Inconsciente, O: Varias Leituras
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FELICIA

KNOBLOCH

(Org.) ANA LIA B. AUFRANC

CONTARDO

CALLIGARIS ELIAS MALLET DA ROCHA BARROS LUIZ TARLEI DE ARAGÃO

MARIA CRISTINA BORJA GONDIM

MARIA LjCIA CACCIOLA

SON LHO JR. ATO

ZAN

RLETT

RTON

LkO LOPARICC

escuta

INCONCIENTE

VÁRIAS LEITURAS

O

Freud

inconsciente -

a

descoberta

de

hipótese

que abala uma das mais queridas crenças do homem do Ocidente: o primado da Razão. Freud reconhece o impacto de sua

descoberta quando

diagnostica

a

co-

ferida narcísica da humanidade. De fato, é, no fundo, inaceitável mo uma

que a terra não seja o centro do uni

homem não seja filho de Deus que o humano nåo seja um ser racional já que a maioria de suas açöes provém de âmbito que Ihe 6 verso; que

o

e

inacessível o inconsciente.

Pensar o humano depois de Freud requer, portanto, que se leve em con-

sideração

essa

hipótese fundamental.

Neste sentido, a psicanálise não se restringe ao campo clínico mas invade a filosofiac as ciências humanas. Os

e

filósofos,

os

principalmente

cientistas humanos

os

literatos,

por que

pensam o humano têm, como observa o

próprio Freud, importantes

contridar para a psicanálise. Em abril de 1989, a Professora

buições a

Felicia Knobloch, psicanalista, tomou iniciativa de promover, na Pontifícia

a

Universidade Católica de São Paulo, um Simpósio sobre o Inconsciente. Este encontro faz voltar à

memádaqueles que possuem uma familiaridade com a história da psicanálise ria

um

outro encontro:

Bonneval.

o

Colóquio

de

No evento

promovido pelo psiEy, Jacques Lacan, Laplanche e Serge Leclaire

quiatra

Jean

Henri

apresentaram trabalhos que se tornaram

famosos

e

iFdispensáveis

ber psicanalítico. ainda que

ao sa-

Esses trabalhos,

apresentem aspectos

con-

trovertidos entre si, foram escritos tendo como horizonte intelectual o li-

O INCONSCIENTE:

VÁRIAS

LEITURAS

Equipe de realização:

Capa: Yvoty Macambira Revisão: Araide Sanches e M. Isabel de Almeida Editores: Manoel Tosta Berlinck Maria Cristina Rios Magalhes

Produção: Araide Sanches

Ana

Lia B. Aufranc, Contardo Calligaris,

Elias

Mallet da

Rocha Barros, Felícia Knobloch (org.), Luiz Tarlei de Aragão, Maria Cristina Borja Gondim, Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola, Nelson Coelho Jr., Renato Mezan, Scarlett Marton, Zeljko Loparic

oTECADA

FC

UNESP

ASSS

O INCONSCIENTE

VARIAS

LEITURAS

0701062729

M

I

escuta

62729

b y Editora Escuta da edição em língua portuguesa

1 edição: março de 1991

Dados de

Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O

Inconsciente: várias leituras / Ana Lia

Aufranc.. [et al.]. -- São Paulo: Escuta, 1991.

na

Trabalhos apresentados no

PUC-SP, em abril de

Bibliografia. 1.

de

1989.

Simpósio de Psicanálise realizado

Psicanálise 2. Subconsciente I.

Psicanálise (1989: PUC, SP)

Aufranc, Ana Lia. II.

Simpósio

ISBN 85-7137-029

90-2015

CDD-154.2 -150.195

Indices para 1. 2.

catálogo sistemático:

Inconsciente: Psicologia 154.2 Psicanálise: Teorias:

Psicologia 150.195

Editora Escuta Lida. Rua Dr. Homem de Mello, 351

05007 São Paulo, Fone (011)65-8950S.P 1991

SUMÁRI1o

1. Apresentação

9

por Felicia Knobloch... 2. Schopenhauer e o inconsciente por Maria Lúcia Mello e

Oliveira Cacciola

. .

11

3. Nietzsche: consciência e inconsciente

por Scarlett Marton .. .. 4. Um olhar epistemológico sobre o inconsciente freu

diano por Zeljko Loparic

27

43

5. Diálogo com Loparic 59

por Renato Mezan... 6. O inconsciente em Jung por Ana Lia B. Aufranc

73

7. Inconsciente: perspectiva kleiniana

91

por Maria Cristina Gondimn

8. O sistema kleiniano por Elias Mallet da Rocha Barros.. 9. O inconsciente em Merleau-Ponty

Jr.

por Nelson Coelho 10. O inconsciente em Claude Lévi-Strauss ou a dimensão inconsciente

nos

por Luiz Tarlei de

. . .

.

109 123

fenómenos culturais

Aragão

. . . . . . .

147

O

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURASs

11. O inconsciente em Lacan por Contardo Calligaris Sobre os autores

. .

167 183

APRESENTAÇÃO

Os trabalhos aqui reunidos foram apresentados no Simpósio de Psicanálise, realizado na PUC-SP, em abril de 1989. Nos últimos anos, realizaram-se debates, conferências e seminários sobre questões clínicas em psicanálise como, por exemplo, transferência-contratransferência, interpretação, direção da cura etc., onde abordavam temas específicos sem uma retomada

da noção fundamental: o Inconsciente. Tal passo nos pareceu pertinente, pois as diferenças na sua concepção deveriam implicar conseqüentes diferenças nas teorizações clínicas.

O simpósio teve este objetivo: proporcionar uma oportunidade para que este re-estudo fosse possível e nos permitisse evidenciar as especificidades de tais formulações, já que os conceitos têm seu prolongamento nas perspectivas técnicas da psicanálise. Consideramos importantes, neste estudo, a inclusão das di-

mensões filosófica, epistemológzica e antropológica pois, assim, poderemos reconhecer algumas das sobredeterminações implíci tas nas formulações psicanalíticas. Os textos deste livro seguem a ordem das apresentações das

conferências. serconcluir, esperamos que, tal como o simpósio, que deste rei u como provocação, este livro permita a continuidade contexestudo: situar a emergência de noções numa época e num

Para

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

10

to culturalc contribuir para a análise da construção desta mésma nocão. Que dirá então no caso da psicanálise, onde o inconsciente

freudiano é a pedra angular e aquilo que nos possibilita falar do sujeito e de sua constituição. Que sujeito é este que csta ou aque-

la noção de inconsciente produz? Queremos agradecer a todos os conferencistas pela sua parti-

cipação, a Thaís Sarmanho Pauloe Sylvio José Rocha pelo seu trabalho na organização do evento, à Casa do Psicólogo e à

PUC-COGEAE

pela sua divulgação. Felicia Knobloch

SCHOPENHAUEREO INCONCIENTE

Maria Lúcia Mello

e

Oliveira Cacciola

O título desta palestra j conduz a uma direção predeterminada. O "Inconsciente" (das Unbewuste) não é um conceito

que figure na obra de Schopenhauer. Sem dúvida, o filósofo refere-se a seres não dotados de consciência (bewustlos) e ao estado de

não-consciência (Bewustlosigkeit), mas não emprega o termo Inconsciente na sua forma substantivada. O conceito de Inconsciente evoca, na atualidade, Freud e a psicanálise, embora não lhe fal-

tem antecedentes na História da Filosofia. Assim, ao nos propormos a falar sobre "Schopenhauer e o Inconsciente", já se

pressupoe uma relação entre Schopenhauer e Freud, que já conta, aliás, com um bom número de comentários e já é de certo modo consagrada pelas várias menções que o próprio Freud faz,

na sua obra, ao filósofo. Segundo um texto de Fauconnet, de 1933, intitulado "Schopenhauer, precursor de Freud", já na época deste, seus críticos compraziam-se em questionar sua originalidade por meio da aproximação à filosofia de Schopenhauer e, ao

mesmo tempo, alguns discípulos o louvavam por ter sido capaz de

extrair do Mundo conno vontade e representação, a obra principal de Schopenhauer, "uma terapêutica nova e profunda". Personagem central nesta vinculação entre Schopenhauer e a Psicanálise eo psiquiatra berlinense Otto Juliusburguer que, em 1926, no ar-

tigo "Schopenhauer e a psicologia do presente", afirma ter obtido bons resultados na sua atividade terapêutica "aprofundando o

o INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

14

genial precursor", Desse moda psicanálise a uma espécie de "schope-

luz do pensamento de Frcud à

Juliusburguer reduzia

a

seu

nhauerianismo aplicado", a uma terapia bascada na doutrina

schopenhaueriana.'

Não nos deteremos na questão da procedëncia ou impro-

cedência dessas reivindicações que fazem de Schopenhauer um

obra de "precursor de Freud". As menções. a Schopenhauer, Freud, permitem por si só aproximá-los. De fato Freud na Con tribuição para a história do movimento psicanalitico reconhece a na

antecipaçáo

de

Schopenhauer

no

que

se

refere à teoria do recal-

que: No que diz respeito à teoria do recalque, certamente cheguei a ela por mim mesmo, sem que nenhuma influência tenha me aberto um caminho; e, por muito tempo, mantive essa idéia por original, até que O. Rank me mostrasse o lugar de O mundo como vontade e re. presentação, onde o filósofo se esforça por fornecer uma explicação

da loucura.

No texto "As referências à psicanálise", de 1925, Freud chega a reconhecer Schopenhauer como precursor, quando este admite a importância da sexualidade. Freud, no entanto, mesmo reconhecendo concordâncias de idéias entre suas teorias e as de Schopenhauer destaca sempre a primazia do labor científico e da observação clínica na elaboração de suas descobertas. Na "Selbst darstellung", de 1925, Freud esclarece ter lido Schopenhauer mui-

to tarde, marcando com isso sua autonomia na conquista de seus conceitos emétodos.3 Tampouco nos deteremos numa análise dos comentadores que ora tornam maior a proximidade entre Freud e

Schopenhauer, ora salientam suas diferenças. Iso porque acreditamos que a filosofia e a psicanálise constituem dois campos disintos de conhecimento, com especificidades e objetivos bem

de

1. FAUCONNET, André. "Schopenhauer, percurseur de Freud", Mercure de France, 15.12.1933, Paris, 566.

p.

2. FREUD, Sigmund. Contribuição à história do movimento psicanalitico. Citado por Assoun Laurent. Freud e os filósofos, Francisco Alves, Rio de Janeiro,

1978, p. 174. 3. Idem, ibidem, pp. 177-183.

sCHOPENHAUER EO INCONSCIENTE

15

finidos e que embora possam inter-relacionar-se em função de sua época e da própria organização do saber que as caracterizam,

não apresentam um denominador comum que permita sua re-

dução mútua. Assim, embora não esteja vedado ao filósofo interpretar a psicanálise, emitindo até mesmo juízos sobre seu estatuto enquanto ciencia (p. ex., no caso de Popper) ou mesmo utilizar

seus conceitos (o caso de Habermas), quando o faz nao deixa de permanecer no campo da filosofia. Do mesmo modo que o próprio Freud quando emite juízos sobre a filosofia, a interpreta no domínio e com o instrumental que a teoria psicanalítica põe a seu dispor. Portanto, detectar influências ou mesmo coincidências de

idéias, sem referência ao contexto de saber em que elas senscre vem, nos parece uma tarefa senão inglória, pelo menos sem gran-

de proveito. Para elidir tais dificuldades nos ateremos ao campo da História da Filosofia e, tomando como ponto de partida o pensamento de Schopenhauer, procuraremos estabelecer alguns dados que interessem à história do conceito de inconsciente. Neste percurso nos guia o fato de que a filosofia de Schopenhauer estabelece as

condições de possibilidade para que se possa conferir àquilo que não é dotado da função de conhecimento ou não-cognoscente um estatuto positivo, estatuto este que o conceito de

(Bewustlos),

"Unbewuste certamente terá.

A filosofia de Schopenhauer representa, na primeira metade do século XIX, para usar a expressão de Cassirer "a inversão na ordem habitual das idéias, estabelecida na psicologia de Descarem tes". Para Cassirer essa inversão remonta a Locke e Leibniz, "uneasiness" e que a noção de "inquietude" (respectivamente, os "Unnuhe") adquire uma importância decisiva para explicar movimentos do querer, chegando mesmo em Condillac a ser considerada como o motor do próprio conhecer. Este seria o germe do que Cassirer chama de "atitude voluntarista", caracterizada

pelo fato de que "a vontade não é mais causada pela represensim a representação pela vontade"4. Esta virada culmina no pensamento de Schopenhauer e podemos até mesmo di-

tação,

mas

4. CASSIRER, Ernst. A filosofia das luzes, Fayard, Paris, 1978, p. 126.

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

16

zer que cla caracteriza de certo modo sua filosofia. Logo no pri

meiro capítulo do Mundo como vontade e representação Schopenhauer consagra tal princípio, quando faz do mundo visto como Vontade a contrapartida necessária do mundo como Representação. Eà Vontade que cabe dar consistência a um mundo que mero jogo de sombras." Ao sem ela seria mera fantasmagoria, um sua visão de mundo enquanto representação de afirmar

que a contrapartijeito que conhece é unilateral e que, por isso, exigereconhece ainda do mundo visto como Vontade, Schopenhauer mais da a necessidade de se considerar o sujeito como sendo algo que

o mero

mundo

conhecer

ou

pensar. "..com

que está contraposto

representação,

o

significado.. do

o

simplesmente como minha encontrado, se o investigador

mim

poderia ser puro sujeito do

nunca

nada mais fosse que

a

efcito

conhecimento

(a cabeça de

anjo alada, sem o corpo)". conhece acrescenta-se o sujeito que quer, como os dois componentes necessários do indivíduo. Este querer,

Ao

sujeito que

Schopenhauer nomeia

Vontade

e a

define por

oposição à Repre-

do corepresentação ou fenômeno é o próprio objeto nhecimento e como tal segue as condições que lhe são impostas

sentação;

a

sujeito que conhece: submete-se ao temp0, espaço e pelo lidade. A Vontade é, em contrapartida, livre e sem fundamento e, causa-

ainda, fora do tempo representação

ou

e

do espaço. Assim,

fenômeno do

já que

a

Vontade não é

e paraoconhecimento, ela é

uma

coisa-em-si-mesma (aqui Schopenhauer retoma a distinção kantiana entre fenômeno e coisa-em-si). Mas para que se possa pen-

sar esta coisa-em-si é necessário nomeá-la. E, para isso, Schope suas nhauer toma de empréstimo o nome e conceito de uma das manifestações, a vontade humana, que para ele é o fenômeno que melhor esclarece (Beleuchtende) a vontade para o conhecimento humano. O conceito de vontade, obtido pois no conhecimento

imediato que o ser humano tem de si mesmo, é ampliado por mundo Schopenhauer a todo conhecimento mediato próprio ao

in

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação Darmstadt, Werke, v.I, Ed. von Löhneysen, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, S.

1974, pp. 32-33. 6. Idem, ibidem, p. 156.

sCHOPENHAUER EO INCONSCIENTE

17

fenomênico. A Vontade torna-se assim o gênero, do qual os demais fenomenos so

espécies. Assim, o

mundo dos fenômenos

ou

representaçoes pode ser considerado, ao mesmo tempo, como vontade. Ela é sua face oculta, no que se refere ao conhecimento

mediato, mas que mesmo como tal tem que ser levada em conta. Para Schopenhauer, o mal-entendido a da vontade está respeito em pensar que a palavra "Vontade" indica uma espécie, ao se entender por meio dela exclusivamente o que é guiado pelo conhecimento, ou seja, a vontade que se expressa sempre em conformidade com a direção da razäo. Esta é apenas uma forma de Vontade, a que condiz com seu fenômeno mais claro, a vontade humana. Portanto, a vontade humana que já revela a atuação do in-

telecto, através dos motivos que ele lhe apresenta, não é idêntica

à Vontade tomada como algo em-si-mesmo. Esta é o próprio querer-viver, essência tanto do homem, como também, por analogia, do mundo. Mas este querer-viver furta-se ao conhecimento

fenomênico, ao conhecimento do mundo como representação, c sô & capaz de revelar-se na experi ncia

interior que cada um de

nós tem do seu próprio corpo em ação. Sendo o corpo a objeti-

vação da Vontade, o ato de vontade é um ato corporal. O ato de vontade jamais pode consistir na mera deliberação, pois esta cor responde à mera representação intelectual do seu objeto, um me-

ro desejo, sinônimo de aspiração.' Na metalisica de Schopenhauer instaura-se definitivamente a

precedência da vontade sobre o intelecto ou, melhor dizendo, so bre as representações intelectuais. E neste ponto preciso que Schopenhauer vai centrar sua critica à Kant, de quem, apesar dis-

so, considera-se seguidor e discípulo. E porque Kant deu à Razão o papel mais importante, fazendo dela "o núcleo do homem", é que ele não pode ir além do signilicado meramente crítico e ne-

gativo de sua filosofia. Quando Kant limita, no campo especulativo, o alcance da Razão ao domínio da experiência teria, ao mesmo tempo, estruturado esta última, segundo as formas do juizo

lógico, através das categorias e partido, portanto, do campo das representações intelectuais para as intuitivas. Com isso teria deixado de lado, em função de um esquema de pensamento, a imen-

7. Idem, ibidem, p. 151 e ss.

O INCONSCIENTE; VÁRIAS LEITURAS

18

sa diversidade quc o mundo intuitivo oferece.3 Outro ponto de atrito entre Schopenhauer e Kant é a questão da moral. A moral

kantiana expressa a soberania da Razäo, a "vontade boa" ou a

vontade moral é sinônimo de racionalidade. Ou scja, a vontade moral, estando cm conformidade com o imperativo categórico, expressaria a verdadeira destinação do homem, a de transformar-se num ser cujas motivações fossem puramente racionais, ou,

como diz Schopenhauer, cuja essência é a Razo.

A Ética de

Schopenhauer caminha num sentido oposto à de Kant, elevando os sentimentos e emoções a verdadeiros motivos da ação moral. A Razão mostra-se incapaz de motivar a realização de uma ação moral, já que não pode sobrepor-se à vontade. Sendo um instru

mento desta última, a Razão não pode ditar-lhe normas.° Não é nosso propósito analisar aqui a moral de Schopenhauer, mas apenas indicar que o ato moral só se faz possível

quando os indivíduos deixam de ser "indivíduos" no sentido próprio da palavra, a saber, entidades auto-suficientes e isoladas; isto acontece quando os indivíduos descobrem que partilham da mesma essência, que são manifestações de uma mesma e única

vontade. Assim, só há ação moral quando é transposto o princípio de individuação, responsável pela luta sem trégua de interesses que se dá na sociedade, réplica do bellum omnis contra omnes

hobbesiano. A sociedade ideal em que impera a harmonia promovida pela racionalidade é algo que não se coaduna com um pensamento que tem como princípio um impulso (Trieb) cego, sem nenhum bom "telos", ou seja, uma providência divina ou

qualquer outro finalismo que a substitua. Para tornar mais compreensível a relação entre intelecto e Vontade, nada como a leitura de um trecho do Mundo como von

tade

e

te

gênese e a função

a

8.

representação

em

que

Schopenhauer explica fisiologicamen-

do intelecto

SCHOPENHAUER, Arthur.

e

da consciência:

Critica da

pensadores", Abril Cultural, São Paulo, 1980, p. 9.

631 e ss.

filosofia kantiana, Coleção

"Os

116.

SCHOPENHAUER, Arthur. Fundamento da

moral in Werke,

v.

II1, p.

sCHOPENHAUER E O INCONSCIENTE

19

A Vontade como coisa-cm-si constitui a essência íntima, verda-

deira e indestrutível do homem. Todavia, em si mesma, é destituída de consciência (bewustlos), pois a consciência é condicionada pelo intelecto e este é um mero acidente de nosso ser (grifo nosso). Ele é

uma. função do cérebro que junto cgm os nervos e a medula espinhal um mero fruto, um parasita do resto do organismo, já que náo intervém diretamente no seu mecanismo, mas seve para auto-conser

vação, apenas na medida em que regula suas relações com o mundo exterior. O próprio organismo é, em contrapartida, a visibilidade, a

objetividade da vontade individual, a imagem dela. Como ela se apresenta naquele mesmo cérebro; por isso mesmo mediada pelas suas

formas de

conhecer, espaço, tempo, causalidade.

E neste mesmo texto, que se intitula "Da primazia da Vonta

de sobre a consciência de si", que Schopenhauer define a consciéncia: esta, tanto como consciência do mundo exterior, quanto como consci ncia

de si contém uma parte que conhece e uma

parte que é conhecida, uma vez que, para Schopenhauer, não tem sentido se falar em sujeito sem objeto. A partir daí, conclui, em primeiro lugar, que é impossível uma consciência como inteligência pura pois, nesse caso, haveria um conhecimento sem objeto e, em scgundo lugar, que o que conhece não pode ser conhecido, pois senão teria que ser objeto de conhecimento de outro ser que conhecesse. Na consciência de si, o que é conhecido é a vontade e, a este respeito, Schopenhauer esclarece que não se trata ape nas do querer e do deliberar, mas de todo "esforgo, apetite, aversão, csperança, temor, ódio, em resumo, tudo o que constitui

imediatamente o próprio bem-estar ou mal-estar, prazer ou desprazer. Tudo isso é manifestamente estímulo, modificação do querer e do não querer, é aquilo que quando age externamente

manifesta-se como ato de vontade". A Vontade enquanto o co-

nhecido é o primeiro, o originário, o protótipo. O que conhece 6

o secundário, o éctipo. Duas imagens ilustram a relação entre o a dos querer e o conhecer: a dos corpos que tëm luz própria e a raiz seria a vonque apenas a refletem; e a das plantas, em que tade e a corola, o ostensivo, o intelecto. O ponto de indiferença

10. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação in Werke, v. II, p. 259.

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

20

entre a raiz e a corola, que pertence a ambos éo "eu'". O "eu" 6.

pois, a identidade temporal entre o sujeito do querere do conhe cer, identidade inexplicável para o próprio filósofo, em virtude da

heterogencidade completa entre seus dois componentes, intelecto e vontade.1

Após definir o que é consciência, a partir do que é comum e constante nela, Schopenhauer explica o que faz com que as cons-

ciências se distingam entre si. A diferenciação obedece não à vontade, mas à maior ou menor extensão da esfera de conhecimento. O querer o mesmo entre as diversas espécies de animais e estes, mesmo nos seus graus inferiores, querem bem-estar, vidae procriação. Não se pode, no entanto, dizer que os animais pensam e julgam, embora se possa afirmar que eles tëm represen-

taçoes, condição necessária para que a vontade seja posta em movimento. Como diz Schopenhauer, "o homem tem em comum

com o polipo, o querer" e "o abismo entre o homem eo animal

surge única e exclusivamente pela diferença intelectual". Ora, quanto maior a complexidade do organismo e quanto maiores suas necessidades, tanto mais extensa a parte representativa da consciência. E no homem que esta força de representação adquire o maior grau de perfeição e ele nao é somente capaz de representações intuitivas, mas também de representações abstratas e, portanto, dotado de pensamento e Razão. E por isso que nele a

parte secundária da consciência adquire papel preponderante c, por mais fortes que sejam seus apetites e paixões, sua mente está sempre ocupada com representações e pensamentos. E aí que

Schopenhauer detecta a gênese do erro fundamental cometido pelos filósofos que atribuem a primazia ao pensamento ou àquilo que chamam de alma, isto é, a vida espiritual ou inferior dos ho-

mens. Para estes o querer seria mero resultante do intelecto. Mas, pergunta Schopenhauer, se a vontade proviesse do intelecto, como se explicaria o fato de que nos animais inferiores, junto a

um mínimo de conhecimento, houvesse uma vontade tão forte? No homem, só em indivíduos muito bem dotados é que o intelecto pode ter a supremacia; é neles que o intelecto se separa da

11. Idem, ibidem, pp. 260-261.

sCHOPENHAUER EOINCONSCIENTE vontade seu

c

saber

21

não é afetado por ela. Eles são chamados é "o espelho do mundo",

objetivo

gênioseo

Resta examinar quais as relações que Schopenhauer estabelece entre estes dois componentes heterogêneos da consciência: o

intelccto

e a

vontade. Os pensamentos e imagens do intelecto po-

dem pôr a vontade em movimento, mas nesta afecção da vontade, os conteúdos intelectuais nem sempre são claramente percebidos ea transtormação do elemento intclectual em

elemento volitivo é

rapida demais, para que se possa perceber o fato de imediato. certo, porém, que as representações intelectuais podem produzir estados emocionais os mais diversos, tais como: med0, cólera, alegria, melancolia etc. Todavia, nestas relações recíprocas é ainda a vontade que comanda.

Faz sentir em última instância sua soberania, já que prosbe certas representações, não deixa surgir certas sucessóes de pensamento

porque sabe, ou seja, experimenta, por meio do próprio intelecto que, com isso, cla seria posta em certos movimentos que lhe repug-

nam; refreia então o intelecto e o força a desviar sua atenção para outras coisas.5

Estas resistências só podem partir da vontade e não do intelecto, pois este nada sente, mantendo-se portanto na indiferença. Por fim o intelecto, apesar de fornecer motivos para a vontade, é

alheio, em muitos casos, às suas resoluções. Por vezes toma consciência delas com surpresa, como que pegando-a em flagrante nas suas manifestações. O exemplo é o de desejos que por muito tempo permanecem inconscientes, mas que, ao se realizarem,

despertam alegria acompanhada de uma certa vergonha de termos desejado exatamente aquilo que contrariava a boa opinião que tínhamos de nós mesmos. Além disso, Schopenhauer faz uma distinção entre o motivo aparente e o motivo real de nossas ações: o que, por exemplo, pensávamos não fazer por uma razão moral, na verdade é por medo que não o fazemos. Para os filósofos que acreditam que o intelecto é o centro da nossa natureza e

que as resoluções da vontade emanam do intelecto, não há dis-

12. Idem, ibidem, pp. 262-265. 13. Idem, ibidem, p. 268.

O

22

INCONSCIENTE: VÄRIAS LEITURAS

tincão entre motivo real e aparente, sendo este o único que deci-

de sobre o valor moral. A conclusão de Schopenhauer é que "o intelecto é tão estranho à vontade que chega, algumas vezes, a ser

mistificado por ela. Fornece, por certo, motivos para a vontade, mas não conscgue penetrar na oficina secreta de suas reso-

luções14 Segue-se um clenco de fatos que serviria para corroborar esta diferença entre o intelecto e a vontade. Fatos estes que se referem à experiência interior de cada um e que, por vezes, recebem a confirmação da ciencia da época, em especial, dos fisiólogos

franceses, Cabanis e Bichat. Entre esses fatos está a contraposição entre a fadiga do intelecto e o caráter incansável da vontade; o conhecimento é trabalho penoso, a vontade é espontânea; a

atividade da vontade é originária, contendo em si seu próprio movimento, ao passo que a atividade intelectual é derivada e forçada.

A vontade já surge pronta e acabada no recém-nascido (aqui Schopenhauer invoca o testemunho de Cabanis). Por outro lado, o intelecto desenvolve-se lentamente, acompanhando o desenvol. vimento do cérebro. A prova mais cabal do caráter incansável da vontade é a precipitação (Voreiligkeit): ou seja, a vontade como

elemento executivo, deveria aguardar a deliberação do intelecto, mas dada a lentidão deste último, toma a dianteira e nos leva a ações irrefletidas, sem que o intelecto possa refreá-la. Aí mostrase a essência originária da vontade que a separa do intelecto. Ou-

tra prova desta separação é dada pelo obstáculo que a vontade representa para o exercício da plena função intelectual, através de

suas emoções. Diante do pavor, ou ficamos paralisados ou agimos de forma absurda: num incêndio, lançamo-nos nas chamas. Na imde cega, ficamos como paixão, chamada bem a

propósito

que

pedidos de pesar os prós e os contras. A alegria nos tira o discer-

nimento e toda hesitação tímida. Por isso é que, numa situação de

perigo, o que vale é o sangue frio e a presença de espírito que correspondem ao silêncio da vontade e à livre atividade do inte lecto. Portanto, se vontade e

funções

de

um mesmo

ser,

14. Idem, ibidem, p. 271.

intelecto fossem

a um aumento

originários e

de atividade da vontade

sCHOPENHAUER E0INCONSCIENTE deveria

corresponder

23

aumento de atividade intelectual, justo fatos que mencionados desmentem. Neste ponto, Schope nhauer faz intervir um o um

os

o

argumento fisiológico:

se

organismo

é

a

própria vontade tornada corpo, as emoções fortes devem aumentar as

funções orgânicas,

tais

como:

respiração, circulação, força organismo,

muscular etc. O intelecto, porém, é um parasita do uma funçäo encefálica só que pede alimentação e

assim, qualquer perturbação

ou paralisia intelectual.

no

organismo

repouso. Sendo produz uma alteração

Além das paixöes, responsáveis por fortes perturbações da

atividade intelectual,

Schopenhauer

menciona outras inclinações

aptas a talsear, pouco a pouco, mas de modo durável, o pensa-

mento. Esperança e temor tornam-se próximos e verossimeis seus

objetos. Amor e ódio falseiam nosso juízo e, nos nossos inimigos, só vemos defcitos, mas nos amigos, qualidades. Nosso interesse

pessoal age do mesmo modo: o que lhe é conforme parece justo e

razoável, o que lhe é contrário, absurdo e injusto. Em suma, tudo que contraria nossos afetos não recebe boa acolhida no intelecto. A recusa em admitir o erro vem do temor de reconhecer que, por

muito tempo, acreditamos no que era falso. Eis por que, na ciên-

cia, novos pontos de vista e a refutação dos erros longamente aceitos como verdades, encontram tantas resistências. E Schope

nhauer chega a comparar a derrubada de um sistema teórico à derrota de um exército. Mas, se a vontade é um elemento de perturbação do intelecto, pode também, em certos casos, cstimulá-la. Um desejo muito forte ou uma grande necessidade podem conferir-lhe um vigor ex-

tremo. Também a memória é intensificada pelo ímpeto da vontade c, mesmo uma memória fraca, retém plenamente o que tem

valor para o afeto dominante. Schopenhauer distingue uma memória do espírito de uma memória do coração, ou seja, de uma memória afetiva e mais íntima que retém apenas o que afeta

a vontade. Ela é, aliás, o substrato da memória em geral, a base

sobre a qual fixam-se as lembranças eofio condutor ao longo do qual elas se alinham. O caso particular do aumento de memória, sob pressão da vontade, representa o fato mais geral da presença da vontade na conservação de qualquer lembrança. A vontade está na base da memóriac um ser que fosse sóconhecimento não

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS 24 conseguiria reter nada.5 Na Dissertação sobre o princlpio de

razão, Schopenhauer explica o mecanismo da memória a partir

da vontade. E a vontade que mobiliza a associação de idéias, que

faz com que a certas representações presentes liguem-se outras passadas, por meio da lógica, da analogia e da contigüidade no

espaço ou no tempo. Mas a atividade da vontade, ao pôr em mo-

vimento as engrenagens associativas, é por vezes tão imediata, que não temos consciência da ocasião que evocou uma certa representação, parecendo-nos que cla surgiu de repente na consciência, sem estar relacionada com nenhuma outra.°

A gênese da loucura não está no intelecto, mas na vontade. Schopenhauer explica-a como uma perturbação da memória. Ela é uma ruptura no fio das lembranças, produzida por uma dificuldade de assimilação intelectual de uma certa representaço. Se algum conteúdo representativo é penoso demais para a vontade, esta não permite que o intelecto assimile. Surge então uma lacuna

(Lücke) que interrompe a real sucessão dos eventos na memória e que é preenchida por outro conteúdo arbitrário. A loucura é assim o último recurso da vontade contra um sofrimento insuportável17

Por fim, Schopenhauer estabelece uma diferença tópica entre estas duas partes constitutivas do indivíduo. A vontade como querer-viver e cujo interesse maior é a perpetuação da espécie, tem sua sede nos órgãos genitais, sendo a sexualidade sua manifes-

tação mais importante. O intelecto localiza-se no extremo oposto, no cérebro, e sua função principal é a auto-preservação do indivi duo. Tanto quanto a espécie tem a primazia sobre o indivíduo, a Vontade prevalece sobre o intelecto.8 A filosofia de Schopenhauer permite, pois, conceber com0

parte integrante do aparato psíquico e da sua função de conhecer algo que está excluído do âmbito do conhecer. Reconhece ao que

15. Idem, ibidem, p. 272 e s. 16. SCHOPENHAUER, Arthur. A quádrupla raiz do princípio de razão su-

ficiente in Werke, v. III, p. 174. 17. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação in Werke, v. 1, pp. 274-276. 18. Idem, ibidem, p. 452.

SCHOPENHAUER EO INCONSCIENTE

25

éscm-consciência (bewustlos) ou, etimologicamente "não-cog

noscente" (nicht-wissend) um significado positivo, conferindo-lhe o estatuto de um objeto de saber. Não porém de um objeto de saber entre outros, mas do objeto de saber por excelência, na medida cm que torna, ao mesmo tempo, possível a atividade do

conhecer. No final do capítulo "Sobre a associação de pensamentos"

diz Schopenhauer: .. na realidade o processo de nossos pensamentos interiores não é tão simples como na sua teoria; pois aí muitas coisas estão imbricadas. Para que tenhamos uma idéia disso, comparemos nossa cons-

ciência com uma água de alguma profundidade: os pensamentos cla-

ramente conscientes constituem a superfície, a massa de água, pelo contrário, é formada pelos pensamentos confusos, os sentimentos, os ecos das intuições e experiências, perpassados pela disposição de nossa

vontade que é

o

núcleo de

nosso

ser.

Assim, o mundo dos impulsos (Trieb) cegos e das emoçócs é

a contrapartida obrigatória do mundo das representações, já que lhe confere um sentido. A filosofia de Schopenhauer, quando se uma tradução conceitual ou uma apresentação por meio

pretende

de conceitos da experiência física e psíquica, tem que levar em

conta este "outro lado do Mundo", "obscuro e de mais difícil que ficaria em meras palavras e em fórmulas conceituais vazias, que lhe afastariam do mundo da experiência. Ao

acesso",

sem o

escolher a Vontade, como palavra-chave para decifrar o mundo,

Schopenhauer afirma, de modo explícito, remeter

a uma

esfera transcendente,

domínio da imancncia, "desvendar o enigma do

le"

19. Idem, ibidem, p. 174.

ou

seja,

mundo,

para no

que não

se

trata

de

se

de contentar-se com o usar sua própria fórmula:

mas

próprio mundo e

não fora de-

NIETZSCHE:

cONSCIENCIA E INcONSCIENTE

Scarlett Marton

Em seu livro As palavras e as coisas, Foucault faz ver que, no século XIX, em decorrência do criticismo kantiano, passou-se a

vincular o conhecimento à fisiologia e à história.' No entender de

Kant, o homem apresentava duplo caráter: enquanto fenômeno, tinha caráter empírico, já que fazia parte do mundo sensível e suas ações eram efeitos que decorriam inevitavelmente da natureza: enquanto noumenon, possuía caráter intcligível, uma vez

que independia da influência da sensibilidade e de toda determi nação fenomenal e suas ações eram autodeterminadas. A partir teriam surgido dois tipos de análise: uma que apontava as condições anatômico-fisiológicas do conhecimento e outra que assinalava suas condições históricas, econômicas e sociais. Ora,

dai,

como Kant, Nietzsche pergunta -

obra2

no terceiro período de sua

pelas condições de possibilidade do conhecimento. Mas

1. Cf. Les

mots et

les choses,

Paris, Gallimard, 1966, pp.

329-330.

dos período, também conhecido como período de transvaloração Inicia-se com Asvalores, engloba todos os escritos do filósofo a partir de 1883. sim falou Zaraustra, abrange os textos publicados em vida, desde então, e todos 2. Esse

os fragmentos póstumos que Ihes são contemporâneos, inclusive os utilizados para a ediçäo da chamada Vontade de potência. Abarca ainda os prefácios ao primeiro e ao segundo volume de Humano, demasiado humano; O nascimento da deste último livro tragédia; Aurora e Agaia ciência, assim como a quinta parte todos de 1886.

o

30

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

não é a partir do exame das faculdades do espírito que coloca a questão; ao contrário, é num contexto histórico e fisiológico que

procura reinscrevê-la. E, quanto a cste ponto, cle estaria inteiramente de acordo com o seu tempo.

Advogando a idéia de que o intelccto humano surgiu c se desenvolveu enquanto meio para a sobrevivência, Nietzsche não pode tolerar que ele se arrogue o direito de criticar a si mesmo. Fa-

lar cm faculdades do cspírito implicaria supor que existe algo distinto do corpo, com natureza própria e atividades específicas. Esse algo imperioso que o povo denomina o "espírito", declara o filósofo, quer, em si e em torno de si, ser senhore sentir-se como senhor: ele tem a vontade de passar da pluralidade à simplicidade, uma vontade que constringe, que doma, sequiosa de dominação e efetivamente dominadora. Suas necessidades e faculdades, aqui, são as mesmas que os fisiólogos estabelecem para tudo o que vive, cresce e se

multiplica3

Não é por acaso que, nesse aforismo, ele coloca a palavra

"espírito" entre aspas. Estas denotam o uso inapropriado que faz do termo; conotam sua intolerância em relação a ele. Do mesmo modo que, ao alimentar-se, o corpo assimila o que não lhe pertence, ao digerir novas experiências, o "espírito" incorpora o que Ihe é estranho. E nessa direção que Nietzsche escreve: "efetivamente o 'espírito' ainda se assemelha ao máximo a um estômago"

(Para além de beme mal $ 230). Conhecer é, pois, apropriar-se. Trata-se de uma atividade que se verif+ca em todos os seres vivos; mais ainda, está presente nas células, tecidos c órgãos. No limite, é todo o corpo que conhece e, ao fazê-lo, simplesmente desem-

penha uma atividade fisiológica. Portanto, é a fisiologia que for nece o

paradigma do ato de conhecer.

Pertencendo a uma espécie animal determinada, o homem, como outros seres vivos, teria certas aptidões gerais que se origi3. Para

che

além de bem

e

mal

§ 230. Utilizamos

a

edição das obras

de Nietzs-

(Werke) organizada por Colli e Montinari, Berlim, Walter de Gruyter & Co., diferentes datas conforme os volumes. Sempre que possível, recorremos a tra dução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche Obras Incompletas da coleção "Os Pensadores", São Paulo, Abril Cultural, 2 edição, 1978.

