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Portuguese Pages 386 [403] Year 2008
INICIAÇÃO NA CIÊNCIA DO DIREITO
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OBRAS PRINCIPAIS DO AUTOR O Direito Quântico — Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica Ética — Do Mundo da Célula ao Mundo da Cultura Tratado da Conseqüência — Curso de Lógica Formal Iniciação na Ciência do Direito Onze verbetes na Enciclopédia Saraiva do Direito A Filosofia do Direito (dois volumes) A Criação do Direito (dois volumes) Estudos A Definição do Direito Dissertação sobre o Universo A Democracia e o Brasil Resistência Violenta aos Governos Injustos A Constituição, a Assembléia Constituinte e o Congresso Nacional Sistema Brasileiro de Discriminação de Rendas Justiça e Júri no Estado Moderno A Folha Dobrada — Lembranças de um estudante (“Prêmio Senador José Ermírio de Moraes”, da Academia Brasileira de Letras; “Prêmio Clio de História, 2000”, da Academia Paulista da História; “Prêmio Ivan Lins de Ensaio, Hors-Concours”, da Academia Carioca de Letras) Carta aos Brasileiros
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GOFFREDO TELLES JUNIOR Professor Titular da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) Professor Emérito da Universidade de São Paulo Advogado
INICIAÇÃO NA CIÊNCIA DO DIREITO
4ª edição 2008 3ª tiragem 2011
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ISBN 978-85-02-13608-3 Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César — São Paulo — SP CEP 05413-909 PABX: (11) 3613 3000 SACJUR: 0800 055 7688 De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30 [email protected] Acesse: www.saraivajur.com.br FILIAIS AMAZONAS/RONDÔNIA/RORAIMA/ACRE Rua Costa Azevedo, 56 – Centro Fone: (92) 3633-4227 – Fax: (92) 3633-4782 – Manaus BAHIA/SERGIPE Rua Agripino Dórea, 23 – Brotas Fone: (71) 3381-5854 / 3381-5895 Fax: (71) 3381-0959 – Salvador
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Telles Junior, Goffredo Iniciação na ciência do direito / Goffredo Telles Junior. — 4. ed. — São Paulo : Saraiva, 2008. 1. Direito - Filosofia I. Título. 07-5675
CDU-340.12
Índice para catálogo sistemático: 1. Direito : Filosofia
340.12
BAURU (SÃO PAULO) Rua Monsenhor Claro, 2-55/2-57 – Centro Fone: (14) 3234-5643 – Fax: (14) 3234-7401 – Bauru CEARÁ/PIAUÍ/MARANHÃO Av. Filomeno Gomes, 670 – Jacarecanga Fone: (85) 3238-2323 / 3238-1384 Fax: (85) 3238-1331 – Fortaleza DISTRITO FEDERAL SIA/SUL Trecho 2 Lote 850 – Setor de Indústria e Abastecimento Fone: (61) 3344-2920 / 3344-2951 Fax: (61) 3344-1709 – Brasília GOIÁS/TOCANTINS Av. Independência, 5330 – Setor Aeroporto Fone: (62) 3225-2882 / 3212-2806 Fax: (62) 3224-3016 – Goiânia MATO GROSSO DO SUL/MATO GROSSO Rua 14 de Julho, 3148 – Centro Fone: (67) 3382-3682 – Fax: (67) 3382-0112 – Campo Grande MINAS GERAIS Rua Além Paraíba, 449 – Lagoinha Fone: (31) 3429-8300 – Fax: (31) 3429-8310 – Belo Horizonte PARÁ/AMAPÁ Travessa Apinagés, 186 – Batista Campos Fone: (91) 3222-9034 / 3224-9038 Fax: (91) 3241-0499 – Belém PARANÁ/SANTA CATARINA Rua Conselheiro Laurindo, 2895 – Prado Velho Fone/Fax: (41) 3332-4894 – Curitiba PERNAMBUCO/PARAÍBA/R. G. DO NORTE/ALAGOAS Rua Corredor do Bispo, 185 – Boa Vista Fone: (81) 3421-4246 – Fax: (81) 3421-4510 – Recife RIBEIRÃO PRETO (SÃO PAULO) Av. Francisco Junqueira, 1255 – Centro Fone: (16) 3610-5843 – Fax: (16) 3610-8284 – Ribeirão Preto RIO DE JANEIRO/ESPÍRITO SANTO Rua Visconde de Santa Isabel, 113 a 119 – Vila Isabel Fone: (21) 2577-9494 – Fax: (21) 2577-8867 / 2577-9565 Rio de Janeiro RIO GRANDE DO SUL Av. A. J. Renner, 231 – Farrapos Fone/Fax: (51) 3371-4001 / 3371-1467 / 3371-1567 Porto Alegre SÃO PAULO Av. Antártica, 92 – Barra Funda Fone: PABX (11) 3616-3666 – São Paulo
Data de fechamento da edição: 1-8-2007 Dúvidas? Acesse www.saraivajur.com.br
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Para Maria Eugenia
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1ª PARTE — A ORDEM E A DESORDEM. AS NORMAS E A NORMALIDADE 2ª PARTE — A NORMA JURÍDICA: O DIREITO OBJETIVO 3ª PARTE — O DIREITO SUBJETIVO 4ª PARTE — A JUSTIÇA 5ª PARTE — A DEFINIÇÃO DO DIREITO
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ÍNDICE 1ª PARTE A ORDEM E A DESORDEM. AS NORMAS E A NORMALIDADE CAPÍTULO I — A ORDEM E A DESORDEM § 1. A definição da ORDEM ............................................................. § 2. A ordem e a idéia da ordem ....................................................... § 3. A ordem e a desordem ................................................................
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CAPÍTULO II — CONSIDERAÇÕES SUPLEMENTARES SOBRE O TEMA DO CAPÍTULO ANTERIOR § 4. Ordem, estrutura e existência .....................................................
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CAPÍTULO III — QUE É A “NORMALIDADE”? QUE É UMA “NORMA”? § 5. O normal e o anormal ................................................................. § 6. Normalidade e anormalidade ..................................................... § 7. As anormalidades no mundo físico e no mundo ético ............... § 8. Noção de NORMA e de ORDENAÇÃO NORMATIVA .......... § 9. Diferença entre NORMA e MANDAMENTO .......................... § 10. Divisão dos mandamentos ........................................................ § 11. A natureza condicional das normas .......................................... § 12. Os imperativos considerados como juízos hipotéticos do tipo condicional ..............................................................................
17 19 19 21 23 25 25 26
CAPÍTULO IV — QUE É UMA “LEI”? § 13. A definição genérica de LEI ..................................................... § 14. As leis éticas ............................................................................. § 15. As leis físicas ............................................................................ § 16. Etimologia da palavra LEI .......................................................
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2ª PARTE A NORMA JURÍDICA: O DIREITO OBJETIVO CAPÍTULO V — A NORMA JURÍDICA OU NORMA DE DIREITO § 17. A norma AUTORIZANTE ....................................................... § 18. Autorizamento e autorização .................................................... § 19. Normas não autorizantes .......................................................... § 20. Normas jurídicas de autorizamento não patente ...................... § 21. As permissões concedidas por meio de normas jurídicas ........ § 22. A sociedade: a verdadeira concessora dos autorizamentos ...... § 23. A norma jurídica não é “atributiva” .........................................
43 45 46 48 49 50 52
CAPÍTULO VI — A NORMA PENAL § 24. Um caso especial: a norma jurídica penal ................................
55
CAPÍTULO VII — A IMPERATIVIDADE JURÍDICA § 25. A imperatividade da norma jurídica ......................................... § 26. As formas da imperatividade .................................................... § 27. Casos de imperatividade não explícita ..................................... § 28. Natureza condicional da imperatividade jurídica.....................
59 62 66 69
CAPÍTULO VIII — AS SANÇÕES § 29. Noção de SANÇÃO ................................................................. § 30. A sanção na estrutura da norma jurídica .................................. § 31. Exemplos de sanções jurídicas ................................................. § 32. Inexistência das chamadas “sanções premiais” .......................
75 80 81 83
CAPÍTULO IX — A COAÇÃO NO MUNDO JURÍDICO § 33. Noção de COAÇÃO ................................................................. § 34. A coação A SERVIÇO DO DIREITO. Natureza conselheira das leis ...................................................................................... § 35. A coatividade jurídica .............................................................. § 36. A coerção psíquica ................................................................... § 37. A coação CONTRA O DIREITO .............................................
87 88 93 95 97
CAPÍTULO X — A DEFINIÇÃO DA NORMA JURÍDICA § 38. A definição completa da NORMA JURÍDICA ou NORMA DE DIREITO ........................................................................... X
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CAPÍTULO XI — O DIREITO OBJETIVO. O DIREITO POSITIVO § 39. Noção do DIREITO OBJETIVO ............................................. § 40. As categorias do Direito Objetivo ............................................ § 41. Noção do DIREITO POSITIVO. Noção jurídica da LEI ......... § 42. As LEIS na ordem jurídica ....................................................... § 43. O primado do Direito Positivo e da lei .....................................
105 106 109 111 113
CAPÍTULO XII — A SOBERANIA DO ESTADO § 44. Noção de SOBERANIA ........................................................... § 45. As funções do Estado ............................................................... § 46. A soberania na ORDEM INTERNA e na ORDEM INTERNACIONAL ...................................................................................
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CAPÍTULO XIII — A CONSTITUIÇÃO § 47. Pluralismo de ordenações na unidade do sistema jurídico ....... § 48. A CONSTITUIÇÃO. Noção de ESTADO ............................... § 49. Anseios e rebeldias do Povo, na origem das Constituições ..... § 50. As matérias constitucionais ...................................................... § 51. A estabilidade da Constituição ................................................. § 52. Constituições não escritas ........................................................ § 53. Constituições sintéticas e Constituições analíticas .................. § 54. O Estado Constitucional e a Democracia .................................
123 123 124 126 128 129 129 130
CAPÍTULO XIV — O PODER CONSTITUINTE § 55. Que é o PODER CONSTITUINTE? ....................................... § 56. O caráter revolucionário do Poder Constituinte ....................... § 57. Poder e missão da ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE ............. § 58. As emendas à Constituição. O PODER CONSTITUINTE DERIVADO ................................................................................... § 59. Distinção entre Assembléia Constituinte e Congresso Nacional § 60. O mau exemplo dos “antecedentes históricos” ........................
133 134 136 138 140 145
CAPÍTULO XV — O PODER LEGISLATIVO E AS LEIS § 61. Que é o PODER LEGISLATIVO? ........................................... § 62. Observações preliminares sobre as leis .................................... § 63. A estrutura da lei ......................................................................
147 148 152
CAPÍTULO XVI — CLASSIFICAÇÃO DAS LEIS § 64. Divisão das leis quanto a sua IMPERATIVIDADE ................. § 65. Divisão das leis quanto a seu AUTORIZAMENTO ................
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CAPÍTULO XVII — A VALIDADE DAS LEIS (1ª parte). DOMÍNIO GEOGRÁFICO E DOMÍNIO DE COMPETÊNCIA DAS LEIS § 66. Leis válidas e leis inválidas, leis legítimas e leis ilegítimas ..... § 67. As condições da VALIDADE das leis ...................................... § 68. O DOMÍNIO GEOGRÁFICO das leis federais, estaduais e municipais. A hierarquia das leis (1ª parte) ............................ § 69. O DOMÍNIO DE COMPETÊNCIA das leis ........................... § 70. O correto domínio da lei: condição essencial de sua VALIDADE § 71. A ilegalidade e a inconstitucionalidade das leis INVÁLIDAS § 72. A hierarquia das leis (2ª parte) .................................................
159 160 160 162 167 169 171
CAPÍTULO XVIII — A VALIDADE DAS LEIS (2ª parte). O PROCESSO LEGISLATIVO § 73. O PROCESSO LEGISLATIVO ............................................... § 74. A INICIATIVA das leis ............................................................ § 75. A elaboração parlamentar da lei ............................................... § 76. O VETO ................................................................................... § 77. O veto parcial ........................................................................... § 78. A SANÇÃO .............................................................................. § 79. A PROMULGAÇÃO ............................................................... § 80. A PUBLICAÇÃO .................................................................... § 81. O processo legislativo das chamadas MEDIDAS PROVISÓRIAS .......................................................................................
173 174 176 177 179 181 185 186 187
CAPÍTULO XIX — A VIGÊNCIA DAS LEIS § 82. Noção de VIGÊNCIA DA LEI. VIGÊNCIA e EFICÁCIA ..... § 83. O início da vigência da lei ........................................................ § 84. A vacatio legis .......................................................................... § 85. A ignorância da lei ................................................................... § 86. O erro de direito ....................................................................... § 87. A obrigatoriedade das leis. Os limites da obrigatoriedade: o DIREITO ADQUIRIDO, o ATO JURÍDICO PERFEITO e a COISA JULGADA .................................................................... § 88. A lacuna de direito. A analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito ....................................................................... § 89. Fim da vigência da lei .............................................................. XII
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191 191 194 195 196
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CAPÍTULO XX — A LEGITIMIDADE DAS LEIS § 90. As leis legítimas ....................................................................... § 91. Harmonização da lei com a ordenação ética vigente ............... § 92. A primeira causa da eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente: o erro do legislador ................................. § 93. A segunda causa da eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente: o arbítrio do Poder .................................. § 94. A terceira causa da eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente: o desuso e a decrepitude do Direito ........ § 95. O Direito Artificial ................................................................... § 96. O DIREITO NATURAL ..........................................................
205 207 210 213 214 218 219
CAPÍTULO XXI — DIVISÃO DO DIREITO EM DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO § 97. O DIREITO PÚBLICO e o DIREITO PRIVADO ................... § 98. Leis de ordem pública ..............................................................
223 226
CAPÍTULO XXII — OS RAMOS CARDEAIS DO DIREITO PÚBLICO § 99. A divisão romana do Direito Público. A divisão moderna ....... § 100. O DIREITO CONSTITUCIONAL ........................................ § 101. O DIREITO ADMINISTRATIVO ......................................... § 102. O DIREITO FINANCEIRO ................................................... § 103. O DIREITO JUDICIÁRIO .................................................... § 104. O DIREITO PENAL .............................................................. § 105. O DIREITO DO TRABALHO ou DIREITO SOCIAL ......... § 106. O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO ........................ § 107. O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO.........................
229 230 230 231 232 235 235 237 240
CAPÍTULO XXIII — OS RAMOS CARDEAIS DO DIREITO PRIVADO § 108. A divisão romana do Direito Privado. A divisão moderna ..... § 109. O DIREITO CIVIL ................................................................ § 110. O DIREITO COMERCIAL ...................................................
245 248 248
3ª PARTE O DIREITO SUBJETIVO CAPÍTULO XXIV — A DEFINIÇÃO DO DIREITO SUBJETIVO § 111. A permissão jurídica ..............................................................
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§ 112. Razão-de-ser do nome deste direito ....................................... § 113. Uma reflexão sobre a natureza do Direito Subjetivo ............. § 114. As faculdades humanas e o Direito ........................................ § 115. O Direito Subjetivo não é “o poder da vontade” .................. § 116. O Direito Subjetivo não é um “interesse juridicamente protegido” ...................................................................................... § 117. Permissões dadas por meio de qualquer espécie de norma jurídica ...................................................................................... § 118. Permissões dadas POR MEIO das normas jurídicas, e não PELAS próprias normas ........................................................ § 119. Permissões jurídicas e permissões não jurídicas .................... § 120. Direitos Subjetivos explícitos e Direitos Subjetivos implícitos § 121. Direitos Subjetivos comuns e direitos de defender direitos ... § 122. Correlação entre o Direito Subjetivo e o Direito Objetivo ..... § 123. As obrigações correlatas. Os DEVERES ............................... § 124. O Direito-Função ...................................................................
255 255 257 261 262 263 264 266 267 268 269 271 272
CAPÍTULO XXV — O TITULAR DOS DIREITOS SUBJETIVOS: A PESSOA § 125. Noção jurídica de PESSOA ................................................... § 126. Capacidade e incapacidade das pessoas ................................. § 127. A RELAÇÃO JURÍDICA ......................................................
275 277 280
CAPÍTULO XXVI — OS FATOS GERADORES DOS DIREITOS SUBJETIVOS: FATOS E ATOS § 128. FATOS e ATOS jurídicos ....................................................... § 129. O ato ilícito .............................................................................
283 287
CAPÍTULO XXVII — OS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER. O DIREITO-FUNÇÃO § 130. As quatro classes de Direitos Subjetivos ................................ § 131. A liberdade de agir ................................................................. § 132. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ....................................... § 133. O DIREITO-FUNÇÃO ..........................................................
291 291 292 294
CAPÍTULO XXVIII — OS DIREITOS DA PERSONALIDADE § 134. O conceito de PERSONALIDADE ........................................ § 135. Os DIREITOS DA PERSONALIDADE ................................ § 136. O Direito de Autor: exemplo expressivo do Direito da Personalidade .................................................................................. XIV
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297 299 300
CAPÍTULO XXIX — OS DIREITOS REAIS § 137. Os bens materiais ................................................................... § 138. O direito de ter .......................................................................
305 308
CAPÍTULO XXX — A PROPRIEDADE § 139. Noção de PROPRIEDADE e de DIREITO DE PROPRIEDADE .................................................................................... § 140. Direito de Propriedade sobre os frutos e produtos da propriedade ........................................................................................ § 141. Importância dos modos de aquisição da propriedade ............
311 313 315
CAPÍTULO XXXI — A QUASE-PROPRIEDADE § 142. Noção da QUASE-PROPRIEDADE ......................................
317
CAPÍTULO XXXII — OS BENS ALHEIOS TIDOS EM GARANTIA § 143. Bens alheios dados em garantia do pagamento de dívida ......
319
CAPÍTULO XXXIII — OS DIREITOS PESSOAIS § 144. Noção de DIREITO PESSOAL ............................................. § 145. O DIREITO DE AÇÃO ......................................................... § 146. O DIREITO DE PETIÇÃO .................................................... § 147. O Direito de “FAZER JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS” § 148. Os DIREITOS CAUTELARES ............................................. § 149. O DIREITO DE RESPOSTA .................................................
323 324 325 326 328 329
CAPÍTULO XXXIV — MODALIDADES DO DIREITO SUBJETIVO § 150. O Direito Subjetivo Aparente ................................................. § 151. A Expectativa de Direito ........................................................ § 152. O Direito Eventual ................................................................. § 153. O Direito Condicionado ......................................................... § 154. O Direito a Termo .................................................................. § 155. Direitos Atuais e Direitos Futuros .......................................... § 156. Direitos Relativos e Direitos Absolutos .................................
331 332 334 334 338 338 339
CAPÍTULO XXXV — OS “DIREITOS HUMANOS” E AS “LIBERDADES DEMOCRÁTICAS” § 157. Os bens soberanos .................................................................. § 158. Os proclamados DIREITOS HUMANOS ............................. § 159. Os DIREITOS HUMANOS e a autolimitação da Soberania .
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§ 160. As Liberdades Democráticas .................................................. § 161. A dialética das liberdades .......................................................
347 349
4ª PARTE A JUSTIÇA CAPÍTULO XXXVI — A JUSTIÇA § 162. A definição da JUSTIÇA ....................................................... § 163. Que é o JUSTO?..................................................................... § 164. O justo por convenção e o justo por natureza........................ § 165. Uma heresia ............................................................................ § 166. A lógica do jurista .................................................................. § 167. A justiça e a caridade ............................................................. § 168. A justiça comutativa, a justiça distributiva e a chamada justiça legal ...................................................................................
355 359 361 364 365 367 368
5ª PARTE A DEFINIÇÃO DO DIREITO CAPÍTULO XXXVII — A DEFINIÇÃO DO DIREITO § 169. As três necessárias definições ................................................ § 170. A etimologia da palavra Direito ............................................. § 171. Motivo do nome DIREITO ....................................................
373 375 377
CAPÍTULO XXXVIII — A DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA § 172. Os meios e os fins ................................................................... § 173. A DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA ...................................... § 174. A Chave do Jurista .................................................................. § 175. O PRIMEIRO MANDAMENTO .............................................
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PEQUENA BIBLIOGRAFIA .......................................................................
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1ª PARTE
A ORDEM E A DESORDEM. AS NORMAS E A NORMALIDADE
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CAPÍTULO I
A ORDEM E A DESORDEM
§ 1. A definição da ORDEM Que é a ORDEM? A ordem sem complementos, sem qualificativos, a ordem em si mesma, a ordem em abstrato, a que se reduz? Em que consiste? Estas perguntas nos assaltam, no momento em que nos debruçamos sobre o problema da ordem jurídica. Em que, propriamente, estaremos pensando quando meditamos sobre a ordem? Sobre o que estaremos pensando quando refletimos sobre a ordem em abstrato, antes de pensar sobre a ordem cósmica..., a ordem dos elementos..., a ordem das idéias..., a ordem ética..., a ordem jurídica..., a ordem dos livros na biblioteca..., a ordem das mercadorias nas prateleiras..., a ordem dos objetos na gaveta...? Há uma idéia de ordem, uma só idéia de ordem em abstrato, que permanece sempre a mesma, em todos esses pensamentos de ordens concretas. Tal idéia, por ser preliminar e fundamental, é o que nos preocupa neste instante. Toda ordem, evidentemente, é uma disposição. Mas não é uma disposição qualquer. É uma certa disposição, uma disposição conveniente de coisas, sendo que a disposição só pode ser considerada conveniente quando alcança o fim em razão do qual ela é dada às coisas. Os livros de uma biblioteca estão em ordem quando se acham dispostos de maneira a possibilitar o encontro de qualquer deles, no momento em que for procurado. Esta possibilidade é o fim para cuja consecução os livros são dispostos desta ou daquela maneira. Se tal fim é atingido, a disposição dos 3
livros é conveniente, e os livros estão em ordem. O mesmo acontece com quaisquer cousas colocadas em ordem, ou seja, em disposição conveniente. É obvio que toda ordem requer coisas múltiplas, seres necessariamente distintos uns dos outros (embora possam ser iguais uns aos outros). Não pode haver ordem onde não haja multiplicidade de coisas, multiplicidade de seres; onde não haja coisas ou seres distintos para ordenar, isto é, para relacionar uns com os outros e colocar em seus devidos lugares. “Não há ordem sem distinção”, disse Santo Thomaz de Aquino. Numa biblioteca, os livros são diferentes uns dos outros. Num muro, os tijolos são iguais uns aos outros. Mas, nos dois casos — na biblioteca e no muro —, as coisas ordenadas são múltiplas, e são distintas umas das outras. E não pode haver ordem sem determinação do fim em razão do qual uma disposição conveniente é dada a seres múltiplos, e por força da qual tais seres passam a constituir uma unidade. A disposição conveniente, que é a disposição de seres múltiplos em razão de um fim prefixado, relaciona seres distintos, conjuga-os de maneira que cada um, de acordo com sua natureza ou destinação, ocupe, dentro do conjunto, seu lugar próprio, passando a ser parte de um todo, elemento de uma unidade. Os livros dispostos convenientemente, para a consecução do fim pretendido, ocupam lugares certos nas estantes e, em conjunto, passam a constituir um todo. Essa ordem é que confere unidade à multiplicidade dos livros, dando ao todo a qualidade de biblioteca. Em tal ordem é que reside a diferença entre uma biblioteca e um amontoado de livros. A ordem, em verdade, é sempre uma unidade do múltiplo. Para esclarecer essa noção, seja o seguinte exemplo. Tijolos, telhas, madeiras, ferros estão jogados ao léu, num terreno baldio. Constituem, pois, uma multiplicidade de materiais de construção, mas de materiais não relacionados, não conjugados, não ligados uns aos outros, em razão de um fim comum. Tais coisas, evidentemente, não estão em ordem, ou seja, não estão na ordem em que estariam se fossem componentes de uma casa. Estão em “desordem”. Em conseqüência, não são partes de um só todo, não constituem uma unidade. Mas, esses mesmos materiais, quando ligados uns aos outros na construção de uma casa, isto é, ligados em razão de um fim comum, acham-se dispostos em ordem. Em conseqüência, passam a ser partes de um só todo, e a constituir uma unidade. 4
A matéria da ordem (os filósofos diriam a causa material da ordem) é sempre constituída por seres múltiplos. Como foi explicado, a ordem implica, por definição, multiplicidade de seres. A forma da ordem (os filósofos diriam a causa formal da ordem) é sempre constituída por uma certa disposição. Como também já dissemos, a ordem implica, por definição, a disposição conveniente dada a seres múltiplos. O fim da ordem, a sua razão-de-ser (os filósofos diriam a causa final da ordem), é sempre o objeto para cuja consecução os seres múltiplos são dispostos convenientemente. É o todo uno em que se realiza a referida unidade do múltiplo. Do que acaba de ser exposto, infere-se que a ordem compreende multiplicidade e unidade. E como, em todas as ordens, a multiplicidade dos seres se submete à unidade do conjunto, toda ordem implica dominação da unidade sobre o múltiplo. Concluímos que a ordem é A DISPOSIÇÃO CONVENIENTE DE SERES PARA A CONSECUÇÃO DE UM FIM COMUM. § 2. A ordem e a idéia da ordem A consecução de um objeto — de um fim determinado — é a razão-deser da ordem. É evidente que a determinação desse fim há de ser anterior à disposição efetiva dos seres múltiplos. Ora, determinar um fim supõe o conhecimento desse fim. Logo, antes da implantação de uma ordem, antes de qualquer disposição de seres, existe, forçosamente, a idéia ou conhecimento do fim — do objeto —, cuja realização é o propósito da disposição dos seres e da ordem. Antes da colocação ordenada dos livros nas estantes da biblioteca, existe a idéia norteadora dessa colocação, ou seja, o conhecimento do fim que se quer alcançar, por meio da disposição conveniente dos livros. O conhecimento do fim precede a ordem, porque a disposição dos seres é feita em razão dele. Em razão desse conhecimento é que a disposição dos meios é efetuada como convém. Em outras palavras, o prévio conhecimento do fim a ser atingido é o que determina a conveniência dos meios. Sem a previsão ou preconização do efeito a ser produzido, impossível a disposição conveniente dos seres. Pois, a disposição só é conveniente se for a disposição apta a produzir o efeito preconizado. 5
Esta preconização é a idéia do efeito, antes da produção do efeito. É o conhecimento antecipado do efeito, sem o qual as coisas não se disporão em ordem; sem o qual as coisas acontecerão de qualquer maneira. Tal preconização é o projeto da obra, na mente do arquiteto, antes da construção da obra. Sem o prévio projeto, a obra é impossível. Antes da realização de qualquer ordem, há de existir o projeto dela, na mente do ordenador. Não há truísmo na afirmação de que tudo há de ser concebido, antes de vir à luz. Antes da realização de uma ordem, há de existir a concepção dessa ordem, a idéia dela, o projeto ou modelo de como se devem dispor determinadas coisas, para a produção de um determinado efeito. Sem a precedência dessa idéia, dessa concepção, desse projeto ou modelo, a ordem é impossível. A idéia da ordem, pois, é condição dela. É a ordem pensada, antes de ser a ordem realizada. Em suma, toda ordem, em sua origem, há de ser um pensamento. “No princípio, era o Verbo”, disse João, abrindo seu Evangelho. § 3. A ordem e a desordem Toda existência — existência dos vivos e dos não vivos; existência do mineral, do vegetal, do animal, do homem e também das sensações, das imagens, das idéias — todo ser existente — resulta de uma disposição certa de seres; resulta de um arranjo conveniente dos elementos de que ele é constituído. Ora, a disposição certa de seres é o que se chama disposição ordenada, como foi explicado no § l. Logo, todo ser existente resulta da ordem em que se acham os seres de que ele se compõe. E estes seres, também, resultam da ordem em que se acham os seres de que eles se compõem. E estes, por sua vez, ... O próprio Universo, tido como conjunto de todas as coisas existentes, só pode ser considerado como um todo ordenado. A Filosofia ensina que o Universo é A DIVERSIDADE DAS COISAS HARMONIOSAMENTE ORDENADAS, DENTRO DA UNIDADE DO TODO. Os gregos chamavam o Universo de cosmos, palavra que significa ordem; não o chamavam de caos, palavra que significa ausência de ordem. 6
Mas, na infinita paisagem do Universo, quaisquer olhos desprevenidos vão divisar áreas de sombra. Nem tudo, ao que parece, é ordem no mundo. A desordem também existe, ou parece existir. O comportamento desregrado, a prática do mal, o crime, a injustiça, o sofrimento, a dor, todas estas coisas são fatos ocorrentes, e fatos contrários ao que se considera ordem. Mesmo no mundo físico, flagrantes violações da ordem cósmica parecem acontecer às vezes, como, por exemplo, as moléstias, as epidemias, as pragas, e as que se manifestam no indeterminismo cinemático dos quanta, verificado na intimidade profunda da matéria; como as que se revelam na entropia crescente em sistemas isolados, ou seja, na degradação qualitativa da energia, verificada em tais sistemas, contrariando o princípio universal da conservação da energia. Então, uma inevitável pergunta se coloca diante da inteligência humana: Se o conjunto de todos os seres está submetido à ordem universal, como explicar a existência do que é contrário à ordem, ou seja, a existência da desordem? O problema da existência da desordem só pode ser resolvido se for colocado em seus devidos termos. Em verdade, ele não passa de um pseudoproblema. É um problema fundado num equívoco. A desordem não é o contrário da ordem, como se costuma pensar. Ela é, isto sim, uma ordem contrária a outra ordem. Bergson foi quem revelou a natureza verdadeira da desordem. Foi ele quem demonstrou a falsidade com que a questão da desordem é geralmente apresentada (Henri Bergson, A Evolução Criadora, Capítulo III; O Pensamento e o Movente, II e III). Desordem, disse ele, é o nome dado à ordem não desejada, não querida, não procurada. É o nome da ordem que desagrada, desgosta, decepciona, prejudica, infelicita, desola. Mas a desordem é sempre uma ordem, eis o que precisa ficar bem claro. A chamada desordem se pode verificar tanto no mundo da natureza como no mundo do comportamento humano. No mundo da natureza, a desordem dos elementos é sempre uma ordem produzida por forças físicas ou químicas, ou físico-químicas, mas ordem que contraria concepções ou interesses humanos, não sendo, portanto, a ordem desejada pelo ser humano. Por exemplo, as desordens orgânicas, as doenças de todas as espécies, são ordens — ordens rigorosas de fenômenos, encadeamentos de causas e efeitos, disposições impostas às coisas para os desígnios da natureza. Em7
bora sejam ordens, recebem o nome de desordens, porque não são ordens convenientes para fins humanos: produzem sofrimento e tristeza. A visão das ruínas deixadas por um incêndio ou por um furacão faz surgir, no espectador humano, sentimentos de angústia, de aflição, de temor ou, ao menos, sensações de tristeza ou de mal-estar. Ali está, de certo, na desolação dos escombros, no caos dos destroços, na confusão das coisas destruídas, uma imagem flagrante da desordem. Sucede, porém, que, se o espectador se detiver na meditação sobre qualquer dessas catástrofes, uma evolução espontânea de seu espírito irá transformando suas impressões, e acabará por fazer pensar que tudo, afinal, naquela cena de tragédia, pode ser explicado pelos fatos que ali aconteceram. O espetáculo aberto diante de seus olhos, responsável pela referida imagem da desordem, é composto de elementos que são os efeitos certos de causas certas. Estas causas é que espalharam as coisas por toda parte e as puseram nos lugares em que se encontram. Tendo havido tais causas, os efeitos só poderiam mesmo ser aqueles. Cada coisa, portanto, na localidade flagelada, estará ocupando, após o sinistro, seu lugar próprio, ou seja, o lugar que ela não poderia deixar de ocupar, em virtude do que ali aconteceu. Cada coisa estará em seu preciso lugar, em razão dos antecedentes. As coisas foram transportadas por forças naturais e inelutáveis, conduzidas para as situações em que se acham. Elas foram dispostas pelas energias que movem a matéria, para fins que necessariamente existem, mas que escapam ao entendimento humano. Em razão desses fins, todas aquelas coisas estão dispostas convenientemente. Estão, pois, em ordem. Por que, então, o ser humano confere a essa ordem o nome de desordem? A resposta é simples. A essa ordem, o ser humano confere o nome de desordem, porque ela não é a ordem que o ser humano deseja, a ordem que o satisfaz. Ela não constitui a ordem que lhe é conveniente. Pelo contrário: ela é a ordem que o desgosta e infelicita. Exprimindo inconformismo, o ser humano chama de desordem a ordem que ele encontra, no lugar da ordem que ele quer. Mas o nome que ele confere à disposição das coisas não altera, evidentemente, a realidade objetiva. O que ele chama de desordem continua sendo uma ordem. Em suma, A DESORDEM É A ORDEM QUE NÃO QUEREMOS. Não havendo o referido inconformismo — não havendo desgosto, contrariedade, prejuízo para o ser humano — nenhum fenômeno da natureza, nem mesmo um cataclismo, receberá o nome de desordem. A explosão 8
de uma estrela, uma supernova, é uma colossal catástrofe nas imensidões dos céus. Mas ninguém a chamará de desordem. Por quê? Porque a destruição de uma estrela e o lançamento de seus destroços pelo firmamento não afetam interesses humanos. Todos dirão, simplesmente, que a supernova se situa dentro dos planos da natureza e pertence à ordem do Universo. E, realmente, estarão certos. No mundo do comportamento humano, a desordem ou é voluntária ou involuntária. Pode alguém, voluntariamente, produzir a desordem. Pode, deliberadamente, dispor as coisas de maneira inconveniente para outrem, como seria o caso, por exemplo, de quem baralhasse, por malícia, os livros de uma biblioteca. Essa disposição é conveniente para a pessoa que a fez, pois alcança o fim ou objetivo almejado. Que fim, que objetivo será este? É o de criar uma disposição inconveniente para outra pessoa. Para a outra pessoa, a disposição baralhada dos livros é uma desordem — uma desordem produzida intencionalmente por alguém. Mas tal disposição, chamada desordem, não é ausência de ordem, uma vez que ela é uma ordem deliberadamente dada às coisas. A desordem é voluntária quando a disposição dada às coisas é disposição conveniente para a consecução dos fins de quem a fez deliberadamente, mas inconveniente para a consecução dos fins de outrem. Enquanto disposição conveniente, a disposição é ordem; enquanto disposição inconveniente, a disposição é desordem. É evidente que a mesma ordem pode ser ordem e desordem, isto é, pode ser ordem para alguém e desordem para outrem; pode ser disposição conveniente para os fins de alguém, e disposição inconveniente para os fins de outrem. Mas a desordem voluntária nunca exclui a ordem. Pelo contrário, ela é sempre uma ordem, como se acaba de verificar. A desordem, no mundo do comportamento humano, pode ser involuntária. Ela é involuntária quando a disposição das coisas é dada com a intenção de ser conveniente e, depois, é julgada inconveniente. Mas neste caso, também, a desordem não é ausência de ordem. Ela é uma ordem, na intenção que a inspirou. Ela é, como foi dito, a disposição conveniente segundo o julgamento de alguém, embora essa disposição possa depois ser tida como inconveniente, segundo outro julgamento. Incluem-se entre as desordens involuntárias, as desordens resultantes de desmazelo, imprudência, imperícia. O exame de todos esses casos de desordem leva sempre à conclusão de que são ordens, como as demais. 9
Quem joga as coisas, descuidadamente, dentro de uma gaveta, com o intuito de abrir espaço sobre a mesa, faz ordem: não ordem na gaveta, mas ordem sobre a mesa. Na gaveta, note-se, as coisas atulhadas também estarão em ordem: não, evidentemente, na ordem buscada pelo ser humano, mas na ordem em que as dispuseram as forças da natureza, ao serem lançadas por mão desleixada. Os livros despejados por um caminhão sobre um terreno não são uma biblioteca; são um montão de livros. Para quem os quisesse como biblioteca, acham-se tais livros na mais completa desordem. Mas para quem quis livrar-se deles, talvez queimá-los numa fogueira, os livros se acham convenientemente amontoados, isto é, acham-se em ordem. A desordem para a biblioteca é ordem para a fogueira. Uma observação ainda pode ser feita acerca deste último exemplo. Os livros despejados de qualquer maneira, amontoados em confusão sobre um terreno, caíram e deslizaram uns sobre os outros, e se imobilizaram, afinal, em seus respectivos lugares. Submetidos a forças físicas inelutáveis, os livros ficaram dispostos numa ordem análoga à ordem das ruínas deixadas pelo furacão. Bergson demonstrou que tudo quanto o ser humano chama de desordem é sempre ordem. Diz o filósofo que a desordem tida como ausência de ordem é impossível, por ser intrinsecamente contraditória. Ela há de ser, forçosamente, não a ausência, mas a presença de uma ordem, embora esta ordem desagrade, prejudique, infelicite. Na realidade, a ausência de uma certa ordem não é desordem, mas a presença de outra ordem. Suprimir uma ordem é fazer surgir outra, como sucede quando a ordem ditada pela vontade é substituída pela ordem imposta pelo furacão. Logo, a desordem não existe. A desordem não é a ausência da ordem, mas a ausência de uma certa ordem. De real, diz Bergson, o que existe é a ordem. Nunca se viu a ausência da ordem, como nunca se viu o nada. Se, na disposição das coisas, não há uma vontade humana criando a ordem, é porque há determinismo físico; se não há determinismo físico, é porque há uma vontade humana. Mas, dentro da realidade, a ordem existe sempre: eis o fato. A desordem, pois, não pertence à realidade. Não passa de uma pseudoidéia, de uma ilusão. 10
O que a realidade ensina é que tudo quanto se chama desordem compreende dois elementos, a saber: 1) fora do ser humano, uma ordem existente, criada pela vontade humana ou resultante do determinismo físico; 2) dentro do ser humano, uma representação ou idéia de ordem, diferente da primeira, mas que é a que interessa ao próprio ser humano. A desordem, portanto, é composta de duas ordens: uma, objetiva; outra, subjetiva. Eis por que a desordem não pode ser ausência de ordem. Não sendo ausência de ordem, é presença de ordem. Logo, a desordem é ordem. O que faz que, a essa ordem, se confira o nome de desordem é o desacordo entre a ordem existente na realidade e a idéia que o ser humano faz da ordem. Por outro lado, jamais se dará à ordem o nome de desordem quando a ordem real coincide com a idéia de ordem. Em cada ser humano, a realidade será tida como ordenada na exata medida em que ela corresponde a seu pensamento. A ordem, pois, para cada ser humano, é um certo acordo entre o sujeito e o objeto. Neste sentido, a ordem e o espírito se encontram com as coisas. Mas, neste sentido, as noções convencionais de ordem e desordem, autolimitando-se, são exclusivamente práticas, a serviço da linguagem e da ação; são mais nomes do que idéias. O ser humano dá o nome de desordem à ordem que não lhe convém. É assim que se diz que uma biblioteca está em desordem quando a ordem dos livros nas estantes não é a ordem que agrada ou que serve a fins estabelecidos. É assim, igualmente, que os governantes, em regimes de força e arbítrio, chamam os adversários da ordem vigente de promotores da desordem, de subversivos ou de demagogos, enquanto estes consideram demagogos, subversivos e partidários da desordem precisamente aqueles que defendem a ordem vigente. O nome desordem, cujo uso simplifica a linguagem, não tem, contudo, nenhum emprego na especulação filosófica, porque não significa nada de verdadeiro, não representa coisa alguma, flatus vocis. Nada mais é preciso acrescentar para deixar demonstrado que tudo está em ordem.
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CAPÍTULO II
CONSIDERAÇÕES SUPLEMENTARES SOBRE O TEMA DO CAPÍTULO ANTERIOR*
§ 4. Ordem, estrutura e existência O pensamento é condição da ordem, como vimos no Capítulo anterior. Ora, a ordem é condição da existência. Não há existência sem ordem. Todos os seres existentes são estruturas, e as estruturas dependem da ordem a que se submetem seus elementos. São estruturas, as galáxias e os átomos, as estrelas e as micropartículas, as moléculas e as células, as rochas e os vegetais, os animais e os homens, os tropismos e os instintos, as sensações e as idéias, os juízos e os raciocínios. São estruturas, as ordenações jurídicas das Nações e dos Estados. Na qualidade de estruturas, a existência de todos os seres depende da disposição conveniente de seus elementos constitutivos. Mas os elementos de cada estrutura mudam sem cessar, porque tudo, * Este Capítulo é um complemento do Capítulo anterior. Embora importante, é um adendo facultativo no programa dos estudantes de Direito.
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no Universo, está em movimento. O movimento é uma realidade fundamental do Mundo: uma realidade indefectível em todas as coisas. Ora, o que se movimenta muda. E o que muda não permanece o mesmo. Passa a ser diferente. Deixa, portanto, de ser o que era. Não mais é aquilo que foi. Não mais existe como era; torna-se outro (embora não um outro). E, como outro, também não tem tempo de existir, porque, no momento em que começa a existir, já não é mais o mesmo, já mudou, passou a ser outro. E este outro, igualmente, no instante em que adquire existência, perde-a, porque já não é o que era, mas outro. E este outro, por sua vez, ... Em conseqüência (como tem sido assinalado por pensadores diversos), nenhum ser individual — enquanto elemento determinado, com forma estabelecida, ocupando lugar delimitado no espaço e durando um certo tempo — pode ser o que é. Ao ser, já não é. Nenhum elemento, pois, pode existir. Um ser não é um ser: é um vir-a-ser, dizia Heráclito (Aristóteles, Metafísica, 1010 a 1013). Contudo, admitir que nada existe é contrariar a evidência. Os homens existem, e uma infinidade de coisas existem nos homens e em torno deles. Parece absolutamente claro que há coisas existindo. Que coisas serão estas? Estas coisas só podem ser coisas que permanecem, que perduram. Só podem ser coisas que não mudam ininterruptamente. Um ser existente é, por força, um ser que é o que é, durante certo tempo; um ser que, durante um certo tempo, não deixa de ser o ser que é. Uma coisa existe quando ela continua como ela própria, embora tudo se movimente e mude, dentro dela e em volta dela. Só existe, em verdade, o que não muda, isto é, o que continua, durante um certo tempo. A existência é atributo do que perdura e permanece. Ela pressupõe a estabilidade. Mas, dentro de um Mundo em que tudo muda continuamente, haverá alguma realidade que perdure e permaneça? Haverá alguma realidade estável? Sim, há realidades permanentes e estáveis. Permanentes e estáveis, são as estruturas, que perduram, enquanto se movimentam e mudam os elementos de que elas são feitas. A estabilidade é da natureza das estruturas. 14
É evidente que a estabilidade das estruturas é relativa. As estruturas são estáveis, em comparação com os seres de que elas são feitas. São menos instáveis do que esses seres. São estáveis somente durante um certo tempo. Mas são também instáveis, evidentemente, quando consideradas como elementos constituintes das estruturas maiores, de que são partes. Estáveis, as estruturas reúnem, num todo duradouro e contínuo, os seres móveis e descontínuos, que elas contêm e coordenam. Um átomo é uma estrutura, uma armação estável, dentro da qual se agita uma constelação de movimentadas micropartículas. Um grão de areia, uma estrela, um vegetal, um homem, uma mulher, uma sensação, uma idéia são estruturas estáveis, dentro das quais se movem os mais diversos componentes móveis. Um sistema jurídico, por exemplo, é uma estrutura — uma realidade estável —, por mais que se promulguem e se revoguem as leis do País. Note-se, porém, que a estabilidade da estrutura depende do equilíbrio de forças e da harmonia de movimentos dos elementos que as constituem. A inexistência de equilíbrio e de harmonia implica inexistência de estabilidade e, por conseguinte, inexistência de estrutura. Para que a estrutura perdure — e, portanto, exista —, é preciso que tudo nela se sujeite a uma ordem global. Isto significa, em suma, que as estruturas dependem da exata quantificação de seus elementos componentes e dos movimentos que os animam. Por esse motivo, os elementos de uma estrutura e seus respectivos movimentos são quânticos, isto é, são quantificados, em razão da natureza da própria estrutura. Uma alteração substancial na quantidade numérica e dinâmica desses elementos é causa de inevitável destruição da estrutura, ou de sua substituição por estrutura nova, de outra qualidade. Sob a pressão insustentável de mudanças quantitativas uma estrutura pode acabar por ceder, pode romper-se, dando ensejo à constituição de outra estrutura, de uma estrutura de qualidade nova, na qual o equilíbrio e a harmonia entre os elementos se realiza em consonância com um diferente sistema de quantidades. Mas, desde o momento em que a estrutura se constitui, até o momento em que é destruída ou transformada, ela tem um tempo de equilíbrio de forças e de harmonia de movimentos, mantidos pelos elementos que a constituem. Durante esse tempo, a estrutura permanece e perdura: é estável. Mas somente a estrutura é estável; nada mais o é. Tal é o motivo pelo qual, dentro da movimentação cósmica, a existência é conotação exclusiva das estruturas. 15
Algum ser existe? Sim, certamente: seres existem. Existindo, constituem estruturas. Insistimos: o que realmente existe são as armações, as estruturas de seres, e não, propriamente, os seres de que as armações ou estruturas se compõem — a não ser que se considerem estes seres também como armações, como estruturas, uma vez que são, de fato, armações ou estruturas de outros seres, conjuntos ordenados dos seres que os constituem. E as qualidades de cada ser (inclusive as mais requintadas, como, por exemplo, a qualidade da vida) dependem de suas próprias estruturas e das estruturas dos seres que o compõem; e as qualidades destes dependem, por sua vez, de suas próprias estruturas e das estruturas dos que os compõem; e as destes, também, de suas próprias estruturas e das estruturas dos que os compõem; e assim por diante, até as qualidades do ser que seja o primeiro, ou até o mistério que habita, e se esconde, por detrás do infinito... Toda existência — existência dos vivos e dos não vivos; existência do homem, do vegetal, do mineral — tem por condição a estrutura. Isto significa que todo ser existente resulta da disposição certa dos seres de que ele é feito. Como se vê, a ordem (disposição certa) e a estrutura são condições de tudo no Universo.
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CAPÍTULO III
QUE É A “NORMALIDADE”? QUE É UMA “NORMA”?
§ 5. O normal e o anormal A conclusão a que chegamos no Capítulo I — a de que tudo está em ordem — não deve gerar a convicção de que tudo é normal. A ordem não se confunde com a normalidade. Ordens existem que não são normais. O adjetivo normal designa, fundamentalmente, a qualidade do que é conforme à regra. Designa a qualidade do que é próprio de muitos. Designa o carretar comum ou usual de um estado, de uma atividade ou de uma rota. Estado normal e procedimento normal são modos de ser e de atuar de acordo com o que é regular e coerente, em consonância com padrões estabelecidos e modelos assentes. É estado e procedimento não excepcionais. Ora, um procedimento ou estado, no mundo do comportamento humano — no chamado mundo ético — só se torna usual, ou é tido como comum, se estiver coadunado com o sistema dominante de concepções sobre o que é permitido e proibido, ou sobre o que deve e não deve ser feito ou estabelecido. No outro mundo — no chamado mundo físico — um procedimento ou estado só é tido como usual ou comum se acontece necessariamente, isto é, se o procedimento ou estado não pode deixar de ser, ou não pode ser senão o que é. Normal, no mundo ético, é a qualidade do procedimento ou do estado não extravagante, não contrário às referidas concepções dominantes; ou seja, a qualidade do procedimento ou estado que se coaduna com os padrões e 17
modelos assentados. No mundo físico, normal é a qualidade do que é considerado conforme com as convicções humanas, no âmbito das Ciências da Natureza. Não se harmonizando com o sistema dominante de concepções e convicções, os procedimentos ou estados — os movimentos e os modos-de-ser —, nos dois mundos, não têm possibilidade de ser tidos como usuais e comuns. Inusitados e, portanto, excepcionais, tais procedimentos ou estados, tais movimentos e modos-de-ser serão sempre considerados anormais. Anormal é a qualidade do que não se conforma com a regra. É a qualidade do insólito, do incongruente com as referidas concepções e convicções; do incompatível com o que se acha firmado e estabelecido como padrão e modelo de atuação e de modo-de-ser, ou colidente com as convicções e “certezas” científicas sobre os movimentos e rotas em geral. É normal, por exemplo, o zelo dos pais pelos filhos; e anormal, o abandono dos filhos pelos pais. Um organismo saudável é organismo em estado normal; mas o organismo enfermo ou deficiente é organismo considerado anormal. A trajetória da luz de uma estrela é tida como trajetória normal quando essa luz se locomove de acordo com as projeções dos cientistas; mas ela é considerada anormal quando a luz, por algum motivo extraordinário e desconhecido, se desloca de maneira imprevista. A ordem, também, pode ser normal ou anormal. São normais, as ordens ajustadas a padrões e modelos assentes, condizentes com as concepções dominantes sobre o que deve ou não deve ser feito. Mas são anormais, as ordens que conflitam com persuasões generalizadas, ou com aspirações comuns. Não são normais, por exemplo, as ordens políticas impostas discricionariamente, em conflito com o sentimento da coletividade, e com o sistema constitucional almejado pelos representantes do Povo. Notemos, desde já, que tais ordens, sendo discricionárias e anormais, são ilegítimas, como vamos ver. Por extensão, qualificam-se, também, de normais e anormais, os próprios agentes cujo modo de ser ou de proceder é normal ou anormal. Neste sentido é que se diz pessoa normal, pessoa anormal. Observemos, finalmente, que o normal e o anormal não podem ser considerados como qualidades absolutas. O normal é normal relativamente ao sistema de convicções tido como dominante; mas o anormal é, muitas vezes, normal, relativamente a um sistema de convicções que hoje ainda não é o sistema dominante, mas que amanhã poderá vir a sê-lo. 18
§ 6. Normalidade e anormalidade Dá-se o nome de normalidade ao estado (a maneira de ser estável) que se caracteriza pela predominância de procedimentos normais. Estado de normalidade é o estado do corpo ou da mente, de uma célula ou de um organismo pluricelular, de um grupo social ou de uma Nação, em que os procedimentos não contrariam as concepções e convicções dominantes, sobre como as coisas devem ser ou podem ser, ou sobre como as coisas são necessariamente. Por outro lado, o nome de anormalidade é dado, primordialmente, ao procedimento que fere a normalidade, isto é, ao procedimento incompatível com as concepções e convicções dominantes. Cumpre observar que a anormalidade se define por oposição à normalidade, enquanto a normalidade se define pela sua conformidade com as concepções e convicções vigentes e predominantes. A normalidade é essa conformidade. A anormalidade é a violação da normalidade. Notemos, porém, que a normalidade não é a violação da anormalidade. O estado de anormalidade não se define pela sua conformidade com quaisquer concepções, mas pela sua inconformidade com as concepções e convicções generalizadas. A conformidade das anormalidades com esta ou aquela concepção ou convicção não é o que importa para que um procedimento seja tido como uma anormalidade, e para que um estado seja tido como um estado de anormalidade. O que importa, para a caracterização da anormalidade, é sua oposição à normalidade. A anormalidade é sempre uma excepcionalidade. O anormal é sempre excepcional. Mas é preciso não esquecer que os conceitos de normalidade e de anormalidade são sempre relativos, pois dependem do sistema de convicções tido como dominante. A anormalidade de hoje talvez seja a normalidade de amanhã. A normalidade e a anormalidade só se podem definir à luz de uma ordenação dada. § 7. As anormalidades no mundo físico e no mundo ético No mundo físico, as anormalidades podem surgir em objetos projetados e construídos pelo ser humano, como, por exemplo, as que se manifestam em 19
máquina defeituosa; e podem também surgir em objetos da natureza, existentes sem ingerência deliberada e voluntária do ser humano, como, por exemplo, a anormalidade consistente no desvio insólito da trajetória da luz de uma estrela, e a consistente na doença, deficiência ou deformidade de um organismo vivo. Nos objetos projetados e construídos pelo ser humano, as anormalidades são susceptíveis de ser abolidas, pela supressão dos defeitos, existentes no projeto ou na construção. Nos objetos da natureza, as anormalidades são apenas aparentes. De fato, tais anormalidades são apenas aparentes porque elas se transmudam em procedimentos normais no momento em que suas causas são descobertas, e em que deixam, por conseguinte, de constituir um enigma. Assim, por exemplo, o desvio insólito da trajetória da luz de uma estrela deixou de ser uma anormalidade no momento em que Einstein descobriu que a energia luminosa é feita de corpúsculos “discretos” (fótons), dotados de massa e, portanto, sujeitos à atração da matéria, de acordo com o descrito na lei da gravidade. O desvio daquela trajetória não é mais considerado insólito, porque hoje se sabe que o desvio é determinado pela atração da luz da estrela pela matéria de outra estrela. O vôo do besouro era anormal, enquanto constituiu um desmentido a aerodinâmica, uma “violação da natureza”; enquanto se pensou que as frágeis asas dos coleópteros não tinham envergadura e potência para erguer no espaço corpo de tal peso. Mas passou a ser fato normal no dia em que se mediu a energia produzida pela mitocondria nas células “musculares” daquelas asas. São apenas aparentes, as anormalidades que contrariam errôneas concepções científicas, pois passam a ser consideradas procedimentos normais, no momento em que tais concepções são substituídas por outras, geradas à luz das realidades observadas. Nos caso das doenças, deficiências e deformidades dos seres humanos, estes fenômenos são recebidos como anormalidades porque afligem e infelicitam — mas não são anormalidades na sucessão de causas e efeitos, dentro da ordem física e infrangível da matéria. No mundo ético, porém, as anormalidades têm caráter diferente. Nesse mundo, que é o mundo do comportamento deliberado e voluntário do ser humano, as anormalidades são procedimentos que contrariam, como já dissemos, as convicções dominantes sobre o que pode ou deve ser feito e sobre o que não pode ou não deve ser feito. São procedimentos que não se harmonizam com a ordem ética vigente. 20
§ 8. Noção de NORMA e de ORDENAÇÃO NORMATIVA Chamam-se normas, AS CONVICÇÕES, CONCEPÇÕES OU PRINCÍPIOS, EM RAZÃO DOS QUAIS UM PROCEDIMENTO OU ESTADO É TIDO COMO NORMAL OU ANORMAL. Logo, as normas são expressões mentais, juízos ou proposições, de como procedimentos ou estados costumam ser, podem ou não podem ser, devem ou não devem ser, sempre que dadas circunstâncias se verifiquem. As normas são concepções ideais de procedimentos e de estados usuais e comuns, ou de procedimentos e estados que seres humanos querem que sejam usuais e comuns. É óbvio que toda norma, sendo princípio da normalidade, sempre se inclui dentro de um sistema ético, ou seja, de um sistema de convicções sobre o normal e o anormal. Um tal sistema é o que se chama ordenação normativa. Uma ordenação normativa é um CONJUNTO ARTICULADO DE DISPOSIÇÕES, PARA A ORIENTAÇÃO DO COMPORTAMENTO, SEGUNDO O QUE É TIDO, DENTRO DE UMA COMUNIDADE, COMO BOM E MAU, CONVENIENTE E INCONVENIENTE, ÚTIL E PREJUDICIAL, BELO E FEIO. É, em síntese, um conjunto de mandamentos decorrentes dos “valores” de uma comunidade. Repetimos: é um sistema ético. É um sistema de regras para o comportamento humano. Uma tal ordenação pode existir em muitos níveis e nos mais diversos setores de atividade. São ordenações normativas as que se exprimem, por exemplo, nas “Tábuas da Lei” e nos códigos da moral; nas Constituições e na legislação dos Estados; nos contratos e estatutos fundados nas leis; nos complexos de praxes inveteradas e nos “códigos de honra”. São também ordenações normativas, por exemplo, os regimes consuetudinários de “boas maneiras” e da chamada “boa educação”; os regulamentos dos jogos, os conjuntos harmônicos dos preceitos da moda e dos usos folclóricos; os receituários das cozinhas típicas. Pois bem, chamam-se normas, os mandamentos constitutivos de ordenações normativas, seja qual for a coletividade e o nível social em que surgiram, ou o setor de atividade em que imperam. São normas, os mandamentos coadunados com um sistema ético vigente. Tanto são normas os mandamentos de um Código Civil como as praxes de uma favela. Tanto são normas as determinações de um regulamento militar como os rituais do jogo de croquê. 21
Mas não são normas, os mandamentos isolados, desligados do sistema de convicções vigente numa coletividade, sobre o que é normal e o que é anormal. Não são normas, os mandamentos avulsos, não harmonizados com uma ordenação normativa estabelecida. E não o são porque tais mandamentos não se conciliam com o que é considerado a normalidade. Não é norma, o que não se coaduna com a normalidade. Do que acabamos de explicar, inferimos que as normas são formulações de modelos ou padrões, e constituem critérios de referência, para juízos de valor sobre os procedimentos e estados efetivos, ou seja, sobre os movimentos e as obras efetivamente executados, e sobre os estados em que os agentes efetivamente se encontram. Com fundamento nas normas, os procedimentos e estados efetivos são julgados normais ou anormais. Por serem critérios de referência para a discriminação entre o normal e o anormal, entre o sólito e o insólito, entre o aprovado e o reprovado, as normas formam, no mundo ético, sistemas disciplinadores do comportamento. Pois, não podem deixar de redundar em sistemas disciplinadores, todos os sistemas de convicções sobre o normal e o anormal, no comportamento humano. De fato, no mundo ético, as normas adquirem a natureza de mandamentos. Nesse mundo, as normas não são descritivas, não descrevem o comportamento efetivo. Elas são indicativas, prescritivas, porque indicam e prescrevem o comportamento considerado como a conduta correta. São prescrições de como deve o ser humano se conduzir, em razão do que a coletividade considera bom, belo, útil ou conveniente. Por conseguinte, no mundo ético, todas as normas têm caráter imperativo. Não é o que acontece no mundo físico. Neste outro mundo, as normas não são mandamentos. Aliás, não é mesmo da competência humana ditar mandamentos para movimentos e estados cujas formas não dependem da deliberação humana. Por exemplo, não depende de deliberação humana que a energia existente numa unidade de massa seja igual a essa massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. As normas físicas também são convicções. Mas são convicções de como as coisas físicas são, de fato, e de como elas, de fato, se movimentam. As normas éticas são normas do dever, do dever-ser. As normas físicas são normas do ser. As normas éticas têm, invariavelmente, esta estrutura: Se A é, B deve ser. As normas físicas têm, invariavelmente, esta outra estrutura: Se A é, B é. 22
§ 9. Diferença entre NORMA e MANDAMENTO Cumpre observar que todas as normas éticas são mandamentos, mas que muitos mandamentos não são normas. É óbvio que somente são normas, no mundo ético, os mandamentos que prescrevem comportamentos normais, isto é, comportamentos conformes com a normalidade ambiente. Somente são normas éticas, os mandamentos de ordenações normativas, como já foi explicado. Não são normas, portanto, os mandamentos desligados de uma ordenação, ou contrários ao sistema ético vigente. Um mandamento isolado não é nunca uma norma. Não é nunca uma norma, o mandamento avulso, desconexado, adiáforo ante a normalidade estabelecida, ou em conflito com ela. Tais mandamentos são imperativos não normativos. São imperativos, sim, mas não são normas. Alguns exemplos tornarão claras estas asserções. Numa sociedade de formação cristã, na qual as consciências se educam em consonância com uma ordenação religiosa, constitui norma, o seguinte mandamento: “Ama a Deus sobre todas as coisas”. Mas este mandamento não é norma numa sociedade em que as consciências se sujeitam a uma ordenação inspirada na tese de que “a religião é o ópio do Povo”. Numa tal sociedade, o referido mandamento não é norma, porque contraria a normalidade nela vigente; contraria o sistema vigente de idéias norteadoras do comportamento. Poderá continuar sendo mandamento, mas um mandamento que não é norma. Em muitos países, a ordenação moral promove a normas os mandamentos fundados no princípio de que a família deve ser monogâmica. Esses mandamentos, porém, não são normas em outros países, nos quais a ordenação moral não se opõe à poligamia. De acordo com as ordenações de certos povos, a mulher é serva de seu marido. Em conseqüência, os mandamentos decorrentes desse princípio são promovidos a normas. Em outros povos, porém, nos quais a ordenação vigente acolhe o princípio da igualdade das pessoas, em igualdade de situações, os referidos mandamentos não são normas. Nestes países, passam a ser normas, os mandamentos que tendem a equiparar os direitos e obrigações da mulher aos direitos e obrigações do marido. Quando a escravidão é admitida pelos usos e costumes, e permitida pela legislação, são normas os mandamentos que implicam, para o escravo, a permanência em estado de servidão por toda a vida, ou até o momento em 23
que a vontade de seu senhor, manifestada em carta de alforria, lhe conceda a graça da liberdade. Quando, porém, os princípios do trabalho livre e da dignidade humana do trabalhador se acham incluídos na ordenação normativa, são normas os mandamentos que os tornam eficazes, como, por exemplo, o dispositivo legal que fixa penas para os autores de atentados contra a liberdade de trabalho, e o que estabelece que o contrato de trabalho por prazo determinado não pode estipular prazo superior ao que a lei prefixa. A cozinha francesa e seu competente serviço de mesa obedecem a rigorosas receitas e determinações, ou seja, dirigem-se por mandamentos que constituem as normas próprias dessa cozinha e desse serviço, normas estas que formam um completo sistema, uma ordenação normativa de uma escola culinária. Mas muitos desses mandamentos não são normas para a cozinha chinesa e para o serviço de mesa na China, porque não se identificam nem se harmonizam com os preceitos que formam a ordenação normativa desta outra escola. Dentro de uma sociedade de malfeitores, são tidos como normas, pelos delinqüentes, os mandamentos da ordenação a que eles se dispuseram submeter. Mas tais mandamentos somente são normas dentro da referida sociedade. Ante a ordenação do Estado, em cujo território a sociedade de malfeitores se organizou, muitos desses mandamentos não são normas, evidentemente, mas preceitos contrários à normalidade. Em verdade, as normas éticas, de qualquer espécie, são os mandamentos constitutivos de uma ordenação vigente, num determinado meio ou num determinado setor de atividade. São as fórmulas pelas quais se exprimem os imperativos da ordenação de uma coletividade, e segundo as quais os procedimentos efetivos são julgados. Toda norma ética é, de fato, um imperativo. Mas não é um imperativo qualquer. É o imperativo de uma normalidade, como dissemos. Ela constitui um critério de referência para juízos de valor. Cumpre aditar que nem sempre uma ordenação vigente é ordenação normal. Não é normal, por exemplo, a ordenação imposta discricionariamente por um Governo arbitrário, com violação da normalidade constitucional de um País. Uma tal ordenação, incongruente com o sistema dominante de concepções, é insólita e extravagante. É, em seu conjunto, uma anormalidade. Em conseqüência, seus mandamentos, embora integrantes de uma ordenação vigente, não são normas, porque são violações do que é normal. Para que um mandamento seja norma, não basta, portanto, que ele seja elemento de uma ordenação vigente. É preciso que ele seja elemento de 24
uma ordenação normal, isto é, de uma ordenação que esteja harmonizada com o sistema de concepções dominantes numa coletividade. É preciso, em suma, que o mandamento se enquadre numa ordenação legítima. § 10. Divisão dos mandamentos À vista do exposto, dividem-se os mandamentos em duas espécies. A primeira é a dos mandamentos normativos, que se chamam normas. A segunda é a dos mandamentos não normativos. Uma fundamental diferença existe entre as duas espécies. Os mandamentos normativos ou normas são imperativos de ordenações condizentes com as convicções generalizadas da coletividade, sobre o que é bom e mau, conveniente e inconveniente, útil e prejudicial, belo e feio. São imperativos do usual e comum, ou do que a coletividade quer que seja usual e comum. São imperativos harmonizados com o sistema ético vigente. Os mandamentos não normativos são imperativos avulsos, incongruentes com as ordenações da coletividade, ou são imperativos de ordenações conflitantes com as convicções generalizadas, sobre fins a ser atingidos e sobre os meios a ser empregados na procura de tais fins. São imperativos não harmonizados com o sistema ético vigente. Esta divisão dos mandamentos tem grande importância para o perfeito entendimento da definição da norma jurídica, da norma de direito, como vamos ver no Capítulo X deste livro. § 11. A natureza condicional das normas As normas resultam de uma complexa operação, pela qual a inteligência confronta fatos da vida com uma tábua de ideais, acerca de como deve ser o comportamento humano. Resultam do julgamento dos fatos, à luz de um certo sistema de convicções já assentadas, sobre o que é normal e o que é anormal, sobre o que é bom e o que é mau, o que é útil e o que é prejudicial, o que é belo e o que é feio. Resultam, enfim, de um juízo sobre os fatos, em razão de uma ordenação ética já aceita, de uma tábua de valores já constituída, ordenação ou tábua que funciona como sistema axiológico de referência* .
* Axiologia: do grego, axia = valor, logos = ciência. Sistema axiológico de referência = sistema dos bens éticos da vida humana; sistema de “valores”, adotado por uma coletividade, para orientação do comportamento.
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Toda norma repousa em três elementos entrosados: fato, sistema axiológico de referência, juízo. A norma não é uma invenção, mas uma descoberta. Para cada circunstância da vida social, a inteligência descobre as interações humanas consideradas necessárias ou benéficas. Ela descobre as reações que devem ser exigidas ou permitidas, assim como as que devem ser proibidas, tudo em conformidade com um sistema de convicções adrede estabelecido. Em conseqüência de tal descoberta, a inteligência formula as normas correspondentes. O que é importante assinalar é que a norma está sempre ligada aos fatos reais que a fizeram surgir. Efetivamente, toda norma é relativa à circunstância para a qual ela é destinada. Verificada a circunstância, ela vigora e atua. Mas não tem atuação fora dessa circunstância. Por este motivo, toda norma tem estrutura hipotética. O que ela preceitua vale somente na hipótese de ocorrer o tipo de fato que determina seu nascimento e elaboração. Por força de sua natureza, a norma não se compadece com as proposições simples ou categóricas, e exige, para a sua perfeita formulação, proposições complexas e hipotéticas, como explicaremos no § 12. É óbvio que as normas assumem um grande número de formas diferentes. Mas, seja qual for sua forma verbal, o mandamento da norma é sempre condicional ou hipotético, porque a norma só se aplica, e só impera, na condição ou na hipótese de se verificar a espécie de fato para cuja regulamentação ela existe. Este é o motivo pelo qual o mandamento da norma ética apresenta sempre uma estrutura que se reduz ao já mencionado esquema: Se A é, B deve ser. Os mandamentos com tal estrutura são os imperativos que a Lógica chama de juízos hipotéticos do tipo condicional, como veremos no § seguinte. § 12. Os imperativos considerados como juízos hipotéticos do tipo condicional* Sendo mandamentos para o comportamento humano, as normas exprimem juízos de dever (veja § 8). * A matéria exposta neste § revela a natureza da norma ética e, por conseguinte, exibe um dos elementos essenciais da norma jurídica, de que trataremos na 2ª Parte deste livro. É matéria própria da Lógica, mas que merece a atenção dos estudantes da Ciência do Direito.
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Para o perfeito entendimento dessa conclusão, convém lembrar o que a Lógica ensina sobre os juízos em geral. Um juízo ou julgamento é o ato pelo qual a inteligência aceita (afirma) ou rejeita (nega) uma idéia de outra idéia. É a aceitação, ou não, de que uma idéia convém a outra. São exemplos de juízos: “O todo é maior do que a parte”, “Esta flor é vermelha”, “O vegetal não é um ser racional”. O juízo se efetua em três fases. Na primeira fase, a inteligência aproxima duas idéias; relaciona-as, isto é, afirma ou nega uma da outra, produzindo uma construção sobre a qual a inteligência ainda não se manifestou. Tal construção é matéria apta a ser julgada, “objeto projetado de um juízo”, como diz Leonardo Van Acker (Introdução à Filosofia — Lógica, Lógica formal, Capítulo II, art. I). Em sua expressão verbal, ela constitui o que se chama proposição simplesmente enunciativa. É incontestável que, antes do ato próprio de julgar, existe, no espírito, a mencionada construção, que não passa de um simples enunciado mental, isto é, de um objeto ou matéria que não recebeu, ainda, o assentimento da inteligência. Há como que uma pergunta, à espera de uma resposta. Antes de dar assentimento a uma afirmação ou a uma negação, a inteligência procura certificar-se de que essa afirmação ou negação corresponde à realidade apresentada. Durante o prazo empregado em tal procura, a dúvida impera, não há julgamento, embora já exista matéria a julgar, objeto de um juízo projetado. Na segunda fase, a inteligência compara o simples enunciado mental com a realidade apresentada. Tal comparação visa verificar se o enunciado proposto reflete a realidade das coisas, isto é, se as duas idéias, que a inteligência aproximou, convêm ou não, uma à outra. Se a inteligência se convence de que há conformidade entre o enunciado mental e aquilo que lhe é apresentado, então, numa terceira fase, dá-lhe sua adesão. No momento desta adesão, o simples enunciado mental deixa de ser simplesmente enunciativo, porque além de enunciativo, passa a ser judicativo, passa a ser propriamente um juízo, o produto de um julgamento. Em sua expressão verbal, o juízo constitui o que se chama proposição judicativa. Diga-se, a bem da clareza, que a proposição judicativa é a própria proposição enunciativa, com uma diferença essencial: não é a proposição simplesmente enunciativa, e sim a proposição enunciativa julgada. 27
Pelo juízo, a inteligência vê o que uma coisa é, segundo seu sistema de referência. O juízo completa a apreensão do objeto. Em conseqüência, o juízo é o coroamento do conhecimento intelectual, o termo final do processo de conhecer. Os juízos se dividem em quatro espécies, a saber: 1) juízos de ser; 2) juízos de modos de ser; 3) juízos de valor; 4) juízos de dever. Chamam-se juízos de ser, os juízos sobre a existência e a essência dos objetos a que esses juízos se referem (ou, mais precisamente: sobre a existência e a essência de seus respectivos sujeitos). Estes juízos também são chamados juízos de determinação essencial. Exemplos: “O homem é um ser dotado de inteligência”; “A idéia é o abstrato do individual sensível, sem elementos individuais sensíveis”. Chamam-se juízos de modo ou juízos de modos de ser, os juízos relativos às determinações não essenciais dos objetos a que esses juízos se referem. Exemplos: “O homem é bípede”, “Pedro é estudioso”. Chamam-se juízos de valor, os juízos sobre o valor dos objetos a que se referem. Observemos que, no juízo de valor, uma idéia de medida, de quantidade, de importância é atribuída a alguma outra idéia. O juízo de valor é o juízo que, de certa forma, situa um fato ou uma coisa numa escala hierárquica de coisas ou fatos. É a afirmação de que uma coisa ou um fato, apreciado à luz de um sistema de referência, é considerado mais, ou é considerado menos do que outro fato ou coisa, ou é considerado igual a outro fato ou coisa. São exemplos de juízos de valor os seguintes: “A ciência mais alta é o verdadeiro conhecimento de si mesmo”; “Mais alegria causará a pureza de uma boa consciência do que a douta Filosofia”; “Grande sabedoria é não se aferrar ao próprio parecer”; “Mais vale a paz de espírito do que a satisfação de um desejo desonesto”; “A caridade é mais meritória do que a justiça, mas a justiça é mais urgente do que a caridade”. Chamam-se juízos de dever (ou juízos éticos), os juízos indicativos de como deve o homem agir. Os juízos de dever são mandamentos para o comportamento humano, em razão de anteriores juízos de valor. Exemplos: “Conhece-te a ti mesmo”; “Antes conserves a pureza de uma boa consciência do que te orgulhes com a douta Filosofia”; “Não te aferres a teu próprio parecer”; “Não permitas que a vida emudeça teu sonho”; “Se causares dano ilegal a outrem, deves reparar o prejuízo”; “Se encontrares 28
coisa que não te pertence, deves restituí-la ao dono”; “Primeiro, fazer justiça; depois, caridade”. Como se vê, os juízos de dever não são juízos sobre o valor das coisas, mas sobre como deve o homem agir para alcançar bens a que ele atribuiu valor, ou seja, bens que foram objeto de prévios juízos de valor. Antes de caracterizar, especificamente, os juízos de dever, cumpre dizer que os juízos em geral ou são simples ou são complexos. Os juízos simples são feitos sem subordinação a outros juízos. Os complexos, em função de juízos já feitos. Nos primeiros, nada mais há do que um termo ligado a outro, por afirmação ou por negação, como no seguinte exemplo: “Os homens são mortais”. Nos segundos, além da afirmação ou negação, próprias de todos os juízos, existe sempre a expressão de uma hipótese, cuja verificação é suposta pela afirmação ou negação, como no seguinte exemplo: “A água entra em ebulição, se sua temperatura atingir 100º”. Os juízos simples são chamados juízos atributivos ou categóricos. Os juízos complexos são chamados juízos supositivos ou hipotéticos. Ora, os juízos de dever ou juízos normativos são necessariamente juízos complexos, porque o juízo, que constitui o mandamento, depende da verificação de hipótese expressa num juízo conexo. Em conseqüência, o juízo de dever é sempre uma proposição hipotética, embora possa, às vezes, tomar a forma aparente de uma proposição atributiva ou categórica. De fato, o juízo de dever há de ser sempre uma proposição hipotética, porque o dever nunca é absoluto. Ele é sempre relativo a determinada circunstância: “Isto deve ser, se aquilo for”, ou, mais esquematicamente: “Se A é, B deve ser”. Examine-se um exemplo prático. Somos informados de um fato, que se exprime na seguinte proposição: “Fulano causou dano a Beltrano”. À luz de um sistema de referência, adrede estabelecido, nosso espírito julga o fato e o reprova. Deste juízo, vai surgir, mediata ou imediatamente, a norma, que se exprimirá na seguinte proposição: “Quem causa dano a outrem, deve indenizar”. Esse mandamento não é, evidentemente, um juízo categórico. Devido à sua natureza, é um juízo hipotético. Não exprime um imperativo absoluto. É um mandamento condicionado. 29
Podemos aprofundar a análise dos juízos hipotéticos. No juízo hipotético, a verificação da hipótese não é sempre a única alternativa necessária, oposta ao que é afirmado ou negado. Veja-se o que sucede no seguinte exemplo: “Ninguém é, simultaneamente, discípulo e mestre” (alguém, na hipótese de ser discípulo, não é simultaneamente mestre; mas poderá alguém não ser mestre e, mesmo assim, não ser discípulo). Tal juízo hipotético é chamado conjuntivo. Pode, também, a verificação da hipótese ser a única alternativa necessária, oposta ao que é afirmado ou negado, como no seguinte exemplo: “Ou haverá uma autoridade, ou haverá desordem”. Tal juízo hipotético é chamado disjuntivo. Finalmente, pode a verificação da hipótese ser condição do que é afirmado ou negado, como no exemplo citado: “Se alguém causar dano, deve indenizar”. Tal juízo hipotético é chamado condicional. De que tipo de juízo hipotético são os juízos de dever, os imperativos do comportamento humano, as normas éticas? O dever, repita-se, nunca é absoluto: ele se impõe na condição de se verificar determinada hipótese. Logo, os juízos de dever, os imperativos em geral, as normas éticas, não podem deixar de ser JUÍZOS HIPOTÉTICOS DO TIPO CONDICIONAL.
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CAPÍTULO IV
QUE É UMA “LEI”?
§ 13. A definição genérica de LEI Ordens existem que não são normais, como já vimos. Mas todas as ordens, normais e anormais, pressupõem um pensamento, uma idéia, que lhes é anterior, conforme foi explicado no § 2. Toda ordem efetiva é a realização concreta de uma idéia de ordem, de uma ordem ideal. Ora, toda idéia é abstrata: é um conhecimento intelectual abstraído de conhecimentos sensíveis. Toda ordem, pois, decorre de um princípio abstrato. Que nome genérico possuem os princípios abstratos de que, indiscriminadamente, todas as ordens dependem? Sendo preciso, para a verificação da ordem, que a disposição das coisas seja conveniente, é claro que tal disposição há de se fazer segundo critérios adrede assentados, ou seja, segundo princípios abstratos ou preceitos já estabelecidos. Estes princípios ou preceitos (ou “receitas”) constituem as fórmulas segundo as quais os seres são dispostos, ou devem ser dispostos, para que a ordem exista. São as formas abstratas, segundo as quais se realiza, em cada caso concreto, a “unidade do múltiplo” (veja § 1). Tais preceitos têm um nome genérico: chamam-se leis. Uma lei, em verdade, é a FÓRMULA DA DISPOSIÇÃO CONVENIENTE DE SERES, PARA A CONSECUÇÃO DE UM FIM COMUM. Quando o farmacêutico reúne e combina substâncias diferentes na preparação de um determinado produto, ele obedece a uma fórmula. A que fórmula? À fórmula desse produto. Tal fórmula é uma lei, porque ela é a 31
expressão de como as substâncias devem ser dispostas para que o produto seja confeccionado. Uma lei de trânsito é uma fórmula. É a fórmula da movimentação conveniente dos veículos e dos pedestres nas ruas, com o fim de evitar colisões e estrangulamento de tráfego. Uma lei comercial é uma fórmula para a constituição conveniente de sociedades mercantis, ou para regular, convenientemente, a transferência de mercadorias das mãos de quem as oferece para as mãos de quem as procura, por intermédio do comerciante. Ora, como foi dito, a disposição conveniente de seres é o que se chama ordem. Logo, a lei se define: FÓRMULA DA ORDEM. Esta definição é absolutamente genérica. Ela se aplica a todas as espécies de leis: tanto às leis éticas como às leis físicas. É óbvio que cada espécie exige definição distintiva. Por exemplo, as leis jurídicas, que também são fórmulas da ordem, têm a sua própria definição específica, como veremos adiante (nos Capítulos V e X). Como fórmulas, as leis são idéias. A lei é sempre uma idéia de ordem. Ela é uma fórmula mental, elaborada por alguma inteligência, para a conveniente disposição de coisas, a fim de produzir um efeito preconizado. Toda lei é o plano concebido do que vai ou deve acontecer. Primordialmente, toda lei é um pensamento (veja § 2). Depois, ela pode ser manifestada num texto escrito ou falado. De qualquer maneira, a lei precede a ordem. Precede-a cronologicamente. A lei existe antes do surgimento da ordem. É óbvio que, uma vez estabelecida a ordem, ordem e lei existem concomitantemente. Das leis, todas as ordens dependem — tanto as ordens normais como as anormais. Das normas, porém, dependem somente as ordens condizentes com o usual e comum, as ordens conformes com as concepções generalizadas, isto é, as ordens normais. Há leis, portanto, que não são normas. Em rigor, não deveriam ser tidas como normas as leis que sejam mandamentos de comportamentos anormais (veja §§ 8 e 9). Dividem-se as leis em dois gêneros: no gênero das leis éticas e no gênero das leis físicas, como se vai ver nos dois §§ seguintes. 32
§ 14. As leis éticas A palavra ÉTICO é derivada dos termos gregos êthe e ethikós, que significavam costumes (usos). Na linguagem moderna, o adjetivo ético designa a qualidade de ser concernente às atividades próprias do ser humano, ou seja, a seus atos deliberados e voluntários. Ao mundo ético, portanto, pertencem todos os comportamentos voluntários do ser humano — tanto os comportamentos “bons” como os comportamentos “maus”. As leis éticas são fórmulas elaboradas pelo ser humano, para ordenar o seu comportamento. Por exemplo, são leis éticas, as seguintes fórmulas: “Ama teu semelhante como a ti mesmo”; “Aquele que causar prejuízo ilegal a outrem fica obrigado a reparar o dano”. Diferentes das leis físicas, as leis éticas não revelam o ser das coisas, mas o que as coisas devem-ser. São enunciados do dever-ser (fórmulas do dever-ser). Sua estrutura é a do seguinte esquema: Se A é, B deve ser. Evidentemente, as coisas a que estas leis se referem são os comportamentos humanos, únicos movimentos susceptíveis de se ordenar segundo imposições de dever. As leis éticas se dirigem especificamente aos atos humanos, tomandose esta última expressão em seu sentido tradicional, ou seja, no sentido do consagrado termo “actus humanus” (ato humano), que designa, na Filosofia, a ação deliberada e voluntária, praticada pelo ser humano. Sabem os filósofos que o “actus humanus” é uma das espécies do “actus hominis” (ato do homem), que é todo e qualquer ato produzido pelo ser humano, inclusive os atos não deliberados e não voluntários, como os de respirar e de digerir. Somente aos atos deliberados e voluntários do ser humano, referem-se as leis éticas. Sendo enunciadoras do dever, as leis éticas se fazem imperativas. A imperatividade caracteriza as leis éticas. É o que, na prática, as diferencia das leis físicas. Pois bem, as leis éticas, quando harmonizadas com uma ordenação normativa, se promovem a normas. Convém assinalar que, em rigor, as leis éticas não são normas sempre. Esta observação é importante para a exata conceituação de lei ética e de 33
norma. Em verdade, não são propriamente normas as leis éticas não harmonizadas com a ordenação normativa vigente. É óbvio que somente deve receber o nome de norma, a lei normalizadora do comportamento, ou seja, a lei não conflitante com a normalidade. De fato, só merecem a designação de normas as leis éticas que determinam o que deve ser feito, em consonância com o sistema de concepções éticas dominantes. As leis éticas não harmonizadas com a ordenação normativa vigente são mandamentos, sim, mas, em rigor, não são normas. São mandamentos não normativos (veja § 10). Por exemplo, não são normas, no estricto sentido deste termo, leis éticas que imponham a censura aos meios de comunicação, num país em que a ordenação normativa constitucional consagra a liberdade de informação dos veículos da mídia. Observe-se que a lei ética não é descritiva. Ela não é a descrição de um comportamento efetivamente mantido. O que ela é, isto sim, é a fórmula do comportamento que deve ser mantido, em determinada circunstância. Ela é uma indicação de caminho, e não o relato do caminho percorrido. Ela não descreve o que é, mas o que deve ser. Sua estrutura é a do citado esquema: Se A é, B deve ser. Há, sem dúvida, leis éticas que tomam a forma de descrições. Mas ninguém se iluda! Quando isto acontece, a lei ética está descrevendo o comportamento como ele deve ser, independentemente do que ele é de fato. Note-se que o comportamento contrário ao que manda a lei ética não afeta, em regra, a validade da lei. Tal comportamento é a violação de um mandamento. Em conseqüência, a lei, como um imperativo de dever, se sobrepõe ao comportamento efetivo. O dever-ser prepondera sobre o ser. O que deve ser perdura, ainda quando, de fato, não seja. Aliás, as leis éticas, como disse Rosmini (referindo-se ao Direito), brilham com maior esplendor precisamente quando são violadas (Filosofia do Direito, 2ª ed., 1865, vol. I, p. 126). Realmente, quando obedecidas, estas leis, em sua maior parte, nem se fazem notar. Mas, sendo violadas, fulguram quase sempre. Por quê? Porque, em regra, as forças a serviço da ordem se manifestam, após a infringência, para fazer cumprir os mandamentos violados. § 15. As leis físicas O substantivo física é derivado do termo grego physis, que significa natureza. Como adjetivo, a palavra físico designa a qualidade de concernir 34
ou de pertencer ao mundo das realidades concretas da natureza (mundo oposto ao das realidades abstratas). O mundo físico é o mundo dos corpos e das forças do Universo, aptos a entrar no domínio da experiência sensível. As leis físicas são fórmulas, também elaboradas pelo homem, para revelar, em síntese, o que a ciência descobriu de constante, em tipos de fenômenos observados na natureza. Por exemplo, são leis físicas as seguintes fórmulas: “A matéria atrai a matéria na razão direta do produto de suas massas e na razão inversa do quadrado das distâncias que as separa” (lei da gravidade, elaborada por Newton); “A energia existente numa unidade de massa é igual a essa massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz” (E = mc2: fórmula elaborada por Einstein, revelando a relação entre energia e massa). É óbvio que essas leis são elaboração dos cientistas. Existem na inteligência, não na natureza. As leis a que se confere a denominação de leis físicas não são mandamentos. Não são determinações baixadas por alguma entidade que não seja o ser humano. Não há lei física nenhuma que não seja lei elaborada pelo próprio ser humano. De fato, o que os seres humanos encontram, invariavelmente, no mundo da natureza, é o individual e o concreto. Jamais encontrou leis. Jamais encontrou princípios gerais e abstratos. O que os seres humanos acham, no mundo da natureza, são corpos e energias, seres individuais, particulares, fenômenos perceptíveis pelos órgãos sensórios. Não acha leis. O ser humano vê a pedra solta cair, mas não vê a lei da gravidade. Sobre as coisas e os fatos da natureza, é o próprio ser humano que elabora as leis chamadas leis físicas. A inteligência humana, com sua irresistível tendência de subir do particular para o geral, trabalha sobre as imagens das coisas e dos fatos que lhe são dados, e as despoja, desembaraça-as de tudo quanto as individualiza, ficando com as representações do que é sempre o mesmo em cada tipo de seres. De imagens diversas de coisas do mesmo tipo, a inteligência separa o que as diversifica, e conserva o que nelas há de comum. Esta operação intelectual se chama abstração. 35
Abstração é a operação intelectual de separar o que é sempre o mesmo em coisas que são diversas. É a operação de pôr de lado o que individualiza seres singulares e reais, e de ficar com o que é comum a esses mesmos seres. Ou, ainda, é a operação de descobrir, de delivrar, nos seres do mundo real, os tipos de ser de que eles constituem a realização concreta. Rigorosamente, a abstração é a operação pela qual a inteligência extrai o todo universal de seus submúltiplos particulares — como ocorre, por exemplo, quando a inteligência destaca o conceito universal animal de seus submúltiplos particulares cão, leão, homem, etc. (Régis Jolivet, Tratado de Filosofia, III, 169). Pedro, Paulo, Maria, Sebastiana são seres singulares, particulares, concretos; são diversos e diferentes. A inteligência pode despojar as imagens de tais seres de tudo que nelas há de diverso e diferente; pode desembaraçálas de tudo que as separa e individualiza. Ficará, então, com o que nelas há de idêntico, ou seja, com o que nelas há de comum. Ficará com o que nelas há de uno, ou seja, de universal ou geral. Ficará com a idéia indivíduo inteligente e autônomo. Ficará com a idéia de homem, que não se confunde com as imagens dos homens. A imagem de Pedro não é a imagem de Paulo, nem a imagem de Maria, nem a imagem de Sebastiana. Mas a idéia de ser humano tanto convém a Pedro como a Paulo, a Maria e a Sebastiana. Abstrair é passar do singular para o geral, e, do geral, para geral mais alto. É subir dos indivíduos para as espécies, e das espécies para os gêneros. É sair das imagens das coisas, para alcançar a idéia delas. É partir dos dados para chegar à construção das leis. A chamada lei física, longe de ser uma realidade objetiva, existente na natureza, é, pelo contrário, um produto de abstrações, que são operações da inteligência, como se acaba de ver. A lei física é um “ser de razão”. É um juízo, um “juízo explicativo”, como diz Miguel Reale (Filosofia do Direito, 5ª ed., Capítulo XVII, n. 104). Somente existe na inteligência. Mas, por meio dela, a ciência exprime, ou procura exprimir, em fórmulas sintéticas, o que há de permanente nos tipos diversos de movimentos, verificados no Universo. A lei física “é uma síntese estatística ou uma explicação sintética do fato”, “uma súmula do fato” (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 5ª ed., Capítulo XVII, n. 104, 106, 108 e 109). Dos movimentos a que se referem as leis físicas excluem-se, evidentemente, os movimentos deliberados e voluntários do homem, que são objeto das leis do outro gênero, ou seja, das leis éticas, como já dissemos. 36
Também recebem o nome de leis físicas, as fórmulas sintéticas com que a ciência revela as relações constantes entre quantidades. Por exemplo, são leis físicas (leis físico-matemáticas) as seguintes fórmulas: “Duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si”; “A soma dos ângulos de um triângulo é igual à soma de dois ângulos retos”. Pelo que acaba de ser exposto, verifica-se que as leis físicas são fórmulas descritivas. Descrevem o que a inteligência descobre, por indução, no mundo da natureza. São enunciados do que é. São enunciados do ser (fórmulas do ser). Sua estrutura é a do seguinte esquema: Se A é, B é. Sendo descritivas, as leis físicas não podem preceder, obviamente, o objeto descrito. Não são anteriores à ordem da natureza, e não a determinam. Não são mandamentos, ordenando uma disposição conveniente dos seres, em razão de um efeito preconizado, ainda não produzido, mas a produzir. Em suma, a lei física não é um imperativo. Com rigor, ela não é uma lei. E não o é porque ela não é o pensamento ou idéia de uma ordem a ser realizada. Não é uma lei porque não passa de simples descrição das formas de uma ordem já realizada. Em verdade, não há leis no mundo da natureza. Régis Jolivet, professor das Faculdades Católicas de Lyon, diretor da Faculdade de Filosofia, observa: “A palavra lei só é empregada aqui em sentido impróprio, pois só haverá lei, propriamente dita, onde há razão e liberdade” (Tratado de Filosofia, IV, Moral, art. II, n. 15). Este é o motivo, sem dúvida, pelo qual os pensadores da antigüidade grega não tinham na conta de leis as fórmulas com que a ciência buscava explicar os fenômenos da natureza. Lei, para eles, era somente o que hoje se chama lei ética. Aristóteles, por exemplo, nunca pensou em leis que não fossem as leis do comportamento humano. É possível que o primeiro autor a se referir a “leis da natureza” tenha sido Lucrécio, o iluminado poeta latino que, em seu poema “Natureza das coisas”, usou da expressão “leges natura” (ano 60 a.C., aproximadamente). “A noção de lei”, observa Miguel Reale, “modelou-se, de início, sobre a noção de uma ligação entre uma ordem e uma obediência, pressupondo sempre a pessoa do autor da norma e a do seu destinatário: — muitas vezes inclinamo-nos a pensar que recebemos dos físicos e dos químicos o conceito de lei, quando, na realidade, foi o contrário que se deu” (Filosofia do Direito, 5ª ed., Capítulo XXXIV, n. 193). 37
As leis físicas não deveriam ser chamadas normas, porque elas não normalizam coisa nenhuma; não determinam que coisa nenhuma seja feita, para assegurar uma normalidade. Elas não são normas verdadeiras, porque não impõem dever. Limitam-se a revelar o ser das coisas. Neste livro, a partir do § seguinte, a palavra norma designará, somente, a norma ética. Note-se que a verificação de um fato contrário ao que se acha afirmado na lei física invalida a lei. O fato da natureza que for contrário à lei física é prova de que a lei está errada: não descreve corretamente a realidade. É prova de que a lei é falsa, ou seja, é uma descrição falsa do ser. Em conseqüência, no mundo da natureza, o fato se sobrepõe à chamada lei física. § 16. Etimologia da palavra LEI Cícero dizia que lex vem de eligere (escolher, eleger) porque a lei é a norma escolhida pelo legislador como o melhor mandamento em razão dos fins a atingir (“De Legibus”, L. 1). Mas Santo Thomaz de Aquino, em seu Tratado das Leis (incluída na Summa Theologica), sustentou que “lei vem de ligar, porque obriga a agir” (S. Th. 1ª, II ae., 2. 90, a.1). Quem estaria com razão? Observe-se que, na República Romana, as normas jurídicas se dividiam em duas classes: normas de Direito costumeiro, que eram guardadas na memória das pessoas, e normas gravadas em tábuas de mármore e de bronze, conservadas no Capitólio, na sala denominada Tabularium. Não seria natural que a palavra lex designasse precisamente o jus scriptum? Não seria natural que a palavra lei designasse a norma que se lê? Em caso afirmativo, lex estaria para legere como rex para regere (Isidorus, Etymologiarum, Lib. 2, Capítulo 10). O certo é que a palavra lei provém do étimo grego leg, por intermédio de diversos verbos latinos, como eligere, legere e legare. Eligere (eligo, elegi, electum, eligere) significa eleger, escolher, selecionar. Legere (lego, legi, lectum, legere) significa reunir o que foi escolhido, recolher o que foi selecionado. Significa ligar, enlaçar, encadear, prender com o sentido de acarretar, impor uma conseqüência ou sujeição, obrigar, submeter. E também significa ler, isto é, recolher o que se depreende de letras reunidas, apanhar o sentido uno de letras diversas encadeadas. 38
Legare (lego, legavi, legatum, legare) significa transmitir, encarregar da transmissão, incumbir, delegar, enviar com uma missão, enviar como embaixador. Significa legar, dar um legado, atribuir uma incumbência, impor um encargo. Podemos dizer, pois, que, etimologicamente, a palavra lei designa o mandamento escrito (o mandamento que se lê), devidamente selecionado, que transmite e impõe ao cidadão determinada obrigação. Ao formular suas definições, Cícero e Santo Thomaz conheciam, certamente, esses étimos da palavra lei. Mas um é político; o outro, filósofo. Em conseqüência, definiram a lei segundo seus próprios pendores. Cícero viu, na lei, o mandamento selecionado; Santo Thomaz, a obrigação por ela imposta. Ambos, porém, estavam apoiados nas raízes etimológicas da palavra definida.
