Imagens apesar de tudo
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-

GEORGES

DIDI-HUBERMAN

IMAGENS APESAR

DE TUDO

Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo

\

KKYM

I Lisboa,

2012

SUMÁRIO

I. IMAGENS APESAR DE TUDO

15

Quatro

pedaços

de película

arrancados

ao inferno

Para saber é preciso ima inar-se. Auschwitz

~~tr.a..imag-ens..ape.sar

A ost

de tu o, apesar dos riscos, apesar de sermos inca azes de ~ln.o

-

hoje.-O Sonderkommando

no seu tra a

o. Sobrevivência

..olhas-para-elas

e solicitação a resistir: emi-

tir sinais ao que está de fora. A imagem fotográfica surge na dobra do desaparecimento próximo da testemunha

e da irrepresentabilidade

imagem a esse real. Organização

quência: da câmara de- gás do crematório ~mTIr:"mjãrT1Vre,

aê peHcula,

da~'P~ia-;;

Contra todo e qualquer As fo

v, imagens das fossas de incineração.

esêõiia-ldb-nunrt\Il5õuepãsfãcfe~tífrica,

tos, os instrumentos

ch~ga

ao inima

inável e refutam-no.

Primeira gene-

a psique das vítimas, a sua língua, o seu ser, os seus res-

do seu desaparecimento A «razão na história»

e mesmo os arquivos, a memória desse

sempre refutada

por excepções

os arquivos da Shoah são feitos destas excepções. A aptidão particular e se transmitir

campos de concentração

de

-

a «So uçao final» como máquina de «desimaginação»

ralizada. Fazer desaparecer

para se reproduzir

S-;:

inimaginável

sto de 1944 dirigem-se

época do inimaginável:

desaparecimento.

uma

Primeira sec

pára-ser-€'iW:iaao «maislo-nge».

.-------33

arrancar

no bosque de Blrkenau, imagem de uma «remessa»

mulFiêfes despidas. Drõlo ~ãos

do testemunho:

da captação de imagens clandestinas.

singulares: da fotografia

apesar de tudo: o interdito absoluto de fotografar

coexiste com a actividade

de dois laboratórios

em Auschwitz. Segunda época do inimaginável:

Auschwitz impensável?

pensar os fundamentos

(Hannah

da nossa antropologia

vel? É preciso repensar os fundamentos

do testemunho

os

fotográficos É preciso re-

Arendt). Auschwitz

indizí-

(Primo Levi). Auschwitz ini-

-........

-

~ Ptestar à im~g~a-..IDe§l1la atenção .que se p..!!.sta à Ea~~r~~ testemunhas. O espaço estético do inimaginável desconhece a história nas suas singu-

----~.

nada sacrificaram

Como Rohert Ante~

ao inimaginável:

Maunce

o semelhante

Blanchot e Geore:es Bataille

e a espécie humana.

49

No próprio

olho da história

11. APESAR

Para recordar é preciso imaginar. Imagem e testemunho da mónada e complexidade

da montagem.

em Filip Müller: imediatismo

A urgência do presente

«fotográfico»

73

DA IMAGEM

Imagem-facto

ou imagem-fetiche

ea

construção das imagens nos Rolos de Auschwitz. A imagem como «instante de verdade»

A crítica do inimaginável

(Arendt) e «rnónada»

terreno político. As fotografias

que surge onde falha o pensamento

(Benjamin). Duplo regime

da imagem: verdade (as quatro fotografias no olho do ciclone) e obscuridade fluído, o valor lacunar do documento).

O espaço histórico do inimaginável

entre factos singulares

o puro simulacro. As fotografias de Agosto de 1944 tornadas

O inimaginável

como simples documentos

dradas), sem dar atenção à sua fenomenologia.

Elementos

como

desta fenomenologia:

«massa negra» e a sobre exposição, onde nada é visível, constituem

-fetiche, experiência

as marcas visuais da

gem: véu ou dilaceramento? tível ao especular.

de facto. «Era impossível. Sim. É preciso imaginar».

-dilaceramento. Semelhante,

dissemelhante,

imagens

a pensar e imagem já pensada.

não é o inirnaginável

da imagem-facto.

O fetiche: o todo, a suspensão,

o vestígio lacunar. O limiar do apesar de tudo entre o impossível

por direito e a necessidade

e teses universais,

como experiência

sobre as relações

como dogma. Que a imagem

mal vistas, mal ditas. «Há demasia-

das imagens da Shoah». Que repudiar as imagens não é criticá-Ias. Tese da imagem-

a

sua condição de existência e do seu próprio gesto. As imagens não dizem a verdade, mas são o fragmento,

todo o real para lhe opor a imagem toda, ou histori-

não é toda. Imagens dos campos de concentração:

(reenqua-

da imagem como

de Agosto de 1944, sintoma histórico e teórico. «Não

cizar o real para observar as imagens lacunares? Uma controvérsia

desconhece

«apresentáveis»

e o seu retorno polémico. O pensamento

há imagens da Shoah». Absolutizar

(o fumo, o

este duplo regime da imagem, pede-lhe muito ou muito pouco, entre pura exactidão e ícones do horror (retocadas) ou «informativas»

61

TODA

O «contacto»

fotográfico entre imagem e real.

o ecrã. Um debate filosófico sobre os poderes da ima-

O duplo regime da imagem. Que o imaginário

Entre o primado Susan Sontag

das imagens-véu

e a «epifania

e a necessidade

negativa»,

não é redil-

das imagens-

Ka-Tzetnik

e o «rapto»

fotográfico, Jorge Sernprún e o momento ético do olhar. «Assistir bruscamente

sobrevivente

à nossa

própria ausência». Para uma crítica vi ~

das imagens da história: restri

n- o (a~ologicamente).

da imagem humana enquanto tal: o «inseparável»

(Bataille) e o semelhante

tão. Quando o carrasco vota o humano ao dissemelhante basalto»), a vítima resiste conservando

direitos»). Conservar

mesmo as

e ao mesmo tempo verdade, da figura dantesca

e de visibilidade,

necessidade

do in-

lacunar: défi-

do gesto e do aparecimento.

grafias de Agosto de 1944 como coisas sobreviventes: a testemunha

119

Imagem-arquivo

ou imagem-aparência

em ques-

(ecrnanequins», «colunas de

ferno (Lasciate ogni speranza ...). O recurso à imagem como necessidade ce de informação

1-

a imagem apesar de tudo do mundo, de si, do

sonho e do humano em geral (Levi: «mantermo-nos imagens da arte: inexactidão,

. o ponto de vista (fo

As fotografias de Agosto de 1944 como drama

As foto-

não sobreviveu às

Il «leg~órica ~

das imagens não escapa a um momento crítico. Da ima~-

à imagem-p~ma:gem:af~iw:GÍaude

~genS

~m imaginação».

I"'\o""~.

guntou como podia suportar semelhante trabalho: «É claro que me podia atirar para cima dos fios eléctricos, como fizeram muitos dos meus camaradas, mas eu

RÜCKERL,Les Chambres àgaz secret d'État. l.-C. PRESSAC, Auschwitz: Technique and Operation ofthe Gas Chambers. l·-C. PRESSAC, Os Crematórios de Auschwitz (que na nota da p. 64 refere: «[ ..• ] não havia precedentes

de matar de uma só vez, com uma dose de gás, num espaço fechado, centenas de homens, e o

segredo que envolvia a operação atingia aindamais

a imaginação dos não participantes,

que tinham recebido a proibição formal de observarem o seu desenrolar»). gaz», p. 236-261. F. PIPER, «Gas Chambers and Crematoria»,

16

p. 157-182.

SS ou detidos,

U. D. ADAM, «Les chambres à

H. LANGBEIN,Hommes et femmes à Auschwitz, p. 202. F. MÜLLER, Trois ans dans une chambre à gaz d'Auschwitz, p. 104, 136, 158-159,169-173 e 167-180. H. LANGBEIN,Hommes et [emmes à Auschwitz, p. 191-202. H. LANGBEIN,Hommes et femmes à Auschwitz, p. 193.