NIETZSCHE: CONSCIÊNCIA E INCONSCIENTE

31

naram e desenvolveram enquanto meios para a sobrcvivência. E

dessa maneira que Nictzsche entende as disposições fisiológicas básicas e as chamadas faculdades do espírito; é assim que explica a capacidade cognitiva. "Todos os nossos órgãos de conhecimento

e

se

sentidos", apenas

sustenta

em

relação

num

às

fragmento póstumo, "desenvolveram de

condições

conservação e crescimento"

((28) 9 (38) do outono de 187). Não é por acaso que, nessa pas-

sagem, ele recorre à expressão "órgãos do conhecimento". Ela

indica que rejeita a existência de faculdades; aponta sua recusa da dicotomia entre corpo e espírito. Se fosse possível falar em sensi

bilidade, imaginação, entendimento e razão, deveriam ser pensados como fruto do desenvolvimento orgânico. E nesse sentido que o filósofo pergunta: "Existe aberração mais perigosa do que o desprezo do corpo? Como se, com isso, toda a espiritualidade não

estivesse condenada ao tornar-se-doença, aos vapores do idealismo'!" (14 (37) da primavera de 1888) E, pois, a fisiologia que explica como é possível conhecer. A maneira pela qual Nietzsche aborda a questäo inscreve-se numa perspectiva naturalista. Com isso, entendemos que cle se

dispõe a considerar o ato de conhecer como resultante de interações de indivíduos que pertencem a uma espécie animal determinada -entre si e com o meio que os cerca. Essa abordagem talvez decorra diretamente do fato de recusar qualquer divindade,

rejeitar todo poder transcendente. O que importa notar, porém, é que ele nao admite explicação da origem e funções das aptidões

humanas que não as tome, antes de mais nada, como fruto do desenvolvimento orgânico. No entanto, a posição que advoga extrapola os parâmetros do naturalismo. Se é no contexto fisiológico que reintroduz a questão do conhecimento, é também num quadro histórico que procura reinscrevê-la. "Com um tipo superior de existência", afirma, "o conhecimento terá também novas formas que hoje ainda não são necessárias" (26 (236) do verão/ou-

tono de 1884). "Um tipo superior de existência" surgiria, quando OS valores que nortciam a conduta humana deixassem de ser os

que visam unicamente a autoconservação. Apostando na vida e não mais na sobrevivência, o homem ampliaria os seus horizontes: agiria de maneira diferente, pensaria de forma distinta. A vida humana é, pois, o contexto em que surgem todas as

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

32

formas de conhecimento de que o homem pode dispor. As ope-

rações intelectuais, que ele realiza, resultam do desenvolvimento de suas aptidöes e refletem, necessariamente, tanto aspectos de

sua constituição biológica quanto circunstâncias de sua existência

social. Não há dúvida de que a fisiologia esclarece como o conhe cimento é possívele como se dá. Tampouco há dúvida de que a história elucida como ele foi visto e apreciado ao longo do tempo. E nessa direção que o filósofo escreve: "sentido do 'conhecimento': aqui, como no caso de "bom' ou "belo', o conceito deve ser tomado num sentido estrito e estreitamente antropomórfico e

primavera ,de 1888). Nessa passagem, termo "sentido" opera num duplo registro. O conhecimento tem

biológico" (14 (122)

da

o

sentido biológico, porque é a biologia que mostra, do ponto de vista da natureza, como ele pôde surgir e transformar-se. Tem sentido antropomórfico, porque é o homem que, do ponto de vista da história, lhe imprime novas formas e confere diferentes va-

lores. Portanto, a constituição biológica do homem dá o sentido do conhecimento, porque o explica; a atividade avaliadora do homem dá sentido ao conhecimento, porque lhe atribui valor. No período da transvaloração dos valores, recorrendo à

história e à fisiologia, Nictzsche acaba por radicalizar a pergunta de Kant pclas condições de possibilidade do conhecimento. Tra-

duzindo em linguagem biológica as faculdades do espírito, suprime o lugar em que se colocava a oposição entre corpo e alma. em seus escritos, não deixa de empregar esses termos, de

Mas,

sorte que é preciso examinar como passarå a entendë-los.

Na 6tica nietzschiana, o corpo humano ou, para sermos preCisos, o que se considera enquanto tal, seria formado por nume rosos seres vivos microscópicos que lutam entre si, uns vencendo

e outros definhando - e assim se manteria durante certo tempo. Não cansamos de maravilhar-nos com a idéia de que o copo

humano se tornou possível, sustenta o filósofo, de que essa coletivndade inaudita de seres vivos, todos dependentes e subordinados, mas

num outro sentido dominantes e dotados de atividade voluntária,

possa viver e

crescer

enquanto 4) de junho/julho de 1885)

um

todo

e

subsistir

algum tempo. (57

Consistindo numa pluralidade de adversários, tanto ao nive das células, quanto dos tecidos ou órgãos, o corpo humano e

NIETZSCHE: CONScIÉNCIA E INCONSCIENTE

33

animado por combate permancnte. Até o número dos scres vivos que o constitucm muda scm ccssar, dado o desaparecimcnto e a

produção de novas células. No limite, a todo instante qualquer elemento pode vir a predominar ou a perecer. Compreende-se então que "a vida vive sempre às cxpensas de uma outra vida" (2

(205) do outono de 1885/outono de 1886), justamente por ser a

luta o seu traço fundamental. Vencedores c vencidos surgem necessariamente a cada momento, de modo que "nossa vida, como toda vida, é ao mesmo tempo uma morte perpétua" (37 (4) de junho/julho de 1885). Desse ponto de vista, a luta garante a permanência da mudança: nada é

senão vir-a-ser. A

luta também -

e é isso o

que

conta por ora faz com que se estabeleçam hierarquias. Arranjam-se os diversos elementos de forma a que suas atividades se integrem; relações de interdependência determinam-se: uns se submetem a outros, que por sua vez se acham subordinados a ou tros ainda. Graças a essa organização hierárquica, graças a esse

"sistema de vassalagem", os vários elementos tornam-se coesose formam um todo. Isso não significa, porém, que entim se instaure a

nem mesmo uma paz temporária, pois as hierarquias

paz

nunca são definitivas; além disso, mandar e obedecer é prosseguir a luta. "Dominar é suportar o contrapeso da força mais fraca, é, portanto, uma espécie de continuação da luta. Obedecer é também uma luta, desde que reste força capaz de resistir" (26 (276) do verão/outono de 1884). Portanto, é com processos de dominação que a vida se confunde; diríamos mais: é com vontade de

potência que ela se identifica.

Em Assim falou Zaratustra, quando introduz o conceito de vontade de potência, Nietzsche vai identificá-la com a vida. Con-

cebe então a vontade de potência como vontade orgânica, própria não unicamente do homem, mas de todo ser vivo. Considera que ela se exerce em cada órgão, tecido ou célula e, onde quer que

atue, leva Só

se

como

deflagrar-se o combate; sustenta que,

manifesta

ao encontrar

estímulo,

desencadeia

possíveis tivas.

a

e

permite

rarquias que

se

uma

e encara

luta que não

que

ela

todo obstáculo

tem

pausa

ou

fim

estabeleçam hierarquias jamais definihiefunções orgânicas como resultantes de

que

Explica ainda as

resistências

uma vez

se

estabelecem

num

acham, clas mesmas, hierarquizadas.

determinado momento

e

se

O

34

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

Espalhada no organismo, a vontade de potência encontra-se

em todo ser vivo, atuando em cada diminuto clemento que o constitui. Nessa medida, deixa de ter sentido, em termos fisiológi-

cos, a idia

de um aparelho neuro-cerebral responsável pelo que-

rer.

O aparelho neuro-cerebral não foi construído com essa "divi na" sutileza na intenção única de produzir o pensamento, o sentimento, a vontade, declara o filósofo, parece-me, bem ao contrário, que justamente não há necessidade alguma de um "aparelho", para produzir o pensar, o sentir e o querer, e que esses fenômenos, e

apenas eles, constituem "a própria coisa". (37 (4) de junho/julho de

1885) Não só o querer, mas também o sentir e o pensar estariam disseminados pelo organismo; e a relação entre eles seria de tal ordem que, no querer, já estariam embutidos o sentir e o pensar,

Entendendo que pensamentos, sentimentos e impulsos já se acham presentes nas células, tecidos e órgãos, Nietzsche não se limita a afirmar que os processos psicológicos teriam base neuro-

fisiológica, mas, mais do que isso, procura suprimir a distinço entre

físico

e

psíquico.

Tanto

é

assim

que,

se

-

fisiologicamen-

te deixa de ter sentido a idéia de um aparelho neuro-cerebral responsável pelo querer, tampouco faz sentido - em termos filosóficos considerar a vontade enquantofaculdade do espírito. Ao ser humano não seria facultado exercer ou não a vontade; ela não apresentaria caráter intencional algum. Ao contrário do que se poderia supor, o sujeito não é o executor da ação, mas sim o seu "efeito". A vontade de potência exerce-se nos numerosos se res vivos microscópicos que formamo organismo, na medida em que cada um quer prevalecer na relação com os demais. Ganhan-

do adeptos e esbarrando em opositores, deparando solicitações que he são conformes e outras antagônicas, conjugando-se Os clementos de disposição concordante e vencendo os que

com

opõem resistências, ela predomina, enfim, graças

ao

concerto de

uma pluralidade de elementos. Em todo querer, afirma o filósofo, trata-se simplesmente do

mandar e do obedecer por parte, como foi dito, de um edifício coletivo de múltiplas "almas". L'effet c'est moi: ocorre aqui o que ocorre

NIETZSCHE: CONSCIÊNCIA E INCONSCIENTE

35

toda coletividade organizada e feliz, ou seja, a classe dirigente identifica-se com os sucessos da coletividadc. (Para além de bem e

em

mal $ 19)

Na

perspectiva nietzschiana, o

"eu" nada mais é do que

umna

"síntese conceitualP que permite escamotear relações de força.

Apreendendo-se enquanto eu fixo e estável, cada indivíduo encara a si mesmo como exatamente igual aos outros integrantes da

coletividade

que pertence. Contudo, não é apenas no quadro social que a idéia de "eu" serve para velar a distância entre quem ordena e quem obedece; é sobretudo no contexto fisiológico que a

ela se presta a obscurecer a existência de forças que se exercemn em

todo

organismo. "Algo pensa",

escreve o

filósofo,

"mas que

esse algo' seja justamente o antigo e célebre 'eu' dito com indulgéncia, somente uma suposição, uma asserção, mas nunca uma certeza imediata" "

(Para além de bem e

mal $

17). Q u a n d o s e d i z

"eu penso", acredita-se ter a posse do pensamento; considerando-se o pensar um ato, supõe-se existir um sujeito que o realiza:

ao se atribuir a esse sujeito estabilidade e fixidez, dele se faz uma unidade. Com isso, perde-se de vista que as forças presentes no corpo humano são múltiplas e esquece-se ainda que elas interagem de modo fortuito. Tomamos o conceito de unidade de empréstimo a nosso con-

ceito de "eu", conclui Nietzsche num fragmento p6stumo, a nosso mais antigo artigo de fé. (.) Agora, um tanto tarde, estamos amplamente convencidos de que nossa concepção do conceito de eu em nada garante uma real unidade. (14 (79) da primavera de 1888)

A idéia de "eu" teria suas origens na superstição religiosa da

alma. Se, no campo da física, houve quem sustentasse ser a realidade constituída por partículas ínfimas de matéria, no domínio da metafisica, considerou-se a alma "algo indestrutível, eterno e in-

divisível". Daí procederia a idéia de um eu fixo e estável, sujeito responsável por todos os atos, inclusive o de pensar. A teoria do atomismo materialista encontraria, pois, ressonâncias na doutrina do "atomismo da alma". "Que me permitam designar com essas

palavras", esclarece o filósofo, "a crença que algo indestrutível, eterno, indivisível, como

toma a uma

alma

como

mônada,

um

atomon" (Para além de bem e mal § 12). E alirma taxativo: "Essa

O

36

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

crenca deve ser banida da ciência". Em sua tentativa de imprimir caráter científico às suas rellexoes, é compreensível que delas

queira afastar toda conccpção metafísica e, nmais ainda, toda superstição religiosa. Mas prossegue cm tom confidencial: "Quc fique entre nós: com isso, não é de modo algum necessário livrarse da própria 'alma' e renunciar a uma das hipóteses mais antigas e veneráveis".

Antes de mais nada, trata-se de abandonar a noção de alma

tal como foi imposta pela religião cristã e retomada pela metafísica. Contudo, Nietzsche utiliza esse termo, como tantos outros, de diferentes manciras em seus escritos. Num fragmento póstumo, ele escreve: "a fé no corpo é mais fundamental que a fé na alma: esta provém da contemplação não científica da agonia do corpo"

(2 (102) do outono de 1885/outono de 1886). Se nesse texto che ga a empregar o termo "alma" no sentido em que o tomam a re-

ligião crist

e a metafísica, é porque está preocupado em reafir-

mar sua posição: opondo-se às concepções metafísico-religiosas, quer ressaltar que carecem de um conhecimento de base fisioló-

gica. Mas é também à mesma palavra que recorre, quando serefere aos ínfimos elementos que constituem o organismo. "Nosso

corpo", declara, "nada mais é do que um edifício coletivo de várias almas (Para alémn de bem e mal $ 19). Resta saber que razões levam Nietzsche a utilizar o termo "alma" para designar os seres vivos microscópicos que formam o corpo. Para tanto, convém examinar mais de perto a maneira pela qual concebe a consciência. Suas primeiras reflexões a esse res

peito encontram-se no décimo primeiro aforismo de A gaia ciência, quando introduz a idéia de que ela teria origem biológica. "A consciência é a última e mais tardia evolução da vida

orgânica",

afirma, "e, por conseguinte, o que existe nela de mais inacabado e mais frágil". Antes de mais nada, recusa que ela possa constituir o traço distintivo entre homem e animal. A seu ver, no embate Com o meio, os seres vivos

órgãos

que lhes facilitam

homens e animais

a

sobrevivência;

e

a

munem-se de

consciência

seria

apenas um deles. Rejeita ainda a oposição entre sentidos, impul-

sos, instintos, de um lado, e espírito, conhecimento, consciëncia, de outro. "A consciência", assegura, "nunca se opõe ao instinto de maneira decisiva" (Para além de bem e mal § 3). Ela surgiria

NIETZSCHE: CONSCIÈNCIA E INCONSCIENTE

37

da relação do organismo com o mundo exterior, relação que implica ações e reações de parte a parte. No bojo dessa dinâmica,

apareceria como "um meio de comunicabilidade", "um órgão de

direção" (CI. (372) 11 (145) de novembro de 1887/março de

1888). E Nictzsche vai ainda além: do

modo que uma função pouco desenvolvida constitui um perigo para o organismo, a consciencia

-

mesmo

por ser recente a sua aparição

-

pode induzir a

Presente Genealogia da moral, essa idéia é radicalizada crros. na num fragmento póstumo do período: "A consciência, desenvolvida tardiamente, avaramente, para objetivos aos erros mais grosseiros, (¬), e mesmo essencialmente, algo falsificador que leva à grosseria e ao amálgama" (7 (9) do final de

exteriores, sujeita

1886/primavera de 1887). Tudo se passa como se o órgão com que o ser vivo se mune para direcionar-se no mundo exterior fos-

se impróprio, como se o meio de que o indivíduo dispõe para relacionar-se com o que está à sua volta se revelasse inadequado.

Mas o filósofo não está a reclamar de um defeito congênito; apenas procura salientar um traço característico da consciência. Se aponta seu caráter falsificador, é para advertir que aquilo que por

ela passa acaba falsificado. A natureza da consciência animal, sublinha, acarreta que o mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado, vulgarizado que tudo que se torna consciente justamente com isso se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com to-

do tornar-consciente, está associada uma grande e radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização". (A gaia ciência § 354)

Nessa medida, negligenciar seu carátcr simplificador implica fazer da consciência, meio de comunicabilidade, o critério supremo de valor. Esquece-se que ela se reduz a um órgão de direção, encobre-se a estreiteza de seu mundo, escamoteia-Se sua natureza

chesuperficial. Desconhece-se que está próxima dos instintos e alma*". Priga-se a concebê-la como "unidade, essêência, espírito,

meiro, de mero órgão passou a princípio unificador do organis mo: núcleo do homem; depois, tornou-se o que o faz ser o que é: Sua essência; então, volatilizou-se e converteu-se em alma; por projetada no mundo - e mesmo atrás dele

Iim, ampliou-se e,

O

38

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURASs

transformou-se em Deus, modo superior do ser, instância última, critério supremo de valor. Superestimando-se a consciência, perdeu-sc de vista que cla é inlinilamente menos importante quc as

funçocs animais. "A totalidade da vida consciente, inclusive o espírito, a alma, o coração, a bondade, a virtude: a serviço de quê tudo isso trabalha?"

-

pergunta o filósofo, para em seguida de-

clarar: "a serviço do melhor aperfeiçoamento possível dos mcios (de nutrição -

de intensificação) das funções animais fundamen-

tais: antes de tudo a serviço da intensificação da vida" ((339) 11 (83) de novembro de 1887/março de 1888). Donde se conclui que fazer abstração do sistema nervoso e pensar no puro espírito é um falso cálculo, tomar a consciência por condição primeira da perfeição é uma hipótese falsa. Contudo, é precisamente na inversão que se opera entre corpo e consciência que reside a base

da religião e da metafísica. Atribuindo origem biológica à consciência, Nietzsche acaba

por inscrevê-la no quadro das considerações fisiológicas. Com os biólogos de sua época, Roux e Rolph, concebe o organismo como um aglomerado de ínfimos seres vivos. A partir daí, entende que

todos eles possuem consciências elementares e conclui que estas, articuladas de alguma forma, constituem a consciência do organismo Ao contrário do que defendem a religiäo crist e a me-

tafísica, sustenta que consciência e corpo näo se opõem, mas acham-se estreitamente vinculados. Com isso, pretende operar

4. Segundo Charles Andler, Nietzsche consultou o tratado de Wilhelm Roux sobre a luta seletiva das partes do organismo (Der züchtende Kampf der Teile oder die Teilauslese im Organismus, zugleich eine Theorie der funktionellen

Anpassung) e o trabalho de Rolph sobre questóes de biologia (Biotogische Pro bleme, zugleich als Versuch zur Enwicklung einer rationellen Ethik), ambos de

1881. De Roux, Nietzsche teria retido a idéia de que, no próprio organismo0, entre órgãos, tecidos, células, moléculas, existe concorrência vital, e de Rolph, a

noção de que a concorrência, em vez de prejudicar a vida, aumenta sua quantidade (Cf. Andler, Nietzsche, sa vie et sa pensée, Paris, Gallimard, 1958, tomo l, Pp. $25-532). No conceito de vontade de potência, essas duas idéias vão achar-se subsumidas. 5. Ainda de acordo com Andler, Nietzsche encontrou subsídios para essa tese na

psicologia positivista francesa,

(Cf. Op. cit., tomo II, pp. 533-537).

em

especial

na

obra de Ribot

e

Espinas

NIETZScHE: CONSCIÊNCIAE INCONSCIENTE nova

inversão. Tendo

39

vista que, na linguagem filosófica, tradicionalmente se entende "alma" como sinônimo de "consciência", quer então dar-se o direito de atribuir ao termo um novo sentido: ele passa a designar apenas os seres vivos em

compoem o organismo. Por outro lado, consciência te

ligadas;

elas

microscópicos

e

que

linguagem estariam intimamen-

fundariam no solo comum da o que o homem pensa a respeito de si mesmo e do mundo já estaria se

gregariedade.

impregnado pela linguagem; e nem poderia ser de outro modo, que são as palavras que possibilitam o tomar-conscien-

uma vez

cia-de-si do pensamento. O indivíduo mais fraco, acreditando-se o mais é ameaçado, compelido a pedir ajuda aos semelhantess a fim de conservar a própria vida. Para tornar inteligível seu pedido, necessita tanto da linguagem quanto da consciência. Precisa lançar mão de signos para comunicar-se, mas, antes, tem de "saber" como se sente e o que pensa. Daí resulta que "consciência em geral só se desenvolveu sob a pressão da necessidade de comu-

nicação" (A gaia ciência $ 354). Ela não faz parte da existência do

indivíduo enquanto tal, mas, surgindo de sua relação com o mei0, remete àquilo que nele há de gregário. O mesmo ocorre com a linguagem: também ela tem origem na vida em coletividade. Co meçando a viver gregariamente, os indivíduos têm necessidade de

fixar uma designação das coisas, cujo uso seja válido de maneira uniforme. E impôem a todos os membros do grupo a obrigação de empregar as designações usuais estabelecidas por convenção.

Portanto, "o desenvolvimento da linguagemeo desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente do tomar-consciên-

cia-de-si da razão) vo de mãos dadas" (4 gaia ciência § 354). Traduzido na consciência e na linguagem, o pensamento já se apresentaria sob uma certa perspectiva: a gregária. As 1déias,e

até as ações de um indivíduo, quando se tornam conscientesese expressam em palavras, podem vir a perder o que têm de pessoal,

singular, único; passando pelo filtro da gregariedade, correm risco de se tornarem comuns. E nesse sentido que Nietzsche es creve: Não nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se quisessem. E que Ihes falta a palavra. Quando

O

40

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURASs

temos palavras para algo, também já o ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi inventada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo. Com a fala já se vul-

gariza o falante (Crepúsculo dos idolos, Incursóes de um extemporåneo $ 26).

Mas, no seu entender, não é todo o pensamento que se dá em palavras; apenas aquele que se torna consciente. Se a vontade

de potência se exerce nos numerosos seres vivos que constituemno organismo e se, no querer, já se acham embutidos o sentir e o

pensar, o pensamento está disseminado por todo o corpo. Nessa medida, ele é totalmente autônomo em relação à consciência, mesmo porque esta não passa de "um órgão de direção", "um meio de comunicabilidade".

Recorrendo

à

teoria leibniziana

das

"pequenas aper

cepções", o filósofo sustenta que o homem não se torna consciente de tudo o que pensa. Para Leibniz, o objeto do pensamento é o universo, mas neste tudo se acha ligado, de sorte que o menor

movimento estende seu efeito aos corpos vizinhos e assim ao infinito. Portanto, a alma, enquanto pensa, tem percepções que correspondem a todos os movimentos do universo -

não

mas, como ela

pode

pensar em tudo, grande parte de seus pensamentos permanece confusa. Acreditando que essa descoberta foi uma das maiores contribuiçõecs dos alemâes para a filosofia, Nietzsche afirma que o mundo consciente é estreito, ínfimo e superficial. E em A gaia ciência acrescenta:

pensamento que

..o

te

dele,

e

nós dizemos:

a

se

torna consciente é

apenas

a

mínima par-

parte mais superficial, a parte pior:

-

pois

somente esse pensamento consciente ocorre em palavras isto é, em

signos de comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência. (A gaia ciência $ 354)

Ora, se no quadro do pensamento nietzscheano fosse possível discorrer sobre o inconsciente, èle seria justamente essa região que não se expressa em palavras, o domínio que escapa à lingua-

gem. Nao e, pois, por acaso, que não tratamos do inconsciente em

6. Leibniz expõe a teoria das "pequenas apercepções" na Monadologia § 4 e

Novos ensaios, livro II,

capítulos 1 e

9, dentre

outros.

NIETZSCHE: CONsCIÊNCIAE INCONSCIENTE

41

Nietzsche; além de não existir af enquanto conceito, o que se poderia eventualmente chamar de inconsciente remete, de imediato,

relação poderia haver, então, entre Nietzsche e ao indizível. Oue Freud? Aqui, não pretendemos examinar a pertinência da conjunção "e" que ligaria os dois pensadores, nem procuramos ava-

liar a influência que um teria exercido sobre o outro.' Contudo, é possível que ambos participem, como diria Foucault, da mesma

épistémé: aquela que, em decorrência da analítica da finitude, passou a vincular o conhecimento à fisiologia e à história.

Assoun 7. Esse trabalho, aliás, já foi realizado por Paul-Laurent vro Freud et Nietzsche, Paris, Presses Universitaires de France, 1980.

em seu

li-

UM OLHAR EPISTEMOLÓGICOO SOBRE o

INCONSCIENTE FREUDIANO

Zeljko Loparic

1. EPISTEMOLOGIA E PSICANÁLISE: UM ENCONTRO

PROBLEMÁTICO A empresa a que me disponho neste ensaio pode parecer ir-

realizável. Mesmo se admitirem, por complacência ou curiosidade, ouvir um epistemólogo falar acerca do seu conceito básico, o do inconsciente, não faltaro psicanalistas que, não obstante, afirmem ser sua a última palavra sobreo assunto: a que será dada

depois de auscultar o desejo do filósofo. Sendo a única instância competente para examinar aquilo que move o filósofo, a psicanálise estaria, no essencial, além do alcance da crítica filosófica. Sabe-se que o próprio Freud props a redução psicanalitica

de certos conceitos filosóficos básicos, como por exemplo, o do imperativo categórico de Kant. Este seria uma herança direta do complexo de Edipo. Toda a filosofia teria algo a ver com a paranóia (auto-observação) e com a esquizofrenia (tratamento das

palavras, representações verbais, como se fossem coisas). Mais ainda, a atitude científica enquanto tal, característica da psicanálise, contrastaria frontalmente com a atitude filosófica, própria de

uma Weltanschauung. Por outro lado, mais de um epistemólogo duvidou se a psicanáise merecia ser tratada como um ciência. Uns declararam

O

46

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

ser ela mais aparentada com a astrologia do que com a astrono-

mia. Outros ainda sugeriram que a psicanálise não é propriamente uma pseudo-ciência, mas um gênero literário diferente e incomparável à ciência. Não há como negar, de fato, que para um certo senso co-

mum, fazer a epistemologia da psicanálise, isto é, a filosofia do

conhecimento psicanalitico, parece ofender tanto o ofício do psicanalista como o do filósofo.

2. UM QUADRO PARA A BOA VIZINHANÇA ENTRE A

PSICANÁLISE E A EPISTEMOLOGLIA E preciso notar, entretanto, que Freud nunca tentou uma re dução completa da filosofia à psicanálise. 0 fundador da "psico logia profunda" reconhecia explicitamente a existência de problemas conceituais que a sua ciência põe, mas que, sozinha, ela

não pode resolver. Um exemplo desses_problemas é dado pela afirmação da atemporalidade do inconsciente. A psicanálise constata, diz Freud, que, ao contrário da tese de Kant de que o tempo é uma "forma necessária do nosso pensamento" ou ainda, uma "forma necessária de nossos atos psíquicos", existem processos mentais, a saber, os processos primários inconscientes, que não

são ordenados temporalmente, não mudam com o tempo e não

têm relação com a representação do tempo. Temos aqui um fato que ainda espera, concede Freud (na Conferência 31), a devida apreciação pelo pensamento filosóico e que abre o caminho para

descobertas profundas, caminho no qual, lamenta ele, a psicanálise não soube avançar muito.

Esse exemplo, que diz respeito à falta de clareza da psicanálise sobre uma das suas descobertas fundamentais, mostra, pare-

ce-me, além de dúvida possível, que a ciência constituída por Freud não se entende como sendo totalmente auto-suficiente em

A filosofia critica é reconhecida questóes de teoria. colaboradora sendo

indispensável, mesmo, quanto de crítica pecifico conceitual, sua superior. Se é

assim, se Freud reconhece de fato

a

como ao

aliada e

ofício

existência de

um

es

es

paço próprio da filosofia, como será possível entender essa con-

UM OLHAR EPISTEMOLÓGIco.

cessão

47

interior da teoria psicanalítica? Aqui é preciso notar, em primeiro lugar, de acordo com Freud, tudo o que se sabe que, sobre o inconsciente, sabe-se na e pela "consciência". Para ser no

conhecido,

o

inconsciente precisa

"traduzido"

linguagem experiência consciente ceptiva (representacional) ou afetiva. Assim, explica Freudperno

que tem sentido

no

domínio da

ser

na

nossa

capítulo VIII do Compêndio da Psicanálise, quando dizemos, na

análise, que surgiu uma lembrança inconsciente, queremos dizer: aqui se deu algo totalmente inconcebívell, que, entretanto, se tivesse chegado à consciência, só poderia ter sido descrito assim e assim. Vemos que os "dados da consciência" são, também na psicanálise, o ponto de partida da pesquisa científica. A psicanálise freudiana não é a "escrita do inconsciente".

Significaria isso que a descoberta freudiana do inconsciente

não faz mais do que acrescentar um elemento à psicologia tradicional? Que ela dcixa a teoria da consciência e a filosofia incólumes? Se respondermos afirmativamente a essas questQes, teremos dificuldades em acomodar a famosa tese de Freud de que a descoberta do inconsciente aprofundou a ferida narcísica do homem (causada anteriormente pelo heliocentrismo e a teoria da

evolução), justamente por ter destronado a consciência do centro da vida psíquica humana.

A solução dessa tensão pode, parece-me, ser formulada da

seguinte mancira. Quem faz a ciência é o "consciente". O inconsciente é concebível única e exclusivamente em termos acessíveis à luz da consciência. Ele obedecerá, necessariamente, a categoria seja do mundo físico seja do mundo psíquico. Não há alternativas possíveis. Aqui pode ainda ficar em aberto se Freud pensava que o esquema categorial para pensar a realidade mental era idêntico ou diferente daquele que é apropriado para se pensar a realidade física. Como tentaremos mostrar na seção a seguir, ele parece ter caminhado na direção da segunda alternativa. Seja como for, Freud dirá ainda que a ciência no

é uma ilusão, como a religião,

mas um indispensável meio de vida. Sem a consciência, dirá

1. No presente texto, Freud está aderindo ao ceticismo kantiano estrito. No que segue teremos mais coisas a dizer sobre a relação entre Freud e Kant.

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

48

Freud enfaticamente cm 1932 (Conferência 31), nós estariamos

perdidos na

escuridão da

psicologia profunda.

Por outro lado, o inconscientc, mesmo depois de concebido,

não deixará de ser ressentido, de ter inluências próprias sobre a

vida humana e, em particular, sobre o consciente e a própria razão. Esta obedecerá, em larga medida, ao inconsciente, e, como seu servidor angustiado, seguirá os seus alvos mesmo sem saber. Estamos cxpostos à aluação de forças que se manifestam, tornam-se conscientes em nós, mas cujo ímpeto e destino são, em geral, incompreensíveis e estão fora do controle da nossa consciência. O último Freud dirá por isso que hátrês donos do Ego, sede

da consciência e da racionalidade: o Id, o Mundo e o Superego. Em outras palavras, as paixões, a necessidade (o real) e a ética. Os três atuam no inconsciente. No caso do Id, isso vai de si. Mas a ética (o superego) também recebe as suas energias da pulsão de agressão que está no inconsciente. Mesmo o real se torna impe-

rioso e passa a nos controlar em virtude da tendência inconsciente de evitarmos o desprazer que se expressa no princípio de reali

dade. É esse princípio que dá ao real o status solene da coisa em si da qual dependemos e que não depende de nós (nem do nosso

conhecimento). O Ego é dono de si mesmo só na medida em que é racional. Existiria uma voz da razão que nos diz o que fazer? Algo comno

uma razão prática que manda em nós? Nos dltimos anos de vida, Freud parece ter reconhecido essa quarta instância de mando sobre a consciência: a "ditadura da razo". Essa não seria imposta nem pelo real (necessidade), nem pelo Superego ou, ainda me nos, pelo Id, mas pela "voz do intelecto'", ou, como Freud também sugere, pelo "Deus Logos". Esse deus, de nome grego, só seria audível, entretanto, com o desenvolvimento do "processo cultural". O Freud maduro foge, assim, da tentação de reduzir a razão (Logos) a um epifenômeno, mantendo, embora apenas em

observações breves, a tese do caráter originário (porque "divino", da razão. Aqui se abre uma perspectiva interessante. Se a teoria psicanalítica do inconsciente recusa o logocentrismo grego, apolínio,

ela se defende igualmente da tentação nictzscheana de centrar o

homem sobre o pré- e o a-lógico. Em outras palavras, o "psi-

UM OLHAR EPISTEMOLÓGIcO...

quismo

49

Ireudian0 seria uma estrutura de vários elementos co-

originários. O caráter co-originário desses elementos passa facilmente desapercebido devido ao fato de cada um deles

passar por um desenvolvimento e se manifestar somente em determinadas fases da história individual. Por essa razão, a gênese parece predominar sobre a estrutura. Trata-se, entretanto, de mera aparên-

cia, já que os estudos ontogenéticos de Freud, como tais, não pre-

julgam sobre a questão de saber se o elemento que se desenvolve em primeiro lugar, ou seja, que é primeiro no tempo, é também

primeiro na ordem das causas. E bom lembrar aqui que a filogênese freudiana dos momentos "superiores" da estrutura, que po-

deria parecer decidir a questão de prioridade em favor da gënese e contra a estrutura originária, não passa de peça de especulação

paleontológica. 3. A METODOLOGIA E EPISTEMOLOGLA IMPLÍCITA NA OBRA DE FREUD Dissemos que, para Freud, a psicanálise se caracterizava pela atitude cientiífica e que o estudo psicanalítico do inconsciente era solidário dos nossos esquemas categoriais conscientes de compreensão do mundo e de nós mesmos. A psicanálise, como qual quer outra ciência, obedeceria aos critérios de racionalidade cientf fica. A pergunta é: que critérios e onde teriam sido eles explicita-

dos? Essa questão é mais intrincada do que parece. Seria muito fácil recorrer a critérios de nossa preferência e utilizá-la como medida crítica da psicanálise. Mas esse procedimento torna vul-

nerável a objeção de que as nossas preferências nas escolhas en tre sistemas conceituais não são sempre meramente racionais; ou de que existem diferentes tipos de racionalidade. Sem querer as sumir o ônus de especificar uma teoria inatacável e geral da racionalidade, podemos nos facilitar a tarefa trabalhando com os critérios pressupostos pela própria psicanálise, ou seja, com a sua

"filosofia" implícita. Procedendo assim, além de fugir da suspeita de servir a interesses teóricos alheios à psicanálise, podemos evitar o risco de ge

50

O

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

rar problemas que não existem. Muitos se perguntam, por exemplo, se a psicanálise é baseada em uma energética ou em estrutu

ras de sentido. Ricoeur considera que csses dois pontos de vista do tratamento freudiano do inconsciente säo incompatíveis e conclui, com razão, pecla existëncia de uma tensão interna nos fun-

damentos da psicanálise. Mas, poderíamos perguntar, será que Freud coloca os pontos de vista mencionados no mesmo plano? Se aprofundarmos a metodologia de Freud', veremos logo que ele usa termos energéticos, assim como era comum fazer-se na física da sua época, como modelos para a descoberta e organização do material clínico, como "convenções" frutíferas; e que esses termos fazem parte, não da fundação ou infra-estrutura, c sim da

Supra-estrutura da sua teoría. Por isso, eles podem ser descartados desde que achemos outros melhores que façam o mesmo serviço. O "teor de verdade" da psicanálise näo muda com isso. Que Os atos falhos, os sonhos etc., têm um sentido, essa afirmação, por

outro lado, descreve um dos fatos "duros" da psicanálise, sobre o

qual não cabe duvidar racionalmente. Tudo se passa como se Ricoeur não tivesse ouvido o aviso de Freud de que, algumas vezes, ele está descrevendo e, outras vezes, especulando. Colocandob a descrição e a especulação no mesmo nível, Ricoeur criou falsos problemas para a compreensão da psicanálise. Temos aqui um exemplo de uma tendência geral na história do pensamento. Como observou H. Vaihinger, é comum que os

seguidores ou intérpretes de um gênio inovador transponham aquilo que esse afirmou na chave de hipótese para a chave de te-

se. Trata-se de uma impaciência dc conccito, semelhante à impaciencia do sonho que transpõe os optativos que remetem para o futuro, para indicativos calçados no presente. Enfim, de uma fuga da tensão. Qual é, então, poderíamos perguntar, o verdadeiro filão epis temológico-filosófico para ler Freud? A resposta é dada por ele próprio no fim da primeira seção de O Inconsciente. A psicanáli-

se, escreve Freud, foi elaborada na continuação do criticismo kantiano que, corrigindo o senso comum, chamou a atenção pelo condicionamento subjetivo da nossa percepção, mostrando que o

2. Cf. Os primeiros parágrafos de Freud 1914 e 1915.

UM OLHA R E PI S T E MOLÓG ICO ...

51

fenômeno percebido não é idêntico à coisa em si, incognoscível. A psicanális e, acrescenta Freud, fa z notar que o psíquico em si, assim como o físico, não precisa ser tal como nos aparece. Assim mesmo, sugere Freud um tanto enigmaticamente no final do texto3, a realidade psíquica ("interior") seria menos incognoscível do que a física ("exterior"). · Freud não apenas aceitou a tese fundamental do ceticismo kantiano de que o nosso conhecimento se limita ao mundo dos fenômenos, mas ele também se inspirou na metodologia kantiana, recorrendo seja diretamente a Kant, seja a pensadores influenciados por Kant, em particular, a cientistas como Fechner, Helmholtz e Hertz. Esse kantismo dos cientistas, aceito por Freud, exige, entre outras coisas, que as "convenções" ("construções", "especulações", "ficções") _heurísticas usadas pela psicanálise para descobrir e organizar o seu material fenomenal devam permitir explicações dinâmicas e uma boa visualização (geometriz.ação) dos processos psíquicos. Isso explica a preferência freudiana pelos modelos dinâmicos ( em termos de forças) e tópicos (espaciais) do inconsciente. O "ponto de vista" energético parece correspo nder à tendência, existente na física e na química da época, de substituir o conceito de força pelo de energia. Por ser menos "visual" que o conceito de força, o de energia presta-se mais facilmente para a formulação de hipóteses "quantitativas" meramen te comparativas sobre os processos psíquicos tradicionalmente chamados de apetitivos. Se guardarm os clareza sobre o caráter fortemen te convencionalista da metodologia freudiana, poderem os resolver mais facilmente problem as de interpret ação que, à primeira vista, parecem intrincados. Sabemos, por exemplo, que Freud nega que o conceito de inconsciente seja, como quer Janet, un.e_f ~ de par.,_ ler, onde nada real é pensado. Significaria isso que a sua ~firmação da existência do inconsciente dinâmico é uma tese realista, que ela pretende ser objetivam ente verdadei ra sem restr~çã~ ~guma? Aparent emente não. Segundo Freud, a prova da existenc1a do inconsciente dinâmico reside na possibilidade de fornecer explicações dinâmicas ( causais) da existência dos sintomas. Isso não 3. Volt are mos a esse assunto na nossa última seção.

52

O INCONSC IENTE : V ÁRIA S LEITURAS

é uma prova da verdade objetiva da tese do inconsciente dinâmico e sim da sua utilidade heurística e explicativa dentro do quadro metodológico preferido por Freud. Essa preferência se deve à sua filiação a uma tradição filosófica e não à evidência dos fatos. Um heideggeriano, por exemplo, partindo dos mesmos fatos, nunca poderá chegar à afirmação de um inconsciente dinâmico, pela simples razão de que rejeita, por motivos ontológicos, as "forças psíquicas" como "fatores" que determinam a vida humana. 4 A afirmação do caráter dinâmico do inconsciente reflete, como diz Freud, um "ponto de vista", uma postura metodológica, frutífera no seu entender, e não um fato de experiência ou uma tese justificada por indução.

