povos atrasados, denominada de países emergentes no início do século XXI, reagiu por seu turno à articulação das estruturas hegemônicas. E mais uma vez, a diplomacia brasileira, seja aquela formalmente constituída pelo Itamaraty, seja aquela que lhe soma a representação de outros segmentos sociais organizados, desempenhou papel relevante nesse embate entre forças do capitalismo em nível díspar de desenvolvimento. O momento emblemático dessa seqüência de reações envolvendo hegemonia, Terceiro Mundo, estruturas hegemônicas, países emergentes, em round, dessa feita, ganho pelos últimos, ocorreu durante a Conferência da Organização Mundial do Comércio de 2003 na cidade mexicana de Cancun. Nessa negociação multilateral, tornou-se evidente o conflito de interesses
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entre as estruturas hegemônicas e os países emergentes, as primeiras reunindo Estados Unidos, União Européia e Japão e se recusando a abrir mão dos subsídios agrícolas e dos entraves à entrada em seus mercados de produtos agrícolas oriundos do Sul, e os segundos decididos a não mais fazer concessões em setores de interesse daquelas estruturas, caso não houvesse reciprocidade. A criação, nessa ocasião, de um grupo de países emergentes, o G20, uma réplica do G7, ilustra bem essa dinâmica de defesa de interesses diferenciados por estruturas diferenciadas nas negociações internacionais. As conseqüências de Cancun foram muito além do contencioso agrícola. No fundo, estava em jogo o processo de desenvolvimento de países emergentes, que as estruturas hegemônicas do capitalismo não mais controlavam a seu favor. Reproduzia-se em versão atualizada de povos emergentes a velha frente de povos atrasados. Esses povos emergentes articulam-se em coalizões ao Sul, com objetivos específicos, ou acionam blocos de integração em andamento, e exercem, conseqüentemente, maior capacidade de influência sobre o ordenamento global. A era da globalização, que alcança ímpeto incomparável por volta de 1990, entra em crise no início do novo milênio. O livre curso dos interesses dos países centrais, posto em marcha sem empecilhos em uma primeira fase, depara-se com a disposição dos países do Sul de impedir a perpetuação de estruturas hegemônicas. O multilateralismo produtor do ordenamento global estagnou e as negociações norte-sul tomaram ritmo lento, por exemplo, entre o Mercosul e a União Européia com o fim de estabelecer uma área comum de livre-comércio, e entre os países das Américas com o fim de implantar a Alca. Após a fase eufórica da globalização da década de 1990, na qual se envolveram de forma passiva e acrítica as diplomacias latino-americanas, a crise do multilateralismo nos primeiros anos do século XXI resulta da resistência dos países emergentes em sacrificar a vocação industrial e tecnológica requerida pelo nível avançado do desenvolvimento a que aspiram e acedem. Nesse contexto, as relações entre Brasil e Estados Unidos se deslocam da esfera bilateral para as relações entre estruturas hegemônicas e países emergentes. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, sobretudo desde a Conferência de Cancun em 2003, a parceria estratégica com os Estados Unidos dilui-se, portanto, nas relações entre Norte e Sul, entre estruturas hegemônicas e periferia, como se dilui o exercício da potência, entre guerra tecnológica e choque de civilizações. Sutilmente, o Brasil se
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imiscui entre os países de estruturas hegemônicas e opera em seu seio com o fim de salvaguardar seus interesses.
9.5 como administrar as relações com os estados unidos? Levando-se em consideração o processo decisório brasileiro, as relações com os Estados Unidos criaram um dilema. Os diversos governos brasileiros, ao longo do século XX, tenderam a se aproximar de um ou outro extremo do pêndulo decisório que balançava entre alinhamento com subserviência e soberania com autonomia decisória. São contradições da política exterior do Brasil decorrentes da dificuldade de gerenciar as relações bilaterais pelos parâmetros da parceria estratégica, da hegemonia ou das estruturas hegemônicas. Os sucessores imediatos do barão do Rio Branco na chancelaria interpretaram o marchar com os Estados Unidos de forma relativamente simplista: apoiar as posições norte-americanas em política internacional. No primeiro pós-guerra, essa disposição significou adesão às teses do presidente Woodrow Wilson acerca da criação da Liga das Nações e, quando o Congresso norte-americano vetou a participação dos Estados Unidos na Liga, o governo brasileiro arvorou-se unilateralmente porta-voz da América, até sua retirada em 1926, quando se discutia a admissão da Alemanha. Durante a década de 1920, o País buscava o prestígio internacional e o bom nome para o crédito na praça de Londres, servindo as relações de amizade com os Estados Unidos de referência para alcançá-los. Após a Segunda Guerra Mundial, os chanceleres João Neves da Fontoura e Raúl Fernandes, principalmente o primeiro, revelaram comportamento ativo no apoio às teses norte-americanas que estabeleciam na ONU, na OEA, nos sistemas de aliança como o Tiar e a Otan, bem como no sistema Breton Woods, as vertentes da ordem internacional com base nas fronteiras ideológicas e no liberalismo de capitais, mercados e empreendimentos na zona norte-americana. E praticaram a diplomacia da obstrução de interesses argentinos na vizinhança, ao mesmo tempo que Juan Domingo Perón formulava sua política exterior com base na Terceira Posição. No cálculo político de Neves da Fontoura, os ganhos da relação especial com os Estados Unidos eram superiores aos de qualquer outra linha de ação externa que viesse, mesmo que por hipótese, ameaçá-los. Neves da Fontoura, o segundo amigo gaúcho a servir Vargas na chancelaria, percebia as relações com os Estados Unidos incomparavelmente supe-
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riores às demais em conseqüência dos benefícios que traziam para o desenvolvimento. Sua convicção fará herdeiros, aflorando de tempos em tempos como mola mestra da ação externa. Nos anos 1960, inspira o grupo dos americanistas composto por homens da envergadura do presidente Castelo Branco e dos chanceleres Vasco Leitão da Cunha e Juracy Magalhães. Nos anos 1990, inspira o grupo dos neoliberais composto por homens como o presidente Fernando Henrique Cardoso e os chanceleres Celso Lafer e Luiz Felipe Lampreia. Quando levadas ao extremo do movimento do pêndulo, do lado do alinhamento com subserviência, as relações com os Estados Unidos não produzem efeitos compartilhados por ambos os lados, particularmente no que diz respeito à promoção do desenvolvimento brasileiro, propensão permanente da ação externa do país desde os anos 1930. Quando se toma consciência desse desvio de efeitos nas relações bilaterais, elas são empurradas pelos dirigentes brasileiros em movimento antagônico para serem administradas com senso de soberania e com autonomia decisória. Essa outra tendência lança raízes no zelo que manifestara o próprio barão do Rio Branco, que concebia relações especiais de amizade conduzidas em clima de respeito à dignidade nacional e de salvaguarda dos requisitos da soberania. Entre 1930 e 1960, a tendência incorpora-se à conduta externa como tradição por força do pensamento e da ação de dois estadistas, o presidente Getúlio Vargas e o chanceler Oswaldo Aranha, o primeiro amigo gaúcho a servir Vargas na chancelaria. O contributo de ambos às relações internacionais do Brasil, particularmente com os Estados Unidos, reside no nexo funcional que estabelecem entre estas e o desenvolvimento nacional. Como revelam os estudos de Gerson Moura sobre sua atuação, esse nexo supõe a existência de um projeto de desenvolvimento concebido como idéia de nação a construir, elemento que contaminava a inteligência política de Vargas e Aranha. O projeto que Vargas e Aranha acariciavam em seu pensamento haveria de conduzir à transformação do Brasil pela industrialização, que requeria universalismo de ação externa e autonomia decisória interna. E um alto grau de dignidade diplomática. Juscelino Kubitschek, o estadista conciliador de tendências, tirou força de ambos os lados do movimento do pêndulo, posicionando-se naquele ponto central de equilíbrio. Desse modo, os anos 1950 foram agitados em termos de relações bilaterais entre Brasil e Estados Uni-
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dos. Um estudo de Elio Gaspari e outro de Pecequilo, acerca da política exterior dos Estados Unidos, revelam que seu jogo, com relação ao Brasil, não derivava do containment, o combate ao comunismo, mas da idéia clara de não favorecer a industrialização do Brasil, que criaria mais um competidor, propiciando, no máximo, deixar livre curso ao movimento de capitais norte-americanos. Essa postura explica tanto o malogro da Comissão Mista, o tratado de cooperação bilateral de 1950, como o acordo militar de 1952, que atrelava as Forças Armadas brasileiras à indústria norte-americana. Os efeitos da época foram, por isso, contraditórios: a vontade política embalando forças econômicas que, todavia, andavam por si, pois fizeram do Brasil, por uma década, o terceiro maior receptor de investimentos diretos norteamericanos no mundo. Essa tendência da inteligência política brasileira, soberania com autonomia decisória vinculadas ao projeto de desenvolvimento-industrialização, alcançou sua definição conceitual mais elaborada nos anos 1960 por meio do pensamento do chanceler San Tiago Dantas, e, depois, pelo pensamento dos chanceleres Gibson Barbosa, Azeredo da Silveira e Ramiro Saraiva Guerreiro. Estendeu seus efeitos na ação externa de Jânio Quadros, João Goulart, Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel. Situava-se, pois, acima de partidos e regimes políticos, como pensamento nacional derivado da percepção do interesse a realizar pela política exterior. Como administrar as relações com os Estados Unidos: de modo dependente e obstrutor do projeto nacional, de modo autônomo, tendo por impulso o interesse nacional?
9.6 da rivalidade emergente às relações perigosas Tomando como eixo de sua análise a década de 1970, o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira lançou novo conceito qualificativo das relações entre Brasil e Estados Unidos no livro A rivalidade emergente, publicado em 1989. O leitor percebe, todavia, na disputa pelo poder entre as tendências subserviente e autônoma da política exterior brasileira, que o embrião da rivalidade nascera nos anos 1950, quando à política exterior dos Estados Unidos já repugnava a industrialização brasileira. Na década de 1970, o Brasil crescia em ritmo próximo a 10% ao ano, mas o crescimento não deve ser tomado como único fator determinante da rivalidade. O projeto Vargas-Aranha alcançara maturidade e o desenvolvimento
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atingira sua terceira fase, para além da indústria de transformação e de insumos básicos: a da tecnologia avançada. E a política exterior acompanhava essa evolução das forças, diversificando parcerias estratégicas, ao mesmo tempo que os Estados Unidos perdiam peso relativo como potência global para outros centros de poder e nas relações com o Brasil para outros parceiros. Ademais, no domínio da política de segurança, a indústria bélica brasileira provia a nação de meios de dissuasão e defesa, próximos da suficiência. A rivalidade emergente não apaga, contudo, a parceria estratégica com os Estados Unidos e seria estultícia política sacrificar a marcha dessa última, erro diante do qual os homens de Estado do Brasil não sucumbiram. O conceito de rivalidade emergente relaciona-se à nova situação a que acede o Brasil quando se aproxima daquele terceiro patamar de desenvolvimento: anda por si e para si, dependendo de terceiros, quase e de modo, tanto e quanto as grandes potências dependem de terceiros. A administração das relações bilaterais torna-se ainda mais difícil nessa situação. A rivalidade emergente se decompõe em elementos que a consubstanciam e desdobram: a) as exportações brasileiras competem com a produção norte-americana dentro do próprio mercado norte-americano e em terceiros mercados, o que induz, por parte da potência do norte, sob pressão de lobbies empresariais e sociais, medidas de proteção de interesses contrariados; b) a política brasileira de segurança desatrela-se da dependência tecnológica dos Estados Unidos e são denunciados todos os acordos de cooperação nesse ramo; c) a indústria bélica brasileira converte o País em quinto maior exportador de armas do mundo e, em razão de sua autonomia decisória e da capacidade de abastecer eventuais inimigos, limita o controle norte-americano da segurança em esfera global; d) os governos brasileiros consideram direito natural vinculado ao desenvolvimento o acesso a tecnologias sensíveis pela via da cooperação internacional ou da inovação própria, mas os governos norte-americanos sonegam a cooperação e se esforçam por obstruí-la com terceiros em nome da própria superioridade a preservar; e) enfim, o pêndulo da política exterior brasileira aproxima-se do ponto extremo de soberania com autonomia decisória, acopladas ao desenvolvimento e ao universalismo de ação, engendrando novas parcerias estratégicas que diminuem o peso dos Estados Unidos nas relações exteriores. Esse pano de fundo estrutural complica a administração das relações bilaterais, mormente quando os governos norte-americanos, reagindo à rivali-
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dade, adotam a tática de retaliações a interesses brasileiros. Uma diplomacia de plantão monta vigília, movida pela conjuntura, mesmo porque a nenhuma das partes interessava a deterioração das relações bilaterais e seu agravamento. A tendência de alinhamento com subserviência, sempre subjacente ao pensamento político brasileiro de direita, alertava para os riscos da perda de benefícios daquela relação especial posta em marcha desde os anos 1950 como parceria estratégica. Quando os neoliberais ascenderam ao poder no Brasil, em 1990, com o governo Fernando Collor de Melo, consideraram amadorista e pueril o esquema de relações bilaterais conduzido com dificuldades sob o signo da rivalidade e se dispuseram a consertá-lo, repondo o velho estilo do pensamento de Neves da Fontoura, o de alinhamento com subserviência. O mesmo Moniz Bandeira, especialista sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos, lançou, então, novo livro, cujo período de análise abrange de 1990 a 2004 e cujo conceito-chave de interpretação figura no próprio título: As relações perigosas. A demonstração empírica do conceito não convence, considerando os governos de Bill Clinton e Itamar Franco, mas adquire consistência, desde a era George W. Bush. Fernando Henrique Cardoso perdeu-se entre as tendências históricas brasileiras e não soube administrar as relações com os Estados Unidos, que fustigava com o discurso político enquanto se submetia economicamente. O conceito de relações perigosas carrega, do lado norte-americano, elementos da rivalidade emergente como força de determinação e, do lado brasileiro, o ingrediente histórico da subserviência decisória. Com efeito, os neoliberais dos anos 1990, sob impulso da filosofia política de Collor de Melo e sob os parâmetros de ação do Ministro da Fazenda da era Cardoso, Pedro Malan, minaram a rivalidade, dando curso livre à realização de interesses unilaterais norte-americanos no Brasil. Cederam em boa medida o mercado de consumo e os sistemas produtivo e de serviços à penetração de bens, capitais e empresas norte-americanos, mediante abertura não negociada do mercado e mecanismos de privatização com alienação de ativos a preços irrisórios. O perigo estava no efeito estrutural que a nova política engendrou: feriu o núcleo central da economia nacional construído pela nação durante décadas de esforços, tornou extrema a vulnerabilidade externa que essa própria dependência criou e que o agigantamento da dívida externa agravou. As relações perigosas afetam, por outro lado, o terceiro patamar do processo de desenvolvimento nacional, aquele da aquisição de tecnologias sen-
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síveis nas esferas espacial, aeronáutica, eletrônica, nuclear e missilística. O governo brasileiro firmou todos os acordos sugeridos pelos Estados Unidos para controle dessas tecnologias, cedendo sua autonomia decisória à promessa de cooperação, que não veio. O desenvolvimento tecnológico foi obstruído assim como desenvolvimento brasileiro, a não ser quando impulsionado por empresas que se instalavam no País com o fim de se apropriar de seu mercado. O País teve de procurar outros parceiros ou lançar mão de recursos próprios que uma globalização assimétrica em seus benefícios corroía. Em suma, as relações com os Estados Unidos tornam-se perigosas quando: a) minam o desenvolvimento tecnológico do País, que aceita desativar seus projetos estratégicos na área industrial e militar; b) acentuam a dependência da segurança nacional, que se despe de meios de dissuasão e defesa; c) bloqueiam o processo histórico do desenvolvimento, que dispensa inovação própria; d) confrontam visões de mundo e políticas exteriores contraditórias em seus métodos e valores, a norte-americana fazendo combate ao terrorismo pela guerra e à base do choque de civilizações e a brasileira, à base da convivência das diferenças e do combate à pobreza. Durante a era George W. Bush, a partir de 2001, e do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, essas relações perigosas, das quais tinha consciência Fernando Henrique Cardoso, entraram em fase mais aguda. Do modo como andavam, destinavam-se a destruir dois valores históricos da sociedade e da política no Brasil: a vocação industrial e o culto da paz. O primeiro sacrifício em jogo era a vocação industrial. O projeto concebido pelos norte-americanos para implantação da Alca tinha por fim perpetuar a superioridade do vizinho do Norte nos domínios da tecnologia e da indústria, por meio de regimes de mercado e de produção que perpetuassem a disparidade dos níveis de desenvolvimento. Esse intento, denunciado por Cardoso, falhou por decisão de Lula e de seu chanceler, Celso Amorim: as negociações em torno da criação da Alca foram paralisadas enquanto não se atingia o entendimento acerca da reciprocidade de ganhos no processo de integração. O segundo sacrifício em jogo nas relações perigosas, caso vingassem conforme esquema engendrado pela inteligência norte-americana com adesão dos neoliberais brasileiros, dizia respeito à segurança brasileira e à paz universal. O risco de uma intervenção na Amazônia, a pretexto de apoiar o governo da Colômbia em sua guerra contra a guerrilha e o narcotráfico, mas objeti-
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vando apropriar-se dos recursos naturais da região, cresceu, no bojo da política de Bush de combate ao terrorismo, após os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York. As Forças Armadas brasileiras deslocaram, então, a hipótese de guerra, em seu treinamento, do sul para o norte. Essa suspeita acerca da Amazônia e a divergência de concepção da política de segurança vinham, entretanto, da doutrina Bush de intervenção preventiva, que explica a guerra que moveu contra o Iraque. No Brasil, essa guerra foi considerada ilegal, porque não autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU; imoral, porque conduzida pelo fim aparente do combate ao terrorismo e pelo fim concreto de apropriar-se do petróleo; e covarde, porque iniciada após o desarmamento do inimigo por inspetores da ONU e conduzida depois, à revelia da instituição, com superioridade tecnológica quase infinita. Acionar a parceria estratégica, propósitos de Bush e Lula, converte-se em exercício político de uma partida de xadrez, em que os jogadores querem derrubar o rei adversário. Os Estados Unidos criticam na OMC a política comercial brasileira, propondo a receita das estruturas hegemônicas, com apoio natural da União Européia e do Japão: a melhoria da renda per capita dos brasileiros depende de maior abertura para importação de bens industriais e serviços. Ou seja, a receita clássica da potência central aos países emergentes: façam o que eu mando, não o que eu fiz. Por outro lado, os déficits conjugados norte-americanos, fiscal e do comércio exterior, além da desvalorização do dólar face ao euro, fazem repensar o papel da parceria estratégica. A tática de firmar acordos bilaterais de comércio, além de preservar a essência da superioridade econômica estrutural, compromete o avanço do livre-comércio mediante ordenamento global, que mais convém aos interesses brasileiros. Excluir Brasil e Índia do sistema geral de preferência, propósito em cogitação nos Estados Unidos, significa reconhecer o avanço da economia brasileira rumo ao estádio avançado, porém não envolve outro fim além de ampliar o sutil protecionismo da economia norte-americana, eliminando 3,6 bilhões de dólares que corresponderam às exportações brasileiras, por esse sistema, em 2005. Promover o livre-comércio e o livre fluxo dos capitais e empreendimentos em outros países e preservar alto nível de protecionismo comercial, de subsídios diretos e indiretos à produção e de regulações econômicas para si, quando não percebido por países emergentes como o Brasil, resulta em relações bilaterais perigosas.