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2ª PARTE
A NORMA JURÍDICA: O DIREITO OBJETIVO
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CAPÍTULO V
A NORMA JURÍDICA OU NORMA DE DIREITO
§ 17. A norma AUTORIZANTE A que espécie determinada de leis éticas, pertencem as normas jurídicas? Na multidão das normas, que traço as distingue das demais? Uma qualidade notabilíssima das normas jurídicas as diferencia das normas não jurídicas. Essa qualidade, que lhes é própria, e delas exclusiva, é a que designamos pelo adjetivo autorizante. A norma jurídica é um IMPERATIVO AUTORIZANTE. Na definição da norma jurídica, o adjetivo autorizante possui sentido estricto e peculiar. A norma jurídica é autorizante porque ela autoriza quem for lesado por violação dela a empregar, pelos meios competentes, as sanções da lei, contra o violador (violador efetivo ou provável), para fazer cessar ou obstar a violação, ou para obter, do violador, reparação pelo mal que a infringência causou; ou para forçar o violador a repor as coisas no estado em que estavam antes da violação; ou, por último, nos casos de crime, para submeter o violador às penas da lei e às medidas legais de segurança social. Em suma, a norma jurídica é autorizante porque autoriza o emprego dos meios competentes, permitidos pela lei, para exigir, dos violadores dela (violadores efetivos ou prováveis), o cumprimento do que ela manda, ou a reparação do mal causado pela violação. Quando violação é crime, a norma jurídica é autorizante porque autoriza o Poder Público a aplicar penas aos delinqüentes. 43
Todas as normas são imperativas porque, de uma ou outra maneira, todas as normas são mandamentos, como explicamos no Capítulo anterior. Mas somente as normas jurídicas são autorizantes. A norma jurídica, portanto, é sempre um autorizamento, além de ser um mandamento. Este é o motivo pelo qual se diz que a norma jurídica é bilateral. De fato, por um lado, ela é um mandamento, imposto a determinadas pessoas; e, por outro lado, é um autorizamento, instituído em benefício de outras pessoas (das pessoas prejudicadas pelo descumprimento do mandamento). O autorizamento constitutivo da norma jurídica é, precisamente, o que a distingue das normas não jurídicas. Se uma norma violada for jurídica — queremos insistir —, a pessoa lesada pela infringência estará autorizada, pela própria norma violada, a exigir, pelos meios que a lei consagrou, o cumprimento dela, ou a reparação do mal sofrido, ou a reposição das coisas no estado em que estavam; ou, nos casos de crime, a cominação da pena ao delinqüente. Se a norma violada não for jurídica, ninguém terá essa autorização. Seja, por exemplo, a seguinte norma: “Praticarás a caridade”. Poderá uma pessoa estar em condições de cumprir essa norma, mas deliberadamente a viola; não pratica nenhuma caridade. Prejudicados ficarão, nesta hipótese, os que a caridade daquela pessoa beneficiaria. Mas ninguém estará autorizado a exigir o cumprimento da norma infringida. O mendigo de braço estendido, de caixinha na mão, não pode exigir a esmola que lhe foi negada. A norma violada não lhe concede autorização para exigir o cumprimento daquela norma. Não sendo autorizante, tal norma não é jurídica. Seja, agora, esta outra norma: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro contratante a pagar-lhe certo preço em dinheiro”. Se o vendedor não transferir o referido domínio, ou o comprador não pagar o referido preço, violada estará a norma citada. Nessa hipótese, o lesado, que tanto pode ser o vendedor como o comprador, ficará autorizado a exigir o cumprimento da norma infringida (a transferência do domínio, o pagamento do preço). Logo, a citada norma, diferentemente da primeira, é autorizante, é um autorizamento, e, portanto, é uma norma jurídica. Sendo autorizante, tanto são jurídicos os mandamentos de uma lei ou de um código, de uma portaria ou de uma postura, de um regulamento ou de uma resolução, como as estipulações de um contrato, de um estatuto, de um 44
regimento, de um pacto; ou como as disposições de uma decisão administrativa ou de uma sentença judicial. São jurídicas as normas escritas ou não escritas, legais ou costumeiras, contanto que sejam autorizantes, isto é, que autorizem a pessoa lesada pela violação da norma a proceder de maneira competente, para completar sua interação com quem a prejudicou. Jurídicas são as normas que autorizam a reação correspondente à ação violadora da norma. Essa reação é a que se acha devidamente autorizada por norma jurídica, e tanto pode ser o ato de “fazer justiça com as próprias mãos” (ato este permitido pelo Direito, em casos estrictos), como pode ser o pedido formal, feito em juízo. Somente são jurídicas as normas aptas a ser invocadas como fundamento válido de uma pretensão submetida ao Poder incumbido de “distribuir justiça” numa sociedade. Isto significa que somente são jurídicas as normas que autorizam alguém a submeter sua pretensão ao referido Poder. Note-se que esse Poder tanto pode ser o juiz da Comarca ou o Tribunal de Justiça dentro de um Estado, como pode ser o cacique dentro de uma comunidade indígena. No nível do Estado, com Poder Judiciário organizado, somente são jurídicas aquelas normas que forem aptas a servir de fundamento válido para um pedido em juízo. Isto significa que somente são jurídicas aquelas normas que autorizam tal pedido (que autorizam a parte, autor ou réu, a requerer em juízo). Adiante, no § 38, veremos que a norma verdadeiramente jurídica, no completo sentido deste termo, há de ser, não apenas autorizante, mas, também, harmonizada com a ordenação ética vigente. Observe-se, porém, que a norma harmonizada com a ordenação ética vigente não será jurídica se não for autorizante. § 18. Autorizamento e autorização Na terminologia que aqui está sendo empregada: a) a palavra autorizamento designa a autorização enquanto qualidade da entidade autorizante, isto é, enquanto qualidade da norma jurídica; b) a palavra autorização designa a autorização enquanto aptidão da entidade que a recebeu, isto é, enquanto aptidão do lesado pela violação da norma jurídica. Designa um direito do lesado: um direito especial, que é o direito do lesado de reagir contra quem o lesou. 45
O autorizamento é da norma. A autorização é do lesado. Em virtude do autorizamento das normas jurídicas, o lesado pode, com autorização jurídica, completar sua interação com quem o prejudicou. Após a ação violadora da norma, a própria norma autoriza a reação correspondente. O autorizamento da norma é causa da autorização de que o lesado é titular. § 19. Normas não autorizantes Norma nenhuma é jurídica se não for autorizante. A norma não autorizante não é jurídica, porque, quando violada, ninguém estará autorizado, por ela, a exigir o seu cumprimento. Conseqüentemente, não são jurídicas normas como, por exemplo, os mandamentos puramente religiosos, as imposições da moral individual, os imperativos das obrigações naturais, as normas de boas maneiras e de boa educação, as da moda e do folclore. Todas estas normas são imperativas, porque indicam como deve o homem agir, mas não são autorizantes, no sentido técnico desta palavra. Em conseqüência, não possuem a qualidade necessária para serem normas jurídicas. Por não autorizarem ninguém a exigir o seu cumprimento, ou a exigir a reparação do mal causado pela violação, não são jurídicas normas como as seguintes: “Amarás teu próximo como a ti mesmo”; “Se alguém te ferir na tua face direita, apresenta-lhe a outra face, para que também a possa ferir”; “Ao que te tirar a túnica, cede-lhe também a capa”. Pela mesma razão, não são jurídicas as normas fundamentais do Direito Natural escolástico: “O bem deve ser feito e o mal evitado”; “O homem deve preservar o seu ser”; “O homem deve unir-se a uma mulher, procriar e educar seus filhos”; “O homem deve procurar a verdade e praticar a justiça”. Normas como estas, altíssimos princípios da moralidade, não são normas jurídicas, não são normas de direito, porque não são normas autorizantes. Foram chamadas normas de Direito Natural, mas este nome lhes foi dado por engano, num tempo em que não se sabia ainda distinguir entre as normas jurídicas e as normas não jurídicas. E se, até hoje, há quem assim as denomina, é certamente pelo desejo de prestigiá-las e de vê-las vigorantes, muito mais do que por uma razão científica. Também não são verdadeiramente jurídicos, certos preceitos que se apresentam com todas as aparências das normas jurídicas, mas que não têm 46
a natureza delas, por não serem autorizantes. Assim, não são normas jurídicas, certos preceitos, às vezes excelsos, incluídos nas leis e nas Constituições, mas que, se não forem obedecidos, não autorizam ninguém a exigir, judicialmente, o seu cumprimento. É o que acontece, por exemplo, com os seguintes preceitos: “Todo o poder emana do Povo e em seu nome é exercido” (Constituições de 1934, art. 2º; de 1937, art. 1º; de 1946, art. 1º; de 1967, art. 1º; de 1969, art. 1º; de 1988, art. 1º, parágrafo único, em redação defeituosa); “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (Constituição vigente, art. 170); “A valorização do trabalho, como condição da dignidade humana”: princípio básico da ordem econômica e social (Constituição de 1969, art. 160, II); É direito do trabalhador urbano e rural receber um salário mínimo, fixado em lei, “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social” (Constituição vigente, art. 7º, IV; Consolidação das Leis do Trabalho, art. 76); “O Poder Executivo elaborará Planos Nacionais de Desenvolvimento” (Ato Complementar n. 43, de 29-1-1969, e Ato Complementar n. 76, de 21-10-1969). Preceitos como os que acabam de ser citados constituem proclamações de princípios, expressões ideológicas, declarações programáticas. São, muitas vezes, declarações de compromissos, de metas que se quer alcançar. Mas não são autênticas normas jurídicas, porque não são autorizantes. Por acaso, poderá o trabalhador ir a juízo, fundado no citado art. 76 da Consolidação das Leis do Trabalho e no citado art. 7º, IV, da Constituição, para reclamar um salário capaz de “satisfazer suas necessidades normais de moradia, de alimentação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”? Poderá, por acaso, alguém ir a juízo para exigir que “o poder emane do povo e em seu nome seja exercido”? Ou para exigir que o Poder Executivo elabore Planos Nacionais de Desenvolvimento? De fato, tais preceitos, não sendo autorizantes, não podem ser tidos como autênticas normas jurídicas. Mas convém notar que sua colocação na Constituição e sua aparência jurídica lhes confere solenidade, dando-lhes o valor de promessas de honra, feitas pelo Poder Público, perante a coletividade. Não sendo honrados, ninguém ficará com meios de exigir, judicialmente, seu cumprimento, mas todos poderão ir à rua ou à mídia para reclamar seu cumprimento (até por meio de “mandados de injunção”...). Poderão repudiar os governantes que não os respeitam ou que, ao menos, não se empenham para torná-los eficazes. Poderão votar contra eles. 47
Não parece descabido lembrar que esses preceitos, embora não sejam propriamente jurídicos, não deixam de matizar com tonalidades jurídicas movimentos populares e, quem sabe, tentativas judiciais ousadas, para procurar obter aquilo que eles preconizam. Diz Vicente Ráo: “As declarações programáticas, que só enunciam princípios gerais e são particularmente usados nas constituições e leis políticas, não contêm, em si, a força de sua obrigatoriedade: obrigatórias só se tornam quando uma disposição concreta de lei as aplica; valem, no entanto, como diretrizes, a inspirar os intérpretes, na aplicação dos textos, os quais, com as mesmas declarações, formam um só todo, isto é, a unidade da constituição, ou do código, ou da lei” (O Direito e a Vida dos Direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, 1º vol., t. I, Título III, Capítulo IX, n. 206). § 20. Normas jurídicas de autorizamento não patente A qualidade autorizante de certas normas jurídicas não é patente. É o que acontece com as leis definidoras e as leis supletivas. Seja, por exemplo, a norma definidora do art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil: “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (ver § 18). À primeira vista, esta norma definidora — ela define o ato jurídico perfeito — não parece autorizante. Entretanto, ela o é, incontestavelmente, como passamos a demonstrar. Se um ato já consumado — já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou — não for reputado perfeito; se, a esse ato, alguém negar os efeitos legais do ato jurídico perfeito, o eventual lesado, por tal negação, estará autorizado, pela própria norma citada, a invocar em sua defesa a definição legal do ato perfeito, para reconhecimento dos efeitos mencionados. Por outro lado, se alguém quiser atribuir os efeitos legais do ato jurídico perfeito a qualquer ato não consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, o eventual lesado, por essa atribuição, estará também autorizado, pela mesma norma, a invocar a referida definição legal, para negar os mencionados efeitos. Em qualquer caso, como se vê, a norma definidora do art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, é norma autorizante. Por este motivo, precisamente, ela é jurídica. Algo de análogo sucede com a norma supletiva. 48
Seja, por exemplo, a norma supletiva do art. 406 do Código Civil: “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. Esta norma definidora — ela define a taxa dos juros moratórios —, como a anterior, não parece autorizante. Mas ela o é, sem dúvida nenhuma, como passamos a demonstrar. Se a taxa dos juros moratórios não estiver convencionada, e o credor a fixar acima da taxa prevista em lei, o devedor em mora estará autorizado, pela própria norma citada, a invocar, em sua defesa, a determinação da citada norma supletiva, para somente pagar os juros da lei. Por outro lado, não havendo convenção sobre a taxa de juros moratórios, se o devedor em mora, fundado nessa falta, não quiser pagar os juros, ou quiser pagá-los à taxa inferior à prevista na lei, o credor estará autorizado, pela mesma norma, a invocar a referida determinação legal, para cobrar os juros permitidos pela lei. Em qualquer caso, como se vê, a norma supletiva do art. 406 do Código Civil é norma autorizante. Por este motivo, precisamente, ela é jurídica. § 21. As permissões concedidas por meio de normas jurídicas Toda norma jurídica é um autorizamento, como sabemos. Mas, além das autorizações dadas aos lesados, após violação de norma jurídica, além desses direitos especiais de reação, outras permissões inúmeras são também concedidas, por meio das normas jurídicas, às pessoas em geral, independente de qualquer violação. Estas permissões, assim concedidas, são os direitos das pessoas em convívio na sociedade. São os chamados Direitos Subjetivos. Os Direitos Subjetivos são permissões dadas por meio de normas jurídicas, como explicaremos longamente, na 3ª Parte deste livro. Quem tiver permissão dada por meio de norma jurídica, para fazer ou não fazer alguma coisa, para ter ou não ter alguma coisa, possui o direito de fazê-la ou não fazê-la, de tê-la ou não tê-la. Quem não tiver tal permissão, não possui esse direito — embora possa ter a faculdade humana de fazê-la ou não fazê-la, de tê-la ou não tê-la. São inúmeras as permissões e autorizações jurídicas — os Direitos Subjetivos — de que fazemos uso, continuamente, no simples exercício da 49
vida. Poder-se-ia quase dizer que, para o ser humano, viver é usar Direitos Subjetivos. Por exemplo, são Direitos Subjetivos, as permissões legais de ter domicílio inviolável, de casar, de exercer profissão, de receber salário, de usar os meios de transporte coletivo, de vender o que é seu e de comprar o que estiver à venda; de usar, gozar e dispor da propriedade. É evidente que também são Direitos Subjetivos as autorizações decorrentes do autorizamento das normas jurídicas, que estudamos nos §§ 17 e 18. Do que se acaba de explicar, conclui-se que a norma jurídica é uma norma permissiva. Ela é, de fato, permissiva autorizante. É permissiva, porque dela decorrem todos os nossos direitos, nossas permissões jurídicas, ou seja, todos os Direitos Subjetivos. E é autorizante, também, porque ela é que autoriza a reação do lesado pela violação dela própria, isto é, a reação de quem foi impedido de usar algum Direito Subjetivo. § 22. A sociedade: a verdadeira concessora dos autorizamentos Sobre a qualidade autorizante da norma jurídica, uma última observação precisa ser feita. Em rigor, a sociedade é que é autorizante. Aqui empregamos o termo sociedade para designar tanto a coletividade toda como, também, os inúmeros grupos sociais de que a sociedade global é composta. É óbvio que a sociedade e os grupos sociais existem para servir seus integrantes. Os seres humanos vivem em sociedade e em grupos sociais a fim de atingir seus objetivos, ou deles se aproximar. Para poder servir-se da sociedade e dos grupos sociais a que pertence, cada pessoa está autorizada a exigir do próximo certas ações e certas abstenções, em seu próprio benefício. Mas isto importa na obrigação, a que se acha sujeito cada pessoa, de praticar certas ações e de abster-se de outras, em benefício de seus semelhantes. Numa sociedade, certas exigências e certas proibições serão sempre permitidas. Isto decorre da função instrumental das sociedades humanas. Essas exigências e proibições implicam interações necessárias ou úteis. Necessárias ou úteis, em verdade, porque constituem a condição para que a sociedade seja, efetivamente, uma comunidade, e, assim, atinja os fins para os quais se constituiu. 50
Pelo simples fato de existir, a sociedade impõe essas interações. As finalidades da sociedade ou dos grupos sociais não seriam alcançadas se as mencionadas exigências e proibições não fossem permitidas. Tais exigências e proibições se exprimem em normas jurídicas. Por configurarem as interações tidas como necessárias, ou úteis, o que se quer é que as normas jurídicas sejam cumpridas. Não pode interessar ao ser humano, a violação livre de tais normas. Pois, uma tal violação, se consentida como prática normal e permanente, significaria a destruição das instituições, o desmoronamento das estruturas sociais, o desmantelo das comunidades. E o ser humano ver-se-ia privado de sua primeira condição de sobrevivência, de seus mais preciosos instrumentos existenciais, ou seja, da sociedade organizada, dos grupos sociais estruturados, sem os quais ele não se consegue manter, ou não consegue atingir seus objetivos. Então, para assegurar a permanência e a eficácia das instituições, a sociedade e os grupos sociais outorgam, a todos quantos forem lesados pela violação das normas jurídicas, o poder de exigir o cumprimento delas ou a reparação do dano causado pela infringência. Isto significa, na prática, que a violação das normas jurídicas tem como conseqüência uma autorização, que é dada pela comunidade aos que a violação prejudicou. Essa autorização é conseqüência natural da convicção generalizada de que ninguém pode ser obrigado a se conformar com os efeitos da violação de uma norma jurídica. Ninguém pode ser obrigado a permanecer sofrendo os efeitos da ação ilícita de outrem; a sujeitar-se a uma situação prejudicial, imposta em desobediência ao que manda a norma jurídica. Se a norma violada é jurídica, a pessoa que foi lesada pela infringência da norma tem autorização para defender o que é seu, ou seja, tem autorização para compelir o violador da norma a cumpri-la, ou a reparar o dano causado pela violação. Tal autorização, em suma, é a permissão ou o poder, outorgado pela sociedade, por meio da norma jurídica, de fazer uso de sanções e do expediente da coação. Em rigor, a coletividade é que é autorizante, porque ela é a entidade concessora, a entidade que concede a referida autorização. Mas esta autorização não se verifica quando a norma violada não é jurídica. É uma autorização de tal maneira associada à norma jurídica, que uma não existe sem a outra. Precisamente por ser jurídica, a violação da norma acarreta essa autorização. E essa autorização é concedida precisamente porque a norma é jurídica. 51
Se se diz que a norma é autorizante — quando, fundamentalmente, a coletividade é que o é —, nada mais se faz do que simplificar a linguagem. Em verdade, esta simplificação não falseia coisa nenhuma, porque nada desaconselha que a própria norma seja considerada autorizante, já que ela exprime (ou deve exprimir) a vontade da coletividade. Pelo simples fato de existirem e estarem vigentes, as normas jurídicas manifestam essa vontade social. Manifestam, antes de tudo, os mandamentos que, por elas, se exprimem; e manifestam, também, embora tacitamente, a advertência de que, se violadas, os lesados estarão autorizados, pela coletividade, a exigir o seu cumprimento ou a reparação do mal causado pela violação. Essa advertência é tácita, sim, em cada norma jurídica, mas está expressa, com todas as letras, na própria Constituição, em seu capítulo sobre direitos e garantias individuais: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito individual” (art. 5º, XXXV). Expressa também estava no art. 75 do Código Civil de 1916, segundo o qual “A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura”. Aliás, na contínua luta pelo direito, a norma jurídica é sempre considerada como norma autorizante. O lesado, ao intentar ação para defender o que julga ser seu, começa por invocar uma norma jurídica — aquela norma em que seu interesse se funda, e que, por ter sido violada, o autoriza a reagir contra quem a infringiu. Sendo autorizante, toda norma jurídica é um autorizamento. § 23. A norma jurídica não é “atributiva” É comum dizer-se, depois de Leon Petrazicki, que a norma jurídica é norma atributiva. Segundo essa teoria, a atributividade, que seria a diferença específica da norma jurídica, constituiria a qualidade dessa norma de atribuir a quem seria lesado pela violação da mesma, a faculdade de exigir o cumprimento dela, ou a de exigir, do violador, a competente reparação pelo mal a que a infringência deu causa. A teoria da atributividade representou um grande progresso na descoberta da natureza da norma jurídica. Ela revelou uma realidade bem simples, mas muito importante: a realidade de que a coação, exercida sobre o violador da norma, não era uma propriedade da norma jurídica, mas, sim, o ato praticado por quem a violação da norma lesou. 52
Com isto, a teoria da atributividade pôs por terra velhas e arraigadas convicções, como a de que a norma jurídica se define norma coativa, e a de que a coação e a coatividade pertencem à própria natureza dessa norma, constituindo seus característicos distintivos e específicos, as notas que a diferenciam da norma não jurídica, ou seja, da norma destituída de coação e de coatividade. Acontece, porém, que uma análise percuciente demonstrou não ser possível, também, aceitar a tese da atributividade das normas jurídicas*. Estas normas, de certo, não são coativas, como demonstraremos nos Capítulos V e IX, mas, igualmente, não são atributivas. A norma jurídica não é atributiva por dois motivos essenciais. Não é atributiva, primeiro, porque a norma jurídica não atribui a ninguém a faculdade de coagir, uma vez que ela própria não possui essa faculdade. De fato, a norma jurídica não tem, ela própria, a possibilidade de coagir quem quer que seja. Ora, nenhuma entidade pode dar o que não tem: “Nemo dare potest plus quam habet”, reza o velho adágio. Logo, a norma jurídica não pode atribuir a ninguém uma faculdade que ela não possui. Em segundo lugar, a norma jurídica não é atributiva porque a faculdade de coagir não é atribuída ao lesado, uma vez que tal faculdade pertence ao lesado por natureza. As faculdades humanas são potências próprias do homem, como a faculdade de voar é potência própria do pássaro. A faculdade dos homens de se coagirem uns aos outros é faculdade natural deles, independente de quaisquer normas, faculdade que não decorre do Direito, como é óbvio e como se vai ver no Capítulo IX. A norma jurídica não atribui ao credor, por exemplo, a faculdade de exigir o que lhe é devido. Tal faculdade, o credor a possui, com ou sem norma jurídica. É uma faculdade natural do ser humano. A norma jurídica se limita a autorizar o credor a fazer uso dessa faculdade; autoriza-o a exigir, pelos meios e formas legais, o pagamento do devido. Autoriza-o, até mesmo, a exercer coação sobre o devedor, para deste obter aquilo a que o credor tem direito. E essa coação, quando assim autorizada, é coação a serviço do Direito. É ato lícito, como veremos no § 34. Note-se que ela seria ato ilícito se o credor a praticasse sem estar autorizado por norma jurídica. Depreende-se, do que se acaba de demonstrar, que a norma jurídica não atribui faculdade nenhuma. O que lhe é próprio é exprimir uma autori* Veja meu livro O Direito Quântico, Capítulo VII.
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zação dada pela sociedade. A norma jurídica é o instrumento pelo qual o lesado, para os fins legais, fica autorizado a exercer sua faculdade de exigir e de coagir. A norma jurídica não é atributiva. Ela é autorizante.
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CAPÍTULO VI
A NORMA PENAL
§ 24. Um caso especial: a norma jurídica penal Carecem de elucidação particular as normas jurídicas penais. Estas normas são enunciados de crimes, contravenções e penas. Exemplo de norma jurídica penal: “Matar alguém: Pena — reclusão, de seis a vinte anos” (Código Penal, art. 121 — Crime de homicídio simples). Outro exemplo: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena — reclusão, de um a quatro anos, e multa” (Código Penal, art. 155 — Crime de furto). Mais um exemplo: “Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena — detenção, de seis meses a dois anos, e multa” (Código Penal, art. 138 — Crime de calúnia). Último exemplo: É circunstância que sempre atenua a pena ter o agente “cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral” (Código Penal, art. 65). Cumpre observar que, na ordem jurídica e na Ciência do Direito, só são crimes as ações tidas como crimes pela lei penal; só são penas as sanções que a lei comina. É o que preceitua a Constituição em seu art. 5º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O mesmo princípio, em idênticos termos, se acha consagrado no art. 1º do Código Penal. 55
A Lei de Introdução ao Código Penal, em seu art. 1º, prescreve: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”. Em razão de tais disposições, não basta a agressão contra pessoa ou a ofensa a direito de alguém para que o ato seja um crime. Para que um atentado seja crime, é preciso que o ato seja tido como crime pelas leis penais, e que seja objeto de alguma das penas que as mesmas leis cominam. A proclamação inaugural destes princípios se verificou na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, famoso documento que encimou a Constituição da França de 1789, promulgada logo após a vitória da Grande Revolução liberal. Reza tal Declaração, em seu art. 7º: “Ninguém pode ser acusado, detido ou seqüestrado, senão nos casos determinados pela lei e segundo as formas que ela estabeleceu”. E em seu art. 8º: “Ninguém pode ser punido, a não ser em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada”. Em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas, a chamada ONU — à qual o Brasil pertence —, aprovou a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, cujo art. XI ratificou, nos seguintes termos, o consagrado princípio: “Ninguém será condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, já não eram tidos como delituosos segundo o direito nacional ou internacional. Também, não será nunca imposta penalidade mais grave do que a cominável no momento em que o delito foi cometido”. Esses princípios se acham sintetizados no clássico adágio: “Nullum crimen, nulla poena sine lege”. É evidente que a consagração legal de tais proposições visa impedir o arbítrio do Poder Público no exercício de sua missão de perseguir e punir os acusados da prática de delitos. Visa obstar a aplicação de pena discricionária a quem não tenha sido indiciado, denunciado, processado e condenado, na forma da lei. São disposições que asseguram a presunção de inocência até sentença judicial contrária, passada em julgado. Note-se que tal presunção persiste até mesmo em certos casos de atentados flagrantes, porque a ilicitude da violência pode ser eventualmente negada pelo juiz, em obediência a prescrições da própria lei. 56
De fato, o Código Penal dispõe: “Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato: I — em estado de necessidade*; II — em legítima defesa; III — em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Na mesma linha de considerações, devemos lembrar os casos de crimes em que a pena é inimputável, por disposição, também, da própria lei. O primeiro caso é o do art. 26 do Código Penal: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Outro caso de crimes com penas inimputáveis é o do art. 27 do mesmo Código: “Os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”. É evidente que este artigo se acha redigido incorretamente. O que ele realmente significa é que nenhuma pena é imputável a menores de dezoito anos, que ficarão sujeitos ... etc. Finalmente, notemos que as leis penais, em seu texto verbal e explícito, não exprimem nenhum mandamento, não impõem nenhuma proibição, como claramente se vê nos exemplos atrás citados. De fato, nenhuma lei proíbe matar, furtar, caluniar, portar arma … Nenhuma lei proíbe, expressamente, o crime e a contravenção. Tomadas ao pé da letra, as leis penais são insusceptíveis de ser violadas. O crime e a contravenção não as violam: tais atos são a prática dos atos que elas simplesmente nomeiam. Ocorre que, a cada tipo de crime — como sabemos —, a lei comina uma pena. É como se a lei dissesse: Você pode cometer ou não cometer o crime nomeado na lei; mas se o cometer, você poderá ficar sujeito à pena cominada na mesma lei. É evidente que a menção legal das penas, correspondentes aos crimes e às contravenções, significa que aqueles atos, considerados como delitos, acarretam, para seus autores, males e prejuízos, cujo simples conhecimento denota o repúdio social a tais atentados. * Código Penal, art. 24: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigirse”.
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Esse repúdio, evidenciado pela menção das penas comináveis aos delinqüentes, há de ser interpretado como proibição da prática de crimes e contravenções. Tal proibição, não explicitada na lei penal, se acha implícita, inerente, nas expressões da própria lei. Em verdade, na lei que comina pena, está subentendida a norma que proíbe o crime e a contravenção. Cominar pena implica proibir o ato a que a pena se refere. Devemos mesmo dizer que a norma subentendida da proibição é, de fato, o pressuposto necessário e a razão-de-ser da norma penal. Ambas são partes estruturais de um só todo, uma só norma. Violar a norma subentendida — a norma que proíbe o crime (aliás, a única susceptível de ser violada) — é, de fato, violar o conjunto normativo penal; é violar a norma penal, tomada como uma só estrutura. Violável e autorizante — assim se apresenta a norma penal, como todas as normas jurídicas. Mas, note-se, a norma penal só é autorizante devido à norma não explícita, não expressa nas palavras da lei; à norma subjacente e apenas subentendida — porém verdadeiramente integrante da norma penal, tomada em sua totalidade. Mas — atenção! — o autorizamento da norma penal é permissão dada à sociedade. Sim, à sociedade, porque a sociedade também se sente lesada; também se acha agredida pelo crime ou pela contravenção. Todo delito é sempre tido como atentado à ordem social, e a sociedade é sempre considerada vítima dele. Por força da norma penal, nos casos de crime ou contravenção, a sociedade fica autorizada (e obrigada) a promover, por meio da Polícia, do Ministério Público (dos promotores públicos) e do Poder Judiciário, as investigações, os inquéritos e as ações competentes, para impor, afinal, as sanções (as penas) correspondentes às infrações cometidas. Como última observação, lembremos que as leis são elaboradas pelos representantes da própria sociedade, nas Câmaras do Poder Legislativo. Assim, em verdade, o autorizamento da lei penal é permissão concedida pela sociedade a si própria, para a perseguição dos criminosos e contraventores.
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CAPÍTULO VII
A IMPERATIVIDADE JURÍDICA
§ 25. A imperatividade da norma jurídica Por ser norma, a norma jurídica é um mandamento. Ela é, por força, um imperativo, ou seja, o enunciado de um dever (veja §§ 8 a 10). A norma jurídica não é descritiva de um comportamento efetivamente mantido, ou de um estado de coisas efetivamente existente. Ela é, isto sim, a fórmula do comportamento que deve ser mantido, em determinada circunstância, ou o modelo de um almejado estado de coisas. Ela é uma indicação de caminho, e não o relato do caminho percorrido. Ela não descreve o que é, mas o que deve ser. Ela não é norma do ser, mas do dever-ser. Em conseqüência, a norma jurídica há de ser sempre interpretada à luz do que ela é por natureza, e não pode ser tida, em nenhum caso, como descrição de um fato efetivamente verificado, numa dada circunstância. Há, sem dúvida, normas jurídicas que tomam a forma de descrições. Mas, quando isto ocorre, a norma jurídica estará descrevendo o comportamento ou o estado como ele deve ser, independente do que efetivamente é. Às vezes, sim, a norma jurídica se apresenta com uma forma descritiva. Mas será descritiva do mundo do dever-ser, uma vez que é este o mundo a que a norma jurídica pertence. Korkounov disse: “Acontece, às vezes, que o legislador empregue a forma descritiva em lugar da forma imperativa: em vez de dizer, por exemplo, que tal pessoa ‘deve fazer’ isto, diz que ‘o faz’” (...) É o que sucede, por exemplo, quando a lei, ao descrever o funcionalismo e a organização 59
das instituições e dos serviços do Estado, diz que esses serviços têm, a governá-los, tais e quais pessoas, e que possuem tal e qual organização. Isto significa, efetivamente, que ‘deve haver’, no governo, tais e quais pessoas, tal e qual organização, determinada pela lei. A substituição da forma imperativa pela forma descritiva se explica simplesmente, por uma comodidade maior de expressão ou pela brevidade que se tenha querido dar à frase; às vezes, também, pelo desejo de imprimir, ao dispositivo da lei, um caráter mais absoluto. A forma imperativa, com efeito, faz supor a possibilidade de uma realidade que não corresponderia ao que ‘deve ser’; a forma descritiva, pelo contrário, que expõe o que deve ser como o que já ‘é existente’, exclui até a idéia de uma realidade diferente daquela que é formulada na lei” (Curso de Teoria Geral do Direito, tradução francesa, Paris, V. Giard & E. Brière, 1903, Liv. II, Capítulo I, § 23). Considere-se, por exemplo, a seguinte norma jurídica: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (Constituição, art. 1º). Não se pense que esse artigo da Constituição seja uma simples descrição de uma realidade brasileira. À luz de sua natureza, o citado artigo exprime dois claros mandamentos. O primeiro é dirigido ao Governo da Nação. O artigo manda que os governantes e legisladores, responsáveis pela organização nacional, mantenham, como forma de Governo, a República Federativa, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal; e assegurem, como regime político, o Estado Democrático de Direito. A forma republicana de Estado, a Federação, a união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, o regime do Estado de Direito Democrático não são simples objetos, que o artigo constitucional se limita a mencionar. São, isto sim, aquilo que a norma jurídica manda conservar, por meio das disposições, medidas e providências que forem necessárias para esse fim. O segundo mandamento, contido implicitamente no mesmo artigo da Constituição, é dirigido a todos — tanto aos governantes como aos governados —, e constitui uma soberana proibição. O artigo proíbe qualquer ato ou disposição que atente contra a integridade da Nação, contra a forma republicana e federativa do Estado, e contra o regime do Estado de Direito Democrático — que são ideais políticos que a Nação adotou, por intermédio de seus delegados, reunidos em Congresso Constituinte. 60
Seja outro exemplo de norma jurídica com aparência descritiva: “Todos são iguais perante a lei” (Constituição, art. 5º). Que significará ela? Significará, por acaso, que todos sejam iguais perante a lei? Os que não meditaram sobre a natureza das normas jurídicas invocam freqüentemente normas como a que acaba de ser citada, para concluir que o Direito de nada vale, porque desconhece a realidade, e se funda sobre meras ficções. Quem aceitaria, como verdade, a afirmação de que todas as pessoas sejam iguais umas às outras? Acontece, porém, que a proposição “Todos são iguais perante a lei”, quando promovida a norma jurídica, não significa que todos, na realidade da vida, sejam iguais perante a lei, mas, sim, que a lei deve ser a mesma para todos que estiverem nas situações para as quais a lei foi feita. A norma jurídica citada não é um relato, uma simples descrição. Ela é uma ordem. Ela ordena, para os efeitos da lei, que todas as pessoas, por mais diferentes em suas respectivas condições de vida, recebam tratamento igual, quando estejam em situação igual. Ela ordena aos responsáveis pela aplicação das leis que dispensem tratamento igual às pessoas que estejam em igualdade de situação. Pode acontecer que, em poucos ou em muitos casos, essa ordem não seja cumprida. Mas a simples existência da referida norma proporciona, aos que forem lesados por tratamento desigual, os meios apropriados para a luta contra a disparidade que os prejudicou. Embora apresentem forma simplesmente descritiva, os dois artigos citados têm missão jurídica. Em verdade, eles são, dentro da Constituição, normas de direito. Conseqüentemente, são mandamentos. Se fossem entendidos de outra maneira — se fossem interpretados como normas sem caráter imperativo —, eles perderiam sua razão de ser, dentro da ordenação constitucional do Estado. Decairiam de sua classe de norma jurídica. Se se quiser que os artigos mantenham o sentido que lhes foi dado pelo legislador constituinte, e se imponham como normas jurídicas, as citadas normas hão de receber interpretação condizente com sua natureza imperativa. Giorgio del Vecchio disse: “O modo indicativo não existe para o Direito, e quando é usado nos Códigos tem realmente um significado imperativo. Também estão fora absolutamente do campo do Direito, os conselhos 61
e as simples exortações; em geral, todas as formas atenuadas de imposição não têm caráter jurídico”. “Acontece que encontramos, com freqüência, especialmente nas legislações antigas, enunciados de fatos e opiniões que não têm natureza imperativa. Mas isto não nos deve levar a erro: tais enunciados, embora contidos materialmente em textos legislativos, não têm caráter jurídico.” (...) “sem conteúdo imperativo, (...) não têm significado, não pertencem propriamente ao Direito” (Filosofia do Direito, 3ª ed. espanhola, Barcelona, Bosch, 1942, Parte Sistemática, Seção 1ª — O Direito em Sentido Objetivo, p. 300 e 301). Imperativas, sim, são as normas jurídicas. Mas cumpre esclarecer, para evitar equívocos, que essa imperatividade não se apresenta como ordenação inexorável. A norma jurídica não é o mandamento do que se fará inexoravelmente, mas do que deve ser feito, isto é, do que deve ser feito para a consecução de um objetivo jurídico almejado. Se o que deve ser feito não for feito, o objetivo jurídico almejado não será conseguido. Assim, a imperatividade das normas jurídicas assume, antes de tudo, um caráter indicativo, informativo, didático, sobre o que deve ser feito, para a consecução de almejados objetivos — como verificaremos, com minudência, nos §§ 34 e 63. § 26. As formas da imperatividade As normas jurídicas mandam, proíbem ou permitem. É evidente que as normas que proíbem ou permitem são, também, normas que mandam. As que proíbem mandam não fazer. E as que permitem mandam não impedir que se faça. a) Exemplos de normas jurídicas que mandam: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem” (Código Civil, art. 112). “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (Código Civil, art. 186). “O saldo será pago em dez prestações iguais e mensais, com vencimentos no dia cinco de cada mês, a partir de janeiro próximo futuro” (cláusula de um contrato de venda e compra). “A assembléia dos acionistas fixará, anualmente, a remuneração dos membros da Diretoria” (cláusula de um estatuto de sociedade). 62
b) Exemplos de normas jurídicas que proíbem: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” e “cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” (Constituição, art. 150, I e III, b). “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Constituição, art. 5º, XXXV). “Não podem casar os ascendentes com os descendentes” (Código Civil, art. 1.521, I). “Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis” (Código Civil, art. 1.647, I). “Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança” (isto é, não poderá dispor de mais da metade da herança — Código Civil, art. 1.789). “O contrato de trabalho por prazo determinado não poderá ser estipulado por mais de dois anos” (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 445). “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentem contra a Constituição Federal” (Constituição, art. 85). “Matar alguém: Pena — reclusão, de seis a vinte anos” (Código Penal, art. 121). c) Exemplos de normas jurídicas que permitem: “É livre a manifestação do pensamento” (Constituição, art. 5º, IV). “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (Código Civil, art. 1.639). “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização da propriedade vizinha” (Código Civil, art. 1.277). “O devedor, que paga, tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada” (Código Civil, art. 319). “Qualquer que seja o valor do negócio jurídico, a prova testemunhal é admissível (é permitida) como subsidiária ou complementar da prova por escrito” (Código Civil, art. 227, parágrafo único). “Após pagamento integral do preço, poderá o comprador indicar a pessoa a quem deve ser outorgada a escritura definitiva de venda e compra” (cláusula de um contrato de compromisso de venda e compra). 63
d) Muitas normas jurídicas mandam e proíbem, ou permitem e proíbem, concomitantemente. Mandam ou permitem de um lado e proíbem de outro. São exemplos típicos de normas que mandam e proíbem concomitantemente as normas que fixam competências. Fixar as competências de uma entidade é negar iguais competências de outras entidades. Se assim não fosse, não haveria razão de se fixar as competências. Seja, por exemplo, a seguinte norma: “Compete à União: (...) declarar a guerra e celebrar a paz; (...) permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional; (...) emitir moeda; (...) conceder anistia” (Constituição, art. 21). Esta norma, evidentemente, manda e proíbe. Manda que a União, nos casos da lei, pratique os atos nela arrolados. E proíbe que os Estados e os Municípios pratiquem esses mesmos atos, uma vez que a norma não confere essa competência aos Estados e Municípios. Seja outro exemplo: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (Constituição, art. 49, I). Esta norma jurídica manda que o Congresso Nacional resolva definitivamente sobre as matérias que ela menciona. Em conseqüência, proíbe que, sobre tais matérias, o Presidente da República resolva sem audiência do Congresso. Ainda um exemplo de norma que manda e proíbe concomitantemente: “É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária” (Código Civil, art. 1.200). Esta norma, que manda considerar justa a posse não violenta, não clandestina e não precária, proíbe que tal posse, precisamente por ser considerada justa, seja turbada, ou que o posseiro seja esbulhado, isto é, seja despojado do objeto possuído. Aliás, a norma citada se completa pela seguinte: “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado” (Código Civil, art. 1.210). Mais um exemplo: “O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente” (Código Civil, art. 308). Esta norma, que manda o devedor pagar ao credor, ou a quem o represente, proíbe, a quem não for o credor, ou não o represente, de receber o pagamento devido. A proibição é confirmada pela seguinte norma: “Todo 64
aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir” (Código Civil, art. 876). e) Outras normas permitem e proíbem, ou proíbem e permitem, concomitantemente. Seja a seguinte norma que permite e proíbe: “É livre a manifestação do pensamento” (Constituição, art. 5º, IV). Esta norma, que permite a manifestação de pensamento, proíbe que o Poder Público impeça tais manifestações. Outro exemplo de norma que permite e proíbe: “É plena a liberdade de associação para fins lícitos” (Constituição, art. 5º, XVII). A permissão dada por esta norma implica a proibição feita ao Poder Público de tolher a liberdade de associação para fins lícitos. Mais um exemplo: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (Código Civil, art. 1.228). As permissões, que esta norma dá ao proprietário, implicam, evidentemente, a proibição, imposta a todos, de impedir o proprietário de usá-las. Seja, agora, o seguinte exemplo de norma que proíbe e permite: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Constituição, art. 5º, II). Esta norma (que é o primeiro princípio da ordenação jurídica) exprime uma proibição. Mas ela redunda na seguinte permissão: Todos podem fazer o que a lei não proíbe, ou não fazer o que a lei não manda fazer. Isto é: O Direito permite o que o Direito não proíbe. Mais um exemplo do mesmo tipo de norma: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Constituição, art. 5º, XXXV). Esta norma proíbe o Poder Público de impedir a manifestação do Poder Judiciário sobre qualquer lesão ou ameaça a direito individual. Conseqüentemente, ela permite que qualquer ato lesivo ou ameaça ao direito de uma pessoa seja submetido ao julgamento do Poder Judiciário. Ainda um exemplo: “Não se pode repetir (pedir devolução) o que se pagou para solver dívida prescrita” (Código Civil, art. 882). Dívida prescrita é dívida que caducou por decurso do tempo fixado na lei, e dentro das condições que a lei estabelece. Juridicamente, o pagamento de dívida prescrita não é exigível. Mas, de acordo com a norma citada, 65
quem paga dívida prescrita não pode alegar que pagou o que não devia, e pedir restituição do que pagou. A norma impõe essa proibição, mas, concomitantemente, confere ao credor a permissão de conservar o que lhe foi pago, para saldar dívida embora prescrita. Um último exemplo: “É anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante” (Código Civil, art. 533, II). Sendo anulável, a referida troca está proibida pela norma citada. Tal proibição redunda na permissão, concedida aos descendentes cujo consentimento não foi obtido, de obter judicialmente a anulação da transação irregularmente efetuada. § 27. Casos de imperatividade não explícita Em muitos casos, a imperatividade da norma jurídica não é explícita, não se acha expressa em palavras, não se revela claramente. Mas, nestes casos, também, a imperatividade existe forçosamente, e se encontra ínsita na norma. Encontra-se na proibição de negar o que na norma está disposto, ou na proibição de impedir o que a norma permite. Seja, por exemplo, a seguinte norma jurídica: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (Código Civil, art. 1º). Esta norma é, em verdade, a declaração de que todos os seres humanos são pessoas. De fato, para o Direito, pessoa é o ente (ou entidade) capaz de direitos e de obrigações. É, pois, o ser com capacidade jurídica, ou seja, o ser que, vivendo em sociedade, tem direitos e pode assumir obrigações. É o chamado sujeito de direito, como veremos mais tarde, no Capítulo XXV. A citada norma — que, à primeira vista, pode parecer uma asserção adiáfora e supérflua — constitui, porém, uma severa proibição. Com efeito, ela proíbe, definitivamente, que algum ser humano não seja tido como pessoa, e não se lhe reconheça a dignidade própria das pessoas. Ela proíbe, portanto, que seres humanos sejam tratados como coisas, ou como animais, seres destituídos de direitos. Por ela, “A escravidão e todas as instituições, que anulam a liberdade civil, são repelidas”, diz Clóvis Beviláqua, ao comentar o art. 2º do CC/1916 (Código Civil Comentado). Assim, a imperatividade, no exemplo mencionado, embora não explícita, é qualidade ínsita da norma. 66
Outro exemplo: “É nulo o negócio jurídico quando for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto” (Código Civil, art. 166, II). Aqui também, o mandamento é uma proibição implícita. A norma não permite o negócio jurídico cujo objeto é indeterminável. Um último exemplo: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa” (Código Civil, art. 1.228). O mandamento contido nesta norma é uma proibição não declarada expressamente, mas que ela implica. E a proibição de impedir que o proprietário use, goze e disponha dos bens que lhe pertencem. Certas normas jurídicas não parecem ser imperativas. Não parecem ter a natureza de mandamentos, embora, em verdade, a tenham. É o que acontece com as normas definidoras e as normas concessoras de permissões*. Seja, por exemplo, a seguinte norma definidora: “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º, § 1º). À primeira vista, esta norma não passa de uma simples definição do ato jurídico perfeito. Não parece exprimir nenhum mandamento. Entretanto, ela contém, inegavelmente, não um somente, mas dois mandamentos, que são os seguintes: 1) O mandamento que proíbe disposições contrárias ao ato já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, por se tratar de ato jurídico perfeito. 2) O mandamento que proíbe atribuir a qualificação de ato jurídico perfeito ao ato não consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Outro exemplo de norma jurídica definidora: “São coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação, e as legalmente inalienáveis” (Código Civil de 1916, art. 69). O mandamento contido nesta definição legal, embora não aparente, era o seguinte: As coisas insusceptíveis de apropriação e as legalmente inalienáveis não podem ser objeto de comércio. As normas jurídicas definidoras, como se vê, não são simples definições. Elas são mandamentos, porque ordenam que os objetos definidos
* Empregamos aqui a expressão normas concessoras de permissões, e não a expressão normas permissivas, para marcar a diferença de sentido entre a primeira, aqui empregada, e a segunda, usada no § 21.
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sejam considerados como aquilo declarado na definição, e não como outra coisa, e que se atribua a seus efeitos, necessariamente, a natureza dos efeitos daquilo que nelas é declarado. E, ainda, são mandamentos porque proíbem que os objetos, a que a definição não cabe, sejam tidos como se fossem os objetos definidos. Korkounov disse: “Se, numa disposição legislativa, encontramos um artigo apresentando a forma de uma definição, esse artigo não é senão uma ordem, em sua aplicação prática. Pois, se a norma dá a definição de um contrato ou de um crime, ali não há senão uma ordem de fazer com que as ações humanas, que constituem um contrato ou um crime, produzam as conseqüências jurídicas ligadas a esse contrato ou a esse crime” (Curso de Teoria Geral do Direito, tradução francesa, Paris, V. Giard & E. Brière, 1903, Liv. II, Capítulo I, § 23). As normas concessoras de permissões, também, à primeira vista, não parecem exprimir nenhum mandamento. Seja, por exemplo, a seguinte norma concessora de permissões: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (Código Civil, art. 1.639). Esta norma parece apenas exprimir uma permissão. Ela constitui, porém, um mandamento, que se formula nestes termos: Não é lícito impedir que os nubentes, antes de celebrado o casamento, estipulem o que lhes aprouver, quanto aos bens que lhes pertencem. Outro exemplo de norma concessora de permissão: “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização da propriedade vizinha” (Código Civil, art. 1.277). Além da permissão explícita, esta norma contém um mandamento implícito, que é o seguinte: Não é permitido negar ao proprietário de um prédio o direito de impedir o mau uso da propriedade vizinha. Ainda outro exemplo de norma concessora de permissão: “Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor” (Código Civil, art. 304). Esta norma, que exprime uma permissão, implica o seguinte mandamento: Qualquer interessado na extinção da dívida não pode ser impedido de pagá-la e de usar os meios conducentes à exoneração do credor. 68
Como se vê, as normas concessoras de permissões, apesar de sua aparência, são imperativas, porque constituem proibições que são mandamentos. Elas proíbem proibir: proíbem que se proíba ou que se impeça fazer o que elas permitem. Em resumo: proíbem proibir o que elas permitem. Seja qual for sua forma ou natureza, a norma jurídica é sempre um imperativo ou mandamento, como se acaba de ver. § 28. Natureza condicional da imperatividade jurídica A imperatividade da norma jurídica é de natureza condicional. Por ser norma, o mandamento do Direito tem, fundamentalmente, a estrutura de todas as normas (veja § 8). É um mandamento hipotético. O que ele determina somente vale na hipótese de ocorrer o tipo de fato para o qual o mandamento foi emitido. Giorgio del Vecchio disse: “O mandamento, implícito em toda norma jurídica, está sempre subordinado à presença de certos elementos ou condições de fato, indicados pela própria norma, a qual entra em vigor, precisamente e somente, quando se verificam as condições por ela estabelecidas. O imperativo jurídico é, em suma, um imperativo hipotético: dadas certas premissas, o Direito impõe conseqüências determinadas” (Filosofia do Direito, 3ª ed. espanhola, Barcelona, Bosch, 1942, Parte Sistemática, Seção lª — O Direito em Sentido Objetivo, p. 294). Na mesma linha de pensamento, Korkounov já havia sustentado: “Não existem normas jurídicas absolutas. Mesmo a norma absoluta do ponto de vista moral, como a proibição de atentar contra a vida humana, não é absoluta como norma jurídica. O maior número dos interesses do homem deve ceder, é verdade, ao interesse da conservação da vida, mas não a todos os interesses. Nos casos de legítima defesa, de guerra, de aplicação de leis penais, a morte é admitida pelo direito”. “As normas jurídicas são, pois, regras condicionais. Tal o motivo pelo qual a norma jurídica consiste, naturalmente, na definição das condições de aplicação da regra e na exposição da própria regra” (Curso de Teoria Geral do Direito, tradução francesa, Paris, V. Giard & E. Brière, 1903, Liv. II, Capítulo I, § 24). Embora possa a norma jurídica assumir inúmeras formas verbais diferentes, como bem o atesta o rol de exemplos oferecidos nos dois §§ anteriores, sua estrutura básica é a do conhecido esquema: Se A é, B deve ser. 69
Assinale-se que esse esquema não exprime a estrutura inteira da norma jurídica, faltando-lhe um elemento essencial, como mostraremos adiante (nos §§ 29 e 30). Agora, o que cumpre deixar claro é a condicionalidade do mandamento jurídico. Tome-se, por exemplo, a seguinte norma: “Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas” (Código Civil, art. 71). Essa norma, como se vê, é um mandamento sobre o que se devem considerar os domicílios de uma pessoa. Mas é um mandamento que só vigora na condição de ter a pessoa diversas residências, onde alternadamente viva. Tal norma só se aplica na ocorrência das hipóteses mencionadas na própria norma. O caráter condicional desse imperativo é patente. Outros exemplos de imperatividade condicional patente: “Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á, total ou parcialmente” (Constituição, art. 66, § 1º). “Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores” (Código Civil, art. 1.199). “Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião independentemente de título e de boa-fé” (Código Civil, art. 1.261). “Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem” (Código Civil, art. 368). “Morrendo o locador, ou o locatário, transfere-se a seus herdeiros a locação por tempo determinado” (Código Civil, art. 577). “Se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária” (Código Civil, art. 1.023). “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários” (Código Civil, art. 1.784). Muitas vezes, a condicionalidade do imperativo jurídico não é patente, embora indefectível. Ela é quase patente nos seguintes exemplos: “Perece o direito, perecendo o seu objeto” (Código Civil de 1916, art. 77). 70
O caráter condicional deste imperativo se revela na redução da citada norma à seguinte: Se o objeto do direito perece, o próprio direito perece também. “Quem quer que ache coisa alheia perdida, há de restituí-la ao dono, ou legítimo possuidor” (Código Civil, art. 1.233). Esta norma se reduz à seguinte: Se uma pessoa achar coisa alheia perdida, deve restituí-la ao dono ou legítimo possuidor. E, ainda, à seguinte: Se uma pessoa é dona ou legítima possuidora de coisa perdida, pode exigir de quem a tenha achado, restituição dela. Nas duas reformulações, o caráter condicional da norma se torna patente. “Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço” (Código Civil, art. 489). A condicionalidade deste mandamento se patenteia na sua redução ao seguinte: Se a fixação do preço for deixada ao arbítrio exclusivo de uma das partes, o contrato de compra e venda é nulo. Na maioria das normas jurídicas, porém, a condicionalidade não é sequer quase patente, e pode não ser percebida pelos leigos em Direito. De fato, a forma verbal da norma jurídica não exibe, em regra, a sua estrutura íntima. Ora, a norma jurídica precisa ser clara. A proposição categórica é mais límpida, mais simples do que a proposição hipotética. Freqüentemente, o legislador a prefere, para que o mandamento seja nítido, direto, inilidível. Mas o certo é que a forma verbal categórica da norma não muda a natureza condicional e hipotética do mandamento. Seja, por exemplo, a norma já examinada no § 25: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (Constituição, art. 1º). Essa proposição há de ser interpretada como um mandamento. Enquanto mandamento (e não enquanto mera proclamação), a citada norma determina que os responsáveis pela organização nacional adotem e defendam, como forma de Governo, a República Federativa, e assegurem a união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Por força desse mandamento, e como decorrência imediata dele, a mesma norma proíbe, implicitamente, qualquer ato ou disposição que atente contra o que nela se acha afirmado. 71
Não cumprir o mandamento contido na citada norma, ou praticar qualquer um dos atos que ela implicitamente proíbe, é violar a Constituição. Ora, violar a Constituição é ato ilícito, que tanto pode ser um ilícito civil como um ilícito criminal. E o praticante desse ato fica sujeito às sanções legais, correspondentes a seu procedimento. Por exemplo, uma lei que subverta a forma republicana do Estado, ou que atente contra a união dos Estados, Municípios e Distrito Federal, é lei inconstitucional, podendo ser fulminada de nulidade, por decisão do Poder Judiciário. Inconstitucional, também, é qualquer ação violenta contra as instituições republicanas e federativas, podendo acarretar, para seus autores, a aplicação de sanções legais. Conseqüentemente, a citada norma, além de sua parte proclamatória, compreende uma parte com estrutura jurídica, parte esta que não se patenteia em sua forma verbal, mas que se torna evidente nas seguintes normas, a que ela se reduz: Se os responsáveis pela organização nacional subverterem a forma republicana e federativa do Estado, ou atentarem contra a integridade nacional, ficarão sujeitos às sanções previstas em lei. Se uma pessoa praticar violência que atente contra as instituições referidas na citada norma constitucional, ficará também sujeita às sanções legais correspondentes. Em conclusão: o que há de jurídico, na norma citada, é somente o que transparece em sua estrutura condicional. O que nela existe de simplesmente declaratório ou proclamatório não pertence ao que nela é jurídico. Seja, por exemplo, a seguinte norma: “Todos são iguais perante a lei” (Constituição, art. 5º). Juridicamente, esta norma, que é um princípio político, significa o seguinte: Se todos são iguais perante a lei, a lei é a mesma para todos que estejam em condições iguais. Ou: Uma vez admitido o princípio da igualdade legal dos seres humanos, não se permitem privilégios na aplicação das leis. Na prática, a citada norma se reduz à seguinte: Sendo a lei a mesma para todos, ninguém tem o privilégio de se eximir do cumprimento dela. E se desdobra na seguinte: Se alguém descumprir a lei, não poderá invocar título ou privilégio em sua defesa, e o lesado estará habilitado a exigir que o violador se submeta à lei descumprida. 72
O que se depreende do que acaba de ser dito é que o caráter condicional do citado imperativo, nada patente no princípio político, só se revela claramente nas reformulações jurídicas do mesmo princípio. Seja outro exemplo: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (Constituição, art. 49, I). O caráter condicional dessa norma não é patente, e só se mostra, iniludivelmente, na redução dela a mandamentos como o seguinte: Se o Presidente da República resolver, sem o referendo do Congresso Nacional, sobre tratados, acordos ou atos internacionais, a solução é nula. Outro exemplo: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (Código Civil, art. 186). Esta norma, de condicionalidade não patente, se reduz à seguinte: Se alguém cometer ato ilícito, sofrerá uma sanção. Ou seja: Se alguém sofrer um dano, tem direito a uma reparação, conforme art. 927. Com estas reduções é que o caráter condicional da norma se manifesta plenamente. Ainda outro exemplo: “Não podem casar os ascendentes com os descendentes” (Código Civil, art. 1.521, I). Nesta proibição, a condição não é patente. Mas se torna patente na reformulação da norma: Se um ascendente se casar com um descendente, o casamento é nulo (veja Código Civil, art. 1.548, II, em que esta reformulação é confirmada). Ainda outro exemplo: “É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária” (Código Civil, art. 1.200). Aqui, também, a forma verbal da norma não exibe a condicionalidade dela. Esta somente se evidencia quando a norma é reduzida à seguinte: Se não for violenta, clandestina ou precária, a posse é justa; ela é injusta, em caso contrário (veja Código Civil, art. 1.228, que dispõe sobre o que pode suceder em caso de posse injusta). Mais um exemplo: “Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir” (Código Civil, art. 876). A condicionalidade desta norma aparece na reformulação dela: Se alguém recebeu o que não lhe era devido, deve restituir o que erradamente lhe foi entregue. 73
Um último exemplo: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva” (Código Civil, art. 426). Nesta proibição, a condicionalidade se patenteia no momento em que a norma assume a seguinte construção: Se a pessoa estiver viva, sua herança não pode ser objeto de contrato. Em conclusão, o que sobressai, de tudo quanto foi dito, é que o imperativo jurídico tem sempre uma natureza condicional, mesmo nos casos em que a forma verbal do mandamento não a revela de maneira patente. De acordo com o que ensina a Lógica, o imperativo jurídico é um juízo hipotético do tipo condicional (veja § 12).
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CAPÍTULO VIII
AS SANÇÕES
§ 29. Noção de SANÇÃO Sabemos que as normas jurídicas autorizam o emprego dos meios competentes para forçar seus violadores (violadores efetivos ou violadores prováveis) a cumprir o que elas mandam, ou a reparar o mal causado pela violação, ou a se submeter às penas legais (veja §§ 17 e 24). Tais meios e tais penas se chamam sanções jurídicas. Estreitas e necessárias, pois, são as relações entre a qualidade autorizante da norma e as referidas sanções. Note-se, porém, que o termo sanção não designa, apenas, sanções jurídicas. Sanções existem que não são sanções jurídicas, como logo veremos. A palavra sanção provém do verbo latino “sancire”, cujos tempos originais são os seguintes: “sancio, sancis, sancivi (ou sanxi), sanctum (ou sancitum), sancire”. Fundamentalmente, esse verbo significa tornar santo, tornar sagrado, consagrar. Por extensão, significa tornar venerável, augusto, insigne, ínclito, solene, inconcusso, respeitável. Por via de conseqüência ou por associação de idéias, significa, também, tornar intocável, inviolável, ou seja, tornar preponderante, imperante, vigente, irrefragável, irrecusável, incontroverso, iniludível, inarredável. Em outras palavras, significa estabelecer solenemente, ordenar, prescrever. Significa, finalmente, cominar pena aos violadores da ordem consagrada. Do particípio passado “sanctum”, adveio o adjetivo “sanctus”, que significa santo, sagrado, venerável, e, também, puro, virtuoso, íntegro, probo, casto, inocente. 75
Por extensão, esse adjetivo designa a qualidade do que foi consagrado, isto é, a qualidade do que foi estabelecido solenemente, do que foi ordenado ou prescrito de maneira formal e, portanto, do que não deve ser violado, do que é inviolável (do que é proibido violar), do que é inilidível. Com a mesma origem, o substantivo “sanctio” significa pena cominável aos violadores da ordem instituída. Designava, em Roma, a parte da lei em que essa pena era fixada. E, também, era o nome dado ao ato de declarar inviolável um determinado mandamento, ou seja, o ato de declarar que os violadores de um determinado mandamento estavam sujeitos a penas. A “sanctio” era o ato pelo qual um mandamento se fazia lei (mandamento obrigatório, cuja violação acarretava pena para o infrator). A própria lei era, por vezes, chamada “sanctio”. Atualmente, a palavra sanção tem dois sentidos fundamentais, ambos decorrentes dos sentidos originais das palavras latinas de que ela proveio. Primeiramente, a palavra sanção designa o ato de sancionar. Em linguagem vulgar, ato de sancionar é o ato de declarar adotado um mandamento ou uma situação, um modo de ser ou uma maneira de agir. Neste sentido, sanção significa aprovação formal ou confirmação solene de uma decisão ou ordem. Etimologicamente, sanção significaria consagração. Hoje, em seu uso corrente, a palavra sanção significa aprovação, aquiescência, ratificação, aceitação, apoiamento, conformação. “Com minha sanção” significa “Com minha aprovação”; “Prática com sanção dos usos e costumes” significa “Prática apoiada nos usos e costumes” ou “conforme os usos e costumes”; “Interpretação sancionada pela jurisprudência” significa “Interpretação ratificada e aceita pelas decisões reiteradas dos Tribunais”. Na linguagem jurídica, o termo sanção, em seu primeiro sentido (como ato de sancionar), designa o ato solene pelo qual o Chefe do Governo ou Poder Executivo consagra como lei o projeto de lei aprovado pelo Poder Legislativo. Por tal ato, o projeto de lei é promovido a lei, isto é, passa a ser um mandamento cuja violação é proibida, cuja violação pode acarretar pena ou obrigações para o infrator. “O projeto de lei adotado em uma das câmaras será submetido à outra, e esta, se o aprovar, enviá-lo-á ao poder executivo, que, aquiescendo, o sancionará e promulgará”, rezava limpidamente a primeira Constituição republicana brasileira (art. 37 da Constituição de 24-2-1891). Vejam-se no mesmo sentido, o art. 61 da Constituição de 24 de janeiro de 1967; o art. 58 76
da Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969; e, finalmente, o art. 65 da Constituição ora em vigor). Observe-se que a sanção é o ato pelo qual o Poder Executivo assegura (ou procura assegurar), por meio de penas ou obrigações, o cumprimento do mandamento elaborado pelo Poder Legislativo. Essas penas ou obrigações são os ônus e gravames que a violação da lei pode acarretar para o infrator. Pelo ato da sanção, o Poder Executivo proíbe, com tais ônus e gravames, a violação da lei. Esses ônus e gravames também se chamam sanções, como logo verificaremos. Em suma, sancionar o projeto é dar-lhe sanções. É ligar sanções à eventual violação da nova lei. Embora desprovido de sacralidade, o ato presidencial de sancionar conserva, até hoje, sua solenidade e pompa, como bem o demonstra o termo sanção, que ainda o designa. Tal termo contém uma advertência aos governantes sobre a grave responsabilidade do Poder, na seleção das leis. Pela sanção, um mandamento não se torna sagrado, evidentemente, mas seu cumprimento se torna assegurado. Estas observações nos levam, imediatamente, ao segundo sentido da palavra sanção. Em seu segundo sentido, a palavra sanção designa os gravames e ônus, as obrigações e penas, conseqüentes à violação da norma, e aos quais já nos referimos. É evidente que o substantivo sanção, neste segundo sentido, provém, igualmente, do referido verbo latino “sancire”, que, além de significar tornar inviolável, também significa punir, castigar, fixar pena (para quem viola mandamento declarado inviolável). Etimologicamente, pois, a palavra sanção designa a pena, o castigo, o constrangimento ligado à violação de uma norma, e a que fica sujeito o infrator. Em linguagem corrente, sanção é, por assim dizer, o preço imposto pelo descumprimento do dever, tomando-se a palavra preço com o sentido de ônus, gravame, constrangimento. As sanções, em sentido amplo, são de muitas espécies. Há sanções psíquicas, chamadas sanções de consciência, e há sanções sociais. Tanto é sanção o remorso, o arrependimento, como as penas de detenção e de reclusão, aplicadas pelo Poder Público. São sanções, por exemplo, a condenação 77
da consciência ou censura moral, a perda da situação e o cancelamento do crédito, a reprovação da comunidade e o desprezo público, a repulsa da sociedade e o ostracismo. São sanções, a indenização, a multa, a penhora dos bens, a demissão do emprego, a prisão. Há quem chame de sanções, também, as conseqüências que a natureza agrega aos desregramentos do comportamento. A decadência física, a invalidez, a ruína orgânica, o embotamento da inteligência e do senso ético, resultantes da devassidão e do vício, são tidos, muitas vezes, como sanções da natureza. Mas, nestes casos, o termo sanção é empregado metaforicamente. As condenações que as diversas Igrejas preconizam para os pecadores, em uma vida após a morte, são sanções religiosas. Na estricta área do Direito, as sanções têm definição específica. Para bem entendê-las, é preciso ter presente que as sanções jurídicas e as normas jurídicas, embora realidades diferentes, são coisas consubstanciais. Umas e outras só existem, e só podem ser entendidas, umas com as outras. As sanções jurídicas não existem, e não podem ser entendidas, sem as normas jurídicas; e as normas jurídicas não existem, e não podem ser entendidas, sem as sanções jurídicas. Por este motivo, a definição da sanção jurídica se prende, diretamente, à definição da norma jurídica. A norma jurídica ou norma de direito, como foi explicado no § 17, se diferencia da norma não jurídica por ser norma autorizante. De fato, somente é jurídica a norma que autoriza quem for lesado pela violação dela, ou quem for um provável lesado por previsível e iminente violação dela, a exercer, pelos meios legais, coação sobre o violador (violador efetivo ou provável), a fim de fazer cessar ou de obstar a violação; ou de obter, do mesmo violador, reparação pelo mal que a infringência causou; ou, finalmente, de submeter o violador às penas da lei e às cominações legais de segurança pública. Isto significa, em suma, que a norma jurídica é um mandamento de tipo especial, porque é o único que autoriza o emprego dos meios competentes, permitidos pela lei, para forçar os violadores dela (violadores efetivos ou prováveis) a cumpri-la, ou a reparar o mal causado pela violação, ou a se submeter a penas e outras cominações da lei. Ora, a sanção jurídica é, precisamente, aquilo que o lesado está legalmente autorizado a exigir e a impor, como conseqüência da violação da norma jurídica. Lembremos, para evitar mal-entendidos, que o lesado não é obrigado a recorrer às sanções, mas simplesmente autorizado a fazê-lo. 78
Por exemplo, são sanções jurídicas, a imposição de cumprir a norma violada, a penhora dos bens do devedor, a reparação ou compensação obrigatória do mal causado pela violação, a reposição das coisas no estado em que estavam antes da violação, a resolução do contrato. Nos casos de crime ou contravenção, são sanções jurídicas, as penas e as cominações legais de segurança social, a que o delinqüente fica sujeito. Toda norma jurídica, pelo fato de ser autorizante, está ligada, necessariamente, a suas sanções jurídicas. Pois, o autorizamento da norma jurídica é autorização para uso de sanções jurídicas. É importante observar que esse autorizamento pode ser usado ou não o ser. Ele não será usado se a norma não é violada, nem estiver na iminência de sê-lo. Não há, neste caso, um lesado autorizado a impor sanções jurídicas. Ele não será usado, também, se o lesado não quiser a imposição de sanções ao violador. Mas, usadas ou não usadas, as sanções estão sempre prescritas pelas normas jurídicas, exercendo a função de garantia de seu cumprimento. De certa maneira, as sanções jurídicas fazem o papel de remédios de direito, conservados nas prateleiras da farmácia jurídica. Poderão ser usadas, como poderão não o ser. Mas elas sempre ali se encontram, para serem usadas quando o Direito é ferido, ou seja, quando a norma jurídica é violada e um dano é causado a alguém; e quando o lesado, num ato de vontade, providenciar a aplicação desses remédios. “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, preceitua o Código Civil (art. 186). Isto significa, exatamente, que o lesado, pela violação de norma jurídica, está autorizado a exigir a reparação do dano por ele sofrido: está autorizado a usar um remédio de direito, isto é, a providenciar a imposição, ao violador, da competente sanção jurídica. Em outro artigo, mas no mesmo sentido, o Código Civil dispõe: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos” (art. 389). A reparação por perdas e danos é a sanção jurídica aplicável a quem não cumpre a obrigação que lhe é imposta por norma jurídica, ou a quem não a cumpre corretamente. Se o violador da norma jurídica se recusa a sujeitar-se à sanção jurídica que lhe é imposta, pode o lesado, em ação competente, levar a questão ao Poder Judiciário, para que este decida sobre a legalidade da imposição e, sendo caso, coaja o violador, com os meios do Estado, a se submeter à sanção. 79
Isto, precisamente, é o que se acha expresso, de forma lapidar, no art. 75 do Código Civil: “A todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. E é o que está consagrado no art. 5º, XXXV, da Constituição: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. § 30. A sanção na estrutura da norma jurídica À vista do exposto, fica patente que a estrutura da norma jurídica é mais complexa do que a estrutura da norma não jurídica. Como já sabemos, toda norma (leia-se: norma ética) é um imperativo condicional, e tem uma estrutura básica que pode ser simbolizada pelo seguinte esquema: Se A é, B deve ser. Este esquema significa: Verificando-se a condição A, para a qual a norma foi elaborada, o comportamento B deve ser aquele que a mesma norma prescreve para essa circunstância. Ora, pode acontecer que a condição A se verifique, mas o comportamento efetivo não seja aquele que a norma prescreve para aquela circunstância B. Em outras palavras, pode o comportamento efetivo ser uma violação da norma. Neste caso, a norma, por ser jurídica — e, portanto, autorizante —, autoriza a imposição da sanção estatuída pela própria norma. Assim, a estrutura completa da norma jurídica é a que se exprime no seguinte esquema: Se A é, B deve ser. Se B não for, C pode ser. Nesse esquema, C simboliza a sanção jurídica. C pode ser, porque a sanção jurídica é aquilo que o lesado pode impor se B não for (= se a norma for violada), embora o lesado não seja obrigado a impô-la. Acontece, muitas vezes, que o mandamento e a sanção estejam expressos em artigos diferentes da norma. Mas a norma completa compreende as expressões de seu mandamento e as de sua sanção. É evidente que a sanção jurídica não se confunde com a coação jurídica. Como será mostrado no Capítulo IX, a coação é sempre um ato, um ato de violência, praticado contra a liberdade de alguém. A coação jurídica é o 80
ato de impor uma sanção jurídica ao lesado, contrariando a vontade dele. É a coação empregada a serviço do Direito, como explicaremos adiante (no § 34). A coação jurídica, pois, é uma ação. É a ação de impor a sanção. Mas não é a própria sanção. Igualmente, a ministração de um remédio ao doente é um ato, uma ação. É o ato de ministrar o remédio. Mas não é o próprio remédio. As sanções jurídicas são medidas prescritas pela norma jurídica. Haja ou não haja violação, haja ou não haja coação, as sanções jurídicas ali estão, determinadas nos mandamentos autorizantes, assim como os remédios que, haja ou não haja doenças, ali estão nas prateleiras da farmácia. É importante assinalar que a própria aplicação da sanção jurídica não pressupõe, necessariamente, a coação jurídica. Assim como o doente pode aceitar o remédio e tomá-lo sem relutância, o violador da norma jurídica, também, pode ser convencido de seu erro, ao infringir o mandamento, e submeter-se ao remédio do Direito, sem se opor a ele. A coação jurídica só é necessária quando o lesado se nega a sujeitar-se à sanção jurídica que o lesado lhe quer impor. A sanção pertence à norma necessariamente. A coação, porém, depende da vontade das pessoas. Depende da vontade do violador (que pode evitar a coação, submetendo-se voluntariamente à sanção) e depende da vontade do lesado (que pode empregar a coação, como pode deixar de empregá-la). § 31. Exemplos de sanções jurídicas São exemplos de sanções jurídicas: a) Reparação por perdas e danos. Reza o já citado art. 927 do Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. b) Cláusula penal. Podem os contratantes estipular, no próprio instrumento do contrato ou em ato posterior, a sanção para a inexecução completa da obrigação assumida, ou para a inexecução de alguma cláusula do contrato, ou, simplesmente, para a mora no cumprimento da obrigação (Código Civil, arts. 408 e 409). Como se vê, trata-se, aqui, de sanção pela violação de norma contratual. Por ser estipulada em cláusula do próprio instrumento, esta sanção jurídica se chama cláusula penal do contrato. 81
c) Pronunciamento judicial de nulidade de um ato ou negócio jurídico. O Código Civil de 1916, em seu art. 81, disciplinava que ato jurídico é “todo ato lícito que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos” (Veremos, no Capítulo XXVI, que a noção de ato jurídico evoluiu: atualmente, o pensamento dominante é o de que o ato jurídico pode ser lícito ou ilícito). O Código Civil de 2002 não define ato jurídico, mas determina que aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições referentes ao negócio jurídico (art. 185). O negócio jurídico é nulo quando: “I — celebrado por pessoa absolutamente incapaz (são absolutamente incapazes, nos termos do art. 3º do Código Civil: os menores de 16 anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade); II — for ilícito, impossível ou indeterminado o seu objeto; III — o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV — não revestir a forma prescrita em lei; V — for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI — tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII — a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibirlhe a prática, sem cominar sanção” (Código Civil, art. 166). Quando o ato ou negócio jurídico é nulo, nos termos da lei, as nulidades “podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir”; e “devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes” (Código Civil, art. 168 e parágrafo único). Esse pronunciamento de nulidade do ato ou negócio jurídico, feito pelo juiz, é um exemplo da sanção jurídica pela violação da norma jurídica a que o ato ou negócio se deveria submeter, mas a que não se submeteu. d) Restituição ao estado anterior ao negócio jurídico nulo, ou indenização equivalente. Caso típico da aplicação desta sanção é o referido no art. 182 do Código Civil: “Anulado o ato, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”. Essa restituição e a indenização a ela equivalente são exemplos de sanções jurídicas pela violação das normas reguladoras do negócio jurídico. 82
e) Anulação da alienação de imóvel e sanções conexas. Seja, por exemplo, o art. 1.647 do Código Civil: “Nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta, alienar... bens imóveis...”. No caso de tal alienação, o ato é anulável, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal (art. 1.649). A anulação do ato, mais o pagamento das despesas do processo e dos honorários advocatícios constituem a sanção jurídica pela violação do citado art. 1.647 (veja, também, Código de Processo Civil, art. 20). f) Perda do direito sobre bens da herança. Seja, por exemplo, o art. 2.002 do Código Civil: “Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação”. Pela violação dessa norma, o Código Civil estabelece a sanção jurídica do art. 1.992: “O herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário, quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia”. g) Penas. Obviamente, são sanções jurídicas, as penas cominadas pela lei aos autores de crimes e contravenções (veja Capítulo VI). § 32. Inexistência das chamadas “sanções premiais” Há quem sustente que as sanções se dividem em sanções onerosas e sanções premiais. As sanções onerosas são as que acabam de ser estudadas. São as obrigações e penas, a que ficam sujeitos os violadores das normas jurídicas. As sanções premiais seriam as recompensas, fixadas na lei, pela prestação de serviço valioso e meritório. Imaginemos, por exemplo, uma norma como a seguinte: “O morador ou empresário que cuidar do ajardinamento do canteiro público, fronteiro a seu domicílio ou local de trabalho, fica autorizado a colocar, nesse canteiro, livre de tributação, uma placa de propaganda de sua empresa”. 83
O cuidado pelo ajardinamento no canteiro público é, sem dúvida, um serviço benemérito. Pela prestação de tal serviço, a norma conferiria ao prestador o direito de colocar, livre de tributação, a referida placa no canteiro. Imaginemos outro exemplo de norma: “A empresa cinematográfica, que tenha, como atores, vítimas de discriminação racial, está isenta dos tributos fiscais sobre a comercialização dos filmes em que tais vítimas atuam”. A contratação dos referidos atores constituiria, reconhecidamente, um procedimento meritório. Por ele, a norma eximiria a empresa contratante do ônus de determinados tributos. Mais um exemplo de norma: “O traficante de drogas, que se entrega à Polícia e denuncia seus comparsas, tem direito a cela individual”. A denúncia de comparsas, feita pelo traficante de droga, é ato valioso, aos olhos da Polícia. Por tal comportamento, a norma conferiria ao preso o privilégio da cela individual. Os direitos e vantagens, concedidos pela sociedade, por meio das referidas normas, seriam as chamadas sanções premiais. Esta nomeação, porém, é imprópria, e conduz a erro. Tecnicamente, as sanções do Direito se prendem a mandamentos jurídicos. Esta é uma noção primordial, que não pode ser esquecida. É a primeira nota para a correta conceituação da sanção jurídica, em conformidade com o que já explicamos neste Capítulo. Nos citados exemplos (exemplos de normas fictícias, formuladas apenas para argumentar), cumpre desvendar os respectivos mandamentos, para descobrir as sanções que os completam. Nos três exemplos, os mandamentos jurídicos são os seguintes: 1) A Prefeitura Municipal autorizará a colocação da mencionada placa de propaganda. 2) O Poder Público isentará de tributos fiscais as citadas empresas cinematográficas. 3) A Polícia e o Poder Judiciário darão ao preso a benesse referida. As sanções jurídicas, correspondentes a esses imperativos, são os remédios de direito para eventuais violações das normas jurídicas, por parte dos órgãos do Governo, aos quais tais mandamentos são dirigidos. Os direitos e vantagens, a que as inventadas normas se referem, são recompensas e prêmios, mas não são sanções, no sentido técnico desta palavra. Não são medidas repressivas, e não se prendem a violações de mandamentos jurídicos. São recompensas e prêmios, ligados a comportamentos 84
valiosos e meritórios, mas comportamentos fortuitos, não exigidos por normas autorizantes. Os direitos e vantagens não são sanções. Sanções verdadeiras seriam as medidas que poderiam ser tomadas para assegurar a concessão dos referidos direitos e vantagens, nos casos em que o Poder Público não os quisesse conceder, violando as normas referidas. Não sendo sanções, esses direitos e vantagens não devem receber o nome de sanções premiais. Chamá-las de sanções é mudar, indevidamente, o sentido técnico do termo sanção. Em verdade, as sanções premiais não existem. Eduardo Garcia Máynez disse: “Seguindo a opinião de Carnelutti, cremos que o termo sanção deve ser reservado para designar as conseqüências jurídicas que o descumprimento de um dever produz relativamente ao violador. Isto não significa que desconheçamos a existência de prêmios e recompensas, como conseqüências jurídicas de certos atos meritórios. Nosso propósito consiste somente em sublinhar a conveniência de restringir o emprego daquele termo ao caso das conseqüências jurídicas repressivas. Quanto ao prêmio, estimamos que deve ser visto como uma espécie dentro do gênero das medidas jurídicas. Tende a fomentar o cumprimento meritório das normas do direito e, como toda medida jurídica, assume sempre a forma de uma conseqüência normativa. Mas em vez de traduzir-se em deveres, implica faculdades. A realização do ato meritório autoriza o sujeito, efetivamente, a reclamar a outorga da recompensa, ao mesmo tempo que obriga certos órgãos do Estado a outorgá-la”. Conclui Garcia Máynez: “há três classes de medidas jurídicas, a saber: preventivas, repressivas e recompensatórias. Chamamos sanções somente as segundas” (Introdução ao Estudo do Direito, 3ª Parte, Capítulo XXI, n. 160).