17

GEORGES

DIDI-HUBERMAN

I. IMAGENS

quero viver [...]. Neste trabalho, quando não enlouquecemos no primeiro dia, habituamo-nos a ele»." Maneira de falar. Alguns dos que se julgavam «habituados» atiraram-se simplesmente para as chamas. tal sobre\rivêh:cia"ultrap;ssa qualquer Juízo moral (como escreveu Primo Levi)? e qualquer conflito trágico (como comentou Giorgio Agamben),'? qual poderá ser o significado, nestas circunstâncias, do verbo resistir? Revoltar-se? Era uma forma digna de se suicidar, de antecipar a eliminação prometida. No final de 1942, um primeiro projecto de rebelião falhou. Mais tarde, não sobreviveu nenhum dos quatrocentos e cinquenta homens envolvidos no grande motim de Outubro de 1944 - pelo menos o crematório IV foi incendiado e destruído -, dos quais «apenas» trezentos iam ser em breve gaseados.'Neste desespero fundamental, o «ímpeto para resistir» provavelmente apartou-se dos próprios seres, votados ao desaparecimento, para se fixar em sinais a emitir para lá das fronteiras do campo de concentração: «Como informar o mundo acerca das atrocidades que aqui se cometiam era a nossa maior preocupaçâo»,"? Assim, em Abril de 1944, Filipe Müller reuniu pacientemente alguns documentos - um plano dos crematórios IV e V, uma nota sobre o seu funcionamento, uma lista dos nazis em funções, bem como uma etiqueta de Zyklon B - e entregou-os a dois prisioneiros que tentavam evadir-se.P Tenta~iv.ê...9uetodos os

-

-". S;

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I

~r~~do.Son4e.~~?"'?!~n:~~n~o ~~~ia~,~~r.si~~~~io~~~ lS§.s? que, por vezes.eles _confiavam OS seus testemunhos ao segredo da terra: as , esca-;ações-efé~tuadas nos arr,e,dore,s dos,cre"matórios tle--Auschw,itZ"tFouxeram ~ -....... ~"~~"'" luz do dia - frequentemente 'irniito aepãis d~ Libertação - o;escritas éõmoven':-

tI

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8 9

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Ibid., p. 194-195. P. LEVI, Os que Sucumbem e os que se Salvam, p. 56. (« [... ] creio que ninguém está autorizado a julgá -Ios, não

APESAR

DE TUDO

tes, quase ilegíveis, destes escravos da morte.>' Eram uma espécie de Garrafas deitadas a terra, excepto que eles nem sempre tinham garrafas para preservar as suas mensagens. Na melhor das hipóteses, uma marmita em ferro esmaltado.v ~~--::==~~----._----,--.. ..... -.-_._--_ .,._-.------.. Estes escritos sãoatravessados por duas condicionantes complementares. Por um lado, pelo inelutável desaparecimento da própria testemunha: «Os SS repetem-nos frequentemente que não deixarão sobreviver uma só testemunha». "f Mastambém pelo 'reçelo de que o próprio testemunho desapareça, ainda que transmi,tãô;;-;x';;ior: nãó CQrrí..ele õ'risco -rr..de '...ser incompreensível, ,ia~ . ~: _ .~

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insensato, inimaginável?""-',-«O que se passava exactamenie - confidenciava Zalmen Lewental ao pedaço de papel prestes a ser enterrado -, nenhum ser humano é capaz de o representars.>" ,..,.

Foi na dobra destas duas impossibilidades - desaparecimento próximo da testemunha, irrepresentabilidade garantida do testemunho - que surgiu a imagem fotográfica. Um dia, no Verão de 1944, os membros do Sonderkommando sentira~ a imperiosa necessidade, que tão perigosa era para eles, de arrancarem ao seu trabalho infernal algumas fotografias susceptíveis de testemunharem a especifi~~,","'~'~'

'i!I' I Impossível por excesso porque a visão desta cadeia monstruosa, complexa, parecia ultrapassargualquer tentativa de regis!. •.•.-' ;e ,,'-"'-• ./ e..-....,'i.~ .." "';:;t2. ~ o.....,; . d,,,...: tJ 'Í?J2-:r'Z 15..(

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~

.*,.

por excelência

sem síntese -, justamente

absoluta

do inimaginável

segundo

Blanchot,

sempre tornado visivel»:" Como pensar ajudar-nos,

, ~

da negativida-

não tenha falado de

ou do invisível. Nos cam-

é ao invés «o invisível este paradoxo?

Georges

[que] foi para Bataille

pode

ele que não temeu interrogar

o silêncio gerido por Sartre, nas suas Réfiexions sur Ia question juive, sobre o problema das câmaras de gáS.48 Ora, Baprimeiramente

a «~m

-

sob a autoridade

jecto invisível e impensável

por excelência»;

""

V de Auschwitz, em Agosto de 1944, não bastam ' para refutar esta bela estética negativa? De resto, como é que um tal acto de imagem seria legislado e mesmo interpretado por um pensamento, por mais exacto que fosse, sobre o exercícioda arte? «Há um limite em que o exercício de uma arte, 46 sejª ela qual for, se torna um insulto à infelicidade», escreve Maurice Blanchót.

taille - pensador

absoluto absolutamente

";-I.l-

das câma-

câmara de gás, no crematório

Gérard Wajcman; é mesmo uma coisa «sem rasto visível e inimaginável»; o «obum «desastre

,,, por-

de toda e qualqueiTmagem

••

J ....

"-~~~~r:ntra

a «ausência

o es-

horas - ~!~~,i~. sonoras,~~~~),2eyalaYEs ~,~~ lugares flLIll~~s, {\ tudo isso composto segundo escolhas formais e um comprometimento extremo Clt,,' ,>, - •• ,._,"'.t pouco,~uito.

:t claro que as quatro

fotografias de Agosto de 1944 não dizem «toda a verdade» (é preciso ser muito ingénuo para esperar isso do que quer que seja, coisas, palavras ou imagens): são minúsculas amostras de uma realidade complexa, breves instantes de um contínuo que durou não menos do que cinco anos. Mas elas são para nós - para o nosso olhar de hoje - a própria verdade, isto é, um vestígio, um fragmento dessa verdade: o que resta, visualmente, de Auschwitz. As reflexões de Giorgio Agamben sobre o testemunho podem, a este nível, esclarecer o estatuto dessas fotografias: elas também têm lugar «no não-lugar da articulação»; a sua potência também coincide com a «impotência de dizer» e com um processo de «desubjectivaçâoo.elas também manifestam uma cisão fundamental onde a «parte essencial» não é senão lacuna.o Agamben escreve que «o que resta de Auschwitz» deve ser pensado como um limite: «[...] nem os mortos, nem os sobreviventes, nem os que sucumbem, nem os que se salvam, mas o que resta entre eles».22

'f.,

O pequeno resto de película, com os seus quatro fotogramas, é um limite deste género. Limiar extra-fino entre o impossível por direito - «ninguém pode imaginar o que se passou aqui»23 - e o possível, ou melhor, o necessário de facto: graças a estas imagens, nós dispomos apesar de tudo de uma representação que, doravante, se impõe como a representação por excelência, a representação necessária do que

APESAR

DE TUDO

foi um momento de Agosto de 1944 no crematório v de Auschwitz. Limiar visual votado ao duplo regime do testemunho, como podemos ler na obra de Zalmen Lewental, por exemplo, quando este diz «narrar a verdade [embora sabendo que] ainda não é toda a verdade. A verdade é bem mais trágica, ainda mais atroz». 24 Impossível, mas necessário, logo, possível apesar de tudo (isto é, lacunarmente). Para os judeus do gueto de Varsóvia à beira do extermínio, dar a pensar e a imaginar aquilo por que passavam, ter-lhes-ia parecido impossível: «Estamos para além das palavras, agora», escreve Abraham Lewin. E contudo - apesar de tudo - ele escreve. Escreve até que, à sua volta, «toda a gente escreve» porque, «despojados de tudo, só restam [aos judeus condenados] as palavrasx.s" De modo semelhante, Filip Müller também confidencia: A morte por gás durava entre dez a quinze minutos. O momento mais atroz era a abertura da câmara de gás, essa visão insustentável: as pessoas, comprimidas como basalto, blocos compactos de pedra. Como desabavam fora das câmaras de gás! Várias vezes assisti a isso. Era o mais difícil de tudo. A isso nunca nos habituávamos. Era impossível. Sim. É preciso imaginar [...).26

23

Simon inúmeras

Crebnik

(sobrevivente

expressões

de Chelmno),

desta impossibilidade,

citado

em C. LANZMANN, Shoah, p. 18. Cf. também,

entre

et le châtiment, p. 68-79. M. BLANCHOT, L'Écriture du désastre, p. 131. É. WIESEL, «Prefácio»

a B. MARK, Des

voix dans Ia nuit, p. IV. 20

I.-C. PRESSAC, Auschwitz: Technique and Operation ofthe GasChambers, p. 422.

24

Citado

em B. MARK, Des voix dans Ia nuit, p. 309.

21

G. AGAMBEN, Cequi reste d'Auschwitz; p. 12,40-48

25

Citado

em A. WIEVIORKA,

Déportation et génocide, p. 163-165.

22

Ibid., p. 216.

26

Citado

em C. LANZMANN,

Shoah, p. 139.

58

e 179-218.

as

R. ANTELME, L'Espece humaine, p. 9. J. AMÉRY, Par-delà le crime

59

GEORGES

DIDI-HUBERMAN

Insustentável e impossível, sim. Mas «é preciso imaginar», pede, contudo, Filip Míiller. Imaginar apesar de tudo, o que exige de nós uma difícil ética da imagem: nem o invisível por excelência (preguiça do esteta), nem o ícone do horror (preguiça do crente), nem o simples documento (preguiça do sábio). Uma simples imagem: inadequada mas necessária, inexacta mas verdadeira. Verdadeira de uma verdade paradoxal, evidentemente. ~ aqui o olho da _n~ hislória: a sua tenaz.yoc~ para tornar visível. Mas também

12

M. BLANCHOT,L'Entretien infini, p. 193-194.

63

I. IMAGENS

GEORGES DIDI-HUBERMAN

No olho do ciclone jaz também, os SS quiseram

destruir em Auschwitz

dependentemente assassinatos contexto,

portanto,

de tal acontecer

a questão do antropomorfismo.

O que

não era apenas a vida, mas também

a montante

- a própria forma do humano

o acto de resistir identificava-se

- in-

ou a jusante, antes ou depois dos

e, com ela, a sua imagem.