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9.7 as relações triangulares As relações entre o Brasil e seus vizinhos, analisadas no Capítulo 8, são tributárias, em boa medida, das relações dos países da região com os Estados Unidos. O esquema de relações triangulares ganhou peso desde a Segunda Guerra Mundial e compõe o conjunto de conceitos explicativos para as relações internacionais regionais. Ao tempo da Guerra Fria, as relações triangulares adquiriram importância em razão da perseverança de atitude norte-americana diante dos países da América Latina e do Caribe. Nessa época, em razão da proximidade com Cuba, a política de combate ao comunismo governava a política exterior dos Estados Unidos para a região, considerada, nos cálculos da inteligência norte-americana, área contígua e reserva estratégica de sua política global de expansão econômica e de alianças militares. O esquema de relações triangulares tomava impulso inicial nas relações bilaterais, de forma simples: o país que aderisse àquela política por inteiro tirava recompensa das relações com os Estados Unidos, sob a forma de empréstimos ou “ajuda”, ao passo que o país que evidenciasse grau acentuado de autonomia a tal respeito era castigado. Os mecanismos desse jogo estendiam-se, entretanto, às relações que países da América Latina e Caribe mantinham entre si. Esses países dividiam-se em grupos. De um lado, governos que preservavam a autonomia decisória, então chamada de nacionalismo, na avaliação norte-americana uma atitude pró-comunista e hostil; de outro, os que alinhavam sua política exterior à visão dual de mundo das fronteiras ideológicas. Destarte, uns corriam atrás dos Estados Unidos, independentemente da atitude de seus vizinhos. A discórdia política regional estabelecia-se em conseqüência disso. Enfim, ao esquema triangular eram sacrificados os valores da democracia, dos direitos humanos e da cidadania. Com efeito, o elemento mais duradouro a contaminar a política exterior dos Estados Unidos para a zona contígua da América Latina consistia na progressiva degenerescência moral de sua ação. A responsabilidade pela implantação de regimes autoritários e pela coerção social deve-se, precisamente, a esse conluio entre dirigentes latino-americanos e métodos norte-americanos de ação. Em razão disso tudo, a efervescência da opinião latino-americana, que se dividia ante apelos contraditórios, também era permanente e colocava os governos em dificuldade para a tomada de decisões.
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Por trás do esquema triangular de relações interamericanas prevalecia o interesse próprio e unilateral dos Estados Unidos, que exerciam sem grandes empecilhos a hegemonia hemisférica. O padrão norte-americano de comportamento, chamado de unilateralismo à era da globalização, deu origem, como vimos, às noções de rivalidade emergente e relações perigosas. E levou certas correntes de pensamento político na América Latina a sugerir que se imitasse os Estados Unidos em seu comportamento externo em vez de confrontá-los. Finda a Guerra Fria, o esquema de relações triangulares adquire novos contornos, sem diminuir sua capacidade de determinação sobre as relações hemisféricas. As experiências neoliberais da América Latina tomaram impulso por si, tirando força da opinião pública e das lideranças locais, sem que se possa considerá-las efeito da ação norte-americana. Esta se imiscuiu, contudo, para obstar o andamento de processos de integração com senso de realização de interesses locais ou com caráter de ameaça à hegemonia norte-americana. A mesma corrida de uns aos gabinetes de Washington se mantém, de países que não vão mais atrás da recompensa por combater o comunismo, que eram empréstimos e linhas de crédito, mas do acordo que assegure eventual acesso privilegiado ao mercado de consumo norte-americano. Essa atitude isolada, capaz, contudo, de formar a fila de países atrás dos Estados Unidos, introduz a discórdia política nas relações interlatinas e produz efeito sobre os processos de integração em curso. Uma divisão entre países com vocação industrial, entre os quais Argentina, Brasil e Venezuela, e países com vocação primária, liderados pelo Chile — os primeiros concebendo às relações e à integração hemisférica um risco, os segundos, um benefício — evidencia a continuidade de impactos do esquema triangular. Na era da globalização, o esquema triangular extrapola o hemisfério e agrega uma dimensão global. O próprio Congresso norte-americano percebeu o fenômeno, ao criticar os efeitos da política latino-americana de Bush. Combatendo regimes de esquerda, como o de Castro em Cuba, ou ditos populistas, como o de Chávez na Venezuela, os Estados Unidos não fizeram avançar a Alca, obtiveram irrisórios acordos bilaterais de comércio em mercados pouco relevantes e estimularam os grandes países da América do Sul a abrir a área em favor da penetração de interesses europeus, russos e chineses, especialmente nos campos do armamento, do comércio e da cooperação econômica.
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De que modo as relações triangulares condicionam a política e a ação regionais do Brasil? A primeira consideração diz respeito à parceria estratégica que jaz como curso profundo das relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, uma conquista histórica como se fosse um paradigma de ganhos recíprocos que a tudo se sobrepõe e que nenhuma das partes ousa descartar. A segunda consideração evoca a afirmação de longo prazo, embora com oscilações de curto prazo, da tendência brasileira de andar por si e para si, precisamente a exemplo do comportamento norte-americano. Em terceiro lugar, como se sabe, em relações internacionais respeita-se apenas aquele que primeiro se dá o respeito. As relações triangulares indicam, por exemplo, que o eixo entre Brasil e Argentina destina-se a reforçar o poder de barganha sobre a cena internacional, que a idéia de unidade política, econômica e de segurança da América do Sul envolve competição entre interesses hemisféricos, que certas dificuldades nessa rota advêm do cálculo de ganhos e perdas feito pelos Estados em sua inclinação pelo parceiro do Norte ou pelo eixo do Sul, que agrega enfim a Venezuela. Em razão de tais pressupostos, como também da disparidade de tamanho entre o Brasil e seus vizinhos, tomados isoladamente, a competição por ascendência entre Brasil e Estados Unidos, com o objetivo de realizar interesses, integra o jogo das relações hemisféricas. O conflito de lideranças se observa no intento de controlar os processos de integração em seu benefício, as amizades e conexões bilaterais também, enfim, a divisão ou a harmonia hemisférica. As relações triangulares revelam, em suma, que o mote de Rio Branco, marchar com, há muito tempo deixou para trás o servilismo com que o pensamento conservador brasileiro o recheou.
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10.1 relações de intimidade Como se observou no Capítulo 9, os Estados Unidos puseram em marcha uma longa e relevante parceria da qual o Brasil tirou benefícios para seu desenvolvimento, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Os elementos que ligam o Brasil à Europa Ocidental lançam, contudo, raízes mais profundas no passado e causam efeitos mais relevantes e duradouros para a formação nacional. Ao longo dos últimos séculos, as relações entre Europa e Brasil apóiam-se sobre duas bases, uma social, envolvendo as dimensões étnicas e culturais, outra econômica, similar à contribuição norte-americana para o desenvolvimento. Quanto ao primeiro aspecto, observa-se certo equilíbrio de contribuição dos grandes países europeus comparados uns aos outros, embora nos casos da Inglaterra e da França, desde a Independência até por volta de 1930, tenha se sobreposto o peso da influência cultural, e nos casos de Portugal, Espanha, Itália e Alemanha, a essa influência tenha se agregado o elemento étnico. Quanto ao segundo aspecto, por muito tempo prevaleceu a preeminência inglesa na formação nacional, mas depois fortes laços econômicos estabeleceram-se com inúmeros outros países, de tal sorte que a presença de empreendimentos econômicos europeus no Brasil, incluindo Portugal e Espanha, novos chegados, atingiu o sistema empresarial em todas as suas esferas de ação, destacando-se empreendimentos alemães, franceses e italianos, mas de países de menor porte também, como Holanda, Suécia, Suíça, Noruega, Finlândia e outros. Sobre esses vínculos bilaterais de profunda intimidade, os processos de integração que deram origem à União Européia e ao Mercosul vêm atraindo as negociações entre os países que compõem os dois blocos, com impacto peculiar e diferenciado relativamente aos Estados Unidos, pois que as negociações, nesse eixo europeu, alcançam o domínio dos valores da cidadania, para além dos fluxos das finanças, do comércio e dos empreendimentos. Por três vezes, durante o século XX, o Brasil vai à Europa e volta: ao lado dos Estados Unidos, envolveu-se na Primeira Guerra e ainda mais na Segunda Guerra Mundial e deu uma contribuição positiva ao funcionamento da Liga das Nações, com sede em Genebra, desde sua criação, logo após a Primeira Guerra até 1926, quando se retirou. Apesar de tão relevantes, as relações entre Brasil e Europa carecem de estudos bilaterais entre países, além de inexistirem sínteses acerca das re-
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lações entre as duas regiões. Os analistas brasileiros ainda privilegiam as relações com Argentina e Estados Unidos em suas pesquisas. Recentemente, algumas teses de doutorado, em maior número estudos monográficos e artigos em periódicos acerca das relações com a Europa, estão surgindo. Alguns estudos bilaterais de longo alcance foram publicados ou estão em andamento, empreendidos, sobretudo, por pesquisadores da Universidade de Brasília, a respeito das relações com Portugal, Itália, Alemanha, França e Inglaterra. Mas outros parceiros, também importantes, não despertam ainda a atenção de estudiosos, nesse sentido do longo alcance, como aqueles que poderiam contemplar as relações com Holanda, Suécia, Noruega, Polônia e Suíça, entre outros. Em suma, o conhecimento disponível não satisfaz, se considerarmos o conhecimento necessário um do outro tanto para estabelecer as influências sobre a formação nacional quanto para a gerência de relações entre os dois lados.
10.2 a esfera das relações sociais e culturais A antropologia científica brasileira deu seus primeiros passos entre o fim do século XIX e o início do XX. Nasceu de uma curiosidade, condição própria a pesquisadores de todos os tempos, que formulam à realidade um problema e utilizam o método científico para buscar a resposta. A pergunta que intrigava os primeiros antropólogos brasileiros referia-se à natureza do homem brasileiro: o que é o “ser brasileiro”? Os escritos de Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha vinculam a essência do ser brasileiro a dois fatores: o ambiental, o clima tropical provido pela natureza, e o racial, a mestiçagem, provida pelas relações sociais. Os dois fatores, clima e mestiçagem, conduzem esses estudiosos a conclusões que eles próprios consideram pessimistas por representarem elementos que criam dificuldade ao desenvolvimento da civilização, e por configurarem o ser brasileiro, em sua essência, como o mestiço avesso ao trabalho. Essas conclusões são próprias da época em que as teorias racistas faziam sucesso em toda parte, como o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, do conde de Gobineau, que serviu à diplomacia francesa no Rio de Janeiro, tornando-se, inclusive, amigo de D. Pedro II, e que teria, ademais, inspirado os teóricos racistas germanos, além de romances e novelas. Quando o escritor, pedagogo e antropólogo Manuel Bonfim escreve, já havia-se adentrado a era pós-racista, por isso ele refuta as teses de seus predecessores: os males da ci-
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vilização não devem ser tributados à raça ou à natureza, porém às condições de vida criadas pelo colonialismo. Contudo, o dilema do “ser brasileiro”, mestiço indolente, ante a capacidade civilizatória, encontrará solução mais tarde, já durante a era Vargas, nos escritos de Gilberto Freyre: o teórico da democracia racial, mediante a cultura do trabalho que promove, supera as conclusões anteriores e leva a antropologia brasileira do pessimismo original ao otimismo da era da industrialização. A transição da Monarquia à República, consumada em 1889, ocorre durante a primeira fase do debate antropológico, quando prevaleciam as idéias racistas. O debate em torno da purificação racial, ou seja, da melhoria de essência do “ser brasileiro”, travou-se, pela primeira vez, em 1879, quando o governo incluiu nas despesas do orçamento uma missão à China com o objetivo de estabelecer o comércio bilateral e uma corrente asiática de imigração em massa ao Brasil. Duas eminentes inteligências nacionais, Joaquim Nabuco e D’Escragnolle Taunay, recorrem a argumentos de toda ordem, políticos, econômicos, históricos, biológicos e racistas, para se oporem à entrada dos coolies, como eram chamados, então, os trabalhadores chineses. A raça brasileira, afirmavam, já se havia deteriorado pela contaminação africana e nada aconselhava contaminá-la, desta feita, com o ingrediente amarelo. O governo brasileiro movia-se nesse ambiente intelectual, quando buscava por todo modo promover a imigração com o objetivo de dotar a lavoura, particularmente a produção do café, de braços suficientes à sua expansão. Embora a missão diplomática enviada à China em 1879 demonstrasse que, à época da Monarquia, o argumento racial não se sobrepunha ao econômico na perspectiva dos agricultores e do governo, a República voltou-se com mais determinação à política de branqueamento, dirigida à preferência pelo imigrante europeu, segundo conclusão da historiografia. O decreto da grande naturalização baixado pela República em 15 de dezembro de 1889, quando completava apenas um mês de existência, estabeleceu que todo estrangeiro residente no Brasil há dois anos adquiria automaticamente a cidadania brasileira, caso não fizesse uma declaração em contrário. A imigração européia de massa para o Brasil precedeu, todavia, a proclamação da República, porquanto esteve em andamento desde 1880. Durante a última década da Monarquia aportaram imigrantes em número comparável a todo o século XIX até então. Levantamentos estatísticos estabelecem que somente um século depois, por volta de 1980, o Brasil se converteu de país
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de imigração a país de emigração. Desde a Independência até 1968, período aproximado de um século e meio, as estatísticas brasileiras de longo prazo revelam que chegaram da Europa cinco milhões e seiscentos mil imigrantes. A ordem numérica decrescente das correntes imigratórias indica que somente portugueses e italianos ultrapassaram um milhão e meio, vindo em seguida espanhóis (mais de setecentos mil) e alemães (pouco menos de trezentos mil). Entre 1850 e 1915, época da grande imigração européia para a América, cerca de 45 milhões de europeus dirigiram-se a países americanos, cabendo ao Brasil o terceiro lugar como receptor, depois de Estados Unidos e Argentina. Os descendentes de europeus, não miscigenados, miscigenados entre si ou ainda com outras etnias, compõem atualmente a maioria da população e penetram todo o tecido social em razão da grande mobilidade interna. Existem, contudo, em grandes cidades, bairros que se assemelham a pequenas cidades dentro delas, como o bairro da Liberdade, em São Paulo, que reúne grande parte da comunidade japonesa, e também regiões em alguns estados da Federação que ainda guardam costumes e valores da época das colônias, reproduzindo aqui e ali, em dimensão reduzida, algo parecido a outras Itália, Alemanha, Holanda, Polônia, Suíça etc. O encontro dessas etnias européias com afro-descendentes, indígenas e asiáticos produziu a heterogeneidade social e deu o toque à civilização brasileira, aberta, alegre, um pouco mais tolerante diante da convivência das diferenças, quando comparada a outras sociedades, por isso pacifista em sua visão de mundo e universalista na tradição da política exterior. O elemento cultural, que nas sociedades se apóia sobre bases étnicas tanto quanto sobre contatos entre civilizações, condiciona as relações internacionais. O fardo do homem branco, incorporado à expansão européia do século XIX sobre a África, a Ásia e o Próximo Oriente, refletia como conceito a presunção de superioridade racial e cultural européia, pois que os europeus se consideravam responsáveis pelo avanço do processo civilizatório global. A recente teoria do choque de civilizações que, em boa medida inspira a política norte-americana para o mundo muçulmano, reflete, de forma similar, a presunção de superioridade da cultura e da cidadania anglo-saxônica sobre as demais. Há décadas, os europeus superaram sua presunção de superioridade cultural sobre outras formações sociais, porém os norte-americanos da era George W. Bush ainda não demonstram tê-lo feito.
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Entre os países europeus, constituíram-se dois grupos de influências diferenciadas sobre o Brasil. Por um lado, Portugal, Espanha, Alemanha, Polônia e outros menores como Holanda, Romênia e Finlândia que agregaram elementos à composição étnica e cultural. Por outro, a França delineou traços da cultura brasileira e a Inglaterra serviu de molde às instituições políticas quando era tomada, pelos homens de Estado do Brasil, como modelo de civilização. Denis Rolland organizou um estudo da relação entre intelectuais, Estado e Nação, em âmbito geográfico que se estende do Brasil e da América Latina à Europa, espaço de civilização ocidental para as elites intelectuais. Esse estudo distingue três tempos de influências nas relações entre as duas margens do Atlântico por meio de intelectuais que concebem o Estado: no século XIX, era da modernidade, da formação dos Estados-nações e dos intelectuais de elite; na primeira metade do século XX, era dos Estados novos, conceito forjado, então, pela inteligência política ocidental; finalmente, a era da dissociação política promovida pelos regimes militares da América Latina durante a segunda metade do século XX. O segundo grupo de influência cultural e política foi sendo substituído pelos Estados Unidos desde a proclamação da República, não sem choque civilizatório entre o universalismo brasileiro e a carga ideológica da política exterior norte-americana à época da Guerra Fria, bem como depois, na era da globalização, com sua presunção de superioridade cidadã e seu unilateralismo. Essas evidências humanas deixam perceber a profundidade e a extensão da contribuição européia à composição da sociedade brasileira, quer se leve em conta a política de branqueamento da República quer não. A formação do bloco europeu, a União Européia, que entrelaça por meio da vontade política elementos de uma sociedade internacional feita de diversidades — etnias, línguas, costumes e culturas — equivale a outra experiência histórica, em parte distinta e em parte similar à formação social brasileira. Lá, uma superestrutura política e jurídica dá cobertura à união, formada de Estados, etnias e culturas. Aqui, uma fusão de base de raças e culturas confere união política e jurídica à sociedade. Mas os elementos tanto de base quanto de cobertura das duas experiências tocaram-se através dos tempos. Isso tudo requer e explica o zelo que os dirigentes de ambos os lados têm demonstrado com os valores da cidadania nas negociações bilaterais, ao lado dos interesses de ordem estritamente econômica e de poder.