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CAPÍTULO IX
A COAÇÃO NO MUNDO JURÍDICO
§ 33. Noção de COAÇÃO A autorização do lesado, decorrente do autorizamento da norma jurídica, é uma permissão para que o lesado, utilizando-se dos meios legais, coaja o violador da norma a cumpri-la, ou a reparar o mal causado pela violação, como explicamos no § 17. A coação autorizada pela norma jurídica exige conceituação rigorosa. De início, convém lembrar que a coação, de modo geral, é um fato da vida comum. A faculdade de coagir — faculdade denominada coatividade — é uma aptidão natural do ser humano. No homem, a existência dessa faculdade e seu emprego não dependem, necessariamente, de nenhuma norma jurídica. Qualquer pessoa, por qualquer motivo, pode exercer, lícita ou ilicitamente, coação contra qualquer outra pessoa. Cumpre salientar, preliminarmente, que toda coação é ação. A própria palavra coação já o está revelando. Mas esta reiteração do óbvio tem o mérito de evitar tradicionais equívocos sobre o relacionamento entre o Direito e a coação. Sendo ação, a coação não é uma providência meramente preconizada, uma “salvaguarda” prevista para ocasional emprego, a ser usada em casos de precisão. Ela não é sanção. A sanção, como sabemos, se acha prefixada na lei, para eventual imposição, nas hipóteses de fortuitos atos ilícitos (veja o conceito de sanção no § 29). 87
A coação é outra coisa. A coação é uma ação efetiva, uma ação atual. Ela é a execução do ato de coagir. E o ato de coagir é uma pressão, pressão física ou pressão psíquica, mas pressão exercida de fato, por uma pessoa sobre outra pessoa, por uma entidade sobre outra entidade, com o fim de constranger esta outra a fazer o que ela não quer fazer, ou não fazer o que quer. É a obtenção, com o emprego de algum meio impositivo — que pode ser força física, intimidação, ameaça —, de um procedimento contrário à vontade de quem sofre a pressão. Em suma, o objetivo da coação é este: compelir alguém a proceder de maneira contrária a sua vontade. Tal objetivo é o que a caracteriza e define. Sem ele, a coação não existe. Conseqüentemente (e é isto o que não pode ser esquecido), não estará agindo sob coação, e não se há de considerar coagido, quem estiver procedendo de acordo com sua vontade. Esta inconcussa conclusão, em sua meridiana simplicidade, é de importância fundamental, como se vai ver, para o exato entendimento do papel desempenhado pela coação na vida do Direito. Fique bem claro que não há coação sem violência. Pois, toda coação é violência contra a vontade de alguém. Dentro do mundo jurídico, a coação se apresenta de duas maneiras diferentes: ora como violência a serviço do Direito, ora como violência contra o Direito. Radical diferença há entre essas coações. Devem, pois, ser tratadas separadamente. § 34. A coação A SERVIÇO DO DIREITO. Natureza conselheira das leis A coação a serviço do Direito é a coação empregada, quando necessária, para fazer cumprir a norma jurídica. Ela é, em suma, o ato de impor sanção. O que a caracteriza é o fato de ser ela autorizada pelo Direito. As próprias normas jurídicas autorizam o seu uso, em todos os casos em que ela for necessária. É importante lembrar que, no imenso mundo das normas, somente as normas jurídicas autorizam o emprego da coação. Autorizam-no para assegurar o cumprimento destas normas, ou para evitar sua violação iminente, ou para dar ao lesado a possibilidade legal de exigir reparação pelo dano que a violação da norma lhe tenha causado, ou para conferir à Polícia, ao 88
Ministério Público e ao Poder Judiciário a obrigação de mover a ação competente contra criminosos e contraventores. A perfeita fixação do alcance da coação a serviço do Direito decorre necessariamente da natureza autorizante da norma jurídica. Importa salientar que a coação não é exercida, nem o pode ser, pela própria norma jurídica. A função da norma não é coagir, mas simplesmente autorizar o emprego da coação. Considerada apenas no que ela é, mera fórmula verbal, simples enunciado de um modelo de comportamento, a norma jurídica não é coativa, pois não possui nenhuma possibilidade de coagir quem quer que seja. Como poderia a própria norma sair do papel em que está escrita, erguer-se, pegar alguém pelo braço, forçar alguém a fazer isto ou aquilo? A coação é exercida, não pela norma, mas por quem a violação da norma lesou. A coação é exercida pelo lesado. Sim, a coação é exercida pelo lesado; o lesado se serve dos órgãos competentes do Estado ou, excepcionalmente, pelas suas próprias mãos, nos estrictos casos mencionados na lei. Mas, evidentemente, a coação pode ser lícita ou ilícita. Ela só é lícita — só é coação a serviço do Direito — se o coator estiver autorizado, por meio de norma jurídica, a usar de sua faculdade coatora, e se a usar em conformidade com as determinações legais. A licitude da coação depende da autorização, de que o lesado-coator estiver investido, por força do autorizamento da norma jurídica. O ato de coagir uma pessoa, sem que o coator tenha autorização jurídica para praticá-lo, é ato ilícito: constitui um ilícito civil ou um ilícito criminal (coação contra o Direito). A coação lícita é a imposição ao violador, pelos meios legais, da sanção adequada, prevista em norma jurídica, e aplicada por promoção de quem tem autorização jurídica para fazê-la (veja § 29). Em conclusão, a coação é ato do lesado, e não elemento da norma. Se a coação fosse exercida pela norma jurídica, toda violação dessa norma seria seguida de uma coação, para forçar o violador a cumprir o preceito infringido. Isto, porém, não é o que acontece. Pode, eventualmente, a norma jurídica ser violada, sem que nenhuma coação apareça, a molestar o violador. Pois, uma condição existe para o aparecimento da coação: a coação só aparece se o lesado quiser exercê-la. Ela depende da vontade do lesado. E pode acontecer que o lesado, por qualquer motivo, não a queira exercer. 89
O lesado, afinal, é quem foi prejudicado pela violação da norma. A ele é que interessa o cumprimento do preceito. A ele, e somente a ele, é que a norma dá autorização para exigir obediência à norma violada. A ele, pois, compete decidir sobre o uso dessa autorização e sobre o emprego da coação. Se, por exemplo, o credor não quiser exigir o pagamento de seu crédito, o devedor relapso não será coagido a efetuá-lo. É evidente, portanto, que a coação, como foi dito, é ato do lesado. Não é uma pressão feita pela norma jurídica, mas um constrangimento imposto pelo lesado. Analogamente, no mundo físico, a atração sofrida por um corpo só pode ser exercida por outro corpo, e não é exercida por uma lei. Não são as leis, obviamente, que exercem pressão. A lei da gravidade não atrai nem repele corpo nenhum. Um corpo é atraído por outro corpo, e não pela lei da gravidade. A gravidade (não a lei da gravidade) é uma força, mas é uma força dos corpos, não de uma lei. A lei da gravidade não é mais do que a descrição sintética da maneira pela qual um corpo atrai outro corpo, ou seja, a proposição elaborada pelos cientistas, sobre a maneira pela qual a matéria atrai a matéria. A norma jurídica autoriza a coação, mas não a exerce. Autorizar a coação não é o mesmo que exercer a coação. Quem a exerce é o lesado, como foi explicado. Esta é a razão pela qual a norma se define imperativo autorizante, e não imperativo coativo. A coação não tem possibilidade de definir a norma jurídica por um primeiro motivo, que é o de ser a coação um elemento contingente na vida da norma jurídica. Contingente, em verdade, pois a coação só aparece quando a norma jurídica é violada. E pode acontecer que a norma jurídica não seja violada nunca. Inúmeras são as normas jurídicas que jamais sofrem violação. Aliás, o normal, na vida comum das pessoas, é a eficácia pacífica do Direito, sem a necessidade do recurso à intimidação ou à violência. Diz Pitirim Sorokin: “Nós vivemos e agimos, nascemos e morremos, gozamos e sofremos, no clima das normas jurídicas”; “neste sentido, as normas jurídicas penetram todas as esferas de nossa conduta, todos os domínios de nossa vida social”. (...) “a maior parte de nossa conduta não é senão uma manifestação das normas jurídicas que possuímos” (Sociedade, Cultura e Personalidade, Ed. Aguilar, Madri, Parte Terceira, Capítulo IV). Por uma imposição racional, os seres humanos se sujeitam voluntariamente às normas jurídicas. Em regra, quando seres humanos agem li90
vremente, estão agindo de acordo com o Direito, mesmo quando não conhecem o Direito. E, quando agem de acordo com o Direito, estão agindo, em regra, de acordo com sua vontade. Ora, quem age de acordo com sua vontade, não age sob coação; não está sendo coagido. A coação é contingente, na vida da norma jurídica, porque ela depende de uma violação, que pode não ocorrer. E ocorrendo a violação da norma jurídica, a coação ainda continua contingente, porque ela ainda depende de querer o lesado exercê-la. E pode acontecer que o lesado não queira coagir o violador a cumprir a norma infringida. Nessa hipótese, apesar da norma ter sido violada, a coação não aparecerá. Imagine-se o caso de um devedor que não paga sua dívida no vencimento dela. É evidente que esse devedor violou as normas jurídicas que mandam pagar o que é devido, e que regulam os modos do pagamento. Mas imaginese que o credor seja irmão ou amigo do devedor, ou, quem sabe, seja grato por favores antigos, que lhe tenham sido prestados pelo devedor. É possível que esse credor não queira cobrar o que lhe é devido; não queira exigir o pagamento que lhe deveria ser feito pelo irmão ou amigo. Não havendo a cobrança, a que se reduziria, neste caso, a coação contra o devedor inadimplente, que é violador das citadas normas jurídicas? A nada, evidentemente. Duplamente contingente, portanto, é a coação. Contingente, primeiro, porque depende de haver uma eventual violação da norma jurídica. E contingente, segundo, porque depende de uma eventual vontade do lesado. Os filósofos bem sabem que não é possível definir por meio do contingente. Só o necessário define. Logo, não pode a norma jurídica ser definida por meio da coação, que é elemento sempre contingente. Se a norma jurídica for definida por meio da coação, seria natural perguntar em que consiste a norma jurídica antes da violação dela. Poder-se-ia, também, perguntar: Que é a norma jurídica, se os lesados, pela sua violação, não quiserem exercer coação, para forçar o cumprimento dela? A verdade é que a norma jurídica não depende da coação. A coação é que depende da norma jurídica. De fato, a norma jurídica vigora, normalmente, sem recurso à coação. Mas a coação só pode aparecer quando a norma jurídica a permite. Além do mais, a coação só deve ser exercida pelos meios e formas determinados pela norma jurídica. A coação é regulada pelo Direito. Em verdade, a norma é sempre anterior à coação. Primeiro nasce a norma jurídica; depois, a norma pode ser violada. Não é mesmo possível violar o que não existe. Depois, finalmente, é que pode aparecer a coação. 91
E, note-se, a coação somente aparecerá se o lesado pela violação quiser exercê-la. Se, efetivamente, o lesado quiser exercê-la, terá de exercer a coação prevista e regulamentada pela norma jurídica. Uma conclusão se impõe: a norma jurídica é sempre mais velha do que a coação. É claro que a verificação de que a coação não pertence à própria norma jurídica e não constitui elemento de sua definição não significa, de modo algum, que ela seja desnecessária, para a eficácia do Direito. Na vida do Direito, a coação exerce, em verdade, papel relevante. Ela é o emprego de força nos casos em que a violência legal precisa ser exercida, para fazer cumprir os mandamentos do Direito. Utilíssima, pois, é a coação na vida do Direito. Mas o que cumpre assinalar é que, exatamente por constituir uma força a serviço do Direito, a coação não é o próprio Direito. Ela aparece, isto sim, como um elemento externo, que vem em socorro da norma violada. Poder-se-ia quase dizer que a coação “aparece” quando o mandamento jurídico “desaparece”. Em verdade, o Direito não é uma armação coercitiva. O Direito legítimo, expresso em suas leis, longe de ser um instrumento de opressão, é uma estrutura solidária com o ser humano. É uma ordenação elaborada lentamente, no correr dos tempos, para servir ao homem, e não para atormentá-lo. Na nossa vida normal, a lei tem, fundamentalmente, a missão de orientar, dirigir. Ela é informadora, por excelência. Para as pessoas, em geral, ela exerce uma função, por assim dizer, educativa, pedagógica, didática. Ensina o que uma pessoa deve fazer ou não fazer para chegar aos fins colimados, e para conferir eficácia jurídica a seus atos. O Direito tem uma natureza conselheira. O fato patente é que agir de acordo com a lei não significa agir constrangidamente, agir contra a nossa vontade. Significa, isto sim, agir de acordo com a vontade de dar a nosso procedimento forma regular e segura, na consecução dos objetivos almejados. Aliás, quando agimos de acordo com nossa vontade, nos afazeres quotidianos, estaremos, em regra, agindo de acordo com a lei. Dentro da ordem social, nosso comportamento se harmoniza, espontaneamente, com inúmeras normas jurídicas, mesmo quando nem sequer as conhecemos. Precisamos do Direito, sem dúvida; mas, na normalidade da vida e nos afazeres do dia-a-dia, não precisaremos ser pressionados e constrangidos 92
por ele. O que precisamos, com freqüência, ao cuidar de nossas coisas, é que o Direito seja informação, orientação, roteiro, guia. Para o comum dos mortais, basta, como é óbvio, que a lei lhes mostre, nos casos em que isto seja preciso, a maneira acertada de agir, para a realização de seus objetivos. E, de bom grado, livremente, eles agirão de acordo com o que lhes foi informado pela lei, para a melhor eficiência ou segurança de seu procedimento. Assim, por exemplo, se uma pessoa quiser casar, as leis lhe ensinam que a habilitação para casamento se faz perante o oficial do Registro Civil; que o casamento deverá ser celebrado no dia, hora e lugar previamente designados pela autoridade que houver de presidir o ato; e que a solenidade celebrar-se-á na casa de audiência, com toda a publicidade, a portas abertas, presentes, pelo menos, duas testemunhas. Se uma pessoa quiser adquirir um imóvel, as leis lhe ensinam que a aquisição só se completa com o registro do título da transferência no Registro de Imóveis competente. Se uma pessoa receber o que não lhe era devido, a lei informa que ela deve restituir o recebido. Se uma pessoa quiser matar alguém, a lei a previne de que esse ato pode acarretar, para seu autor, a pena de reclusão por doze a trinta anos. Em resumo: na vida corrente dos seres humanos, as leis exercem papel informativo, indicando as maneiras corretas de agir, para a consecução de fins colimados. Para quem deseja chegar a esses fins, as leis funcionam, não propriamente como imposições coercitivas, e sim, como respostas à pergunta “como devo fazer?”; funcionam como indicadores do que deve ser feito. O que logo fica patente é que o caráter instrutivo da lei assume fundamental importância. Essa função orientadora é o que há de mais urgente na lei. E isto é o que explica a constante afluência dos consulentes nos escritórios dos juristas: o que todos querem é saber o que a lei aconselha, nos seus respectivos casos particulares. § 35. A coatividade jurídica Há quem sustente que a norma jurídica se define pela sua coatividade, não pela coação. Para os que assim pensam, o que caracteriza a norma jurídica não é a coação (muitas vezes ausente na plena vigência da norma), mas a coatividade, ou seja, a possibilidade de coagir. 93
A tese da coatividade da norma jurídica merece atenção especial. Sobre este assunto, o que primeiro deve ser dito, a bem da clareza, é que a coatividade não é coação. Ela não é ação; logo, não é a ação de coagir. Como a própria palavra já o revela, a coatividade é algo que existe antes da ação de coagir, e que, de certa maneira, a condiciona. Ela não é o exercício da coação, mas a possibilidade de exercê-la. É a faculdade de coagir. A ação de coagir pressupõe a coatividade, como todo ato pressupõe a faculdade de praticá-lo. A coação é ato; a coatividade é potência: eis como se exprimiriam, com seu límpido vocabulário, os filósofos da Academia de Atenas. Mas, embora não sendo ato, não sendo o ato de coagir, a coatividade é real, é existente, como reais e existentes são as demais faculdades humanas; tão reais e existentes, como, por exemplo, as faculdades de pensar, de ver, de falar. A coatividade é faculdade ou possibilidade pertencente a toda entidade que tenha aptidão para a prática do ato de coagir, mesmo quando tal entidade não pratique o ato de coagir. Pode ocorrer que a referida aptidão não seja empregada. Também nesta hipótese, a coatividade existe em tal entidade. Existe e continua a existir, latente e pronta, como potência a pique de se fazer ato. Se a potência se fizer ato, a coatividade se fez coação. Por outro lado, não existindo potência nenhuma, não haverá nenhum ato. Porque todo ato, como ensina a Filosofia Perene, é sempre o perfazimento de uma potência. “O ato é a perfeição da potência”, dizem os sábios. Isto, reduzido a termos de uso comum, significa simplesmente: não existindo coatividade, não pode haver coação. A pergunta que aqui se coloca é a seguinte: Qual a entidade que é dotada de coatividade? Qual é a entidade que tem a possibilidade de coagir? Tal entidade seria, por acaso, a norma jurídica? Não parece que assim seja. Que possibilidade tem a norma jurídica de exercer a coação? Pode a própria norma jurídica coagir alguém? Repetimos: pode uma simples regra, escrita num pedaço de papel, pegar uma pessoa e forçá-la a fazer isto ou a fazer aquilo? É evidente que a norma jurídica, por si própria, não tem nenhuma possibilidade de coagir quem quer que seja. 94
Qual, então, a entidade dotada da possibilidade de coagir, a entidade munida de coatividade? A resposta a esta pergunta é uma só. De fato, somente quem foi lesado pela violação da norma jurídica, somente o lesado, é titular da coatividade legal; ele, somente, está autorizado a coagir; ele, somente, é a entidade dotada da possibilidade de exercer a coação permitida pela norma jurídica. E é de se notar o seguinte: o que o lesado tem é, precisamente, a possibilidade de coagir, e não a obrigação de coagir. Como pode a norma jurídica ser definida pela coatividade, se a coatividade não pertence à norma, mas ao lesado? O que se deve dizer é que o autorizamento da norma é a condição de existência da coatividade jurídica do lesado. § 36. A coerção psíquica Poder-se-ia pensar, quem sabe, que a norma jurídica exerce coação pelo simples fato de existir. Estando em vigor, a norma intimida: todos têm receio de violá-la. Essa intimidação, esse receio constituem uma coerção psíquica, que a norma exerce sobre toda a coletividade. E tal coerção é uma forma que também se poderia chamar de coatividade. Considerada como contínua coerção psíquica, essa coatividade pareceria definir, com propriedade, a norma jurídica, porque ela existiria independentemente de qualquer violação do Direito. Com tal acepção, a coatividade constituiria uma qualidade da norma jurídica, ainda mais característica, quem sabe, do que a qualidade autorizante dela. Um flagrante equívoco, porém, invalida essa teoria. O que intimida, o que causa receio, não é, certamente, a própria norma, mas a idéia do que poderá ocorrer, como conseqüência da violação da norma. A intimidação e o receio, inibidores da violação, não se prendem diretamente à norma jurídica. Resultam, isto sim, da previsão das providências que, autorizado pela norma violada, o lesado poderá tomar contra o violador. O que intimida, o que causa receio, não é a norma jurídica, não é a regra num pedaço de papel. O que intimida, o que causa receio, é a reação do lesado, após a ação violadora da norma; é a coação legal, que o lesado fica autorizado a exercer. 95
O violador potencial não tem medo da norma. Ele tem medo do lesado. Logo, se alguma coerção psíquica existe, ela é exercida pela eventual previsão, feita na mente de algum violador potencial, das conseqüências prováveis de um ato ilícito. A coerção efetiva só pode ser executada pelo lesado. A previsão dessa coerção, que é a coerção psíquica, só existe eventualmente, na inteligência de algum violador potencial. Nada mais é preciso dizer para que fique patente que tal coerção, efetiva ou psíquica, não é elemento da norma. Então, impossível se torna definir a norma jurídica por meio desse elemento, que, além de eventual, não lhe pertence. Obviamente, a natureza jurídica da norma não fica na dependência do fortuito aparecimento de alguém que a queira violar, ou do fortuito aparecimento de alguém que não a viola por se achar intimidado. Pode uma norma ser jurídica sem que ninguém a viole jamais, e sem que ninguém a queira violar. Aliás, a mencionada teoria da coerção psíquica é insustentável, a partir de sua primeira premissa. É teoria que se funda numa total inverdade. De fato, a afirmativa de que a referida coerção psíquica se exerce “sobre toda a coletividade” é proposição inverídica, porque não reflete a realidade. Que coerção psíquica poderá existir quando pessoas, comportando-se em consonância com a ordem jurídica, estão agindo de acordo com sua vontade? Nenhuma, evidentemente. Ora, o que sucede, nas sociedades humanas, é precisamente isto. A maior parte dos membros de uma coletividade, deixando-se conduzir por simples razões da inteligência, se comporta voluntariamente em consonância com os mandamentos da ordem jurídica. Muitas são as pessoas que concordam com as disposições das normas. Esta singela verificação já revela a falsidade da afirmação de que toda a coletividade sofre a coerção psíquica do Direito. Que coerção exercem as normas sobre a multidão que concorda com elas? Pessoas existem, certamente, que discordam de uma ou outra norma, ou, mesmo, de um sistema de normas, mas essa discordância não significa que tais pessoas sejam contrárias à vigência e eficácia de uma ordem jurídica. Por quererem viver num ambiente de ordem e por um imperativo da razão, voluntariamente se submetem às normas em vigor, mesmo nos casos em que delas discordem. As pessoas obedecem voluntariamente ao Direito, por uma imposição racional. 96
E não poderia ser de outra maneira. Nas ocorrências de todos os dias, melhor é viver em paz com a sociedade do que em guerra contra ela. Melhor, pois, é viver de bem com a ordem jurídica do que viver constrangido por ela. Ora, agir simplesmente segundo o que é usual e cadimo não é agir sob coação. Por conseguinte, as pessoas de uma coletividade, ao viver normalmente, agindo de acordo com suas próprias determinações, estarão se comportando em conformidade com a ordem jurídica da comunidade a que pertencem. Isto acontece até mesmo com as pessoas que não têm consciência das normas jurídicas a que se sujeitam. O comportamento livre se coaduna com as prescrições do Direito. As exceções a esta regra não fazem mais do que confirmála. Ora, quem age de acordo com sua vontade não age coagido. A vida humana tornar-se-ia intolerável se viver de acordo com o Direito fosse viver contrariado. Aliás, seja dito de passagem que as normas de um Direito legítimo são fórmulas da ordem almejada por uma sociedade concreta. A ordem jurídica é legítima quando é a ordem querida pela coletividade. O Direito vigora sem coagir. Este é o regime normal. Nos Estados de Direito, o Direito coativamente imposto é a rigorosa exceção. Nos chamados Estados de Fato ou Estados Autoritários, também chamados Estados Discricionários e Arbitrários, em todos os tipos de Estados de Força, o Direito é coativamente imposto, deixando de ser propriamente Direito, porque atenta contra a normalidade, tornando-se o antidireito, a contrafação do Direito (Direito artificial e ilegítimo). À vista do que acaba de ser descrito, impossível se torna definir a norma jurídica pela referida “coerção psicológica”. O que define a norma jurídica — nunca é demais repeti-lo — não é a coerção, mas o autorizamento, do qual decorre a autorização para exercer coação, quando necessária. § 37. A coação CONTRA O DIREITO Até este momento, cuidamos, apenas, da coação a serviço do Direito. Resta examinar os casos em que a coação surge, no mundo jurídico, como violência contra o Direito. É evidente que toda violação de norma jurídica é atentado contra o Direito. Mas o de que aqui se trata é, especificamente, dos casos de coação contra a liberdade de fazer o que o Direito não proíbe, e de não fazer o que a lei não manda fazer. 97
Tais casos são: 1) o da coação viciadora do ato jurídico; e 2) o da coação impeditiva do uso de direitos. 1) A coação como violência viciadora do ato jurídico. O ato jurídico (de que se vai tratar oportunamente) é um ato livre, pelo qual uma pessoa procura produzir, deliberadamente, um determinado efeito jurídico. São exemplos de atos jurídicos: os contratos em geral (como a venda e compra, o empréstimo, a doação, a locação, o contrato de trabalho, de empreitada, de prestação de serviço), a rescisão de contrato, a convenção antenupcial, o casamento, o divórcio, a constituição de sociedade civil ou mercantil, o testamento. Cumpre salientar que o ato jurídico há de ser a manifestação livre da vontade de quem o pratica. Se não o for, o ato estará viciado. Pode ocorrer que o ato jurídico seja praticado por quem não o queria praticar, mas o praticou sob coação. Pode o ato extorquido apresentar-se com a forma exata do ato jurídico, mas não será nunca um verdadeiro ato jurídico, porque lhe falta uma nota essencial: falta-lhe ser a manifestação da vontade de seu autor. Neste caso, a coação, anulando ou deturpando a vontade do agente, desnatura o ato jurídico, desfigura-o e, quem sabe, o aniquila. A coação viciadora do ato jurídico pode ser física ou psíquica. A coação física é a que se exerce diretamente sobre o corpo da vítima, com o emprego de meios físicos, que a forçam ou induzem a praticar um ato jurídico que ela não praticaria voluntariamente. Esta coação, por sua vez, pode ser absoluta ou relativa. A coação é absoluta quando o meio empregado pelo coator exerce tal pressão física sobre sua vítima que esta não tem força muscular suficiente para dela se livrar, sendo compelida, sem alternativa, a fazer o que lhe é imposto. A coação física é relativa quando o meio empregado pelo coator, embora dirigido diretamente contra o corpo de sua vítima, coloca o coagido diante de uma alternativa: ou pratica o ato, ou sofre a execução do que lhe está sendo ameaçado. A coação psíquica difere da coação física por não se exercer diretamente sobre o corpo da vítima, mas sobre seu ânimo, com o emprego de meios psíquicos, causando medo, com ameaças de males e desgraças, que os coatores prometem infligir se sua vítima se negar a fazer o que lhe é exigido. Exemplo típico da coação psíquica é a chantagem. 98
É necessário advertir que nem toda coação é tida como capaz de viciar o ato jurídico. O Código Civil, em seu art. 151, dispõe: “A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens”. Assim, para que a coação seja considerada, pela lei, vício do ato jurídico, é preciso que ela seja a causa determinante do ato, e que incuta ao paciente um temor justificado. Este justificado temor se há de referir a um dano iminente e considerável, afetando a pessoa do próprio paciente, sua família, ou seus bens. “Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial” (Código Civil, art. 153). Os atos jurídicos, viciados pela coação, incluem-se na categoria dos atos anuláveis (Código Civil, art. 171, II). A prática da coação viciadora do ato jurídico constitui o crime de constrangimento ilegal. Este crime consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda” (Código Penal, art. 146). 2) Coação como violência impeditiva do uso de direitos. O tipo de coação, do qual agora se vai tratar, é uma figura autônoma de coação. Não se confunde com a figura que acaba de ser descrita. Os termos, com que tal coação é aqui designada, não devem levar ao equívoco da referida confusão. Esta coação consiste na restrição ou suspensão dos direitos de pessoas e entidades, por determinação discricionária do Poder Executivo, em regimes discricionários, com violação de normas constitucionais, que consagram as garantias desses mesmos direitos. Tal coação consiste na aplicação de medidas “punitivas” especiais, não constantes da legislação penal. Estas medidas são criadas em leis sui generis, leis “editadas” pelo Poder Executivo, em desacordo com os mandamentos da Constituição, e sem obediência às normas regulamentadoras do processo legislativo. Leis que não passam de decretos autoritários. Em regra, tais leis emanam diretamente do Chefe do Estado. Às vezes, porém, após serem propostas pelo Executivo, são aprovadas por submissos Parlamentos, já flagelados por essas mesmas medidas punitivas. 99
Recebem nomes diversos, nos diversos países em que são adotadas. São designadas, comumente, com títulos pomposos, como, por exemplo, os de Proclamações, Pronunciamentos, Disposições do Governo, Atos Institucionais. Com o correr do tempo, porém, se continuam em vigor, recebem, do próprio Poder Público, o apelido de Leis de Exceção. As medidas cominadas por essas leis passam a ser chamadas medidas de exceção. Tais nomes pretendem significar que as mencionadas leis e medidas, que só suscitam a imagem de sofrimentos e aflições, são providências provisórias, para solução de dificuldades passageiras. Diga-se, a bem da verdade, que medidas de exceção, nos dias subseqüentes a revoluções vitoriosas, talvez possam ajudar a consolidar as posições conquistadas, e criar as condições necessárias para a revelação das primeiras direções políticas do Governo triunfante. Mandamentos rigorosos, sustentados até pelas armas, podem ser tolerados, quem sabe, por alguns rápidos dias, quando constituem um meio para dominar o tumulto, para obter um mínimo de ordem, enquanto se prepara o advento da nova legalidade. Suportam-se medidas de exceção em efêmeros tempos de exceção. Mas, uma vez normalizados os tempos, a providência natural e imediata é a de abolir tais medidas, porque nada mais as justifica. Pois, o que todos querem não é a ordem pelo pavor das armas, mas a paz, regida por normas de Justiça e de Direito. Medidas de exceção só se admitem na qualidade de medicação heróica, em momentos de grave perigo para o bem-comum. Em todas as ocasiões, porém, mesmo nos referidos momentos de perigo, elas não perdem, nem poderão perder jamais, seu caráter de “odiosa restrigenda”, como as qualificou Ruy Barbosa. Pois bem, a coação da qual aqui se trata não é a que os Comandos vitoriosos exercem, por necessidade momentânea, logo após o triunfo de uma revolução. A coação de que agora se está cuidando é a das medidas de exceção não abolidas. É a das medidas provisórias que permanecem, que perduram, que continuam a ser aplicadas, após a consolidação das posições conquistadas pelos chefes do movimento. É, portanto, a coação de leis que deveriam ter sido revogadas, mas não o foram; de leis emergenciais, transitórias por natureza, mas que tendem a tornar-se permanentes, e que, por este preciso motivo, conferem ao Governo o caráter de autoritário e arbitrário, em caminho para a ditadura. E é, também, a coação renitente, de novas medidas, que, em vez de serem abolidas da vida nacional, voltam a ser 100
reeditadas, num desabrochar incontido de leis de exceção, impostas por governantes que se apegaram, ferrenhamente, aos postos de comando, e que não se conformam com a idéia de os deixar. Essa coação é uma violência contra o Direito, porque ela viola a Constituição e fere a normalidade instituída. As leis de exceção têm um só objetivo: o de fortalecer o Poder Executivo, para que este possa anular ou vencer seus adversários. Para fortalecer o Executivo, a tendência é ampliar a área de sua competência e, portanto, arredar os limites constitucionais, fixados para a sua atuação. Estes limites, como é sabido, são os determinados pelas garantias dos direitos do cidadão — garantias que são conquistas da cultura, e que as Constituições consagram, como evidentes sinais de aprimoramento moral, na história da humanidade. As leis de exceção suspendem as garantias constitucionais dos Direitos Subjetivos. Isto representa um violento retrocesso na caminhada da civilização. A conseqüência é óbvia. Por meio dessas leis, o Executivo se sobrepõe à Constituição. Com isto, o que se verifica é um atentado a um princípio soberano, princípio resultante de uma longa evolução da cultura política, o Princípio da Constitucionalidade, segundo o qual os Governos e os governantes, tanto quanto os governados, devem submeter-se aos preceitos da Constituição. Com a violação desse princípio e a suspensão arbitrária das garantias constitucionais dos direitos, caem por terra muitos limites impostos pela Lei Magna à ação do Poder Executivo. Escancara-se a porta do despotismo. Então, com área ampliada de atuação, o Poder Executivo passa a intervir em domínios que a Constituição lhe interditava, porque são os domínios da liberdade, nos quais o cidadão deve poder exercer, sem restrições do Poder Público, toda a gama de seus Direitos Subjetivos. Intervindo em tais domínios, agentes do Poder, acobertados pelas próprias forças do regime discricionário, começam a exercer, como é natural, pressões descabidas, às vezes horrendas; a fazer chantagens indecorosas, impedindo que as pessoas e as entidades usem normalmente todos os seus direitos. Supérfluo, nesta exposição, o relato de tais violências. Mas uma observação final se impõe. Tais coações, que tomam, como foi dito, o nome de medidas de exceção, constituem um flagrante exemplo de violação das leis, e uma demons101
tração escandalosa de desprezo pela ordem constitucional, ou seja, pela normalidade fundamental da Nação. Nefasto exemplo, este, porque é dado de cima. Exemplo extraordinariamente fecundo, cujos efeitos se alastram por toda parte. Onde leis de exceção, por qualquer motivo, ou sem motivo, revogam a Constituição; onde os Poderes Públicos se sobrepõem à ordem instituída, empregando discricionariamente medidas anormais, o que se vê é o imediato descrédito do Direito e da Justiça. Em conseqüência, irrompem, em todos os setores sociais, incontroláveis torrentes de corrupção e de criminalidade. Governo e Povo passam a viver em regime de licenciosidade consuetudinária. Tais são os efeitos do arbítrio, quando atos de violência e coação do Poder Público restringem ou suspendem o uso normal dos direitos das pessoas.
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CAPÍTULO X
A DEFINIÇÃO DA NORMA JURÍDICA
§ 38. A definição completa da NORMA JURÍDICA ou NORMA DE DIREITO A definição completa da NORMA JURÍDICA — da NORMA DE DIREITO — é a seguinte: IMPERATIVO AUTORIZANTE, HARMONIZADO COM A ORDENAÇÃO ÉTICA VIGENTE. Tal norma é imperativa, porque é um mandamento. É autorizante, porque autoriza a reação competente contra o ato que a viola. É um imperativo harmonizado com a ordenação ética vigente porque, pelo simples fato de ser norma, é mandamento condizente com o que é tido como normal (veja § 8). Exemplo de norma jurídica: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (Código Civil, art. 927). Esta norma é um imperativo, porque manda o causador do prejuízo reparar o dano. E autorizante, porque autoriza o lesado a exigir, pelos meios competentes, reparação adequada. E imperativo harmonizado com a ordenação ética vigente porque é mandamento condizente com um sentimento comum de justiça e com o que é tido como normal, dentro do grupo em que a norma vigora (veja §§ 9 e 10). Anormal, incongruente com a ordenação ética vigente, seria admitir o 103
contrário do que a norma jurídica dispõe, isto é, aceitar que o causador da violação não seja obrigado a reparar o dano. O anormal não deve ser tido como normal, como norma. Não deve ser erigido à dignidade de norma jurídica (embora, às vezes, o seja). Na definição da norma jurídica, o termo imperativo revela que as normas jurídicas são imposições de dever e, portanto, são fórmulas para o comportamento humano, uma vez que somente o ser humano se submete a deveres. Tal termo indica que as normas jurídicas pertencem ao gênero das leis imperativas, isto é, ao gênero das leis éticas (e não ao gênero das leis físicas) (veja §§ 13 a 15). Na definição da norma jurídica, o termo autorizante, cujo sentido conhecemos, revela a qualidade característica, o traço distintivo da norma jurídica, ou seja, a nota que a diferencia das demais normas. Com a definição dada, construída com os termos imperativo e autorizante, a norma jurídica fica definida por seu gênero próximo e sua diferença específica. Fica, pois, definida corretamente, de acordo com o que manda a Lógica: “Definitio fit per genus proximum et diferenciam specificam”. Muitas são as espécies de normas jurídicas. As leis formam uma dessas espécies. Todas as leis são normas jurídicas. Mas muitas normas jurídicas não são leis, como vamos verificar no Capítulo seguinte.
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CAPÍTULO XI
O DIREITO OBJETIVO. O DIREITO POSITIVO
§ 39. Noção do DIREITO OBJETIVO As normas jurídicas constituem, em conjunto, o direito chamado Direito Objetivo. Como se vê, o Direito Objetivo é o direito composto de normas. Ele é o complexo de todas as normas jurídicas, ou seja, de todos os imperativos autorizantes. O termo objetivo é aqui empregado com seu sentido correto. É palavra provinda do verbo latino objacere, que significa jazer diante, estar diante. O termo objeto designa a coisa colocada diante de quem a conhece; e o termo objetivo indica a qualidade da coisa de se achar apresentada à inteligência conhecedora. Ora, as normas são “mensagens”; logo, são objetos. São objetos para todos a que são dirigidas; para todos que se devem guiar por elas, e que, portanto, precisam conhecê-las. São objetos para sujeitos. São objetos porque se colocam diante das pessoas, ou seja, diante da inteligência que as conhece. São objetos da inteligência. São objetos porque se apresentam como ordenação instituída, coisa feita e inconcussa, à qual o comportamento das pessoas se deve sujeitar. O direito na acepção objetiva — o direito como norma ou como conjunto de normas — exerce um papel semelhante ao das setas, nas encruzilhadas dos caminhos. “Siga por este caminho”, diz a seta. A seta é o símbo105
lo de um mandamento, a expressão visual de uma norma. Ora, as setas são objetos: acham-se colocadas diante dos olhos do viajante. A qualificação de objetivo, atribuída ao direito-norma, se impõe necessariamente, porque um outro direito existe, que não é objetivo, mas subjetivo. A qualificação de objetivo, na designação do direito-norma, é necessária para distingui-lo e diferenciá-lo desse outro direito. Ela é que revela, de imediato, a nota que o especifica, como logo se perceberá. Na acepção subjetiva, o direito não é norma. Não é mandamento. Não é objeto. Não se confunde, pois, com o direito-norma, que é o Direito Objetivo. Mas, do Direito Subjetivo, não cuidaremos neste Capítulo. Não o definiremos aqui. Dele, trataremos na 3ª Parte deste livro. Numerosas são as espécies de normas jurídicas de que se compõe o Direito Objetivo. Por seus fins, pelas suas origens, pelos processos de sua elaboração, tais normas se diferenciam umas das outras, e se agrupam em categorias diversas, como passamos a explicar. § 40. As categorias do Direito Objetivo As normas do Direito Objetivo nascem de sete fontes distintas. Conseqüentemente, ordenam-se em sete categorias diferenciadas. A primeira fonte dessas normas é o Poder Constituinte. O Poder Constituinte é o Poder do Povo de ditar a Constituição fundamental do Estado. É o Poder de definir o regime político e o sistema de Governo. É o Poder de criar os órgãos principais do Poder Público, fixando-lhes as atribuições, as competências, as limitações. É o Poder de firmar os princípios gerais do sistema tributário, da ordem econômica e financeira, e da ordem social. E é o Poder de consagrar a Carta dos Direitos Humanos, em defesa da vida, da liberdade, da igualdade, da segurança e da propriedade, como barreira ao arbítrio dos Governos e à exploração do homem pelo homem. Em suma, o Poder Constituinte é o Poder do Povo de elaborar e promulgar a CONSTITUIÇÃO, como explicaremos no Capítulo XIV. Tal Poder é exercido pela Assembléia Constituinte. A Assembléia Constituinte é um congresso extraordinário de Deputados e Senadores, eleitos pelo Povo, para o fim exclusivo de dar ao País a Constituição almejada pela Nação. Uma vez cumprida a sua missão, deve a Constituinte encerrar a sua atividade, e dissolver-se* .
* É comum a conversão da Assembléia Constituinte em Congresso Nacional. Esta prática é condenável, porque a vocação e as aptidões de uma assembléia eleita, especifica-
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Os mandamentos e disposições da Constituição formam a primeira categoria das normas do Direito Objetivo. A segunda fonte das normas do Direito Objetivo é o Poder Legislativo, em suas três esferas: federal, estadual e municipal. O Poder Legislativo é o Poder do Povo de elaborar as leis em geral, que são leis sobre o estado e a capacidade jurídica das pessoas, e sobre os vínculos de direito que entre elas se formam, na vida de todos os dias. É, também, o Poder do Povo de declarar, em lei, as ações consideradas crimes e contravenções, e de enunciar as penas comináveis a seus autores. Ao próprio Poder Legislativo, compete dispor acerca de sua organização interna. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, ou Parlamento (Câmara dos Deputados e Senado), pelas Assembléias Legislativas dos Estados e pelas Câmaras Municipais. Para os atos finais do Processo Legislativo (para a sanção, promulgação e publicação das leis), este Poder conta com a participação do Poder Executivo, nos termos da Constituição. As leis em geral formam a segunda categoria das normas do Direito Objetivo. A terceira fonte das normas do Direito Objetivo é o Poder Executivo, em suas três esferas: federal, estadual e municipal. O Poder Executivo é o Poder do Chefe do Governo — Presidente da República, Governadores dos Estados, Prefeitos —, fonte dos imperativos da disciplina e da administração pública, e das normas necessárias para o correto cumprimento das leis. Suas normas são decretos, regulamentos, portarias, instruções, avisos, circulares, etc. Também é da competência do Poder Executivo apresentar ao Poder Legislativo, para o normal processamento parlamentar, os projetos das leis que o Governo julga necessários para o bem do País. Em casos de relevância e urgência, não sendo possível aguardar a elaboração das leis adequadas, o Poder Executivo Federal pode expedir, excepcionalmente, normas ocasionais, com força de lei, que recebem o nome de medidas provisórias (Constituição, arts. 62; 84, IV; 136 e 138).
mente, para elaborar uma Constituição não costumam coincidir com a mentalidade e os objetivos de grande parte dos políticos do Congresso Nacional. Por prudência, a Assembléia Constituinte e o Congresso Nacional devem ser eleitos separadamente. Sobre este assunto, vamos nos deter no § 59.
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Finalmente, o Poder Executivo Federal é fonte de normas do Direito Internacional, isto é, dos tratados, convenções e atos, sobre o relacionamento do País com Estados estrangeiros, ad referendum do Poder Legislativo. Todas as normas emanadas do Poder Executivo formam a terceira categoria das normas do Direito Objetivo. A quarta fonte das normas do Direito Objetivo é o Poder Judiciário. O Poder Judiciário é o Poder dos Juízes e Tribunais, fonte das decisões exaradas nos autos de ações em juízo, e constante de acórdãos, sentenças, despachos. É fonte, também, da lei que dispõe acerca do Estatuto da Magistratura, em consonância com o que dispõe a Constituição. Todas as normas emanadas do Poder Judiciário formam a quarta categoria das normas do Direito Objetivo. A quinta fonte das normas do Direito Objetivo são os usos e costumes, nos casos em que a lei e os Tribunais assim os admitem e assim os consideram. O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. As normas somente fundadas em usos e costumes, quando reconhecidas como imperativos autorizantes, formam a quinta categoria das normas do Direito Objetivo. A sexta fonte das normas do Direito Objetivo são os princípios gerais do direito, nos casos em que forem tidos como fundamentos ou manancial de inspiração de decisões judiciais. Exemplos dos princípios gerais do direito, consagrados expressamente em leis diversas: Todos são iguais perante a lei; Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei; Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a comine; Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece; A lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada; A lei civil dispõe para o presente e o futuro, e não tem efeito retroativo; A lei penal nova retroage quando beneficia o réu; A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Os princípios gerais do direito são normas e são fontes de normas, e constituem a sexta categoria das normas do Direito Objetivo. A sétima fonte das normas do Direito Objetivo é a vontade autônoma das pessoas: é a autonomia da vontade, como se costuma dizer. Desta fonte, provêm os contratos de todo gênero e os convênios; as normas estatutárias, 108
institucionais ou corporativas de todas as associações, como contratos sociais de sociedades e empresas, estatutos, regimentos e regulamentos de instituições; as normas resultantes de convenções coletivas do trabalho. Acrescentemos a esta lista as curiosas normas reveladas em usos e costumes, firmemente fundados no consenso público, embora destituídos de verdadeiro valor jurídico, por falta de base legal, mas verdadeiramente atuantes, como, por exemplo, a norma costumeira das “filas”, obedecidas diante dos guichês. Essa multidão de disposições dos inúmeros centros de irradiação normativa, espalhados por toda a sociedade, forma a sétima categoria das normas do Direito Objetivo. As seis primeiras categorias de normas constituem, dentro do Direito Objetivo, o Direito chamado Direito Positivo, de que vamos tratar no § seguinte. § 41. Noção do DIREITO POSITIVO. Noção jurídica da LEI As normas das seis primeiras categorias, mencionadas e discriminadas no § anterior, constituem o direito chamado Direito Positivo. Por ser formado de normas jurídicas, o Direito Positivo é sempre Direito Objetivo. Mas nem todo o Direito Objetivo é Direito Positivo. Não são Direito Positivo as normas jurídicas da sétima categoria, referida no § anterior. Não são normas do Direito Positivo as normas nascidas da vontade autônoma das pessoas — normas estas que constituem uma parte considerável do Direito Objetivo (contratos, estatutos, convenções, convênios, regimentos, regulamentos, etc.). Como se vê, o Direito Objetivo é o gênero do qual o Direito Positivo é uma espécie. Giorgio del Vecchio disse: “O Direito estatal representa só uma espécie, ou melhor, uma fase, por mais importante que seja, do gênero ou categoria lógica do Direito” (Sábios em torno do Estado, Roma, 1935). Mas o Direito Positivo é a espécie preponderante. É a espécie ditada pelo Poder Político da sociedade. Ressaltando este caráter do Direito Positivo, Maria Helena Diniz o definiu: “conjunto de normas estabelecidas pelo poder político, que se impõem e regulam a vida social de um dado Povo em determinada época” (Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, Capítulo III, l, A). Pelo fato de ser a ordenação emanada do Poder Político da sociedade — ou seja, do Poder Constituinte e dos três Poderes do Estado —, o Direito 109
Positivo predomina. Ele prevalece sobre as normas de todos os contratos e de todas as ordenações particulares dos grupos sociais, dos “corpos”, das inúmeras entidades intermediárias de que a sociedade global é constituída. Prepondera e prevalece, porque o Direito Positivo é a ordenação mais alta, a ordenação soberana. As outras ordenações a ele se submetem necessariamente, porque, como é óbvio, só pode haver uma ordem num todo, como só há uma ordem num organismo. “Um só sistema jurídico pode existir numa comunidade jurídica, isto é, num país regido por um mesmo direito”, disse Claude Du Pasquier (Introdução à Teoria Geral e à Filosofia do Direito, § 27, n. 161). Em outras palavras: Todas as ordenações jurídicas das sociedades intermediárias — dos grupos sociais, dos “corpos”, das instituições —, assim como as das relações jurídicas entre pessoas, hão de se harmonizar com a Constituição e com as normas promulgadas pelo Governo da sociedade global. Os Direitos Objetivos dessas sociedades intermediárias e dos contratos em geral hão de sujeitar-se ao que está disposto no Direito Positivo. Hão de apoiar-se neste Direito. Georges Renard mostrou, em sua Filosofia da Instituição, que o pluralismo das ordenações institucionais precisa ser um pluralismo ordenado, ou, melhor, que as ordenações das instituições precisam harmonizar-se com as ordenações que lhes sejam superiores, e estas, afinal, com a ordenação do todo. A ordem social, disse Renard, abrange o complexo de todas as ordenações, nos diversos graus da hierarquia institucional. Assim, por exemplo, um contrato de venda e compra há de submeterse aos mandamentos competentes do Código Civil; o regulamento de uma Faculdade há de harmonizar-se com a ordenação universitária estadual, e esta, por sua vez, há de atender às imposições das normas federais do ensino superior. A multiplicidade das ordenações de Direito se verifica na unidade de um só sistema jurídico. Fábio Konder Comparato disse: “É que toda a organização estatal reduz-se, afinal, a uma regulação hierárquica de poderes, formando um sistema, isto é, um conjunto ordenado estruturalmente, em vista de determinada finalidade” (Para Viver a Democracia, 2ª Parte, “Por que não a soberania dos poderes?”). O sistema jurídico uno constitui o Direito Objetivo, dentro do qual o Direito Positivo é a ordenação soberana. Cumpre enfatizar que a ordenação realmente soberana é a ordenação composta das normas chamadas leis. Soberanas, em verdade, são as leis: as 110
Leis Magnas ou Superiores, formando a Constituição, elaborada pela Assembléia Constituinte; e as leis provindas do Poder Legislativo (do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas dos Estados e das Câmaras Municipais). A primazia das leis, entre as normas do Direito Positivo, é tão absoluta e de tal modo flagrante que, na linguagem corrente, esse Direito costuma ser compreendido como a ordenação legal vigente. Por motivos de simplicidade e clareza, às leis e ao conjunto delas estaremos nos referindo ao empregarmos a expressão Direito Positivo, nas páginas seguintes deste livro. § 42. As LEIS na ordem jurídica A lei, em sua mais extensa acepção, é a FÓRMULA DA ORDEM (veja a noção de ordem no § 1). Assim definida, a lei compreende as leis éticas e as leis físicas. As fórmulas da ordem jurídica, as leis do Direito, se incluem entre as leis éticas. Na esfera específica do Direito, o termo lei pode ser tomado num sentido amplo e impreciso, ou num sentido restricto e técnico. Em seu sentido amplo, dentro da esfera do Direito, o termo lei é, aproximadamente, sinônimo do termo norma jurídica. É termo que pode designar quaisquer imperativos autorizantes, ou seja, quaisquer normas do Direito Objetivo (veja § 39). Com essa ampla extensão, é que dizemos: “Os decretos são leis do Executivo”, “A sentença é a lei viva”, “A portaria é a lei da Repartição Pública”, “A instrução ministerial é a lei dos exames vestibulares”, “O estatuto e o regimento interno são as leis da associação”, “O contrato é lei entre as partes”, “No comércio, o costume é lei”, “As regras do futebol são a lei do jogo”. Em sua acepção restricta e técnica, o termo lei só designa as normas produzidas pelos representantes do Povo — Deputados, Senadores, Vereadores —, nas Assembléias Constituintes e nas Câmaras do Poder Legislativo (Câmara dos Deputados, Senado, Assembléias Legislativas dos Estados, Câmaras Municipais). Somente são leis as normas elaboradas pelo Poder Constituinte e pelo Poder Legislativo; confeccionadas com obediência a ritos próprios, chamados processo constituinte e processo legislativo, de que trataremos em outros Capítulos. 111
Não são leis, portanto, em acepção técnica, as normas não produzidas pelos delegados do Povo, não elaboradas regularmente por uma Assembléia Constituinte ou pelo Poder Legislativo. Não são leis (embora sejam normas jurídicas), os decretos, as portarias, as circulares, as instruções, etc., baixados pelo Poder Público. Não são leis, os mandamentos do Poder Executivo em geral, porque não são produzidos pelo processo técnico de elaboração das leis. Tais mandamentos são, isto sim, normas apoiadas nas leis, ou, ao menos, não conflitantes com elas. Se, por vezes, são chamados de lei, é para dar-lhes mais prestígio, mais autoridade. Tal nomeação, porém, é uma simples liberdade de linguagem — liberdade natural, porque se funda na afinidade entre termos da mesma família. Efetivamente, todas as normas jurídicas, como sabemos, são imperativos autorizantes. De fato, a lei é uma norma jurídica. Mas não é uma norma jurídica qualquer. O que a distingue, formalmente, das demais normas jurídicas, é o processo de sua elaboração. Materialmente, a lei se distingue das outras normas jurídicas porque, só ela, se apresenta como emanação da vontade do Povo, uma vez que é elaborada pelos delegados do Povo, na Assembléia Constituinte e nas Câmaras do Poder Legislativo. A proeminência das leis, na ordenação jurídica da Nação, decorre da presunção institucionalizada de que elas exprimem a vontade do Povo. Essa vontade é tida como a fonte do Poder. “Todo o poder emana do Povo”, reza a Constituição (art. 1º, parágrafo único). Tal é, em verdade, o axioma a que se prende a excelsa autoridade das leis. Essencial, pois, na definição das leis, é a menção do processo pelo qual são produzidas, ou seja, a expressa referência ao papel dos delegados do Povo em sua confecção. O simples conceito da norma jurídica (veja § 17) revela o gênero próximo das leis. Mas, para definir a lei adequadamente, é preciso acrescentar, a esse conceito, a diferença específica dela. A lei — a lei jurídica, a lei do Direito — se define nos seguintes termos: IMPERATIVO AUTORIZANTE, ELABORADO EM PROCESSO REGULAR, PELA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE OU PELO PODER LEGISLATIVO. A lei é um imperativo autorizante, porque ela é norma jurídica (veja § 17). 112
Ela é confeccionada em processo regular, porque sua elaboração se realiza em conformidade com o processo constituinte ou com o processo legislativo. Ela é produzida pela Assembléia Constituinte ou pelo Poder Legislativo, porque a lei verdadeira emana da fonte do Poder (emana do Povo). As próprias normas produzidas pelo Poder Executivo — como as chamadas leis delegadas, leis complementares, regulamentos, medidas provisórias — dependem de deliberação do Poder Legislativo, nos termos da Constituição (arts. 61; 62; 68, §§ 1º a 3º; 69; 84, III, IV, XXIII, XXIV). § 43. O primado do Direito Positivo e da lei O primado do Direito Positivo — o primado das leis — se funda num princípio dominante, inscrito na Constituição Federal, e que se enuncia nos seguintes termos: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Isto significa, afinal, que a norma contrária à lei não obriga ninguém a fazer alguma coisa, ou a deixar de fazê-la. Por ser conflitante com o que manda a lei, essa norma não autoriza ninguém a exigir o seu cumprimento. Não autoriza ninguém a utilizar a aparelhagem competente do Governo, para impor qualquer obediência. Vê-se que tal norma não é autorizante. Logo, não é verdadeiramente jurídica. Diga-se, de passagem, que, se uma pessoa for coagida a fazer o que a lei não manda fazer, ou a não fazer o que a lei não proíbe, essa pessoa estará sendo vítima do crime de constrangimento ilegal. É crime de constrangimento ilegal, o ato de “constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”. A pena cominada aos autores deste delito é de três meses a um ano de detenção ou multa (Código Penal, art. 146, caput). Conseqüentemente, não são jurídicas as normas que mandam contra o que manda a lei. Só podem ser consideradas normas jurídicas as normas que forem aptas a ser invocadas como fundamento válido de pretensões submetidas à autoridade incumbida de “distribuir justiça” e de aplicar sanções (podendo essa autoridade ser o tribunal de um Estado evoluído, ou o cacique de uma tribo de índios, ou o juiz de um jogo de futebol). No nível do Estado, como bem sabem os advogados, somente são jurídicas aquelas normas que possam servir de fundamento válido para um 113
pedido em juízo. Isto é: somente são jurídicas aquelas normas que autorizam a movimentação dos órgãos competentes do Poder Público, para compelir os violadores das mesmas a cumpri-las, ou a indenizar o dano causado pela infração, ou a se submeter às penas da lei. Ora, esse fundamento válido somente existe quando a norma invocada é norma do Direito Positivo, ou norma harmonizada com esse direito. Ele não existe quando a norma invocada é norma contrária ao Direito Positivo. No Estado, é evidente que as normas contrárias ao Direito Positivo não autorizam ninguém a requerer as medidas dos órgãos do Poder Público, para exercer, por meio deles, qualquer coação sobre os violadores dessas mesmas normas. Não sendo autorizantes, tais normas carecem da virtude jurídica. Nenhuma cláusula de contrato, nenhuma disposição de estatuto, de regimento, de convenção — enfim, nenhum mandamento — será norma verdadeiramente jurídica se for contrária ao Direito Positivo. Nenhuma norma é verdadeiramente jurídica quando não harmonizada com esse Direito. Dessa harmonia, desse entrosamento ordenado com o Direito Positivo, é que as normas haurem, por assim dizer, sua validade e eficácia. Este é o motivo por que o Direito Positivo é o direito fundamental. Ele é, em verdade, o Direito que assegura a unidade de todo o sistema jurídico. Ele se chama Direito Positivo porque é o mais positivo de todos os Direitos Objetivos. E é o mais positivo porque é posto pelo Poder Constituinte ou pelo Poder Legislativo. Ele recebe a designação de Direito Positivo porque as ordenações dos grupos —“corpos”, instituições, entidades —, de que a sociedade global é composta, só são, positivamente, ordenações jurídicas se estiverem, direta ou indiretamente, apoiadas nele. É chamado Positivo porque é o fundamento da positividade jurídica. Porque é o Direito Objetivo preponderante. O Direito Positivo é o direito contra o qual não há direito. Quando, eventualmente, um Direito Positivo é invocado para combater outro Direito Positivo, somente um desses direitos é Direito Positivo válido. O outro direito terá de ser declarado inválido, inexistente, por decisão dos juízes. Contra o Direito Positivo válido, não há direito nenhum. Às vezes, contra o Direito Positivo, contra qualquer de suas leis, o que há são ideais de Direito, os Direitos ideais, que sempre existiram e sempre atuarão, incansavelmente, no espírito humano — expressões indefectíveis de uma natureza superior, em busca permanente de justiça e eqüidade. 114
Mas os ideais de direito, enquanto ideais somente, ainda não são autorizantes, ainda não são normas jurídicas. Ainda não são leis. Não são mais do que aspirações de direito, simples anseios, representações mentais de um direito desejado. Em verdade, ideais de direito são imaginações apenas. Acontece, porém, que, às vezes, essas aspirações, esses anseios são poderosos. Por seu poder de persuasão e pela pressão dos fatos, eles poderão espelhar-se em usos e costumes, realmente vigentes em certos meios. Chegam, eventualmente, a adquirir, em virtude desses mesmos usos e costumes, o valor prático de direito, no seio dos grupos sociais em que surgem. Chegam a constituir o direito interno de certas coletividades, como sucede, por exemplo, com normas às vezes vigentes em comunidades marginais. Ideais de direito constituem, freqüentemente, as grandes bandeiras de campanhas políticas. Mas a conversão de um ideal de direito em Direito Positivo exige, necessariamente, a interferência do Poder. Para que tal conversão se efetue, é preciso que o ideal se concretize num projeto de lei, e que esse projeto transite pelo Poder Legislativo. É preciso que os Poderes do Estado, por meio de seus órgãos competentes, opte por esse ideal e, num ato decisório, o promova a lei, como teremos ocasião de explicar. Esta lei, assim processada, revoga as leis que lhe são contrárias, e passa a vigorar, como nova norma de Direito Positivo. Esta nova norma de Direito Positivo será, então, uma norma do direito contra o qual não há direito — embora, talvez, contra ela, surjam, no espírito humano, outros ideais de Direito, outras aspirações, outras representações, outras imagens jurídicas... Com acuidade, Miguel Reale observa: “As representações jurídicas, tendentes a se transformar em Direito Positivo, não significam sempre um direito melhor, mas, sim, o direito que se quer” (Teoria do Direito e do Estado, 3ª ed., São Paulo, Martins Ed., 1970, Parte I, Capítulo IV, “Representações Jurídicas e Direito Natural”). Note-se que, no Direito Positivo, certas normas sempre existem que não são verdadeiras normas, porque entram em conflito com a normalidade. Tais normas não se harmonizam com a ordenação ética vigente. Contrariam os anseios generalizados da coletividade. São normas ilegítimas, produtos de erro do legislador ou do arbítrio do Governo. Mas foram elaboradas corretamente, pelos órgãos competentes do Poder, em consonância com o processo legislativo, fixado na Constituição. Em conseqüência, são autorizantes: funcionam como se fossem normas jurídicas perfeitas. Atuam 115
como leis autênticas. Formam um Direito Artificial. Deveriam ser revogadas imediatamente. Mas, muitas vezes, permanecem por longo tempo, e imperam, misturadas com o Direito Positivo autêntico. E é preciso reconhecer que o Direito Artificial exerce papel relevante, na ordenação jurídica da sociedade. (Da validade e legitimidade das leis, e do Direito Artificial, cuidaremos oportunamente.) É claro que as leis ilegítimas vigoram somente até o momento de serem revogadas, em nome da ordem ética vigorante. Mas convém não esquecer que certas leis do Direito Artificial podem não ser revogadas nunca. Podem, mesmo, por força de transformações sociais e da evolução das consciências, ser promovidas, um dia, a leis legítimas. Finalmente, cumpre notar, também, que, no interior das sociedades globais, formam-se, não raro, agrupamentos humanos com ordenações independentes, em conflito aberto com o Direito Positivo. É o que acontece, por exemplo, com as ordenações de sociedades de malfeitores, ou de entidades ou instituições com fins reconhecidamente ilícitos. Mas tais ordenações (que são o Direito Objetivo interno dessas associações) não constituem, aos olhos do Estado, conjuntos de verdadeiras normas, porque são blocos de preceitos contrários à normalidade jurídica. Ante o direito instituído, ante o Direito Positivo, essas ordenações não pertencem ao sistema jurídico da coletividade. São ordenações estranhas, cunhas encravadas no organismo da Nação. Formam, às vezes, um Direito Artificial, como veremos no Capítulo XX.
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CAPÍTULO XII
A SOBERANIA DO ESTADO
§ 44. Noção de SOBERANIA O Direito Positivo é o direito soberano, como se verificou no Capítulo anterior. Este é o motivo pelo qual se diz que o Estado é soberano. O Estado é soberano porque é a fonte promulgadora do direito soberano. O adjetivo soberano significa superior, com a conotação de dominante. Soberano é o dominante, sem nada superior a ele. O substantivo soberano designa a autoridade mais alta ou a entidade mais poderosa. Em suma, soberano é o que tem supremacia, ou seja, o que se impõe como supremo e como subordinante. É o predominante, o prevalecente. Será verdadeira a afirmação de que o Estado é soberano? No mundo moderno, o termo Estado designa A NAÇÃO COM UM GOVERNO INSTITUCIONALIZADO. De fato, o Estado é a Nação governada por uma instituição estruturada e estável. Pois bem, a Nação e o Governo, por meio dos delegados do Povo no Poder Constituinte e no Poder Legislativo, são as entidades que elaboram e promulgam o Direito Positivo. Verdadeira, portanto, é a mencionada afirmação. De fato, o Estado é soberano. Por quê? Porque o direito, que dele emana, é o direito soberano, como dissemos. 117
Em termos de autoridade, a soberania do Estado, fundado no poder primordial do Povo, consiste, afinal, no supremo poder de decidir sobre o que deve e o que não deve ser considerado jurídico, em seu território. Em termos de normatividade instituída, A SOBERANIA DO ESTADO IMPLICA E COMPREENDE A SOBERANIA DE SUA ORDENAÇÃO JURÍDICA. Disse José Eduardo Faria: “soberania e positividade são dois conceitos que se exigem mutuamente: a soberania é o poder originário de declarar, em última instância, a positividade do direito, enquanto positivo é o direito posto e garantido pelo poder soberano do Estado” (Poder e Legitimidade; Introdução, São Paulo, Perspectiva, 1978). Observe-se que a soberania de decisão sobre o jurídico e o injurídico não se estende, apenas, sobre a larga esfera das normas, mas atinge, também, por via de conseqüência, a do comportamento das pessoas. Serão sempre considerados injurídicos e ilícitos (nulos ou anuláveis), os atos violadores do Direito Positivo, ou violadores de qualquer norma jurídica, devidamente harmonizada com esse direito. À vista do exposto, a soberania do Estado se define nos seguintes termos: PODER INCONTRASTÁVEL DE DECIDIR, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, SOBRE A VALIDADE JURÍDICA DAS NORMAS E DOS ATOS, DENTRO DO TERRITÓRIO NACIONAL. A soberania é um poder incontrastável porque é o poder de produzir o Direito Positivo, que é o direito contra o qual não há direito; o direito que não pode ser contrastado. A soberania é um poder de decidir em última instância, porque é o poder mais alto, o poder acima do qual não há poder. Nisto, precisamente, é que se cifra a soberania do Estado. § 45. As funções do Estado A soberania do Estado se manifesta no exercício de suas funções. Para clareza, é oportuno mencionar aqui a divisão das funções do Estado — divisão clássica, que continua válida, com as atualizações impostas pela realidade dos Estados de nossos dias. As funções do Estado se dividem em funções jurídicas e funções sociais. As funções jurídicas são: 1) a elaboração, a aprovação, o sancionamento, a promulgação e a publicação das leis; 2) a defesa da ordem pública 118
(a função da Polícia e do Ministério Público); 3) a “distribuição da justiça” (a função judiciária); 4) a defesa da Nação contra o inimigo externo. Embora esta última função possa parecer descabida entre as funções jurídicas, ela se inclui corretamente nesta classe porque a defesa da Nação, além de exigir as providências óbvias, implica, fundamentalmente, a salvaguarda da soberania do Direito Positivo nacional, contra a implantação e conseqüente soberania do Direito Positivo estrangeiro, no território nacional. Defender a Nação importa assegurar a plena vigência e eficácia da ordem jurídica instituída, contra a imposição, no País, pela força das armas ou por meio de quaisquer outros processos ilícitos, da ordem jurídica estrangeira. As demais funções do Estado, as não jurídicas, as chamadas funções sociais, são as que o Governo exerce na faina — maior ou menor, conforme os casos e as circunstâncias — de garantir ou melhorar as condições de vida dos cidadãos, e de possibilitar ou promover o processo civilizador e o avanço cultural da coletividade. As primeiras, as funções jurídicas, pertencem à própria natureza do Estado. São inerentes ao Poder Público. São funções primordiais e indefectíveis de todos os Governos das sociedades políticas. Não há Governo que não as tenha, porque não há sociedade sem ordem jurídica. Em verdade, a sociedade humana e o Direito são consubstanciais. As segundas, as funções sociais, eram consideradas, no passado, como funções meramente supletivas. Conforme velhas convicções, os Governos precisavam exercê-las, sim, mas a título de colaboração ou cooperação com os particulares, em atividades e obras de interesse público e individual. Eram funções de natureza essencialmente privada, mas que foram sendo executadas também pelo Poder Público, para o fim de intensificá-las, aperfeiçoálas, em benefício da coletividade. Delas, são exemplos as relacionadas com a educação das crianças, com a saúde das pessoas, com o transporte dos cidadãos. Hoje, porém, no atual estágio da civilização, muitas das chamadas funções sociais do Estado tomaram extraordinário vulto entre as atribuições do Governo. Adquiriram excepcional importância para a coletividade. Muitas não podem mais ser consideradas supletivas, porque passaram a ser deveres eminentes do Estado. É o que aconteceu, por exemplo, com as funções concernentes ao ensino, à saúde pública, ao saneamento básico, à habitação popular, ao incentivo à agricultura, à produção e transporte de alimentos, aos transportes coletivos, à preservação da natureza... 119
§ 46. A soberania na ORDEM INTERNA e na ORDEM INTERNACIONAL Cumpre acrescentar que a soberania se manifesta de duas maneiras diferentes. Manifesta-se na ordem interna dos Estados, e manifesta-se na ordem internacional. Na ordem interna, a soberania do Estado reside nesse incontrastável poder de declarar e defender o Direito Positivo nacional. Na ordem internacional, a soberania do Estado reside em seu poder de decidir sobre a validade e eficácia de certas normas jurídicas estrangeiras, dentro do território nacional. Reside no poder de negar e de reconhecer validade e eficácia de certas normas jurídicas estrangeiras, no seu território. Para o correto entendimento da noção de soberania na ordem internacional, é preciso esclarecer que as pessoas de um país, estando em país estrangeiro, continuam submetidas às normas jurídicas de seu país de origem (além de submetidas, como é óbvio, às normas jurídicas do país em que elas se encontram): continuam submetidas a seu “estatuto pessoal”. Mas, uma norma jurídica de seu país de origem só tem eficácia no país estrangeiro se a soberania desse país, por meio de seu próprio Direito Positivo, admitir a validade e a eficácia da referida norma. Em território brasileiro, por exemplo, dentre as normas jurídicas estrangeiras, somente possuem validade e eficácia aquelas que o Direito Positivo brasileiro admitir como eficazes. Ensina Maria Helena Diniz: “Sem comprometer a soberania nacional e a ordem internacional, os Estados modernos têm permitido que, em seu território, se apliquem, em determinadas hipóteses, normas estrangeiras, admitindo assim a EXTRATERRITORIALIDADE, para tornar mais fáceis as relações internacionais, possibilitando conciliar duas ou mais ordens jurídicas pela adoção de uma norma que dê solução mais justa”. (...) “Pela extraterritorialidade aplica-se a norma em território de outro Estado, segundo os princípios e convenções internacionais. Classicamente denomina-se ‘estatuto pessoal’ a situação jurídica que rege o estrangeiro pela lei de seu país de origem. Trata-se da hipótese em que a norma de um Estado acompanha um cidadão no estrangeiro para regular seus direitos. Esse ‘estatuto pessoal’ baseia-se na lei da nacionalidade ou na lei do domicílio” (Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1994, Capítulo I, n. 4, p. 16 e 17). De qualquer maneira, na ordem interna ou na ordem internacional, a soberania é sempre a mesma: é sempre o poder incontrastável do Estado de 120
decidir, em última instância e em todo o seu território, sobre a juridicidade das normas e dos atos. Mas é preciso ressaltar que, tanto na ordem interna como na ordem internacional, a soberania é um poder somente atuante dentro da órbita das competências do Estado. De fato, o Governo é soberano, mas só é soberano dentro dos limites de suas competências nacionais. Nenhum Estado é soberano relativamente a outro Estado. Soberania conota superioridade, supremacia, predominância, como foi explicado. Logo, constituiria verdadeiro contra-senso a afirmação de que os Estados são soberanos em suas relações internacionais. Como podem todos os Estados ser superiores a todos os Estados? Há uma incongruência insanável nessa idéia de soberania. Na ordem internacional, o Estado é soberano, sem dúvida. Mas não o é porque seja superior a qualquer outro Estado. Ele é soberano, na ordem internacional, porque não há nenhum Estado estrangeiro que lhe pode impor, legitimamente, um Direito estrangeiro. O Estado é soberano, na ordem interna e na ordem internacional, porque o seu Governo (o seu Poder Legislativo, o seu Poder Executivo e o seu Poder Judiciário) é a única autoridade competente para decidir sobre o Direito vigente e válido em seu território. O Estado é soberano porque o seu Direito Positivo é soberano, em todo o território nacional. Na relação entre os Estados, o que existe não é soberania, mas igualdade dos Estados. O que se quer, o que se almeja é a igualdade e a autonomia dos Estados, para que os Governos resolvam, com independência, em defesa dos autênticos interesses das respectivas Nações, os seus problemas de relacionamento internacional. Ao firmar o princípio da “igualdade dos Estados soberanos”, Rui Barbosa disse em Haia: “Soberania quer dizer igualdade”. É preciso reconhecer que a idéia de soberania, como poder supremo de cada Estado, dentro de seu território, vem evoluindo em consonância com as transformações do mundo moderno. Alguns fatos concretos revelam a passagem de uma parte das soberanias próprias dos Estados para as soberanias de grandes comunidades de Estados. Motivos ponderosos determinaram essa evolução. O progresso dos meios de comunicação, num mundo cada vez “menor”, e o entrelaçamento mundial dos interesses e dos problemas acarretaram a crescente aproximação dos homens e dos países de todos os quadrantes da Terra. A necessidade 121
de cooperação recíproca dos Estados, a conveniência de legislações homogêneas sobre matérias de interesse comum de Nações diferentes, como, por exemplo, sobre a defesa da paz e sobre a salvaguarda dos chamados “Direitos Humanos”; sobre a saúde dos povos e sobre o meio ambiente; sobre a moeda, o crédito e o comércio internacional; sobre crimes e penas — tudo isto vem concorrendo para a formação de comunidades de Estados, com normas que tendem a ter validade supranacional. Assim surgiram: a ONU (Organização das Nações Unidas), a OMS (Organização Mundial da Saúde), a FAO (Organização pela Alimentação e pela Agricultura), a OMC (Organização Mundial do Comércio), a UNESCO (Organização das Nações pela Educação, Ciência e Cultura), e a OACI (Organização da Aviação Civil Internacional). Assim surgiram a UNIÃO EUROPÉIA e o MERCOSUL. Previmos em edições passadas o surgimento de TRIBUNAIS INTERNACIONAIS para processar, julgar e mandar prender Chefes de Estado discricionários, que hajam atentado contra a vida, a integridade física e a liberdade de seres humanos. Corroborando essa tendência, a Emenda Constitucional n. 45, de 8-12-2004, inseriu na Constituição (art. 5º, § 4º) a previsão expressa de que “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Com o Decreto n. 4.388, de 25-9-2002, foi confirmada em nosso ordenamento a adesão ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
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CAPÍTULO XIII
A CONSTITUIÇÃO
§ 47. Pluralismo de ordenações na unidade do sistema jurídico Ilimitado pluralismo de ordenações, mas pluralismo submetido a um só sistema jurídico nacional. Colossal conjunto de mandamentos autorizantes heterogêneos (desde os mandamentos estipulados nos contratos e nos estatutos, até os constantes das leis), mas conjunto submetido a uma só ordem nacional. O Direito Objetivo, longe de ser um amontoado disparatado de disposições, é um todo harmonioso, obediente a rigorosas hierarquias. E uma só estrutura (veja § 4). “Unidade feita de diversidade”, já dizia Aristóteles, ao se referir à sociedade humana. Da diversidade das ordenações, é feita a unidade do Direito Objetivo. Para assegurar essa unidade, demarcando o regime político e o sistema jurídico do País, uma lei soberana predomina sobre todas as demais leis, prevalece sobre todos os imperativos autorizantes. É uma lei que nenhum mandamento pode contrariar validamente. Que lei é esta? É a Lei Maior, a Carta Magna, que se chama CONSTITUIÇÃO. Que é uma Constituição? § 48. A CONSTITUIÇÃO. Noção de ESTADO A CONSTITUIÇÃO é o ESTATUTO DO GOVERNO. 123
Para bem compreender esta definição é mister lembrar que o Governo, no Estado moderno, não é uma pessoa física; não é a pessoa do governante. No Estado moderno, o Governo é uma instituição. Realidade importante, esta, a que acabamos de nos referir. De fato, o Estado moderno se caracteriza, precisamente, pela qualidade de ser UMA NAÇÃO COM UM GOVERNO INSTITUCIONALIZADO, uma Nação com uma instituição governamental. Na história das Nações, um certo momento existe em que o Governo deixa de ser o governante, o Rei, o Imperador, o Chefe, e passa a ser uma instituição: uma instituição permanente, na qual os governantes são agentes transitórios. A começar desse momento, a Nação se promove à categoria de Estado, na acepção moderna desta palavra. Aliás, a própria palavra Estado, nessa acepção, é nome que só se introduziu na terminologia da Ciência Política a partir de Machiavel (1469 - 1527). Ora, toda instituição há de ter o seu regulamento, sua lei interna, seu estatuto. Isto acontece com todas as instituições existentes. Assim, têm seu regulamento, sua lei interna, seu estatuto, a escola, a universidade, o grêmio, o clube, o sindicato, a sociedade mercantil, a fábrica, a Igreja, a família. As instituições se organizam de acordo com o que se acha estabelecido em seus respectivos estatutos. O Governo, também, se estrutura em conformidade com o que manda seu Estatuto, ou seja, com o que manda a Constituição. É isto, precisamente, o que lhe assegura estabilidade e permanência. § 49. Anseios e rebeldias do Povo, na origem das Constituições As Constituições resultaram de uma longa evolução histórica, de uma longa luta do Povo contra o absolutismo dos monarcas. As Constituições são o coroamento das insurreições dos governados contra a prepotência e o arbítrio dos governantes. A inspiração dessas insurreições, ao longo da história dos povos, é a idéia de que o uso descomedido do Poder constitui abuso intolerável, porque é ofensa à liberdade própria do ser humano. É, em suma, a idéia de que o exercício do Poder não pode ser abandonado ao sabor das vontades discricionárias dos governantes, mas, pelo contrário, precisa ser submetido a uma regulamentação adequada. 124
A História demonstra que esta idéia é uma idéia-força, uma idéia poderosa. É uma idéia que se alastra, afirma e robustece, à medida que o Povo se conscientiza do valor da pessoa humana e do papel instrumental dos Governos. É a idéia, muito simples, mas luminosa, de que o Governo é necessário, porém necessário para servir ao homem, e não para oprimi-lo. Pois bem, essa idéia influente, essa consciência dominadora, é um verdadeiro Poder, é um poder ínsito no coração do Povo. É o poder que se acha na origem dos mais importantes movimentos sociais e das revoluções que mudaram os rumos políticos da humanidade. A história de tal Poder é a história da luta do Povo contra o despotismo dos governantes e a opressão dos regimes. Nessa longa luta, as vitórias do Povo ficaram marcadas pelos pactos que, no decorrer dos séculos, foram sendo impostos aos Monarcas absolutos. Estes pactos eram convenções pelas quais os Reis se comprometiam a respeitar direitos de seus súditos, e a submeter-se a certas normas de governo. Exemplo marcante dos referidos pactos é a célebre Magna Carta, que o Povo revoltado impôs a João Sem Terra, Rei da Inglaterra, em 1214, fixando limitações de seu poder, em respeito a prerrogativas naturais de seus súditos. Outro exemplo, igualmente notável, é a Petition of Right, que os representantes do Povo, na Câmara dos Comuns, impuseram a Carlos I, Rei da Inglaterra, em 1628, proibindo-o de violar direitos tradicionais dos “homens ingleses”. Numerosos foram os referidos pactos, principalmente nos últimos séculos da Idade Média. Tomaram formas diversas, destacando-se os forais e as cartas de franquia, que eram diplomas que os Monarcas tiveram de “outorgar”, e que tinham força de lei. Afinal, como resultado da centenária resistência contra as monarquias absolutas, e como suprema exigência de revoluções vitoriosas, o poder do Povo empolgou os Governos. O absolutismo dos Reis foi substituído pelos regimes sensíveis aos anseios do Povo. Muitas monarquias, como se sabe, cederam lugar a repúblicas. O Poder Público arbitrário foi substituído pelo Poder Público delimitado, devidamente cerceado pelos chamados Direitos do Homem ou Direitos Humanos. O que são, precisamente, os Direitos Humanos, diremos no Capítulo XXXV. Agora, o que cumpre assinalar é que a consagração legal desses direitos ergueu barreiras ao arbítrio dos Governos. 125
Mas, para que tais lindes — limites impostos aos alvitres do Poder — fossem realmente eficientes, não bastou a simples declaração legal dos Direitos Humanos. Foi preciso, também, que a lei estabelecesse a organização do Governo, determinando as competências e atribuições de seus órgãos principais — e, por conseguinte, fixando os limites do Poder Público. Tal lei é que se chama CONSTITUIÇÃO, como já dissemos. Nunca é demais lembrar que a Revolução Francesa trouxe para esta matéria uma expressiva definição. Na célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1879, inscreve-se o seguinte princípio: “Toda sociedade em que a garantia dos Direitos não se acha assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”. É evidente que tal proclamação não exprime, com rigor, a realidade das coisas. Ela não é uma definição perfeita, mas atendeu a uma candente aspiração política, e visou objetivos revolucionários. Essa inovação teve uma importantíssima conseqüência. Ela introduziu, na terminologia do Direito Público, a expressão Estado Constitucional. Esta expressão vem daí. Hoje, chamamos de Estado Constitucional, o Estado cujo Governo tem as suas competências limitadas e em que estão assegurados e garantidos os direitos individuais. A expressão Estado Constitucional se opõe às expressões “Estado de Exceção”, “Estado Absoluto”, “Estado Discricionário”, “Ditadura”. § 50. As matérias constitucionais Por sua própria natureza de Carta Magna — de Lei Maior, destinada a fixar a estrutura do Governo e as competências do Poder, e a sacramentar as liberdades essenciais das pessoas —, a Constituição tem objetos certos, matérias que lhe são específicas. À Constituição, pertence especificamente: a) Fazer a solene Declaração dos Direitos Fundamentais do ser humano. Cumpre-lhe definir os meios jurídicos de garantia desses direitos. b) Fixar o regime político do Estado e o sistema de Governo. Cumprelhe determinar, por exemplo, que o Estado é uma monarquia ou é uma república, e que o sistema de Governo é o presidencialista ou o parlamentarista, ou o misto ou, talvez, algum outro. c) Determinar a organização e estrutura do Governo e de seus Poderes, fixando as atribuições e competências de seus órgãos principais. À Constituição cumpre estabelecer, por exemplo, que os principais Poderes 126
do Governo são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, com áreas próprias e delimitadas de ação. d) Firmar a composição básica, os objetivos e os deveres das Forças Armadas e das Polícias Federais. e) Definir os processos de seleção e designação dos agentes do Poder. À Constituição cumpre estabelecer, por exemplo, que o Presidente da República e os legisladores devem ser escolhidos por eleição do Povo, e que os Juízes devem ser selecionados por meio de concurso no início de suas carreiras. f) Instituir o processo legislativo. À Constituição, cumpre determinar os atos que constituem toda a complexa elaboração das leis, desde a iniciativa dos projetos de lei até a sua sanção, promulgação e publicação. g) Criar e discriminar as fontes de receita do Poder Público. À Constituição, cumpre fixar os tributos que constituem os meios financeiros de que o Governo necessita para o exercício de suas funções. Cumpre-lhe, também, firmar o critério da distribuição dessas fontes e das rendas tributárias entre os Governos da União, dos Estados e dos Municípios. h) Fixar os princípios regedores do orçamento do Governo. À Constituição, cumpre estabelecer as normas a que se devem subordinar, anualmente, o projeto da receita, da despesa e do crédito do Poder Público. Uma vez feita, na Constituição, a solene Declaração dos Direitos do Homem, e uma vez fixadas as competências dos órgãos do Governo, fica criada uma área de liberdade para o cidadão, ou, mais exatamente, um campo desembaraçado, livre de ingerências do Poder Público. Mas a experiência histórica de nossos tempos demonstrou que essa Declaração dos Direitos e essa fixação de competências não foram suficientes para assegurar os direitos fundamentais e as liberdades legítimas do cidadão. No preciso espaço em que o Poder Público ficou proibido de ingressar e interferir, os fortes se prevaleceram da liberdade teórica dada a todos e, como era inevitável, impuseram sua vontade aos fracos. O resultado foi o tácito sancionamento do regime de exploração do homem pelo homem, como condição normal da vida quotidiana. Então, a partir de um certo momento, a luta pela liberdade, de que resultou a consagração constitucional dos Direitos do Homem, se metamorfoseou em luta pela igualdade. A luta pela igualdade consiste, em suma, na luta por direitos reais, direitos concretos, ligados diretamente aos problemas de vida do cidadão, 127
direitos proclamados como Liberdades Democráticas, e que são, afinal, os chamados Direitos Sociais. No Capítulo XXXV, diremos o que são, exatamente, essas liberdades. Resultado e reflexo de todo esse processo histórico, uma Constituição moderna precisa acrescentar um Título ou Capítulo dedicado à Justiça Social. Precisa consagrar os direitos a que os trabalhadores — os economicamente fracos — conferiram o referido nome de Liberdades Concretas ou Liberdades Democráticas. Uma serena meditação sobre a história e a natureza das Constituições nos leva à convicção de que as Constituições têm dois objetivos supremos, que são os seguintes: 1) fixar a estrutura do Estado e delimitar as competências dos órgãos do Governo, com o fim de impedir o arbítrio do Poder Público, e assegurar a liberdade dos cidadãos; 2) determinar a comedida atuação do Poder Público no entrechoque dos interesses particulares, para proteção dos economicamente fracos, contra o arbítrio do Poder Econômico e a exploração do homem pelo homem. Sendo o Estatuto do Poder, a Constituição existe para que o Poder: 1) não se faça arbitrário; 2) não se faça ausente. Em verdade, a Constituição é a Carta de Salvaguarda dos Direitos do Homem e, ao mesmo tempo, o instrumento do Pacto de Garantia das chamadas Liberdades Democráticas. § 51. A estabilidade da Constituição Em razão de seus supremos objetivos, a Constituição é lei que precisa ser muito mais estável do que qualquer outra lei. De fato, os projetos de emendas à Constituição são submetidos, no Congresso Nacional, a um processo muito mais complexo do que o processo a que são submetidos os projetos de emendas às leis ordinárias. Tal processo se acha taxativamente fixado na própria Constituição. Do poder e do processo de emendar a Constituição, cuidaremos no Capítulo seguinte. É costume dividir as Constituições em Constituições rígidas e Constituições flexíveis, conforme a maior ou menor complexidade do referido processo, a que se precisam sujeitar as emendas constitucionais, no Congresso Nacional. 128
§ 52. Constituições não escritas As chamadas Constituições não escritas (como a Constituição da Inglaterra) são Constituições escritas. Mas são formadas de leis esparsas e de normas costumeiras — de leis que são escritas, como todas as leis; e de normas costumeiras, que também se acham consagradas por escrito, nas decisões dos Tribunais e na doutrina dos grandes autores. Estas Constituições não são elaboradas num determinado momento histórico, por uma determinada Assembléia Constituinte. Resultam, pelo contrário, de uma lenta evolução social, não se apresentando como um só conjunto de normas, um só todo, um só código, em cuja capa se possa escrever o nome “Constituição”. São Constituições feitas de normas avulsas, com vigência e eficácia consolidadas por um longo perpassar do tempo — normas que o Povo, o Governo e os Tribunais respeitam como normas constitucionais. Nos raros países em que ainda reinam, a estabilidade das instituições e a segurança dos direitos se acham solidamente alicerçadas em velhas e inabaláveis tradições. § 53. Constituições sintéticas e Constituições analíticas As Constituições podem ser sintéticas ou analíticas. As Constituições sintéticas são as que somente contêm normas sobre matéria estrictamente constitucional. Elas se compõem de princípios gerais, limitando-se a firmar, com simplicidade, as linhas mestras da estrutura do Governo, suas fontes de receita, os princípios regedores de seu orçamento, suas funções jurídicas e funções sociais, e as chamadas liberdades democráticas. As Constituições analíticas são as que não se restringem a normas sobre matéria estrictamente constitucional. São Constituições que incluem regulamentações específicas de matérias não constitucionais, de competência da legislação ordinária. A experiência tem demonstrado que as Constituições analíticas são causa de problemas constantes. O que se acha estabelecido na Constituição não pode ser objeto de nova regulamentação, a não ser por meio de emenda à Constituição. Ora, dificultoso é o processo de emendar a Constituição, como se vai ver no Capítulo seguinte. E, muitas vezes, a transformação das circunstâncias, as exigências imprevistas da vida requerem novas soluções para antigos problemas. E a Constituição analítica poderá ser uma pedra no caminho da evolução, prejudicando o progresso do País. 129
§ 54. O Estado Constitucional e a Democracia Escrita ou não escrita, sintética ou analítica, a Constituição é a lei mais alta, a lei soberana do Estado. Ela é a Carta Magna, com a qual se devem harmonizar todas as leis do País. Dessa harmonia, dependem a unidade da ordem nacional e a coerência de todo o sistema jurídico. O Estado regido por uma Constituição — como já dissemos — é o que se chama Estado Constitucional, ou Estado de Direito, em oposição às ditaduras e aos Estados autoritários, em que os mandamentos de uma Constituição são substituídos pelo arbítrio dos governantes. Mas, cuidado! Há ditaduras constitucionais. Há ditadores que decretam, arbitrariamente, a Constituição que melhor lhes convém. A história dos povos apresenta muitos exemplos. O Estado Constitucional legítimo, porém, é o Estado contrário ao Estado do Poder arbitrário. É o Estado em que o Poder do Governo emana do Povo, e em nome do Povo deve ser exercido (veja a Constituição, art. 1º, parágrafo único, e as Constituições anteriores do Brasil). A esse Estado Constitucional é que atribuímos o nome de Estado Democrático. A DEMOCRACIA pode assumir formas diversas. Mas, na sua essência, a Democracia é sempre um REGIME QUE PROCURA ASSEGURAR A PENETRAÇÃO DA VONTADE DOS GOVERNADOS NOS ÓRGÃOS PLANEJADORES DO GOVERNO. Isto significa que a Democracia é sempre um regime em que a vontade dos governados influi nas decisões dos governantes. Para atingir seu objetivo, a Democracia pressupõe a presença do Povo no Governo. Não sendo possível, no mundo de nossos dias, a presença de toda a população no Governo, deve o Povo, organizado em seus partidos e suas instituições sociais, escolher seus delegados, para que falem e decidam em seu nome. À Constituição, compete determinar os canais da Democracia, isto é, as vias pelas quais se há de fazer a penetração da vontade geral e da vontade das instituições representativas do Povo nos órgãos legislativos e nos demais órgãos planejadores do Governo. O princípio de que todo o Poder emana do Povo, que é o fundamento da Democracia, torna-se o critério para a distinção entre lei legítima e lei ilegítima. Da legitimidade das leis, trataremos no Capítulo XX. 130
Das leis, a fonte legítima originária ou primária é a coletividade a que elas dizem respeito; é o Povo, ou o setor do Povo, ao qual elas interessam — coletividade e Povo em cujo seio as idéias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida. O único outorgante de poderes legislativos é o Povo. Somente o Povo tem competência para escolher seus delegados. Somente os delegados do Povo são legisladores legítimos. A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna, por ele também elaborada, e que é a Constituição*. Nas Democracias, o Poder do Povo de legislar se converte em dois Poderes específicos: no Poder Constituinte e no Poder Legislativo. Desses Poderes, trataremos nos Capítulos seguintes.
* Sobre a livre eleição desses legisladores, e sobre os magnos problemas da representação política e da fidelidade partidária — tratamos, especificamente, no livro O Povo e o Poder, Ed. Juarez de Oliveira, 2006.
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CAPÍTULO XIV
O PODER CONSTITUINTE
§ 55. Que é o PODER CONSTITUINTE? O PODER CONSTITUINTE é o Poder do Povo de decidir sobre a constituição fundamental do Estado. É o Poder de elaborar e promulgar a CONSTITUIÇÃO — a Carta Magna do País. É o Poder que define o regime político do Estado e o seu sistema de Governo. É o Poder de criar os órgãos principais do Poder Público, fixandolhes as atribuições, as competências e as limitações. É o Poder-Fonte, a fonte dos demais Poderes do Estado. Dele é que derivam e dependem os outros Poderes. Os outros três Poderes do Estado são por ele criados e definidos. São, pois, Poderes constituídos. O Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário não se confundem com o Poder Constituinte, que é o Poder que lhes deu origem e competências. Sendo o Poder de fixar limites aos Poderes do Governo, o Poder Constituinte é o Poder do Povo de proclamar os Direitos do Homem, os chamados Direitos Humanos — aqueles direitos que formam uma barreira contra o arbítrio dos governantes. É, também, o Poder do Povo de incluir, entre as missões do Poder Público, a de assegurar os direitos chamados Direitos Concretos ou Liberdades Democráticas dos trabalhadores de todas as profissões e categorias — aquelas liberdades ou direitos que se contrapõem à exploração do homem pelo homem. 133
O Poder Constituinte é exercido pela ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE, eleita pelo Povo. § 56. O caráter revolucionário do Poder Constituinte A elaboração e promulgação de uma Constituição se verifica em dois casos, a saber: 1) no caso de abolição do absolutismo, e conseqüente instalação do Estado de Direito; 2) no caso de rompimento com as estruturas constitucionais de um Estado de Direito vigente, e conseqüente criação de novas estruturas constitucionais. Em qualquer desses casos, a elaboração e promulgação de uma Constituição legítima só se fazem como coroamento de revoluções vitoriosas, ou como fato inicial de uma revolução em marcha. Isto não significa que a elaboração de uma Constituição esteja sempre ligada a movimentos armados. Há revoluções que se fazem sem recurso às armas. Em política, há revolução quando há abolição ou ruptura do regime ou das instituições vigentes. Há revolução quando há rompimento com o velho, para o advento do novo; quando o velho regime, que é renegado, é substituído pelo regime novo, idealizado e desejado pela absoluta maioria da população. Há revolução quando há “contradição” entre o velho regime e o novo. Mas essa contradição precisa ser entendida corretamente. Ela é um fato normal no processo do desenvolvimento social. Da luta permanente entre tendências contrárias, é natural que resulte, em certos momentos históricos, a dissipação de coisas velhas e o surgimento de coisas novas. Nisto reside a contradição referida. Tal contradição, que implica substituição do velho pelo novo, pode ser chamada de negação, porque ela é, efetivamente, a negação daquilo que envelheceu. Mas o desenvolvimento social — como, aliás, o desenvolvimento de todas as coisas do mundo — não se reduz à simples destruição do que é velho. A negação, de que depende o desenvolvimento, não é uma negação qualquer. Ela é uma negação dialética, porque ela não é a negação de tudo, mas apenas a negação do que acabou. E ela compreende um outro aspecto 134
do desenvolvimento, que é o da conservação ou recepção do que, no velho, permanece hígido, válido e viável. O novo surge do próprio seio do velho, e conserva o que há de bom, no que lhe antecedeu. O regime novo leva consigo o patrimônio de tudo quanto o passado acumulou de positivo. Em conseqüência, a referida negação não deixa de ser nexo entre o velho regime, que se vai, e o novo, que vem tomar o lugar do velho. A elaboração e promulgação de uma Constituição não implicam o rompimento com a história e a experiência política de um Povo e de uma Nação. O que tais atos significam é o rompimento com um regime que se quer abolir ou se quer alterar substancialmente, dentro do processo de desenvolvimento do Povo e da Nação. Tal rompimento configura o que se chama revolução. Uma revolução não é um simples golpe armado, um simples golpe de Estado. Ela não visa a mera substituição de governantes, a transferência do Poder, das mãos de uns para as mãos de outros. Nem mesmo se pode chamar de revolução o movimento que objetive fazer emendas à Constituição, mas que a conserva no que ela tem de principal. Revolução é muito mais do que isto. Ela é a proclamação da ruptura de um regime, a renegação de nervos e fibras do sistema político vigente. Ela é renovação, anúncio de novas estruturas governamentais. A história das Nações revela, é certo, que, muitas vezes, o advento de uma nova Constituição é o natural desfecho de revoluções armadas. São, como foi dito, o coroamento de grandes subversões sociais, sustentadas pela força das armas. Nesses casos, os vitoriosos tomam o Poder e proscrevem o regime político derrotado. Em nome do Povo, convocam eleições gerais, para a escolha dos representantes da sociedade civil. E instalam a Assembléia Constituinte, com o fim de elaborar uma Constituição em consonância com os ideais inspiradores da revolução. Mas uma Assembléia Constituinte pode não ser o remate de uma insurreição armada, como já dissemos. Ela pode ser a promotora do ato de abertura de uma revolução não armada, mas necessária, que está por fazer. Uma revolução não armada está por fazer quando o sentimento de que é necessário mudar as instituições se generaliza por todo o País; quando governados e governantes comungam na mesma convicção de que a Constituição vigente precisa ser substituída por outra Constituição. Tal sentimento, tal convicção, tem causas numerosas. 135
No Governo, nos Partidos ou grupos que se acham no Poder, a idéia de mudar a Constituição — de mudar, quem sabe, o estado e a situação em que os políticos dominantes se encontram — não costuma ser idéia espontânea dos detentores dos cargos públicos, mas resulta, quase sempre, da contingência política, em que o Governo é colocado, de ter de atender a pressões populares insubmissíveis e incontroláveis. Aliás, os progressos institucionais, mesmo quando realizados pacificamente, sempre são conquistas do Povo, e não dádivas dos Governos. No Povo, o sentimento generalizado de que é preciso mudar a Constituição resulta do conflito ou contradição entre as realidades novas da vida e a ordenação velha do Estado. É um sentimento de protesto contra a ordenação constitucional vigente, que impede a eclosão das grandes reformas sociais que o País exige. E é, também, não raro, um sentimento de revolta contra muitas coisas: contra o desempenho negativo do Congresso Nacional e de outros Poderes da República; contra a falta de canais idôneos de comunicação entre os diversos setores da coletividade e os órgãos legislativos e planejadores do Governo; contra violências, desmandos e escândalos públicos, que permanecem impunes, comprovando, aos olhos de todos, a deterioração das instituições. Quando a consciência nacional, manifestada pelas vozes representativas da sociedade (e, às vezes, por certas lideranças do próprio Governo), pede uma nova Constituição, compete aos Poderes instituídos convocar eleições gerais, para que o Povo escolha seus delegados legítimos, que irão compor uma Assembléia Constituinte soberana. § 57. Poder e missão da ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE Fundamentalmente, o Poder Constituinte pertence ao Povo. Por via de conseqüência, pertence aos delegados do Povo na Assembléia Constituinte. A ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE é uma reunião de delegados do Povo (Deputados), num lugar certo, com a missão específica de elaborar e promulgar uma Constituição. A Assembléia Constituinte, assim formada, tem uma grande missão revolucionária. Sua missão é a de elaborar uma Constituição inspirada nas idéias que determinaram sua convocação. O caráter revolucionário dessa missão é o que justifica a convocação da Assembléia Constituinte. Sem rompimento com a velha ordenação constitucional, não há nenhum motivo para os trabalhos de uma Assembléia Constituinte e para a 136
elaboração de uma nova Constituição. Sem rompimento, a velha Constituição se mantém. Esta ruptura — esta negação dialética da ordenação constitucional vigente — é o primeiro passo da revolução não armada, que está por fazer; o ato de abertura dessa revolução, do qual a Assembléia Constituinte é a promotora. É preciso assinalar, com clareza, que o Poder da Assembléia Constituinte é um Poder originário, autônomo e incondicionado. É originário, porque é o Poder que está na origem de todos os Poderes do Estado; é o Poder-Fonte, o Poder do Povo, que não tem nenhum Poder por detrás dele, ou acima dele. Não é um Poder conferido por outro Poder. Ele é que confere Poder aos órgãos do Governo, como foi explicado. Observe-se que o Poder da Assembléia Constituinte não é um Poder constitucional. A Constituição não o menciona. Tal Poder é anterior à Constituição. A própria Assembléia Constituinte é que o encarna. Ela é que é a criadora da Constituição. A Constituição é criatura do Poder da Assembléia Constituinte. Nunca será demais frisar que o Poder da Assembléia Constituinte não é um Poder do Governo. Não pode ser equiparado aos três Poderes clássicos: ao Poder Legislativo, ao Poder Executivo e ao Poder Judiciário. Ele é um Poder anterior e superior a tais Poderes. Além de originário, o Poder da Assembléia Constituinte é um Poder autônomo. Isto significa que ele se rege por si mesmo. É um Poder que leva em si a sua própria lei. Suas deliberações excluem qualquer constrangimento exercido por outro Poder. Finalmente, o Poder da Assembléia Constituinte é um Poder incondicionado. Isto significa que suas deliberações não dependem da verificação de nenhuma circunstância ou conjuntura que outro Poder estabeleça ou determine. Sendo autônomo e incondicionado, o Poder da Assembléia Constituinte é um Poder soberano. Uma importante observação deve aqui ser acrescentada. Embora original, autônomo e incondicionado, o Poder da Assembléia Constituinte não é ilimitado. Tal Poder não é ilimitado em razão do próprio fim para o qual a Assembléia Constituinte é convocada. Note-se que a Assembléia é convocada para o fim de elaborar uma Constituição. Mas a Constituição que a Assembléia Constituinte deve produ137
zir não é qualquer Constituição. É, isto sim, uma Constituição conforme aos anseios da coletividade, ou seja, uma Constituição consagradora das concepções atuais e dominantes de normalidade. O Poder da Assembléia Constituinte, embora soberano, não é o Poder de promulgar uma Constituição insólita, discrepante do quadro geral das convicções vigentes sobre a ordem social e política, e sobre os direitos e as liberdades do cidadão. Impossível olvidar que a Constituição é uma lei; e que as leis podem ser legítimas e ilegítimas, como veremos no Capítulo XVII. Ora, o que se quer, evidentemente, é que a Constituição seja legítima. O que se quer é que a Constituição seja compatível com o sentimento geral de normalidade. Assim, o princípio da legitimidade das leis se erige como limite imposto ao Poder da Assembléia Constituinte. Da legitimidade das leis, cuidaremos adiante, no Capítulo XX. Aliás, o Poder da Assembléia Constituinte não é mais do que uma expressão do Poder Constituinte do Povo. Não deve, pois, a Assembléia Constituinte contrariar as convicções generalizadas da coletividade. A Assembléia Constituinte que o fizer cometerá traição contra o Povo. Uma vez elaborada e promulgada a Constituição, a Assembléia Constituinte terá cumprido a sua missão, e deverá dissolver-se*. § 58. As emendas à Constituição. O PODER CONSTITUINTE DERIVADO Aqui, um fato precisa ser lembrado. A Assembléia Constituinte, por meio de disposições da própria Constituição, pode outorgar ao Congresso Nacional o poder de emendar a Constituição. Neste caso, o Poder Constituinte estará delegando ao Poder
* Convém lembrar que, por vezes, o Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas (Câmara dos Deputados, Senado, Assembléias Estaduais), destinados à elaboração das leis ordinárias, são alçados à categoria de Assembléias Constituintes; e estas, depois de cumprida sua egrégia missão de elaborar a Constituição, são, por vezes, convertidas em Congressos Nacionais e Assembléias Legislativas, com função legislativa ordinária. Tais práticas, desaconselhadas pela experiência das Democracias modernas, repudiadas pela boa doutrina, são mantidas com certa freqüência, por motivos vários, entre os quais se incluem o subdesenvolvimento cultural e os interesses políticos particulares, que não costumam ser confessados publicamente.