Num tal

com o de manter

consequentemente

vência. A palavra «inferno», fera: empregamo-Ia revele totalmente

espontaneamente inadequada,

rimentar mortes.

nal dos seus erros: entravam

sem arrastar

prussiana,

as socas, certamente

mas para nos mantermos

à disciplina

não em homenagem

a morrerx.P

vivos, para não começarmos

para falar de Auschwitz,

deslocada,

uma «ressurreição»

esta imagem apesar de tudo, mesmo reduzida à sua mais simples expressão «paledireitos,

faz ela própria parte desta es-

inexacta.

ferno» no sentido em que os seres que penetraram

ontológica»,

por exemplo, diria eu, ao facto de estar de pé: «Temos de caminhar

diga-se de passagem,

E, sobretudo,

inocentes,

Auschwitz é uma realidade Ora, a imagem

Auschwitz

anti-jurídica

do inferno,

não foi um «in-

mas sim a mais sórdida das

ali para sofrer o «julgamento»

e inocentes

dos. O inferno é uma ficção jurídica inventada

ainda que ela se

nele não eram supostos expe-

- mesmo que terrível-,

estes seres não estavam

eram torturados

Manter

a imagem

assim, de curiosidade. tentar memorizar permanecer

a imagem do mundo exterior e, para

apesar de tudo: manter

ao inferno uma actividade Exercer

o máximo

humano»,

a sua observação,

inventada

por mais inexacta

de coisas. «Saber e fazer saber é uma maneira

de

todas as suas dimensões

dos Rolos de Aus-

Todorov a propósito

a imagem de si, quer dizer, «salvaguardar

que o campo seja uma autêntica mento em que os SS aceitam

máquina

esse mínimo

Nesse momento, irrompem

o seu eu»

Manter, enfim, a imagem do sonho: ainda de «triturar

almasx=

mente por essa razão -, o seu ofício de terror pode ser suspenso

bras mal fechadas,

escreve

por um delírio político-racial. que seja, faz todavia parte da

vital que constitui

- ou precisaa partir do mo-

o tempo de sono

Primo Levi, «por detrás das pálpe-

inclusive

[... ] insuportável

directamente

nas evocações Lewental

de

falou deste «inferno»

as formas provenientes

da Divina Comédia= Num muro do Bloco

lula 8, um prisioneiro

ou nas citações

em

à vista»."? Gradowski não deixou de uti-

lizar, ao longo de todo o seu manuscrito,

11 de

mais ou menos Auschwitz,

na cé-

polaco à espera de ser fuzilado regravou - com as próprias

mãos, na sua própria língua - a célebre inscrição

da porta dantesca:

Lasciate ogni

speranza voi ch'entrater?

de espírito, de cultura, de sobrevi-

1.

13

P. LEVI, Se isto é um homem, p. 400

14

To TODOROV, Face à l'extrême, po1080

15

Cf B. BETTELHEIM,

Entre

outros,

cf F, NEUMANN,

Behemot, The Structure and Practice ofNational

«L'image

de l'enfer», po 151-1600 Ido, «Les techniques

tration»,

p. 2130 E. TRAVERSO, L'Histoire déchirée, p. 71-99 e 219-2230

Nomeadamente,

cf E. KOGON, L'État SS, po 49-5°0

de Ia science

sociale

Socialismo H. ARENDT,

etl'étude

des camps

de concen-

P, LEVI, Se isto é um homem, p.aç. Éo WIESEL, La Nuit,

p. 59 [Noite, po 42]0 C. DELBO,Auschwitz et aprés, lI. Une connaissance inutile, po 33-340 F, MÜLLER, Trois ans individuel

et comportement

p. 840 Mo POLLAK, L'Expérience concentrationnaire.

de masse

dans

Eo KOGON, L'État SSoLe systême des camps de concentration allemands, po 399-4000

17

P, LEVI, Se isto é um homem, po 740 Cf Jo CAYROL, «Les rêves concentrationnaires», um meio de salvaguarda,

les situations

extrê-

dans une chambre à gaz d'Auschwitz, po 25 e 163-2430 Mo BUBER-NEUMANN,

Essai sur le maintien de l'identité sociale.

16

tornavam-se

culturais,

fizeram apelo a esta imagem,

nos Rolos d'Auschwitz:

como de um «quadro

18

p. 520: «[000]os sonhos

E até «os que sucumbiram»

Dante que despontam

os testemunhos

falaram de algo que se lhes afigura-

apesar de tudo até a imagem da arte, como

que para arrancar ao inferno alguns resquícios

«Comportement

ela investe transversalmente

mais atentos

os sonhos com violência»P

Os detidos terão querido preservar

mes»,

concentracionário.>"

Quase todos os que se salvaram

va um inferno.'?

no sentido psíquico e social do terrno.P

dos prisioneiros.

ao fenómeno das vítimas.

ou

Tzvetan

tomar

uma espécie, ainda notas em segredo

escreve

chwitz.14 Manter, também,

de conhecimento,

fi-

e massacra-

pela crença religiosa, ao passo que

verdade de Auschwitz. Além de ter sido empregue pelos pensadores tal, arrancar

APESAR DE TUDO

uma espécie

de "refúgio"

20

Citado

em B. MARK, Des voix dans Ia nuit, p. 266-267

p. 520-5350 Cf ainda

21

Citado

em ibid., po 191-2400

real».

22

Uma reprodução

do mundo

Déportée à Ravensbrück, po

7-190 VoPOZNER, Descente aux enfers. Récits de déportés et de SS d'Auschwitz,

64

______________________________________________ ~a1tt~

deste graffiti

encontra-se

e 302-3040

em Jo P, CZARNEcKI,Last

Traces, p. 950

65

_

GEORGES

I. IMAGENS

DIDI-HUBERMAN

metáfora dantesca.> O que significa esta unanimidade perturbadora? Que o recurso à imagem é inadequado, lacunar, sempre imperfeito? Certamente. Cabe então redizer que Auschwitz é inimaginável? Certamente que não. Cabe até dizer o contrario: que Auschwitz não é senão imaginável, que somos constrangidos à imagem e que, para tal, devemos tentar criticá-Ia internamente, precisamente com o objectivo de nos desenvencilharmos desse constrangimento, dessa necessidade lacunar. Se se quer saber alguma coisa sobre o interior do campo, importa, num momento ou noutro, pagar o seu tributo ao poder das imagens. E tentar compreender a sua necessidade através precisamente dessa sua vocação para permanecerem imperfeitas.ê"

,Arrancar quatro imagens ao inferno do presente significava finalmente, nesse dia de Agosto de 1944, arrancar à destruição quatro resquícios de sobrevivên_cia. De sobrevivência, digo eu, embora não de uma sobrevivência bem sucedida. Pois ninguém, defronte ou atrás daquela máquina fotográfica - salvo, talvez, David Szmulewski e o SS - sobreviveu ao que as imagens testemunham. São portanto elas, as imagens, o que nos resta: são elas as sob~ntes. MiS' çfé que temPõnõsclregãni. élas? Do tempo d~ um claráo~~I~s capta;a~ alguns instantes,

Observemos de novo as quatro fotografias arrancadas ao inferno de Agosto de 1944. Não será que a primeira sequência é invadida por um défice de informação

P, LEVI, Se isto é um homem, P.127 (e, genericamente,

24

que se Salvam, p. 139. «O inferno de Dante tinha-se tornado aqui realidade» blinka). Em comparação,

quase todos ~sgestos humanos. Ora, verifica-se que, ilãS dú~~ências, os rostos estão inclinados para baixo, como que concentrados, para lá de uma qualquer expressão dramática, no trabalho da morte. Para baixo: porque a terra é o seu destino. Por um lado, os humanos desaparecerão em fumo - Todesfuge?' -, por outro lado, as suas cinzas serão trituradas, enterradas, engolidas. Ora, em todo o redor dos crematórios, é no meio dessas mesmas cinzas que os membros do Sonderkommando terão misturado, na medida do possível, todas as suas coi-

p_26, 97-111 e 121-127).P. LEVI, Os que Sucumbem eos (o comandante

lrmfried Eberl referindo-se

DE TUDO

(fig. 3, 4)? Sombra em todo o redor, cortina de árvores, fumo: a amplitude do massacre, o pormenor das instalações e o próprio trabalho do Sonderkommando revelam-se, portanto, muito pouco «documentados». Ao mesmo tempo, estamos diante destas imagens como diante da necessidade perturbadora de um gesto de sobrevivente (sobrevivente muito provisório, visto que será massacrado pelos SS algumas semanas mais tarde): é o auto-retrato trágico do «comando especial» que aí se nos oferece ao olhar. Observemos a segunda sequência (fig. 5, 6): não é ela invadida, mais ainda do que a primeira, pelo défice de visibilidade? Ao mesmo tempo, estamos diante dela como diante da necessidade perturbadora de um gesto de empatia, quer dizer, de um certo agir da semelhança: movimento do fotógrafo - e «estremecimento» da imagem - ao acompanhar o movimento das mulheres, urgência da fotografia ao acompanhar a urgência dos últimos instantes da vida.ê?