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10.3 a esfera das relações econômicas e de poder As três idas do Brasil à Europa durante o século XX — a participação nas duas grandes guerras e a presença na Liga das Nações — não se destinavam em primeira linha a fazer a guerra dos outros ou a envolver-se em suas políticas, antes tinham objetivos de interesse próprio: reforçar o poder nacional sobre o cenário internacional e influir sobre o delineamento da ordem mundial. Com esses intuitos, a diplomacia brasileira, indo a reboque da contribuição militar e auferindo ganhos da vitória aliada, marcou presença ativa, após as duas guerras, nas negociações de paz e na definição de parâmetros da nova ordem internacional. Estava em gestação, com efeito, uma ordem diferente da hegemonia coletiva européia que prevalecera sobre o mundo por séculos e entrava em crise durante a primeira metade do século XX. Os flancos do poder, sob impulso de duas novas potências emergentes, Estados Unidos e Rússia, depois União Soviética, faziam-se ouvir e forçavam os europeus a ceder espaço na configuração daqueles parâmetros. As relações econômicas e de poder entre o Brasil e a Europa foram embaladas, todavia, por três vindas. A competição por influência, ou seja, a busca por equilíbrio de poder e de realização de interesses entre Europa e Estados Unidos verifica-se nas três oportunidades. Entre os tratados de 1810 com a Grã-Bretanha e a Revolução de 1930, essa grande potência européia cedeu aos Estados Unidos sua preeminência nas relações comerciais e nos fluxos de capital. Entre 1930 e 1939, os Estados Unidos cederam à Alemanha o equilíbrio desses fluxos de comércio e capitais, situação que parecia retornar mais adiante, durante a década de 1970. De 1970 a nossos dias, a competição por equilíbrio se mantém entre os Estados Unidos e a Comunidade Econômica Européia, depois União Européia, embora essa competição venha cedendo, à época da globalização, à ação de estruturas hegemônicas que unem europeus e norte-americanos como bloco de poder diante dos países emergentes, cada parte desejando definir os parâmetros da governança global em favor de interesses próprios, cuja difícil convergência se busca por meio das negociações multilaterais. A análise comparada das relações entre Brasil e Europa, por um lado, e Brasil e Estados Unidos, por outro, conduz à identificação de diferenças em três planos. Em primeiro lugar, observa-se que os interesses materiais comandam a ação externa de todos os governos em quaisquer circunstâncias, porém, a eles, os europeus agregam valores inerentes à cidadania, enquanto
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os Estados Unidos se restringem em sua ação externa àqueles interesses e a eles subordinam cultura e ideologia. Essa constatação é válida mesmo quando os direitos humanos e a democracia figuram aparentemente nos objetivos da ação norte-americana para a América Latina, porquanto facilmente tais valores são sacrificados aos interesses materiais, ideológicos ou geopolíticos, como inequivocamente se comprova à época da Guerra Fria. Direitos humanos e democracia correspondem a símbolos norte-americanos, válidos para si e não para os outros, por isso fora do escopo da política exterior. Em segundo plano e quanto ao modo de fazer política exterior, também se verifica diferença de longo alcance entre europeus e norte-americanos com relação ao Brasil: no trato das questões bilaterais, a flexibilidade dos primeiros, que consideram os brasileiros seus aparentados, se distingue da dureza dos segundos, que não levam em consideração afinidades de tal natureza. Enfim, em terceiro lugar, essas duas diferenças — valores versus interesses, flexibilidade versus dureza — explicam, por um lado, a intensidade e a variedade da cooperação técnica prestada pela Europa para somar-se ao esforço brasileiro no sentido de socializar os benefícios do modelo de desenvolvimento e, por outro, a recusa de cooperação técnica por parte dos norte-americanos. Essas três diferenças tendem a diluir-se nas negociações multilaterais no início do século XXI, quando estruturas hegemônicas do capitalismo unem europeus e norte-americanos diante dos países emergentes, entre esses o Brasil, configurando um dualismo de visão e de movimento pelo menos no âmbito do ordenamento sistêmico das relações internacionais. Os Estados europeus desempenham papel diferenciado sobre a formação nacional e as relações exteriores do Brasil, na medida que se orientam por impulsos próprios e fins específicos a realizar e por isso exercem peso maior ou menor, proporcional a seu porte ou a seus intentos externos. Mesmo na fase de formação do bloco europeu, essa presença diferenciada das unidades políticas nacionais prossegue em seus efeitos. A Alemanha se destaca entre os parceiros do Brasil na Europa. Os dois objetivos permanentes da presença alemã no Brasil, a expansão para fora de sua economia e a competição com os Estados Unidos, foram tomados pelos governos brasileiros de melhor visão política como oportunidades de aumentar a capacidade de atração de fatores externos para o desenvolvimento nacional. Os governos brasileiros acederam, destarte, aos objetivos alemães, porquanto perceberam que se abriam possibilidades de uma colaboração be-
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néfica. A gerência adequada dessas oportunidades de lado a lado fez da Alemanha o único país a competir, em intensidade comparável, com os Estados Unidos dentro do Brasil. Países como Itália, Holanda, Suíça e Suécia orientam-se pelo mesmo objetivo a realizar no Brasil: reforçar a própria economia mediante sua internacionalização, que significa fazer investimentos e apropriar-se de parte do sistema produtivo e do mercado brasileiros. Dois grandes países tomaram distância do Brasil. A Inglaterra, cuja preeminência no século XIX se derramava sobre a vida política, o comércio e as finanças, e a França que não tirou partido da influência cultural alcançada. Esses dois países talvez se tenham deixado seduzir pelas oportunidades que lhes ofereciam seus vastos impérios após a descolonização, porém manifestam, durante a fase aberta recentemente pela globalização, a intenção de preencher aquele tempo vazio. Especialmente, a França de Jacques Chirac, que se encontra com Luiz Inácio Lula da Silva para afirmar a existência de uma parceria estratégica bilateral a implementar por laços estreitos de interpenetração. A globalização abriu, por outro lado, oportunidades que os dois países ibéricos souberam aproveitar de forma mais pontual e rápida do que os outros países europeus. Com efeito, Espanha e Portugal são exemplos de relações bilaterais que se intensificam abruptamente, na esfera política e econômica, como também acadêmica, especificamente de parte da Espanha, a partir de 1990, com reimpulso desde 1995. As mudanças dos regimes políticos nos dois países europeus introduziram a nova fase, todavia, foram opções corretas à era da globalização que lançaram as bases de parcerias que também seriam chamadas de estratégicas nas esferas política e econômica, desde que o Brasil converteu-se em área preferencial de investimentos apoiados por políticas de Estado em Portugal e Espanha. O fator cultura foi determinante na opção dos países ibéricos, a demonstrar que representa força profunda da História a explicar opções estratégicas nas esferas política, econômica e de poder. Portugal, que se conservara distante e suficiente durante o regime salazarista, vivendo da ilusão do colonialismo tardio, fez sua opção política pela Europa e econômica pelo Brasil, quando julgou chegado o momento de internacionalizar suas empresas, expandindo-as para fora. Essa aproximação substantiva da economia portuguesa à brasileira esteve nos propósitos e nas
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iniciativas de dois grandes estadistas, Mário Soares e Antônio Guterres, que se dispuseram a redesenhar a dimensão externa da geografia econômica de seu país. Os laços da língua e da cultura foram elementos essenciais de cálculo dessa reorientação externa, porquanto criavam, a seu ver, condições favoráveis com as quais apenas a zona hispânica competia. A Espanha, por sua vez, abandonou desde o fim do franquismo uma histórica hispanidad antibrasileira e também estabeleceu como escopo estratégico, ao tempo da globalização, expandir suas empresas para fora. Desprovidos de entraves culturais, os empreendimentos espanhóis seguiram o caminho dos portugueses e aportaram no Brasil em grande escala, onde o terreno se fazia propício em razão da irmandade étnica e da proximidade lingüística. Não seria tão racional à Espanha dirigir os investimentos para a Europa, em razão da baixa competitividade sistêmica que ostentava, ou para outras áreas do planeta, em razão da minguada experiência em lidar com outras culturas e com o mundo dos negócios fora das próprias fronteiras. Esses dois países de recursos escassos e de pouca experiência quanto à expansão de seus negócios pelo mundo dão prova de grande sabedoria ao conceber corretamente, e implementar com eficiência, a verdadeira interdependência da época da globalização, à diferença do Brasil e demais países latino-americanos, que optaram, sob o signo neoliberal em que viviam entre 1990 e o início do século XXI, pela alienação de seus ativos e dependência estrutural nos domínios da tecnologia, das finanças e dos empreendimentos. Um exemplo comparado de aproveitamento e desperdício da oportunidade de aceder à interdependência sistêmica. O mundo abriu essa oportunidade a Portugal e Espanha, como a Brasil e Argentina, que estavam todos em situação similar quanto ao nível de desenvolvimento alcançado, porém, do outro lado do Atlântico houve homens de Estado com visão adequada da globalização, enquanto deste lado os dirigentes se iludiram com a visão utópica do neoliberalismo, que lhes aconselhava uma estratégia passiva de relações internacionais. Também um exemplo de como a visão de mundo e a vontade política dos Estados se sobrepõem à governança global e traçam, como ocorria antes da globalização, o fulcro pelo qual desliza o destino dos povos. Tanto assim é, que foi necessário esperar pela substituição na presidência do Brasil de um homem com auréola de sábio e estadista, Fernando Henrique Cardoso, por um operário de origem humilde, Luiz Inácio Lula da Silva, para se assistir à mudança de visão de mundo e das relações internacionais e
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à transição da subserviência e da utopia à afirmação nacional e ao realismo. Enfim, com Lula o Brasil encaminha-se para a interdependência real da era da globalização ao tornar-se um dos países emergentes com mais elevado índice de internacionalização de seu capital e de seus empreendimentos. O reconhecimento desse avanço na qualidade nas relações internacionais do Brasil, de que Portugal e Espanha deram exemplo anteriormente, não dispensa o analista de ficar atento a um problema substantivo que se criou nas relações entre Brasil e Europa. A política exterior brasileira tomava a Europa como opção alternativa para a dependência hegemônica diante dos Estados Unidos e como vital elemento propulsor do desenvolvimento. Havia, sim, uma política brasileira para a Europa. Lula desfaz essa política, sem substituí-la por outra de mesma envergadura, e confina a relação com a Europa à gerência de conflitos comerciais tópicos, seja na OMC seja em reunião do G8 em São Petersburgo, em 2006, a ponto de ouvir o desdém do próprio Chirac. Por certo, convém ao Brasil recuperar uma linha tradicional de sua política exterior, de relações substantivas com a Europa, assim como lhe convém não sacrificar a parceria histórica com os Estados Unidos. Ambas são linhas de força da ação externa, que repousam sobre potenciais distintos, porém administrados ao longo do tempo com exímia perícia pelos dirigente brasileiros.
10.4 relações entre blocos As negociações multilaterais entre a União Européia e os blocos de países da América Latina, ou a América Latina tomada como uma entidade política, apresentam duas características na virada do milênio: por um lado, a baixa operacionalidade, talvez porque essas negociações envolvam países muito numerosos e com interesses que não coincidem a ponto de se poder fixar objetivos de ação concretos e comuns na esfera econômica e de poder; por outro, essas relações refletem o grau de parentesco descrito anteriormente e carregam, por isso, valores da democracia e da cidadania. Essa segunda característica é própria das negociações entre as duas regiões e não se reproduz em outras negociações multilaterais dos países americanos. Duas são também as modalidades de negociações multilaterais entre Europa e América Latina: entre blocos constituídos e entre regiões específicas. Quanto à primeira, convém examinar o Acordo Mercosul-União Européia, quanto à segunda, as cúpulas que reúnem chefes de Estado ou de governos de determinados países.
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O Acordo entre Mercosul e União Européia começou a ser negociado em 1995. Por meio das negociações entre os dois blocos, buscou-se estabelecer uma área comum de livre-comércio. Além desse objetivo econômico concreto, as negociações se destinam a realizar outros objetivos na esfera da convivência humana e da comunhão de valores. Quinze grupos técnicos se reúnem em rodadas sucessivas destinadas a fixar parâmetros de relações de profundo alcance, tanto econômicas quanto políticas e humanísticas. Autoridades econômicas e segmentos da opinião pública que por elas se deixam guiar manifestam, amiúde, o entendimento segundo o qual as relações comerciais constituem o escopo exclusivo. Instituições idôneas como a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) fizeram simulações comparadas acerca dos efeitos que a eventual entrada em vigor da Área de Livre Comércio Mercosul-União Européia, ou da Área de Livre Comércio das Américas, produziria sobre as relações econômicas internacionais do Brasil. Enquanto a conclusão da FGV pendia para o lado da Europa, a conclusão do Ipea indicava um equilíbrio de vantagens, em razão da importância do mercado norte-americano. Os interesses do comércio nas negociações entre os dois blocos permanecem, ao que parece, no centro das preocupações dos agentes de lado a lado. Quanto mais se avança no tempo, desde o fim da Guerra Fria, mais evidente se torna essa percepção. A importância que se atribui ao comércio submete os resultados da negociação em seu conjunto e comprova, mais uma vez, que países ou blocos conduzem suas decisões externas dando prioridade aos interesses econômicos imediatos e pondo em segundo plano boa vontade ou comunhão de valores humanistas. Nos primeiros anos do século XXI, como não se chega ao entendimento nas ofertas que um lado consente em fazer diante das ofertas do outro, as negociações andam travadas entre Mercosul e União Européia, como também no seio da Alca e da própria OMC. Essa crise geral do multilateralismo exibe dois significados: em boa medida deriva da crise econômica, social e política em que mergulhou a América Latina após o malogro das experiências neoliberais; mas revela, por outro lado, uma tomada de consciência da opinião pública e dos dirigentes latinos que substituíram os neoliberais e que expressam visão de mundo realista e percepção adequada de interesses a defender nas negociações internacionais. A hipótese de que a área de livre-comércio entre Mercosul e União Européia se estabeleça como alternativa à Alca, pondo-se em jogo simulta-
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neamente interesses econômicos e valores da cidadania, no primeiro caso, e interesses econômicos exclusivos, no segundo, certamente contamina o cálculo político dos homens de Estado europeus. E explica as cúpulas entre governantes europeus e latino-americanos, mesmo que também se tenha institucionalizado a cúpula hemisférica na América. A Cúpula Mercosul-União Européia, instituída em 1999, convive nos primeiros anos do século XXI com duas outras, a Euro-Latino-americana e a Ibero-Latino-americana. Essas reuniões de chefes de Estado ou de seus representantes não apresentam caráter técnico, mas refletem as respectivas visões de mundo e das relações internacionais dos países envolvidos. Os grupos técnicos que negociam no interior dos blocos voltam-se, prioritariamente, em seus minuciosos cálculos, para interesses concretos a defender e travam, freqüentemente, as negociações, por falta de consenso. Já as cúpulas trazem a público visão ampla e superior àqueles interesses imediatos e tendem a embalá-los. Nas reuniões de cúpula, o político prevalece sobre o técnico, por isso esses encontros deixam transparecer a rivalidade entre Europa e Estados Unidos, vertente da História do século XX, no sentido de controlar a preeminência sobre a América Latina. Nas negociações em curso entre Europa e América Latina, tanto nas cúpulas políticas quanto nos grupos técnicos, nada afeta tão diretamente os interesses brasileiros como o tema agrícola. O volume, a diversidade e a produtividade do agronegócio brasileiro alcançaram tal nível de desempenho que o projetam, desde bons anos, ao topo dos negócios agrícolas do mundo. Os efeitos desse bom desempenho entram naturalmente no jogo das relações internacionais do Brasil em todas as suas instâncias de negociações multilaterais. Existe, contudo, o risco de confundir, do lado brasileiro, o interesse do agronegócio com o interesse nacional e, assim, de sacrificar interesses de outros segmentos da sociedade, o industrial, o empresarial, o tecnológico e o social. Todos os interesses em jogo nas negociações internacionais, em boa política, andam encaixados no superior conceito do interesse nacional a ser promovido de forma equilibrada. Por isso as autoridades vinculadas ao agronegócio acompanham as negociações ao lado das autoridades vinculadas à indústria e sob coordenação da diplomacia, responsável pela equalização dos interesses dos múltiplos segmentos sociais. Se esse cuidado convém aos negociadores brasileiros e latino-americanos, aos europeus convém ponderar quanto a questão agrícola age como elemento de obstrução de suas relações internacionais.