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Legislativo Ordinário um Poder Constituinte Extraordinário, que necessita definição exata. Em primeiro lugar, cumpre assinalar que o Poder Constituinte de emendar a Constituição é um Poder Constituinte Derivado. É derivado porque não é o próprio Poder Constituinte; não é o Poder Constituinte Originário e soberano. É derivado porque deriva do Poder Constituinte Originário, ou seja, provém de uma decisão da Assembléia Constituinte; nasce de uma disposição da Constituição. É Poder que não existe se o Poder Constituinte Originário não o tiver criado, expressamente, nos termos da Constituição. Não se confundem os dois Poderes Constituintes. O primeiro é um Poder originário: pertence diretamente ao Povo; pertence aos delegados do Povo na Assembléia Constituinte. Não há nenhum Poder superior a ele, nenhum Poder que o tenha criado. O segundo é um Poder derivado, porque é um Poder constituído: é constituído por determinação do Poder Constituinte Originário. É um Poder Constituinte Constituído. O órgão que o detém não é a Assembléia Constituinte, mas o Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado). É exercido, pois, pelo simples Poder Legislativo*. Em segundo lugar, cumpre não esquecer que o Poder Constituinte Derivado se limita a ser o Poder de emendar a Constituição. Sobre o Poder de emendar a Constituição, algumas observações precisam ser feitas. A primeira é a de que esse Poder não é o Poder de fazer uma Constituição. Não é o Poder de substituir a Constituição vigente por outra, por uma Constituição a que se confira o pseudônimo de “Emenda”. Em razão de sua própria natureza, o Poder Constituinte Derivado não tem competência para mudar a ordenação fundamental do Estado, fixada pelo Poder Constituinte Original. As emendas à Constituição não podem afetar o sistema político, o regime de governo, a estrutura dos Poderes, a Declaração dos chamados Direitos Humanos ou Direitos do Homem. Não podem restringir as Liberdades Democráticas. Não podem alterar a ordem econômica e social, estabelecida pela Assembléia Constituinte.
* Observe-se que a distinção entre o Poder Constituinte Originário e o Poder Constituinte Derivado não existe nos países em que a Constituição é feita de leis ordinárias, elaboradas pelo Parlamento, segundo as normas de processo legislativo comum, adotado para a produção de todas as leis. Em tais países, o mesmo Poder Legislativo gera tanto as leis ordinárias como as leis da Constituição. É o que acontece, por exemplo, na Inglaterra. Sobre este assunto, reveja o § 52: as chamadas “Constituições não escritas”.
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Nenhuma razão haveria para a existência de uma Assembléia Constituinte se as emendas à Constituição, promulgadas pelo simples Poder Legislativo, pudessem redundar na confecção de uma Constituição nova. Note-se, finalmente, que o Poder de emendar a Constituição é disciplinado pela própria Constituição, ou seja, pelo Poder Constituinte Original. É um Poder demarcado, rigorosamente sujeito aos termos da Constituição. Para ser, efetivamente, o esteio firme das instituições e o título de segurança dos direitos e das liberdades, as Constituições costumam determinar, em seu próprio texto, o processo especial para sua alteração ou emenda. Não é fácil mudar os artigos da Constituição. Segundo o que manda a Constituição brasileira, ela só pode ser emendada mediante proposta: I — de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II — do Presidente da República; III — de mais da metade das Assembléias Legislativas estaduais, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (art. 60). A proposta deverá ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos. Estará aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos parlamentares (art. 60, § 2º). A emenda é promulgada pelas Mesas da Câmara e do Senado (art. 60, § 3º). Não poderá ser objeto de deliberação, a proposta de emenda tendente a abolir: I — a forma federativa do Estado; II — o voto direto, secreto, universal e periódico; III — a separação dos Poderes; IV — os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º). A matéria constante da proposta de emenda rejeitada, ou havida por prejudicada, não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (art. 60, § 5º). § 59. Distinção entre Assembléia Constituinte e Congresso Nacional Não se pense que o Congresso Nacional, por ser composto de legisladores eleitos pelo Povo, se acha credenciado para produzir a Constituição que o Povo deseja. Esse credenciamento não existe. Quando o Povo elege seus Delegados para o Congresso Nacional, designa Deputados e Senadores para as missões específicas do Poder Legislativo. 140
Quando, porém, o Povo elege seus Delegados para a Assembléia Constituinte, designa Deputados incumbidos de elaborar um Estatuto: o Estatuto de uma importantíssima instituição — da instituição chamada Governo. Tal Estatuto é a Constituição. Ora, a tarefa de fazer leis ordinárias não é igual à tarefa de elaborar a Constituição. Para fazer leis ordinárias, o que se exige dos legisladores é fidelidade às idéias do Partido ou do grupo a que pertencem, e competência na defesa dos interesses específicos a que tais leis se referem. Deles não se pede, necessariamente, conhecimentos de Teoria do Estado e de Ciência Política. A tarefa de elaborar a Constituição, porém, pressupõe uma noção arquitetônica do Estado, um conhecimento global dos Poderes e dos órgãos do Governo, tudo isto subordinado à idéia soberana dos direitos fundamentais da pessoa humana, e ao propósito de promover a Justiça Social, pela garantia das liberdades e prerrogativas concretas dos trabalhadores de todas as categorias. Para tão alta missão, requisitos especiais se exigem dos legisladores da Constituição, requisitos que não se pedem, necessariamente, dos legisladores de leis ordinárias. Nítida diferença existe, como se vê, entre a tarefa atribuída pelo Povo aos legisladores do Congresso Nacional e a missão atribuída pelo Povo aos legisladores da Assembléia Constituinte. Haverá, sem dúvida, bons Delegados do Povo para as duas tarefas. Mas, certamente, haverá bons Delegados do Povo para a elaboração de leis ordinárias, que não sejam os Delegados convenientes para a elaboração da Lei Magna. Por outro lado, haverá sempre bons Delegados do Povo para elaborar a Lei Magna, mas que não possam, ou não queiram, ser membros do Congresso Nacional. De qualquer maneira, ao Povo, e ao Povo somente, é que compete dizer quais são os Delegados que ele deseja ver no Congresso Nacional, e quais ele deseja ver na Assembléia Constituinte. Ao Povo, e não ao Presidente da República, nem ao Congresso Nacional, compete dizer quais serão os membros da Assembléia Constituinte. A verdade é esta: a eleição de Deputados e Senadores para a Câmara e para o Senado não credencia o Congresso Nacional para a missão própria da Assembléia Constituinte. Não lhe confere poderes para elaborar e promulgar uma Constituição. Devemos aqui relembrar um fato histórico: o Congresso Nacional brasileiro tem sido promovido, algumas vezes, a Assembléia Constituinte, com 141
o apelido de “Congresso Constituinte”. É evidente que esta prática, inspirada em interesses dos próprios congressistas, constitui uma escandalosa aberração. É uma contrafação. Tal Congresso é um instituto espúrio, com a máscara de Constituinte. A Constituinte autêntica é a Assembléia Constituinte; o Congresso autêntico é o Congresso Nacional. Já demonstramos que a revogação de uma Constituição e a elaboração de outra é uma operação de natureza revolucionária. Para revogar a Constituição e substituí-la por outra, é preciso criar uma instituição que não tenha sido criada pela própria Constituição; uma instituição que não pertença ao organismo governamental do Estado. É preciso criar uma nova entidade — uma entidade que não seja constituída, mas constituinte. Para essa criação, só o Povo tem competência, porque o Povo é fonte do Poder. Nunca é demais repetir o que a própria Constituição reconhece em seu primeiro artigo: “Todo o poder emana do Povo”. Para revogar a Constituição e substituí-la por outra, é preciso convocar o Povo, como já dissemos; convocar eleições gerais, para a formação de uma Assembléia Constituinte soberana — uma Assembléia Constituinte desligada do Poder Executivo, desvinculada do Congresso Nacional, apenas atenta nas realidades profundas da Nação, nos clamores do Povo, que são os verdadeiros motivos de sua convocação. Fora daí, em matéria de formação da Assembléia Constituinte, tudo é erro, de nefastas conseqüências. A referida manobra de apresentar o Congresso Nacional com o nome de Assembléia Constituinte ou de “Congresso Constituinte” lança um manto de irrisão sobre os ombros do Povo. Mas não há quem não veja que a troca de tabuletas, nas portas do Congresso, não confere ao Congresso a natureza de Assembléia Constituinte. Feita a troca das tabuletas, o que continuará existindo é apenas o Congresso Nacional. Apenas existindo o Congresso Nacional, não existirá uma Assembléia Constituinte autêntica. Promovido à Constituinte, investido nominalmente de um Poder espúrio, o Congresso Nacional permanecerá, em verdade, sempre o mesmo. Estará sempre sujeito às mesmas lideranças. Provavelmente, continuará submisso às ordens do Poder Executivo. E se deixará conduzir pelas ambições de seus membros — membros que forçosamente vão permanecer no Parla142
mento, como Deputados e Senadores, depois de promulgada a futura Constituição, por eles elaborada. O Congresso Nacional travestido de Assembléia Constituinte jamais promoverá o ato de abertura da revolução a que já nos referimos. Jamais será o instrumento do protesto nacional contra a ordenação constitucional vigente, que impede a eclosão das grandes reformas. Jamais criará novos canais de representação democrática, novos meios de comunicação entre os diversos setores da coletividade e os órgãos planejadores do Governo. Com o Congresso Nacional usurpando o poder da Assembléia Constituinte e elaborando a futura Constituição, nada vai mudar substancialmente. A própria composição do Congresso ergue uma barreira, por assim dizer intransponível, contra a realização de reformas profundas nas estruturas do Estado. Enquanto dura a usurpação, os donos do Poder continuarão donos do Poder. O Congresso Nacional, travestido de Assembléia Constituinte, vai permanecer um instrumento em suas mãos. Efetivamente, no chamado “Congresso Constituinte”, a atuação dos Deputados e dos Senadores não se poderá livrar de poderosas incitações para favorecer, com normas constitucionais adequadas, suas próprias situações futuras e as situações futuras de seus correligionários e amigos, dentro da organização do Estado. Ora, tais normas, uma vez consagradas na Constituição, podem conflitar com os autênticos interesses do País. Conveniências particulares, ambições pessoais dos políticos tenderão a se misturar com as idéias dos imperativos nacionais. Em torno da atuação do “Congresso Constituinte”, vai pairar, forçosamente, uma aura de desconfiança. A própria Constituição, obra espúria dessa confraria, virá inquinada de suspeição. Não se diga, em defesa do chamado “Congresso Constituinte”, que os mesmos males também viciariam uma Assembléia Constituinte autêntica e sua obra. Ninguém, certamente, teria a ingenuidade de sustentar que uma Assembléia Constituinte autêntica é imune a tais males. Ninguém diria, em sã consciência, que ela estaria livre de pressões corruptoras. Como é óbvio, nenhuma instituição humana será jamais perfeita. Acontece, porém, que, por sua própria natureza, uma Assembléia Constituinte autêntica é corpo muito menos vulnerável do que o “Congresso Constituinte”. Menos vulnerável, sim, em virtude de dois fatores decisivos, a saber: 143
1) a não-vinculação da Assembléia Constituinte a Poder nenhum do Governo; 2) o prazo restricto de vigência da Assembléia Constituinte. Por força do primeiro fator, não há lugar, na Constituinte autêntica, para imposições do Poder Executivo, nem para ingerências espúrias de outros Poderes. A não-vinculação da Assembléia às estruturas do Governo desacredita intromissões de qualquer autoridade em seus trabalhos específicos. Ninguém, nenhum político, nenhuma autoridade, nenhum líder, nenhum maioral, nem mesmo o Presidente da República, tem credencial para querer influir no ânimo da Assembléia e na vontade dos Constituintes. O segundo fator da invulnerabilidade da Assembléia Constituinte é o prazo curto de sua duração. Uma vez elaborada e promulgada a Constituição, uma vez cumprida a tarefa para a qual foi convocada, a Assembléia Constituinte se dissolve. Com a dissolução da Assembléia, extinguem-se os mandatos dos Constituintes. A extinção destes mandatos é decorrência da própria natureza da Assembléia Constituinte. Como ficou demonstrado, uma Assembléia Constituinte autêntica não é o Congresso Nacional com o nome de Constituinte, e seus membros não são Deputados da Câmara, nem Senadores do Senado. Com a extinção obrigatória de seus mandatos, não podem os constituintes pretender a extensão de sua legislatura a período posterior à dissolução da Assembléia Constituinte. Tendo sido eleitos para essa Assembléia, não lhes é permitido transformar a qualidade de seus mandatos, e se investir, sem nova eleição, nas cadeiras de Deputados e Senadores do Congresso Nacional. Como se vê, a Assembléia Constituinte autêntica, diferentemente do chamado “Congresso Constituinte”, não oferece, a seus membros, a principal causa das tentações que assaltam e assanham a alma de muitos políticos. Pela sua não-vinculação com a máquina do Governo, e pelo restricto prazo de sua vigência, a Assembléia Constituinte autêntica tem uma atuação necessariamente circunscrita a seu objetivo específico, que é o de elaborar a Constituição. Por este motivo, tal Assembléia proporciona as condições necessárias para a concentração dos pensamentos e dos esforços de seus membros num ideal único: no de dar ao País uma Constituição, ou no de substituir a Constituição vigente por uma Constituição melhor. Esse ideal é o que confere, como já vimos, à Assembléia Constituinte, seu caráter revolucionário. Aliás, se este não fosse seu caráter, não se vê por que se há de convocá-la. 144
§ 60. O mau exemplo dos “antecedentes históricos” Em defesa da conversão do Congresso Nacional em Assembléia Constituinte, houve quem alegasse os seguintes precedentes históricos. A Constituinte de 1881, que se chamava Congresso Constituinte, exerceu função legislativa ordinária, além de sua função específica, e se converteu em Congresso Nacional, depois de promulgada a Constituição. A Constituinte de 1933 e 1934 exerceu função legislativa ordinária, embora reduzida à tarefa de homologar os atos do Governo Provisório, e determinou, depois de elaborar a Constituição, a sua transformação em Congresso Nacional, violando proibição do ato que a convocara. Finalmente, a Constituinte de 1946, que não teve função legislativa ordinária, foi formada por Deputados e Senadores eleitos especialmente para elaborar a Constituição, mas que permaneceram como Deputados e Senadores do Congresso Nacional, depois de promulgada a Carta Magna. Fundados nesses “precedentes”, os defensores da conversão do Congresso em Assembléia Constituinte sustentam a tese de que tal medida se harmoniza, perfeitamente, com uma velha tradição brasileira. Antes de mais nada, convém lembrar que esses chamados “precedentes” não constituem verdadeiros precedentes, porque são casos que se verificaram dentro de conjunturas históricas que não se assemelham com a situação cultural do Brasil de hoje. Naquele passado, a sociedade civil não se havia ainda dado conta da diferença de natureza entre uma Assembléia Constituinte autêntica e o conhecido Congresso Nacional. Ninguém soara o alerta, para esta questão. Ainda não se falava sobre o assunto. Faltava informação, faltava maturidade política para o entendimento de tais distinções. Naqueles tempos, ainda não desabrochara, no Brasil, uma organização popular significativa. Não existiam entidades representativas verdadeiramente atuantes e influentes, capazes de esclarecer e movimentar a opinião pública. Não se ouviam vozes autorizadas de advertência no meio do Povo, nem manifestações respeitáveis de protesto contra o erro cometido, por ocasião desses chamados “precedentes”. O que existia era um eleitorado diminuto e despreparado, exercendo seu direito de voto, sem consciência da distinção entre Deputado da Constituinte e Deputado do Congresso Nacional. Uma anuência tácita, fundada na ignorância, uma presunção de consentimento, garantiu a legitimidade dos Congressos Constituintes do passado. 145
No Brasil de hoje, porém, tudo mudou. Por força de muitos fatores — entre os quais salienta-se a poderosa influência da mídia moderna — grandes setores da população adquiriram uma consciência jurídica que não existia há cinqüenta anos. O que se vê, no Brasil atual, é uma progressiva educação popular, que se revela em permanentes manifestações políticas dos “centros”, “frentes”, sindicatos dos trabalhadores e de outras associações profissionais, da Ordem dos Advogados, dos institutos culturais de todo o gênero, das comunidades de base, dos centros de planificação, das sociedades de moradores de bairros. O que se vê é uma Nação que se vai estruturando rapidamente, e que já manifesta a sua vontade, por meio de seus órgãos naturais e legítimos. Pelas proclamações e advertências de líderes autênticos, pela pregação de incansáveis doutrinadores, a população vem despertando para verdades até agora desconhecidas. Observemos que o Brasil de 1988 se opôs à conversão do Congresso Nacional em Assembléia Constituinte. Contra tal manobra, ergueu-se a sociedade civil. Contra ela, manifestaram-se as entidades mais representativas do País*. Não seriam os alegados “precedentes”, não seriam os erros cometidos no passado, que iriam agora conferir validade a um procedimento reprovável, e legitimidade a um estratagema que contrariou o sentimento e os anseios da Nação. Mas esse procedimento ilegítimo e reprovável, esse estratagema espúrio, foi o que vingou, afinal, no Brasil, em 1988. E a vigente Constituição brasileira, pelo seu vício de origem, não é, exatamente, a Constituição que o País esperava. * Entre outras numerosíssimas entidades, citem-se a Central Única dos Trabalhadores (CUT de São Paulo), a Frente Nacional do Trabalho (FNT), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, a Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos, a Coordenação Nacional da Pastoral Universitária, as Comunidades Universitárias de Base, a Associação dos Docentes no Ensino Superior (ANDES), os Diretórios e Centros de Estudantes de numerosas Faculdades, a Frente Municipalista Nacional, a Associação Brasileira de Juristas Democratas, a Associação dos Sociólogos do Brasil, a Associação Profissional dos Sociólogos do Estado de São Paulo, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, o Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo, a Federação Nacional dos Arquitetos, a Confederação das Famílias Cristãs, o Conselho Estadual da Condição Feminina, a Liga das Senhoras Católicas, a União Nacional dos Servidores Públicos, o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra.
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CAPÍTULO XV
O PODER LEGISLATIVO E AS LEIS
§ 61. Que é o PODER LEGISLATIVO? O PODER LEGISLATIVO não é o Poder Constituinte. Não é o Poder de elaborar e promulgar a Constituição, a Lei Magna. O PODER LEGISLATIVO é o Poder do Povo de elaborar todas as leis, exceto a Lei Magna. Sua composição, assim como suas atribuições e competências, são as fixadas na Constituição. Fundamentalmente, o Poder Legislativo — como o Poder Constituinte — pertence ao Povo, pois “todo o poder emana do Povo”, nos termos da Constituição (art. 1º, parágrafo único). Não podendo ser exercido pela coletividade inteira, o Poder Legislativo pertence aos representantes do Povo, no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas dos Estados Federados e nas Câmaras Municipais de Vereadores. Mas convém lembrar que o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais são órgãos criados pela Constituição. São órgãos da União, dos Estados e dos Municípios. Logo, a composição e os poderes desses órgãos, suas atribuições e competências, são aqueles que a Constituição lhes confere. É evidente, pois, que o Poder Legislativo dessas Casas não é um Poder originário, nem autônomo, nem incondicionado. É Poder que não se rege por si mesmo, porque sua atuação é demarcada pelas normas da Constituição Federal e das Constituições Esta147
duais. É Poder que não leva em si a lei de seu próprio exercício. Não é um Poder soberano. Em sua qualidade de atributo do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras Municipais, o Poder Legislativo é um Poder Constituído (ou instituído), um Poder exercido em conformidade com o que manda o Poder Constituinte. É um Poder submetido à Constituição. Para o exercício desse Poder, como se sabe, o Povo elege seus representantes (que talvez fosse melhor chamar de emissários ou delegados, porque não há uma verdadeira e autêntica relação de representação — no sentido técnico e jurídico — entre os eleitores e os eleitos). Estes “representantes” são Deputados Federais, na Câmara dos Deputados; são Senadores, no Senado Federal; são Deputados Estaduais, nas Assembléias Legislativas dos Estados; são Deputados Distritais, na Câmara Legislativa do Distrito Federal; são Vereadores, nas Câmaras Municipais. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal são as duas Casas de que se compõe o Congresso Nacional (Constituição, art. 44). A Câmara dos Deputados se compõe de “representantes” de todo o Povo da Nação (Constituição, art. 45); o Senado, de “representantes” dos Estados e do Distrito Federal (Constituição, art. 46); cada Assembléia Legislativa, de “representantes” do Povo do respectivo Estado (Constituição, art. 27); a Câmara Legislativa do Distrito Federal e cada Câmara Municipal, de “representantes” do Povo do respectivo Município (Constituição, arts. 29 e 32). § 62. Observações preliminares sobre as leis É óbvio que tudo quanto dissemos, em Capítulos anteriores, sobre as normas jurídicas em geral, se aplica às leis em especial. Conseqüentemente, seria redundante e supérfluo repetir aqui, relativamente às leis, as explanações que, relativamente às normas jurídicas, já fizemos sobre autorizamento (Capítulo V), imperatividade (Capítulo VII), sanção (Capítulo VIII) e coação (Capítulo IX). Para rememoração dessas matérias, basta-nos reler os citados Capítulos. Sobre o conceito jurídico de lei, veja-se o que foi exposto nos §§ 41 a 43 do Capítulo XI. Observemos que uma lei é, muitas vezes, um conjunto de leis. É, muitas vezes, um conjunto de artigos de leis. De fato, aquilo que chamamos lei, e que recebe um número e uma data, não costuma ser uma só lei, mas um conjunto harmônico de leis. 148
Assim, por exemplo, a Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, é o Código Civil. Ora, essa lei contém uma Parte Geral e uma Parte Especial. A Parte Geral se divide em três Livros, e a Parte Especial, em cinco. Há ainda um livro denominado Livro Complementar, que contém as disposições finais e transitórias. Cada um desses Livros se divide em Títulos, e cada Título, em Capítulos. Cada Capítulo contém muitos artigos. Cada um destes artigos é uma lei, ou parte de uma lei. Assim, a citada Lei n. 10.406 é um grande conjunto de leis. Acontece, às vezes, que, num só artigo de lei, há mais de uma norma jurídica, mais de uma lei. É o que sucedia, por exemplo, com o art. 598 do Código Civil de 1916: “Aquele que penetrar em terreno alheio, sem licença do dono, para caçar, perderá para este a caça, que apanhe, e responderlhe-á pelo dano que lhe cause”. Facilmente se percebe que esse artigo do antigo Código contém duas normas jurídicas, duas leis, a saber: 1ª) Se alguém penetrar em terreno alheio, sem licença do dono, para caçar, perderá para este a caça que apanhe. 2ª) Se alguém, caçando em terreno alheio, causar prejuízo ao dono, responder-lhe-á pelo dano que cause. Por outro lado, pode acontecer que a estrutura completa de uma lei necessite de mais de um artigo. Diz Korkounov: “É importante notar aqui que a norma jurídica não é expressa em um só artigo, mas em muitos: o primeiro define; os outros indicam as conseqüências jurídicas ligadas aos atos precedentemente definidos” (Curso de Teoria Geral do Direito, tradução francesa, Paris, V. Giard & E. Brière, 1903, Liv. II, Capítulo I, § 23). Veja-se o que acontece quando o mandamento se acha num artigo, e o enunciado da sanção, em outro. Neste caso, não deve a norma sancionadora ser tida como lei autônoma. Ela é, simplesmente, a segunda parte da lei. A primeira parte é o mandamento; a segunda é o enunciado da sanção. De fato, o enunciado da sanção é um elemento da lei, como já tivemos ocasião de demonstrar (veja Capítulo VIII). Convém lembrar, para evitar equívoco, que o elemento da lei a que nos estamos referindo, é a sanção; não a coação, que é outra coisa, como sabemos (veja Capítulo IX). Lembremos, para clareza, que a sanção legal consiste, precisamente, naquilo que o lesado está autorizado a exigir do infrator, como conseqüência da violação da lei. O autorizamento da lei — nota essencial da norma jurídica — é, unicamente, autorizamento para o uso de sanções. Pelo fato de ser autorizante, a lei está ligada a suas sanções consubstancialmente. Para que serviria o autorizamento se não houvesse o que autorizar? 149
Convém recordar o que foi explicado no Capítulo VIII. A sanção de uma lei pode ser usada, como pode não o ser. Ela não será usada se a lei não for violada, ou não estiver na iminência de sê-lo. Não será usada, também, se o lesado não quiser servir-se dela, como no caso do credor que resolve não cobrar o que lhe é legalmente devido. Mas, usada ou não, a sanção estará sempre ali, prescrita pela lei, como um remédio na prateleira da farmácia jurídica. Usada ou não, a sanção ali estará permanentemente, enunciada no receituário da lei, ligada ao mandamento da norma, sempre pronta para ser utilizada, quando o Direito é ferido, e quando o lesado, num ato de vontade, queira tomar as providências necessárias para a sua aplicação. Não se podem entender normas jurídicas sem sanção. Aliás, as sanções jurídicas também não se entendem sem as normas jurídicas (veja § 29). Mesmo nos referidos casos em que o mandamento da norma se acha num artigo da lei, e o enunciado da sanção em outro ou em outros, a lei é uma só: as duas partes formam uma só unidade (veja § 30). Sejam, por exemplo, os arts. 1.521 e 1.548 do Código Civil. O art. 1.521, I, dispõe: “Não podem casar os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil”. Pela violação desta norma, a sanção é a nulidade, que se encontra estabelecida no art. 1.548, II, que prescreve: “É nulo o casamento contraído por infringência de impedimento”. Nesse exemplo, o mandamento da norma se acha no art. 1.521, e a sanção (nulidade), no art. 1.548. A lei, porém, é constituída pelos dois artigos. Outro exemplo: Reza o art. 1.196 do Código Civil: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. E o art. 1.200 completa: “É justa a posse que não for violenta, clandestina, ou precária”. Destes dois dispositivos, infere-se o seguinte: quem tiver posse não violenta, não clandestina e não precária tem, sobre a coisa possuída, alguns dos poderes inerentes à propriedade. Se o possuidor for impedido, por ação de outrem, de exercer tais poderes, os citados artigos estarão sendo violados. A posse estará turbada, e o possuidor, esbulhado. Neste caso, a sanção aplicável é a dos arts. 1.210, 1.212 e 952. O art. 1.210 dispõe: “O possuidor tem direito a ser mantido na posse, em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”. E o art. 1.212: “O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização, contra o 150
terceiro, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era”. Esta indenização é estabelecida no art. 952: “Havendo usurpação ou esbulho do alheio, além da restituição da coisa, a indenização consistirá em pagar o valor das suas deteriorações e o devido a título de lucros cessantes; faltando a coisa, dever-se-á reembolsar o seu equivalente ao prejudicado”. Todos estes artigos formam uma só lei. Mesmo quando a lei tem diversas sanções e sanções de naturezas diversas, o mandamento da norma e os enunciados de suas sanções formam uma lei única. Expressivo exemplo dessa unidade é fornecido pelos artigos da Parte Especial do Código Penal e pelos arts. 927, 942 e 948 e seguintes do Código Civil. Para os mesmos crimes, o Código Penal comina sanções penais, e o Código Civil, sanções civis. As sanções estabelecidas pela legislação civil, para os autores de crimes, decorrem do que dispõe o art. 927 do Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a reparálo”. Este preceito é completado pelo art. 942 do mesmo Código: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação”. Os arts. 948 a 954 fixam as sanções civis para figuras diferentes de crime. Em conseqüência, uma lei relativa a um determinado crime cominará sempre duas espécies de sanções: uma sanção penal, estabelecida no Código Penal, e uma sanção civil, estabelecida no Código Civil. Assim, por exemplo, para o homicídio, o art. 121 do Código Penal comina a sanção de seis a vinte anos de reclusão; e o art. 948 do Código Civil fixa, também como sanção, uma indenização consistente: “I — no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II — na prestação de alimentos* às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”. Outro exemplo: Para lesões corporais, o art. 129 do Código Penal comina a sanção de três meses a um ano de detenção; e o art. 949 do Código Civil fixa, também como sanção, a obrigação, imposta ao ofensor, de indenizar “o ofendido das despesas de tratamento e dos lucros cessantes até o * O art. 1.694 do Código Civil dispõe: “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
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fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido pode haver sofrido”. Mais um exemplo: Para os crimes de usurpação e esbulho, o art. 161 do Código Penal comina a sanção de detenção, por um a seis meses, e multa; e o art. 952 do Código Civil fixa, como já vimos, uma indenização consistente na restituição da coisa usurpada ou esbulhada, e no pagamento do valor de suas deteriorações, ou, na falta da coisa, no reembolso de seu equivalente ao prejudicado. Em suma, o que se confirma é que, a cada crime do Código Penal, correspondem duas sanções: uma penal e outra civil. Cada lei do Código Penal se completa com uma disposição do Código Civil. Em outras palavras: uma lei penal tem uma de suas partes no Código Penal, e outra, no Código Civil, mas as duas partes constituem uma só lei, porque o mandamento da norma e as sanções formam uma unidade incindível. § 63. A estrutura da lei Sendo norma, a lei é um mandamento: o enunciado de um dever (veja §§ 8 a 10 e § 25). O dever, como sabemos, nunca é absoluto (veja os §§ 11 e 12). Ele é sempre relativo a determinada circunstância. O dever só existe se a circunstância se verifica. Em suma, o dever se exprime assim: “Isto deve ser, se aquilo for”; ou esquematicamente: “Se A é, B deve ser”. A verificação da circunstância é a condição do dever. Não se verificando a condição, o dever não existe. O mandamento da lei, também, somente se impõe se uma certa condição se verifica. Esta condição nem sempre se acha claramente explicitada nos termos da lei, e só se revela mediante a interpretação competente da norma. Mas ela é uma implicação necessária do mandamento, uma vez que a lei só se aplica quando a condição se realiza. As leis — como todas as normas — são mandamentos hipotéticos do tipo condicional, conforme o que dissemos no § 12. E são mandamentos munidos de sanções, nos termos e para os fins explicados nos §§ 29 e 30. Sua estrutura completa é a que se exprime no já conhecido esquema: Se A é, B deve ser. Se B não for, C pode ser. Nesse esquema, C simboliza a sanção, como já mostramos. 152
CAPÍTULO XVI
CLASSIFICAÇÃO DAS LEIS
§ 64. Divisão das leis quanto a sua IMPERATIVIDADE A lei — lembremos — é uma norma imperativa autorizante. Logo, dois fundamentos existem, para a divisão das leis: a sua imperatividade e o seu autorizamento. Segundo sua IMPERATIVIDADE, dividem-se as leis em duas espécies: em leis de imperatividade absoluta, chamadas leis impositivas, e em leis de imperatividade relativa, chamadas leis dispositivas. As leis impositivas — também denominadas absolutas, cogentes (jus cogens), leis de ordem pública — são as que ordenam ou proíbem de maneira absoluta, em determinadas circunstâncias. São leis que, em circunstâncias certas, mandam fazer ou deixar de fazer, ou fixam o estado das pessoas, sem admitir alternativa. Nas condições para as quais são promulgadas, estas leis não deixam margem para o arbítrio das pessoas. Exemplo de lei impositiva: “A habilitação (para casamento) será feita perante o oficial do registro civil” (Código Civil, art. 1.526). Esta lei é impositiva porque é uma determinação que não admite alternativa. Os nubentes, se quiserem realmente casar, hão de habilitar-se perante o oficial do registro civil. Ninguém é obrigado a casar; mas se alguém quiser casar, o art. 1.526 do Código Civil impõe que o casamento se faça perante o oficial do Registro Civil. Esta exigência é absoluta. Se não for atendida — se o casal quiser casar de outra qualquer maneira —, os nubentes 153
não casarão realmente. Sua eventual união não seria casamento, mas poderia configurar união estável, nos termos da lei (art. 1.723). Mais um exemplo de lei impositiva: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de dezesseis anos” (Código Civil, art. 3º, I). Esta lei é impositiva porque não admite alternativa: os menores de dezesseis anos não têm “capacidade jurídica” nenhuma, para os exercícios dos atos da vida civil (entenda-se: “atos jurídicos” como casar, contratar, constituir procurador, fazer testamento, etc.). Conseqüência: tais atos, quando praticados por menores de dezesseis anos, são atos inválidos (portanto, anuláveis), independente da vontade dos interessados. As leis impositivas se subdividem em duas espécies: em leis impositivas afirmativas e em leis impositivas negativas. Exemplo de lei impositiva afirmativa: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis” (Código Civil, art. 1.245, I). Exemplo de lei impositiva negativa ou proibitiva: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva” (Código Civil, art. 426). A imperatividade absoluta das leis impositivas é motivada pela convicção de que certas relações e certos estados da vida social não podem ser abandonados ao arbítrio individual, sob pena de possível prejuízo para a ordem vigente na sociedade. Tais relações e estados exigem regulamentação taxativa, em lei, a fim de evitar que a vontade dos particulares cause perturbações nocivas. As leis impositivas tutelam interesses considerados fundamentais, tidos como enredados nos valores do bem-comum. Este é o motivo pelo qual as leis impositivas são também chamadas leis de ordem pública. Advertimos que essa designação pode levar a confusões. Pode ser tomada, por equívoco, como sinônima de leis de Direito Público. O que são as leis de Direito Público, explicaremos adiante, no Capítulo XXI, quando nos ocuparmos da divisão do Direito em Direito Público e Direito Privado. Verificaremos, então, que as leis de Direito Público são leis de ordem pública, sim, mas que há leis de ordem pública que não são de Direito Público, porque são leis de Direito Privado. Logo, a referida sinonímia não existe, como se vai ver no citado Capítulo. As leis dispositivas, também chamadas facultativas — a segunda espécie de leis, na divisão fundada na imperatividade delas —, são leis que 154
não ordenam nem proíbem de maneira absoluta. Elas se limitam a permitir ação ou abstenção, ou a suprir declaração de vontade inexistente. As leis dispositivas se dividem em leis permissivas e leis supletivas. As leis dispositivas permissivas são as leis que permitem uma certa ação ou uma certa abstenção, em determinados casos. Exemplo de lei permissiva: O contrato de depósito “é gratuito; exceto se houver convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão” (Código Civil, art. 628). Outro exemplo: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (Código Civil, art. 1.639). As leis dispositivas supletivas são as leis que, em determinados casos, no silêncio dos interessados, ordenam o que é necessário para constituir situação, ou para completar declaração de vontade. Exemplo de lei supletiva: “Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial” (Código Civil, art. 1.640). Outro exemplo: “Quando os juros moratórios não forem convencionados..., serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional” (Código Civil, art. 406). A propósito da divisão das leis em leis impositivas e leis dispositivas, cabe uma observação especial. Pode acontecer, vez ou outra, que uma lei originariamente dispositiva permissiva se torne lei impositiva, lei cogente, lei de ordem pública. Isto ocorre em casos especiais, sempre por força de uma natural aspiração de justiça, e da sábia evolução da jurisprudência. É o que sucedeu, por exemplo, com o art. 924 do Código Civil de 1916: “Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento” (atualmente a matéria é regulada pelo art. 413 do Código Civil). A faculdade conferida ao juiz de reduzir ou não reduzir a pena, estipulada no contrato, foi transformada, pela jurisprudência inveterada, na imposição de sempre reduzir a referida pena, ajustando-a à parte não cumprida da obrigação contratual. Aos Tribunais, não pareceu de justiça manter a pena total estipulada no contrato, nos casos em que a mora ou inadimplência só 155
se verificou depois de cumprida uma parte da obrigação. Hoje, ainda quando estipulada, no contrato, a pena total para todos os casos de mora ou inadimplência, deve o juiz reduzi-la, proporcionando-a com a parte não cumprida da obrigação. Assim, a lei originariamente permissiva se transformou, por uma natural aspiração de justiça, numa lei impositiva e cogente. Por essa razão, o Código Civil de 2002 alterou a redação dessa norma determinando expressamente que o juiz deve reduzir eqüitativamente a penalidade (art. 413). A divisão das leis em impositivas e dispositivas tem origem no Direito Romano. Modestino, no fragmento 7º do “De legibus”, diz que a essência da lei é mandar, proibir, permitir e punir. Parece ver-se aí uma classificação das leis em: imperativas, proibitivas, permissivas e punitivas. Entretanto, as leis proibitivas e punitivas são, evidentemente, leis impositivas de negação, e, assim sendo, a divisão romana é a seguinte: leis impositivas de um lado e leis permissivas de outro. § 65. Divisão das leis quanto a seu AUTORIZAMENTO Quanto a seu AUTORIZAMENTO (quanto a suas sanções), dividemse as leis em quatro classes: 1) leis “plus quam perfectae”; 2) leis “perfectae”; 3) leis “minus quam perfectae”; 4) leis “imperfectae”. As leis consideradas mais que perfeitas são aquelas cuja violação ocasiona a aplicação de duas sanções: primeiro, a anulação do ato praticado contra a lei; e, segundo, a aplicação de uma pena ao violador. É exemplo de lei mais que perfeita o art. 1.521 do Código Civil, que dispõe: “Não podem casar ... VI — as pessoas casadas”. Violada esta lei, o segundo casamento é nulo de pleno direito, e o violador, tendo cometido o crime de bigamia, será condenado à pena de reclusão de dois a seis anos, de acordo com o art. 235 do Código Penal. Eis um exemplo típico de norma mais que perfeita, com as duas referidas sanções. As leis consideradas perfeitas são aquelas cuja violação pode ocasionar a declaração de nulidade do ato, mas não determina a aplicação de pena ao violador. Assim, estas leis têm uma sanção apenas. 156
É exemplo de lei perfeita o art. 1.647, I, do Código Civil, que dispõe: “Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta... alienar... bens imóveis”. Violada esta lei — isto é, se um dos cônjuges vender ou doar imóvel, sem anuência do outro —, a alienação é nula de pleno direito, mas a violação não acarreta nenhuma outra sanção contra o violador. As leis consideradas menos que perfeitas são aquelas cuja violação ocasiona a aplicação de pena ao violador, mas não a declaração de nulidade do ato que violou a norma. É exemplo de lei menos que perfeita o art. 667 do Código Civil, que dispõe: “O mandatário é obrigado a aplicar toda sua diligência habitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente”. Violada esta lei, não está nulo o ato do mandatário, mas, ao violador, aplica-se a sanção consistente no dever de reparar o dano. Finalmente, examinemos as normas tidas como leis imperfeitas. Estas normas não são rigorosamente jurídicas, porque não prescrevem nenhum dever e, portanto, não se relacionam com qualquer sanção. Não são propriamente autorizantes. Mas, uma vez efetuado o ato (o pagamento) a que se referem, proíbem recobrar o que voluntariamente foi pago. É exemplo de lei imperfeita, o art. 814 do Código Civil, que dispõe: “As dívidas do jogo, ou aposta, não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou”. Da mesma natureza de lei imperfeita, é o art. 882 do Código Civil, que dispõe: “Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”. Isto significa que, embora as dívidas prescritas não obriguem o pagamento, não se pode pedir de volta (“repetir”) o que se pagou voluntariamente, para solver a dívida. Nos dois casos — no da dívida de jogo e no da dívida prescrita —, o que o credor recebeu foi o que, de fato, lhe era devido. Ora, a obrigação de restituir só onera quem recebeu o que não lhe era devido. É o que manda o art. 876 do Código Civil: “Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir”. Nos citados casos da dívida de jogo e da dívida prescrita, o devedor não está obrigado a pagar, mas, se ele paga, o credor recebe, simplesmente, o que era seu crédito. 157
A divisão que acabamos de estudar tem sua origem no Direito Romano. Ulpiano fez referência a normas que ele denominou “minus quam perfectae lex”. Não menciona, é verdade, as outras classes da divisão das leis quanto a sua sanção (quanto a seu autorizamento). É possível que se tenham extraviado os textos relativos a essas classes. Mas o que parece evidente é que o jurista que se refere a leis menos que perfeitas reconhece, implicitamente, a existência de leis mais que perfeitas e, portanto, de leis perfeitas e imperfeitas.
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CAPÍTULO XVII
A VALIDADE DAS LEIS (1ª parte). DOMÍNIO GEOGRÁFICO E DOMÍNIO DE COMPETÊNCIA DAS LEIS
§ 66. Leis válidas e leis inválidas, leis legítimas e leis ilegítimas As leis podem ser válidas ou inválidas, e podem ser legítimas ou ilegítimas. O válido e o legítimo não se confundem. Igualmente, não se confundem o inválido e o ilegítimo. Devem, pois, ser tratados separadamente. Sobre a validade das leis, uma observação prévia precisa ser feita, em benefício da clareza: a validade das leis, na esfera do Direito, não depende da legitimidade delas. Validade e legitimidade são coisas diferentes. De fato, a validade é uma qualidade jurídica, fundada no Direito Positivo vigente, enquanto a legitimidade é uma qualidade política, fundada na conformidade da lei com a normalidade dominante, em determinada coletividade. Pode uma lei ser juridicamente válida e ser ilegítima, como pode ser juridicamente inválida e ser legítima. Da legitimidade das leis, não cuidaremos neste Capítulo. De tal assunto trataremos no Capítulo XX. 159
No presente Capítulo e no Capítulo seguinte, vamos nos ater, estrictamente, à validade das leis. § 67. As condições da VALIDADE das leis Uma lei é válida quando seu alcance não ultrapassa os limites de seu domínio, e quando ela resulta de uma elaboração correta. Assim, a validade das leis depende das duas condições seguintes: 1) de seu correto domínio; 2) de sua correta elaboração. Quanto à primeira condição de validade, assinale-se que o domínio das leis compreende seu domínio geográfico e seu domínio de competência, como logo se verá. Quanto à segunda condição de validade, cumpre observar que, da correta elaboração das leis, depende, não só a validade delas, mas, também, fundamentalmente, a própria qualidade de lei, alcançada pela norma jurídica. De fato, não é lei a norma jurídica que não tenha sido elaborada em conformidade com o processo instituído para a produção delas. Das duas mencionadas condições da validade das leis (correto domínio e correta elaboração), trataremos neste Capítulo e no Capítulo seguinte. § 68. O DOMÍNIO GEOGRÁFICO das leis federais, estaduais e municipais. A hierarquia das leis (1ª parte) O DOMÍNIO GEOGRÁFICO DA LEI é o campo em que ela impera. É o território da lei: a plaga em que ela reina. Numa Federação, três são os domínios geográficos das leis: o domínio nacional ou domínio da União, que compreende todo o território do País; o domínio estadual, que compreende o território de cada Estado, o território do Distrito Federal e o território de cada um dos chamados “Territórios”; e, finalmente, o domínio municipal, que compreende o território de cada Município. Em razão de seus respectivos domínios geográficos, três são, numa Federação, as categorias de leis: a categoria das leis federais, a das leis estaduais e a das leis municipais. As leis federais têm domínio geográfico nacional. Todas elas imperam em todo o território do País. 160
A lei estadual tem domínio geográfico circunscrito ao Estado ou ao “Território” em que a lei foi elaborada. Notemos que as leis elaboradas no Distrito Federal têm domínio geográfico circunscrito a esse Distrito. A lei municipal tem domínio geográfico circunscrito ao Município que a elaborou. É óbvio que o domínio geográfico das leis federais compreende os territórios de todos os Estados, de todos os chamados “Territórios”, de todos os Municípios do País, e o território do Distrito Federal. Óbvio, também, é que o domínio geográfico de uma lei estadual compreende os territórios dos Municípios do Estado ou do “Território” em que a lei foi elaborada. Acham-se, pois, sobrepostos, uns aos outros, os domínios geográficos das leis. Esta sobreposição implica hierarquia. As leis se hierarquizam em razão da amplitude ou extensão de seus domínios geográficos. As leis federais, com domínio nacional, são, por assim dizer, superiores às leis estaduais. Por sua vez, as leis estaduais, com domínio geográfico circunscrito a seus Estados, são, por assim dizer, superiores às leis municipais. Isto significa, apenas, que, havendo leis inferiores e superiores, não pode uma lei inferior contrariar disposição competente de lei superior a ela: uma lei municipal não pode contrariar disposição competente de lei estadual, e uma lei estadual não pode contrariar disposição competente de lei federal. Convém lembrar que, no alto da hierarquia legislativa, predomina, soberana, a Lei Magna, a Constituição do Brasil, com domínio geográfico e domínio de competência sobrepostos aos domínios de todas as demais leis. Contra a Constituição Federal, nenhuma lei prevalece, nenhuma impera. Em cada Estado, existe, também, uma Lei Magna, a Constituição do Estado, com domínio geográfico e domínio de competência restrictos ao Estado a que ela pertence. Estes domínios das Constituições Estaduais se sobrepõem aos domínios das demais leis estaduais e aos domínios das leis municipais. Acima do domínio das Constituições estaduais, somente existem: 1) o domínio da Constituição Federal; 2) o domínio das leis federais, nas matérias de competência privativa ou de competência concorrente da União, como se verá adiante. Contra as Constituições Estaduais, nenhuma outra lei estadual e nenhuma lei municipal prevalece e impera. É claro que toda essa hierarquia das categorias legais se prende, diretamente, à hierarquia dos órgãos de que as leis emanam. As leis federais são produzidas pelo Governo da União ou Governo Federal, isto é, pelo Congresso Nacional, com sanção e promulgação do 161
Presidente da República. As leis estaduais são produzidas pelos Governos dos Estados Federados, dos chamados “Territórios” e do Distrito Federal, isto é, pelas Assembléias Legislativas dos Estados, pelas Câmaras Territoriais dos “Territórios”, e pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, com sanção e promulgação dos respectivos Governadores. E as leis municipais são produzidas pelos Governos dos Municípios, isto é, pelas Câmaras Municipais, com sanção e promulgação dos respectivos Prefeitos. É óbvio que os mencionados órgãos, de que emanam as leis, têm importâncias diferentes, e se ordenam hierarquicamente, dentro da organização administrativa e política do País. Conseqüentemente, as leis por eles produzidas se dispõem na mesma ordem de importância. Mas a hierarquia das leis precisa ser bem entendida. Ela não é simples, como parece à primeira vista, porque tal escalonamento há de ajustarse com as competências constitucionais das leis, como logo ficará patente (no § 72). § 69. O DOMÍNIO DE COMPETÊNCIA das leis Os órgãos legislativos têm competências próprias. Os órgãos federais, estaduais e municipais têm as competências legislativas que a Constituição Federal e as Constituições Estaduais lhes conferem. Das competências dos órgãos legislativos, decorrem os domínios de competência das leis. Os domínios de competência das leis não se confundem com seus domínios geográficos. Os domínios de competência não são os territórios em que as leis vigoram, mas, sim, as matérias de que as leis podem tratar, ou seja, os objetos próprios, que elas podem, autorizadamente, regular e disciplinar. As competências dos órgãos legislativos da União, dos Estados, dos chamados “Territórios” e dos Municípios se dividem em competências de duas ordens: competências privativas e competências concorrentes. Desta divisão decorre, como é óbvio, a divisão dos domínios de competência das leis. Assim, o Congresso Nacional, que é o órgão legislativo da União, tem competência privativa para legislar sobre determinadas matérias. Isto significa, apenas, que certas matérias são, primordialmente, objetos exclusivos de leis emanadas da União, ou seja, de leis federais. Estas matérias estão designadas no art. 22 da Constituição Federal. Por exemplo, compete privativamente à União legislar sobre: Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Trabalhista, Agrário, Marítimo, Aero162
náutico, Espacial e Eleitoral; sobre desapropriação; sobre serviço postal; sobre sistema monetário; sobre comércio exterior e interestadual; sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia; sobre nacionalidade, cidadania e naturalização; sobre populações indígenas; sobre emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros; sobre condições para o exercício de profissões; sobre organização judiciária; sobre competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais; sobre diretrizes e bases da educação nacional; sobre atividades nucleares de qualquer natureza; sobre defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa civil e mobilização nacional; sobre propaganda comercial. Privativa, também, é a competência da União para legislar sobre matérias designadas em outros artigos da Constituição, como, por exemplo, sobre as seguintes: prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que cause prejuízo ao erário público (art. 37, § 5º); empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública ou de guerra externa, declarada iminente (art. 148, I); empréstimos compulsórios para investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional (art. 148, II); contribuições sociais, “de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas” (art. 149); impostos sobre: I — importação de produtos estrangeiros; II — exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III — renda e proventos de qualquer natureza; IV — produtos industrializados; V — operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI — propriedade territorial rural; VII — grandes fortunas (art. 153); impostos extraordinários, no caso de guerra externa, declarada ou iminente (art. 154); plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais da União (arts. 165 e 166); investimentos de capital estrangeiro e remessa de lucros (art. 172); relações da empresa pública com o Estado e a sociedade (art. 173, § 3º); repressão ao abuso do poder econômico no mercado, na concorrência comercial e no aumento dos preços (art. 173, § 4º); responsabilidade da pessoa jurídica, em atos praticados contra a ordem econômica e financeira, e contra a economia popular (art. 173, § 5º); emolumentos relativos aos atos notariais e de registro (art. 236, § 2º). As matérias mencionadas nesses artigos são domínio de competência privativa das leis federais. Mas a União possui, além de sua competência privativa, uma competência legislativa concorrente, ou seja, uma competência para legislar a res163
peito de matérias sobre as quais os Estados e os Municípios também podem legislar. Isto significa, simplesmente, que certas matérias podem ser objeto de leis emanadas do Congresso Nacional, ou das Assembléias Legislativas dos Estados, ou das Câmaras Territoriais (dos “Territórios”, ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal), ou das Câmaras Municipais. Muitas destas matérias se acham designadas na Constituição. De fato, o art. 24 da Constituição prescreve que, à União, aos Estados e ao Distrito Federal, compete legislar concorrentemente sobre: I — direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; II — orçamento; III — juntas comerciais; IV — custas dos serviços forenses; V — produção e consumo; VI — florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; VII — proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII — responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IX — educação, cultura, ensino e desporto; X — criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; XI — procedimento em matéria processual; XII — previdência social, proteção e defesa da saúde; XIII — assistência jurídica e defensoria pública; XIV — proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência; XV — proteção à infância e à juventude; XVI — organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis. Concorrente, também, é a competência da União para legislar sobre matérias designadas em outros artigos da Constituição, como, por exemplo, sobre: reserva percentual dos cargos e empregos públicos para pessoas deficientes, e critérios de admissão das mesmas (art. 37, VIII); contratação por tempo determinado, pelo Poder Público, para casos de excepcional interesse (art. 37, IX); limite máximo de remuneração dos servidores públicos, e relação de valores entre esse máximo e a remuneração mínima (art. 37, XI); criação de empresa pública, de sociedade de economia mista, de autarquia e de fundação pública (art. 37, XIX); regime jurídico e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas (art. 39); contribuição, cobrada dos servidores públicos, para o custeio, em benefício deles, de sistemas de previdência social (art. 149, parágrafo único). As matérias mencionadas nesses artigos se incluem entre as que formam o domínio de competência concorrente das leis federais, ou seja, o domínio de competência das leis federais, estaduais e municipais. 164
Cabe ao Congresso Nacional dispor sobre todas as matérias de competência da União, tanto as de sua competência privativa como as de sua competência concorrente (Constituição, art. 48). Assinale-se que as questões específicas das matérias do domínio privativo das leis federais podem ser objeto de leis estaduais, nos casos em que isto for permitido por lei complementar da Constituição (Constituição, art. 22, parágrafo único). No âmbito de seu domínio concorrente, as leis federais se limitam a ser disposições de natureza geral (Constituição, art. 24, § 1º). Estas disposições admitem a competência suplementar de leis estaduais (Constituição, art. 24, § 2º). Inexistindo lei federal em domínio concorrente, leis estaduais têm competência plena, nesse domínio, para atender a peculiaridades dos respectivos Estados (Constituição, art. 24, § 3º). Mas, sobrevindo lei federal, com as referidas disposições gerais, no mesmo domínio concorrente, ficam suspensas as leis estaduais, no que lhe forem contrárias (Constituição, art. 24, § 4º). Uma vez firmados, nos termos acima, os domínios de competência das leis federais, ficam patentes os domínios de competência das leis estaduais. Diga-se, em síntese, que as matérias legislativas que não forem domínio privativo das leis federais, são domínio das leis estaduais. O princípio regente dessas competências é o que se acha expresso, com clareza e simplicidade, no § 1º do art. 25 da Constituição: “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”. Aliás, os Estados Federados se organizam e regem pelas Constituições e leis estaduais que adotarem. O que se lhes impõe é que suas Constituições e leis observem os princípios da Constituição Federal (Constituição, art. 25; Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 11). É importante notar que as leis estaduais possuem, além de seu domínio de competência concorrente, um domínio de competência privativa. Certas matérias, explicitamente designadas pela Constituição Federal, formam este domínio, e não devem ser objeto de leis federais e municipais. Assim, por exemplo, são domínio de competência privativa das leis estaduais as seguintes matérias: símbolos dos Estados e do Distrito Federal (bandeira, brasão, divisa, emblema, hino) (Constituição, art. 13, § 2º); criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios (art. 18, § 4º); instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (art. 25, § 3º); regimento interno, polícia e serviços administrativos das 165
Assembléias Legislativas (art. 27, § 3º); remuneração dos Deputados Estaduais (art. 27, § 2º); iniciativa popular no processo legislativo estadual (art. 27, § 4º); Juízes e Tribunais de Justiça dos Estados (art. 125); juizados especiais para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de mínima complexidade, e de causas referentes a infrações criminais de pequeno potencial ofensivo (art. 98, I); Justiça de Paz (art. 98, II); constituição de seção judiciária estadual da Justiça Federal, e das competentes varas (art. 110); Justiça Militar Estadual (art. 125, § 3º); organização, atribuições e estatuto do Ministério Público Estadual (art. 128, § 5º); impostos sobre: a) transmissão causa mortis e doações; b) operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, e de comunicação; c) propriedade de veículos automotores (art. 155, I, II e III). Cabe às Assembléias Legislativas e às Câmaras Territoriais legislar sobre todas as matérias de competência dos Estados e “Territórios”, tanto as de competência privativa como as de competência concorrente (Constituição, art. 25). Os domínios de competência das leis municipais se acham demarcados em razão dos domínios das leis federais e estaduais. À Câmara Municipal, órgão legislativo, compete, antes de mais nada, elaborar a chamada Lei Orgânica, que é, por assim dizer, a Constituição do Município (Constituição Federal, art. 29, e Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 11, parágrafo único). E compete-lhe: a) legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I); b) suplementar a legislação federal e estadual, no que couber e lhe for constitucionalmente permitido (art. 30, II). As leis municipais têm um domínio de competência concorrente e um domínio de competência privativa. O domínio de competência concorrente das leis municipais é formado pelas matérias a que já fizemos referência e por muitas outras, como, por exemplo, as seguintes: educação e ensino (Constituição, art. 30, VI, e art. 211); saúde da população (art. 30, VII); proteção e promoção do patrimônio histórico-cultural (art. 30, IX); incentivo às microempresas e empresas de pequeno porte (art. 179); incentivo ao turismo (art. 180); desenvolvimento urbano (art. 182); uso, parcelamento e ocupação do solo (art. 30, VIII); cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, XII); iniciativa popular no processo legislativo municipal (art. 29, XIII). Além de seu domínio de competência concorrente, as leis municipais têm, como dissemos, um domínio de competência privativa, formado por 166
matérias como as seguintes: símbolos municipais (bandeira, brasão, divisa, emblema, hino — Constituição, art. 13, § 2º); eleição, posse e subsídios do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores (art. 29, I, II, III, IV, V); funções legislativas e fiscalizadoras da Câmara Municipal (art. 29, XI); criação, organização e supressão de distritos (art. 30, IV); serviços públicos, inclusive transporte (art. 30, V); guarda municipal (art. 144, § 8º); desenvolvimento das funções sociais, garantia do bem-estar dos munícipes e expansão urbana (art. 182, caput); aproveitamento adequado do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado (art. 182, § 4º); impostos sobre: a) a propriedade predial e territorial urbana; b) transmissão inter vivos, por ato oneroso, de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia; c) cessão de direitos à aquisição de imóveis; d) vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto as de óleo diesel; e) serviços de qualquer natureza, exceto os gravados por imposto estadual (art. 30, III; art. 156). As leis do Distrito Federal têm domínio de competência privativa e domínio de competência concorrente, semelhantes aos domínios das leis estaduais e municipais em geral (Constituição, art. 32, § 1º). Às Câmaras Municipais (ou Câmaras de Vereadores), cabe legislar sobre todas as matérias de competência dos Municípios, tanto as de competência privativa como as de competência concorrente (Constituição, art. 29). Cumpre observar que as matérias do domínio de competência privativa das leis são somente aquelas que a Constituição Federal e as Constituições Estaduais incluem nesse domínio. O rol de tais matérias não admite acréscimos. No domínio privativo das leis, não há, nem pode haver, nenhuma outra matéria. As demais matérias, reguladas por leis, não são domínio privativo delas, mas seu domínio de competência concorrente. São matérias aptas a ser objeto de leis federais, estaduais e municipais. Por outro lado, as matérias do domínio de competência concorrente das leis não se acham todas mencionadas nas Constituições. Além daquelas a que as Constituições aludem, existem, por força, matérias remanescentes que, embora não referidas nos textos constitucionais, são, também, de domínio concorrente das leis federais, estaduais e municipais. § 70. O correto domínio da lei: condição essencial de sua VALIDADE O correto domínio da lei é a primeira condição de sua validade, como foi dito no § 69. 167
Dois princípios regem a questão do correto domínio das leis, a saber: 1) Uma lei só é válida em seu próprio domínio geográfico. 2) Uma lei só é válida com seu próprio domínio de competência. Cada um destes princípios exige consideração especial. O primeiro princípio — Uma lei só é válida em seu próprio domínio geográfico — significa que uma lei só impera em seu próprio território, ou seja, na circunscrição política e geográfica a que pertence o órgão que a produziu. Em outro território ou circunscrição, ela não vale, não impera. Se imposta fora de seu domínio geográfico, a lei é inválida, no domínio que não é o seu. Assim, uma lei municipal só é válida no território do Município a que pertence a Câmara Municipal que a elaborou, e não é válida em território de outro Município. Exemplo: Uma lei municipal sobre transporte em estradas vicinais (Constituição, art. 30, V) é válida nos trechos viários existentes no território daquele Município cuja Câmara Municipal a elaborou; mas não é válida — é inválida, não impera — em trechos viários existentes nos Municípios vizinhos. Outro exemplo: Uma lei municipal criando um imposto sobre venda de gasolina (Constituição, art. 30, III) é válida somente naquele Município que instituiu o tributo. Assim, também, uma lei estadual só é válida no território do Estado a que pertence a Assembléia Legislativa que a elaborou. É válida, portanto, nos territórios de todos os Municípios desse Estado. Mas ela não é válida em território de outro Estado. Fora de seu domínio geográfico, essa lei é inválida. Exemplo: Uma lei estadual criando o Juizado das Pequenas Causas (Constituição, art. 98, I) é válida no território daquele Estado cuja Assembléia Legislativa a elaborou, e não é válida — é inválida, não impera — nos demais Estados da Federação. Inválida é a lei em território que não é o seu, e anuláveis são os efeitos dessa eventual e errônea aplicação. O segundo princípio sobre o correto domínio das leis — Uma lei só é válida com seu próprio domínio de competência — significa que uma lei só vale e impera se a matéria, de que trata, é de competência das leis de sua categoria. Como se sabe, as leis são de três categorias: leis federais, leis estaduais e leis municipais. As leis de cada categoria possuem, como vimos, um domínio de competência concorrente e um domínio de competência privativa. 168
Dispondo sobre matéria de domínio concorrente, são válidas, obviamente, leis de categorias diferentes. Mas, dispondo sobre matéria de domínio privativo de uma categoria de leis, só são válidas as leis dessa categoria. Inválida, portanto, é a lei de uma categoria quando sua matéria é do domínio de competência privativa das leis de outra categoria. Inválidas seriam, por exemplo, leis federais sobre símbolos de Estados ou de Municípios (bandeira, brasão, hino, etc.), ou alterando o Estatuto do Ministério Público Estadual (matérias do domínio de competência privativa de leis estaduais); ou isentando os ônibus municipais, do imposto sobre a propriedade de veículos automotores, ou fixando a remuneração de Prefeitos e Vereadores (matérias do domínio de competência privativa de leis municipais). Inválidas, também, seriam, por exemplo, leis estaduais sobre desapropriação, ou sobre sistema monetário, ou sobre comércio exterior, ou sobre atividades nucleares (matérias do domínio de competência privativa de leis federais); ou sobre símbolos de Municípios, ou sobre remuneração de Prefeitos e Vereadores, ou sobre guardas municipais, ou sobre imposto predial e territorial urbano (matérias do domínio de competência privativa de leis municipais). § 71. A ilegalidade e a inconstitucionalidade das leis INVÁLIDAS Dos dois referidos princípios sobre o correto domínio das leis, conclui-se, em resumo, o seguinte: A lei válida impera no território de seu domínio geográfico, e dispõe sobre matéria de seu domínio de competência. A lei que estende seu domínio para além de seu domínio geográfico e para além de seu domínio de competência é lei inválida, nos domínios excedentes. Não impera nestes domínios, e sobre eles não pode dispor. Sua invalidade deve ser reconhecida e declarada, em juízo e fora dele. A lei inválida é lei ilegal, ou é lei inconstitucional, ou é lei ilegal e inconstitucional concomitantemente. Uma lei é ilegal em duas hipóteses, a saber: 1) quando seu mandamento contraria mandamento de lei com domínio geográfico mais extenso do que o dela; 2) quando trata de matéria que não pertence a seu domínio de competência, e que se acha regulada por lei competente. Exemplo: Seria ilegal a lei estadual dispondo sobre produção e consumo, quando lei federal, sobre o mesmo assunto, dispõe diferentemente. De 169
fato, produção e consumo são matéria de domínio concorrente de leis federais e estaduais, mas a lei federal tem domínio geográfico mais extenso do que a lei estadual e, portanto, é a lei que prevalece. Outro exemplo: Seria ilegal a lei federal alterando lei estadual que cria ou extingue Municípios nos Estados, ou alterando lei estadual sobre o imposto causa mortis. De fato, tais matérias são do domínio de competência privativa das leis estaduais e, portanto, não podem ser objeto de lei federal. Uma lei é inconstitucional em duas hipóteses, a saber: 1) quando a lei de uma categoria trata de matéria que, por força de dispositivo da Constituição, é matéria do domínio de competência privativa de lei de outra categoria; 2) quando seu mandamento conflita com mandamento da Constituição Federal ou de Constituição Estadual. Exemplo: Seria inconstitucional a lei federal criando juizados estaduais especiais para processamento e julgamento de pequenas causas. De fato, por imposição da Constituição, a criação de tais juizados é matéria do domínio de competência privativa de lei estadual e, portanto, não pode ser objeto de lei federal. Outro exemplo: Seria inconstitucional a lei que proibisse a greve. De fato, o direito de greve é assegurado pela Constituição, e, portanto, não pode ser proibida por lei nenhuma. Pode uma lei ser ilegal e inconstitucional concomitantemente. Exemplo: A lei municipal alterando lei estadual sobre o imposto de circulação de mercadorias, que é matéria do domínio de competência privativa de leis estaduais, por força de dispositivo da Constituição Federal. Observe-se que as leis ilegais e inconstitucionais não são autorizantes. Os lesados pela sua violação não ficam autorizados, pelas leis violadas, a exigir o cumprimento delas. Não sendo autorizantes, não são normas jurídicas. São, pois, leis inválidas. A partir do momento em que a ilegalidade ou inconstitucionalidade de uma lei é revelada e reconhecida, ela pode deixar de ser cumprida, para possibilitar o cumprimento do outro mandamento, ou seja, do mandamento da lei válida, sobre a matéria tratada pela lei ilegal ou inconstitucional. O não-cumprimento de uma lei ilegal ou inconstitucional significa, muitas vezes, o cumprimento da lei válida. Significa ato de obediência à lei ou à Constituição. Nos casos em que a ilegalidade ou inconstitucionalidade de uma lei não é patente, havendo controvérsia sobre o assunto, a lei em causa só perde 170
seu valor depois de declarada ilegal ou inconstitucional pelo órgão judiciário competente. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros, ou dos membros do respectivo órgão especial, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei (Constituição, art. 97). Compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (Constituição, art. 52, X). Cumpre acrescentar, porém, que a ilegalidade e a inconstitucionalidade de uma lei não dependem do pronunciamento dos Tribunais. Uma lei é ilegal ou inconstitucional por força de sua própria condição, e porque assim ela se apresenta e revela. Aos Tribunais compete, nos casos em que isto é necessário, apenas declarar a ilegalidade e a inconstitucionalidade. O que não lhes compete é criá-las. § 72. A hierarquia das leis (2ª parte) As considerações dos três últimos §§ lançam luz nova sobre a hierarquia das leis, a que nos referimos nos §§ 68 e 72. Uma hierarquia existe, sem dúvida, no escalonamento das leis federais, estaduais e municipais. É a hierarquia em razão da importância política dos órgãos que as promulgam e, conseqüentemente, do maior ou menor alcance territorial de seu domínio geográfico. Mas, como vimos, as leis municipais, que são as de menor domínio geográfico, prevalecem contra as leis estaduais e federais, nas matérias de seu domínio de competência privativa. E as leis estaduais, cujo domínio geográfico é inferior ao domínio geográfico das leis federais, prevalecem contra as leis federais, nas matérias de seu domínio privativo de competência. Complexa, pois, é a hierarquia legislativa. Ela não depende, somente, do domínio geográfico das leis. Tal hierarquia também se estabelece em razão do domínio de competência delas. E os dois fundamentos produzem hierarquias diferentes e, às vezes, até conflitantes, como acabamos de verificar.
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CAPÍTULO XVIII
A VALIDADE DAS LEIS (2ª parte). O PROCESSO LEGISLATIVO
§ 73. O PROCESSO LEGISLATIVO A segunda condição da validade de uma lei é sua correta elaboração (veja § 67). A elaboração de uma lei é correta quando ela se realiza em conformidade com o chamado PROCESSO LEGISLATIVO. O processo legislativo é estabelecido na Constituição. Compreende os seguintes atos: 1) A iniciativa da lei. 2) A elaboração parlamentar da lei. 3) A sanção da lei. O veto ao projeto de lei. 4) A promulgação da lei. 5) A publicação da lei. A validade das leis depende da correta execução desses atos. Inválidas são as leis que não tenham sido elaboradas com obediência às normas que presidem o rigoroso desenrolar do processo legislativo. Cada ato desse processo requer consideração especial, como se vai ver nos §§ seguintes. 173
§ 74. A INICIATIVA das leis Toda lei tem sua origem num projeto de lei. O direito ou prerrogativa de apresentar o projeto ao Poder Legislativo, e o próprio ato dessa apresentação, se chamam iniciativa da lei. A iniciativa das leis federais se exerce no Congresso Nacional, e cabe: 1) a qualquer Deputado Federal ou Senador; 2) a qualquer Comissão de Deputados Federais ou de Senadores; 3) ao Presidente da República; 4) ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais Superiores; 5) ao Procurador-Geral da República; 6) a qualquer grupo de cidadãos, constituído de eleitores pertencentes a cinco Estados, em número não inferior a três décimos por cento do eleitorado de cada um desses Estados, formando um conjunto global de, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional (Constituição, art. 61, caput, e § 2º). A iniciativa das leis estaduais e das leis municipais se exerce, respectivamente, nas Assembléias Legislativas dos Estados e nas Câmaras Municipais, e seus titulares são os que se acham designados pelas Constituições Estaduais e pelas Leis Orgânicas dos Municípios. Em cada uma das três categorias de leis (na das leis federais, na das leis estaduais e na das leis municipais), existem duas classes de iniciativas de leis: a classe das iniciativas concorrentes e a classe das iniciativas privativas. Esta divisão se funda na natureza das matérias a que as leis se referem, e é estabelecida na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados e nas Leis Orgânicas dos Municípios. A iniciativa concorrente, na esfera da União, é a que pertence a todos os mencionados titulares do direito de iniciativa das leis federais. Pertence, pois, a Deputados, a Senadores, a Comissões Parlamentares, ao Presidente da República, etc. Na esfera dos Estados e dos Municípios, a iniciativa concorrente é a que pertence aos titulares designados nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas dos Municípios. Em outras palavras, são de iniciativa concorrente, todos os projetos de lei que não forem de iniciativa privativa. A iniciativa privativa, também chamada iniciativa reservada, é a que pertence, com exclusividade, a um determinado titular do direito de iniciativa das leis. Exemplos: A iniciativa de lei orçamentária da União; a iniciativa de lei sobre provimento ou extinção de cargos públicos federais: ambas privativas do Presidente da República. As iniciativas privativas ou reservadas são de duas espécies: são iniciativas privativas vinculadas, ou são iniciativas privativas não vinculadas. 174
As iniciativas vinculadas são direitos que não podem deixar de ser exercidos por seus titulares. Tais iniciativas se acham vinculadas a seus titulares. São direitos-função, porque seus titulares têm, simultaneamente, o direito privativo e a obrigação de apresentar, ao Poder Legislativo, os projetos de lei a que se referem. Ao direito de iniciativa, soma-se a obrigação de exercê-lo. Exemplo de iniciativa vinculada: A iniciativa de lei orçamentária da União. Esta lei, de acordo com a Constituição, é de iniciativa privativa, vinculada ao Presidente da República, porque o Presidente é obrigado a usá-la, não lhe sendo facultado deixar de apresentar, anualmente, o projeto dessa lei (art. 84, XXIII; arts. 165 e 166, § 6º). As iniciativas privativas não vinculadas são iniciativas de exercício facultativo. Seus titulares, embora sendo os únicos que as podem exercer, não são obrigados a exercê-las: podem apresentar, ou não, os projetos de lei a que tais iniciativas se referem. Exemplo de iniciativa privativa não vinculada: A iniciativa de lei sobre provimento ou extinção de cargos públicos federais. Esta lei, de acordo com a Constituição, é de iniciativa privativa do Presidente da República, mas não é de iniciativa vinculada, porque o Presidente não é obrigado a usá-la, sendo-lhe facultado abster-se de apresentar ao Congresso Nacional qualquer projeto de lei sobre provimento ou extinção de cargos públicos. É oportuno observar que a iniciativa privativa é imposição de um princípio fundamental da Democracia moderna: do princípio da independência dos Poderes do Estado. A Constituição brasileira, logo em seu art. 2º, estabelece que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são Poderes independentes uns dos outros. Essa independência, que divide e descentraliza o Poder (embora conservando a harmonia entre os três Poderes), permite a limitação do Poder pelo próprio Poder, e constitui um predicado preeminente do regime democrático. Poderes independentes, funções independentes. De fato, cada um dos três Poderes possui, por determinação constitucional, algumas funções próprias, específicas, que lhe são privativas. Como não poderia deixar de ser, cada Poder tem aquelas funções que o caracterizam. Entre essas funções, estão as iniciativas privativas de cada Poder. Iniciativas privativas do Poder Legislativo são as iniciativas das leis sobre matérias mencionadas nos arts. 49, 51 e 52 da Constituição. Do Poder Executivo, são privativas as iniciativas das leis sobre matérias mencionadas 175
no art. 61, § 1º, e no art. 84. E, do Poder Judiciário, são privativas as iniciativas das leis sobre as matérias mencionadas no art. 93; no art. 96, I, d, e II; no art. 99, §§ 1º e 2º; e no art. 125. Cumpre advertir que a iniciativa da lei, exercida por quem não seja titular dela, é usurpação de direito. É violação da Constituição. Por exemplo, a iniciativa exercida por Deputado, sobre matéria que a Constituição reserva para a iniciativa privativa do Presidente da República, é usurpação de um direito do Presidente, e violação de dispositivo constitucional. Observe-se que a iniciativa usurpada, além de ser violação de dispositivos específicos da Constituição, é atentado contra o princípio fundamental da independência dos Poderes. Conseqüentemente, é ato absolutamente nulo. É iniciativa inválida, insanável, insusceptível de convalidação. Sendo nulo, nulos são seus eventuais efeitos. A lei resultante de iniciativa usurpada é lei inválida. Quanto à iniciativa popular das leis, a que se refere o § 2º do art. 61 da Constituição, é providência de suma importância para as Democracias autênticas. Reservamo-nos para tratar desta matéria em outro livro. § 75. A elaboração parlamentar da lei Uma vez apresentado ao Congresso Nacional (à Câmara dos Deputados ou ao Senado Federal), o projeto de lei federal pode ser remetido às Comissões Técnicas do Parlamento, para que o considerem e emitam parecer. Aos Deputados e Senadores, assim como às referidas Comissões Técnicas, compete sugerir as emendas que lhes aprouver, ao projeto em andamento. Depois, o projeto e as emendas, acompanhados dos pareceres das Comissões, são submetidos à discussão do Plenário e, finalmente, votados. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores têm sempre início na Câmara dos Deputados (Constituição, art. 64, caput). O projeto de lei, estando aprovado por uma das Casas do Congresso, é revisto pela outra, ou seja, estando aprovado pela Câmara, é submetido à revisão do Senado; ou, estando aprovado pelo Senado, é submetido à revisão da Câmara. Se a Casa revisora o aprovar, o projeto é enviado ao Presidente da República, para sanção ou promulgação. Se o rejeitar, é arquivado. Se a Casa revisora o emendar, o projeto volta à Casa iniciadora (Constituição, art. 65, parágrafo único). Lei complementar da Constituição dispõe sobre o processamento das emendas e do projeto emendado. 176
A matéria constante de projeto de lei rejeitado pelo Congresso poderá constituir objeto de novo projeto em outra sessão legislativa. Na mesma sessão, porém, o novo projeto só poderá ser proposto se tiver o apoiamento da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional (Constituição, art. 67). Pode o Presidente da República solicitar urgência para apreciação de projeto de sua iniciativa. Neste caso, cada uma das Casas do Congresso tem, sucessivamente, o prazo de quarenta e cinco dias para o processamento da proposição. Se, ao fim do segundo prazo, o Congresso não se tiver manifestado, o projeto é incluído na ordem do dia, para que sua votação seja ultimada, sobrestando-se a deliberação acerca das demais proposições em andamento (art. 64, § 1º). A Casa do Congresso, na qual tenha sido concluída a votação, enviará o projeto de lei ao Presidente da República (art. 66). § 76. O VETO Após receber o projeto de lei, pode o Presidente da República sancionálo ou vetá-lo. Vetar o projeto é negar-lhe aprovação, ou seja, recusar-lhe sanção. O veto é a impugnação, total ou parcial, do projeto de lei, pelo Presidente da República. Mas, note-se, o veto não é só isto. Não é a simples rejeição do projeto ou de parte dele. O veto do Presidente importa, simultaneamente, uma provocação ao Parlamento, para o reexame do projeto, à luz das razões que determinaram o veto. Reza a Constituição: “Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal, os motivos do veto” (art. 66, § 1º). O veto, como se vê, somente ocorre em duas hipóteses. A primeira é a dos projetos que o Presidente julga, total ou parcialmente, incompatíveis com a Constituição. Não querendo aprovar leis inválidas, o Presidente os veta. Fundado na argüição de inconstitucionalidade, o veto, nesta primeira hipótese, tem caráter estrictamente jurídico. A segunda hipótese é a dos projetos que o Presidente não quer promover, total ou parcialmente, à categoria de leis, porque, a seu ver, estas leis seriam contrárias ao interesse público. Fundado em apreciações a respeito 177
do que é vantajoso ou prejudicial à coletividade em geral, e aos destinatários das leis em particular, o veto, nesta segunda hipótese, tem caráter eminentemente político. A contar da data de recebimento do projeto, tem o Presidente o prazo de quinze dias para exercer o direito de veto. Dentro de quarenta e oito horas, a contar do momento do veto, ele deverá comunicar, ao Presidente do Senado Federal, os motivos pelos quais vetou (Constituição, art. 66, § 1º). Decorrida a mencionada quinzena, o silêncio do Presidente importa sanção (Constituição, art. 66, § 3º). O veto, com a declaração dos motivos que o determinaram, é apreciado pelas duas Casas do Congresso, em sessão conjunta. A partir de sua comunicação ao Presidente do Senado, dispõe o Congresso de trinta dias para manter ou rejeitar o veto (Constituição, art. 66, § 4º). Se o Congresso não deliberar sobre o veto, no referido prazo de trinta dias, o veto é colocado na ordem do dia da primeira sessão do Parlamento após o escoamento do trintídio, e submetido a votação final (art. 66, § 6º). Para esse fim, sobrestam-se os trabalhos acerca das demais proposições em pauta. É importante assinalar que, de acordo com a Constituição, o veto só pode ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto (Constituição, art. 66, § 4º). Note-se que a maioria simples dos votos dos Congressistas (maioria dos votos dos Congressistas presentes no plenário do Congresso) nunca foi suficiente, no Brasil, para a rejeição dos vetos presidenciais. Sempre se exigiu, para essa rejeição, maioria qualificada de votos, ou seja, maioria absoluta, que é a maioria superior a cinqüenta por cento dos votos da totalidade dos Congressistas; ou maioria de dois terços, pelo menos, dos votos dessa mesma totalidade (veja Constituição de 1891, com as emendas de 1926, art. 37, §§ 1º e 3º; Constituição de 1934, art. 45, § 2º; Constituição de 1937, art. 66, § 3º; Constituição de 1946, art. 70, § 3º; Constituição de 1969, art. 59, caput, e § 3º; Constituição de 1988, art. 66, § 4º). A rejeição do veto pelo Congresso Nacional significa aprovação definitiva do projeto. Equivale à sanção e conseqüente promoção do projeto à categoria de lei. Rejeitado o veto, a lei é enviada ao Presidente da República, para promulgação (Constituição, art. 66, § 5º). Se mantido o veto pelo Congresso, o projeto está recusado, e vai para o arquivo. 178
§ 77. O veto parcial O Presidente pode vetar o projeto todo, como pode vetar apenas parte dele. O veto parcial tem dois objetivos. O primeiro é o de não atrasar o processamento da parte não vetada, parte esta que poderá ser promovida a lei, e ser posta em vigor, independentemente do processamento da parte vetada. O segundo é o de submeter a reexame do Congresso a parte vetada do projeto. Observe-se que, havendo veto parcial, a parte não vetada é tida como sancionada, dispensando sanção explícita. Da sanção, trataremos no § seguinte. Não atrasar o processamento da parte não vetada — não adiar a vigência da nova lei — constitui, sem dúvida, providência vantajosa em muitos casos. Mas, advirta-se, esse procedimento pode causar problemas. Se o veto parcial for rejeitado pelo Congresso, a parte que estava excluída do projeto (por força do veto) fica aprovada e, ipso facto, se incorpora ao texto da lei. Com isto, a lei já promulgada e publicada, já em vigor, passa a ter um novo texto. Incontinenti, algumas questões se colocam. Em que dia, afinal, tem início, para efeitos jurídicos, a vigência da lei? Como se devem regular os atos jurídicos praticados em conformidade com o primeiro texto? Devem regular-se pela lei com o primeiro texto, ou pela lei com o texto novo? Como precisa o juiz se conduzir quando o fato, que lhe é submetido, passa a ser regulado de maneiras diferentes, pela mesma lei? A jurisprudência evidencia que não é sempre fácil responder a tais perguntas. A vigência da lei, antes de alcançada a decisão parlamentar sobre o veto parcial, põe em risco a segurança do Direito. As soluções terão de levar em consideração as circunstâncias de cada caso, e ser conformes à intenção da lei. A instituição do veto parcial resultou da necessidade de combater a lamentável prática parlamentar de introduzir, maliciosamente, em certos projetos de lei, disposições extravagantes, que nada tinham que ver com a matéria desses projetos, mas que visavam beneficiar grupos ou categorias de pessoas. Sem possibilidade de constituir matéria de lei própria, disposições extravagantes costumavam ser colocadas na garupa de projetos importantes, para que tivessem a sorte destas proposições e, com elas, fossem sancionadas e promovidas a lei. Era o que acontecia, freqüentemente, com os projetos das leis orçamentárias... 179
Antes da instituição do veto parcial, ficava o Presidente da República na emergência de sancionar ou de vetar o projeto todo. Se sancionava, aprovava, com o projeto, os enxertos abusivos que lhe tenham sido feitos. Se vetava, impugnava esses enxertos, mas, com eles, rejeitava todo o projeto, e o devolvia, para reexame, ao Congresso Nacional. Este veto significava uma exagerada complicação do processo legislativo, acarretando atrasos na promulgação de leis urgentes. É claro que, nesses casos, nem a sanção nem o veto exprimiam a verdadeira vontade do Presidente. Com a instituição do veto parcial, ficou o Presidente habilitado a expungir, do projeto de lei, as excrescências, os chamados pingentes ou caudas, que o Parlamento, cedendo a pressões interesseiras, tenha encavaleirado no texto em elaboração. Concomitantemente, o Presidente se viu apto a sancionar, de pronto, o projeto expurgado. Mas, contrabalançando suas vantagens, o veto parcial, quando foi instituído, ofereceu perigos. Com esse tipo de veto, ficou o Presidente, em muitos casos, com a possibilidade de mudar, radicalmente, o sentido ou o alcance de um projeto de lei, com a mera supressão de uma ou duas palavras. E essa possibilidade se tornou, com freqüência, um poder incontrastável e discricionário, porque o Congresso Nacional, convocado para conhecimento do veto parcial — e possivelmente “trabalhado” pelo Poder Executivo —, não lograva obter, para rejeição do veto, o voto da maioria qualificada de Parlamentares. Com efeito, o que vinha acontecendo era que muitos vetos, rechaçados pela maioria dos Deputados e Senadores presentes, eram vetos afinal mantidos, porque a maioria alcançada era maioria simples dos Congressistas presentes, e não a maioria qualificada, exigida pela Constituição. Por conseguinte, projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional foram alterados, definitivamente, pelo Presidente da República, por meio do veto parcial. Como se vê, o veto parcial, instituído para combate a um abuso do Poder Legislativo, pôde servir de instrumento para um abuso do Poder Executivo. Mantendo o instituto do veto parcial, mas dando cobro ao referido arbítrio do Presidente da República, a vigente Constituição dispõe: “O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea” (art. 66, § 2º). 180
Com esta prescrição, ficou proibido o veto parcial a uma, duas ou três poucas palavras do projeto de lei. § 78. A SANÇÃO Não havendo veto, tem o Presidente da República dois caminhos a seguir: ou sanciona o projeto de lei, ou mantém silêncio sobre o mesmo. Sancionar o projeto significa aprovar o projeto. Mas tal significação precisa ser bem entendida. Em verdade, a sanção é o ato solene pelo qual o Presidente declara a constitucionalidade do projeto, reconhece sua harmonia com o interesse público, e o promove à categoria de lei (reveja Capítulo VIII). Pela sanção, o projeto se torna lei. Converte-se em norma autorizante, isto é, em norma que autoriza quem for lesado pela violação da norma a providenciar a aplicação das sanções legais ao violador do mandamento. Conseqüentemente, a sanção do Presidente da República é o ato pelo qual o Poder Executivo procura assegurar, por meio de sanções, o cumprimento do mandamento elaborado pelo Poder Legislativo. É, de fato, o ato governamental de proibir a violação de tal mandamento. Em suma, sancionar o projeto é dar-lhe sanções. É ligar sanções à eventual violação da nova lei. Convém lembrar, para evitar possíveis equívocos, que as sanções não podem ser confundidas com a coação, que é outra coisa, como foi explicado no Capítulo IX. Embora desprovido de “sacralidade”, o ato presidencial de sancionar conserva, até hoje, em processos legislativos de muitos Países, inclusive do Brasil, sua solenidade e pompa, como bem o demonstra o próprio termo sanção, que ainda o designa. Tal termo contém uma advertência aos governantes, sobre a grave responsabilidade do Poder, na seleção das leis. Pela sanção, um mandamento não se torna sagrado, evidentemente, mas seu cumprimento se torna assegurado. Sobre a significação e o papel da sanção, veja-se o que foi explicado na parte deste livro dedicada a esse assunto (Capítulo VIII). Observemos que o Presidente da República pode não vetar e não sancionar o projeto de lei. Pode, simplesmente, manter silêncio sobre o mesmo. Tal silêncio, porém, após o decurso do prazo de quinze dias, importa sanção (Constituição, art. 66, § 3º). 181
Esta sanção tácita, efeito do silêncio do Presidente, é providência adotada pela Constituição, para evitar o arquivamento de projetos de lei por falta de pronunciamento do Poder Executivo. Note-se, todavia, que a sanção tácita pode ser usada, eventualmente, como artimanha ou como hábil manobra política. Por meio dela, pode acontecer que o Presidente sancione o que não quer sancionar. Isto acontece quando o Presidente não veta (sucumbindo a apelos diversos); mas, também, não sanciona (para atender a suas próprias convicções); então, o simples decurso do prazo, sem veto e sem sanção, produz a sanção, para gáudio dos interessados, e à revelia da aprovação do Presidente. É importante acrescentar que, por disposição constitucional (arts. 48 e 60), independem de sanção, as emendas à Constituição, os decretos legislativos e as resoluções. Finalmente, cumpre salientar que a sanção não tem a virtude de sanar a iniciativa inválida. No § 74, mostramos que a iniciativa, exercida por quem não é titular dela, é usurpação de direito e violação da Constituição. Concluímos que uma tal iniciativa é ato inválido e absolutamente nulo. É ato insusceptível de convalidação. O projeto da lei decorrente dessa iniciativa é também inválido, pela nulidade absoluta de sua origem. É claro que um projeto nulo não pode ser sancionado. Se o for, por equívoco, ou por fraqueza ou má-fé, a sanção é igualmente inválida e nula. Tal sanção é nula porque não há sanção do que é nulo. Não há sanção quando não há o que sancionar. E nenhuma sanção terá a virtude de tornar válido o que é inválido e nulo: de tornar válida a iniciativa inválida e nula. Aceitar a tese de que a sanção tem o poder de tornar constitucional e válido o projeto de lei inconstitucional e inválido é aceitar a idéia de que a sanção pode mudar a Constituição; é admitir que a sanção — que é ato do Poder Executivo — prevalece sobre o mandamento constitucional a respeito da iniciativa privativa das leis. O certo, porém, é que o Poder Executivo não é Poder Constituinte. É um Poder Constituído. É, portanto, um Poder sujeito à Constituição. Não tem o Presidente da República a faculdade de alterar disposições da Lei Magna. Logo, ao Presidente não é dado convalidar, por meio da sanção, o que foi feito em desobediência da Constituição. Poder-se-ia pensar, quem sabe, que o Presidente da República, titular autêntico da iniciativa reservada, ao sancionar projeto oriundo de iniciativa inválida, estaria aprovando essa iniciativa: estaria, por assim dizer, exer182
cendo a posteriori seu direito privativo de iniciativa, ou seja, estaria exercendo a iniciativa a posteriori e, conseqüentemente, convalidando a iniciativa inválida. Talvez haja quem acredite que nenhum prejuízo pode advir dessa “iniciativa a posteriori”, e que ela não fere o espírito da Constituição. Tal argumentação, porém, é inaceitável. Ela ignora as razões profundas pelas quais a Constituição fixa a iniciativa privativa do Presidente, para projetos de lei sobre determinadas matérias. Observe-se, antes de mais nada, que a fixação constitucional da iniciativa privativa do Presidente consiste numa aplicação do princípio basilar da independência dos Poderes do Estado. O que ela visa é assegurar a independência do Poder Executivo em dois atos de competência exclusiva do Presidente da República: no ato de sancionar e no ato de vetar projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional. Há, em verdade, um estreito vínculo entre a iniciativa privativa do Presidente e sua incumbência de sancionar e de vetar, como se vai ver a seguir. Obviamente, a fixação dos casos da iniciativa privativa do Presidente não é obra arbitrária. A voz da prudência, apoiada em longa prática administrativa, é o que a recomenda e aconselha. Para bem compreendê-la, é preciso lembrar que o veto é causa, muitas vezes, de decepções amargas. Provoca, não raro, indignação e revolta naqueles a que os projetos vetados iriam beneficiar. Quando os inconformados são militares, o veto pode produzir perigosa agitação nos quartéis. Quando são servidores públicos civis, pode acarretar a paralisação ou queda de rendimento dos serviços públicos. A resistência passiva e a sabotagem são conseqüências possíveis de um veto presidencial. Além desses efeitos de natureza social, o veto, em virtude dessas mesmas conseqüências, é apto a determinar sério prejuízo para o próprio Presidente. Para o futuro de um político, um simples veto a um projeto de favorecimentos pode ter nefastas conseqüências pessoais. Então, para fugir de tantos males, pode o Presidente se achar forçado a sancionar o que ele precisaria vetar. Pode ele se ver coagido a fazer o contrário do que seria recomendado pelo bem público. De certa maneira, nessas ocasiões, a sanção é extorquida, em detrimento dos autênticos interesses da coletividade. O veto, que marcaria oposição do Presidente ao projeto de lei, deixa de ser declarado, porque, em tais casos, o veto representa um sacrifício quase impossível de ser suportado pelo Governante. Todos esses fatos se verificam, muitas vezes, com projetos de lei sobre matérias como as seguintes: fixação ou modificação dos efetivos das Forças 183
Armadas; provimento e extinção de cargos, funções ou empregos públicos; aumento da remuneração dos servidores públicos civis e militares; fixação da pensão dos servidores civis aposentados, e dos militares reformados e transferidos para a inatividade. Para evitar o fenômeno da “sanção extorquida” — que, em verdade, atenta contra o princípio da independência dos Poderes do Estado —, a experiência aconselha que a propositura de projetos de lei sobre as exemplificadas matérias seja prerrogativa do Presidente da República. A ele, e a mais ninguém, é que deve competir a decisão sobre a necessidade e sobre a oportunidade de tais projetos. Aliás, convém lembrar, antes de mais nada, que, ao Poder Executivo — e não ao Poder Legislativo — é que cabe arcar com o ônus financeiro acarretado por leis que aumentam a despesa com as Forças Armadas e com os servidores civis da União. Por todos os motivos, portanto, ao Poder Executivo é que deve ser atribuído, com exclusividade, o direito de iniciar, no Congresso Nacional, o processo legislativo dos mencionados projetos. Outras matérias existem que, por causas semelhantes, só devem ser objeto de projetos de lei apresentados, com exclusividade, pelo Presidente da República. Exemplos: os planos plurianuais, as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais da União. O legislador constituinte atendeu a essas razões. De fato, a Constituição estabelece, em seu art. 61, § 1º, que são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que fixam ou modificam os efetivos das Forças Armadas; e as que dispõem sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, ou aumento de sua remuneração; b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; e) criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública; f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva. Sobre este assunto, vejam-se também: art. 84, XXIII e XXV; art. 165 e art. 166, § 6º, da Constituição. Uma vez conhecidas as razões profundas que determinam a fixação dos casos de iniciativa privativa do Presidente da República, fica patente que a 184
sanção não pode, em nenhuma hipótese, convalidar a iniciativa inválida, ou seja, convalidar a iniciativa tomada por quem não tem o direito de exercê-la. Se a sanção tivesse a virtude de causar essa convalidação, a instituição da iniciativa privativa do Presidente perderia sua razão-de-ser; ela deixaria de constituir uma estratégia para evitar os casos de extorsão da sanção. Se, de fato, a sanção tivesse tal poder, ela inutilizaria a referida estratégia. Uma vez amolecidas as disposições sobre a iniciativa privativa, o Presidente ficaria exposto aos perigos mencionados, a pressões interesseiras, em todos os casos de iniciativa usurpada. Conseqüentemente, a sanção acabaria sendo extorquida, porque o veto, nos mencionados casos, representaria, para o Presidente, um sacrifício insuportável. Como se sabe, é com o intuito de fugir de tal sacrifício que o Presidente acaba sancionando o que ele gostaria de vetar. Nefasta e inaceitável, pois, é a tese de que a sanção de projetos inválidos pode desempenhar o papel de “iniciativa a posteriori” do Presidente, com o efeito de convalidar a iniciativa inconstitucional de projetos de lei. O mesmo se deve dizer, com as devidas adequações, sobre a sanção de projetos de leis estaduais e de leis municipais (veja-se a Constituição do Estado de São Paulo, art. 24, § 2º). Em certos Países, a sanção não existe como ato distinto, no processo legislativo. Seu papel se inclui no da promulgação. No Brasil, porém, a sanção, como acabamos de verificar, é um ato específico: um ato que antecede a promulgação. § 79. A PROMULGAÇÃO Uma vez sancionado, o projeto está pronto. Mas, note-se, a elaboração da lei não termina com a sanção. O processo legislativo compreende, ainda, dois atos do Poder Executivo, a saber: a promulgação e a publicação da lei. Só depois destes atos, é que a lei é válida. A promulgação é o ato solene pelo qual o Poder Executivo confirma que a lei está produzida e pronta. É a declaração oficial da existência da lei. O verbo latino promulgare (promulgo, promulgavi, promulgatum) significa: 1. tornar conhecido; 2. fazer sair, espremendo; tirar para fora. É verbo ligado, por seu étimo, a mulgére (múlgeo, mulsi, mulsum), que significa ordenhar. Leite ordenhado é o leite já tirado, já extraído, já fora de seu organismo produtor. Com fundamento etimológico (pro + mulsum), pode dizer-se que a lei promulgada é a lei ordenhada, ou seja, a lei já tirada, já produzida, já separada do Poder em que foi elaborada. Etimologicamente, a 185
palavra promulgação designa o ato de desligar a lei, de desvinculá-la do Poder Legislativo e de declará-la feita e acabada. A promulgação das leis federais é ato privativo do Presidente da República (Constituição, art. 84, IV). Mas se o Presidente não o pratica, dentro das quarenta e oito horas seguintes à sanção, a promulgação passa a ser da competência do Presidente do Senado. Se este não a fizer, no decurso de igual prazo, cabe ao Vice-Presidente do Senado fazê-lo (Constituição, art. 66, § 7º). Somente três espécies de leis independem de promulgação: as emendas à Constituição, os decretos legislativos e as resoluções. § 80. A PUBLICAÇÃO Depois de promulgada, deve a lei ser publicada. A publicação da lei, último ato do processo legislativo, é a operação do Governo de dar a lei a público. É o ato oficial de tornar o texto da lei acessível ao conhecimento de quem quer que por ela se interesse, e de deixálo à mão das autoridades incumbidas de aplicá-la. Em outros termos: é o ato do Governo de colocar a lei ao alcance dos olhos de quem precise ou queira conhecê-la. A publicação da lei federal e da lei estadual tem consistido na transcrição de seus textos nos Diários Oficiais da União e dos Estados e, eventualmente, em outros órgãos da imprensa. A publicação da lei municipal pode consistir em sua transcrição no Diário Oficial do Estado a que o Município pertence, e em jornais municipais. Não havendo imprensa local, no Município em que a lei foi promulgada, pode ela ser publicada pela afixação de seu texto na porta da Câmara Municipal ou na da Prefeitura, ou, se necessário ou conveniente, em outros locais de fácil acesso público. Para que a publicação seja, de fato, um ato integrante do processo legislativo, é preciso que ela seja oficial. Isto significa que a publicação, como ato do processo legislativo, há de ser providência ordenada e tomada pelo próprio Governo que promulgou a lei. Qualquer publicação extra-oficial não vale, juridicamente, como ato do processo legislativo. Esta observação é de importância, para a validade da lei. Cumpre esclarecer o seguinte: o que confere, à publicação, seu caráter oficial não é a circunstância de ser a lei dada à estampa em órgão da imprensa oficial. Em certos casos, pode acontecer que a publicação seja oficial sem que a transcrição da lei tenha sido feita em jornal do Governo. É o que 186
sucede em Municípios a que órgãos do Governo não chegam. O que confere, à publicação, o caráter oficial é o fato de ser oficial o próprio ato da publicação. Ela é oficial por ser ato do Governo. Disse Carvalho Santos: “A publicação precisa ser oficial, revestir-se desse caráter”. O que se exige é que “o ato mesmo da publicação, e não o seu veículo, tenha caráter oficial”. Não é oficial “somente aquela que for inserida no órgão oficial”. “O ato é oficial sempre que for publicado sob a responsabilidade do Governo” (Código Civil Brasileiro Interpretado, 3ª ed., 1942, vol. I, art. 2º, n. 5 e 6). Só depois de oficialmente publicada, a lei entra em vigor. O início da vigência da lei depende da data de sua publicação oficial. Reza a Lei de Introdução ao Código Civil: “Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o País quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada” (Decreto-Lei n. 4.657, de 4-9-1942). Importante, pois, é este último ato do processo legislativo. Lei vigente não publicada oficialmente não é lei válida. Em verdade, não é lei. A lei, em suma, é um mandamento do Governo. E um mandamento existe para ser cumprido. Mas a exigência de seu cumprimento pressupõe a possibilidade de conhecê-lo. Precisa a lei ser tornada pública. E precisa ser tornada pública por ato do Governo. Desse ato final do processo legislativo, como de todos os atos anteriores desse mesmo processo, depende a validade da lei. § 81. O processo legislativo das chamadas MEDIDAS PROVISÓRIAS Em casos excepcionais, “de relevância e urgência”, pode o Presidente da República apressar o processo legislativo por meio de medidas provisórias. Nos termos da Constituição, tais medidas têm “força de lei” durante sessenta dias, prazo prorrogável, uma só vez, por mais sessenta dias. Tais medidas deverão ser submetidas de imediato ao Congresso Nacional, e perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei, dentro do mencionado prazo (Constituição, art. 62, com as alterações impostas pela Emenda Constitucional n. 32, de 11-9-2001). Cumpre assinalar que as medidas provisórias são providências rigorosamente excepcionais. Nos termos da Constituição, elas só podem versar matérias de grande monta (“de relevância”), e só se justificam em casos 187
que exigem solução inadiável (casos de “urgência”), isto é, em prazo inferior ao tempo que seria necessário para elaborar, em regime de urgência, a lei correspondente. Quando a matéria não é verdadeiramente relevante e urgente — isto é, quando a matéria, sendo relevante, pode aguardar alguns dias, e ser solucionada por lei —, a medida provisória, em lugar da lei, é expediente impróprio, descabido, irregular. É inconstitucional. Dois motivos básicos explicam os dois pressupostos constitucionais das medidas provisórias. O primeiro é o princípio de que o Poder Legislativo pertence aos representantes do Povo, no Congresso Nacional. Em razão desse axioma da Democracia, não é admissível que o Presidente da República tenha o poder de expedir medidas com força de lei — a não ser nos casos de urgência máxima, em matéria de relevância manifesta. O segundo motivo é a insegurança jurídica que tais medidas podem causar, se o Congresso Nacional não quiser convertê-las em lei, no referido prazo de sessenta ou cento e vinte dias, a partir de sua publicação. Tendo “força de lei”, as medidas provisórias produzem, desde o momento de sua edição, os efeitos próprios das leis: criam, de imediato, situações jurídicas, com os concomitantes direitos e obrigações. Ora, tais situações, direitos e obrigações se extinguem ao fim dos mencionados prazos, sempre que o Congresso Nacional os deixa escorrer e esgotar, e não efetua as esperadas conversões. Confusão e desordem, na vida do Estado e na existência das pessoas, é a conseqüência inevitável da precariedade dessas incertas situações, que se instalam e se esvaem, no tempo exíguo de algumas semanas. Bem se justificam, pois, os dois pressupostos essenciais, que a Constituição estabelece, em seu art. 62, para a edição de medidas provisórias. Reza a Constituição, art. 62, § 5º: “A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais” (Emenda Constitucional n. 32, de 11-9-2001). Já se tem visto o Presidente da República se afeiçoar às medidas provisórias, e passar a legislar desabusadamente, por meio delas, sem atenção aos pressupostos da “relevância e urgência”, impostos pelo art. 62 da Constituição. Prática nefasta, esta, pela qual o Presidente, ao legislar exorbitantemente, comete usurpação de poder, exercendo função que não é de sua competência. 188
É claro que tal descomedimento só é possível em épocas de decadência democrática e de desprezo à ordem jurídica — épocas de ditadura camuflada —, quando o Congresso Nacional, com “maioria” complacente ou cooptada, se rende ao Poder Executivo. Cumpre observar, finalmente, que certas matérias não podem mais ser objeto de medidas provisórias. Assim, é vedada a edição de medidas provisórias sobre: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito autoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares. E, ainda, são vedadas medidas provisórias sobre: a) detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou de qualquer outro ativo financeiro; b) matéria reservada a lei complementar; c) matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República (Emenda Constitucional n. 32).