É nesse mesmo sentido que é feita a afirmação da existência da cena primitiva: sem ela, a psicanálise não seria capaz de dar conta da história da pulsão erótica. Por isso, a psicanálise afirmará que a cena primária existiu, mesmo nos casos em que não pode provar essa afirmação pelos fatos. 5 Uma boa introdução à metodologia de Freud é a fenomenologia de F. Brentano, fortemente influenciado por Kant e professor de filosofia de Freud por três anos seguidos. As teses centrais da psicanálise apresentam semelhanças substanciais com doutrinas filosóficas anteriores, em particular, as de Schopenhauer e Nietzsche. Freud dirá que a sua teoria do recalque "coincide completamente" com a de Schopenhauer. Ele admitirá que a "vontade" de Schopenhauer é equivalente às pulsões da psicanálise. Schopenhauer teria reconhecido ainda a importância psíquica da sexualidade e do inconsciente. A vantagem da psicanálise em relação a Schopenhauer seria a de não ter afirmado as suas teses de maneira abstrata, como fez o filósofo,

4. A relação entre Freud e Heidegger não consiste só de oposições. Mais abaixo trataremos de paralelos que existem entre a fenomenologia de Heidegger da angústia e o tratamento dado por Freud a esse fenômeno fundamental da vida psíquica. S. Para maiores detalhes sobre a mistura freudiana da heurística com o ceticismo, cf. LOPARJC, Z. "Resistências à psicanálise", Cadernos de História e Filosofia da Ciência 8, 1985, pp. 29-49.

L~ f OLHAR EPI STEMO LóG1co ...

53

mas de ~é-las demons trado por meio de fatos que tocam cada pcrson ahda de human a e a forçam a tomar alguma atitude . Semel hantes observações aplicam -se à fil osofia de Ní~zsc he. A psicanálise da moral e da religiã o, por exemplo, aprese nta um paralel ismo notáve l com a crítica de Nietzsche. Os palpites e int11ição de Nietzs che "freqü entem ente concordam de maneir a surpreend ente com os laborio sos achados da psicanálise". Pre11d confessou uma vez: Eu t ive, portanto , qu.e me dispor - e o fiz sem mágoa - a de ixar de reivindicar a priorida de em muitos assuntos em que a pesquisa psicológica laboriosa não pode fazer mais do que confirm ar as verdade s que o filósofo reconheceu por intuição.

Os dois filósofos preferi dos por Freud oferec eram uma crítica radical da epistem ologia tradicional. Essa crítica não é desapa rentad a da crítica à filosofia que Freud mesmo foi elabor ando nos intervalos de suas pesquisas especi ficame nte psicanalíticas . Por fascinante que seja, o exame desse parale lo excede ria o quadro do presen te artigo.

4. ESTU DO DE ALGU NS EXEM PLOS O diálogo entre a epistem ologia e a psicanálise dificilmente pode, entreta nto, limitar -se a mera explicitação das posiçõ es epistemoló gicas e metod ológic as de Freud. Como dissem os acima, certas vezes, o própri o Freud convida para uma reflexão epistemológica ulterio r. Para mostra r o interes se de um exercício desse tipo, consid eremo s mais de perto o enunci ado da tese da atempo ralidad e do incons ciente, já mencio nada acima. Notam os logo q u.e Freud comet e um engano na sua reprodução da posiçã o de Kant sobre o tempo . Para Kant, o tempo não é, propri ament e falando, uma forma necess ária do nosso pensamento ( como diz Freud) , e sim da nossa intuição. Adema is, ainda que se possa dizer, generi camen te, que ele é a forma necess ária dos nossos atos psíquicos, é preciso sublin har que isso só vale para esses atos enquanto fenômenos, isto é, eventos dados na intuição (perce pção) interna e não para esses mesmo s atos enquan -

54

O INCONSC I ENTE : V ÁRIAS L E ITU RAS

to coisas em si. O conceito de tempo kantiano é "transcendentalmente ideal", isto é, só se aplica ao domínio dos objetos fenomenais. Daí se seguem interessantes conseqüências sobre a relação entre as teses de Kant e de Freud sobre o tempo, que parecem ter escapado a este último. 6 Por definição, processos inconscientes não são acessíveis na intuição interna. Logo, eles não são fenômenos e, por conseguinte, a forma do tempo não se aplica a eles. Não sendo fenômeno, o inconsciente pode ser tomado como coisa em si, no sentido kantiano, conforme sugere algumas vezes o próprio Freud. Nesse caso devemos dizer, se quisermos ser fiéis a Kant, que não sabemos nada sobre o seu caráter temporal. A razão é simples: para Kant, nada podemos conhecer, nem positiva nem negativamente, sobre as coisas em si. Nessa interpretação, a tese freudiana da atemporalidade não passaria de mera aplicação do criticismo kantiano ao material da psicanálise. Mas essa conclusão não se coaduna com a posição geral de Freud de que sabemos coisas sobre o inconsciente, nem com a sua observação precisa, no fim da primeira seção d'O Inconsciente, de que o " objeto interno" é " menos incognoscível" do que o mundo externo. Teríamos aqui uma desforra do realismo contra o ceticismo kantiano? Tudo indica que não. Freud está nos dando antes, creio eu, uma indicação de que a psicanálise não acede ao inconsciente, esse "objeto interno", pela intuição, no sentido de Kant; que o inconsciente tem um caráter de fenomenalidade não kantiano, a ser tematizado e explicitado ainda. Se é assim, Freud não está pensando, no trecho citado, contra Kant e sim, com Kant, para além de Kant. Para entender melhor essa leitura de Freud, convém recorrer a H eidegger. Sabemos que Heidegger introduziu explicitamente um novo conceito de fenômeno, que não é nem o objeto da intuição ( externa ou interna), nem mesmo a " forma necessária" da intuição. A fenomenologia heideggeriana dos modos de estar-ai

6. Para maiores detalhes sobre esse tema, veja LOPARJC, z_ O Tempo do inconsciente, 1990 (em preparação).

UM O LHAR E PIS TEMOLÓG ICO ...

55

do ser humano é elaborad a, toda ela ' sem recurso tradicional à .- . intmçao m_terna, ou mais geralmen te ainda, à representação. Segundo ~ e•_degger, ,º acesso privilegiado, desde o ponto de vista metodolo gtco, a ~os mesmos enquanto fenôm enos, é dado por nossos afetos (St,mmu ngen ), em particular, pela angústia, ela mesma um (m eta) fe nômeno. Na angústia, e só nela, aparece o que somos e como somos: ela nos traz de volta, como algo irremissível, a nossa possibilidade de não mais estarmos -aí-no-mundo, a possibili dade da morte. É fácil ver que, ao nos trazer perante e nos confronta r com o nosso ser-para -a-morte ( com a nossa nulidade ou "nadidad e"), a angústia perfaz um movimen to que possui uma estrutura temporal própria. Ela retoma do passado ou, como Heidegg er ainda diz, repete uma possibilidade nossa, a do "não-mais-estarmos-ai"', a possibili dade que rechaçam os (abdraengen ), esquecemos, desde que estamos- aí-no-mu ndo (e da qual nos protegem os gerando a ilusão metafísic a da substancialidade e infinitude do mundo). O tempo da angústia é, portanto ,finito, tanto quanto é finito o nosso estar-aí. Esse mesmo tempo é também circular, porque a possibilidade de não mais estarmos -aí é trazida de volta para o nosso presente , como algo inapelável que nos aguarda no futuro iminente. As três dimensõe s do tempo da angústia não ocupam, portanto, uma extensão infinita e não estão dispostos de maneira linear: o nosso passado, isto é, aquilo que rechaçamos, volta para o pre-1 sente vindo do nosso futuro, para o qual somos irremediavelmente abertos, enquanto "existirmos". O tempo da angústia não é, portanto , nem infinito nem linear, como é o tempo da intuição, explicitado por Kant. 7 Sabemos que Freud, por sua vez, também fala da angústia como "fenôme no fundame ntal" da neurose e como causa primeira do recalque (Verdrangung). A angústia de Freud também é um fenômen o não represen tacional e sim afetivo. Ela se dá no Ego, não enquanto sistema cognitivo e sim enquanto habitado por pulsões reveladas pelos afetos ( enquanto seus "represe ntantes"). Sabemos ainda que, a angústia, assim como descrita por Freud,

7. Ver Freud 1926, apêndice B.

56

O IN CON SCIE NTE : V ÁRIA S LEIT URA S

ocorre numa situação atual de perigo. Nela se produz, em primeiro lugar, uma repetição (e não apenas lembrança, fenô meno puramente representacional) suavizada, de uma situação trau mática experienciada no passado. Essa situação é caracterizada como uma vivência de impotência e desa mpa ro, ou ainda, de desequilíbrio aniquilador entr e as nossas forças e as do mundo ao nosso redor. Em segundo lugar, na angústia se dá ainda a ante cipação (e não mer a previsão, fenômeno representacional) da ![rup_ção futura eminente da mes ma situação trau máti ca de desa mpa ro que já vivenciamos no passado. Vemos, então, que o "fen ôme no" de angústia é analisado em três fenômenos temporais: a atual situação de perigo, a repetição e a antecipação de uma situação traumática. Os três correspondem a três dimensões do tempo psíquico. Essas dimensões não caracterizam o domínio da repr esentação e sim o do jogo de forças pulsionais; o espaço de temp o desse jogo não é infinito ( a situação traumática repe tida e antecipada não está mais longe do presente que o começo e o fim da nossa vida); finalmente, o passado e o futuro situam-se como que num círculo e não numa reta. A estru tura circular do tem po da angústia é a razão pela qual o passado "lem brad o" na angústia não perd e o seu pode r sobre o presente: girando o círcu lo, ele se abate sobre o presente vindo do futuro. Apesar de diferenças materiais, existe um acordo notável entre as fenomenologias freudiana e heideggeriana sobr e os aspectos centrais da angústia, reveladora das nossas situações-lim ite. Segundo os dois autores, a angústia, com a sua estru tura temporal, não é "per cebi da" dent ro de nós. Nad a sabemos dela por meio de uma representação. Eu não percebo, por exem plo, que "repito" ou "atu o". A angústia não é, port anto , um fenômeno kantiano. Sendo assim, ela ( como de resto todo o inconsci ente) é 4_içognoscível pela intuição ( a título de objeto da intui ção) e o tempo da intuição não se aplica a ela. Ademais, ambos os autores sustentam que a angústia é um fenômeno "vivido", a cuja estrutura temos acesso não representacional. Finalmente, há acordo de que angústia revela o nosso relacionamento concreto ("on tológico", diria Heidegger, "din âmic o" ou "quantitativo", diria Freud) com as situações-limites e que ela o faz de maneira não representacional, pela repetição e antecipação (fenômenos iden tificados por ambos, emb ora não exatamente da mesma maneira) .

UM OLHAR E PIS TEMOLÓG ICO ...

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E~se acord? parece autorizar esforços de compreender Freud a partir de Heidegge~. _Filósofo conseqüente, Heidegger enfrento~ o d: safio de exphc1tar esse acesso à angústia ignorado pela ps1cologta e pela filosofia tradicionais bem como de elucidar a estrutura ontol?gica do nosso ser-para-'a-morte, produzindo assim uma no:a teona do "conhecimento" não representacional e uma ~ntologia corr~~~ondente. Contudo, o que nos interessa aqui não e tanto .ª possibilidade de recorrer a análises heideggerianas, metodologicamente mais conscientes que as descrições freudianas, para esclarecer os pressupostos im pücitos na segunda teoria da angústia de Freud, mas a oportunidade de esclarecer o sentido da observação de Freud, de natureza epistemológica e mencionada acima, de que o inconsciente é "menos incognoscível" que o mundo físico tal como é em si. No interior dessa teoria, a observação de Freud pode facilmente ser entendida: o nosso inconsciente é um "objeto" essencialmente diferente do mundo físico. O mundo físico é acessível somente na percepção e permanece, enquanto coisa em si, incognoscível, devido ao condicionamento subjetivo desta. O inconsciente, um modo de ser nosso, é acessível via nossos afetos, por exemplo, via angústia. A angústia não é um tipo de representação e, portanto, a teoria kantiana dos limites da nossa facuidade cognitiva não se aplica a ela. Não é proibido esperar, portanto, que a angústia possa nos revelar aspectos do nosso inconsciente que a representação necessariamente ignora. Sem saber, Freud -teria dado os primeiros passos na direção da ontologia fundamental de Heidegger.8 8. Poder-se-ia objetar que, assim, caímos no misticismo, sempre rechaçado por Kant , que admite fontes do conhecimento diferentes da nossa _rac~ldade de representação. Para evitar essa acusação, ~ preciso atent~r, em pnme1ro lugar, pa ra certos traços básicos da filosofia kantiana. Kant adm1t~ ~ue os nossos sentimentos ( 0 de prazer e desprazer, por exemplo), embora d1s~mtos da ~ossa capacidade de representação, têm objetos ~rópri~ e que ~s~es d1fe,~m radicalmente dos objetos da representação. A teona kan~1ana do JUlZO e_stehco trata de aspectos de coisas (a beleza, o caráter de ser sublime etc.) que nao ~e_m ser constituídos por meio de meras representações. Ademais, a fil~ofia prahc~ de Kant to que temos da nossa liberdade partindo do sentimento .de · - o con hec,men expoe nossa coerção pela lei moral. Com efeito, Kant chega ao ~onhecimento de "obJetos internos" tais como a liberdade, que, do ponto de vista da faculdade de re'

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O INCONS C IE NTE: VÁRIAS LE ITURA S

REFE~NCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREUD, S. Sobre o narcisismo. Uma introduçdo, 1914. FREUD, S. Pulsões e suas vicissiwdes, 1915. FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanálise, 1916-17 e 1933. FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia, 1926

presentação, são coisas em si, graças ao fato de sua existência e características serem necessariamente implicadas por experiências afetivas ( como a experiência de coerção). Essas observações levam à conclusão de que a parte mais relevante da filosofia kantiana para a compreensão do kantismo de Freud é a sua filosofia prática. Isso não surpreende, visto que Freud não é um estudioso do conhecimento humano como tal, e sim do desejo. Uma coisa, contudo, é certa: não parece haver, em Kant, uma ontologia da liberdade. O caráter fantasmático do sujeito kantiano, tanto o do conhecimento como o do agir livre, foi lamentado por mais de um crítico, entre eles Heidegger. O autor de Ser e tempo deu-se por tarefa básica justamente a de conferir "substancialidade" ao sujeito kantiano. Por trás das operações do sujeito transcendental e moral kantianos, Heidegger descobrirá, a título de condições de possibilidade ontológicas ("dinâmicas"!), os modos fundamentais do estar-aí, do acontecer originários do ser humano e os caracterizará por meio de "categorias" inteiramente distintas das que se aplicam aos objetos da representação. E.ssa ontologia heideggeriana do ser humano não contradiz ·os resultados do criticismo kantiano; ela o transcende e assim relativiza. Cabe não esquecer, entretanto, que Freud tomava comumente uma posição ontológica muito mais conservadora que a assumida posteriormente por Heidegger. Tudo se passa como se a sua filosofia não tivesse acompanhado a sua intuição psicológica. Essa é uma das razões, parece-me, por que a ~icanálise f rcudiana é tão ambígua e, ao mesmo tempo, tão estimulante para a reflexão fil06Ófica.

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DIA LOG O COM LOPARIC*

Rena to Meza n

ês o convite Em prim eiro lugar, gostaria de agradecer a voc aric, cuja aprepar a participar deste evento, ao lado do Prof. Lop ao invés de apresentação me cabe debater. Preferi esta fórmula, o diálogo é semsen tar um texto próprio, por que considero que ólogo; e não seria pre mais rico e mais instrutivo do que o mon que as duas expopossível evitar, num assunto desta abrangência, um. Vou portanto sições só rem otam ente tivessem algo em com f. Loparic, e possicom enta r alguns pon tos do que nos disse o Pro par a alargar o develmente acre scen tar a isso uma ou duas idéias bate. da filosofia ao Com ece mos pela idéia de redução: redução pseudociência ou desejo do filósofo, redu ção da psicanálise a uma ar com o professor a um gên ero literário. Impossível não concord obviamente não quando recusa estas vias complementares, que zir todo mundo permitem interlocução alguma e acabam por redu mos, sempre dizeao silêncio . A des cob erta de que, quando fala nte dizer não é um mos algo a mais do que que rem os explicitame e talvez mesmo trofé u da psicanálise: com certeza desde Platão, nhado por uma ante s dele, sabe-se que todo discurso é acompa sobre • Comunicação apresentada no "Simpósio de 1990. P.U.C.S.P., abril de 1989. Vers ão definitiva , julho

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franja marginal de significações, qu e pode ser mais ou menos densa. Fábio H errmann assinalou certa vez que, no caso da comunicação usual, existe uma convenção tácita no sentido de suspend er a atenção a esta fr anja conotativa, para concentrar o foco sobre o conteúdo manifesto ou denotativo daquilo qu e é dito. Apenas na situação analítica, e por uma autorização explícita dada pelo paciente ao analista, é que o chamado argumento ad hominem tem direito de cidadania: a interpretação legitima-se pela referência do discurso ao seu emissor e não ao seu objeto designado, sem que a recíproca seja válida no mesmo contexto - isto é, sem que a interpretação formulada pelo analista possa ser legitimamente devolvida a ele sob a forma do "é você quem está dizendo isto, logo se refere a você". Tal asserção é sem dúvida verdadeira - existe a contratransferência - mas seu campo de validade é outro, o dos mecanismos psíquicos e dos motivos do analista, a serem objeto de reflexão em outra situação analítica. Isto dito, a psicanálise apresenta-se também como um corpo teórico racional, embora seu objeto não seja necessariamente o racional. Ela faz afirmações, postula princípios, realiza inferências, combina conceitos; neste sentido é perfeitamente cabível que seja interrogada pela filosofia, quer pelo viés epistemológico, quer pelo viés ético ou ontológico. E a discussão, para ser fecunda, precisa manter-se neste terreno, sem que o psicanalista se furte a ela através de pseudo-interpretaçõe s, as quais, além de nãoautorizadas ( e portanto, ainda que por acaso pertinentes, passíveis apenas de aguçar as resistências de seu eventual destinatário), seriam refutadas pelo filósofo como petições de princípio: pois estariam baseadas precisamente naquelas premissas e naqueles princípios que teria sido necessário fundamentar. Quanto à idéia de que a psicanálise consistiria num gênero literário incomparável com a ciência, embora o epistemólogo a considerasse pejorativa, talvez estivessem malgré /ui enunciando uma verdade de grandes conseqüências. Com efeito, a psicanálise é também um gênero literário, ou melhor, uma forma de discurso sui generis, e isto tanto no sentido de linguagem falada - pensemos por exemplo na função da associação livre durante a sessão psicanalítica - quanto no sentido das produções escritas, que, a começar pelos textos de Freud, estão a léguas de distância da

OJÁL,OGO COM LOPARJC

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prosa científica usual. E não é difícil compree nder por qu e: como bem observa ram Patrick M ahony e Maur ice Daya n, a prosa científica usuaJ expõe os resultados de um a atividade que começa e termina antes da redação do texto, enquanto a exposição psicanalítica é parte integrante da experiência qu e ela descreve. Patrick Mahony diz neste sentido que a prosa de F reud é tanto um a exposição sobre o inconsciente quanto uma exposição do inconsciente, um veículo para a sua emergência.1 Maurice Dayan, numa consideração mais abrangente, pergunta-se quais podem ser as relações - certamente complexas - entre a atividade clínica e a atividade de escrita que procura dar conta dela, não sendo possível reduzir uma coisa à outra, mas também sendo evidente que a retomada discursiva da experiência clínica se inscreve no conjunto de processos psíquicos postos em marcha pelo próprio trabalho clínico.2 Qualquer pessoa que jamais tenha escrito uma sessão para ser supervisionad a - para não falar dos esforços de teorização mais complexos - percebe perfeitamente a continuidade e a transposição simultânea vigentes entre o trabalho e o relato dele, prova disso sendo o efeito do segundo sobre o primeiro. Mas não é deste assunto, aliás fascinante, que vamos nos ocupar hoje. Na sua conferência, o Prof. Loparic faz algumas afirmações de grande interesse, e convém discuti-las com atenção. A propósito da atemporalidad e dos processos inconscientes, para tomar uma delas, diz que "a psicanálise põe problemas conceituais que, sozinha, não pode resolver". Eis aí uma idéia instigante: em que nível seria impossível a resolução destes problemas conceituais? Mais precisamente, para quem seriam tais problemas insolúveis? A famosa frase de Freud na Conferência 31, citada por Loparic, estipula que caberia ao pensamento filosófico apreciar o fato de que os processos inconscientes escapam à forma do tempo, e que portanto deveria ser revista a tese de Kant a este respeito. Ora, isto não significa que a psicanálise veja qualquer problema nesta

1. MAHONY, P. "Further Thoughts on Freud and his Writings", Joumal of the American Psycho-analytic Association (1984) 32:874. Trad. bras. em Psicanálise e discurso , Rio de Janeiro, Imago, 1989. 2. DAYAN, M. L'Arbre de styles, Paris, Aubier-Monta igne , 1985.

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O INCONS C IENTE: V ÁRIA S LEITU RAS

atempo ralidad e, que explica de modo convinc ente através das

noções de recalque e de repetição. Significa que os fil ósofos - e em particular os kantianos - deveriam reformular sua hipótese sobre o tempo como "forma necessária dos atos psíquicos". Neste ponto, como bem demonstra Loparic, Freud faz uma leitura equ~ vocada de Kant, para o qual o tempo não é uma forma ncces~c:u àêl dos atos psíquicos em geral e incondicionalmente, mas apenas destes atos psíquicos enquanto fenômenos, ou seja, nas palavras do professor, "eventos dados na intuição interna". Como o inconsciente, por definição, não pode ser dado à percepção interna - que é sinônimo de consciência - ele não é um fenômeno no sentido kantiano, e portant o não tem por que estar sujeito à forma do tempo. Esta parte da argumentação de Loparic é, con~ venhamos, brilhante; contudo, prova apenas que Freud leu mal Kant, e não que exista aqui um problema conceituai posto pela psicanálise, porém insolúvel por ela. Dito de outro modo, a análise de Loparic mostra que o inconsciente, visto por um prisma kantiano, nada tem a ver com a questão da forma temporal dos fenômenos internos: ora, se este resultado faz desaparecer um falso problem a - e neste ponto devemos ser gratos à leitura epistemológica - não se pode argumentar simultaneamente que a psicanálise formulou um verdadeiro problema que ela é incapaz de resolver. Mas na verdade esta observação não compromete a posição geral de Loparic, segundo a qual psicanálise e filosofia não comportam reduçã o recíproca, cabendo a cada uma um campo específico. É impossível discordar desta afirmação; ainda que uma "psicanálise da filosofia" ou uma "filosofia da psicanálise" pudessem fornecer resultados interessantes, uma delas estaria sendo sempre empreg ada como instrum ento e a outra como objeto da operação analítica, o que obviamente não faz com que a consistência de cada uma delas desapa reça como que por encanto. Nada há de extraordinário, nem de ameaçador, no fato de que uma disciplina se debruc e sobre idéias geradas em outra e as tome como estímulo para sua própria reflexão. Se isto não fo_sse verdadeiro, a estética faria desapa recer a arte quando a temattza, tanto no caso de uma abordagem filosófica do fenôm·eno artísti~o, quanto se se tratasse de uma abordagem psicanalítica. É preciso acabar de uma vez por todas com o preconceito obscurantista de

DIÁLO GO CO M LO PARI C

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que um fat o de cultura só pode ser apree ndido em seus próprios term os, e que a sua leitura por meio de outras perspectivas o lesa ou o destró i. O escritor de fi cção pode não ter interesse na teoria li terári a, mas isto não faz com que a teoria literária seja nociva à literat ura de fi cção. Nada melho r do que o estudo de Loparic sobre a angús tia em Freud e em Heide gger para confirmar esta idéia. Ele revela uma série de aspectos que passariam desapercebidos a quem não dispusesse dos dois referenciais, e, do ponto de vista da psicanálise, nada há nele que prejudique ou atrapa lhe a compreensão da angús tia. Por vias próprias, Loparic enfatiza a estrut ura temporal circular da angústia, seu caráte r não-representacional para a consciência, e outro s aspectos que iluminam o problema, ainda que o psicanalista possa retom ar suas afirmações de modo a questioná-las ou a aprofundá-las. Melhor, não se deveria dizer "aind a que", mas "perm itindo que": a leitura pelo ângulo filosófico revela possíveis desenvolvimentos do tema, que competiria ao psicanalista verificar se lhe podem ser úteis, sem que isto em nada comp romet a o projet o filosófico de comp arar Freud e Heidegger. Da mesm a forma, a hipótese levantada por Lopar ic de que "o psiquismo freudiano seria uma estrut ura de elementos co-originários" pode ser um estímulo para a reflexão psicanalítica, muito embo ra tenha sido construída media nte um procedimento filosófico de análise conceituai. "Ser um estímulo" não implica em concordância, porém, e neste caso específico, parece-me improvável que o psicanalista subscrevesse a hipótese de Loparic, ao meno s no que se refere ao superego, cuja dependência das identificações do ego e das pulsões do id não é apenas de índole cronológica, mas causal. Por outro lado, muitos analistas admitiriam a propo sição de co-originalidade para o id e o ego, quer se trate de um ego rudim entar (Melanie Klein), quer de núcleos espar sos de ego que poste riorm ente viriam a coalescer (G lovcr, Kohut). . O tópico mais suges tivo da argumentação de Lop~nc, a ~~ u ver, é o item intitulado "A Metodologia e Epistemologia Imphc1ta na Obra de Freud ". Aqui o professor afirma que, para Freud, a psicanálise obede ce a critérios de racionalidade científica na f~rmulação de suas teoria s, e é inegáv el a verdade desta asserçao.

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O INCONSC IENTE : V ÁR IA S LEITURAS

Criticando Ricocur, Loparic sugere a seguir que o uso de termos energéticos na metapsicologia freudiana é essencialmente convencional, enquanto a atribuição de sentido a todo ato psíquico seria de ordem não-convencional. Em outras palavras, o uso de termos energéticos por Freud leria por fundamento sua conveniência heurística e por origem o pós-kantismo de seus mestres, enquanto a postura hermenêutica derivaria da própria natureza da psicanálise e, portanto, jamais poderia ser descartada, o que não ocorreria com as "construções" ou "ficções" emprestadas de ramos variados da Física. Diz Loparic: Se guardarmos clareza sobre o caráter fortemente convencionalista da metodologia freudiana, poderemos resolver mais facilmente problemas de interpretação que, à primeira vista, parecem intrincados. ( ... ) Sua afirmação da existência do inconsciente dinâmico é uma tese realista? Ela pretende ser objetivamente verdadeira sem restrição alguma? Aparentemente não. Segundo Freud, a prova da existência do inconsciente dinâmico reside na possibilidade de fornecer explicações dinâmicas (causais) da existência dos sintomas. Is.se não é uma prova da verdade objetiva da tese do inconsciente dinâmico, e sim de sua utilidade heurística e explicativa dentro do quadro metodológico preferido por Freud. Essa preferência se deve à sua filiação a uma tradição filosófica e não à evidência dos fatos. A afirmação do caráter dinâmico do inconsciente reflete, como diz Freud, um "ponto de vista", uma post4ra metodológica, frutífera no seu entender, e não um fato de experiência ou uma tese justificada por indução.

Aqui, a tese de Loparic é polêmica, e como tal merece ser examinada com cuidado. Do fato de que Freud· afirmou muitas vezes que os termos metapsicológicos eram metafóricos e poderiam ser substituídos por outros quando isto se mostrasse conveniente - "a metapsicologia é nossa mitologia" - Loparic conclui (de modo semelhante a Ricoeur, em que pesem as aparências) que a essência da psicanálise é a sua hermenêutica, e que a dinâmica é um "ponto de vista" num sentido não muito afastado daquele em que Janet caracterizava o inconsciente como ''une façon de par/er" (novamente, em que pesem as aparências). Tal conclusão não espanta, se lembrarmos que mais adiante ele aproxima Freud da fenomenologia heideggeriana, ao menos no tocante à angústia. Penso que aqui se colocam ao menos duas dificul-

D IÁLOGO COM LOPA Rl C

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da~es: u::' ~ interna ao argum ent o de Loparic, outra que diz respeito a d,e Sache selbst", ao próprio conceito de inconsciente. · Vejamos mais de perto estas duas dificuldades . . A dificul~ade i~~e_rn: ~o argum ento apresentado por Loparic reside na noçao de dmam1ca" . Mais adiante em sua conferência ao falar da angústia, explicita como compreende esta idéia d~ Freud: ~ angústia não pertence ao domínio da representação, mas ao do "Jogo das forças pulsionais", isto é, à esfera do afetivo; isto lhe permite revelar "nosso relacionamento concreto ( dinâmico, diria Freud) com as situações-limite". Creio que a dificuldade aparece com clareza neste ponto. Se a angústia revela nosso relacionamento concreto, vital, com as situações-limite, e se o seu domínio é o das forças pulsionais em jogo - à exclusão de qualquer representação - segue-se que este jogo das forças pulsionais não pertence à esfera das convenções, mas sim existe realmente e determina uma das possibilidades concretas do ser psíquico. Em outras palavras, se seguimos a rigorosa argumentação de Lopari~, há um plano afetivo irredutível às representações, e é óbvio que o psicanalista nada teria a objetar quanto a esta asserção. O que fica incompreensível é o seguinte: por que a designação teórica - e não apenas terminológica - deste plano pertenceria ao reino das convenções? Se os afetos são entidades realmente existentes, aspectos fundamentais do ser psíquico, e se principalmente não são redutíveis à dimensão da representação, por que seria apenas questão de comodidade pensá-los por meio de conceitos de índole energética? Pois é preciso que fique claro: o " ponto de vista dinâmico" não é em absoluto uma postura simplesmente metodológica; ao contrário, é a formalização em termos conceptuais de uma postura ontológica, a categorização abstrata de uma série de fenômenos que se dão na realidade e que exigem, como seu princípio e como sua condi~ão de ~ossibi?d~d~, a afirmação da existência igualmente real do mconsc_1ente dmam1co. A dificuldade interna do argumento de Lopanc me parece consistir em que, segundo seu texto - se o comp~eendi ~.o rr:t~mente - 0 inconsciente dinâmico é uma convençao termmologica e o terreno concreto no qual se dá o embate d~s afetos. ,. . Mas há um outro problema, que não diz respeito à coerenc1a do argumento de Loparic, e sim à própria coisa. Este problema é

O INCO NSC IENT E : V ÁR IAS L E ITUR AS

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psíquico seguinte: a psicanálise não afi~ma apen as que lodo ato ser. Afir ma tem um sentido, por menos eVJdcnle que ele possa um ou mais tamb ém, e principalmente, que lodo ato psíquico tem que seja sentidos ocultos e inacessíveis à consciência, a não ser estes sentiexaminado pelo mét odo psicanalítico. Ora , por que e inacessídos - prefiro deixar o term o no plural - são ocultos taçõ es e veis? Não estamos aqui falando simp lesm ente das cono consigo. dos implícitos que todo discurso e toda ação veiculam é, radicalEstamos falando de uma dim ensã o inconsciente, isto e afirm ando mente hete rogê nea à consciência e à auto -per cepç ão, faz senque, sem esta dimensão, a psicanálise simp lesm ente não é inconstido algum. A ques tão é sabe r por que o inco nsci ente iana - porciente nest a acep ção forte, e & resp osta de índo le kant rna - não que ele não é dado com o fenô men o à perc epçã o inte por Lop apode nos satisfazer. O que falta na conc epçã o prop osta da dou trina ric é, a meu ver, um elem ento essencial e cons titut ivo é atravessafreudiana sobr e o psiquismo, o post ulad o de que ele cons eqüê ndo pelo conflito, post ulad o do qual deco rrem vári as cias de enor me envergadura. por deA principal delas é a de que o ser hum ano é habi tado , mas que sejos e impulsos cont ra os quais nece ssita se defe nder vista" dinâpersistem apes ar e através das defesas. O "pon to de tecim ento s mico, evocado por Loparic, é a cons ider ação dos acon lito fune formações psíquicas enqu anto mod elad os por este conf indivíduo. damental e por seus derivados ao longo da hist ória do se origina O motivo para cons ider ar as coisas dest a man eira não a, mas na em nenh uma pref erên cia meto doló gica ou meta físic exceção em constatação daquilo que ocor re coti dian ame nte e sem de supe rar todas as sessões de análise: ao dese jo de se conh ecer e tend ênci a a seus problemas, opõe -se no paci ente uma pod eros a ênci a Freu d se ignorar e a recu sar qual quer mud ança : a esta tend ame nto, deu o nom e de resistência. É a nece ssid ade de dar fund conduziu à e?1 ,termos teóricos, ao fato brut o da resis tênc ia que o iona men to hipotese de um conflito basilar e constitutivo do func os da teop_síqui~o humano. Seri a possível orga niza r todo s os plan s, tom ando na psicanalítica, seus principais conc eito s e hipótese um conflito como fio cond utor a idéia de conflito. Por exemplo, s aqui o requer agentes e forças à disposição dest es agentes: temo de, libido, solo originário de idéias com o as de ego, sexualida 0

DIÁLOGO COM LOPARJ C

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pulsão, narcisismo etc. Um con ílito se organiza segundo modalidades específicas: elas podem ser categorizadas segundo a famosa tríade neurose, psicose e perversão. Um conílito se estrutura ao longo do tempo, já que as posições dos combatentes podem variar e sempre incluem em si a história dos movimentos passados: eis aí a base para se pensar na série das fases ou etapas psicossexuais. O conflito produz conseqüências na forma de sintomas, traços de caráter, e sobretudo na maneira pela qual se organizará a transferência na análise. Poderíamos continuar nesta direção, porém penso que esta amostra é suficiente para percebermos que, ao menos em tese, é possível distribuir quase todo o arcabouço conceptual da psicanálise pelas diversas facetas da idéia de conflito. É por isto que nela ocupa um lugar eminente a noção de

dinâmica. Para Loparic, a significação principal do termo "dinâmico" é a causal: "Segundo Freud, a prova da existência do inconsciente dinâmico reside na possibilidade de fornecer explicações dinâmicas (causais) da existência dos sintomas". Esta observação é extremamente sugestiva, no sentido que precisei acima: ela provoca a reflexão do psicanalista sobre o tópico importante, embora obscuro, da causalidade em psicanálise. Acredito não trair o pensamento de Loparic ao compreender sua afirmação como significando que o conflito psíquico é a causa dos sintomas, tanto no sentido ,de que o sintoma representa um compromisso entre as forças recalcantes e as forças recalcadas, quanto no sentido de que a história pregressa do indivíduo determina quais os pontos de incidência e quais as vias de formação destes sintomas. Ora, a construção deste processo é um dos objetivos da análise, e esta construção só pode se dar de modo regrediente, do presente para o passado e dos efeitos para as causas. Contudo, a idéia de causa não pode ser tomada aqui ao pé da letra, e é sobre este ponto que gostaria de apresentar algumas reflexões, que servirão para concluir minha intervenção. Em 1920, Freud escreveu um artigo intitulado "Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina". Este artigo relata um tratamento que não foi muito longe, apenas alguns meses, embora tenha sido possível verificar quais haviam sido os fat~res que conduziram esta moça a uma escolha homossexual de obJeto. No início do capítulo IV, porém, Freud escreve o seguinte:

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O INCO NSCIE NTE: V ÁRIAS LEITU RAS

Com estas observações, creio ler assinalado os pontos que me pareceram mais sugestivos no trabalho do Prof. Loparic. Proponho então que passemos ao deba te. Muito obrigado.

O INCON SCIEN TE EM JUNG

Ana Lia B. Aufranc

A ruptur a entre Freud e Jung parece ter sido tão sofrida e in-

tensa que os seguidores de apibos persistiram na hostilização recíproca, os junguianos considerando os psicanalistas redutivistas e os psicanalistas vendo os junguianos como místicos. Mas passados quase 80 anos desta ruptura, os dois movimentos têm, por vezes, se aproximado e a presença de analistas junguianos no presente simpósio de psicanálise é também uma expressão desta aproximação que nos permite ouvir e trocar experiências. Quand o ouvimos falar de Jung alguns termos nos vêm à mente como inconsciente coletivo e arquétipos; outros termos se popularizaram como complexo, um sujeito complexado ou mesmo algo da tipologia junguiana, a pessoa é extrovertida ou trata-se de um introvertido ou um intuitivo. De fato, todos estes termos tem sua impor tância na conceituação junguiana e talvez o conceito mais fundamental seja o de individuação. Para compr eende rmos o lugar que cada conceito tem na obra seria intere ssante retom armos um pequeno histórico de seu desenvolvimento. Jung, em 1900, havia se formad~ ~m psi_qui_atri_a e trabal?ava sob a chefia de Eugen Bleuler, na chmca ps1qmátnca da Um~ersidade de Burghõlzli. O Burghõlzli era um centro de pesqmsas bem conceituado na Europ a de então. Jung desenvolvia, nesta época, o teste de associação de pala-

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O INCO N SC IENT E : V 1-\ RI AS L E IT UR AS

vras · até então o teste tinh a por obj etivo dete rmin ar a velocidade ' . das respostas e suas qualida des . Era m dadas palavras estímulos perante as quais o sujeito deveria dar_ uma resposta associativa; as irregularidades nas respostas eram Vtslas como falh as do expe rimento e desconsideradas. Mas Jung, junt o a Rikl in, passa a dar atenção just ame nte a estas fa lhas - o tem po de latê ncia para se dar uma resposta, a repetição da palavra estímulo, várias reações ao invés de uma, falta de respostas etc. Not aram entã o que estes distúrbios na resposta ocorriam qua ndo a palavra estímulo evocava um conteúdo pessoal angustiante. A part ir dest a pesquisa experimental Jun g e Riklin chegam a conceituação de complexo, como sendo a junç ão de várias idéias unidas por uma carga emocional. Através dos estudos associativos Jun g chega à que stão da autonomia dos complexos, que enq uan to conjunto associativo ao redo r de dete rmi nad o núcleo, sendo carregado de emo ção e inconsciente tem a capacidade de rom per o auto-con trole e a autointenção da consciência. Jun g chega pela observação à questão de que os complexos estão pres ente s não só nas neuroses, como na psic ose e tam bém na normalidade, tratando-se apenas de uma diferenç a no grau de auto nom ia dos complexos. O quanto a consciência teri a condições de assimilar os conteúdos dos complexos, o qua nto seri a assimilada pelos complexos. A pesquisa de Jun g torna-se de interesse para Fre ud como uma validação empírica de sua teor ia da repr essã o na etiologia da neurose. Jun g lera A interpretação dos sonhos de Fre ud, o que lhe chamara muito a atenção, e já na sua tese de dou tora men to de 1902, enc ontr am- se várias citações das investigaçõe s oníricas de Freud. Em 1906 Jun g envia a Fre ud o seu "Es tudo diagnóstico de associações" 1, cujo último estu do "Psicanálise e exp erimentos de associação" era a análise de um caso de neu rose obse ssiva. Freu d escreve-lhe agra dec end o e con ta que, ansioso por ler, já o havia comprado. No mes mo ano Fre ud envia a Jun g sua "Co letâ nea de

1. JUN G, C.G. Co/lected Works, vol. 2, Experimental Researches, Part. 1.

O INCONSCI ENTE EM JUNG

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artigos breves sobre a teori a da neurose" . Assim iniciam a correspondência e um a troca científica riquíssima. A colaboração entre Freud e Jung é intensa neste período, e quem se interessar por conhecer mais detalhadamente este período recomendo a leitura da correspondência completa Freud/ Jung2 e também o livro de Paul Roazen , Freud e seus disdpulos 3 • Este foi um período de grande expansão do movimento psicanalítico, com a fundação, em 1910, da Associação Psicanalítica Internacional, da qual Jung foi eleito presidente. A ruptura final entre Freud e Jung ocorre em 1914, com o pedido de demissão de Jung do cargo da presidência. Mas este era um longo caminho que tem seu ponto crucial na edição, em 1912, da obra Transfonnações e símbolos da libido, que é depois revista e republicada em 1952 sob o título de Símbolos de trans-

fonnação. É uma ruptura muito sofrida para ambos, tão sofrida quanto deve ter sido a intensidade que os unia. Freud desenvolvia grandes expectativas em relação a Jung chamando-o de príncipe coroado, aquele que daria continuidade à sua obra. Mas Jung, contando então com 36 anos, parece sentir necessidade de seguir seu próprio caminho, sua própria individuação. Em Símbolos de transfonnação, Jung questiona o conceito de libido como sendo de caráter sexual e reformula a conceituação de incesto dentro da perspectiva mítica. Após a ruptura com Freud, Jung viveu um período de grande isolamento em relação à comunidade científica e de profundo confronto com o inconsciente. Abandona a carreira universitária e pouco escreve no período compreendido entre 1913 e 1917. Jung dedicava-se, nessa época, a registrar através da escrita, do desenho e da escultura as imagens dos sonhos e das fantasias e é através deste confronto com o inconsciente que vai se aproximando da questão do arquétipo, do Sei[ enquanto centro psíquico e da individuação como caminho que conduz ao centro.