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A Política Agrícola Comum da União Européia constitui agravante essencial da crise do multilateralismo comercial no início do século XXI. Comporta dois aspectos: subsídios concedidos pelos governos europeus a seus produtores agrícolas e entraves de toda sorte à entrada de produtos agrícolas vindos de fora do bloco. Essa política representa um repasse da política agrícola francesa ao bloco europeu, ocorrido ao longo de sua construção. Como entendê-la? A política agrícola francesa vem da primeira década após a Segunda Guerra, quando a reconstrução do país incluía a determinação de prover a população com alimentos em grande escala, de sorte a não mais haver a escassez e a fome coletiva da época de guerra. A França haveria de bastar-se. A preocupação com o alimento abundante tornou-se uma hantise nacional, adaptou-se, modernizou-se, porém nunca foi esquecida. O salto estratégico dessa política ocorreu ao se vincularem alimento e segurança nacional, não se sabe bem quando, mas se sabe com clareza o que significa: uma grande nação não depende de outras para prover seu sustento. Alimento torna-se, por essa perspectiva, componente da segurança humana, na visão geopolítica das grandes potências. Nesses termos e nessa dimensão, a política agrícola francesa estendeu-se à União Européia, que a incorporou à sua estratégia de sobrevivência, como fez com sua capacitação nuclear, por exemplo. E exerceu influência em outros quadrantes do globo, ao ser adotada em seus dois traços essenciais — alimento, variável da segurança — por outras grandes potências, particularmente os Estados Unidos, a Rússia e a China. Daí os subsídios internos e os entraves ao comércio internacional de produtos agrícolas, que convêm não sejam submetidos, aos olhos da Europa e de outras grandes potências, às leis do mercado, como os produtos industriais e os serviços. Assim se estabelece, nas negociações comerciais internacionais, o confronto entre essas potências e os países emergentes, que alcançaram alta produtividade agrícola e passaram a dispor de um poder de barganha antes inexistente em suas políticas exteriores: já que os países centrais não cedem na questão agrícola, um interesse estratégico deles, os países emergentes não cedem terreno na questão do desenvolvimento industrial, outro interesse estratégico em confronto com o primeiro. Os países de centro requerem o livre-comércio de bens e serviços, o livre fluxo de capitais e de empreendimentos, mas se recusam a conferir ao comércio de alimentos o mesmo
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tratamento. Dois campos em que a reciprocidade de interesses não alcança efetivação, estando os países emergentes em vantagem ao acionar o trunfo de que dispõem com o fim de bloquear as negociações comerciais em seu conjunto. Com efeito, a eles mais convém manter os benefícios do desenvolvimento industrial do que tê-lo de sacrificar a ganhos agrícolas de impacto estrutural bem menor sobre seus destinos. Essa estratégia, bem conduzida como está sendo, abre perspectivas de nova hegemonia para o século XXI, que se desloca a olhos vistos e a ritmo acelerado do velho centro gravitacional composto pelo complexo Europa-Estados Unidos-Japão para novo complexo, composto de países emergentes. Em matéria de comércio exterior, a Europa mantém sua rigidez política. Quando assume Peter Mendelson, em 2004, o novo comissário comercial europeu, para fazer avançar as negociações seja na OMC seja interblocos, volta a exigir previamente compensação por parte dos países emergentes se desejarem liberalizar o comércio agrícola; exige ofertas mais generosas na OMC e em acordos interblocos: “procuramos menores barreiras na área de bens industriais”. Em condições exatamente opostas, posicionam-se Brasil e Mercosul: queremos previamente a liberalização da área agrícola para depois negociar a industrial e de serviços. Desse modo são criadas as condições do impasse. A expansão da União Européia de quinze sócios, em 2003, para vinte e cinco no ano seguinte (inclusão de Polônia, Hungria, República Tcheca, Eslováquia, Lituânia, Letônia, Estônia, Eslovênia, Chipre e Malta) e a rejeição da Constituição Européia, por parte de França e Holanda, tornam explícita uma crise de identidade e revelam cansaço e perda de rumo político, mesmo porque alguns países recuperam o senso do nacional e se dispõem a imitar os Estados Unidos, reforçando a ação bilateral em sua estratégia externa. Essa observação não descarta outra percepção, contraditória: a adesão prevista de mais sócios ainda, como Romênia, Bulgária, Croácia e Turquia, além de uma constituição a cimentar o bloco representam elemento substantivo para a configuração sistêmica do capitalismo em direção a um comunismo real de bens e valores. Algumas observações, a título de conclusão, derivam dessa análise acerca das relações entre o Brasil e a Europa. As raízes da sociedade brasileira, em sua dimensão tanto étnica quanto cultural, extraem energia do substrato europeu. Esses elementos de irmandade, em razão do grau de interpenetração
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alcançado, condicionam as relações entre as partes de modo favorável, aconselhando o entendimento sobre temas de interesse das negociações e a incorporação de valores humanos entre seus objetos. Felizmente, esses traços das relações estão presentes, tanto na esfera bilateral quanto das relações dos blocos que o Brasil integra na América Latina, particularmente o Mercosul, com países europeus ou com o bloco europeu. Por outro lado, os interesses materiais, que são normalmente percebidos de forma imediata e concreta pelos dirigentes, endurecem as negociações e fazem esquecer, por vezes, ao que parece, aqueles objetivos humanistas. Explicam, desse modo, o período em que as negociações foram travadas nos primeiros anos do século XXI. Percebemos, enfim, que subsiste mobilidade de ação das unidades políticas nacionais, à margem dos processos de integração e dos laços de ordenamento universal que a globalização estabelece. Entre 1990 e nossos dias, a intensidade das relações entre Brasil, Portugal e Espanha, o retorno da França ao Brasil e o distanciamento da Alemanha encontram explicações na vontade dos dirigentes e no envolvimento das sociedades nacionais muito mais do que na política dos blocos ou na governança global. Isso posto, justifica-se a pergunta acerca da conveniência para o Brasil de operar sua política pelo bilateral. Quando se trata de atingir objetivos econômicos relativos aos fluxos de capital e à cooperação tecnológica, a pergunta torna-se muito pertinente. E quando se trata de decisões relativas ao comércio, ainda assim operar pelo bilateral entre Brasil e países europeus, mantém-se como alternativa intrigante, a menos que as negociações comerciais entre Mercosul e União Européia prosperem de modo realista. O lado pragmático da opção acerca da relevância do bilateral é evocado ao se levar em conta a ação norteamericana na América do Sul, conduzida pelo caminho do bilateral com o fim de obstruir a autonomia dos blocos e dividir a região para realizar mais facilmente os fins de interesse dos Estados Unidos.
10.5 relações triangulares: estados unidos, união européia, países emergentes Devido a seu alcance compreensivo, o conceito estruturas hegemônicas do capitalismo revela-se profícuo para as mais diversas dimensões das relações internacionais do Brasil. A importância cognitiva do conceito transparece sob dois aspectos: por um lado, abarca as relações internacionais do Brasil
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em todos os quadrantes, os Estados Unidos, a América do Sul, a Europa, e, pela via do multilateralismo, a ONU, a OMC e os países emergentes em seu conjunto; por outro, reflete a evolução para a maturidade das relações internacionais do Brasil, quando o País, no início do século XXI, transita do estágio de país em desenvolvimento para o de parte integrante das estruturas hegemônicas. O novo patamar das relações internacionais do Brasil, o envolvimento à part entière nas estruturas hegemônicas do capitalismo, deve ser procurado na evolução recente, iniciada durante a chamada globalização do fim do século XX e amadurecida, sem ainda concluir o ciclo, no início do presente século. Os traços da mudança são três: a) a relação de interdependência real entre os países capitalistas avançados e o Brasil, pela via empresarial, que vincula as cadeias produtivas e os serviços; b) a expansão para fora de empreendimentos de matriz nacional, especialmente na América do Sul, que eleva a competitividade brasileira ao nível da competitividade sistêmica global, na qual passa a operar; c) o papel desempenhado pelo Brasil à mesa das negociações multilaterais relativas ao comércio e à segurança, onde se reúnem as grandes potências, os grandes blocos e os países emergentes que exercem liderança entre seus pares, com o fim de estabelecer os parâmetros do ordenamento mundial. Tendo em vista essa evolução para a maturidade, as relações entre o Brasil e a União Européia também são enquadradas, em certos aspectos relevantes, em relações triangulares em que o País atua de forma bilateral com a Europa, porém com intervenção de outros agentes, particularmente os Estados Unidos e alguns países emergentes de maior destaque. O prolongamento das negociações comerciais que se verifica na Rodada de Doha decorre da dificuldade de entendimento entre os países do norte e os emergentes acerca do modo como avançar rumo à liberalização do comércio mundial. Nessas negociações, um pequeno grupo que compõe as estruturas hegemônicas prepara, por meio de reuniões ministeriais, em que supostamente devem afinar posições, a agenda e a previsão decisória da reunião da OMC. Ao lado da União Européia e de outros atores, como Estados Unidos, Japão, Índia e China, o Brasil, representante do G20, toma assento entre aqueles que exercem maior influência na gênese das regras do ordenamento mundial. De modo semelhante, conversa com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, com novos pretendentes
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como Japão, Alemanha e Índia e com muitos membros da Assembléia Geral, com o fim de angariar apoio para o pleito de também integrá-lo como membro permanente, quando a reforma da organização for votada. As negociações multilaterais, que têm por fim estabelecer regras para o comércio internacional, compõem o primeiro plano das relações internacionais. A questão agrícola, que parte da Política Agrícola Comum da União Européia, porém se estende a outras grandes potências, constitui o nó górdio das negociações comerciais. Essa hantise, na expressão do presidente francês Jacques Chirac, bloqueia as negociações no âmbito da OMC como também para criação da área de livre-comércio entre o Mercosul e a União Européia. Já os Estados Unidos de George W. Bush mostram, por vezes, disposição de ceder, tolhendo subsídios agrícolas e diminuindo barreiras às importações. Vista do ângulo dos interesses brasileiros, cujo manejo opera-se no seio das estruturas hegemônicas do capitalismo, a posição norte-americana de ceder na questão agrícola contém mais esperteza, senão mesmo um ardil: ceder no comércio agrícola para ganhar no comércio de bens industriais e de serviços. Como se sabe, a rodada Doha estabelece o amplo escopo de liberalizar o comércio internacional em seu todo. Para o Brasil e outros países emergentes intercambiar facilidades no comércio agrícola por facilidades no comércio de bens e serviços industriais com tecnologia e valor embutido, prolonga a divisão do mundo entre ricos e pobres e se revela um obstáculo ao curso encetado rumo à maturidade de sua inserção internacional. Por tal razão, a visão de comércio dos Estados Unidos, na medida que se configura uma estratégia logística do ângulo dos interesses norte-americanos, ameaça os interesses do Estado logístico brasileiro. Isso ocorre porque os entraves postos por governos nacionais do Norte, pelo bloco europeu ou por suas empresas transnacionais à entrada de produtos industriais do Sul são maiores e de impacto mais grave do que os entraves agrícolas. Em nossos dias, liberais são os países emergentes, protecionistas os países ricos, a ambos aparentemente convindo essa diferença de política comercial. A maturidade da inserção internacional do Brasil o conduz, com efeito, ao liberalismo do comércio internacional, que não só é comprometido pelos subsídios e barreiras agrícolas do Norte, mas ainda mais pelos entraves de toda sorte à entrada de produtos industriais do Sul. Para o País, a regra de ouro consiste em fazer valer a reciprocidade real. Países emergentes como o
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Brasil, em razão da convergência dos processos produtivos e da internacionalização das cadeias produtivas, estão atingindo o nível de produtividade sistêmica global. No entanto, em razão da abundância de matérias-primas e de mão-de-obra de que dispõem a custo mais baixo, inserem seus produtos no mercado mundial a preço inferior. Espera-se, portanto, após solução do nó górdio agrícola, se desfeito for um dia, novo embate entre Norte e Sul acerca do comércio de produtos industriais, esse ainda mais difícil de superar, como revelam as negociações triangulares União Européia, Estados Unidos e países emergentes, entre os quais o Brasil. As negociações comerciais desenrolam-se diante desse pano de fundo e tornam-se cada dia mais difíceis, porque espelham o jogo duro dos interesses nas relações internacionais. No fundo, o Brasil, novo ator global, assiste ao choque de duas visões de mundo em certas áreas das relações internacionais, sem exercer grande influência nesse embate de gigantes: a União Européia propõe uma ordem internacional contra o império universal dos Estados Unidos — configurando o choque do multilateralismo com o unilateralismo. Após sua reeleição, porém e, sobretudo, após a derrota que lhe custou a maioria no Congresso, o presidente George W. Bush refaz seus conceitos sobre a Europa. Chamara de velha Europa aquela que se opusera à guerra contra o Iraque, França e Alemanha em primeiro plano, entendendo como demonstração de carência mental não seguir a política internacional dos Estados Unidos. Observa depois que a Otan deixa de ser, da intervenção coletiva no Afeganistão à intervenção anglo-americana no Iraque, um fórum no qual os Estados Unidos impõem sua política de segurança a uma Europa submissa. Constata ser o único país dentre os membros do G8 a recusar o Protocolo de Kyoto. Segurança, meio ambiente, além das ações de combate à pobreza constituem, portanto, terrenos de divergências entre Estados Unidos, Europa e países emergentes. A questão nuclear ainda parece alinhar Europa e Estados Unidos, entretanto, não alinha nenhum dos dois às posições de fundo da China e da Rússia. Instituída em 1999, à base de preocupações com o Leste europeu e com o fim de harmonizar a própria segurança e a ação global, a Política Européia de Segurança e Defesa não vinga diante do Iraque e não substitui a Otan, por isso não está em condições de estabelecer uma parceria de segurança com a América do Sul. Em suma, as relações triangulares — Europa, Estados Unidos, países emergentes — ampliam e complicam as relações entre o Brasil e a Europa.
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LeIturaS recomeNdadaS: QUINTELLA, Thereza Maria Machado. (Org.). Brasil-Rússia: fortalecimento de uma parceria. Brasília: Funag, 2005. FURET, François. Le passé d’une illusion: essai sur l’idée communiste au XX siècle. Paris: Robert Laffont, 1995. ZHEBIT, Alexandre. A Rússia na ordem mundial: com o Ocidente, com o Oriente ou um pólo autônomo em um mundo multipolar? Revista Brasileira de Política Internacional, n. 46 (1), 2003, p. 153-181. BACIGALUPO, Graciela Zubelzú de. As relações russo-brasileiras no pós-Guerra Fria. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 43 (2), 2000, p. 59-86.
11.1 transformações na região O alargamento da União Européia para o leste trouxe ao seio do bloco dez novos membros em 2004, entre os quais países da antiga zona comunista, como Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia e República Checa, sendo ademais candidatos a essa adesão a Bulgária, a Croácia e a Romênia. O alargamento para leste envolve ainda a adesão da Grécia e a candidatura da Turquia, países de grande porte. Com isso, põe-se fim à divisão leste-oeste que rasgava a Europa ao meio.
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O conceito Leste europeu, como era antes aplicado a países da área comunista, perdeu seu lugar na nova geografia política. Ao desintegrar-se o bloco comunista, pequenos países buscaram o caminho da integração com a Europa, permanecendo à margem desse movimento a Rússia, a Bielo-Rússia e a Ucrânia, a cujas fronteiras estende-se a União Européia alargada. Mais além situam-se países asiáticos que se desmembraram da ex-União Soviética. Essa decomposição do mapa geopolítico nos leva hoje a considerar a Rússia, de modo isolado, com peso próprio sobre a cena internacional. Entre 1989 e 1991, a União Soviética ruiu, sendo essa uma ruptura histórica somente comparável à descolonização, seja a descolonização dos países americanos, em uma primeira fase, seja dos afro-asiáticos, em uma segunda. A ilusão do comunismo, idéia trabalhada por François Furet, teria resistido menos do que o colonialismo como experiência histórica, mas esses foram, por certo, dois rumos inconclusos, seguidos pela organização social e política dos povos nos últimos séculos. A ruptura conferiu às pequenas e médias potências do leste a liberdade de escolha entre o caminho próprio, a associação à Europa, momentaneamente a associação à própria Rússia no seio da Comunidade de Estados Independentes. No caso da Rússia, grande potência regional, reacendeu o dilema de optar por recuperar a tradição histórica da expansão para o Mediterrâneo, sendo uma potência européia, ou, então, manter e desenvolver a capacitação estratégica e ser uma potência com peso sobre o mundo todo. Para as relações internacionais do Brasil, a proliferação de países independentes nessa área não modificou de modo sensível a oportunidade de cooperação e os intercâmbios, historicamente baixos, exceto, no presente, com a Rússia e a Ucrânia. Entende-se melhor o que ocorre nas relações do Brasil com essa área de cruzamento entre União Européia e continente asiático, área que aqui denominamos de Leste europeu, tomando por base as modificações que se sucederam em três tempos: o tempo do comunismo, o da transição neoliberal e o tempo de oportunidades do presente. O que perpassa esses três tempos é o peso das ideologias a condicionar as políticas exteriores dos países envolvidos, ideologias volúveis e pouco realistas nos dois primeiros tempos, porém de conseqüências que se prolongam sobre o momento atual. O comunismo foi marcado pela ideologia da igualdade e da justiça entre as nações e da revolução transnacional a difundir esses valores. O neolibe-
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ralismo que o sucedeu no Leste europeu exibiu traços comuns ao neoliberalismo latino-americano: o culto do individualismo e do sucesso pessoal no micromundo da vida social; a prevalência do mercado, as privatizações, a corrupção, a especulação financeira, o endividamento nacional no macromundo da política e da economia. Depois dessas duas primeiras ondas, vem se recuperando nesses antigos países comunistas o senso do realismo na organização interna e nas relações exteriores, marcado por ajustes que tais países introduzem para fugir das utopias, a comunista e a neoliberal, ou para definir nova opção política, novo destino. O presente é feito de oportunidades, que a sociedade e seus dirigentes localizam em outro modo de fazer política exterior e de conduzir as relações com o sistema internacional e com seus componentes. Tanto na América Latina como na área que compunha o antigo Leste europeu, a década de 1990 assistiu ao triunfo do neoliberalismo e ao cultivo de sua ilusão congênita: transladar-se para o Primeiro Mundo de um salto. Cada uma dessas duas regiões mirava a outra como marginal, caminho a evitar, exemplo a superar, daí a distância recíproca que mantiveram. A Rússia e os países do Leste europeu são incluídos entre as “perdas” da política externa brasileira durante a era Cardoso, cuja ânsia de pertencer ao Primeiro Mundo induziu também ao distanciamento da África e da Ásia. Quando foram revolvidos os empecilhos ideológicos do comunismo e do neolibealismo, no início do século XXI, chegou o momento de refazer a pergunta: quais os interesses que unem o Brasil à Rússia, à Ucrânia ou a outro país daquela distante região e quais as oportunidades que se abrem à sua realização? A resposta depende, nesse caso como em outros, do entendimento prévio das transformações e do papel que tradições enraizadas, mesmo quando aparentemente superadas, ainda exercem sobre as relações internacionais.