Neste sentido, o Inferno de Dante, essa jóia do imaginário ocidental, pertence também ao real de Auschwitz: rabiscado até nas paredes, incrustado no espírito de muitos. Ele impõe-se por todo o lado no testemunho de Primo Levi até significar a própria urgência e a vida que se mantém, como um anacronismo «tão humano, necessário e porém inesperados.ê" Ele impõe-se mesmo, simetricamente, sob a pena dos carrascos: quando, insones ou cansados pelo horror que organizavam, alguns responsáveis nazis se deixaram também eles levar pela

23

APESAR

a Tre-

o inferno de Dante parece-me uma comédia [.._].O Dr. Thile tinha razão esta

manhã, ao dizer-me que nos encontramos

no anus mundi.» (o doutor [ohann Paul Kremer). Citados em

L. POLIAKOV,Auschwitz, p. 34, e H. LANGBEIN,Hommes et femmes à Auschwitz, p. 330. 25

Cf. P. LEVI, Se isto é um homem, p. 85, 143-144e 174, em que se desenvolve uma reflexão deste género sobre o carácter vão e necessário dos «signos» em Auschwitz. Cf. especialmente

simples facto de Auschwitz ter existido já ninguém deveria falar.em providência; quela hora a lembrança das salvações bíblicas nas desventuras as alrnas.s [Tradução ligeiramente

26

p. 174: «Hoje penso que pelo

"Maintenant">»,

mas, sem dúvida, na-

(

-

C. MOUCHARD, «"lei"?

têm início com o motivo da

27

P. CELAN, «Fuga de morte», p. 15-19.

67

66

------------

cf. nomeadamente

p. 245-249. Com efeito, vários relatos concentracionários

urgência. Cf. P. LEVI, Se isto é um homem, p_8. R. ANTELME, l/Espêce humaine, p. 9.

extremas passou como um sopro portodas

modificada. N.T.]

Sobre a urgência e a rapidez na redacção de testemunhos,

~

,

P·29-53·

91

GEORGES

DIDI-HUBERMAN

ziram

«imagens

11. APESAR

à margem

amadoras»

modo, enfim, certos prisioneiros

de qualquer

conseguiram

quadro

oficialr=

de que

realizar - do seu próprio ponto de

pior. Um rapaz do gueto de Varsóvia, com os braços levantados, sos pesadelos

de criançasj='

hoje essa imagem

vista, mas por sua conta e risco - estas imagens apesar de tudo, de que as quatro

grupo de rock.ê+ Mas Élisabeth

fotografias

primeiro,

de Agosto de 1944 são, sem qualquer

Se a parte consagrada

ao período

que as outras, isso deve-se, gens ter conhecido, precedentes

to já ter reflectido

em primeiro

com a abertura

e, em segundo

dúvida, o exemplo-limite+?

da Libertação

parecia

mais completa

lugar, ao facto de a produção

dos campos de concentração,

lugar, ao facto de a historiografia

sobre o papel essencial

das imagens.

um acme sem

uma nova época da prova visual, quando os estados-maiores testemunhos

rem os responsáveis

do processo

de Nuremberga.ê?

época de provação visual que então começou: que os governos

aliados

tinham

decidido

partir

fotográficas

desse momento,

as imagens

da memória

Ora, de toda esta memória mos -, Élisabeth

Pagnoux

certo ponto, podemos

do

intensamente.s-

A

reproduziram tornaram-se,

- e cinematográfica,

e Gérad Wajcman

compreendê-los:

não quiseram

para o melhor

e

e Pagnoux

ques Mandelbaum - imagens

ver senão o pior. Até

tratando-se

clandestines

50

C. DELANGE, «L'image photographique der Vernichtung.

de RudolfCisar

à Dachau» e «Photographies

das fotografias

ex-

a Shoah. É isso uma foi retomado

por [ac-

«A Shoah e essas ima- e perturbantes

de antemão:

«Todas as

Mais radicais, Wajcman

e Pagnoux

falsificadoras.

«não há imagem da Shoah». Faltam imagens

dão a entender

que, já que

ao seu objecto, elas são necessaÉ justamente

por essa razão que

porque as imagens

mentem.

57

o

de larésistance

Curiosamente,

a terceira parte da exposição, intitulada «o tempo da memória (1945-1999)>>,manifestava o sociais da fotografia dos campos de concentração, consagrando-se

a uma

por M. B. SERVIN,«Au sujet

de l'exposition Mémoire des camps», p. 340-342, e por C. BARON,«À propos d'une exposition (suite)», p. 342. Talvez tivesse sido suficiente expor as colagens de Wladyslaw Strzeminski ou o Atlas de Gerhard Richter,

p. 172-173. Cf. C. BRINK, Ikonen

Õffentlicher Gebrauch von Fotografien aus nationalsozialistischen

de/a Libération: archives dufutur,

C. CHÉROUX, «L"'épiphanie négative": production, diffusion et réception des photographies tion des camps», p. 103-127. C. CHÉROUX, «1945: les seuils de l'horreur»,

moire culturelle», p. 179-200. Para um estudo completo do papel da imagem fotográfica na memória alemã da Shoah, cf. H. KNOCH,Die Tat ais Bild. Fotografien des Holocaust in der deutschen Erinnerungskultur.

Konzentrationslagern

p. 211-266, onde também está traduzido o artigo de L. DOUGLAS,«Le film com me térnoin», p. 238-255.

53

Cf. nomeadamente

54

Cf. P. MESNARD, Consciences de Ia Shoah. Critique des discours et des représentations, p. 35. Refiro-me a

de Ia libéra-

Une histoire.à reconstruire»,

p.101-105. M.-A.

A. BERGALA,Nul mieux que Godard, p. 202-203. G. WALTER,LaRéparation.

uma campanha publicitária, que decorreu no metro parisiense em Janeiro de 1997, destinada a promover

p. 34-39. S. CALLEGARI, M.

MATARD-BONUCCI,«Lapédagogie de l'horreur», p. 61-73. C. BRINK, Ikonen der Vernichtung, p. 23-99. S. LINDEPERG,Clio de 5 à 7, p. 67-111 e 155-209.

92

que

brevemente referidos no artigo de A. GISINGER,«La photographie: de Ia mémoire communicative à Ia rné-

dans le proces de Nurernberg»,

GUITTARD e C. RICHIEZ, «Le document photographique:

da exposi-

desse crime, se não são falsas, são pelo menos

da Shoah são inapropriadas

a Georges Angéli, in C. Chéroux (di r.), Mé-

nach 1945, p.101-142. S. LINDEPERG,Clio de 5 à 7. Les actualitésfilmées 51

tal: nenhuma

exploração estética mais contestável. Esta parte foi criticada, nomeadamente

polonaise à Auschwitz», p. 84-91. Veja-se ainda a entrevista moire des camps, p. 78-83.

ou a inconveniência

toda a concepção

ao seu objecto,

inapropriadaso.w

C. CHÉROUX, «Pratiques arnateurs», p. 74-77. C. CHÉROUX, «Photographies

pois atravessa

todas as imagens

falsas e até mesmo

tudo:

para atrair o público que não

em Mémoire des camps, ele responde

reunidas

um

deste evento.ê"

têm da imagem enquanto

impasse sobre os prolongamentos

49

confundem

aos organizadores

num artigo com um título eloquente:

imagens conhecidas,

52

48

jornalístico

é mais fundamental,

postas em Mémoire des camps é adequada

riamente

já aqui voltare-

o mainstream consagra

o pior domina,

existiu senão no tratamento

publicitária

habitava os nos-

gens que nos fazem falta». Àquele que lhe oporia as numerosas

do horror»

e que as revistas

dos campos de concentraçâo.e-

fotográfica

ção Mémoire des camps uma manobra

Wajcman

do «scoop»

prova de que «não há imagem da Shoah»? Este raciocínio

foi uma nova

a época da «pedagogia

filmadas,

aliados

a fim de confundi-

Mas também

pôr em prática

mundo inteiro, tal como as imagens para o pior, parte integrante

de guerra

contra a mentira

TODA

para publicitar

e Gérard Wajcman

[... ] sobre a Shoah», atribuindo

A outra confusão

Em 1945 começa verda-

acumulam

dos crimes

de ima-

quando se revoltam

de uma «revelação

sobre este momen-

deiramente

fotográficos

do

Pagnoux

é utilizada

DA IMAGEM

a digressão do grupo de rock francês Trust. 55

G. WA]CMAN,«De Ia croyance photographique»,

p. 64-65. É. PAGNOUX,«Reporter photographe

à Aus-

chwitz», p. 84-85 (onde as fórmulas citadas são extraídas, não do próprio catálogo, mas da revista Télérama). 56

J. MANDELBAUM,«La Shoah et ces images qui nous rnanquent»,

P.17.

93

GEORGES

DIDI·HUBERMAN

Confusão

11. APESAR

teórica: !::bate-se

um valor de existênc~a e ym estatuto o~ológico

sobre um valor de uso. Estatuto

ontológico?-Sim,

d-;S;>.Asrm;.gens"""";ião são «toda a verdade» fórmula

tradicional

-, elas são, portanto,

que é incontestável, ção caracteriza

de incerteza

gnoseológica.

signos da linguagem

que não autoriza nada

Não será que a inadequa-

para ver e descrever

não são tão «inadequados»,

ção de um argumento

ramo de fiores»? Podemos

prestes

o mundo?

Os

ainda que de forma diferente,

quanto as imagens? Não sabemos nós que a «rosa», enquanto pre «a ausência de qualquer

palavra, será sem-

então conceber

a deitar para o lixo todas as palavras

a aberrae todas as

imagens com o pretexto de que elas não são todas, de que elas não dizem «toda a verdade».