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CAPÍTULO XIX
A VIGÊNCIA DAS LEIS
§ 82. Noção de VIGÊNCIA DA LEI. VIGÊNCIA e EFICÁCIA A VIGÊNCIA da lei é sua qualidade de estar em vigor. Lei vigente é lei pronta, já regendo os casos para os quais ela foi feita. Note-se, desde logo, que vigência não é eficácia. A vigência da lei não se confunde com sua eficácia. Pode uma lei ser vigente e não ser eficaz. A EFICÁCIA da lei é sua maior ou menor aptidão de produzir, de fato, os efeitos queridos por seus autores. É, em suma, a sua eficiência prática, nos casos reais de que é regente. A eficácia admite graus. Há leis totalmente eficazes; mas há leis de eficácia reduzida, porque são mal redigidas, ou são de difícil interpretação, ou são repudiadas, casos todos de aplicação complicada e, às vezes, incerta. E há leis sem nenhuma eficácia, como as que, embora não revogadas expressamente, foram sendo esquecidas, acabaram caindo em desuso, caducaram, enterradas sob o pó das circunstâncias. Voltaremos a tratar deste assunto no Capítulo XX, que cuida da harmonia e desarmonia da lei com a ordenação ética vigente. Por ora, o importante é não confundir vigência com eficácia. § 83. O início da vigência da lei Em que momento, a lei entra em vigor? Quando se dá o início da vigência de uma lei? 191
Cinco hipóteses e cinco respostas diferentes existem, para essas perguntas. Numa primeira hipótese, a própria lei fixa o dia em que ela entra em vigor. Por exemplo, pode a lei estabelecer: “A presente lei entra em vigor nesta data” (isto é, na data de sua publicação). Ou: “Esta lei entra em vigor sessenta dias após a sua publicação”. Numa segunda hipótese, a lei nada diz sobre o início de sua vigência. Neste caso, a lei federal começa a vigorar, em todo o País, quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 1º). A vigência da lei estadual e municipal começa após o decurso do mesmo prazo, exceto quando a legislação estadual dispuser diferentemente*. Numa terceira hipótese — hipótese que é um complemento da segunda —, a obrigatoriedade da lei brasileira nos Estados estrangeiros, quando admitida, inicia três meses depois de oficialmente publicada no Brasil (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 1º, § 1º). Diz Clóvis Beviláqua: “Certamente a lei não se promulga nem publica em País estrangeiro; mas os efeitos da publicação podem chegar até lá, obrigando: 1º, nas legações e consulados, em tudo que disser respeito às atribuições dos ministros, dos cônsules e mais funcionários dessas repartições públicas; 2º, aos brasileiros quanto ao seu estatuto pessoal e aos atos submetidos, no estrangeiro, às leis pátrias; 3º, a todos os que tiverem interesses regidos pela lei brasileira” (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, vol. I, Observação 2 ao art. 2º da antiga Introdução do Código Civil, Rio de Janeiro, Livr. Francisco Alves, 1940). Numa quarta hipótese, a lei não fixa o dia em que ela começa a vigorar, mas estabelece que sua vigência só terá início quando outra lei, a ela referente, entrar em vigor, ou quando entrarem em vigor as leis necessárias ou exigidas pela própria lei para a sua aplicação. Isto acontece, por exemplo, quando uma lei só pode entrar em vigor depois de regulamentada, ou complementada, ou suplementada. Nestes casos, a vigência da lei fica suspensa. Ela não poderá ter início antes da entrada em vigor do necessário
* O § 2º do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: “A vigência das leis, que os governos estaduais elaborem por autorização do Governo Federal, depende da aprovação deste e começará no prazo que a legislação estadual fixar”. Este parágrafo, que ainda consta das edições modernas do Código, foi revogado pela Constituição Federal de 1946, que proibiu a delegação legislativa, em seu art. 36, § 2º, e conferiu aos Estados a incumbência de legislarem sobre as matérias de sua competência, sem necessidade de autorização ou aprovação do Governo Federal. Esse regime perdura até hoje (veja-se Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1982, vol. I, n. 22).
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regulamento (que é um decreto do Poder Executivo), ou antes da promulgação e publicação das exigidas normas complementares ou suplementares. Caio Mário da Silva Pereira diz: “A necessidade de regulamentação opera como uma condição suspensiva à força obrigatória da lei”. E acrescenta: “Mas é evidente que, se não toda a lei, mas apenas uma parte exige regulamentação, somente esta tem a sua eficácia suspensa até a publicação do respectivo decreto, pois que, no mais, nenhum obstáculo existe a que de pronto adquira força obrigatória” (Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1982, Capítulo V, n. 22). Uma dúvida persiste quanto ao início da vigência do decreto que regulamenta a lei. Quando terá início tal vigência? Na data da publicação do decreto? Ou tal vigência deverá ter começo quarenta e cinco dias depois da publicação oficial do decreto, em consonância com a citada regra geral do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Civil? Estas perguntas têm grande importância, porque de suas respostas depende a solução do problema seguinte: Uma lei começa a vigorar quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada, ou começa a vigorar quarenta e cinco dias depois da publicação oficial de seu regulamento? Todas estas perguntas desvanecem, porém, ante a simples lembrança de que os regulamentos das leis não são leis; são decretos do Poder Executivo. Aos decretos, não se refere o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Civil. O tempo de quarenta e cinco dias, fixado no citado artigo, é prazo para o início da vigência de leis. Nada tem que ver com a vigência de decretos. Uma lei começa a vigorar, repetimos, quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. Se sua vigência depende de regulamento, a lei começa a vigorar depois do referido prazo, e só depois de decretado seu regulamento. Se o regulamento for decretado antes do fim do mesmo prazo, a lei e seu regulamento aguardarão o tempo da lei, para então entrar em vigor*. Quando a lei se basta a si mesma, ela começa a vigorar no fim do referido
* Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho sustentam opinião diversa: “Quando uma disposição legislativa depende de regulamento, torna-se obrigatória depois de decorridos os prazos de que trata o art. 1º e de seu § 1º do Código da Lei de Introdução, a contar do dia em que for oficialmente publicado o regulamento”. “Embora a Lei de Introdução, tal como a anterior Introdução ao Código Civil, o não declare expressamente, é o que resulta da inteligência de seu dispositivo, e explicitamente do artigo 4º Código do dec. n. 572, de 12 de julho de 1890, artigo este ainda em vigor, uma vez que sua matéria não foi regulada pelo Código Civil, não se lhe aplicando, portanto, o artigo 1.807 do mesmo” (A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Comentado, São Paulo, Freitas Bastos, 1943, vol. 1º, n. 25).
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prazo, independente do regulamento. Diz Vicente Ráo: “Neste último caso, os regulamentos não retardam a entrada em vigor das leis e podem, até, sobrevir durante a vigência destas” (O Direito e a Vida dos Direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, 1º vol., n. 238). Numa quinta e derradeira hipótese, estando a lei já publicada, mas ainda não vigente, ocorre nova publicação de seu texto, destinada a correção. Neste caso, os prazos referidos nas hipóteses anteriores começam a correr a partir do dia seguinte ao da republicação (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 1º, § 3º). A correção de pequenos erros ortográficos e tipográficos não justifica nova publicação oficial da lei, e não acarreta mudança no início dos referidos prazos. É óbvio que a nova publicação da lei só pode ter por objetivo a transcrição correta do texto promulgado, sem quaisquer cortes ou acréscimos. Uma vez vigente, a lei não pode ser corrigida pela republicação dela. Só por meio de lei nova podem fazer-se correções a uma lei já em vigor (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 1º, § 4º). § 84. A “vacatio legis” Como se acaba de ver, há um lapso, um prazo, entre a publicação da lei e o início de sua vigência, exceto nos casos em que a lei determina que ela entra em vigor no próprio dia de sua publicação. Esse lapso se chama vacância. Seu nome tradicional, de uso ainda corrente, é “vacatio legis”. Três razões fundamentais justificam a vacatio legis. A primeira é a conveniência, em certos casos, de não entrar a lei imediatamente em vigor, para possibilitar que todos quantos forem por ela atingidos tenham um tempo razoável para bem interpretá-la e a ela adaptar-se. A segunda é a necessidade de se conceder às autoridades, a que seja eventualmente dirigida, o tempo necessário para que se aprestem para cumpri-la. A terceira, finalmente, é a precisão do prazo indispensável para elaboração do regulamento (pelo Poder Executivo), ou do regimento (pelo Poder Legislativo), ou de outras normas, exigidas pela própria lei, como requisitos para sua entrada em vigor. No cálculo do prazo da vacatio legis, deve excluir-se o dia em que a lei é publicada oficialmente, mas se deve incluir o dia do vencimento da vacância. 194
Durante a vacatio legis, a lei nova está publicada e pronta. Mas não é lei vigente. No decurso da vacância, continua em vigor a lei antiga, isto é, a lei que será substituída pela lei que aguarda o fim da vacatio legis. Enquanto a lei nova não estiver em vigor, a lei antiga regula a matéria que a lei nova irá regular. § 85. A ignorância da lei Uma vez vigente, a lei obriga a todos a que ela se dirige, ou seja, obriga a todos que estejam nas condições a que ela se refere. Corolário desse princípio: A ninguém é facultado alegar desconhecimento da lei vigente, para justificar qualquer desobediência ao que ela manda. Reza o art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. “Ignorantia juris neminem excusat”, diziam os romanos. Uma exigência fundamental é a razão-de-ser dessa norma: a necessidade de assegurar a ordem jurídica na sociedade. De fato, a ordem jurídica pereceria se as violações das leis pudessem ser justificadas com a simples alegação da ignorância delas. É claro que nem todos conhecem as leis. Pode mesmo dizer-se que ninguém conhece todas as leis. Este é o motivo pelo qual se proclama, com freqüência, que o conhecimento das leis é uma presunção necessária — uma suposição imposta por um motivo superior de ordem social, uma ficção de Direito, uma fictio juris, sem a qual o caos adviria na comunidade. A nosso ver, porém, nenhuma ficção existe no citado art. 3º. Tal artigo não exprime a presunção de que todos conhecem as leis. Nele, o que existe é uma proibição. Não a proibição de ignorar a lei, mas a proibição de pretender alguém furtar-se ao cumprimento da lei com a alegação de que não a conhecia. O que o art. 3º determina — eis o importante — é que tal alegação, verdadeira ou falsa, não pode ser levada em conta pelo juiz, nos conflitos judiciais entre os interesses dos violadores da lei e os interesses dos lesados pelas violações. Mas, atenção! Na área do crime e do Direito Penal, a ignorância da lei e sua errada compreensão, por parte do delinqüente, podem ser alegadas pelos advogados do réu e reconhecidas pelo juiz, como circunstâncias atenuantes (Código Penal, art. 65, II), ou como circunstâncias escusativas (Lei das Contravenções Penais, art. 8º). O ideal da individualização das penas inspira esses dispositivos. 195
§ 86. O erro de direito A ignorância da lei não se confunde com o erro de direito. Erro de direito significa erro no entendimento da lei. Significa engano sobre o que manda a lei. É um equívoco de interpretação do mandamento legal. Aos erros de direito se referem muitas das contendas em juízo. Nas ações judiciárias, autores e réus discutem, freqüentemente, sobre o entendimento da lei, e buscam demonstrar o erro de direito em que incide o adversário. Muito acertadamente, a Lei de Introdução ao Código Civil e o próprio Código Civil não dispõem sobre o erro de direito. Ao juiz é que cabe dizer o Direito, nas contendas judiciais sobre o entendimento das leis. Ao juiz incumbe declarar, nos casos de confronto entre interpretações diversas da norma, a vontade autêntica do mandamento legal. Com isto, estará o juiz rejeitando o erro de direito. Observemos que o citado art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil nada tem que ver com o erro de direito. Diferentemente do que sucede com a ignorância da lei, precisa o juiz levar em máxima conta a alegação do erro de direito, feita pelas partes, nos conflitos judiciais. Em sua sentença, compete ao juiz dizer qual é a parte que incide em erro de direito, e declarar vitoriosa a parte contrária. É claro que pode o juiz enganar-se. E isto é o que explica os recursos processuais, de que pode lançar mão a parte inconformada com a decisão judicial. § 87. A obrigatoriedade das leis. Os limites da obrigatoriedade: o DIREITO ADQUIRIDO, o ATO JURÍDICO PERFEITO e a COISA JULGADA A lei obriga a partir do dia de sua entrada em vigor. A obrigatoriedade da lei incide sobre todos os fatos e situações a que ela se refere. Notemos que ela incide, inclusive, sobre os efeitos dos fatos e situações anteriores à vigência da lei. Mas este princípio não é absoluto. Por imposição constitucional, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (Constituição, art. 5º, XXXVI). 196
Isto significa que a obrigatoriedade da lei tem restrições. De fato, ela é cerceada pelas três proibições mencionadas expressamente no citado art. 5º da Constituição. Em que consistem, afinal, as restrições da obrigatoriedade das leis? A primeira, como vimos, é a proibição de prejudicar o direito adquirido. O DIREITO ADQUIRIDO é o direito que, por meio de fato idôneo, se incorporou definitivamente ao patrimônio material e moral de uma pessoa. Exemplos: direito de propriedade adquirida por compra, ou por transmissão hereditária, ou por aluvião*, ou por qualquer outro fato idôneo, admitido pela legislação, como, por exemplo, o direito à aposentadoria, adquirido pelo trabalhador, nos termos da lei; o direito à pensão, adquirido legalmente pela viúva; o direito ao título e ao cargo de Professor Titular, adquirido por aprovação em concurso competente. A segunda limitação da obrigatoriedade das leis é a proibição de prejudicar o ato jurídico perfeito. O ATO JURÍDICO PERFEITO é o ato já consumado, praticado em consonância com a lei vigente ao tempo em que se efetuou (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º, § 1º). Exemplos: o casamento, realizado com as formalidades prescritas pelo Código Civil; a aquisição de imóvel, pela transcrição do título de aquisição (escritura de venda e compra, escritura de doação, formal de partilha, sentença de usucapião, etc.), no Registro do Imóvel; o legado, feito em testamento de pessoa falecida. E óbvio que o ato jurídico perfeito é uma das causas de direitos adquiridos. A terceira limitação da obrigatoriedade das leis é a proibição de prejudicar a coisa julgada. A COISA JULGADA (ou caso julgado), a res judicata, é a questão solucionada por decisão judicial de que já não caiba recurso (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º, § 3º). É o assunto resolvido por sentença definitiva. É, em verdade, a própria solução, dada em definitivo, pelo Poder Judiciário, a uma pendência entre interesses conflitantes. Em suma, a coisa julgada é o decidido em juízo irrecorrivelmente.
* Aluvião: acréscimos ao imóvel causados por aterros naturais ou pelo desvio do curso de rio (Código Civil, art. 1.250).
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Costuma-se dizer que a res judicata é a coisa que transitou em julgado*. A proibição de prejudicar a coisa julgada, imposta ao legislador pela Constituição, tem por fim assegurar os direitos que hajam sido reconhecidos e confirmados pelo Poder Judiciário. Objetiva, em suma, garantir o respeito aos Direitos Subjetivos das pessoas. As três proibições, que acabamos de definir, constituem as limitações constitucionais em que esbarra a irretroatividade das leis. Por causa delas é que se costuma aludir à irretroatividade das leis. Sobre isto, o que se deve dizer é o seguinte: as leis são retroativas, com as três restrições referidas. Merecem nossa máxima atenção, estas três severas restrições. Elas constituem, em conjunto, um cânon fundamental da ordem, uma das garantias de estabilidade dos direitos das pessoas. De fato, a proibição constitucional, imposta ao legislador, de prejudicar o ato jurídico perfeito e a coisa julgada assegura, precisamente, o respeito aos Direitos Subjetivos em geral — entre os quais se incluem, em primeiro lugar, os direitos adquiridos. Iníqua seria, em verdade, a lei superveniente que subtraísse, de surpresa, direitos honestamente granjeados pelo cidadão, no legal exercício das atividades normais de sua existência. Lei nova, que altere mandamentos da lei por ela revogada, poderá corrigir situação e regime que a experiência haja demonstrado defeituosos,
* Não há recurso processual contra a coisa julgada, ou seja, contra a decisão definitiva do Poder Judiciário. Note-se, porém, que a sentença ou acórdão transitado em julgado (a decisão chamada coisa julgada) pode ser objeto não de recurso, mas de outra ação; de uma ação própria, chamada ação rescisória, cujo único propósito é a rescisão daquele aresto, com fundamento no art. 485 do Código de Processo Civil. De acordo com este artigo, “a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: I — se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II — proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; III — resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV — ofender a coisa julgada; V — violar literal disposição de lei; VI — se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória; VII — depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; VIII — houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; IX — fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa”. Somente nestes casos pode ser rescindida a sentença definitiva, transitada em julgado. Somente nestes casos pode alguém pleitear a invalidação da coisa julgada — mas só por meio de ação própria, a chamada ação rescisória.
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mas terá de respeitar direitos colimados e já incorporados legalmente, de boa-fé, ao patrimônio material e moral das pessoas. A lei nova só há de dispor para direitos que venham a ser obtidos no futuro. Em caso de lei nova dispondo sobre direitos obtidos no passado, limitando-os ou os cancelando, competirá aos prejudicados pleitear, no Judiciário, a declaração de inconstitucionalidade da nova lei e pedir a confirmação de seus direitos. Referência especial precisa ser feita às leis penais. Para estas leis, a norma dominante é a do art. 5º, XL, da Constituição, que se enuncia nos seguintes termos: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Pela sua clareza, este princípio dispensa comentários. Ele é reforçado pela disposição do art. 2º, parágrafo único, do Código Penal: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. § 88. A lacuna de direito. A analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito Sucede, vez ou outra, que o juiz se veja na contingência de ter de sentenciar em questão sobre a qual lei nenhuma dispõe. Que deve o juiz fazer em tal emergência? Provada a omissão da lei, pode o juiz dizer, simplesmente, que se exime de julgar? Devemos adiantar, antes de mais nada, que tais casos de lacuna são ocorrências raras. Em Países civilizados, a legislação resulta de uma longa experiência, e nela se acham previstas as questões que as vicissitudes da vida multicentenária da humanidade em geral e das comunidades em particular foram apresentando, no decorrer ilustrativo dos tempos. Em regra, uma judiciosa e douta interpretação das leis é apta a suprir, com a lógica do razoável, as eventuais deficiências da letra das normas. Para os casos excepcionais de verdadeira lacuna legislativa, ou seja, para os casos em que a lei é verdadeiramente omissa, o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Que significa decidir “de acordo com a analogia”? Qual é o sentido do termo analogia? Os filósofos ensinam — desde Aristóteles — que uma coisa é análoga à outra quando ela é semelhante à outra em parte, e dessemelhante em parte. A analogia se distingue da identidade. Uma coisa é idêntica à outra quando ela é semelhante à outra em tudo. 199
Quando a lei for omissa, decidir “de acordo com a analogia” é decidir a questão de acordo com o que mandam as leis concernentes a casos análogos ao caso em questão. O argumento que justifica a decisão por analogia é o seguinte: a razão que inspira a lei concernente a determinados casos é a mesma razão que inspiraria uma lei acerca de casos análogos. “Ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio”, ou seja: onde existe a mesma razão da lei, cabe também a mesma disposição. Mas cumpre notar que, nos referidos casos de omissão da lei — casos de lacuna na legislação —, a decisão por analogia nem sempre é permitida. Assim, em matéria criminal, não pode alguém ser condenado pela prática de ato análogo ao ato qualificado como crime. Não há crime por analogia. Somente são crimes os atos que a lei assim os considera. Reza o art. 1º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina”. Logo, não pode o juiz fundar-se na analogia para condenar réu acusado da prática de ato não expressamente incluído pela lei no rol dos crimes. Aliás, não pode o juiz aplicar penas por analogia, porque as únicas penas comináveis são as penas estabelecidas pela lei, para cada tipo de crime. O mesmo art. 1º do Código Penal estabelece: “Não há pena sem prévia cominação legal”. (Reveja o Capítulo VI.) Igualmente, não é permitida a decisão por analogia para a cobrança de impostos e taxas não exigidos por lei. Dispõe o art. 108, § 1º, do Código Tributário Nacional: “O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei”. Não só da analogia há de o juiz se socorrer, para fundamentar sua decisão, nos casos de lacuna na legislação. Deve também valer-se da informação sobre a maneira pela qual questões semelhantes à questão dos autos são comumente resolvidas na vida social — questões que lei nenhuma regula. É o que recomenda, como vimos, o citado art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil: quando a lei for omissa, o juiz poderá também decidir “de acordo com o costume”. É evidente que os costumes, a que se refere este artigo, não são os costumes comerciais, devidamente registrados na Junta Comercial. Estes costumes têm força de lei. Não se refere a eles, certamente, o mencionado artigo, pois o problema de que ora se trata é, precisamente, o da lacuna, ou seja, o da omissão da lei. A que costume, então, alude o mencionado art. 4º? Alude, evidentemente, a usos inveterados, nascidos espontaneamente para atender necessi200
dades comuns da vida em sociedade; a práticas antigas e gerais, cujo valor normativo emana somente de sua habitualidade consuetudinária. Refere-se, é claro, às praxes generalizadas, não apoiadas em lei especial nenhuma. Não só de acordo com a analogia e o costume o juiz decidirá quando a lei for omissa. O citado art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil manda, nos casos de lacuna legislativa, que o juiz decida de acordo, também, com os princípios gerais de Direito. Que princípios serão estes? Muito se tem discutido sobre tal assunto. Cremos, porém, que os mencionados princípios se reduzem a dois imperativos fundamentais. Tendo de decidir, por obrigação de ofício, e não contando com solução legal adequada, deve o juiz ater-se, com sinceridade, antes de mais nada, ao sentimento natural de justiça, que habita em toda consciência e todo coração humano. A que imperativo, estaremos nos referindo? Bem o sabemos: referimo-nos ao mandamento ideal de que é preciso dar a cada um o que é seu. Achando-se na obrigação de sentenciar, e não contando com qualquer apoio legal, o juiz terá de consultar sua inteligência — atento à prova constante dos autos, e informado sobre a conjuntura social em que os fatos se deram — para descobrir o seu de cada uma das partes, na ação judicial a ele submetida. É verdade que essa operação nem sempre é fácil, como demonstraremos mais tarde, no Capítulo XXXVI, dedicado à Justiça; mas ela não difere, essencialmente, das operações que todo ser humano vai executando naturalmente, dia após dia, no transcorrer da existência. Ao viver, estamos sempre julgando os que, de qualquer maneira, se achem em contato direto conosco, ou se situem no campo mental de nosso conhecimento. Mas, no caso do juiz, a operação de julgar — de dizer qual é o seu de cada uma das partes da ação em juízo — consiste num labor diferente, porque só ela tem o efeito de produzir uma sentença judicial. Tal é, pois, o primeiro imperativo fundamental a que se refere o citado art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Mas há um segundo imperativo fundamental, compreendido no mandamento do mesmo artigo. De fato, ao mandar o juiz decidir de acordo com os princípios gerais de Direito, a lei está determinando que a sentença há de se harmonizar com os princípios gerais da ordem jurídica em vigor. No caso de lacuna legislativa, o que o art. 4º manda é que a sentença, fun201
dada na livre aspiração de justiça do próprio juiz, não pode ser arbitrária: não pode contrariar o sistema legal vigente. Ora, os princípios gerais consagrados na legislação vigente não são numerosos. Entre os mais eminentes, destacamos os seguintes: “Todos são iguais perante a lei”; “Todos têm igual direito à vida, à integridade física, à inviolabilidade de domicílio; à liberdade de ir e vir e ficar; à liberdade de manifestação do pensamento e de associação”; “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”; “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”; “A presunção da inocência é direito de quem não esteja condenado em decisão judicial definitiva”; “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente”; “Todo acusado tem direito à defesa; toda contenda em juízo, no cível e no crime, há de ser contraditória*”; “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer dano ou cerceamento ilegal de direito”. Voltaremos a tratar desta matéria no Capítulo XXXV, § 157, que é dedicado ao exame dos Bens Soberanos da vida. § 89. Fim da vigência da lei A vigência da lei termina por autodeterminação ou pela revogação dela. O fim da vigência por autodeterminação se verifica em quatro casos, a saber: Primeiro caso: A própria lei fixa a data em que expira sua vigência. Exemplo: a lei que institui o horário de verão. De acordo com esta lei, os ponteiros dos relógios, no primeiro dia do verão, são adiantados em uma hora; e a jornada passa a começar e terminar uma hora mais cedo. A vigência desta lei cessa, por autodeterminação, geralmente no mês de fevereiro. Segundo caso: O fim da vigência decorre da própria natureza da lei. Exemplos: as leis orçamentárias do Estado. Tais leis, que fixam, anualmente, a receita e a despesa do Poder Público, vigoram durante o exercício financeiro para o qual foram elaboradas. Sua vigência se extingue ao fim desse exercício.
* Em juízo, entende-se por contraditório o processo aberto à acusação (à denúncia) e à defesa.
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Terceiro caso: O fim da vigência ocorre quando o objetivo da lei não mais existe. Exemplo: a lei instituidora de um prêmio. Uma vez conferido o prêmio, a lei não tem mais razão-de-ser. Seu objetivo já foi atingido, já não existe. A vigência da lei se extingue. Quarto caso: O fim da vigência resulta da volta à normalidade de uma situação de crise, conjuntura anormal que a lei acudiu com medidas de exceção. Exemplo: a lei sobre providências especiais, para um estado de emergência ou de calamidade pública. Superada a crise, as medidas de exceção deixam de ser necessárias: a própria lei as suprime, e sua vigência se exaure. Estes são os casos das leis com vigência temporária, em que a cessação da vigência da lei se verifica por autodeterminação. Examinemos, agora, o caso da revogação da lei. A revogação de uma lei é a supressão da vigência dela. Revogá-la significa declará-la não mais em vigor. É tirar-lhe a vigência. Salientemos, antes de mais nada, que a revogação de uma lei só pode ser feita por meio de outra lei. Tal é o princípio fundamental. Só por lei, uma lei se revoga. Só por uma lei elaborada pelos representantes do Povo, pode ser revogada uma lei que foi também elaborada pelos representantes do Povo. Isto significa que as leis não “destinadas à vigência temporária” permanecerão em vigor até que outras leis as suprimam. Tal supressão pode ser revogação total, chamada ab-rogação, ou revogação parcial (modificação da lei), chamada derrogação. A Lei de Introdução ao Código Civil prescreve: “Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. Isto é: até que outra a derrogue ou ab-rogue. Este princípio é fundamental no Estado de Direito Democrático, porque assegura a independência do Poder Legislativo, que é o Poder em que deve melhor se exprimir a vontade coletiva. É o princípio que proíbe a supressão ou modificação das leis por meio de atos discricionários do Executivo. É uma salvaguarda contra o arbítrio e a prepotência dos que, eventualmente, se arvorem em donos de todo o Poder, e se julguem aptos a promover mudanças e eliminações na legislação vigente, por meio de decretos e medidas autoritárias. Ao princípio fundamental de que a lei só se revoga por lei, a Constituição admite, em seu art. 62, uma só exceção: a das “medidas provisórias com força de lei”, que o Presidente da República pode “adotar”, em casos “de relevância e urgência”. 203
Sobre essas medidas provisórias — sobre seu uso e abuso — já expusemos o necessário, no § 81. Observemos, ainda, que a revogação, às vezes, é tácita. Ela é expressa quando a lei a declara formalmente, ou seja, quando a lei contém, em seu texto, a disposição explícita de que ela suprime ou modifica outra lei. Ela é tácita quando a nova lei, embora não a declare formalmente, é disposição incompatível, totalmente ou parcialmente, com a lei anterior sobre o mesmo objeto; ou quando regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (§ 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil). Finalmente, cumpre lembrar que a revogação de uma lei revogadora não restaura a vigência da primitiva lei revogada. Reza o § 3º do citado art. 2º: “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”. Isto significa que a primitiva lei revogada só pode readquirir vigência se uma nova lei a declarar vigente. Última observação: a lei revogadora há de ser oriunda da mesma fonte de que emanou a lei revogada, ou de fonte de categoria mais elevada. Sobre as fontes e categorias das leis, remetemos ao que foi explicado no Capítulo XI.
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CAPÍTULO XX
A LEGITIMIDADE DAS LEIS
§ 90. As leis legítimas Dissemos que as leis podem ser válidas ou inválidas, e podem ser legítimas ou ilegítimas (veja § 66). O válido e o legítimo não se confundem. Igualmente, não se confundem o inválido e o ilegítimo. A validade das leis, já o sabemos, depende: 1) de seu correto domínio; 2) de sua correta elaboração. A demarcação do domínio das leis (tanto do domínio geográfico como do domínio de competência) e a instituição do processo de elaboração delas são matérias regidas pela legislação do País. É o que ficou demonstrado nos Capítulos XVII e XVIII. Conseqüentemente, o problema da validade e invalidade das leis é questão estrictamente jurídica. É questão técnica, vinculada ao Direito Positivo. Problema absolutamente diferente é o da legitimidade e ilegitimidade das leis. A legitimidade das leis depende de sua compatibilidade com a normalidade ambiente, ou seja, de sua harmonia com as concepções éticas dominantes numa coletividade. São legítimas as leis que forem FÓRMULAS DA ORDEM CONSENTIDA, ou QUERIDA, ou ALMEJADA pela média da população; ou, ao menos, FÓRMULAS DE UMA ORDEM NÃO REPELIDA, NÃO REJEITADA, NÃO REPUDIADA pela coletividade. Ilegítimas são as leis insólitas, as que discrepam do sistema dominante de convicções éticas, as que não se ajustam com os padrões e modelos assentados. São as leis incompatíveis com a estrutura básica do País. 205
A lei é ilegítima quando constitui uma anormalidade, dentro das concepções vigentes. Isto significa, afinal, que a lei é ilegítima quando não é normal, quando não é norma (veja Capítulo II). Não sendo norma (não sendo normal), a lei ilegítima não pode ser tida como norma jurídica. Não merece o nome de lei, embora receba esse nome com freqüência. Não passa de uma falsificação do Direito. A lei legítima provém, em regra, de fonte legítima. Das leis, a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo, ou o setor do Povo, ao qual elas interessam — comunidade e Povo em cujo seio as idéias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida. Os dados sociais, as contingências históricas da coletividade, as contradições entre o dever teórico e o comportamento efetivo, a média das aspirações e das repulsas populares, os anseios dominantes do Povo ou de uma população, tudo isto, em conjunto, é que constitui o manancial de onde brotam normas espontâneas de convivência, originais intentos de ordenação, às vezes usos e costumes, que irão inspirar a obra do legislador. Das forças mesológicas, dos fatores e necessidades reais, imperantes na comunidade, é que emerge a idéia dos mandamentos que o legislador, nos órgãos de planejamento e na forja parlamentar, modela em termos de leis legítimas. A fonte legítima secundária das leis é o próprio legislador, ou o conjunto dos legisladores de que se compõem os órgãos planejadores e legislativos do Estado. Mas o legislador e os referidos órgãos somente são fontes legítimas das leis enquanto forem delegados autorizados da coletividade, vozes oficiais do Povo, que é a fonte primária das leis. O único outorgante de poderes legislativos é o Povo. Somente o Povo tem competência para escolher seus delegados. Somente os delegados do Povo são legisladores legítimos. A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna, por ele também elaborada, e que é a Constituição. São ilegítimas as leis não nascidas do seio da comunidade, não sugeridas por imposições do interesse coletivo, não confeccionadas em conformidade com os processos prefixados pelos delegados do Povo, mas baixadas de cima, como carga descida na ponta de um cabo. Há, portanto, uma ordem jurídica legítima e uma ordem jurídica ilegítima. A ordem imposta, a ordem arbitrária, vinda de cima para baixo, é 206
ordem ilegítima. Ela é ilegítima porque, antes de mais nada, ilegítima é a sua origem. Somente é legítima a ordem que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do Povo. Impingida, a ordem é violência. Às vezes, em certos momentos de convulsão social, apresenta-se como remédio de urgência. Mas, em regra, é medicação que não pode ser usada por tempo dilatado, porque acaba acarretando males piores do que os causados pela doença. De tudo quanto se acaba de dizer, deduz-se que o problema da legitimidade e da ilegitimidade das leis não é uma questão propriamente jurídica. Ela se prende ao Direito, sem dúvida, porque a discriminação das leis legítimas e ilegítimas é uma subdivisão das leis válidas. Só de leis válidas, pode dizer-se que são legítimas ou ilegítimas. Mas o referido problema é, por excelência, uma questão política. Ela é uma questão política porque se prende, essencialmente, à questão da representação política do Povo nas Câmaras Legislativas. Se essa representação não for autêntica, os legisladores não serão vozes credenciadas do Povo no Parlamento; não serão representantes verdadeiros dos cidadãos. E o Congresso Nacional — assim como as Câmaras estaduais e municipais — não constituirão um Poder Legislativo confiável*. O problema da legitimidade e da ilegitimidade das leis se coloca no preciso campo em que a Ciência do Direito e a Ciência Política se entrelaçam, e de tal maneira se entrosam que as soluções que delas emanam não pertencem nem a uma nem à outra, mas à ciência que se pode chamar Política do Direito. § 91. Harmonização da lei com a ordenação ética vigente A lei, bem o sabemos, é um imperativo, um mandamento. Mas não é um imperativo qualquer. É um imperativo normativo, e isto quer dizer que a norma verdadeiramente jurídica é sempre um mandamento harmonizado com a normalidade, com a ordenação ética de uma coletividade humana (veja §§ 8 e 9). Por ser norma, a lei há de ser congruente com a normalidade ambiente. Já temos dito e repetido que o anormal não pode ser normal, não pode ser norma. * A grave questão da representação política, no Estado de Direito Democrático, é matéria de meu livro O Povo e o Poder, Ed. Juarez de Oliveira, 2006.
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Toda norma jurídica se inclui dentro de uma estrutura ética, dentro de um sistema de convicções sobre o normal e o anormal, ou seja, dentro de uma ordenação normativa, que é, como se sabe, um conjunto articulado de disposições, para a orientação do comportamento humano (veja § 8). Por tal motivo, uma lei não deve ser tomada isoladamente, nem ser interpretada como um mandamento avulso. Seu verdadeiro sentido lhe advém, muitas vezes, da estrutura de que ela é parte. Isoladamente, ela pode ter um sentido que não é seu sentido autêntico. Disse Miguel Reale: “Uma regra jurídica não pode nem deve ser tomada de per si, como se fosse uma proposição lógica em si mesma inteiramente válida e conclusa, pois o seu significado e a sua eficácia dependem de sua funcionalidade e de sua correlação com as demais normas do sistema, assim como do conjunto de princípios que a informam” (Filosofia do Direito, 5ª ed., Parte II, Tít. X, Capítulo XXXVII, n. 207). (...) “no instante mesmo em que, graças à interferência do poder, se dá a objetivação de uma regra de direito, esta se insere no contexto normativo já vigente, subordinando-se a uma totalidade de sentido que a transcende”. “Na realidade, o enquadramento de cada norma jurídica num SISTEMA é, ao mesmo tempo, uma exigência lógica e deontológica: LÓGICA, porque não seria possível o estudo científico da experiência jurídica, se as soluções normativas particulares não se compusessem em unidade, refletindo, na substância de suas relações perceptivas, os enlaces de solidariedade conaturais ao mundo dos valores que elas expressam” (...) “e DEONTOLÓGICA, porque a legitimidade de cada preceito jurídico promana tanto dos valores cuja salvaguarda se visa em cada caso concreto, como também e principalmente do VALOR GLOBAL DE ORDENAMENTO, que, considerado no seu todo congruente, é expressão das aspirações comuns do Povo” (...) (O Direito como Experiência, Ensaio VI, II). “O sistema inteiro de um Código depende muitas vezes de uma só disposição”, disse Teixeira de Freitas (Consolidação das Leis Civis, 3ª ed., p. LIX). Eventuais mandamentos, promulgados como imperativos de Direito, mas conflitantes com a ordenação normativa vigente, não merecem o nome de normas jurídicas, embora se apresentem, às vezes, com as formas exteriores da norma jurídica. Não são normas jurídicas, porque são contrafações autorizantes. Não se conciliando com o sistema dominante de convicções, sobre o que deve e não deve ser feito — sistema que constitui o núcleo das legislações positivas legítimas —, tais mandamentos não são normas, porque 208
contrariam a normalidade. São resoluções avulsas, determinações espúrias, contrárias à normalidade. São, de fato, imperativos contra o Direito. Não são o Direito, mas o Torto. Não sendo Direito, não deveriam ser chamados de Direito (embora o sejam, freqüentissimamente, como vimos no Capítulo X). É importante, para a salvaguarda da liberdade humana, que não se confira o título de norma jurídica a mandamentos que não sejam normas. Decretos arbitrários são mandamentos, mas não são mandamentos normativos. Em verdade, são desmandos. São atos atrabiliários, repugnantes a concepções arraigadas e gerais. Logo, não são normas jurídicas. Mesmo quando recebem o nome de leis, tais mandamentos não são normas de Direito. São arbitrariedades, e nada mais. Não se diga, portanto, que a sentença ou decisão administrativa fundada em tais decretos seja sentença ou decisão fundada no Direito. Diga-se, simplesmente, que é sentença ou decisão fundada em mandamentos vigentes. Convém lembrar que o sistema de convicções éticas, a que a lei se vincula necessariamente, não precisa ser a ordenação do Estado. Toda coletividade possui uma estrutura normativa própria. Toda coletividade se rege por seus próprios mandamentos. Num sindicato, numa escola, num grêmio, numa sociedade mercantil, num clube, numa favela, até numa associação de malfeitores, tais mandamentos existem forçosamente. Todo grupo social há de manter a sua normalidade, que se resume numa certa disciplina interna. Cada grupo social possui seu próprio Direito. Ora, a qualidade normativa dos mandamentos, no interior das coletividades, depende de sua vinculação com o sistema de convicções éticas, que constitui a ordenação própria dessas mesmas coletividades. Mas — atenção! — a qualidade normativa de tais mandamentos só é reconhecida pelo Estado se eles se harmonizarem com a ordenação estatal. Em caso contrário, o mandamento poderá ser normativo dentro do grupo, mas será um mandamento contrário à normalidade instituída pelo Estado. Um costume, por exemplo, pode eventualmente ser norma em algum agrupamento humano, e ser uma anormalidade ante a legislação vigente numa Nação. A ordenação para fins ilícitos, por mais que seja normativa no interior de uma quadrilha de malfeitores, será sempre considerada uma anormalidade, à luz da ordenação do Estado. É necessário acrescentar que a própria ordenação do Estado, a legislação positiva de um Governo — a “normalidade oficial” —, poderá ser, em verdade, uma anormalidade, à luz da estrutura ética fundamental da Nação. 209
É o que freqüentemente acontece nas Ditaduras discricionárias. Os imperativos da legislação em desarmonia com o núcleo das concepções éticas de uma Nação não constituem autênticos imperativos jurídicos. São, sem dúvida, mandamentos. São mandamentos promulgados, vigentes e eficazes. Mas são impostos pelo arbítrio do Governo. Logo, não são Direito, e não deveriam ser chamados de Direito. Vicejam à margem do Direito, como infecção no organismo nacional, como veremos adiante. A imperatividade verdadeiramente jurídica não é nunca uma imperatividade arbitrária. Ela é uma imperatividade que reflete a prevalência natural das convicções éticas de uma coletividade; imperatividade decorrente de um núcleo de sentimentos generalizados do que é permitido e do que é proibido, do que é consentido ou tolerado, e do que é rejeitado e repelido. A imperatividade não advinda de sua fonte natural não é propriamente jurídica. Não é uma imperatividade legítima. A eventual desarmonia entre certas leis e o sentimento ético vigente é causada: 1) por erro do legislador; 2) por arbítrio do Poder; 3) pela decrepitude ou por desuso do Direito, como se vai ver nos §§ seguintes. § 92. A primeira causa da eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente: o erro do legislador A eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente pode ser causada por simples erro do legislador. De fato, acontece, às vezes, que o legislador, com a melhor intenção, talvez fundado em velhas tradições jurídicas, não atine, ao elaborar a lei, que o mandamento nela contido entra em choque com a normalidade ambiente moderna. Seja o seguinte exemplo: “São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I — Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos. II — As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal. III — Os pródigos*. IV — Os silvícolas” (Código Civil de 1916, art. 6º, redação primitiva). A inclusão das mulheres casadas no rol das pessoas relativamente incapazes deve ter parecido, aos autores da lei, medida natural e irrecusável,
* Pródigo = pessoa que despende em excesso; gasta mais do que pode; esbanjador, dissipador.
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porque, ao fazê-la, o legislador levava em seu espírito, certamente, as ressonâncias do Direito Romano, pelo qual a mulher era tratada como incapaz “propter sexus infirmatatem et ignorantiam rerum forensium”, ou seja, ela era considerada incapaz devido à infirmação (à falta de firmeza) de seu sexo e à sua ignorância das matérias jurídicas. Era comum dizer-se que a incapacidade da mulher casada, prescrita na lei citada, decorria do casamento, e não do sexo, pois o casamento é que imporia restrições aos direitos da mulher. Este modo de interpretar a lei, porém, não era acertado, porque as restrições impostas à mulher pelo casamento eram contrabalançadas pelas restrições também impostas ao marido. Os principais atos que a mulher não podia praticar sem autorização do marido eram, precisamente, “os atos que este não poderia praticar sem o consentimento da mulher” (Código Civil de 1916, art. 242; veja também o art. 235). Logo, se a mulher devia ser considerada incapaz, em virtude das restrições que lhe eram impostas pelo casamento, o marido também o deveria ser, pela mesma razão. A lei, entretanto, só proclamava a incapacidade da mulher. É evidente que tal preceito discriminatório era ainda um reflexo de velhas convicções sobre a condição de inferioridade da mulher, principalmente dominantes em povos guerreiros e conquistadores (veja Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1982, vol. I, Capítulo X, n. 51). A influência dessas vetustas idéias, que uma tradição venerável prestigiava, é que induziu o legislador a equiparar a mulher casada aos menores de idade, aos inaptos para a administração de seus bens, e aos índios. Na lei citada, o erro do legislador é flagrante. É um erro duplo, porque, primeiro, a afirmação de inferioridade da mulher casada, relativamente a seu marido (inferioridade que a lei encobria com o rótulo de “incapacidade”), é uma heresia científica, uma aberração da realidade; e, segundo, porque a lei atribuía, arbitrariamente, o nome de incapacidade ao que não era falta de capacidade, mas falta de legitimidade. Para os atos que a lei menciona, tanto a mulher como o marido precisam da anuência do cônjuge. Sem esta anuência, a mulher e o marido são partes ilegítimas: não podem, legitimamente, praticar os referidos atos. Ambos, pois, necessitam de legitimação (ou seja, da anuência do cônjuge), a fim de que tais atos tenham validade jurídica. A legitimação, como instituto jurídico, é o preenchimento de uma exigência legal, imposta a pessoas capazes, para a prática válida de certos atos. A legitimação é mais um requisito para a validade do ato jurídico. 211
A mulher casada e o homem casado são agentes igualmente capazes, mas agentes que precisam de legitimação para a prática válida de certos atos, que a lei relaciona. Com a legitimação, adquirem legitimidade. É evidente que o rebaixamento legal da mulher casada à categoria das pessoas incapazes entrou em choque com as concepções modernas sobre a igualdade jurídica dos seres humanos. Por duplo erro do legislador, a lei promulgada (art. 6º do Código Civil de 1916, redação primitiva) não se harmonizava com as convicções éticas dominantes. Para eliminar tal erro, a lei teve de ser alterada. Atualmente, as mulheres casadas não mais figuram no rol legal dos incapazes (Lei n. 4.121, de 27-8-1962 — Estatuto da Mulher Casada, que alterou o art. 6º do Código Civil de 1916 ; Código Civil de 2002, art. 4º). Observe-se que o erro do legislador, num determinado mandamento autorizante, pode ser causa de erro em outros mandamentos. Podem os erros se encadear, formando uma rede de mandamentos em desarmonia com a normalidade ética do meio. Seja, por exemplo, a seguinte lei: “A mãe que contrai novas núpcias perde, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder; mas enviuvando, os recupera” (Código Civil de 1916, art. 393, redação primitiva). Duas razões principais existiam para essa prescrição legal. A primeira era a necessidade de defender os filhos do primeiro casamento. E a segunda era a impossibilidade de deixar o pátrio poder com pessoa juridicamente incapaz (veja Clóvis Beviláqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Comentado, Rio de Janeiro, Livr. Francisco Alves, 1940, vol. II, art. 393). A primeira razão repousava na presunção de que os interesses dos filhos do leito anterior podiam conflitar com os da nova prole, e isto seria a causa certa de desentendimentos conjugais, prejudiciais a uns e outros. E, também, se apoiava na convicção de que os afazeres da nova família, com as imposições do marido, forçariam a mulher a se desviar das atenções devidas aos filhos do primeiro casamento. Assim, a defesa dos menores era um dos motivos para destituir a bínuba do pátrio poder, e para confiar as crianças aos cuidados de um tutor. A própria vida, porém, demonstrou a inconsistência desse motivo. Melhor do que qualquer tutor, a mãe — casada, viúva ou recasada — se revelou, na grande maioria dos casos, a pessoa mais habilitada para cuidar de seus filhos menores. Tirá-los de seu poder, entregá-los a um tutor, mostrou ser, em regra, ato desumano para a mãe, e prejudicial para os filhos. O recasamento da mãe não constituía motivo para a destituição do pátrio poder. A nomeação de tutor só se justificava se a bínuba abusasse de seu poder, faltasse aos deveres maternos, arruinasse os bens dos filhos (Código Civil de 1916, art. 394). 212
Mas a razão considerada decisiva para a perda do pátrio poder, pela mãe que convolava para novas núpcias, era outra completamente. Era a razão, aqui mencionada em segundo lugar, fundada no princípio vetusto de que “são incapazes as mulheres casadas” (Código Civil de 1916, art. 6º). De acordo com esse princípio, a viúva, ao se recasar, se tornava incapaz. Com isto, a recasada ficava inapta para gerir, convenientemente, o patrimônio de seus filhos menores. Em conseqüência, a lei antiga a destituía dos direitos do pátrio poder. O erro do legislador, relativo à inferioridade e incapacidade da mulher casada, se projetou, como se vê, sobre um mandamento relativo ao pátrio poder. E a conseqüência natural, mas lamentável, de tal projeção foi que o erro, que arruinou o referido princípio, também desacreditou o mandamento. Então, para harmonizar a lei com a ordenação ética vigente, o legislador teve de substituir o citado preceito pelo preceito oposto, que ficou formulado nos seguintes termos: “A mãe que contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido” (Lei n. 4.121, de 27-8-1962 — Estatuto da Mulher Casada; Código Civil de 1916, art. 393, redação posterior a este Estatuto). Mas, durante o longo período anterior à promulgação desta norma jurídica, vigorou, por erro do legislador, o mandamento autorizante que impunha, à mulher recasada, a perda do pátrio poder sobre os filhos de seu primeiro casamento. § 93. A segunda causa da eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente: o arbítrio do Poder A eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente pode também ser causada por arbítrio do Poder. Fundado em sua força, ou no prestígio de sua demagogia, um Governo autoritário é levado, às vezes, a impor à Nação, discricionariamente, mandamentos conflitantes com o sentimento da coletividade, e violadores de direitos dos cidadãos. Tais mandamentos, incongruentes com o sistema dominante de concepções, são insólitos e extravagantes. São verdadeiras anormalidades, violações do que é normal. Logo, esses mandamentos não são normas. São anormalidades. Deste tipo de mandamento, exemplos inúmeros existem. Para simples ilustração, citemos, como expressivo modelo de imperativo contra a ordem jurídica, o arbitrário art. 11 do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 213
1968, que dispunha: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”. Este mandamento contrariou a ordenação jurídica brasileira. Contrariou o princípio de harmonia e independência dos três Poderes. Contrariou o princípio de que a competência desses Poderes é estabelecida pela Constituição, não podendo ser alterada por ato do Executivo. Contrariou o imperativo da autonomia do Poder Judiciário. Um tal preceito violou uma consagrada garantia constitucional, que costuma ser formulada assim: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual” (Constituições de 1946 e de 1967/1969). Ou assim: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Constituição de 1988, art. 5º, XXXV). Ora, essa garantia, inscrita nas Constituições dos povos civilizados, nada mais é do que a expressão de uma aspiração comum de todo ser humano: a fórmula da certeza generalizada de que toda lesão causada por desrespeito ao direito individual pode ser submetida ao julgamento dos juízes e tribunais, para uma justa reparação. Em verdade, o citado preceito do art. 11 do Ato Institucional n. 5 fere um natural sentimento de justiça, e escandaliza a consciência de todos. É um mandamento contrário à moral coletiva. O normal, no pensamento do cidadão comum, é a possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário, nos casos de dano por violação da lei. O anormal é a limitação dessa possibilidade. Conseqüentemente, a referida disposição legal não pode ser tida como norma. Ela é um mandamento, sem dúvida, mas não é uma norma. E não é uma norma porque é uma anormalidade — uma anormalidade à luz das concepções morais adotadas e da ordenação jurídica vigente. Não sendo norma, tal disposição não é norma jurídica, não é Direito, apesar de ser autorizante; apesar da forma jurídica de que se reveste. Ela é uma contrafação do Direito. Ela é uma expressão flagrante de arbítrio do Poder. § 94. A terceira causa da eventual desarmonia entre a lei e a ordenação ética vigente: o desuso e a decrepitude do Direito Finalmente, a eventual desarmonia entre o mandamento autorizante e a ordenação ética vigente pode ser causada pelo desuso e pela decrepitude do Direito. 214
A decrepitude ou caduquez do Direito é fenômeno comum nas sociedades humanas. Ocorre quando a norma jurídica é superada por novos usos e costumes; quando ela deixa de ser a expressão de concepções éticas dominantes, e perde seu caráter de fórmula da normalidade. Ela ocorre pelo desuso do Direito. A normalidade, como se sabe, é um estado que não permanece sempre o mesmo. Ela muda, com o perpassar dos tempos. As premências da vida, as alterações nas condições básicas da existência, a evolução cultural da sociedade são os primeiros fatores a ditar mudanças nos modos de ser, de pensar e de agir. O incremento e a difusão de informações, a progressão dos modos de pensar, a adoção de padrões e modelos difundidos pelos meios de comunicação constituem causas, entre outras, de transformações na mentalidade coletiva. Os princípios éticos se vão modificando, por força de um sem-número de fatores diversos. Muito do que era desconhecido passa a ser de emprego corrente. Muito do que era proibido passa a ser tolerado, depois permitido, depois recomendado. Idéias sobre o ilícito vão sendo substituídas por outras idéias. Assim, novos usos e costumes se implantam. Novas práticas e novas formas de relacionamento social se firmam e consagram. Alguns setores do Direito, porém, nem sempre acompanham a evolução das concepções gerais. As mudanças do Direito não se fazem automaticamente. Mudar o Direito é mudar as leis. Isto significa que mudar o Direito exige a revogação de leis velhas e a promulgação de leis novas. Ora, estas providências obedecem às regras do processo legislativo, que descrevemos no Capítulo XVIII, e que se realiza em órgãos próprios do Estado. São operações complexas, que movimentam o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Compreendem entendimentos políticos e exigem, não raro, luta parlamentar. Costumam ser empreendimentos difíceis, porque contrariam, com freqüência, idéias arraigadas de certos círculos intransigentes, sempre prontos a se opor a qualquer novidade. E podem ser extremamente árduos, nos casos em que os projetos de mudança afetam situações consolidadas, ou ferem importantes interesses econômicos. Observe-se que as resistências do Direito às inovações profundas têm uma incontestável virtude: a de impedir que a sociedade se precipite em transformações impensadas, ao sabor de caprichos momentâneos. É óbvio que toda estrutura exige uma certa estabilidade. E toda mudança só deve ocorrer após experiência suficiente do que está em vigor. O que acontece, às vezes, é que a experiência suficiente está feita, indicando a necessidade de mudar — e a mudança não ocorre. Então a lei 215
antiga se desatualiza por completo. Incompatibilizada com as novas concepções dominantes, ela se desvincula do sistema ético em vigor. Nenhuma interpretação é capaz de modernizá-la e convalidá-la. Rígida, inflexível, ancilosada, a lei não se dobra às condições do presente. A vida real das pessoas já se processa à revelia dela. Os usos e costumes a desconhecem e descumprem. Presa a concepções do passado, a lei se torna obsoleta, de aplicabilidade insólita, num mundo diferente. Ela se invalida, destrepa, envelhece. Vira lei caduca. Cumpre notar que a lei caduca é lei que continua em vigor. Sua vigência não é afetada pela sua decrepitude. Pois a vigência de uma lei perdura enquanto não for revogada por outra lei. O que é afetado pela decrepitude da lei é a sua eficácia. A lei caduca é lei com vigência, mas sem eficácia. Ela não tem eficácia porque, precisamente, é lei desatualizada, desativada, inaplicável ou de aplicabilidade repudiada. É lei que entrou em desuso. A lei caduca não perde sua qualidade de mandamento, mas deixa de ser norma, uma vez que não mais se harmoniza com a normalidade. Passa a ser um mandamento não normativo. Assinale-se que, enquanto vigente, a lei caduca continua autorizante. Mas o emprego de seu autorizamento (sempre possível), para coagir o violador a cumpri-la, será comportamento desaprovado, porque destoa dos usos e costumes. O simples autorizamento da lei, sem harmonia com o sistema ético vigente, não confere ao mandamento a qualidade de Direito autêntico. A simples vigência da lei não lhe dá foros de norma. Em certos casos, poder-se-ia dizer que houve revogação tácita da lei, pela sua incompatibilidade com o espírito da ordenação vigente. Embora sem determinar expressamente essa revogação, as leis novas tacitamente a revogam. E há juízes que, em casos especiais, a têm considerado revogada. Disse Miguel Reale: “Há, com efeito, leis que só possuem existência formal, sem qualquer conseqüência ou reflexo no campo das relações humanas (são as chamadas LEIS DE PAPEL) até ao ponto do legislador se esquecer de revogá-las. Se não se opera propriamente a revogação das leis pelo continuado desuso, este as esvazia de força cogente, levando o intérprete, ao ser surpreendido com a sua imprevista invocação, encapsulá-las no bojo de outras normas, de modo a atenuar-lhes o ruinoso efeito” (Filosofia do Direito, 5ª ed., Parte II, Tít. X, Capítulo XXXVII, n. 207). Seja, por exemplo, a lei que definia o adultério como crime, e cominava pena ao autor e ao co-réu desse delito (Código Penal, art. 240, revogado pela Lei n. 11.106/2005). 216
É evidente que essa qualificação legal do adultério, com sua conseqüência penal, não condizia com as concepções há muito dominantes sobre o assunto. Houve tempo, sem dúvida, em que o adultério era considerado crime, mas somente o adultério feminino. Crime de adultério era crime da mulher, segundo pensamento generalizado. O adultério masculino sempre foi julgado com benevolência, como fato comum, sem maiores conseqüências, evento corriqueiro, ligado, por assim dizer, à própria natureza dos machos... Com a evolução da cultura, as convicções modernas sobre a igualdade jurídica dos seres humanos levaram à equiparação do adultério feminino ao adultério masculino. Note-se, porém, que tal equiparação, longe de conferir a qualidade de crime aos dois adultérios, deu ao adultério feminino valor semelhante ao atribuído ao masculino. Conseqüentemente, a infidelidade conjugal, mesmo quando reprovada, não tem mais, na consciência de todos, a conotação de um crime, a que se possam aplicar as penas que a lei comina aos delinqüentes. A lei citada virou lei caduca, e veio a ser revogada em 2005 pela Lei n. 11.106. E mais caduca, ainda, se tornara essa lei, em virtude do dispositivo pelo qual, nos crimes de adultério, “a ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido” (Código Penal, art. 240, § 2º, revogado pela Lei n. 11.106/ 2005). A jurisprudência dos tribunais demonstrava que eram inexistentes, ou quase inexistentes, tais ações no foro criminal. Os cônjuges ofendidos não se animavam a intentá-las. As penas da lei, aplicadas ao ofensor, não pareciam constituir o remédio adequado para a desventura do cônjuge enganado. E a ação penal era renegada pelo próprio ofendido, porque ela acarretava situações de constrangimento e humilhação, com violação da intimidade e devassa na vida particular, redundando, não raro, em escândalo. O que se tem observado é que a mesma pessoa que seria capaz de descarregar o revólver sobre o cônjuge não iria a juízo para processar criminalmente o consorte infiel. Quase não ocorrendo ações penais por adultério, a lei citada, cominadora de pena aos autores desse delito, ficou sem aplicação, e foi revogada. Enquanto vigente, mas ineficaz, tal lei constituía um caso expressivo de decrepitude do direito. Ela continuava autorizante, porque continuava autorizando a aplicação da pena. Mas seu autorizamento permanecia sem emprego. A lei era um mandamento em desuso, porque não se harmonizava com o sistema ético em vigor. Por ter caducado, ela deixou de ser uma expressão da normalidade ambiente, deixou de ser norma e, portanto, não era mais uma norma jurídica autêntica. 217
§ 95. O Direito Artificial Aqui se coloca uma observação de capital importância. Os eventuais mandamentos autorizantes não harmonizados com a ordenação ética vigente funcionam como se fossem normas verdadeiras embora não sejam normas autênticas. De fato, tais mandamentos autorizam quem for lesado pela violação deles, ou quem for um provável lesado por previsível e iminente violação, a exercer, pelos meios legais, coação sobre o violador (violador efetivo ou provável), a fim de fazer cessar ou de obstar a violação; ou de obter, do mesmo violador, reparação pelo mal que a infringência causou; ou, finalmente, de submeter o violador às penas da lei e às medidas legais de segurança social. Em suma, tais mandamentos autorizam o emprego dos meios competentes, permitidos pela lei ou pelo costume, para forçar os violadores deles (violadores efetivos ou prováveis) a cumprir o que mandam, ou a reparar o mal causado pela violação, ou a se submeter às penas da lei. Como se vê, o autorizamento desses mandamentos lhes confere o caráter, a forma e a função das normas jurídicas em geral. O que lhes impede de ser normas jurídicas legítimas é a sua desarmonia com a normalidade, o seu desajuste com a ordenação ética vigente. Elas são, em verdade, normas jurídicas desnaturadas. São contrafações de normas jurídicas. Já foi dito que não é prudente, nem científico, aceitar como Direito o mandamento contrário ao Direito (veja Capítulo X). Mas o que precisa ser salientado é que tais mandamentos, por serem autorizantes (embora não harmonizados com a ordenação ética vigente), se apresentam rotulados de Direito e, na vida prática, se inserem na ordenação jurídica da sociedade. Não são propriamente Direito, mas funcionam como Direito. Por este motivo, são confundidos com o Direito, e são chamados Direito. Em verdade, constituem o Direito Artificial, encravado na estrutura do Direito autêntico. O Direito Artificial é o Direito falsificado, confundido com o Direito autêntico. É um Direito ilegítimo, misturado com o Direito legítimo. O que se quer, num País, não é, certamente, o império de um Direito Artificial. O que se quer é a ordenação de um Direito autêntico, ou seja, de um Direito não artificial; de um Direito simplesmente natural. 218
§ 96. O DIREITO NATURAL O Direito Natural é o Direito que não é artificial. O natural é o contrário do artificial. O que não é artificial é natural. Toda ordenação que tiver a natureza de Direito autêntico é Direito por natureza, é Direito Natural. Ora, por natureza, o Direito autêntico é um conjunto de normas que a coletividade deseja ver obedecidas, como condição para o conseguimento de determinados objetivos sociais. É o Direito legítimo, a que nos referimos no Capítulo XX. O fim supremo do Direito é o estabelecimento de uma ordem básica, em conformidade com os bens soberanos de um Povo. Para assegurar a permanência e a eficácia dessa ordem, dessa normalidade, para garantir um mínimo de respeito a suas normas, e atalhar o descumprimento delas, a própria coletividade outorga, por intermédio das mesmas normas jurídicas, aos que sejam lesados por violação delas, a permissão de exigir o cumprimento das normas infringidas ou a reparação do dano causado pela infringência. Por tal motivo, as normas jurídicas, em razão do papel que desempenham, são normas autorizantes, como sabemos. Vê-se, portanto, que o Direito, por natureza, é uma ordenação harmonizada com o sistema ético dominante num Povo, ou num setor do Povo, e se compõe de normas autorizantes (reveja Capítulo X). A ordenação não nascida da coletividade, não harmonizada com as convicções morais da população a que ela interessa, não tem a natureza do Direito. Não realiza a idéia de Direito, ou seja, não é adequada ou conforme à definição do Direito. Logo, não é Direito autêntico, não é Direito legítimo, não é Direito de verdade. O que ela é — bem o sabemos — é uma contrafação do Direito. Disse Miguel Reale: “O Direito autêntico não é apenas declarado mas reconhecido, é vivido pela sociedade, como algo que se incorpora e se integra em sua maneira de conduzir-se” (Lições Preliminares de Direito, Capítulo X, “Da eficácia ou efetividade”). Em suma, o Direito autêntico não pode ser um Direito Artificial. Pelo contrário, o Direito autêntico é sempre um Direito Natural. Com simplicidade, o que se deve dizer é que o Direito é o Direito Natural; ou, o Direito Natural é o Direito. Tal é o motivo pelo qual a definição do Direito Natural coincide com a definição do Direito Positivo (veja Capítulo XI). 219
O Direito Natural se define nos seguintes termos: CONJUNTO DOS MANDAMENTOS AUTORIZANTES, EMANADOS DO PODER CONSTITUINTE E DO PODER LEGISLATIVO, E HARMONIZADOS COM A ORDENAÇÃO ÉTICA DA COLETIVIDADE. Cumpre lembrar que as ordenações éticas das coletividades humanas variam no tempo e no espaço. Cada coletividade, em cada fase de sua história, tem sua própria constelação de bens soberanos e sua própria ordenação ética. Conseqüentemente, plurívoco é o Direito Natural. Ou, melhor: muitos são os Direitos Naturais. De fato, são Direitos Naturais todas as ordenações jurídicas autênticas ou legitimadas, isto é, todas as ordenações jurídicas harmonizadas com a ética vigente na sociedade. A ordenação legítima é a que constitui a ordem jurídica natural, ou seja, o Direito Natural. Por que assim ela se qualifica? Porque essa ordem é sempre uma tentativa para assegurar o bem comum, os direitos fundamentais das pessoas e a justiça, tudo de acordo com a tábua de “valores” de cada conjuntura histórica. Pode, pois, o Direito Natural ser também definido nos seguintes termos: DIREITO POSITIVO DESTINADO A SER MEIO PARA A CONSECUÇÃO DOS BENS SOBERANOS DO HOMEM (de que trataremos no Capítulo XXXV). Verifica-se, imediatamente, que o Direito Natural não é um conjunto de primeiros princípios ou de princípios gerais. Não! O Direito Natural é um Direito Positivo. É todo o Direito Positivo legítimo. É todo o Direito legítimo emanado do Poder Constituinte e do Poder Legislativo. É natural, todo Direito positivo que não for artificial. É natural, todo Direito positivo que se destina a ser meio para a consecução, direta ou indireta, dos bens que a sociedade elegeu como seus bens soberanos. É natural, todo Direito positivo harmonizado com a ordenação ética vigente. O Direito não natural — o Direito não harmonizado com a ordenação ética vigente — não é Direito autêntico. É, isto sim, a contrafação ou ilusão do Direito. Quando o Direito não é natural, o Direito é o Direito Artificial a que nos referimos no § anterior. É ordenação contrária à vontade geral dos que lhe estão submetidos; é ordenação imposta por arbítrio do poder, ou por erro do legislador, ou é uma ordenação desatualizada e caduca. Dizer que todo Direito autêntico é Direito Natural é afirmar a necessidade de harmonia entre o direito e a moral vigente. 220
Observe-se, porém, que muitas normas morais não se incluem no Direito Natural. É evidente que não se devem considerar normas de Direito Natural, as normas morais não autorizantes. Normas não autorizantes, sejam elas quais forem, não são normas jurídicas; não pertencem ao Direito. Não podem receber, por mais importantes que sejam, o nome de Direito. Assim, por exemplo, não são autorizantes, não são normas jurídicas, e não pertencem ao Direito Natural, os mandamentos de Deus e da Igreja, as imposições da moral individual, os imperativos das obrigações naturais. Não são jurídicas e, portanto, não são normas do Direito Natural, normas como as seguintes: “Amarás teu próximo como a ti mesmo”; “Se alguém te ferir na tua face direita, apresenta-lhe a outra face, para que também a possa ferir”; “Ao que te tirar a túnica, cede-lhe também a capa”; “Honrarás pai e mãe”. Igualmente, por não serem autorizantes, não são normas jurídicas, e não pertencem ao Direito Natural, as seguintes normas de que se constitui o célebre Direito Natural Escolástico*: “O bem deve ser feito”; “O mal deve ser evitado”; “O homem deve preservar o seu ser”; “O homem deve se unir a uma mulher, procriar e educar seus filhos”; “O homem deve procurar a verdade”; “O homem deve ser justo”. Tais normas exprimem, sem dúvida, altíssimos princípios da moralidade. Podem mesmo ser tidos como princípios primeiros de uma verdadeira ordem humana. Podem mesmo ser tidos como fontes inspiradoras da ordem jurídica. Mas não são normas jurídicas, porque não são normas autorizantes. Não são normas do Direito. É um contra-senso, nos dias atuais, continuar a reunir tais normas sob a denominação de Direito Natural. Essa denominação, que alguns autores insistem em conferir às mencionadas normas, se justificava, plenamente, num tempo em que a investigação filosófica do Direito ainda não havia chegado a uma clara distinção entre a norma jurídica e a norma não jurídica. Hoje, ela não tem mais nenhum cabimento.
* A Filosofia Escolástica (do latim, schola) é a maravilhosa ciência que se ensinava nas Escolas e Universidades da Europa, nos séculos XIII e XIV. Com as atualizações determinadas pela evolução dos conhecimentos, ela ainda é o pensamento central da Igreja Católica. Seus maiores expositores foram Santo Thomaz de Aquino e São Boaventura (Sec. XIII). Para os fundamentos do saber humano e a ordenação das idéias, seu estudo é extraordinariamente proveitoso até os dias de hoje. Ela se define nos seguintes termos: “Ciência dos primeiros princípios de todas as coisas”. Aos estudantes de Filosofia, recomendamos: Éléments de Philosophie e Les Degrés du Savoir, de Jacques Maritain; Elementos de Filosofia e Tratado de Filosofia, de Régis Jolivet.
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CAPÍTULO XXI
DIVISÃO DO DIREITO EM DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO
§ 97. O DIREITO PÚBLICO e o DIREITO PRIVADO No início do Digesto*, Ulpiano, após aceitar a definição do Direito formulada por Celso, dividiu o Direito em Direito Público e Direito Privado. O jus publicum era aquele que se referia ao estado dos negócios romanos; o Jus Privatus, o que tratava dos interesses particulares (fr. 1, § 2 — de justitia et jure — Liv. 1 — Tít. I). Para os romanos, o fundamento ou critério desta divisão era, evidentemente, a utilidade visada pelas leis. Diziam eles que certas coisas são de utilidade pública, outras são de utilidade particular; se a lei tem por objeto as primeiras, é lei de Direito Público; se tem por objeto as segundas, é lei de Direito Privado. Estas noções foram trasladadas por Justiniano para as suas Institutas**.
* Digesto: a parte mais importante do Corpus Juris Civilis (Compilação das Leis do Direito Civil Romano). ** Institutas: Manual elementar de Direito, para uso dos estudantes, mas tinha força de lei. Incluídas no Corpus Juris Civilis. É prudente não esquecer que a expressão jus publicum nem sempre foi empregada pelos romanos em oposição ao jus privatum. Assim é que, por exemplo, no Digesto, fr. 8 —
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Com o advento do Cristinianismo, no tempo de Justiniano, o jus divinum ou jus sacrum (compreendendo o feciale, o augurale, e o pontificum) adquiriu grande importância, destacando-se do Direito Público, de que era um dos ramos. O Código — Constituição 23, principalmente, de sacrosantis ecclesiis (Liv. I — Tít. 2) — consagrou a autonomia do jus divinum. Em conseqüência, o Direito ficou dividido em Direito Divino e Direito Humano; e o Direito Humano subdividido em Direito Público e Direito Privado. A divisão do Direito em Público e Privado atravessou os séculos e chegou até nossos dias. Grandes dúvidas doutrinárias têm sido suscitadas sobre o verdadeiro fundamento dessa divisão. Para os romanos, tais dúvidas não parecem ter existido. O critério adotado, conforme já dissemos, foi o da utilidade da lei. Mas os comentadores dos textos logo advertiram que nenhuma lei só protege a utilidade do Estado, assim como nenhuma só protege a utilidade dos particulares. Essas duas utilidades não se separam. Pelo contrário, apóiam-se uma sobre a outra, entrosam-se, completam-se. Numa palavra, são utilidades correlatas. A norma jurídica que tenha por escopo a utilidade dos particulares, visa também a utilidade do Estado, e a que tenha por escopo a utilidade do Estado visa, é claro, a utilidade dos particulares. Como resultado destas observações, alguns juristas chegaram à conclusão de que o fundamento da divisão romana era, não a simples utilidade ou interesse visado pela lei, mas a utilidade ou o interesse preponderante.
de tutellis (Liv. 26 — Tít. I) e fr. 116, § 1 — de regulis juris antiqui (Liv. 50 — Tít. 17), a expressão jus publicum designa o Direito comum. No fr. 38 — de pactis (Liv. 2 — Tít. 14), Papiniano confere a mesma designação a todas as normas invariáveis, mesmo de Direito Privado, que, em virtude do interesse público que elas encerram, não podem ser mudadas por pactos entre particulares. É, também, o que fizeram Ulpiano e Adriano, o primeiro no fr. 45, § 1 — de regulis juris antiqui (Liv. 50 — Tít. 17), e o segundo no fr. 1, § 9 — de magistratibus conveniendis (Liv. 27 — Tít. 8). No fr. 3 — qui testamenta facere possunt (Liv. 28 — Tít. 1), o jus publicum abrange as regras jurídicas que garantem aos indivíduos certas faculdades que se exercem na esfera do Direito Privado, como, por exemplo, a que garante o direito de fazer testamento: “testameira factis non privati, sed publici juris est”. No fr. 14, ad senatus consultum Trebellianum (Liv. 36 — Tít. 1), Hermogeniano chama jus publicum o Direito relativo aos cargos públicos. Em outros textos, a mesma expressão designa o direito sobre rios públicos, caminhos públicos, etc. Muita cautela, pois, é exigida para a revelação do exato sentido com que os romanos, em cada caso, empregaram a expressão jus publicum.
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Quando a utilidade ou interesse visado pela lei é preponderantemente do Estado, ela é lei de Direito Público; quando é preponderantemente dos particulares, ela é de Direito Privado. Mas tal critério não satisfez a todos. Segundo muitos autores, o fundamento da utilidade ou interesse, para a divisão do Direito, é absolutamente imprestável. Observam eles que as utilidades e os interesses individuais coincidem muitas vezes com interesses e utilidades sociais e vice-versa. A legislação sobre a família, por exemplo, visa tanto ao interesse privado como ao público; um contrato para fornecimento de provisões ao exército é de evidente interesse público, mas é regulado pelo Direito Privado; as leis estabelecendo normas de higiene regulam, muitas vezes, interesses particulares, mas são de Direito Público. E assim, tais autores chegam à conclusão de que o interesse ou utilidade não é um fundamento substancial para a divisão do Direito. Que sugerem eles, para substituir esse fundamento? Holliger expôs cento e quatro doutrinas sobre este assunto, e concluiu, afinal, que nenhuma era satisfatória. Parece-nos que a divisão não é logicamente necessária. Mas tem toda razão o constitucionalista francês Léon Duguit quando salienta o grande interesse didático da divisão. De fato, a divisão do Direito em Público e Privado, com a subdivisão de cada um destes Direitos, é o processo melhor para diferenciar os diversos ramos da árvore jurídica, revelando a unidade que os prende uns aos outros. Aliás, há um critério prático, geralmente suficiente, para fazer-se a distinção entre o Direito Público e o Direito Privado. É um critério misto, pelo qual utilizamos, com esse fim, dois elementos diferentes: o interesse preponderante, protegido pela lei, e a forma da relação jurídica, regulada pela lei. Já mostramos que o elemento do interesse preponderante, tomado isoladamente, não é suficiente para estabelecer a distinção entre os dois Direitos. Vejamos agora em que consiste o outro elemento: a forma da relação jurídica. Preliminarmente, esclarecemos que a relação jurídica é o vínculo entre duas ou mais pessoas, segundo uma norma jurídica. Por exemplo, são relações jurídicas, os vínculos entre credor e devedor, entre vendedor e comprador, entre locador e locatário, entre sócio e sócio, entre marido e esposa, entre o Estado e o contribuinte de impostos. Ora, a relação jurídica, segundo a sua forma, pode ser relação de coordenação ou relação de subordinação. Relação jurídica de coordenação é o vínculo entre partes que se tratam de igual para igual. Por exemplo, é relação jurídica de coordenação, o vín225
culo entre o particular que compra um objeto num estabelecimento comercial, pagando o respectivo preço, e o estabelecimento comercial que vende o objeto, recebendo o preço combinado. Entre as duas partes, há uma relação de coordenação, porque elas se tratam de igual para igual. Relação jurídica de subordinação é aquela em que uma das partes é o Governo da sociedade política, exercendo a sua função de mando. Por exemplo, é relação jurídica de subordinação, o vínculo entre o Estado e os contribuintes de impostos. O Estado “lança” o imposto; se o cidadão não o pagar, o Estado vai a juízo, em ação executiva, para compelir o cidadão a pagá-lo, mesmo contra a sua vontade. Levando em consideração os dois referidos elementos — o elemento do interesse ou utilidade preponderante e o da forma da relação jurídica — podemos estabelecer a distinção entre o Direito Público e o Direito Privado. O Direito Público é aquele que protege utilidades ou interesses preponderantemente públicos e regula relações jurídicas de subordinação; e o Direito Privado é aquele que protege interesses preponderantemente privados e regula relações jurídicas de coordenação. Devemos advertir que o critério dessa distinção não é absoluto, nem perfeito. É critério que admite uma exceção: a do Direito Internacional Público, que regula relações de coordenação entre Estados, mas é ramo eminente do Direito Público. Mas, para efeitos práticos, é um critério suficiente, na fixação dos dois referidos conceitos jurídicos. § 98. Leis de ordem pública Sobre este assunto, uma observação importante precisa ser feita. Cumpre notar que as leis de Direito Público não se confundem com as leis de ordem pública. As leis de ordem pública, também chamadas impositivas, propriamente imperativas ou cogentes, são aquelas que ordenam ou proíbem de um modo absoluto, sem admitir alternativas. A impositividade das leis de ordem pública é absoluta, e esta impositividade absoluta é motivada pela convicção de que certas relações e certos estados da vida social não podem ser abandonados ao arbítrio individual, sob pena de possível prejuízo para a ordem social. Ora, as leis de ordem pública — leis de impositividade absoluta — podem ser de Direito Público ou de Direito Privado. Exemplo de lei de ordem pública de Direito Público: art. 21, I, da Constituição: “Compete à 226
União: I — manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais”. Exemplo de lei de ordem pública de Direito Privado: art. 1.245 do Código Civil. Reza este artigo: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”. É evidente que este último artigo citado é uma lei de Direito Privado, porque trata de interesse e utilidade dos particulares. Mas é lei de ordem pública, porque é lei absolutamente imperativa — lei cogente —, não admitindo alternativa no seu cumprimento. Embora disciplinando atividades de particulares, é lei que resguarda, de modo geral, o princípio da propriedade privada — que é tido como um dos fundamentos da ordem social instituída e vigente no País.