11.2 o peso do comunismo As relações entre o Brasil e a União Soviética resultaram em expectativas frustradas para os dirigentes brasileiros. É possível tecer algumas considerações de longo alcance a esse respeito. Abordaremos cinco idéias. A opinião pública e a mentalidade coletiva no Brasil sempre estiveram vinculadas à forma liberal de organização social, mesmo que o regime político fosse autoritário. Os movimentos de esquerda organizados, a subversão,
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como se dizia à época do regime militar, mesmo os partidos políticos da esquerda ortodoxa não vingaram porque lhes faltava esse apoio. Opinião pública liberal e mentalidade democrática eram obstáculos à aproximação política com a União Soviética, que apenas se tolera, desde o início dos anos 1960, por influência de estadistas de grande envergadura, como Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e Afonso Arinos. Evocavam eles o universalismo da política exterior e argumentavam a favor do entendimento político com os países comunistas, mesmo porque tinham a seu favor a simpatia que a opinião pública devotava à Revolução Cubana. A cisão entre a opinião conservadora e a progressista pende para o triunfo da segunda vertente e produz como resultado a decisão de longo prazo de buscar o entendimento político com aqueles países, por sobre a divergência ideológica, a qual sucumbe como variável desprezível nas relações internacionais. Superado, portanto, o entrave mental, convinha dar consistência concreta às relações com a área comunista. A Política Externa Independente dos anos 1960, primeira formulação de uma política brasileira para os países comunistas, introduziu a miragem do comércio, na ilusão de que o mercado soviético se abrisse como válvula de escape da produção brasileira, especialmente de manufaturados. Havia, por efeito da obra de Juscelino Kubitschek, um parque industrial moderno, contudo não havia mercado externo para seus excedentes de produção. A decepção veio quando essa perspectiva de negócios se restringiu ao comércio de troca de poucos produtos entre o Brasil e alguns países do Leste europeu, incluindo a Rússia. À época do Estado empreendedor, sob o signo do desenvolvimentismo, os dirigentes brasileiros buscavam oportunidades de cooperação econômica e incluíam a União Soviética em seus cálculos. Vontade política havia, de lado a lado, porém os mecanismos concretos de ação não alcançavam operacionalidade. A organização social e a estrutura dos mercados, dos sistemas produtivos, do crédito e da moeda, do comércio exterior eram tão distintas de um e de outro lado, que tais mecanismos inexistiam ou não eram criados. As expectativas brasileiras se frustravam e anulavam iniciativas da diplomacia, que tentava atrair produtos e serviços e oferecia os próprios, tudo com pouco êxito. A incompatibilidade dos sistemas se refletia no baixo nível de cooperação, que nunca superou a troca de alguns produtos e não foi capaz de atingir o nível de cooperação econômica propriamente dita. Quando, mais adiante, o Brasil atingia nível de desenvolvimento avançado e pretendia desenvolver por si ou mediante a cooperação internacional
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tecnologias sensíveis, como a nuclear, a aeronáutica e a espacial, a União Soviética estava em condições de tornar-se parceira estratégica. Um outro fator, porém, intervém: o poder de pressão dos Estados Unidos, com os quais os soviéticos haviam estabelecido uma espécie de condomínio global, além de relações bilaterais de arraigada interdependência. Como se sabe, os Estados Unidos se opunham à idéia de acesso brasileiro à tecnologia sensível e não tiveram dificuldade para dissuadir os soviéticos de contribuir para prover essa capacitação. Repetia-se a frustração que ocorria em outras tentativas de aprofundar as relações bilaterais e torná-las úteis ao desenvolvimento. Ao tempo de George W. Bush, a opinião americana ainda se contamina com sobras do comunismo, que teria empurrado a Rússia para as margens da História, mesmo após seu colapso: a Rússia não sabe promover a liberdade e a democracia, valores ainda inerentes à História e ao modelo americano. Na verdade, há de se reconhecer que Vladimir Putin se esforça em recuperar a auto-estima dos russos e em recolocar seu país, liberto de complexos do passado, sobre a grande política internacional. Como fazem os dirigentes chineses, ergue-o como se fosse contrapeso ao unilateralismo norte-americano, à dominação das velhas estruturas hegemônicas, pendendo assim politicamente para o lado dos países emergentes.
11.3 o peso do neoliberalismo A falência do bloco comunista entre 1989 e 1991 inaugurou uma fase de experiências inspiradas no modelo neoliberal de organização econômica, social e política então introduzido como ensaio em países do Leste europeu, particularmente na Rússia. Relativamente aos países do mundo capitalista, a região apresentava defasagem sob os aspectos de produção e produtividade, diversificação de bens e serviços, por isso os parâmetros do neoliberalismo foram eleitos como os de maior capacidade de propulsão, a exemplo da conduta exibida pelos dirigentes da América Latina, que se preparavam para o salto ao Primeiro Mundo. Contudo, a adoção do neoliberalismo pela Rússia e por seus satélites exerceria influência bem maior sobre o sistema internacional e as relações internacionais do que as experiências pouco relevantes da América Latina, visto que realizava a unificação sistêmica do mundo. A opção russa, propriamente dita, ademais, influía sobre a vizinhança, alçando-se como modelo aos menores.
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À época de Cardoso, o governo brasileiro observava essas transformações da antiga área comunista e tomava distância a seu respeito, dando, aliás, continuidade a uma tradição de retraimento diplomático diante de convulsões sociais e políticas em terras alheias. Mesmo porque, o foco do Brasil de então era o Primeiro Mundo, não aquela periferia transtornada. Essas duas percepções do governo brasileiro — uma zona em convulsão, periférica ao sistema — induziram longo distanciamento operacional tomado pelos dirigentes com relação à Rússia e a seus vizinhos. Convém procurar explicações de fundo para essa atitude que dificultava identificar oportunidades que se abriam às relações exteriores do Brasil, ou melhor, desperdiçava oportunidades de realizar interesses nacionais. Uma delas, ao que tudo indica, localiza-se no paradigma neoliberal posto em marcha de ambos os lados. Esse paradigma caracterizava-se, em primeira linha, pela abertura dos mercados internos de consumo realizada por decisão unilateral dos dirigentes, longe da negociação internacional, ou seja, de eventual contrapartida de abertura de outros mercados. Como se bastasse para a modernização do país expor sua produção à concorrência externa dentro das fronteiras sem ter de competir fora delas, nem por meio de produtos a serem vendidos nem por meio de empreendimentos a expandir. Essa passividade, aliada à determinação de minguar o Estado, tolhendo-lhe a função de elaborar e implementar políticas de desenvolvimento e de comércio exterior, deixava ao largo as oportunidades de montar o plano nacional e de expandir as exportações. Era mais perdulária do lado brasileiro que dispunha das vantagens de um sistema produtivo mais moderno e diversificado e de uma organização empresarial capitalista. De qualquer modo, a fase neoliberal passava por cima das oportunidades de negócios entre Brasil e países do Leste europeu, tais como Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia. Nessa mesma linha de argumentação, é mister agregar outra nuance explicativa de fundo para o desperdício das relações entre os dois lados: a privatização dos sistemas produtivo e de serviços surpreendeu o empresariado do Leste europeu chamado a dar seus primeiros passos rumo ao sistema de organização capitalista interna, quando nem sonhava com a possibilidade de operar no exterior. A perspectiva de expansão para fora tampouco entranhava o neoliberalismo brasileiro durante a era Cardoso, míope nesse aspecto, porquanto avesso ao fomento de investimentos e empreendimentos no exterior. Perdiam-se, portanto, sob o signo neoliberal, oportunidades de
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aproximação empresarial e produtiva. A abertura dos sistemas financeiros de ambos os lados a fluxos de capital tampouco abria caminhos de intercâmbio operacional visto que um ignorava os mecanismos de privatização do outro. Em suma, o paradigma do Estado neoliberal — capitalista, porém passivo, submisso ao mercado e subserviente às forças e interesses do centro capitalista, minguado por opção, alheio ao planejamento estratégico, iludido pelo salto para o Primeiro Mundo — não permitia aos dirigentes brasileiros, russos e da vizinhança, identificar e realizar oportunidades que a globalização efetivamente oferecia. Os dirigentes que conduziam as experiências neoliberais na América Latina e no Leste europeu consideravam seus países periféricos ao sistema e agiam com o realismo da periferia, aquele destinado a estabilizá-los na condição de dependência estrutural em que se encontravam vis-à-vis dos países desenvolvidos. Nada mais instigante do que o estudo comparado das experiências de transição de modelos econômicos e políticos para a era da globalização, ao termo do século XX, entre América Latina, Leste europeu e Península Ibérica, visto que, apenas nos casos de Portugal e Espanha a internacionalização foi concebida e conduzida pelos dirigentes como projeto de Estado e por isso jogou os dois países no Primeiro Mundo, elevando-os ao nível da competitividade sistêmica global e resolvendo o problema do desnível estrutural do desenvolvimento. Enquanto isso ocorria na Península Ibérica, o período Boris Yeltsin “anárquico, caótico, de crises e problemas sucessivos”, nas palavras de Quintella, lançou a Rússia na instabilidade política, no conflito entre executivo e legislativo, provocando o amesquinhamento da autoridade central e o enriquecimento de um pequeno grupo de governantes que se apropriaram da economia do país por meio de mecanismos de privatização sem lei, levando à redução de seu prestígio internacional, ao desencanto pela democracia, à queda da auto-estima e à nostalgia social do comunismo. A reversão dessa tendência desastrosa ocorre com a ascensão de Vladimir Putin, assim como a reversão do neoliberalismo na América Latina se dá com a ascensão de governos de esquerda. Putin oferece estabilidade política, centralização e recuperação do prestígio internacional, democracia ao estilo próprio e não necessariamente segundo o paradigma ocidental. Em suma, nas duas experiências ibéricas, observamos a evolução de regimes políticos autoritários, com modelo de desenvolvimento fechado
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para a democracia, para o modelo de desenvolvimento aberto à interdependência sugerida pela formação do bloco europeu e comportando expansão para fora dos empreendimentos nacionais. Por meio dessa transformação, Portugal e Espanha conseguiram superar o subdesenvolvimento e aproximar-se da real interdependência da era da globalização. Já nas experiências sul-americanas, e em maior grau nas experiências do Leste europeu, observamos a evolução do modelo de desenvolvimento estatista tradicional para o neoliberal. As forças do modelo desenvolvimentista adotado na América Latina antes de 1990, comuns em teoria, porém diferenciadas na prática entre os países, eram: projeto nacional de desenvolvimento concebido como política de Estado posta acima do regime político ou do partido no poder; continuidade da política industrial; abertura do sistema produtivo e fechamento do mercado de consumo. Ao longo do tempo, esse modelo revelou fraquezas e vícios: instabilidade monetária, instabilidade política engendrada pela luta entre associacionistas e independentes com vistas à conquista do Estado; excessivo protecionismo; baixa produtividade sistêmica. O modelo neoliberal latino-americano adotado como estratégia de desenvolvimento nos anos 1990 comporta diferenças de grau em relação aos parâmetros postos em marcha no Leste europeu, todavia o curso profundo da transição se assemelha: a) abertura do mercado de consumo e dos serviços e abertura ou maior grau de abertura do sistema produtivo; b) privatizações com alienação de ativos a empresas estrangeiras, dependência empresarial, tecnológica e financeira; c) ausência ou baixa internacionalização econômica em razão da reduzida expansão dos negócios nacionais no exterior; d) retirada do Estado como agente econômico e prevalência do mercado; e) deterioração dos indicadores econômicos e sociais. Comparando as experiências ibéricas com as sul-americanas e do Leste europeu, concluímos que houve nas primeiras uma abertura acompanhada de inserção externa de fatores nacionais, de modo a induzir a interdependência real; e nas outras duas uma abertura passiva, especialmente no que diz respeito ao elevado grau de internacionalização dos negócios nacionais que se verifica nas ibéricas face à incipiente internacionalização nos outros casos. Destaca-se, ademais, o papel preeminente de homens de Estado e subsidiário do mercado, nos casos de Portugal e Espanha, em oposição ao papel preeminente do mercado e subsidiário do homem de Estado, nos outros casos.
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Quando os efeitos nocivos dos modelos neoliberais se fizeram sentir, os países da América Latina e do Leste europeu reorientaram suas relações externas de maneira a exercer controle maior sobre tendências adversas à solidez econômica e ao bem-estar social. Nesse momento, o neoliberalismo, tomado como um fundamentalismo feito de crença e fé, encerra sua trajetória de sucesso como modelo de transição e cede à interdependência real, que dele prolonga certas formas de conduta, porém não relega ao desperdício as oportunidades de intercâmbio que fazem um país avançar para outro patamar de relações internacionais.
11.4 oportunidades da interdependência global Depois dessa fase neoliberal, que coincide no Brasil com a transição do modelo desenvolvimentista para a real interdependência e no Leste europeu com a transição do comunismo para a real interdependência, tornam-se viáveis certas iniciativas que incorporam oportunidades de intercâmbio ao alcance das duas regiões. Essas oportunidades, no que diz respeito às relações entre Brasil e Rússia, somente são percebidas depois das eras Fernando Henrique Cardoso e Boris Yeltsin, ao mesmo tempo que Luiz Inácio Lula da Silva e Vladimir Putin conduzem à maturidade as relações internacionais de seus países. Elas brotam da crítica ao neoliberalismo, mas encontram respaldo em novos conceitos introduzidos no pensamento político de ambos os países. Em primeiro lugar, o próprio conceito de Estado modificou-se na visão dos dirigentes quanto às funções que passaria a desempenhar. Antes provia estabilidade econômica, logo confundida com estabilidade monetária, e confiava às forças do mercado tudo o mais; agora destina-se a prover a mesma estabilidade, agindo ademais como indutor do crescimento e do desenvolvimento pela via do suporte logístico que fornece à sociedade. A nova feição com que se reveste o Estado faz dele promotor dos interesses nacionais ou regionais, incluindo a segurança, que a mão da Providência não distribui de forma igualitária por meio das leis do mercado, nem na sociedade nem entre as nações... Além desse e de outros conceitos que sugerem o aproveitamento de possibilidades de intercâmbio do Brasil com os países do Leste europeu, deduzidos da crítica ao malogro das experiência neoliberais, um fator determinante ainda mais eficaz intervém: o retorno da Rússia à grande política internacional. Uma série de intervenções conduzidas pela União Européia, ONU, Estados Unidos ou Otan, conjugados ou não, na vizinhança russa, parti-
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cularmente em países do Leste europeu, no Próximo Oriente e na Ásia ocidental levou os dirigentes da Rússia a reconsiderar a passividade geopolítica a que se haviam entregue anteriormente, bem como obrigou seus estrategistas a repensar o papel do país no cenário internacional. Um animado debate travou-se, já que três correntes de pensamento sugeriam alternativas distintas e disputavam o comando da política. O vetor oriental contemplava uma expansão para o Oriente e a Ásia à base do papel de pivô nacional sobre a região, mas esse papel antevia dificuldades em razão das possibilidades concretas de construção do pólo China-Índia e também incluía em seus cálculos uma difícil gerência das diferenças culturais entre os povos. O vetor ocidental aconselhava a aproximação com a União Européia e os Estados Unidos, porém comportava o risco de dependência, em razão da superioridade dessa outra área. Enfim, tratava-se de tomar uma decisão: andar por si, assentando o pólo de poder na própria Rússia e em sólidos vínculos com a vizinhança, ou seja, recuperar a velha tradição da política russa. A opção da era Putin inclina-se para a terceira alternativa, a criação de um pólo autônomo que significa, na era da globalização, a volta da Rússia ao topo da grande política internacional. Essa opção anima os conceitos da política internacional brasileira durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, para o qual o mundo ideal não se encaixa no unilateralismo norte-americano, mas na multipolaridade de alguns centros de poder distribuídos pelo mundo, com voz e interesses próprios, de modo a equalizar as relações internacionais. Mesmo a aproximação da Rússia e, mais ainda, de seus vizinhos à União Européia é apreciada como fato positivo, na medida que atenua o peso dos Estados Unidos como pivô unipolar global. A primeira linha de ação que essas novas condições geopolíticas estimulam de parte do governo brasileiro verifica-se no comércio. A abertura do Leste não atraíra os exportadores brasileiros na fase neoliberal, entretanto seu interesse desperta quando as autoridades responsáveis pelo comércio exterior, desde o início do governo Lula, passam a apoiar iniciativas de segmentos da produção nacional e a negociar a colocação de produtos industriais e agrícolas nos mercados do Leste europeu. A segunda linha de ação vislumbra-se na cooperação industrial, ainda de baixa operacionalidade, uma vez que a carência da transferência de ciência e tecnologia da área militar à civil prossegue como empecilho sistêmico nos países do Leste.
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A condição positiva relevante, contudo, reside no domínio que esses países exibem de tecnologias em setores avançados, como o aeronáutico e o espacial. Ao apresentar sua proposta para modernização da Força Aérea Brasileira, concorrendo com outros países, a Rússia se mostra disposta a transferir tecnologia. A Ucrânia achega-se ao programa espacial brasileiro e negocia a cooperação de modo compatível com o avanço que esse setor alcança. À base dessas novas visões das relações internacionais, os intercâmbios entre Brasil e países-chave do Leste europeu tendem à maturidade da interdependência, feita de benefícios compartilhados pela reciprocidade. Para estimular criativamente essa parceria estratégica, assim denominada pelas duas diplomacias, Lula e Putin dispõem de três comissões bilaterais: Assuntos Políticos, Intergovernamental de Cooperação e Alto Nível. Como anfitrião, Putin convidou seu colega brasileiro a participar da reunião do G8 em São Petersburgo, em julho de 2006. Nela, o líder russo se apresenta como arquiteto da nova Rússia, que cresce ao ritmo de 6% ao ano, com mais de 300 bilhões de dólares de reservas, que controla o fornecimento de energia à Europa, sem débitos com o FMI, que repõe, enfim, seu país no cenário internacional em alto estilo, divergindo dos Estados Unidos em vários pontos, como no combate ao terrorismo, no trato da questão atômica no Irã e na Coréia do Norte, nas intervenções no Próximo Oriente. Lula aprecia o fortalecimento desse pólo de poder e se percebe como interlocutor, coincidindo aliás com a nova Rússia na visão de mundo e em muitos pontos da política internacional. As condições estão postas, de modo favorável, para o adensamento das relações bilaterais.
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12 as relações com o Japão, a china, a Índia e o interior asiático
LeIturaS recomeNdadaS: RAMOS, Danielly Silva. O Brasil e a República Popular da China: política externa comparada e relações bilaterais (1974-2004). 2006. Tese (Doutorado) Brasília: Universidade de Brasília. VIZENTINI, Paulo Fagundes; RODRIGUES, Gabriela. O dragão chinês e os tigres asiáticos. Porto Alegre: Novo Século, 2000. DANTAS, Fábio Lafaiete. Origens das relações entre o Brasil e a China. A Missão Especial de 1879. Recife: Liber, 2006.