2. FREUD /JUNG - Co"espondência Completa, organizado por William McGuire, Imago, 1976. 3. ROAZEN, P. Freud e seus discípulos, Cultrix, 1974.

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O IN CONSC fE NTE: V ÁRIAS LEITURAS

Em 1928 Richard Wilhelm envia a Jung o manuscrito de um

tratado alquimista chinês taoísta intitulado "O segredo da flor de ouro", o que desenvolveu em Jung o interesse pelo estudo da alquimia ao perceber seu paralelo simbólico ao processo de individuação. A partir de então volta a escrever com maior assiduidade e retoma definitivamente seu trabalho científico. Segundo Jung foram necessários 45 anos para elaborar e inscrever no quadro de sua obra os elementos que viveu e anotou nessa época de sua vida. Aqui cito o próprio Jung: Ocupando-me assiduamente das minhas fantasias, tais pesquisas fizeram-me pressentir que o inconsciente se transforma ou provoca transformações. Só descobrindo a alquimia compreendi claramente que o inconsciente é um processo e que as relações do ego com os conteúdos do inconsciente desencadeiam um desenvolvimento ou uma verdadeira metamorfose da psique. Nos casos individuais é possível seguir este processo através de sonhos e fantasias. No mundo coletivo, tal processo se encontra inscrito nos diferentes sistemas religiosos e na transformação de seus símbolos. Mediante o estudo das evoluções individuais e coletivas e mediante a compreensão da simbologia alquimista cheguei ao conceito básico de toda a minha psicologia, o processo de individuação.4

1. A QUESTÃO ENERGÉTIC A

Como vimos, em 1912 Jung reconceitua a libido, discorre novamente e aprofunda a conceituação em 1928.5 Acredito ser de importância ressaltar aqui alguns pontos fundamentais desta questão, pois nela se encontra o cerne da obra que Jung irá desenvolver. Jung considera a energia psíquica como sendo a analogia psíquica da energia física, portanto como um conceito quantitativo que não pode ser definido em termos qualitativos, como pulsão sexual, de fome ou de poder. Jung contrapõe ao que chama de enfoque mecanicista causal qualitativo (no qual a energia está ~culada à substância) o enfo4. JUNG , C.G . Memórias, sonhos e reflexões, Nova Fronteira, 1975, p. 184. 5. JUNG , C.G. Collected Workr , vol.8, "On Psychic Energy''.

O INCONSCIENTE EM JUNG

79

que en~rgético finalista quantitativo ( que se refere ao movimento energéttco)N e consid:ra que os dois seriam necessários para a compre~nsao do feno~eno psíquico. Na perspectiva finalista as causas sa? co?1preenclidas como meios para um fim, por exemp1o a ~egressao Vista causalmente é determinada por uma fixação na ~ae, enquanto que do ponto de vista finalista a libido regride à unago materna a fim de lá encontrar memórias associativas através das quais o desenvolvimento ulterior poderá ter lugar. Um dos mais importantes fenômenos energéticos da vida psíquica é a progressão e regressão da libido. A progressão é compreendida aqui como o avanço diário do processo de adaptação psicológica, consistindo na contínua satisfação das condições ambientais, o que só é possível através de uma atitude que é necessariamente dirigida, e portanto, unilateral. A regressão não é uma involução mas uma fase necessária para o desenvolvimento, o material que surge através da regressão não se constitui apenas de remanescentes rejeitados e imcompatíveis do dia a dia ou tendências animais inconvenientes, mas também de germes para uma nova vida e possibilidades vitais para o futuro. Devemos compreender esta dinâmica considerando que a parada de energia se deve a uma falha da atitude consciente e que, portanto, a regressão ativa conteúdos inconscientes valiosos. Há, desta maneira, uma relação compensatória entre o consciente e o inconsciente, o que será base para o conceito de individuação.

2. INCONSCIENTE COLETIVO E ARQUÉTIPO A individuação é o processo através do qual o indivíduo se torna um in-divfduo, ou seja, uma unidade indivisível, um todo. Tornar-se único através da diferenciação de características que em si mesmas são universais. O conceito de individuação pauta-se no de inconsciente coletivo. Jung, a partir da ruptura com Freud, faz uma diferenciação entre o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. Jung6 dizia que o inconsciente coletivo tem as fa6. JUNG, C.G. lective Unconscious".

collecred Works, vol. 9(1), "Thc Archctypes and the Col-

O

80

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

ces de Janus, de um lado seus conteudos apontam para o mundo

Dré-histórico dos instintos e, do outro lado, potcncialmente antepam o futuro. Assim como nenhum homem nasce totalmente

novo, mas continuamente repete os estágios do desenvolvimento

alcançados pela espécie, cle contém inconscientemente como um dado a priorn, a estrutura psíquica desenvolvida pelos seus ances-

trais. E isto que dá ao inconsciente seu caráter histórico característico, mas é também, ao mesmo tempo, o sine qua non para moldar o futuro (por isso uma manifestação do inconsciente pode ser interpretada como um efeito redutivamente ou como uma meta prospectivamente). Enquanto nós vivemos por um período de anos o inconsciente vive em termos de milênios. A existência desse extrato arcaico

provavclmente a fonte para a crença humana em reencarnação e em memórias de existência anteriores. Diríamos que assim como o

corpo humano é

como um museu

de

sua

história

filogenéti-

ca, assim também o é a psique. Somente o ego tem sempre um novo começo e um fim. O inconsciente molda a espécie humana e é tão parte dela como o corpo humano, o qual, embora efêmero

no indivíduo é muito antigo coletivamente. Jung dizia que "normalmente o inconsciente colabora com a

consciência sem atrito ou distúrbio.. A colaboração do inconsciente é inteligente e propositada e mesmo quando age em opo-

sição à consciência sua expressão é ainda compensatória de uma forma inteligente, como se tentasse restabelecer o equilíbrio perdido'7. Vemos assim na conceituação básica de inconsciente, a noção de um inconsciente potencialmente construtivo, sendo o

processo de individuação, um processo de desenvolvimento que

nasce da relação entre o consciente e o inconsciente.

O que compõe o inconsciente coletivo são os arquétipos. Jung chega à conceituação de arquétipo através de sua auto-análise bem como de seu trabalho com pacientes psicóticos no Bur-

ghölzli. Em 1912 fala em imagens primordiais; em 1917 em dominantes

e a

partir

de 1919

usa o

termo

arquétipo. Jung' percebeu

Collected Works, vol. 9(1), "Conscious, Unconscious and 1. JUNG, C.G. Individuation", parágr. S05.

8. JUNG, CG. lective Unconscious".

Collected

Works,

vol.

9(1),

"The

Archetypes and

the Col-

O

INCONSCIENTE EM JUNG

que

material

o

niscências não

se

de

imagético estabelecia padrõcs

mitos, lendas e contos de fadas e originava em percepções, memórias ou

cientes. As riencia

81

imagens reflctiam

formas

típicas

quc cram remi que cste material

experiências cons-

humanas de expe-

comportamento sua universalidade não poderia explicada por qualqucr teoria de migração. Os arquétipos seriam potencialidades, tendências, assim e

c

mo nascemos com

ser

co

potencialidades genéticas para sentar, andar, falar, temos potencialidades psíquicas. modelos primordiais, universais. Os arquétipos são Arque-tipos, padrões herdados que estruturame

coordenam o desenvolvimento da consciência. E importante frisar aqui que o padrão é herdado mas não o conteúdo que é variável e sujeito a mudanças ambientais e históricas (por exemplo o arquétipo do herói apresenta conteúdos muito diferentes em mitos da antigüidade greco-romana e nos mitos de nossa cultura ocidental contemporânea, embora expressem um mesmo

padrão arquetípico). A relação entre o arquétipo e a experiência é a de feed-back, a experiência humana, repetida durante milhões de anos, cria estruturas psíquicas residuais que se tornam arquétipos e estas estruturas exercem influência na experiência, tendendo a organizála de acordo com um padrão pré-existente. Em 1919, Jung conceituava o arquétipo como a cepção do instinto ou seu auto-retrato, "assim como a auto-per consciente dá às nOssas ações forma e direção, assim a apreensão inconsciente através do arquétipo determina a forma e apreensão direção do instinto, Nesse sentido vistos

como

os

instintos teriam

mais básicos que

os

uma

primazia, sendo

arquétipos. Já em 1947 Jungl0 re-

formula sua conceituação e a bipolaridade arquetípica torna-se clara, por um lado o arquétipo está ligado ao instinto e, por outro, à

imagem. Com relação a imagem o arquétipo se refere às idéias,

à inspiração criativa e ao espírito; com relação ao instinto está li-

gado à biologia e aos impulsos. Assim, o princípio espiritual bem como o instintual estariam presentes na própria essëncia humana.

9. JUNG, C.G. Collected Works, vol. 8, "Instinct and the Unconscious",

parágr. 277. 10. JUNG, cG. Collected Works, vol. 8, "On the Nature of the Psyche".

o

82 Os arqu tipos

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

são bipolares também no sentido de expressa-

rem aspectos positivos e negativos da cxperiência e emoções. Por

Cxemplo, o arqutipo

da Grande Mäc tem o pólo da fertilidade,

da nutrição, do acolhimento mas também o do abandono, do su-

focamento e da rejeição. Cada um destes pólos poderá ou não promovero descnvolvimento dependendo do momento da indivi. duação em que forem constelados.

Os arquétipos têm uma função organizadora do desenvolvi mento c implicam num elemento teleológico; o que é arquetípico implica cm metas. Jung conceitua o Self como o arquétipo central

do inconsciente coletivo, que coordena o desenvolvimento através dos outros arquétipos. O Self seria o centro da personalidade total mas também a própria totalidade psíquica que abarca o consciente e o inconsciente, "O Self não é somente o centro, mas

também toda a circunferência que engloba consciente e inconsciente; é o centro desta totalidade, assim como o ego é o centro da consciência"1, Esta conccituação deverá se tornar mais clara ao retomarmos, mais adiante, a questão da individuação.

Como vimos, Jung havia desenvolvido o conceito de complexo; esta conceituação foi revista por ele seguidamente, sendo através desse conceito que Jung une o inconsciente pessoal ao inconsciente coletivo. O núcleo do complexo é arquetípico e as ex-

periências de infância, bem como todas as outras que ocorrem durante a vida, se reúnem ao redor deste núcleo. Devemos considerar então que a manifestação do complexo não é necessariamente patológica. Os arquétipos contêm poten-

cialidades que poderão ser atualizadas desde que hajam condiçóes ambientais condizentes. Assim, à medida que o centro do complexo é arquetípico, a integração do complexo pela consciênCza trará um enriquecimento da mesma. Do ponto de vista fun-

cional diríamos que a dissolução de um complexo e sua conscienizaçao apresenta sempre, como conseqüência, uma redistribuição da energia psíquica." Ao se despojar um complexo de sua roupa-

gem de conteúdos pessoais, o núcleo arquetípico é descoberto e o

11. JUNG, C. G. Collected Works, vol. 12, "Individual Dream Symbolism in

Relation to Alchemy"., parágr. 44. 12. JACOB1, J. Complexo, arqutico, stmbolo, Cultrix, 1989.

O INCONSCIENTE EM JUNG

indivíduo, diante de

83

até então um

prisionciro de seus enredos pessoais, estará problema cujo sofrimento e solução é desde a eter

nidade a tarefa da humanidade. Os

complexos

fazem parte do fenômeno normal da vida quica, todos temos complexos. Segundo Jung um complexo sópsíse torna doentio quando pensamos que nao o temos. E possível que o complexo entre em conflito com o ego, que o complexo venha a ser reprimido, que o ego venha a se identificar com o complexo ou mesmo

um

que

o

desequilíbrio

ego entre

seja "engolido" pelo complexo. o

consciente

e

o

Havendo

inconsciente (devemos

lembrar que Jung conceituava a psique como um sistema auto-regulador) os complexos se tornariam dissociados e autônomos levando à neurose ou mesmo à psicose.

3. OS sÍMBOLOS Retomando agora a questão do arquétipo, devemos deixar claro aqui, que não nos relacionamos diretamente com os arqué-

tipos mas sim com as imagens arquetípicas, com os símbolos. Os símbolos religiosos, por exemplo, dão ao homem a premonição do divino e, ao mesmo tempo, protegem-no da experiênciaime

diata. No plano coletivo os arquétipos se expressam através de mitos, religióes, contos de fadas, criações artísticas, enquanto que no plano individual através dos sonhos, das fantasias, das visões, das vivências com o outro, com o próprio corpo etc.

Símbolo na conceituação junguiana é a melhor formulação possivel de algo desconhecido. Jung diferencia o símbolo do sinal e da alegoria por estes serem represcntações de algo já conhecido. Os símbolos não são primariamente defensivos mas sim da psique que têm um propósito e um fator

criações espontâneas

Curador. Isto é melhor compreendido se pensarmos que o cons

ciente e o inconsciente se comportam de forma compensatôria num sistema auto-regulador e que os símbolos funcionam no sen-

tido da auto-regulação e

a

favor da

ampliação natural da persona-

lidade. Um símbolo expresso num sonho ou mnesmo num sintoma seria a "tentativa'" do organismo como um todo de encontrar a cerne da neurose está homeostase, por isso podemos dizer que no

O

84

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

sua própria cura. Do ponto dc vista encrgético o símbolo seria

um mecanismo psicológico de transformação da energia.

Como vimos, o Self enquanto arquétipo central do inconsciente coletivo, coordena o desenvolvimento através dos outros

arqutipos, dircmos cntão que os símbolos estão sempre presentes estruturando a personalidade através da ação do Self. O símbolo ao entrar na consciencia, traz algo de novo e leva

a uma indiscriminação que se scguirá da elaboração do símbolo e da ampliação da consciência. Se algo é ou não símbolo depende do ponto de vista da cons-

ciência que o contempla, o mesmo fato ou objcto pode ter o caráter de um sinal ou de um símbolo.

4. EGO, PERSONA, SOMBRA E TIPOLOGIA Isto nos leva à questão de que a relação com os símbolos, en-

quanto expressões arquetípicas, pressupõc a consciência. Na conceituação junguiana o ego é o centro da consciência, falamos emn complexo-ego, no sentido de um núcleo central (ego) ao redor do

qual todos os conteúdos da consciência se agrupam. Assim, o ego é o centro da consciência mas não da totalidade psíquica; este centro, como vimos, é o Self.

Diríamos que o ego nasce e funciona a serviço de algo maior que ele mesmo, que seria o Self. Podemos ver o Self como uma

prefiguração inconsciente do ego ao qual o ego inicialmente estáá unido para depois se diferenciar.

Jung fala do nascimento da consciência a partir do inconsciente, onde estaria potencialmente contida como o surgimento de pequenas ilhas de consciência. Através do desenvolvimento os conteúdos do ego adquiriram energia própria configurando então o complexo ego, e possibilitando a vivência subjetiva de um eue

da identidade egóica. Jung conceitua a individuação como um processo que tem lugar na segunda metade da vida e, talvez por ter sido esta a grande obra de Freud, pouco se atém ao desenvolvimento na primeira

metade da vida. Jung vê a primeira metade da vida como sendo um processo de abrir mão das ilusõese do desejo de se manter li-

gado a um nível infantil de consciência, bem como da necessidade de conseguir para si mesmo um lugar na sociedade.

O INCONsCIENTE EM JUNG Com

85

desenvolvimento

o

do ego há, necessariamente, o desenvolvimento da persona e da sombra. A persona, que significa máscara em latim, seria uma estrutura arquetípica ligada à adap-

tação a

social

persona

e

ao

seria um

de individual

exercício dos

segmento

em sua

da

papéis

sociais.

psique

coletiva que só teria

Segundo Jungl3,

escolha. Podemos dizer que

a

algo

persona é de

grande importância para o desenvolvimento do convívio social, sendo que isso

com

o

o

risco seria

contato

de

o

com a

identificar com a persona e perder identidade mais profunda. O indivíduo se

identificado, por exemplo, com seu papel profissional e que se torna desorientado a partir da aposentadoria. Com o desenvolvimento de luz, consciência, ego, há naturalmente o desenvolvimento da sombra.4 O que caracteriza a sombra não são seus conteúdos, porque qualquer conteúdo pode ser sombra ou consciência, o que caracteriza é o fato destes conteúdos atuarem na vida de forma conflitante com a maneira de funcionar consciente, sendo seus símbolos de difícil aceitação pelo

ego. Digo que a formação da sombra é um processo natural por que o ego ao se diferenciar do Self faz a discriminação das polaridades, se identificando com uma delas, a outra necessariamente formará a sombra. Ao falarmos do ego e a fim de melhor compreender a concei-

tuação de individuaço,

seria interessante citar aqui a questão dos

tipos psicológicos.5 A tipologia não se restringe a uma classificação estática mas se associa à dinâmica dos opostos e ao desenvolvimento da personalidade na primeira e segunda metade da

vida. Jung conceitua duas atitudes e quatro funções egóicas. A di-

ferenciação tipológica se inicia na infâncial", existe uma dispotendemos a funcionar da maneira em que temos mais facilidade. Com um anoe

sição inata

acrescida de

um

reforço social,

e

13. JUNG, C. G. Collected Works, vol. 7, "The Relations Between the Ego and the Unconscious". Shadow". JUNG, C. G. Collected Works, vol. 9 (2), "The 15. JUNG, C. G. Collected Works, vol. 6, "Psychological Types". Pu16. von FRANZ, M-L. The Inferior Function, in Jung's Typology, Spring blications Inc., 1979. 14.

O

86

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

meio aproximadamente é possível observar qual a atitude predominante, se a extrovertida ou a introvertida. Na extroversão há a

predominância da orientação consciente para o objeto, a energia

psíquica se orienta predominantemente para o objeto, mas sendo a psique um sistema auto-regulador, no plano inconsciente existirá o movimento oposto. Jáo introvertido se orienta consciente-

mente pelo subjetivo, tendo no plano inconsciente o movimento oposto. Aos quatro ou cinco anos, podemos observar qual função egóica tende a se desenvolver mais. Jung conceituou quatro funçoes, agrupadas em dois pares de opostos. Um par de opostos

seria o pensamento e o sentimento, ambas funções racionais por que mediadas pela reflexão, ambas julgam e avaliam mas de

perspectivas opostas. O outro par de opostos seria a sensação ea intuição, funções irracionais porque não medidas pela reflexão. Assim, ao todo teríamos 16 tipologias diferentes combinando atitudes e funções. O indivíduo pode, por exemplo, ser extroverti do e ter como função principal mais desenvolvida, o pensamento; sua função inferior, menos desenvolvida, será o sentimento introvertido, sendo que a sensação e/ou a intuição poderão funcionar como funções auxiliares. Não pretendo aqui desenvolver a questão tipológica mas, como disse, apenas citá-la em função da conceituação de individuação como veremos adiante.

5. INDIVIDUAÇÃO Jung descreve a individuaço como um processo que tem lugar na segunda metade da vida. Usa para descrevê-lo, da imagem do sol (ego) que nasce no mar noturno do inconsciente, chega ao

meio-dia e inicia sua descida, sendo que o entardecer implica no oposto de todos os valores da manh, "aquele que mantém no entardecer a lei da manh,

precisa pagar por isto com a doença de

Sua alma, assim como certamente o jovem que tenta manter seu

egoísmo infantil na vida adulta precisa pagar por este erro com o fracasso social7. ego ao0 se diferenciar do Self na primeira metade da vida

17. JUNG, C. G. Collected Works, vol. 8, "The Stages of Life", parágr. 787.

O

INCONSCIENTE EM JUNG

87

tornou-se,

necessariamente, unilateral, e o movimento da psique da vida será o de reparar esta unilateralidade. A individuação é uma tendência natural, um movimento em direção à totalidade psíquica, ao Self, através da integração do consciente e do inconsciente. na

segunda metade

A

questão aqui

colocada é

da união dos opostos. Jungl8 chama de função transcendente a função que, progressivamente, une os opostos; esta seria uma função natural que faz parte do de processo individuação. Através da função transcendente o ego entra em contato com o símbolo e transcende as posições polares a

anteriores que encontram então, uma síntese no ego. Trata-se de um processo que, em decorrência da união dos opostos, leva a uma nova atitude.

O processo de individuação implica em tornar-se, como dizia no início, um in-divíduo, um todo indivisível, em tornar-se si

mesmo. Nesse sentido, há a diferenciação do ego da persona, e o

confronto do ego com a sombra. No plano tipológico há a vivëência da função inferior; esta função por ser a parte não

adaptada e

relegada pela consciência, é aquela mais ligada ao material inconsciente arcaico-primordial, e por isso funciona como umna ponte para o inconsciente. Os arquétipos constelados pelo Self seriam a Anima e OAnimus. A Anima como contrapartida feminina no homem e o Ani mus como contrapartida masculina na mulher, assim o homem seria compensado pelo elemento feminino e a mulher pelo mas

culino. Jung fazia uma relação entre Anima e Eros, e Animus e Logos, isto porque ele também correlacionava a mullher ao tipo sentimento, e o homem ao tipo pensamento. Este aspecto conceitual tem sofrido muitos questionamentos por parte dos pós-jun-

guianos e trata-se, sem dúvida, de um viés cultural na conceituação. Mas podemos compreender o caráter contrassexual como

contrapsicológico,

como

aspectos opostos

ao

funcionamento da

consciência, aspectos ligados ao outro, ao estranho, misterioso e potencial, àquele que traz formas alternativas de vivências e de

18. JUNG, C. G. Collected Works, vol. 8, "The Transcendent Function".

o

88

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAs

valores. Os símbolos da Anima e do Animus funcionam como guias para o inconscicnte, como símbolos que ligam o ego ao Self.

A individuação pode ser vista como movimento em direção a totalidade através da integração do consciente e do inconsciente.

Os símbolos do Self enquanto totalidade psíquica são muitas ve zes vivenciados através de imagens divinas. Jung não afirmaa existência de Deus no campo religioso mas se refere à vivência simbólica humana de estar ligado a uma divindade. E importante frisar aqui que a imagem divina, enquanto Seif, não implica na perfeição, mas sim na totalidade. A individuação é sempre um processo e no um estado, por isso ela nunca está completa a menos que vejamos a morte como

a meta final. A individuação seria, assim, um processo de diferenciação do coletivo e de construção da individualidade cujo potencial já se encontra inscrito no Self. Este processo não implica num antagonismo ao coletivo mas numa diferenciação, a dependência

às normas coletivas é substituída pela vivência do Self enquanto centro da totalidade psíquica.

O cgo não se opõe nem se submete ao Self, mas se re-liga, retorna às suas origens, vivencia a integração e o sentido da vida.

6. INDIVIDUAÇÃO DO MOVIMENTO JUNGULANO Jung dizia que o único junguiano era ele mesmo, isto não significa um simples egocentrismo mas sim reflete sua visão da individuação, implicando em caminhos próprios e únicos. Diferentes caminhos estão sendo percorridos pelo movimen

to junguiano internacional. O conceito de individuação tem sido revisto e ampliado para comprecnder todo o desenvolvimento da primeira e segunda metade da vida por Neumann9, Fordham" e

Byington 19. NEUMANN, E. The Child Personality, G. P. Putnam's Sons, 1973.

Strucure and Dynamics of the Nascent

20. FORDHAM, M. New Developments in Analytical Pychology, Routledge and

Keagan Paul, 1957

21. BYINGTON, C. Desenvolvimento da personalidade, Áica, 1987.

o INCONsCIENTE EM JUNG Outros,

89

Hillman22, têm se dedicado ao estudo c aprofundamento da questão arquctípica. Os diferentes enfoques tendem a formar difcrentes escolas de psicologia analítica, cujas diferenças teóricas, naturalmente, implicam em diferenças na prática analítica. Algumas classificomo

caçöcs das diterentes escolas têm sido fecitas, sendo uma das mais recentes a de Samuels,3

Samucls diferencia três escolas: tista

e a

arquetípica.

a

clássica,

a

desenvolvimen

A escola

clássica dá ênfase ao processo de individuação na segunda metade da vida e prioriza o trabalho com a vivência simbólica do Self. A escola desenvolvimentista dá maior ênfase ao desenvolvimento do indivíduo, tendo o Self como gerador das po0 tencialidades arquetípicas e dos símbolos desde o início da vida, considerando assim a individuação a partir da primeira metade da vida. Na prática analítica o trabalho com a transferência e a contratransferência é priorizada. A escola arquetípica enfatiza no plano teórico a conceituação de arquétip0, e prioriza na prática analítica o trabalho com o material imagético. No início deste artigo dizia que o movimento junguiano e o psicanalítico têm por vezes se aproximado. A cisão entre os dois

movimentos tem diminuído. Dentro do movimento junguiano posso citar o grupo desenvolvimentista londrino (entre eles Fordham), que tem se aproximado da psicanálise através de Me

lanie Klein. E notável, também, que alguns psicanalistas têm se aproximado a conceituações junguianas, por exemplo, é possível fazer um paralelo entre a conccituação lacaniana de Simbólico com inconsciente coletivo, e de Imaginário com inconsciente pessoal. Também o conceito de proto-pensamento de Bion traz semelhan ças com a conceituação dc arquétüpo e o seu conceito de "O' é, em alguns aspectos, similar ao de Self. A conceituação de fantasia inconsciente em Melanie Klein, como expressão mental do instinto, também tem proximidade com a teoria arquetípica.

22. HILLMAN, J. Estudos de psicologia arquetípica, Achiamé, 1981.

23. SAMUELS, A. Jung and the Post-Jungians, Routledge and Keagan

Paul, 1986.

90

O

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

Acredito que, passados quase 80 anos da ruptura entre os dois mestres, as aproximagoes teoricas entre os diferentes movimentos tendem a ocorrer, o que pode possibilitar o estabeleci-

mento de uma troca criativa e enriquccedora.

INCONSCIENTE:

PERSPECTIVA KLEINIANA

Maria Cristina Borja Gondim

Os pontos de vista que apresentarei sobre a idéia de incons-

ciente nos escritos de Melanie Klein apóiam-se nas suas des-

crições do fenômeno mental, bem como num trabalho de vivificar CSsas descrições pela observação de minha própria vida mental, e

pela observação propiciada pela experiência analítica com meus pacientes. E, pois, a intersecção entre texto e experiência o lugar que

para tratar desse tema. privilegio Ouço das pessoas, com certa freqüência,

que seus primeiros contatos com a obra de Melanie Klein resultaram numa im-

pressão de se tratar de afirmações descabidas, que nada tinham a ver com suas vidas cotidianas. Lembr0-me da minha própria experiência, e penso que tal recusa e distanciamento, à parte as li-

mitaçoes pessoais, são reforçados por exemplos freqüentemente relacionados com a vida de fantasia do bebê, criando espaço para que se pense que nós, adultos, não temos nada a ver com isso, ou,

melhor das hipóteses, que todo o conjunto das fantasias conscientes fazem parte de um passado longínquo, ao qual não temos mais acesso. Por isso, tive o cuidado de acrescentar exem-

na

in-

plos da vida cotidiana adulta, nos quais a fantasia é apreendida em termos conscientes, quer pelo sujeito da experiência, quer pelo analista. Abordar o inconsciente, numa perspectiva kleiniana, requer examinar a questão das fantasias inconscientes como determinan-

O

94

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

tes de um dado comportamento, de uma pessoa, numa certa situação. Farei esse percurso partindo das idéias de Freud sobre as

características dos processos inconscientes, e sobre a constituição das instâncias psíquicas. Destaco, a seguir, que o mundo interno,

para Melanie Klein, é constituído de objetos, que as pulsões se manifestam enquanto fantasias de relações objetais, e que os mecanismos de projeço e introjeção influem nas relações e na constituição do mundo interno/externo. Retomo a sugestão dada por

Bion de tratarmos as fantasias como teorias, modelos ou enunciados, e mostro que podemos compreender as posições esqui zo-paranóide/depressiva como um conjunto de teorias que se reúne nessas configurações. Em seqüência, cito algumas carac

terísticas das teorias (fantasias) primitivas, nas quais reencontraremos as

características,

descritas por Freud,

como

pertencentes

aos processos inconscientes, e finalizo considerando como as teo-

rias

(fantasias)

inconscientes

analítica.

1. FREUD:

ALGUMAS

podem

ser

percebidas

OBSERVAÇÕES

na

SOBRE

situação

O

IN

CONSCIENTE E A CONSTITUIÇÃO DAS INSTÄNCIAS

PsÍQUICAAS Uma das monstrar que

relação

contribuições fundamentais

humano se constitui interpessoal. Num texto escrito o ser

da

psicanálise foi decomo ser psíquico numa

em

1895,

mas

publicado

postumamente, o Projeto para uma psicologia científica", já encontramos Freud atento a esta questão, ao enfatizar as con-

seqüencias psíquicas decorrentes do estado de desamparo da criança. Na passagem a que me refiro, ele pretende demonstrar que para a supressão da tensão provinda do interior do organismo (p. ex. é fome) necessário uma aço específica no mundo ex* terno. Observa que a criança não é capaz de executá-la, dependendo para isso da assistência alheia.

ação específica,

no

mundo externo,

Quando

o

adulto efetuou

a

pela criança (p. ex. fornecenalimento), pôde ter uma vivência de satisfação. Esta experiência estabelece, na mente da pessoa, o registro de toda do-lhe uma

seqüëncia

ela

de eventos, que

se

inicia

no

estado de necessidade

INCONSCIENTE: PERSPECTIVA KLEINIANA e

finda

ao

95

gratificação propiciada pelo cla dá origem desejoe ao lugar privilegiado que nele temobjeto; o objeto. A

com a

relaço interpessoal,

tituição

do Freud. Para

elemento fundamental na conssujeito, aparece em várias outras concepções de relembrar, cito o Complexo de Edipo e seu na como

papel estruturação da personalidade e na orientação do desejo, bem como a gênese do ego e do superego, que a partir dos trabalhos

de 1914-15 são concebidos como resultantes das identificações. Freud percebeu, através do estudo dos sonhos, dos sintomas e dos atos falhos, que o fenômeno psíquico não podia ser identificado exclusivamente com sua existência consciente. Descobre a

eficácia do inconsciente e organiza a primeira tópica, tendo como

critério o acesso à consciência. Mas, inconsciente tem outras im-

plicações além de qualificar que, para a pessoa, o que se passa e desconhecido. Refere-se

a um

tipo

de funcionamento mental que

em "O inconsciente" (1915) ele resume da seguinte forma: "Di-

que as características que esperamos encontrar nos pro cessos mentais pertencentes ao sistema Inconsciente, são a falta remos

de contradição, o processo primário, a independência do tempo e

a substituição da realidade exterior pela psíquica"; esta última,

corresponde à regulação exclusiva pelo principio do prazer.

No quadro da segunda tópica, as características do sistema

Inconsciente são atribuídas ao Id, embora também reconheça no ego e no superego uma origeme uma parte inconscientes.

Old é concebido como pólo pulsional. Quando Freud procu ra explicar a gênese do ego, ele oscila: de um lado, toma-o como uma diferenciação adaptativa, a partir do Id, por influência da realidade externa; de outro, como produto das identificações. Nesse caso, com a introjeção do objeto é, na realidade, toda uma relação que é interiorizada. Remeto-os, para o desenvolvimento

desse ponto, a "Luto e Melancolia" (1915). Nesse texto, também O superego, parte clivada do ego, é personificado e se opõc ao

ego, julgando-o, criticando-o, aprovando-o, ou seja, tomando-o como objeto. Antes de ser designado como instäncia psíquica, aa

relação crítica superego-ego, nos moldes de uma relação pessoal,

já havia sido percebida, Freud:

inclusive

em sua

forma inconsciente. Cito

O

96 .o

indivíduo que sofre

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

de

compulsöcs

e

interdições

comporta-se estivesse dominado por um sentimento de culpa acerca do qual, porém, ignora tudo, de forma que podemos chamar-1he um sentimento de culpa inconsciente, apesar da aparente contradição dos termos. (Atos Obsessivos e Experiência Religiosa, como se

1907.)

2. MELANIE KLEIN: FANTASIA E MUNDO INTERNO Vamos reencontrar, em Melanie Klein, essa vertente do pensamento de Freud que considera as e introjeções identificações como constitutivas do mundo interno. Para ela, o mundo interno é um conjunto de objetos internalizados sua que

existência intra-psíquica:

prosseguem

Conforme tenho sublinhado amiúde, o processo de introjeção e

projeção, desde os começos da vida, levam à instituição, dentro de nós mesmos, de objetos amados e odiados, que são sentidos como bons" e "maus", que estão inter-relacionados uns com os outros e com o sujeito; isto é: que constituem um mundo interno... Em termos gerais, o que Freud considerou como as vozes e a influência dos

pais reais estabelecidos no ego, é, de acordo com minhas observaçoes, um mundo complexo de objetos sentidos pelo indivíduo, nas mais profundas camadas do seu inconsciente, como algo concreto dentro de si, razão pela qual eu e alguns dos meus colegas usamos os

termos "objetos interiorizados" e "mundo interno'". Este mundo interno consiste numa grande quantidade de objetos trazidos para dentro do ego correspondendo parcialmente à multidão de aspectos variados, bons e maus, em que os pais (e as outras pessoas) aparecem no inconsciente da criança, através das várias fases do seu de-

senvolvimento. Além disso, também representam todas as pessoas que a criança interioriza continuamente, numa grande variedade de

situações, fornecidas pelas múltiplas e sempre cambiantes experiéncias do mundo externo, tanto como das fantasias. Outrossim, todos csses objetos estão no mundo interno numa relação infinitamente

complexa, tanto uns com os outros, como com o próprio sujeito. ("o luto e a sua relaço com os estados maníacos-depressivos", 1940, em

Contribuições à psicanálise.)

Alguns elementos, presentes nessa citação, serão abordados mais tarde. Inicialmente, observaria que os objetos internos, mencionados por Freud e por Melanie Klein, fazem parte dds

fantasias inconscientes do sujeito, nas quais ele vive, desde o lnl

INCONSCIENTE: PERSPECTIVA KLEINIANA

97

cio da vida, intensas relaçõcs de caráter pessoal com o objeto. O tcrmo objeto designa a pessoa que visada pelas pulsöcs de vida c de morte, ou amorosa e destrutiva. Ambas se evidenciam em

fantasias inconscicntes, que

cxprimem

finalidadc

determinainda do sujeito em relação a um objeto específico. A fantasia conscicnte é o ponto onde a pulsão alcança expressão psíquica, se torna uma questo

uma

mental a ser lidada em termos mentais, como

afirma S. Isaacs emA natureza e a função da fantasia (1952). Em termos estruturais, essa referência diz respeito aos conteúdos do Td

partir da segunda tópica, corresponde ao pólo pulsional. A descrição kleiniana da pulsão, partindo da observação dos mo que,

a

dos como ela é vivida pelo sujeito, apresenta-a sempre em relação com um objeto. Por isso, embora inconsciente, podemos identificá-las ao nos darmos conta da finalidade, implícita ou explícita, presente numa certa relação de objeto.

E a partir da obra de Melanie Klein que a idéia de relação de objeto ganha destaque. A expressão relação de objeto acentua a interação e a influência mútua entre o sujeito e o objeto. Exemplo: Uma paciente conta que a filha voltou da escola, no primeiro dia de aula, chorando porque o professor de ingles en-

trava e saía da sala expressando-se unicamente nessa língua, e ela não havia entendido nada. A me disse-lhe que o resultado é que com certeza ela iria ser reprovada nessa matéria, e que ela pred

saria estudar muito, pois, se fosse mau em outras, poderia perder o ano. A paciente ficou surpresa ao perceber que a filha havia fi-

cado mais aflita, e chorando muito pedia-lhe para mudar de esco la.

Podemos notar que a resposta do objeto (mãc) ao invés de conter e aliviar a angústia, modificando a fantasia de desastre, ao contrário, intensifica-a, pois se a filha chegou em casa com um

agora ela tem um bem maior: a ameaça do ano perdido. Vejam que ambas partilham

problema,

a

dificuldade

com

o

inglês,

uma lantasia inconsciente onipotente, na qual o domínio de uma se língua não é fruto de trabalho e desenvolvimento, mas algo que possui ou não, de forma mais ou menos mágica. Observem que a de experiência com o professor de inglês desencadeou uma série

Vivências, sentimentos, fantasias, conflitos e defesa que é o que

nos interessa, enquanto psicanalistas. Não temos um problema

O

98

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

escolar, mas um problema mental. Nesse scntido, o mundo men-

tal e as fantasias predominam sobre os acontecimentos da reali. dade externa, quc serão tratados de modo diverso em função da organização mental alual da pessoa, na qual a angústia é o cle mento central. A fantasia está constantemente influenciando e alterando a percepção ou a interpretação do real, mas é por ele modificada,

medida em queo objeto externo fornece a experiência a partir da qual se constituem os objetos internos. Queiramos ou não, introjetamos os tipos de relações que estabelecemos, embora na

freqüentemente sem nos darmos conta, ou sem nos questionarmos

sobre

a

possível deformação proveniente

de

nossas

próprias

fantasias, na apreensão do objeto externo. Exemplo: Pouco tempo depois de ter sido assaltada, fui à casa de uma amiga. Ao lado de onde estacionei o carro, havia um rapaz que me olhava enquanto eu fazia a manobra. Imediatamente pen-

sei que ele poderia roubar meu carro, ou causar algum dano, co-

mo esvaziar os pneus. Tranquilizei-me ao perceber a presença do

guarda da rua, e por me lembrar que a recente experiëncia me deixara particularmente desconfiada dessas pessoas. Podemos notar, nessa interpretação subjetiva do objeto ex terno, a projeção de qualidades hostis, reforçadas pela

experiên-

cia anterior. Esse interjogo interno-externo corresponde aos me-

canismos de introjeção e projeção, mencionados por Melanie

Klein, que estão intimamente relacionados com certas fantasias que manifestam a tendência de tratar as qualidades agradáveis como se

pertencessem

ao

eu,

e

separar e tratar as qualidades más, dolorosas como se pertencessem ao objeto externo. Do ponto de vista mental, são as qualidades psicológicas as-

sociadas

ao

objeto

interno que

importam. Aquelas

que a pessoa assimila, isto é, com as quais se identifica, vão constituir o eu, ou

seja, tornar-se-ão suas próprias qualidades psíquicas. Exemplo: Quando iniciei minha formaçó na SBPSP, deparei-me com analistas kleinianos, bionianos, korutianos... Por não ter uma

referência minha, fiquei aturdida, angustiada e perdida com a multiplicidade. A descoberta de certo tipo de leitura da obra de Melanie Klein foi uma experiência preciosa, porque fazia sentido para mim e combinava com minhas observações. Adquiri um

INÇONSCIENTE: PERSPECTIVA KLEINIANA

99

ponto de referência para analisar o fenômeno mental e, conseqüentemente, a impressão de "colcha de retalho" desapareceu. Penso que é nesse scntido que Melanie Klein diz que o objeto bom interno atua como ponto focal do

sua

coesão

tema

ego,

contribuindo

para

integração. Partes dessas introjeções formam um sismoral, que opera segundo o princípio do certo-errado, eloe

giável-condenável que constitui o superego. As opinióes de uma pessoa sobre o seu objeto bom interno, as relações entre ego e superegoe deles para com as pulsões, também se expressam em fantasias inconscientes, que ou não serem

podem

percebidas

conscientemente. Resumindo: O mundo interno e as fantasias inconscientes

prevalecem sobre os acontecimentos, pois o que nos interessa é a organização mental revelada no modo como a pessoa lida com eles. As pulsões se expressam em termos mentais na fantasia in-

consciente, que compreende o impulso amoroso ou destrutivo, um objetoe uma finalidade. O mundo interno, as relações

objetais,

o

ego e o superego são moldados pcla interação da introjeçâão e da projeção, das fantasias e dos objetos e situações externos. As opinióes da pessoa sobre o objeto bom interno, as re-

lações entre o ego e superego, e deles para com as pulsões se ex-

pressam em fantasias inconscientes.