A este propósito,

Wajcman

a maldizer

uma classe inteira de objectos

de que eles não dizem tudo.

surda de quem quer sacrificar a linguagem nunca impediram

Ora, as miríades

bulimia de imagens»

de mentiras

proferidas

em permanência Passa-se o

Mas nem todas, nem acerca de

Gérard Wajcman

quase sufocado,

falsas: desde os anos cinquenta

observa que «há hoje uma

(e que eu próprio evocava ao falar de um

de mercadoria

imaginária»). É verdade que

o terrível, hoje - a guerra, os massacres de civis, os amontoados de cadáveres -, se tornou ele próprio uma mercadoria, e isso por interpostas imagens. Quando

- da Shoah.

que Roland Barthes

se tornavam

«falsa[s],

[imobilizadas

entre o facto literal e o facto ampliadox.v?

dos média analisaram são tão frequente

consagrada

no mundo

consistisse

Ora, da cobertura jornalística

Lanzmann,

dos campos de concentração,

jornalístico:

«covering atrocity», como se

ao culto mediático,

da constituição

só atingiu

sublinhou

justamente

em pura linguagem

o testemunho

audiovisual

e em objecto

em Shoah, conferiu toda a sua dignidade

O que fazer perante olhar mais exigente,

---

60

62

em conjunto, fazem a felicidade dos negacionistas:

mentário deleitado do artigo de [acques Mandelbaum 58

Robert Faurisson fez um co-

94

p.S8.

- a que Claude

- conhece hoje a sua época

--

isto? Podemos

duvidar das imagens, igQ..é, apelar a um não se deixar

R. BARTHES,Mitologias, p. 166·168. L. GERVEREAU, Les Images qui mentent. Histoire du visuel au xx« siêcle (nomeadamente,

P: 203-219).

p. 124-131).

B. ZELINER, Remembering to Forget. Holocaust Memory Through the Camera's Eye, p. 86-140. Cf. igualofthe Holocaust, A. LISS, Trespassing

O que ilustra bem a obra de Y. DOOSRY(dir.), Representations of Auschwitz. 50 Years ofPhotographs, Paintings, and Graphics.

64

G. WAJCMAN,«De Ia croyance photographique»,

de mas-

Through Shadows. Memory, Photography, and the Holocaust. 63

não se pode dizer senão com a condição de não levar a verdade até ao fim, de não fazer mais do que meio-dizê-Ia.» 59

d[a

do genocídio,

a um olhar crítico, que pro~,.l2.b~tu9Q,

mente G. H. HARTMAN, The Longest Shadow. In the Aftermath

no site Aaargh, publicado a 25 de Janeiro de 2001.

Cf. J. LACAN,Le Séminaire, xx, p. 85: «[...] toda a verdade é aquilo mesmo que não se pode dizer. É o que

massiva

de consumo

dos sobreviventes

não vai

que o desenvolvi-

o seu pico «depois da difusão

L. GERVEREAU,Un siêcle de manipulations par l'image (nomeadamente, Estes dois argumentos,

legítima de

de industrialização.v"

61

57

utilizava

tanto em ocultá-Ia quanto em descrevê-la.s"

Holocausto, isto é, depois da espectacularização

da sua transformação sas».64 Mesmo

Mais tarde, os sociólogos

à produção abusiva dos ícones sociais, frequentemente

mento do negacionismo série televisiva]

de

num] estado in-

formas de manipulação, de que as imagens

as inúmeras

«cobrir a atrocidade» uma iconografia

nas

objecto, com o intuito de induzir esta ou aquela crença.v- Bar-

bie Zelizer, na sua obra sobre a fotografia a expressão

criticava

esse modo de «quase sempre superconstruir o horror»,

«fotografias-choque»

forma que essas imagens

e de mentiras.P? ele enuncia apenas uma triste banalidade

com a qual todos nós nos confrontamos repleto,

na posição ab-

no seu todo assim que uma única men-

memo com as imagens: sim, as imagens mentem.

«mundo

colocam-se

que a palavra fosse aquilo que nos é mais precioso.

tudo e nem o tempo todo. Quando

Imagens

a

- de imagens todas - e deplora a plenos pulmões

senão um passo.s" Pierre Vidal-Naquet

Quanto ao valor de uso, os nossos dois polemistas tira seja pronunciada.

ausência de imagens verdadeiras

termédio

TODA

escreve que «não há imagens da Shoah», ele deplora silenciosamente

que haj a demasiadas imagens falsas - imagens não-todas

deveria ter relido Lacan - o famoso «meio-

-dizer»58 - antes de se crer autorizado com o pretexto

Wajcman

ao seu objecto. Eis o

é tão grande

tudo aquilo que utilizamos

são «inapropria-

- a adaequatio rei et intellectus da

«inadequadas»

mas cuja generalidade

mais do que um princípio

as imagens

DA IMAGEM

P. VIDAL-NAQ.UET,Les Assassins de Ia mémoire. "Un Eichmann de papier" et autres essais sur le révisionnisme, P.133.

95

J. (]v

11. APESAR DA IMAGEM

GEORGES DIDI-HUBERMAN

Será possível negligenciar, tendo em conta a vasta movimentação

invadir pela ~~9 (efe!~Eclal». Tal foi a posição defendida, justamente, por Ciém;nt Chéroux e por Ilsen About.s" Ora, qualquer crítica consequente deseja manter a existência do seu objecto. Só criticamos aquilo por que nos interessamos: criticar nunca é rejeitar, rejeitar nunca é criticar. Efectivamente, Gérard Wajcman dedica-se a repudiar as imagens - de forma a não duvidar de que, de qualquer maneira, elas são «falsas». Aliás, ele não faz mais aqui do que seguir um outro mainstream: o cepticismo radical do discurso pós-moderno em relação à história (já lá voltarei) e à imagem, ainda que fotográfica.v? Houve um tempo em que sem dúvida se abusou do critério de «indicialidade» e do «ça-a-été» barthesiano: de cada vez que se olhava para uma fotografia falava-se de ontologia, sem referir, eventualmente, os procedimentos formais específicos a este meio. Mas optar pelo ponto de vista diametralmente oposto equivale a trocar o tudo pelo nada, a perder de vista o próprio potencial fotográfico e o ponto - problemático, claro está - onde a imagem toca no real. Longe deste tipo de investigação, Gérard Wajcman contenta-se com proferir as suas longas tiradas iconoclastas nas quais tudo se mistura para ser rejeitado: fotografias de arquivos com vulga..r.i:dadeshollywodianas, ciência histórica co;«ideal telev~o impregn~~um certo espírito do~ti~o»:-

------

-----~

de mundial do sucesso público e o reconhecimento

de Benigni repousam sobre um sentimento comum, potente, irreprimível de que poVida éBela e levar connosco os nossos filhos porque faremos uma boa acção e divertir-nos-emos ao mesmo tempo [?] [... ] A crença de que todo o visível é virtualmente visível [sic], de que podemos e devemos tudo mostrar e tudo ver [...] é um credo da nossa época (um credo que é uma resposta ao fantasma da ciência - à ideia de um real inteiramente penetrável -, mas também a um certo espírito do cristianismo. Estas duas polaridades [sic], em vez de se repudiarem uma à outra, misturam-se no ideal televisivo - a televisão, no fundo, é o lugar da conjunção da paixão cristã pela imagem e da crença científica numa transparência real do mundo por via da técnicaj.v"

("

.

que seja uma estratégia essencial para garantir uma certa adesão pública, o

[...] imagens, qual exutório [...], de discreta consolação e de invisível ostensório para o amor das imagens. [...]



Cf. J. WALTER, «Les archives de l'histoire audiovisuelle

des survivants de Ia Shoah. Entre institution

Amálgamas mais do que argumentos: em menos de três páginas, uma questão de conhecimento (analisar quatro fotografias realizadas pela resistência judia de Auschwitz) foi remetida para uma questão de exposição (como se o trabalho de Clément Chéroux se aparentasse de algum modo a um salão de fotografias), esta, por sua vez, remetida para uma questão de divertimento (ca amplitude mundial do sucesso público» dos filmes de Spielberg e de Benigni), tudo isso remetido, por fim, para uma questão de embrutecimento (ca televisão»). O gosto pela polémica faz com que Wajcman se esqueça de que, quando falamos de imagens fotográficas realizadas por membros de um Sonderkommando votado à morte, e de imagens cinematográficas realizadas pelos membros da equipa de Spielberg ou de Benigni, não estamos a falar das mesmas imagens",~magem ~ é todad! ... or conseguinte, a imagem não é a mesma IZ2rtoda 3-P-~: é o que Wajcman quer ignorar ãqüãlcfuel'-f>reçõ,ão sontar com um «consenso» acerca da imagem que teria invariavelmente por únicb valor - isto é, por único defeito

et

industrie, une mémoire mosaíque en devenir», p. 187-200. Para uma reflexão de longo alento sobre este problema, cf. o periódico Cahier international-

- a mentira.

Études sur le témoignage audiovisuel des victimes des crimes

I .:

et génocides nazis. 66

I. ABOUTe C. CHÉROUX, «L'histoire par Ia photographie»,

67

Posição recentemente

oficial dos filmes de Spielberg e

demos e devemos representar a Shoah [...], de que podemos ir ver sem remorsos A

que a exposição Images des camps [sic] parece suscitar. Dar um lugar e um pretexto a

»5

de imagens

dos campos de concentração que se intensificou nos últimos tempos, que a amplitu-

tGostamos das imagens [...]. Uma paixão humana devoradora anima a nossa época. ,11 .Temo

TODA

}

p. 9-33.

r(}

defendida por Y. MICHAUD, «Critique de Ia crédulité. La logique de Ia relation ent

tre l'image et Ia réalité», p. 111-125.