12.1 o olhar brasileiro sobre a Ásia Para boa parte dos brasileiros, a Ásia configura uma unidade de denominação — Ásia, asiáticos — porém, observando-se objetivamente, percebe-se que essa unidade corresponde, de fato, à mera denominação. Países e blocos de países compõem realidades distintas entre si tanto pela diversidade étnica e cultural quanto pelo grau de desenvolvimento alcançado, e por isso oferecem à parceria brasileira oportunidades diferentes e também mantêm com o Brasil e seus vizinhos diversificadas modalidades de relações. Políticas exteriores e modelos de
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desenvolvimento asiáticos, quando tomados comparativamente, revelam convergências e divergências entre si, como também se comparados à experiência histórica brasileira. O olhar brasileiro estendeu-se sobre a Ásia desde passado longínquo. D. Pedro II enviou em 1879 uma grandiosa missão à China com o fim de estabelecer uma corrente de imigração asiática para o Brasil e ativar fluxos de comércio entre os dois Impérios. A República alcançou êxito, a partir de 1908, na buscar de imigrantes japoneses. Após a Segunda Guerra Mundial, Oswaldo Aranha e A. J. Bezerra de Menezes, entre outros pensadores e diplomatas, sugeriam, em nome do universalismo da política exterior do Brasil, o estreitamento de relações com África e Ásia, apesar de não perceberem ainda quanto esses dois continentes se distanciariam em termos de desempenho rumo ao desenvolvimento econômico. O crescimento acelerado da economia brasileira sob o modelo estatista introspectivo, dos anos 1950 a 1980, produziu a sensação de auto-suficiência e de conseqüente menosprezo por modelos alternativos. Nessa fase, somente o Japão era objeto de trato especial em razão de sua cooperação potencial. A estagnação econômica do Brasil a partir de 1980, prolongada pela experiência neoliberal da década seguinte e por arrocho fiscal e juros altos sem crescimento econômico no início do século XXI, contrasta com o desenvolvimento das economias asiáticas, que se desloca, nesse período, do Japão à China e à Índia, havendo previamente passado pelos chamados tigres asiáticos. Durante a era Cardoso, como já observamos, o olhar dos dirigentes dirigiu-se para o Primeiro Mundo euro-americano e o modelo de desenvolvimento adotado aprofundou dependências estruturais, empresariais, tecnológicas e financeiras com países dessa área. Em conseqüência disso, estudiosos brasileiros de horizonte mais aberto chamavam a atenção para os modelos asiáticos de desenvolvimento e suas estratégias de inserção madura no mundo da interdependência da era da globalização. A política exterior brasileira redescobre, então, depois de muito tempo perdido, as lições e as oportunidades exibidas por países asiáticos que sabem combinar tradição, cultura, interesses próprios e negócios com inserção global estruturalmente igualitária. Sem essa visão de complemento e equilíbrio providos pela relação com o mundo asiático, o universalismo da política exterior do Brasil não alcança a eficiência que Vargas, Aranha, Menezes e San Tiago Dantas desejavam imprimir-lhe no início da modernização.
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Quando o olhar brasileiro se volta novamente para a Ásia, embalado pela relação que se pretende aprofundar com os países emergentes, as oportunidades de profícuo relacionamento não deslizam espontaneamente das circunstâncias. Dependem, por certo, da criatividade e da esperteza, qualidades de que não faltaram aos dirigentes asiáticos, a exemplo dos chineses que vêm administrando suas relações internacionais com base em reciprocidade real de ganhos e não em ilusões sugeridas, seja por uma revolução cultural do tipo maoísta, seja pela democracia de mercado do tipo neoliberal. Lidar com a Ásia é lidar com a diversidade. Três países são mais relevantes para o Brasil: Japão, China e Índia. No trato com os dois primeiros, o Brasil acumulou certa experiência que lhe pode ser de grande valia no presente e no futuro. Com a Índia, ainda ensaia uma cooperação, cujos mecanismos são postos em andamento de lado a lado, com dificuldade, não se sabe ao certo por quê. Os tigres asiáticos alcançaram níveis de desenvolvimento econômico, tecnológico e social a causar inveja, porém foram historicamente vistos pelos dirigentes brasileiros mais como competidores do que como cooperadores a quem se associar. As elites intelectuais brasileiras ainda se voltam à cultura e às teorias de relações internacionais do Ocidente e influem sobre as relações exteriores do País, que firma laços preferenciais com essa área do globo. Um exemplo dessa restrição cultural brasileira ao universalismo reside no conceito ocidental de choque de civilizações, uma construção norte-americana a influenciar o Ocidente, e parte da inteligência brasileira, de modo aliás nefasto, que certamente não se encaixa no pensamento diplomático dos asiáticos. A visão de mundo dos asiáticos contempla o mercado mais do que a visão norte-americana, cuja política exterior é contaminada pela auto-imagem de maior potência militar do globo e pela presunção de superioridade cultural. Tudo isso mostra que existe de fato uma carência de conhecimento acerca da Ásia, em especial quanto aos modelos asiáticos de desenvolvimento de eficiência comprovada. Essa carência age negativamente sobre o destino dos países da América Latina, ao privá-los de conhecimento, um importante instrumento de poder, e mantê-los na interminável busca do desenvolvimento, enquanto seus competidores do outro lado do mundo concretizam-no paulatinamente. O desconhecimento dos modelos asiáticos de desenvolvimento representa um desafio à formação da inteligência brasileira e à realização de interesses por meio das relações internacionais.
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12.2 Japão, a parceria estratégica Os modelos de desenvolvimento de Brasil e Japão trilharam curso distinto nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. Os modelos dotaram-se de eficiência comparável quanto ao acelerado crescimento econômico, porém lançaram mão de estratégias diferentes que condicionaram suas políticas exteriores e chegaram a resultados nitidamente desiguais. À diferença da China, já nos anos 1950, o Japão soube equacionar sua política de segurança e sua visão geopolítica do mundo com o modelo de desenvolvimento que perseguia. Renunciou à construção de potência militar e aceitou o guarda-chuva nuclear norte-americano. Compensou essa renúncia com a determinação de construir uma potência econômica sobre duas bases: em primeira fase, pela estreita cooperação e intensas relações econômicas com a vizinhança; em segunda fase, por meio da expansão global dos empreendimentos japoneses. Nessa segunda fase, não se reproduzia a avaliação da diplomacia norteamericana que se movera, antes da Segunda Guerra, tanto em função da concorrência econômica dos produtos japoneses que começavam a invadir a América Latina quanto em razão do “perigo amarelo” — aquela nefasta teoria do choque de civilização — a pesar sobre o destino dos países dessa região e a que se devia combater. Para Washington, um Japão dócil, alinhado geopoliticamente ao Ocidente e economicamente robustecido era uma garantia de equilíbrio internacional à época da Guerra Fria e suas conexões internacionais eram apreciadas. Desfeito, destarte, após a Segunda Guerra, o óbice posto pela diplomacia americana à penetração japonesa no Brasil, criaram-se condições favoráveis para o estabelecimento de uma parceria estratégica, mesmo porque ambos os países postavam-se nos extremos de Oriente e Ocidente, alcançavam ritmos comparáveis de crescimento econômico e abriam, por meio de suas políticas exteriores, o caminho da cooperação universal. Na percepção dos dirigentes norte-americanos, essa parceria conduzia ao reforço do mundo livre diante do comunismo. Ao lado desse contexto internacional favorável, fatores internos aos dois países acrescentavam outras condições propícias à construção da parceria nas relações bilaterais. O elemento humano, em primeiro lugar. Com efeito, os japoneses elegeram o Brasil como destino do início do século XX aos anos 1950, quando a superpopulação e as condições econômicas aconselhavam a emigração. Uma grande colônia de japoneses estabeleceu-se no Brasil, vin-
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culando étnica e culturalmente os dois povos e servindo de elemento de atração política e de negócios. O refluxo dos descendentes de nipo-brasileiros, em conseqüência do nível de desenvolvimento alcançado pelo Japão e da estagnação da economia brasileira desde 1980, deu origem ao grupo dos decasseguis, isto é, dos descendentes que retornaram em busca de melhores salários, mas o movimento de retorno pouco afetou a base demográfica da migração japonesa radicada no Brasil. Comércio bilateral em ascensão, crescentes investimentos japoneses no Brasil e estreitamento político foram os três elementos concretos e positivos da parceria bilateral erigida sobre as condições favoráveis já descritas. Baixo intercâmbio de conhecimento e irrelevante impacto sobre a formação da inteligência nacional, suas fraquezas. Na virada do milênio, quando a globalização faz avançar a interdependência entre os povos, curiosamente Brasil e Japão oferecem ao observador a contra-cena de relação declinante. Do lado do sol nascente, o cansaço do modelo de desenvolvimento havia desacelerado o ritmo do crescimento, restringido a disponibilidade de recursos destinados à expansão global e reorientado o país para a vizinhança, uma vez que sobre o continente asiático se abria a perspectiva de grandes negócios após a falência do império soviético e a China ameaçava estabelecer uma hegemonia regional concorrente. Do lado do sol poente, a miragem do salto para o Primeiro Mundo euro-americano levou os neoliberais brasileiros a considerar como natural o descolamento do Oriente. A relação declinante não produziu maiores estragos sobre a parceria bilateral em razão da interconexão madura que já se havia estabelecido entre os dois países nos mais diversos ramos da cooperação, entre os quais destacam-se comércio, indústria, produção agrícola conjunta, mineração, serviços e cultura. Luiz Inácio Lula da Silva voltou-se ao conserto de relações bilaterais, cujo declínio não convinha prolongar. Visitou o Japão e a Coréia do Sul, em 2005, levando mais de duzentos empresários, seguindo, aliás, os passos de mexicanos, chilenos, canadenses e americanos, interessados em ampliar relações econômicas, especialmente comércio e investimentos, com os capitalistas do Extremo Oriente. Ao Brasil de Lula cabia, ademais, remediar o declínio do comércio e dos investimentos que se verificava nas relações bilaterais desde os anos 1980, em razão das recessões de lado a lado.
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12.3 china, o futuro ao alcance Ao longo do século XX, em momentos distintos, os países atrasados, um após outro, reorientavam suas políticas exteriores, ao mesmo tempo que ajustavam o modelo econômico e as relações internacionais ao objetivo de promover o próprio desenvolvimento. Em certa medida, porém de modo secundário, essas variáveis andavam ao sabor de mudanças no regime político. A Revolução Meiji do Japão, ainda nos anos 1860, constituiu uma experiência precursora, todavia introduziu um modelo introspectivo, que se abriu à globalização política e econômica somente após a Segunda Guerra Mundial. A não se considerar o pioneirismo japonês e a experiência soviética, cabe observar que os países da América Latina colocaram-se à frente dessa onda histórica, relativamente à Ásia e à África. Nos anos 1930, como se sabe, o Brasil e os demais grandes países da América Latina transitavam do paradigma liberal-conservador de relações internacionais, que vinha do século XIX, para o paradigma desenvolvimentista. A China impulsionou essa evolução necessária bem mais tarde, por volta de 1979-80, ao termo da chamada revolução cultural. Desde então, a política exterior e o modelo de desenvolvimento foram se adaptando ao propósito de promover o desenvolvimento interno, ao estilo cada vez mais próximo da modernização alcançada pelo sistema capitalista de produção, consumo e inserção internacional. A convergência dos modelos entre Brasil e China teve início, portanto, por volta de 1980. Desde então, abriram-se oportunidades para se implementar relações bilaterais que antes eram irrelevantes, ocasionais ou incipientes e condicionadas, ademais, ao choque ideológico. Uma década depois da revolução cultural, por volta de 1989-90, verificou-se um segundo impulso chinês rumo à abertura controlada do modelo de desenvolvimento, coincidindo com a falência da União Soviética e o massacre de jovens que exigiam mudanças em manifestação pública na Praça da Paz Celestial em Pequim. Ramos expõe os diferentes conceitos de parceria em busca daquele que se aplicaria às relações entre o Brasil e a China. Embora a diplomacia brasileira e de seu parceiro estejam recorrendo ao termo parceria estratégica para significar relações especiais com determinado país, existe grande divergência entre a natureza e o objetivo dessas relações nas experiências bilaterais. Uma ação destinada a realizar fins comuns, um auxílio mútuo à consecução de metas específicas, a cooperação entre setores eleitos, uma relação avaliada a posteriori? Em que medida o interno, o sistêmico, o projeto nacional e a
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convergência determinam a relação bilateral? Seria a parceria Brasil-China cooperativa, oportunista, destinada a realizar interesses limitados, chineses em maior escala, portanto, subserviente? Como as diferenças em relação aos modelos de Estado e ao desequilíbrio de capacidade de financiamento da cooperação afetam-na? Cientes de que o conceito de parceria estratégica deve ser repensado, chamamos aquela que se põe em marcha entre Brasil e China um tipo de parceria ascendente, construída à base de vontade nacional, potencial similar e nível emparelhado de desenvolvimento alcançado. Ascendente porque transfere para o futuro o adensamento que pode torná-la, um dia, tão robusta e de impactos econômicos tão relevantes para o destino da nação brasileira quanto a parceria estabelecida entre Brasil e Estados Unidos. Para além dos componentes que as assemelham em razão da convergência de modelos de desenvolvimento, as políticas exteriores de ambos os países não coincidem em outros aspectos de sua formulação conceitual. A política exterior do Brasil orientou-se por metas a alcançar — indústrias de transformação, indústrias de base, inovação tecnológica — e acoplou-lhes uma ação externa coerente destinada a trazer fatores vinculados a tais metas. A política exterior da China move ação externa menos dependente, caracterizada pela reciprocidade de contribuição entre o interno e o externo. Tenta evitar futuramente, desse modo, as dependências estruturais que o Brasil carrega, por causa de sua estratégia externa dependentista. Essas observações devem ser tomadas com cuidado, visto que Brasil e China alinharam suas políticas exteriores na busca de empreendimentos e investimentos externos com o fim de assentar a indústria de transformação. Ademais, a China se diferencia do Brasil em sua ação externa, que se destina de modo premente a saciar um sistema produtivo ávido por matérias-primas com que nutrir as necessidades de um bilhão e trezentos milhões de potenciais consumidores. Sendo, ainda, capaz de quebrar economias nacionais em razão de superoferta de produtos baratos a sociedades ansiosas por consumo. A abertura dos sistemas empresarial e de serviços da China ao capitalismo global vem acompanhada pela negociação de abertura dos mercados capitalistas aos produtos chineses. Uma abertura controlada, não cedida em troca de nada como ocorreu com a abertura neoliberal dos países da América Latina. Assim, a compra de títulos da dívida dos Estados Unidos, em particular, articula-se com a instalação de mais fábricas em solo chinês, cuja produção
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destina-se, em boa medida, ao mercado de consumo norte-americano. Como as reservas chinesas de títulos americanos atingiram um trilhão de dólares em 2006, as maiores reservas financeiras do mundo, o poder de pressão sobre os dirigentes dos Estados Unidos eleva-se ao ponto de torná-los reféns dessa dependência. Nesse ponto, reside precisamente a diferença entre a inserção internacional brasileira, passiva e esmoleira, e a inserção internacional chinesa, à base de trocas reais de benefícios. Dado que a China embarcou tardiamente no trem da modernização, seu modelo econômico é capaz de se beneficiar de lições extraídas das experiências alheias e do próprio potencial interno. A inclusão internacional se dá pela via do comércio e do investimento, de forma conjugada entre si e com ambiente macroeconômico interno atrativo, especialmente com estabilidade monetária. Empresas estrangeiras são destarte estimuladas a investir na China, porém conduzidas a seguir a política industrial sob controle local no que diz respeito a setores de produção, zonas de localização e destino das manufaturas. Os empresários estrangeiros abrem fábricas ou associam-se a empresas estatais nacionais em joint-ventures, já que são as estatais que dinamizam o crescimento econômico. Por outro lado, essas mesmas estatais tomam o rumo do exterior, onde realizam investimentos, sobretudo em infra-estrutura e captação de matérias-primas, denotando estratégia orquestrada, não investimentos pontuais desconectados, como fazem as empresas brasileiras no exterior. O modo como a China implementa sua política para a América Latina resulta desse conjunto de orientações que informam sua política exterior. Em 2006, os dirigentes chineses iniciaram um diálogo regular com o governo dos Estados Unidos, que historicamente tomou a América Latina por reserva estratégica e terreno privilegiado de exportações e investimentos. Esse diálogo tem por fim evitar confronto, por causa desses pressupostos, sem, contudo, fechar a região à presença e à penetração dos interesses chineses. Por sua vez, a América Latina se aproxima da China atraída tanto pelos negócios que persegue quanto pela simpatia que devotam seus governos, na maioria de esquerda, à diplomacia cooperativa e comercial dos chineses. Brasil e China avaliam seus interesses de modo introspectivo, sendo em seus processos históricos dois grandes países periféricos com autonomia de inserção internacional conduzida pelo Estado. Democracia de mercado e fatores de interdependência da era da globalização não deixam de penetrar seus modelos de desenvolvimento, sem, no entanto, afastar a autonomia de inclusão
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— maior do lado chinês — que controla e doma o leito sistêmico do mercado. Após a fase neoliberal brasileira durante a qual a essência desse argumento parecia fraquejar, recuperou-se, no início do século XXI, o curso anterior, convergindo em maior grau as políticas exteriores de Brasil e China em relação à reciprocidade a ser aplicada às relações internacionais. De um lado e de outro, por força e vontade dos dirigentes e como política de Estado. Em perspectiva geopolítica, Brasil e China também ostentam elevado grau de convergência em sua visão de mundo, na preferência pela multipolaridade de centros de poder em oposição ao unipolarismo norte-americano e no desejo de exercer papel internacional relevante sobre o controle da segurança global. Essa convergência geopolítica aproxima intimamente os métodos de ação externa, em ambos os casos uma ação diplomática, pacifista, universalista, cooperativa e não confrontacionista. A esses pressupostos restringe-se a convergência, embora não seja pouco o que a consubstancia. Aos dirigentes chineses não agrada a idéia de reformar a ONU, em especial o Conselho de Segurança, para abrigar novos membros permanentes com poder de veto, como deseja o Brasil, particularmente se entre eles venha assentar-se o Japão, rival histórico regional. Essa obstrução da aspiração brasileira de exercer papel sobre a segurança global distancia o Brasil da China, em razão de uma rivalidade regional, como distancia o Brasil da Argentina, em razão de outra. Quanto à política nacional de segurança, Brasil e China trilham caminhos separados. O primeiro, em função da interpretação do pacifismo inerente à ação externa ou da escassez de recursos, abandonou a idéia de construir meios modernos de dissuasão e defesa, que já foi aventada pelo Estado em duas ocasiões históricas: nos meados do século XIX e quando a rivalidade com os Estados Unidos emergia na segunda metade do século XX. No longo curso, apresenta-se como nação desarmada. A China, ao contrário, e apesar de país em desenvolvimento, dotou-se de capacitação estratégica, sendo atualmente uma potência militar ao lado dos outros quatro grandes, Estados Unidos, Rússia, França e Inglaterra. Como se observa, essa condição que adquiriu não perturba a natureza de sua ação externa, diplomática e pacifista, diferente da ação norte-americana, truculenta e agressiva no modo de impor seus interesses. As duas variáveis, capacitação estratégica e política exterior diplomática e pacifista, fazem com que a China disponha de voz, embora cautelosa, levada em consideração na conformação de equilíbrios de força e na distribuição de responsabilidades entre as nações em matéria de segurança internacional.