3. FANTASIA INCONSCIENTE: TEORIAS, MODELOs OU ENUNCIADOS Ao prosseguir, gostaria de introduzir algumas observações de Bion em seu livro Aprendendo da experiência (1963) sobre a questão da fantasia, porque me parece facilitar a compreeensão dos fenômenos mentais a que o termo se refere: ...0 que os analistas chamam fantasias são, ..o que fica do que foram em momentos modelos que o paciente fomou para que cor-

respondessem

com suas

experiëncias

emocionais.

Mais adiante, diz que a experiência emocional é representada

por enunciados, mesmo pela criança:

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS 100 fazer vários enunquando foi amamentado), e

lactente também

o

Presumivelmente,

pode

cmocional ciados (sobre sua experiëncia é a natureza desscs enunciados que em última instância há de inte ressar ao analista.

Em Elementos de psicanálise

(1963) afirma:

consideradas como interpretações psicanalíticas podem ser dos modelos e teorias que o teorias sustentadas pelo analista, acerca se as e é seu propósito, que paciente tem do analista. Acredita-se, conteúdo e expressão, exercem teorias do analista são corretas em

As

um efeito terapêutico.

Atento

observações, Pérsio O. Nogueira (1986)

a essas

con-

clui que: relações objetais,

descrições kleinianas sobre ansiedades, mecanismos etc... que implicam atividades de fantasias inconscientes, ...as

se

apresentam à

Teorias, implícitos tamento, de

uma

observação

nossa ou

Modelos,

determinantes de

explícitos,

pessoa,

como

ou mesmo

grupo,

numa

Enunciados

um

certa

ou

dado compor-

situação.

afasta a idéia de li Essa formulação da questão da fantasia, ao darmos com elementos misteriosos, quase míticos, aproxima-a a cotidiano de nossas experiências, deslocando o problema para interessa são as área do conhecimento. Nesses termos, o que nos o teorias, conscientes ou inconscientes, com as quais sujeito orgadada siniza seu mundo interno ante as angústias surgidas numa

tuação. S1,

e

do

São teorias que evidenciam

sujeito para com

as

relações dos objetos

entre

eles.

do Focalizar o funcionamento psíquico privilegiadamente uma mudança de ponto de vista dessas teorias (fantasias), leva a Há uma muperspectiva no domínio clínico, técnico e genético. uma condança de uma concepção biológico-irstintivista para substituído psicológico-estrutural, e o enfoque causalista é

cepção

de fantasia

que toda a vida enloque é inseparável tanto dos impulsos e objetos, como da angustia. A ênfase se desloca do indivíduo sozinho, presente na concepçao situacional. Irto

pelo

que aborda

o

que

implica

acontece no seu

aparelho mental

em

termos de

mobilidade, variação de intensidade, oposição que entre eles se estabelecem (os contra-investi

investimento energético

sua

INCONSCIENTE: PERSPECTIVA KLEINIANA

101

mentos); bem como, na idéia de narcisismo primário e de dife-

rentes fases do desenvolvimento libidinal, organizadas por zonas

erógenas predominantes e suas conseqüências para a compreensão da escolha de objeto e da psicopatologia. Tal deslocamento

vai possibilitar a Melanie Klein organizar suas observaçõcs do desenvolvimento mental em termos de posições. Posição diz respeito a um conjunto de teorias (fantasias) que podem ser agrupadas em configurações: a esquizo-paranóide ea

depressiva. Posição (esquizo-paranóide e depressiva) compreende como a pessoa representa o objeto (parcial ou total); a angústia (paranóide ou depressiva) que indica respectivamente o temor de

sofrer algum dano provocado pelo objeto ou temor de danificá-lo e perdê-lo; e o conjunto de defesas que são mobilizadas para combatê-las (p. ex. cisão, negação, identificação projetiva e repa ração). Diferentemcnte da fase, permite conceber que em deter

minada pessoa se combinem ou alterem esses diversos tipos de

configuração.

Tentarei esclarecer, rapidamente, que as posições esquizoparanóides e depressivas englobam um conjunto de teorias conscientes e inconscientes que o indivíduo utiliza em sua relaçãoo mundo interno-externo. Vimos que as pulsões se expressam em termos mentais numa

fantasia que inclui, além do impulso, um objeto e uma finalidade.

Quando a pessoa é gratificada, cla constrói a teoria (ou modelo) é da existência de um objeto bom (interno-externo). Quando frustrada, a teoria de um objeto mau (interno-externo). A capacidade do sujeito de manter uma teoria sobre as boas qualidades do objeto (interno-externo) na situação de frustração, é a expe-

riência mental que conceituamos como relação de objeto total, O uso da teoria alternativa, ou pertencente à posição depressiva. caracteriza a relação de objeto parcial e diz respeito bom ou

mau,

à posição esquizo-paranóide. Exemplo: Ante o silêncio do

paciente diz: estou tene você não diz natando lhe dizer tudo que vem à minha cabeça, Parece que é muito exigente, e da? Que droga de analista é você? demais! o que você quer! E eu ainda tenho que adivinhar analista,

o

ocasião de silêncio: O que está pessoa, Nem parece a pessoa acontecendo com você? Está calada, quieta. A

que

me

mesma

tem

noutra

dito coisas tão

interessantes!

6272S

O

102

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAs

Notem que, nos dois momentos, o paciente está numa situação de frustração. Mas sua resposta demonstra que sua orga-

nização mental difere de uma situação para outra. Na primeira, quando frustrado, faz a teoria que se encontra na presença de al

guém desqualificadoe exigente, que nada tem de bom para lhe ofcrecer. Portanto, a angústia e o sofrimento decorrentes da si tuação de frustração, leva-o a fantasiar o analista como um objeto parcial dotado de características exclusivamente más. No segundo

momento, apesar da frustração, as boas características do analista são mantidas. Portanto, o modelo de relação de objeto é total. Também a angústia, paranóide ou depressiva, relaciona-se com modelos, teorias, enunciados ou fantasias que têm carater amcaçador. Quando a ameaça é configurada em relação ao eu, é paranóide, quando em relação ao objeto, é depressiva.

Exemplo: Se uma pessoa em supervisão, ouve como crítica desqualificadora o que o supervisor aponta como problemas que vê em suas interpretaçoes, a angústia é paranóide, e na 1antasia (teo-

ria) não concordar com ela é equivalente a estar sendo atacada por um objeto mau, perseguidor. Uma paciente (R.) após uma sessão onde ficou com muita raiva de mim, acusando-me de não estar interessada em seu de-

senvolvinento, de ser invejosa das suas capacidades, retorna na sessão seguinte afllita por ter, em seus termos, perdido a cabeça e não ter levado em conta o cuidado que tem recebido durante to-

do o tempo de análise. A angústia é depressiva. A paciente, já trabalhando com o modelo de objeto total, percebe ter anulado qualquer capacidade construtiva da analista em relação à sua pessoa, angustia-se e repara.

Ante a situação de angústia, o sujeito desenvolve teorias (fan-

tasias) para lidar com ela. Säo os mecanismos de defesa. A pes soa pode, na fantasia (teoria) cindir o objeto daí termos os ob jetos parciais e igualmente o próprio eu (Self. -

Exemplo: Uma paciente que se exaspera quando percebe que nao tem toleráância e capacidade amorosa ilimitada, admira minha

tranqüilidade, que para ela é reveladora de que eu tenha atingido

esse estado de perfeição. Sua admiração por mim baseia-se

nessa

teoria. A observação de que aspectos do Self do analisando podem ser na teoria (fantasia) cindidos e vividos por ele como per

INCONSCIENTE: PERSPECTIVA KLEINIANA

103

tencentes ao analista, levou à concepção de um mecanismo mais

amplo que a projeção: o mecanismo de identificação projetiva. Se observarmos uma pessoa que se utilizou, em relação a

uma cxperincia frustradora, do mecanismo de gratificação alucinatória, notaremos que está tranqüila, pois para ela a qualidade

frustradora da experiência deixou de existir. Isso só é possível graças à onipotencia, que não é outra coisa senão a crença no poder do desejo e na realidade da fantasia (teoria).

Exemplo: O paciente fala e o analista permanece em silêncio. Ante essa frustração, o paciente imagina que o analista está, propositalmente em silêncio, numa atitude de cuidado, criando uma si

tuação benéfica para o seu desenvolvimento, facilitando o contato com seu mundo interno. O fato é que o analista estava em silen Cio porque não compreendeu o paciente. A onipotência se revela

na medida em queo analista, enquanto objeto frustrador, e todos os sentimentos ligados àà situação de frustração tforam, na teoria

(fantasia), negados e substituídos por objeto e situação gratificadores, que o paciente acredita estar presentes. Os modelos defensivos apresentados pertencem à posiço

esquizo-paranóide. A de-

fesa, na posição depressiva, envolve teorias de reparação do objeto externo-interno, como foi visto em relação à paciente (R).

Aliás, é a característica da angústia e a teoria parcial total dos objetos os aspectos que, prioritariamente definem as posições, já que

as

teorias que constituem

os

mecanismos de defesa descritos

como característicos da configuração esquiz0-paranóide, também

podem ser utilizados ante a angústia depressiva.

Tentei mostrar: a) que as descrições kleinianas que envol-

vem fantasias inconscientes s o

didas, percebidas

e

manejadas

mais fáceis de serem compreense

adotarmos

a

sugestão de Bion

de tomá-las como modelos, enunciados ou teorias que a pessoa

faz para

exprimir suas experiências emocionais e

para

poder lidar

com elas; b) que as posições esquizo-paranóides e depressivas são

configurações mentais que

evidenciam

um

conjunto

diverso

de teorias que utilizamos para dar conta de nossa experiência, num dado momento.

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

104

4.

DAS

CARACTERÍSTICAS

FANTASIAS (TEORIAS) PRI.

MITIVAS

Do anteriormente exposto, depreende-se que todo impulso, sentimento e defesa cstão relacionados com determinados tipos de fantasias, e se cxpressam em teorias que poderão ou não tornar-se conscientes. A natureza das fantasias (teorias e modelos) inconscientes e o modo como elas estão relacionadas com a reali-

dade externa, caracterizará o funcionamento mental do indivíduo. Nessa perspectiva, a contiguração esquizo-paranóide tem pre-

cedência, em termos genéticos, à depressiva, estando a primeira relacionada a processos mais primitivos, caracterizados pela predominancia do princípio do prazer e dos processos primários, en-

quanto na última podemos observar a preponderância do princípio de realidade e dos processos de pensamento. Assim, os mode-

los (fantasias) utilizados na posição cesquizo-paranóide, e na po sição depressiva não elaborada, apresentam as características dos processos inconscientes descritas por Freud:

-

Provavelmente

os primeiros

modelos

são corporais,

apoiados nas funções vitais, predominando uma indiferenciação

entre fantasiado-percebido (mundo interno-externo). Enquanto a discriminação entre eles não se estabelece, não há consideração para com a realidade externa, ainda não

percebida como autônoma e independente do funcionamento mental do próprio sujeito. A realidade psíquica é tão concreta quanto a realidade material. -As teorias, modelos ou fantasias têm caráter alucinatório,

ou seja, o único critério de realidade é o de realidade psíquica. -

As teorias são onipotentes, sendo o desejo tomado como

condição suficiente para transformar o real. Em decorrência da onipotência e da desatenção à realida de externa, a pessoa acredita e vive num mundo criado å imagem e semelhança de suas próprias representações internas, um mun

do fantástico, mas, que para ela, é bem real. -

A

gratificação

é

o

objetivo principal,

e

os

sentimentos

amorosos dela decorrentes contrapõem-se ao ódio gerado pela

frustração. Em ambos os casos, o sujeito utiliza seus sentimentos como critério de conhecimcato da realidade externa.

INCONSCIENTE: PERSPECTIVA KLEINIANA A medida que mundo interno-cxterno

105 sc

estruturam

e se

di

ferenciam, aumenta o predomínio do princípio de realidade, e a percepção da própria vida psíquica; diminuem as vivências maci-

ças e onipotentes; os objetos internos-externos são menos fantásticos e mais integrados; a vida mental deixa de ser percebida como

realidade material, e

o

sujeito pode pensar.

5. AS TEORIAS (FANTASIAS) NA PRÁTICA CLÍNICAA A obra de Melanie Klein é, fundamentalmente, a descrição pormenorizada das teorias (fantasias) que ela observou no seu trabalho como psicanalista. Apreender as teorias inconscientes do

paciente sobre o analista é fundamental para a compreensão dinâmica do que é vivido na transferência, que por sua vez se tor

nará a teoria do analista sobre o paciente, que Ihe será apresentada na forma de interpretação. De modo bastante esquemático podemos dizer que se interpreta a angústia, a defesa e o tipo de relação de objeto que se evidencia na relação com o analista, ou seja, na transferência.

valor da transferência como instrumento que possibilita tornar consciente o inconsciente. Nessa

Sabemos, desde Freud,

o

perspectiva, o inconsciente, a ser esclarecido, é uma teoria que

sendo desconhecida do sujeito, tem uma influência efetiva sobre

ele, pois é vivido como real, independente da sua confirmação pe los dados da experiência. Dito de outro modo, são as teorias de

relações de objeto, organizadas como posições esquizo-paranóirevelam em des e depressivas, que precisamos esclarecer. Elas se ele não é diferente qualquer situação da vida do indivíduo, pois fora

e

dentro da análise. Mas

lugar privilegiado

psicanalítico se torna o teorias, através da inter-

o contexto

para esclarecer

essas

pretação da transferência.

Na sessäo seguinte a uma falta, o paciente começa a me con dia anterior, que à sessäo. No seu relato, ele apao imposssibilitou de comparecer submetido às decisões de recia como alguém que está totalmente falta. Gradualmente, vou outrem, a quem responsabilizava pela com o julgamento que eu uma pessoa preocupada tar tudo que ele teve-que

percebendo

fazer,

no

trabalho,

no

106

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

DOSsa fazer a seu respeito, com possiveis recriminações, acusações e mesmo temores que, em sendo desse jeito, eu não o ache

algum suficicntemente interessante para continuar investindo nele. Por isso, necesita eximir-se de qualquer responsabilidade em relação à sua falta. Sei, pelo próprio paciente, que sua posição

na hierarquia da empresa lhe dá certa autonomia, e mesmo que assim não fôsse, a ênfase da comunicação não recaía sobre a angústia e sofrimento decorrentes de viver uma situação como esta, mas em como se utilizar disso para me mostrar que não devo responsabilizá-lo ou brigar com ele, pois o responsável é um ter ceiro, e é para este que devo dirigir a minha raiva e meu desagrado. A compreensão que tenho da relação que o paciente estabelece comigo se torna a interpretação. Apontar para esta pessoa o temor do meu julgamento crítico, e como se move para se livrar

dessa situação, significa tornar consciente a teoria inconsciente que se revela no que o paciente diz, que outra coisa não é senão apontar a angústia, a representação do objeto e os mecanismos de defesa. Transferência, portanto, envolve a repetição, na relação com o analista, das teorias com as quais a pessoa organiza seu mundo interno e suas relações com o objeto externo. Na medida em que está sempre presente, numa sesso, uma relação de objeto, é preciso que o analista se dê conta da nature za dessa relação. Nessa atividade é fundamental que ele possa apreender a angústia do paciente e seus métodos para lidar com ela. Se naquele momento existe uma relação de objeto viva entre analisando-analista, inevitavelmente está sendo revelada, mesmo que um dos participantes ou ambos não percebam. Nessa perspectiva, o inconsciente se revela no que o analisando diz, ou não e a interpretação não é a decifração de uma charada, de um enigma, mas a formulação das teorias que organizam a relação atual, basecada na observação da experiência, acessível a ambos os participantes. Isto não significa desconsideração ou desprezo pela

diz,

história do paciente, mas a possibilidade de abordá-la numa dinamica atual, que exclui o uso dos fatos históricos no sentido

explicativo causal. Se sou representada, na mente do paciente, como uma crítica feroz, que não vê nele nenhuma qualidade por-

que faltou a uma sessão (conforme o exemplo); se esta represen-

INCONSCIENTE: PERSPECTIVA KLEINIANA

107

tação não está baseada na observação da experiência, ela aponta

para a qualidade dos objetos internos do pacicnte, que evidentemente são fruto de sua história. Mas remeter-se a supostos rela-

tos históricos do tipo minha mãc ou meu pai me tratarem desa ou daqucla forma, além do risco de lidar com falsificações pelas

distorções que as lembranças contêm, abre espaço para aumento dos mecanismos de cisão e racionalização (faço isso porque meu

pai etc..), impedindo o esclarecimento de toda a configuração presente na relaço

com o analista. Pois é a percepção desta con-

figuração inconsciente, por analista e paciente, que cria as con-

dições para maior integração. Gostaria de salientar, que é igualmente importante que a teoria das relações objetais não seja utilizada como um corpo explicativo. Ela deve se manter como um conjunto organizador que precisará ser redescoberto no trabalho com o paciente, pois no a priori à vida, se for razoavelmente verdadeira, deverá na sendo vida ser reencontrada. Procurei mostrar: que todas as complexas relações de uma

pessoa com seu mundo interno e externo, que incluem seus sen-

timentos, impulsos, conflitos, desejos, angústias e defesas se expressam em teorias (fantasias) conscientes ou inconscientes; que quanto mais primitiva for a organização mental dessa pessoa, mais absolutas e onipotentes serão suas vivências, o que nos possibilita a ocasião para observarmos as características dos processos inconscientes descritos por Freud;

que as teorias utilizadas pelo sujeito foram organizadas por Melanie Klein nas configurações esquizo-paranóide e depressiva, tendo a primeira precedência genética sobre a última, representando os processos mentais mais primitivos; que na práica clínica, através da interpretação da trans-

ferência, pretendemos tornar consciente as teorias (fantasias) com as quais a pessoa organiza sua experiëncia, num dado m0mento, em função de certas angústias. Essas teorias do analista se

"são corretas em conteúdo e expressão, exercem cfeito teraputico", como diz Bion.

O

108

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

BIBLIOGRAFIA BION, W. Aprendiendo de la eperiencia (1963), Buenos Aires, Paidós, 1975. BION, W. Elementos de psicoanálisis (1963), Buenos Aires, Hormé, 1966. S. "Lo

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FREUD,

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Completas, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973, vol. II.

ISAACS,

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e a função da fantasia" candlise, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

(1952),

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e a sua relação com os estados maníacos-depressivos'" (1940), in Contribuições à psicanálise, São Paulo, Mestre Jou, 1981.

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P.

"As

teorias de Melanie Klein vistas por

psicanalista Klcin-Bion/niano uma tentativa de objetivação através de experiências mocionais (clínicas e do cotidiano)", trabalho aprescntado em Campinas,

agosto de 1986.

um

O SISTEMA KLEINIANO

Barros Elias Mallet da Rocha

Vou me limitar a procurar estabelecer algumas das diferenças básicas, de forma sumária, entre o sistema kleiniano e as concepções metapsicológicas freudianas, no limite de tempo proposto para esta mesa redonda. Não tenho qualquer pretenção de originalidade. O que estou

apresentando hoje é uma resenha de alguns pontos de vista de W. Baranger, J. M. Petot e Donald Meltzer complementadas por algumas reflexões pessoais. Poderíamos iniciar nossa reflexão com a pergunta: qual o

conceito central, organizador do sistema kleiniano? Antes de en-

trar na questão propriamente dita, gostaria de tecer alguns co mentários sobre o estilo dos escritos de Melanie Klein.

Évoz corrente, entre psicanalistas, que a leitura de Melanie Klein é difícil e trabalhosa. Seu estilo é considerado pouco ele gante e obscuro, os conceitos imprecisos e contraditórios e, por im, é mencionada sua falta de preocupação com uma apresen-

tação sistemática de

pregnada

suas

idéias.

de termos anatômicos

e

E, contudo, fisiológicos,

sua

linguagem

utilizada

nas

im-

inter-

Este texto, com pequenas reformulaçóes, constitui contribuição lida em 10-04-1989, no quadro de uma mesa redonda sobre o sistema kleiniano no quadro de

um

simpósio cujo tema era "Epistemologia e

Psicanálise".

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

112

prctaçõcsc na descrição do que seria a vida cmocional do bcbê, o que

m a S causa

cstranhcza.

Mclanic Klcin tinha noção da diliculdade de leitura que seus escritos suscitavam. Ela frcqücntemente solicitava a colegas que os revissem, embora sempre se mostrasse ciosa cm manter sua marca pessoal. J. Ganmil (1985) conta que certa vez, na década de 30, Ernest Jones ofereceu-se para reescrever um de seus traba-

lhos como objetivo de torná-lo mais claro. Klein Ihe respondeu, com humor, dizendo: "Certamente seria mais claro, mas seria menos eu".

Jean Michel Petot (1979) é o primeiro autor a se dedicar ao exame da obra de Melanie Klein de um ponto de vista, ao mesmo

tempo, histórico e epistemológico. Sua abordagem é distinta das exposições sistemáticas do pensamento de M. Klein do tipo realizado por Hanna Segal em 1964 e 1979. Estes dois livros são con-

siderados clássicos e de leitura indispensável para quem quiser se introduzir no conhecimento da psicanálise kleiniana, como aliás é seu objetivo, sem contudo dar ao leitor uma idéia de como o seu sistema conceitual se desenvolveu e nem como este se articulavva

internamente, no decorrer de suas diversas reformulações. A

perda da perspectiva histórica torna mais difícil perceber que todo sistema de pensamento consiste em partes em diferentes está-

gios de desenvolvimcnto e contém clementos aparentemente contraditórios e inconsistentes. Em outro trabalho, procuramos mostrar que muitas das sistências às idéias de Melanie Klein provêm de uma leitura marcada por um viés a-histórico que cria a impressão, no leitor, de estar diante de um sistema contraditório e fechado. O leitor, nestas circunstâncias, dificilmente pode se dar conta da existência de

re

um pensamento em constante evolução que resulta em práticas clínicas que também sofreram e sofrem grandes transformações no decorrer do tempo. Essas transformações não cessam coma

morte de Melanie Klein. Em artigos recentes, Elizabeth Spillius (1988a, 19886) mostra em que áreas ocorreram as principais mo-

dificaçoes.

Nesse mesmo trabalho, atribuímos, dentre outras variáveis,

esta circulação das idéias kleinianas como se constituíssem um bloco unitário à maneira como foram organizadas as cdi_ões das

113

O SISTEMA KLEINIANO

obras de Melanie Klein até 1975. Até então seus artigos foram apresentados sem qualquer referência histórica que pudesse dar ao leitor uma noç o

de como suas idéias se articulavam a cada

momento no sistema global. Em 1975, por iniciativa do Melanie

Klein Trust, é publicada uma edição histórico-crítica na qual esta falha é corrigida. Nesta edição seus artigos são revistos, as re

ferências

bibliográficas

unificadas

e

cada volume é

seguido de al

gumas notas editoriais situando o trabalho no contexto em que foi escrito. J. M. Petot (1979) sugere que seu estudo seguirá o mesmo

principio que orientou Klein em suas investigações teórico-clínicas. J. M. Petot (1979) introduz seu trabalho escrevendo: A presente obra tenta suprir esta lacuna (a falta de um estudo de conjuntb da obra de Mclanie Klein) propondo ao Ieitor seguir a

formação das concepções kleinianas no triplo movimento da construção dos conceitos conforme as necessidades da teoria, da tomada em consideração dos fatos impostos pela clínica e o re-envio permanente de um ao outro.

Retomemos agora nosso objetivo original, qual seja, o de procurar estabelecer as especificidades do sistema kleiniano, tomando como ponto de partida sua concepção de inconsciente. Esta concepção é expressa através de suas idéias sobre a transferência, a função da interpretação, e sobre o papel desempenhado pela experiência emocional em seu sistema. Por fim, faremos algu-

mas breves considerações sobre quais seriam os conceitos - ou conceito -

central organizador de seu sistema. Sempre que for

pertinente, estarei comparando suas concepções com as de Freud. M. Klein não concebia, como sabemos, a existëncia de

pulsoes puras, dissociadas de uma relação objetal, e privilegiava a

ansicdade como fator central desta relação. Ao colocar a ansiedade, e não a pulsão, no centro de suas preocupações, ela fazia da experiencia emocional o tema principal de suas investigações. E interessante notar aqui que esta importância atribuída à emocional contrastava com a abordagem freudiana basicamente um subproduto da vida para quem a emoção era pulsional. Para Freud, ainda que se pudesse falar descritivamente em emoções inconscientes, näo era correto conceber as emoções

experiência

como existindo inconscientemente.

O

114

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

Freud, em seu estudo metapsicológico sobre o inconsciente, datado de 1915, dizia: As idéias são basicamente investimentos de traços de memória, cnquanto que afetos e emoções correspondem a processos de des-

carga, cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos.

(Pág. 178) A repressão, nesta mesma linha, poderia, ainda segundo

Frcud, inibir a pulsão, impedindo que esta se transformasse numa manifestação afetiva. Freud, em sua Metapsicologia, distingue os pontos de vista

econômico, dinâmico e tópico. O ponto de vista genético é considerado como derivado das dimensões precedentes. M. Klein abandona qualquer consideração

de

ordem

econômica". Praticamente não existe qualquer referência ao aspecto energético em seu sistema de pensamento. M . Klein considera que o conteúdo básico do inconsciente são as fantasias e que estas expressam as relaçóes objetais e, por-

tanto, englobam tanto a ansiedade (manifestação emocional), como as defesas contra estas. M. Klein, como acabamos de ressaltar, não admitia a possibilidade de considerarmos as pulsóes dissociadas de uma relação objetal. Klein menciona a pulsão sempre atuando sobre um objeto e criando, desta forma, tanto uma relação com este objeto quanto uma experiência emocional inconsciente. Ao não colocar a pulsão, tal qual Freud, mas a experiência emocional como foco de suas preocupações, torna esta última o centro de suas investi-

gações e atribui à ansiedade um papel preponderante na estrutu-

ração da vida psíquica do indivíduo. Podemos notar, a partir desta concepção, algumas diferenças básicas com relação ao sistema Ireudiano. Para Klein a emoção é a base da vida mental e aquilo que he dá significado e existe tanto no consciente quanto no in

consciente. Para Freud, a emoção é um subproduto da vida pulSional e, portanto, uma vivência consciente, isto é, um elemento

que indica a presença de um conflito pulsional inconsciente. A importância dada à emoção

inconsciente como fator cen-

tral da vida psíquica dos indivíduos, que a organiza e Ihe dá senti-

O SISTEMA KLEINIANO

115

do, é uma característica básica do sistema kleiniano que o diferencia de todas as outras orientações M. Klein, com base em sua cxperiência clínica como analista de crianças e em observações do comportamento de bebës, con-

psicanalíticas.

clui que, desde o início de suas vidas, estes se relacionam com a mac, isto e, sugere que desde o nascimento o bebê possui um cgo

suficiente, ainda que num estado de não integração, para sentir

ansiedade e se defender dela através de sucessivas projeções e introjeções. Ela se refere a isto dizendo: Os processos primordiais de projeção e introjeção, estando intimamente ligados com as emoções e ansiedades do bebê, iniciam as

relações objetais. (Klein, 1952) A seguir, M. Klein (1952) diz: . afirmo que a transferência origina-se dos mesmos processos que, nos primeiros estágios, determinam as relações de objeto. Desta

forma, na análise, teremos que voltar várias vezes às flutuações entre objetos amados e odiados, externos e internos, que dominam o início

da infância.

Desde muito cedo em sua obra, M. Klein indicava que a pro-

jeção dava-se para dentro do objeto e não sobre o objeto. Ao introduzir formalmente o conccito de identificação projetiva em 1946, Klein acentua este ponto indicando, desta forma, sua firme adesão à idéia de que existe um mundo interno, isto é, um espaço

no interior do objeto. Os indivíduos são concebidos por M. Klein como vivendo em pelo menos dois mundos, um externo e outro

interno, sendo este último tão real quanto o primeiro. As fantasias inconscientes passam a ser vistas como transações ocorrendo entre estes dois universos. Os sonhos passam a ser encarados não como mecanismos de alívio de tensões destinado a salvaguardar o

sono e se tornam retratos da vida onírica (Meltzer, 1984), isto é, daquilo que está ocorrendo no mundo interno. Esta nova abordagem da projeçâão modifica c amplia a concepção de transferência vigente até então entre os psicanalistas da

época. Para Freud, a transferência era um processo através do qual certas relações e acontecimentos do passado, com seus compo-

116

OINCONSCIENTE: VÄRIAS LEITURAS

nentes afetivos, cram repctidos cm relação à figura do analista

sob a influência do princípio de compulsão à repetição. Para M. Klein, a transferência era fruto da cxternalização de relações objetais internalizadas sob a pressão excrcida pela ansiedadc e, como já vimos, sua origem remontava aos mcsmos pro-

cessos que, no passado, iniciaram as relaçõcs objetais, ou seja, cisão e identificaço projetiva. Para os kleinianos, a questo essencial envolvida na transferência não é a relação passado/pre sentc, mas aquela existente entre mundo interno e mundo externo. Assim, podemos dizer que a relação com os próprios pais

reais já contém elementos de uma transferência. Isto porque a criança não reage apenas aos pais reais tal qual ela os vivencia, mas sua visão já está colorida por suas projeções e introjeções. O

que está cem jogo na transferência não são as imagos dos pais (ou quaisquer outros objetos) como representativas de lembranças e vivencias reais ocorridas no passado. Estas são, como sugere J.

Laplanche (1983), "o depósito introjetado destas experiências, mas modificadas pelo próprio processo de introjeção". Sumarizando sua concepção de transferência M. Klein (1952)

diz: Por muitos anos e, até certo ponto, isto é verdade ainda ho je a transferência foi compreendida em termos de referências diretas ao analista, no material do paciente. Minha concepção da transferência, como algo enraizado nos estágios iniciais do desenvolvimento e nas camadas mais profundas do inconsciente, é muito mais ampla, envolvendo uma técnica através da qual, a partir da totalidade do material apresentado, são deduzidos os elementos inconscientes da transferência. Por exemplo, relatos de pacientes sobre suas vidas, relações e atividades cotidianas não só nos oferecem uma

compreensáo do funcionamento do ego, mas revelam igualmente as defesas contra a ansiedade suscitadas na situação de transferência, caso exploremos seu conteúdo inconsciente. O paciente está fadado a lidar com conflitos e ansiedades, revividos na relação com o analis-

ta, cmpregando os mesmos métodos a que recorreu no passado. Isto guer dizer que ele se afasta do analista como tentou afastar-se de seus objetos primários; tenta cindir a relação com eles, mantendo-os

como figuras boas ou más; deflete alguns dos sentimentos e atitudes Vvidos em relações ao analista para outras pessoas em sua vida coti-

diana, e isto é parte da situação.

O SISTEMA KLEINIANO

117

A grande novidade introduzida por sua concepção refere-se ao fato de que concebe a relação do indivíduo com o objeto real,

cxterno, seja este alguém de seu meio ou o analista, como tendo um duplo caráter. A relação se dá concomitantementc com o ob-

jeto real enquanto tal c

com sua

imago introjetada.

M. Klein (1946) ao dizer qué a projeção se dá para dentro do objeto e altera a identidade deste, explicita sua teoria da idcntifi-

cação projetiva e esta implica numa ampliação do conceito de transferência e, por conseqüência, também da contratransferência. O analista deixa de ser encarado como um espelho sobre o qual o paciente projeta suas figuras internas com as quais passa a

interagir na figura do analista, para ser visto como um indivíduo que possui uma mente para dentro da qual são projetados sentimentos e/ou funções mentais. Ao projetar para dentro, o pacien-

te está fazendo algo ativamente com a mente do analista, e, ao fazë-lo, está comunicando algo a respeito do funcionamento de sua própria mente. O encontro analítico passa a ser visto, sobretudo, como uma relação que produz um impacto emocional mútuo independentemente da vontade dos indivíduos envolvidos. Esta preocupação com o par interagindo, certamente é pós-freudiana. Assim, as interpretações passam a versar não sobre a descrição da dinâmica

intra-psíquica do paciente em si mesma, mas sobre a dinâmica da interação num nível intra-psíquico entre o analista e o paciente.

Esta modificação de ênfase, introduzida pelos trabalhos de M. Klein e de seus continuadores, produz uma revolução na técnica

interpretativa. A nosso ver, parece ter sido o aprofundamento da concepção de transferência e sua estruturação através do mecanismo de identificação projetiva, o aspecto que mais estimulou pesquisas e o conseqüente aprofundamento das idéias kleinianas. Dentre as conseqüências práticas destas idéias decorre uma concepção que coloca a ansiedade no centro da interpretação. A

interpretação passa a ser vista como visando descrever a fantasia inconsciente subjacente à relação estabelecida com o analista, fantasia esta que contém tanto a ansiedade como os mecanismos de defesa utilizados contra ela.

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS 118

interpretação visa às modalidades do finalidade ultima é tornar consciente o conflito defensivo e sua O conflito do qualo paciente se defende é descjo inconsciente. um choque entre pulsões opostas. A encarado como o produto de às defesas utilizadas e depois às interpretação dirige-se primeiro é concebida como pulsoes. A transferëncia, nestas circunstâncias, resistência e, ao mesmo tempo, como o motor da cura. A freudiano No modelo

a

uma

ansiedade é vista como uma indicação de que existe um conflito. Inicialmente, a ansiedade era vista por Freud como fruto de um represamento da libido, e, portanto, a doença mental resultava de inibições de caráter sexual. Ao introduzir o modelo que exa ansiedade como fruto de um conlito moral inconsciente

plicava

demandas da realidade externa ou entre diversas instâncias psíquicas ego e superego, por

(seja

entre

impulsos

inconscientes

e

exemplo, depois da introdução da teoria estrutural -

Freud dá

um novo status ao insight, que passa a ter uma função terapêutica. Ao conhecer melhor seus impulsos conflitivos, o paciente está mais instrumentado para fazer uma escolha mais de acordo com seus interesses. Autoconhecer-se, deste modo, torna-se terapêutiCO.

M. Klein adota este modelo, reconhecendo algumas de suas complicações técnicas. Nem sempre

-

poderíamos até dizer ra-

ramente- as escolhas morais às quais os pacientes têm que se defrontar são fáceis e, além disso, elas não dependem apenas de

opções intelectuais. Na análise, o analista tende a ser empurrado a participar do conflito vivenciado pelo paciente c abandonar sua postura analítica atuando na transferência. Em M.

Klein,

ênfase da

terapêutica, depois da introdução do conceito de identificação projetiva, desloca-se da preocupação a

com a resolução de conflitos para a promoção de uma maior in-

tegração do ego, via introjeção das partes perdidas. Freud pensava nos neuróticos, segundo D. Meltzer (1984), como pessoas atormentadas por experiências penosas não asslmiláveis, análogas à presença de um corpo estranho provocando uma permanente irritação. M. Klein já os concebia como pessoas que repetiam em seu mundo externo um conflito interno cuja fonte foram experiências passadas, agravadas pela falta de so-

lução do conflito no presente.

o SISTEMA KLEINIANO

119

Creio ter ficado claro que a função da interpretação para M. Klcin, e portanto objctivo do processo analítico, é o de

promover

a integração de partes perdidas do cgo, em conseqüência do uso

da cisão e identificação projetiva. Esta integração leva a um forta-

lecimento

do ego e,

conseqüentemente,

maior capacidade a conflitos internos e externos, emoçöes criando condições para uma vida emocional e intelectual mais profunda. de tolerar

e

De que forma

a uma

fazer face

interpretação promove a integração? Segundo Hanna Segal (1981), isto ocorre através do insight analítico. O

insight

é

a

terapêutico

porque permite a reconquista e reinte gração de partes perdidas do ego, acompanhado por uma percepgão mais correta da realidade. O insight também é terapêutico porque o conhecimento substitui a onipotência e, portanto, capacita a pessoa a lidar com seus próprios sentimentos e com o mun-

do externo em termos mais realistas, nos diz H. Segal. Assim, para os kleinianos, conhecer-se é mudar. A contradição freqüentemente referida entre as concepções psicanalíticas que de um lado preconizam como objetivo da psicanálise apenas o de adquirir conhecimento a respeito de si mes-

mo, e de outro os que preconizam como objetivo o de transformar o paciente, acentuando que nosso contrato com o paciente é

fundamentalmente de caráter terapêutico, perde o sentido para os kleinianos, na medida em que o insight é o fator central do processo terapêutico, isto é, o conhecimento leva a uma transformação da experiência emocional. Gostaria de aprofundar ainda um pouco mais a concepção kleiniana de terapêutica. Como vimos até aqui, esta se refere a

uma liberação da capacidade de fantasiar, permitindo, desta forma, maior fluidez entre o mundo consciente e inconsciente, que por sua vez, incrementa a capacidade de simbolização e, portanto, de comunicação verbal. Este processo leva a uma maior capaci

dade de pensar a experiência emocional e permite o estabeleci mento de relações emocionais íntimas entre as pecssoas.

Assim, o objetivo do processo analítico é também o de pro

mover a capacidade de pensar que exerce uma função integradora,

ao mesmo

tempo que promove

o desenvolvimento.