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CAPÍTULO XXII
OS RAMOS CARDEAIS DO DIREITO PÚBLICO
§ 99. A divisão romana do Direito Público. A divisão moderna Segundo Ulpiano, o Direito Público Romano se subdividia em três ramos: no Direito relativo às coisas sagradas, no Direito relativo aos sacerdotes, e no Direito relativo aos magistrados: “Publicum jus in sacris, in sacerdotibus, in magistratibus consistit”. O Direito das Coisas Sagradas determinava, em Roma, quais os deuses oficialmente reconhecidos; instituía o culto de cada um deles, e estabelecia os ritos e os sacrifícios correspondentes. O Direito dos Sacerdotes referia-se à organização dos sacerdócios, e fixava regras sobre diferentes funções e prerrogativas do corpo sacerdotal. Finalmente, o Direito dos Magistrados determinava o número e a natureza dos magistrados romanos e municipais, o modo de nomeação dos magistrados, e estabelecia as atribuições de cada um deles. Este Direito cuidava, também, da organização das assembléias públicas e de certos corpos coletivos, como, por exemplo, do Senado Romano, fixando-lhes a referida competência. Já vimos (no § 97) que Justiniano trasladou para as Institutas a divisão do Direito em Direito Público e Direito Privado. Entretanto, omitiu a subdivisão do Direito Público. Essa exclusão pode ter sido motivada pelo fato de constituírem as Institutas uma obra didática, organizada com o fito de ensinar 229
Direito Privado aos estudantes, nas escolas romanas. Nessas condições, não interessava, para os fins das Institutas, a subdivisão do Direito Público. Para a referida exclusão, talvez tenha influído, também, o fato histórico da difusão do cristianismo em Roma. Com essa difusão, o Direito Sagrado e o Direito Sacerdotal — ou, em outras palavras, o Direito relativo às coisas sagradas em geral — começaram a ter uma importância cada vez maior, e se destacaram do Direito Público, a fim de formar um Direito autônomo. Em conseqüência, vemos o Direito Romano se dividir de outro modo: em Direito Divino e Direito Humano, sendo que o Direito Humano continuou subdividido em Direito Público e Direito Privado. A subdivisão romana do Direito Público não coincide, em absoluto, com a subdivisão moderna. Hoje, o Direito Público se divide em Direito Público Interno, que é o que vigora dentro dos limites de um determinado Estado; e Direito Público Externo, que é o que regula as relações entre Estados. O Direito Público Interno se divide nos sete seguintes ramos cardeais: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Financeiro, Direito Judiciário, que se subdivide em Direito Judiciário Civil e Direito Judiciário Penal, Direito Penal ou Criminal, Direito do Trabalho, e, finalmente, Direito Internacional Privado. O Direito Público Externo é o Direito Internacional Público. Vejamos em que consistem esses ramos cardeais do Direito Público. § 100. O DIREITO CONSTITUCIONAL O primeiro ramo cardeal do Direito Público Interno é o Direito Constitucional. O Direito Constitucional se compõe de todos os artigos de que é feita a Constituição, e de todas as leis que a complementam, regulamentam e emendam, inclusive as leis de natureza transitória, que a ela se refiram. A matéria relativa à Constituição foi exposta no Capítulo XIII, ao qual remetemos o leitor. § 101. O DIREITO ADMINISTRATIVO O segundo ramo cardeal do Direito Público Interno é o Direito Administrativo. O Direito Administrativo é o conjunto das leis que regem a atividade do Estado, menos a “distribuição da justiça” (atividade que é regulada por 230
dois outros ramos do Direito Público: pelo Direito Judiciário Civil e pelo Direito Judiciário Penal). Em suma, o Direito Administrativo é o Direito da Administração Pública — o Direito regulador dos serviços públicos —, incluindo-se, também, nessa definição, as leis que presidem a instituição de todos os meios e órgãos pelos quais o Estado opera (inclusive as leis relativas à estruturação e ao funcionalismo dos órgãos incumbidos da “distribuição da justiça”). Convém lembrar que a atividade do Estado compreende o exercício de funções jurídicas e de funções sociais, como explicamos no § 45. As funções jurídicas são, em resumo, as seguintes: elaborar, sancionar, promulgar e publicar as leis; zelar pela ordem pública (isto é, pelo respeito às leis e pela segurança pública); distribuir justiça (isto é: julgar e dizer a “vontade” da lei, sempre que isto seja autorizadamente requerido); defender a Nação contra o inimigo externo. As funções sociais do Estado são as atividades exercidas para complementar e substituir atividades de natureza privada da sociedade, em áreas cruciais da vida real do Povo, como as funções relativas à fome, à saúde, à moradia, ao emprego, à educação, à cultura. Devemos observar que, até anos recentes, sustentava-se que as funções precípuas do Estado eram as funções jurídicas somente. O que se dizia era que apenas estas funções atendiam ao fim próprio do Estado, que é o de criar e manter a ordem jurídica na sociedade. A convicção em voga era a de que as funções sociais constituíam uma atividade apenas supletiva, exercidas somente para acudir, quando possível, a situações pontuais de deficiências dos particulares. Hoje, como se sabe, as funções sociais assumiram uma importância capital, na atividade do Estado (reveja o § 45). Até ontem, o Direito Administrativo era o conjunto das leis reguladoras do exercício das funções jurídicas somente. Hoje, esse Direito rege toda a administração pública, tanto na área jurídica como na chamada área social. Só continua dela excluída a referida função da “distribuição da justiça” — que é, como sabemos, a função dos juízes de dizer a “vontade” da lei, quando interesses conflitantes são levados ao Poder Judiciário. § 102. O DIREITO FINANCEIRO O terceiro ramo cardeal do Direito Público Interno é o Direito Financeiro. 231
O Direito Financeiro é o conjunto das leis que regulam a atividade desenvolvida pelo Governo para obter e aplicar os meios econômicos necessários à realização de seus fins. As leis do Direito Financeiro regulam a receita, a despesa, o orçamento e o crédito do Governo. Em suma, o Direito Financeiro é a ordenação jurídica da atividade financeira do Poder Público. Um dos ramos mais importantes do Direito Financeiro se chama Direito Tributário. Este Direito é o conjunto de normas fixando os tributos (impostos e taxas) devidos pelas pessoas (físicas e jurídicas) ao Governo, e determinando os respectivos processos de arrecadação. Chama-se Ciência das Finanças, a ciência que informa o Direito Financeiro. A Ciência das Finanças não é um ramo do Direito, não pertence à árvore jurídica. É uma ciência, e não um Direito. É a ciência sobre o Direito Financeiro. Define-se a Ciência das Finanças nestes termos: Conjunto de princípios sobre a receita, a despesa, o orçamento e o crédito do Governo. Ela é, como se vê, a ciência da atividade financeira do Governo; a ciência que informa de como deve o Governo agir para obter e para aplicar o dinheiro necessário à consecução de seus objetivos. § 103. O DIREITO JUDICIÁRIO Preliminarmente, recordemos que toda norma jurídica é um imperativo autorizante (veja Capítulo V). Quando violada, a norma jurídica autoriza o lesado a exigir o seu cumprimento ou a reparação do dano causado. Se o violador não quiser cumpri-la, ou se recusar a reparar o dano que causou, o lesado estará autorizado a requerer, aos órgãos competentes do Estado, a aplicação das sanções legais (sobre as sanções, veja Capítulo VIII). Estes órgãos competentes do Estado constituem o aparelho do Poder Judiciário. O art. 2º da Constituição dispõe: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”*.
* Ou seja: “São Poderes da União, independentes uns dos outros e harmônicos entre si, o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário”.
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Logo, o Poder Judiciário é um dos três Poderes da União. É um Poder exercido por juízes e tribunais. Ao Poder Judiciário — ou seja, aos juízes e tribunais, titulares desse Poder — compete, essencialmente, tornar efetivo, quando requerido em termos, o autorizamento das normas jurídicas. Isto significa, em verdade, que, ao Poder Judiciário, compete dizer a “vontade da lei”, nos casos trazidos regularmente a seu conhecimento, para judicial pronunciamento ou decisão. Em linguagem tradicional, costumamos dizer que sua incumbência é a “distribuição da justiça”. De acordo com a natureza das leis em que esse Poder se funda, ou da situação das pessoas submetidas a seu julgamento, ou da importância e qualidade dos interesses em conflito, o Poder Judiciário se compõe de organismos específicos, como os do Judiciário Civil (foro cível), do Judiciário Criminal (foro criminal), da Justiça do Trabalho (foro trabalhista), da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça das Pequenas Causas. Quando dizemos “Vou à Justiça”, “Vou recorrer à Justiça para defender meus direitos”, “A Justiça aplicou ao réu a pena de doze anos de reclusão”, o que, de fato, estamos dizendo é: “Vou ao Poder Judiciário”, “Vou recorrer ao Poder Judiciário”, “O Poder Judiciário aplicou a pena”. Muitas vezes, o termo justiça designa o Poder Judiciário. Quando batemos às portas do Poder Judiciário, em busca de um pronunciamento ou decisão de justiça, agimos devidamente autorizados por alguma norma jurídica (lei, decreto, contrato, estatuto, pacto, testamento, etc. — reveja Capítulo V). Devemos assinalar, desde logo, que Poder Judiciário não é Direito Judiciário. O Poder Judiciário é um conjunto de órgãos do Estado. O Direito Judiciário é outra coisa. Não é órgão do Estado. É lei, um conjunto de leis. É o quarto ramo cardeal do Direito Público Interno, como sabemos. O Direito Judiciário é o conjunto das leis que regem a ação dos interessados no pronunciamento do Poder Judiciário, e que presidem a atividade desse Poder, no desempenho de sua função. Uma sucessão ordenada de atos, perante o Poder Judiciário, praticados por pessoa ou entidade interessada no pronunciamento da Justiça, assim como os correspondentes atos desse Poder — todos regidos pelas leis do Direito Judiciário — forma o que se chama ação, ação em juízo, ação judiciária. A ação judiciária é designada, às vezes, com os nomes de pleito, demanda, litígio. 233
Freqüentemente, também, a ação é chamada processo. Embora admissível na linguagem corrente, essa designação não é tecnicamente correta. Em rigor, o processo é a forma da ação, como passamos a explicar. Muitos são os tipos ou espécies de ações judiciárias, e cada espécie ou tipo tem a sua forma especial, obedece a um determinado procedimento ou rito. A essa forma, a esse procedimento ou rito é que, propriamente, chamamos processo. Por exemplo, a chamada ação ordinária obedece ao procedimento ou processo ordinário, estabelecido pelos arts. 282 a 565 do Código de Processo Civil; a chamada ação executiva obedece ao procedimento ou processo de execução, estabelecido pelos arts. 566 a 765 do mesmo Código; a chamada ação penal obedece ao procedimento ou processo estabelecido no Código de Processo Penal; a chamada ação trabalhista obedece ao procedimento ou processo estabelecido pelas leis da Justiça do Trabalho; etc. Observemos que a ação judiciária não é sempre litigiosa. Nela, não há sempre um conflito de interesses, um litígio entre partes que se opõem umas às outras. Havendo conflito e litígio, a ação é dita contenciosa; não havendo, a ação é dita graciosa. São exemplos de ações graciosas: ação de desquite e de divórcio por mútuo consentimento; ação de retificação de nome, no Registro Civil; ação de inventário e partilha (nos casos de sucessão pacífica — não contenciosa — dos bens do espólio). O Direito Judiciário é considerado um Direito adjetivo ou formal, porque não tem, em si mesmo, a sua razão-de-ser. Ele existe somente para assegurar a eficiência de outros Direitos — dos Direitos ditos substantivos. De fato, o Direito Judiciário, como vimos, rege os atos que são praticados para exigir o cumprimento das leis violadas, ou das leis que estejam na iminência de ser violadas, assim como preside, nos casos de crime e de contravenção, o processo de cominação das penas definidas nas leis penais. É, portanto, um Direito adjunto, adjacente a outros direitos — como que acrescentado à ordem jurídica instituída —, como o adjetivo, pura qualidade, aposto ao substantivo; como uma forma definidora, demarcando a matéria. O Direito Judiciário é, realmente, o Direito garantidor da eficácia do autorizamento das normas jurídicas. Isto significa que esse Direito é o conjunto das leis que regem o emprego das sanções. O Direito Judiciário se acha compendiado, principalmente, no Código de Processo Civil e no Código de Processo Penal. 234
§ 104. O DIREITO PENAL O quinto ramo cardeal do Direito Público Interno é o Direito Penal, também chamado Direito Criminal. O Direito Penal é, essencialmente, o conjunto das leis que enunciam as ações tidas como crimes e como contravenções, e as penas comináveis aos autores de tais ações. É, também, o Direito que regula as condições e circunstâncias a que se deve submeter, em cada caso, a imputabilidade das penas. Sobre as leis penais, já dissemos o que é necessário, no Capítulo VI, ao qual remetemos o leitor. O Direito Penal se acha compendiado, principalmente, no Código Penal e na Lei das Contravenções Penais. Outras leis penais existem, como, por exemplo, a lei que inclui na categoria de crime todos os atos públicos de discriminação racial (Lei n. 7.716, de 5-1-1989); toda violência praticada contra a criança e o adolescente (Lei n. 8.069, de 13-7-1990); todos os atos qualificados de “hediondos” (Lei n. 8.072, de 25-7-1990), etc. § 105. O DIREITO DO TRABALHO ou DIREITO SOCIAL O sexto ramo cardeal do Direito Público Interno é o Direito do Trabalho, também chamado Direito Social. O Direito do Trabalho é o conjunto das leis reguladoras das relações de trabalho entre empregados e empregadores, entre trabalhadores contratados e patrões contratantes. É o conjunto das leis destinadas a conferir direitos específicos aos economicamente fracos. Na terminologia do Direito do Trabalho, o economicamente fraco é o trabalhador. E, o trabalhador, nessa mesma sistemática, é o ser humano que necessita do produto de seu trabalho para se manter e para manter a sua família. Cumpre notar que, na terminologia do Direito do Trabalho, trabalhador não é somente quem trabalha. Trabalhe ou não trabalhe, é trabalhador quem precisa do produto de seu trabalho para atender às necessidades de sua vida. Logo, para o Direito do Trabalho, também é trabalhador, por exemplo, o desempregado, o aposentado, o incapacitado físico, até o vadio — todos que necessitam dos rendimentos que seu trabalho produziria, mas que, por qualquer motivo, não mais trabalham. Essa necessidade é o que define o trabalhador, na técnica do Direito Social. 235
Com prerrogativas e garantias, dadas ao trabalhador, as leis “sociais” procuram compensar a fraqueza econômica de uma parte imensa da população. Este é o motivo pelo qual tais leis, voltadas para o ideal de equilíbrio entre fracos e fortes no mundo do trabalho, entre possuidores e despossuídos, são normas promulgadas para amainar as agruras da chamada “questão social”. Que é, em suma, essa questão social? Em verdade, a questão social, considerada simplesmente como o conflito entre ricos e pobres, é um velho problema de nosso mundo. Mas, com a evolução dos tempos, ela tomou um aspecto novo. A questão social moderna teve o seu início quando as máquinas começaram a substituir os homens nas fábricas. A instalação das máquinas a vapor, que tomaram o lugar do braço humano, deu início à revolução industrial inglesa, que, depois, teve os seus reflexos nos Estados Unidos e que, mais tarde, foi a causa remota das grandes revoluções sociais no mundo. Assim, a questão social, primordialmente, não é outra coisa senão o desentendimento entre empregados e empregadores, após o aparecimento da grande indústria. As leis sociais foram surgindo paulatinamente, a duras penas, por pressão de multidões nas fábricas e nos campos. Foram se impondo como barreira à exploração do homem pelo homem; como fatores de humanização das relações entre o trabalho e o capital. Exemplos das chamadas leis sociais: as leis fixando o salário mínimo; as leis dispondo sobre a rescisão do contrato de trabalho, sobre prerrogativas da gestante, sobre o trabalho de menores, sobre a aposentadoria do trabalhador, sobre acidentes no trabalho, sobre férias, sobre a organização e financiamento dos sindicatos e corporações... Embora constituindo o estatuto de proteção dos economicamente fracos, o Direito do Trabalho não deve ser considerado como um Direito de classe. De fato, ele não atende, com exclusividade, aos interesses de uma só classe de cidadãos, porque, fundamentalmente, tal Direito tem por objetivo final o entendimento e a harmonia entre o trabalho e o capital, e, portanto, interessa a todas as classes da sociedade. Em vez de guerra entre as classes, paz social: tal é a meta suprema, inspiradora das leis do Direito do Trabalho. Tal a condição, no mundo moderno, do desenvolvimento e progresso de um Povo civilizado. 236
O Direito do Trabalho pretende introduzir, no jogo dos interesses particulares, o pensamento do interesse coletivo*. Este é o motivo da inclusão deste Direito entre os ramos cardeais do Direito Público. O Direito do Trabalho se acha compendiado, principalmente, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e é objeto de uma copiosa legislação. § 106. O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO O sétimo e último ramo cardeal do Direito Público Interno é o Direito Internacional Privado. Poderá parecer estranho que esse Direito, dito Privado, se inclua entre os ramos do Direito Público. Logo veremos, porém, que o Direito Internacional Privado é um Direito Público em razão da natureza de seu objeto. Em razão desse mesmo objeto, ele se distingue do outro ramo do Direito Internacional, que se denomina Direito Internacional Público, de que trataremos no § seguinte deste Capítulo. Para perfeito entendimento do objeto do Direito Internacional Privado, notemos que a vigência do Direito apresenta, não raro, dois tipos de problemas: 1) problemas relativos à vigência do Direito no tempo, e 2) problemas relativos à vigência do Direito no espaço. No tempo, o problema consiste em descobrir a lei que deve regular os efeitos de uma dada relação jurídica, quando a lei, sob cuja vigência a relação foi constituída, já não se acha mais em vigor; foi revogada e substituída por lei nova. Se um contrato, por exemplo, é firmado sob a regência de uma determinada lei e se, mais tarde, esta lei é substituída por outra, pergunta-se: qual é a lei que deve agora reger a relação jurídica constituída pelo referido contrato? É a lei antiga, a lei que vigorava quando o contrato foi firmado, ou é a lei nova que substituiu aquela? Esta é a questão chamada problema do conflito das leis no tempo. As leis como que entram em choque umas com as outras: as leis que existiram, mas que deixaram de existir, entram em choque com as que não existiam, mas que estão atualmente em vigor.
* Essa luminosa frase era pronunciada pelo Prof. Cezarino Júnior, em suas preleções na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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De tais casos de conflitos das leis no tempo, não cuida o Direito Internacional Privado. No espaço, os problemas são outros. No espaço, as leis não se sucedem: coexistem. E pode acontecer que leis emanadas de poderes diversos regulem, concomitantemente, de modos diferentes, relações jurídicas semelhantes. Assim, por exemplo, a lei brasileira e a lei mexicana sobre a dissolução do casamento são duas leis emanadas de poderes diferentes, regulando, concomitantemente e de modos diferentes, relações jurídicas semelhantes. Então, em casos concretos da vida, acontece, às vezes, que uma pessoa se encontre submetida a legislações discrepantes, promulgadas por Poderes Públicos diversos. Exemplo: Um francês domiciliado na Argentina resolve casar-se no Brasil, com brasileira. Pergunta-se: Qual a lei que deve regular esse casamento e reger seus efeitos presentes e futuros: a lei francesa, que é a lei nacional do cidadão francês; ou a lei argentina, que é a lei de seu domicílio; ou a lei brasileira, que é a lei nacional da cidadã brasileira, e é a lei do País em que o casamento se vai realizar? Este é o tipo de questão chamada conflito das leis no espaço. Notemos, preliminarmente, que a existência desse tipo de conflito depende de uma condição, de um pressuposto fundamental. Referimo-nos à autorização ou permissão, dada pelo Governo, para a vigência, em casos devidamente especificados, de determinadas leis estrangeiras no território nacional. Não havendo tal autorização, expressa em tratado ou convenção internacional, só vigora, evidentemente, no território nacional, a lei do País. Em verdade, não é admissível que, sem convenção internacional, devidamente tratada, uma lei estrangeira tenha vigência em território nacional. Sem convenção internacional, só vigora, em todo o País, a lei nacional. Logo, sem essa convenção, não há lei estrangeira em conflito com lei nacional. Deste assunto, já cuidamos no § 46, dedicado à soberania do Estado na ordem jurídica interna e na ordem jurídica internacional. Haverá, talvez, quem indague sobre o motivo das mencionadas convenções internacionais — tratados concluídos para permitir a vigência de determinadas leis estrangeiras em território nacional, e a vigência de determinadas leis nacionais em território estrangeiro. Responderemos que elas constituem atos de conciliação e de boa convivência entre os Estados. A sua razão-de-ser se acha na intenção de atender a interesses humanos superiores, e no espírito de reciprocidade e de harmonia internacional. 238
Uma pessoa em País estrangeiro estará sempre sujeita, evidentemente, às leis do País em que se encontra. Mas, no estrangeiro, ela não perde sua cidadania original. As leis de seu País de origem — seu estatuto pessoal — a seguem e acompanham. Tais leis, porém, nos casos particulares de discordância de legislações, não terão qualquer validade no País estrangeiro se não houver, para esses casos, a competente convenção internacional. Sobre este assunto, citamos, no referido § 46, a clara lição de Maria Helena Diniz: “Sem comprometer a soberania nacional e a ordem internacional, os Estados modernos têm permitido que, em seu território, se apliquem, em determinadas hipóteses, normas estrangeiras, admitindo, assim, a EXTRATERRITORIALIDADE dessas normas. (...) Classicamente denomina-se ‘estatuto pessoal’ a situação jurídica que rege o estrangeiro pela lei de seu país de origem” (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1994, Capítulo I, n. 4). Para os casos especiais de conflito das leis no espaço, a solução se encontra, precisamente, nas normas do Direito Internacional Privado. Note-se, em benefício da clareza, que as leis do Direito Internacional Privado não disciplinam as próprias relações jurídicas, mas se limitam a indicar quais as leis competentes — nacionais ou estrangeiras — para a disciplina das relações jurídicas, em casos de conflito das leis no espaço. Hoje, já é também doutrina pacífica a de que o Direito Internacional Privado não resolve apenas conflitos entre leis de Estados soberanos. Já é convicção generalizada a de que o Direito Internacional Privado resolve, também, conflitos de leis verificados dentro de um mesmo País, quando o Estado se divide em circunscrições, com pluralidade de sistemas legislativos. É o que acontece nas Federações e nas Confederações. Se, por exemplo, uma lei do Estado de São Paulo entra em conflito com uma lei do Estado de Minas Gerais, compete ao Direito Internacional Privado resolver o conflito, e dizer qual é a lei que deve vigorar. Há quem sustente que a denominação de Direito Internacional Privado é inadequada, é imprópria. O Direito Internacional Privado não pode ser tido — segundo a opinião de alguns — nem como Direito Internacional, nem como Direito Privado. Não é Direito Internacional, porque só obriga o Estado que o promulga. Não é, também, um Direito Privado, porque não é, como dissemos, uma disciplina de relações jurídicas. O que ele é, isto sim, é um Direito sobre direitos, um Direito “selecionador” de disciplinas de relações jurídicas. 239
Por este motivo, o Direito Internacional Privado é considerado um Direito formal, um Direito Adjetivo. Ele não tem, em si mesmo, a sua razão-de-ser, como também sucede com o Direito Judiciário (veja § 103). Já dissemos que ele existe somente para indicar qual o Direito Substantivo competente — nacional ou estrangeiro —, em cada ocorrência de conflito de leis no espaço. Embora reconhecida como imperfeita, a denominação Direito Internacional Privado vem se mantendo, por falta de outra melhor, que a substitua. Acha-se este Direito devidamente expressado na Lei de Introdução ao Código Civil e em tratados e convenções internacionais. O Direito Internacional Privado é o último ramo cardeal do Direito Público Interno. § 107. O DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO Do Direito Público Externo, o único ramo cardeal é o Direito Internacional Público (veja § 99). Define-se o Direito Internacional Público nos seguintes termos: Complexo de normas jurídicas reguladoras de relações entre Estados. Oppenheim, o célebre professor da Universidade de Cambridge, o define: Corpo de regras costumeiras e convencionais, consideradas legalmente obrigatórias pelos Estados civilizados, em suas relações recíprocas. As normas jurídicas do Direito Internacional Público não são leis: não são normas elaboradas pelo processo específico da elaboração das leis, isto é, pelo chamado processo legislativo, fixado nos arts. 59 a 69 da Constituição, e no qual já nos detivemos (veja Capítulo XVIII). São, isto sim, normas firmadas em tratados internacionais e em costumes jurídicos internacionais. O tratado internacional é ato e instrumento solene pelo qual Estados ajustam interesses comuns e regulam relações recíprocas. Os tratados internacionais são de duas espécies. A primeira espécie é a dos tratados normativos ou gerais. A segunda, a dos tratados contratuais ou especiais. São comumente chamados convenções de Direito Internacional Público. Os tratados normativos são, por assim dizer, “contratos” celebrados pelos Governos dos Estados signatários, firmando princípios, direitos e obrigações de interesse de toda a comunidade dos Estados. Por meio desses instrumentos solenes, os Estados signatários resolvem submeter-se, para o 240
bem de todos, às normas neles contidas, para melhor organização do relacionamento entre as Nações. Note-se que os tratados normativos não visam a defesa dos interesses exclusivos dos Estados signatários. Embora só obriguem juridicamente a estes Estados, anima-os a intenção de servir, também, aos interesses dos demais Estados. Constituem, em regra, um convite para que os Estados em geral a eles adiram. O que pretendem, em verdade, é ser instrumentos de concórdia e paz universal. Exemplo típico de tratado normativo é a “Carta do Atlântico”. Realmente, esta Carta interessa primordialmente aos Estados banhados pelo Oceano Atlântico, mas também interessa a todas as demais Nações, cujas marinhas precisam de respeito, liberdade e segurança, para cruzar em paz as águas desse mar. Os tratados contratuais ou convenções internacionais — que são, como dissemos, os tratados internacionais da segunda espécie — são entendimentos especiais entre Estados, para solução de questões de interesse privativo dos signatários. Exemplo típico desta espécie de tratado é o “Tratado de Assunção”, pelo qual a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai instituíram, em 26 de março de 1991, um Mercado Comum, estabelecendo: 1) livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os Estados signatários, sem direitos alfandegários e outras restrições; 2) uma tarifa externa comum, e adoção de uma política comercial comum, relativamente a terceiros Estados ou a agrupamentos de Estados; 3) políticas macroeconômicas e setoriais coordenadas entre os Estados signatários, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre eles; 4) o compromisso dos Estados contratantes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes ao Mercado Comum, para lograr o fortalecimento do processo de integração. Este mercado passou a ser chamado “Mercosul” (“Mercado Comum do Sul”). Além de tratados e convenções, também constituem o Direito Internacional Público — como dissemos — os denominados costumes jurídicos internacionais. O costume jurídico internacional é a observância constante de normas reguladoras de relações entre Estados, mas não prescritas em tratado. Um costume jurídico internacional se instala após verificação de que a observância de determinada prática, em casos de um certo tipo de relação entre Estados, produz efeitos benéficos para as partes interessadas naquele entendimento. Tal verificação suscita, não raro — para validar juridicamen241
te aquela prática — atos diplomáticos, ou decisões de eventuais tribunais internacionais, ou prescrições governamentais semelhantes em Estados diversos, ou, até, leis e sentenças nacionais, referentes a relações internacionais não reguladas por tratado. Convém lembrar que já houve um tempo em que se dizia que o Direito Internacional Público não era, propriamente, um Direito, porque: 1) não era produzido por um Poder Legislativo, nem se compunha de uma legislação internacional: não havia leis para a ordenação das relações entre os Estados; 2) não contava com um Poder Judiciário internacional, para decisões de justiça, nos casos de conflito de interesses entre Estados; 3) não contava com nenhum Poder capaz de tornar aplicáveis e eficientes as sanções porventura estabelecidas, para os casos de comportamentos lesivos por parte de Estados infratores. Em linguagem técnica moderna, o que, no passado, se queria dizer, em suma, era o seguinte: o Direito Internacional Público não constituía, propriamente, um Direito, porque suas normas não eram autorizantes, não passavam de puros preceitos pragmáticos, desprovidos da qualidade distintiva das normas jurídicas. Nós bem sabemos o que isto significa, à luz do que foi explicado nos Capítulos V e X. Mas nenhum dos velhos motivos alegados, para a desqualificação do Direito Internacional Público, subsiste nos dias atuais. Quanto à ausência de um Poder Judiciário competente, para declaração do Direito em caso de conflito de interesses entre Estados, o que é preciso deixar claro é que a existência e natureza da norma jurídica não dependem da existência de tribunais. No mundo interno dos Estados, juízes são órgãos necessários — é certo — para “dizer” a vontade das leis e dirimir contendas dentro do território nacional. Mas — observe-se — mesmo nesse mundo, a essência jurídica das leis, sua elaboração e promulgação não dependem do Poder Judiciário. No mundo externo — ou seja, no mundo das relações entre os Estados — também as normas jurídicas não dependem, para existir, de um Poder Judiciário. Note-se, porém, que a criação de um Poder Judiciário Internacional já se acha nas cogitações de muitos juristas e estadistas modernos. Aliás, tribunais internacionais setoriais, para questões específicas, têm sido criados e funcionam efetivamente, como, por exemplo, o Tribunal Arbitral, que os Estados pertencentes ao Mercosul constituíram para conhecer e resolver, em definitivo, todas as controvérsias surgidas entre eles, sobre matéria pertinente ao referido Mercado (Protocolo de Brasília, de 16-12-1991, arts. 8 e seguintes). 242
Quanto à qualidade do autorizamento das normas do Direito Internacional Público, o que devemos dizer, simplesmente, é que ela se manifesta com absoluta clareza nas reações dos Estados lesados pela violação dessas normas. Por imposição dos Estados lesados, os Estados infratores são submetidos às sanções de Direito e a outras sanções, a que nos vamos referir. Que sanções são estas? De modo geral, podemos classificá-las em sanções civis e sanções guerreiras. São exemplos de sanções civis: rompimento de relações diplomáticas, com retirada do embaixador; notas de reprovação, dirigidas diretamente de Governo a Governo, ou por intermédio das embaixadas; imposição de altas barreiras alfandegárias, taxas de importação equivalentes a impedimentos à entrada e ao comércio de produtos do Estado infrator (sanções econômicas); negação do “visto” em passaporte, e proibição de entrada e estadia de estrangeiro indesejável; proibição do exercício de profissão, em território nacional, de cidadãos do Estado infrator. As sanções guerreiras são: a invasão militar do território do Estado infrator; destruições violentas, no Estado infrator, por processos militares ou por processos científicos, não propriamente militares. A aplicação das sanções civis, em casos de violação de normas do Direito Internacional Público, se funda no consenso de que tais normas precisam ser obedecidas, para segurança da ordem no mundo. A reprovação ética a violações da harmonia existente ou almejada, entre muitos Estados de nosso tempo, exerce pressão moral incontestável sobre comunidades infratoras. E essa pressão é que se exprime, muitas vezes, nas referidas sanções diplomáticas. Quanto à sanção da guerra... A guerra ainda grassa no mundo. Ainda explode, em casos extremos, quando Estados — ou, mesmo, grandes agrupamentos humanos — promovem, para escândalo e revolta das Nações em geral, a violação dos altos princípios éticos da humanidade — como a soberania, a liberdade, a igualdade, a independência e a cidadania —, que são apanágio de nossa civilização e das democracias modernas. Mas a consciência e a cultura de nossos dias anseiam pelo banimento da guerra em toda a face da Terra. Em verdade, não existe mais o que se chamava “a guerra justa”. O espetáculo do mundo moderno exibe a formação de grandes sociedades de Estados. Estamos assistindo ao que se tem denominado a “globalização” de Nações associadas. A verdade é que — com ou sem essa “globalização” — o Direito Internacional se torna de mais a mais necessário; de mais a mais importante no mundo. 243
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CAPÍTULO XXIII
OS RAMOS CARDEAIS DO DIREITO PRIVADO
§ 108. A divisão romana do Direito Privado. A divisão moderna Segundo Ulpiano, o Direito Privado Romano se subdividia em três ramos: no Direito Civil, no Direito das Gentes e no Direito Natural. Esta velha divisão foi transplantada por Justiniano para as suas Institutas, e passou a ser ensinada nas escolas (reveja Capítulo XXI). Para melhor entendimento da natureza desses ramos clássicos do Direito Privado, é necessário conhecer o espírito da civilização romana, em que surgiram, e da anterior — a grega — que, afinal, os completou. Preliminarmente, cumpre assinalar que a cultura romana se diferenciava, essencialmente, da cultura grega. As duas grandes civilizações do nosso mundo antigo quase nada tinham em comum. O gênio grego era voltado, essencialmente, para as esferas da pura sabedoria. O Helenismo era, antes de tudo, uma Filosofia: uma percuciente Metafísica, uma Lógica perfeita, uma Ética ideal. Roma surgiu quando a glória da sábia Grécia já se achava em declínio, desconsiderada e esquecida pelos legisladores de uma nova gente. O gênio de Roma era radicalmente político e prático, preocupado sempre com a ordem na Cidade — com a “ordem romana” —; sempre atenta aos direitos e deveres dos cidadãos. Nessa vocação especial, não existiam preocupações de natureza propriamente filosófica. Aos jurisconsultos e le245
gisladores de Roma, não interessavam “as primeiríssimas causas de todas as coisas”. Não os dirigia Metafísica nenhuma, nenhuma Ética abstrata. O que os conduzia era o pensamento da Justiça — não como pura idéia filosófica, mas como disciplina, como prática. Era o pensamento de uma legislação judiciosa, suscitada pelos fatos reais da vida — pelos conflitos da convivência —, constituída de normas elaboradas lentamente, para ordenar, com harmonia, os comportamentos dos romanos em sua Cidade. No princípio, o Direito Romano consistiu, estrictamente, no Direito da população da cidade de Roma, isto é, na legislação vigente na “civitas” (na cidade governada por um Senado). Sendo elaborado pelo Senado da “civitas”, o Direito passou a ser chamado Jus Civile, Direito Civil. O Jus Civile era o Direito por excelência, reservado para a gente romana. Era, aliás, o único Direito reconhecido em Roma. Orgulhoso por natureza, o romano, nos primeiros tempos de sua gloriosa história, votava ao mais solene desprezo os demais povos do mundo, assim como todas as legislações estrangeiras. Depois, aos poucos, com a expansão do Império e a submissão de outros povos ao poderio de Roma, foi preciso reconhecer a existência atuante de legislações alienígenas, que se diferençavam do Jus Civile, mas que ordenavam a vida de nações inteiras. Então, agindo com sabedoria política, o Senado nomeou Pretores, com a delicada missão de se inteirar dessas legislações, e de resolver, com prudência e bom-senso, os conflitos de direitos, que imediatamente começaram a eclodir entre os invasores e os naturais de cada região. Em vez de simplesmente destroçar pelas armas as estruturas sociais dos estrangeiros, Roma adotou a assisada e superior política da conciliação. Da lenta, longa e quotidiana atividade dos Pretores, surgiram normas de um novo Direito — de um Direito também nascido de fatos reais da vida, mas válido tanto para Romanos como para não-romanos. Este era um Direito fundado no consenso comum de gentes diversas, motivo pelo qual passou a ser chamado Jus Gentium, Direito das Gentes. Este era, sim, o Direito das Gentes, mas Direito “sistematizado pelo gênio jurídico de Roma”, como gostavam de lembrar os dominadores do Mundo. Mais tarde, deu-se um fato novo, imprevisto mas capital, na evolução do pensamento romano. Por força da dilatação do Império, deu-se o encontro de Roma com a Grécia. Que significou isto? Significou, para os romanos, a descoberta da especulação filosófica. O que houve, afinal, foi o en246
contro do empirismo prático — da experiência e técnica dos lúcidos jurisconsultos do Jus Civile e do Jus Gentium — com as inferências abstratas da velha cultura helênica. Imediatamente, uma luz nova se projetou sobre os conceitos romanos. Desperta em Roma a curiosidade filosófica. Com a inspiração vinda da Grécia, os romanos enriqueceram os quadros de sua ordenação jurídica. O simples consenso dos súditos começou a parecer base insuficiente para fundamentação do Direito, principalmente para alicerce do Direito das Gentes, que era uma ordenação jurídica de diversos povos diferentes. Aliás, um fato curioso havia causado a surpresa das legiões invasoras. Os romanos encontraram, em nações conquistadas, muitas normas semelhantes às normas do Jus Civile. Como explicar a existência de tais normas em povos que jamais haviam tido qualquer contato com a civilização romana? Díspares, inconstantes e volúveis eram as vontades dos povos. Qual seria — perguntavam os criadores da legislação de Roma — o fundamento primeiro de normas que se notabilizavam por serem universais? Provocados por tal indagação, e já enlevados no mundo abstrato dos primeiros princípios e das primeiras causas, os jurisconsultos romanos se deram conta de que algo existia de sempre idêntico em todos os seres humanos. Apesar da real diversidade das condições — diversidade de estágios de civilização, de culturas, de organizações sociais —, apesar de uns serem “bárbaros” (na conceituação dos conquistadores) e outros serem expoentes da evolução mundial, os jurisconsultos começaram a ver que algo de profundo igualava todos — “bárbaros” e romanos —, congregava-os na mesma espécie de seres, dentro da criação. Entenderam que, apesar da diversidade das condições, idêntica sempre era a natureza fundamental do ser humano. Diversidade de condições, sim, mas identidade de essência: é o que, afinal, compreenderam os jurisconsultos de Roma, ao meditar sobre as causas daquelas normas jurídicas de caráter universal. Tais normas existiam porque os homens eram essencialmente iguais, em sua natureza. E eis que se firma a convicção de que o primeiríssimo fator das ordenações jurídicas era essa igualdade indefectível, devida à natureza fundamental do ser humano — do ser social e inteligente por essência. Então, surge em Roma, ao influxo do pensamento grego, um terceiro Direito, acima do Jus Civile e do Jus Gentium, um Direito de princípios éticos supremos, para toda a humanidade: o Jus Naturale, o Direito Natural, que serviu de cúpula do edifício jurídico de Roma. 247
Assim é que se explica a subdivisão romana do Direito Privado nos três mencionados ramos: no Direito Natural, no Direito das Gentes e no Direito Civil. Esta divisão não coincide, de forma nenhuma, com a divisão moderna do Direito Privado. Atualmente, divide-se esse Direito em dois ramos cardeais: no Direito Civil e no Direito Comercial. Vejamos em que consistem. § 109. O DIREITO CIVIL O Direito Civil, primeiro ramo cardeal do Direito Privado, é, por excelência, o conjunto das leis que regulam os direitos e obrigações de ordem privada, concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações (veja Código Civil de 1916, art. 1º). Cumpre observar que o Direito Civil se compunha, originariamente, de todas as normas do Direito Privado. Em virtude da complexificação crescente das relações humanas nas sociedades evoluídas, os negócios entre particulares realizados por profissionais do comércio, com fito de lucro — os chamados “atos de comércio” —, determinaram a criação de um Direito específico, que passou a ser chamado Direito Comercial, do qual trataremos no § seguinte deste Capítulo. À vista do que acaba de ser ressaltado, o Direito Privado é constituído, atualmente, das normas de dois Direitos: do Direito Civil e do Direito Comercial. De modo geral, o Direito Civil cuida da capacidade (capazes, incapazes, relativamente incapazes), da personalidade (início e fim da personalidade; pessoa de Direito Privado e de Direito Público; pessoa natural e pessoa jurídica), dos bens, dos fatos e dos atos jurídicos. De modo especial, o Direito Civil compreende: o Direito de Família, o Direito das Coisas (posse, propriedade, direitos sobre coisas alheias), o Direito das Obrigações e o Direito das Sucessões. Por ser o Direito de todos, e das ocorrências de todos os dias, o Direito Civil é tido como o Direito Comum. § 110. O DIREITO COMERCIAL O Direito Comercial é o conjunto das leis e dos costumes disciplinadores do comerciante e de seus auxiliares, e reguladores do ato de comércio e das relações dele oriundas. 248
Os costumes aqui referidos são costumes comerciais devidamente registrados na chamada Junta Comercial. Assim consagrados, tais costumes, na prática do comércio, adquirem a eficácia de lei. O ato denominado ato de comércio, a que alude a definição do Direito Comercial, é o ato praticado com fito de lucro, pelo qual um comerciante transmite bens das mãos de quem os oferece às mãos de quem os procura. Assim, todo ato de comércio é ato de mediação (ato de intermediário), com fim especulativo (visa lucro), praticado profissionalmente por comerciante. Note-se que o ato especulativo de mediação não praticado profissionalmente não constitui, propriamente, o que se chama ato de comércio. Não passa de mero negócio. E o comércio, que é? Comércio é o conjunto articulado de atos de comércio. Comerciante é o profissional do comércio. Observe-se que não é comerciante, e não exerce o comércio, quem não for profissional dessa atividade. O Direito Comercial se acha compendiado no velho Código do Comércio, que é a Lei n. 566, de 25 de junho de 1850, e em muitas leis comerciais posteriores, inclusive o Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406/2002).
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3ª PARTE
O DIREITO SUBJETIVO
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CAPÍTULO XXIV
A DEFINIÇÃO DO DIREITO SUBJETIVO
§ 111. A permissão jurídica Cuidemos, agora, daquele “outro” Direito, que não é objetivo, mas subjetivo, a que rapidamente nos referimos no § 39. O Direito Subjetivo não é norma, não é mandamento. Não é uma estrutura normativa, um sistema prescritivo. Não é uma ordenação. Não é a chamada norma agendi. O termo Direito Subjetivo designa uma permissão. Designa uma permissão para o uso de faculdades humanas. Mas é uma permissão específica, estrictamente qualificada, como veremos. É, também, o nome “coletivo” do conjunto de tais permissões. Os Direitos Subjetivos se definem: PERMISSÕES DADAS POR MEIO DE NORMAS JURÍDICAS. São autorizações, fundadas no Direito Objetivo, para o uso das faculdades humanas. O que os caracteriza e distingue é, precisamente, o meio pelo qual as permissões são dadas. Por serem dadas por meio de normas jurídicas, essas permissões são permissões jurídicas. Logo, os Direitos Subjetivos podem também ser definidos com estas precisas palavras: PERMISSÕES JURÍDICAS. Quem tiver permissão jurídica — permissão dada por meio de norma jurídica — para fazer ou não fazer alguma coisa, para ter ou não ter alguma coisa, possui o direito (o Direito Subjetivo) de fazê-la ou não fazê-la, de tê253
la ou não tê-la, isto é, está juridicamente autorizado a fazê-la ou não fazêla, a tê-la ou não tê-la. Quem não tiver tal permissão, tal autorização, não possui esse direito (embora possa ter a faculdade de fazê-la ou não fazê-la, de tê-la ou não tê-la). Por exemplo, são Direitos Subjetivos, as permissões de ir e vir; de manifestar o pensamento; de ter domicílio inviolável; de casar e constituir família; de exercer o pátrio poder; de adotar pessoa como filho; de exercer qualquer trabalho lícito; de vender coisa sua; de comprar o que estiver a venda; de usar, gozar e dispor da propriedade; de cedê-la em locação, ou dála em comodato; de doá-la; de aceitar ou não aceitar doação; de exigir o pagamento do que é devido, e a quitação regular de dívida paga; de exigir reparação de dano causado por outrem; de gozar repouso semanal remunerado, enquanto durar o emprego; de se associar para fins lícitos. Essas permissões, como uma infinidade de outras, não são permissões simples. São permissões jurídicas. Constituem, portanto, Direitos Subjetivos. E constituem Direitos Subjetivos porque são permissões concedidas por meio de normas jurídicas. No simples exercício da vida, inúmeras são as permissões jurídicas — os Direitos Subjetivos — de que fazemos uso contínuo. Em verdade, para o ser humano, viver em sociedade é, de certa forma, usar Direitos Subjetivos. Mas as permissões não concedidas por meio de normas jurídicas não são permissões jurídicas, e, por conseguinte, não constituem Direitos Subjetivos. Por exemplo, não são Direitos Subjetivos, as permissões que consistem em meras liberalidades, em generosidades fortuitas e ocasionais. Assim, não são Direitos Subjetivos, as permissões, dadas a alguém, de atravessar eventualmente propriedade alheia; de caçar e pescar, em terras e águas pertencentes a outrem; de assistir a programas na televisão do vizinho; de usar, gratuitamente, o telefone do amigo. Também não são Direitos Subjetivos, as permissões dadas para a prática de ato ilícito. Assim, não é um Direito Subjetivo, a permissão dada a um empregado, por seu chefe ou empregador, para que proceda a desvios e subtração de dinheiro ou mercadoria de propriedade da empresa. Tanto nos primeiros exemplos citados como neste último (no qual a permissão é dada para violar norma jurídica), permissões existem, mas permissões que não são dadas por meio de normas jurídicas, permissões que não são permissões jurídicas. Logo, tais permissões não constituem Direitos Subjetivos. 254
§ 112. Razão-de-ser do nome deste direito O termo subjetivo, como é óbvio, tem raiz latina. Provém de subjectum, que designa o que está submetido, o que é sujeito, o que é “pertence” de alguma coisa; ou, no caso especial do Direito Subjetivo, como em casos análogos a este, designa o que está colocado dentro. O Direito Subjetivo é subjetivo porque as permissões ou autorizações, que o constituem, são próprias das pessoas a que foram concedidas. São permissões que lhes pertencem, podendo ser usadas ou não ser usadas por elas; permissões, portanto, que a elas se sujeitam, e que, de certa maneira, estão dentro delas. Essas permissões, constitutivas dos Direitos Subjetivos, não são objetos, no sentido etimológico desta palavra. O termo objeto — como já tivemos ocasião de dizer no § 39 — também se radica no latim. Provém de objectum, que designa coisa que está colocada fora, o que foi projetado diante de quem a conhece. Os Direitos Subjetivos não se acham fora das pessoas que os detêm; não se colocam diante delas. Pelo contrário, as autorizações constitutivas de tais Direitos, após serem outorgadas e assumidas, se incorporam a seus titulares, como qualidades próprias deles. A especificação assinalada pelo adjetivo subjetivo é necessária na designação do Direito ora analisado, porque há, como sabemos, o outro Direito, que não é subjetivo, mas objetivo. O Direito Objetivo não é uma propriedade das pessoas, uma qualidade delas. É outra coisa. É lei, é norma, é norma jurídica; é uma estrutura de normas jurídicas; é um sistema normativo. Portanto, é objeto: um objeto colocado fora, ou diante, das pessoas. Ora, o Direito Subjetivo, pelo contrário, é qualidade dos próprios sujeitos. § 113. Uma reflexão sobre a natureza do Direito Subjetivo Os Direitos Subjetivos costumam ser apresentados como faculdades do ser humano. A “facultas agendi” (a faculdade de agir) é a expressão corrente, o termo tradicional, com que se pretende revelar a natureza do Direito Subjetivo, em contraste com a expressão “norma agendi” (norma de agir, norma para o comportamento), com que se revela a natureza do Direito Objetivo. 255
O Direito Objetivo, como sabemos, é sempre norma ou sistema de normas. Cabe-lhe, pois, a designação de “norma agendi”. Mas o Direito Subjetivo será, realmente, uma faculdade? A expressão “facultas agendi” o designa com propriedade? A questão é eminentemente filosófica, mas merece a reflexão do estudante de Direito. Nós vamos nos deter nela, por uns instantes, como quem desperta, e resolve investigar, diligentemente, as causas de um enigma. Faculdade (ou potência ativa, como dizem os filósofos que melhor se manifestaram sobre o assunto) é a qualidade que dispõe imediatamente um ser a agir. Sendo potência, faculdade não é ato, mas a aptidão para produzir um ato. Logo, a faculdade antecede o ato. A palavra ato (do latim, actio) é a tradução de duas palavras gregas, criadas por Aristóteles (“Metaphysica”, IX, c. 3, 1047a, 32). A primeira significa ação, operação, ato de agir, ou fazer. A segunda designa o ser, mas o ser feito, perfeito, isto é, concluído na sua ordem, na sua categoria; designa, em suma, o ser que se opõe ao ser em potência. No seu primeiro sentido, a palavra ato significa ato-ação; no segundo, ato-ser. Em linguagem corrente e vulgar, a palavra ato é geralmente usada para designar uma ação, isto é, o ato-ação. Quando dizemos, por exemplo, “o ato de uma pessoa”, estamos nos referindo, é claro, a alguma ação praticada por essa pessoa. Em Filosofia, porém, a mesma palavra é empregada, em regra, com o outro sentido, isto é, com o sentido de ato-ser. O ato é o ser que já se fez, que já se perfez. É, portanto, o ser perfeito, o ser concluído, dentro de sua própria ordem de realidades. A faculdade, ou potência, é possibilidade: é a possibilidade de ser. A possibilidade de se fazer ato. Portanto, a faculdade ou potência não é, ainda, o ser feito, o ser concluído e acabado. A faculdade de ser é anterior ao ser, anterior ao ato. Mas a faculdade (ou potência), embora não seja um ato, já é alguma coisa. Impossível admitir que uma faculdade seja nada. Uma aptidão é uma aptidão; e, sendo aptidão, não pode ser tida como coisa nenhuma. Seria coisa nenhuma a aptidão do músico, antes de revelada esta aptidão? Não sendo nada, uma faculdade é. É alguma coisa. Ora, o que é é ser. Somente o que não é não é ser. Somente o nada é nada de ser. Logo, uma faculdade é um ser. É um ser que ainda não chegou a se perfazer, não chegou a ser ato, mas que é uma predisposição, um prenúncio, um ser como aptidão, como aptidão de ser: é um ser em potência. 256
Aliás, a Filosofia sempre dividiu os seres em seres em ato e seres em potência. Ora, uma potência, faculdade ou aptidão, se pode aplicar a se fazer ato. Pode atualizar-se, tornar-se ato. O ser em potência pode passar a ser em ato. Neste caso, a faculdade ou potência se perfaz: perfaz-se no ato, para o qual se predispunha. O perfazimento da potência é o ato, o ato em que a potência se realiza. E este é o motivo pelo qual a Filosofia afirma que o ato é a perfeição da potência. Em todo ser em ato, existem determinados seres em potência. E estes seres em potência podem passar a seres em ato. Os seres em potência, existentes num certo ser em ato, são faculdades próprias desse mesmo ser em ato, faculdades que nele existem porque ele é o que precisamente é. Pois bem, o homem é um ser em ato, no qual existem faculdades, que lhe são próprias e que o dispõem a agir. Algumas dessas faculdades são inatas no homem, como a faculdade de chorar, de rir; outras, são adquiridas, como a faculdade de escrever, de andar de bicicleta, de tocar piano. Mas as adquiridas lhe advêm porque ele possui a faculdade inata de adquiri-las. Todo homem tem faculdades como as de pensar, de falar, de andar, de estudar, de amar, de fazer a caridade, de pagar o que deve, de indenizar os males que causou. Tem, igualmente, faculdades como as de agredir, de injuriar, de caluniar, de roubar, de falsificar, de matar. As faculdades do homem são potências próprias do ser humano — potências ativas, que pertencem ao homem, porque o homem é homem, é o ser que ele precisamente é. São aptidões humanas, aptidões próprias do homem. E, por serem próprias, são propriedades dele. As faculdades do homem são, realmente, propriedades do homem. Mas não são propriedades no sentido jurídico deste termo. Não podem ser adquiridas e alienadas, pelos modos comuns de Direito. A expressão propriedade, como aqui está sendo empregada, designa, apenas, o que é próprio. É neste sentido que se diz que as faculdades humanas são propriedades do ser humano. Por exemplo, são propriedades do homem, as aptidões de prever, idealizar, discutir. Analogamente, é propriedade do pássaro, a aptidão de voar. § 114. As faculdades humanas e o Direito Inúmeras, obviamente, são as faculdades do ser humano. E a existência delas independe do Direito. 257
Com efeito, as faculdades são dadas: são qualidades dadas ao ser humano pela natureza. Mesmo as faculdades adquiridas pelo ser humano no correr da vida são adquiridas porque a natureza lhe deu a faculdade de adquiri-las. Pertencem, pois, ao mundo da natureza. O Direito, porém, é o construído (é obra do ser humano), e pertence, conseqüentemente, ao mundo da cultura. Não pertencendo ao mundo da natureza, o Direito não tem possibilidade de oferecer ao ser humano o que só a natureza é capaz de dar. O Direito não tem meios de atribuir ao ser humano qualquer tipo de faculdade, porque as faculdades do ser humano são as potências com que a natureza o aquinhoou, dele fazendo o ser que o ser humano efetivamente é. Aliás, não poderia a norma atribuir faculdades ao ser humano, porque a norma, em si mesma, não possui faculdades humanas, e, portanto, não as pode dar. Impossível dar o que não se tem: nemo dare potest plus quam habet. A norma não atribui ao ser humano nenhuma faculdade. Ela não tem possibilidade de fazê-lo. Nenhuma faculdade humana é um Direito. Nenhum Direito Subjetivo é faculdade. O que ao Direito incumbe é ordenar; é colocar numa ordem conveniente, o que é dado ao ser humano pela natureza. Mais precisamente, o que compete ao Direito é exprimir mandamentos, permissões e proibições, ou seja, manifestar imperativos para o uso das faculdades que a natureza deu ao ser humano. Compete ao Direito exprimir, por meio de normas, a ordem a que se deve sujeitar o comportamento humano. Dentro dessa ordem, que é uma obra da cultura, o uso de certas faculdades, em determinadas circunstâncias, é permitido pela comunidade na qual a referida ordem impera, enquanto o uso de outras faculdades, em determinadas circunstâncias, é por ela proibido. As permissões para o uso de faculdades humanas, quando concedidas por meio de normas jurídicas, constituem, precisamente, os Direitos Subjetivos. Do exposto, o que sobressai é que os Direitos Subjetivos não são faculdades. Que são eles? São permissões para o uso das faculdades humanas. Este é o motivo pelo qual quem tiver permissão jurídica para usar uma faculdade tem o direito de usar essa faculdade; mas quem não tiver tal per258
missão não tem esse direito, embora possa ter a faculdade de usá-la. E esta faculdade, enquanto faculdade, existe com ou sem norma jurídica. Ter a faculdade não implica ter o direito. A faculdade não é o Direito Subjetivo. A permissão de usar a faculdade é que o é. Não há quem não tenha, por exemplo, a faculdade de praticar atos ilícitos (civis ou criminais), mas ninguém tem o direito de praticá-los, porque a ninguém é dada permissão jurídica para usar a referida faculdade. Toda pessoa tem a faculdade de se apossar dos bens de outra. Mas uma pessoa não tem o direito de fazê-lo, a não ser que uma norma jurídica lhe dê permissão de se apossar de tais bens. Esta permissão ou autorização é que constitui o direito, não a faculdade. Todos têm a faculdade de ir e vir. Essa faculdade é própria do ser humano, não dependendo, como é óbvio, de normas jurídicas. Mas o direito de ir e vir não é essa faculdade. Tal direito é a permissão, dada pelo Direito, de ir e vir. Se tal permissão for cancelada por norma jurídica, o direito de ir e vir cessa, embora perdure, evidentemente, a faculdade de ir e vir. Para melhor entendimento, detenhamo-nos um instante neste fundamental direito de ir e vir. A permissão jurídica de ir e vir decorre de muitas normas do Direito Objetivo. Impedir alguém de ir e vir é violar preceitos da Constituição, pelos quais “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II), “É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz” (art. 5º, XV), “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV), “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (art. 5º, LXI). E é cometer o crime do art. 148 do Código Penal: “Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”. A permissão de ir e vir é expressamente assegurada pelo Direito Objetivo, como se vê do n. LXVIII do art. 5º da Constituição: “Conceder-se-á ‘habeas corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso do poder”. Essas normas jurídicas não atribuem a ninguém a faculdade de ir e vir. A faculdade de ir e vir, a faculdade de locomoção, é própria do ser humano, não dependendo, como é óbvio, de normas jurídicas. Mas a permissão de usar tal faculdade é que depende dessas normas. 259
De fato, se uma pessoa, por algum motivo, não tiver a referida permissão (estiver legalmente proibida de ir e vir livremente), deixará de ter o direito de ir e vir livremente, embora conserve, intacta, a sua faculdade de se locomover. É o que acontece, por exemplo, com quem esteja sujeito à providência da prisão domiciliar, ou ao regime de liberdade condicional, ou à medida de segurança de exílio local. Quem estiver cumprindo pena em instituto penal agrícola, que é uma prisão aberta, possui, evidentemente, a faculdade de transpor os limites geográficos do presídio, e de evadir-se. Mas não tem o direito de fazê-lo, porque não tem permissão jurídica de sair do instituto. Vejamos, agora, o que acontece com o Direito Subjetivo de contratar. Este direito, como o anterior, não é constituído pela faculdade, mas pela permissão. Não havendo permissão legal de contratar, não há direito de contratar, embora possa haver a faculdade de contratar. É o que sucede, por exemplo, com pessoa menor de idade. Uma pessoa de dezessete anos tem, evidentemente, a faculdade de contratar, mas não tem o direito de contratar. E não tem o direito de contratar porque o Direito Objetivo não lhe dá permissão para contratar. O Código Civil, em seu art. 4º, I, dispõe: “São incapazes, relativamente a certos atos, os maiores de dezesseis e os menores de dezoito anos”; e, em seu art. 171, I: “É anulável o ato jurídico, por incapacidade relativa do agente”. Pode uma pessoa ter a faculdade de vender imóvel de sua propriedade e não ter o direito de fazê-lo. Leia-se, por exemplo, o art. 1.647 do Código Civil: “...nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta ...alienar... bens imóveis”. Logo, o marido, cuja faculdade de alienar bens imóveis é óbvia, não tem, entretanto, a permissão de fazê-lo sem anuência da mulher (e vice-versa). Não tem o direito de alienar tais bens, sem a legitimação exigida pela lei. Não há quem não tenha a faculdade de ser proprietário. Mas esta faculdade não é o direito de propriedade, porque o direito de propriedade não é a mera aptidão (mera faculdade) de ser proprietário, mas, sim, a permissão, dada a quem é proprietário, de usar, gozar e dispor de seus bens (Código Civil, art. 1.228). Essa permissão jurídica só é concedida a quem já é proprietário. Logo, só o proprietário tem o Direito Subjetivo de propriedade, que é, precisamente, o direito de usar, gozar e dispor de seus bens. Só o proprietário, insista-se, tem esse direito, embora todos tenham a faculdade de ser proprietários. 260
A mãe, que contraía novas núpcias, não perdia, obviamente, sua faculdade de exercer o pátrio poder, quanto aos filhos do leito anterior, mas perdia o direito de exercê-lo, porque o art. 393 do Código Civil de 1916 lhe negava a permissão de usar a referida faculdade. O direito se extinguia, por força da proibição legal, embora a faculdade permanecesse. Tão real era a permanência da faculdade, que o citado artigo do revogado Código também dispunha que a mãe, tornando a enviuvar, recuperava o direito que havia perdido. Logo, a mesma lei voltava a conceder-lhe a permissão de novamente usar sua faculdade de exercer o pátrio poder. Tão real, em verdade, era a permanência dessa faculdade (embora extinto o direito de usá-la) que a Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, alterou a referida disposição do Código Civil de 1916, e estabeleceu exatamente o contrário do que dispunha o citado art. 393: “A mãe que contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido”. O exemplo, que acaba de ser mencionado, é extremamente elucidativo, porque torna evidente que o Direito Subjetivo é uma permissão, que a lei concede, retira e torna a conceder, enquanto a faculdade permanece invariável. Nesse exemplo, a faculdade de exercer o pátrio poder não se altera, mas o direito de exercê-lo só existe quando o uso da referida faculdade é permitido pela lei. Na permissão legal, pois, é que reside o Direito Subjetivo de exercer o pátrio poder. Não se diga, portanto, que o Direito Subjetivo é “facultas agendi”, a faculdade de agir. O Direito Subjetivo é, apenas, a permissão dada pela norma jurídica, para o uso dessa faculdade. A famosa “facultas agendi” é anterior ao Direito Subjetivo. Primeiro, a faculdade de agir; depois, a permissão ou direito de usar essa faculdade. Não se confunde a faculdade de agir com a permissão de usar essa faculdade. As palavras faculdade e permissão não são sinônimas. Essa confusão, porém, é freqüente. Podemos mesmo dizer que ela é generalizada e habitual. § 115. O Direito Subjetivo não é “o poder da vontade” Observe-se que a permissão jurídica pode existir sem que a “facultas agendi” exista. Pode alguém não possuir, por exemplo, a faculdade de contratar, embora tenha o direito de contratar. É o que acontece com as crianças e os dementes. 261
Aliás, o Direito Subjetivo não tem seu fundamento na vontade de seu titular. Por exemplo, os direitos de alienar, comprar, emprestar, por exemplo, podem existir sem que haja nenhuma vontade de alienar, comprar, emprestar. O direito de cobrar uma dívida pode ser desprezado pelo credor, que não a quer cobrar. O direito de propriedade pode surgir sem que o proprietário o deseje. Pode o Direito Subjetivo existir até mesmo sem que o titular o saiba. É o que sucede, por exemplo, quando alguém não conhece sua qualidade de herdeiro. É, também, o caso da criança que se torna, ainda em plena inconsciência, titular do direito à vida e de mil outros direitos. O emprego do Direito Subjetivo é que depende da vontade do titular. Mas, isto mesmo, nem sempre. O menor e o louco usufruem de suas propriedades, embora suas vontades não sejam levadas em consideração pelo Direito Objetivo. Não se diga, pois, que o Direito Subjetivo se define “poder da vontade”, como o definiu Windscheid (Direito das Pandectas, § 37; Savigny, Tratado do Direito Romano, § 14). § 116. O Direito Subjetivo não é um “ interesse juridicamente protegido” Finalmente, não se define o Direito Subjetivo como um “interesse juridicamente protegido”. A expressão “interesse”, nessa famosa definição de Jhering (O Espírito do Direito Romano), designa utilidade, vantagem ou proveito, assegurado pelo Direito. Refere-se tanto a bens materiais como a bens espirituais (vida, liberdade, honra, nome, etc.). Nessa definição, “interesse” significa “aquilo que interessa”. Ora, aquilo que interessa — utilidades, vantagens, proveitos — não são direitos, mas objetos de direitos. São bens. São objetos ou bens de que se utilizam as pessoas que tiverem o direito de fazê-lo. Um bem, por mais assegurado que estiver, não será jamais um direito — um Direito Subjetivo. Um bem é um objeto — material ou espiritual — de que uma pessoa pode ter permissão de utilizar. A permissão para utilizar um bem é que constitui o Direito Subjetivo. Um imóvel, por exemplo, é um bem, é algo que interessa, mas, por mais assegurado que estiver, não será jamais um direito. O mesmo se pode dizer de bens espirituais, como o nome, a liberdade, a honra, a inocência. 262
Um imóvel, o nome, a liberdade, a honra, a inocência são bens dos que têm permissão de os ter, ou seja, dos que têm direito sobre o imóvel, direito ao nome e à liberdade, direito de ser considerado honrado e inocente. Essa permissão, essa autorização, de se servir de um bem — de usufruir ou dispor de uma utilidade, de ter uma vantagem ou proveito — é uma permissão ou autorização outorgada por meio do Direito Objetivo. O Direito Objetivo permite que a pessoa faça ou tenha aquilo que a interessa. Muitas vezes, também, o Direito Objetivo permite que a pessoa faça ou tenha o que não a interessa. O interesse, considerado como aquilo que interessa — utilidade, vantagem, proveito, bem material ou imaterial —, não é o que constitui o Direito Subjetivo. O que constitui o Direito Subjetivo é a permissão dada por meio do Direito Objetivo: é a autorização outorgada por meio de norma jurídica. Toda e qualquer permissão dada por meio do Direito Objetivo é Direito Subjetivo. Note-se que essa permissão tanto pode ser para fazer ou ter o que interessa como para fazer ou ter o que não interessa. § 117. Permissões dadas por meio de qualquer espécie de norma jurídica São Direitos Subjetivos, as permissões dadas por meio de qualquer espécie de norma jurídica, e não, apenas, os conferidos por meio das leis, no sentido técnico desta palavra. Tanto são Direitos Subjetivos as permissões concedidas por meio das leis — como, por exemplo, as permissões de ir e vir livremente; de manifestar o pensamento; de ser mantido na posse, em caso de turbação, e restituído, no de esbulho; de receber quitação da importância dada em pagamento de dívida; de receber o 13º salário, após o decurso do primeiro ano de emprego — como são igualmente Direitos Subjetivos, as permissões concedidas não por meio de leis, mas por meio de outras espécies de normas jurídicas. Em conseqüência, são também exemplos de Direitos Subjetivos as permissões concedidas por meio de contrato, como a de usar e gozar de imóvel pertencente a outrem, ou a permissão de reduzir a semana de trabalho a cinco dias; por meio de instrumento de procuração, como a permissão do procurador de decidir sobre o destino a ser dado a bens pertencentes ao outorgante; por meio de convenção antenupcial, como a permissão da mulher de reter os bens de seu dote, e de não os oferecer em pagamento de 263
dívida do marido; por meio de escritura de usufruto, pela qual é concedida, a determinada pessoa, a permissão de usar e fruir os bens pertencentes a outra; por meio de testamento, como a permissão dada a uma pessoa de se ter como legatária e, por conseguinte, como proprietária dos bens do legado, independente da partilha entre herdeiros obrigatórios; por meio de decisão administrativa e de decisão judicial, como a permissão, dada a funcionário, de contar, para efeito de aposentadoria, um tempo de serviço não incluído em seu tempo de servidor público, ou a permissão dada ao posseiro de ser tido como proprietário. Não tem fim o rol de permissões que não são dadas por meio de leis, mas são concedidas por meio de outras espécies de normas jurídicas, e que, portanto, constituem, também, autênticos Direitos Subjetivos. É evidente que não são Direitos Subjetivos as permissões concedidas por meio de normas aparentemente jurídicas, mas não jurídicas verdadeiramente, por contrariarem disposições da legislação vigente. Por exemplo, não constituem Direito Subjetivo as permissões outorgadas por meio de instrumento de procuração para negociar herança de pessoa viva, uma vez que o Código Civil, em seu art. 426, proíbe contrato que tenha tal objeto. § 118. Permissões dadas POR MEIO das normas jurídicas, e não PELAS próprias normas Para clareza, observe-se que as permissões jurídicas não são dadas pelas normas. Aliás, permissão de espécie nenhuma é concedida pela própria norma que a exprime. As permissões em geral são dadas não por normas, mas por pessoas, por entidades humanas, individuais ou coletivas, que tenham aptidão para manifestar seu pensamento e sua vontade. A manifestação de um pensamento pode assumir as mais diversas formas. Pode o pensamento se exprimir numa proposição ou num discurso. Pode declarar-se numa só palavra, ou num simples movimento de cabeça, num aceno de mão. Pode revelar-se, até, numa expressão característica do rosto. Pode refletir-se na significativa linguagem de um olhar. Mas o que precisa ser salientado é que a manifestação da permissão não é o que concede a permissão. A permissão é concedida não pela manifestação dela, mas pela entidade que a manifesta, ou seja, pelo autor da manifestação. 264
Essa entidade autora pode ser uma pessoa individual, como pode ser um agrupamento acidental de pessoas. Pode ser uma pessoa jurídica, ou qualquer outra espécie de comunidade, como pode ser alguém que fale por elas. Pode ser a diretoria de uma fundação. Pode ser o chefe de uma repartição pública, como pode ser o Governo de um Estado. Pode ser o Povo. Aqui, o que cumpre lembrar é que as permissões jurídicas, também, não são dadas por normas. Nisto, elas são semelhantes às outras permissões. A norma é o que exprime a permissão jurídica, é o que a manifesta; mas não é, certamente, o que a concede. Concede-a, isto sim, a entidade que, por si ou por seus representantes, for autora da norma. Mas, atenção! Uma permissão só é jurídica se a norma, que a manifesta e exprime, for uma norma jurídica. A propósito, o Código Civil dispõe: “Art. 220. A anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento”. Se não constar “do próprio instrumento”, a permissão só tem validade jurídica se concedida por meio de lei, ou por meio de forma não defesa em lei. Nesta última hipótese, a permissão também é concedida por meio de norma jurídica, porque a “forma não defesa em lei” (Código Civil, art. 104, III) é forma admitida pela lei e, portanto, forma com validade jurídica (forma equivalente a alguma espécie de norma jurídica). O próprio Código Civil reconhece tal validade, em seu art. 107: “A validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. A autorização dada ao locatário para usar e gozar do imóvel é uma permissão jurídica, porque é concedida por meio das normas jurídicas que constam do próprio instrumento da locação (contrato de locação). A permissão dada aos nubentes de estipular, antes do casamento, quanto a seus bens, o que lhes aprouver, é uma permissão jurídica, porque é concedida por meio da norma jurídica do art. 1.639 do Código Civil. A autorização dada a uma pessoa para que pernoite na propriedade de outra é uma permissão jurídica, porque é concedida por meio de proposições orais ou escritas, que constituem normas com validade jurídica, uma vez que são aplicações do que se acha disposto nos artigos do Código Civil, relativos ao comodato (arts. 579 e seguintes). 265
A autorização dada ao empregado, pelo gerente de sociedade, para que desvie mercadorias da empresa não é permissão jurídica, porque é concedida por meio de proposições que não constituem normas com validade jurídica. É jurídica a autorização dada pela sociedade global a toda pessoa lesada, em conseqüência de violação de norma jurídica, para que recorra, pelos meios legais, às sanções da própria lei, e até à coação contra o violador, a fim de fazer cessar ou de obstar a violação, ou de obter, do mesmo violador, reparação pelo mal que ele causou. Essa autorização é jurídica porque era concedida, fundamentalmente, por meio do art. 75 do Código Civil de 1916: “A todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. O Código Civil de 2002 não reproduziu essa regra na íntegra, mas determina, em seu art. 927, que “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Logo, quem sofreu as conseqüências do ato ilícito poderá reivindicar a reparação do dano, seja por meio de ação (por exemplo, art. 930), seja por meio de sua própria força (por exemplo, art. 1.210, § 1º), conforme a lei autorizar. Em suma, uma permissão só é jurídica quando ela é dada por meio de norma autorizante. A norma autorizante é o instrumento pelo qual são outorgadas as autorizações constitutivas dos Direitos Subjetivos. Este fato, como se vai ver no § seguinte, é de máxima importância. § 119. Permissões jurídicas e permissões não jurídicas Ocorrendo ato violador de uma norma autorizante — ato ilícito, impedindo o uso de um Direito Subjetivo —, a pessoa lesada pelo referido impedimento fica autorizada, por força da norma infringida, a exigir o cumprimento da obrigação correlata ao Direito; a exigir a cessação do cerceamento ilegal, a fim de que a mencionada pessoa possa usar a permissão (o Direito Subjetivo) que lhe é concedida por meio da norma violada. Em outros termos: a pessoa lesada fica investida da autorização necessária para coagir o violador, com as medidas que a própria legislação lhe faculta, a cumprir a norma que ele infringiu e, portanto, a obrigá-lo a não impedir o uso do Direito Subjetivo, por ele obstado. É evidente que permissões podem ser dadas por meio de manifestações de muitas espécies, como já foi dito. Mas o que cumpre salientar é que 266
as permissões não dadas por meio de normas jurídicas válidas, não dadas por meio de normas autorizantes, são permissões cujo uso pode ser licitamente impedido: são permissões cujo uso pode ser obstado, sem que ninguém tenha meios legais para fazer cessar a obstância. Profunda, portanto, é a diferença entre as permissões dadas por meio de normas jurídicas e as permissões concedidas por qualquer outro meio, ou seja, a diferença entre as permissões jurídicas e as permissões não jurídicas. Somente as primeiras são Direitos Subjetivos. § 120. Direitos Subjetivos explícitos e Direitos Subjetivos implícitos As permissões dadas por meio de normas jurídicas podem ser explícitas ou implícitas. Explícitas são as permissões que as normas jurídicas mencionam expressamente. Implícitas são as permissões que as normas jurídicas não mencionam expressamente, mas cujo uso é por elas regulado, ou é por elas assegurado, pela proibição do que impede esse uso; ou, simplesmente, é uso não proibido por elas. Em outras palavras, são implícitas as permissões de fazer, de não fazer, de ter e de não ter o que a norma jurídica não proíbe, embora não as manifeste em seus termos. São exemplos de Direitos Subjetivos explícitos: a permissão dada ao maior de idade para praticar todos os atos da vida civil (Código Civil, art. 5º); a permissão dada aos nubentes para estipular, antes de celebrado o casamento, quanto a seus bens, o que lhes aprouver (Código Civil, art. 1.639); a permissão dada ao herdeiro de requerer a partilha, ainda mesmo quando isto lhe tenha sido defeso pelo testador (Código Civil, art. 2.013). São exemplos de Direitos Subjetivos implícitos: a permissão para estabelecer domicílio (implícita nos arts. 70 a 78 do Código Civil, que, embora não a mencionem, dispõem sobre o domicílio); a permissão para casar (implícita nos arts. 1.525 a 1.527 do Código Civil, que, embora não a mencionem, dispõem sobre as formalidades, os impedimentos, a celebração, as provas, as nulidades e os efeitos jurídicos do casamento); a permissão para ir e vir livremente (implícita no art. 5º, II, XV, LIV, LXI, LXVIII, da Constituição do Brasil, que, embora não a mencione, proíbe a prisão senão em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade competente, e manda 267
conceder habeas corpus sempre que alguém sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção; implícita, igualmente, nos arts. 146 e 148 do Código Penal, segundo os quais são crimes as ações de constrangimento ilegal, de seqüestro e de manter pessoa em cárcere privado). Inúmeras são as permissões que constituem Direitos Subjetivos implícitos. Pois, o que não estiver proibido pelo Direito está permitido por ele. § 121. Direitos Subjetivos comuns e direitos de defender direitos Os Direitos Subjetivos são de dois graus. Do primeiro grau, são os Direitos Subjetivos comuns da existência, isto é, as permissões dadas pelas normas jurídicas para a prática dos atos da vida corrente. São permissões de fazer isto ou de fazer aquilo, de ter isto ou de ter aquilo, sem exigências, nem reclamações. São permissões de fazer e não fazer, de ter e não ter o que não pode ser impedido ou tirado, sem violação de norma jurídica. Constituem exemplos de Direitos Subjetivos do primeiro grau, os direitos de ter um nome, de ir e vir, de casar, de constituir família, de exercer o pátrio poder, de trabalhar ou não trabalhar, de ser proprietário, de fruir e dispor de seus bens, de vender e comprar, de ir ao cinema e ao futebol, de fazer testamento. Do segundo grau, são os Direitos Subjetivos de proteger os direitos comuns da existência, isto é, são os direitos de defender direitos, os Direitos-Proteção. São permissões de assegurar o uso dos Direitos Subjetivos, ou seja, as permissões de resistir contra a ilegalidade, de fazer cessar ou obstar ato ilícito, de reclamar reparação pelo mal que o ato ilícito causou, e, em caso de crime, a permissão (e obrigação), dada ao Estado, de processar delinqüentes e impor-lhes penas. O Direito-Proteção (Direito Subjetivo de segundo grau) é autorização decorrente de autorizamento da norma jurídica. O autorizamento das normas jurídicas é causa das autorizações em que estão investidas as pessoas e entidades que foram, ou seriam, lesadas pelas violações das mesmas normas. É causa das autorizações de recorrer às sanções da lei e de coagir os violadores a cumprir as normas violadas, ou a reparar o mal que eles produziram, ou pretendem produzir, com essa infringência. Em verdade, tais autorizações, que constituem os Direitos Subjetivos do segundo grau, são permissões concedidas pela coletividade, por meio de 268
normas de garantia, que são as normas jurídicas. E a coletividade as concede porque a obediência a essas normas é considerada a condição necessária para que a sociedade seja o que ela precisa ser, e cumpra sua missão de meio ou instrumento a serviço das pessoas. Precisamente porque a referida obediência é assim considerada, é que as mencionadas normas se diferenciam das demais, e são erigidas em normas jurídicas. Os lesados, ao receber as autorizações decorrentes do autorizamento dessas normas, ficam em condições de defender seus direitos. E, ao fazê-lo, exigirão o cumprimento das normas violadas. Pelo simples fato de existirem e de estarem em vigor, as normas jurídicas manifestam a vontade da coletividade (vontade real ou presumida). Manifestam, antes de tudo, o mandamento que, por elas, se exprime; e manifestam, também, embora tacitamente, a advertência de que, sendo violadas, os lesados estarão autorizados, pela coletividade, a exigir o seu cumprimento, ou a reparação do mal causado pela violação. Os lesados terão o direito de defender direitos. A referida advertência é tácita, sim, em cada norma jurídica, mas estava expressa, com todas as letras, no art. 75 do Código Civil de 1916: “A todo o direito corresponde uma ação que o assegura”. E expressa, também, com todas as letras, na própria Constituição, no Capítulo sobre os Direitos e Garantias Individuais: “Art. 5º, XXXV — A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Está expressa, ainda, em outras normas, como no art. 927 do Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. E no art. 389 do mesmo Código: “Não cumprida a obrigação responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”. § 122. Correlação entre o Direito Subjetivo e o Direito Objetivo Íntima, portanto, é a correlação entre os Direitos Subjetivos e o Direito Objetivo. Por mais distintos que sejam os dois Direitos, um não se compreende sem o outro. Não há Direito Subjetivo sem Direito Objetivo. Por quê? Porque as permissões, de que os Direitos Subjetivos se constituem, são dadas por meio do Direito Objetivo. Onde não houver Direito Objetivo, não pode haver Direitos Subjetivos. 269
Um náufrago numa ilha deserta não tem Direitos Subjetivos. Pois, obviamente, numa ilha deserta, não existem as normas autorizantes do Direito Objetivo. Não existem, nessa ilha, normas pelas quais a coletividade confere, precisamente, aquelas permissões que constituem os Direitos Subjetivos. O náufrago na ilha deserta tem as faculdades de sua natureza, mas não tem direitos. O que não for permissão concedida por meio do Direito Objetivo não é Direito Subjetivo. Logo, não são Direitos Subjetivos, as permissões de fazer ou de não fazer o que não é objeto explícito ou implícito de normas autorizantes. Não são Direitos Subjetivos, as permissões não relacionadas com a ordem jurídica. Assim, por exemplo, não são Direitos Subjetivos as permissões de pensar e de crer. Não são Direitos Subjetivos, as permissões que constituem meras liberalidades, como a de caçar e pescar em propriedade alheia, a de usar o telefone de outrem, a de assistir a programas na televisão do vizinho. E não se compreende Direito Objetivo a não ser em razão do Direito Subjetivo. Do bom entendimento desta última observação depende a perfeita idéia da importância do Direito Subjetivo, e de sua exata situação no mundo jurídico. O que ela significa se resume no seguinte: Todo o Direito Objetivo, com todas as suas normas, é elaborado para um só fim. Que fim será este? O Direito Objetivo é elaborado para que cada ser humano tenha direitos (entenda-se: tenha Direitos Subjetivos). Não basta, na vida normal em sociedade, que os seres humanos tenham faculdades. É preciso que todos tenham direitos. É preciso que todos os seres humanos, numa sociedade normal, tenham as permissões fundamentais de fazer o que o Direito Objetivo não proíbe; e tenham as permissões acessórias de se utilizar das sanções jurídicas competentes, contra quem se opuser ao uso das permissões fundamentais. Para que tais permissões existam — para que os Direitos Subjetivos existam — o Direito Objetivo existe. Se os Direitos do cidadão não fossem necessários para a convivência normal nas sociedades humanas, o Direito Objetivo não teria razão-de-ser. O relacionamento e a proteção dos Direitos Subjetivos constituem condição essencial de legitimidade de todo e qualquer sistema jurídico, disse Vicente Ráo, em seu esplêndido livro O Direito e a Vida dos Direitos (2º vol., Título I, Capítulo V, n. 37). 270
Não há, finalmente, Direito Subjetivo contra Direito Objetivo. Por sua natureza, os Direitos Subjetivos se acham sempre na dependência do Direito Objetivo. A permissão de ter escravos, por exemplo, era um Direito Subjetivo, enquanto a coletividade, por meio do Direito Objetivo, admitia o regime de escravidão e concedia tal permissão. Mas a permissão ou o Direito de ter escravos deixou de existir no momento em que tal regime foi abolido. A partir desse momento, ter escravos passou a constituir crime (Código Penal, art. 149). Há um caso em que o Direito Subjetivo tem a aparência de ser contrário ao Direito Objetivo. É o caso do direito de pleitear em juízo a declaração de invalidade de norma do Direito Objetivo. Mas, mesmo neste caso, o Direito Subjetivo não é verdadeiramente contrário ao Direito Objetivo. A permissão de pleitear a referida declaração é dada por meio de uma norma jurídica tida como válida. É apoiado nesta norma que o pleiteante investe contra norma jurídica acusada de inválida. Investe, portanto, contra norma que, sendo acusada de inválida, não é tida como norma jurídica, não é tida como Direito Objetivo. Logo, a referida permissão não é contrária ao Direito Objetivo. Se a norma acusada de inválida for declarada válida, por decisão judicial, o pleiteante estará derrotado em sua ação, precisamente porque não há Direito Subjetivo contra Direito Objetivo. § 123. As obrigações correlatas. Os DEVERES A todo Direito Subjetivo de alguém corresponde uma obrigação de outrem. “Jus et obligatio sunt correlata” — o Direito e a obrigação são correlatos — diziam os juristas romanos. Ter Direitos é ter, evidentemente, as obrigações correspondentes aos Direitos dos outros. É ter DEVERES. Assim, por exemplo, ao meu direito de ir e vir corresponde a obrigação ou o dever de todos de não obstar a minha locomoção normal (Constituição, art. 5º, II e XV; Código Penal, art. 148). Ao meu direito de usar, gozar e dispor do que é meu corresponde a obrigação ou o dever de todos de respeitar a minha propriedade (Constituição, art. 5º, XXII; Código Civil, art. 1.228; Código Penal, Parte Especial, Títulos II e III). Ao direito de passagem, de que está investindo o dono do prédio encravado em outro, corresponde a obrigação ou o dever do vizinho de lhe deixar passagem 271
(Código Civil, art. 1.285). Ao direito do dono de uma servidão corresponde a obrigação ou o dever do dono do prédio serviente de tolerá-la (art. 1.378). Ao direito do credor de receber o que lhe é devido corresponde a obrigação ou dever do devedor de pagar o que deve (art. 389). Ao direito do devedor de pagar corresponde a obrigação ou o dever do credor de dar quitação regular (art. 319). Ao direito do locatário de usar a coisa alugada corresponde a obrigação ou o dever do locador de garantir ao locatário, durante o tempo do contrato, o uso pacífico da coisa (art. 566). Ao direito do depositante de reclamar a coisa móvel depositada corresponde a obrigação ou o dever do depositário de restituí-la (art. 629). Ao direito de um parente de exigir alimentos corresponde a obrigação ou o dever de outros de prestá-los (art. 1.694). Ao direito de exigir fidelidade do cônjuge, corresponde a obrigação ou o dever de lhe ser fiel (Código Civil, art. 1.566). A obrigação de alguém, correspondente ao Direito Subjetivo de outrem, é uma obrigação jurídica. São obrigações jurídicas, todas as obrigações dos exemplos que acabam de ser mencionados. O equilíbrio entre direitos e obrigações — direitos e deveres — é o que constitui, em suma, a ordem social. Nem todas as obrigações são obrigações jurídicas. Não são jurídicas as obrigações não correspondentes a Direitos Subjetivos, isto é, as obrigações cujo cumprimento não pode ser exigido por meios legais. Não são jurídicas, as obrigações cujo cumprimento não pode ser legalmente exigido por um titular de Direito Subjetivo. As obrigações não jurídicas — mas que realmente existam, por força de motivos puramente éticos ou costumeiros — são chamadas obrigações naturais. Exemplos: a obrigação de manifestar gratidão por motivo de um favor recebido; a obrigação de retribuir visita, de responder carta; a obrigação de pagar dívida de jogo. § 124. O Direito-Função Em certos casos, os Direitos Subjetivos são permissões e deveres concomitantemente. Assim, o direito do funcionário de ocupar o cargo para que foi contratado é, ao mesmo tempo, o dever do funcionário — a sua obrigação — de executar as funções que o cargo lhe atribuiu. O direito do professor de reger o curso de que foi incumbido por contrato é, ao mesmo tempo, o seu dever de regê-lo. 272
Em tais casos, o dever — a obrigação — não é correlato ao Direito Subjetivo, mas coexistente com o próprio Direito Subjetivo. Poder-se-ia quase dizer que “o segundo é o primeiro”, e que “o primeiro é o segundo”. O fato é que o titular do primeiro é, concomitantemente, titular do segundo. O que cumpre deixar bem claro, nesta matéria, é que o referido dever de exercer função não exclui o direito de exercê-la. O cumprimento desse dever é o exercício de um direito. Quando, por exemplo, um professor contratado cumpre seu dever funcional de ensinar em determinada escola, está exercendo seu direito de ensinar nessa escola. Quando um juiz dá uma sentença, cumpre seu dever de magistrado, e, ao mesmo tempo, exerce seu direito de sentenciar. Vemos, portanto, que o exercício legalmente obrigatório de função não é, apenas, o desempenho de um dever, mas, também, o uso de um direito. A prova do que se acaba de afirmar está em que a pessoa legalmente obrigada a exercer determinada função não pode, sem violação de norma jurídica, ser impedida de exercê-la. Se a pessoa não pode ser impedida de exercer determinada função é porque ela tem o direito de exercê-la. Tal direito, cujo exercício é legalmente obrigatório, se chama DireitoFunção, do qual voltaremos a tratar no § 133.
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CAPÍTULO XXV
O TITUL AR DOS DIREITOS SUBJETIVOS: A PESSOA
§ 125. Noção jurídica de PESSOA A que entidades são dadas as permissões denominadas Direito Subjetivo? Que entidades possuem direitos? Resposta: As entidades a que são dadas essas permissões se chamam pessoas. Aliás, pessoa, no mundo do Direito, é a ENTIDADE TITULAR DE DIREITOS SUBJETIVOS. Para o Direito, pessoa é o SUJEITO DE DIREITO. Como todo Direito Subjetivo implica obrigação correlata — como vimos no § 123 —, somente pessoas podem ter obrigações jurídicas. Somente elas são titulares de obrigação, sujeitos de obrigação. Em suma, pessoa é O TITULAR DE DIREITOS E OBRIGAÇÕES. Nestes precisos termos é que ela se define. Notemos, desde já, que essa é a definição de pessoa dentro da estricta área do Direito. Outra é a definição de pessoa na área da Filosofia, como logo veremos. As pessoas, na área do Direito, se dividem em três espécies, como passamos a explicar. Em primeiro lugar, são pessoas os seres humanos tomados singularmente, sempre considerados como sujeitos de direitos e obrigações. “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, reza a lei (Código Civil, art. 1º). 275
Tais pessoas se chamam pessoas naturais ou pessoas físicas. Em segundo lugar, são também pessoas no mundo do Direito as comunidades ou coletividades, as associações ou corporações, constituídas para a consecução de determinado fim, organizadas de acordo com a lei, e erigidas em titulares de direitos e obrigações (Código Civil, arts. 41, 42 e 44). Estas entidades “têm existência distinta da dos seus membros” (Código Civil de 1916, art. 20). Em conseqüência, seus direitos e obrigações não se confundem com os direitos e obrigações das pessoas de que são compostas. Tais entidades se chamam pessoas jurídicas, pessoas morais ou pessoas coletivas. Exemplos de pessoas jurídicas: uma sociedade mercantil ou industrial, uma associação de agricultores, um banco, uma universidade, uma academia de ciências ou de letras, uma universidade, um centro acadêmico, uma central elétrica, uma liga de defesa da flora, um clube, um instituto de assistência, uma caixa de aposentadorias e pensões, um sindicato, um partido político, uma autarquia, a União, os Estados Federados, os Municípios. Em terceiro lugar, são pessoas as entidades instituídas por escritura pública, ou por disposição testamentária, ou por lei específica, compostas de um patrimônio, que é utilizado e gerido por administradores, de acordo com um estatuto, para a consecução do fim que lhes foi imposto pelo instituidor (Código Civil, arts. 62 e 65; Constituição, art. 37, XIX). Tais institutos se chamam fundações. Observe-se que uma fundação não é um ser humano, nem uma associação ou corporação de seres humanos. Ela é, essencialmente, um patrimônio — “bens livres”, oferecidos em dotação pelo instituidor da fundação — destinado a ser meio para a consecução do fim estabelecido na escritura que a criou. A fundação é “um patrimônio transfigurado pela idéia, que o põe ao serviço de um fim determinado”, disse Clóvis Bevilácqua (Teoria Geral do Direito Civil, § 19). O Direito brasileiro inclui as fundações entre as pessoas jurídicas (Código Civil, art. 16). São exemplos de fundações as seguintes: a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fundação de Assistência ao Índio, a Fundação Getúlio Vargas, a Fundação Álvares Penteado, a Fundação Padre Anchieta, a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a Fundação Moinho Santista. Do que acaba de ser exposto, infere-se que as pessoas se dividem em duas grandes classes: na classe das pessoas naturais e na classe das pessoas 276
jurídicas, sendo que a lei incluiu as fundações nesta segunda classe (Código Civil, art. 44). O que não pode deixar de merecer, aqui, especial menção é a nítida diferença entre os conceitos jurídicos de pessoa, que acabam de ser enunciados, e o conceito filosófico de pessoa. Para a Filosofia, pessoa é o ser humano. Para o Direito, pessoa é o titular de direitos e de obrigações. É o sujeito de direito. É verdade que a pessoa definida pela Filosofia é também pessoa para o Direito (é pessoa natural ou física). Mas certas pessoas do Direito não são pessoas para a Filosofia. Nem todo sujeito de direito é ser humano. Associações ou corporações de pessoas não são pessoas para a Filosofia. O mesmo acontece com as fundações, que não são pessoas para a Filosofia, mas são pessoas para o Direito. § 126. Capacidade e incapacidade das pessoas A qualidade de ser titular de direitos se chama capacidade. Na área do Direito, o termo capacidade tem esse estricto sentido. Significa somente capacidade de direito, capacidade jurídica. Toda pessoa possui a capacidade de direito. A essa capacidade, genérica e abstrata, é que a lei se refere quando reconhece que: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (Código Civil, art. 1º). Acontece, porém, que cada pessoa, em concreto, não é titular de todos os direitos e de todas as obrigações possíveis, mas titular, apenas, de determinados direitos e deveres. A capacidade real e concreta das pessoas, portanto, é uma capacidade limitada e certa. Esta capacidade limitada e certa se chama capacidade de fato. A capacidade de fato é a capacidade real e concreta de cada pessoa. É a qualidade de cada pessoa de ser titular de determinados Direitos Subjetivos e de determinadas obrigações jurídicas. As capacidades de fato se dividem em capacidades comuns e capacidades especiais. São capacidades comuns, as capacidades de fato de que são titulares todas as pessoas, com exceção, obviamente, das pessoas que a lei qualifica de incapazes (absolutamente e relativamente incapazes). São comuns, 277
portanto, as capacidades de fato da generalidade das pessoas, sem consideração pelas suas qualificações específicas. Constituem capacidades comuns, por exemplo, as capacidades de ir e vir, estabelecer residência, casar, ser empregado ou empregador, comprar e vender, doar e legar, outorgar procuração e ser mandatário, ser herdeiro e legatário. São capacidades especiais, as capacidades de fato das pessoas enquanto pertencentes a uma categoria legalmente qualificada, em razão de seu estado ou de sua situação. Cumpre definir estado e situação, para o perfeito entendimento do conceito de capacidade especial. Estado da pessoa é a conjuntura, reconhecida pelo Direito, na qual a pessoa se encontra. O Direito reconhece quatro espécies de estados: os estados políticos, os estados familiares, os estados físicos e os estados profissionais. Os estados políticos das pessoas são os de nacional e de estrangeiro, sendo que o estado de nacional pode ser estado de brasileiro nato e estado de brasileiro naturalizado. Os estados familiares das pessoas são os de solteiro, casado, viúvo, desquitado, pai, mãe; filho legítimo, ilegítimo, legitimado, natural, adotado; parente ascendente, descendente, sobrevivente, colateral; parente sangüíneo, parente afim, e os outros estados decorrentes das chamadas relações de família. Os estados físicos das pessoas são os estados decorrentes da idade delas (maior de idade, menor de idade) e de sua saúde ou seu estado mental (normal, demente, pródigo, etc.). Os estados profissionais das pessoas são os decorrentes do exercício usual de seu trabalho, como os estados de empregador, de empregado estável e não estável; de trabalhador registrado, autônomo e eventual ou avulso; de empregado doméstico e rural; de agricultor, comerciante, industrial; de profissional liberal, de professor titulado, de banqueiro e bancário, de metalúrgico, ferroviário, telegrafista, operador cinematográfico, estivador, embarcadiço, aviador, etc. O estado de uma pessoa não é o mesmo que a situação dela. Situação é a posição em que a pessoa se encontra, relativamente a outra ou outras, de acordo com as determinações do Direito (excluídas as situações familiares e profissionais, que são consideradas estados, como se acaba de ver). 278
São situações, por exemplo, as posições de ausente, tutor, curador, administrador, gestor, possuidor, proprietário, condômino, enfiteuta, foreiro, senhorio, usufrutuário, usuário, locador, inquilino, vizinho, credor e devedor, cessionário, doador e donatário, mutuário, depositante e depositário, mandante e mandatário, editor, sócio, parceiro, segurador e segurado, fiador, promitente, testador, herdeiro, legatário, testamenteiro, inventariante; gerente e diretor de pessoas jurídicas; chefe e diretor de repartições públicas; Prefeito Municipal, Secretário e Ministro de Estado, Governador de Estado e Presidente da República; Vereador, Deputado, Senador; Delegado de Polícia, Promotor Público, Juiz, etc. Do estado e da situação das pessoas, dependem as capacidades especiais de cada uma delas. Constituem capacidades especiais, por exemplo, as capacidades do pai e da mãe, para exercer o pátrio poder; do proprietário, para usar, fruir e dispor de seus bens; do médico, para exercer a medicina; do juiz, para decidir os pleitos; do delegado de polícia, para a perseguição dos delinqüentes; do Presidente da República, para exercer a direção superior da administração federal; da sociedade mercantil, para o exercício do comércio; do sindicato, para promover a conciliação, nos dissídios de trabalho; da sociedade global, como comunidade, para exercer, pelos meios legais, coação sobre os violadores das normas jurídicas, a fim de fazer cessar ou de obstar a infringência, etc. Cumpre lembrar que a lei estabelece casos de incapacidade (Código Civil, arts. 3º e 4º). A incapacidade, a que o Direito se refere, não contraria o princípio geral de que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (Código Civil, art. 1º). Não afeta a capacidade de direito de todas as pessoas, sem exceção. A incapacidade jurídica diz respeito à capacidade de fato das pessoas. Ela consiste na falta da capacidade relacionada com determinados fatos. É uma incapacidade em razão do estado das pessoas. Para clareza, leiam-se os artigos pertinentes do Código Civil: “Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:I – os menores de dezesseis anos; II — os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III — os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”. 279
“Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I — os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II — os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III — os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV — os pródigos”. É oportuno salientar, aqui, que os dispositivos legais sobre a capacidade e a incapacidade constituem uma flagrante confirmação de que os Direitos Subjetivos não são simples faculdades ou poderes humanos, mas permissões ou poderes outorgados por meio das normas jurídicas. Basta que a lei declare a incapacidade de uma pessoa para que esta não tenha mais o direito de fazer determinadas coisas, embora possa desfrutar da aptidão natural para fazê-las. É o que sói acontecer, por exemplo, com uma pessoa de dezessete anos, que se tenha tornado um perfeito conhecedor do negócio imobiliário, mas que, em razão de sua menoridade (incapacidade jurídica), não tem o direito de vender uma casa de sua propriedade, sem que, antes, obtenha, de acordo com o prudente mandamento legal, o suprimento de capacidade (Código Civil, art. 1.634, V). § 127. A RELAÇÃO JURÍDICA O vínculo que liga o sujeito de direito ao sujeito de obrigação, em razão de um objeto de direito, se chama relação jurídica. A relação jurídica se define: VÍNCULO ENTRE PESSOAS SEGUNDO NORMA JURÍDICA. São relações jurídicas, os vínculos existentes, por exemplo, entre o vendedor e o comprador, entre o credor e o devedor, entre o proprietário e todos que devem respeito à propriedade; entre o locador e o locatário. Uma relação jurídica supõe sempre ao menos duas pessoas. Muitas vezes, na mesma relação jurídica, estão ligadas mais de duas pessoas. Quando muitos, por exemplo, são os compradores e os vendedores de um objeto, muitas são as pessoas ligadas na mesma relação jurídica. A relação jurídica, portanto, como a própria palavra relação já está indicando, é um vínculo entre pessoas, tomando-se a palavra “pessoa” no seu sentido jurídico, como sujeito de direito e sujeito de obrigação. Há duas espécies de relações jurídicas. A relação jurídica pode ser relação de coordenação ou relação de subordinação. 280
A relação jurídica de coordenação é aquela em que as partes se tratam de igual para igual. É o que acontece, por exemplo, com a relação jurídica que se estabelece entre vendedor e comprador. O comprador e o vendedor se tratam de igual para igual. Um deseja comprar um objeto, outro deseja vender o mesmo objeto. Se o comprador quiser pagar o preço que o vendedor fixar, a relação se estabelece, mas as duas pessoas se encontram no mesmo plano e se tratam como iguais. A vontade de uma não se sobrepõe à da outra. A relação jurídica de subordinação é aquela em que uma das partes é o Governo da sociedade política, exercendo a sua função de mando, a sua função de governo. É o que acontece, por exemplo, com a relação jurídica existente entre o Governo e os contribuintes de impostos. O Governo não pergunta ao contribuinte se ele está com vontade de pagar o imposto. O Governo lança o imposto e o cobra e, se o contribuinte não pagar, o executa judicialmente, e pode chegar a penhorar tantos de seus bens quantos forem necessários para saldar sua dívida fiscal. O que se vê, neste exemplo típico, é que não há uma relação de coordenação, porque as partes não se tratam de igual para igual. A vontade de uma se sobrepõe à vontade da outra. Mas, atenção! Nem sempre é de subordinação a relação jurídica em que uma das partes é o Governo da sociedade política. Pode o Governo da sociedade política entrar numa relação jurídica como se fosse um particular. E, então, a relação jurídica é uma relação jurídica de coordenação. É o que acontece, por exemplo, quando o Governo é mero comprador. Imaginese o caso da compra de materiais de construção pelo Governo. A relação jurídica que se estabelece entre o Governo-comprador e a pessoa vendedora dos materiais de construção não é uma relação jurídica de subordinação, mas é, simplesmente, uma relação jurídica de coordenação (embora com certas formalidades legais, que não existem na relação entre particulares).