68

G. WA)CMAN, «De Ia croyance photographique»,

.u

p. 58-60.

'11

'-I~'

~~I(I

96

---

'\1.., tv~';

-}v ",1.

r

~1~ 97

s

-

GEORGES

11. APESAR

DIDI-HUBERMAN

Daí advém o tema do fetichismo generalizado, esse poder perverso que as imagens tê~bre as no~as~nsciências e os nossos inconscientes. Élisabeth Pagno~ constrói o tema fazendo um colar apotropaico com as palavras «perversidade», «ficção» - onde a palavra «fetiche» encontra, como sabemos, a sua etimologia -, «voyeurismo» e «gozo do horror e.v? «A fotografia jamais se substituirá ao olhar», parece descobrir Pagnoux."? Esta banalidade é evocada para nos proibir de olhar para as fotografias de Agosto de 1944. Olhá-Ias seria uma ficção (' Que conclusão tirar então desse pretenso cogito, senão a de que a sua certeza hiperbólica se funda no cheque em branco de um «Sou, logo destruo»: «Sou a imagem toda da Shoah, logo posso destruir todas as (outras) imagens da Shoah»? Eis o que se assemelha menos a um cogito do que à paixão especular de um homem pelo seu próprio trabalho. É significativo que o filme-cavilha imaginado por Lanzmann para fundar a autoridade do seu próprio trabalho - que não precisava de nada desse género - se assemelhe a algo como a uma ponte abstracta, a um fantasma estendido, precisamente, entre as duas sequências fotográficas de Agosto de 1944: quer dizer, entre as imagens do «antes» (as mulheres conduzidas à câmara de gás) e as imagens do «depois» (as fossas de incineração). Lanzmann ilude-se assim ao especular sobre um documento que não existe, com fins bastante obscuros que o levam a não reflectir sobre os documentos que, de facto, existem. Ilude-se, sobretudo, ao enraizar todo o seu discurso - não o seu filme, elaborado desde 1985, mas a sua certeza dogmática reivindicada dez ou quinze

G. WA]CMAN,L'Objet du siêcle, p. 19 e 63. G. WA]CMAN,«De Ia croyance photographíque»,

3.

J.-J-

DELFOUR, «La pellicule maudite. Sur Ia figuration du réel de Ia Shoah: le débat entre Semprún et

Lanzmann»,

128

p. 70.

p. 14-15-

TODA

anos mais tarde - numa incompreensão obtusa do que são um arquivo, um teste-

\

munho ou um acto de imaginação.

Michel de Certeau escreveu que, «em história, tudo começa com o gesto de pôr de part;, de coligir, de transformar assim em "documentos" cer.tQ~cts§ distribuídos de outra forma. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo facto de recopiar, transcrever ou fotõgrafar esses objectos, mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatutos.ê" S6 um metafísico quereria ignorar essa construção do arquivo e insistiria ainda na ideia de que, «nele, a origem fala por si própriax.>" Só um metafísico, tendo aceitado essa construção, deduziria que o arquivo se vê assim desqualificado. Se é hoje necessário «reelaborar um conceito de arquivo», nos termos da proposta de Jacques_Derrida, tal acontece, sem dúvida, porque a história nos obrigou a um confronto penoso com os «arquivos do mal», aos quais as fotografias reunidas em Mémoire des camps davam uma visibilidade particularmente incómoda. Mas também, e simetricamente, porque Freud - a quem associarei, no plano antropológico, Aby Warburg - «tornou possível pensar um arquivo hipomnésico» ou inconsciente.V Mas o próprio Freud não deixou de se debater com os diferentes modelos teóricos que o arquivo podia oferecer: como conciliar a destruição dos vestígios com a memória indestrutível da destruição (problema inerente, como se sabe, a todo o pensamento da Shoah)? Como interpretar, ou mesmo traduzir, o carácter fatalmente «idiomático», quase intransmissível, do I arquivo? Como pensar a imanência do suporte técnico e da mensagem arquivada, à qual se esquiva toda a metafísica do sentido «puro»>" (compreende-se então a razão pela qual Wajcman visa tão directamente o meio fotográfico em si mesmo, como que para preservar a pureza do acontecimento, da origem)?

I

35 33

DA IMAGEM

M_ De CERTEAU, L'Écriture de l'histoire, p. 84.

36

J. DERRIDA, Mal

37

Ibid., P.143.

38

Ibid., p. 26-27 e 141-143.

d'archive. Une impression freudienne, p. 144·

129

GEORGES

11. APESAR

DIDI-HUBERMAN

Certamente, «nada é hoje menos seguro ou menos claro do que a noção de arquivosv" O que é mais uma razão para nos aproximarmos e o observarmos de perto, concretamente, em vez de qualificar simplesmente como «vacuidade tecnicizante» a minúcia das tentativas de reconstituição documental. Na sua magnífica fenomenologia do arquivo, Arlette Farge evoca a desmesura dos acertadamente chamados aundos» de arquivo, a sua «difícil materialidade», a sua natureza essencialmente lacunar - «o arquivo não é um stock de que se retirariam coisas por prazer; ele é constantemente uma falta» - e até, por vezes, «a impotência de não saber o que fazer delex."? - Basta ~-ter-se confrontado pelo--I menos uma vez com tais «fundos» documenf tais para ter a experiência concreta de que o arquivo não dá à memória esse sentido cristalizado, essa imagem fixa que nele vislumbra Claude Lanzmann. Ele é sempre - incansavelmente - uma «história em construção de que o resultado ""---'... nunca é inteiramente abarcável»;? E porquê? Porquê cada descoberta surge nele como um brecha na história concebida, uma singularidade provisoriamente inqualificável que o investigador vai tentar remendar no tecido de tudo aquilo que já sabe, para produzir, se possível, uma história repensada do acontecimento em questão. «O arquivo quebra as imagens preconcebidas», escreve com razão Arlette Farge (~s~á que também as quatro imagens de Birkenau quebram, à sua maneira, a imagem preconcebida, «industrial» ou abstracta, da organização criminal nazi?).42 Por um lado, o arquivo desmembra a compreensão histórica em virtude do seu aspecto de «fragmento» ou de «vestígio bruto de vidas que de modo nenhum exigiam ser assim contadas». Por outro lado, «abre-se brutalmente a um mundo desconhecido», liberta um «efeito de real» absolutamente imprevisível que nos fornece o «esboço vivo» da interpretação a reconstruir.v'

-

--

-

39

Ibid., p. 141-

40

A. FARGE,Le Goüt de l'archive, p.ao, 19, 70 e 97.

41

Ibid., p. 135.

42

À ideia comum do crime nazi perpetrado

como um «puro produto industrial:

(G. WAjCMAN, L'Objet du

o que também se pode dizer a respeito das fossas de incineração visí-

veis nas fotografias de Agosto de 1944. Cf. P. VIDAL-NAQUET,«Le défi de Ia Shoah à I'histoire», p. 232.

130

TODA

Mas nem por isso o arquivo é o «reflexo» puro e simples do acontecimento, nem a sua pura e simples «prova». Pois ele deve ser sempre elaborado mediante recortes incessantes, mediante uma montagem cruzada com outros arquivos. Não se deve nem sobrevalorizar o carácter «imediato» do arquivo, nem subvalorizá-lo como um mero acidente do conhecimento histórico. O arquivo exige a sua permanente reconstrução, mas será sempre a «testemunha» de algo, como diz Arlette Farge, insistindo, em particular, no seu aspecto de «recordação sonora» - Aby Warburg falara, logo no início do século xx, do «timbre dessas vozes inaudíveis» (den unhõrbaren Stimmen wieder Klangfarbe) que o arquivo das ricordanze florentinas fazia despontar nele.v' Não será de espantar, nestas condições, que o cinema sonoro - o arquivo fílmico de um processo, por exemplo - possa desempenhar um papel capital na compreensão histórica profunda do próprio «grão» ou do «fraseado» do acontecimento: Robert Badinter- Tenho uma pergunta para lhe fazer. Quanto observa as gravações que, necessariamente, são muito limitadas, dado que representam apenas cinco minutos de um processo muito longo, que incluiu inevitavelmente momentos mais animados do que outros, tem o sentimento de estar próxima do clima de um processo judicial? Annete Wieviorka - Claro que sim. [...] A imagem permite-nos aceder à dimensão teatral do processo, à tonalidade das vozes. Por exemplo, ouvi: o advogado de Papon é completamente distinto de ler o que ele escreve. Há um certo número de elementos que são inestimáveis na imagem e que o documento escrito não pode restituir.r"

Neste aspecto, a colecção de testemunhos reunida em Shoah forma de facto um arquivo, mesmo se esta «forma» nos é dada como uma obra no sentido pleno da palavra. Aliás, foi assim que os historiadores desejaram compreender o filme: «esse filme em que um único documento nos é apresentado», como escreve Pier-

43

A. FARGE,Le Goút de l'archive, p.11-12, 45 e 55.

44

lbid., p. 9 e 77. A. WARBURG,«L'art du portrait et Ia bourgeoisie florentine. Domenico Ghirlandaio à San-

45

R. BADINTERet A. WIEVIORKA, «[ustice, image, mérnoire», p. 101- Cf. igualmente A. FARGE, «Écriture

siêcle, p. 226), Pierre Vidal-Naquet opunha a observação segundo a qual «as câmaras de gás relevam de uma técnica bastante rudimentar»,

DA IMAGEM

ta Trinita. Les portraits de Laurent de Médicis et de son entourage», historique, écriture cinématographique»,

p. 106.

p. 111-125.