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

120

Scgal (1981), Betty Joseph e Bion enfatizam que a ameaça à liberdade de pensamento no

provém somente de fontes exter

nas, mas pode partir do mundo interno. Esta amcaça ao funcionamento mental e à atividade de pensar não se dirige somente a pensamentos cspecíficos, como por cxemplo hostilidades aos pais

ou irmãos, mas pode dirigir-se contra a própria função de pensar

e voltar-se contra todo conhecimento. Segal sublinha que esta luta pela liberdade de pensamento, incluindo a manutenção da capacidade de pensar, é travada cotidianamente, conjuntamente com nossOs pacientes.

Desta forma, entramos em contato com mais um dos objetivos do processo analítico para os kleinianos, qual seja o de permitir e promover a internalização de um objeto interno capaz de

pensar a própria experiência emocional, dando significado a esta. Ser capaz de dar sentido às próprias experiências emocionais é considerado um dos requisitos básicos da saúde mental e do cres-

cimento. Para finalizar, gostaria de retomar a última questão que me propus responder inicialmente, qual seja a de procurar indicar qual seria o conceito central que exerce um papel organizador do sistema kleiniano. Com relação a esta questão, sigo as idéias de W. Baranger (1971, 1980) que considera que este conceito central organizador é o de objeto interno. W. Baranger (1971, 1980) chama nossa atenção para o fato de que M. Klein usa o conceito de objeto interno em dois senti-

dos, aparentemente contraditórios. O objeto interno, em um de seus sentidos, é considerado uma estrutura psíquica que serve de base para a estruturação das

instâncias organizadas do self, isto é, Ego e Superego. De outro lado, o objeto interno é caracterizado como uma

espécie

de cidadão do mundo

interior,

permanente diálo80

em com o ego, caracterizado na linguagem de w. Baranger (1980) como uma

"quase pessoa"

ou

"quase sujeito".

Somente o conceito de "posição" ("esquizo-paranóide" e "dcpressiva") pode permitir uma compreensão do conceito de objeto, em Mclanie Klein, na medida em que enfoca a totalidade

situacional e a dinâmica da relação entre objeto e sujeito.

O SISTEMA KLEINIANO

121

Por "posição" devemos cntender um tipo dc atitude mental

que se define simultaneamente por um tipo de ansiedade (perse

cutória

ou

depressiva), predominante

na

situação específica,

por

tipo de objeto relacionado a esta ansiedade (parcial ou total), por um estado correspondente das instâncias psíquicas Ego e Su-

um

percgo (em estado de integração ou desintegração) e pelo caráter dos processos defensivos envolvidos. As passagens de uma posição à outra são acompanhadas de modificações e transformações tanto nos objetos internalizados como no nível de integração-desintegração do ego. Esta observação talvez tenha sido uma das maiores contribuições de M.

Klein à psicanálise. O conceito de "posição" permite a M. Klein libertar-se de forma explícita de qualquer redução cronológica. A situaçãão analítica passa a ser considerada como prescindindo de lidar com

seqüenciais temporais, onde o passado é encarado como fonte do presente e onde as reconstruções são de caráter genealógico e não cronológico.

Gostaria de fazer uma última consideração para terminar. O sistema kleiniano, tendo na noção de objeto interno seu conceito central e organizador, fundamenta todo seu sistema numa concepção de relações objetais e inaugura uma nova metapsicologia. Esta passa a ter como pólos o self e o objeto. A. Green (1983) considera que estas idéias produzem uma reorganização dos con-

ceitos psicanalíticos. No quadro desta nova metapsicologia o conceito de transferência, na formulação de André Green, ... não é mais um dos conceitos da psicanálise a ser pensado como os outros, ela é a condição a partir da qual os outros podem ser pensados. E, da mesma maneira, a contratransferência não se limita mais à pesquisa dos conflitos não resolvidos ou nãop analisados do torna-se o correlato da transcapazes de falsear sua escuta; ferência, caminhando a seu lado, induzindo-a às vezes e, para alguns,

analista,

precedendo-a. (Pág. 22; Ed. Bras.).

Creio que já temos elementos suficientes para iniciar nossa

discussão.

o

122

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

BIBLIOGRAFIA

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tions.

O INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

Nelson Coelho Jr.

INTRODUÇÃO: MERLEAU-PONTY E SUA RELAÇÃO COM A FENOMENOLOGLA E A

PSICANÁLISE Para quem conhece o nome de Merleau-Ponty apenas associado à fenomenologia pode causar estranheza que se proponha apresentar o conceito de inconsciente na obra deste filósofo. A fenomenologia é, sabidamente, uma filosofia da consciência, ou, mais especificamente, que se propõe a estudar os atos e a essência da consciência. Alguns filósofos ligados à corrente fenomenológica, como J. P. Sartre, estão entre os que fizeram as críticas mais ácidas à formulação freudiana do inconscicnte. O fundador

da fenomenologia, Edmund Husserl, ainda que radicalmente contemporâneo de Freud, manteve um claro distanciamento com re-

lação à psicanálise e ao conceito de inconscicnte em particular. é de se esperar que se há algo sobre o inconsciente na filo-

Logo,

sofia de Merleau-Ponty só pode ser uma recusa, ou quando muito, uma crítica. A realidade, entretanto, é outra; existe uma noção positiva de inconsciente em sua obra filosófica, de forma mais clara nos textos produzidos entre 1953 e 1961, ano de sua prema-

tura morte. E possível estabelecer ao menos três fatores que ajudam a caracterizar esta situação particular de Merleau-Ponty en-

tre os fenomenólogos: como primeiro fator, a diferenciada re-

O

126

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

lação que estabeleceu coma obra de Edmund Husserl; um segundo fator, em parte relacionado ao primeiro, é a própria direção de suas investigaçöes lilosólicas e por último, mas não menos importante, o forte interesse que sempre manteve pela psicanálise. O vínculo de Merleau-Ponty com a

fenomenologia husserliana deu-se, fundamentalmente, através do que ficou conhecido como o "segundo Husserl'" ou o Husserl dos inéditos. É preci. so lembrar que a obra filosófica de Husserl, em sua segunda metade, articula-se em torno da noção de Lebenswelt, base para uma filosofia da experiência vivida, do contato ante-predicativo ou pré-reflexivo com o mundo. Husserl afastava-se assim, num processo de rigorosa autocrítica, do veio idealista presente em sua

primeira construção teórica, que priorizava a ".. subjetividade transcendental enquanto constituinte de todo o sentidoe de todo o ser", O relevante aqui, me parece, não é definir se o contato de Merleau-Ponty com os textos então inéditos de Husserl (consultados pelo filósofo francês a partir de 1939 nos arquivos da Universidade de Louvain, na Bélgica) passou a determinar toda uma forma de sua reflexão da relação sujeito-mundo ou se, na realidade, foi a própria direção de suas investigações filosóficas que o le vou a

buscar

no

segundo

Husserl

uma

base sólida para

o seu

de-

senvolvimento. O importante é ressaltar que Merleau-Ponty, ao ligar-se por este lado à fenomenologia husserliana, diferencia-se de Sartre

e

de outros

fenomenólogos

que tomaram

as

obras do

"primeiro" Husserl como seus textos de referência. Esta diferen-

ciação implica, entre outros aspectos, no fato de dar especial relevo a uma

fenomenologia

da

percepção,

a uma

fenomenologia

do

corpo, enquanto espaço privilegiado de nossa existência, em detrimento de uma fenomenologia da consciência, ou uma fenomne nologia das essências. O que pretendo caracterizar é que se foi

possível para Merleau-Ponty pensar o problema do inconsciente de uma forma que não exigisse uma recusa deste conceito, isto se deve, em boa parte, ao fato de seu percurso na fenomenologia não ter tido como eixo a consciência e sim a percepção. A feno-

menologia husserliana

marcou,

sem

dúvida,

as

linhas básicas

da

produção filosófica de Merleau-Ponty, determinando um método 1. HUSSERL, E. Meditations cartésiennes, Paris, J. Vrin, 1966, p. 71.

INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

O

127

inicial de rellexão e uma atitude fundamental, sem ter sido, no

entanto, A

prisão conceitual limitadora. psicanálise, por sua vez, virá a ocupar uma

lugar inter locutor privilegiado na produção filosófica de Merleau-Ponty. Presente em suas duas primeiras obras, A Estrutura do compor o

de

um

tamento

(l942) c Fenomenologia da percepção (1945), ainda com0 teoria em parte a ser criticada e contraposta à fenomenologia e em parte a ser reconhecida como fonte de um conhecimento não

podia

ser

simplesmente negado, psicanálise

que

passará partir de 1953, refcerência obrigatória. Em um curso que ministrou na Sorbonne em 1953, denominado "A criança e suas rea

a

ser,

a

lações com outrem" pode-se constatar o bom conhecimento de

Merleau-Ponty das obras psicanalíticas de Melanie Klein, segundo J.-B. Pontalis, "...quinze anos antes que os psicanalistas de lín-

gua Irancesa se interessassem por elas"2. A partir de 1954 os "diá-

logos" entre o pensamento de Merleau-Ponty e a psicanálise tornam-se cada vez mais constantes. Há o curso, neste ano, no Collège de France sobre o problema da passividade, tendo como temas o sono, o inconsciente e a memória. Em 1959, no curso "Natureza e Logos: o corpo humano", mais uma vez as obras de Freud e Melanie Klein ocupam um espaço fundamental. No ano de 1960, Merleau-Ponty escreve o prefácio ao livro do psicanalista A. Hesnard, A Obra de Freud, onde uma série de conapresenta

sideraçõcs de grande interesse quanto à relação entre psicanálise

e

fenomenologia.

As notas de trabalho que

aparecem

em anexo

livro O Visível e o Invisivel (1964), sua última obra, publicada postumamente por Claude Lefort, atestam todo o interesse ao

que Merleau-Ponty tinha, no final de sua vida, pela psicanálise. Assim, não é por acaso que encontramos alguns entre os

principais psicanalistas franceses, como J. Lacan ("M. Merleau Ponty") e J.-B. Pontalis ("A posição do problema do inconsciente em Merleau-Ponty") publicando ensaios, no número especial da

revista "Temps Modernes", dedicado a Merleau-Ponty em 1961 Esta relação entre Merleau-Ponty e a psicanálise fez com que o psicanalista André Green, em um ensaio de 1964, colocasse "a

2. PONTALIS, J. B. "Présence, entre signes, absence", in: Entre le rêve et la douleur, Paris, Gallimard, 1977, p. 66.

O

128

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

hipótese de que o pensamento psicanalítico representou um papel dcterminante na última virada de Merleau-Ponty"3, referindo-se

aos últimos textos do filósofo, principalmente O visível e o invisivel, onde Merleau-Ponty inicia o que denominou uma "ontologia

do ser bruto" ou ontologia do sensível. André Green, fundamentando sua hipótese, cita uma passagem do texto que Sartre dedicou a

Merleau-Ponty

em

1961,

"Merleau-Ponty Vivant",

como

testemunho também da forte relação pessoal que ligava Mer-

leau-Ponty a Lacan e ao grupo de seus alunos. Green, no entanto, deixa de comentar a contradição que Sartre parece querer carac terizar: Merleau inclina-se, em seus últimos anos, a dar um lugar incessantemente mais importante ao inconsciente; aprovava indubitavelmente a fórmula de Lacan: "O inconsciente é estruturado como uma

linguagem". Mas, filósofo, tinha-se colocado nos antípodas da psicanálise: o inconsciente fascinava-o simultaneamente encadeada e como dobradiça do ser e da existência.

como

palavrTa

Não cabe aqui penetrar os meandros da complexa relação de

amizade c ódio que mantiveram Sartre e Merleau-Ponty desde os que foram colegas na Escola Normal Superior, mas cabe apresentar dois momentos na obra de Merleau-Ponty que podem anos em

colocar em outra perspectiva as afirmações de Sartre. A despeito da verdadeira amizade que ligava a Lacan e o Merleau-Ponty

contemporâneo "namoro" que mantiveram com o estruturalismo, parece bastante forte uma das frases com que Merleau-Ponty inicia sua participação como debatedor das conferências sobre o in-

consciente

e a

linguagem,

no

IV

Colóquio

de Bonneval:

"...algu-

mas vezes experimento um mal-estar em ver a categoria da lin-

guagem ocupar todo o lugar"s, A participação de Merleau-Ponty neste colóquio mostra claramente a direção de sua filosofia, que 3. GREEN, A. "Du comportement a la chair. intinéraire de Merleau-Pon-

ty",

in Revue

Critique, n° 211, Paris, 1964, p. 1032. 4. SARTRE, J. P. "Merlcau-Ponty vivant", Temps Modermes, n° 17, Paris,

1961, p. 361. 5. EY, H. L'Inconscient (V Colloque de Bonneval), Desclée de Brouwer,

Paris, 1966, p. 143.

O

INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

buscava

ração

relação perceptiva,

na

da

129

linguagem (para

ele

pré-rcflexiva, e não na estrutuuma fase posterior na relação cor

po-mundo) base para a compreensão da questo do inconsciente. Um segundo momento a ser ressaltado é o prefácio que Merescreve ao leau-Ponty livro de A. Hesnard, caracterizando em a

trechos

tre

como

o

que

se

segue

forma de pensar

a sua

fenomenologia psicanálise. e

A

concordância

da

fenomenologia

relação en-

a

da

compreendida como se "fenomeno" dissesse psicanálise de forma clara o que a e

não deve

ser

psicanálise o disse de forma confusa E, ao contrário, pelo que ela subentende ou seu

ou

desvela até

o seu

inconsciente - que

a

com a psicanálise.6

limite

-

por

fenomenologia

seu

está

conteúdo latente em

consonncia

Assim, se Sartre tem razão ao apontar para a maior împortäncia que o conceito de inconsciente assume nos últimos tex tos de

Merleau-Ponty, mesmo não parece se verificar quanto à concordância indubitável de Merleau-Ponty com o sentido de terminante da famosa frase de Lacan sobre o inconsciente, e o

tampouco quanto ao fato do filósofo colocar-se nos antípodas da psicanálise, ainda que, como procurarei mostrar a seguir, 0 conceito de inconsciente para Merleau-Ponty venha a assumir uma outra dimensão e um outro sentido do que aquele na obra de Freud. Com a intenção de tornar mais claro

presente

percurso de Merleau-Ponty em direção ao conceito de inconsciente, partirei da noção de consciência perceptiva, eixo fundamental das primeiras obras do filósofo, apresentando a seguir as críticas que Merleauo

Ponty fez ao conceito de inconsciente em Freud, concluindo com a formação de seu próprio conceito de inconsciente.

1. CONSCIËNCIA PERCEPTIVA

Inicialmente faz-se necessário retomar que, através da noção de intencionalidade tal como apresentada por Husserl, a noção de 6.

MERLEAU-PONTY,

Paris, Payot, 1960, p. 9.

M. Prefácio

a

L'Ouvre de Freud, de

A.

Hesnard,

130

O

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

consciência na fenomenologia assume contornos diferentes daqueles encontrados tanto na tradição filosófica como, em função desta, na psicologia clássica.7 A consciência não é concebida

como um em

si,

como

algo

ndependente do mundo e dos objetos. E scmpre consciência de, consciência aberta ao mundo, sempre consciência de

algo.

Merlcau-Ponty aprofunda essa concepção nomecando a consciencia aberta ao mundo, a consciëncia intencional de Husserl, de

consciência perceptiva. A consciência definitivamente não é mais entendida como soberana ou constituinte, nem como presença no movimento de uma consciência fora do mundo vivido, uma consciência que, desde que instalada no plano das representações, le-

gisle sobre o mundo e a experiência sem mais levá-los em conta.

Recusa, portanto, uma consciência que não mais se perceba como consciência de algo.

Merleau-Ponty tenta, ao máximo, situar a consciência no corpo e o corpo do mundo. Não basta falar em consciência inten-

cional, que consciência é sempre consciência de alguma coisa. Essa consciência ainda corre o risco de "fugir" do mundo e tornar o mundo um simples correlato do pensamento, das representações, retornando assim a uma filosofia idealista, para Merleau-Ponty um engano, no qual Husserl, em suas obras iniciais, teria caído. O

mundo e o corpo não foram criados pela consciência como também no a deve ser compreendida

criaramA conscincia

sempre como consciêncià perceptivà consciência que mantém, enquanto ligada inextrincavelmente ao corpo, um permanente diálogo com o mundo, e é desse diálogo que emergem os sentidos:

7. Escreve Husserl: "Não se pode ficar na generalidade vazia da expressão consciencia, ou nas palavras vazias: experiência, juzo e outras deste gênero, e abandonar rigorosamente o resto, como se não dissesse respeito à filosofia, à psicologia

-

àquela psicologia que partilha da cegueira perante a

intencionali-

dade enquanto caráter essencialmente próprio da vida da consciência ou, em todo caso, pela intencionalidade enquanto função teleológica, isto é, efectuação constitutivaA consciência dcixa-se desvendar metodicamente, de maneira que se pode ver diretament na sua atividade doadora de sentido e criando sentido com

modalidades de ser."Trecho extraído da edição francesa Logique formelle e

transcedentelle, P.U.F, P'aris, 1957, pp. 327-328.

O

INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

131

que concerne à consciência, temos que concebê-la não mais como uma consciência constituinte e como um puro ser-para-si, mas

o

como uma consciência perceptiva, como sujeito de um comporta-

mento, como ser-no-mundo ou existência...

Pode-se asim aprender o difícil movimento de Merlcau-Ponty, da tradição filosófica em que foi formado, onde a consciência, o pensamento, o cogito cartesiano são fundamentos quase intocá-

veis, em direção inicialmente a uma filosofia fenomenológica existencial e posteriormente, \abrindo campo a uma ontologia do sensível, onde o conceito de inconsciente irá ocupar um lugar de

destaque. Em sua

minuciosa investigação da vivência perceptiva e

atraves dela, a tentativa de apreender a gênese dos sentidos, Mer-

leau-Ponty se detém na experiência emocional, focando o que ele denomina de percepção erótica. Descrevendo a complexidade da

vivencia sexual, escreve Merleau-Ponty: Adivinha-se aqui um modo de percepção distinto da percepção objetiva, um gênero de significação distinto da significação intelec

tual, uma intencionalidade que não é a pura "consciência de alguma coisa". A percepção erótica não é um cogiùatio, um ato de pensar, que visa um cogitatum, um objeto a ser pensado; através de um corpo, a percepção erótica visa um outro corpo, ela se forma num mun-

do e não numa consciência.Há uma "compreens o"

erótica que não

é da ordem do entendimento, pois o entendimento compreende percebendo uma experiência sob uma idéia, ao passo que o desejo compreende cegamente, ligando um corpo a um corpo.9

Merleau-Ponty afasta-se da consciência. Busca no corpo uma ordem perceptiva, uma forma de compreensão que prescinda do modelo consciência-objeto de consciência. Fala em um gênero de significação distinto da significação intelectual, buscando justamente através da percepção erótica ilustrar com um exemplo ex-

tremo, uma forma de relaço

corpo-mundo que ele acredita pre-

8. MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception, Paris, Gal-

limard, 1945, p. 404. 9. MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 183.

O

132

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

valecer, ou, pelo menos, ser primeira em todo âmbito da experiência humana.

Sem abrir mão, definitivamente, da noção de consciência, o que se nota cm todo desenvolvimento da Fenomenologia da per cepção é uma constante tentativa de alargar a descrição da cons-

ciência intencional de Husserl, instalando-a na experiência sensível, fazendo com que o "eu penso" torne-se um "eu posso". Es-

crevendo sobre a motricidade humana, Merleau-Ponty afirma: Esses esclarecimentos

permitem-nos

finalmente

compreende

sem equívoco a moticidade como intencionalidade original. A cons ciência é originariamente não so." o movimento não é o

um

"penso que...",

mas um

"eu pos-

pensamento de um movimento e o espa ço corporal não é espaço pensado ou representado. (.) A consciencia é estar na coisa por intermédio do corpo. (..) A motricidade não

é pois como uma serva da consciência, que transporta o corpo ao

ponto

do

espaço que representamos primeiramente.l0

Passo a passo, Merleau-Ponty tenta mostrar que a relação do homem com o mundo se dá sempre, inicialmente, pela

percepção,

por uma relação direta corpo-mundo. Não toco uma mão-idéia, uma

pedra-idéia, um mundo-idéia, toco com meu corpo o

Se posso

de lo

me

pensar

Merleau-Ponty

como

a uma

sujeito (e

essa

filosofia da

é ainda

uma

mundo.

concesão

consciência), só posso fazê-

enquanto corp0 enquanto corpo no mundo. e

Merleau-Ponty caminha assim para deslocar definitivamente da "consciência" para o "corpo vivido" o ato de conhecer Não se fala mais em uma consciência que conhece, mas em um "corpoconhecedor"\E, de certa forma, um passo além da própria noção Ge consciência

perceptiva,

que

sem

abrir mão da noção de

cons-

ciência, buscava romper o dualismo percepção-pensamento, tentando romper também o dualismo consciência-mundo. O pensa-

mento, como ato de consciência não é mais situado como centro soberano do processo de conhecimento, e a percepção não é mais o plano das distorções, das ilusões, a sede do engano. Ainda que

Merleau-Ponty não entenda a percepção como uma "ciência do

10. 160-161.

MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception,

op. cil., PP.

O

INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

133

mundo", que tudo desvelaria, ele busca reconduzi-la ao seu lugar no processo de conhecimento como o fundo, a experiência pri-

meira e imediata, sobre a qual se destacam os atos reflexivos e que deve ser, portanto, pressuposta por eles. A percepção insta-

la-se de fato no plano do pré-reflexivo, aquele que nos mantém ligados ao mundo, já que é por estarmos no mundo, por sermos corpo no mundo que podemos conhecer, no sentido de estarmos abertos para que as coisas se e

mostrem\Percepção plano pré-re-

flexivo são

praticamente sinônimos

experincia

perceptiva é uma experiência pré-reflexiva.

na' concepção de MerleauPonty da produção do conhecimento e na gênese dos sentidos. A

2. CRÍTICA AO CONCEITO DE INCONSCIENTE EM FREUD Em seu primeiro livro, A estrutura do comportamento, Mer-

leau-Ponty critica inicialmente o conceito de inconsciente em por Freud nesta formulação freudiana a manutenção de modelo mecanicista na psicologia, fazendo do inconsciente um ver

um

outro tipo de causa para todos os estados mentais. Merleau-Ponty afirma que seria de se esperar que Freud desse um passo além do

causalismo das teorias fisiológicas que ele mesmo já havia criticado em seu livro A interpretação dos sonhos. Mostrando estar de

acordo com as críticas que Georges Politzer fez à teoria freudiana em Crtica dos fundamentos da psicologia (1928) e como que de-

cepcionado com o modelo explicativo que acredita recencontrar na dualidade conteúdo manifesto-conteúdo latente, Merleau-Ponty escreve: de perguntar, sem colocar em questão o papcl assinalado por Freud à infra-estrutura erótica e às regulações sociais, é se os próprios conflitos de que ele fala, os mecanismas psi-

Oque gostaríamos

cológicos que ele descreveu, a formação dos complexos, o recalque,a regressão, a resistência, a transferência, a compensação, a sublimação exigiu verdadeiramente o sistema de noções causais pelo qual Freud as interpreta, e que transforma em uma teoria metafísica da

existência humana as descobertas da psicanálise.11 11. MERLEAU-PONTY, M. La structure du comportement, Paris, P.U.F,

1942, p. 192.

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

134

Estas primciras críticas que Merlcau-Ponty fez à psicanálise, assim como as que realizará no seu livro scguinte, Fenomenologia

da percepção podem ser consideradas datadas c mesmo marca

damente influenciadas pelas críticas que Politzer já realizara. A apresentação dessas críticas iniciais tem, no entanto, a função de nos permitir compreender o desencadeamento do pen-

samento de Merleau-Ponty em direção ao seu próprio conceito de inconsciente. Na Fenomenologia da percepção, fazendo a crítica da formulação de uma consciência que pudesse prescindir da percepção, do corpo e do mundo, sendo assim auto-evidente a si mesma,

Merleau-Ponty faz crítica semelhante ao conceito de inconsciente: A idéia de uma consciência que seria transparente por si mesma, e cuja existência se tornaria então, a consciência que ela tem de

existir nãoé tão diferente da noção de inconsciente: 6, de ambos os lados, a mesma ilusão retrospectiva: introduz-se em mim, a título de

objeto explícito, tudo o que poderei, a seguir, aprender de mim,12

Essa referência geral ao inconsciente, conheceu, alguns capí

tulos antes, na mesma Fenomenologia da percepção, contornos mais específicos. Escrevendo sobre o corpo como ser sexuado, Merleau-Ponty comenta que as filosofias da consciência estão tão

equivocadas como as psicologias do inconsciente, no que diz respeito à compreensão da sexualidade enquanto vivência existencial: Há aqui dois erros a evitar: um é o de só reconhecer para a

existência seu conteúdo manifesto, exposto em representações dis tintas, comoo fazem as filosofias da consciência, o outro é o de des dobrar este conteúdo manifesto de um conteúdo latente, feito ele também de representações, como o fazem as psicologias do incons ciente. A sexualidade não é nem transcendida na vida humana nem figurada em seu centro de representações inconscientes. Ela está aí constantemente como uma atmosfera.3

12. MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception, op. cit, p. 436. 13. Idem, Ibidem, p. 196.

O INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

135

O inconsciente que é concebido a partir do modelo da cons-

ciência, pensando como mais um campo de representações nao interessa a Merleau-Ponty. Esse inconsciente sofre do mesmo

vício" da noção clássica de consciência,

se

destaca da

cxperiên-

cia, fundamentalmente da relação sensível que se dá através do corpo, e refugia-se no plano das representaçQcs. Pouca difcrença faz aqui se essas representações podem ou não ser nomeadas, se

são representação da idéia e representação de coisa associadas (consciencia) ou só representação de coisa (inconsciente), como

propôs Freud em seu ensaio O inconsciente (1915). Nesse momento de sua filosofia, a posição de Merleau-Ponty

quanto à noção de inconsciente é bastante clara: no há o que buscar no inconsciente, não há por que recorrer ao inconsciente,

quando é o corpo que simboliza todas as dimensões da existência.

Se queremos entender os movimentos pré-pessoais de nossa existência não é ao inconsciente que devemos recorrer e muito

menos à consciencia, mas sim ao corpo, espaço onde a existência é vivida. O corpo como corpo vivido, como convergência do pessoal e do pré-pessoal, do universo e do particular, do visível e do

invisível. Eo corpo deve ser compreendido a partir de uma fenomenologia da percepçäo. Claramente, nesse momento, o pré-re-

flexivo, o plano da percepção não são, para Merleau-Ponty, sinônimos do inconsciente.

Merleau-Ponty prossegue desenvolvendo suas críticas ao conceito de inconsciente, em um curso no Collège de France, no

ano de 1954. E interessante que aqui o filósofo se refere ao inconsciente como "o problema do inconsciente". Tornam-se claras, nesse tre-

cho de seu curso, as dificuldades que Merleau-Ponty tem em acei tar o conceito de inconsciente tal qual ele entende ter sido postu-

lado por Freud. Escreve Merleau-Ponty: Com razão

censura-se

Freud

pelo fato de ter introduzido com o

nome de inconsciente um segundo sujeito pensante cujas produções mesmo admiseriam simplesmente recebidas pelo primeiro; e Freud tiu que essa "demonologia" não era mais que uma concepço

psi-

cológica frustrada,14

14. MERLEAU-PONTY, M. Résumés de cours, Paris, Gallimard, 1968, p.

69.

O

136

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

Por essa linha, aponta Merleau-Ponty, só poderíamos recair no monopólio da consciëncia, reduzindo o inconsciente aos conteúdos que conscientemente decidimoS não as_umir e então caberia a crítica de Sartre no livTo O ser e o nada, em que o inconsciente teria que ser visto com mais um caso de má fé

Merleau-Ponty, no entanto, parece disposto a "recuperar" a

noção freudiana "libertando-a" de ser apenas mais uma instância regida pcla concepção clássica de consciência. E a forma com que

Merlcau-Ponty "recupera" a concepção freudiana do inconsciente se faz justamente através da situação clínica: Há, em A interpretação dos sonhos de Freud, toda uma des crição da consciência onírica -

consciência que ignora o nome, que

não diz sim a não ser tacitamente, produzindo diante do analista as respostas que ele espera dela, incapaz da fala, de cálculo e de pensamentos atuais, reduzida às elaborações antigas do sujeito, de for ma que os sonhos não estão circunscritos ao momento em que os

sonhamos, trazendo em bloco ao nosso presente fragmentos inteiros de

nossos

momentos

prévios

descrições querem dizer que o inconsciente é consciência perceptiva, \procedendo como ela por -

e essas

uma lógica de implicação ou de promiscuidade, seguindo passo a passo um caminho onde não há mais rendição total, visando os objetos e os seres através do negativo que ele detém, o que é suficiente para quc ele ordene seu passo sem se colocar em condições de nomeá-los "por seu nome"15

Fazer do inconsciente freudiano uma consciência perceptiva. O que quer Merleau-Ponty com isso? Parece querer captar o mo-

vimento mais natural do inconsciente, de fato aproximá-lo da vivência pré-reflexiva, onde ao invés de representações e nomes encontramos uma "lógica de implicação ou de promiscuidade" na

relação

própria experiência vivida. E no plano da pluralidade de sentidos de uma vivência, no registro sensível dessa pluralidade, que Merleau-Ponty entende estar o fundamental da des coberta freudiana do inconsciente: com a

O essencial do freudismo no é ter mostrado que há sob as aparências toda uma outra realidade, mas sim que a análise de uma conduta encontra sempre várias camadas de significação que clas

15. MERLEAU-PONTY, M. Résumés de cours, op. cit., pp. 70-71.

O

INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

137

têm todas sua verdade, que a pluralidade de interprctações possíveis é a expressão discursiva de uma vida mista, onde cada escolha tem sempre vårios sentidos sem que se possa dizer que um dcles é o ünico verdadeiro,16

O importante aqui, parece-me, não é debater se a leitura que Merleau-Pontyfaz da psicanálise freudiana é correta ou não. Não se trata de polemizar com a psicanálise e nem de apresentar a

noção freudiana do inconsciente.O que interessa é poder mostrar o movimento do pensamento de Merleau-Ponty em direção à psicanálise e a um certo conceito, bastante particular, do que seja o

inconsciente. Vários textos dessa época, da década de 50, mostram o inte resse de Merleau-Ponty pela psicanálise e em especial pelo conceito de inconsciente. Em uma conferência realizada em Genebra

no ano de 1951 e publicada com o título de "0 homem ea adversidade", após introduzir a psicanálise como um dos pensamentos que no século XX, conseguiu transformar a noção do corpo, tal qual os médicos do século XIX a estabeleceram, "na noção moderna do corpo vivido"", Merleau-Ponty fala sobre o inconsciente: Para dar conta desta osmose entre a vida anônima do çorpo e a

vida oficial da pessoa, que é a grande descoberta de Freud, fazia-se necessário introduzir alguma coisa entre o organismo e nós mesmos, como conseqüência dos atos deliberados dos conhecimentos expresà sos Essa foi o inconsciente de Freud. (..) O inconsciente evoca, primeira vista, o lugar de uma dinâmica das pulsões, da qual, somente o resultado nos será dado. E, no entanto, o inconsciente não pode

ser um processo "em terceira pessoa", já que é ele quem escolhe, o admitido na existência oficial, que evita as situações que de nós, será mas anàs quais nós resistimos e que não é portanto um não-saber,

tes um saber não reconhecido, informulado, que nós não queremos assumin m uma linguagem aproximada, Freud está aqui a ponto de descobrinÀo que

outros melhor

de percepção ambígua. E encontrará um estado civil para es-

nomearam

trabalhando nesse sentido que se sa consciência que roça seus objetos, retira-os no momento em que vai

pô-los,

tem-nos

em conta como o

cego

aos

obstáculos, mais

16. Jdem, bidem, p. 71. 17. MERLEAU-PONTY, M.

Signes, Paris, Gallimard, 1960, p.

288.

do

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

138

que não os reconhece, que não quer sabë-los, ignora-os enquanto os sabe, sabe-os enquanto os ignora e que sustenta por baixo nossos

atos e conhecimentos expressos.18

Curiosa posição assumida por Merleau-Ponty nesse momen-

to. Ao mesmo tempo cm que reconhece a necessidade c importância de algo, de algum conceito que descreva c nos fale "da dinâmica das pulsões", parece recusar que este conceito seja o in-

conscicnte. Entende quc é "uma noção-protcica'"1" aquela que muda segundo seu desejo, no caso o de Freud, que por sua vez, aponta Merleau-Ponty, teria reconhecido que o inconscienteé uma noção à qual restava ainda receber uma formulação correta

e mais definitiva. Merleau-Ponty prefere, nesse momento, denominarde percepção ambígua a yivência que ele acredita Freud te

ria denominado de inconsciente.\Merleau-Ponty ainda não abriu mao, delnitivamente, como o fará cm O visível e o invisível, da noção de consciência, e a mantém concomitantemente à noção de percepção. Parece que enquanto a noção de consciência permanecer presente em seu pensamento, a noção de inconsciente ain-

da manterá um estatuto duvidoso, como se ela fosse um caso du-

vidoso, no bem elaborado de uma forma particular de conscincia.

3. O INCONSCIENTE: MERLEAU-PONTY ELABORA UM

CONCEITO PRÓPRI10 E possível notar nos últimos textos de Merleau-Ponty, escritos nos anos de 1959, 1960 e início de 1961, uma clara mudança na forma de presença do conceito de inconsciente em sua obra. As questoes com a psicanálise em parte se mantêm, mas é a pró-

pria filosofia de Merleau-Ponty que se transforma. Radicalizando o primado da percepção, o primado do sensível e buscando estauma ontologia do sensível, vemos, passo passo, conbelecer ceito, antes bastardo, do inconsciente ir penetrando seu texto. Por a

18. Idem, Ibidem, p. 291. 19. Idem, lbidem.

o

139

OINCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

outro lado a noção de consciência deixa a cena em definitivo. Não lemos mais consciência perceptiva, mas sim, apenas, percepçao. Há uma preocupação crescente cm dcixar o plano da vivência pessoal onde ainda cra possívcl falar-se em um sujeito da pcr cepção c rumar em direção ao campo pré-pessoal da vivëncia mais originária do corpo e da percepção que seria anterior, onto-

logicamente, ao pensamento e às noções de sujeito e consciência. O primeiro momento realmente claro nesse sentido, na obra de Mcrleau-Ponty, talvez tenha sido o curso das quintas-feiras do

ano letivo 1959/1960 no Collège de France, que recebeu o título de "Natureza e Logos: o corpo humano". No resumo desse curso

Merleau-Ponty escreve: Uma filosofia da "carne'"20 está em um pólo oposto às interpre tações do inconsciente em termos de "representações inconscientes" tributo pago por Freud à psicologia de seu tempo. O inconsciente ét sentir mesmo, já que o sentir não é a possessão intelectual "daquilo" que é sentido, mas sim despossessão de nós mesmos em seu provei-

to, abertura àquilo que em nós é necessário pensar para compreen der 21

Merleau-Ponty já define

seu

trabalho

como uma

filosofia da

carne. Já não ocupam lugar predominante em seu texto as

de consciência, mesmo umna consciência perceptiva. E agora algumas compreensões e intersobre o conceito de inconsciente talvez possam modifi-

noções de existência, de sujeito

pretações

ou

pensamento de Merlcau-Ponty. O que em alguns com a mentos poderia ter parecido, de certa forma, preconceito assumir outros contornos, concepção freudiana, agora começa a

car-se no

mo

inclusive no que diz respeito à própria dúvida que alguns podem

20. Cabe especificar aqui, como Merleau-Ponty definiu em O visível e o innão é matéria, não é visivel, este polêmico conceito "carne" (Chair): \A 'carne' falar-se da espírito, não é substância no sentido em que era empregado para coisa geral, meio camiágua, do ar, da terrae do fogo, isto é, no sentido de uma

nho entre o indivíduo espaço-temporal e a idéia...\(Le visible et l'invisible, p.

184).

21. MERLEAU-PONTY, M. Résumés de cours, op. cu., pp. 178-179. Grifo

nosso

O

140

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

ter tido, de se Merleau-Ponty não teria, em alguns momentos, confundido o conceito de inconsCiente da psicanálise com o de pré-conscicnte. Seguindo cm seu resumo de curso escreve Mer

lcau-Ponty: Basta o cstado inconsciente para manifestar os fatos recalcados, o modo de existência da "cena primitiva", seu poder de sedução e de fascinação? A dupla fórmula do inconsciente ("eu não sabia'" e "eu sempre soube") corresponde aos dois aspectos da "carne", aos seus poderes poéticos e oníricos.. (.) O inconsciente do recalque será, portanto, uma formação secundária, contemporânea da for mação de um sistema percepção-consciência e o inconsciente primordial será o deixar-ser, o sim inicial, a indivisão do sentir.2

Merleau-Ponty parece querer penetrar a trama dos conceitos

psicanalíiticos para dali extrair algo que talvez nem a tradição fi losófica e nem mesmo a fenomenológica puderam fornecer-lhe. A noção de inconsciente (claro, destituída de sua definição deser

um plano habitado apenas por representações, como a conscien-

cia) começa, de fato, a ser-lhe útil para iniciar suas investigações dos fundamentos da vivência sensível. Ele já fala em um "inconsciente primordial", que seria "a indivisão do sentir". E sabemos, o corpo, a percepção, continuam sendo, agora de uma maneira

mais radical, as bases para uma filosofia da "carne", para uma ontologia do sensível, que trazem em si uma dialética da visibilidade e da invisibilidade que o conceito de inconsciente, agora já, de certa forma redefinido, talvez ajude a esclarecer. No ano de 1960 Merleau-Ponty aceita o convite do psiquiatra

Henry Ey para participar do VI Colóquio de Bonneval, que teve como tema o inconsciente. Sua participação, infelizmente, não foi

por ele mesmo revista, em função de sua morte prematura, tendo

publicado

texto sido ordenado, a partir da gravação original, pelo psicanalista J.-B. Pontalis. Citamos aqui uma passagem de sua

o

participação, que nos parece bastante significativa e que foi assim

apresentada por Pontalis:

22.

MERLEAU-PONTY, M.

Résumés

de cours, op.

cil., p.

179.

O INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

141

Sobre o problema do inconsciente, segundo ele (Merlcau-Ponty), os filósofos não estão condenados à alternativa: ou tirar o sabor da noção assimilando-a a uma consciência desestruturada, ou tomá-

la num sentido estritamente realista o que conduz a imaginar uma

ação causal no seio da psiquc.\ Então não se faz senão manter um

pre julgamento tirado do pensamento cartesiano e que consiste, como

Husserl colocou

evidência, em construir o mito de uma psigue sobre o modelo do mundo físico, como um tecido contínuo de acontecimentos ligados entre si por relações de causalidade A solução não é mais a de procurar na fenomenologia, ao menos quando se a concebe como uma analítica intencional que distinguiria e des creveria positivamente uma série de operações ou atos de consciênem

Cia. E preciso encontrar noçóes que sejam neutras em relação às dis-

tinções tradicionais da filosofia clássica, e existe nos trabalhos de Husserl, por mais fiel que ele tenha sido até o fim de sua vidaà

analítica, indicação de tais noções ea exigência de uma tal procura (o corpo como vidente-visível e como cumprindo "uma espécie de reflexão", idéia de simultaneidade, de ação à distância). Dizer do inconsciente que ele é o inverso do consciente é seguramente errôneo se se refere à idéia de simetria e não é assim que é preciso entendêlo.23

E como é preciso entender o inconsciente? Esta questão es teve bastante presente no pensamento de Merleau-Ponty nos três

últimos anos de sua vida, como atestam as notas de trabalho pu blicadas em ancxo ao livro O vistvel e o invisível. As questões apresentadas no Colóquio de Bonneval começam a tomar corpo.