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CAPÍTULO XXVI
OS FATOS GERADORES DOS DIREITOS SUBJETIVOS: FATOS E ATOS
§ 128. FATOS e ATOS jurídicos Os Direitos Subjetivos não nascem do nada. Não se adquirem, não se modificam, não se transmitem, não se extinguem, sem um fato causador de tais efeitos. Os romanos diziam “ex facto oritur jus”: do fato origina-se o Direito. Todo evento que determina nascimento, aquisição, exercício, modificação, transmissão e extinção de Direito Subjetivo é o que se chama FATO JURÍDICO. Por exemplo, são fatos jurídicos o nascimento de uma criança, um contrato de venda e compra, um contrato de aluguel, uma doação, um testamento, um incêndio numa casa de moradia ou num depósito de materiais, o transbordamento de um rio, ocasionando prejuízos, a morte de alguém. O fato jurídico pode ser definido, com simplicidade, nos seguintes termos: EVENTO QUE TEM EFEITO JURÍDICO. Os fatos jurídicos se dividem em: 1) fatos jurídicos da natureza; e 2) fatos jurídicos da vontade. Os fatos jurídicos da natureza são os fatos cujos efeitos jurídicos dependem diretamente de eventos do mundo físico. 283
São exemplos de fatos jurídicos da natureza o nascimento com vida, a idade, a doença, a morte, o decurso do tempo, um incêndio provocado por um raio numa floresta, o desvio do leito de um rio, a formação de uma ilha. Poderia alguém perguntar: Por que esses fatos são chamados fatos jurídicos? Resposta: Esses fatos são fatos jurídicos porque têm efeitos jurídicos. O nascimento de uma criança tem um efeito jurídico imediato, porque a criança, pelo simples fato de viver, já tem Direitos Subjetivos. Surge a criança, surgem seus direitos. A morte é, também, um fato jurídico. Quando morre uma pessoa, há pessoas ou entidades que adquirem direitos sobre os bens dessa pessoa. A morte acarreta a extinção, a transmissão e a modificação de direitos. O simples decurso do tempo é um fato jurídico. O escoar das horas, dos dias, dos meses e dos anos acarreta o surgimento de certos direitos e a decadência de outros. Se alguém, por exemplo, estiver na posse de um terreno, embora sem título, sem o haver comprado, sem o haver recebido em doação ou em legado; se estiver simplesmente na posse do terreno, e se nele permanecer, sem que ninguém o pretenda e reivindique, durante determinado tempo, tornase proprietário dele, ou seja, adquire o Direito Subjetivo de propriedade sobre o terreno. Torna-se proprietário por usucapião. Se um criminoso consegue manter-se foragido durante um determinado tempo, que a lei estabelece, sem que se consiga prendê-lo, o direito de se lhe aplicar pena se extingue por prescrição. Considerem-se, agora, os fatos jurídicos da vontade. Os fatos jurídicos da vontade são os fatos cujos efeitos jurídicos dependem diretamente da vontade humana. Estes fatos se dividem nas duas seguintes espécies: 1) a dos atos jurídicos; e 2) a dos fatos jurídicos voluntários com efeitos involuntários. Os atos jurídicos são ATOS PRATICADOS COM A INTENÇÃO DE PRODUZIR EFEITO JURÍDICO CERTO. São atos praticados com a intenção de determinar o surgimento, a aquisição, o exercício, a modificação, a transmissão ou a extinção de Direito Subjetivo. Exemplos de atos jurídicos: uma venda e compra, uma doação, um contrato de sociedade, um casamento, um exame vestibular, o apossamento de um terreno, um testamento. 284
Os atos jurídicos podem ser contratos ou convênios, quando são ajustes entre partes; e podem ser empreendimentos sem ajuste entre partes. Exemplos dos primeiros: uma venda e compra, um casamento, um estatuto de sociedade, a matrícula de estudante na Faculdade. Exemplos dos segundos: o apossamento destitulado de terreno, a fuga do condenado. Nos primeiros, há sempre um relacionamento acertado entre as partes. Nos segundos, não há acerto nenhum. Os primeiros costumam ser chamados de negócios jurídicos. Finalmente, os fatos jurídicos voluntários com efeitos jurídicos involuntários são ATOS PRATICADOS COM A INTENÇÃO DE PRODUZIR CERTO EFEITO JURÍDICO, E QUE PRODUZEM, ALÉM DESSE EFEITO, ALGUM EFEITO JURÍDICO NÃO PROCURADO. São exemplos destes fatos: as guerras, as greves, os congelamentos de preços, os planos desinflacionários ou inflacionários do Governo. Os fatos desta espécie são atos jurídicos, enquanto considerados como causa de efeito jurídico procurado; mas não são atos jurídicos, enquanto considerados como causa de efeito jurídico não procurado. Enquanto considerados como causa de efeito jurídico não procurado, devem ser qualificados como fatos jurídicos: são fatos jurídicos voluntários com efeitos involuntários. As guerras são fatos jurídicos voluntários, com efeitos jurídicos voluntários. Mas, além dos efeitos jurídicos voluntários, toda guerra acarreta outros efeitos jurídicos, que não são queridos, não são procurados, não são buscados. O mesmo se pode dizer de muitas greves e de muitos planos e empreendimentos políticos e econômicos. As guerras, as greves e tais empreendimentos são atos jurídicos, enquanto causas de efeitos jurídicos procurados. Mas são fatos jurídicos (e não atos jurídicos), enquanto causa de efeitos jurídicos não queridos, não procurados. Como vemos, todo ato jurídico é fato jurídico, mas nem todo fato jurídico é ato jurídico. O fato jurídico é o gênero, do qual o ato jurídico é uma das espécies, como acabamos de verificar. O que aqui se pergunta, inevitavelmente, é o seguinte: Pode algum ato jurídico ser ato ilícito? O ato só pode ser jurídico se for lícito? De acordo com a tradição romana e uma doutrina consagrada, o ato jurídico é sempre um ato lícito. O ato ilícito não é nunca um ato jurídico. O direito civil brasileiro adotou essa orientação expressamente desde a edição do Código Civil de 1916, que, em seu art. 81, dispunha: “Todo ato LÍCITO que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico”. 285
A velha convicção de que o ato jurídico há de ser, forçosamente, um ato lícito se funda num poderoso argumento, que é o seguinte: o ato jurídico é o exercício de um Direito Subjetivo. Embora o Direito Romano não empregue o termo “Direito Subjetivo” (nome que ainda não havia sido criado), é evidente que o pensamento dominante nessa matéria era o de que um ato só poderia ser considerado jurídico se não fosse contrário à ordem jurídica, ou seja, se não fosse contrário às leis. O ato violador da ordem jurídica, violador das leis, é ato ilícito, e não um ato jurídico. Logo, para os romanos, e para toda a doutrina e todas as legislações fundadas no pensamento romano, o ato jurídico é, por força, ato lícito. Esse velho pensamento se resume na idéia de que o Direito Subjetivo é uma permissão dada por meio de norma jurídica, e de que o ato jurídico é o uso dessa permissão. Conseqüentemente, não pode o ato jurídico ser contrário à norma jurídica: não pode ser ato ilícito. Mas, modernamente, outra convicção se vai firmando sobre este assunto. Funda-se num argumento igualmente poderoso, que é o seguinte: Um ato é jurídico não pelo fato de se fundar em lei, mas pelo fato de ter efeito jurídico. Um ato pode ser contrário à ordem jurídica, contrário às leis, e ter efeito jurídico. Este efeito jurídico é o que lhe confere a qualidade de ato jurídico. A violação de um contrato, a falsificação de um documento, um estelionato, um furto, uma calúnia, um estupro, uma ofensa à integridade corporal de alguém, um homicídio são atos contrários à ordem jurídica, mas seus efeitos jurídicos são evidentes. Estes efeitos qualificam o ato, e o discriminam dos atos que não produzem efeitos jurídicos. Reconhecer que tais atos são atos jurídicos é, por assim dizer, uma imposição lógica para todos quantos consideram jurídicos os fatos da natureza que tenham efeitos jurídicos. Ninguém sustentará, certamente, que os fatos da natureza são jurídicos em razão de sua harmonia com a ordem jurídica. O nascimento, a idade, a doença, a morte, o decurso do tempo, o incêndio involuntário, a aluvião são fatos jurídicos, mas não o são porque obedecem aos mandamentos das leis, mas porque são fatos que produzem efeitos jurídicos. O mesmo argumento, que vale para os fatos da natureza, deve também valer para os fatos da vontade. Os fatos da natureza são jurídicos porque têm efeitos jurídicos. Os fatos da vontade são jurídicos pela mesma razão. O que decorre dessa argumentação é que os atos jurídicos se dividem em atos jurídicos lícitos e atos jurídicos ilícitos. Pontes de Miranda disse: “Os crimes são atos jurídicos; porque atos jurídicos não são somente os atos conforme o direito, os atos (lícitos) sobre 286
os quais a regra jurídica incide, regulando-os; são-no também os atos ilícitos, sobre os quais incidem regras penais, ou de ofensa aos direitos absolutos, ou de reparação dos danos, ou de violação dos direitos de crédito, ou outros” (Tratado de Direito Privado, t. I, p. 79 e seguintes). Miguel Reale é da mesma opinião (Lições Preliminares de Direito, Capítulo XVI). § 129. O ato ilícito Constitui ato ilícito toda ação ou omissão que, violando norma jurídica, impede ou perturba o uso de um Direito Subjetivo. Os atos ilícitos são ilícitos criminais ou são ilícitos civis. O ato ilícito é crime quando a lei penal assim o qualifica. Não sendo crime (não estando incluído, pelas leis penais, no rol dos crimes), ou não sendo considerado em sua qualidade de crime, o ato ilícito é um ilícito civil. Enquanto crime, o ato ilícito acarreta aplicação de pena (sanção penal). Enquanto ilícito civil, o ato ilícito acarreta a obrigação de reparar o dano causado (sanção civil). O ato ilícito pode ser, ao mesmo tempo, um ilícito civil e um crime. Mas o ilícito civil nem sempre é crime (não é crime quando a lei penal assim não o qualifica). O crime, porém, pode ser considerado como crime e como ilícito civil, acarretando não somente aplicação de pena, mas, também, a obrigação de reparar o dano (Código Civil, arts. 948 a 954). Exemplos de ilícito civil: casar ascendente com descendente, parente com parente afim em linha reta, adotante com o cônjuge (viúvo ou divorciado) do adotado, adotado com o cônjuge (viúvo ou divorciado) do adotante, irmão com irmã; casar com pessoa menor de dezesseis anos; com viúvo ou viúva que tiver filhos do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; casar tutor ou curador com a pessoa tutelada; adotar pessoa como filho não tendo idade para fazê-lo; negar alimentos a parente, quando solicitados, nos casos da lei; alienar, hipotecar ou gravar de ônus real, sem consentimento do cônjuge, bens imóveis de que se é proprietário; adquirir para si bens de menor, de que se é tutor; construir prédio que deite goteiras sobre o prédio vizinho; encostar à parede do vizinho, sem permissão sua, fornalhas, fornos de forja ou de fundição, aparelhos higiênicos, fossas, canos de esgoto, depósitos de sal ou de quaisquer substâncias corrosivas ou suscetíveis de 287
produzir infiltrações daninhas; fazer construções capazes de poluir ou inutilizar, para o uso ordinário, a água de poço ou nascente alheia, a elas preexistentes (Código Civil, art. 1.309 e Código de Águas — Decreto n. 24.643, de 10-7-1934, art. 98); não cumprir a obrigação jurídica, ou deixar de cumpri-la pelo modo e no tempo devido; não efetuar o pagamento do que é devido; recusar quitação regular a devedor que paga; doar todos os bens, sem reserva de parte, ou renda suficiente, para a subsistência do doador; doar bens de que, por força de lei, o doador não pode dispor em testamento; empregar a coisa alugada em uso diverso do ajustado ou do a que se destina; convencionar locação de serviços por mais de quatro anos; exigir do locador serviços superiores a suas forças; obrigar bens sociais, sem que o sócio que os obrigou esteja na administração da sociedade; renunciar ao lugar de sócio, determinando a dissolução da sociedade, com o fim de se apropriar exclusivamente dos benefícios que os sócios tinham em mente colher em comum; na parceria rural, dispor do gado, sem licença do parceiro; obrigar-se a pagar, ao portador de título, não autorizado por lei federal, quantia certa em dinheiro; não cumprir a promessa, feita em anúncio público, de recompensar ou gratificar a quem preencha certa condição, ou desempenhe certo serviço; fazer objeto de contrato, a herança de pessoa viva; nomear herdeiro, a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento; intentar demanda por espírito de emulação, mero capricho, ou erro grosseiro (Código de Processo Civil, art. 130). Exemplos de ilícito criminal: o homicídio, a ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem, a omissão de socorro, a rixa, a calúnia, a difamação, a injúria, a denunciação caluniosa, o falso testemunho, a falsa perícia, a fraude processual, a violência ou ameaça pela qual alguém é constrangido a não fazer o que a lei permite, ou fazer o que a lei não manda, o seqüestro, o cárcere privado, a coação no curso de ação judicial; a violação de domicílio, de correspondência, de segredo; o furto, o roubo, a extorsão, a receptação, a apropriação de imóvel alheio (usurpação), o dano, a apropriação indébita, o estelionato, o emprego por sociedade mercantil de meios ruinosos para obter recursos e retardar a declaração da falência; a violação de direito autoral, de privilégio de invenção, de direito de marca de indústria ou de comércio; a concorrência desleal, o atentado contra a liberdade de trabalho, o ultraje a culto, a violação de sepultura, o estupro, o lenocínio, o tráfico de pessoas, a corrupção de menores, o ultraje público ao pudor, o atentado contra a incolumidade pública por qualquer meio (como incêndio, explosão, desastre em meios de transporte público), a propagação de germes patogênicos, causando epidemia; a falsificação de remédio; a compra, 288
a venda, o fornecimento (ainda que a título gratuito), a posse de entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica; o curandeirismo, a fabricação de moeda falsa, a falsificação de papel público ou de documento particular, o fornecimento de atestado falso, o peculato, a corrupção de funcionário público, a prevaricação, a usurpação de função pública, a resistência violenta à execução de ato legal, o desacato a funcionário público, o contrabando, o atentado contra a economia popular; a extração de loteria, sem concessão regular de poder competente; a tentativa de submeter o território da Nação à soberania de Estado estrangeiro; a tentativa de subverter, por meios violentos, a ordem política e social; a prática de atos que suscitem terror, com o fim de atentar contra a segurança do Estado; a propaganda de processos violentos para a subversão da ordem política e social; a espionagem; a obstrução, mediante violência, ameaça ou assuada, do regular funcionamento de comissão parlamentar de inquérito; o uso, pelo Presidente da República, de violência ou ameaça, contra representante da Nação, para afastá-lo da Câmara a que pertença, ou para coagi-lo no modo de exercer o seu mandato; a tolerância do Presidente da República ou de seus Ministros com o abuso do poder praticado por autoridades que lhes são subordinadas; o atentado praticado ou ordenado pelo Presidente da República ou por seus Ministros, contra os direitos da pessoa humana e as garantias individuais, assegurados pela Constituição. Todo ato ilícito, seja civil ou criminal, impede ou perturba o uso de Direito Subjetivo e, portanto, prejudica alguém. Por exemplo, o não-pagamento do devido (ilícito civil) e o furto (ilícito criminal) impedem que o proprietário se utilize de dinheiro que é seu, mas que não se acha em seu poder, porque não lhe foi entregue em pagamento, ou lhe foi subtraído. Cumpre assinalar que o ato só é ilícito se violar norma jurídica. Pode um ato causar prejuízo a alguém e não violar norma jurídica nenhuma. Pode uma pessoa, ao usar seus próprios Direitos Subjetivos, prejudicar outrem, sem infringir qualquer norma de Direito. Neste caso, o ato, embora cause prejuízo, não constitui ato ilícito. É o que acontece, por exemplo, quando uma pessoa, em negócio lícito, tem lucro a custo do prejuízo de outra; quando o credor executa a penhora de bens do devedor relapso; quando o empregado, que não optou pelo regime do Fundo de Garantia e foi despedido sem justa causa, reclama indenização por seu tempo de serviço; quando uma pessoa, nos casos da lei, cobra alimentos de parente; quando alguém exige indenização pelo crime de que foi vítima; quando o construtor, ao erguer um edifício, tira a vista dos que habitam o edifício vizinho. 289
Em tais casos, não há nenhum ato ilícito. Aquele que foi prejudicado por ato ilícito de outrem, ou seja, por violação de norma jurídica, causado por ação ou omissão voluntária ou por negligência, imprudência ou imperícia de outrem, tem o Direito Subjetivo de exigir a reparação do dano (Código Civil, arts. 186 e 927). Aquele que foi prejudicado pelo não-cumprimento de uma obrigação, ou pelo não-cumprimento dela, segundo o modo e no tempo devido, tem o Direito Subjetivo de reclamar perdas e danos (art. 389). É preciso esclarecer que, no caso especial de crime, o ato ilícito produz duas vítimas: a vítima direta do crime e a sociedade. A sociedade, tomada como comunidade global, é sempre considerada como uma das vítimas de todo crime, conforme já explicamos no Capítulo VI. Na qualidade de lesada, a sociedade é a única entidade que a ordenação jurídica autoriza a impor pena (sanção penal). A vítima direta (ou seus herdeiros) é autorizada, não a impor pena, mas a exigir indenização ou, se for caso, a reposição das coisas no estado em que estavam antes da prática do ato ilícito (sanção civil). No caso de crime, portanto, a sociedade, por meio dos órgãos competentes do Poder Público, tem o Direito Subjetivo de impor pena. Este direito de defesa é um Direito-Função, que será definido no § 133 do Capítulo seguinte.
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CAPÍTULO XXVII
OS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER. O DIREITO-FUNÇÃO
§ 130. As quatro classes de Direitos Subjetivos Os Direitos Subjetivos se dividem nas quatro classes seguintes: a) Direitos de Fazer e de Não Fazer. b) Direitos da Personalidade. c) Direitos Reais. d) Direitos Pessoais. Da primeira classe, trataremos neste Capítulo. Das demais, trataremos nos Capítulos seguintes. § 131. A liberdade de agir A primeira classe dos Direitos Subjetivos é a dos DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER. Tais direitos correspondem à liberdade humana de agir e, conseqüentemente, à de não agir. Essa liberdade “constitui”, por assim dizer, a liberdade-matriz, a liberdade-base, que é a liberdade de ação em geral, a liberdade geral de atuar (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 2ª Parte, Título II, Capítulo VI, II, 8). 291
Ela é, em verdade, o amplo gênero de que são espécies as liberdades múltiplas a que as leis se referem. Por exemplo, ela é o gênero das liberdades constitucionais, como as de ir, vir e ficar; de manifestar o pensamento; de exprimir atividade intelectual, artística e científica, e de comunicá-la; de manter inviolável a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem, a casa, o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação; de exercer profissão, ofício ou qualquer trabalho lícito; de entrar e permanecer no território nacional, ou dele sair; de reunir-se pacificamente com seus semelhantes; de associar-se para fins lícitos; de ser proprietário; de utilizar, publicar e reproduzir obra de sua autoria; de herdar; de dirigir petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos, ou contra ilegalidade ou abuso de poder; de submeter à apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito ou ameaça a direito; de defender o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; de defender a liberdade e bens particulares, enquanto não houver, em contrário, sentença judiciária passada em julgado; de impetrar habeas corpus, mandado de segurança e mandado de injunção; etc. A liberdade humana de agir é, também, o amplo gênero de que são espécies as inúmeras liberdades civis da vida quotidiana. Por exemplo, ela é o gênero de liberdades como as de casar, de exercer o pátrio poder, de divorciar; de comprar, vender, emprestar, alugar, trocar, hipotecar, doar; de exercer a posse de bens móveis e imóveis, e de defendê-la; de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua; de cobrar o devido, e de exigir quitação regular de dívida paga; de exigir reparação de dano causado por ato ilícito; de fazer testamento; etc. Todas essas liberdades, fundadas na Constituição e nas leis, são espécies da liberdade humana de agir e de não agir. Por se acharem apoiadas em normas jurídicas, tais liberdades se promovem a Direitos Subjetivos: precisamente, aos Direitos Subjetivos de Fazer e de Não Fazer. Em suma, essas liberdades são permissões dadas por meio de normas jurídicas. Este é o motivo pelo qual constituem Direitos Subjetivos. § 132. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Todas as permissões, dadas por meio de norma jurídica, tanto as explícitas como as implícitas (reveja o § 120), se fundam, em última análise, no PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, que se formula nos seguintes termos: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Constituição, art. 5º, II). 292
Este princípio se converte, como é óbvio, no seguinte: A todos é permitido fazer o que a norma jurídica não proíbe, e não fazer o que a norma jurídica não manda fazer. O Direito permite o que o Direito não proíbe. Observemos imediatamente, para evitar mal-entendidos, que nem tudo o que o Direito permite (do que o Direito não cuida, não proíbe) é permitido pela Moral. Já diziam os juriconsultos romanos “non omnis quod licet honestum est”, ou seja, “nem tudo que é lícito é honesto”. O princípio da legalidade é fundamental na ordem jurídica. Ele resume, por assim dizer, a razão-de-ser de toda e qualquer estrutura de Direito. Os povos evoluídos o identificaram, destrinçaram-no e destacaram, formulando-o expressamente em suas legislações. Mas é ele, também, que se encontra, subjacente, a inspirar usos e costumes dos agrupamentos mais primitivos. Não constitui truísmo lembrar que as sociedades humanas, sejam elas quais forem, evoluídas ou primitivas, existem para servir as pessoas. Conseqüentemente, por imposição da inteligência (ou seja, por imposição da idéia de que os meios se sujeitam aos fins), cada pessoa, para poder servirse da sociedade, tem a permissão de fazer e de ter coisas que o próximo não deve impedir ou tirar. Para tornar efetiva essa autorização, cada pessoa tem, igualmente, permissão de exigir do próximo certas ações e certas abstenções, em seu próprio benefício. É verdade que isto implica a obrigação, a que se acham sujeitas todas as pessoas, de praticar certas ações e de se abster de outras, em benefício de seus semelhantes. Numa sociedade, certas coisas serão sempre permitidas, e certas proibições sempre impostas. Isto decorre da função instrumental das sociedades humanas. Tais permissões e tais proibições são reveladas a todas as pessoas em normas éticas. Entre tais normas, encontram-se, precisamente, as normas jurídicas, cujo conjunto forma o Direito Objetivo. Muitas dessas normas jurídicas não são normas de Direito Positivo, mas são imperativos autorizantes. Pertencem, portanto, ao Direito Objetivo, como foi explicado no Capítulo XI. Aquilo que estiver permitido pelo Direito Objetivo não deve ser impedido por ninguém. Aquilo que estiver proibido pelo Direito Objetivo não deve ser feito por ninguém, e ninguém deve obrigar outro a fazer. Nas esferas do Estado, é crime de constrangimento ilegal o ato de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe 293
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a norma jurídica permite, ou a fazer o que ela não manda (Código Penal, art. 146). Cada pessoa tem permissão de fazer e de ter o que a comunidade, por meio do Direito Objetivo, não proíbe que ela faça e tenha; e de não fazer e não ter o que a comunidade, por meio do Direito Objetivo, não a manda fazer ou ter. E, finalmente, cada pessoa tem a permissão de exigir que ninguém impeça ou perturbe o uso das permissões que lhe são dadas por meio do Direito Objetivo. Cumpre salientar que o Princípio da Legalidade é fundamento vital do Estado de Direito Democrático. Em verdade, no Estado de Direito Democrático, o Governo se submete à Constituição. E submete-se às leis ordinárias que disciplinam sua atividade. O Poder Executivo governa, mas governa dentro da ordem jurídica. Governa, mas não governa acima do que o Poder Constituinte estabeleceu; não governa contra a Constituição. Governa, sim, mas não governa acima das leis que o próprio Poder Executivo sancionou e promulgou. No Estado de Direito Democrático, toda a Administração se submete ao mandamento: “Suporta a lei que sancionaste”. Conseqüentemente, não deve o Governo proibir que alguém faça ou tenha o que a lei permite, nem obrigar alguém a fazer ou ter o que a lei não manda. Em resumo: não deve (não pode) o Governo proibir o que o Direito permite, nem mandar o que o Direito proíbe. § 133. O DIREITO-FUNÇÃO Os Direitos de Fazer e Não Fazer compreendem duas espécies de Direitos Subjetivos: o Direito-Liberdade e o Direito-Função. O Direito-Liberdade é o Direito Subjetivo de fazer ou não fazer o que a norma jurídica não proíbe. O Direito-Função é o Direito Subjetivo da pessoa de exercer a função que lhe é designada por norma jurídica e, concomitantemente, a obrigação de exercê-la. Em virtude do mandamento da norma jurídica, o titular do DireitoFunção fica na obrigação de exercer a função que lhe é atribuída por meio da norma. Em virtude do autorizamento dela, o titular do Direito-Função é 294
a pessoa não somente autorizada para exercê-la, mas, também, a pessoa autorizada a impedir que outra pessoa a exerça em seu lugar. O que distingue o Direito Subjetivo simples do Direito-Função está em que o Direito-Função não é mera permissão dada por meio de norma jurídica, mas é, também, a imposição de um dever, feita por meio da mesma norma. Em resumo: o titular de um Direito-Função tem o direito e a obrigação de exercer uma função. É o que acontece, por exemplo, com o tutor, que tem o direito e o dever de reger a pessoa do tutelado, velar por ele e administrar-lhe os bens (Código Civil, art. 1.741); com o donatário, que tem o direito e o dever de cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral (art. 553); com o locatário, que tem o direito e o dever de servir-se da coisa alugada para os usos convencionados ou presumidos, conforme a natureza dela e as circunstâncias, bem como a tratá-la com o mesmo cuidado como se fosse sua (art. 569); com o depositário, que tem o direito e o dever de ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando lho exija o depositante (art. 629); com o mandatário, que tem o direito e o dever de aplicar toda a sua diligência habitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente (art. 667); com o gestor de negócios, que tem o direito e o dever de envidar toda a sua diligência habitual na administração do negócio, ressarcindo ao dono o prejuízo resultante de qualquer culpa na gestão (art. 866); com o testamenteiro, que tem o direito e o dever de dar cumprimento às disposições de última vontade do testador e, se estiver na posse e administração dos bens, de requerer inventário, dando contas, afinal, do que recebeu e despendeu (Código Civil, arts. 1.976, 1.977 e 1.980); com o funcionário público, que tem o direito e o dever de exercer a função para que foi contratado, dentro da administração do Estado; com o juiz, que tem o direito e o dever de dirigir as ações processuais e de julgálas, não se podendo eximir de proferir despachos ou sentenças (Código de Processo Civil, arts. 125 e 126); com o Presidente da República, que tem o direito e o dever de sancionar, promulgar e fazer publicar as leis (Constituição, art. 84); com o Estado, que tem o direito e o dever de impor penas a delinqüentes; etc. O que precisa ficar bem claro, nesta matéria, é que o dever legal de exercer função não exclui o direito de exercê-la. O cumprimento desse dever é o exercício de um direito. 295
Quando, por exemplo, um professor público cumpre seu dever funcional de ensinar em determinada escola, em conformidade com seu contrato, está exercendo, concomitantemente, seu direito de ensinar nessa escola. Quando um juiz dá uma sentença, cumpre seu dever de magistrado e, concomitantemente, exerce seu direito de julgar. Vê-se, portanto, que o exercício de função, legalmente obrigatório, não é, apenas, o desempenho de um dever, mas, também, o uso de um direito. A prova do que se acaba de afirmar está em que a pessoa legalmente obrigada a exercer determinada função não pode ser impedida de fazê-la. Se a pessoa não pode ser impedida de exercer determinada função, é porque ela tem o direito de exercê-la. Tal direito, cujo exercício é legalmente obrigatório, é que se chama Direito-Função.
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CAPÍTULO XXVIII
OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
§ 134. O conceito de PERSONALIDADE A segunda classe dos Direitos Subjetivos é a dos DIREITOS DA PERSONALIDADE (veja § 130). Antes de definir os Direitos da Personalidade, cumpre fixar o conceito de PERSONALIDADE. A personalidade é o conjunto dos caracteres próprios de um determinado ser humano. É o conjunto dos elementos distintivos, que permitem, primeiro, o reconhecimento de um indivíduo como pessoa e, depois, como uma certa e determinada pessoa. Esta questão, como a da “facultas agendi”, tratada no Capítulo XXIV, é fundamentalmente filosófica, mas desperta o interesse dos estudiosos do Direito. A personalidade é uma qualidade (um acidente intrínseco, como dizem os filósofos). É uma qualidade em sentido estricto, porque é uma disposição ou maneira de ser do indivíduo humano. As qualidades em sentido estricto são as qualidades necessárias de um ser, isto é, as qualidades que lhe são próprias e que, por lhe serem próprias, são propriedades dele. O próprio de um ser é o que determina que o ser seja o que efetivamente é. Portanto, o próprio pertence ao ser de maneira intrínseca, não necessitando, para pertencer-lhe, de outro fundamento além do fundamento de ser, de existir. Nada é mais próprio de um ser do que ser ele próprio. 297
Neste sentido é que dizemos que o próprio é propriedade do ser. Todo ser tem suas propriedades, ou seja, suas qualidades próprias, que o caracterizam. O próprio é propriedade por definição, por natureza, por essência, sem qualquer imposição normativa externa, sem qualquer implicação jurídica. A faculdade de falar, por exemplo, é própria do homem, é uma propriedade humana, independente de qualquer disposição do Direito. Evidentemente, o termo propriedade, na acepção com que aqui está sendo empregado, não tem nenhuma conotação jurídica. Ele não designa a propriedade com sentido de coisa tida — de uma coisa distinta da pessoa que a tem. Ele não designa a propriedade que pode ser adquirida, apossada, usada, fruída e transmitida pelos modos usuais destas operações na área do Direito. O que ele designa é outra coisa. Aqui, o termo propriedade designa o que é necessário num ser, e é exclusivo dele, ou necessário numa espécie de seres, e é exclusivo dela. Designa aquilo de tal maneira pertencente a um ser, ou a uma espécie de seres, que serve para distinguir e caracterizar esse ser ou essa espécie, diferenciando-o de outro ser, ou de outra espécie. Pois bem, a personalidade é uma propriedade desse tipo. É uma qualidade inconsútil do ser humano, porque é um fator determinante de sua maneira de ser. Logo, a personalidade não é um direito, não é uma permissão, não é um Direito Subjetivo. A personalidade é uma propriedade, com o sentido que acabamos de examinar. É uma propriedade de cada ser humano, um atributo necessário, uma disposição ou maneira de ser dele, sem mediação de qualquer norma jurídica. Como propriedade, a personalidade é um bem. É um bem especialíssimo, porque está entre os primeiríssimos bens do homem: é um bem que diretamente lhe pertence. É o bem que lhe pertence antes que outros bens lhe pertençam. É a primeira propriedade do homem, após os bens da vida e da integridade corporal. É o bem que lhe pertence como primordial utilidade, porque é o que, primeiro, lhe serve para que a pessoa seja como ela é, e para que continue sendo como ela é. Pertence-lhe como primordial utilidade porque, também, é o que lhe serve de primeiro critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens. Estes outros bens já não são os primeiros, já não são bens constitutivos da personalidade. São bens que se acrescentam ao primeiro. 298
§ 135. Os DIREITOS DA PERSONALIDADE Como um bem do homem, a personalidade pode ser defendida contra quaisquer agressões. A coletividade, por meio de normas do Direito Positivo, autoriza o homem a defender sua personalidade, exatamente como o autoriza a defender seus demais bens. As autorizações dadas por meio das leis, a todas as pessoas, de defender os atributos e expressões de suas respectivas personalidades constituem a primeira classe dos Direitos Subjetivos, a classe dos chamados DIREITOS DA PERSONALIDADE. Note-se que a personalidade, considerada em si mesma, não é um direito. Não é um direito, porque a personalidade é qualidade natural — é sua qualidade necessária, inconsútil, indefectível, intransferível, irrenunciável. O fato de ter personalidade não depende das leis. Todo homem tem a sua personalidade, independente do que manda o Direito. Os DIREITOS DA PERSONALIDADE não são direitos de ter uma personalidade, mas, isto sim, Direitos Subjetivos de defender essa primordial propriedade humana. Por exemplo, são Direitos da Personalidade os Direitos de defender a identidade, a imagem, a honra, a inocência, a privacidade, a vocação, o talento, a cultura, a autoria, a fé. Advirta-se que, embora os Direitos da Personalidade sejam Direitos de defender, eles não são Direitos de defender Direitos, a que nos referimos no § 121. Não são direitos do segundo grau, direitos de defender permissões jurídicas. Esta observação requer atenção especial. Os Direitos da Personalidade não são direitos de defender direitos, porque os bens defendidos por eles não são direitos, não são permissões. O que os Direitos da Personalidade defendem é a maneira de ser da pessoa, suas qualidades imanentes. Reza a Constituição, em seu art. 5º: “X — são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”; “IV — é livre a manifestação do pensamento”; “VI — é inviolável a liberdade de consciência e de crença”; “VIII — ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”; “IX — é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”; “XI — a casa é asilo inviolável do indivíduo”; “XIII — é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”; “XXVII — aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas 299
obras”; “XXIX — a lei assegurará aos autores de inventos industriais proteção a suas criações, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos”; “XLII — a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”; “XLIX — é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Os atentados à personalidade sempre constituem crimes, adequadamente consignados no Código Penal (arts. 138 a 140; arts. 184 e 208). Não sendo direitos de defender direitos, os Direitos da Personalidade se situam entre os direitos comuns da vida: são simples Direitos Subjetivos do primeiro grau (veja § 121). § 136. O Direito de Autor: exemplo expressivo do Direito da Personalidade Caso expressivo de Direito da Personalidade é o Direito de Autor. Autor, obviamente, é a pessoa que produziu obra intelectual. Obra intelectual é o feito pelo qual uma pessoa exprime uma concepção de seu espírito. É, portanto, a expressão ou revelação de um pensamento. Em regra, o epíteto obra intelectual é usado para designar uma construção ou composição mental, devidamente concretizada num objeto cognoscível. “São obras intelectuais as criações do espírito, de qualquer modo exteriorizadas”, definia a antiga Lei federal n. 5.988, de 14-12-1973. Antonio Chaves disse: “Não basta, pois, estruturá-la mentalmente e até memorizá-la. É preciso dar-lhe um sustentáculo exterior, compreensível, mesmo transitório (...) (“Titular originário da obra: o autor”, no jornal O Estado de S. Paulo, em 13 de maio de 1979). Sendo expressão de um pensamento, a obra intelectual, assim exteriorizada, é manifestação própria de quem teve o pensamento, e o revelou. É obra própria do manifestante. E, por ser obra própria, ela é propriedade de seu autor. Mas este tipo de propriedade nada deve ao Direito. Ela é qualidade, uma certa maneira de ser, manifestada na obra produzida. É uma propriedade que não pode ser adquirida e alienada, não pode ser objeto de normas jurídicas. A obra intelectual é propriedade do autor como o bater de asas e o vôo são propriedades do pássaro. A obra intelectual é de tal maneira coisa própria de seu autor que, uma vez produzida, não tem o autor meio nenhum de se desvencilhar dela. 300
Não poderá dizer, sem mentir, que a obra não é sua. Nada é capaz de lhe retirar a autoria da obra, pois é obra que ele realmente produziu. A obra lhe pertence por natureza, assim como também lhe pertencem, por natureza, seus pensamentos e suas concepções. É parte essencial do ser que ele é, do ser que se chama autor. De fato, o autor não seria autor se sua obra não existisse. Sem obra, pode alguém ser autor? Mesmo depois de sua morte, parte da personalidade do autor perdura em sua obra. Numa Ode famosa, Horacio, manifestando-se sobre sua própria obra, disse: “Non omnis moriar, multaque pars mei Vitabit Libitinam” (Odes, Liv. III, ode XXX). Ou seja: “Não morrerei integralmente, grande parte de mim Evitará a Deusa da Morte”. Pois bem, o Direito de Autor é, antes de tudo, o Direito Subjetivo de defender, contra o plágio e a adulteração, o pensamento expresso em tais obras. O plágio e a adulteração são atentados contra o pensamento dos autores, e, portanto, contra a sua personalidade. O Direito de Autor é, antes de mais nada, o direito de defesa contra esses atentados. Como complemento desse direito, também se consideram Direitos de Autor, os Direitos Subjetivos do autor de exibir ou de ocultar sua obra, assim como os de alterá-la, aperfeiçoá-la ou destruí-la (embora não possa destruí-la por completo, porque ao menos a lembrança dela perdurará na memória dos que a conheceram). Todos esses direitos se incluem, obviamente, entre os Direitos da Personalidade. Muitos autores e muitas leis os chamam Direitos Morais. Sobre o aspecto básico do Direito de Autor, Planiol e Ripert disseram: “É um direito de caráter exclusivamente pessoal e não patrimonial, em virtude do qual o autor permanece dono de seu pensamento e de sua obra, que ele pode conservar para si próprio, modificar ou até suprimi-lo” (...). “E o que se admite é que o direito moral faz parte dos direitos da personalidade” (Tratado Prático do Direito Civil Francês, Paris, 1926, t. III, n. 575). Silvio Rodrigues, num parágrafo denominado “Direito moral do autor”, sustenta: “O direito moral do autor é a prerrogativa de caráter pes301
soal, em virtude da qual o seu titular pode ligar seu nome à sua obra e sobre a mesma atuar, quer modificando-a e aperfeiçoando-a a seu bel-prazer, quer impedindo sua publicação, quer afinal evitando que seja de qualquer modo modificada sem o seu consentimento”. “A obra literária, científica ou artística é emanação da personalidade de seu autor, de modo que o direito de alterá-la, de preservá-la ou de divulgá-la é um direito personalíssimo de quem a produziu, da mesma natureza que o direito sobre o nome, sobre o corpo ou sobre a vida” (Direito Civil, vol. V: Direito das Coisas, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 1978, Liv. II, Capítulo XV, n. 140 — o Professor Silvio cita, em nota, a mencionada lição de Planiol e Ripert). Os Direitos do Autor de defender esses direitos são os seguintes: I — o direito de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II — o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; III — o de conservá-la inédita; IV — o de assegurar-lhe a integridade, opondo-se a quaisquer modificações, ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la, ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;V — o de modificá-la, antes ou depois de utilizada; VI — o de retirá-la de circulação, ou de lhe suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização dela implicarem afronta à reputação e imagem do autor; VII — o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado. Importa notar que os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis (Lei n. 9.610, de 19-2-1998). Agora, cumpre observar que a obra intelectual é propriedade do autor duas vezes. Primeiramente, ela é propriedade porque é própria do autor, ou seja, é uma expressão da própria personalidade de quem a produziu, como acabamos de explicar. Mas ela é também propriedade num segundo sentido. Ela é uma propriedade do autor, com o sentido de coisa ou bem, incorporado a seu patrimônio material. Ela é propriedade do autor como objeto negociável, que lhe pertence. Exemplos: um livro, um quadro, uma estátua, uma partitura musical. Neste segundo sentido, o termo propriedade é tomado em sentido jurídico. Aqui, propriedade não é qualidade, mas coisa: é um bem material, pertencente ao autor, e que o autor pode utilizar, fruir e dele dispor. 302
Conseqüentemente, o Direito de Autor adquire maior amplitude. Além de ser um Direito da Personalidade, o Direito de Autor passou a ser, também, um Direito Subjetivo sobre coisas, um Direito Real, que o Código Civil de 1916 incluiu na classe do chamado Direito das Coisas (confira Código Civil, Parte Especial, Livro II, “Do Direito das Coisas”, Título II, Capítulo VI). Atualmente, o Direito de Autor é disciplinado pela Lei n. 9.610/ 98, que classifica os direitos de autor em duas categorias: direitos morais de autor e direitos patrimoniais de autor; em relação a estes últimos, o autor pode dispor a título oneroso ou gratuito. Reza a Constituição: “Art. 5º, XXVII — aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”; “XXIX — a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. Devemos ainda esclarecer que a expressão Direito de Autor designa, também, o conjunto das próprias leis de que dependem as duas mencionadas classes de Direitos Subjetivos. Logo, o Direito de Autor é Direito Subjetivo, enquanto Direito da Personalidade; é Direito Real, enquanto Direito das Coisas; e é Direito Objetivo, enquanto conjunto de leis.
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CAPÍTULO XXIX
OS DIREITOS REAIS
§ 137. Os bens materiais A terceira classe dos Direitos Subjetivos é a dos DIREITOS REAIS (veja § 130). Os DIREITOS REAIS são os Direitos Subjetivos de ter coisas. É o direito de ter bens materiais. Duas ordens de considerações devemos fazer sobre essa definição: a primeira, relativa à expressão material, e a segunda, relativa ao direito de ter. Agora, limitar-nos-emos à primeira ordem de considerações. O adjetivo material está sendo aqui empregado, deliberadamente, com seu sentido autêntico. Como é óbvio, o adjetivo material designa a qualidade do que tem a natureza da matéria. Ora, a matéria, sabem os filósofos, é aquilo que é apto a receber uma forma, e a se tornar uma coisa. Ou, em outras palavras, matéria é aquilo de que as coisas são feitas: “Id in quo existit et ex quo aliquid fit”. Mas, a forma, que é? A Filosofia ensina que a forma é o que determina a matéria, ou seja, é aquilo pelo que a matéria se torna uma determinada coisa: “id quo ens est id quod est”. Toda forma é uma qualidade, um atributo, um modo de ser da matéria. Por exemplo, o ouro é matéria que pode tomar formas diversas e, conseqüentemente, tornar-se coisas determinadas: moeda, jóia, estatueta, etc. Coisa é uma certa matéria com sua forma. É matéria enformada. Todas as coisas existentes são feitas de matéria e forma. 305
Não desejamos nos alongar nestas considerações, que pertencem à Metafísica, e que podem nos distanciar de nosso assunto específico. Mas julgamos necessário esclarecer, em atenção à curiosidade de espíritos exigentes, que todas as matérias têm uma primeira forma, em virtude da qual cada matéria é a matéria que ela é: a forma pela qual o ouro é ouro, o ferro é ferro, a madeira é madeira, etc. Esta primeira forma se chama forma substancial, porque é a forma em virtude da qual cada matéria é uma determinada substância. É evidente, pois, que cada matéria, como simples substância, já é matéria enformada e, portanto, já é coisa. O ouro, o ferro, a madeira, etc. são coisas. Pois bem, cada substância enformada, por sua vez, é matéria apta a receber as mais diversas formas. O ouro pode receber a forma de moeda, de jóia, da estatueta. O ferro pode receber a forma de ponte, de roda, de martelo. A madeira pode receber a forma de barco, de mesa, de poste. Estas formas em nada modificam o ouro como ouro, o ferro como ferro, a madeira como madeira, mas fazem, de tais substâncias, coisas acabadas, coisas individualizadas. Estas segundas formas se chamam formas acidentais. Por outro lado, imaterial é o ser que, não sendo matéria, não é coisa. O ser que não é coisa — o ser que não é matéria — é somente forma, ou seja, é qualidade, atributo, modo de ser. Por exemplo, a moeda de ouro sem o ouro não é matéria, não é uma coisa: não passa de uma pura forma, um ser imaterial, uma simples qualidade — à espera de uma substância, para se tornar moeda, ou jóia, ou estatueta. Exemplo típico de ser imaterial é a personalidade, a que nos referimos no § 134, e que consiste, como vimos, na maneira de ser de um indivíduo. A personalidade é uma qualidade, uma forma acidental da substância humana. Imediatamente, uma diferença filosófica se evidencia entre os Direitos da Personalidade e os Direitos Reais. Os Direitos da Personalidade são direitos sobre puras formas. Os Direitos Reais são direitos sobre coisas. Os Direitos da Personalidade são direitos sobre qualidades do ser humano. Os Direitos Reais são direitos sobre bens materiais do ser humano. Observemos imediatamente (para evitar mal-entendidos) que as coisas, a que se referem os Direitos Reais, podem ser corpóreas ou incorpóreas. As coisas corpóreas, ou corpos, são as coisas aptas a ser percebidas pelos órgãos dos sentidos: “sunt quae sui natura tangi possunt”, disseram Gaio e Paulo (Gaio, Institutas, II, §§ 12 a 14; Paulo, Institutas de Justiniano, 306
1, 2, pr. e §§ 1 e 2; D. 35, 2 fr. 1, § 7). Exemplos: uma casa, um anel, um utensílio doméstico, um livro, um objeto de arte. As coisas incorpóreas são as coisas destituídas da referida aptidão: não são perceptíveis pelos órgãos sensórios. Não são corpos. Mas são coisas: são coisas porque são matérias, aptas a receber formas diversas. São matérias com suas formas, e não apenas formas, destituídas de qualquer matéria. Não são apenas qualidades ou modos de ser. Veremos, adiante, em que consistem. As coisas corpóreas se dividem em bens imóveis e bens móveis. São imóveis, ou bens de raiz, as coisas que se não podem transportar, sem destruição, de um lugar para outro. São móveis, as que possuem movimento próprio (semoventes) e as que podem ser transportadas de um lugar para outro, sem destruição (veja Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, Liv. II, § 31). Dispõe o Código Civil, em seu art. 79: “São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”. Tais bens são coisas corpóreas, evidentemente. Resta verificar, agora, em que consistem, para o Direito, as coisas incorpóreas. As coisas incorpóreas, aos olhos dos Direitos Reais, são sempre direitos: são certos Direitos Subjetivos, mas direitos tomados como bens materiais, como se fossem as próprias coisas corpóreas a que esses Direitos Subjetivos se referem. Sabemos perfeitamente que os Direitos Subjetivos são simples permissões (reveja § 111). São, pois, por essência, coisas incorpóreas. Mas, para efeitos legais, alguns Direitos Subjetivos são considerados como bens imóveis, e outros, como bens móveis. Logo, tais direitos são tidos como coisas corpóreas. Assim, por exemplo, o Código Civil declara, em seu art. 80, I, que se consideram imóveis, para os efeitos legais, os Direitos Reais sobre imóveis e as ações que os asseguram. De acordo com esse artigo, combinado com o art. 1.228, são bens imóveis não somente as coisas corpóreas imóveis, a que esses direitos se referem, mas, também, os Direitos Subjetivos sobre essas coisas. São considerados imóveis, por exemplo, os Direitos Subjetivos do proprietário de usar, gozar e dispor de seus bens, assim como seu Direito Subjetivo de ação para reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua. 307
Ainda de acordo com o mesmo art. 80, combinado com o art. 1.210, são também exemplos de bens qualificados de imóveis, para os efeitos legais, os Direitos Reais do mero possuidor de imóvel, isto é, os direitos de ser mantido na posse, em caso de turbação, restituído no de esbulho e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. Modernamente, para os efeitos legais, novos Direitos Subjetivos passaram a ser considerados bens imóveis, como, por exemplo, os Direitos Reais sobre o “fundo de empresa” e sobre a “clientela”. Outros Direitos Subjetivos, porém, são tidos como bens móveis. Assim, o art. 83 do Código Civil declara que se consideram móveis, para os efeitos legais: I — as energias que tenham valor econômico; II — os Direitos Reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III — os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. § 138. O direito de ter Passemos, agora, à segunda ordem de considerações sobre a definição dos Direitos Reais. Vamos nos ocupar com o direito de ter, a que nos referimos no princípio do § anterior. Uma compreensão científica mais rigorosa desta matéria requer ponderação preliminar de seus fundamentos filosóficos. Mas, a fim de não nos distanciar de nosso objetivo, restringir-nos-emos ao que é principal, nesta incursão pela Metafísica. Na substância do ser humano, ter é um acidente, ou seja, um acrescentamento, algo que não é a própria substância humana, mas que a complementa. Os acidentes, relacionados às substâncias, podem ser intrínsecos ou extrínsecos, e os extrínsecos podem ser acidentes parcialmente extrínsecos ou acidentes inteiramente extrínsecos. Não nos deteremos neste assunto. Limitar-nos-emos a dizer que o ter pertence à categoria dos acidentes inteiramente extrínsecos. Esta categoria compreende os acidentes relativos ao fato do sujeito possuir alguma coisa distinta de si próprio, como, por exemplo, os acidentes de ser proprietário, de estar com um agasalho, de se achar armado. Os Direitos Reais, sendo Direitos Subjetivos de ter coisas, são direitos cujos objetos se incluem, como se vê, na categoria dos acidentes inteiramente extrínsecos. 308
Esta simples observação patenteia a diferença essencial existente entre os Direitos da Personalidade e os Direitos Reais. Os Direitos Reais são Direitos de ter. Os Direitos da Personalidade são direitos de ser. Tanto os Direitos Reais como os Direitos da Personalidade se referem a propriedades. Mas as propriedades a que se refere o Direito Real não são aquelas propriedades primeiras, que consistem simplesmente no que é próprio das pessoas, no modo próprio de ser, pelo qual uma personalidade se caracteriza, e que independem, por completo, das disposições do Direito. De certa maneira, as propriedades a que se refere o Direito Real também são próprias das pessoas, também são o próprio, mas são o próprio que se acrescenta à propriedade primeira, com fundamento em alguma razão de Direito (em alguma norma jurídica). Constituem, por assim dizer, uma extensão daquele primeiro próprio — uma extensão sobre bens que não são qualidades da personalidade, mas que se tornam bens das pessoas, por força da lei. Ahrens dizia que essas propriedades eram como que a projeção da personalidade no domínio das coisas (Curso de Direito Natural, p. 303). Em suma, as propriedades a que se refere o Direito da Personalidade são qualidades próprias da pessoa, enquanto as propriedades a que se refere o Direito Real são coisas distintas da pessoa que as possui. De três maneiras pode uma pessoa ter bens materiais ou coisas. A primeira é a de tê-los como seus. A segunda é a de tê-los como quase seus. E a terceira é a de tê-los como garantia do pagamento de crédito seu. Cumpre examinar, embora sumariamente, estas três maneiras de ter coisas. É o que faremos nos Capítulos seguintes.
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CAPÍTULO XXX
A PROPRIEDADE
§ 139. Noção de PROPRIEDADE e de DIREITO DE PROPRIEDADE A primeira maneira de ter um bem material é a de tê-lo como seu (veja § 138, in fine). Ter um bem material (uma coisa) como seu é tê-lo como sua propriedade. A propriedade, considerada em si mesma, não é um Direito, um Direito Subjetivo, uma permissão. Não é o Direito de Propriedade. A propriedade assim considerada é uma coisa. É um bem material, corpóreo ou incorpóreo (veja § 137), que pertence a alguém. É um objeto de um direito de alguém ou de alguma entidade coletiva, ou de uma fundação. O Direito relativo à propriedade não é a propriedade. Não é uma coisa, um bem material. É, isto sim, uma permissão jurídica — permissão ou poder de ter a coisa, e de tê-la como sua. É o Direito Subjetivo de ser dono da coisa, de ser proprietário dela, por força de uma razão jurídica. O Direito Subjetivo de ser proprietário não se chama propriedade; chama-se Direito de Propriedade. Na linguagem corrente, é comum o emprego do termo propriedade com o sentido do termo Direito de Propriedade. Mas é nítida a diferença entre os verdadeiros sentidos desses dois termos. Uma casa comprada, uma jóia recebida em doação, um dinheiro ganho ou herdado, um bem legado em testamento, um terreno adquirido são exemplos de propriedades. 311
O Direito de Propriedade tem natureza diferente. De modo geral, o Direito de Propriedade consiste no Direito Subjetivo do proprietário de usar e fruir suas coisas, respeitados os termos da lei; de transformá-las e, mesmo, desnaturá-las, até o limite que a lei o permita; de impedir que outros delas se sirvam, sem seu consentimento; de defendê-las contra danificações de terceiros; de pleitear e obter a satisfação dos danos que se lhes causarem; de reavê-las de quem quer que ilegalmente as possua; e, finalmente, de delas dispor. Vê-se que o Direito de Propriedade não se reduz a um só Direito Subjetivo, mas constitui um “feixe de direitos”, como diz Orlando Gomes (Direitos Reais, n. 75). Sendo Direito Subjetivo, o Direito de Propriedade é uma permissão jurídica, ou seja, uma autorização concedida por meio de norma jurídica. Em verdade, não há Direito de Propriedade que não se funde na lei. “O fundamento do direito de propriedade se encontra na vontade do legislador”; “O direito de propriedade se funda na lei que o consagra”, diz Silvio Rodrigues (Direito Civil, n. 43 e 45). Conseqüentemente, a compreensão e a extensão do Direito de Propriedade dependem, imediatamente, da legislação de cada País e, mediatamente, das razões que inspiram cada legislação. Devemos assinalar que o Direito de Propriedade pode ter por objeto coisas incorpóreas. Mas, para o exato entendimento desta questão, cumpre relembrar que os objetos dos Direitos Reais são sempre coisas, e que as coisas são materiais por definição. Embora sempre materiais, as coisas podem ser corpóreas ou incorpóreas. Não se deve confundir coisas incorpóreas com coisas ou bens imateriais (veja § 137). Bens imateriais não são coisas, e não podem ser objeto de Direitos Reais. Mas bens incorpóreos — coisas materiais incorpóreas — são, certamente, objetos do Direito Real de Propriedade. São objetos de Direito de Propriedade, por exemplo, os direitos à sucessão aberta; os créditos hipotecários, pignoratícios e anticréticos; direitos e créditos que a lei equipara a bens imóveis, e dos quais vamos tratar em outro Capítulo. Ora, esses bens são coisas incorpóreas, obviamente. As coisas incorpóreas que podem ser objeto do Direito de Propriedade são sempre direitos. São Direitos Subjetivos que, para efeitos legais, passam a ser considerados como objetos, como se fossem coisas corpóreas. 312
O Direito de Propriedade sobre coisas incorpóreas é um direito sobre direitos. Um crédito, por exemplo, é um direito: é o direito a um pagamento. É um direito incluído na classe dos Direitos Pessoais, como se vai ver no Capítulo XXXIII. Ora, esse direito pode ser considerado como coisa, como objeto, como propriedade do credor. Uma pessoa pode adquirir um crédito, pode conservá-lo até a liquidação dele, pode aliená-lo, pode dá-lo em pagamento, doá-lo, legá-lo, vendê-lo, gravá-lo. O credor tem Direito de Propriedade sobre o crédito, e este Direito de Propriedade é um direito sobre um direito. É Direito de Propriedade sobre um Direito Pessoal. É, portanto, Direito de Propriedade sobre coisa incorpórea. Igualmente, são direitos sobre direitos — Direitos de Propriedade sobre coisas incorpóreas — por exemplo, os direitos ao fundo de comércio, à clientela, ao nome comercial, às marcas de fábrica e de comércio, às patentes de invenção. Advirta-se que o regime jurídico do Direito de Propriedade sobre coisas incorpóreas não é o do Direito de Propriedade sobre coisas corpóreas. A diferença da natureza dos objetos impõe, como é natural, diferenças entre as regulamentações legais dos dois direitos. A diferença entre esses regimes é análoga à diferença existente entre os regimes a que se submetem as coisas móveis e as coisas imóveis. Mas, o que cumpre salientar é que tais diferenças não impedem que coisas incorpóreas sejam propriedades. Elas se tornam propriedades no momento em que são legalmente adquiridas. E nesse exato momento, tornam-se objetos do Direito de Propriedade. O Direito de Propriedade é o gênero de duas espécies de direitos: do Direito de Propriedade sobre coisas corpóreas e do Direito de Propriedade sobre coisas incorpóreas. O Direito de Propriedade sobre coisas corpóreas se chama domínio. § 140. Direito de Propriedade sobre os frutos e produtos da propriedade O Direito de Propriedade se estende aos frutos e produtos da propriedade, ainda quando sejam separados dela, salvo se forem propriedade de outrem, por preceito jurídico especial (Código Civil, art. 1.232). Os frutos e os produtos são duas coisas diferentes. Frutos são as coisas que uma propriedade produz e que dela podem ser separados sem diminuição da propriedade. 313
Uma propriedade pode produzir frutos naturais, industriais ou civis. Os frutos naturais são os que a natureza produz dentro da propriedade, com ou sem intervenção do trabalho humano. Por exemplo, são frutos naturais: as frutas das árvores, as próprias árvores (quando plantadas para corte), as resinas vegetais, os grãos de café, de milho, de soja, etc., a canade-açúcar, a lã, o leite, as crias dos animais. Os frutos industriais são os que o homem produz em sua propriedade, com emprego de meios mecânicos ou químicos. Por exemplo, são frutos industriais: o fubá, a farinha de mandioca, a farinha de trigo, o pó de café, o açúcar, o álcool, o vinho, o tijolo, o tecido de pano, o sapato, o aço, o automóvel, a água oxigenada, a penicilina. Os frutos civis são os que a propriedade rende ao proprietário, em troca do aproveitamento dela por outrem. Por exemplo, são frutos civis: os alugueres, os foros, os juros, as rendas. Quando já prontos, mas ainda unidos à coisa que os produziu, os frutos se chamam pendentes. Depois de separados dela, são frutos percebidos ou colhidos, ou frutos desperdiçados ou perdidos. Quando estão armazenados ou acondicionados para utilização futura, denominam-se frutos estantes. Enquanto esperados, já em condições de ser percebidos, chamam-se percipiendos. E os percebidos, os que não mais existem, são frutos consumidos (veja-se Clóvis Beviláqua, Direito das Coisas, § 27, I). Não são frutos, as coisas que existem na propriedade e cuja retirada implica diminuição dela. Tais coisas são partes da propriedade, não frutos. A doutrina tradicional e o Código Civil as denominam produtos (art. 528 do Código Civil de 1916; Lafayette, Direito das Coisas, §§ 26 e 99; Clóvis Beviláqua, Código Civil Comentado, observações ao art. 60; art. 1.232 do Código Civil de 2002). Portanto, não são frutos, por exemplo, a madeira das árvores não plantadas para corte, as pedras das pedreiras, o barro de olaria e cerâmica, as pedras e os metais preciosos das minas, o carvão-de-pedra e demais combustíveis nas jazidas da natureza. Tais coisas, quando retiradas da propriedade, são produtos delas, mas não devem ser tidas como frutos, porque a retirada das mesmas diminui quantitativamente a propriedade e, às vezes, a danifica. Tanto os frutos como os produtos pertencem ao dono da propriedade que os originou. Mas a distinção entre uns e outros é importante para certos fins de direito e, principalmente, para a conceituação do usufruto (veja o Código Civil, arts. 1.390 e seguintes). 314
§ 141. Importância dos modos de aquisição da propriedade Uma propriedade é sempre a propriedade de alguém. Toda propriedade tem dono, ou seja, pertence a um proprietário. A coisa sem proprietário não é propriedade. É coisa de ninguém: res nullius. Uma coisa se torna propriedade quando alguém se torna dono dela, por um dos modos instituídos pela lei para a aquisição das coisas. Torna-se propriedade quando ela se torna coisa de alguém: res alicujus. A promoção de uma coisa à categoria de propriedade depende, em verdade, do modo pelo qual ela é adquirida. Se a coisa foi adquirida por um dos modos previstos pelo Código Civil, para a aquisição da propriedade, ela se torna objeto do Direito Subjetivo de ter: objeto do Direito de Propriedade, coisa pertencente a alguém. E alguém se torna seu proprietário.
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CAPÍTULO XXXI
A QUASE-PROPRIEDADE
§ 142. Noção da QUASE-PROPRIEDADE A segunda maneira de ter um bem material é de tê-lo como quase seu. Ter bens materiais (coisas) como quase seus não é tê-los como propriedades suas. É tê-los como coisas pertencentes a outrem: é tê-los como coisas alheias, mas com os direitos de usá-las e fruí-las. Os direitos sobre tais coisas se chamam DIREITOS REAIS SOBRE COISAS ALHEIAS. Sobre coisas alheias, uma pessoa tem Direito Real quando tem permissão jurídica para usá-las e fruí-las, como se fossem suas, em determinadas circunstâncias, ou sob condição, de acordo com a lei e, em muitos casos, de acordo com o estabelecido em contrato válido. Tais coisas, assim usadas e fruídas são as que aqui cognominamos de quase-propriedades. Exemplo de Direito Real sobre coisa alheia: o Direito do possuidor de uma coisa da qual ele não é proprietário, quando a posse dessa coisa é mansa, manifesta e permanente. Sobre tal posse, dispõe o Código Civil. “Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina, ou precária.” Observe-se que “considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas” (Código Civil, art. 1.198). O art. 1.210 estabelece: “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho e segurado de violência iminente, se tiver justo receio 317
de ser molestado”. E o art. 1.210, parágrafo único: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. Outro exemplo de Direito Real sobre coisa alheia: o Direito do enfiteuta. A enfiteuse era uma espécie de direito real prevista no Código Civil de 1916; tal instituto foi extinto pelo Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). Sobre este Direito Subjetivo, estabelecia o Código Civil de 1916: “Art. 678. Dá-se a enfiteuse, aforamento, ou aprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui a outrem o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto, uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável”. “Art. 679. O contrato de enfiteuse é perpétuo. A enfiteuse por tempo limitado considera-se arrendamento, e como tal se rege.” Mais um exemplo de Direito Real sobre coisa alheia: o Direito de locatário. Este Direito Subjetivo consiste no de usar e fruir coisa alheia, não fungível, por tempo determinado, mediante certa retribuição (Código Civil, art. 565). Um último exemplo de Direito Real sobre coisa alheia: o Direito de usufrutuário. Este Direito Subjetivo consiste, em resumo, na permissão jurídica de usar um bem e fruir suas utilidades e frutos, concedida a quem não é proprietário dele. Sobre tal Direito, reza o Código Civil: “Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos”. “Art. 1.395. Quando o usufruto recai em títulos de crédito, o usufrutuário tem direito a perceber os frutos e a cobrar as respectivas dívidas”.
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CAPÍTULO XXXII
OS BENS ALHEIOS TIDOS EM GARANTIA
§ 143. Bens alheios dados em garantia do pagamento de dívida A terceira maneira de ter um bem material é tê-lo como garantia do pagamento de crédito seu. Ter bens materiais (coisas) como garantia do pagamento de crédito seu não é tê-los como sua propriedade, nem como sua quase-propriedade. É tê-los como coisas alheias, de propriedade do devedor, e por ele oferecidas, para assegurar o pagamento de dívida. É tê-los como garantia do cumprimento de obrigação de outrem. Essa garantia consiste no direito do credor de obter certa soma de dinheiro, mediante alienação da coisa dada em garantia, no caso de não-pagamento do crédito (de não-cumprimento da obrigação). Isto significa que, não havendo tal pagamento, pode o credor promover a excussão da garantia, e pagar-se com o que render o praceamento da coisa. A excussão consiste, em resumo, na venda da coisa pela via judicial, em pregão público (leilão em praça: praceamento). Se o produto da venda exceder a importância do crédito, o saldo líquido deve ser entregue ao devedor. Entende-se por saldo líquido, a importância excedente, menos os juros contratuais e moratórios, as despesas justificadas, e a indenização por eventuais prejuízos. 319
Quando, excutida a garantia, o produto da venda não bastar para pagamento de toda a dívida, dos juros, das despesas e da indenização, continuará o devedor obrigado pessoalmente pelo saldo irresgatado (Código Civil, art. 1.430). Observe-se que, a título de pagamento de seu crédito, não é permitido ao credor ficar com a coisa dada em garantia. É nula a cláusula do contrato que autorize tal procedimento. Essa cláusula institui o chamado pacto comissório. Ora, em toda a legislação dos países ocidentais, inclusive na brasileira, de acordo com velhos preceitos do Direito Romano e do Direito Canônico, tal pacto continua sendo expressamente proibido. Quando consta do instrumento constitutivo da garantia, o pacto comissório não tem nenhuma validade, nenhuma eficácia (Código Civil, art. 1.428). O motivo da proibição reside na intenção do legislador de impedir que o credor se aproveite da situação de inferioridade do devedor necessitado e insolvente, e lhe arrebate um bem de valor superior ao crédito. É uma proibição que visa impedir a exploração do mais fraco pelo mais forte. Silvio Rodrigues disse: “Com efeito, no mútuo, em geral, é o credor quem dita a lei do contrato, nada restando ao devedor, senão concordar com as condições que lhe são impostas. De modo que, não fosse a proibição legal, e o pacto comissório se tornaria cláusula de estilo, posto que o credor exigiria, sempre, do devedor, a declaração de que abriria mão da coisa dada em garantia, em caso de não cumprir o contrato. Com o intuito, portanto, de proteger o devedor, parte mais fraca no contrato, é que o legislador proíbe a convenção de perda do objeto da garantia, em caso de inadimplemento. Sabe este que na hora da necessidade o homem tende a depreciar o porvir e promete sacrifícios futuros desproporcionados em face de limitadas vantagens presentes, que visa obter”. “E a injustiça de tal solução é que se procura evitar” (Direito Civil, vol. V, Direito das Coisas, Liv. III, Capítulo VII, n. 193). É óbvio que o direito de excutir não exclui a possibilidade da venda amigável da coisa, a terceiros, com o fim de produzir o dinheiro necessário para o pagamento da dívida. Mas esta venda não pode ser um artifício, com o conluio de falsos terceiros, para que o credor se aproprie, fraudulentamente, da coisa do devedor, oferecida em garantia. Diz Washington de Barros Monteiro: “A nulidade (do pacto comissório) subsiste ainda que se massacre a cláusula debaixo da aparência de compra e venda com pacto de resgate, ou simulando-se compromisso de compra e venda em garantia do empréstimo em dinheiro” 320
(Curso de Direito Civil; Direito das Coisas, dos Direitos Reais de Garantia, p. 357, da 18ª ed.). Mas o que é permitido é a dação em pagamento do objeto da garantia. Pode o devedor, por sua livre vontade, após o vencimento da obrigação, dar a coisa ao credor, em pagamento da dívida. Se o credor a aceitar, ficará o devedor liberado da obrigação (datio in solutum). Como se vê, a garantia do cumprimento de obrigação é uma garantia real. Ela se funda em coisas, precisamente nas coisas tidas para assegurar o pagamento de dívida. Essa garantia se distingue, claramente, da garantia pessoal, que é a que se resume no aval, ou seja, no ato pelo qual pessoa estranha ao negócio se responsabiliza pelo pagamento da dívida, no caso de não-cumprimento da obrigação do devedor. Por meio de três institutos diferentes, institui-se a garantia real: pelo penhor, pela hipoteca e pela anticrese. O estudo de tais institutos não cabe a esta “INICIAÇÃO”.
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CAPÍTULO XXXIII
OS DIREITOS PESSOAIS
§ 144. Noção de DIREITO PESSOAL A quarta classe dos Direitos Subjetivos é a dos DIREITOS PESSOAIS (veja § 130). Os DIREITOS PESSOAIS são os Direitos Subjetivos de exigir o adimplemento do contratado, ou o cumprimento do dever legal não constante de contrato, ou a sujeição dos infratores da lei à sanção competente. Tais Direitos não se referem a coisas, mas a atos de pessoas, e este é o motivo pelo qual se chamam Direitos Pessoais. Os Direitos Pessoais compreendem duas espécies de Direitos Subjetivos: os Direitos de Credor e os Direitos de Proteção. Os Direitos de Credor são os Direitos Subjetivos de exigir ato — prestação ou abstenção — de outrem. São exemplos destes direitos, os direitos de exigir o pagamento do devido e de exigir a quitação do pago; de exigir, nos casos da lei, reparação do prédio vizinho; de exigir passagem, alimentos, repouso semanal remunerado, silêncio. Os Direitos de Proteção são os Direitos Subjetivos de defender o uso de Direitos Subjetivos. Estes Direitos de Proteção compreendem três espécies de Direitos Subjetivos: os Direitos de defesa contra os atos ilícitos; os Direitos Cautelares, e o Direito de Resposta. Os Direitos de defesa contra os atos ilícitos compreendem três espécies de Direitos Subjetivos: o Direito de Ação, o Direito de Petição e o Direito de Fazer Justiça com as próprias mãos. 323
Estes Direitos requerem tratamento destacado. § 145. O DIREITO DE AÇÃO A primeira espécie dos Direitos de Proteção é a dos Direitos de Defesa contra os atos ilícitos, que se chamam DIREITOS DE AÇÃO. O Código Civil de 1916 assegurava: “Art. 75. A todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. O Direito de Ação é o direito de pedir ao Poder Judiciário que se manifeste sobre a existência do Direito Subjetivo do solicitante, em dado caso, e que providencie, quando tal direito é reconhecido, para que o mesmo se torne eficaz. É “o direito de demandar, perante os tribunais, o que nos pertence ou nos é devido” (Paula Baptista, Compêndio de Teoria e Prática do Processo Civil Comparado com o Comercial, § 3º; Celso, Digesto, Liv. XLIV, Tít. 7, lei 51; Justiniano, Institutas, Liv. IV, Tít. 6 pr.). Não mais se admitindo, a não ser por exceção (como, por exemplo, no caso de “legítima defesa”), que as pessoas façam “justiça com as próprias mãos”, ao Governo do Estado compete declarar, quando isto lhe é pedido, o direito de cada interessado, em casos concretos. A função do Estado (do Poder Judiciário) de declarar o direito se chama função jurisdicional do Estado. O Direito de Ação, pois, é o direito de provocar, sobre casos concretos, a prestação jurisdicional do Estado (Gabriel de Rezende Filho, Curso de Direito Processual Civil, n. 166; Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, n. 117). Esse direito pertence a todos. “Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei” (Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas, ONU). A lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão de direito ou ameaça ao direito (Constituição, art. 5º, XXXV). O Direito de Ação, em suma, é o direito de mover ação judicial. Ação judicial — ou, simplesmente, ação — é o complexo de atos, regulados por lei, para obter a manifestação do Poder Judiciário sobre a existência de Direito Subjetivo, em dado caso, e a execução dos atos oficiais, prescritos na lei, para a eficácia desse direito. 324
“É o remédio de direito para pedir ao juiz que obrigue outrem a dar ou fazer aquilo de que tem obrigação perfeita” (Correia Telles, Doutrina das Ações). Obrigação perfeita é a obrigação jurídica, ou seja, a obrigação fundada em norma jurídica, como, por exemplo, a obrigação de pagar o que é devido, e a obrigação de respeitar a propriedade alheia. Note-se que a ação judicial nem sempre tem por objetivo pedir ao juiz que obrigue outrem a dar ou a fazer. Pode uma ação ter por fim o simples reconhecimento, por parte do Poder Judiciário, de um Direito Subjetivo, para a certeza e segurança desse mesmo direito, em qualquer eventualidade do presente e do futuro. Na validação e proteção do Direito Subjetivo, uma ação pode ser movida para os mais diversos fins. Por exemplo, pode a ação ser movida para cobrar importância devida; para cobrar indenização por perdas e danos; para alguém ser mantido na posse, em caso de turbação, e restituído, no de esbulho (Código Civil, arts. 1.210 e 1.212); para alguém ser assegurado na posse, em caso de molestamento iminente (Código Civil, art. 1.210); para fazer consignação em pagamento (Código Civil, arts. 334 a 345); para impedir que prédio, de que se é proprietário ou possuidor, seja prejudicado em sua natureza, substância, servidões ou fins, por obra nova em prédio vizinho (Código Civil, art. 1.301); para obrigar órgão de divulgação (órgão de “imprensa escrita ou falada”) a publicar resposta a imputação feita por meio do mesmo órgão (Lei de Imprensa: Lei n. 5.250, de 9-2-1967); para obter habeas corpus a fim de fazer cessar violência, coação ou ameaça, contra liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso do poder (Constituição, art. 5º, LXVIII); para obter mandado de segurança, a fim de proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus (Constituição, art. 5º, LXIX); para anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural do País (Constituição, art. 5º, LXXIII). § 146. O DIREITO DE PETIÇÃO Outro Direito Subjetivo de Defesa contra os atos ilícitos é o DIREITO DE PETIÇÃO. O Direito de Petição é o direito de requerer, aos Poderes Administrativos do Estado, providências oficiais, para assegurar direito ou fazer cessar ilegalidade e abuso de autoridade (Constituição, art. 5º, XXXIV, a). 325
O uso deste direito ocasiona a formação de processos regulares, não judiciais, chamados processos administrativos, que se instauram, desenrolam e decidem nas próprias repartições públicas da administração do Estado. Para certas matérias, o Estado possui órgãos especiais para a decisão final destes processos. § 147. O Direito de “FAZER JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS” O aparelho social, protetor dos direitos, por mais aperfeiçoado que seja, “não poderá atender a todas as ameaças de violação”, sendo forçoso dar ao indivíduo a permissão “de defender a sua pessoa e os seus bens jurídicos, em casos individuais, como outrora ele os defendia, a todo momento, antes que a organização jurídica se consolidasse” (Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, 2º vol., Título II, Capítulo XII, n. 204, citando texto de Clóvis Beviláqua). Essa permissão é o Direito de Fazer Justiça Com as Próprias Mãos, que constitui, também, um direito de defesa contra os atos ilícitos. Tal direito existe, sem dúvida, mas somente por exceção, nos estrictos casos da lei. Pois, considera-se crime contra a administração da justiça “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite” (Código Penal, art. 345). São exemplos do Direito de Fazer Justiça Com as Próprias Mãos: 1) O Direito de não cumprir a obrigação, assumida em contrato bilateral, quando a outra parte não cumpre a sua (Código Civil, art. 476). 2) O Direito de retenção: a) do pagamento, enquanto a quitação regular não for dada ao devedor que paga (Código Civil, art. 319); b) da coisa vendida à vista, enquanto o vendedor não receber o preço (arts. 491 e 495); c) da coisa alugada, enquanto o locador não efetuar o pagamento das benfeitorias que o locatário tiver feito, tanto das necessárias como, quando expressamente consentidas pelo locador, das úteis (art. 578); d) das benfeitorias necessárias e úteis, que o possuidor de boa-fé tiver feito, até que ele seja indenizado pelo valor delas (art. 1.219); e) da coisa gerida, enquanto o gestor não for reembolsado das despesas necessárias ou úteis, por ele feitas (art. 869); f) do objeto do mandamento, até que o mandatário seja reembolsado do que despendeu, no desempenho do encargo (art. 681); g) da coisa depositada, até que as despesas, feitas com ela, e os prejuízos, que do depósito provieram, sejam pagos ao depositário (art. 644); h) da 326
coisa dada em garantia por anticrese, enquanto a dívida não for paga (art. 1.423); i) da coisa dada em penhor, até que o credor seja indenizado das despesas que não tenham sido ocasionadas por culpa sua, mas que foram pagas por ele (art. 1.433, II). 3) O Direito de apropriação das arras, quando quem as deu não executar o contrato (Código Civil, art. 418). De modo geral, o direito de resistir contra o que é ilegal é Direito Subjetivo de todos. A resistência à ilegalidade, em casos extremos, pode consistir no emprego da força. Assim, “o possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se, ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse” (Código Civil, art. 1.210, § 1º). Em três casos extremos, atos ilícitos, mesmo crimes, praticados na defesa de Direitos Subjetivos, deixam de ser ilícitos, e podem ser legalmente praticados. Com efeito, não há crime, nem ato ilícito de qualquer espécie, quando o agente pratica o fato: 1) em estado de necessidade; 2) em legítima defesa; 3) em estricto cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito (Código Penal, art. 23; Código Civil, art. 188). Considera-se em “estado de necessidade” quem se encontra na contingência de ter que praticar ato ilícito, para salvar de perigo atual direito próprio ou alheio, cujo sacrifício não é razoável exigir-se (Código Penal, art. 24). O ato praticado em tal circunstância deixa de ser ilícito. O agente tem Direito Subjetivo de praticá-lo. Está no exercício desse direito, por exemplo, aquele que se apropria de coisa alheia ou a danifica, a fim de salvar sua vida ou a vida de outrem. “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (Código Penal, art. 25). O ato ilícito praticado em legítima defesa deixa de ser ilícito. Logo — repetimos —, o agente tem o Direito Subjetivo de praticá-lo. Por exemplo, está no exercício do direito de legítima defesa, aquele que repele, incontinenti, com as próprias mãos, uma injusta agressão a sua vida ou a sua propriedade. Finalmente, constitui Direito Subjetivo de proteção o direito de praticar ato (ilícito) de defesa em estricto cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito reconhecido (Código Civil, art. 188). 327
Está no exercício desse direito, por exemplo, quem efetua a prisão de gatuno em flagrante delito. Está também, no exercício desse direito, o advogado que, em defesa de seu cliente, se nega a depor sobre fato de seu conhecimento, mas que, por dever de ofício, ele é obrigado a guardar em segredo (estricto cumprimento de dever legal). § 148. Os DIREITOS CAUTELARES A segunda espécie de Direitos de Proteção é a dos DIREITOS CAUTELARES (veja § 148). Os Direitos Cautelares são os Direitos Subjetivos de requerer medidas judiciais preventivas, para assegurar o uso futuro de Direitos Subjetivos. Tais medidas se acham previstas e reguladas pela lei, como, por exemplo, as seguintes: — O arresto, que é a apreensão de bens de um devedor, ordenada pelo juiz, quando o devedor se ausenta ou tenta ausentar-se, ou emprega algum artifício, a fim de se furtar do pagamento a que está obrigado (Código de Processo Civil, arts. 813 a 820). — O seqüestro, que é o depósito de bens nas mãos de um depositário, ordenado pelo juiz, quando, em prejuízo do requerente, houver fundado receio de serem danificados, dissipados ou dilapidados (Código de Processo Civil, arts. 822 a 825). — A caução, que é o depósito de bens, determinado pelo juiz, para assegurar o cumprimento de contrato (Código de Processo Civil, arts. 826 a 838). — A busca e apreensão, que é a busca e apreensão de pessoas ou de coisas, ordenadas pelo juiz, quando tais pessoas e coisas estejam ocultadas ou mantidas em lugar impróprio, ou submetidas a tratamento e condições irregulares (Código de Processo Civil, arts. 839 a 843). — A exibição, que é a produção, perante o juiz, de coisa móvel ou documento, em poder de outrem, e que o requerente repute de sua propriedade, ou que tenha interesse em conhecer; ou de escrituração comercial, balanços e documentos de arquivo, nos casos em que a lei o permite (Código de Processo Civil, arts. 844 e 845). — O arrolamento de bens, que é a feitura da lista de bens, ordenada pelo juiz, quando há fundado receio de extravio ou de dissipação deles, em prejuízo de quem requerer a medida (Código de Processo Civil, arts. 855 a 860). 328
— A justificação, que é a ação judicial para demonstrar fato ou relação jurídica, por meio da audiência de testemunhas, com o fim de formar documento sem caráter contencioso, ou de fazer prova, utilizável em qualquer circunstância (Código de Processo Civil, arts. 861 a 866). — A posse em nome do nascituro, que é a posse dos bens do nascituro, na qual a mulher viúva é investida, por força de sentença do juiz (Código de Processo Civil, arts. 877 e 878). — A posse e guarda provisória dos filhos, nos casos de desquite, separação dos cônjuges, divórcio ou anulação de casamento (Código de Processo Civil, art. 888, III; Lei n. 6.515, de 26-12-1977, art. 9º). Bastam estes exemplos para mostrar a natureza das medidas judiciais a que se referem os Direitos Cautelares. § 149. O DIREITO DE RESPOSTA A terceira espécie de Direitos de Proteção é a do DIREITO DE RESPOSTA (veja § 149). A Constituição o consagra nestes simples termos: “É assegurado o direito de resposta” (art. 5º, V). Por Direito de Resposta entende-se o Direito Subjetivo de publicar resposta a imputação feita em órgão de divulgação, por meio do próprio órgão que publicou a imputação. De certa forma, o Direito de Resposta é o direito de “legítima defesa” contra alegação feita por qualquer meio de divulgação do pensamento. A pessoa atingida pela imputação é o titular direto ou imediato deste direito. Mas deve admitir-se que, de tal direito, possa usar quem tiver qualidade para falar em nome do titular direto, quando este, por motivo grave, deixou de ser titular desse direito, ou estiver impedido de usá-lo (por morte, moléstia grave, ausência). É razoável permitir-se que, na falta ou no impedimento do titular direto, possam falar por ele, como titulares indiretos ou mediatos, independente de procuração formal, o cônjuge, os pais e filhos, o advogado, o sócio, o tutor, ou qualquer outra pessoa notoriamente ligada ao titular direto, por comunhão de interesses ou por estreita amizade. A resposta a que se refere o Direito de Resposta é texto publicado gratuitamente, pelo mesmo órgão que divulgou a imputação, devendo ter forma ou aparência semelhante à da imputação publicada. Assim, se a imputação for feita em jornal, a resposta deverá ser impressa com caracteres tipográficos idênticos aos do escrito que a provocou, e ser inserida no mes329
mo lugar do jornal (na mesma página, nas mesmas colunas) em que figurou a imputação (Lei de Imprensa — Lei n. 5.250, de 9-2-1967). Se o órgão obrigado a publicar a resposta se negar a fazê-lo, ou a fazêlo corretamente, o titular do direito poderá lançar mão de seu Direito de Ação, para dar eficácia a seu Direito de Resposta.