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Nas relações entre o Brasil e a China, três esferas de interpenetração servem de suporte à parceria que já se ergue sobre boas bases e se situa em perspectiva ascendente. Em primeiro lugar, um comércio bilateral forte cria vínculos de complementação necessária e interdependente. A China importa produtos alimentícios e matérias-primas do Brasil para satisfazer as necessidades de sua massa populacional e de sua indústria em crescimento acelerado e exporta manufaturados. Esse esquema de comércio assimétrico, mantenedor, em princípio, de desigualdades estruturais entre as economias de dois países, não apresenta rigidez. A venda recente de cem aviões brasileiros da Embraer à China o comprova. O comércio assimétrico vem sendo, ademais, compensado pela segunda esfera da parceria em construção nas relações bilaterais. A cooperação tecnológica entre Brasil e China apresenta perfil próprio em razão, precisamente, da autonomia das políticas exteriores nas últimas décadas. A cooperação em áreas sensíveis, como a espacial, recusada ao Brasil pela União Soviética sob pressão norte-americana e, depois, pela Rússia, refugiou-se e vicejou naquela autonomia de inserção internacional à que já se fez alusão. Para não provocar as potências estratégicas, bem como em razão da dessemelhança das políticas de segurança, desenvolveu-se a construção conjunta de satélites para fins ambientais. Mesmo porque a cooperação tecnológica na área da produção agrícola, outro ramo da ação bilateral, aconselhava lançar mão de tecnologia integral, terrestre e celeste. Outros programas de cooperação em tecnologia avançada foram estabelecidos de comum acordo entre os governos, particularmente no âmbito aeronáutico e da construção de hidrelétricas. A terceira vertente da parceria ascendente entre as duas potências emergentes acompanha e reflete o mundo da interdependência dos negócios internacionais da era da globalização. Não atinge os serviços financeiros, porque nesse âmbito, se o Brasil dispõe de um sistema bancário moderno e ativo e a China de reservas vultosas em moeda forte, ambos não competem ainda de modo operacional com o sistema financeiro dos países centrais, cujos canais e atores se espalham pelo mundo. Os investimentos chineses, contudo, miram o Brasil, interessados na melhoria da infra-estrutura de que depende o fornecimento de produtos agrícolas e matérias-primas. Os investimentos brasileiros tomam o caminho da China, onde montam filiais de empresas industriais, com o fim de se beneficiar dos baixos custos da produção e do comércio de exportação.
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Uma vez que ambos os países dispõem de tecnologia avançada em setores estratégicos do desenvolvimento econômico, o futuro da parceria sugere aprofundar a terceira esfera da conexão bilateral, aquela da interpenetração de empreendimentos produtivos e de serviço. Independentemente do regime político, como deram convincente demonstração de possibilidade os dirigentes das últimas décadas. Por essa via, caso governo e sociedade estimulem com determinação a fusão de empreendimentos ou a expansão para o outro lado de empreendimentos de matriz nacional, Brasil e China darão curso à sua inserção internacional madura, promovendo a interdependência real em marcha no horizonte do capitalismo. Quando visitou o Brasil em 2004, o presidente chinês Hu Jintao alcançou o reconhecimento brasileiro de que a China é uma economia de mercado, porém ouviu de seu colega exigências de interesse brasileiro: investimentos chineses em infra-estrutura, parcerias produtivas empresariais, mais manufaturados na pauta brasileira de exportação, dobrar o comércio bilateral, em expansão exponencial desde 2000, elevando seu montante de dez a 20 bilhões de dólares em três anos, enfim, assinatura de acordos bilaterais criando sistema regulatório favorável aos negócios. Eventuais conflitos comerciais foram transferidos para a OMC, sendo regulamentadas no ano seguinte salvaguardas cobrindo setores da produção. Tudo isso ocorria quando a China rompia com a fama de inundar mercados com produtos baratos e de baixa qualidade e transitava para a concorrência internacional em pé de igualdade tecnológica sistêmica. Por isso, empresas brasileiras tomam a direção do país asiático, já a quarta economia global. Em 2006, o vice-presidente José Alencar esteve em Pequim para coroar esses entendimentos de cúpula e instalar a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível, destinada a examinar permanentemente os temas de interesse da parceria bilateral, somando-se ainda mais outra dezena de acordos ao marco regulatório, e comprometendo-se os dois governos em reforçar a colaboração nas organizações multilaterais, especialmente ONU e OMC, e nos setores da cooperação bilateral, agricultura, energia, mineração, tecnologia da informação, infra-estrutura e alta tecnologia. Em suma, Brasil e China são países convergentes quanto à destinação da política exterior para os fins do desenvolvimento nacional, quanto ao estágio de desenvolvimento alcançado nas últimas décadas, à visão geopolítica de mundo e à autonomia de inserção internacional conduzida pelo Estado. São diferentes quanto à envergadura do corpo nacional, ao grau de dependência
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estrutural do exterior, à política de segurança e ao potencial de influência sobre os parâmetros da ordem internacional. Em torno de tais elementos tomará forma a parceria ascendente, uma obra cujos alicerces estão postos, mas cujo soerguimento fica para as novas gerações.
12.4 Índia, a distância não percorrida A dificuldade em descobrir mecanismos e implementá-los em favor de relações bilaterais substantivas vem de longe e persiste entre Brasil e Índia, embora esse país abrigue massa populacional e necessidades semelhantes às de seu grande vizinho, a China. A maior democracia da Ásia não formulou projeto de desenvolvimento conduzido pelo Estado, a exemplo daqueles concebidos por dirigentes de Japão, China e Brasil, e essa diferença de experiência tolheu aos dois países oportunidades criadas pela conexão dos propósitos internos com a política exterior, as relações bilaterais, o multilateralismo e as relações internacionais em conjunto. A um país atrasado que procura sua via de crescimento econômico e de bem-estar social, a democracia não basta. É mister que se lhe acrescente algo semelhante ao paradigma desenvolvimentista, o que, no caso da Índia, não ocorreu. Mesmo quanto à política de segurança, a qual, ao lado do modelo de desenvolvimento, condiciona a ação externa, a diferença entre Brasil e Índia é profunda. Esta última atingiu sua capacitação nuclear e construiu a bomba com o objetivo de gerenciar seu conflito com o Paquistão, ao passo que Brasil e Argentina também alcançaram a capacitação tecnológica nuclear, porém administraram a rivalidade mediante cooperação, medidas de confiança mútua e construção de uma zona de paz no Cone Sul. Diante da coincidência de necessidades econômicas e sociais e da convergência recente de níveis de desenvolvimento a sugerir o estreitamento bilateral e marchar lado a lado sobre o cenário internacional, desafios e interesses não aproximam Índia e Brasil, a não ser nas negociações multilaterais atinentes ao comércio. O mercado falha nas democracias de países em desenvolvimento quando o Estado não dá impulso e orienta suas forças. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, pela primeira vez, tenta remediar esse marasmo das relações bilaterais. Sem perceber a essência de complexidade que representa a parceria estratégica, como denotam as relações acima examinadas entre Brasil e China, aplicou o termo às relações com a Índia, certamente com o intuito de dinamizá-las. Passo inicial dessa nova fase, a visita de Lula à
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Índia, em 2004, serviu a dois fins: constatar a irrelevância das relações bilaterais — o comércio não ia além de um bilhão de dólares e os mecanismos de cooperação inexistiam — e identificar setores de cooperação ao lado de setores de concorrência. O conhecimento mútuo avançou. Acerca do multilateralismo comercial, coincidências haviam surgido na OMC, desde a Conferência de Cancun de 2003, estendendo-se pela ação no seio do G20; a indústria da informática demonstra mesmo nível tecnológico em ambos os países, mas diferente projeção internacional; a indústria farmacêutica indiana é superior, como são a petrolífera e do biocombustível brasileiras; a Índia se apresenta como defensora da própria agricultura e o Brasil como segundo exportador agrícola do mundo; ambos concorrem na produção de manufaturas e na área da mineração. Dois anos depois, em 2006, novo passo dá continuidade ao impulso bilateral, quando o primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, visita Brasília, juntamente com o presidente da África do Sul, Thabo Mbeki. O diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS) havia se institucionalizado em 2003, precisamente, com o intuito de dar impulso à cooperação Sul-Sul entre três países de bom potencial, todavia com dificuldades para identificar mecanismos capazes de operacionalizá-la. A cúpula do Ibas ocorre precisamente quando os países em desenvolvimento superam os países desenvolvidos como destino das exportações brasileiras, em ritmo de expansão exponencial desde o primeiro ano deste século. A nova geografia comercial do Brasil produzia efeitos concretos, longe do ranço ideológico que lhe atribui o pensamento conservador brasileiro aplicado às relações internacionais. Essa cúpula também confirma a cooperação dos três países em outros setores como a concertação nos foros multilaterais, o combate à fome e às doenças, o incentivo à agricultura, aos biocombustíveis, ao transportes, comércio, à sociedade de informação, ciência e tecnologia e às normas técnicas. Os acordos firmados ampliam nessa via o sistema regulatório necessário ao fluxo de projetos e às iniciativas de agentes sociais privados.
12.5 os tigres asiáticos Os chamados tigres asiáticos não compõem um bloco, mas um conjunto de países economicamente dinâmicos: Cingapura, Coréia do Sul, Taiwan, Indonésia, Malásia, Filipinas e Tailândia. Ao lado de países pobres, como Paquistão e Vietnã, e dos três gigantes, Japão, China e Índia, perfazem a diversidade do tabuleiro asiático, que ainda inclui o Próximo Oriente.
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Durante as últimas décadas, os tigres asiáticos gozaram das condições favoráveis que criaram e das quais extraíram força para manter acelerado um tipo de crescimento econômico equilibrado pela elevação do padrão de bem-estar social. Nisso, seu modelo de desenvolvimento difere do brasileiro e essa diferença, como já se observou, passa despercebida aos interesses de estudiosos e portanto não se incorpora à aprendizagem política. Enquanto o modelo daqueles países que recentemente ascederam aos benefícios sociais do crescimento econômico, promovendo simultaneamente os dois efeitos, o modelo brasileiro caracterizou-se por acelerado crescimento econômico e manutenção das desigualdades sociais, tanto de renda quanto de instrução. Em um ponto, os tigres asiáticos seguiram trajetória similar à brasileira: o arranque econômico rumo à modernização voltou-se à satisfação de necessidades do consumo interno. Em dois outros, seguiram caminhos distintos: a educação e a inclusão social, lá simultânea e aqui descompassada, e a expansão do conhecimento e da inovação que lá permitiu, desde cedo, acrescentar à pauta de exportações produtos com tecnologia própria e aqui sofreu de restrições determinadas pelo empreendimento importado. Essas duas diferenças dos modelos de desenvolvimento permitem entender por que Brasil e tigres asiáticos registram baixos níveis de comércio bilateral. São modelos introspectivos de difícil complementação que se vêem mutuamente como competidores tanto sobre seus mercados internos quanto sobre terceiros mercados. São, por outro lado, experiências de minguada cooperação econômica entre si, visto incluírem-se entre os países tardiamente chegados ao mundo do capitalismo contemporâneo, para os quais outros laços com países de costado histórico mais antigo e mais bem talhado criam oportunidades de cooperação com vantagens comparativas superiores. Desde 1990, a globalização acelerada modificou em um ponto a relação bilateral do Brasil com alguns desses países asiáticos. Se Taiwan, em razão das coerções que o conflito com a China continental impõe à expansão dos negócios, observa que o volume e a diversidade de sua relação com o Brasil situam-se muito abaixo das possibilidades criadas pelo grau de desenvolvimento de ambos, a Coréia do Sul vem dando demonstrações de eficiência ao iniciar a exportação de seu sistema produtivo para o Brasil, abrindo neste país filiais de fábricas. Galga, desse modo, por meio da relação bilateral, um degrau a mais em favor da globalização de suas forças econômicas.
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13 Próximo oriente e África: oscilações da política brasileira
LeIturaS recomeNdadaS: RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961. SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar da África. A dimensão atlântica da política externa brasileira (1946 a nossos dias). Brasília: UnB, 1996. SANTOS, Norma Breda dos. (Org.). Brasil e Israel: diplomacia e sociedades. Brasília: UnB, 2000. COELHO, Pedro Motta Pinto; SARAIVA, José Flávio Sombra. (Orgs.). Brazil-Africa Forum on Politics, Cooperation and Trade. Brasília: IBRI, 2004. SAVARD, Pierre; VIGEZZI, Brunello. (Ed.). Multiculturalism and the history of internacional relations from the 18th Century up to the present. Milano: Unicopli, 1999 (Ver os capítulos de Amado Luiz Cervo e José Flávio Sombra Saraiva, p. 291 e 337, sobre a experiência brasileira).
13.1 regiões instáveis, relações instáveis O Império Otomano se estendia da Turquia ao Próximo Oriente e à África do Norte, e mantinha a unidade da região, além de uma relativa estabilidade política. Durante a Primeira Guerra Mundial, aliou-se à Alemanha, foi ocupado pelas potências vitoriosas e, a seu termo, desmembrado. A Turquia entrou
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no mundo moderno mediante uma revolução nacional, porém, desde então até o presente, os países ocidentais enfrentam dificuldades para lidar com os países árabes situados no Próximo Oriente e na África do Norte. A coesão e a unidade política que o Império manteve durante séculos não mais existiria, apesar da iniciativa egípcia que criou a Liga Árabe logo após a Segunda Guerra e apesar da religião muçulmana, que faz a unidade, porém não torna efetiva a união desses povos. Ingleses e franceses criaram colônias e, mais tarde, sob mandato da Liga das Nações e da ONU, instalaram protetorados na região, mas foram forçados a se retirar. Desde a Segunda Guerra Mundial até o presente, duas questões contribuem para aumentar as dificuldades dos ocidentais em lidar com a área: por um lado, a criação do Estado de Israel, em 1948, e o conflito palestino-israelense, que se arrasta até nossos dias e, por outro, o controle sobre o petróleo, recurso natural estratégico para a sobrevivência do capitalismo. As relações entre Brasil e Estados árabes, oscilantes porque feitas de tentativas sob coerções dessa natureza, refletem grau semelhante de dificuldade com que se deparam os ocidentais em geral para estabilizar suas relações com os países da região. Se para os ocidentais os fatores de determinação de dificuldades em lidar com o Próximo Oriente e a África do Norte provêm, em primeira instância, de dentro da área, o próprio Brasil engendrou as maiores dificuldades em lidar com a África subsaariana. Como bem frisou José Honório Rodrigues em seu clássico estudo Brasil e África, outro horizonte, laços históricos de raiz étnica e cultural sugerem o estreitamento entre os dois lados. Como revela, contudo, José Flávio Sombra Saraiva, em outro clássico estudo acerca do período de acesso à modernização, O lugar da África: a dimensão atlântica da política exterior brasileira, a opinião e os dirigentes do país se dividem ante o papel da África, pendendo a política para efeitos ora de aproximação ora de distanciamento.