O inconsciente não é definido como o inverso da consciência; o

corpo em sua dialética visível-vidente, a "carne" como sendo o entrelaçamento, o quiasma, que traz em sio duplo movimento

sensível, daquilo que sentimos e daquilo que sente, parecem pedir a presença da noção de inconsciente para poderem ser melhor compreendidos. Escreve Merleau-Ponty em sua nota de fevereiro de 1959: Fala-se sempre do problema do "outro", de "inter-subjetividade" etc. Na realidade, o que se deve compreender é, além das "pessoas", os existenciais segundo os quais nós as compreendemos e que

são

o

sentido sedimentado de todas

23. EY, I. (org.), L'Inconscient 143.

as nossas

experiências

voluntá-

Vie Colloque de Bonneval, op. cit., p.

O

142

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

rias e involuntárias. Este inconsciente a ser procurado, não no fundo de nós mesnmos, arás das costas de no55a "onsetêmcia", mas diante de nós como articulações de nosso campo,4

Um inconsciente "como articulações de nosso campo'". Presenciamos nesta dcliniçao uma translormação conceitual que re-

tira a noção de inconscicnte do plano do psíquico, do mental, de

ser o invcrso da consciência, para situá-lo no mundo, quase como uma atmosfera ou um tecido conjuntivo que está cm constante movimento. O inconsciente não lala mais de um plano intra-psí-

quico, mas instala-se para além ou aqum

de qualquer psique ou

subjctividade, como presente na articulação dos corpos entre si, e mais precisamente, como articulação da "carne" do mundo, já que

como escreve

Merleau-Ponty, "..

meu

corpo é feito da

mes-

ma carne que o mundo (é um percebido)"23. O conceito de inconsciente passa, para Merleau-Ponty, a ser

entendido mais claramente como o inconsciente primordial,

aquele

que ele afirmou

como

primeiro

em

relação

ao

que deno-

minou de inconsciente do recalque. E o inconsciente que corresponde à filosofia da "carne", à sua ontologia do sensível. A pes-

quisa que Merleau-Ponty prossegue desenvolvendo na direção de uma compreensão mais profunda do que é o fenômeno da percepção, pede este conceito transformado de inconsciente: E isso quer dizer a percepção é inconsciente. O que é o in consciente? O que funeiona como pivô existencial e, nesse sentido, é

e não é percebido. Pois apenas percebemos figuras sobre níveis

E

apenas pereebemos em relação ao nível, que é, pois, impercebido A pereepção do nível: sempre entre os objetos, é esse em torno do qual...26

Toda a rede de conceitualizações de Merleau-Ponty passa a

ficar mais clara. Se não precisamos trabalhar apenas no plano do psíquico ou de seu oposto, o físico, mas podemos nos situar no

24. MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l'invisible, Paris, Gallimard, 1964, Pp. 233-234. Grifo nosso. 25. MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l'invisible, op. cit., p. 302. 26. MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l'invisible, op. cit, p. 243.

O INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

143

quiasma dessas duas posiçõcs, na encruzilhada onde se dá a vivencia perceptiva, que não é posse nem do psíquico nem do físi-

co, poderemos então centender melhor o que Merlcau-Ponty pre-

tendia designar inicialmente como consciência perceptiva e depois, em O visível e o invistvel, como "carnc" c percepção ou in-

conscicnte. Não se trata de buscar algo oculto atrás de minha consciência ou de meu campo perceptivo conscicnte, mas sim de trabalhar no entre, no quiasma, no entrelaçamento do visível comn o invisível. E nesse sentido o invisível não se constitui como o

contraditório do visível, "o visível possui ele próprio uma estrutura27 de invisível"?8. Merleau-Ponty entende aqui a experiência sensível como esta que se situa entre o visível e o invisível, entre o atual e o virtual, como se encontrando no ponto de reversibilidade de todos os contrários, Situando-se na imbricação de uns nos outros, no lugar

de todos os quiasmas. Nesse sentido o inconsciente não se situa mais no lugar do oculto, do recalcado. Escreve Mer-

geométrico leau-Ponty:

Criticar o inconsciente de Freud sob este ângulo: como é preciso regressar ao fenomenal para compreender o pretenso jogo dos indices" perceptivos -

que se esclarece de uma vez quando se re-

encontra a evidência das equivalências do mundo - da mesma forma que preciso compreender a sobredeterminação, a ambigüidade das motivações voltando a encontrar a nossa vinculação quase-perceptiva com o mundo humano através de existenciais muito simples e de maneira alguma ocultosA estão somente, como todas as estrutu ras, entre

os nossos atos e

desígnios,

e

não atrás deles.9 \

inUma boa forma de tornar mais evidente o conceito de textos consciente proposto por Merleau-Ponty em seus últimos

qual

27. No original Merleau-Ponty não possuímos cquivalente exato

palavra português.

usa a em

francesa Membrure, para No dicionário enciclopdico

a

Noveau Petit Larousse encontramos: humano: 'Membrure Solide'. "Membrure conjunto de membros do corpo navio". (Larousse, p. 629). Conjunto dos elementos de construção de um é a que nos Ainda que a palavra estrutura tenha várias outras conotações cm seu texto. parece melhor traduzir a intenção de Merleau-Ponty 269. 28. MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l'invisible, op. cit., p. 29. MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l'invisible, op. cit., p. 285.

O

144

talvez

scja,

uma

Merlcau-Ponty

tac

auc

e

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS vez mas, contrapö-lo ao conceito freudiano. Freud partem de concepções filosóficas distinuma de

implicam

mundo também

homem e da isáo relação homemdistintasO nconsciente, enquanto sistema, em

Freud 6, apesar de tudo, tributário de

filosofia da consciência: baseia-se realidade que privilegia a linguagem e o mundo do pensamento, fundando uma ruptura entre domínios onde existe e onde inexiste representação de palavras. Desta forma, o inconsciente em Freud passa a ser aqucle formado por representações de coisas, cindidas das palavras capazes de designáuma

em uma

las.Já, para Merleau-Ponty, é a percepção que ocupa um plano primbrdial. E o contato imediato, não mediado pela linguagem ou pelo pensamento, que está na origem dos

sentidos.

Assim, na concepção do filósofo, o inconsciente do recalque só poderia ser, ontologicamente, contemporâneo do sistema consciëncia/pré-consciente, na medida em que o âmbito da lin-

guagem verbal, para ele, simplesmente retoma um sentido mudo, já estabelecido no plano perceptivo do contato primeiro corpomundo.A linguagem verbal, na formulação ontológica proposta por Merleau-Ponty, seria segunda em relação ao plano da experiência sensível, onde o filósofo situa o que denomina de incons ciente o uma filosofia da ra Merleau-Ponty, nesse plano do inconsciente primordial, não há um oculto e um manifesto que se opõem. Mas sim, entrelaçamentos do visível e do invisível que compõcm uma trama comum. O

primordial, inconsciente de

"carne\Pa-

inconsciente em Merleau-Ponty, portanto, aparece como articulação, como textura presente no imbricamento corpo-mundo.O

inconsciente é, não um topos situado no psíquico, mas primor dialmente uma atmosfera, aquilo que permite ser Esta étoda a transformação exigida por uma filosofia da "carne" que busca estabelecer uma ontologia do sensível. A

transposição inicial de uma filosofia ainda presa à noção de cons ciência para a vivência perceptiva como experiência

fundante do

processo de conhecimento, nos trouxe da crítica ao conceito de

inconsciente a uma elaboração toda particular deste mesmo con-

ceito, agora deslocado do psíquico, da mente de um sujeito, apa recendo no quiasma, no entrelaçamento entre visível e invisível,

O INCONSCIENTE EM MERLEAU-PONTY

145

que como escreve Merleau-Ponty, "...leva a abandonar a noção de sujcito, ou a definir o sujeito como

campo"

Merleau-Ponty não construiu uma teoria do inconsciente e tampouco formulou um sistema completo onde o conceito de inconsciente assumisse uma posição de destaque. A sua morte prematura fez com que conhecessemos apenas o início de uma

fecunda transformação em sua filosofia. Estas idéias ainda em formação, no entanto, sugerem todo um caminho a ser pensado.

E especificamente quanto ao inconsciente, uma série de direções a serem investigadas.

285. 30. MERILEAU-PONTY, M., Le visible et l'invisible, op. cit., p.

O INCONSCIENTE EM

CLAUDE LEVI-STRAUSS OU

A DIMENSÃO INCONSCIENTE

NOS FENÔMENOS CULTURAIS

Luiz Tarlei de Aragão

Certamente, algo além de uma feliz coincidência fez com que o conferencista que nos precedeu falasse de um certo Maurice

Merleau-Ponty, colega de Lévi-Strauss nos idos de 1930, na École Normale Supérieure, e que, juntamente com Simone de Beauvoir, formavam o trio inseparável de "normaliens", c que passaram juntos a agregação de filosofia. Igualmente, vai além de uma simples coincidência (que de fato, nunca é simples), e muito menos sem razão -

nos ensina a

psicanálise o fato de Merleau-Ponty ter escrito o livro De Mauss a Lévi-Strauss que cobre exatamente, em nosso entender, a origem da problemática do inconsciente na Antropologia Social. Livro esse, ainda, de crucial importäncia para os antropólogos

que, como nós, bebemos na fonte generosa da Escola Sociológica Francesa, tendo trabalhado com um dos discípulos diletos de Marcel Mauss', e testemunhado alguns desdobramentos importantes do estruturalismo nos Seminários de Antropologia Social de Lévi-Strauss, no Collège de France, de 1971 a 1981. Ao falarmos de inconsciente em Lévi-Strauss, estamos admi

tündo com ele a existência de um sentido, ou, mais exatamente, de 1. O Sanskritista e teórico do estruturalismo aplicado a sistemas sociais concretos, como a Sociedade de Castas da India, e o Individualismo no Ocidente,

Louis Dumont.

o INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

150

uma dimcnsão inconscicnte nos lenömenos culturais. Por outro lado, como lembrou Lévi-Strauss ele mesmo, a análise antropológica somente poderia ser considerada como cientifica se se deslocasse para o nível da infra-estnutura nconsciente mais simples (no

sentido de mais elementar). A mente humana exerceria, então, a

esse nível, constrições internas, pré-construídas, pelas quais ela estruturaria os conteúdos da experiência sensfvel.

Digamos, por enquanto, que o inconsciente em Lévi-Strauss seria justamente as "estruturas inconscientes", c a teleologia inconsciente da mente explicaria como os fenômenos sociais podem apresentar o caráter de totalidade significativa, e de conjuntos es-

truturados. Essa base comum na humanidade permitiria, por

exemplo, que qualquer criança socializada, aprendesse, introjetas se e informasse a partir de um código determinado, e estabele-

cesse relações inteligentes nas seqüências padronizadas existentes na natureza, e sobre as quais se projeta um significado, produzindo assim o simbólico. Um dos poucos anglo-saxões, E. Leach que no entender do próprio Léi-Strauss teria atravessado o Canal da Mancha e penetrado no verdadeiro sentido do estruturalismo, afirma mais ou menos o mesmo em seu respeitável livrinho sobre o pensamento

de Lévi-Strauss: Essa concepção, afima Leach, apesar de seu extremo reducionismo deveria auxiliar na explicação de como não somente os símbolos (e signos) transmitem mensagens, no interior de meio cultural particular, mas também como eles transmitem mensagens, simples mente.

E acrescenta: .a estrutura das relagõcs que pode ser descoberta ao se analisar materiais (dados) subtraídos de qualquer cultura, é uma trans formação algébrica de outras estruturas possíveis pertencentes a um set comum, e esse set comum constitui um padrão que reflete um

aributo do mecanismo de todos os cérebros humanos. (Leach, 1970,

P. 53)

2. LEACH, E. LEvi-Strauss, Fontana, Londres, 1970.

O

INCONSCIENTE EM CLAUDE Por conta dessas

LÉVI-STRAUSS.

151

características ontológicas do inconsciente

estruturalista, estamos diante de uma instância que, de forma

aparentemente paradoxal, "unifica" e distingue os seres humanos, ao mesmo tempo. Unifica-os do ponto de vista de um atributo comum ao pensamento, uma modalidade recorrente de combi-

natórias,

um

tipo de procedimento lógico,

uma

álgebra requinta

da, com marca registrada do ser humano, através da qual ele simboliza. Na verdade, viria daí sua capacidade e competência simbólicas. Por outro lado, esse mesmo "mecanismo" ontogênico, comum a toda humanidade, permite a diversificação das culturas, já que os materiais usados, por assim dizer, são heteróclitos e as

combinatórias permitem uma série de arranjos distintivos, aos quais chamamos de culturas, acrescendo a esse termo o epíteto designativo do grupo humano, por área cultural, ou grupo étnico. Esse dispositivo, portanto, unifica os seres humanos no seio de um gênero (a humanidade), distinguindo-se, ou seja, pemitindo, ou pelo menos, possibilitando, sua diversificação em espécies (sociais), que são as culturas, ou etnias, e das quais são conhecidas e estudadas hoje mais de três mil, distribuídas por todo o mundo.

Mas consideremos as demarches científicas sucessivas dentro da Antropologia, e fora desta, para entendermos de forma preci sa, na medida do possível, a formulação por Claude Lévi-Strauss, de sua noção de inconsciente humano, c das implicações desta noção para as ciências humanas em geral.

1. O INCONSCIENTE: DAS ESPECULAÇÕES À TESE

CIENTIFICA Mesmo tendo os antropólogos, desde o início, e sobretudo os mais expressivos, admitido a existência de "razões" últimas inconscientes, base de valores e padrões culturais e do processo da

reprodução social de_tes, a Antropologia não havia avançado de maneira segura nesse domínio até há meio século. Desde os pais fundadores, como Tylor, Frazer e até LevyBruhl, que se preocuparam intensamente com os fenômenos sociais ligados à magia, àà religião e ao tabu, havia como que uma tendência a priori de catalogar essa razão inconsciente como pro-

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

152

duto de uma alma (mente, c/ou pensamento) primitivo, ou selvagem, em oposição a um pensamento ocidental, racional e científi-

ou simplesmente "lógico"; na ansia de produzir sínteses comprcensivas e identificar "instâncias" últimas de causalidade dessa

"dicotomia" todas as investidas filosóficas e "psicologizantes" eram permitidas.

Nem o próprio Durkheim, em seu afá de colocar a casa em ordem, estabelecendo critérios de cientificidade no domínio sociológico, escapou, como veremos abaixo, por completo, de cair nesse tipo de facilidade, ou de enfrentar limitações nesse domínio. Eram demarches heurísticas plenamente marcadas por preconceitos, a priori supostamente científicos, onde o mais freqüente era encontrar-se o que previamente já se havia estabelecido como existente. A ciência parecia estar ainda num estágio muito precário pa-

ra poder admitir formas de concepção e ordenação da experiên-

cia, que fossem ao mesmo tempo, ou igualmente, lógicas, de

mesmo "conteúdo" útimo que a lógica dita racional, ou moderna. Ou seja, era mais cômodo, e muito mais dans le temps, colocar as aparentes esquisitices mentais dos "primitivos" no escani-

nho taxionômico da "infância" e da neurose, e estatutando-se em fim de contas que esses fatos eram provenientes de um "resíduo irracional", tratável apenas a longo termo pela catequese e pela educação (esta, naturalmente, "racional" e do Ocidente). A diferença entre os antropólogos de então (essencialmente

de meados do século passado até início do atual), e os outros cientistas humanos e filósofos da época, era que os primeiros utilizavam-se de vasta etnografia já acumulada, e partiam para a comparação como base metodológica para se estabelecer a natufatos Em nosso entender, todo o reza

substantiva dos

observados.

problema colocado para o avanço dessas teses, localizava-se nelas

mesmas. Ou seja, nas bases evolucionistas e funcionalistas que orientavam tal comparatividade, produzida a partir de princípios do senso comum, e trabalhando vis-a-vis de dados manifestos ou aparentes, sem nunca se indagar sobre, por exemplo, a semelhan-

ça dos tipos de incoerências lógicas dos "primitivos" com comportamentos e procedimentos no seio de suas próprias SOCiedades. Por aí passava a pista, ao que parece, mas foi preciso esperar

O INCONSCIENTE EM CLAUDE LÉVI-STRAUSS...

153

ainda meio século para que alguém focalizasse esse aspecto de

forma conseqüente c continuada, tirando de sua demarche todas

as conseqüências teóricas. 2. DA ATUALIDADE DO PENSAMENTO SELVAGEM Apesar de, como veremos, Lévi-Strauss ter avançado os ele-

mentos da elaboração da noção de inconsciente desde 1945, foi preciso esperar até a primcira edição do La Pensée Sauvage', para que se vissem definitivamente afastadas as teses da irracionalidade do pensamento selvagem (primitivo). O que o autor fez foi apenas praticar uma leitura inteligente e desprovida de a priori

do senso comum, dos sistemas classifi-

catórios e das cosmogonias de um grande número de sociedades

humanas. Ficou patente, por exemplo, que o chamado pensamen-

to primitivo está muito próximo da lógica classificatória dos naturalistas e herméticos da Antigüidade e da Idade Média, como Galeno, Plínio, Hermes Trimegiste ou Alberto o Grande. Os herbi-

cistas astrólogos, por exemplo, distinguiam 7 plantas planetárias,

12 ervas associadas e 36 plantas atribuídas aos decanos e aos

horóscopos (Lévi-Strauss, 1962, pp. 57-58). Assim, o pensamento mágico não seria o começo, um rascu-

todo ainda não realizado, mas formaria um sistema bem articulado. O pensamento mágico e o pensamento científico como afirma Lévi-Strauss náo se diferenciam tanto um do outro pelo tipo de operações mentais que eles supõem, ou pe-

nho,

la

uma

parte de um

natureza

destas,

aplicam. Nesse sentido, a guns séculos coloca um tropólogos têm dado a Esse

de fenômeno ao qual eles se ciência moderna que data de apenas al-

pelo tipo

mas

problema particular, para o qual os andesignação de "paradoxo do neolítico'".

designado paradoxo

consiste

no

fato de que

o ser

humar

acede há 12 mil anos do ponto de vista mental, e de prática pro-

reprodutiva,

dutiva

e

das,

no entanto

e

a uma

série de

permaneceu

operações bastante sofistica-

nesse

patamar por praticamente

Maurice Merleau-Ponty, 3. Que Lévi-Strauss dedicou à memória de

dissemos.

como

154

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

todo esse intervalo de 10 mil anos antcs de Cristo até o advento séculos. da moderna ciência, há alguns O homem do ncolítico que passa a praticar a agricultura, a

domesticação dos animais, o aperfciçoamento da cerâmica, da tapeçaria e de outras formas produtivas, portanto herdeiro de uma longa tradição cientílica, atravessa um largo período marcando

passo na história. O La Pensée Sauvage (1962, p. 59 e ss.), mostra

como as clasificaçoes indígenas, além de metódicas e fundadas sobre um saber teórico solidamente montado, podem em alguns casos serem comparadas, de um ponto de vista formal, às classificações que a zoologiaea botânica continuam a utilizar. Como parte dos exemplos que o livro traz à luz do conheci-

mento ocidental, Lévi-Strauss lembra como os índios Aymara do planalto boliviano, descendentes dos legendärios Colla, à origem da civilização de Tiahuanaco, grandes agrônomos e botanistas, ...desenvolveram no seu mais alto grau, e como nunca na face da

Terra, a cultura e a taxionomia do gênero Solanum. (-.) Ainda atualmente, as variedades distinguidas no vocabulário indígena ultrapassam 250, tendo sido certamente muito mais numerosas no pas-

sado. Essa taxionomia opera por meio de um termo descritivo de variedade, ao qual se acrescenta um adjetivo modificador para cada

sub-variedade. Desta forma, a variedade imilla, "moça" é subdividida segundo a cor (preta, azul, branca, vermelha, sanguínea), ou se-

gundo outros caracteres (com ervas, insípida, ovóide etc..).

Os Guarani, por seu turno, não deixavam ao acaso a denomi-

nação das coisas da natureza, observa Lévi-Strauss, citando o biólogo J. G. Dennler, que na década de 30 estudou o sistema classi-

ficatório daquele povo. Reuniam-se aqueles indígenas em conse Ihos tribais para determinar os termos que correspondiam melhor aos caracteres das espécies, classilicando com muita exatidão os

grupos e os sub-grupos. (Lévi-Strauss, 1962, p. 63) ultimo capítulo do La Pensée Sauvage (História e Dialética), faz as seguintes consideraçõcs, a título de concluso,

no quce

concerne ao caráter próprio do universo lógico dos primitivos: .. foi preciso que a ciência física descobrisse que um universo

semantico possui todas as características de um objeto absoluto, para que se admitisse que a maneira como os primitivos conceitualiza-

vam o mundo é, não somente coerente, mas exatamente aquela que

O INCONSCIENTE EM CLAUDE LÉVI-STRAUSS...

155

se impõe em presença de um objeto do qual a estrutura elementar

oferece a imagem de uma complexidade descontínua. (pp. 354-355)

No entanto, e mesmo tendo percorrido caminhos distintos, a partir de um ponto determinado no passado, os dois saberes dis-

tintos são positivos, como lembra o autor: um, para o qual uma teoria do sensível fornece a base, e que continua a porvir a nossas necessidades essenciais, pelo meio das "artes da civilização", co

mo a agricultura, a criação de animais, a cerâmica, a tecelagem, a preparação e conservação dos alimentos etc... E o outro, que e

situa de entrada já sobre o plano do inteligível, e do qual a ciência contemporänea surgiu. O processo total do conhecimento humano assume, assim, o caráter de um sistema fechado.

Se, por um lado, o livro demonstra a superação da falsa anti nomia entre mentalidade lógica e mentalidade pré-lógica (esta última é lógica, no mesmo sentido e da mesma maneira que a nos

sa,

quando

esta se

aplica

ao

conhecimento de

um

universo

ao

qual ela reconhece simultancamente propriedades físicas, e pro-

priedades semânticas), por outro, em sua ante-penúltima, página,

chama a atenção para o fato de que Durkhcim e Mauss já haviam

compreendido que o pensamento dito primitivo, era "um pensa-

mento quantificado". Aí reside um ponto, em nosso entender, crucial para uma exata compreensão das origens da noção de inconsciente no es-

truturalismo de Lévi-Strauss, e, portanto, de seu entendimento pleno: a herança de Marcel Mauss constituiu-se no ponto de parsalto. Mesmo tida, a alavanca para o apoio, o trampolim para o continuar com a metáfora, ele tenha feito evono ar, para

que

registradas de umn e kantismo reformulado, da lingüística de Saussure, Jakobson

luções

e

piruetas,

como

veremos,

com marcas

Troubetzkoy, da biologia e da cibernética. 3.

COMPONENTES

TEÓRICOS DO

INCONSCIENTE

ESTRUTURALISTA

Se sendo

Lévi-Strauss afirma como de seus primeiros textos elementos futura tarefa, "purificar e continuar alguns

em um

sua

do pensamento durkheimiano

(in French Sociolog,

editado por

o INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS 156

G.

Gurvitch

e

W. E. Moore, N.

Y., 1945), em

direção a Marcel

Mauss que cle se volta como Cxemplo de concepção programática e

de postura tcórica a ser seguido. Como lembra apropriadamente um outro "tradutor" do pen-

samento levistraussiano para os anglo-saxões (I. Rossi) no momcnto em que Mauss escrevia talvez

seu trabalho mais contun-

dente, o Ensaio sobre a dádiva", primeiramente publicado no 'Année Sociologique, segunda série, 1923/24. T. I. Troubetzkoye

Jakobson, com base nas proposições mais gerais de Saussure, e com o auxílio de uma nova técnica operacional, eram capazes de

avançar sobre os dados fenomenológicos, a partir de sua infra-cs

trutura mais simples, à qual cles devem toda sua realidade. Se considerarmos que um dos principais avanços de Durkheim e Mauss no campo da Etinologia (como a Antropologia Social era designada na França, na época desses autores), foi o

pioncirismo deles em traduzir as categorias conscientes dos nativos (que eles consideravam propriamente), em suas próprias ca-

tegorias, igualmente conscientes, poderíamos nos perguntar se de

posse dos dados e das premissas metodológicas dos lingüistas do Círculo de Praga nós já nao teríamos tido o estruturalismo na Antropologia, e com ele a noção de inconsciente nos fenômenos culturais, pelo menos 30 anos antes. Os trabalhos de Robert

Hertz, um dos mais diletos alunos de Durkheim e Mauss, morto

com pouco mais de 20 anos, na Primeira Guerra Mundial, apontam lirmemente nessa direção.

Mas como observa I. Rossi, para Lévi-Strauss, aquele passo importante de Durkheim e Mauss ainda era inadequado, desde que as representaçõcs conscientes podem estar bastante distantes da realidade inconsciente. Nesse sentido, o autor sempre enfatizou a observação de Boas de que as representações conscientes dos nativos (e, talvez, de uma forma eram

geral),

racionalizadas das categorias inconscientes, secundárias (Rossi, 1974, p. 13).

interpretações

ou

racional1zaçoes

Por outro lado, a proximidade teórica entre Lévi-Strauss e

Marccl

Mauss,

e seu

relativo distanciamento de Durkheim,

4. Se bem que Boas não aceitasse

nalistas sobre o inconsciente.

grande parte

das

formulações

dos

como

psica

OINCONSCIENTE EM CLAUDE LÉVI-STRAUSS...

157

abaixo mais detalhadamente fica patentcada em Estruturas elementares do parentesco (1949), c na Introdução à Obra de Marcel Mauss*, datada de 1950, e que precede a seleção de textos de Mauss publicada sob o título de Sociologia e Antropologia, já acessível ao público brasileiro, em português. Nessas duas obras lembra aquele autor que para Mauss, assim como para ele, os veremos

componentes sociais e mentais da realidade social eram indistinguíveis um do outro, e tenta demonstrar como o material bruto dos fenômenos sociais consiste nos aspectos comuns das estruturas mentais e dos esquemas institucionais. O que de certa forma

ia contra o postulado (não tão rigidamente seguido, como se pen sa comumente) da prioridade do social sobre o intelectual, de E.

Durkheim. Mas essa identidade de princípio com Mauss, no que concerne à importância e ao destaque dado às categorías incons

cientes, abre-se também sobre um outro nível: aquele da metodologia, onde ambos reconhecem a importância do método lingüís-

tico, afirmando tanto um quanto outro que as "categorias inconscientes", são, não somente um componente dos fenômenos culturais,

mas seus

"determinantes"

Em texto anterior a esse "A análise estrutural em lingüística e

cm antropologia", in Word, Joumal of the Linguistic Circle of New York, vol. I, n° 2, 1945 de nosso conhecimento, seu primeiro trabalho estruturalista e que constituiu-se mais tarde no capítulo II de Antropologia Estnutural, datado este, em primeira edição de 1958, afirma Lévi-Strauss logo na primcira página, com destaque: Como escreveu há já vinte anos Marcel Mauss: "A Sociologia estaria, certamente, muito mais avançada se tivesse procedido em

toda a parte à imitação dos lingüistas"

Trata-se da seleço

de textos de Marcel Mauss, publicada pela primeira

vez em 19s0, e composta de sete "partes", das quais o "Ensaio sobre a Dádiva" é a segunda.

5. Se bem que é preciso notar que Mauss formulava esse pensamento referindo-se mais particularmente aos campos da religião e da magia. 6. Que o autor, aliás, dedica a Emile Durkheim, no ano do centenário des-

te, afirmando-se pessoalmente seu "discípulo inconstante", o que é significativo. 7. "In rapports réels et pratiques, etc.", in Sociologia e Antropologia, Paris, 1951.

o

158

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

Três páginas adiante cle alirma scu programa, num claro eco aos

descjos de

Marcel Mauss:

No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida, igualmente no estudo de outros problemas), o sociólogo vê-se numa si-

tuação formalmente semelhante àquela do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são clementos de significação: como aqueles, estes não adquirem essa significação a não ser sob a condição de se integrarem em sistemas; os sistemas de parentesco,

como os sistemas fonológicos, são elaborados pelo espírito no patamar do pensamento inconsciente; enfim, a recorrência, em regióes

distantes umas das outras no mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas de parentesco, regras de casamento, atitudes igualmente prescritas entre certos tipos de parentes etc., leva a crer que, num caso como no outro, os fenômenos observáveis resultam do

jogo de leis gerais,

mas

escondidas.

E continua, de maneira fortemente elucidativa para a questão que nos interessa aqui: O problema pode então se formular da forma

eguinte: numa

oura ordem de realidade (sublinhado por L-S. ele mesmo), os fenômenos de parentesco são fenômenos do mesmo tipo que os

fenômenos ingüísticos. Poderia o sociólogo, utilizando um método análogo quanto à forma (idem) (senão quanto ao conteúdo) àquele introduzido pela fonologia, realizar em sua ciência um progresso análogo àquele que acaba de ter lugar nas ciências lingüísticas?

Por outro lado, se lembrarmos que poucas linhas abaixo o autor assinalava o fato de que os estudos de parentesco se apre-

sentavam naquela época (1945)5 nos mesmos termos e frente às fomesmas dificuldades que a lingüística na véspera da revolução horinológica, veremos claramente delinear-se diante de nós o zonte metodológico que se delineava na época para Lévi-Strauss. E,

se

juntarmos

a

isso,

sua

declaração, quatro

anos

mais tarde

no Collège de 8. Quatro anos depois, já em Paris, lutando por uma vaga o monuFrance que segundo ele próprio, "não saía nunca", Lévi-Strauss lança elementares do mental "a fresco", como o classificou L. Dumont, "As estruturas parentesco", "onde o brilhantismo c a ousadia das hipóteses somente tëm parale lo na fragilidade dos fatos etnográficos que as suportam, como o definiu proPaen Antropologie Sociale, pnamente o mesmo Louis Dumont, in Deur théories

ris, Mouton, 1972.

oINCONSCIENTE EM CLAUDE LÉVI-STRAUSS...

159

(1949, in "História c etnologia'"y de que "a ctnologia tira sua originalidade da natureza inconsciente dos fenômcnos coletivos", teremos então definidos os objetivos, c o meio para se chegar à ante-sala de uma nova teoria sobre o social, na qual a dimensão inconsciente dos fatos sociais tem de

lugar

destaque.

E, aqui, caberia um primciro cotejamento com o também kantiano, Emile Durkheim, como havíamos anunciado acima. Ainda que Lévi-Strauss esteja do lado "idealista'" de Kant e

Durkheim, existem em relação a este último duas diferenças fundamentais. A

primeira,

em

relação

à

primazia

do

social,

sobre

o

componente intelectual da cultura, que em determinados momentos, como em Fomas elementares da vida religiosa, e em outra obra posterior, Os sistemas primitivos de classificação, Durkheim

afirma existir. Ao afastar a tese durkheimiana de que a atividade intelectual

reflexo da

organização social,

da origem social do pensamento lgico, Lévi-Strauss afirma que entre as estruturas sociais era

ou

c o sistema conceitual "existe uma rclação dialética, ao invés de uma

relação causal.

idealísticas

ou

Nesse sentido, afastamo-nos de concepções causais da cultura" (Cf. Rossi, op. cit., pp. 10-11),

essa ambivalência presente tempo em que se "resolve" pensamento durkheimiano, já que o estruturalismo nascente

ao mesmo

no

entroniza no seio de suas formulações epistemológicas a percepção bergsoniana segundo a qual os conceitos de "classe" (1 sentido filosófico, e não sociológico, stricto sensu, do termo), e de

oposição são dados imediatos do entendimento, utilizados na "formação da ordem social. Na visão de Lévi-Strauss, essa concepção constitui o fundamento de uma lógica sociológica genuína" (Lévi-Strauss, 1967, pp. 96-97)e (Rossi, I, op.cit., p. 10). Outro aspecto distintivo importante entre os dois autores, diz respeito ao fato de que Durkheim referia-se a um centro de atividades inconscientes como situando-se no âmbito de uma "consciência coletiva'", que pressupõe sempre a precedência do grupo

9. Publicado primeiramente na tradicionalíssima Revue de métaphysique de morale, 54 année, n° 3-4, c que constituiu-se apesar de mais tardio que o Lé-

vi-Strauss, 1945, supra no Capítulo Primeiro de Antropologia Estruural (ct. aci-

ma).

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

160

sobre

a

individualidade,

do coletivo sobre

o

universal singular (Cf.

Aragão, L. T., 1983, Enciclopédia de Ciências Sociais, Unesco F.G.V., verbete "Consciência Coletiva"). No caso de Lévi-Strauss estamos diante de uma instncia por assim dizer individualizada,

que conccbe e possibilita o social na medida em que funda o simbólico por sua capacidade de agenciar os signos, que, estes mesmos, já se situam muitos patamares acima dos mas

emitidos

e

decodificados

simples

sinais

por outras espécies animais. Para Lévio Strauss portanto, último reduto da estruturação do comportamento se situaria no interior do que ele mesmo chegou a

designar espírito humano, ao mesmo tempo individualizado, já que presente em cada ser humano, e universal, des-

como o

inconsciente do

de que comum a todos os seres humanos, indistintamente. Ou seja, trata-se de um centro produtor e irradiador dos

con-

ceitos, sendo estes constitutivos de foco de atenção do estruturalismo lévi-straussiano, e igualmente surgindo nesse nível da mais claramente admitida em relação ao idealismo:

sua

dívi-

Filosoficamente, afirma ele, acho-me cada vez mais kantiano, não tanto pelos conteúdos particulares da doutrina de Kant, mas antes por um modo específico de colocar o problema do conhecimento. Antes de tudo, porque a Antropologia parece-me uma filosofia do

conhecimento, uma filosofia do conceito. Penso que a Antropologia

pode progredir somente se ela se situar no nível do conceito. (Rossi, I, op. cit.)

E, ainda uma vez, gostaríamos de chamar a atenção para a

proximidade, também nesse tópico particular da ênfase na filosofia do conceito, entre Lévi-Strauss e Marcel Mauss já que este último dizia com freqüência que a tarefa primordial e mais importante da "etnologia era fazer o inventário das categorias do en-

tendimento", se possível junto a todos os povos da terra, e parti-

cularmente, junto àquelas que designava de "grandes civili zaçöes. A chinesa, a indiana ou védica, a egípcia etc. Nesse sentido, e muito concretamente, como era de seu feitio. Mauss

despachava" seus alunos mais brilhantes e promiSsores para es sas distantes paragens, como foram os casos de Marcel Granet,

que estudou a civilização chinesa, Louis Dumont que passou grande parte de sua vida estudando o sistema de castas e o holis-

mo hindú, do ponto de vista de suas representações e valores

OINCONSCIENTE EM CLAUDE LÉVI-STRAUSS..

161

(Cf. Homo Hierarchicus e La Civilisation Indienne et Nouss, principalmente, André de Haudricourt, enviado para a Rússia, e

Maurice Leenhardt para a Occania, entre outros. Na verdade, Lévi-Strauss, scm tcr sido aluno dircto de Mauss, e sem nunca ter fcito trabalho de campo, a não ser suas cpisódicas estadias junto a algumas ctnias durantc sua estada no

Brasil (Guaranis, nos arredores de São Paulo, Cadivéus e Bororos, em Mato Grosso e Nhambiquaras, na região norte de Goiás),

foi um dos legítimos herdeiros deste, tanto no que concerne à sua preocupação com a produção do entendimento, quanto em sua en-

trada para o Collège de France, onde Mauss lecionou, com a criagão de seu Laboratório de Antropologia Social.

4. CONCLUSÃO Ao longo de nossa exposição tentamos mostrar que a noção de inconsciente em Lévi-Strauss, de um lado, não pode ser considerada como "indiossincrasia epistemológica", já que essa noção estava presente em alguns dos maiores pensadores não empiriscistas do passado (essencialmente, Rousseau, Kant, Durkheim e

Mauss). Por outro lado, se quiséssemos comparar essa noção de in-

consciente àquela de Freud, apenas a título de ilustração contras tiva, diríamos que Lévi-Strauss enfatiza a prioridade da forma sobre o conteúdo, o que implica numa prioridade da estrutura (sincrônico) sobre a perspectiva diacrônica. Técnicamente diríamos com I. Rossi (op. cit.), que a noção de inconsciente no estrutura-

lismo lévi-straussiano é "conseqüência'", ou resultado de transpo-

sição da indagação kantiana no campo etnológico, já que dispôsfundamentais se a descobrir as "categorias", ou propriedades

a mente humana. que, de acordo com Kant, sempre constrangem marCom uma diferença em relação a Kant, de toda maneira esse nível de análise cante, já que este último pretendia alcançar científico de através da introspecção e pelo estudo do pensamento mesmo criti Sua própria sociedade, ao passo que Lévi-Strauss, cando os empiricistas ortodoxos, parte para uma demarche empi-

ricista

e

coloca-se ""nos limites das mais

contrastantes

sociedades,

o

162

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

a fim de descobrir um denominador comum de toda atividade

pensantc" (idem, idem, p. 20). Finalmente, a noção de inconscicnte nos remete a uma ativi-

dade mental que, ao mesmo tempo, combina e categoriza, mas que não tem nenhuma dimensao de um sujeito pensante. Tratarse-ia de uma matriz "pensante", através da qual, inclusive os sistemas de "realidadc", seriam mutuamente conversíveis e simultaneamente accitáveis para diferentes sujeitos. Desde que essas matrizes, ou condicionantes, são universalmente comuns e inconscientes, elas têm um caráter de objeto autônomo, independente de qualquer sujeito; são constrições internas locadas no

cérebro

cle mesmo.

Nesse sentido é necessário igualmente lembrar que Lévi Strauss considera as estruturas conceituais como um epifenômeno das estruturas do sendo os cérebro, mentais sao que

processos

submetidos a constrições biológicas e sociais. Essas constrições se

traduziriam, segundo E. Leach, num programa genericamente herdado, segundo o próprio modelo de computador, ou seja, através de oposições binárias obtidas pelo contraste entre dois ou mais aspectos ou fatos pertinentes, a partir das quais são montadas as "estruturas elementares" (do parentesco, da mitologia, da

língua etc...), que, por sua vez, pressupõem conceitualmente, sempre, a existência de sistemas no sentido de F. Saussure.