131

GEORGES

11. APESAR

DIDI-HUBERMAN

re Vidal-Naquet; esse filme que consegue «criar a [sua] própria base defontes», como escreveu, por seu turno, Raul Hilberg+" Shoah é um grande filme documental: seria por isso absurdo opor no seu seio o «monumento» e o «documento» (além de que se pode imaginar o benefício que os historiadores, presentes ou futuros, poderão tirar desse imenso «arquivo da palavra» que constituem as suas cerca de trezentas e cinquenta horas de fita). Quer se trate de um arquivo de imagens ou de.palavras, este não pode ser reduzido a essa «fabricação», a essa aparênci.!Lrque Claude Lanzmann, nos seus textos polérnicos, reconhece nele. Ao repudiar a imagem de arquivo - não só a priori, como material do seu filme em particular, mas sobretudo a posteriori, como material de toda e qualquer pesquisa sobre a verdade histórica da Shoah em geral -, o cineasta inscreve-se, mais coisa menos coisa, numa corrente de pensamento que radicalizou de modo excessivo as perspectivas críticas inauguradas, no discurso da história, por Michel Foucault ou Michel de Certean. Graças ..........• -----a estes, a certeza inicial do historiador positivista perdeu, por assim dizer, a sua inocência: eles tinham mostrado como o arquivo não era de modo nenhum o reflexo imediato do real, mas uma escrita provida de sintaxe (pensemos, considerando as fotografias de Auschwitz, nas limitações do enquadramento ou da orientação) e de ideologia (as fotografias não são o «puro reflexo» do real de Auschwitz em geral, mas o seu traço simultaneamente pontual, material e intencional: um acto de resistência contra o próprio real que, segundo o seu ponto de vista e num momento preciso, um membro do Sonderkommando regista parcialmente). Também era necessário compreender - na esteira de Warburg, Marc Bloch e Walter Benjamin - que a fonte nunca é um «puro» ponto originário, mas um tempo já ~str:tificado, complexo (o que encontra uma manifestação exemplar na natureza sequencial das quatro imagens de Auschwitz, a que acresce o facto de elas próprias fazerem parte de uma série mais vasta de testemunhos deixados pelos membros do Sonderkommando). Era preciso, enfim, compreender que a história se constrói em torno de lacunas que perpetuamente se questionam, sem - -

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TODA

nunca serem totalmente preenchidas (como a «massa negra» das fotografias, c~ a dificuldade com que nos confrontamos em reconstituir o tempo do que está entre as quatro imagens). Seja como for, surgiu uma dúvida salutar quanto às relações do «real» histórico com a «escrita» que faz a história. Mas será por i~so n~c~ss~tirar «todo o real» para fora do arquivo? Certamente que não. A firmeza de um Pierre Vidal-Naquet, nesse ponto, só se compara com o seu comprometimento na luta contra os «assassinos da memória»: pois o historiador não escapa à responsabilidade de deyer.distinguir um ar..9~ivoda sua falsifiêação çm da sua «fabricação» ficcional."? Que uma dúvida idêntica vá ao encontro do décor (da ficção hollywoodiana) e do lugar (das quatro fotografias de Auschwitz ou do suposto «filme maldito») é propriamente inaceitável para qualquer pensamento - mesmo que «estético» - da história. Não só este debate historiográfico não está encerrado, como se foca habitualmente na questão extrema - o que não quer dizer «absoluta» - da Shoah. Não é por acaso que o contexto de um colóquio sobre os limites da representação fez com que Carlo Ginzburg se empenhasse, há alguns anos, num apuramento veemente e salutar do «cepticismo radical» formulado por Hayden White ou, de um modo diferente, por [ean-François Lyotard+" Entre os excessos do positivismo e os excessos do cepticismo, é necessário, reclama Ginzburg, reaprender constantemente a «ler os testemunhos», a não temer a experiência das «tensões entre narração e documentação», a não ver nas fontes «nem janelas abertas, como crêem os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como defendem os cépticos»."? Ora, a balança dialéctica entre esses dois erros situa-se justamente, segundo Ginzburg, numa experiência da provas? Façam os nossos polemistas o favor de

-----

47

P. VIDAL-NAQUET, «Lettre»,

p. 71-74. P. VIDAL-NAQUET,«Sur une interprétation

du grand massacre:

Amo Mayer et Ia "Solution finale?», p. 262-263, em que o autor defende a «arqueologia» Pressac contra a dúvida generalizada 48

de Jean-Claude

de Amo Mayer sobre as «fontes» da Shoah.

C. GINZBURG,«[ust One Witness», p. 82-96. Cf., no mesmo volume, D. LACAPRA,«Representing the Holocaust: Reflections on the Historians' Debate», p. 108-127. O problema é igualmente abordado por Y. THANASSEKOS,«De I"'histoire-probleme"

à Ia problérnatisation

de Ia mérnoire», p. 5-26. P. RiC», p. 183.

cinzento e nublado). Uma série de panorâmicas

muito lentas partem sempre de um elemento "exterior" e terminam com um elemento "interior"

33

(ideal-

deveria ser efectuada num campo diferente: Struthof, Mauthausen,

Majdanek).» A. Resnais, citado em C. DELAGE, «Les contraintes

d'une expérience

C. LANZMANN, Shoah, p. 18.

165

11. APESAR GEORGES

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TODA

DIDI-HUBERMAN

Fig.

22.

Fig. 23. Claude Lanzmann,

Alain Resnais, Noite e Nevoeiro, 1955. Fotograma do início do filme.

[...] em travellings lentos, a câmara não se mexe senão nos cenários vazios, reais e vivos -ligeira agitação dos tufos de erva - mas vazios de qualquer ser, e de uma realidade quase irreal à força de pertencer a um mundo que, para mais, é o de uma improvável, impossível sobrevivência. A câmara parece deslocar-se em vão, sem efeitos reais, desapossada do drama, do espectáculo que estes movimentos parecem acompanhar, mas que não são senão os de fantasmas invisíveis. Tudo está vazio, imóvel e silencioso; fotografias seriam suficientes. Mas, precisamente, a câmara mexe-se, ela é a única a mexer-se, ela é a única vida, não há nada a filmar, ninguém, só resta o cinema, não há nada de humano e de vivo a não ser o cinema, diante de alguns vestígios insignifi-

Shoah, 1985. Fotograma do início do filme.

Serge Daney compreendeu bem que esse travelling estava nos antípodas do «travelling de Kapo» tão violentamente fustigado em 1961 por [acques Rivette.ê" Viu em Noite e Nevoeiro a «obrigação de não fugir» diante da nossa história, o «anti-espectáculo» por excelência, a injunção de compreender «que a condição humana e a carnificina industrial não eram incompatíveis e que o pior tinha acabado de acontecer»; viu uma «sismografia» mais do que uma iconografia histórica e, por fim, uma verdadeira «escrita do desastre» no sentido que lhe atribui Maurice Blanchot.ê" Daney tinha razão: Noite e Nevoeiro apostava em abalar a memória partindo de uma contradição entre documentos inevitáveis da história e

cantes, derisórios, e é este deserto que a câmara percorre, é sobre ele que ela inscreve o rasto suplementar, rapidamente apagado, dos seus trajectos muito simples [...].34 35

J. RIVETTE, «De l'abjection», p. 54-55·

36

S. DANEY, «Resnais et J"'écriture p. 13-39. Cf., mais recentemente,

34

A_ FLEISCHER, L'Art d'AlainResnais,

166

p. 33.

du désastre?», p. 27-30. S. DANEY, «Le travelling de Kapo» (1992), F. NINEY, L'Épreuve du réel

mentaire, p. 95-100. e. NEYRAT,«Horreurjbonheur:

a l'écran. Essai sur le principe

métamorphose»,

de réalité doeu-

p. 47-54·

167

11. APESAR GEORGES

marcas repetidas do presente. Os documentos da história são as famosas imagens de arquivo - a preto e branco - que deixaram mudos de pavor os espectadores da época e que Lanzmann, hoje, quer refutar pela sua falta de rigor histórico. As marcas do presente vêm do «olhar sem tema» que Resnais lança sobre as paisagens vazias dos campos de concentração filmados a cores. Mas vêm também da vontade de dar todo o espaço sonoro do filme a dois sobreviventes das perseguições nazis: não testemunhos no sentido estrito da palavra, mas escritas voluntariamente distanciadas. O comentário de [ean Cayrol não descreve a sua experiência pessoal nos campos de concentração, e a música de Hanns Eisler impossibilita qualquer paráfrase patética das imagens. Uma decisão formal- sobretudo quando é radical- comporta sempre um impasse correlativo: o que se atinge num dado momento, perde-se noutro. Nas escolhas que faz relativamente à duração dos planos e à montagem, Resnais atinge esse poderoso sentimento de presente, que nos dá uma representação sintética daquilo que poderia ser «um campo» na Alemanha nazi. Consequentemente, «os campos» não se distinguem e a dimensão da análise histórica passa para segundo plano (lembramos que a distinção entre campos de exterminação e campos de concentração ainda não era prática corrente na historiografia dos anos cinquentaj.ê? Consequentemente, a imagem dos corpos esqueléticos vem constituir um «ecrã que se interpõe ao massacre de mulheres e de crianças perfeitamente sãs, conduzidas às câmaras de gás mal acabavam de descer dos vagões».38 Mas não podemos criticar uma obra por não cumprir uma promessa que não fez: o filme de Resnais não pretendia de todo «ensinar-nos tudo» acerca dos campos de concentração; ele apenas propunha, mais modestamente, um acessoao inacessível:

caram, inapreensível para aqueles que a viveram, é em vão que nós, por nosso turno, tentamos descobrir os seus restos [...]. Eis tudo o que nos resta imaginar.ê?