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CAPÍTULO XXXIV
MODALIDADES DO DIREITO SUBJETIVO
§ 150. O Direito Subjetivo Aparente Casos existem em que o Direito Subjetivo é apenas aparente. Fundadas em aparências de Direitos Subjetivos, pessoas podem concorrer, involuntariamente, para a criação de situações jurídicas irregulares. Exemplo: O procurador que vende ou compra um imóvel, em nome do outorgante da procuração, sem saber que seu mandato está extinto, em virtude da morte desconhecida do outorgante. Por força da irregularidade de tais situações, nas quais as referidas pessoas se colocaram, prejuízos lhes podem advir, sem nenhuma culpa sua. Para evitar a iniqüidade de deixar desprotegidas pessoas que se enganaram ou iludiram com aparências de Direitos Subjetivos e, em conseqüência, se colocaram, de boa-fé, em situações jurídicas irregulares, as aparências de Direitos Subjetivos podem ser tidas, pela lei, como Direitos Subjetivos verdadeiros; e as situações irregulares, como válidas. Então, o Direito Subjetivo Aparente é promovido a Direito Subjetivo. O Direito Subjetivo Aparente, apesar de aparente, constitui um tipo de Direito Subjetivo. É uma presunção legal de Direito Subjetivo, mas presunção de cujo uso resultam efeitos aos quais a lei confere validade, em defesa dos interesses de quem concorreu, de boa-fé, para a produção dos referidos efeitos (veja Código Civil, arts. 689 e 905). Os Direitos Subjetivos Aparentes compreendem: 331
1) os Direitos Subjetivos inexistentes, mas tidos, pela lei, como existentes; 2) os Direitos Subjetivos existentes, mas utilizados por quem não é seu titular. Exemplos de Direitos Subjetivos inexistentes, mas tidos como existentes: a) Direito do mandatário, com mandato extinto, como no caso do art. 689 do Código Civil: “São válidos, a respeito dos contraentes de boa-fé, os atos com estes ajustados em nome do mandante pelo mandatário, enquanto este ignorar a morte daquele ou a extinção, por qualquer outra causa, do mandato”. b) Direito do subscritor emitente de título ao portador, de ser tido como exonerado da dívida, quando, de boa-fé, a paga a detentor de má-fé, que se tenha apossado do título fraudulentamente (Código Civil, art. 905). c) Direito dos cônjuges, em caso de casamento anulável ou nulo, de se considerarem legalmente casados (casamento putativo), de acordo com o disposto no art. 1.561 do Código Civil: “Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos civis até o dia da sentença anulatória”. d) Direito do praticante de ato previsto como crime de ser tido como impunível, se o dolo não puder ser provado, de acordo com o que dispõe o art. 18, parágrafo único, do Código Penal: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Exemplos de Direitos Subjetivos existentes, mas usados, fraudulentamente ou não, por quem não é titular deles: a) Direito do credor, usado por quem furtou o título de crédito (furtou, por exemplo, cheque, nota promissória, letra de câmbio ...). b) Direito do proprietário, usado pelo mero possuidor, quando este exerce poderes inerentes à propriedade (Código Civil, art. 1.196). § 151. A Expectativa de Direito Casos existem, também, em que o Direito Subjetivo é, apenas, uma Expectativa de Direito. As Expectativas de Direito não são Direitos Subjetivos quando as expectativas não passam de simples esperanças, ou de meros desejos, sem 332
fundamento em razões de natureza jurídica. Não são Direitos Subjetivos, por exemplo, as esperanças de ficar rico, de ter filhos, de ser cantor célebre. A Expectativa de Direito só é um Direito Subjetivo quando é uma permissão dada, por meio de norma jurídica, para adquirir outra permissão, que também será dada por meio de norma jurídica, na eventualidade de se verificar fato futuro e esperado. Sendo uma permissão desse tipo, a expectativa é um direito de adquirir outro direito, se um fato futuro e esperado ocorrer efetivamente. A Expectativa de Direito é uma expectativa despertada por um fato real, já acontecido, que seja apto a causar a produção futura de um Direito Subjetivo. A Expectativa de Direito, enquanto expectativa, já é um Direito Subjetivo, porque é uma permissão de esperar, por força de razões jurídicas, a obtenção de outro Direito Subjetivo. São exemplos de Expectativas de Direito, como Direitos Subjetivos: a) A expectativa do mero possuidor de se tornar proprietário, se ele puder manter sua posse durante o tempo estabelecido pela lei. b) A expectativa do proponente de se tornar contratante, após a esperada aceitação de sua proposta. c) A expectativa do destinatário da mesma proposta de também se tornar contratante, se acontecer que sua resposta de aceitação chegue ao proponente em tempo hábil (Código Civil, art. 428, II). d) A expectativa do empreiteiro de obras de ser o construtor, após o julgamento da concorrência. e) A expectativa do herdeiro de entrar na posse da herança, após a morte do autor dela. f) A expectativa do apostador de receber o prêmio, após a proclamação do resultado. Por ser um autêntico Direito Subjetivo, a Expectativa de Direito pode ser defendida por seu titular, contra quem queira obstar a superveniência do evento, de que dependem a concessão e existência do direito esperado. Por exemplo, o herdeiro necessário pode obstar que o testador disponha de mais da metade da herança (Código Civil, art. 1.789). As Expectativas de Direito, como Direitos Subjetivos, são protegidas por meio de ações preventivas ou conservatórias, instituídas pela lei. 333
§ 152. O Direito Eventual A Expectativa de Direito cessa no momento em que se verifica o evento esperado. Verificado tal evento, a Expectativa de Direito é substituída pelo Direito Subjetivo efetivo, isto é, pelo direito cuja concessão e existência dependiam, precisamente, da ocorrência do mencionado evento. O Direito esperado, ainda não existente, porque sua existência depende da ocorrência de um fato também esperado, mas ainda não acontecido, se chama Direito Eventual. O Direito Eventual não é a Expectativa de Direito, mas o próprio objeto dessa expectativa. Por exemplo, o Direito Eventual do possuidor é o próprio Direito de Propriedade, objeto da expectativa. Note-se, nesse exemplo, que o Direito de Propriedade, como Direito Eventual, não é o Direito de esperar ser proprietário, mas é o próprio Direito de Propriedade, embora ainda não alcançado. O Direito de esperar é a Expectativa de Direito; não é o Direito Eventual. Pode-se dizer que o Direito Eventual é o Direito concebido, mas ainda não nascido (Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, 2º vol., n. 49). Ao titular do Direito Eventual é permitido exercer, no caso da lei, os atos destinados a conservá-lo (Código Civil, art. 130). § 153. O Direito Condicionado O Direito Condicionado é o Direito Subjetivo cuja produção e resolução dependem de evento futuro e incerto, de acordo com a vontade de quem lhe deu origem. É direito sujeito à condição fixada por quem o produziu. Parece oportuno lembrar que uma condição, em seu conceito filosófico, é presença ou realização daquilo sem o que a causa eficiente não pode produzir o efeito para o qual está ordenado, e com o que tal causa pode produzir esse efeito. A condição não é causa — note-se —, mas é aquilo cuja ausência impede que a causa produza seus efeitos (aquilo sem o que a causa fica impedida de produzir seus efeitos); e cuja presença permite (mas não força, não obriga) que a causa os produza. Neste sentido é que se diz, por exemplo, que a chuva é condição de boas safras; que a abertura das venezianas é condição da luz solar num quarto; que o silêncio e a solidão são condições da meditação. É neste sentido que, antigamente, se dizia: “a escuridão é condição dos ladrões”. 334
Na Ciência do Direito, condição é a estipulação de que o surgimento ou extinção de um Direito Subjetivo ficam na dependência da verificação de evento futuro e incerto — dependência esta que há de derivar, exclusivamente, da vontade dos interessados nesse surgimento ou nessa extinção, e que não seja uma decorrência necessária de disposições da lei, às quais a referida dependência aceda. Para o Direito, pois, a condição não é a presença de um ser, ou a verificação de um evento, sem as quais um determinado efeito não pode ser produzido, e com as quais ele se pode produzir; mas é um ato de vontade, estabelecendo que a produção ou extinção de um efeito jurídico (o Direito Subjetivo) fica na dependência da verificação de um evento futuro e incerto. É de ressaltar, com ênfase, que essa dependência, na condição jurídica, precisa resultar de uma declaração da vontade, e não de uma imposição do direito. O Código Civil, em seu art. 121, dispõe: “Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto”. Assim, por exemplo, a estipulação de que a celebração de um contrato de locação depende da realização das reformas necessárias para a segurança do prédio pode ser condição do contrato de locação e, portanto, do nascimento do Direito Subjetivo de locatário, porque a dependência da celebração para com a efetuação das reformas pode derivar, exclusivamente, da vontade das partes, e não decorre de imposições de nenhum Direito Positivo, a que essa dependência aceda. Mas a estipulação de que a transmissão do domínio depende do pagamento do preço não é condição do contrato de compra e venda, nem condição do nascimento, para o comprador, do Direito Subjetivo de domínio, referente à coisa comprada, porque a relação de dependência entre a transmissão do domínio e o pagamento do preço não deriva exclusivamente da vontade das partes, uma vez que decorre, necessariamente, de disposições do Direito das Obrigações, às quais essa dependência acede. Como vimos, o art. 121 do Código Civil define condição. A palavra cláusula, empregada sabiamente nesse artigo, deve ser entendida como a própria estipulação voluntária da referida dependência ou subordinação. A divisão dos Direitos Subjetivos Condicionados acompanha a divisão das condições. As condições se dividem em condições suspensivas e condições resolutivas. 335
A condição suspensiva consiste na estipulação de que o nascimento de um determinado Direito Subjetivo fica na dependência da verificação de um evento futuro e incerto — sendo que essa dependência, como já foi dito, há de derivar da vontade de quem for interessado no referido nascimento, e não pode ser, simplesmente, uma decorrência necessária de disposições legais, às quais a dependência acede. O Direito Subjetivo subordinado à condição suspensiva é direito de adquirir outro Direito, desde que se verifique o evento futuro e incerto, de acordo com o estipulado pela vontade das partes. Assim, por exemplo, o direito do empreiteiro de adquirir o Direito de construir a obra, que está sujeita à concorrência pública, é Direito Subjetivo subordinado a condição suspensiva, por que a aquisição do direito de construir a obra fica na dependência de evento futuro e incerto, sendo que tal dependência é estipulada pela vontade dos interessados na construção da obra. O Código Civil, em seu art. 125, dispõe: “Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito a que ele visa”. De tal dispositivo, o que se infere é que, enquanto não se verificar o evento futuro e incerto, a que a condição suspensiva se refere, o direito visado continua sendo apenas Direito Eventual. É evidente que o titular de um Direito Subjetivo subordinado a condição suspensiva é, por força, o titular concomitante do respectivo Direito Eventual. Pelo que se vem expondo, logo se vê que os direitos subordinados a condições suspensivas sempre são autênticas Expectativas de Direito. Mas a inversa não é verdadeira: nem todas as Expectativas de Direito são direitos subordinados a condições suspensivas. De fato, nas Expectativas de Direito, nem sempre o nascimento do esperado Direito Subjetivo — ou seja, a promoção do Direito Eventual a direito real e efetivo — fica na dependência do que a vontade dos interessados estipulou, como evento indispensável, para o conseqüente surgimento do novo direito. Pode ocorrer, nas Expectativas de Direito, que o nascimento do novo direito (ou seja, a transformação do Direito Eventual em Direito Subjetivo atual) não dependa de nenhuma condição (de nenhuma estipulação da vontade), e decorra necessariamente de disposições legais. Assim, por exemplo, a Expectativa de Direito do mero possuidor, que pretende tornar-se titular do Direito de Propriedade, por efeito do decurso 336
do tempo, não constitui um Direito Subjetivo subordinado à condição suspensiva, porque, neste caso, a relação de dependência entre o nascimento do Direito de Propriedade e o evento a que o nascimento se subordina (ao decurso do tempo) é dependência que não deriva da vontade dos interessados em tal nascimento, mas decorre, necessariamente, do Direito das Coisas, ao qual essa dependência acede. Mas os Direitos Condicionados não são somente os direitos subordinados a condições suspensivas. Também são Direitos Condicionados, os Direitos Subjetivos subordinados a condições resolutivas. A condição resolutiva consiste na estipulação de que a extinção de um determinado Direito Subjetivo fica na dependência da verificação de um evento futuro e incerto — sendo que essa dependência, como no caso da condição supletiva, há de derivar da vontade dos interessados na referida resolução, e não se pode reduzir a uma simples decorrência necessária do Direito Positivo, a que a dependência acede. O Direito Subjetivo subordinado a condição resolutiva é direito que perdura até o momento em que se verifica o evento, a que a condição se refere. É direito que se extingue com a verificação desse evento. Por exemplo, o direito de usufruto, concedido pelo proprietário, para ser utilizado pelo usufrutuário durante tempo indeterminado, é Direito Subjetivo subordinado à condição resolutiva, porque pode ser utilizado a partir da concessão, mas se extingue quando o proprietário pedir a devolução de seus bens, tudo de acordo com o estipulado pela vontade das partes. O Código Civil, em seu art. 127, dispõe: “Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido”. E o art. 128 continua: “Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe...”. De tal dispositivo, o que se infere é que, enquanto não se verificar o evento futuro e incerto, a que a condição resolutiva se refere, o Direito Subjetivo continua em vigor. Se o evento, a que se refere uma condição, suspensiva ou resolutiva, for maliciosamente obstado, por quem ele desfavorece, reputar-se-á verificado esse evento, quanto aos efeitos jurídicos, de acordo com expressa determinação legal (Código Civil, art. 129). Por outro lado, a lei manda reputar como não verificado o evento, a que se refere uma condição, se ele for maliciosamente promovido por quem ele aproveita (Código Civil, art. 129). 337
§ 154. O Direito a Termo O Direito a Termo é o Direito Subjetivo cuja possibilidade de uso tem início ou fim em dia certo ou hora fixada, de acordo com o convencionado por quem o concedeu e por quem passou a ser seu titular. Termo é o momento, estabelecido pela vontade dos interessados, a partir do qual o Direito Subjetivo pode começar a ser usado, ou no qual o Direito Subjetivo se extingue. Dividem-se os termos, portanto, em termos iniciais e termos finais. O termo inicial de um Direito Subjetivo não se confunde com a condição suspensiva do Direito. Como já se verificou, a condição suspensiva é a estipulação de que o surgimento de um Direito Subjetivo fica na dependência da verificação de evento futuro e incerto. O termo inicial é outra coisa: é o dia ou a hora, fixados pela vontade, para o início do uso de um Direito Subjetivo já existente. Pode o termo inicial, quando muito, ocasionar a suspensão do uso de um Direito Subjetivo existente, até o momento convencionado como termo inicial desse uso. Reza o art. 131 do Código Civil: “O termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito”. Por exemplo, é termo inicial a data futura, fixada em contrato de locação, para início da ocupação do imóvel pelo locatário. Nessa data é que tem início a possibilidade do uso do Direito a Termo do locatário. O termo final de um Direito Subjetivo não se confunde com a condição resolutiva do Direito. Já ficou dito que a condição resolutiva é a estipulação de que a extinção de um Direito Subjetivo fica na dependência da verificação de evento futuro e incerto. O termo final é outra coisa: é o momento em que o Direito Subjetivo se extingue, pela verificação do evento a que se refere uma condição resolutiva, ou por ser o momento, fixado pela vontade dos interessados, para essa extinção. Por exemplo, é termo final a data futura, fixada em contrato de locação, para término do contrato e conseqüente extinção do direito do locatário. § 155. Direitos Atuais e Direitos Futuros Chamam-se Direitos Atuais, os Direitos Subjetivos completamente adquiridos, como, por exemplo, o Direito de Propriedade, fundado em título de domínio, devidamente transcrito (registrado) no competente Registro de Imóveis. 338
Chamam-se Direitos Futuros os Direitos Subjetivos cuja aquisição ainda não se acabou de operar. Dividem-se em Direitos Futuros deferidos e Direitos Futuros não deferidos. Deferido é o Direito Subjetivo Futuro cuja aquisição, devidamente iniciada, não se completou, mas pende somente do arbítrio do titular, como, por exemplo, o Direito de Propriedade fundado em escritura pública de venda e compra já assinada, mas ainda não levada a transcrição (registro), no competente Registro de Imóveis. Não deferido é o Direito Subjetivo Futuro cuja aquisição, devidamente iniciada, não se completou, por depender da verificação incerta de eventos contingentes e fortuitos. Por exemplo, o Direito de Propriedade fundado numa escritura de doação referente a uma safra agrícola futura (evento contingente, incerto, fortuito). § 156. Direitos Relativos e Direitos Absolutos A todo Direito Subjetivo de alguém corresponde uma obrigação de outrem. O direito e a obrigação são correlatos, como já dissemos no § 123. Quando ao direito de uma pessoa corresponde obrigação correlata de pessoa certa, ou de um grupo de pessoas certas, o direito é um Direito Subjetivo Relativo. Quando ao Direito de uma pessoa corresponde obrigação correlata de todas as pessoas da coletividade, o direito é um Direito Subjetivo Absoluto. O Direito Relativo é a permissão jurídica de exigir ação ou omissão de pessoas certas, como acontece, por exemplo, com o direito do vendedor, que não recebeu, do comprador, o preço da coisa entregue; do comprador, que pagou o preço e não recebeu, do vendedor, a coisa adquirida; do depositante, que não obteve, do depositário, a devolução do que lhe foi confiado; do herdeiro necessário, que se opõe à doação da parte do patrimônio do doador, que exceder a de que este pode dispor em testamento; da mulher, que exige, do marido, liberdade para a prática dos atos inerentes ao exercício de sua profissão. O Direito Absoluto é a permissão jurídica que, dada a uma pessoa, impõe, a todas as outras pessoas, um certo comportamento ou uma certa atitude, relativamente a uma determinada coisa. Ao Direito Absoluto de uma pessoa corresponde uma obrigação correlata de todas as outras. Os Direitos Absolutos são permissões jurídicas que todos devem respeitar. Cada Direito Absoluto implica, sempre, uma obrigação a cargo de um número indeterminado de pessoas. 339
Os Direitos Absolutos costumam ser chamados direitos “erga omnes”, expressão esta que significa direitos que prevalecem contra todos. Exemplo típico de Direito Absoluto é o Direito de Propriedade, porque, em cada caso particular deste direito, a permissão jurídica, dada a uma pessoa, de usar, gozar e dispor do que é seu, é um Direito Subjetivo a que corresponde a obrigação correlata, de todas as demais pessoas, de não obstar o emprego do referido direito, por quem seja seu titular. Relativos são todos os Direitos Pessoais, de que tratamos no Capítulo XXXIII. Absolutos são todos os Direitos da Personalidade, os Direitos Reais e os Direitos de Fazer e de Não Fazer, de que tratamos nos Capítulos XXVIII, XXIX e XXVII.
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CAPÍTULO XXXV
OS “DIREITOS HUMANOS” E AS “LIBERDADES DEMOCRÁTICAS”
§ 157. Os bens soberanos Dentre os bens almejados pelo ser humano, existem aqueles que são bens soberanos. Os bens soberanos são aqueles a que a generalidade dos seres humanos atribui máximo valor. São bens para os quais, em cada estágio de civilização, o ser humano tende, por vocação de sua própria natureza ou por imposições culturais. Que bens serão estes? Que bens serão tidos como superiores aos demais? Sem necessidade de profundas pesquisas sobre a natureza do ser humano, sabemos que há bens que são soberanos para nosso corpo e nosso espírito, e há bens soberanos exclusivos de nosso espírito. Do nosso corpo e do nosso espírito, são bens soberanos, acima de quaisquer outros, a vida, a incolumidade física e moral, a saúde, a liberdade de ir, vir e ficar. Do nosso espírito, são bens soberanos: a dignidade humana, a honra, a justiça; a igualdade essencial das pessoas; a privacidade; o domicílio inviolável; a liberdade de manifestação do pensamento e da fé; a liberdade de trabalho; a liberdade de reunião e associação. 341
É evidente que esse reduzido rol é uma simplificação extrema do conjunto complexo de bens soberanos, existentes no nosso coração e na nossa inteligência. Aliás, o que verificamos, nas crônicas dos povos, é que os bens soberanos, os “valores” espirituais, não se apresentaram ao ser humano num só momento da história e num só rol completo e acabado. Os homens e as mulheres os descobriram uns após outros, à medida que progrediam no conhecimento de sua natureza. Disse Johannes Hessen que os “valores” (os bens soberanos) se vão iluminando dentro do homem, vão surgindo aos olhos de seu espírito, como, aos olhos do corpo, aparecem sucessivamente, ao cair da noite, as estrelas do céu (Filosofia dos Valores, Parte I, n. IV). A história das civilizações demonstra que as sociedades se aperfeiçoam à medida que incorporam bens soberanos a seu patrimônio cultural. E demonstra, também, que a organização política se aprimora sempre que satisfaz, por meio de dispositivos constitucionais e legais, ao desejo insopitável do homem de assegurar o gozo dos bens de que o valor da vida depende. Observemos que esses dispositivos constitucionais e legais — as leis do Direito Positivo —, que asseguram a fruição de bens soberanos, foram, muitas vezes, conquistas obtidas a duras penas. Foram conquistas do Povo, contra o absolutismo e a opressão. No Direito Positivo brasileiro, os mais diversos bens soberanos se acham consagrados em numerosas leis, como, por exemplo, as seguintes: “Todos são iguais perante a lei”; “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”; “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente”; “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”; “É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura”; “Por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, ninguém será privado de qualquer trabalho, ofício ou profissão”; “A casa é o asilo inviolável do indivíduo”; “Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para manter a ordem”; “É assegurada a liberdade de associação para fins lícitos; nenhuma associação poderá ser dissolvida, senão em virtude de decisão judicial”; “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”; “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário”; “A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes; a instrução 342
criminal será contraditória”; “Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente”; “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”; “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão do direito individual”; “É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direito ou contra abusos de autoridade”; “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger contra ilegalidade ou abuso de poder, direito líquido e certo não amparado por habeas corpus”. Todas essas normas — aqui reproduzidas a título de exemplos — são leis em vigor no Brasil. § 158. Os proclamados DIREITOS HUMANOS No momento em que a fruição dos bens soberanos é assegurada por lei, emergem Direitos Subjetivos especiais, que são proclamados DIREITOS HUMANOS ou DIREITOS DO HOMEM. É evidente que todos os Direitos Subjetivos são direitos humanos. São direitos do ser humano. Mas as expressões consagradas de Direitos Humanos e Direitos do Homem foram reservadas para designar, especificamente, aqueles Direitos Subjetivos que se definem nos seguintes termos: PERMISSÕES JURÍDICAS PARA A FRUIÇÃO DE BENS SOBERANOS. Não se diga (como tantas vezes já se tem dito) que os Direitos Humanos são “direitos por natureza”, “direitos naturais”, “direitos inatos”, “direitos imanentes e inerentes no homem”. Não se diga que os Direitos Humanos são anteriores e superiores ao Direito Objetivo dos Estados, e existem no homem por natureza, sem dependência com as leis do legislador humano. Tais afirmações resultam de um velho e arraigado equívoco, e não têm mais nenhum sentido. Esta matéria requer especialíssima atenção. Sendo Direitos Subjetivos, os Direitos Humanos são, forçosamente, permissões concedidas por meio de normas jurídicas. Bem sabemos que todo Direito Subjetivo é permissão assim concedida. Ora, as normas jurídicas não são dados da natureza, mas construções da inteligência humana, obras culturais, como explicamos nos Capítulos III, IV e V. O que é natural no ser humano, o que é inerente nele, é sua inclinação para seus bens soberanos. Hegel já dizia que o que é inalienável e imprescritível para o homem não são os seus direitos, mas as determinações substanciais da pessoa, ou seja, o que constitui o essencial no conceito de homem (Filosofia do Direito, § 66 R.). 343
O que é natural no homem, o que é inerente nele, é sua aspiração por uma ordem jurídica realmente voltada para certos bens superiores, certos anelos de sua consciência e da razão íntima de seu ser. Fundados em leis — em normas jurídicas do Direito Positivo —, são Direitos Humanos, por exemplo, os seguintes Direitos Subjetivos: direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade; direito ao respeito à dignidade humana; direito à igualdade, sem discriminações por motivo de origem, raça, cor e sexo; direito à inviolabilidade do domicílio; direito à intimidade; direito de fazer o que a lei não proíbe, e de não fazer o que ela não manda; direito de exigir, dos Poderes Públicos, o tratamento que a lei prefixa, e que é igual para todos, em igualdade de condições; direito da criança à escola e ao divertimento; direito de jamais ser submetido por ninguém a tortura, ou a seqüestro, ou a medidas cruéis ou degradantes; direito de ir, vir e ficar, sem perigo de detenção ou prisão, exceto nos casos da lei; direito à livre manifestação do pensamento; direito de propriedade do autor sobre a sua obra; direito de trabalhar e exercer ofício; direito de reunião e associação; direito de ser considerado inocente, enquanto a responsabilidade criminal não estiver reconhecida em sentença judicial definitiva; direito de não ser acusado e condenado por ato que a lei não haja qualificado como crime; direito de não ser submetido a qualquer pena, sofrimento ou mortificação, que lei anterior não haja cominado; direito de ser ouvido e defendido, antes de qualquer condenação; direito de não ser submetido a nenhuma pena, por ato de que outrem é acusado; direito de conservar o direito legalmente adquirido, assim como o de manter o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, mesmo no caso de posterior alteração ou revogação da lei; direito de ação, que é a permissão de submeter à apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão causada por desrespeito ao direito individual; direito de petição e de representação, que é a permissão de pedir aos Poderes Públicos ação ou abstenção em defesa de direito, contra erro ou abuso de autoridade. Com fundamento no princípio doutrinário de que “Todo o Poder emana do Povo”, inscrito nas Constituições das democracias modernas, é imperioso incluir, também, no rol dos Direitos Humanos, o direito do cidadão de ter governantes e legisladores legítimos, isto é, governantes eleitos pelo Povo e legisladores que sejam autênticos representantes da comunidade. É evidente que a lei pode formular os Direitos Humanos de maneiras diferentes, em consonância com a tradição e o sentimento jurídico de cada Povo. Mas o que cumpre deixar bem claro é que não há Direitos Humanos sem lei. 344
O que há sempre — com lei, sem lei ou contra a lei — é a aspiração do ser humano à liberdade, à igualdade, à justiça, à segurança; enfim, ao respeito devido ao que Locke e Kant chamaram de “dignidade” imanente do homem enquanto homem. O que há sempre é o IDEAL dos Direitos Humanos, os IDEAIS permanentes desses Direitos. Ora, ideais de Direitos ainda não são Direitos. São, isto sim, aspirações de Direitos, proclamadas muitas vezes em Declarações famosas, brandidas como “bandeiras” assinaladas de campanhas políticas. Somente depois de formulados pelo legislador e firmados em leis positivas, é que tais anelos são promovidos a direitos, a Direitos Subjetivos autênticos, a Direitos Humanos legalmente consagrados. Só então, passam a ser, verdadeiramente, predicados concedidos a todas as pessoas, por meio de normas jurídicas. § 159. Os DIREITOS HUMANOS e a autolimitação da Soberania Muitos Direitos Humanos são Direitos Subjetivos Públicos. Duas são as espécies de Direitos Subjetivos Públicos. A primeira espécie é a dos Direitos próprios do Poder Público, para o exercício das funções de Governo. São desta espécie, por exemplo, os direitos de emitir moeda, de cobrar impostos, de celebrar tratados, de decretar o estado de sítio, de declarar guerra, de “distribuir justiça”, de aplicar penas. A segunda espécie é a dos Direitos Subjetivos de particulares, mas cujas obrigações correlatas são do Poder Público. Ou, em outros termos: é a espécie dos Direitos Subjetivos cujos titulares ativos são particulares e cujo titular passivo (titular da obrigação) é o Poder Público. Pertencem a esta segunda espécie, por exemplo, os seguintes Direitos Subjetivos: o direito de não ser impedido, pelo Poder Público, de fazer o que a lei não proíbe; o de não ser tolhido, por órgãos de segurança, na liberdade de ir, vir e ficar, a não ser em caso de flagrante delito ou mediante ordem escrita de autoridade competente; o de não ser processado sem ser ouvido e defendido; o de não ser condenado por ato que a lei não haja definido como crime, nem a pena que a lei não haja cominado; o de não sofrer a violação de domicílio por agentes do Poder Público; o de não ser impedido de se reunir com seus e semelhantes, de organizar associações; o de exprimir e divulgar o pensamento, sem limitações além das que a lei estabelece; o de não ser impedido de submeter ao Poder Judiciário qual345
quer lesão causada por desrespeito ao direito individual; o de não ser obrigado a abandonar o direito legalmente adquirido, nem mesmo após alteração ou revogação da lei; o de não ter governantes e legisladores que não hajam sido eleitos pelo Povo. Basta esse rol de exemplos para tornar patente que muitos Direitos Humanos se incluem entre os Direitos Subjetivos Públicos da segunda espécie. Eles são Direitos Subjetivos Públicos dos particulares. Como se vê, esses Direitos Subjetivos, expressões de exigências asseguradoras da liberdade humana, impõem limites à ação do Governo. De fato, são permissões dadas por lei aos particulares, com a intenção deliberada de demarcar o campo em que não é permitida a ingerência repressora do Poder Público. As leis, de que esses Direitos Subjetivos decorrem, constituem barreiras erguidas contra o arbítrio do Poder. Cumpre lembrar que tais leis, como as demais — todas elaboradas pelo Poder Constituinte e pelo Poder Legislativo —, são sancionadas e promulgadas pelo Poder Executivo. Esta verificação merece destaque. Nos países em que existem Direitos Subjetivos públicos e Direitos Humanos, o próprio Poder Público restringe e delimita, por meio de leis, seu campo de ação, para ampliar e garantir a área intangível das liberdades fundamentais do homem. Como explicar tal fenômeno? A referida restrição, que o Poder Público — o Poder Constituinte e o Poder Legislativo — se impõe a si próprio, vem sendo chamada de autolimitação da soberania do Estado. Na verdade, ela é a autolimitação do poder dos Governos. Historicamente, como sabemos, a limitação do poder dos Governos foi uma conquista do Povo contra a prepotência dos reis. Ela começou a se tornar efetiva com a constituição das primeiras formas de Governo representativo. Hoje, ela resulta, naturalmente, do exato conhecimento dos fins e funções do Estado. Ciente de seu verdadeiro papel, os Governos evoluídos e legítimos se limitam a exercer suas funções próprias, e se abstêm de interferir, indevidamente, em áreas que não são de sua competência. As leis, de que decorrem os Direitos Humanos, os Direitos Subjetivos públicos, são as simples manifestações dessa consciência oficial. São sinais do aprimoramento da cultura política de uma Nação. Mas ninguém se iluda! A manutenção de tais leis depende da vigilância do Povo e da força da opinião pública. Depende da organização popular, com sindicatos atuantes, com partidos autênticos, com comunidades de base, com 346
entidades de planificação do desenvolvimento regional, com cooperativas, com centros de estudo e debate, com imprensa altiva e com outros destemidos veículos de informação. Depende de uma Nação atenta, de um Povo devidamente estruturado, capaz de manifestar e fazer sentir a sua vontade. Sem organização popular, a cultura oficial se livra de seu acicate e, em conseqüência, se estiola, definha, converte-se em demagogia, e tende a entrar em eclipse; as instituições regridem, caindo em formas primitivas, que já haviam sido superadas. Permissões jurídicas fundamentais, para a fruição de bens soberanos, assim como garantias constitucionais dessas mesmas permissões, são suspensas, revogadas, abolidas. E o flagelo do arbítrio governamental volta a se abater, implacavelmente, sobre a Nação. § 160. As Liberdades Democráticas Os Direitos Humanos formaram, como se acaba de ver, um quadro de interdições para a ação do Poder Público. Mas, na área reservada para a atuação livre dos particulares, área em que o Poder Público ficou impedido de ingressar e interferir, aconteceu o inevitável: os fortes impuseram sua lei aos fracos. Embora com agentes e processos diferentes, o que permaneceu foi a exploração do homem pelo homem. Então, a luta pela liberdade, de que resultaram os Direitos Humanos, metamorfoseou-se em luta pela igualdade. O que ela agora pretende é tirar o trabalhador de sua miséria, de seu estado de submissão sem remédio; dar-lhe um mínimo de possibilidades materiais, para que ele possa ter uma existência digna do ser humano, e esteja em condições de negociar, com hombridade, as cláusulas de seu contrato de trabalho. O que ela pretende é dar fim à prepotência dos economicamente fortes (dos hipersuficientes) sobre os economicamente fracos (os hipossuficientes). É conseguir leis que compensem, com medidas humanas, as desigualdades existentes entre empregadores e empregados. É alcançar um certo equilíbrio entre o capital e o trabalho. A luta pela igualdade é a luta por uma determinada categoria de Direitos Subjetivos: dos Direitos Subjetivos que receberam os nomes de Liberdades Reais, Liberdades Concretas, LIBERDADES DEMOCRÁTICAS. Em que consistem, afinal, essas liberdades? 347
Fundamentalmente, as LIBERDADES DEMOCRÁTICAS são os Direitos Subjetivos considerados necessários para a emancipação de cada ser humano; isto é, os direitos tidos como condição para a realização efetiva e concreta das pessoas, na qualidade de participantes de uma comunidade composta de membros homogêneos. São os direitos de cada pessoa a uma existência condizente com sua qualidade de ser humano, e à altura dos recursos da sociedade global de que a pessoa é membro. Pelas Liberdades Democráticas, o mandamento de dar a cada um o que é seu é substituído por um novo mandamento: o de dar a todos um pouco do que é seu (Raymond Polin, A Obrigação Política, Capítulo IV, 4). Este mandamento introduziu, no entrechoque desigual dos interesses particulares, o pensamento do interesse coletivo. Na prática, as Liberdades Democráticas se traduzem em direitos numerosos e diversificados, como, por exemplo, os direitos a um salário condigno, igual para homens e mulheres, sem distinção por motivos de cor e de estado civil; a um salário-familía; à participação no lucro das empresas; ao reconhecimento das conclusões obtidas em convenções coletivas de trabalho; à estabilidade no emprego; à jornada laboral não superior a oito horas; ao repouso semanal remunerado e a férias anuais remuneradas; à higiene e segurança no trabalho, e ao seguro contra acidentes; à assistência sanitária, médica e hospitalar, e à previdência social nos casos de doença, velhice, invalidez e morte; ao descanso remunerado da gestante, e à proteção à maternidade; ao amparo à infância, à velhice, aos incapacitados; à aposentadoria; ao financiamento para aquisição de casa própria; à instrução. E se traduziu, também, no direito soberano da liberdade sindical, completado pelo direito de greve. Em virtude de seu caráter eminentemente existencial, as Liberdades Democráticas, nos tempos modernos, assumiram extraordinária importância. Para muitas consciências, os Direitos Humanos, diante delas, pareceram esvaecer, como abstratas formas de distantes direitos, sem aproveitamento imediato, sem valor para a solução dos problemas oriundos das desigualdades entre ricos e pobres. Que vale, por exemplo, o Direito Humano da igualdade perante a lei se, na hora de firmar o contrato de trabalho, o patrão puder impor suas condições a um trabalhador sem recursos, às vezes miserável, necessitado do emprego, e que nada mais é capaz de fazer do que se curvar, constrangidamente, diante da vontade do empregador? 348
O que muitos passaram a sustentar é que as limitações impostas ao Estado pelos Direitos Humanos constituíam um resquício de um individualismo anárquico e reacionário, que era preciso rechaçar. É evidente, porém, que esta opinião não resiste a uma crítica serena, como demonstraremos no § seguinte. Cumpre assinalar que a instituição das Liberdades Democráticas exige a intervenção do Poder Público. De fato, a experiência das últimas décadas demonstrou que a manutenção dessas liberdades não se faz por força da “livre associação dos trabalhadores” (como fora profetizado por alguns), mas por ação exclusiva do Estado. Lacordaire já dissera que “onde há fortes e fracos, a liberdade escraviza, a lei é que liberta”. No caso das Liberdades Democráticas, a “lei” é o Poder. É o Poder Público. No embate dos interesses, em área reservada para o jogo dos direitos privados, só o Poder Público é capaz de conter, com leis soberanas, o predomínio dos poderosos. Então, o que se viu foi o seguinte: O Estado, que fora o grande inimigo, contra o qual os Direitos Humanos se ergueram, se transmuda em Estado-Providência. Os Direitos Humanos haviam fixado limites à competência do Estado; as Liberdades Democráticas, pelo contrário, implicaram a intervenção do Estado na área privativa dos negócios particulares. § 161. A dialética das liberdades A que poder, em verdade, fora o poder do Estado, poderiam apelar as grandes massas de desvalidos, para arrancar, de minorias plutocráticas, o de que necessitavam para ter uma vida mais humana? Foi para atender a este apelo que o Estado Moderno se fez Estado intervencionista. Mas o Estado intervencionista — que se fez Estado defensor das Liberdades Democráticas — é um Estado que tende, inevitavelmente, a transpor as fronteiras demarcadas pelos Direitos Humanos, e a invadir o território das liberdades individuais. Legítima, sem dúvida, esta invasão, enquanto ela tiver por meta exclusiva atender aos justos anseios das maiorias sacrificadas, e enquanto esse atendimento for feito com espírito de proporção e justiça. Sucede, porém, que o ideal das Liberdades Democráticas confere à prática intervencionista um pretexto admirável para a expansão progressiva 349
das áreas de competência do Governo, e para o crescimento contínuo do poder do Estado. O Poder Público facilmente se afeiçoa ao intervencionismo a ao dirigismo. O Poder tem sede de poder. Sem barreiras claras para as suas pretensões, o Estado, a partir de um determinado momento, parece esquecer a sua missão, confunde meios com fins, e começa a colocar o seu poder, não mais a serviço das Liberdades Democráticas e do homem do Povo, mas a serviço de seu próprio poder. A idéia de segurança das pessoas e do desenvolvimento de cada um é substituída pela idéia dominante da segurança e do desenvolvimento nacional. Nesse momento, o Estado intervencionista perde sua legitimidade. Seu poder não mais emana do Povo. Em conseqüência, o Governo vai buscar nas armas a força necessária para a sua manutenção. A Polícia Militar se excede em suas funções. As Forças Armadas passam a intervir em esferas que não são de sua competência, e, às vezes, tomam o Poder, como temos presenciado em nosso País. No princípio, o Estado defensor das Liberdades Democráticas é o instrumento do Povo, para a luta contra o Poder Econômico. Mas o Poder Econômico se utiliza, incontinenti, de seus extraordinários meios de sedução e corrupção, e logo se infiltra pelas frinchas dos gabinetes palacianos. Sem dificuldade, o Poder Militar, para se tornar ainda mais forte, se alia ao Poder Econômico, e o Poder Econômico passa a inspirar o Governo. Nesse processo, a que grau inaudito de poderio, o Estado não se erguerá? O primitivo poder benfazejo do Estado, sustentáculo das Liberdades Democráticas, se corrompe: transforma-se em Poder Absoluto, diante do qual podem esboroar-se todas as liberdades. A experiência política do mundo moderno revela, de maneira impressionante, que a luta pelas Liberdades Democráticas, com menosprezo pelos Direitos Humanos, se converte, afinal, numa luta pelo fortalecimento desmedido do Estado, levando à formação de oligarquias políticas, muitas vezes armadas, geralmente predatórias e irresponsáveis. Sem os freios das “formalidades” jurídicas, sem os controles do Direito, a certeza da impunidade acoroçoa o arbítrio, e a ousadia dos detentores do Poder se torna uma calamidade nacional. A realidade dos fatos conduz à conclusão de que a proscrição dos Direitos Humanos, sob a alegação de que são direitos “formais”, e sua substituição, pura e simples, pelas Liberdades Democráticas, é atitude inepta, pois leva a resultados precisamente contrários aos que se desejam. 350
Há uma dialética fecunda entre os Direitos Humanos e as Liberdades Democráticas. É incontestável que muitos Direitos Humanos só podem ser habitualmente usados por quem tiver esses outros direitos, a que se deu o nome de Liberdades Democráticas. Mas é certo que as Liberdades Democráticas somente existem, de fato, em Estados cujo poder intervencionista for contido pelo respeito aos Direitos Humanos. Num trabalho famoso, sobre Liberdades Formais e Liberdades Reais, Fábio Konder Comparato sustenta que os Direitos Humanos e as Liberdades Democráticas são “liberdades solidárias”, e que “suprimir umas em benefício de outras significa perder, conjuntamente, todas elas” (tese apresentada à VIII Conferência Nacional dos Advogados, em maio de 1980). Impossível dizer melhor. As permissões dadas por normas jurídicas, para a fruição dos Bens Soberanos, são os Direitos Humanos, os Direitos Subjetivos Públicos, necessários para a conservação das Liberdades Democráticas. Por outro lado, as Liberdades Democráticas são os Direitos Subjetivos necessários para a emancipação de cada homem e para que cada homem tenha condições de fruir dos Direitos Humanos. Assim é que se colocam, em íntima interação, os Direitos Humanos e as Liberdades Democráticas.
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4ª PARTE
A JUSTIÇA
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CAPÍTULO XXXVI
A JUSTIÇA
§ 162. A definição da JUSTIÇA Justiça é a RETRIBUIÇÃO EQUIVALENTE AO QUE FOI DADO OU FEITO. Notemos que a justiça não está somente na equivalência. Embora não exista justiça sem equivalência, a justiça está, propriamente, num ato: no ato de fazer algo equivalente ao que foi dado ou feito. A justiça está no ato de retribuir o equivalente ao que foi recebido. Quando dizemos “Pedro fez justiça”, estamos dizendo que Pedro deu, em retribuição, algo equivalente ao que lhe foi dado ou feito. A justiça está no dar o equivalente. Quando reconhecemos “a justiça de uma sentença”, estamos admitindo que a sentença mandou alguém dar a outrem o equivalente ao que dele recebeu. A expressão o que foi dado ou feito, usada na definição da justiça, pode designar uma coisa dada, ou designar um ato praticado (ato ou atos, atuação, desempenho, execução). Devemos esclarecer que o termo ato praticado, que acabamos de empregar — o ato de dar ou de fazer —, tem uma ampla acepção. Designa, na vida comum de todos os dias, um qualquer ato ou atuação afetando interesse de outro ou outros — por exemplo, o cumprimento de uma obrigação —, ou pode designar um gesto de colaboração ou de bondade, o desempenho de um artista em cena, um feito heróico, uma infidelidade, uma traição, um crime. 355
Igualmente extenso, é o termo retribuição, que assinala o fulcro da justiça. Pode designar uma coisa — a coisa entregue em retribuição, como, por exemplo, um dinheiro pago, um objeto dado —, ou designar um ato, o próprio ato da retribuição, como, por exemplo, um agradecimento verbal, uma palavra de aprovação, um aplauso, um elogio, uma recusa, uma rejeição, um repúdio, um gesto de desprezo. Pode designar um ato de violência, mas pode referir-se a um sorriso, um olhar... É preciso acrescentar que a referida expressão o que foi dado ou feito pode também relacionar-se com o que uma pessoa representa no convívio social; com o que ela é, dentro da comunidade a que pertence, pelo simples fato de ser como ela é; de ser o tipo de pessoa com que, em sociedade, ela se mostra e se comunica; com que ela se dá com os outros. Nesta acepção, o dado é a personalidade com que cada ser humano se apresenta no processo da convivência social. Assim, um ser humano, na coletividade em que vive, pode dar-se como um ser simples e cordial, ou como um ser orgulhoso e arrogante; como um ser sociável e comunicativo, ou como um ser reservado e retraído; como um ser compreensivo e conciliador, ou como um ser intolerante e intransigente; como um ser solidário e altruísta, ou como um ser indiferente e avaro. Cada ser humano se dá ao todo social com a personalidade que lhe é própria. E, em retribuição, costuma receber, da comunidade em que atua, tratamento correspondente, ou seja, tratamento equivalente. Tal retribuição é uma forma da justiça. Essa idéia da atribuição do equivalente — do equivalente ao que foi dado ou feito — leva à consideração de que a justiça implica, forçosamente, uma relação de um com outro. Implica bilateralidade. De fato, só há justiça quando alguém dá ou faz algo, e outrem retribui o algo que lhe é dado ou feito. Aristóteles, na Ética a Nicomaco*, ressalta essa relação de um com outro como caráter próprio da justiça. Santo Thomaz de Aquino, Doutor Angélico da Igreja, fundado no Estagirita**, escreveu, na Summa Theologica***: “É próprio da justiça, entre outras virtudes, ordenar o homem naquilo que é relativo a outro”. * Ética a Nicomaco, V, 3, 1129b, 25; V, 1129b, 32; V, 1130a, 13; V, 4, 1130b, 1; V, 1130b, 20; V, 9, 1134a, 1-6. ** Cognome de Aristóteles. Designação dos naturais de Estagira, cidade da Macedônia antiga. *** Summa Theologica, 2ª, 2ae, questão 5, art. 1 c.
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Assim, a alteridade, a relação com outro (do latim: alter = outro), é nota essencial da justiça. Só por metáfora podemos falar em fazer justiça a si próprio. Quem dissesse que “fez justiça a si próprio” estaria como que se bipartindo, se dividindo em duas pessoas: numa, que teria agido desta ou daquela maneira, e que, por isto mesmo, se considera credora; e noutra, que deve retribuir, desta ou daquela maneira, aquilo que foi feito pela primeira, e que, por isto mesmo, se considera devedora. É o que aconteceria, por exemplo, com uma pessoa que, tendo trabalhado muito, se considerasse merecedora de férias, que ela própria se poderia conceder. Enquanto trabalhadora, a pessoa se consideraria credora; enquanto merecedora de férias, a mesma pessoa se consideraria devedora. Sempre, o que se vê é a alteridade essencial da justiça. No ato da justiça, o que sempre se vê é a relação de credor com devedor, tomando-se estes dois termos no mais amplo sentido. E é a equivalência entre o que alguém cobra e o que outrem deve. Mas estas asserções precisam ser entendidas com rigor. O “equivalente” da definição da justiça não implica uma igualdade qualquer. Significa, sim, uma igualdade de valores. O equivalente (equi + valente) é algo que tem valor igual ou proporcional ao valor de outra coisa. Justiça, pois, consiste na retribuição a alguém de algo de valor igual (ou proporcional) ao valor do que alguém deu ou fez. Consiste numa efetivação da equivalência. Com redundância, insistimos em que a igualdade caracterizadora da justiça não é sempre a igualdade entre coisas iguais. É, sim, a igualdade de valor entre coisas que podem ser iguais ou desiguais. Quando digo: “Eu quero justiça!”, que coisa estarei querendo? — Estarei querendo que me seja dado ou feito algo que tenha valor igual ou proporcional ao valor do que dei, do que sofri, do que fiz ou do que sou (do que mereço). Eventualmente, estarei querendo que se faça algo de valor proporcional ao valor do que me foi arrebatado. Neste mesmo sentido é que digo: “A justiça de minhas pretensões”. Esta proposição significa que aquilo que é objeto de minhas pretensões tem valor igual ou proporcional ao valor do que dei, sofri, fiz ou sou. Outro exemplo: A justiça de uma indenização é o pagamento em dinheiro de importância (de valor) igual ou proporcional ao valor do dano causado, embora, evidentemente, o dano causado não seja coisa igual ao dinheiro da indenização. 357
Nas exigências comuns do homem em sociedade, a igualdade de valores — a equivalência — não pode sempre ser uma igualdade perfeita. Longe disto, infelizmente! Os valores, a que a justiça se prende, não são, muitas vezes, quantidades matemáticas. Valores morais, valores afetivos, valores futuros e incertos, e, mesmo, valores de aptidões e competências, e mesmo valores de certas lesões, e até o valor de uma vida ceifada, não são redutíveis a expressões exatas, a cifras verdadeiramente correspondentes. De fato, o que verificamos, na decorrência da vida, é que a justiça se limita a ser, muitas vezes, uma justiça convencional, como no caso da pena legal aplicada ao delinqüente. Relativa, muito relativa, há de ser, muitas vezes, a justiça humana. Ela é relativa devido à freqüente impossibilidade de rigor absoluto na fixação da referida igualdade. Advogados, promotores públicos, juízes, que terão eles sempre almejado, nas contendas judiciais? As petições dos advogados em juízo terminam invariavelmente com a consagrada fórmula: “Por ser de justiça, espera e pede deferimento”. Que significa exatamente essa afirmação: “por ser de justiça”? É evidente que ela exprime, em síntese, a convicção de que os almejados deferimentos de tudo que vai sendo requerido constituiriam, em conjunto, o que os advogados intitulam de “justiça”. Seriam — dizem eles — um ato de justiça, por força dos fatos, dos argumentos e da lei, que formam o fundamento da petição. O pedido de deferimento é, em verdade, a manifestação de uma esperança — da esperança de que o juiz, convencendo-se do acerto da argumentação ali desenvolvida, decida, afinal, pelo atendimento do requerido, isto é, pelo reconhecimento de que o requerido está conforme com o que mandam as leis e demais mandamentos do Direito Objetivo, referentes ao tipo do caso em foco. Mas o que, no espírito do sincero jurista, paira, com certa freqüência, é uma secreta preocupação, e, às vezes, um tormento: é a indagação da consciência sobre se o deferimento requerido, mesmo quando fundado em normas jurídicas, constitui realmente, ou não constitui, um ato de verdadeira justiça. É claro que tal interrogação, de natureza íntima, não deve ser tropeço na impávida advocacia. Na maioria dos casos concretos, as soluções da justiça precisam simplesmente decorrer dos mandamentos das leis do Direito Positivo, e não dos imperativos de uma justiça ideal. E as leis, como sabemos, podem ser legítimas ou ilegítimas (releia o § 90). Forçoso é confes358
sar que o espírito do sincero jurista é invadido, uma ou outra vez, por um mundo de cismas, que uma névoa diáfana de vaga ansiedade envolve e inquieta... A igualdade perfeita entre o valor do que é dado e o valor do que é retribuído é a igualdade colimada, a igualdade de nosso ideal. Essa justiça perfeita é sempre um desideratum, “a estrela polar do mundo moral”, como consigna o velho e inolvidável Larousse. Assim concebida, ela é um ideal para que devem tender os legisladores, os juízes, os promotores públicos, os advogados, mas que não nos é possível alcançar, porque jamais ultrapassaremos os estreitos limites das capacidades humanas. Quando o valor da retribuição é tido como equivalente ao valor do que foi dado ou feito, dizemos que ela é justa. Por conseguinte, a justiça é uma expressão do justo. Mas, que é o justo? § 163. Que é o JUSTO? É óbvio que o justo é o que está ajustado; é o que se acha na exata medida. Justo é a qualidade de ser conforme, adequado, correspondente, proporcional. Que é uma luva justa? É a luva perfeitamente adaptada à mão que ela veste. Entre luva justa e mão há correspondência, conformidade, adequação. Este simples exemplo da luva justa nos faz compreender que a qualidade do justo tanto se aplica a coisas do mundo físico — luva justa, vestido justo, tábua justa — como se aplica a atos do comportamento humano, ou seja, a atos do mundo ético. É claro que o justo que aqui nos interessa é o justo ético, ou seja, o ato justo. Poderia alguém perguntar: Quando é que dizemos que um ato é justo? Nós responderíamos: Qualificamos de justo o ato que dá a uma pessoa algo que tem o valor do que a pessoa deu, ou fez, ou é. Em palavras mais simples: o ato justo é o ato de dar a uma pessoa o que ela merece. Isto reclama especial atenção. Se uma pessoa não recebe o que ela merece, ela estará sendo injustiçada. Por quê? Porque aquilo que uma pessoa merece é coisa sua em razão do que ela fez, ou deu, ou é. Não lhe dar o que é seu redunda em injustiçá-la. Esta é a razão pela qual se pode dizer que o ato justo é o ato de dar a cada um o que é seu. 359
Importante observação devemos agora fazer relativamente ao “seu”, que acabamos de mencionar. Esse “seu”, que é o justo, se chama direito. De fato, dar a cada um o que é seu significa dar a cada um o seu direito, ou seja, dar a cada um o justo. Assim, a palavra direito designa não somente a norma jurídica (o Direito Objetivo), não somente a permissão jurídica (o Direito Subjetivo), mas, também, o justo. Lembremos que os romanos, com sua extraordinária intuição jurídica, não chamavam o Direito de “direito”. Chamavam-no de “jus” (ou “ius”, justo). E explicavam que o Direito se chama “jus” porque deve ser “justus”. Mas esta definição nos coloca diante de uma nova e grave dificuldade. Queremos dar a cada um o que é seu. Mas como saber, com exatidão, nos atos comuns da existência e, também, nos julgamentos dos tribunais, qual é o rigoroso seu de cada um? Este problema não apresenta dificuldade quando tratado em abstrato, mas se torna melindroso quando trazido para o plano concreto da vida. Se fosse fácil responder à questão formulada, não haveria motivo para o imenso conflito das ideologias econômicas, cuja razão-de-ser, em última análise, é, precisamente, a resposta à pergunta: “Qual é o seu?”. Não haveria motivo, igualmente, para a conhecida angústia ou perplexidade, que atormenta juízes e tribunais em certas ações, civis e criminais, quando a seca aplicação da letra da lei leva a resultados que parecem iníquos. E, em nossa vida comum, nas ações corriqueiras da convivência, saberíamos, com simplicidade e precisão, aquilo a que cada um faz jus, e procuraríamos, dentro de nossas possibilidades, praticar continuamente a justiça. Mas todos nós sentimos, pela experiência que temos da vida, que a referida questão não é fácil, está muito longe de ser fácil, porque é um problema que envolve mil problemas. Antes de mais nada e acima de tudo, a grande razão da dificuldade, levantada por tal problema, está em que a descoberta do seu — do que é seu verdadeiramente — não depende, sempre, do que está escrito na lei, nem do que foi contratado, nem do que dizem as testemunhas. O justo, às vezes, não é o que está assentado e estabelecido. Não é o que parece. Mas é o que as circunstâncias multifárias da vida teceram. E nunca se revela, ou só se revela aos que têm olhos para vê-lo, e coração para senti-lo. Às vezes — vamos ser francos —, o justo verdadeiro, o justo verdadeiramente justo, o justo absoluto, não se revela a ninguém. Talvez, em um ou outro caso, permaneça escondido, em algum secreto recanto da alma de alguém. 360
Então, que fazer? A solução estará na capitulação diante do problema, e em desistir, de vez, da estulta pretensão de fazer justiça? A isto respondemos que cumpre distinguir duas espécies de justo: o justo por convenção e o justo por natureza. Detenhamo-nos, por um momento, nesta divisão do justo. § 164. O justo por convenção e o justo por natureza O justo por convenção é aquilo que é tido como justo porque assim se convencionou. Notemos que essa convenção não é uma fantasia do espírito humano. Aquilo que é tido como justo é tido como justo por força de uma experiência de vida, após um processo de convivência e de relacionamento humano. Para muitas circunstâncias, a própria vida normal, a própria vida pacífica da sociedade, acaba apontando para o que é mais conveniente à ordem na coletividade. Indica os comportamentos que, de modo geral, devem ser tidos como justos. Esta é uma contingência de que os seres humanos, que vivem em sociedade, não se podem livrar. Sem uma convenção básica sobre o quê, de modo geral, deve ser tido como justo, impossível seria a convivência. Não há quem não entenda que ela é condição da convivência, condição da sociedade humana. Essa convenção básica tem um nome: ela é o contrato da ética social. O que verificamos é que ela nada tem de universal, nem de imutável. Ela não é universal, pois cada coletividade tem sua própria ética; e não é imutável, porque a ética de uma coletividade vai mudando, como bem sabemos, ao sabor de mil influências diversas. A ética social se exprime por meio de normas, que são indicações e sinais da normalidade vigente, para a necessária informação das pessoas, em sua atividade diária. Tais normas são de muitas espécies: são normas costumeiras, normas de civilidade, normas puramente morais, normas religiosas, normas jurídicas. Podemos dividi-las em duas grandes categorias: em normas jurídicas e em normas não jurídicas. Já cuidamos deste assunto no Capítulo V. Aqui, basta lembrar que as normas jurídicas são as normas autorizantes. Que significa isto? Significa que as normas jurídicas são as que, quando violadas, autorizam os lesados 361
a lançar mão dos meios que o Estado coloca a sua disposição, para exigir o cumprimento das normas violadas, ou para exigir a indenização do prejuízo causado, ou, ainda, para impor penas aos delinqüentes. As normas não jurídicas são as demais. Embora sejam mandamentos, as normas não jurídicas não são autorizantes, isto é, não autorizam ninguém, no caso de serem violadas, a exigir, por meio dos órgãos do Estado, o seu cumprimento. As normas jurídicas assumem formas diversas. Podem, por exemplo, ser leis, cláusulas contratuais, resoluções de arbitragem, costumes com força legal. Todas as normas — jurídicas e não jurídicas —, expressões da ética social, são convenções para a consecução do que é tido como justo. São determinações do justo convencional. O justo convencional — como estamos verificando — é aquilo que é justo por ser conforme a lei, ou por ser conforme o contratado, ou por ser conforme a arbitragem, ou por ser conforme o costume. Mas há um outro justo, como dissemos. Sim, além desse justo convencional, há um justo que não depende das leis, nem dos contratos, nem das arbitragens, nem dos costumes. É o justo que independe de quaisquer convenções; é o justo pela simples natureza das coisas. Sabemos, pela experiência de nossas próprias vidas, que o justo por convenção nem sempre coincide com o justo por natureza. Lembremos alguns casos expressivos, para patentear a verdade do que acabamos de dizer. Seja a pena que o juiz fixa para o condenado. Poder-se-ia perguntar: Tal pena, será ela realmente adequada à pessoa do condenado? Estará ajustada, como a luva é ajustada à mão? Estará na exata medida? Será justa de verdade? Será, realmente, a pena sua? Ah! Bem os juristas sabem, dificuldades e mais dificuldades surgem do simples confronto entre os dois justos! A mesma pena, aplicada por crimes semelhantes, a dois delinqüentes, pode não ser, verdadeiramente, a mesma pena. Os seres humanos não são iguais uns aos outros. Os fatos têm sentidos diferentes, conforme a personalidade que eles afetam. Maeterlinck disse que o destino exterior é água que esposa todas as formas do vaso que a recebe*. Em conseqüência, dar o mesmo, em circunstâncias idênticas, a pessoas diferentes, pode não ser, verdadeiramente, dar o mesmo. O eu de um delinqüente
* A sabedoria e o destino, XVI.
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pode não parecer, em nada, com o eu de outro. E a mesma pena pode repercutir de maneiras profundamente diferentes em seres diferentes*. Então, o que dizemos é que a pena aplicada é justa por convenção, porque é a pena fixada em conformidade com a lei. Mas, será ela justa em conformidade com a natureza das coisas? Vamos a outro caso, em que o justo por convenção pode não coincidir com o justo por natureza. Seja o preço estabelecido num contrato de compra e venda. Estando fixado no contrato, tal preço foi ajustado pelas partes. Neste sentido, é preço justo. É justo por convenção entre as partes. Mas pode acontecer que o preço do contrato não exprima o valor verdadeiro do objeto transacionado. Pode acontecer que o objeto seja, por exemplo, um objeto de arte ou uma casa de valor histórico. O preço constante do contrato, porém, pode ser um preço desligado do significado cultural do objeto. Então, o preço é justo por convenção das partes, mas não é justo pela natureza do objeto. Às vezes, é claro, o justo por convenção coincide com o justo por natureza. Seria de desejar que esta coincidência se verificasse em todos os casos. Aliás, quando a ordem ética é estabelecida e quando as leis são elaboradas, a intenção é sempre a de assegurar a melhor justiça possível. Na prática, porém, o que acontece é que a falibilidade e limitações humanas não possibilitam a previsão e a efetivação do que é verdadeiramente justo, em todos os casos concretos. Difícil, muito difícil, tantas vezes, saber o que é seu — o que é verdadeiramente seu! O que sabemos, sim, com presumível segurança, é o que é seu por convenção. Ora, este seu — o seu por convenção — é, precisamente, o que se pede aos juízes que declarem em suas sentenças. O que se lhes pede é que digam, em suas sentenças, a “vontade da lei”, relacionada aos casos dos autos. Velhos aforismos declaram: “O juiz é a voz da lei”, “O juiz é a lei viva”. O juiz julga — esta é sua missão. Mas seu julgamento não é arbitrário, porque se há de realizar à luz do Direito. Tal julgamento exige, evidentemente, uma anterior interpretação da lei. Ao juiz compete interpretar a lei invocada e, fundando-se nela, cum-
* Sobre a personalidade própria de cada ser humano, sobre as predisposições naturais e o patrimônio genético das pessoas, e sobre a repercussão importantíssima desses fatores na ordem jurídica, veja nossos livros O Direito Quântico e Ética: do Mundo da Célula ao Mundo da Cultura.
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pre-lhe decidir, nos autos da ação, sobre o que precisa ser reconhecido, legalmente, como o seu de cada um — isto é, cumpre-lhe declarar o que a lei manda atribuir a cada uma das partes litigantes. Esta última afirmação urge ser completada com as considerações dos dois §§ seguintes. § 165. Uma heresia Uma coorte de juízes brasileiros proclamou: “Nosso compromisso é com a justiça, não com a lei!”. E sustentaram: “Leis injustas não podem servir de razão e fundamento de nossas sentenças”, “Colocamos o Direito acima da lei”, “O papel do juiz é o de buscar ‘o justo’, em cada caso concreto, sem servidão à lei”, “O juiz deve trazer o humano para dentro do processo”, “A sentença deve refletir a angústia das pessoas”*. Conferindo-se a si próprios a designação de juízes orgânicos, tais magistrados se disseram pregoeiros da nova justiça — da justiça a que chamaram Direito Alternativo. Fascinante pensamento aquele, todo inspirado, sem dúvida, num sincero anseio de justiça. E natural foi a grande repercussão que logrou obter, nos centros culturais do País. Sucede, porém, que o apelidado Direito Alternativo não é mais do que uma quimera. Constitui, em verdade, um contra-senso. Fruto de uma lamentável confusão de idéias, a teoria dos “juízes orgânicos” é uma heresia. Esta matéria requer um momento de especial atenção. Fascinante — dissemos — o sonho de colocar, por cima do justo por convenção, por cima do justo segundo a lei, o soberano justo por natureza. Num primeiro impulso, na pura esfera de um sonho, não há quem não se sinta irmanado com os juízes do chamado Direito Alternativo. Mas, no momento em que despertamos, e saímos do sonho, e pomos os pés na terra, e o pensamento na simples realidade, que é que vemos? Vemos que precisamos nos abraçar às leis, para ser livres. Para assegurar o respeito a nossos Direitos. Para usufruir e defender o que é nosso. Para que as leis existem? Não precisamos dizê-lo. Elas existem para evitar o arbítrio do Executivo, para evitar o arbítrio do Judiciário, para evitar o arbítrio dos mais fortes.
* Do farto noticiário dos jornais sobre o assunto, destacamos a ótima reportagem do Jornal da Tarde, de São Paulo, edição de 24 de outubro de 1990.
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Há leis péssimas, sem dúvida. Mas há juízes péssimos, como todos sabem. A lei péssima pode ser revogada por outra lei. O Povo que faz a lei pode fazer outra lei. Mas quem destituirá os juízes péssimos e vitalícios? Nos casos concretos de conflito entre aparências diferentes do que é justo, que fazemos? Vamos ao juiz, sim, mas vamos ao juiz para que ele nos diga quem tem razão, em conformidade com o que mandam as leis. O que pedimos ao juiz não é, certamente, que ele nos revele a sua doutrina e suas próprias aspirações sobre o caso concreto. O que pedimos ao juiz é, somente, que ele interprete a lei aplicável ao caso concreto, e julgue de acordo com o que essa lei manda. O que queremos é nos submeter à lei, não ao arbítrio do juiz, não às teorias ou crenças subjetivas do juiz, à revelia da lei. Em suma, o que queremos é viver num regime em que a lei é soberana. É viver no Estado de Direito. O que não queremos é o regime do arbítrio de qualquer Poder. O Poder não fundado na lei, o Poder contra a lei, é o Poder discricionário. É, exatamente, o Poder que a lição da História nos ensinou a odiar, porque é o Poder dos tiranos. É o Poder que aprendemos a odiar, mesmo quando esse Poder esteja nas mãos dos juízes. A sentença “contra legem” é uma violação da lei, praticada deliberadamente pelo juiz. É ato ilícito. Ora, a lei é norma autorizante, como sabemos. É norma que autoriza o lesado, pela violação dela, a exigir o cumprimento da norma violada, e a indenização pelo dano sofrido. Logo, o lesado pela sentença contra legem tem, além dos recursos normais para as instâncias superiores, uma ação contra a pessoa do juiz, nos casos em que o juiz é infrator declarado, voluntário e confesso. Assim, nesses casos de desapreço da lei, o autor da sentença “contra legem” pode passar de juiz a réu, em ação de reparação de danos. Erraram os juízes do Direito Alternativo. Se queriam ser compreensivos e humanos em suas sentenças, o que lhes cumpria não era renegar e descumprir as leis, cometendo o que pode chegar a constituir crime. O que lhes cumpria era interpretar as leis com a lógica do jurista. Que lógica será essa? § 166. A lógica do jurista Teria o jurista uma lógica que não seja a lógica natural da razão? Que não seja a lógica formal, cientificamente descrita por Aristóteles; a lógica habitual de nossos raciocínios e argumentações, e que é a lógica da conseqüência correta? Terá o jurista uma lógica especial, própria dele somente? 365
O que, sobre este assunto, devemos dizer é que o verdadeiro jurista, ao relacionar a lei ao caso concreto, é levado a conscienciosamente acrisolar a lógica do racional, aprimorando-a com a lógica do razoável*. Tal afirmação exige esclarecimento. Para interpretar fielmente a lei, o jurista começa por vê-la dentro do conjunto de que ela participa, e a considerá-la como um componente de um sistema ético. Para o jurista, a lei não é uma proposição solta; não é, apenas, o que se lê em seu texto. Ela é, também, aquilo que ela pretende, como participante de uma ordem geral. Cumpre lembrar que a lei é sempre um mandamento harmonizado com a ordenação ética vigente (reveja o § 91). O jurista sabe que a lei tem letra e tem espírito. Quase poderíamos dizer que a lei tem corpo e tem alma. A verdade é que a lei, para o jurista, não se esgota em sua letra. A lei se acha, também, no seu pensamento e na sua intenção. Nem sempre o espírito da lei se exprime em sua letra. Pode a lei estar mal redigida, mal expressa. Mas, o que é certo é que a lei, seja qual for a sua letra, não deve ser aplicada contra o seu espírito. O juiz não pode deixar de aplicar a lei, nos casos para os quais ela foi feita. Deve, porém, aplicá-la adequadamente, isto é, deve aplicá-la considerando o espírito, o sentido que ela, em cada caso concreto, precisa ter, para alcançar os exatos objetivos que determinaram sua elaboração. Queremos aqui ressaltar uma conclusão importante. Se a aplicação da letra da lei a um caso concreto produzir efeito contrário ao que a própria lei pretende, aplicá-la equivale a violá-la, porque será contrariar o seu pensamento, o seu espírito. O juiz que a tenha aplicado assim, não soube interpretá-la convenientemente: apegou-se à letra rígida da lei, desconhecendo o seu espírito. Ao juiz não é permitido julgar violando a lei; não é permitido julgar “contra legem”. O que lhe compete é julgar em conformidade com o que manda a lei corretamente interpretada. Miguel Reale escreveu: “Uma norma é a sua interpretação”. Impossível dizer melhor (Filosofia do Direito, 5ª ed., Parte II, Título X, Capítulo XXXVIII, n. 124). * Luis Recasens Siche, Nova Filosofia da Interpretação do Direito, México, Fondo de Cultura Económica.
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Mas é evidente que a interpretação há de ser correta. Há de ser uma interpretação de jurista, ou seja, uma interpretação preocupada com a intenção e o espírito da lei, que nem sempre coincide com o estricto sentido literal da mesma. Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana solução. O que se espera é uma solução atenta às variegadas condições de cada caso concreto a que a lei interpretada se refere. Essa correta interpretação é atribuição dos juízes. A experiência demonstra que, muitas vezes, os juízes conseguem melhorar, por meio de uma judiciosa interpretação, a qualidade das más leis. Já houve quem dissesse que não haveria motivo de se temer as más leis se elas fossem sempre aplicadas por juízes competentes. Em regra, a sábia interpretação da lei é bastante para dar solução razoável ao desafio de quaisquer casos concretos, até mesmo dos casos mais melindrosos. A verdadeira compreensão das leis, a sábia interpretação delas, a sua aplicação prudente ao caso concreto, não depende de erudição apenas, mas de sabedoria, “not knowledge, but Wisdom”, daquela “sabedoria profunda e silenciosa”, de que falam os pensadores*. Valendo-se da lógica do razoável, o juiz fará uma justiça que “excede a justiça dos escribas e dos fariseus”, a que se referiu Jesus, no Sermão da Montanha. § 167. A justiça e a caridade Disseram os juízes do chamado Direito Alternativo que suas sentenças contra legem eram sempre ditadas por um sentimento de caridade. Ah, a caridade! A caridade é, sem dúvida, virtude mais alta do que a da justiça. Acontece, porém, que a justiça é mais urgente do que a caridade. Primeiro, a justiça: dê-se aos outros o que lhes pertence. Isto é fundamental. Depois, se se quiser e se houver com quê, faça-se a caridade. Pode haver justiça sem caridade, mas não há caridade contra a justiça. E é ato de injustiça dar a alguém o que é devido a outro. Tal ato, em verdade,
* Ignacio da Silva Telles, Páginas de uma Vida, Parte I, 1.
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não pode ser tido como ato de caridade, porque, evidentemente, uma pessoa só pode fazer caridade com o que é seu. Não pratica ato de caridade quem dá a alguém o que pertence a terceiro. O juiz que quiser praticar a caridade poderá fazê-lo, sim, mas só poderá fazê-lo com o que é seu, com o que é de sua propriedade pessoal. Pode fazê-lo, mas fora dos autos. Que esdrúxula caridade é essa praticada pelo juiz do Direito Alternativo! Que caridade é essa, feita pelo juiz com o que não pertence ao juiz? Não se pode fazer caridade com o que é dos outros. Que caridade é essa, com dano de terceiros? Com o que não era deles, os juízes do chamado Direito Alternativo quiseram fazer caridade. Violaram a lei, em nome de seu próprio sentimento de justiça. Promoveram-se a oráculos do justo e do injusto. Deram um péssimo exemplo. Incentivaram a ilegalidade. Justificaram o arbítrio, atentaram contra o fundamento da Democracia. E, por fim, não fizeram caridade, nem justiça, porque suas sentenças são insustentáveis, e terão de ser reformadas pelo tribunal. § 168. A justiça comutativa, a justiça distributiva e a chamada justiça legal Quando, na operação da justiça convencional, a pessoa que deu ou fez e a pessoa que retribuiu o que lhe foi dado ou feito são pessoas privadas (ou são pessoas públicas, nos casos em que são submetidas às normas do Direito Privado), a justiça é chamada comutativa. É operação de justiça comutativa, por exemplo, a entrega de coisa comprada e o pagamento do preço combinado. Quando, na operação da justiça convencional, a pessoa que deu ou fez é o Poder Público, e as pessoas que retribuem o que lhes é dado ou feito, com o pagamento do imposto ou taxa correspondente, são pessoas privadas (pessoas físicas e pessoas jurídicas privadas), a justiça é chamada distributiva. São de justiça distributiva, por exemplo, as operações realizadas pelo Poder Público, ao oferecer à população os denominados “serviços públicos”, mediante pagamento dos tributos correspondentes. A justiça distributiva recebe o nome de justiça legal quando o Poder Público é encarado como a pessoa que recebe o que lhe é dado ou feito, e as pessoas privadas são encaradas como as pessoas que dão ou fazem (como, por exemplo, os contribuintes de impostos). 368
Essa alcunha não significa, obviamente, que somente esta última forma da justiça seja legal. As outras também são legais, uma vez que todas são regidas por leis. O nome legal, dado a esta terceira forma, não é mais do que uma designação convencional. Óbvio, também, é que a justiça legal é a própria justiça distributiva, vista por outro ângulo. Em conclusão: três são as espécies de justiça convencional: justiça comutativa, justiça distributiva e justiça legal.
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5ª PARTE
A DEFINIÇÃO DO DIREITO
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CAPÍTULO XXXVII
A DEFINIÇÃO DO DIREITO
§ 169. As três necessárias definições DIREITO é o nome de três realidades distintas, o nome de três diferentes objetos. É um termo de três sentidos. Pertence, pois, à classe das palavras plurívocas. Os termos de um só sentido pertencem à classe das palavras unívocas. Observemos que as plurívocas podem ser palavras equívocas, e podem ser palavras analógicas. A palavra equívoca é termo de sentidos diversos e desconexos, isto é, termo de sentidos que não se relacionam uns com os outros. É palavra de diversos sentidos independentes uns dos outros. Exemplos: Manga = fruta; manga = peça do vestuário. Cravo = flor; cravo = instrumento musical. Lama = lodo; lama = sacerdote budista. Penso (verbo) = eu medito; penso (substantivo) = curativo; penso (adjetivo) = pendido, inclinado. A palavra analógica é termo de sentidos diversos, mas conexos, isto é, termo de sentidos que se relacionam uns aos outros. É palavra de diversos sentidos dependentes uns dos outros. Exemplos: Ciência = conhecimento; ciência = sistema articulado de conhecimentos sobre determinada matéria (ciência do Direito, ciências biológicas, ciências matemáticas); História = relato de fatos reais acontecidos (história universal, história de um País); história = narrativa fantasista (um romance, um conto de escritor, uma estória). A palavra Direito não é, evidentemente, uma palavra equívoca. Por tudo quanto se acha exposto neste livro, sabemos que as três realidades — 373
os três objetos diferentes, por ela designados — se relacionam umas com as outras. São realidades interdependentes. A palavra Direito é, de fato, uma palavra analógica. A primeira realidade chamada Direito é norma (é o Direito Objetivo). A segunda é permissão (é o Direito Subjetivo). E a terceira é qualidade (é o justo, ou a qualidade do ato justo). Pois bem, o que devemos frisar, preliminarmente, é que apenas palavras unívocas podem ser definidas com uma só definição. As plurívocas — as equívocas e as analógicas — precisam tantas definições quantos são os objetos a que se referem. Grave erro lógico é conferir às palavras plurívocas uma única definição. Quando, por acaso, assim as definimos, estaremos nos enredando em confusão de conceitos, ou mencionando um só conceito, e olvidando os demais. Sendo analógico (e, portanto, plurívoco), o termo Direito não pode ser definido com uma única definição. Para ser corretamente definido, esse termo exige tantas definições quantas são as realidades que a palavra Direito designa. Isto é: exige três definições. Designando, primeiramente, a norma de uma determinada espécie e o sistema de normas dessa espécie, o Direito se define: IMPERATIVO AUTORIZANTE e SISTEMA DE IMPERATIVOS AUTORIZANTES. Esse Direito é o Direito Objetivo, do qual cuidamos, longamente, na 2ª Parte deste livro. Depois, designando a permissão de uma determinada espécie, o Direito se define: PERMISSÃO CONCEDIDA POR MEIO DE NORMA JURÍDICA. Esse Direito é o Direito Subjetivo, que estudamos, em profundidade, na 3ª Parte deste livro. Finalmente, designando uma qualidade especial, o Direito se define: O JUSTO SEGUNDO O DIREITO ou O SEU, EM CONFORMIDADE COM A LEI. 374
Esse Direito é a qualidade do que é justo, mas justo nos termos da lei — o justo convencional —, que descrevemos, pormenorizadamente, na 4ª Parte deste livro. Alguns autores ensinam que o termo Direito é o nome de mais outra realidade. É o nome de uma ciência. Dizem eles, que Direito é o nome da Ciência do Direito. Há um equívoco nesta afirmação. Direito não é o nome de uma ciência. É, sim, o nome dos objetos de uma ciência. As três realidades chamadas Direito são os objetos da nossa Ciência do Direito. Impróprio é confundir objetos de ciência com a ciência desses objetos, e chamar de Direito a ciência que cuida deles. Mas é um equívoco sem importância. Na linguagem comum, é freqüente dizer: “Vou estudar Direito”, e não há quem não entenda que essa frase significa: “Vou estudar a Ciência do Direito”. § 170. A etimologia da palavra Direito A palavra portuguesa direito provém do adjetivo latino directus (directus, directa, directum), que, por sua vez, deriva do particípio passado do verbo latino dirigere (dirigo, dirigis, direxi, DIRECTUM, dirigire). Este verbo significa: endireitar, tornar reto, alinhar, traçar, marcar uma divisa, dirigir, dispor, ordenar, conformar, lançar em linha reta, ir em linha reta. O adjetivo qualificativo directus designa a qualidade de ser conforme a linha reta; de se achar disposto de maneira a constituir a linha mais curta entre dois pontos; enfim, de se encontrar alinhado em reta. Neste sentido é que se diz: “Oleoe directo ordine”, “Oliveiras plantadas em linha reta”, e “Directum iter ad laudem”, “Caminho direito (ou direto) para a glória”. Por analogia, o adjetivo directus pode designar também a qualidade de ser conforme à linha moral, isto é, à norma ou regra moral. Neste sentido é que se diz: “Directus senex” = “Ancião austero ou direito”. Tal extensão dada à palavra direito é devida ao fato de se ter sempre simbolizado o “caminho do bem”, o próprio bem, o melhor, pela imagem da linha reta. É por este motivo que a mão mais hábil se denomina “mão direita”. Em conseqüência, a palavra direito tem dois sentidos etimológicos: um sentido fundamental, referente ao mundo físico, e um sentido analogado, referente ao mundo ético. 375
Etimologicamente, define-se o adjetivo direito nos seguintes termos: qualidade de ser conforme à linha reta ou régua, ou à linha moral ou regra (= norma). Note-se que as palavras régua e regra têm a mesma origem etimológica. Ambas provém de regula (regula, regulae). Verifica-se imediatamente que a palavra direito, tomada em seus sentidos etimológicos, é sempre adjetivo, e não mais um substantivo, como quando ela é tomada em seus sentidos tecnicamente jurídicos, como em Direito Objetivo e Direito Subjetivo. É como adjetivo que ela figura em expressões como “rua direita”, “tábua direita”, “comportamento direito”, “homem direito”. Como adjetivo, repetimos, a palavra direito designa a qualidade de ser conforme — de ser conforme à régua ou à regra. Ora, tudo que é conforme tem a forma de outro; a outro se ajusta. E o que está ajustado é justo. Uma luva ajustada é uma luva justa. Um vestido ajustado é um vestido justo, como já dissemos. Partindo, pois, do sentido etimológico da palavra direito, chegamos à conclusão de que tal palavra, tomada como adjetivo, designa a qualidade do justo. Apressemo-nos, porém, a fazer a seguinte observação. Embora a qualidade direita seja a qualidade justa, não se pode sempre usar a palavra justo em lugar da palavra direito. Não coincidem, a não ser em parte, as extensões destes dois termos. Efetivamente, a qualidade de ser conforme à linha mais curta entre dois pontos — a qualidade de ser reto no sentido físico (de ser conforme à régua) — é designada pela palavra direito, mas não pela palavra justo no sentido moral (no sentido de ser conforme à regra). Pode, é certo, uma tábua ser justa. Mas, evidentemente, a tábua é justa não pelo fato de ser reta em sentido ético, e sim porque está na exata medida. O que, agora, somente nos interessa é a qualidade direita, no sentido de qualidade do que é justo no mundo ético. Direito, adjetivo, com o mais amplo sentido de justo ético, se define: Qualidade do que é conforme à norma. Poder-se-ia perguntar: Conforme a que norma? Responderíamos: Conforme às normas elaboradas especialmente para disciplinar as ações que se devem sujeitar a elas. 376
Tais ações serão direitas ou justas se elas se sujeitarem a tais normas. Não serão direitas nem justas, em caso contrário. Um homem direito é um homem justo. Um homem justo é um homem direito. Um homem direito ou justo é um homem cujo comportamento é conforme às normas elaboradas com o fim de disciplinar tal comportamento. Poder-se-ia perguntar ainda: Mas essas normas, não poderiam elas ser normas iníquas? Será direito e justo, o comportamento conforme com normas iníquas? E eis-nos confrontados, nestas páginas finais, com a primeira questão de que cuidamos neste livro. § 171. Motivo do nome DIREITO Toda norma — dissemos no Capítulo III, § 8 — sempre se inclui dentro de um sistema ético, ou seja, dentro de uma ordenação do comportamento humano. É, sempre, um elemento de um conjunto de mandamentos, um componente de uma normalidade. Lembremos o que já foi explicado sobre a normalidade. Sabemos que a normalidade tanto se pode referir à ordem social, à ordem instituída no Estado, como se pode referir à disciplina de uma comunidade de malfeitores. É claro que a normalidade dos malfeitores só é normalidade para o bando dos meliantes, e constitui violação da normalidade para a sociedade em geral. Aqui, a normalidade que nos interessa é a normalidade ética da sociedade global, o sistema a que se prendem normas especialíssimas — normas e sistema que se chamam DIREITO. Razões profundas justificam essa denominação. A etimologia da palavra direito as revela. Por que motivo damos o nome de DIREITO à norma jurídica? Essas normas se chamam Direito por um motivo só. Que motivo? Bem o conhecemos. O que todo ser normal deseja é que a norma jurídica seja direta, seja moral. Ela não o é, às vezes. E a história dos povos está cheia de alusões a normas jurídicas iníquas. Mas estas normas atentam contra as tendências naturais do ser humano, porque o afastam da ordem colimada. Não são propriamente normas, porque discrepam da normalidade. Com elas não pode concordar o cidadão comum. O cidadão comum almeja normas jurídicas direitas. Almeja um Direito que seja direito, um Direito que seja moral. E, como advertência aos 377
legisladores, chama de Direito a todas as leis, para que estas mereçam o nome que recebem. O homem quer leis direitas, porque quer que cada um tenha o que é seu. O homem quer que cada um tenha o que é justo. E não é por outro motivo que os romanos chamavam o Direito de “ius”. Que cada um tenha o que é seu... Que o justo seja dado a cada um... Que a lei seja condição de justiça... Tal aspiração é o que explica a evolução do Direito. Nenhum Direito Positivo é capaz de aplacar a insaciável “sede de justiça”, que perenemente açula e move a alma do jurista. Cada nova legislação busca incorporar, em suas disposições, mais uma gota do ideal de justiça. E, ao mesmo tempo, acende o desejo de ainda mais justiça, abrindo oportunidades para o desabrochar de novas leis. O Direito exprime um anelo do inquieto coração humano. Ele acompanha a vida. Ele é, em suma, um reflexo do que somos.
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CAPÍTULO XXXVIII
A DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA
§ 172. Os meios e os fins Um reflexo do que somos… Assim termina o Capítulo anterior. Do que somos? Pois bem, somos seres destinados a viver em sociedade. Para o ser humano, viver é conviver. Contra essa evidência, não se alegarão, é claro, as raras exceções de seres humanos que viveram sós. A vida solitária, como ensina Santo Thomaz de Aquino, num texto famoso que dispensa comentários, só se tem verificado em três hipóteses: na de mala fortuna (na de infortúnio, como no caso do náufrago numa ilha deserta); na de corruptio natura (na de natureza pervertida, como no caso do doente mental que não suporta a convivência); e na de excellens natura (na de natureza excelente, como no caso do ser humano que encontrou na solidão e em sua própria mente o caminho da perfeição e da felicidade). Sendo rigorosamente excepcionais, estas hipóteses confirmam a regra que Aristóteles havia resumido no conhecido aforismo: “O homem só ou é um bruto ou é um Deus”. Aliás, a simples história da humanidade leva à convicção de que a recíproca dependência é, realmente, desde remotas eras, uma condição indefectível da vida humana. Não sem razão, as Sagradas Escrituras fazem a eloqüente advertência: “Desgraçado do homem só, pois quando cair, não terá ninguém que o levante” (Eclesiastes, IV, 9, 10); assim como a afirmação consoladora: “O irmão que é ajudado por seu irmão, é como uma cidade forte” (Provérbios, XVIII, 19). 379
O estado social é o estado de natureza do homem. Esta a conclusão a que nos conduz a observação do comportamento humano em todas as fases de sua evolução. Não se pense, entretanto, que esse estado social seja um estado que a natureza inconsciente tenha imposto aos seres humamos, como parece ter imposto aos outros animais gregários. A natureza não impôs propriamente aos seres humamos o estado social, senão apenas que lhe deu imperfeições e insuficiências, ou seja, incapacidade de prover, por si só, às exigências de sua vida. E, ao mesmo tempo que impunha aos homens e às mulheres todas as suas limitações, deu-lhe a consciência de que os bens inacessíveis para o indivíduo isolado poderiam ser alcançados pela comunhão dos esforços de seres reunidos. Em conseqüência, os seres humanos, sempre em busca de seus bens, vivem, por sua livre vontade, em comunhão com seus semelhantes. Cumpre ressaltar que a sociabilidade humana é diferente da sociabilidade dos outros animais gregários. Diferente, em verdade, do que acontece, por exemplo, com a abelha, a formiga, a térmita. Por quê? Porque, não só por inclinação genética, o ser humano é levado a viver em sociedade; mas, também, por opção da inteligência e disposição da vontade. Tal é o motivo pelo qual pode dizer-se que a sociedade humana é natureza e é contrato. Os outros animais gregários vivem em sociedades que a natureza estruturou, e, quando delas se perdem, morrem. Os seres humanos também vivem em sociedades, mas em sociedades com formas diversas, estruturadas por eles próprios, e idealizadas em razão do bem deles. Se, por qualquer excepcional motivo, um deles não precisar da sociedade para viver e atingir seus fins, poderá viver voluntariamente fora dela, como sucedeu a João Batista e a Antonio, o eremita. Dentro da sociedade, cada pessoa se subordina, sim, à ordem social, como a parte ao todo. Mas a ordem social, note-se, existe para o bem das pessoas: a este bem se destina, e a ele se subordina, como o meio ao fim. Nisto é que reside a diferença de objetivo (de “causa final”) das sociedades humanas. Nas outras sociedades, o todo é o principal. Na colméia, no formigueiro, por exemplo, o que mais interessa, o que sobreleva por cima de tudo, é a salvaguarda e a permanência do todo, da totalidade da colméia, da totalidade do formigueiro — sendo despiciendo o sacrifício das individualidades que os compõem. Nas sociedades de homens e mulheres, porém, o principal é cada indivíduo, é cada ser humano, cada pessoa, singularmente considerada — e, por via de conseqüência, cada categoria ou classe, a que cada pessoa se acha incluída. 380
Por que dizemos que o principal é cada ser humano? Porque o que sobretudo interessa é a felicidade das pessoas. A sociedade existe como condição do bem-estar humano. “O homem e cada homem é que foi criado à imagem e à semelhança de Deus, e não a sociedade” — preceituava o sábio Código Social de Malinas. Sobre este assunto, extraordinariamente expressiva é a Encíclica “Divini Redemptoris”, de Pio XI: “A sociedade é um meio natural que o homem pode e deve usar para obter seu fim, pois a sociedade humana é para o homem, e não o contrário. Isto não se há de entender no sentido do liberalismo individualista, que subordina a sociedade ao uso egoísta que dela faz o indivíduo; mas só no sentido de que, pela união orgânica com a sociedade, se faça possível a todos, mediante a mútua colaboração, a realização da verdadeira felicidade terrena”. § 173. A DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA A sociabilidade própria dos seres humanos, a convivência norteada pelo bem-comum como condição do bem individual das pessoas, o regime da recíproca dependência, o sistema de direitos e deveres entrelaçados, tudo isto exige, como é óbvio, regulamentação adequada, ordenação congruente. Exige disciplinação racional. Da natureza específica dessa disciplina é do que cuidamos neste livro. Agora sabemos o que é o Direito. Afinal, o Direito é uma DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA. Este conceito não é uma definição, em sentido estricto, porque há disciplinas da convivência que não são jurídicas. Não são jurídicas, por exemplo, as disciplinas religiosas e as disciplinas das práticas habituais, que também regem a convivência. Não são jurídicas porque não são autorizantes, no sentido especializado e técnico deste termo: não autorizam os lesados pela violação delas a exigir reparação pelo dano praticado. Mas, para a ordem na comunidade, o Direito é a disciplina da convivência por excelência. É importantíssima. Dela depende o reino efetivo do bem-comum e o empenho da justiça no entrechoque dos interesses. Dela dependem as garantias do respeito pelo próximo, ou seja, do respeito de cada um pelas pessoas e pelos direitos dos outros, assim como do respeito dos outros pela pessoa e pelos direitos de cada um. Dela depende a correlação impositiva entre direitos e deveres. 381
§ 174. A Chave do Jurista Preciosa ciência é a ciência dessa disciplina! Preciosa ciência é a Ciência do Direito! O conhecimento científico da disciplina jurídica da convivência é luz não somente para o exercício das profissões na área do Direito — para os advogados, os juízes, os promotores públicos, os delegados de polícia — mas, também, para o exercício de profissões em muitas outras áreas de trabalho. Por exemplo, ela é luz para o bacharel que for comerciante, industrial, agricultor, banqueiro, médico de família, psiquiatra, engenheiro arquiteto, urbanista, ambientalista. A Ciência jurídica da Disciplina da Convivência é luz para o comportamento nas ocorrências graves do dia-a-dia. É luz para o relacionamento de marido e mulher, de pais e filhos, de companheiros e companheiras. É luz para transações, para tomadas de compromisso, para a honra da palavra dada. É luz para as decisões cardeais; para a adoção de um ofício ou meio de vida, e para as correções de rumo. É luz para o relacionamento com patrões, com empregados; para o trato com chefes, e dos chefes com seus secretários e demais subordinados. É luz para vinculações com sócios, com parceiros, com condôminos, com vizinhos. É luz para as opções finais, diante das grandes alternativas, e para a escolha do caminho nas encruzilhadas da existência. Até pode ser precioso para os roteiros de romancistas e poetas. E, certamente, é clarão norteador utilíssimo para políticos, economistas, sociólogos, jornalistas. Quem fizer, com seriedade, o curso de uma Faculdade de Direito, e obtiver o conhecimento científico da Disciplina da Convivência, está pronto para a vida. Está superiormente formado para enfrentar as exigências do quotidiano. O diplomado em Curso de Direito sabe o que é permitido e o que é proibido pelas leis. Possui, pois, o conhecimento básico de como se deve conduzir nos encontros e desencontros, nos acertos e desacertos, de que é feita a trama da comunidade humana. Ao completar o Curso de Direito, o estudante se promove a bacharel na Ciência de Conviver. Seu diploma é uma CHAVE, a primeira CHAVE para as portas do mundo. É o título valiosíssimo de quem estudou as formas legais e ilegais dos relacionamentos humanos, e se informou sobre os caminhos e descaminhos do comportamento. Por força desta mesma razão, abre chaga no seio da sociedade, o bacharel corrupto. Seja advogado, seja juiz, promotor de justiça, delegado de polí382
cia, o bacharel corrupto é uma triste figura. É traidor de seu diploma e da categoria profissional a que pertence. É traidor da ordem instituída — dessa ordem de que ele é construtor, esteio e intérprete. O bacharel corrupto é traidor da Disciplina da Convivência, da qual ele é natural sentinela e guardião. § 175. O PRIMEIRO MANDAMENTO Poderá, talvez, algum cético, algum espírito desencantado com a moral da vida, pensar que nada disto é verdade. Que fundamento, que razões asseguram a validade autêntica de uma qualquer ordenação positiva, de um qualquer sistema legislativo? Onde está — indagará o descrente —, onde se encontra, nessa instável e movediça disciplina, a rocha viva, a garantia de um princípio excelso e perene, que seja mais alto, mais seguro do que as oscilantes e efêmeras leis, de que são feitas as estruturas jurídicas, existentes sobre a Terra? Uma estória antiga nos conta que um moço aflito deparou Jesus numa vereda, e, trêmulo, perguntou: — Mestre, que devo fazer para merecer o Céu? Jesus respondeu: — AMA TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO*. Deixemos de lado, se quisermos, o caráter religioso dessa narrativa. Fiquemos, apenas, com o que ela exprime. No mandamento proferido, lobrigamos a resposta às indagações do cético. Nele descobrimos o ansiado princípio, o princípio “mais alto”, a máxima anterior à singela norma do respeito pelo próximo. Esse luminoso mandamento — forma de um sentimento recôndito, muitas vezes nem bem consciente, mas natural e norteador no coração humano dos verdadeiros legisladores — é, certamente, a primordial razão-deser das ordenações sociais. Ela não é jurídica, essa norma, pronunciada por Jesus. Mas ela manifesta uma condição preciosa de entendimento e harmonia. Nela está uma inicial inspiração, a recomendação basilar, da qual a inteligência infere — de conjuntura em conjuntura, de degrau em degrau — todos os imperativos
* São Matheus 19, 16-19. Veja o mesmo mandamento em São Matheus 22, 34-40; São Marcos 12, 28-31; São João 13, 1-2; 15, 12. Veja o Sermão da Montanha, São Matheus 5, 44; São Lucas 6, 27.
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e todas as interpretações das disposições jurídicas. Com a consciência apoiada nesse PRIMEIRO MANDAMENTO é que os legisladores sinceros são misteriosamente conduzidos, na construção de seus edifícios normativos. É com ele na subconsciência que os juristas manejam a sua CHAVE, ao empregar a lógica do razoável, na interpretação das leis. Quando os construtores e os intérpretes se apartam dele e o invertem, por erro ou por algum nefasto motivo, a Disciplina da Convivência perde seu alicerce, se desvirtua, se corrompe, passa a infelicitar a comunidade. É o que acontece, por exemplo, quando a disciplina legítima da convivência é substituída pelas ordens do arbítrio, dos autocratas e déspotas. É também o que acontece nas épocas de falsa democracia, em que o Governo esquece sua verdadeira missão de meio, a serviço das pessoas; administra a Nação com cegueira para as necessidades vitais da multidão — despegado das carências e precisões das pessoas, dos trabalhadores de todas as categorias —, e se volta, com desalmada prioridade, para interesses “globais”, muitas vezes ilegítimos, de um Estado divorciado do Povo. O amor pelo próximo é princípio subliminar da ordem. É o sentimento primeiríssimo, o primeiríssimo elã da alma, dos que são levados a conviver numa comunidade. Mesmo quando obumbrado, não bem percebido ou expresso, ele é o cimento subjacente da união dos seres na sociedade. É o elo tácito da comunhão humana. Em verdade, o amor constitui, no imo da consciência de legisladores e intérpretes, a matriz silenciosa, o submerso manancial, a inspiração geradora da Disciplina da Convivência. É a origem mais pura, mais profunda da legislação: a causa das suas causas. É a fonte natural do Direito.
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