Essas oposições dicotômicas, seriam, por assim dizer, a manifestação mais imediata e aparente, e igualmente universal das constriçoes inconscientes da mente humana, que, por sua vez, se estruturam a partir do próprio funcionamento binário do cérebro. A

passagem das estruturas do cérebro para

aquelas

da mente é

entendida e explicada por Lévi-Strauss com o postulado de que as leis do pensamento, de uma fcrma geral, primitivo ou civilizado, são as mesmas expressas na realidade fisica e na realidade social

levantando, desta forma, a hipótese isomórfica, já nas fronteiras entre a filosofia e a ciência. (Rossi, I., op. cit.) Gostaríamos úe lembrar, por outro lado, que a universalida-

de das oposições dicotômicas, quando considerada no plano so

ciológico empírico, ou seja, na realidade de sistemas sociais concretos, é sempre acompanhada do valor, como muito bem lem-

brou L. Dumont. Nesse sentido,

o

pensamento humano tem ade

O

INCONSCIENTE EM CLAUDE LÉVI-STRAUSS.

renles ver

cle de

torma inamovível, correta, duas dimensões, a

hipótese cstruturalista cstl"cibernética" e a simbólica social, se a

complexisa e o torna propriamente humano. A contrnbuição dos cstruturalistas noção de inconsciente permitiu particularmente a

que

da

a

o

ou menos

163

clássica

culdade inata mais

em

em

ncsst nívcl

ultrapassar formulação mais Antropologia de que no homem a la-

evidência,

contrário de outras espécies de uma virtualidade quase perfeita para adquirir comportamentos. Daí, como lembra Dan Sperber (1974), resulta que os sistemas sócio-econômicos pouco ou nada deviam à natureza humana, e estariam inteiramente "do lado" adquirido. Essa é a lida que ocupou praticamente toda a Antropologia não com estruturalista, trabalhos, é bem verdade, altamente técnicos, mas com apenas alguns graus a mais de cientificidade que belos trabalhos de cronistas-viajantes do passado, na medida em que

animais,

é

aquela

ao

mesmo os primeiros antropólogos explicitavam mais claramente

as

condições

de

produção

do

próprio discurso, e por outro lado pretendiam uma maior sistematicidade praticando uma comparatividade controlada,

no

interior de horizontes teóricos pré-defini-

dos. O grande salto se situa, no nosso entender, justamente no ní vel da noção de inconsciente nos fenômenos culturais, já que aponta para a existência de dispositivos reais que estariam ligados às propriedades formais de um modelo (a dimensão "algébrica" dos fatos sociais), às estruturas (oposições dicotômicas), às quais se associa indissoluvelmente o conceito de sistema (sincronia/in-

terdependência). Deixa-se "para trás", e a grande distância, a preocupação exclusiva com os funcionamentos observáveis, as

causas únicas e os fatos visíveis. No que concerne a um cotejamento, entre a noção de inconsciente no estruturalismo, e o inconsciente freudiano, diríamos que

ambos têm muito pouco em comum além da suposiço

de eficá-

cia das instâncias inconscientes que "comandam" o encadeamento de operações l6gicas, e comportamentos; percepção esta da

10. Nesse sentido, Louis Dumont "responde" aos críticos do estruturalismo (fenomenologistas, existencialistas e marxistas, em particular) que acusaram aquela escola de "abstrair" o social. Dumont trabalha numa vertente estruturalista que dá mais espaço e ênfase ao social coerente da etnografia.

O

164

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

qual Lévi-Strauss reconhece ter se inspirado em Freud. Para LE vi-Strauss o inconsciente nos fenômenos culturais, quaisquer que eles sejam, não se refere a um conteúdo emocional, energia, ou

princípio de atividade, mas somente a uma forma (ou agregado

de formas) vazia de qualquer conteúdo. Enquanto que para Freud, ou melhor, o inconscicnte freudiano, incluiria justamente sensações, emoções, sentimcntos, e igualmente concepções co-

nectadas com impulsos. O inconsciente freudiano seria, nos dizeres de Allport (1967, p. 145), "uma chaleira de energias básicas'" de natureza instintiva. Mais ainda, no caso do inconsciente lévistraussiano, a prioridade da forma sobre o conteúdo implica numa prioridade do estrutural (sincrõnico) sobre a perspectiva dia

crônica; uma prioridade, igualmente, das estruturas invariáveis e

coletivas sobre constantes individuais, aliadas a um expresso de sinteresse pelo aspecto terapéutico em favor de uma preocupação com a teoria da mente. Ou seja, para Freud, o inconsciente rete

re-se primordialmente à motivação afetiva, ao passo que para Lévi-Strauss a noção de inconsciente nos remeteria a estruturas lógicas mais básicas.

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SPERBER, Dan, Le synmbolisme en géneral, Paris, Hermann, 1974

O INCONSCIENTE EM LACAN

Contardo Calligaris

O ensino de Lacan, como vocês sabem, se estende por 25

anos ou mais, segundo a data que se escolhe para começar a contar, e é certo que, se tivéssemos que responder ao título "O Inconsciente em Lacan" de um jeito mais orgânico, precisaria falar, talvez, de um primeiro, de um segundo e de um terceiro Lacan. Além disso, de fato teria preferido o título "Lacan no Inconscien

te", talvez isso se explique depois. Enfim, vou falar do "Inconsciente em Lacan" no momento no qual Lacan fala mais do inconsciente. Vou escolher uma época importante no ensino de Lacan, o começo dos anos 60. Se é que a

clínica lacaniana é diferente do que seria uma clínica propriamen-

te freudiana, e eu acredito que é, isso pode ser entendido como

distintas do inconsciente. Daqui a importância deste começo dos anos 60. Para dar uma referência tex-

implicando concepçócs

tual à qual vocês possam facilmente voltar, se quizerem, trata-se dos primeiros capítulos do Seminário XI, "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" e do texto "Posição do inconsciente", que está nos Escritos. Este texto, "Posição do inconsciente", tem uma relação com o que 1oi lalado ontem, particularmente

sobre Merleau-Ponty, pois ele resume a intervenção de Lacan no de Bonneval, que foi mencionado. mesmo

colóquio

Vou introduzir, então, o que náo deixará de ser uma certa

simplificação deste jeito:

vocës certamentee

já notaram,

se



tivee

O

170

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

ram uma rclação de leitura com o texto freudiano c com o texto

lacaniano, que esses textos participam de estilos difcrentcs; isso, acredito, uma evidncia para todos. Esta observação é tanto mais relevante aqui, quc um dos raros momentos nos quais Lacan

explica porque o seu ensino se dá neste estilo que conhecemos e que faz com que a leitura seja aparentemente difícil, um dos raros momentos é justamente em "Posição do inconsciente". E a explicação que cle dá do cstilo que cle escolheu para o seu ensino, e quc foi escolhendo, de uma certa forma, cada vez mais, desse es-

tilo que poderíamos chamar de aforismático, embora não seja bem disso que se trata, a explicação é queo que se espera de um

ensino são efeitos. Freud teria acredito

justificado o seu

próprio estilo com a idéia queo que se espera de um ensino seria de a transmissäo de um saber (sem deixar por que, como se expressa Goethe, "o que podes saber de melhor, não vai

isso

pode-lo transmitir"). Não é por acaso

-

parece-me

observar

- que Lacan

justifica o seu estilo justamente no texto onde ele resume a po-

sição do inconsciente, pois, esta diferença entre estilo freudiano e estilo lacaniano de ensino é relativa a uma diferença de posições

do inconsciente. Se tivéssemos que resumir, quanto mais brevemente possível,

então caricaturalmente, a diferença entre uma prática freudiana e uma prática lacaniana, acredito que o caminho mais breve seria dizer que o próprio de uma prâtica ireudiana e pensar que a ver-

verdade inconsciente, é suscetível de ser convertida em um saber, e que esse saber pode ser, evidentemen-

dade do sujeito,

a

sua

te, formulado e devolvido ao sujeito, que não sabia, ou que sabia sem saber. O essencial é a idéia que a verdade possa vir a ser um

saber (ou o saber que já era). E certo que as coisas em Freud

cstão bem mais complicadas do que isso. E certo que a partir dos Escritos sobre a técnica, Freud volta sobre esta questão, a sua pratica muda, se torna mais silenciosa e ele pára de comunicar aos

pacientes

o

saber psicanalítico. Vocês

se

lembram deste texto im-

portante do fim da vida de Freud, que é "Construções em analse" onde aparece quanto o estatuto do que é comunicado ao pa

cicnte é

particular

problemático,

enfim, grosso modo,

a mas, acredito que se possa dizer que é algo próprio da prática freudiac

o INCONSCIENTE EM LACAN

171

na pensar que a verdade do sujcito seja suscetívcl de ser trans-

formada cm um saber.

Desse ponto de vista existe uma oposição da prática freudiana com a prática lacaniana, porque para a prática lacaniana tra-

ta-se justamente do contrário, eu diria: de separar verdade e saber, pois a verdade nãq é suscetível de transformar-se em um saber. Que não pare de tentar transformar-se cm um saber, é um

cfeito da neurose; por quê? Vou explicar-me. De onde surgiria

essa idéia que a verdade inconsciente do sujeito poderia ser um saber? E uma idéia que surge na constituição mesma do sujeito

neurótico, porque a constituição edípica, então neurótica do sujeito, implica que ele aposte num pai ou, em outras palavras, que ele suponha um pai como sujeito de um saber. A idéia mesma que a sua verdade possa ser um saber é uma idéia sustentada pela posição paterna. E um ponto extremamente importante, porque se a prática freudiana é fundada nessa idéia, que a verdade pode con-

verter-se em um saber, isso nos explica a constatação decepcionada de Freud ao fim de sua vida, quando neste texto magistral que é "Análise finita e análise infinita'", ele constata que a psicanálise, de uma certa forma, irremediavelmente, não consegue levar um sujeito além da confrontação com a rocha da castração. E desta decepção que surge a aposta lacaniana a partir dos anos 60, quando Lacan comcça a pensar, a partir de sua experién-

cia, em um fim de análise que seja um pouco outra coisa, um além da rocha da castração, mas por isso precisa, evidentemente, que a verdade e o saber se divorciem. Por que precisa isso? Porque se na prática mesma é sustentada a idéia que a verdade pode chegar a transformar-se em um saber, essa prática só pode fortalecer a função paterna que justifica a suposição que a verdade seja um saber. Retomemos. Não é uma idéia natural que a verdade seja um saber. Porque a verdade teria que ser um saber? Não é nada natural que a verdade tenha que ser um saber. Os psicanalistas

acham, às

lise,

vezes, normal que

com uma

demanda

mais sobre mim". E

um

sujeito se apresente

em

psicaná-

"eu quero analisar-me para saber coisa absolutamente extravagante, sin-

como:

uma

tomática: normalmente, se está numa queixa, ele deveria apresen

tar-se dizendo que ele quer que

algo

mude.

Ninguém apresenta-

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

172

médico dizcndo que tem uma dor, e portanto qucr saber a explicação anatomo-patológica desta dor; ele quer que a dor um

se a

parc. Então,

como e

que

o

sujeito quc solre, produz

uma

qucixa,

chega em análise e pergunta: "eu gostaria de saber algo sobre

porque cstou assim", e csquece de pedir que a coisa mude. E algo freqüente e altamente sintomático: o que é sintomático é que o

ssencial para o sujeito em questão seja a sua relação com um sar

possível sobre a

sua

verdade.

Este saber suposto sobre a sua verdade é justamente animapela instância paterna: por que? Quando um sujeito constituino

Edipo,

ele

supõeo pai

quem deteria um saber sobre, igamos assim para simplificar, o gozo materno, como quem poleria defendê-lo cuidando desta demanda apavorante. A partir como

Hesta suposição, o sujeito vai apostar na necessidade, para se manter, de sustentar um saber (com o seu depositário) que o de-

fende. Então, a sua verdade aparece ao sujeito como sendo possivelmente um saber suposto, só à medida na qual o sujeito está tomado numa perspectiva propriamente neurótica. Por con-

seqüência, há uma grande diferença entre, por um lado, uma prática que acredita nisso, que é a posição neurótica mesma do sujei-

to: uma prática que se propõe a transformar a verdade em um

saber vai fornecendo tudo que precisa para que o sujeito acredite na suposiç o

paterna; isso é inevitável em uma análise, mas só

pode deixar o sujcito confrontando ao seu destino edípico, à rocha da castração, como fala Freud. E, por outro lado, uma prática

que, muito pelo contrário, tenta justamente separar saber e ver-

dade, quer dizer, confrontar o sujeito à sua verdade inconsciente, mas sem

que por

isso ele

tenha necessariamente que supor que

essa verdade é ou poderia ser um saber. Em outras palavras, mais

freudianas, dissolver o complexu, deixando do Edipo o que éestruturante, poderia se dizer assim: levar a uma experiência da Verdade na qual a função paterna se revele nua, não precisando do manto de um saber. Mas a questão que resta é: o que seria uma verdade que nao

seria suscetível de ser um saber, de transformar-se em um saber? E um problema sério até porque para nós, enquanto neuróticos,

pensar isso é complicado. Para poder avançar um pouco nesse as-

sunto, vou abrir um parentêse: vocês certamente conhecem esse

O INCONSCIENTE EM LACAN

173

aforisma lacaniano "o inconsciente é estruturado como uma lin-

guagem". Ese atorisma é problemático pois, juntando-se ao que foi na claboração do ensino lacaniano o impacto da leitura de Saussure c geralmente da lingüística estrutural, esse aforisma

acabou autorizando uma leitura extremamente simplificada do que seria o inconsciente para Lacan. Vale a pena assinalar isso,

quando quer pedagógico, se pois geralmente acontece que, acaba nessa leitura simplificada que não é para acreditar. Vocês se

ser

conhecem certamente alguns elementos básicos da lingüística saussuriana, como a distinção língua/palavra que é uma oposição que se sobrepõe a distinções como compctência/performância,

paradigma/sintagma, diacronia/sincronia e código/produção. O código sendo a língua num cixo vertical, a competëncia de

quem fala, e a produção sendo o eixo horizontal da palavra. Em outros termos, uma idéia básica da lingüística estrutural é que, para poder produzir uma fala, é necessário uma presença permanente do código, enquanto ele permite que os elementos falados

sejam diferenciados e que esses elementos sejam organizados de forma a produzir um sintagma significativo. O que importa para nós é a leitura pedagógica que foi dada do aforisma "o inconsciente é estruturado como uma inguagem, particularmente

quando se começa a explicar o que é inconsciente em Lacan pegando o lapsus sempre o mesm0, aliás, o de Signorelli -como exemplo princeps. O que se tenta mostrar com esse lapsus e que

a verdade inconsciente seria da ordem do código, da língua; em outras palavras, quer-se mostrar o seguinte: que o sujeito estaria falando, produzindo uma fala e normalmente haveria, a cada momento da sua produção, um eixo vertical que seria o código

que permite que o que ele produz na fala sejam elementos diferenciados. Só que, por exemplo, haveria uma parte desse código que seria de uma natureza qualitativamente diferente do código propriamente lingüístico, seria um código inconsciente. Então, desde que tivesse alguma falha no discurso do sujeito, elementos desse código inconsciente precipita-se-iam porque, como cada

um sabe, a pegar

o

natureza a horror do vazio.

aforisma

Então,

a

simplificação

lacaniano, "o inconsciente é

se-

estruturado co-

mo uma linguagem" para pensar o inconsciente como sendo uma

parte singular do código lingüístico. Vocês vêem bem que, se va

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

174

por este lado, de repente o inconsciente em Lacan é coisa". Ir por este lado signilica dar ao inconsciente de mos

"alguma

Lacan

estatuto ôntico: cle seria

um

alguma coisa, um pedaço da memória, scriam alguns significantes na memória do sujeito que se organizariam num código alternativo que atrapalha o código normal e

que se manifesta então em lapsus, sintomas e companhia. Além das qucstões que surgiriam imediatamente (por que diabo esse

código alternativo interviria? Em quais falhas e como essas falhas se

produziriam?),

o

problema

é

seguinte:

Lacan nunca falou língua, ele falou que

o

que o inconsciente é estruturado como uma o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é muito diferente. Lacan geralmente e sabia pesa suas

palavras

perfeitamente

Saussure linguagem quer dizer língua e palavra, código e fala. E se Lacan o propöc inconsciente estruturado como uma linguagem, a primeira coisa que isso quer dizer é que o inconsciente fala, não que o inconsciente seja um pedaço do código, mas que ele fala. Quer dizer o quê, que ele fala? Que o inconsque

em

ciente é

tras

moradia,

a

palavras,

o

do inconsciente é a casa

sujeito, do sujeito que fala: o lugar de uma enunciaçãq.

em ou-

E isso que quer dizer "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", só que isso que acabo de enunciar, evidentemente, é também problemático, porque, se vocês conhecem um pouco de lingüística, vão em perguntar-me: que sentido você entende o "sujeito da enunciação"? O sujeito da enunciação, vocês sabemo que é: é o sujeito que fala, que produz o enunciado, distinto então do sujeito gramatical ou do lógico enunciado. Se falo "estamos aqui reunidos", "nós" é sujeito do meu enunciado, mas o sujeito da enunciação sou "eu". O da enunciaço não é só sujeito expresso pelo pronome pessoal da primeira mas também uma

série de elementos da

linguagem

pessoa, que são índices da

ciação, comutadores, shifters. Benvéniste, Ihou com Lacan,

pessoas

e

istas. Um

sobre

escreveu um texto

os

shifter

é

shifters, um

um

enun-

lingüista que traba

famoso sobre

um texto

por

importante

os

pronomes de

para os psicana na linguagem que faz referëncia Por cxemplo, se eu falo "agora" é

elemento

sujeito da enunciação. certo que "agora" denota uma só se entende relatitemporalidade que vamente ao momento no qual estou falando, então é um shifter, porque denota, indica o tempo da minha "agora" própria fala. ao

O INCONSCIENTE EM LACAN

175

Mas scrá que é desse

sujeito da enunciação que Lacan está falando, quando ele insiste, tanto no começo do Seminário XI ou em

"Posição

inconsciente

do e

o

inconsciente", sobre laço indissociávcl o

ujeito

entre

o

do

inconsciente como sujeito da enunciação? Acho que ele fala de algo difcrente do que se reconhece como sujeito da enunciação do ponto de vista lingüístico. Há um exemplo bonito que Lacan nos dá, no Seminário XI, acredito no

segundo capítulo, esta frase: "eu tenho três irmãos Paulo, Roberto c Eu". E uma frase muito intcressante do ponto de vista do su jeito da enunciaço. Outro exemplo do que seria um shifter da

enunciação inconsciente são algumas construções bem específicas, que foram explicitadas numa monumental gramática da língua francesa que Lacan menciona, uma gramática admirável es-

crita por um lingüista e um psicólogo que chamam-se Damourette e Pichon. Trata-se do fenômeno seguinte: quando se fala em

francês "je crains qu'il ne vienne", a tradução é "receio que ele venha". Se quisesse dizer "receio que ele não venha", seria "je crains qu'il ne vienne pas", só que quando vocé afirma isso no po-

sitivo, "receio que venha" (je crains qu'il ne vienne) a primeira parte da negação francesa (o ne da negação "ne.. pas") permanece, como se falássemos algo parecido a "receio que não venha" para querer dizer "receio que venha'". Um francês entende per-

feitamente do que se trata, pois fica aí, na frase, um indicador de algo que talvez seja uma realização fantasmada antecipada do que a gente está querendo (que ele não venha). Lacan assinala is-

so como sendo um tipo de shifier, de ndice da enunciação da qual ele está falando. A questão que coloca a idéia de um sujeito inconsciente da enunciação aquém do sujeito lingüístico da enunciação, para um analista lacaniano, está constantemente presente. Se de uma certa 1orma, caricaturalmente, um analista freudiano estaria se pergun-

tando sobre o que o paciente está dizendo, um analista lacaniano estaria constantemente se perguntando de onde ele está falando. ror isso, embora eu esteja viajando e morando no Brasil há alterrivelmente brutal

sempre parece-me gum tempo, quem Justamente liga pergunte: que

um

desconhecido

de

que "De onde fala?". E uma coisa

dexavä-me num estado de afanise

pente,

o tato

subjetiva, porque, de

parecia perguntar-me

a

re-

coisa mais ínti-

176

O

da minha pessoa: de onde quc

ma va

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

respostas agressivas

do

voce quem está

lipo:

eu

talo? As "Mas de onde fato cultural

primeiras vezes dafala você? Mas é

igando". E um na Europa ningum pergunta isso. A primeira coisainteressante; que alguém que liga fala: "Aqui é fulano. Eu queria falar com sicrano". No Brasil é ao

contrário: "Quem fala?"

"De onde fala?". As minhas respostas produziam um efeito porque eu não queria entender, então, por exemplo,estranhíssimo, eu estava em Porto alguém ligava-me: "De onde fala?", eu respondia: "De Alegre, Porto Alegre". Era cômico, mas me defendia de uma pergunta violenta. Então de que sujeito trata-se nesse sujeito da enunciação in-

consciente?

Infelizmente,

ou

não

dispõe, por um mistério que eu dos tradução Escritos de de um texto capital no ensino lacaniano que é o texto sobreLacan, "O estado do espelho como mecanismo formador do 'eu' ". Assinalo o seguinte: trata-se do estado do espelho como mecanismo formador do "eu", que não tem nada a ver com o "eu" no sentido de "ego". Em francês o que nós chamamos de "eu'", no sentido de "ego", é

não

me

explico,

se

na

designado pelo pronome complemento "moi", e Lacan fala no

es espelho como mecanismo formador do Je, do "eu" gra matical, do "eu" como sujeito da enunciação, não do "eu" como

tado do

"moi", como ego. Freud fala, como vocês sabem, Ich é tanto "je" quanto "moi"), com a diferença que em alemão o(que neuartigo tro imediatamente

permite diferenciar o pico, que para Freud é das Ich, neutro, e

ego como elemento tóIch pronome pessoal da

primeira pessoa. Não quero retomar a história do espelho que 6 bem conhecida. Mas vocês se lembram do esquema L, que está na página 53 dos Escritos em francês, representado na página ao lado. Queria chamar sua atenção sobre a direção das flechas. O

que é que

diagramatizado nesse esquema é, como se sabe, o seguinte: o sujeito aquém da subjetividade encontra a imagem de um

semelhante (i (a) ta

)e

que

essa

imagem antecipa para ele uma cer

intuição corpo próprio, o que funda a sua alienação imaginária. Quer dizer que nós temos uma intuição do nosso do

seu

po próprio só como cfeito de uma antecipação especular que cor nos Outorgou o encontro com um semelhante. Mas o esquema não

pára aí, há uma flecha embaixo que vem de "A" que é o Outr0,

O INCONsCIENTE EM LACAN

177

S

i(a)

m

A

quer dizer, falando geralmente, que vem do campo da linguagem e cuja flecha é justamente o que abre, prepara, falando um pouco imaginariamente, um espaço que é a casa da qual estava falando antes, um espaço necessário no simbólico para que a antecipação

da imagem surja como embrionária constituição do sujeito. Incito vocês a retomarem particularmente as últimas páginas do texto que chama-se "Subversão do sujeito e dialetica do desejo" nos Escritos. Nestas páginas, Lacan fala de algo que ele chama de nome próprio, e que não se reduz ao nome próprio como Contardo, Felícia etc., trata-se do nome próprio como o que designa o sujeito enquanto a significação desse sujeito é absolutamente

incalculável. Lacan produz, aliás, um cálculo simples no qual conSegue mostrar que a significação do sujeito¬oprimeiro numero imaginário, quer dizer, V-1(a definição de um número imaginá-

rio, e que é um númcro incalculável, pode ser escrito, mas não pode ser calculado, por exemplo a raiz de um número negativo). Trata-se de algo disso nessa flecha embaixo no esquema L que

Vem constituir uma casa para o sujeito do qual estamos falando, para o sujeito da enunciação. Algo da ordem de um nome próprio gue abre um espaço cuja significação é incalculável, ou seja, cuja verdade não é suscetível de um saber, embora na sua história edí-

O INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

178

pica o sujeito não pare nunca dc procurar transtormar a sua ver-

dade num saber.

Nesse lugar primeiro, nesta casa do sujeito, é que estaria o que é fundamentalmcnte o inconsciente para Lacan, quer dizer, o

sujeito inconsciente da enunciação. Mas estamos bem longe de ter respondido a nossa pergunta: o que é este sujeito inconsciente da enunciação? Para explicar um pouco mais, vamos tomar um

caminho que vai parecer estranho, porque vai levar-nos, aparen-

temente, a acreditar em uma tese quase filosófica e talvez bem próxima das posições fenomenológicas; só depois veremos que as coisas não estão bem assim. A idéia é que esse sujeito inconsciente da enunciação é sempre ele quem fala, não só na fala de um dito discurso inconsciente. Só tem fala porque tem sujeito inconsciente da enunciaç o; ele é constantemente presente e, se não ti vesse esse sujeito da enunciação, a gente não falaria. Este sujeito

não é que esteja falando algo, ele é a condição para que qualquer um fale algo. Se eu não fosse animado pelo meu sujeito do inconsciente, pelo meu sujeito da enunciação, não conseguiria talar

agora; não é só quando eu vou acabar fazendo um lapsus, que é

inevitável, não é só aí que este sujeito falaria por cima de mim: 6 medida na qual eu falo, que esse sujeito está falando em mim,

está mesmo, diria, sustentando a minha fala, e na minha fala a

significação que eu estou produzindo é justamente o lugar do qual eu falo, de onde estou falando.

que oculta

o

Esta hipótese tem uma série de conseqüências clínicas e éticas importantes, assinalo-as imediatamente. Se o sujeito do qual estou falando, que faz com que eu fale, se este sujeito também é o sujeito do desejo, este sujeito deseja, mas não descja algo; sabe-se que em "lacaniano", aliás, desejar é um verbo intransitivo. Quer

dizer que se estou pedindo cerejas, o problema não é que, pedindo isso, eu esteja pedindo outra coisa, pois o desejo inconsciente

não é desejo de algo esquecido, de algo proibido, recalcado, sobre a mentira manifesta do meu desejo de cere produziria eu qual o jas. Nada disso: se eu desejo cerejas, é cerejas mesmo; não por

que o meu desejo inconsciente esteja querendo cerejas, mas por esta que, se desejo cerejas, é porque o meu desejo inconsciente sustentando este desejo. E um fato importante do ponto de vista

clínico. A distinção latente/manifesto é uma distinção pouco la-

179

O INCONSCIENTE EM LACAN

caniana. Lacan, nas suas supervisões, quando alguém chcgava e comentava: "o paciente disse assim c certamente qucria dizer

as

sado", respondia geralmente que a únicá coisa certa é quc não era assado que o paciente falara. Então, o desejo enquanto tal é o

que cxpressa-se em todas as minhas demandas, seja o que for o que vou procurando na vida, de qualquer forma o desejo anima a

metonímia dos meus objetos. Desse ponto de vista, querer a transformação do mundo, ou um carro novo, não é diferente. O problema é querer, e se existe uma ética do desejo, não é uma

ética do desejo de carro novo e de cerejas, é uma ética do querer.

Odificil não é querer alguma coisa, o difícil é querer. Isso faz justamente com que a ética da psicanálise não seja de jeito nenhum

redutível a uma forma qualquer de moral, pois é uma ética do de sejo, não de tal desejo.

Se evoca freqüentemente que a ética psicanalítica, segundo Lacan, se enunciaria "precisa náão desistir do próprio desejo". Se a ética da psicanálise se formulasse assim, seria um imperativo

super egóico, ou seja, a última coisa que a psicanálise pode produzir como ética. O que Lacan fala é que "a única culpa que a psicanálise reconhece seria ter desistido do próprio desejo". Isso não quer dizer que é culpa se resignar a não ter um carro novo ou

a cama materna ou outra coisa ainda que, quem sabe, ao fim de uma análise eu finalmente saberia o que é, nada disso: talvez ao

fim da análise eu possa me permitir desejar (intransitivamente). Voltando às considerações clínicas que fazia antes, sabemos perfcitamente quanto este pedido de análise que começa com um: "eu gostaria de saber algo mais sobre mim", se completa assim:

uma vez que eu soubesse, eu poderia tomar algumas decisões", sabemos quanto este começo de análise promete as piores inibições. Esta posição, saber o que se deseja para depois poder

fazê-lo, de

um

só dificulta desejar. Porque o desejo não é saber. O desejo é um exercício sem saber e

algo suscetível

o

difícil é

seguir desejar.

con-

fique mais dos claro. Vocês se lembram, certamente, que em A interpretação uma rea sonhos Freud escreve que qualquer sonho sempre seria se consideram os solização do desejo. Isso parece fácil quando está com fome nhos alucinatórios das crianças, nos quais quem Posso acrescentar

uma

coisa para que isso apenas

O

180

alucina

um

sorvete

de cocoe da

INCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS cert0,

um

sonho

realiza um

deseio. Mas fica muito mais complicado quando um sonho não é dessC tipo, não é alucinatório do objeto querido, o que é extremaMas Freud mantem até o mente fim

nho

freqüente.

essa

idéia do so-

sempre sendo a realização de um desejo. Como então o sonho seria sempre a realização de um desejo? Se a realização do descjo é poder desejar, que o desejo poSsa enunciar-se, é já o como

que o realiza.

Ainda tenho que acrescentar duas coisas. A primeira é a seguinte: não dá para conceber este sujeito do inconsciente do qual estou falando como uma entidade ontológica, tanto menos que é um sujeito evanescente. Por que? Se consegui fazer-me entender até aqui, esse sujeito é algo que só existe à medida em que o significante o representa, à medida na qual fala, e é justamente à medida na qual fala que ele já desapareceu. Porque de repente não é mais ele, é o significante que o representa, então este sujeito é

uma

O

pulsação.

segundo ponto, mais importante talvez,

é

uma

questão:

no

que esse sujeito inconsciente seria diferente de um sujeito trans-

cendental do ponto de vista da até

aqui,

acredito que

fenomenologia?

seja compatível

Pois

o

que falei

reescritura das Meditações cartesianas que foram justamente citadas ontem. A dicom uma

ferença se entende talvez passando por um outro leit-motivo la-

caniano: "um

significante representa um sujeito para um outro significante". Um outro significante, o que é? Um outro signifi-

cante é um outro sujeito. Em outras palavras, o sujeito do inconsciente é certamente o lugar de onde Isso fala, quer dizer, esse lugar de onde o sujeito enuncia, mas este sujeito não está falando

sozinho, ele está falando em uma rede com outros sujeitos. Sabe-se que para Lacan o inconsciente é "transubjetivo". Até acredito que,

tradução portuguesa, deveríamos dizer que é transa-subjetivo, tradução quc o próprio Lacan teria gostado, certamente. O sujeito do inconsciente do qual falamos é bem o lugar "de onde fala", mas isso fala para alguém e com alguém. A enunnuma

ciação inconsciente não é só um lugar de proveniência ocultado pela signilficação produzida. A medida mesma na qual isso fala, imediatamente desenha uma rede de lugares de interlocução,

quer dizer, de lugares com os quais se está falando, rede que é

181

o INCONSCIENTE EM LACAN

propriamente uma estrutura inconsciente. Daf as questões clíni-

cas são várias, não só: "de onde fala", mas também "com quem

e "para quem", "contra quem" etc. Desde que Isso fala, imediatamente um mapa desenha-se, um mapa no qual o sujeito está fa-

lando numa transasubjetividade com e em uma rede de outros su-

jeitos (também inconscientes). O inconscicnte de repente não seria só o sujeito que fala a sua enunciação

-

mas o

grafo de subjetividade com o

qual ele

está organizado. Esta estrutura é o que poderíamos considerar como sendo o inconsciente do sujeito. Será que é alguma coisa,

algum "ser", será que tem um estatuto ontológico? Se poderia dizer com efeito que o inconsciente lacaniano assim concebido tem

um estatuto ontológico, é uma certa forma de memória: seria uma enunciação

- a do desejo -

que se produz num grafo de in-

terlocução transasubjetiva diferente do grafo consciente; por exemplo, pensar que estou falando com vocês, e de fato a minha

enunciação está falando com e no Outro, autorizando-me de tal traço do meu avo paterno, endereçando-me ao pai, e assim em Seguida.

Acredito, com Lacan, que o "estatuto ôntico do inconsciente 6 frágil", pois o inconsciente, assim definido como grafo de uma

transasubjetividade onde aparece o sujeito, é algo para ser reali zado. O que isso quer dizer? E uma posição que nos afasta da idéia da estrutura lévi-straussiana, e também não é uma posição

fenomenológica, pois "para ser realizado" não tem nada de eidé-

tico. Este "para ser realizado" é uma questão ética e clínica. Quando Lacan aponta, no mesmo texto, "Posições do incons-

ciente", que o analista faz parte do conceito do inconsciente, ele nos indica que o inconsciente se realiza na cura, Nada aqui de

difícil: é certo que sem a escuta freudiana, o lapsus, por exemplo, nunca teria deixado o seu estatuto de acidente para existir como

formação do inconsciente. Em outras palavras, é a escuta e a fala do analista que carregam a responsabilidade de devolver o paciente ao lugar transa-

subjetivo de sua enunciação inconsciente (onde isso estava, eu te-

nho que advir). Por sinal, esta devolução é a chance de uma possível intervenção terapêutica eficiente, pois o mapa da transa-

182

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

Subjetividade não poderia ser modificado, por marginalmente que scja, a não ser na sua realização.

Talvez entenda-se agora porque o titulo "Lacan no inconsciente" teria me parecido mais adequado, se é verdade quc, mesmo no seu ensino, Lacan nunca deixou de procurar mais os

efcitos possíveis desta realização, do que a transmissão de uma

doutrina.

SOBRE OS AUTORES

Felicia

Knobloch -

Psicóloga com formação psicanalítica.

Professora da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. Mestranda em Psicologia Clínica da Pós - PUC-SP.

Maria Lucia Cacciola - E professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Sua dissertação de Mestrado versa sobre as relações entre o pensamento de Schopenhauer e a crítica da Razão de Kant. A tese de Doutoramento desenvolve a questão do dogmatismo tendo em vista

a filosofia de Schopenhauer. Publicou uma tradução do texto de Schopenhauer, intitulado "Crítica da filosofia kantiana'", e

artigos sobre Nietzsche e Schopenhauer. Scarlett Marto

E mestre em Filosofia pela Sorbonne e

doutora pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. E professora de Filosofia Moderna e Contem poränea nesse mesmo Departamento. Escreveu Nietzsche, das

Jorças cósmicas aos valores humanos (199%0) e Nietzsche (Col.

Encanto Radical, 1982)e organizou Nietzsche hoje? (1985), todos editados pela Brasiliense. Publicou, ainda, artigos em liVTOS e revistas especializadas, sendo os mais significativos: "Notas sobre a vida -

Reflexöes sobre este conceito, em

Nictzsche" (in ANAIS DA ANPOF, Vol. 1, n 1, 1986), "Fou-

OINCONSCIENTE: VÁRIAS LEITURAS

184

cault leitor de Nietzsche" (in Recordar Foucault, Brasiliensc.

1985). E "Por uma gencalogia da verdade" (in Revista Discur. so, Departamento de Filosofia da USP, n° 9, 1979).

Zeljko Loparic

E professor adjunto no Departamento de

Filosofia da UNICAMP, cx-coordenador do Centro de Lógica da mesma universidade e atual presidente da Sociedade Kant Brasilcira. Publicou artigos sobre Kant e Freud c é autor do livro Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filoso-

fia. Renato Mezan Formou-se em Filosofia na USP, onde obteve o mestrado e o doutorado igualmente em Filosofia. Pratica

a psicanálise em São Paulo. É professor da PUC-SP e membro do departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sa-

pientiae. Publicou, entre outros livros, Freuá, pensador da cul tura

(5 edigáão, Brasiliense, 1990); Psicandlise, judalsm0: res

sondincias (Escuta, 1987) eA Vingança da esfinge (Brasiliense, 2 edição, 1991). Ana Lia B. Aufranc

Psicóloga formada pela PUC-SP em

1976. Fez formação na 1 turma do Curso de Formação de Analistas da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica de

1979 a 1983. Professora da Faculdade de Psicologia da PUCSP de 1977 a 1983. Coordenadora de Seminários e Supervisora do Curso de Formação de Analistas da S.B.P.A. a partir de 1984. Autora dos Artigos: "Parto perda e resgate de um

símbolo" e"Excalibur" publicados pela JUNGUIANA Revista da S.B.PA. Membro Analista da S.B.P.A. a partir de 1983. Diretora Administrativa da S.B.P.A. nas gestões de 1984/85; 1986/87 e 1988/89. Atual Presidcnte da S.B.P.A. Maria Cristina Borja Gondim -

Psicóloga, com formagão psi-

canalítica pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Professora do curso de Psicologia da PUC-SP.

Elias Mallet da Rocha Barros - Psicanalista; Membro efetivo da Sociedade Britânica de Psicanálise e da Sociedade Brasi-

leira de Psicanálise dc S. Paulo.

SOBRE OS AUTOREs

185

Nelson Coelho Júnior

(PUC-SP)A

terapia

com

a

Mestre

dissertação O visível

filosofia

clínica. Ex-Professor

doutorado

e o

de da Faculdade de

Psicologia Clínica invisfvel em psico-

Merleau-Ponty penetrando

Atualmente alia o trabalho

tese de

em

a

prática

Psicologia da PUC-SP. de consultório à claboração de sua

Psicologia Clínica.

em

Luiz Tarlei de Aragão 47 anos. Social. Doutor pela Ecole des Hautes Etudes desAntropólogo Ciences Sociaux. Ex-Professor da Faculdade de Paris. Atualmente adjunto do Dept de Antropologia da Universidade de Prof. Brasília e Coor denador do núcleo de Estudos da Família e do Universidade de Brasília. Pesquisas: Gênero da Estado, da Relação Homem e Mulher na Soc. Brasileira; Religião Sociedades -

-

Complexas; Migração.

Contardo Calligaris Psicanalista. Foi membro da Escola Freudiana de Paris e é membro fundador da Associação Freudiana. Foi assistente e professor na Universidade de Ge -

nebra

e no

Departamento

de

Paris VIII até 1981. Publicou tasma e,

psicoses.

em

Psicanálise da Universidade de em 1983, Hipótese sobre o fan

1989, Introduçãoa uma

clínica

diferencial

das

vro

de

George

Politzer que exercia

predominante influência na França dos anos 50 O que resulta do

Simpósio sobreo

Inconsciente, da PUC, reúne trabalhos de

filósofos, psicanalistas, psicó-

logos e do antropólogo Luiz Tarlei de

Aragão e a problemática por eles examinada parece ter em comum necessidade de se explicitar o caráter específico do inconsciente freudiano. Isso não quer dizer, entretanto, que tal

hipótese

tenha

surgido

do

nada.

Freud, em outras palavras, não é res-

ponsável por uma geração espontâSofreu influências de Kant, Schopenhauer e de Nietzsche como nea.

ele próprio reconheceu em diversos de seus escritos. Mas se a psicanálise se apóia na literatura e na filosofia

(além, é claro, de se apoiar na biologia) para construir sua especificidade, passa, depois de Freud, a exercer influência sobre a filosofia, as ciências humanas

e a

biologia.

Além do mais, a propria psicanálise, depois de Freud, adquiriu crescent ecomplexidadeee apresenta especificidades internas nem sempre conci-

liáveis entre si. O Inconsciente

vai, assim,

sendo

abordado por aqueles que se interes

sam pelo que há de mais enigmático no homem e como, na sua especifici-

dade, cle não suporta qualquer ortodoxia, passa a ser elemento cada vez mais importante no trabalho dos que pensam

o ser

humano.