13.2 Próximo oriente: presença, retirada e retorno O primeiro momento de real aproximação do Brasil com o Próximo Oriente ocorreu na década de 1970. Três razões levaram o País a tomar esse caminho: a elevação do preço do petróleo e da receita dos países exportadores que sugeriam o aumento da cooperação econômica e das vendas de produtos ao mercado árabe; o universalismo da política exterior que tran-
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sitava, então, do conceito elaborado anteriormente à prática que os meios disponíveis já permitiam; a expectativa de atrair petrodólares para apoiar o desenvolvimento nacional. Com o fim de agradar aos dirigentes árabes e preparar o incremento das relações, o governo de Ernesto Geisel tornou mais claro o apoio à criação do Estado palestino e à condenação da ocupação israelense de territórios vizinhos pela força. Os resultados dessa política não foram irrelevantes, tampouco suas iniciativas devem ser consideradas um erro de cálculo estratégico, como pensa uma parcela da opinião brasileira. As circunstâncias sugeriam-na e errado, por certo, teria sido desperdiçar oportunidades reais que se apresentavam à realização de interesses brasileiros. A importação de produtos brasileiros, especialmente alimentícios, pelos países árabes aumentou, abrindo-se novo caminho para as exportações. Com a entrada de grandes empresas brasileiras de serviços de engenharia que passaram a operar em obras de infra-estrutura, como a construção de estradas, a prospecção de petróleo e até mesmo a cooperação nuclear, as exportações de produtos manufaturados também cresceram. Em razão da instabilidade política, alguns países da região, como Iraque, Arábia Saudita e Líbia buscaram o Brasil como fornecedor de produtos da indústria bélica, até mesmo com o fim de instalar fábricas no local. Apesar do insucesso financeiro — os petrodólares dirigiam-se à Europa e aos Estados Unidos — uma densa rede de relações entre o Brasil e os países árabes estabelecia-se, enfim. O impulso dessas relações observadas nos anos 1970 e mantidas durante a década seguinte arrefeceu desde o fim da Guerra Fria, em razão da ingerência dos Estados Unidos, que até então se haviam mantido prudentes e distantes para não suscitar reações indesejáveis por parte da União Soviética, que considerava a região uma espécie de área contígua e de influência. As iniciativas norte-americanas tomaram novo rumo no início do presente século e não se restringem a guerras esporádicas, como a guerra no Afeganistão e as duas guerras contra o Iraque. Destinam-se, aparentemente, ao combate ao terrorismo, que os norte-americanos supõem de inspiração muçulmana, mas seu objetivo concreto consiste em assegurar o controle das fontes de aprovisionamento de petróleo de que depende o funcionamento da máquina produtiva dos países capitalistas. Essas iniciativas incluem a operação de empurra para fora da área de países emergentes como o Brasil, que mantém autonomia de política exterior e já havia lançado bases de uma relação de
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peso para o lado árabe, incômoda, aliás, para os Estados Unidos, a exemplo da relação entre Brasil e Arábia Saudita anterior à primeira guerra do Golfo, em 1991. Nesse contexto, constatam-se as dificuldades enfrentadas de ambos os lados para dar continuidade à onda de penetração brasileira. A retirada brasileira ocorreu ponto após ponto e tomou a dimensão regional: do Irã, quando os aitolás assumiram o Estado, do Iraque, antes mesmo da ocupação norte-americana em 2003, da Arábia Saudita, por exigência da aliança militar com os Estados Unidos, da Líbia, por prudência. Tal retirada alcançaria a região como um todo em razão da política primeiro-mundista de Fernando Henrique Cardoso (1993-2002), que não tinha escrúpulos em sacrificar avanços concretos do universalismo brasileiro no antigo Terceiro Mundo, promovido a bloco de países emergentes na virada do milênio. Após a retirada brasileira dos países árabes, observada no final do século XX, nova orientação da política exterior, conduzida pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, desde 2003, pretende reverter o movimento, ao mesmo tempo que a região anda mais conturbada que nunca, em razão da ocupação norte-americana do Iraque, do acirramento do conflito árabe-israelense, do endurecimento do regime iraniano e recrudescimento do terrorismo. Esse pretendido retorno ao mundo muçulmano carrega objetivos distintos daqueles que motivaram a primeira onda de aproximação. Não há mais a busca de petrodólares e nem mesmo a diversificação das fontes de aprovisionamento de petróleo — a auto-suficiência interna é alcançada —, mas a expansão dos negócios, a penetração de empresas e o comércio de exportação tornam-se o foco do movimento. Afastando preconceitos e disposto a recuperar perdas e retiradas que refletiam a conduta de seu antecessor, Lula confere coerência à sua ação externa, ao vincular o retorno do Brasil aos países árabes a propósitos de sua política regional e multilateral, que busca fortalecer o poder nacional e aumentar as exportações. Por iniciativa da diplomacia brasileira, reuniram-se em Brasília, em 2005, os chefes de Estado ou de Governo de 33 países, 22 árabes e 11 sul-americanos, na primeira Cúpula de dirigentes das duas regiões. Cogitavam os organizadores evitar o debate dos problemas políticos do Próximo Oriente, porém prevaleceram os temas dessa natureza, tais como terrorismo, intervenção norte-americana, sansões unilaterais dos Estados Unidos à Síria e ocupação israelense de territórios por meio da força. Ou seja, as coerções circunstanciais criadoras de dificuldades, embora amedron-
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tem dirigentes de pouca fibra e possam levar estratégias externas ao malogro, não se postaram como fatores de desestímulo à nova orientação externa. Os objetivos inerentes à nova tentativa de aproximação brasileira incluíam, assim mesmo, uma dimensão econômica e outra política. Sob o aspecto econômico, vale registrar que os negócios entre países árabes e América do Sul são bem minguados no início do século XXI, apesar de residirem nessa região cerca de dezessete milhões de árabes ou descendentes. O Brasil fornece apenas 2% das importações árabes. Em vista disso, o encontro reuniu, paralelamente, mais de 800 empresários que debateram as oportunidades de comércio e investimentos. Firmou-se importante acordo para criação de futura área de livre-comércio entre o Mercosul e o Conselho de Cooperação do Golfo, formado por Bahrein, Kuwait, Catar, Omã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Encaminharam-se acordos entre Mercosul, Egito e Marrocos. A feira de investimentos serviu para demonstrar a atração de capitais de lado a lado, útil à internacionalização de empresas brasileiras. Ponderou-se a oportunidade de criar linhas aérea e marítima diretas entre as regiões, como também um banco de financiamento do comércio. O conhecimento mútuo entre empresários, que era mínimo, cresceu por ocasião desse encontro, realizando uma condição indispensável à expansão dos negócios. Sob o aspecto da política internacional, dois conceitos acerca da Cúpula são pertinentes, ambos valendo mais como signo imanente do que decisão concreta. Para a política exterior brasileira, a revelação de que é hábil em produzir consensos internacionais, universalista e tolerante, apologética da convivência das diferenças, ainda valorativa da autodeterminação e da nãoingerência em assuntos internos de outros Estados; para as relações internacionais, o repúdio à teoria do choque de civilização que serve de inspiração aos métodos norte-americanos de combate ao terrorismo pela guerra contra países muçulmanos e a conseqüente desclassificação da resistência à ocupação estrangeira, considerada direito de autodefesa e não terrorismo, pensando-se precisamente na resistência iraquiana. O movimento de retorno do Brasil aos países árabes no início do século XXI causa preocupações nos dirigentes de Israel e em parte da opinião pública nacional, como ocorreu à época de Geisel, por efeito da primeira onda de aproximação. Sem razão, porquanto a diplomacia brasileira, que exercera importante influência sobre a criação do Estado de Israel por meio de seu representante e Secretário Geral das Nações Unidas, Oswaldo Aranha, logo
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após a Segunda Guerra, manteve invariável sua política de apoio à resolução da ONU que sugeria a existência de dois Estados, o judeu e o palestino. Essa parcela conservadora da opinião brasileira, com capacidade eventual de controle sobre as decisões de política exterior e as relações internacionais do País como à época de Cardoso, guia-se por motivos culturais, talvez preconceitos, e não percebe os interesses concretos em jogo, a realizar ou deitar a perder. Invoca, ademais, por excesso de cautela ou por covardia, eventuais reações adversas dos Estados Unidos. Com efeito, o modo como ocorre esse retorno não perturba as relações com os Estados Unidos e a Europa, que apreciam a moderação da política exterior do Brasil e sua capacidade de desarmar tensões, embora não tanto seu protagonismo e sua capacidade de criar consensos internacionais, principalmente, porque persegue o objetivo do assento permanente no Conselho de Segurança das ONU. Uma nova Guerra Fria parece contaminar o complexo e complicado conjunto de países do Próximo Oriente, encurralando políticas externas para dois recintos antepostos, Irã, Síria, Rússia e China, de um lado, Israel e Estados Unidos, de outro. Sem que se vislumbre saída para o dramático envolvimento no Iraque e sem que os Estados Unidos atinjam seu fim, controlar as fontes de petróleo. Lidar com o Próximo Oriente segue sendo uma tarefa complicada, um desafio para a inteligência política de qualquer país.
13.3 África subsaariana: atração e distanciamento Um conjunto de fatores sustentam a aproximação do Brasil com os países da África subsaariana e sugerem relações diplomáticas, políticas e de segurança intensas, além de cooperação técnica e negócios como comércio e investimentos brasileiros. Entretanto, em razão de argumentos exibidos por parcela da opinião esclarecida e com influência sobre o processo decisório de política exterior, não se observa linearidade de conduta nas relações do Brasil com a África. Um dos complicadores dessa ação são as guerras locais ou regionais. O foco de conflitos durante a Guerra Fria situava-se no Cone Sul, envolvendo África do Sul, Angola, Moçambique, Namíbia e Zimbábue, porém essa zona alcançou a paz e a convivência, não o restante do continente negro, por onde se espalhava uma dezena de conflitos durante a última década do século passado, alguns dos quais alcançando o presente. O mais grave de todos, ainda sem solução, a guerra civil no Sudão, que vem dos anos 1960,
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já provocou mais de dois milhões de mortos. Analistas discordam quanto às causas, insistindo uns sobre fatores externos, outros sobre motivações locais. De todo modo, essas numerosas guerras afetam as relações internacionais e, conseqüentemente, a política africana do Brasil, pois fomentam o comércio de armas ou a manipulação de identidades étnicas; intensificam a pobreza levando à pilhagem ou à apropriação de recursos naturais; enfim, obstruem a inclusão social e a governabilidade. As bases em que se assenta a conveniente aproximação com a África são múltiplas. Em primeiro lugar, o multiculturalismo que reflete as raízes étnicas e culturais da sociedade brasileira. Em outras palavras, a composição heterogênea da sociedade brasileira postula o universalismo da política exterior, bem como a convivência das diferenças e o culto da tolerância e da paz entre os povos. Embora o “branqueamento da raça” tenha sido um objetivo dos estadistas que criaram a República no Brasil e se dilui em sutil apreciação de superioridade por parte das elites sociais, as estatísticas do IBGE confirmam o fato de as raízes étnicas e culturais da sociedade se distribuírem entre europeus e africanos em partes quase equivalentes, porém majoritárias relativamente a outras origens. Mesmo que essas somem quantidades consideráveis de árabes, judeus, asiáticos e indígenas. O multiculturalismo oferece legitimidade e autenticidade ao universalismo das relações internacionais do País. Sem evitar a eleição de áreas prioritárias da ação externa, torna inconsistente e preconceituosa, ademais contrária à realização de interesses nacionais, a política de excluir espaços humanos e geográficos da penetração e presença brasileiras em nome de relações quase excludentes com os países avançados, como propõe uma forte corrente da opinião conservadora, hegemônica à época de Cardoso, novamente à tona em 2006 na proposta de política exterior do candidato derrotado à presidência da República, Geraldo Alckmin. Para esse segmento da opinião nacional, imbuído de forte presunção, o conceito de Terceiro Mundo traduz uma excrescência do pensamento diplomático e cultivar relações com seus povos representa uma contaminação que deprime a qualidade da ação externa. Dirigentes brasileiros de regimes políticos distintos, como a democracia e o regime militar, entenderam, todavia, ser adequada uma política exterior voltada a relações multidirigidas, em consonância com o pensamento do exchanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, que evidenciou em seus escritos o estreito nexo conceitual entre multiculturalismo e universalismo.
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O primeiro impulso de aproximação entre a África e o Brasil, embalado pelo multiculturalismo, dele não derivou diretamente, apenas sobre ele lançou bases cujo escopo era a realização de interesses concretos. Depois da descolonização da África, que tomou impulso nos anos 1960 e concluiu-se com a retirada portuguesa nos meados da década seguinte, o poder de atração do continente africano sobre os dirigentes brasileiros tinha um nome: exportação de manufaturados. Com efeito, nas últimas décadas do século XX, a industrialização convertera o Brasil em potencial exportador de manufaturados, que o Primeiro Mundo rejeitava, tanto em razão de sua superioridade tecnológica quanto em razão de entraves de fronteira, como direitos alfandegários, quotas, medidas anti-dumping, proibições, subsídios à produção etc. América do Sul e África despontavam, então, como possibilidades reais de exportação, tanto é que esse Terceiro Mundo passou a absorver mais de 50% das exportações de manufaturados brasileiros. Na política exterior do Brasil, o terceiro-mundismo nunca produziu apenas efeitos de retórica, porque exerceu, bem ao contrário, forte impacto para consolidar o modelo de desenvolvimento, que atingia dimensões de escala em sua produção industrial. A opção estratégica — Terceiro Mundo como mercado de manufaturados brasileiros — revela que o multiculturalismo não constitui uma ideologia da política exterior, a dominar seus objetivos e direções. Bem ao contrário, terceiro-mundismo e multiculturalismo veiculam interesses concretos e relevantes e preenchem requisitos de desenvolvimento nacional. A corrente conservadora de opinião que postulava no passado o distanciamento do Terceiro Mundo e no presente, o distanciamento dos países emergentes, move-se por ignorância ou cálculos equivocados, senão mesmo por preconceitos. O terceiro elemento propulsor da aproximação com a África, para além do multiculturalismo e da industrialização, deriva do alcance político e geopolítico do movimento. Os países do continente vizinho abriram embaixadas em Brasília em número muito superior ao que fizeram em outros países da América do Sul. Os laços políticos e diplomáticos aumentam o poder de barganha do Brasil nas relações com grandes parceiros e nas negociações que se travam nos órgãos multilaterais. Após a Guerra das Malvinas, que opôs Inglaterra e Argentina, nos meados da década de 1980, a ONU fez aprovar uma resolução de iniciativa brasileira, apoiada pelos países da costa ocidental da África, que declarava o Atlântico Sul “zona de paz e cooperação”. Como
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outras, essa resolução não dispõe de meios coercitivos com que garantir sua execução, mas serve de advertência às potências militares, sugerindo-lhes que mantenham seus arsenais distantes dessa massa oceânica e dos países que se banham em suas águas. O espírito que a impregna derrama-se, ademais, sobre a Zona de Paz erigida como variável do processo de integração do Cone Sul da América do Sul. Com efeito, por medidas de confiança mútua, Brasil e Argentina puseram fim à sua corrida nuclear e afinaram suas políticas de segurança e defesa, com o firme propósito de controlar a estabilidade regional sem intervenções de potências de fora da área, particularmente dos Estados Unidos. Sendo, portanto, toda a costa ocidental da África e oriental da América do Sul composta por países em desenvolvimento e de baixo potencial militar, uma visão geopolítica de mundo os une e foi consignada em compromissos políticos firmados. Essa visão contempla três linhas de ação: a promoção da paz regional, o empurra para fora da área de potências militares estranhas e a cooperação para o desenvolvimento. A esses móbeis da aproximação, somam-se duas outras expectativas vinculadas especificamente a necessidades e aspirações dos países africanos. Em primeiro lugar, a cooperação técnica, sobretudo em áreas como a produção agrícola e o combate a doenças de massa como a Aids, campos em que o Brasil adquiriu expertise. A empresa estatal brasileira Embrapa desenvolveu adaptações e melhoramentos genéticos para produção em clima temperado e tropical de quase toda a gama de cultivo agrícola, tanto para consumo familiar quanto para o mercado de escala. As semelhanças de clima e solo com a África aconselham a transferência desse conhecimento e dessas técnicas, tanto para remediar a escassez de alimentos quanto para produzir com destino à exportação. Por outro lado, aos países africanos convém ampliar seu envolvimento com outros povos para aliviar a acentuada dependência que os prende ainda às antigas metrópoles e que traz à lembrança a era colonial. Nesse caso, e pelas boas razões anteriormente citadas, a opção por laços estreitos com a América do Sul, o Mercosul e o Brasil desponta como alternativa racional. A política africana de Luiz Inácio Lula da Silva envolve forte pensamento político e ações concretas, como visitas de alto nível, acordos firmados e aumento dos negócios, tendo esses elementos por escopo o fortalecimento dos laços com a África, após o malogro do projeto neoliberal que feriu gra-
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vemente economia e sociedade nos dois lados. Uma nova acepção acerca da globalização, que Fernando Henrique Cardoso já conceituara de assimétrica em seus efeitos, desponta no início do século XXI, na África e na América do Sul, mais distante do fundamentalismo neoliberal e mais próxima da interdependência real. Essas condições que se projetam sobre o plano interno e das relações internacionais contribuem para relançar a aproximação entre os dois continentes banhados pelo Atlântico Sul. Nos aspectos social e político, a África necessita de diplomacia preventiva a serviço da paz. O estreitamento político e diplomático com os países da América do Sul, particularmente o Brasil, pode abrigar-se sob o guarda-chuva da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, cujos mecanismos seriam ampliados para estabelecer parcerias entre órgãos regionais e nacionais, com o fim de manter a paz, estender o alcance social do direito e da lei, conectar organizações da sociedade civil às esferas da educação, saúde e preservação do meio ambiente. No âmbito das relações econômicas e comerciais, existem por certo obstáculos a superar ou dirimir nas relações entre Brasil e África, como o tamanho desigual das economias, a falta de conhecimento mútuo e de mecanismos de estímulo ao comércio bilateral, além da escassez de créditos à exportação. Órgãos governamentais e organizações regionais dispõem, contudo, de meios e canais de ligação, aptos a dar suporte logístico a iniciativas públicas e privadas. Na esfera agrícola, sobretudo, são benéficas em seus efeitos locais as posições que Brasil e África levam às negociações da OMC com o fim de eliminar o protecionismo e os subsídios dos países ricos ao setor e garantir acesso aos mercados globais de produtos agrícolas. No que diz respeito às relações culturais e à educação, apesar das afinidades históricas, a cooperação é precária. A escassa publicação de livros no outro lado impede o avanço do conhecimento mútuo. Uma contribuição relevante para a capacitação profissional e científica já está em curso, sendo numerosa a presença de jovens africanos em universidades brasileiras, às quais acedem por concessão de vagas nas universidades públicas e de bolsas de estudo. Dois passos à frente são aconselháveis no momento, com o fim de ampliar os efeitos na esfera das relações culturais e da educação: promover a cooperação entre instituições de ensino e pesquisa e estimular o acesso de africanos aos cursos de pós-graduação no Brasil.
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Embora corra o risco de repetir em suas inúmeras viagens o argumento das raízes africanas do Brasil com senso neocolonial — o senso da ajuda, da dívida a resgatar pela escravidão de africanos, da cooperação de propaganda sem socialização de efeitos — a reaproximação com a África encaminha ações concretas de uma política realista. Investimentos da Petrobras, da Vale do Rio Doce e de empreiteiras concorrem para o robustecimento econômico africano e ampliam a internacionalização da economia brasileira. O percentual da África nas exportações brasileiras duplicou no início do século XXI. Essa atuação brasileira coteja a presença de outros atores de peso nas relações internacionais, como Estados Unidos, China e Índia, a demonstrar o acerto da política africana brasileira do governo Lula, antes de tudo uma opção política. Ponto de chegada dessa política africana assertiva reincorporada pela diplomacia brasileira consiste na reprodução da iniciativa que levou à Cúpula América do Sul-Países Árabes já citada. Em novembro de 2006, a cidade nigeriana de Abuja abrigou a Primeira Cúpula África-América do Sul, patrocinada por Nigéria e Brasil. Embora tenha comparecido apenas um terço dos chefes de Estado e de Governo dos sessenta e seis países que somam as duas áreas, a reunião colhe frutos de bom porte: intensifica o diálogo entre África e América do Sul, que compartilham história e interesses comuns; amplia o comércio brasileiro, que em 2005 já passava de doze bilhões de dólares nessa rota; facilita investimentos de empresas brasileiras; propaga produtos de invenção nacional como o biodiesel; serve, enfim, de plataforma para pleitos brasileiros na OMC, na ONU e em outros foros multilaterais.
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