«Nós que fingimos acreditar que tudo isso pertence a um só tempo», dizia ainda, corajosamente, a voz de Noite e Nevoeiro."" Com o paralelismo entre as imagens de arquivo e as marcas do presente procurava-se convocar um tempo crítico _ à maneira de Brecht - propício, não à identificação, mas à reflexão política. Uma solução mais incisiva foi encontrada quando Marcel Ophuls, em Le Chagrin et la pitié, substituiu o paralelismo por uma forma de contratempo crítico nascido do choque incessante entre as imagens de arquivo e os testemunhos no presente. Lanzmann deve a Resnais um certo modo de quebrar a narrativa histórica para melhor nos permitir - a nós, espectadores - enfrentarmos a história. Mas o seu verdadeiro mestre é Marcel Ophuls.f' que encontrava sempre uma forma de levar o interlocutor ao testemunho, isto é, à impossibilidade de evitar a falha decisiva - a marca da História - na história que conta. Shoah radicaliza as soluções de Ophuls através de uma etapa suplementar, que consiste em deixar de utilizar o contratempo das imagens de arquivo, em proveito de uma única dimensão - a palavra e os lugares filmados no presente - que cria ela própria, pela sua duração prolongada, pela sua montagem, as condições inexoráveis de uma «impossibilidade de evitar». Ainda que Claude Lanzmann permaneça assaz silencioso em relação a Marcel Ophuls e seja exageradamente violento em relação a Alain Resnais.f" esta filiação

Contra as posições severas de Georges Bensoussan (Auschwitz en héritage? D'un bon usage de Ia mémoire, p. 44) e de Annette Wieviorka (Déportation et génocide. Entre Ia mémoire et l'oubli, p. 223), Christian Delage estabeleceu,

com base nos arquivos de Anatole Dauman, que o reconhecimento

do genocídio dos ju-

deus - e da sua especificidade -estava, de facto, contemplado noprojecto de Resnais, Cf. C. DELAGE, «Les contraintes d'une expérience collective», S. LINDEPERG,Clio de 5 à 7, p.183.

168

J. CAYROL,Nuit

et brouillard, p. 23-24.

41

Ibid., p. 43. Cf. P. MESNARD, «La mémoire cinématographique

42

de Ia Shoah, p. 289-29°. «Noutro dia, de manhã, fui à sala para conferir com o projeccionista

40

38

TODA

Esta realidade dos campos de concentração, menosprezada por aqueles que a fabri-

39

37

DA IMAGEM

DIDI·HUBERMAN

estava suficientemente

de Ia Shoah», p. 480-484. P. MESNARD, Consciences as condições da projecção; se o som

alto; a qualidade da cópia, etc. Em seguida, passo em frente da caixa, Shoah está

previsto para as 14h e vejo 12h: Noite e Nevoeiro. Digo cá para mim, "é estranho" ... Dirijo-me ao proprietário da sala [...] e digo-lhe: "O que é isto?" Ele responde-me:

"Sou obrigado a passar um filme ao meio-dia,

há leis." Disse-lhe então: "Estou a sonhar! Estou a sonhar ou quê?" Ao que ele respondeu: "Não, o meu programador

achou que apesar de tudo se tratava do mesmo tema." [...] Então eu disse: "Muito bem, se

169

GEORGES

DIDI-HUBERMAN 11. APESAR

merecia ser analisada. Ela mostra-nos, caso tal ainda fosse necessário, que o uso do arquivo está longe de ter «passado de rnoda»:» e que, nos inúmeros filmes consagrados à Shoah entre 1985 e 1995, a montagem das imagens do passado com os testemunhos do presente percorre todo um espectro de soluções formais do qual nenhuma regra geral poderia ser extraída44.,Basta não sermos ingénuos, ne~nQ. que diz respeito aos arquivos nem no que diz respeito à montagem que a partir deles se produz: os primeiros não nos dão de todo a verdade «nua e crua» do passado e só existem porque se constroem a partir doconjunto das questões ponderadas que lhes devemos colocar; a segunda, vem precisamente dai forma a esse.êorijunto de questões, daí a sua importância - estética e epistemológica _crucial. 45

--

«~_~.~.g~rame.!1t~coisas que não podemos ver. E é preciso mostrar ag.!!iJ,.o...qlJ§ não podemos v~L»~~Eis pelo menos uma prõposição de Gérard Wajcrnan que posso subscrever. Mas, infelizmente, a sua conclusão estraga tudo: «o que isso mostra é que não há ímagem».« Para fundamentar uma tal afirmação foi preciso, num plano muito geral, restringir à linguagem aforça de mostrar; e, num plano mais circunstancial, decretar que as nove horas e meia do filme Shoah não são imagens (ora, se Lanzmann tivesse querido confiar apenas na palavra, não teria feito um filme, mas um livro ou uma emissão de rádio, por exemplo).

--

passar Noite e Nevoeiro não passará Shoah, eu retiro o filme." [".] Parece-me que a confrontação

ou a con-

tiguidade dos dois filmes não tem sentido. Mesmo se o tema é idêntico, Shoah não tem nada a ver com Noite e Nevoeiro.» C. Lanzmann, citado em V. Lowv, L'Histoire infilmable, 43

44

Como acredita V. SÁNCHEZ-BIOSCA,«Représenter

l'irréprésentable.

p. 85-86.

Des abus de Ia réthorique»,

p. 177.

Cf. P. MESNARD,«La mémoire cinématographique de Ia Shoah», p. 473-490 (que contabiliza 1194 filmes realizados entre 1985 e 1995)· P. MESNARD,Consciences de laShoah, p. 294-297 (cL'obstination des archives» onde são evocados, nomeadamente,

os filmes de A. Iaubert, E. Sivan e R. Brauman). Cf. Igualmente F. Mo-

NICELLle C. SALETTI(dir.), Il racconto delta catastroft. Il cinema di fronte ad Auschwitz. W. W. WENDE (dir.), Geschichte im Film. Mediale Inszenierungen 45 46 47

DA IMAGEM

TODA

,. - dee iImagem - na sua h·istóque W'ajcman d escon h'ece e que a propna noçao ria como na sua antropologia - se confunde precisamente com a tentativa incessante de mostrar o que não sepode ver. Não podemos «ver o desejo» enquanto tal, mas os pintores souberam utilizar o escarlate para o mostrar; não podemos «ver a morte», mas os escultores souberam modelar o espaço como se fosse a porta de um túmulo que «nos olha»; não podemos «ver a palavra», mas os artistas souberam construir as suas figuras como uma série de dispositivos enunciativos; não podemos «ver o tempo», mas as imagens criam o anacronismo que nos mostra o seu trabalho; não podemos «ver o lugar», mas as fábulas tópicas inventadas pelos artistas mostram bem - por meios simultaneamente sensíveis e inteligíveis - o poder de uma «evidência». Toda a história das imagens pode assim ser contada como um esforço para.dar a ver a superação visual das oposições tri~ -(\ viaiseatse o visiset» o invisivels «É preciso mostrar aquilo que não podemos ver»: Gérard Wajcman pensa que só uma eliminação, uma unificação ou uma absolutização da imagem - a imagem nula, a imagem uma ou a imagem toda - poderiam responder a este imperativo. Eu r.enso, pelo contrário, que a multiplicação e a conjunção das imagens, por mais lacunares e relativas que sejam, formam várias vias para mostrar apesar de tudo aquilo que não se pode ver. Ora, a primeira e a mais simples forma de mostrar aquilo que nos escapa, consiste, de facto, em montar o seu desvio figural, associando várias perspectivas ou vários tempos do mesmo fenómeno. A forma elementar - fria, assustadora - deste desvio pode ser observada num filme muito breve, realizado por um técnico nazi em Setembro de 1941, em Mogilov (Bielorrússia): um plano mostra homens nus, esfaimados, transportados num carrinho, diante dos quais se fechará uma porta; o plano seguinte descreve simplesmente a trajectória de tubos conectados ao escape de um automóvel; trata-se, portanto, de um filme em que não se vê, mas onde se mostra, através da montagem elementar das duas sequências, uma experiência de gaseamento por óxido de carbono - as vítimas eram, sem dúvida, doentes com deficiências+" ~O

des Holocaust una kultureltes Gedachtnis,

CF. F. NINEY,L'Épreuve du réel à l'écran. Essai sur leprincipe de réalité documentaire, p. 253-271(